PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
Retomemos a música. Se o atonalismo e seus sucessores no campo erudito não
vingaram para além de seu restrito campo, a dita música popular, menos própria na dicotomia
símbolo-diabolus, vai se apropriar de outro modo do contexto de predomínio da tritonização.
Consideremos um breve percurso até o rock, seguindo uma linhagem que passa pelo blues e
pelo jazz. O blues surge no Sul dos Estados Unidos da América, em fins do século XVIII,
derivado das cantigas dos negros enquanto cultivavam a terra. A música é o dado imaterial, de
difícil captura pelos senhores das terras. Expatriados e escravizados em número de cerca de 10
milhões, a música foi um meio de resistirem a essa condição, perpetuando a herança cultural
africana que remonta aos griots
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e assimilando elementos da cultura americana. Esta música
viril e revolucionária
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caracteriza-se pela mescla entre o sagrado e o profano, como nas
músicas da irmã Rosetta Tharpe ou os famosos pactos com o diabo na encruzilhada, cantados e
feitos por músicos, como o atribuído a Robert Johnson. Chegado à cidade no final do século
XIX, o blues passa a retratar os estilos de vida desregrados – sexo, drogas, álcool – das
subculturas urbanas
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. No contexto urbano, o blues toma outras formas e podemos arriscar que
uma dessas formas foi sendo apropriada e convertida no jazz. Sem nos estendermos na
definição do que é o jazz, consideramo-lo, assim como o blues, como derivado do encontro
dos recursos da música africana e anglo-americana
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. No jazz o trítono ganha primazia e
popularidade. É o refinamento do dilema revolucionário do negro. Ainda pendendo entre o
sagrado e o profano, como é o caso de Duke Ellington ou de John Coltrane, o jazz caracteriza-
se pela fratura da própria música. Obra sempre inconclusa, sempre a ser refeita onde o que
importa não é a reprodução, mas o próprio ato de tocar e reconstruir a música no improviso. O
jazz é labiríntico. A falta do ritmo, “dimensão construtiva do pulso”, salientada acima por
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Griots eram os cantores e instrumentistas da áfrica do sul que tocavam instrumentos de corda caseiros
“repetindo uma série de figuras rítmicas, com um tom suave e apagado das cordas, proprocionando um
acompanahmento leve e apressado à profunda ressonância de sua voz”. In: Mestres do Blues. Rio de Janeiro:
Altaya, 1995. p.1.
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Como identifica Genet: “(...) nas músicas africanas, que mais tarde se transformaram no jazz, eles passavam
palavras de ordem de fugas e revoltas. Quando cantavam, de manhã ou à noite, segundo ritmos variados e leves
das frases muito claras para eles, que chamavam para a reunião perto de um rio para atravessá-lo e fugir em
direção ao norte, é certo que eles escolhiam vozes – de mulheres ou de homens – carnais, quentes, eroticamente
quentes, capazes de ‘chamar’ com a mesma autoridade que os machos no cio: o objetivo era a fuga, o socorro a
outros negros marrons, o fogo, a guerra. Mas o chamado era feito por uma voz na qual os negros reconheciam
promessas de casamento”. GENET, J. Um cativo apaixonado. São Paulo: Arx, 2003. p.310.
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Músicas de subculturas surgem no mesmo período em outras localidades, como o tango na Argentina, o fado
em Portugal, a rebetica dos gregos e o samba no Brasil. Mestres do Blues, op.cit. p.141.
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Sobre os problemas de se definir o jazz caracterizando-o no somatório da enculturação e da aculturação, cf.
MASSIN, J; MASSIN, B. História da música ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 1065-1070.