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BRENO LUIZ THADEU DA SILVA
A INCOMPLETUDE DA CONSTRUTURA:
UM ESPAÇO DA TRADUÇÃO EM ARQUITETURA
BELO HORIZONTE
ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG
2007
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BRENO LUIZ THADEU DA SILVA
A INCOMPLETUDE DA CONSTRUTURA:
UM ESPAÇO DA TRADUÇÃO EM ARQUITETURA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo da Escola de
Arquitetura da UFMG como requisito parcial
à obtenção do título de mestre em Arquitetura
e Urbanismo.
Área de concentração: Análise e Crítica e
História da Arquitetura e do Urbanismo.
Orientador:
Prof. Dr. Carlos Antônio Leite Brandão
BELO HORIZONTE
ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG
2007
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Dissertação defendida e aprovada, em 26 de Fevereiro de 2007, pela banca examinadora
constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Antônio Leite Brandão – Orientador
_________________________________________________
Profa. Dra. Paola Berenstein Jacques
_________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Kraiser
Dedico e agradeço a todas as pessoas, a todas as coisas, a todos os afetos e até a todas as instituições que,
quer queiram, quer não, contribuíram para a feitura deste trabalho. Aos que cavalgaram comigo e aos que
ladraram. Dedico também aos que forem se utilizar deste trabalho daqui em diante para fazerem algo e,
fundamentalmente, aos implicados com a construtura.
RESUMO
Este trabalho parte de uma tentativa de averiguar como o campo arquitetônico
traduz elementos de outros campos para sua consistência. Por exemplo, podemos traduzir
problematizações próprias ao campo das artes para a formação de uma arquitetura, seja em
teoria ou obra. Nossa concepção de tradução extrapola o sentido lingüístico e volta-se aos
processos de transformações por atritos mútuos pelos quais os corpos vão se formando.
Assim, neste enfoque de tradução, acabamos por incidir mais nos processos de troca e
formações entre os campos, a fim de apurarmos algumas repercussões dentro do campo da
arquitetura. Quanto à forma de estruturação do trabalho, optamos pela recorrência do
problema de tradução como transformação e formação, o que definiu, diversamente de
capítulos seqüenciais, algumas partes que podem ser lidas independentemente. Abordamos
a tradução em arquitetura por um viés de re-incidênciass, o que aqui chamamos de
“recaídas”, isto é, lançado o problema, ele reaparece de outras formas ao longo do texto,
como uma tradução da tradução. No prólogo ou parte I, anunciamos o problema da
tradução como modo de construção em arquitetura a partir do texto bíblico da Torre de
Babel. Na parte II, nos ocupamos em teorizar a tradução para a arquitetura, culminando no
modelo de pregnância dos termos postos em tradução. Na parte III, realizamos alguns
exercícios de tradução, partindo de problematizações detectadas no campo das artes que
vão tangenciar os processos de transformações e formações em arquitetura. E, em nossas
considerações finais, às quais preferimos denominar “penúltimas”, porque nenhum texto se
encerra completamente em si, apresentamos algumas repercussões desta versão de tradução
que chega numa teoria quase-literária para a arquitetura.
ABSTRACT
This work starts from an attempt to inquire how architecture can translate elements
from other disciplines to make itself consistent. For example, we can translate some
questions related to art into the field of architecture in order to make architecture itself. Our
conception of translation is beyond the linguistic meaning and consists on the processes of
transformations for mutual “attritions” through which the bodies are formed. Thus, in this
approach of translation, the research happened more in the processes of exchange between
the disciplines, in order to analyze some repercussions in architecture. About the structure
of the work, as we decided for the problem of the translation as a process of transformation
and formation, it defined the organization of the research in Parts, that can be readen in an
independent way, differently from the sequential order of Chapters. We approach the
translation in architecture through a look of “happening-again”, which we call “fallen
again”, that is, once the problem is presented, it reappears in other forms throughout the
text, as the translation of the translation. In the Prologue, we announce, from the biblical
text of Babel, the problem of the translation as a way of construction in architecture. In Part
II, we theorize translation in architecture up to defining the model of “pregnância”
1
between the terms that are being translated. In Part III, we register some exercises of
translation, starting from some questions related to art that can influence the processes of
transformations and formations in architecture. And, in our final part, which we preferred
to call “penultimate” part, once a text is never closed to be transformed, we present some
repercussions of this version of translation, which is almost a literary theory for
architecture.
1
N.T.: decidimos por manter o termo na língua original pela força semântica do mesmo em Português.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1: Grande vaca preta de Lascaux.....................................................................62
FIGURA 2: Detalhe de signos ininteligíveis de Lascaux.................................................62
FIGURA 3: LISSITZKY. Proun, 1919.............................................................................63
FIGURA 4: LISSITZKY. Proun 93, 1923........................................................................64
FIGURA 5: LISSITZKY. ProunG7, 1923........................................................................64
FIGURA 6: KIAROSTAMI.Fotografia s/ título..............................................................67
FIGURA 7: KIAROSTAMI.Fotografia s/ título. ............................................................67
FIGURA 8: Navio sendo arrastado, Fitzcarraldo, de Werner Herzog (1981)..................71
FIGURA 9: Casa pegando fogo, O sacrifício, de Andrei Tarkovski (1985)....................75
FIGURA 10. REMBRANDT. Auto-retrato, 1633-34........................................................79
FIGURAS 11. REMBRANDT. Auto-retrato, 1665.............................................................79
FIGURA 12: CÉZANNE. A montanha de Sainte-Victoire, 1892-95.................................81
FIGURA 13: CÉZANNE. A montanha de Sainte-Victoire, 1904-06. ...............................81
FIGURA 14: Casa no Aglomerado da Serra, Belo horizonte, década de 90......................84
FIGURA 15: Casa no Aglomerado da Serra, Belo horizonte, década de 90......................84
FIGURA 16: Construção no da Serra, Belo horizonte, década de 90.................................84
FIGURA 17: Pavilhão Zwinger .........................................................................................88
FIGURA 18: Biblioteca Imperial de Viena ........................................................................89
FIGURA 19: PIRANESI. Carceri d’Invenzione ................................................................90
FIGURA 20: PIRANESI. Carceri d’Invenzione; ...............................................................90
FIGURA 21: Capa do disco Eletric Ladyland, The Jimi Hendrix Experience,
(1968)....................................................................................................................................93
FIGURA 22: OITICICA. Cosmococas..............................................................................93
FIGURA 23: OITICICA. Newyorkaises.............................................................................93
FIGURA 24: Desenhos de Taccola de máquinas de Brunelleschi. ....................................99
FIGURA 25: Desenho de Mariano Taccola. Sistema de transporte por barco ................100
FIGURA 26: HEDJUK. Vítimas, planta...........................................................................104
FIGURA 27: HEDJUK. Vítimas, desenhos......................................................................105
FIGURA 28: Narrativa de projeto e obra de uma sala de estudo e lazer..........................111
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 10
PARTE I - PRÓLOGO PARA O ESPAÇO DA TRADUÇÃO EM ARQUITETURA
Ou num instante preciso, apalavrado em Babel, a construção tornou-se visível no
horizonte infinito e, inscrita, nunca mais cessou sua aparição e sua feitura sobre tantas
formas quantas poderíamos conceber 16
PARTE II - O ESPAÇO DA TRADUÇÃO EM ARQUITETURA
Introdução por uma situação da transformação dos corpos 27
1. A tradução generalizada: a transgressão e remendo fazendo e transformando as formas
no que delas foram lançadas à excentricidade 29
2. A tradução intersemiótica e a arquitetura: a exigência da materialidade e o atrito
inevitável das coisas 33
3. Pregnâncias das palavras e das coisas na tradução em arquitetura: a força da forma e o
que os corpos lançam para fora de si e incorporam 41
4. O arquiteto tradutor: o corpo transdutor de códigos, a experiência e a interpretação
construtiva 48
PARTE III - EXERCÍCIOS DE TRADUÇÃO ENTRE ARQUITETURA E ALGUMAS
ARTES
Introdução por uma pregnância arquitetônica 55
1. Exercício 1: A inscrição e a origem mentida da arquitetura 56
2. Exercício 2: A arquitetura por vir 68
3. Exercício 3: A casa e a carne 76
4. Exercício 4: Diabolus em música e em arquitetura 85
5. Exercício 5: A escrita pública do arquiteto 95
6. Exercício 6: Quando uma arquitetura em sua feitura explicita a construção por tradução 112
PARTE IV - CONSIDERAÇÕES PENÚLTIMAS
1. Epílogo para antes de Babel ou Antecedentes e algumas tópicas do nome próprio
Arquitetura 118
2. Narrativa da casa afrontada 124
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 128
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
10
APRESENTAÇÃO
Nosso empenho indócil neste trabalho converge para tatear uma versão de
“construtura” por tradução e suas implicâncias no campo da arquitetura.
“Construtura” é ainda um termo por definir, aquilo que ainda não sabemos como fazê-
lo. Supõe-se, pelo título deste texto, que seja algo da ordem do inacabado. Esse termo aparece
sucintamente no dicionário como “modo de construir”
2
. Difere, portanto, da construção, da
estrutura ou ainda da junção desses termos. Encontramos “construtura” num ensaio de Jacques
Derrida sobre tradução, intitulado Torres de Babel
3
. O termo surge, logo no início de seu texto,
aproximado a “modo de construir”, mas este modo é sempre relativo a uma construção
inacabada, isto é, passível de ser transformada. O modo de construir, ou desconstruir, em
Derrida ocorre por uma versão da tradução que abarca signos verbais e não verbais. No breve
parágrafo da aparição do termo, Derrida aproxima a construtura da ordem inacabada do
arquitetural, de qualquer sistema e do limite interno à qualquer formalização. O termo aparece,
portanto, como um modo de construir sempre inacabado e sempre por se fazer, escreve
Derrida:
“A ‘torre de Babel’ não configura apenas a multiplicidade irredutível das
línguas, ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de
totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da
edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica. O que a
multiplicidade de idiomas vai limitar não é uma tradução verdadeira, uma
entr’expressão [entr’expression] transparente e adequada, mas também, uma
ordem estrutural, uma coerência do constructum. Existe aí (traduzamos) algo
como um limite interno à formalização, uma incompletude da construtura
[constructure]. Seria fácil e até certo ponto justificado ver-se aí a tradução de
um sistema em desconstrução”.
4
Uma ordem do inacabamento, onde a arquitetura está incompleta e exige a
continuidade da construção, tende a adquirir uma dinâmica, um devir. Construtura, tradução e
arquitetura: a nossa investigação perpassa esses três termos e se depara com as coincidências
entre eles formando um espaço ao qual denominamos de espaço da tradução. É o próprio
2
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; FERREIRA, Marina Baird; ANJOS, Margarida dos. Novo
dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3.ed. Curitiba: Positivo, 2004. 2120. CD-ROM ISBN 8574724149 (enc.)
3
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
4
Ibidem. p.11-12.
APRESENTAÇÃO
11
espaço desta narrativa e também de tantas outras. Nesse espaço, podemos dizer da
morfogênese e do desenrolar da formação incompleta e inacabada, pela qual se consiste uma
arquitetura. Seria este o seu modo de construir? Algo sempre inacabado, exigindo uma
continuidade parcial da construção, um devir construtivo?
Alguns indícios vetorizam nossa investigação e nossa narrativa. Em busca de um modo
de construir condizente com essa versão da construtura, este trabalho investe no que supomos
ser a especificidade inaugural da arquitetura: suas apropriações e diálogos com outros campos
de conhecimentos e de feituras. Os campos são domínios abertos onde fazemos nossas
travessias e por onde começamos a construir. Os campos são espaços da tradução e do embate
das formas. Supomos ser este um dos modos de fazer e de pensar arquitetura por ao menos três
detecções.
A primeira delas é apontada a partir da dificuldade de se propor uma teoria da
arquitetura que parta exclusivamente da arquitetura e que não tenha repercussões fora de seus
limites. Quer dizer, a teoria da arquitetura tende a se atritar mais com outros campos do que
com as especificidades de sua constituição. Essa situação, de modo geral, gera um
distanciamento constituído de falsas polaridades, como a dissociação entre a teoria e a prática,
cabendo à teoria outros tantos binarismos da arquitetura submetida às ciências humanas,
enquanto a prática fica restrita ao projeto, à formulação e à análise de dados. Teoria e prática
pouco convergem e, quando o fazem, o resultado apresenta-se forçado, como no caso do
conceito em arquitetura. Nossa recusa à simplificação deste panorama é também a nossa
recusa em aceitá-lo em sua naturalidade. Uma segunda detecção é a da insistência em diálogos
da arquitetura com outros campos de conhecimento, principalmente as artes, ao longo da
história. Não nos cabe aqui uma revisão deste porte, basta salientar que as proximidades com
outros campos foram e o utilizadas em algum grau como recurso para se discursar sobre
arquitetura e para construí-la também. A terceira detecção é a de que a arquitetura escapa à sua
definição disciplinar. A arquitetura não se restringe ao trabalho feito pelo profissional
arquiteto. Pessoas sem qualificação neste campo disciplinar fazem arquitetura sem a menor
exigência de reconhecimento e, não obstante, muitas vezes alcançam resultados que
contribuem para o campo disciplinar arquitetônico. Essa situação gera uma ambigüidade
interna à especificidade disciplinar da arquitetura.
APRESENTAÇÃO
12
Essas três detecções, bastante gerais, que mais confundem do que elucidam o campo da
arquitetura, nos conduziram para uma investigação que atravessa as polaridades do campo
arquitetônico. Tal investigação surge da suposição da arquitetura que se faz consistir pelo
diálogo com outros campos manifestos. Ou seja, investigamos como a matéria expressiva de
algo que não seja do campo arquitetônico sirva para se produzir arquitetura. Ou, como a
construtura ocorre em arquitetura por tradução de outros campos. Trata-se de uma versão
parcial, um modo possível entre outros, assentado na noção de tradução e de um modo de
construir inacabado. Nessa versão a arquitetura resulta de forma mais ou menos evidente da
transformação de elementos de outros campos. Explicitamos, por essa transformação, que a
arquitetura adquire outras especificidades que não a deixam vinculada ou restrita a esses
campos. Neste trabalho de pesquisa, tentamos delinear este processo de contato que vai
produzir formas arquitetônicas, sejam obras, sejam projetos, sejam textos. Esse processo de
atrito gera o que nomeamos de “pregnância”, ou força da forma. Nesse sentido, aproximamos a
tradução da noção de um modo de construir inacabado no qual identificamos uma
especificidade arquitetônica.
Para adentrarmos no modo de construir por embate das formas, utilizamos uma noção
expandida da tradução. A noção de tradução que propomos vai além concepção lingüística,
sendo construída a partir de autores que ampliam a terminologia, abrangendo signos não
verbais. São eles: Roman Jakobson, Walter Benjamin, Jacques Derrida e Julio Plaza. Para
abordarmos a tradução em arquitetura, considerando-a diante da ação do homem construtor,
recorremos inicialmente aos modos de tradução definidos por Roman Jakobson
5
. Ele define
três tipos de tradução: a intralingual, a interlingual e a intersemiótica. Na tradução intralingual,
ou reformulação, os signos lingüísticos são interpretados por signos lingüísticos de uma
mesma língua. Na segunda forma de tradução, à qual ele nomeou interlingual, os signos de
uma língua são interpretados por signos de outra. É o que se chama de tradução “propriamente
dita”. Existiria ainda a tradução intersemiótica, ou transmutação, que interpreta signos
lingüísticos por meio de signos o lingüísticos. Derrida
6
contrapõe os pressupostos de
Jakobson com uma perspectiva de tradução como jogo de traduzibilidade e intraduzibilidade, o
5
Cf. BRANDÃO. C. A traduzibilidade dos conceitos. Entre o visível e o dizível. In: DOMINGUES, I. (org.).
Conhecimento e transdiciplinareidade II. Aspectos metodológicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.42;
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.23; PLAZA, J. Ao leitor In: Tradução
intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. S/ numeração de página.
6
Cf. DERRIDA, J. Op.cit. p.24-25.
APRESENTAÇÃO
13
que é, por exemplo, o caso dos nomes próprios ou de matérias expressivas em transformação.
Essa perspectiva da tradução converge para o seu próprio movimento, o devir construtivo que
não cessa de fazer e transformar as formas. Nesse sentido, a tradução intersemiótica,
escapando a crítica de uma tradução inadequada ou imprópria, é tratada por Júlio Plaza
7
não só
como correspondência, mas como transformação e recurso poético, compreendido como modo
de fazer ou de construir algo singularmente. A tradução intersemiótica caracteriza o espaço da
tradução em arquitetura, uma vez que ela nos permite o intercâmbio de linguagens com
conseqüente transformação dos termos envolvidos no procedimento construtivo. É uma
tradução favorável à consistência da arquitetura a partir do atrito com outros campos. Mas
teríamos que investigar ainda a ação do arquiteto. Nesse sentido, adentramos os problemas da
pregnância entre o legível e o visível para a ação construtiva.
A própria confecção deste trabalho visa a aplicar o modelo de tradução entre campos,
na medida em que busca a teoria da arquitetura pautada na noção de tradução como modo de
construção. Essa pretensão nos leva a arriscar num campo que extrapola a metodologia
científica tradicional dos moldes dissertativos. Como afirmamos, a arquitetura transborda o
domínio disciplinar e isto nos abre para investigações que, sem deixar de serem produções
acadêmicas, requerem outras metodologias. Adotamos uma construção metodológica diversa
do modelo dominante científico, pautado na organicidade e no evolucionismo linear, e
acabamos por nos aproximar do tom ensaístico. Este trabalho se constitui a partir de retornos
ao problema central, explícito desde o início. Isto é, retomamos sempre o tema central, porém
sob outras formas, o que faz com que a própria consistência desta pesquisa ocorra ao longo do
trajeto, por re-incidências ou, como chamaremos, “recaídas”.
O texto deste trabalho é composto por partes que podem ser lidas isoladamente, mas
que mantêm uma coesão interna entre si. No prólogo ou Parte I, anunciamos o problema da
tradução como modo de construção em arquitetura, a partir do texto bíblico da Torre de Babel.
Partimos deste texto para averiguar o que ele lança para fora dele, isto é, para detectar o
material de tradução capaz de repercutir na arquitetura. Na Parte II, nos ocupamos em teorizar
a tradução tal como a encaminhamos para a arquitetura. Como se trata de uma tentativa sem
referenciais seguros, ou seja, de uma tentativa não legitimada pelo campo disciplinar da
arquitetura, tateamos nossa contribuição enfocando o processo de pregnância entre os campos
7
Cf.PLAZA, J. Ao leitor In: Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. S/ numeração de página.
APRESENTAÇÃO
14
por atrito entre as coisas e pela ação do arquiteto. A parte teórica acontece, deste modo, como
uma teoria da tradução entre campos, com ênfase na formação da arquitetura e na ação do
arquiteto. Na Parte III, produzimos, a partir da construção teórica, exercícios de tradução
partindo de outros campos para chegar à arquitetura. Nesses exercícios, privilegiamos a
própria tradução em arquitetura, o que nos leva a constatar, sob a forma de uma meta-
narrativa, a especificidade deste campo de saber: suas pregnâncias com as matérias de outros
campos. Na seqüência, expandimos essa meta-narrativa a aplicações nos desdobramentos da
arquitetura em projeto e em objeto ou obra, utilizando um trabalho nosso numa sala de som,
vídeo e trabalho, num apartamento residencial. Por fim, apresentamos nossas conclusões sob a
forma de considerações penúltimas, que não acreditamos no encerramento de um texto em
si, em sua forma fechada. Apresentamos também algumas repercussões possíveis desta versão
de tradução em arquitetura.
Este trabalho adquire uma proximidade com a literatura que vai se firmar como
possibilidade de construção teórica para a arquitetura. Tal proximidade faz da matéria
expressiva do texto, a palavra, matéria para a arquitetura no sentido da construção do próprio
texto como teoria capaz de gerar desdobramentos para o campo arquitetônico. A diferença
entre a arquitetura e a literatura aparece na medida em que o texto, quase literário, encaminha-
se para a arquitetura e sua teoria passa a consistir-se numa forma de prática. Como veremos,
assumir esta concepção desloca o problema do conceito como ponte entre a teoria e o projeto e
a obra de arquitetura, para uma outra relação pautada na discursividade, com narrativas
implicadas com a construtura.
Por fim, fazemos uma recomendação ao leitor, chamando-o à percepção de um texto
que se faz por saltos e desvios, como um fluxo de pensamento, onde os encadeamentos não se
alinham seqüencialmente, mas se remendam na forma do trabalho; onde traçamos uma linha
de pensamento sem retidão e ainda sem fim. Linha de construtura babélica.
PARTE I
Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
16
PARTE I PRÓLOGO PARA O ESPAÇO DA TRADUÇÃO EM
ARQUITETURA
Ou num instante preciso, apalavrado em Babel, a construção tornou-se visível no
horizonte infinito e, inscrita, nunca mais cessou sua aparição e sua feitura sobre tantas
formas quantas poderíamos conceber.
Introduziremos este trabalho referenciando-o no mito hebreu da Torre de Babel. A partir
dele, mostraremos algumas trilhas que orientaram nossa investigação sobre a possibilidade de
formação da arquitetura por tradução entre diferentes campos. Elegemos tal mito por lermos
nele a inauguração do conceito de tradução equiparado ao de construção. Nessa leitura do
mito, as imagens arquitetônicas da torre e da cidade são possíveis de serem construídas no
instante em que ocorre o reconhecimento da multiplicidade das linguagens pelo homem. E tal
instante é o mesmo que cinde a plenitude de uma universalização, de uma torre, de uma
cidade e de uma linguagem. A tradução exigida a partir deste reconhecimento expande-se a
quaisquer linguagens e destitui-se da pretensão de universalização, ocorrendo como um modo
de construção parcial, falho, inacabado e em feitura perpétua. A partir desta versão da tradução
como “construtura” inacabada, tentaremos delinear o que nomeamos de espaço da tradução em
arquitetura como espaço de formação da obra (projeto, teoria, objeto) perpassando toda sua
duração.
Eis o nosso pretexto. O mito da Torre de Babel, que tomamos do livro bíblico do
Gênesis, apesar de existirem variações mais antigas na Pérsia
8
, conta a saga dos descendentes
de Noé. Após errarem entre diversas regiões, chegando na terra de Sinear, os homens
decidem, por vontade própria, construir uma cidade e, nela, uma torre capaz de alcançar o
paraíso celeste e dar-lhes o domínio na Terra, o nome e o poder de nomear o que quisessem.
Irado com a ousadia da emancipação, Deus castigou os homens com a heteroglossia: a língua
deixou de ser comum e tornou impossível o entendimento entre eles, o que colocou um fim à
construção da cidade e da torre e dispersou-os em todas as direções da Terra. Com o envio de
setenta anjos, foram criadas setenta línguas. Daí em diante, durante a construção da torre, os
homens não se entendiam, quando um pedia tijolo, recebia uma ferramenta. Passaram a se
8
Para o estudo das versões anteriores e da própria versão bíblica, cf. GRAVES, R; PATAI, R. Los mitos hebreus.
El libro del Génesis. Buenos Aires: Editorial Losada, 1969. p.146-151.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
17
matar. Assim, a construção da torre cessou e os construtores se dispersaram em todas as
direções formando setenta nações e fracassou-se a tentativa do governo universal pelo homem.
Por intercessão do Deus, somente os filhos de Abraão mantiveram a língua dita supostamente a
original: a hebraica. Por fim, um terço da torre foi tragada pela terra, um terço, destruída pelo
Fogo Celeste, restando um terço que parece mais alto do que é devido a sua base larga.
O tempo mítico é instantâneo, isto é, na narrativa de Babel, a língua original, a
construção da torre e da cidade, a instauração da multiplicidade de linguagens, a destruição da
torre e a dispersão em todas as direções da Terra acontecem num mesmo instante, num “aí
está”. Num dado momento preciso, mas que ainda somos incapazes de identificá-lo, tão logo
principiada a língua original, ela é sobreposta pela multiplicidade das linguagens; tão logo
principiada uma construção única, ela se encontra sobreposta por uma infinidade de
construções. A língua original e a torre de Babel eram, desde um início perdido no tempo,
impossíveis de se realizarem como construções únicas. Elas só aparecem como possíveis
quando interditadas, quando se reconhece a descontinuidade e a impossibilidade de
universalização.
O mito de Babel narra a fundação da linguagem dizendo da impossibilidade de uma
língua original
9
e da evidência da descontinuidade na multiplicidade das linguagens. Como
escreve Jacques Derrida, o mito de Babel “diz da linguagem a ela mesma e ao sentido”. Assim
sendo, é o mito de inauguração da linguagem, do mito e da tradução
10
. A situação de
“intraduzibilidade” de uma língua universal nos leva a expandir a proliferação das línguas para
a das linguagens num lugar que está além das palavras, pois tendemos a ler uma linguagem
única como incapaz de distinção e impossível de produzir afeto e sentido ou mesmo de ser
expressa. Neste enfoque, desviamos a tradução de uma abordagem estritamente lingüística
para expandi-la a quaisquer linguagens não verbais e apontá-la como recurso de construção no
mundo. Apropriada a quaisquer linguagens, a tradução é o movimento de construção babélico,
de construtura inacabada, fazendo formas e transformando formas; é o movimento de
morfogênese de “segunda-mão” e de metamorfose. A este movimento chamamos de “devir
9
A impossibilidade de universalização das línguas é confirmada pela filologia. Como coloca Rónai, os filólogos há
muito abandonaram o plano de detectar uma origem comum a todas as línguas a partir das semelhanças entre as
mais antigas conhecidas, pois quase nada possuem em comum. Cf. RÓNAI, P. Babel e antibabel. São Paulo:
Perspectiva, 1970. p.22.
10
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.11.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
18
construtivo”, por configurar uma espécie de transa entre as coisas. No condizente à produção
de sentido, o mito adquire suas implicações humanas. A tradução, para além de sua
generalização, é algo de que o homem participa.
O mito de Babel narra o instante quando se tornou necessário ao homem traduzir e
quando ele reconheceu a impossibilidade de qualquer universalização, interditado o retorno ou
mesmo a existência de uma língua original comum a todos. Narra, portanto, nossa apropriação
das linguagens e como nós a transformamos, construindo, entre a multiplicidade e a
universalização, formações, afetos e sentido. A interdição de uma única língua marca o
reconhecimento da diferença e da descontinuidade nesta Terra em que habitamos. O
reconhecimento da descontinuidade é dado de fora, no caso do mito de Babel, utilizando a
figura de Deus. A imagem de Deus seria a de uma exterioridade pura e, algo da ordem do
sobrenatural. Isto é, essa exterioridade, que aponta a descontinuidade, é algo a princípio
inumano e “inatural”, mas da qual, de algum modo, participamos. O modo pelo qual
participamos é reconhecendo a interdição e, suspeitamos, transgredindo tal reconhecimento em
via dupla: quando assumimos sua parcialidade destituída de uma origem e de um fim
constatáveis e quando visamos a uma certa continuidade suportável, como um remendo frágil
entre pedaços das coisas ou dos corpos. Talvez se aloje aí a tarefa do tradutor em nossa versão.
No mito ocorre uma estranha correspondência entre a arquitetura figurada pela cidade e
pela torre com a linguagem. Essa correspondência aparece quando a interdição de uma língua
única instaura a multiplicidade das línguas e, por conseguinte, a multiplicidade das construções
vindouras pela dispersão dos homens por toda a Terra. Estreitando a correspondência com a
arquitetura ocorre a interdição de uma cidade única e de uma torre capaz de chegar ao paraíso
ou instituir o domínio de um governo universal. Por outro lado, o mito propaga a
multiplicidade das construções que desde então não deixam de evidenciar a cisão da
continuidade que assumem suas formas. Babel interditada, Babel inaugurada em metamorfose.
A imagem arquitetônica corrobora a expansão da multiplicidade das linguagens para campos
não verbais e diz de uma versão da arquitetura compactuada com um modo de construir por
tradução, que é a construtura. Nesta construtura, a arquitetura se encontra em constante
transformação em sua duração. Podemos etimologicamente tentar uma confirmação desta
versão para arquitetura traduzindo-a sem a segurança de uma verdade filológica, absoluta ou
totalitária, como constituída pela junção de dois radicais gregos: arché e tektonikés. A arché é
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
19
origem, princípio, fundamento, e tektonikés é técnica (téchne) que abarca a experiência e o
discurso teórico sobre o seu campo de feituras, compreendido no domínio mais geral da
construção. Assim, a arquitetura etimologicamente se constituiria na inauguração da coisa e do
discurso, da e por construção, assumindo uma correspondência babélica com a disposição de
uma construtura inacabada.
Se temos, como premissas, o reconhecimento da interdição da unidade pela entidade
transcendental, a evidência da multiplicidade das linguagens verbais ou não verbais e a
transgressão no decorrer de uma duração, é possível assim que aproximemos a tradução como
modo de construção em arquitetura. Nesse enfoque, tentaremos encaminhar a arquitetura para
um espaço de coincidências de sua formação que começa a fazer sentido como seu espaço da
tradução.
Antes de nos precipitarmos formulando mais suspeitas, partamos do texto, o bíblico, para
identificarmos o que temos dito.
“Eis os filhos de Shem / por seus clãs, por suas línguas, / nas suas terras, por
seus povos. / Eis os clãs dos filhos de Noah por seu gesto, nos seus povos: /
deles se cindem os povos sobre a terra, depois do dilúvio. / E é toda a terra:
um lábio de únicas palavras. / E é na sua partida do Oriente: eles
encontram um canyon, / na terra de Shine’ar. / Eles se estabelecem. / Eles
dizem, cada um a seu semelhante / “Vamos construamos os tijolos, /
chamusquemo-los na chama.” / O tijolo torna-se para eles pedra, o betume,
argamassa. / Eles dizem: / “Vamos, edifiquemo-nos uma cidade e uma torre.
/ Sua cabeça: aos céus. / Façamo-nos um nome, / que nós não sejamos
dispersados sobre a face de toda a terra.” YHWH desce para ver a cidade e a
torre / que edificaram os filhos dos homens. / YHWH diz: / “Sim! Um
povo, um só lábio para todos: / eis o que eles começam a fazer!/ (...) Vamos!
Desçam! Confundam seus lábios, / o homem não compreenderá mais a
língua de seu próximo.” (Depois ele dissemina os Sem, e a disseminação é
aqui desconstrução) “YHWH os dispersa daí sobre a face de toda a terra. /
Eles cessam de edificar a cidade. / Sobre o que ele clama seu nome: Bavel,
Confusão, / pois aí, YHWH confunde o lábio de toda a terra, / e daí YHWH
os dispersa sobre a face de toda a terra.”
11
Confundir “o lábio de toda a terra” é instaurar não só a multiplicidade das línguas como
também, ou mesmo antes dela, a das linguagens. As linguagens abarcam os modos de
expressão tanto humanos quanto os das matérias dispostas no mundo, passíveis de produzirem
sentido para s. O mito conduz ao entendimento da linguagem abrangendo quaisquer
11
Utilizamos a tradução do fragmento do texto bíblico em versão mais literal realizada por Chouraqui, in:
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.16-18.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
20
matérias e modos de expressão produtores de afeto e sentido. Por certo que a precedência de
matérias expressivas à própria existência humana nos faz supor que a língua deriva da
experiência de construção do homem no mundo, ou seja, da experiência com linguagens
inumanas dispostas sobre a Terra. Nesse sentido, a escolha pelo sítio de Sinear indica o que vai
acontecer. A cidade de Babel principiou por ser erigida na terra de Sinear onde havia um
cânion. O cânion é a topografia formada de depressões, desfiladeiros e abismos, fraturando a
superfície terrestre, dividindo-a. Nesta geografia da segmentariedade, os homens resolvem
construir a cidade que reverbera a fratura da própria terra e sua memória geológica. A
movimentação da Terra destitui-a da condição de estase inegendrada. A antecedência das
linguagens está marcada sobre a Terra e a terra marcou o homem antes mesmo de ele falar. Ou,
nas palavras de William Burroughs: “Eu sugiro que a palavra falada tal como a conhecemos é
subseqüente à palavra escrita. No princípio era a palavra e a palavra era Deus e a palavra foi
carne... carne humana... no princípio da escrita.”
12
. A experiência na carne, pelo contato do
homem com a terra, é sua primeira escrita, mas ainda não é a escrita das palavras. Antes da
construção de Babel, a carne havia sido mais que escrita, no entanto, a palavra ainda era
Deus, exterioridade pura e ainda irreconhecível.
Encontramos indicativos de uma linguagem inumana constituindo o corpo humano no
mito de Babel. Nele a metonímia “língua”, que utilizamos para dizer da linguagem das
palavras, é subvertida na própria amplitude do uso da metonímia “lábio”. O lábio é a dobra da
formação do corpo humano de onde sai a fala e é a exterioridade do avesso da pele por onde
efetuamos o contato com o outro, com o mundo, com a diferença. O lábio é uma formação de
memória biológica. Do lábio dobrado como linguagem antecedente sai a língua. O
impronunciável torna-se possibilidade de fala e legibilidade. Babel surge como o primeiro
nome próprio e a primeira memória das palavras. YHWH, o quase-nome de Deus, fez-se
pronunciável quando a exterioridade pura é reconhecida em sua descontinuidade. “Sobre o que
ele clama seu nome: Bavel, Confusão”. O impronunciável converte-se em Babel, em uma
confusão dada pela multiplicidade das linguagens explícitas ao homem. O nome próprio Babel
instaura linguagens não verbais, mas com elas instaura também a linguagem por palavras, tal
12
BURROUGHS, W. A revolução electrónica. Lisboa: Vega, 1994. p.19.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
21
qual a utilizamos, e conseqüentemente faz surgir a memória das palavras, a memória cruel
13
.
A linguagem das palavras surge na fratura que expõe tantas outras linguagens e internamente
vai repercutir tal fratura na ausência de uma língua original e na “traduzibilidade” sempre
parcial, seja numa mesma língua, seja de uma língua para outra, seja entre signos não verbais.
Babel nomeia várias coisas de fora e joga com a representação do nome. A homonímia
introduz a tradução parcial (Confusão) e a intraduzibilidade de uma origem impossível
(YHWH). Em primeira instância Babel é o nome clamado por Deus e, imediatamente,
Confusão: “Bavel, Confusão”. Neste ponto, podemos precisar no mito o instante inaugural do
reconhecimento pelo homem da multiplicidade das linguagens e da descontinuidade. Quando a
imagem de Deus no mito ou quando a exterioridade do mundo se anuncia, aparecendo sob suas
matérias expressivas descontínuas, é, então, que podemos nomeá-las e traduzi-las. E a
construção torna-se possível. Ela acontece entre a unidade de origem perdida e a continuidade
parcial. Sem origem e finalidades prefiguradas e em processo de transformação, a construção
aparenta ser confusa. Daí extraímos uma leitura da tradução de Babel por Confusão. Portanto,
deixemos de lado qualquer repercussão teológica ou metafísica e nos voltemos para o lugar
onde podemos construir: na descontinuidade. Em tradução, Babel como confusão é um atrito
parcial entre termos onde o original, Babel, e o traduzido, Confusão, passam a ter repercussão
um no outro, lançando a linguagem ao infinito, com a abertura para uma construção sem fim,
utilizando dos recursos de acréscimo e de transformação dos termos e mostrando o remendo e
a trapaça das linguagens em suas realizações.
No mito, Babel (“Ba-” equivalendo a cidade e “-Bel”, a Deus) é o nome da cidade, da
torre da cidade, do mito sobre a torre e a cidade. É o primeiro nome próprio do homem. Todos
os nomes sem a precisão da língua única. Por “um lábio”, Babel ainda não era uma cidade.
Instaurado o reconhecimento da multiplicidade das linguagens, fez-se a cidade de Babel. “A
cidade carregaria o nome de Deus o pai e do pai da cidade que se chama confusão”
14
. O verbo
funda a cidade como a lei ou a interdição divina (o Deus pai), mas traz também a sua
transgressão ou a poesia (o pai da cidade que se chama confusão). O verbo que principia a
cidade babélica é o verbo de Deus, a unidade, o intraduzível e, ao mesmo tempo, quando se
13
Escreve Nietzsche: “Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício quando o homem sentiu a necessidade
de criar para si uma memória (...)”. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p.51.
14
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.14.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
22
inicia a construção da cidade, o verbo é o descontínuo, o fragmentado, a confusão, o passível
de ser traduzido pelo homem. A torre destruída se multiplicou em progressão geométrica nas
setenta cidades geradas e, destas em diante, fizeram-se as cidades mundo afora. Na medida em
que a tradução é imposta, as cidades vindouras são construídas por transgressão, como
reconhecimento da interdição exterior ao homem, o primeiro movimento tradutor parcial
destituído de sua negatividade. Nesse sentido, as cidades são fundadas pela confusão.
Cindida a língua, cindidos os corpos. Babel também nomeia o homem, desde então
confuso e construtor. Gillo Dorfles propõe uma aproximação etimológica de Babel com
bárbaro e com balbuciar
15
. Para os gregos antigos, bárbaro era aquele que não falava o grego,
“os que balbuciam o idioma não seu”. Aquele que se expressa confusamente, o que não é
cidadão. Estranhamente, o que funda a cidade é expulso num segundo momento, quando da
instauração da lei. A lei das cidades repercute na interdição divina, mas em outro sentido,
contra a confusão e visando a uma universalização. Porém, confuso, o homem é construtor
inclusive de sua língua. Descendendo da exterioridade se nomeia: Babel. E a partir daí nomeia
todas as coisas descendendo da tradução inaugural, de Babel, da confusão. O homem nomeia
inclusive a narrativa de Babel, fazendo esta palavra possuir ainda a função de um nome
comum, que significa a “origem da confusão das línguas, a multiplicidade dos idiomas, a tarefa
necessária e impossível da tradução, sua necessidade como impossibilidade
16
. No extremo da
intraduzibilidade efetua a poesia, a glossolalia, a palavra inventada que escapa às línguas, a
palavra-sopro, a palavra mágica. Estreitando a tradução com a intraduzibilidade elevada à
própria linguagem verbal, Babel se instaura como linguagem poética. E também os poetas,
como quaisquer outros transgressores, não são benquistos nas cidades. Seriam expulsos para
produzirem novas fundações. Haveria aí um auto-exílio?
Dada a antecedência de uma linguagem que nos é desconhecida ou obscura, por qual
linguagem tentou-se construir a cidade e a torre de Babel? Os descendentes de Noé disseram:
“‘Vamos construamos os tijolos, / chamusquemo-los na chama.’ O tijolo torna-se para eles
pedra, o betume, argamassa”. Essa língua perdida é linguagem diversa da das palavras, não se
confunde com o hebraico, mas já era capaz de possibilitar a construção. Voltamo-nos à
antecedência de uma tradução pré-babélica, anterior a linguagem humana, como
15
Dorfles traça sua crítica à simplificação etimológica de Babel, assim como uma leitura do mito referente à
tradução, in: DORFLES, G. Elogio da desarmonia. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p.21-27.
16
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.21.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
23
reconhecimento de uma exterioridade. A imagem da tradução pré-babélica é a dos materiais de
construção em metamorfose. Nesse trecho do mito, Derrida suspeita da existência da tradução
não verbal e escreve que “isso já se assemelha a uma tradução, a uma tradução da tradução”
17
,
porém se esquiva de uma interpretação da transformação dos materiais. A tradução da tradução
assemelha-se à própria linguagem da construção com suas especificidades, seus modos
singulares de feituras. Por sua vez, a torre de Babel exibe um não acabamento, “a
impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da
ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica”
18
. A
incompletude da construtura, evidenciada na torre, e a metamorfose dos materiais são
propulsores do devir construtivo. Em devir, as formas não são sistemas fechados e, no mito, é
a imagem arquitetônica, quer dizer, o seu conjunto de matérias expressivas em movimento, o
que vai mostrar a abertura para a transformação das formas.
Por meio de uma linguagem pré-babélica, a arquitetura está inserida numa
traduzibilidade como uma multiplicidade que ainda não conseguimos traduzir. E isso porque
houve o rompimento com a língua única, quebrando a universalidade instaurada pela própria
multiplicidade. A arquitetura, desde sua origem perdida, teve que assimilar em sua linguagem
algo de inumano e inatural que, ao menos em parte, reconhecemos. A arquitetura, como a
entendemos aqui, descende da transgressão. Pelo mito de Babel, não nos foi permitido alcançar
o paraíso, mas construir reconhecendo a exterioridade entre o céu impossível e a terra cindida
desde Sinear. Da cisão construímos. A arquitetura mostra a segmentação, a descontinuidade
instaurada. Se considerarmos uma definição pelo modo de construir, a nossa versão da
arquitetura poderia ser definida como a “arte”, entendida como modo se fazer algo, da
descontinuidade. Neste sentido, a imagem da torre de Babel como primeira arquitetura seria
labiríntica.
A arquitetura abre para o jogo entre a condenação de construir e o espaço de recursos ao
indivíduo construtor. Nesses espaços de movimento construtivo, reconhecemos o espaço da
tradução. Confirmando nosso desvencilhar-se da perspectiva lingüística da tradução e indo
além das conclusões de Dorfles sobre a tradução, como uma traição evocando a memória
17
DERRIDA J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.15-16.
18
Ibidem. p.12.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
24
biológica como princípio desregrado
19
, consideramos a lição de Babel como a condenação do
homem a construir distanciando-se de uma perspectiva transcendente. É o que os homens de
razão, aqueles que instauraram a lei e expulsaram os poetas, vão condenar ao longo da história
do ocidente como “mania de construir”. Em nosso entendimento, a mania de construir sem
finalidade de transcendência é traduzir. Construir no mundo remendando parcialmente,
reconhecendo o “inacabamento” da construtura.
Nesses termos, delineamos nossa abordagem: o espaço da tradução em arquitetura
refere-se ao reconhecimento da potência construtiva e à condenação do homem a construir
num mundo destituído da transcendência. Consideramos a arquitetura como campo
privilegiado, quase metacampo da tradução, aproximando-a da definição de “arte” da
medida, das distâncias, da segmentariedade. Assim, investigar o espaço da tradução na
arquitetura é investigar sua própria especificidade, investigar aquilo em que ela consiste,
não deixando de caracterizar esse campo, bem como as avarias de seus limites, seus
legíveis, ilegíveis, dizíveis e indizíveis, traçando a linha de fuga rumo ao espaço de centro
impossível entre os termos disposto na exterioridade do mundo. Nesse movimento, a
abertura para a comparação, a vertigem, a recaída, o ritornelo, o remendo, a trapaça.
Explicitemos os extratos principais do mito de Babel. Lemos nele a expansão das
linguagens abarcando signos não verbais cujas imagens utilizadas foram arquitetônicas: a torre
e a cidade. Pela interdição da unidade, da continuidade plena e da universalização, o homem
reconhece a diferença, a descontinuidade, as metamorfoses. Na profusão das linguagens, a
tradução surge como recurso de construtura. A imagem babélica é a da construção de cidades e
torres sem fim. A construtura ocorre sempre entre uma origem impossível e um fim
incompleto. Adquire um movimento de transformação, um devir construtivo no decorrer de
uma duração. Imagem da multiplicidade das linguagens no mito de Babel, a arquitetura, por
seu nome (arché-tektonikés), nome da construção inacabada, e por sua especificidade, “arte”
da segmentariedade, se aproxima da tradução por seu processo de formação. Desse modo,
19
“Que coisa resta afinal do mito de Babel. Talvez apenas uma constatação de que nem sequer a mais sofisticada
calculadora eletrônica será capaz de traduzir (sem ‘trair’) um trecho literário ou uma poesia de uma língua para a
outra; e que a compreensão total de um idioma é possível através de uma qualidade que não corresponde a
noções gramaticais mas a uma espécie de ‘empatia’ (...) e que o conhecimento de uma língua é qualquer coisa que
foge a toda a regra e até mesmo a toda sistematização, enquanto tem, mais ou menos, que ver com a organização
cito-arquitetônica do nosso córtex cerebral”
.
DORFLES, G. Elogio da desarmonia. São Paulo: Martins Fontes,
1988. p.27.
PARTE I – Prólogo para o espaço da tradução em arquitetura
25
orientamos nossa investigação para a arquitetura que é elaborada pelo processo da tradução,
pelo atrito com matérias expressivas diversas do seu campo e pelo reconhecimento da
incompletude que a faz consistir.
A partir dessa introdução, traçaremos na Parte II uma teoria da tradução condizente com
um modo de construir em arquitetura. Para tanto, esboçamos uma teoria do espaço da tradução
em arquitetura nas seguintes trilhas: primeiramente, no movimento inicial de tradução como
transgressão e remendo parcial, considerada como transformação generalizada a quaisquer
corpos; num segundo momento, conforme uma versão intersemiótica, que vai abordar a
relação entre signos não verbais, como entre a arquitetura e algumas artes; e, enfim, entre o
legível e o visível, como modelo privilegiado no processo de consistência de uma arquitetura.
Na seqüência, afirmamos a ação de tradução pelo arquiteto como indissociada da sua
experiência, conformando uma interpretação construtiva como uma discursividade feita teoria
quase literária. Nossa suspeita é a de que a tradução em arquitetura converge para o modelo de
pregnância do legível e do visível, permitindo fazer forma por atrito com outros campos,
termos, corpos. Nos exercícios de tradução, que constituem a Parte III deste trabalho,
enfocaremos tal modo de se fazer arquitetura tentando delinear, a partir do atrito da arquitetura
com artes visíveis e legíveis, a especificidade arquitetônica, que não deixa de ser a construção
incompleta. Evidenciamos, na própria trama deste texto, as implicações do visível e do legível
como forma de tradução. A Parte IV é resultado de conclusões que nos levaram a
“considerações penúltimas”, tomadas parciais com aberturas para construções outras.
PARTE II
O espaço da tradução em arquitetura
Eu dir-te-ei assim o que ele me disse, no seu modo:
« -Hodie, puer natus est nobis.
Tudo é sempre uma primeira vez.
Um tempo todo dado, de uma só vez, singular.
Ou para que o corpo o memorize todas as vezes que necessário se mostrar:
Um só tempo, um só corpo, uma só forma
Sem duração sem extensão sem volume.
Assim o corpo. Parte por parte, saboreado,
Ou embutido na intimidade
Do jogo de crianças, sempre novo, não encetado.
Do mesmo modo, a Forma. Uma só, em possíveis várias.
Um e uma; um e duas; dois em uma; dois e três.
Um e uma, íntimos.
Um com duas, sorormente.
Dois amantes, em uma, gostosas de suas aberturas.
Dois amantes, com três, irmanadas.
Fora do Corpo, de tudo se pode guardar: a duração, a extensão e o volume. Mas no meu, guardo
singular um jogo de crianças, sem outra Lei, sem olhar de outro, sem gesto alheio».
Maria Gabriela Llansol, Na casa de julho e agosto.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
27
PARTE II – O ESPAÇO DA TRADUÇÃO EM ARQUITETURA
Introdução por uma situação da transformação dos corpos
Dando seqüência à versão da tradução como transformação e modo de construção
identificada no mito de Babel, vamos traçar inicialmente um modo generalizado pelo qual a
tradução ocorre, fazendo um espaço por transgressão e remendo. Na seqüência, nos voltaremos
para a formação do espaço da tradução em arquitetura por atrito com campos distintos.
Identificamos tais atritos sob dois enfoques: o primeiro, conforme um modelo de tradução
intersemiótica, que se ocupa dos nexos entre signos não verbais; o segundo está pautado nas
relações entre o legível e o visível. No modelo de tradução intersemiótica, identificamos o
processo de formação em arquitetura que pode prescindir de um tradutor ativo, quer dizer,
privilegia-se um processo de formação entre signos não verbais que pode escapar ao
determinismo da ação de um tradutor. No modo de pregnância entre o legível e o visível, o
tradutor se apresenta de modo ativo por verbalização, promovendo a tradução entre signos
verbais e o verbais ou fazendo alguma coisa a partir do reconhecimento do movimento
intersemiótico, isto é, produzindo outras formas. Balizando esses modelos em suas
operacionalidades em arquitetura, passamos à ação do arquiteto como tradutor indissociável de
sua experiência, assumindo a parcialidade da sua tarefa.
Se considerarmos a traduzibilidade como possibilidade de tornar para nós legíveis e
visíveis as transformações dos corpos, teríamos que ampliar a sua abrangência como recurso
construtivo. O entendimento convencional de tradução vincula-se à linguagem das palavras, à
linguagem verbalizada, em que se traduz de uma língua para outra. na Apresentação deste
trabalho, indicamos as limitações desta versão de tradução, assim como anunciamos a versão
da tradução que nos cabe aqui. Tal versão vale-se de uma leitura da linguagem que extrapola
aquela dos signos verbais, e que gostaríamos de expandir a quaisquer formas. Podem ocorrer
entre termos de linguagens distintas como, por exemplo, a que realizaremos na Parte III, entre
a arquitetura e algumas artes. A tradução assume o próprio devir construtivo das linguagens
verbais, ou não verbais, em atrito e que não cessam de fazer e transformar as formas. A
tradução como metamorfose e morfogênese dos corpos se identifica com o movimento, com a
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
28
mudança de sentido, com a condução para além, com a passagem de um lugar para outro, com
as travessias. Ela faz passar pelos corpos e os transforma na passagem.
A tradução ocorre com o mínimo de dois termos, sendo o primeiro considerado o
original e o segundo considerado o traduzido. O original e o traduzido não são fixos no
transcurso do tempo. Se assim fosse, somente existiria o original do instante ainda pré-babélico
anterior à multiplicidade das linguagens. Não podemos considerar o original como a origem de
algo num sentido unilateral, pois desde o início da tradução ocorrem trocas entre os termos.
Tão logo se inicia o movimento de tradução, o original é lançado parcialmente para fora de si e
destituído de sua origem. Ambos os termos são levados para um campo onde eles se
despossuem e se transformam. O traduzido deixa de ser uma resposta de fidelidade ao original,
como um duplo espelhado, para assumir uma heteronomia. Assim, quando começa uma
tradução, um original começa a ser desapropriado. E quando elegemos um original, ele
procede de algum outro. Vamos considerar como original a fonte eleita ou identificada de uma
tradução, o que equivale a entender esse mesmo original como um recorte. O original, no
instante do recorte, é desvinculado de uma origem, que não a imediata. Como acena a epígrafe
desta Parte, o original, porta de início: “Um tempo, um corpo, uma forma”. Mal foi
recortado, começa sua desapropriação: “Do mesmo modo, a Forma. Uma só, em possíveis
várias”. E será lançado parcialmente no espaço da tradução, onde adquirirá outras qualidades:
“Fora do Corpo, de tudo se pode guardar: a duração, a extensão e o volume”.
20
Denominamos de espaço da tradução o campo onde ocorrem os atritos com força de
transformação dos corpos. O espaço da tradução se forma pela desapropriação dos corpos, por
algo que a princípio foi extraído de uma fonte e que vai gerar um campo para a formão do
traduzido. Quando o traduzido se forma, ele começa a reverberar no espaço da tradução. Assim
o espaço da tradução consiste num espaço de troca, de negociação e de aliança entre os termos.
Ele se difere do espaço físico compreendido no entendimento euclidiano ou do espaço
cotidiano. No entanto, não devemos considerá-lo numa perspectiva idealista, pois se encontra
comprometido com a formação dos corpos. Aproximamos esse espaço da definição geral de
espaço feita por Milton Santos: “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas
de ações”
21
. Essa definição converge para a noção de um espaço produzido. No espaço da
20
LLANSOL, M. Na casa de Julho e Agosto.Porto: Edições Afrontamento, 1984. p.60-61.
21
SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2004. p.21.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
29
tradução, a fonte e o traduzido se encontram suspensos permitindo a aproximação, a tangência
entre termos distintos, onde se travam as permeabilidades mútuas capazes de transformarem e
de produzirem forma. Na zona de contato entre esses termos, forma-se um campo de
indiscernibilidade, de não pertencimento. O espaço da tradução surge e se mantém como um
sistema aberto, propulsor da transformação dos corpos. Indiciado, adentremos em suas
especificidades constituintes que identificamos como a transgressão e o remendo.
1. A tradução generalizada: a transgressão e o remendo transformando as formas no
que delas foi lançado à excentricidade
Retomando o mito da Torre de Babel, nele os homens foram interditados por ordem
divina e não atingiram a unidade desejada. Foram condenados à heteroglossia, à
descontinuidade e à construção. De início, a tradução se apresenta como uma promessa de
restituição de uma unidade inexistente. Ela tenta restabelecer a união de termos distintos, no
entanto, na medida desta tentativa mostra a impossibilidade da continuidade plena e da
unidade. A tradução carrega a intraduzibilidade como a impossibilidade de semelhança e
correspondência plena entre os termos. Ela ocorre conjuntamente com o reconhecimento da
transgressão da semelhança e da origem interditada. Assim, a transgressão se aloja nos
movimentos internos da tradução. A tradução nos apresenta dois movimentos definidores de
sua temporalidade interna. O primeiro é aquele que lança o original, ou a fonte, parcialmente
para fora de si mesmo. Movimento de transgressão de si. Como escreve o poeta William
Blake, nos seus Provérbios do Inferno: “A cisterna contém: a fonte transborda”
22
. Nesse
sentido, o que chamamos de original ou fonte já traz consigo a precisão de sua desapropriação,
o que já indica uma mudança por dentro. O segundo se define pela relação de atrito do
traduzido com a fonte à qual ambos os termos são acrescentados ou de onde ambos são
esvaziados, isto é, transformados no embate dos corpos. A essa relação de acréscimo e
transformação, a tradução se apresenta como uma costura parcial dessa morfologia outra que,
de algum modo, se remenda a uma fonte. São movimentos de retorno, avançando. Re-
22
BLAKE, W. O matrimônio do céu e o inferno e O livro de Tel. São Paulo: Iluminuras, 1995. p.27.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
30
incidências, re-voltas. Recaídas
23
. Retorno a uma origem como um rastro falso, uma pista
modificada pelo tempo e que nos conduz a outros lugares, nos faz avançar. Esses movimentos
emparelhados de retorno-avançando produzem o que nomeamos de “devir construtivo”. Não
poderíamos compreender o devir construtivo sem adentrarmos a relação temporal que ele
requer.
O vínculo com um passado remete a uma origem impossível, a um sem-tempo mítico
pré-babélico, mas que insiste em repercutir na atualidade de uma obra. Repercute como um
acontecimento, uma presentificação. O tempo na tradução perde a linearidade seqüencial para
um emaranhamento que parte da fonte. O tempo dobra sobre si mesmo e se dispersa fazendo
espaço numa atualidade. O que se apresenta de início é o jogo de passagem, de travessia,
impulsionado por uma força que destitui parcialmente a descontinuidade de dois termos, sejam
o original, ou a fonte, e o traduzido, sejam a palavra e a coisa, o visível e o legível ou dois
corpos, dois seres. Tomamos o ser no sentido de uma fixação da diferença de um outro
qualquer perseverando em devir. Esta força da forma em embate com um outro vai produzir a
transgressão das formas voltadas para a transformação da fonte e para a morfogênese do
traduzido.
O movimento de tradução, tal como o temos compreendido, condiz com a noção de
transgressão na concepção de Georges Bataille
24
. Essa concepção se pauta na violência
elementar que lança o ser parcialmente para fora de si e da dissolução das formas constituídas,
produzindo um campo de indiscernibilidade onde uma continuidade entre os seres resiste. É o
que ele nomeia de erotismo. Não insistiremos neste termo, mas tampouco vamos esquecê-lo: a
tradução é erótica. Esta violência elementar ocorrida por atrito dos termos é também
identificada por Walter Benjamin, quando ele concebe a tradução como inadequada, violenta e
estranha ao conteúdo original.
25
Considerando a transgressão como o movimento inicial da
tradução, é por ela que se pretende uma outra continuidade parcial. É onde identificamos o
traço da semelhança dos termos e nos desvencilhamos de uma relação mimética. A cisão
primeira no mito de Babel, a descontinuidade dada pela interdição da unidade, impõe à
23
Sarduy na epígrafe de seu livro O barroco, oferece a seguinte definição de “recaimento” (do francês retombeé):
“causalidade acrónica / isomorfia não contígua, /ou / conseqüência de uma coisa que não se / verificou ainda, /
semelhança com algo que de / momento não existe”. SARDUY, S. O barroco. Lisboa: Vega, (!9??). p.19.
24
Cf. BATAILLE, G. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
25
Cf. BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Trad.: Karlheinz Bark.Cadernos do mestrado - UERJ, RJ, nº1, 1992.
p. xiii.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
31
capacidade humana o entendimento da diferença entre um e outro, que exigirá o empenho de
tradução como construção. Sob este olhar, a transgressão é destituída da negatividade de um
fim em si mesma para produzir o devir construtivo. Reconhecida a diferença, é preciso ainda
assumir a abertura para a transformação. Na relação entre os termos, o desnudamento define a
abertura para o contato, revelando a crueza e as brechas da superfície dos corpos. Como
escreve Bataille: “Trata-se de introduzir no interior do mundo fundado sobre a descontinuidade
toda a continuidade da qual este mundo é suscetível”
26
. Esta continuidade suscetível é o
remendo parcial entre os termos. A semelhança se encontra neste lugar de conexão parcial.
Se a interdição propiciou o reconhecimento da transgressão, transgredimos e, em
alguns casos, reinventamos uma unidade. A tradução produziu uma obra singular, isto que
nomeamos obra de arte ou obra poética. E fazemos poesia, e a poesia rememora a tradução.
Mais uma recaída. No mundo do relacionamento das coisas, o homem dotado da palavra
identifica o fenômeno, torna-se o seu vidente e, por conseguinte, adentra no empenho de
tradução. Com os esforços que lhes são próprios, os poetas se ocuparam de tornar visível o
movimento tradutor. Bataille aproxima a transgressão da poesia apropriando-se de Rimbaud.
Escreve:
“A poesia leva ao mesmo ponto que cada forma de erotismo, à indistinção, à
confusão dos objetos distintos. Ela nos leva à eternidade, à morte, à
continuidade: a poesia é a eternidade. É o mar que estrada junto com o sol,
unidade”.
27
A obra poética leva à confusão, a Babel e a suas repercussões nas obras formadas. Instaura
dentro da linguagem verbal sua transformação, mostrando a intraduzibilidade ao passo que
mostra uma continuidade suportável, isto é, parcial. Ao mesmo tempo em que a matéria
poética traz a sua desapropriação, lançando-se à exterioridade de si, ela mostra uma
continuidade suscetível em um mundo descontínuo, que é a própria continuidade do processo
tradutor. O poeta Hölderlin, em carta a Wilmans, datada de 28 de setembro de 1803, trata da
tradução entre línguas apontado para o sentido generalizado a que temos aludido. Como
escreve Plaza, Hölderlin considera a tradução como “emenda, externalização, extrojeção (levar
26
BATAILLE, G. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004. p.31.
27
Ibidem. p.40.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
32
pra fora e para frente significados implícitos), mas ela é também correção”
28
. Nessa concepção,
a tradução foi lançada ao infinito descrevendo o movimento de devir construtivo assumido
desde a linguagem das palavras. A externalidade de uma fonte é dada pelo movimento interno
da própria fonte, o que é chamado de “extrojeção”, produzindo um campo de
indiscernibilidade com o traduzido. Este campo ou espaço da tradução é a zona de contato
mais próxima entre os termos, da qual resulta uma emenda, como acréscimo ou “correção” da
fonte, e que não deixa de alimentar novas relações entre eles. A correção, mais do que um
acerto, acena para a incompletude do original e para sua constante transformação.
Identificamos aqui o segundo movimento da tradução, o retorno-avançando, a recaída que
evoca a imagem do remendo dos termos inacabados. O remendo é o que Benjamin nomeia
como o vínculo estreito entre o traduzido e o original. Escreve: “Este vínculo é tanto mais
íntimo quando nada mais significa para o original. Pode-se chamá-lo natural e, mais
propriamente vínculo de vida”
29
. Este vínculo não está pautado na semelhança dos termos,
dizendo mais de suas transformações. A tradução, deste modo, não visa à representação
mimética. O próprio Benjamin aponta para a impossibilidade de uma teoria da imitação para a
tradução. Assim, ela “não mereceria tal nome se não fosse metamorfose e renovação do que
vive, o original se modifica”
30
.
A tradução encontra-se, em sua própria movimentação transformadora, comprometida
com a formação e com a construção. A transformação ocorre por uma excentricidade, um
lançamento para fora de si, perdendo-se o original no outro e ambos se transformando. Essa
concepção generalizada da tradução corresponde à narrativa das transformações dos corpos por
Ovídio. Assim começa Metamorfoses, de Ovídio:
“Minha intenção é contar histórias sobre
corpos que / Assumem diferentes formas”.
31
As metamorfoses dos corpos em tradução, em
trânsito e em transa, definem um espaço para onde se deslocam as relações de diferença e de
semelhança entre os termos. As correspondências em tradução são desviadas da relação de
fidelidade ou verossimilhança das formas. Esse espaço da tradução, originado fora dos termos,
propicia o remendo entre eles. Assim, em nossa investigação da tradução, sua espacialização é
28
Cf. PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. p.31.
29
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Trad.: Karlheinz Bark.Cadernos do mestrado - UERJ, RJ, nº1, 1992. p.
vii.
30
Ibidem. p. x.
31
Cf. OVÍDIO. Metamorfoses. São Paulo: Madras, 2003. p.9.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
33
feita na exterioridade dos termos postos em desapropriação por transgressão e neste espaço é
onde se situa o remendo entre eles.
Cabe, por ora, deixar explícito que o espaço da tradução é o espaço do devir. Quando
dizemos das formas, dizemos de recortes estáticos, ou forjadamente estáticos, mas referenciais
para nosso próprio dizer e mesmo para o ser em devir. Assim, no espaço da tradução ocorre a
desapropriação, quando algo é lançado para fora dos termos possibilitando as transformações.
Aceitar, simplesmente, as formas em devir nos faria inoperantes, incapazes de construir.
Ocorreria algo semelhante a uma domesticação dos fluxos. Por enquanto, temos dito de
formas, mas recorremos somente à poesia e ao recurso poético. Pela poesia, escapamos ao
enfoque da tradução puramente verbalizada, pois a poesia é a linha de fuga de dentro da
linguagem verbal para um entendimento da tradução como transformação por construção.
Identificadas as constantes generalizadas da transgressão e do remendo, temos por suficiente a
correspondência da tradução com a construção para passarmos à investigação do espaço da
tradução em arquitetura. Para tanto será preciso uma voz grave, tão grave quanto a que
ordenou a multiplicidade das linguagens. Voz capaz de evocar a gravidade para que o espaço
da tradução alimente a construção na terra e não derive em idealismo e transcendências: a voz
do homem que condena o homem a construir.
2. A tradução intersemiótica e a arquitetura: a exigência da materialidade e o atrito
inevitável das coisas
Eis a voz do homem pré-babélico: “Vamos construamos os tijolos, / chamusquemo-los
na chama.” (...) / “Vamos, edifiquemo-nos uma cidade e uma torre. / Sua cabeça: aos céus. /
Façamo-nos um nome, / que nós não sejamos dispersados sobre a face de toda a terra”.
32
No
mito de Babel, antes de requerer a unidade, possível somente após a interdição divina, os
homens almejaram construir. Quiseram edificar por conta própria uma cidade e uma torre e se
nomearem. Para tanto, se voltaram para a transformação das matérias. dissemos no Prólogo
da estranha correspondência entre a tradução e a arquitetura conforme esta exigência. Ela se
mostra desde a escolha da terra cindida, o cânion de Sinear. Em seguida, a afinidade da
32
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.16-18.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
34
arquitetura com a tradução ocorre por suas matérias expressivas, a pedra, o barro, o betume,
que na origem mítica babélica são transformados em tijolos, em argamassa, em materiais
construtivos. Essas manifestações internas à formação seriam pré-babélicas, ou como acena
Derrida, algo que se assemelha a “uma tradução da tradução”
33
. Antes de Babel, não estava
instituído o nosso entendimento da multiplicidade das linguagens. Isto é, ainda não poderíamos
reconhecer as transformações enquanto movimentos de tradução. Mas quando iniciou-se a
edificação da torre de Babel, no mesmo instante a construção apareceu enquanto
multiplicidade. A tradução como recurso de construção nos foi imposta de fora, da
exterioridade circundante identificada com um Deus nomeado de segunda-mão. Daí em diante,
reconhecemos as componentes internas da tradução, que identificamos de remendo e
transgressão, e a abertura das formas para a relação com a exterioridade destituída de
transcendência. Podemos, inclusive, reconhecer os movimentos internos às formas como
movimentos de tradução.
Da narrativa mítica e de uma noção generalizada da tradução, aportamos no modelo de
tradução ocorrendo entre signos quaisquer, verbais ou não verbais, donde poderemos averiguar
nossa versão de tradução para a arquitetura. Segundo os preceitos semiológicos, os signos
postos em movimento - que em nossa terminologia são postos em devir construtivo -
conformam as semioses. As semioses são as ações dos signos capazes de transformar signos
em signos num processo seqüencial, sucessivo e ininterrupto
34
. As semioses de termos
distintos, por exemplo, signos de uma arquitetura e de uma outra arte, em relação de atrito
definem a tradução intersemiótica. Conforme anunciamos na Apresentação, o termo tradução
intersemiótica foi definido por Jakobson como interpretação de signos verbais por meio de
sistemas de signos não verbais ou transmutação. dissemos igualmente da precariedade da
categorização de Jakobson no quadro de uma versão ampliada da tradução como construção,
conforme lemos no mito de Babel. No entanto, não nos precipitamos na desconformidade
aparente do modelo de tradução intersemiótica. Também vimos no Prólogo que, de dentro
da semiologia, a tradução intersemiótica ganha outros direcionamentos, aos quais são
consoantes as investidas de nossa versão da tradução em arquitetura. Em Plaza, a concepção de
Jakobson da tradução de signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais é alargada,
33
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.16.
34
Tal perspectiva decorre da semiologia de Charles Pierce. Cf. PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo:
Perspectiva, 1987. p. 17.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
35
passando a abranger a tradução de diferentes sistemas de signos não verbais entre si, além de
identificá-la como ação criativa e transformadora, definindo-a como “transcriação das formas”.
Sob essa concepção, a teoria da tradução intersemiótica admite a versão da tradução que temos
construído.
Seguindo Plaza, priorizando o caráter de transformação, a versão da tradução intersemiótica,
assim como a nossa versão generalizada, descarta a relação de fidelidade ou de mimetismo
entre o original e o traduzido em suas atualidades, confirmando a orientação da semelhança e
das diferenças para o que temos chamado de espaço da tradução.
“A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver
com a fidelidade, pois ela cria a sua própria verdade e uma relação
fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-
presente- futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de
transformação de estruturas e eventos”
35
.
Como a tradução intersemiótica não visa à fidelidade, ela apresenta uma tendência a formar
novos objetos imediatos que se distanciam do original. Mas o próprio original, na medida em
que é desapropriado, é tomado como objeto imediato. dissemos acima que todo o original é
um “recorte” de um original, um produto de uma eleição, uma extração.
A atualidade do objeto não significa a desconsideração da história, mas o seu
deslocamento linear para convergir numa trama entre o passado, o presente e o futuro. Assim
como a semelhança e a diferença, a historicidade dos termos de uma tradução desloca-se do
campo dos objetos formados para a zona de contato e pregnância entre eles, para o espaço da
tradução, onde se encontram desapropriados. Como veremos na categorização de Plaza, os
graus de inscrição da semelhança e da historicidade nos termos de uma tradução variam. Na
tradução intersemiótica, a recorrência ao passado não é para reproduzi-lo, mas para traduzi-lo.
Do mesmo modo, o vínculo com o futuro, dada a abertura para a leitura e para o por vir,
sustenta o devir construtivo, o que nos isenta de um eterno presente. O deslocamento da
semelhança e da historicidade para o espaço da tradução condiz, como aponta Plaza, com a
perspectiva de Walter Benjamin de tradução como “produto de uma construção” ou de uma
“apropriação re-configuradora”, o que não deixa de ser coerente com a versão babélica. O
35
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 1.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
36
princípio construtivo em Benjamin deriva da noção monádica, avessa a uma linearidade
evolutiva e produtora de “constelações”. Escreve Plaza:
“Se Benjamin, na sua visão, enxerga a história como possibilidade, como
aquilo que não chegou a ser, mas que poderia ter sido, é justamente na
brecha de uma possibilidade semelhante (vão entre o que poderia ter sido,
mas não foi, mantendo a promessa de que ainda pode ser) que se insere o
projeto tradutor como projeto constelativo entre diferentes presentes e, como
tal, desviante e descentralizador, na medida em que, ao se instaurar,
necessariamente produz re-configurações monadológicas da história”
36
.
A instância monádica configura o espaço da tradução onde o passado, como o original a ser
traduzido, é um campo de infinitas possibilidades ainda não atualizadas, prestes a tomarem
parte numa sincronicidade que vincula o novo ao passado e ao presente, resguardando sua
abertura ao futuro. A mônada é o bloco de duração de uma obra, de um corpo em tradução.
Lançada no espaço da tradução, a relação mimética entre os termos assume uma perspectiva
diferente da mera representação restituída aos objetos imediatos. O que retorna aos termos de
uma tradução são mais do que correspondências de representatividade: são as marcas do atrito
dos termos que, em suas brechas, são capazes de ativarem outras traduções. A temporalidade e
a historicidade na tradução perdem a linearidade evolutiva para instituir graus de referência
entre os termos, os quais não deixam de ser uma produção de memória alojada no traduzido. O
original carrega consigo a marca que o vincula à história e à exterioridade do mundo. Nele está
inscrita a sua traduzibilidade. Ocorre um retorno positivo babélico como instauração da
legibilidade, ou seja, a identificação da exigência de tradução num original eleito.
Atentando para a presentificação, na atualidade do traduzido e na transformação do
original, a tradução intersemiótica inclui além dos procedimentos de linguagem, os meios
materiais para a sua manifestação. Tais meios não deixam de ser portadores de uma história
impregnada com a carga do tempo, com a narrativa dos procedimentos tecnológicos e os
modos de pensar de um determinado período. Conforme coloca Benjamin: “A tradução é uma
forma. Para apreendê-la assim deve-se retornar ao original. Pois nele está encerrada a lei de
sua traduzibilidade”
37
. A forma condiz com uma matéria expressiva suscetível de
transformação. O processo de formação retoma um original, porém assim o faz como uma
36
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 4-5.
37
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Trad.: Karlheinz Bark.Cadernos do mestrado - UERJ, RJ, nº1, 1992. p.vi.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
37
eleição de um passado que por si é uma invenção dada pela própria irreversibilidade a uma
origem. Nesse sentido, a intraduzibilidade se refere aos conteúdos próprios de uma obra
fundamentalmente poética, enquanto que a tradução volta-se para a transformação e a
modificação das formas. Escreve Plaza: “A tradução intersemiótica se pauta, então, pelo uso
material dos suportes, cujas qualidades e estruturas são os interpretantes dos signos que
absorvem, servindo como interfaces
38
. Nesta versão, Plaza assume a tradução intersemiótica
como referida mais às “transmutações intersígnicas do que exclusivamente à passagem de
signos lingüísticos para não lingüísticos”
39
. A tradução desvencilha-se dos conteúdos para
priorizar as matérias expressivas como meio para a transformação dos signos ou como ponto
de partida para a verbalização. Diminui-se o privilégio da palavra sobre a coisa e a dominância
do verbal é contrariada, bem como se abre para a possibilidade da aderência entre o legível e o
visível, sem dicotomias ou hierarquizações. A tradução aproxima-se da transformação das
matérias dos corpos.
Valendo-se da identificação da lei do original que demanda a tradução, mas
transpondo-a para o quadro da semiologia para investir na tradução intersemiótica entre signos
não verbais, Plaza vale-se das premissas pierceanas
40
para categorizar três tipos de traduções
intersemióticas. Antes, ele identifica os signos que vão fornecer a lei interna ao original, que
são chamados de “legissignos”. Eles fornecem a semelhança e a continuidade na organização
interna de uma mensagem. Identificados os legissignos, Plaza passa ao que a interioridade traz
e recebe da superfície onde efetua o contato com o outro. Escreve: “Se o signo de lei permite a
passagem de uma forma a outra, o caráter singular da forma diz respeito às passagens internas,
transformações dos elementos no interior da forma”
41
. Temos, então, nas definições de Plaza, o
intracódigo que configura as relações da linguagem conforme seus movimentos internos em
interação. Esta interação repercute de algum modo o contato com o exterior. Desse modo,
Plaza identifica as materializações que privilegiam o contato, a exterioridade:
38
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 67.
39
Ibidem. p.67.
40
Tais premissas semiológicas são extraídas de Pierce e definem as aproximações que Plaza realiza ao longo de
sua obra. São fundamentais para a definição de seus modelos de tradução. Como nossa orientação volta-se para o
problema da formação evidenciada pelo processo tradutório, não entramos na especificação da terminologia
semiológica adotada por Plaza e passamos direto às suas conclusões por se encontrarem mais próximas do que
pretendemos debater. Para o percurso semiológico pierceano realizado pelo autor. Cf. PLAZA, op.cit. p. 71-87.
41
Ibidem . p. 83.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
38
“Tratam-se das poéticas essencialmente fisicalistas que enfatizam o signo, a
sua materialidade e os suportes, nas quais domina a função fática da
linguagem. O fático, o contato pode ser entendido como o início do início,
onde predomina uma pré constelação ou uma mensagem latente, em
potencial e em estados configurativos permanentes, uma pré-linguagem.
Nestes casos, os procedimentos da operação tradutora m de se erigir sob a
dominância do singular”
42
.
A convergência do legissigno como intracódigo é a exigência da materialidade da obra como
princípio tradutor, partindo das matérias expressivas. Na função fática, o intracódigo vai
contestar o normativo do legissigno pela fragmentação própria do aspecto gerativo das
linguagens. É a tendência identificada por Plaza de “contracomunicação” ou “grau zero da
escritura”, referindo-se a Barthes. Em nossa terminologia, seria o aspecto de transgressão da
tradução.
Neste jogo entre lei interna e contato com a exterioridade, Plaza propõe três modos de
aproximação para a tradução: o primeiro é a captação da norma da forma como regra e lei
estruturante; o segundo é a captação da interação de sentidos no nível do intracódigo; o
terceiro, e último, é a captação da forma como qualidade sincrônica, como efeito estético entre
objeto e sujeito. Essa sua abordagem prioriza as transmutações intersígnicas e acaba por gerar
três matrizes para a tradução: a icônica, a indicial e a simbólica
43
. A tradução icônica se pauta
na similaridade de estruturas produzindo analogias entre objetos imediatos, entre o igual e o
parecido. Nesse sentido, é uma transcriação. A tradução icônica pode ter seus termos dados de
antemão, o que o autor traduz das operações artísticas como ready-made. Neste caso de
tradução, cabe ao tradutor apontar as correspondências ou semelhanças entre as estruturas,
comprometendo a originalidade e a hierarquia dos termos. A tradução indicial ocorre por uma
certa continuidade entre o original e a tradução, onde o original é lançado para outro meio com
transformação total ou parcial do objeto imediato. Tal tipo de tradução se caracteriza pela
formação de um outro termo. Por fim, a tradução simbólica surge como transcodificação, pois
opera pela contigüidade instituída externamente, seja por recurso metafórico, por símbolo, por
figuras de linguagem ou por quaisquer signos que adquirem um caráter convencional e
normatizador. Tal modo de tradução instaura um apriorismo que suspeitamos ser uma espécie
42
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 83.
43
Ibidem. p. 89-94.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
39
de “anti-espaço” da tradução, pois define um campo onde os termos estão desapropriados de
antemão, e não por atrito.
O primeiro problema com o qual nos deparamos, para a aplicação das categorias de
tradução feitas por Plaza à arquitetura, é a diferença entre os modelos utilizados pelo autor e as
obras de arquitetura. Plaza aplica suas categorias a objetos simples, em textos poéticos e em
imagens de certo rigor formal e dinâmico, o que facilita a identificação dos signos,
evidenciando as passagens por decomposição das estruturas. Quando aplicadas a objetos
complexos, como ao filme O encouraçado Potekin, predomina o holísmo
44
, traçando um plano
simbólico capaz de absorver, numa estrutura prévia de interligação, as transformações de uma
operação tradutora. Assim, o autor converge para uma totalidade insuportável aos corpos,
diferindo da versão da tradução generalizada, como a identificamos acima. Talvez seja a
insistência no enquadramento semiológico que impeça a própria versão de transcriação das
formas afastada do holísmo. Na premissa de Benjamin, tradução como uma forma, Derrida lê a
insistência na identificação da lei do original, que requer a tradução, em que a estrutura desta
demanda passa a ser formulada pela forma.
45
No entanto, em sua leitura, extrai as teses de que
a tradução não é recepção, comunicação nem representação
46
. Essas três negativas atacam a
semiologia comprometida com tais correspondências. De certo modo, a semiologia compactua
com a domesticação dos fluxos à medida de sua dissecação, propondo algumas categorias de
antemão e uma totalidade a priori, como convergência da tradução. Teríamos que considerar
ainda que, na nossa versão da tradução, as relações de semelhança e contigüidade estão fora
dos termos, se encontram na ampliação do sistema, no espaço da tradução.
A multiplicidade da arquitetura, babélica desde sua fundamentação, passa pela tradução
intersemiótica como transformação de seus processos construtivos materiais, de suas técnicas e
de suas matérias expressivas. É a exigência de materialidade no processo de tradução como
transformação. Outra contribuição da tradução intersemiótica é o caráter fático, de contato, que
identificamos como atrito entre termos, a violência elementar para qualquer formação. A
eleição de modelos de tradução com suas respectivas ilustrações em arquitetura não satisfaz
nossa investigação rumo a Babel, à instauração da multiplicidade, à nomeação por meio do
44
Cf. Parte II: Oficinas de signos : traduções intersemióticas e leituras. In:PLAZA, J. Tradução intersemiótica.
São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 89-94.
45
Cf. DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.36.
46
Ibidem. p.33-35.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
40
atrito com a exterioridade do mundo. A arquitetura se forma por sistemas complexos e abertos,
que não caberiam em tais categorias. Tomar parcialmente os signos arquitetônicos, numa
estrutura entendida em sua totalidade como somatório das partes, não satisfaz a tradução como
desapropriação parcial, pois aquilo que é desapropriado se mostra como acréscimo, como outra
coisa, explicitando a abertura do sistema da obra arquitetônica. A abertura perpassa desde as
traduções internas à obra de arquitetura, seja, por exemplo, na passagem do projeto ao objeto,
seja no tempo de duração da obra, que constantemente se modifica por condicionantes
externos e internos.
Notamos que o direcionamento desta pesquisa leva a tornar visível, a requerer a
visibilidade para o processo tradutor como construção, mais do que identificar modos de
tradução categorizáveis. Se aparentemente a categorização da tradução intersemiótica, tal qual
propõe Plaza, não daria conta de uma versão de tradução como construção, por sua vez, seu
raciocínio parece convergir para tal versão. As fissuras semiológicas nos possibilitaram o
entendimento da tradução como transformação dos corpos e a exigência da materialidade, a
partir de seus movimentos internos e do atrito com outros termos, lançando-os parcialmente à
exterioridade. Como a tradução intersemiótica nos auxilia de modo a sistematizar as operações
de transformação e de relação entre as formas, caberia ainda verificar uma sistemática capaz de
dar conta do princípio tradutor que demanda a verbalização sem formações binárias. Seria uma
sistemática aberta avessa a categorizações apriorísticas. Teríamos que investigar um modelo
para verbalização condizente com a tradução, mas que, diversamente da tradução
intersemiótica, não derivasse em categorias e fosse capaz da abrangência transdisciplinar da
arquitetura. Até então temos priorizado em nossa investigação a tradução como movimento de
transgressão e remendo entre os termos. Teríamos, então, que considerar ainda o
reconhecimento da multiplicidade como recurso da ação tradutora. A tradução, para além de
dois termos, sob o enfoque da ação de um tradutor, tende a demandar algum modo de
verbalização, seja do visto, do escrito, do falado ou do pensado. Nesse enfoque, o espaço da
tradução também estaria comprometido, desde sua formação, com as relações entre o que nos é
visível e o que nos é legível. Em nosso percurso babélico, suspeitamos ser neste atrito da
palavra com a coisa, destituindo-os de um binarismo, configurando um antecedente e um
propulsor da tradução, onde se ampliam e se mantêm abertos os sistemas, onde ocorre a
tradução em arquitetura no modo que a requeremos.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
41
3-Pregnâncias das palavras e das coisas na tradução em arquitetura: a força da forma e o
que os corpos lançam para fora de si e incorporam
Mais uma vez recorrendo ao mito de Babel, nele a linguagem única que permitiu a
construção da torre como língua universal, pressuposta de um entendimento pleno entre os
homens, fica extensiva a qualquer linguagem. Nesse entendimento pleno, a linguagem dos
construtores era uma só, também diluída na língua universal. Como se todas as coisas tivessem
nomes próprios. Extraímos do mito a suposição de que existiria uma aderência entre o legível e
o visível, entre a língua universal e a torre ou qualquer construção ou imagem. Imagens são
tidas aqui como matérias expressivas. Se os tijolos dizem da tradução como transformação
do barro, tal transformação ocorre pelo fogo, a matéria sublime, a figura do conhecimento
prometido, primeira aproximação da transgressão dos homens. Na versão mítica, somente
depois de Babel, com a interdição divina, instaura-se a multiplicidade das linguagens e tal
multiplicidade ocorre com a cisão parcial entre visível e legível. A partir de então, diferenciou-
se, em termos de linguagens, o que os homens viam. Separa-se o visível do legível, a palavra
da coisa. Os homens foram condenados ao penúltimo verbo, uma vez que sempre ocorrerá um
outro depois. Foram condenados a traduzir e a construir. Os nomes dados de fora, do contato
com o mundo, deixam de ser próprios, ao passo que são possíveis de serem apropriados e
renomeados. E os homens puderam, então, dizer o que viam sob representação da língua.
Substituíram o fogo pela escrita, como registro do conhecimento por conta própria, ou seja, do
conhecimento duvidoso. O verbo deixa de ser logos para forjar a racionalidade e a poesia em
suas tentativas suportáveis de conciliação do visível com o legível.
Instaurada a traduzibilidade, inaugura-se a representação entre o visível e o legível ,
mas inaugura-se também a necessidade de uma continuidade suportável entre eles. A tradução
fica, deste modo, implicada nas relações internas dos termos, isto é, no quanto eles se
impregnam no atrito mútuo. E ainda temos o terceiro termo que é formado, a resultante de uma
interpretação que vai produzir uma representação do processo tradutório, privilegiando ora o
visível, ora o legível. Sobre a interpretação trataremos na próxima sub-parte. Como temos
visto, em tradução a representação é falha, pois escapa à imitação e à semelhança enquanto é
lançada para fora do domínio dos corpos, lançada ao espaço da tradução. Nossa suspeita é a de
que a pregnância do visível e do legível ocorre na desapropriação dos corpos, como também
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
42
no retorno aos corpos de algo oriundo do espaço da tradução. Feito o movimento de recaída, os
corpos são desapropriados parcialmente: o que lançam para fora de si se aloja no espaço da
tradução ao mesmo tempo que incorporam elementos exteriores. É nesta incorporação que
existe a possibilidade da aderência entre palavra e coisa em suas parcialidades. A
representação deixa de ser uma relação de semelhança entre os termos e passa a servir de
recurso para mostrar as aparências que esses termos assumem em suas atualidades
incorporadas. A representação desloca-se para as figuras tanto do traduzido quanto do original,
ou seja, são tornadas apropriadas para cada termo. A figura, como conjunto das matérias
expressivas de um corpo, é diferente da representação visando à imitação, pois esta não
consegue abarcar toda a pluralidade dada pelo jogo entre visível e legível ao qual a figura se
abre. Derrida identifica este jogo no mito de Babel, escrevendo que “ele não forma uma figura
em meio a outras” e, na seqüência, que “ele também fala da necessidade de figuração”
47
.
Até aqui, a pregância do visível com o legível foi identificada como a força da forma
no movimento tradutor que não se compromete com a imitação. Caberia na seqüência um
estreitamento dessas pregnâncias, enfocando o texto e a obra, ainda de modo geral, para depois
passarmos à arquitetura. Calabrese identifica, nas correntes estéticas contemporâneas, linhas
de pensamentos sobre a relação entre o legível e o visível que visam a ler uma obra a partir da
textualização do visível numa relação complementar, o que de certo modo se orienta para as
pregnâncias, em detrimento de uma hierarquização que privilegia a palavra.
48
Para
produzirmos sentido, averiguando as pregnâncias entre o visível e o legível, ou mesmo para
traduzirmos as formas não verbais, torna-se necessário, em alguma medida, a tradução desse
sentido em sistemas verbais: é a língua sobre a multiplicidade das linguagens. Uma obra
visível não é uma língua verbal e faz-se preciso adentrarmos no espaço epistemológico da
obra, o isso que ela significa e o como ela significa. Esse espaço, conforme Calabrese, é o da
linguagem verbalizada, por ela ser capaz de nos fornecer coerência para a representação. Ela
fornece similaridade e contigüidade, forjadas para um entendimento mínimo, oferece regras
47
DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 11.
48
Insistindo no lugar de aproximação entre o visível e o legível como recurso construtivo, tradutor, de
transformação e de morfogênese, e não simplesmente de caráter analítico, nos voltamos para as interpretações
distintas dos artistas pelos filósofos. É Calabrese que vai apontar para tais intérpretes, como Serres, Deleuze,
Foucault, Derrida, Damisch, mas poderíamos citar também os artistas pensadores como, por exemplo, Hélio
Oiticica nas artes plásticas, Hedjuk, na arquitetura, ou mesmo Bataille, na literatura, cada qual em seus esforços
para tratarem da traduzibilidade e das pregnâncias do legível e do visível. Para um estudo das linhas de
pensamento dos filósofos: cf. CALABRESE, O. A linguagem da arte. Rio de janeiro: Globo, 1987. p.176-182.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
43
para o jogo da traduzibilidade. A escrita passa a ser funcional na medida em que serve para
textualizar a obra. A textualização é uma forma de representação parcial diferente do que a
obra figura, mas também diferente de uma correspondência mimética. Assim, o próprio texto
ganha uma autonomia, converte-se em texto-objeto onde existe uma simultaneidade de textos
possíveis. A intertextualidade produzida compactua com a relativização da semelhança e, por
conseguinte, com a relação mimética na leitura de uma obra. As descrições de uma pintura, por
exemplo, são simplesmente verbalizações que mostram, entre outras coisas, a multiplicidade
de leituras possíveis. O texto fica sempre esburacado, falho, fraturado e cheio de promessas de
tradução. Nessa versão do texto, ocorre uma certa recuperação do primado da palavra, a sua
precedência para a análise de uma obra sem, no entanto, a definição de uma superioridade, de
uma hierarquização ou de um binarismo sobre o visível.
Tanto o visível como o legível, desde dentro e em suas relações de contato, são
lançados ao espaço da tradução, delineando uma “contextura”. Definimos contextura como a
fundação de uma origem imediata voltada para a construção dos corpos em atrito. É diferente
da relação de semelhança que visa ao retorno a uma origem, num passado reconhecível. A
contextura define o recorte eleito, o entrecruzamento do visível com o legível, a abertura de
uma obra a suas transformações. Textualizada, a obra não é entendida como sistema fechado,
“mas como momento constitutivo de um sistema, o qual é dado pela relação entre a obra, a
leitura (em sentido lingüístico) que se faz dela e o texto (verbal) que enuncia a própria obra”
49
.
Como o visível não está encerrado em si mesmo, é lançado a uma exterioridade, ou espaço de
tradução. Porém, a obra ao ser lançada, o é parcialmente, como fragmento, para serem traçados
níveis referenciais que fazem parte do sistema maior que abarca a articulação entre legível e
visível. Sob o enfoque das pegnâncias do legível e do visível, ler uma obra significa escrevê-la,
assim como escrever não deixa de ser uma operação de vidência.
Passemos às repercussões das pregnâncias entre legível e visível numa forma de
tradução em arquitetura. A obra de arquitetura, compreendendo um objeto quase acabado,
inicia-se no jogo entre imagem e verbalização. A verbalização assume uma autonomia da
imagem no conceito. Em arquitetura, a textualização da obra fica evidente no conceito.
Quando lançada ao leitor qualquer, a exigência do conceito surge como uma espécie de
49
. CALABRESE, O. A linguagem da arte. Rio de janeiro: Globo, 1987. p. 177.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
44
justificativa, pautada na intenção do autor, algumas vezes assumindo o apriorismo da idéia
geradora e outras, apenas descrevendo a obra a posteriori. No entanto, quando falamos de
conceito em arquitetura, falamos de quê? Somente da necessidade de explicação para
legitimação da obra na linguagem das palavras antes ou depois de um objeto? Da formulação
de uma idéia que expressa os conteúdos íntimos da obra? Ou, ainda, de quaisquer apreciações,
julgamentos, avaliações ou opiniões sobre a obra? Talvez, em nossa abordagem das
pregnâncias, o conceito em arquitetura assuma o lugar da legibilidade, conferindo visibilidade
à obra, ou seja, o conceito se encontra, desde sua própria feitura, aderido à feitura da obra de
arquitetura. Nesse sentido, ele não se encontra nem antes nem depois, mas dentro da própria
obra. Seria ele extraído das entrelinhas do projeto?
Nas definições de dicionário, os conceitos são representações das coisas e, nessa
acepção, eles fornecem a legibilidade das idéias das coisas. As idéias compreendem tudo o que
é apreendido das coisas pelo pensamento, são os objetos do pensamento ou as representações
50
.
Em tais concepções, idéia e conceito são muito próximos e quase sinônimos. Se o conceito é
representação da coisa, o projeto de arquitetura poderia ser entendido como conceito não
verbal da obra construída. Mas duvidamos da primazia dos dados não verbais sobre os verbais
em arquitetura. O que parece ocorrer é um atrito entre os termos, entre os dados visíveis e
legíveis na produção da obra (texto, projeto ou objeto). Contrário a uma noção de separação do
legível e do visível, o conceito surge como meio da linguagem para compreendermos uma
construtura e, como se vincula à feitura da obra, fica vinculado à ação. Sobre o conceito,
Brandão salienta que “seu valor de potência está justamente em sua capacidade de transmutar-
se em ação construtiva, inserir-se no mundo e modificar a existência e a história dos homens”
51
. Ou seja, o conceito se modifica agindo sobre os corpos, formando-os e transformando-os.
Ocorre tradução no processo de transformação dos termos, quando o conceito traz consigo sua
desapropriação. Nesse sentido, corresponde à leitura do conceito como criação filosófica,
assumindo seu caráter de virtualidade potente prestes a uma atualização parcial. Sua
atualização ocorre em outro campo, de modo que os discursos sobre os conceitos são
50
Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; FERREIRA, Marina Baird; ANJOS, Margarida dos. Novo
dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3.ed. Curitiba: Positivo, 2004. 2120. CD-ROM ISBN 8574724149
(enc.).
51
BRANDÃO, C. Linguagem e arquitetura: o problema do conceito. Mimeografado. Interpretar Arquitetura,
Belo Horizonte, v.1., n.1, nov. 2000. p. 3. Disponível em: <www.arq.ufmg.br/ia>.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
45
exteriores à filosofia.
52
Quando se utiliza um conceito em arquitetura, produz-se um discurso
sobre ele que o encaminha para o atrito com o visível. O atrito com o visível vai fornecer a
discursividade ao conceito, seu vínculo com a ação, pois, até então, se encontrava dado como
uma abstração, como algo próprio à filosofia. A discursividade de um conceito é uma
tradução. Como discurso, o conceito faz um objeto dizível, textualizando-o, ao passo que a
imagem atualiza as múltiplas potências significantes do conceito. Mais uma vez convergimos
para uma abordagem avessa a hierarquias e dicotomias, nos interessando a força da forma dada
pela pregnância entre visível e legível.
Se considerarmos a autonomia da representação nas obras, muitas imagens valem por si
mesmas em relação a outras, como forma de tradução isenta de imitação. No caso do texto, se
tomarmos o conceito em sua fundação filosófica, temos que a discursividade é um modo de
tradução auto-referente, em que o conceito, por si, já dialoga com a imagem do texto,
representando-se. Mas o conceito não é alheio ao mundo, pois se representa na medida em que
se relaciona com outro campo. Na passagem do conceito às coisas, ocorrem transformações
mútuas, “(...) ocorre uma transmutação ou um acréscimo de ser, gerado pela própria opacidade
da linguagem, cuja espessura se adere como carne, letra ou imagem àquilo que ressoa no
pensamento e nos signos verbais”.
53
O que passaria despercebidamente como algo inerente à
arquitetura, a exemplo dos conceitos, é revertido em nossa argumentação a nomes comuns
fornecidos pela filosofia. Esses nomes comuns, quando apropriados, tornam-se nomes
próprios, como palavras poéticas, e passam a ter sentido pela discursividade em um campo
alheio, como o da arquitetura. A discursividade compactua, portanto, com a tradução. Seria o
caso de averiguarmos uma discursividade do conceito condizente com a tradução por
pregnância do legível com o visível. Comparando com o campo do visível, que possui a maior
abertura à traduzibilidade na obra de arte, talvez seja no recurso poético que ocorra, de modo
mais evidente, a traduzibilidade do conceito tal como temos requerido. A poesia não representa
os significados de antemão e tampouco se compromete com uma verdade, ela produz sentido e
sensação, à medida da atualização do texto. Como Babel, o primeiro nome mítico, os nomes
próprios carregam a sua intraduzibilidade. Aproximam-se da poesia, do recurso literário, da
52
A este respeito cf. MAGNAVITA, P. O lugar do conceito arquitetura. In: 2º Seminário Arquitetura e Conceito.
Belo Horizonte: NPGAU. Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. CD-ROM.
53
BRANDÃO, C. A traduzibilidade dos conceitos. Entre o visível e o dizível. In: DOMINGUES, I. (org.).
Conhecimento e transdiciplinareidade II. Aspectos metodológicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.44.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
46
tropologia, das glossolalias, ou seja, possuem mais do que um poder explicativo ou
enunciativo. Tal como a poesia, a discursividade sobre os conceitos possui poder de afeto.
Fazem as pessoas repercutirem a ação sobre outras formas. Parece que trabalhamos com
nomes próprios de coisas que estão se atualizando e escapando à propriedade do nome. A
discursividade do conceito em arquitetura o equipara às narrativas ficcionais?
O recurso das figuras de linguagem no conceito vai contribuir para a sua tomada parcial
e para as permeabilidades entre projeto e objeto construído. Brandão propõe a metáfora como
meio privilegiado para manifestar a tradução em arquitetura
54
. Compreende a metáfora, dada
sua pluralidade de sentido, como um núcleo para a hermenêutica que permite os atritos entre a
palavra e a coisa. Ao invés de perguntar sobre o ser das coisas, a metáfora pergunta pelo que
está entre elas, explicitando suas distâncias, marcando suas diferenças. Tal concepção da
metáfora remonta às definições clássicas, mais do que às lingüísticas. Nelas as metáforas são
vinculadas à revelação e à transformação.
55
A metáfora estaria, deste modo, alojada no espaço
da tradução.
Assumindo um método de inversão, em que os conceitos derivam de imagens e as
imagens de conceitos, a metáfora perde seu caráter puramente textual e adquire a disposição
para não descrever realidades, mas fomentar realidades possíveis. Se “(...) o conceito persegue
a essência de uma ‘realidade em si’, a metáfora torna visível uma ‘realidade entre si’ ou uma
outra possível”
56
. Os conceitos como metáforas não esgotam o real, mas alcançam o patamar
literário e, deste modo, acrescentam algo ao real, conferem sentido à realidade pela
discursividade. Porém, não havendo a supressão parcial das distâncias, ou a pregnância entre
palavra e coisa, a tradução não aparece. O movimento deixa de ser gerador e auto referente da
potência construtiva, deslocando-se para o campo metafórico, que passa a ser objetivado. o
conceito aparece em sua superioridade. A metáfora é a abertura limitada a certas significâncias
e seu risco é o da formação de um campo alheio à aderência entre palavra e coisa. A metáfora,
nesse sentido, é epifórica
57
, conduzindo à extensão ou à superação do significado prévio.
54
BRANDÃO, C. A traduzibilidade dos conceitos. Entre o visível e o dizível. In: DOMINGUES, I. (org.).
Conhecimento e transdiciplinareidade II. Aspectos metodológicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.46.
55
“Em Heródoto, a metáfora desviava a ação correta de transferir algo de um lugar para outro. Em Aristóteles,
metáfora é a capacidade de ver o similar e de tornar óbvio e imediato o que se esconde. Em Cícero, metáfora é
translato e quase mutatio, trazer a luz relações que podem ser descobertas em vários fenômenos através da
imaginação”. Ibidem. p.54.
56
Ibidem. p.49.
57
Sobre a metáfora diafórica e a epifórica, cf. Ibidem. p.47-48.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
47
A metáfora surge como espécie de tropo (desvio), devir semântico utilizado como
estratégia da tradução. Seria preciso traçarmos uma tropologia, estudo dos desvios, mais do
que do uma topologia, estudo dos lugares predeterminados para ocorrer a tradução.
dissemos que o espaço da tradução é produzido na tradução. Talvez, mais do que a metáfora, a
literatura, ou seja, a obra por si, seja portadora da potência tradutória. A metáfora é sempre
parcial, diferindo-se do símbolo, que define uma totalidade prévia. Mais do que o acréscimo de
ser, ela é o acréscimo do que ainda não está lançado às palavras e às coisas. Ao exigir um
método capaz de aproximar a coisa e o conceito, percebemos que a tradução é escrita no
escuro, imprevisível. A metáfora apresenta suas facilidades, no entanto, não garante o devir
tradutório como movimento construtivo de transformação. O que nela transparece é a falha
necessária para a sobrevivência do conceito na discursividade, onde persistem os termos
penúltimos. A metáfora somente pode adquirir aí um lugar privilegiado quando atua no limite
do próprio conceito, o que, por sua vez, a destitui de sua característica metafórica, tornando-a
um quase conceito, uma discursividade, uma narrativa.
Finalmente, podemos concluir que não temos trabalhado com a formação de conceitos,
mas com a discursividade sobre os conceitos. De fato, ao longo deste texto, ocorre uma
profusão de nomes que, mais do que requererem o título de conceitos, são nomes comuns
tornados próprios para participarem de uma discursividade sobre o conceito de tradução
desapropriado desde o Prólogo. Assim, aceitando o lugar do conceito, contribuímos para as
narrativas, no campo de uma teoria da arquitetura, partindo do entendimento do próprio
conceito como forma em devir construtivo, quer dizer, abarcando o projeto, o objeto, suas
textualizações e seus processos de morfogênese e de transformações.
Dada a orientação da relação entre visível e legível na tradução em arquitetura, o
conceito aparelha-se ao discurso com propriedades literárias, aproxima-se do texto poético. Em
nossa tentativa de extrair as premissas para a traduzibilidade entre texto e arquitetura, tanto a
palavra encarnada no conceito quanto a coisa como projeto e objeto arquitetônicos, são
passíveis de interpretação mútua e de transformação. Nesse sentido, o texto em arquitetura
converge para uma quase literatura, pois, apesar das semelhanças formais os
comprometimentos do texto, vinculam-se à arquitetura e não à literatura. Em nossa versão da
tradução, qual seria a escrita do arquiteto?
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
48
4. O arquiteto tradutor: o corpo transdutor de códigos, a experiência e a interpretação
construtiva
Pelo encaminhamento de nossa investigação sobre uma versão da tradução em arquitetura
por pregnância entre legíveis e visíveis, a ação do arquiteto como tradutor direciona-se para
um modo de construir, que denominamos de construtura. Temos insistido na transformação
dos corpos e indicamos alguns agentes transformadores dentro da tradução. dissemos da
antecedência da linguagem e, de certo modo, da tradução, ao reconhecimento humano. Este
modo de tradução, o reconhecemos como uma construção qualquer. Talvez seja esta a
linguagem pré-babélica original e talvez seja neste empenho de aderência entre visível e
legível que retomamos uma linguagem pré-babélica sobre outras formas. Nessa orientação,
para fazermos arquitetura pautada no reconhecimento das formações por tradução, teríamos
que nos valer das experiências singulares capazes de nos proporcionarem o reconhecimento
das potências construtivas. A partir daí, poderíamos agir ou traduzir como uma interpretação
parcial que diz da sua própria construção por tradução e que seja potente no sentido de
propiciar traduções outras. Num panorama da construção que extrapola a ação humana, como
se daria a função do tradutor, do homem que promove transformações sobre a Terra e em si
mesmo? E o arquiteto com isso?
Escreve Benjamin sobre a tarefa do tradutor: “Esta consiste em encontrar, na língua
para a qual se traduz, aquela intenção da qual é nela despertado o eco do original”.
58
Expandimos a língua para a multiplicidade das linguagens. A ressonância do original pode ser
lida como a exterioridade à qual esse original é lançado, por meio de sua desapropriação
parcial, para fora do campo até então pertencente a sua linguagem, ou, como temos escrito,
para o espaço da tradução. A intenção é a de construção. O tradutor, deixando de ser
reconciliador, não passa de um construtor. Traduzindo, o agente se forma e se transforma. O
tradutor é aquele que e que . Como vidente, ele vai fazer o recorte, a eleição do que será
traduzido. O espaço delimitado pelo seu olho é o horizonte, na concepção grega o horizonte é
58
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Trad.: Karlheinz Bark.Cadernos do mestrado - UERJ, RJ, nº1, 1992.
p.xiv
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
49
“o que delimita”
59
. O horizonte como limite imaginário é inalcançável, define o espaço para
avançar, para agir, para traduzir. No passo desta exterioridade dada pelo horizonte, as imagens
são formadas dentro do olho e passam a ser lidas de dentro do corpo. Estranha inumanidade da
linguagem na qual, de dentro do próprio corpo do homem, a imagem se encontra entranhada,
construindo um corpo pré-babélico de “um lábio” outro, produzindo uma memória
biológica prestes a ser traduzida em memória das palavras. Aqui, no âmbito da experiência
singular, o corpo surge como tradutor.
O arquiteto como tradutor reconhece seu corpo como “transdutor de códigos”. Na
investigação da experiência singular, José Gil considera o corpo “transdutor de códigos” como
uma “infralíngua”, por sua capacidade de tradução
60
. Traduzindo, o corpo singulariza-se,
diferenciado do corpo próprio, pois o corpo singular encontra-se vinculado ao outro, à
exterioridade do mundo que lhe confere a singularização, isto é, encontra-se num espaço de
tradução. “Deve-se entender a infralíngua como o resultado de um processo de incorporação
(embodiment) da linguagem verbal, ou melhor da sua inscrição-sedimentação no corpo e nos
seus órgãos. Nesta inscrição perde-se a maior parte das articulações verbais, a gramática
simplifica-se, reduz-se, é absorvida pelos movimentos corporais, o léxico desaparece”
61
. O
corpo singular como uma infralíngua é portador e produtor de uma linguagem pré-babélica,
desde sua constituição, construindo uma memória biológica e transgredindo o corpo próprio.
Porém, a infralíngua não existe antes da linguagem verbal se constituir e o problema da origem
impossível de ser definida é uma repercussão do mito de Babel entre a traduzibilidade e a
intraduzibilidade.
“A infralíngua (e assim, toda a linguagem dita pré-verbal) não existe antes da
linguagem verbal se constituir. É –lhe concomitante, constrói-se ao mesmo
tempo em que vai elaborando a própria fala; e, sendo deste modo post-pré-
verbal, é, no entanto, genuinamente pré- ou não –verbal, pois a incorporação
da linguagem implica a perda real das propriedades verbais e a emergência,
na fala, de conteúdos semânticos ‘confusos’, ‘contraditórios’ que marcam a
presença do corpo nas operações lingüísticas. É enquanto não verbal que se
constitui como pós-verbal (tal como todas as linguagens ‘pré-verbais’) que a
infralíngua oferece ao pensamento e à linguagem, mais que uma matriz (por
exemplo, de oposições lógico-empíricas primárias, esquerda\direita, interior\
59
Cf. BOLLNOW, O. Hombre y espacio. Barcelona: Editorial Labor, 1969. p.74.
60
Sobre a infralíngua e as noções de corpo singular e corpo próprio ver GIL, J. Metamorfoses do corpo. Lisboa:
Relógio d’água, 1997. p.44-47.
61
Ibidem. p.46.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
50
exterior), um procedimento geral para pensar o mundo, quer dizer, para que
o mundo sensível, variável, caótico adquira ordem e sentido”.
62
Com a emergência de conteúdos semânticos confusos, babélicos, ocorre o atrito das linguagens
postas em tradução. Desloca-se o questionamento sobre a linguagem ou sobre as relações
binárias, para a potência desta linguagem voltada ao pensamento e à ação do homem, o que
significa voltar-nos para a construção no mundo. A interpretação construtiva deriva deste
reconhecimento e tenta, na medida de sua abertura e contrariando qualquer dogmatismo,
funcionar meramente como recurso de construção. Quer dizer que a interpretação não passa de
mais um recorte do mundo prestes a transbordar. Cheio de corpo, o arquiteto fica meio sem
nome, torna-se impróprio, confuso; como corpo singular ele faz-se construtor portador de uma
língua pré-babélica por meio da pregnância do visível com o legível. Deste modo, o arquiteto
como tradutor faz de seu corpo um corpo transgressor, transdutor de códigos, produzindo
outras formas de ler e de ver o mundo. Constituído o corpo do arquiteto tradutor, em
formações de linguagens pré-babélicas, como ocorre a reversão da verbalização do processo
construtivo?
Perde-se o vínculo com a ação?
Talvez o recurso hemenêutico venha a convergir
para a dinâmica do corpo produzindo linguagem numa abordagem verbal.
Feita uma eleição, o tradutor vai ler a imagem, seja verbal ou não, textualiza a imagem,
lança a imagem à exterioridade do mundo. A textualização vai fornecer a transformação do
visível em legível. Porém, o legível como exterioridade traz consigo um componente de
visibilidade sempre aberto a outras leituras. Assim ocorre o devir construtivo como a própria
abertura do mundo à interpretação
63
. A interpretação encontra-se indissociada da experiência e
da ação. Ela própria, enquanto é feita, é uma construção. A tradução como interpretação
construtiva conduz à ação. “A tradução pode nos servir para passar do dizível e do visível para
a ação, é esta a tarefa que se abre para pensar a razão prática dentro da lógica de equivalência
do tradutor”
64
.
A ação é decorrente da compreensão do processo tradutório. A tradução, nestes
termos, desvincula-se da verossimilhança para privilegiar a construção.
Num mundo onde domina o legível que faz ver, a tradução não deixa de combater a
subordinação da palavra à coisa. Neste combate, entra em cena a hermenêutica como modo de
62
GIL, J. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997. p.47.
63
Para fundamento da hermenêutica voltada à arquitetura, cf. BRANDÃO, C. Introdução à hermenêutica da arte e
da arquitetura. Topos, Belo Horizonte, V.1, N.1, p.113-123, julh/dez. 1999.
64
BRANDÃO, C. A traduzibilidade dos conceitos. Entre o visível e o dizível. In: DOMINGUES, I. (org.).
Conhecimento e transdiciplinareidade II. Aspectos metodológicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.80.
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
51
interpretação a partir do texto, mas que a obra como um texto. Será que a textualização,
quando desmancha a hierarquia entre o visível e o legível, repercute na atualização de uma
escritura pré-babélica? Se assim for, confirmamos nossa suspeita quanto ao recurso literário e
ao uso das figuras de linguagem em tradução. Suspeita compartilhada por Benjamin, quando
ele situa a tradução entre a criação literária e a teoria
65
. A noção de interpretação construtiva dá
margem não somente ao intercâmbio entre conceito e imagem, mas principalmente ao
intercâmbio entre teoria e prática da arquitetura, na mesma medida em que desmancha as
hierarquias que as dissocia. A teoria é vista como uma prática, indissociada do que tem sido
considerado como a prática em arquitetura, isto é, a construção do objeto e a projetação. Além
do mais, a própria interpretação aparece como fundação teórica a partir da obra de arquitetura.
A discursividade sobre o conceito, como apontamos acima, indicava a apropriação da
arquitetura da produção filosófica. Mas, como discurso próprio, fez-se uma teoria da
arquitetura. Como requeremos acima, tal teoria compactua com a literatura, com as
narrativas ficcionais, mas não é literatura, pois vincula-se em demasia à coisa arquitetônica, à
tensão e ao atrito capazes de produzir e transformar as formas arquitetônicas. Os meios se
assemelham, no entanto, os desdobramentos são outros.
O tradutor parte do que está dado, pré-existente, de uma realidade em construção.
Traduz como intérprete ativo, experimentador, e não como autor de originais. Afasta-se de
uma perspectiva autoral ou subjetivista como fundante do traduzido. Benjamin, no início de A
tarefa do tradutor, escreve que não se traduz para comunicar nem para servir ao leitor e que
um texto não precisa de um tradutor adequado, ou seja, o autor fica num segundo plano. Ele
parte fundamentalmente da obra e, no caso do original, de sua forma.
66
Tais preceitos se
identificam com a hermenêutica de Paul Ricoeur
67
. Em sua hermenêutica, parte-se da
textualização da obra e do compromisso com a ação. A tarefa hermenêutica consiste em
discernir a coisa do texto e não deve remeter à psicologia do autor nem a qualquer
congenialidade com o leitor. Igualmente devemos nos afastar do historicismo em que o
contexto determina ou resguarda o sentido do texto. A textualização pode ser de qualquer
coisa, porém, para a tradução como interpretação construtiva, ela é convertida em linguagem
65
BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Trad.: Karlheinz Bark.Cadernos do mestrado - UERJ, RJ, nº1, 1992.
p.xvi.
66
Ibidem. p.v- vi.
67
Cf.RICOEUR; Paul. Do texto à acção. Ensaio de hermenêutica II. Porto: Res (19??).
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
52
das palavras como meio de produzir ação. Agir é operar uma mudança no mundo. A ação
humana é, em muitos aspectos, um “quase-texto”, sendo externada de modo comparável à
escrita. Neste cruzamento da idéia de inscrição com a ação, o resultado da inscrição, o registro,
opera alguma transformação no mundo. A ação se destaca do autor, adquire autonomia no
registro, na marca ou na assinatura, que é comparável à inscrição do texto. A esta
transformação, dada pela ação de inscrição e pelo registro no mundo, denominamos de
construção. Na interpretação do texto, não podemos nos deter na imanência de seus ‘códigos’.
Teríamos que explicitar o mundo que o texto projeta para fora de si e, portanto, afirmar o seu
vínculo com a ação.
Passado pelo corpo como transdutor de códigos e pelas premissas hermenêuticas, a
ação do arquiteto tradutor se alastra na construção de qualquer coisa desde sua própria
formação. Por seu corpo feito corpo singular, traduz transformando o mundo e habitando o
espaço da tradução. Como intérprete das forças ou pregnâncias, pelas quais uma obra é feita, o
arquiteto se distancia da ação e a submete a uma confrontação de pontos de vista diferentes,
numa textualização feita teoria. Nessse sentido de apropriação, o texto escrito ainda possui
primazia na tarefa hermenêutica, dada a irrestrição ao acesso de quem saiba ler. O público
seria este leitor qualquer e qualquer coisa possível de se traduzir e de singularizar seu corpo.
Isento da dominância da subjetividade, tanto da sua como da dos outros, o arquiteto tradutor
não parte do pressuposto de atender aos desejos dos outros. Ele parte da construção e volta-se
prioritariamente à própria formação da obra (texto, projeto, objeto) de arquitetura. Como
intérprete construtivo, o arquiteto seria capaz de propor como teoria para a arquitetura o
entendimento daquilo que ele faz, ou seja, o entendimento da construção onde a própria teoria,
como texto coisificado, seria também uma construção. A textualização como verbalização
serviria para a retomada da ação construtiva, a sua e a dos outros. O arquiteto tradutor traz,
nesse sentido, um projeto poético e político, na medida em que se volta para a formação seja
das matéria expressivas, seja do outro ou de si mesmo. Sua inscrição como uma linguagem
pré-babélica ou conforme Gil, como uma “infralíngua”, vincula-se a feitura de corpos
singulares e a uma hermenêutica voltada à ação, ambas convergindo para a construção.
Por fim, a falsa dicotomia entre teoria e prática encontrar-se-ia desfeita. A teoria como
construção é uma prática. Voltar-nos para uma teoria da arquitetura por tradução deveria
considerar suas distâncias e suas proximidades da literatura. Afirmamos acima as diferenças da
PARTE II – O espaço da tradução em arquitetura
53
literatura e de uma teoria da arquitetura quanto a seus desdobramentos. A arquitetura, dado seu
vínculo direto com a ação na geração da obra arquitetônica, que não deixa de ser inscrição,
estreitaria ainda mais seu vínculo com o texto literário sem, no entanto, confundir-se
totalmente com ele. No texto verbalizado, o arquiteto se volta à discursividade que confere
consistência à arquitetura, que lhe confere seu nome nas implicâncias capazes de afetarem e de
produzirem sentido e ação. Assim, sua teoria seria quase-literatura. E, sobre a tradução, diria
dela fazendo-a por construtura.
PARTE III
Exercícios de tradução entre arquitetura e algumas artes
Há um excesso horrível no movimento que nos anima: o excesso ilumina o sentido do movimento.
Georges Bataille
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
55
PARTE III EXERCÍCIOS DE TRADUÇÃO ENTRE ARQUITETURA E ALGUMAS
ARTES
Introdução por uma pregnância arquitetônica
Conforme a teorização que traçamos até aqui, a tradução em arquitetura, como modo de
construir, acontece por pregnâncias, por atritos entre as coisas. Nesse sentido, trata-se de seus
processos de formação. Quanto à sua instrumentalização para a ação do arquiteto, distinguimos
uma pregnância específica: o atrito entre o legível e o visível, de onde produzimos uma
discursividade que compactue com a tradução. O visível corresponde às formas em atrito, o
legível corresponde a uma textualização comprometida com o reconhecimento e a produção de
tais atritos. Define-se, assim, uma textualização pactuando com a ão, ou uma teoria
vinculada à prática. Já dissemos acima que o exercício teórico é uma prática, mas insistimos na
sua cumplicidade com a ação. Identificamos ao menos duas possibilidades de exercitar a
tradução em arquitetura: como produção teórica, partindo da textualização “atritante” entre
legível e visível, e como uma narrativa quase literária do processo de formação da arquitetura
por meio pregnâncias com outras coisas. Trataremos dessas duas identificações nesta parte.
Como produção teórica, partindo da textualização atritante entre legível e visível, formulamos
uma discursividade sobre a própria tradução em arquitetura, a partir de seu atrito com algumas
artes. Como uma narrativa quase literária do processo de formação, realizamos uma narrativa
da formação de uma arquitetura indo do processo de projetação à obra quase acabada.
O contexto das artes nos permite uma distância dos conceitos a priori e ainda possui
um certo descrédito epistemológico, o que a folga das exigências disciplinares, favorecendo
seu prestamento a traduções em outros campos. Partir de uma obra de arte significa partir de
um campo que não reinvindica uma antecedência de realidade a ser verificada, o que quer
dizer que a arte não é uma verificação nos moldes científicos, tendendo mais à discursividade a
partir dela mesma. Optamos por uma trajeto que passa pelas artes tradicionais como a pintura,
o cinema, a literatura, a música que, contrapostas a conceitos desapropriados, nos permitem
delinear uma teoria da tradução em arquitetura (Exercícios 1 a 5).
Em nossa abordagem do processo de formação de uma arquitetura por tradução
(Exercício 6), optamos por narrar a feitura de uma construção da qual participamos. Trata-se
de um acréscimo, no interior de um apartamento, para servir como sala de estudo e lazer. Este
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
56
exemplo foi escolhido porque parte de uma arquitetura que existia, estava dada, o que
afirma nossa posição de incompletude da construtura, fazendo-nos valer da tradução, por meio
de textos e de imagens, na concepção do projeto. Também porque neste projeto tivemos a
experiência do processo de produção arquitetônica até a execução da obra, donde poderemos
dizer do arquiteto como experimentador-intérprete construtor.
Na construção dos Exercícios de 1 a 5, identificamos um ou mais conceitos a partir de
obras de arte específicas e confrontamos tais conceitos com uma obra de arquitetura ou com o
próprio campo da arquitetura como espaço da tradução. No Exercício 6, narramos o processo
pontuando os recursos de tradução, assumindo um caráter mais descritivo do que
demonstrativo. Conforme vimos na Parte II, realizamos discursividades sobre conceitos
desapropriados de seu campo originário, que seria o filosófico. Assim, não produzimos
conceitos, mas discursividades, narrativas como formas de pensamento tradutor, alternando
entre a poesia e a teoria. Mostramos também a proximidade da teoria com a literatura, no
sentido de suas construções internas, bem como suas diferenças quanto a seus desdobramentos.
No caso da arquitetura, a teoria indissociada da prática diz da construção. Sem pretendermos
delinear uma teoria generalizada para a arquitetura, tentaremos nestes exercícios principiar
pela noção de construção em arquitetura por tradução. Partimos da discursividade, isto é, da
desapropriação dos conceitos lançados entre o campo da arte e o da arquitetura, produzindo um
espaço da tradução, na tentativa de colocar em exercício a versão de tradução como
interpretação construtiva. Não definimos um método exclusivo de tradução ou de
interpretação, mas especulações textualizadas. Tomadas parciais de obras feitas narrativas em
que a arquitetura é babélica, produto de uma construtura.
1. Exercício 1: A inscrição e a origem mentida da arquitetura
68
Deparamo-nos com o problema da origemarché, entendida mais no sentido de
fundamentação de algo, do que de início ou princípio toda vez em que iniciamos um projeto
de arquitetura. O ato inaugural de um projeto é a abertura para a possibilidade de se construir
68
Todos os exercícios desta parte foram utilizados como material para as aulas ministradas por mim na disciplina
optativa “Arquitetura e outros saberes” e na disciplina “História da arte, da arquitetura e das cidades II”, na Escola
de Arquitetura da UFMG, no ano de 2006.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
57
uma obra. Não raro, o discurso sobre a origem em arquitetura se confunde com a recuperação
de um caráter simbólico ou com uma busca arquetípica. Reconhecemos que, desde os tempos
mais remotos, as formas simbólicas são recorrentes e que o símbolo extrapola a forma
surgindo como designador das mesmas
69
. Extrapolando a forma, o símbolo condiciona de
antemão a morfogênese e serve de explicação a posterirori, ou seja, captura o devir da obra
numa delineação de estrutura prévia e supra-sensível. Nesse sentido, nos eximimos de aceitar o
caráter simbólico como prefigurador de uma obra ainda por fazer. Pensar a origem (arché)
também não se refere exatamente a uma transposição literal de uma obra do passado para o
presente, mas se dirige para uma fundamentação técnica, que não desconsidera o passado, para
orientarmos ou justificarmos nossas opções e ações de agora em diante. Deste modo, uma
origem afasta-se da mimese e não pode ser simplificada, por exemplo, na recorrência à ‘cabana
primitiva’ ou à caverna.
70
Situando uma origem da arquitetura fora da perspectiva dominante simbólica ou
mimético-formal, assumimos a origem como algo eleito no entre dois, à qual nomeamos de o
“grau zero” da inscrição arquitetônica. Sarduy cita Pierce dizendo de uma certa continuidade
suportável dos corpos em transformação, de um vínculo de indiscernibilidade temporal e
física. “Não é possível aceder o que existia antes pela simples operação analítica que consiste
em retirar ao que existiu depois, porque o antes que então se determina não é mais do que um
antes deste depois, não passa de uma especificação imaginária deste depois
71
. O recurso à
especificação imaginária como origem eleita nos leva ao principiar da construção ficcional. A
ficção nos exime de partir de uma referencialidade formal exterior à própria constituição da
obra.
Considerando nossas múltiplas percepções da obra de arte, Dorfles afirma que a arte é
um gênero “que diz respeito exclusivamente aos ‘valores’ e não às asserções, ou àqueles
elementos ‘verídicos’ próprios do discurso científico e lógico”
72
. Este seu caráter de inverdade
ou de ambigüidade, como prefere Dorfles, em nada restringe a contribuição da arte na
formulação de conceitos. Diz ainda:
69
Conforme CASSIER apud DORFLES: “Os símbolos não podem ser reduzidos a meros sinais; os sinais são
operadores, os símbolos são designadores”. In: DORFLES, G. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes,
1992.p.25.
70
Cf. RYKWERT, J. A casa de adão no paraíso. São Paulo: Perspectiva, 2003.
71
Citação em nota de Sarduy do estudo sobre Pierce in: Scilicet, 4. p.56. In: SARDUY, S. O barroco. Lisboa:
Vega, [s.d.].p.137.
72
DORFLES, op.cit. p.29.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
58
“Se com o termo ambigüidade’ nos referimos a uma condição de certeza
involuntária, a uma condição de suspensão e de espera, de imprecisão, mas
também de plurissignificação, talvez poderemos admitir que tal ambigüidade
seja considerada como um fator de criação e de fruição estética”
73
.
Propõe uma leitura técnica das obras de arte, “no sentido geral de construção”, contraposta à
simbólica. E é à arquitetura que Dorfles recorre para expressar sua idéia de construção:
“Exatamente a arquitetura nos ensina que o homem sentiu e sente um
impulso constante que o leva a construir algo. Construir é por si só, criar, dar
vida a um domínio, distinto do domínio natural, que seja vivo por suas
características humanas essencialmente técnicas e de nenhum modo
simbólicas”
74
.
Este domínio inatural é “criado” pelo homem, no entanto, a criação está fundamentada na
técnica e não no gênio autoral.
Feitas essas considerações, para orientarem nossa posição ficcional, podemos traçar
nosso plano no qual abordamos a origem da arquitetura no registro inicial de qualquer obra,
num campo ainda de incertezas. Nossa origem, privilegiando o aspecto artístico, seria
assumidamente mentida
75
e, como problema técnico, vincular-se-ia a nossa idéia de arquitetura
como inscrição. A inscrição resulta de um gesto construtivo. Recorrendo novamente À citação
de Pierce feita por Sarduy: “Tudo o que se pode dizer é que ‘o antes não é senão um depois
riscado; e que é mesmo esta inscrição do antes sobre o modo deste risco que caracteriza, que
funda o depois enquanto tal’”. E conclui: “O antes e o depois encontram-se assim significados
através de três níveis: nada germinal/ traço exclusivo/ repetição infinita do traço”
76
. As
ferramentas, os riscos no corpo, a dança e os desenhos nas cavernas dos homens primitivos
seriam inscrições, “esses depois riscados”, e os primeiros indícios da inscrição arquitetônica
vindoura, visto serem gestos construtivos, “traços exclusivos” voltados à exterioridade no
73
DORFLES, G. O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.29.
74
Ibidem. p.36.
75
Temos, ao menos desde Nietzsche, o anúncio da potência do falso nas artes contra uma certa idéia de homem
nos seguintes termos: “(…) a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem boa
consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético (...)”. NIETZSCHE, F.
Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.p.141. Tal posicionamento vem
a confirmar o privilégio que conferimos às artes no exercício da tradução e da transgressão de si.
76
Continuação da citação e comentário em nota de Sarduy, do estudo sobre Pierce in: Scilicet, 4. p.56. In:
SARDUY, S. O barroco. Lisboa: Vega, [s.d.].p.137-138.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
59
mundo, ao acréscimo à realidade e à repetição. Primeiras memórias cruéis sem ainda
verbalizar. Definimos, portanto, nossa investigação como um trabalho ficcional em que a
arquitetura será lida como um texto, mas nossa leitura adquirirá alguma validade se
orientada para a construção da realidade. Cabe a tal ficção acrescentar uma realidade
77
.
Numa transposição da teoria do Steady State, sobre a origem do universo para a prática
literária, Sarduy define a matéria a partir de nada:
“(...) matéria cujo sentido seria justamente a sua exibição no presente, sem
marca de origem; ou como marca de origem a partir de nada. Matéria que
não seria sequer o produto de uma diferença, cuja marca, por se revelar como
pura entropia anacrônica, não deixa de ser, apesar de tudo, fundadora”.
78
Continua abaixo: “Matéria não teológica cuja presença é puramente atômica, sopro inalterável
e sem rupturas (...)”
79
. Matéria não teológica, pois prescinde da mimese, do símbolo, do ponto
central, da semente, do verbo, do sujeito e que, por sua vez, é descentrada, sem princípio e sem
fim. “(...) matéria que se cria e se destrói, mas sempre em toda a parte; sem origem assinalável
nem anulação global, em direção e a partir de nada (...)”
80
. A nossa versão da origem da
arquitetura que “tende para o zero” corresponde à transposição de Sarduy e, por tradução, essa
operação do remendo, vamos tentar traçar as implicações desta origem como potência
construtiva.
Partindo de nada, elegemos a pré-história como origem de uma ficção sobre a origem
da arquitetura. Na pré-história ficcional, assumimos a nossa incapacidade de situar o
pensamento ancestral bem como a falta de uma história nos moldes oficiais. Por certo, esta
convicção verte a história ao presente, na medida em que desmancha o apoio hierárquico da
versão arquetípica-simbólica e o respaldo disciplinar. Arriscando nossa concepção de origem
em uma pré-história ficcional, achamos alguns indícios da primeira inscrição arquitetônica no
sítio arqueológico da gruta de Lascaux, na França, datado de cerca de 15.000 anos atrás. Nas
paredes da gruta existem diversas representações naturalísticas com pinturas rupestres de
77
Se referindo a Ballard, autor da ficção científica Crash, diz Bruzzi: “Com suas catástrofes e mutações
enigmáticas, Ballard revoluciona o universo da ficção científica contemporânea. É dele a frase que admitimos
como fórmula da pós-utopia enquanto exigência de reconstituição do lugar: ‘A ficção está aí. A tarefa do
escritor é inventar o real’. A do arquiteto, com mais ênfase”. In: BRUZZI, H. Do visível ao tangível. Belo
Horizonte: C/Arte, 2001.p.65
78
SARDUY, S. op. cit. p.91.
79
Ibidem. p.91.
80
Ibidem. p.91.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
60
animais e de figuras humanas, abstrações de plantas e ferramentas, características do final do
período paleolítico. A interpretação mais aceita dessas pinturas naturalísticas sustentam a
intenção mágica do pensamento primitivo, que asseguraria, com o alvejamento das imagens, a
morte correspondente dos animais reais. É o caso, por exemplo, do posicionamento de Hauser.
Segundo ele, “quando um artista paleolítico pintava um animal na rocha, produzia um animal
real”, onde “o desenho era, ao mesmo tempo, a representação e a coisa representada, o desejo e
a realização do desejo”
81
. Talvez essas figuras ancestrais sejam os primeiros indícios de
pregnância do visível e do legível, bem como da inauguração do reconhecimento de uma cisão
entre eles. Avesso a simplificações da morte e da interpretação da intencionalidade da
representação primitiva, Bataille
82
concebe suas idéias de erotismo e religião fundadas na
transgressão da interdição. Assim, interpreta as pinturas, à luz de sua teoria, como registro de
um sentimento religioso, dado pela transgressão do interdito da morte, acarretando
reconhecimento e perdição de si mesmo rumo a uma vontade de continuidade suportável num
outro qualquer. Numa visão do homem inseparável do erotismo e da religiosidade, da
transgressão e da interdição, do prazer e do terror, Bataille discorda da posição tradicional dos
historiadores, ao dizer que os primeiros caçadores, para além da concretização imediata de seu
desejo de obtenção de alimento, significavam a “ambigüidade religiosa da vida”, na qual se
explicita “o caráter sagrado dos animais na morte que lhes é dada”
83
. Diz sobre as imagens das
cavernas:
“As imagens das cavernas teriam tido por objetivo figurar o momento
em que o animal aparecia e sua morte se tornava necessária e, ao
mesmo tempo, condenável, o que revela a ambigüidade religiosa da
vida; da vida que o homem angustiado recusa, no entanto a realiza na
maravilhosa superação de sua recusa”
84
.
É impossível para nós precisar os significados exatos das grafias para o homem
primitivo, mas tanto a perspectiva histórica dada pela objetividade da sobrevivência imediata,
81
Cf. HAUSER, A. A história social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes:1998, p.4-5.
82
Bataille fundamenta seu pensamento, expresso em literatura e em ensaios, na idéia de transgressão voltada
para suas investigações, seja da religião, do erotismo ou da economia. A transgressão marca o
reconhecimento da diferença e a vontade de continuidade. A este respeito, nos remetemos às próprias obras de
Bataille citadas em nossa bibliografia e ao ensaio de Foucault. Cf. FOUCAULT, M. Prefácio à Transgressão.
In: Ditos e escritos. Estética: literatura e pintura, música e cinema.V.3. São Paulo: Forense, 2001. p.28-46.
83
BATAILLE, G. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.p.116.
84
Ibidem. p.116-117.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
61
quanto a concepção religiosa de Bataille de significação individual de reconhecimento da
morte, convergem na produção de sentido que, desde então, passa a ser registrada na inscrição
que perdura no tempo, sinal de uma consciência que rememora. Podemos inferir igualmente
que se tratava de uma técnica que impunha sobre a terra ao menos o desejo de domínio. No
momento em que se escreve sobre algo, traços de representação. Assim, as inscrições
feitas nas cavernas não poderiam ser colocadas somente como uma produção espontânea e
imediatista, mas como resultado da memória da experiência acumulada sobre o corpo do
homem. Tal acúmulo implica algum grau de consciência da duração, circunstancial ou talvez
religiosa, voltada à perseverança do homem e à construção de outras formas no mundo. Deste
modo, a inscrição rupestre, “escrita feita para não morrer”, seria produto da consciência
selvagem, registro da memória cruel do encontro entre homem e meio exterior e de sua
necessidade de estabelecer domínios próprios à perseverança de seu ser. Talvez, desde os
primeiros projetos do homem, estariam presentes os sentimentos erótico e religioso.
Inaugura-se uma tradução não verbal. Conforme nossa leitura do mito da Torre de Babel, seria
uma tradução pré-babélica.
Mas o que nos chama a atenção em Lascaux, no quadro de representação naturalística, é
a presença de alguns signos ininteligíveis. Tais signos encontram-se na galeria da nave. Eles
possuem a forma retangular e são divididos internamente definindo grelhas. Na parede
esquerda da nave temos uma das figuras mais recentes da gruta: a grande vaca preta. Abaixo
dela, próximos a suas patas traseiras, foram pintados três retângulos em forma de ladrilhos.
São composições complexas, subdivididas em seis retângulos menores e cada retângulo
inscrito na grelha é colorido em tons azulados, vermelhos e ocres
(FIG. 1 e 2).
Conforme
Bataille
85
, são expressões de pensamentos análogos à escrita rudimentar e cabe a nós somente
interpretá-los sem maiores pretensões de angariar a “verdade” que movia nossos ancestrais a
efetivarem tais inscrições. Dentre as mais diversas interpretações que esses signos suscitam, há
aquela que remonta a representações das cabanas primitivas feitas de ramagens. Na gruta de La
Mouthe, em Eyzies, também na França, encontra-se uma representação semelhante a uma
cabana. Essa interpretação das imagens como formas tectônicas, rendeu a designação de
“tectiformes” aos signos. Outra interpretação toma essas imagens como brasões das tribos,
85
Cf. BATAILLE, G. La peinture préhistorique. Lascaux ou la naissance de l’art. Genève: Albert Skira, 1955.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
62
comparando-os a certos brasões de tribos africanas ainda existentes
86
. São interpretações que
priorizam, respectivamente, o aspecto mimético-formal e o aspecto simbólico.
FIG. 1: Grande vaca preta de Lascaux.
FONTE: BATAILLE, 1955. p.90.
FIG. 2: Detalhe de signos ininteligíveis de Lascaux.
FONTE: BATAILLE, 1955. p.90.
Numa análise da obra, voltando-nos ao que a própria pintura permite explorar, nos
deparamos com a abstração geométrica e com a inscrição arquitetônica. A geometria
etimologicamente significa medição da terra. Nesse sentido, tais grelhas não deixam de ser um
princípio de medição, de mediação entre o homem e o mundo circundante, assim como
expressa genericamente um desejo de compreensão e de domínio deste mundo. Aproximamos
a geometria da definição feita por Dorfles da arquitetura como a arte da medida
87
. Tomamos,
86
BATAILLE, G. La peinture préhistorique. Lascaux ou la naissance de l’art. Genève: Albert Skira, 1955. p. 91,
102, 103.
87
DORFLES, O devir das artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.102.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
63
portanto, não o sentido estrito da representação da cabana conforme um pensamento ancestral
inatingível ou, muito menos, um brasão. O indício que nos resta aponta para o desejo
construtivo e para algum modo de compreensão do mundo, em que a abstração seria o
excedente que caracteriza a construção por meio da transgressão como princípio mnemônico
do homem que reconhece algum traço da sua diferença vivendo em coletividade.
Em nossa concepção de um “grau zero” da inscrição arquitetônica, ou o “nada
germinal”, estipulamos o gesto inicial, ou o “traço exclusivo”, que se mistura à especulação
mental, à vontade construtiva e ao qual se sobrepõe o silêncio gerador, restando o registro da
crueldade com possibilidade de “repetição infinita do traço”. Esses primeiros “traços
exclusivos” do projeto dificilmente seriam inteligíveis. Somente com o desenvolvimento da
concepção originária o projeto encarna, vai tomando sua forma. E assim também procede com
a construção: inscrições que ainda vão se adequar a diversos graus de legibilidade, rumo ao
diálogo com o devir construtivo, no sentido da técnica exigida por tal arquitetura. Tomemos
alguns croquis de arquitetos como simples investigações construtivas, sem maneirismos, antes
de representarem e se converterem em “desenho de arquiteto”, e teremos signos que, isentos
do desenvolvimento do projeto, nos parecem ininteligíveis. Esses desenhos se aproximam de
concepções diagramáticas e, mais do que elementos expressivos autorais, fazem reverberar a
vontade construtiva. Isto é, potencializam a obra, fazem exercer sua continuidade e, por isso,
podemos conferir-lhes um caráter transgressor, entendida esta transgressão como o movimento
rumo à continuidade que nunca se faz plena, alimentando outras formações. Como uma origem
num “entre dois” de uma construtura incompleta.
FIG. 3: Proun, 1919.
FONTE: www.dekunsten.net/ 54+.html . Acessado em: 05/02/2006.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
64
FIG. 4 e 5 (da esquerda para a direita): Proun 93, 1923 e ProunG7, 1923.
FONTE: www.u.arizona.edu/ ~kimmehea/696/pw696.html. Acessado em: 05/02/2006.
Conforme coloca Merleau-Ponty
88
, não existe progresso em arte e um problema tratado
na imemorialidade dos tempos pode muito bem ser retomado em outras épocas.
Sistematizando os desenhos ininteligíveis, o arquiteto e artista El Lissitzky desenvolveu, no
início da década de 20, no século XX, trabalhos aos quais nomeou de Proun, sigla de desenhos
para a implantação do novo. Segundo o próprio autor, Proun são “um estado intermediário
entre a pintura e a arquitetura”.
89
São desenhos com figuras geométricas em espécies de
perspectivas que não definem um ponto de vista privilegiado. Alguns deles foram intitulados
com referências arquitetônicas, como cidade ou ponte. Leia-se cidade ou ponte qualquer, pois
ainda precedem às especificações contextuais. No Proun também não se definiam os materiais
e as funções. Como coloca Leon, em sua análise do texto Proun, de Lissitzky, escrito em 1920:
“É a relação entre os materiais, suas possibilidades combinatórias e sua manipulação, o que
interessava ao artista construtivista e não suas exigências como material concreto (...)”
90
. Ou
seja, o que interessa aqui é figurar a própria potência construtiva em artifício, como índice do
por vir. O que interessa aqui é a tradução da tradução ocorrendo nos processos de
transformação dos materiais. O próprio Lissitzky preconiza uma potência construtiva quando
afirma: “nossa obra não é uma filosofia nem um sistema para conhecimento da natureza; é um
limite da natureza e como tal pode ser objeto de conhecimento”
91
. Identificamos em Lissitzky
88
Cf. MEARLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. Seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio
e A dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac e Naify, 2004. p.45-46.
89
A&V. Monografias de arquitectura y vivienda. Nº29, Madrid, 1991. p.62.
90
LEON, J. La máquina inútil. Recursos compositivos del Constructivismo. In: A&V. Monografias de
arquitectura y vivienda. Nº29, Madrid, 1991 p.24 t.a. (tradução do autor).
91
LISSITZKY, El. La reconstrucion de la arquitectura en russia y otros escritos. Barcelona: Gustavo Gilli,
1970. p.123. t.a.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
65
o arquiteto implicado com as forças que movem a construção, que são expressas sob outros
meios, com outras técnicas, como em Lascaux.
Essa coisa desnaturada em transformação vai se desdobrar na obra de arquitetura? Se
em seu início a arquitetura pode ser muitas coisas, estaria ela à mercê do acaso? Se os
múltiplos condicionantes ainda estão presentes com força suficiente para cercear o acaso, o
que temos, por sua vez, em Lascaux ou em Lissitzky, são imagens construtivas definidas pela
regularidade geométrica. Esses quase projetos anunciam a necessidade de terra, o plano opaco
que suporta a gravidade do mundo. É nela que persistimos construindo, desdobramos os signos
ininteligíveis da arte repercutindo no devir construtivo. Isentos da inocência da mimese da
natureza, aceitamos que a inscrição deixa espaço para ser traduzida, para gerar
desdobramentos e neles poder deixar a caverna, deixar o abrigo da estranha dúvida entre
natureza e cultura que se resolvia nas imagens e se reafirmará no exterior, na superfície em
que realizamos outras obras. Para afirmar a exterioridade e o desdobramento da potência
construtiva para a arquitetura, partindo do reconhecimento da cisão entre natureza e cultura,
passemos a duas imagens potentes: o sítio arqueológico de Barão de Cocais em Minas Gerais e
as fotografias de Abbas Kiarostami.
Nem todas as inscrições rupestres eram realizadas nas profundidades das cavernas, em
locais pouco acessíveis, o que dessacraliza o caráter mágico e imediatista, e as estreita à
significação territorial. O sítio arqueológico de Pedra Pintada, em Barão de Cocais, Minas
Gerais, é um exemplo de grafias feitas em espaços externos. Está localizado na Serra da
Conceição, numa altitude de 1250 metros acima do nível do mar, no cume de um vale, sendo
datado do fim do neolítico, cerca de 10 mil anos
92
. Neste sítio se encontram inscrições com
representações naturalistas e esquemáticas de animais e figuras humanas em cerca de 100
metros de extensão (escala reduzida, se comparada às grutas de Altamira e Lascaux), sobre
uma formação rochosa de aproximadamente 10 metros de altura. As pinturas rupestres de
Cocais não possuem a escala próxima da real, como em diversas representações de Lascaux,
sendo as imagens executadas em escalas bem menores. Do local é possível abarcar
visualmente uma grande extensão de terra. A abrangência do campo visual implica o
sentimento de domínio do vale, construção cultural de uma natureza distanciada e de algum
92
Informações extraídas de panfleto distribuído no próprio sitio arqueológico de Pedra Pintada e de conversas
com os guias locais, em visita realizada pelo autor, em abril de 2005.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
66
modo domesticada: a quase realização da “paisagem”. É neste instante que se evidencia o
artifício sobre a natureza e a fundação da paisagem, do francês pays-aux-yeux, que traduzimos
por “região abarcada pela visão”. Os signos de Pedra Pintada são mais inteligíveis que aqueles
nas patas da Grande Vaca Preta de Lascaux ou que os Proun de Lissitzky. O projeto aqui vai
tomando configurações de uma linguagem que expressa a cisão parcial elementar entre
natureza e cultura, entre visível e legível, entre um e outro qualquer. Não mais necessidade
do interior das cavernas, as inscrições na rocha, de onde se avista uma grande extensão de
terra, efetuam a territorialização inevitável. Estranho sentimento de domínio. Operação
sinestésica, voz-fala, mão-grafia, olho-apreciador. Naquele período, o homem fazia de toda
a extensão do vale seu território, e a escrita sobre a rocha foi feita para confirmar eu domínio.
Instaurava-se um sistema de representação territorial: “teatro da crueldade que implica a tripla
independência da voz articulada, da mão gráfica e do olho apreciador”
93
. A paisagem
dominada pela voz e pelo olho é inscrita na rocha, efetivando não um território, mas uma
memória pela qual o homem ia transformando a região em sua casa, local do qual vai se
lembrar para retornar.
“(...)
trata-se de dar uma memória ao homem; e o homem, que constituiu por
uma faculdade ativa de esquecimento, por um recalcamento da memória
biológica, deve arranjar uma outra memória, que seja coletiva, uma memória
de palavras e não de coisas, uma memória de signos e não de efeitos. É
um sistema da crueldade, um alfabeto terrível, esta organização que traça
signos no próprio corpo (...)”
94
.
Com o alfabeto terrível sobrepondo a memória biológica, a arquitetura está prestes a se
instituir por nomeação. Este alfabeto nos permitirá definir as medidas, as distâncias, os hábitos,
nomear o habitat e sempre ter para onde ir.
O problema primitivo de reconhecimento da diferença posterior a uma força gerativa é
retomado nas fotografias de Abbas Kiarostami
95
. Diferentemente de Cocais, onde a paisagem
era ainda firmada, em suas fotografias tudo é paisagem. São leituras do existente, das
93
Referência direta a NIETZSCHE. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo capitalismo e
esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvim, s.d. [1995].p.196.
94
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio e Alvim, s.d.
[1995]. p.149.
95
KIAROSTAMI, A. O real, cara e coroa. São Paulo: Cosac Naify; Mostra Internacional de Cinema de São
Paulo, 2004. Para uma leitura pitoresca das fotografias de Kiarostami Cf. ISHAGHPOUR, Youssef. In:
KIAROSTAMI, A. op.cit.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
67
inscrições nas redondezas de Teerã, conformadas pelo homem e sobrepostas à natureza.
Diferem do pitoresco como janela ou recorte privilegiado para visão contemplativa. A
fotografia de Kiarostami, para além do enquadramento subjetivo do artista, representa a
materialidade de um espaço remoto que foi marcado pelo homem: são imagens quase sempre
desertas, mas detectam-se, nas grafias sobre a terra, marcas de estradas, indícios da presença
humana que mapeou a região, alterou a natureza e que provavelmente ainda passa por ali.
Nesse sentido, a paisagem, enquanto construção cultural de uma natureza, é desmascarada pela
própria exposição da cultura. não mais contemplação de uma natureza distanciada, mas
exposição dos registros da cultura, explicitação da exterioridade da imagem que possui
autonomia e pela qual resta ao sujeito se calar, pois se converte em mero participante de
algo que lhe escapa. Estabelece-se, deste modo, um olhar igualmente autônomo do sujeito.
Mais do que destinadas à contemplação, as imagens são proposições que remontam ao habitar
incitando à apropriação pela explicitação da exterioridade silenciosa das inscrições aderidas à
paisagem. Aqui a inscrição geométrica (de “medição da terra”) deixa a verticalidade da rocha,
como em Pedra Pintada, e faz-se na própria horizontalidade da superfície da terra. É o chão
preparado artificialmente para a colheita, são os caminhos que o homem faz para pode ir de um
lugar ao outro. E nestes cruzamentos se evidencia, ao fundo, uma casa: um outro momento
da inscrição arquitetônica.
FIG. 6 e FIG. 7 (da esquerda para a direita): Fotografias s/ títulos.
FONTE: KIAROSTAMI, 2004. S/ numeração de página.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
68
2. Exercício 2: A arquitetura por vir
Quando um navio naufraga, acomoda-se no fundo devagar; as vigas, os mastros, o
cordame, são levados pelas correntes. No leito oceânico da morte, o casco vazado
adorna-se de jóias; sem remorso, a vida anatômica recomeça. O que foi navio
transforma-se no indestrutível sem nome.
Henry Miller, Sexus.
Os riscos na paisagem indiciaram a casa, esta parte da obra que mais reconhecemos
como arquitetura. Antes de chegarmos à identificação deste objeto parcial, tentaremos detectar
o devir construtivo no empenho de se realizar arquitetura e na atualização de seu por vir.
Considerando a repercussão do movimento na forma, instauramos o problema da abertura da
obra para sua transformação numa duração. A obra de arquitetura possui um bloco de duração
que abarca dos primórdios da concepção projetiva aos últimos estilhaços de suas ruínas. Dado
seu longo transcurso temporal, que costuma ultrapassar a expectativa de vida do homem, e o
privilégio que se atribui a seu entendimento como objeto construído, tendemos a acreditar na
estaticidade da arquitetura e definí-la como arte do espaço. Preferimos compreendê-la como
arte da medida, explicitando as distâncias, sendo por ela e nela que nos situamos em referência
ao outro e que agimos construindo no mundo. Nesse sentido, uma abordagem da duração em
arquitetura convergiria para marcar as passagens no movimento do processo de conformação
da obra, alargada esta para antes e depois do objeto construído. Admitindo a concepção da
totalidade da obra, poderíamos igualmente analisar a arquitetura nessas outras partes, como
fragmentos de um todo
96
. Assim, admitimos sua abertura à transformação explícita em sua
duração.
Um corte cinematográfico. A constituição de um filme define-se pela sucessão de
quadros fixos, num tempo regular, projetados sobre um écran. A sucessão das imagens em
movimento, abarcando do início ao final de um filme, estabelece um bloco de duração fechado
que é o próprio filme. Podemos extrair dele fragmentos e considerá-los como rupturas de sua
totalidade. Em tais rupturas, antevemos brechas para o exercício da tradução entre linguagens.
O cinema difere da arquitetura, pois explicita, em sua própria conformação, o entendimento de
96
Investigando o todo e as partes, Calabreses partindo da etimologia de fragmento como quebra, caracteriza-os
pela ruptura da linha de fronteira do todo que exige a re-construção e não possui traços de enunciação que o
ligariam a um sujeito prévio. Cf. CALABRESE, O. A idade neobarroca. São Paulo: Martins fontes, 1988. p.85-
89.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
69
sua totalidade coincidindo com sua duração, enquanto a arquitetura explicita a abertura em sua
duração, com suas matérias expressivas dispostas à transformação. Confrontando os modelos
de sistemas fechados e abertos
97
, recorremos à leitura que Deleuze
98
faz da concepção de todo
por Bergson. Escreve: “A conclusão de Bergson é muito diferente: se o todo não é passível de
ser dado é porque ele é o Aberto e porque lhe cabe mudar incessantemente ou fazer surgir algo
novo; em suma: durar”. E continua, “de tal modo que toda a vez que nos encontramos diante
de uma duração, ou numa duração, poderemos concluir pela existência de um todo que muda,
e que é aberto em alguma parte”
99
. A versão de totalidade não se confunde com uma holística
ou com o uno, mas com totalidades disto ou daquilo ou totalidade de sistemas. O todo como
um aberto está sempre a ser feito e define a mutabilidade dos sistemas, sua transformação cujo
movimento faz a ligação ou o remendo entre as partes. Reportando-nos à análise das partes,
não podemos aceitar sua imobilidade e, deste modo, encaminharíamos nossos esforços para
apontar no movimento transformador sua abertura
100
. E a abertura não deixa de ser abertura
para a tradução entendida como “ir além de”, como transformação. No quadro de nossas
definições, remeteríamos a duração como evidência da aparição do devir construtivo. A
totalidade da obra de arquitetura estaria aberta ao seu por vir e exigiria, portanto, a tradução
entendida como este movimento de transgressão, de “ir além de si”.
Podemos rever o cinema como sistema fechado. Sua abertura, para além do fim do
filme, é o que ele lança para fora dele, repercutindo no traço infinito da memória. No entanto,
apesar desta brecha no sistema, não vamos nos ater aos problemas da receptividade dos
leitores. Para reconhecermos a abertura e a respectiva atualização do devir construtivo, nos
exemplos cinematográficos, recorremos a fragmentos de narrativas sobre a construção
arquitetônica. Define-se, assim, uma meta-narrativa, cuja abertura é dupla: a do fragmento
97
Utilizamos o termo sistema como “todo” relacionado com a “parte”, conforme Calabrese :“temos a dialética
‘sistema’/‘elemento’ se tornarmos pertinentes o nosso par segundo a idéia de con-sistência, isto é, de
funcionamento do todo e de suas partes”. CALBRESE, O. A idade neobarroca. São Paulo: Martins fontes, 1988.
p.83-84. Na medida em que a arquitetura está sendo entendida abrangendo o empenho construtivo, a obra
construída e suas metamorfoses até a extinção, consideramo-la como um sistema dos quais esses termos seriam
elementos.
98
Cf. DELUZE, G. Cinema 1 A imagem movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.p.13-21.
99
Ibidem. p.19.
100
“Podemos considerar os objetos ou partes de um conjunto como cortes imóveis: mas o movimento se
estabelece entre esses cortes e reporta os objetos ou partes à duração de um todo que muda, ele exprime portanto a
mudança do todo com relação aos objetos e é, ele mesmo, um corte móvel da duração. Somos agora capazes de
compreender a tese tão profunda do primeiro capitulo de Matière et Mémorie: 1) não há apenas imagens
instantâneas, isto é, cortes imóveis do movimento; 2) imagens-movimento que são cortes móveis da duração,
imagens-mudança, imagens-relação, imagens-volume, para além do próprio movimento”. DELUZE, op.cit. p.21.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
70
cinematográfico e a da arquitetura por vir. Tentaremos desenvolver o empenho construtivo, a
partir da imagem cinematográfica, dizendo do entendimento de duração em arquitetura. Nossa
aproximação entre cinema e arquitetura tenta, portanto, convergir esses dois campos por meio
dos conceitos de duração e abertura. Enfocaremos o empenho construtivo onde já está presente
o pré-texto, o projeto, e onde se manifesta a vontade de atualização do projeto rumo a uma
maior conformação da obra. Trata-se do tanto que o projeto participa de uma totalidade e de
uma abertura enquanto a obra vai consistindo. Para tanto, extraímos fragmentos de dois filmes:
no primeiro, Fitzcarraldo (1981), de Werner Herzog, tomamos um início de construção antes
do objeto arquitetônico; no segundo exemplo, O sacrifício (1985), de Andrei Tarkovski,
abordamos o fim de um objeto arquitetônico. Em ambos fragmentos, há indícios da abertura ao
por vir da arquitetura como repercussão de uma construtura. Privilegiando os fragmentos para
que não funcionem como sistemas à parte, situaremos os filmes referenciando a totalidade de
seus sistemas “fechados”.
O filme Fitzcarraldo começa com um plano da floresta amazônica com a seguinte
legenda: “Os indígenas chamam este país de Cayahuari Yacu, ‘a terra onde Deus não terminou
a criação’. Eles acreditam que somente quando o homem for extinto Deus voltará para
terminar o seu trabalho”. Prelúdio nietzschiano de superação do homem, em que superar não é
deixar para trás, mas ir além. A criação inacabada explicita o problema da duração como
abertura para a construção. No filme, Fiztcarraldo é um estrangeiro falido durante o ciclo da
borracha em fins do século XIX e que deseja construir um teatro de ópera na cidade de Iquitos,
na Amazônia peruana, para levar a obra de Verdi e a voz de Caruso à população local. Na
tentativa de conseguir recursos para a construção, lança-se no desbravamento da última região
possível de exploração de borracha. A região é de difícil acesso e para alcançá-la traça um
plano de arrastar seu navio, de dimensões e peso consideráveis, sobre um morro, transpondo-o
de um rio ao outro. Tarefa complicada que levaria alguns meses e que conta com a colaboração
de uma tribo indígena. Porém, ao chegar no outro rio, os índios fazem uma festa de “sacrifício
para acalmar o rio”: cortam a âncora do navio e ele deriva no caminho oposto a seu destino.
Com o aparente fracasso da expedição, Fitzcarraldo volta a Iquitos, vende o que sobrou de seu
navio e com o dinheiro traz à cidade uma companhia de ópera que estava nas redondezas e
realiza um espetáculo no próprio barco, numa chegada semi-triunfante. Extraímos dois
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
71
fragmentos de Fitzcarraldo: a transposição do navio entre os rios e a ópera realizada no navio
na chegada à Iquitos (FIG. 8).
FIG. 8: Navio sendo arrastado, cena do filme Fitzcarraldo, de Werner Herzog (1981).
FONTE: Cartaz do filme Fitzcarraldo © Werner Herzog Film Filmproduktion and Anchor Bay Entertainment,
Inc., disponível no site: http://www.moviegoods.com , acessado em junho de 2005.
Que tipo de espaço almeja Fitzcarraldo? Fitzcarraldo anseia construir um teatro para
ópera. Desde o início do séc. XIX, a ópera, união de música, drama e espetáculo, deslocou-se
dos meios aristocráticos europeus para os grandes teatros de platéias populares. Passam a ser
construídos teatros capazes de comportar o público crescente, inclusive nas colônias, como é o
caso, por exemplo, do Teatro de Manaus. Paul Virilio refere-se a estes espaços como espaços
do entretenimento e da alienação do público. Espaços da passividade, os quais compara
contemporaneamente à experiência narcotizante da viagem de avião, ao não-lugar por
excelência, dizendo:
“...a Ópera de hoje é o Boeing 747, nova sala de projeção na qual se tenta
compensar a monotonia da viagem com o atrativo das imagens, (...) a mercê
do qual o mundo sobrevoado perde todo o interesse, ao ponto em que o
conforto inerente ao avião supersônico imponha sua ocultação total, e talvez
exija no futuro a extinção das luzes e a narcose dos passageiros”.
101
Mas para os nativos de Iquitos, Verdi é uma experiência original. A ópera na selva sobrepõe
um espaço estranho e inadequado pela distância cultural. Talvez aí a narcose seria mais
101
VIRILIO. P. apud, MONTANER, J. La modernidad superada: arquitectura, arte y pensamento do sec.XX.
Barcelona Gustavo Gilli, 1998. p.48. t.a.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
72
alucinante, com a produção de outros modos de pensamento definidos pela imaginação, do que
propriamente alienante. Essa nossa primeira aproximação da loucura que perpassa todo o
empenho de Fitzcarraldo vai de encontro à motivação do imaginário explicitando a distância
cultural, sobrepondo espaços sem, no entanto, instituí-los.
O movimento para a construção da ópera oscila entre um sentido utópico e um
heterotópico
102
.
O empenho prepotente de Fitzcarraldo delineia uma utopia, no entanto, na
medida em que será, de alguma forma, atualizada, como desvio do objeto arquitetônico
sobrepondo lugares, ocorre a instauração das heterotopias. A utopia está expressa no desejo de
construir uma ópera para Iquitos. os meios para a construção da ópera e a sua quase
realização definem heterotopias. Arrastar o navio pelo morro para levá-lo ao outro rio atualiza
a utopia rumo à construção. Estabelece uma heterotopia deslocando o meio do movimento do
navio, que passa da água para a terra. Nos dizeres de Foucault, o navio é a heterotopia por
excelência, é “um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo
tempo lançado ao infinito do mar”
103
. Notamos uma orientação para a subversão de qualquer
modo de confinamento espacial, inclusive os traduzidos nas heterotopias. Mas, se tomarmos o
navio fora de uma metáfora do pensamento e o mar como o campo ilimitado, temos, por sua
vez, um espaço de confinamento do qual não se pode sair. No espaço infinito do mar o homem
estaria condenado igualmente ao confinamento no navio. Num sentido positivo, são metáforas
do pensamento
104
.
O navio de Fitzcarraldo também não deriva para o infinito das possibilidades do mar,
mas, ao contrário, subverte o modelo da “heterotopia por excelência” quando arrastado pela
terra. A deriva, por conta do sacrifício feito pelos índios, vai conduzir o empenho construtivo à
formação distinta do objeto arquitetônico. A apresentação da ópera no retorno do navio a
102
Conforme o Foucault de Outros espaços, alguns posicionamentos característicos dos espaços atuais “tem a
curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros posicionamentos, mas de um tal modo que eles
suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontrem por eles designadas, refletidas ou
pensadas”. Distingue estes espaços em utopias, “posicionamentos sem lugar real” e heterotopias, na qual os
“posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados,
contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente
localizáveis”. FOUCAULT, M. Outros espaços. In: Ditos e escritos. V.3. São Paulo: Forense, 2001. p.414-415.
103
Ibidem. p.421-422.
104
A este respeito, dizem Deleuze e Guatarri: “Não existem estranhas viagens numa cidade, existem viagens
num mesmo lugar (...)”. p.189. Assim, “pensar é viajar”, e a distinção das viagens são “os modos de
espacialização, a maneira de estar no espaço, de ser no espaço. Viajar de modo liso ou estriado assim como
pensar...” p.190. DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1440- O liso e o estriado. In: Mil Platôs V.5. São Paulo: Ed.34,
2002.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
73
Iquitos assenta uma heterotopia na qual o “lugar sem lugar” é sobreposto por um outro “lugar
sem lugar” dado pela música, que dura um tempo e se esvai no espaço. As imagens de Herzog
são potentes para dizer do desvio e da sobreposição de espaços. Em sua duração, há a
sobreposição do “lugar sem lugar”, daquilo que é quase objeto arquitetônico mas que já
participa da duração de uma arquitetura. A heterotopia aqui vem antes do objeto, quando foi
preciso transpor o rio para construir; mas vem também durante a instauração do objeto, mais
na realização da ópera que no barco como suporte para ela ocorrer. A arquitetura configura
aqui um acontecimento ou um acontecimento quase configura uma arquitetura? A
funcionalização do barco para atender à ópera não faz, por si, arquitetura. Ou seja, não
podemos isolar o abrigo do empenho construtivo que atualiza sua duração.
Deparamos-nos ainda com a passagem da monumentalidade heróica como meio do
sublime, exemplificada na travessia do barco e no desejo de levar música à selva pela
construção da ópera, para o resultado final da fragilidade do espetáculo da ópera, ocorrendo
uma única vez, e precariamente, no barco. “Fitzcarraldo se oferece, como último espetáculo,
uma troupe medíocre que canta para um público minguado e um leitãozinho preto”.
105
Como
dissemos, o fracasso é somente aparente. Apesar da construção da Grande Ópera de Iquitos
não se consumar, ou seja, a arquitetura em sua modalidade tectônica não ser efetivada,
podemos afirmar que as heterotopias realizadas implicam o espessamento da arquitetura,
conformando suas propriedades antes mesmo de se definir como objeto instituído. Nesse
sentido, as heterotopias são apropriadas e passam a encarnar a arquitetura por vir: seja no
lugar arrastado pela terra, seja no território sonoro fundado pela música. Anunciam a fundação
de um lugar onde ele ainda não existe, preparando o adensamento do espaço para a arquitetura
por vir. De certa forma, os fragmentos retornam à utopia com relação ao objeto arquitetônico,
onde a duração da obra foi exteriorizada, lançada para uma atualização futura.
Outro corte. Como nos mostra Fitzcarraldo, às vezes as obras não passam sua
objetividade. Mas, e se tentarmos o posicionamento inverso, no qual a obra de arquitetura se
faz consistir quando evidencia a sua duração, isto é, quando marca seu próprio fim, como na
totalidade cinematográfica? No filme de Andrei Tarkovski, O Sacrifício (1985), como parte do
cumprimento de sua promessa para salvar o mundo de um fim eminente decorrente de uma
105
Sobre as idéias do grande e do pequeno em Herzog, Cf. DELEUZE, G. Cinema 1 A imagem movimento. São
Paulo: Brasiliense, 1985. p. 228-230.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
74
terceira guerra mundial iniciada, Alexander, numa circunstância ritual, coloca música japonesa
no som em seu quarto, veste um quimono, desce ao primeiro pavimento pela escada disposta
na janela deste cômodo, reúne os móveis na sala, retira das proximidades da casa o carro de
seu amigo. Incendeia sua casa. Com a casa em chamas, foge do homem e, na sua fuga, acaba
por entrar voluntariamente numa ambulância. Nosso fragmento: a casa pegando fogo (FIG. 9).
Novamente a heterotopia a partir do desvio do lugar destituído e da sobreposição deste lugar
por ao menos dois, mas em sentido negativo: os restos da construção e a casa psiquiátrica à
qual encaminham Alexander. A casa isolada numa bela paisagem era o sítio ideal onde
Alexander passou grande parte da vida, acolhido das adversidades do mundo com sua família.
Apesar do medo e da loucura, seu sacrifício é antagônico ao ideal ascético do sacrifício na
moral judaico-cristã, que se trata de uma fraqueza diante da pletora da vida. Seu sacrifício se
afirma, ao contrário, enquanto refinamento da tragédia em sua potência catastrófica como
alternativa à inércia, ao embrutecimento e à insanidade do homem contemporâneo. “A
destruição é o melhor meio de negar uma relação utilitária entre o homem e o animal ou a
planta”
106
. O sacrifício culminando na queima da casa reabilita uma espécie de potlatch
107
. É
neste gesto de desperdício de riqueza que se posiciona o doador. O donatário seria a própria
humanidade, passiva diante do mundo.
Para o cineasta, o espaço no qual suas personagens habitam torna-se “um ponto de
contraste característico e raro em relação aos conceitos utilitaristas de nossa experiência, uma
área onde a realidade eu diria está presente de forma extremamente forte”.
108
Ou seja, o
que move o filme é uma vontade construtiva. Na filmagem da casa queimando, a câmera
estava sem película, sendo preciso refazer a casa para completar o filme. A repetição da cena
da casa queimando marca a ressurreição da obra: se antes ela se tornou impossível, atingindo o
centro onde não mais existiria, num gesto de generosidade ou de dádiva, Tarkovski leva ao
término sua construção. A casa requeimada, marca da repetição, lança, para fora da obra, seu
fim. Não há mais lugar para onde ir. Cessou a idéia do por vir, nos termos em que temos
106
BATAILLE, G. A parte maldita. A noção de despesa. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p.94.
107
Partindo do estudo de Macel Mauss dos índios norte-americano, Bataille traça uma teoria do potlatch: “O
potlatch é como um comércio, um meio de circulação de riquezas, mas exclui o regateio. É, via de regra, a dádiva
solene de riquezas consideráveis, oferecida por um chefe a seu rival a fim de humilhar, desafiar, obrigar. O
donatário deve apagar a humilhação e rebater o desafio (...) ele deve retribuir com usura. A dádiva não é a única
forma de potlatch: um rival é desafiado por uma destruição solene de riquezas”. BATAILLE, G. Ibidem. p.104-
105.
108
TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. São Paulo Martins Fontes, 1998. p. 261
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
75
insistido, como potência construtiva e como impossível diante de sua separação da vida.
Paramos na morte. Não nos cabe mais avançar. Se a ficção em Herzog espelha a realidade
109
,
em Tarkovski, a ficção coincide com o fim da realidade. O fim aparente da duração é
catastrófico ou coincidente com a morte, mas deixa a abertura ao por vir. uma suspensão
dos acontecimentos. O filho de Alexander, que estava mudo, ao fim do filme resolve falar e
pergunta: por que no início era o verbo? A pergunta retorna com a casa queimada, a construção
é interminável, lançada ao infinito. Haveria sobrevida da obra?
FIG. 9: Casa pegando fogo, cena do filme O sacrifício, de Andrei Tarkovski (1985).
FONTE: Lars-Olof Löthwall and the Swedish Film Institute, disponível no site:
http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/ThePhotos/lars-olof_gallery-c.html , em junho de 2005.
Tomamos três fragmentos do cinema como recortes da duração arquitetônica: a ranhura
da terra na travessia do barco; o sopro se evadindo no espaço na ópera como construção de
curta duração e a casa pegando fogo. Em termos de imagem cinematográfica, reconhecemos
suas partes na totalidade das obras e quanto a suas narrativas, dizem do empenho construtivo e
da abertura para uma arquitetura por vir. Parece-nos que a sobreposição de espaços, as
heterotopias, evidenciam a duração num fragmento da obra, num instante privilegiado
qualquer. As heterotopias são espécies de espaços da tradução. Atravessamos os campos entre
109
Na concretização do filme, três anos de trabalho na floresta amazônica, ocorreram vários problemas: acidente
de avião, chuvas constantes, ataques de índios, uma guerra fronteiriça perto das locações, o abandono das
filmagens por alguns atores, a morte de um índio durante a realização da cena colossal de transporte do barco de
um rio ao outro. Filmagem na qual ficção e realidade se interpenetram: “O filme se pretende um retrato da
loucura, da prepotência e do desperdício. Mas sua própria realização é um retrato do que pretende retratar”.
LYRA, M. A obsessão foi sua marca. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/revistadecinema/edicao29/dossie/index.shtml. Acessado em: 19/04/2005. Sobre os
problemas de execução do filme, Cf. Burdens of Dreams (1982), documentário, do diretor americano Les Blanks,
que acompanhou a filmagem de Fitzcarraldo.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
76
ficção e realidade para trazer à tona os limites frágeis que insistem em desvalorizar um destes
campos em favor do outro. Mostramos a instituição arquitetônica durando desde seu pormenor
como recorte heterotópico. A arquitetura se caracteriza pela sua duração que a permite abrir-se
ao por vir, seja numa tomada fragmentada ou numa totalidade. Esta sua forma de se fazer
consistir nos leva a considerar equivocadas as pretensões de uma arquitetura nomeada de
efêmera. Assim como o entendimento da perenidade não condiz com um caráter estático, mas
com a própria evidência do devir construtivo atualizando a duração. O que notamos, por fim, é
que a arquitetura é feita para durar, e não para ser efêmera ou perene. É feita para consistir,
ainda que alguns segundos, e, por meio de suas aberturas, nos lança para construções futuras,
para traduções outras. A duração conduz sua encarnação, que assume no modo tectônico sua
correspondência mais evidente. Fragmento de consistência privilegiado, aqui ainda
inominável.
3. Exercício 3: A casa e a carne
O limite exterior de um corpo ou de uma obra
110
marca a passagem para sua
encarnação. Neles a potência construtiva está prestes a se atualizar, aderir ao mundo. É a
morfogênese que a princípio nos lança deste limite. Trazendo à superfície e atritando com a
exterioridade que nos envolve, a carne sedimenta e institui uma memória biológica. A carne é
essa espessura irrigada, vital, traçando o limite entre um corpo e um outro qualquer dispostos
sobre a Terra. E onde se marcam as diferenças e são feitos os contatos entre um e outro. A
carne vai sendo inscrita, sulcada no decorrer do tempo destituindo o corpo fixo, pré-figurado
ou corpo próprio. Se na sua espessura opaca se inscreve por acúmulos e esvaziamentos,
espécie de escarificação, podemos dizer de um modelo de escrita que ainda dispensa as
palavras. É inegável que a carne se corrompe, mas se ela morre pela inscrição é a morte
tornada própria, é o corpo singularizado como carne contrário a aquele do ideal acético, do
martírio, da dor. Pequena morte como termo final da duração de uma experiência de perdição e
como abertura para outra, conforme ao movimento da tradução, tal como o temos
compreendido. É sempre o penúltimo termo que faz a carne consistir.
110
Conforme temos encaminhado este trabalho, nosso entendimento de obra é o de um sistema dinâmico, um
conjunto de duração que abarca o objeto construído estável mas não se confunde somente com ele.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
77
Bollnow
111
trata da encarnação aproximando a casa e o corpo a partir do habitar.
“Habitar em algo significa estar encarnado em algo”
112
. Este estado de aderência é também o
de espacialização. Assim, podemos dizer do corpo como um espaço próprio em relação ao
espaço exterior a se apropriar. É porque estamos encarnados que nos situamos e construímos
no mundo. A zona de contato entre o espaço próprio do corpo e o espaço exterior conjuga o
que o corpo traz à superfície e o que o afeta da exterioridade do mundo. Ao se construir, o
corpo é também construído e, na medida em que é construído, singulariza-se. A encarnação
não é somente uma especificidade humana. Sobre uma arquitetura, enfocamos, mais do que o
corpo habitante encarnado na casa, a aderência passiva, enfocamos a casa como corpo
encarnate próprio ao seu devir construtivo. O movimento tradutor em arquitetura exige essa
encarnação ativa por forças humanas ou não humanas. Para abordarmos a encarnação na
arquitetura, por tradução, recorremos às pinturas. As pinturas, por seu movimento de
encarnação, se fazem consistir por meio de sobreposições de camadas de tintas. Camadas que
ora se misturam, ora se sobrepõem e que, quando o quadro se encontra feito, ainda repercutem
nas múltiplas leituras como carne penúltima.
É essa carne penúltima que Rembrandt nos evidencia em seus auto-retratos. Iniciados
desde sua juventude, Rembrandt segue ao longo de sua vida pintando inúmeros auto-retratos
que expressam os blocos de duração constituintes de sua existência. Nos quadros de sua
juventude, Rembrandt “está enamorado do fausto”
113
. Porém, apesar da suntuosidade das
roupas e dos brilhos das jóias, desde essa época se interessava pelos rostos marcados pelo
tempo. O fausto que o acompanha na juventude será transferido aos poucos, lentamente, para
seu âmago. A exuberância passa a migrar para as matérias mais humildes, numa tentativa de
valorização de uma certa essencialidade constituinte da matéria. Tal essencialidade por certo
não é transcendente, mas imanente, designando o que faz formar. Este enfoque nos aproxima
do espaço da tradução, da potência construtiva. São, assim, os rostos que anunciam a pletora
como aquilo que anima qualquer vida. É a própria subversão da idéia do princípio de
necessidade que regeria a vida. “Essa operação conduzida lentamente e talvez obscuramente,
lhe ensinará que cada rosto vale por si e remete ou conduz a uma identidade humana que
111
Cf. BOLLNOW, O. Hombre y espacio. Barcelona: Editorial Labor, 1969. p.253-260.
112
Ibidem. p. 257.
113
Cf. GENET, J. Rembrandt. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. p.18
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
78
corresponde a uma outra”.
114
O reconhecimento da exuberância como resultante da força
gerativa leva-o a quebrar as hierarquias das coisas, como o privilégio do corpo humano sobre
os objetos. “Este esforço lhe possibilita desfazer-se de tudo o que poderia reconduzir a uma
visão diferenciada, descontínua, hierarquizada do mundo: uma mão vale um rosto, um rosto
um canto de mesa, um canto de mesa um bastão, um bastão uma mão, uma mão uma manga
(...)”.
115
Seus retratos perdem a nitidez dos contornos e parecem sempre a mesma figura. Desta
concepção de acúmulo, advém o interesse de Rembrandt em retratar pessoas velhas e em
retratar a mesma pessoa em vários períodos da vida. Assim, seus auto-retratos não são
manifestações narcísicas. Eles fazem do seu corpo, desapropriado e singularizado, o corpo
próprio da pintura, como uma espécie de espelho de dupla face marcando a aderência do pintor
na obra. A formação de ambos na única coincidência que os assemelha tenuemente por
ocorrência do devir construtivo.
Georg Simmel
116
, em seu ensaio sobre Rembrandt, adota uma concepção da vida que
abandona as categorias de “todo” e “parte” para evidenciá-la como uma sucessão de momentos
qualitativos, concepção bergsoniana que destitui a primazia de um “eu puro” ou de uma
“alma”. Escreve:
“Cada instante da vida é a vida inteira cujo constante fluir – o qual é
precisamente sua forma incomparável alcança sua realidade tão somente
no ponto mais alto da onda que a eleva; cada momento atual está
determinado pelo curso inteiro da vida anterior; é o resultado de todos os
momentos passados e, por isso, o presente atual da vida é a forma em que
a vida inteira do sujeito é real”.
117
Essa concepção de vida, conduzida aos auto-retratos de Rembrandt, faz de cada pintura um
sistema que acumula todas as anteriores, só que de modo não progressivo, ao passo que deixa a
abertura para o por vir da obra, para os retratos que virão. Definimos uma continuidade não-
linear, o que em termos pictóricos nos conduz a ir além da literalidade barroca, presente nas
linhas movimentadas de seus desenhos e gravuras, para chegar ao movimento que concentra a
vida no instante da, pintura na sobreposição das massas, na própria encarnação da pintura na
114
GENET, J. Rembrandt. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. p.27.
115
Ibidem. p.30.
116
Cf. SIMMEL, G. Rembrandt. ensayo de filosofia del arte. Buenos Aires: Editorial nova, 1950.
117
Ibidem. p.12. Sobre a relação de todo e parte como constituintes de sistemas abertos, tratamos no exercício
2.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
79
feitura da carne retratada. Suas pinturas são carregadas de massa, os detalhes são
“borroscadas” de tinta. Assim, Simmel define o problema pictórico de Rembrandt como “a
representação de uma totalidade humana da vida, porém como problema realmente pictórico, e
não psicológico, metafísico ou anedótico”.
118
Cada um de seus retratos é único em expressar a
totalidade de uma vida. Não se trata, portanto, de acúmulos de retratos para verificar uma
duração. A obra é onde se acumula a vida, e a vida não é um acúmulo de obras. A obra
presentifica a vida como unidade indecomponível, sem ser outra coisa. O curso vital em
Rembrandt define a forma aberta de suas pinturas, produto da estratificação dos momentos
passados no presente que manifesta a vitalidade, da vida em devir. As pinturas de Rembrandt
possuem o movimento interno, a pequena morte e o movimento do vir a ser do fenômeno
material, cujo extremo faz-se submersão no momento de fecundação, em si unitário e tão
encoberto ou obscuro como a vida mesma. “(...) Rembrandt parece haver acrescentado ao
fenômeno sensível uma vida em que a total potencialidade de sua origem se realiza em devir.
Porém esta se desenvolve desde dentro”.
119
Eis o problema de trazer à superfície a potência
construtiva e fazer obra.
FIG. 10: REMBRANDT. Auto-retratos, 1633-34
FONTE: Coleção de Arte. Rembrandt. 1997. fig.15.
FIG. 11: REMBRANDT. Auto-retrato, 1665.
FONTE: SIMMEL, G. 1950. p.223.
118
SIMMEL, G. Rembrandt. ensayo de filosofia del arte. Buenos Aires: Editorial nova, 1950. p.20.
119
Ibidem. p.62.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
80
Se evidenciamos os ‘signos ininteligíveis’ no Exercício 1, com sua falta de
organização, de funcionalidade, de hierarquia, sem partes definidoras ou submissas ao todo,
assumimos sua descendência artística e sua ocupação desde o início, com a potência
construtiva, esse movimento que anima a matéria e remonta à origem impossível, e a uma
outra atual e a outras tantas por virem. Os métodos, sejam teleológicos ou mecanicistas, que se
valem das partes para alcançar o todo não conseguem chegar à unidade da obra, a sua
inteireza. Por isso, a obra não pode ser compreendida como somatório das partes nem como
unidade estática, pois, como disse Simmel, não existe nenhuma ‘parte’ completa
120
. Rembrandt
constitui o corpo próprio da pintura recorrendo a seu corpo. Sobre seu último auto-retrato diz
Genet: “Uma firme bondade”.
121
Poderíamos dizer uma firme vontade construtiva. Apreendida
a lição de Rembrandt do corpo humano como corpo singularizado, a inumanidade como cerne
da potência construtiva, nos voltamos para evidenciar uma inaturalidade semelhante nas
pinturas de Cézanne, para extrairmos suas repercussões para a encarnação.
Em resposta à juventude, Cézanne resolve falar sobre arte, mas falar brevemente, visto
não ser afeito ao enredamento da escrita e menos ainda à teorização de seus processos e
pensamentos sobre arte. Das conversas e correspondências com Émille Bernard, distinguimos
o seguinte fragmento que caracteriza bem sua posição frente à teoria e principalmente frente à
sua prática de pintor. Pergunta Bernard:
“-Mas em que se baseia a sua ótica, Mestre?
-Na natureza.
-O que quer dizer com essa palavra? Trata-se da nossa natureza ou da
natureza em si?
-Trata-se de ambas.”
122
O para quê de sua pintura ele sabia, tratava-se de produzir a partir da natureza e deste
modo fazer natureza. Fazer natureza é valer-se do artifício, é forjar uma natureza que não é
natural encaminhando-a ao espaço da tradução, colocando-a em devir construtivo. O para
quem é duvidoso: quem é esse ao qual a obra anuncia e que a espera? Esse que também é
natureza, ambas? Esse que seria capaz de reconhecer o pintor e, assim, cessar sua dúvida
quanto ao por vir do vazio fundado na pintura e de onde emerge uma inatureza disposta ao
120
SIMMEL, G. Rembrandt. ensayo de filosofia del arte. Buenos Aires: Editorial nova, 1950. p.26.
121
GENET, J. Rembrandt. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.17.
122
CHIPP, H.B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999.p.10.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
81
conhecimento como acréscimo no mundo. Enfocando essa dúvida crucial de Cézanne, nos
eximimos do psicologismo, que se pauta na constante fraqueza humana do pintor e que confere
a sua obra um sentido negativo ditado pelas perturbações de sua vida. A vida é indissociável da
obra para qualquer um que dela participe, porém não é sua determinante direta no sentido de a
obra ser uma resposta evidente a suas vicissitudes. Mas não abandonemos a fraqueza do
homem, pois, ao refutarmos as facilidades do psicologismo, nos deparamos com um outro
sentido de sua fraqueza: a destruição da imagem do homem como sujeito soberano de todo o
conhecimento. A fraqueza do pintor era não ser dono de si, era ser “o homem que não existe”,
como escreve a Gasquet
123
. E, destituído da imagem do homem, sua fraqueza o leva a produzir
a partir da natureza entendida como exterioridade do mundo.
FIG. 12: CÉZANNE. A montanha de Sainte-Victoire, 1892-95.
FONTE: MEARLEAU-PONTY, Maurice. 2004. p.56.
FIG. 13: CÉZANNÈ. A montanha de Sainte-Victoire, 1904-06.
FONTE: BRION, M. 1973. p.66.
123
CHIPP, H.B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.14.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
82
As pinturas de Cézanne não corroboram qualquer drama pessoal e elas nos oferecem a
dúvida do fraco e a realidade do artifício. Como coloca Merleau-Ponty, “sua pintura seria um
paradoxo: buscar a realidade sem abandonar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza
na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem
compor a perspectiva nem o quadro”
124
. A realidade imediata é o acontecimento pictórico em
que se voltar à natureza foi o método de exterioridade de si pelo qual o pintor funda um lugar
primordial. Nesse lugar ainda não se dissociam alma e corpo, pensamento e visão. “Não
estabelece um corte entre o ‘sentido’ e a ‘inteligência’, mas entre a ordem espontânea das
coisas percebidas e a ordem humana das idéias e das ciências”
125
. A própria obra explicita o
inumano e o inatural da natureza, basta olharmos seus personagens que são objetos
coisificados. Cézanne afirmava que se deveria pintar uma pessoa como um objeto ou fruta. As
pinturas de paisagem são destituídas da referência humana, não havendo qualquer
familiaridade quanto ao povoamento, como cidades, vilarejos, casas, construções ou figuras
humanas. “A pintura de Cézanne suspende esses hábitos e revela o fundo de natureza inumana
sobre a qual o homem se instala”
126
. Na própria natureza enquadrada, as paisagens são
imóveis. Tal imobilidade remete ao lugar que, como vimos, é inumano e ao mesmo tempo é
onde o homem se instala, sem ainda se firmar, sem se nomear, sem pensar sobre si. “O artista é
aquele que fixa e torna acessível ao mais ‘humano’ dos homens o espetáculo de que fazem
parte sem vê-lo”
127
.
A pintura de Cézanne é construída, sua encarnação é tectônica, chegando a demorar
alguns anos em sua confecção. Caracterizada pelo jogo de estabilidades, de geometrização, de
cores definidoras da espessura material, de densidade indestrutível e se utilizando de distorções
perspectivas, confere um sentido mais objetivo que subjetivo ao princípio de representação das
coisas. No período identificado por Marcel Brion como construtivo, compreendido entre os
anos de 1878 a 1895, Cézanne amadurece sua fórmula incansavelmente repetida de que “na
natureza tudo se reconduz à esfera, ao cilindro e ao cubo”
128
. Fruto de sua visão sintética, a
estruturação geométrica interna da natureza remete à idéia clássica de mimese da natureza
124
MEARLEAU-PONTY, M. A dúvida de Cézanne. In: O olho e o espírito. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.
p.127.
125
Ibidem. p.132.
126
Ibidem. p.134.
127
Ibidem. p.128.
128
BRION, M. Cézanne. Os impresionistas. São Paulo: Editora Três, 1973. p.36.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
83
naturante. No entanto, nos parece ser a potência construtiva o próprio princípio do pintor, e
não o respaldo às leis universais que regem a natureza. A esfera é o espaço da criação do
movimento que engendra e seu desdobramento é o cilindro que passa à estaticidade do cubo.
Eis, por um lado, o que podemos ler em sua vertente construtiva: explicitar o espaço original
de uma criação, a esfera em seus movimentos e sua estaticidade feita em cubos que constituem
a pintura e possibilitam o encontro com uma origem a quem quiser ver. Os brancos que deixa
nas telas em sua fase final configuram espaços receptíveis, zonas em que as cores próximas
vibram, explicitam o vazio no qual a natureza se engendra. Conferem, como coloca Brion,
“(...) o poder de dar uma vida à matéria inerte, a genialidade de sugerir respiração e
movimento ao objeto imóvel, a presença do sobrenatural na aparência quase banal das coisas,
o anunciar e o avizinhar-se de uma alucinante ultra-realidade”
129
.
Pela via da natureza, o olhar para o mundo, assim como Rembrandt, pela via do retrato,
o olhar para o homem, ambos aproximam-se da evidência arquitetônica encarnando um devir.
Ambos narram a inumanidade e a inaturalidade do movimento construtivo, narram a
precedência da linguagem da feitura das formas à ação humana, mas narram para o homem.
Fazem-nos reconhecer a carne como formação de uma memória biológica inumana e inatural.
Adentremos numa forma ambígua de encarnação como passagem da inumanidade e da
inaturalidade, identificadas na pintura, para a arquitetura. um tipo reverso ao desperdício
em arquitetura, mas que tampouco poderia ser categorizado no gradiente da necessidade
determinista: são as habitações feitas de “restos”, que conformam as favelas, aglomerações
comuns nos países pobres, mas são também as habitações construídas com melhores recursos
pelos próprios moradores em bairros periféricos. Encarnam desde dentro. Desvencilhamo-nos
de fornecer ou não o título de arquitetura a essas edificações, até porque ainda não tratamos de
arquitetura no sentido que esta adquire a partir da idade moderna, com a soberania do arquiteto
autor. E temos dito demais sobre a precedência da construção para detectá-la somente em
exemplos arquitetônicos legitimados. Nem vamos nos empenhar numa apologia a esse tipo de
construção, que por sinal adquire variantes infindáveis conforme as disponibilidades e os
desejos dos proprietários construtores. O que nos interessa aqui é a aproximação da carne do
habitante com a da casa. Se falamos da inumanidade da construção cabe vislumbrar o homem
como construtor, sua inumanidade enquanto constrói, entrando em devir e fazendo de sua casa
129
BRION, M. Cézanne. Os impresionistas. São Paulo: Editora Três, 1973. p.63.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
84
a sua carne. Geralmente essas habitações são realizadas pelos próprios moradores, total ou
parcialmente, valendo-se dos recursos disponíveis. No caso das favelas, os recursos iniciais são
precários, como restos de construção ou mesmo papelão. A inaturalidade é dada no artifício do
acúmulo que faz uma casa. No decorrer do tempo, tais habitações vão se consolidando,
trocam-se os materiais efêmeros por alguns mais duradouros e as espacialidades vão se
conformando. Este movimento construtivo coincide explicitamente com a vida do morador.
FIG. 14, FIG. 15 e FIG. 16 ( de cima para baixo e da esquerda para a direita): três momentos de
encarnação no Aglomerado da Serra em Belo horizonte no início da década de 90.
FONTE: arquivos do autor.
No avesso ao desperdício, a casa vai se consolidando, mas sem perder o movimento
interno, este sim exuberante, nomadismo no mesmo lugar. Para além dos casos extremos de
acúmulo e esvaziamento, de implicação do habitante e de resquícios autobiográficos, o
fenômeno de encarnação da casa vai gerar a habitabilidade. Nesse sentido, a casa e o corpo
habitante consistem em mútua encarnação. Neste percurso, identificamos o processo de
encarnação de um corpo como algo inumano e inatural, ocorrendo entre as formas instituídas e
por um movimento de tradução ao qual tentamos reconhecer.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
85
4. Exercício 4: Diabolus em música e em arquitetura
Depois de ele assim ter falado, contemplei o Anjo, que estendeu os braços,
envolvendo a língua de fogo, & foi consumido e ascendeu como Elias.
NOTA: Este Anjo, que agora se tornou um Demônio, é meu amigo íntimo, muitas
vezes lemos juntos a Bíblia em seu sentido infernal ou diabólico, que o mundo há de
possuir, caso se comporte bem.
Possuo também A Bíblia do Inferno, que o mundo de possuir, quer queira, quer
não.
Uma só Lei para o Leão & Boi é Opressão.
William Blake, O matrimônio do céu e do inferno.
Até então, nossos exercícios de tradução se orientaram para o entendimento da obra de
arquitetura sob aspectos como a origem, a duração e a encarnação. Neste exercício tentaremos
avançar na relação da arquitetura com outras linguagens, atentando às desapropriações que
ocorrem na tradução. Trataremos do que é lançado para fora dos campos, estabelecendo uma
zona imprópria, e como se produz um sistema de transgressão por tradução que nomeamos de
barroco
130
. Optamos por exercitar a tradução entre música e arquitetura dada a recorrência,
desde os primeiros escritos sobre arquitetura, da tentativa de aproxima-la de tais campos por
semelhança estrutural. Em Vitrúvio, a venustas se define pelas relações com o corpo humano e
com a música
131
. Os gregos clássicos, apesar de não admitirem nenhuma confusão em matéria
de estética, utilizavam a mesma terminologia para a música e para a arquitetura. Associavam
ambas de acordo com analogias estruturais e compositivas resumidas em harmonia, ritmo e
proporção, estabelecendo equivalências entre os seguintes aspectos: entre os intervalos
musicais, que são acordes consonantes ou dissonantes de duas notas, e a razão em arquitetura,
que são de duas longitudes, superfícies, etc; entre os acordes musicais, que são combinações de
três ou mais notas, e a proporção em arquitetura; entre a harmonia musical, que é a euritmia
130
Não entendemos o barroco como um estilo histórico, como contraposto ao clássico no sentido formalista, como
tendência recorrente na história da arte nem como vinculado a sistemas políticos ou religiosos. Entendemos o
barroco como um sistema de transgressão. Aproximamo-lo de nossa concepção de tradução, onde “ir além de si”
equivale a transgredir. Termo ambíguo que, entendido como sistema, afasta a gratuidade de uma ruptura vazia e
sem propósito com a qual tem sido associada a noção de transgressão. Assim, nosso intento em adotar tal
terminologia é o de abrir para outras formas de interpretação e de transformação no mundo contemporâneo. Nesse
sentido, nos alinhamos às obras de: BATAILLE, G. A parte maldita. A noção de despesa.Rio de Janeiro: Imago,
1975; CALBRESE, O. A idade neobarroca. São Paulo: Martins Fontes, 1988.; DORFLES, G. Elogio da
desarmonia. São Paulo: Martins Fontes, 1988; SARDUY, S. Escrito sobre um corpo.São Paulo: Perspectiva,
1979. SARDUY, S. O barroco. Lisboa: Vega, (!9??).
131
Cf. Livro terceiro e quinto In:VITRÚVIO, M. Da arquitetura. São Paulo: Hucitec, 1999.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
86
melódica, e a simetria arquitetônica
132
. Se, de acordo com as regras estruturais e compositivas,
são estabelecidas semelhanças entre a arquitetura e a música, enquanto suas formações e suas
matérias expressivas, marcamos diferenciações por suas especificidades. As manifestações
dessas obras, no transcurso do tempo, definem os movimentos característicos a suas
formações. Enquanto a música se forma ou se espacializa prioritariamente num período de
tempo transcorrido, a arquitetura, ao se espacializar, sofre a ação do tempo transcorrido entre o
projeto e seu termo final. O movimento da primeira é interno ao tempo, mas na segunda o
tempo é uma das componentes ativas para sua transformação. Deste modo, não confirmamos a
arquitetura como a arte do privilégio do espaço
133
e, tampouco, a música como a arte do
tempo. Assumidas as diferenças, contrariando as tentativas de reconciliações formais que
subjugam as propriedades de ambas em favor de uma unidade simbólica transcendente,
utilizamos da brecha na música nomeada de diabolus in musica para conduzir nosso exercício
sobre desapropriações dos campos e sobre o surgimento do espaço da tradução.
A noção de harmonia dada pelos acordes, do latim consensus, acordo entre partes,
fundamenta a aproximação entre música e arquitetura. Essa unidade era atingida por seu
caráter simbólico. O symbolon,
na sua raiz grega, é “o que joga unindo” ou
junta ajuntando”,
indicando a ação de unificar
134
.
Quando se fugia ao cânone, ocorrendo a cisão da harmonia no
período medieval, nomeavam a passagem musical de diabolus in musica. O termo diabolus em
latim pode ser traduzido como o que fratura, o que joga separando” e remonta ainda ao
daimon da tradição grega. Para os gregos, o daimon era uma espécie de gênio, espírito
intermediário entre os homens e os deuses. No entanto, a imagem do diabo, tal como pode
ainda ser concebido, se cristaliza na idade média. Ele passa a ser representado tomando de
empréstimo a imagem de Pã, deus da natureza nos mitos pagãos greco-romanos. Adquire dois
chifres, pernas de cabra, rabo com seta na ponta, hirsutez, lascívia, para instaurar o pânico, o
medo de Pã: medo da natureza, do seu movimento de vitalidade. Valendo-se desta concepção,
o termo diabolus in musica, ou “diabo em música”, foi usado na idade média para nomear o
trítono, um intervalo de três tons inteiros (por exemplo: fá-si; dó-fá sustenido), difícil de ser
132
Cf.GHYKA, M. El numero de oro. Ritos y ritmos pitagoricos en el desarrollo de la civilización occidental.I
los ritmos. Buenos Aires: Poseidón, 1968. p.145-146.
133
Desde o nosso primeiro exercício de tradução tratamos da arquitetura como arte das distâncias marcando o
intervalo de espaço e tempo entre corpos.
134
Cf.WISNIK, J. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
p.82-83. Cf. DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.47.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
87
tratado hamônica ou melodicamente na música modal desse período
135
. O trítono divide a
oitava, intervalo estável, ao meio e é igual a sua própria inversão. Assim, este intervalo
provoca uma forte instabilidade e exerce uma força de atração sobre outros sons.
136
A ausência
de uma afinidade natural e a instabilidade eram inadmissíveis no modelo melódico modal da
música de então. Assim como coloca Wisnik, o trítono se opõe à oitava “como o símbolo se
opõe (etimologicamente) ao diabo (isto é, ao diabolus)”
137
.
É com assimilação do diabolus que a música tonal se desenvolve, utilizando da escala
tonal para resolver as tensões evidenciadas na máxima potência pelo trítono. Ou seja, a música
tonal utiliza como recurso “as propriedades esquizantes do diabolus para resolvê-las
recuperando as propriedades simbólicas como a tonalidade da peça. A tônica aparece como
nota central em uma peça. Ainda está quase tudo centralizado e unificado pelo símbolo. Com
as fugas de J.S. Bach (1665-1750), marca-se a passagem da música medieval modal para a
música tonal de caráter melódico e harmônico, permitindo explorar a polifonia além de
grandes formações, em peças para instrumentos solo.
“Assim como o pensamento melódico está investido de harmonia, o
pensamento monódico está investido da polifonia, e a polifonia apresenta um
grau acabado de resolução harmônica. Isso quase permite dizer que o
‘momento’ de J.S. Bach, a oportunidade dada pelo encontro de seu gênio
individual com o estado histórico da linguagem (já maduro, mas não
saturado) é o momento da música total (não fosse o fato de que ‘falta’ nele a
dimensão construtiva do pulso, recalcada pela cultura ocidental)...”
138
.
O diabolus fica então domesticado e, como veremos adiante, vai retornar com suas
propriedades fraturantes a partir da música atonal, em início do século XX, e ainda de um
modo menos dicotômico, priorizando a dimensão conflitiva do pulso em certa música, a partir
de meados do século XX: o rock.
Comecemos a nossa desapropriação. Em fins do século XVII, período de início da
carreira de Bach, a música e a arquitetura repercutiam mutuamente em definições curiosas,
como as que consideravam a arquitetura barroca como música petrificada e a música barroca
135
SADIE, S. Dicionário Groove de Música. Edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. p.266.
136
“A oitava é um intervalo estável, de relação 1\2 sendo igual à sua própria inversão. o trítono, divide a oitava
ao meio, é também igual à sua própria inversão (fá/si é um intervalo do tamanho de si/fá) e instável, baseado na
relação 32/45 (pulsos melódicos de relações complexas, que coincidem depois de ciclos longos)”. WISNIK, J.
O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.82.
137
Ibidem. p.82-83.
138
Ibidem. p.132.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
88
como arquitetura fluida
139
. Esse tipo de comparação é somente uma variante do predomínio do
pensamento teológico visando a uma unidade transcendente dada pela centralidade tonal
dominante. Bastaria uma simples comparação para desestimular essas correspondências,
confrontando a música e a arquitetura, como escreve Rueb:
“Em 1723-24, quando compunha a Paixão segundo São João, foram
concluídos em Dresden o Pavilhão Zwinger e em Viena a Biblioteca
Imperial. Em 1747, quando tocou na corte de Frederico II em Potsdam, o
castelo Sans Souci encontrava-se em construção. (...) Contudo seria
temerário demais afirmar que, precisamente por isso, haveria uma relação de
parentesco ou mesmo relações causais entre a arquitetura de castelos e de
palácios e a arquitetura da música de Bach conforme se costuma afirmar com
certa freqüência”
140
Assim como as músicas sacras reverberavam a retórica da igreja, as músicas profanas
de Bach, feitas para serem executadas nos salões, tomavam parte no contexto cultural da
época. Nesse sentido, poderíamos traçar características comuns à música e à arquitetura num
plano geral do estilo histórico barroco. Mas, ainda assim, fica patente neste tipo de comparação
a destituição das matérias expressivas de cada campo para serem equilibrados num plano
transcendente e centralizado, onde a carência de matéria permite a apropriação simbólica das
características do outro campo. Ocorre uma tradução simbólica desvencilhada da retomada
construtiva, da produção do devir e da transformação. Estranhamente, é durante o período
barroco que vai aparecer a elipse como um outro centro, um pólo diabólico, descentralizador.
FIG. 17: Pavilhão Zwinger.
FONTE: supergrass.densitron.net/ diary6/dresden/D62.htm; miki-sophia.blogspot.com Acessados em janeiro de
2006
139
Cf. RUEB, F. 48 variações sobre Bach.São Paulo: Companhia das Letras, 2001.p.52.
140
Ibidem. p.154.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
89
FIG. 18: Biblioteca Imperial de Viena.
FONTE: supergrass.densitron.net/ diary6/dresden/D62.htm; acessados em janeiro de 2006.
Desde a Idade Média, o diabo manifesta seu poder, sobrepujando inclusive a
providência divina, donde seu caráter de intermediário: é o diabo que faz a ponte entre o
homem e Deus. Como escreve Rueb: “nas cantatas sacras de Bach, o demônio briga e luta
pelos homens, nos homens e contra os homens”
141
.
As representações demoníacas permitem
aos artistas um maior uso da imaginação do que as representações divinas. São mais
sedutoras, ostensivas, dispendiosas, terrestres, antagônicas, como pólo vital e mundano
contraposto ao além-mundo divino. O diabo manifesta o poder. Essa idéia repercute no Fausto
de Goethe, em que Fausto, numa ânsia de poder, pactua com Mefistófeles, o diabo em pessoa.
As primeiras versões do Fausto, de fins do século XVI, coincidem com o uso do trítono na
música, ocorrendo em inícios do século XVII. Reafirmando o empenho de Bach, o Fausto
marca a passagem da música modal para a tonal. O fausto e o trítono marcam a passagem do
poder da ordem sagrada para o poder da burguesia. Nesta ordem emergente, o trítono será não
somente incorporado a, mas resolvido na harmonia tonal. É a redenção do Fausto que não
aparece nas primeiras versões constituindo este novo final positivo de centro único, em que os
anjos, na disputa de Fausto morto, seduzem Mefistófeles e o carregam, culminando num coro
epifânico ascensional.
“A solução goethiana, em sua ambivalência, pode ser interpretada em
paralelo com a música: se o Fausto é hegeliano, beethoviniano, tonal, a
resolução e a volta à concordância se impõe. (...) Mas essa resolução consiste
141
RUEB, F. 48 variações sobre Bach.São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.205.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
90
justamente na apropriação angelical dos poderes mefistotélicos do trítono
(...)”
142
.
FIG. 19 e FIG. 20: PIRANESI. Gravuras, Carceri d’Invenzione.
FONTE: Ouvres choises de J.B. Piranesi. Paris: 1913. Sem numeração de pranchas.
uma espécie de Fausto vencido e carregado ao inferno por Mefistófeles, nas
gravuras de Piranesi, denominadas de Carceri d’Invenzione, impressas em 1750. Quer dizer,
ocorre uma descentralidade e uma segmentação, contrárias à centralidade e à unidade do final
redentor do Fausto. Como indica o título, trata-se de gravuras de prisões inventadas. Essas
imagens apresentam pátios de enorme amplitude, atravessados por pontes e arcos,
comunicados por escadas, misturando elementos de tortura carcerária com elementos da
arquitetura clássica, em específico, da arquitetura romana. Apesar de Piranesi ter se dedicado
ao estudo da arquitetura clássica em outras publicações, no carceri não o empenho ao
detalhamento e à verossimilhança dos ornamentos. É um local do fantástico, de caráter
enigmático, fechado em si mesmo e imerso em alusões labirínticas. Nessa paisagem funesta e
colossal, os prisioneiros perambulam sem restrições de acesso. As pequenas figuras são
representadas em desequilíbrio e, retorcidas, vagam sem saber seu destino. O caráter
labiríntico do carceri é inaugural, pois não configura as inúmeras possibilidades de percurso
enquanto riqueza do possível e se mostra como impossibilidade de objetivação em uma
arquitetura. Nesse sentido, não possibilidade de construção por percurso, as figuras estão
condenadas, não precisam de celas, o confinamento é labiríntico. Por outro lado, a construção
é infinita na medida em que não possui nem início nem fim identificáveis. A prisão como
142
WISNIK, J. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
p.147.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
91
origem não deixa de dizer do crescimento segmentar da arquitetura, mas não podemos tomar
tal crescimento como uma constante no objeto construído. As alusões aos labirintos estariam
privilegiadamente nos espaços do projeto, da utopia e do por vir das obras. Assim seriam
consideradas como imagens potentes a serem atualizadas sob formas mais permissivas ao
objeto arquitetônico. Esta perspectiva de segmentação, de excesso, de acúmulo é condizente à
encarnação como a trabalhamos no exercício anterior.
A inversão simbólica com o conseqüente predomínio do diabolus na música se firma no
início do século XX, com o atonalismo ou a pantonalidade. Com a sistematização realizada por
Schoenberg, Wisnik salienta a dominância do diabolus: “e pode-se dizer de fato que chegamos
com o sistema de doze tons a um estado de tritonização generalizada”
143
. O dodecafonismo
coincide com a retomada do motivo fáustico nesse mesmo período. Tal retomada alinha-se, ao
contrário do século XVII, num momento de crise burguesa, com guerras mundiais. As
vanguardas artísticas recorriam a um programam político de transformação social. De certa
forma recorriam à transgressão, que nem sempre de modo sistêmico. Sem contestar as
causas do aparente fracasso das vanguardas, fica o fato do distanciamento da arte
contemporânea, que acabou por se cercear a seu campo, tornando-se matéria para especialistas.
Comumente escutamos discursos reacionários apelando à arte do passado como forma
inteligível e superior à atual. Ao passo que, desde então, não podemos mais separar
nitidamente os campos erudito e popular. O diabolus ficou oscilando entre o seu confinamento
no modelo tonal dominado pelas mídias de massa, “cultura do pânico”, e sua vitória parcial
atonal adquirindo um pequeno séqüito destituído da transgressão. Dissemina-se, em ambos os
pólos, a ruptura pela ruptura e a busca desenfreada pela novidade. A correspondência da
domesticação do diabolus na arquitetura recentíssima ocorre, por exemplo, em algumas
transposições conceituais das teorias de redes ou de rizoma, em transposições formalistas de
métodos científicos ou em apropriações formalistas das vanguardas. Nesses procedimentos de
tradução, substitui-se a ordem clássica por uma complexificação descomprometida com a
transgressão. Poderíamos, diante deste breve panorama um tanto duro, tentar uma
correspondência arquitetônica com o diabolus na perspectiva de um sistema de transgressão?
143
WISNIK, J. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
p.143.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
92
Retomemos a música. Se o atonalismo e seus sucessores no campo erudito não
vingaram para além de seu restrito campo, a dita música popular, menos própria na dicotomia
símbolo-diabolus, vai se apropriar de outro modo do contexto de predomínio da tritonização.
Consideremos um breve percurso até o rock, seguindo uma linhagem que passa pelo blues e
pelo jazz. O blues surge no Sul dos Estados Unidos da América, em fins do século XVIII,
derivado das cantigas dos negros enquanto cultivavam a terra. A música é o dado imaterial, de
difícil captura pelos senhores das terras. Expatriados e escravizados em número de cerca de 10
milhões, a música foi um meio de resistirem a essa condição, perpetuando a herança cultural
africana que remonta aos griots
144
e assimilando elementos da cultura americana. Esta música
viril e revolucionária
145
caracteriza-se pela mescla entre o sagrado e o profano, como nas
músicas da irmã Rosetta Tharpe ou os famosos pactos com o diabo na encruzilhada, cantados e
feitos por músicos, como o atribuído a Robert Johnson. Chegado à cidade no final do século
XIX, o blues passa a retratar os estilos de vida desregrados sexo, drogas, álcool das
subculturas urbanas
146
. No contexto urbano, o blues toma outras formas e podemos arriscar que
uma dessas formas foi sendo apropriada e convertida no jazz. Sem nos estendermos na
definição do que é o jazz, consideramo-lo, assim como o blues, como derivado do encontro
dos recursos da música africana e anglo-americana
147
. No jazz o trítono ganha primazia e
popularidade. É o refinamento do dilema revolucionário do negro. Ainda pendendo entre o
sagrado e o profano, como é o caso de Duke Ellington ou de John Coltrane, o jazz caracteriza-
se pela fratura da própria música. Obra sempre inconclusa, sempre a ser refeita onde o que
importa não é a reprodução, mas o próprio ato de tocar e reconstruir a música no improviso. O
jazz é labiríntico. A falta do ritmo, “dimensão construtiva do pulso”, salientada acima por
144
Griots eram os cantores e instrumentistas da áfrica do sul que tocavam instrumentos de corda caseiros
“repetindo uma série de figuras rítmicas, com um tom suave e apagado das cordas, proprocionando um
acompanahmento leve e apressado à profunda ressonância de sua voz”. In: Mestres do Blues. Rio de Janeiro:
Altaya, 1995. p.1.
145
Como identifica Genet: “(...) nas músicas africanas, que mais tarde se transformaram no jazz, eles passavam
palavras de ordem de fugas e revoltas. Quando cantavam, de manhã ou à noite, segundo ritmos variados e leves
das frases muito claras para eles, que chamavam para a reunião perto de um rio para atravessá-lo e fugir em
direção ao norte, é certo que eles escolhiam vozes de mulheres ou de homens carnais, quentes, eroticamente
quentes, capazes de ‘chamar’ com a mesma autoridade que os machos no cio: o objetivo era a fuga, o socorro a
outros negros marrons, o fogo, a guerra. Mas o chamado era feito por uma voz na qual os negros reconheciam
promessas de casamento”. GENET, J. Um cativo apaixonado. São Paulo: Arx, 2003. p.310.
146
Músicas de subculturas surgem no mesmo período em outras localidades, como o tango na Argentina, o fado
em Portugal, a rebetica dos gregos e o samba no Brasil. Mestres do Blues, op.cit. p.141.
147
Sobre os problemas de se definir o jazz caracterizando-o no somatório da enculturação e da aculturação, cf.
MASSIN, J; MASSIN, B. História da música ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 1065-1070.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
93
Wisnik, está resolvida, pois é o ritmo que vai definir o plano para o improviso. Nele ainda
predomina o tonalismo, mas nem sempre bem resolvido.
FIG. 21: Capa do disco Eletric Ladyland, The Jimi Hendrix Experience, 1968.
FONTE: Arquivo do autor
FIG. 22 e 23 (da esquerda para a direita): Cosmococas e Newyorkaises
FONTE: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho . Acessado em janeiro de 2006.
Neste breve percurso chegamos, ao rock, e consideramos Jimi Hendrix um dos
herdeiros do devir revolucionário que atravessa o blues e o jazz. Categorizado como roqueiro,
ele destitui a necessidade iniciática do blues e do jazz, música dos negros revolucionários, mas
sem deixar de explicitar o erotismo, a religiosidade e a própria exuberância, características de
sua música aberta a qualquer um. Comparando o samba e o rock, Hélio Oiticica
148
uma
relação semelhante, considerando o rock destituído de iniciação e voltado para a libertação
148
Utilizamos a carta de Hélio Oiticica escrita para Augusto de Campos em março de1974, período em que residia
em Nova Iorque. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho. Acessado em
janeiro de 2006.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
94
individual quando escreve: “o rock, não, qualquer pessoa, o inglês conseguir dançar, qualquer
pessoa! é corpo, é a descoberta do corpo! é a desligação total da terra, é a descoberta do corpo
porque ele esqueceu a terra (...)”
149
. Desconfiamos da falta de iniciação no rock, talvez no
sentido da exigência irrestrita de descondicionamento do corpo, e antevemos um projeto ético
na estética do rock e do próprio Oiticica. O corpo descondicionado, ao esquecer da terra, se
coloca em perigo no espaço. É este o espaço de risco de indiscernibilidade com que Hendrix
nomeou um de seus discos e seu estúdio: Eletric Ladyland. A terra da mulher elétrica é o nome
poético para o espaço da tradução. Nela se afirma a transgressão dos campos. Reafirmamos
nossa dúvida em outros termos: será possível fincar a arquitetura na terra da mulher elétrica?
Parece que não. Seria possível uma atualização diabólica em arquitetura? Parece que sim.
Na seqüência da carta que falava do rock, Oiticica apresenta as Cosmococa, trabalho
em parceria com Neville de Almeida. Oiticica o define como um “programa em progresso”,
feito para as pessoas experimentarem em casa ou em público. Feito para qualquer um e
visando à experiência para descondicionamento do corpo. Aproxima-se do efeito do rock. As
trilhas sonoras das Cosmococcas são de Hendrix, Rolling Stones, Cage, entre outros, e a obra
dispõe ainda de projeções de slides, rastros de cocaína sobre imagens do livro Notations, de
Jonh Cage, da Marilyn Monroe, da capa do disco War Heroes, de Jimi Hendrix, ou da foto de
Bruñel. Se esta obra volta-se à experiência do corpo sem terra, vagância na terra da mulher
elétrica, encontramos na mesma época as propostas de Oiticica para inserções quase-
arquitetônicas em Nova Iorque e em São Paulo, espécies de penetráveis a que o artista nomeou
de Newyorkaises, subterranean tropicalian projects. São projetos: maquetes e desenhos para
uma quase arquitetura labiríntica. Aqui retomamos o labirinto: o apogeu da complexidade
segmentar arquitetônica e o lugar da perdição dos corpos pelo excesso das possibilidades de
experiências. Fora da vagância do sem terra, a arquitetura labiríntica proposta por Oiticica se
instala no subterrâneo, nas profundezas da terra, na imagem da morada do diabolus.
Restituímos a origem maldita da arquitetura, sua segmentação excessiva se encontra nos
primórdios da obra, como em Piranesi, no lugar do projeto e da utopia atualizáveis sob outras
formas. Portam a marca de uma exterioridade. A descida às profundezas implica também
alguma restituição à superfície da terra. Conjunção da experiência labiríntica com a instalação
149
.Carta de Hélio Oiticica escrita para Augusto de Campos em março de1974. p.4. Mantemos a grafia do Hélio.
Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho. Acessado em janeiro de 2006.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
95
nas profundezas da terra, lugar do excesso da experiência e da matéria apta a restituir a própria
constituição vital: Eletric Ladyland, diabolus em arquitetura a transbordar na superfície da
terra.
Do que temos orientado nossas investigações para o reconhecimento deste lugar
diabólico da arquitetura, extraímos a necessidade da formação individual. De outro modo
deixamos em aberto a manifestação do objeto arquitetônico consoante a um sistema de
transgressão. Tratamos aqui dos excessos de um mundo barroco de terceira ordem: onde o que
une (símbolo) e o que segmenta (diabolo) trabalham sobrepondo-se, instituindo um sistema
como um himeneu do céu e do inferno, um sistema de transgressão. A precisão de um pacto
mefistotélico desalinhado com o poder aponta para o homem barroco ao qual confundimos
com a formação do construtor. Como escreve Sarduy:
“ser barroco hoje significa ameaçar, julgar e parodiar a economia burguesa,
baseada numa administração avarenta dos bens; ameaçá-la, julgá-la, parodiá-
la no seu próprio centro e fundamento: o espaço dos signos, a linguagem, o
suporte simbólico da sociedade e garantia de seu funcionamento através da
comunicação”
150
.
Ser barroco é construir um sistema de transgressão, sistema de prevalência ética em que a
ciência do movimento vital, com sua abertura, não permite a conformação de um modelo
determinante do por vir. Sistema de projeto e de utopia atualizáveis sob outras formas, ou seja,
traduzíveis. A formação do construtor passa por este exercício de corpo sem terra no campo
da mulher elétrica. Onde a transgressão é o reconhecimento da pletora, do excesso, do diabolo
na inauguração de uma construção. Mas não devemos confundir o excedente, a parte maldita,
com um fim em si. Devemos, sim, torná-lo reconhecimento da vitalidade, e é por isso que
insistimos no devir construtivo, inseparável da exigência de atualização do que foi escrito.
5.Exercício 5 : A escrita pública do arquiteto
Trataremos neste exercício de delinear o que nomeamos de escrita pública do arquiteto,
correspondente a sua ação política na manifestação do projeto e do objeto construído feitos
150
SARDUY, S. O barroco. Lisboa: Vega, [s.d.].p.137-138. p. 93.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
96
coisas pública por meio da atualização de uma inscrição. Tomemos um entendimento inicial da
escrita como marca que, de certo modo, tenta “eternizar” e “fazer lembrar” uma ação, um
acontecimento, uma obra. Várias atividades humanas são projetadas indo da decisão de fazer
algo à fixação da ação. A fixação é a inscrição, a coincidência da ação e do projeto. Assim, por
exemplo, um projeto da escrita com palavras condensa o livro. A escrita, apesar de se
configurar como uma fixação, quando lançada ao mundo público repercute nas infinitas
possibilidades de leitura e de interação desse outro qualquer tido por leitor, freguês, usuário,
cliente, cidadão, etc. Deste modo, a escrita em arquitetura se refere à inscrição memorial que
se faz obra, condizente com o projeto e com o objeto arquitetônico, em sua dinâmica com um
público. A escrita traz ainda o problema da relação entre a palavra e a coisa, o legível e o
visível, a res e a verba. Ao longo da idade moderna, foi perdida a conjuntura que aproximava
a palavra e a coisa. Suspeitamos que a conjuntura seja o domínio público singularizado e que
algumas manifestações da arte, a partir da idade contemporânea, explicitam esta noção.
Desvencilhando de uma semelhança à palavra, seja nos termos de suas matérias
expressivas, seja na tentativa de transposições literais, como no caso da semiologia aplicada à
arquitetura, consideramos a literatura a partir do século XIX, combatente de uma certa forma
de pensar e de agir no domínio público, o que teria uma correspondência na arquitetura, mais
tardiamente re-aproximada do texto. Essa re-aproximação é distanciada de uma dicotomia
entre palavra e coisa, forma e conteúdo, signo e significante, volta-se para o atrito e para a
aderência entre elas, com privilégio às matérias expressivas em formação. Tal perspectiva
encaminha-as para as singularidades, seja em suas formações, seja na orientação da formação
pública. O combate ocorre com as armas de seus campos contra a dominância ora ideológica,
ora utópica recorrente sempre que se tenta definir um público. O livro e o projeto de
arquitetura assumem o sentido de utopia a ser realizada em sua parcialidade dada a sua
abertura a outras morfologias e a possibilidade de ação a qualquer um que saiba ler. Ambos
exigem a atualização numa ação posterior adquirindo uma função de mover o outro. Daí a
precisão de publicar como modo de manifestação no mundo e digualmente os riscos de uma
imposição no plano das ideologias. Nos exercícios anteriores, nos posicionamos quanto à
utopia como este “lugar sem lugar” utilizado como recurso imaginativo para construir outras
coisas que não a própria utopia. A estratégia de apropriação da utopia condiz com a capacidade
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
97
inventiva ou com o engenho na escrita e no projeto voltados para deixar passar as intensidades
da potência construtiva.
O projeto em arquitetura resulta de ação imaginativa, mas igualmente de uma
confrontação com uma atualidade do mundo exigente de uma imagem a se manifestar como
obra. Introduz-se no plano de ação derivado de como coincidimos a história, recorrendo as
tradições do passado, a atualização no presente e a abertura a seus desdobramentos futuros. O
percurso do projeto à obra evidencia o imaginário como a tensão entre ideologia e utopia, uma
vez que atrita o imaginário com o mundo público. Com a instituição da arquitetura enquanto
ars liberalis estabelecida a partir do Renascimento, aproximamos o projeto do verbo, da
palavra indicativa da ação. Se a palavra é o elemento de integração que funda a cidade, como é
escrito em Cícero ou como encontramos na noção de discurso integrativo, em Paul Ricoeur
151
,
o projeto estaria na base do verbo. O projeto se vincula a um programa de desenvolvimento da
escrita voltada à ação. Assim, um projeto em arquitetura estaria associado a um projeto de
cidade e a um projeto de povo. Caberia a s investigar os pontos manifestos que fazem do
projeto consoante à lei, em sua aproximação ideológica, ou à arte em sua aproximação utópica.
Encaminhamo-nos para uma análise sempre parcial e de difícil generalização como, por
exemplo, no estabelecimento de um método de projeto, mas que serve para fomentar outros
modos de ação do arquiteto com o público, como uma orientação de sua própria formação.
Concentrando a ação política do arquiteto em seu próprio campo profissional, o da
teoria, do ensino, do projeto e da construção arquitetônica, investigaremos os termos de um
predomínio da inventividade capaz de não se fixar nos domínios utópicos ou ideológicos.
Supomos ser o recurso à inventividade do arquiteto, ou sua capacidade de tradução, o modo
para se construir no mundo, burlando os riscos negativos da utopia e da ideologia. Tal modo
define as premissas de um sistema de transgressão capaz de reinventar o público, de se auto-
criticar e de não se acomodar nas suas determinações. Daí nos desvencilharmos de uma
metodologia generalizada de projeto. Consideramos a transgressão como a própria evidência
tradutora fazendo, no caso da arquitetura, a passagem do pré-objeto para uma morfologia
outra, uma objetivação feita obra que, por sua vez, lançada ao mundo público, não se encontra
imune às transformações vindouras. Teceremos uma crítica à dissociação das palavras e das
151
Cf. A ideologia e a utopia: duas expressões do imaginário social. In: RICOEUR, P. Do texto a acção. Ensaio
de hermenêutica II. Porto: RÉS, [s.d.]. p.373-385.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
98
coisas para fundamentarmos a ação do arquiteto condizente com nosso sistema de transgressão
no mundo atual. Neste percurso não-linear e tampouco causal, nos concentramos na análise de
projetos das máquinas de Filippo Brunelleschi (1377-1446) e do Vítimas, de John Hejduk
(1929-2000), conforme o predomínio que assumem como escrita pública no plano ideológico
ou utópico, seguindo as definições destes termos segundo Paul Ricoeur
152
. O engenho do
arquiteto contemporâneo é diferente do engenho do arquiteto renascentista. Não seria o caso de
evocarmos uma linearidade, mas o entendimento de respostas no plano ideológico e utópico
em conjunturas diferentes. Na seqüência, nos voltamos para um entendimento do público
pautado na relação do escritor com o público conforme expõe Maurice Blanchot
153
e
indicamos as premissas para a escrita pública do arquiteto privilegiando em sua ação a
inventividade como capacidade de tradução, desvencilhando-se dos riscos utópicos ou
ideológicos.
Ricoeur define três níveis de funcionamento em sentido oposto para a ideologia e a
utopia, definindo o imaginário duplo pelo qual nos situamos na história. Teríamos inicialmente
que destituir o entendimento pejorativo desses termos que afastam a utopia da realização e
confundem a ideologia com um processo de distorções e dissimulações pelas quais
legitimamos um certo poder e um determinado estado das coisas. A ideologia passa, então, do
nível da dissimulação como falsificação negativa para o da legitimação como justificativa
dessa dissimulação feita verdade. Para Ricoeur, a função retórica utilizada para a
universalização ou a naturalização serve para fornecer essas idéias “pseudo-universais”. No
entanto, escreve: “não se pode conceber, sem dúvida, uma sociedade que não se projete e não
se uma representação de si mesma sem recorrer a esta retórica do discurso público (...)”
154
.
A mistura do discurso com a ação, própria da retórica, serve tanto à função integrativa de um
grupo social quanto à ideologia posta a serviço da legitimação de um poder que recorre à
autoridade. Entra em cena o ditador como aquele que se apropria do discurso de identidade
para subjugar um grupo social. Assumindo a impossibilidade de se definir o “grau zero” do
qual decorre o fenômeno social da autoridade, Ricoeur estabelece um nível de ideologia no
qual se encontra sua função integrativa. Recorre às ritualizações dos acontecimentos
152
Cf. A ideologia e a utopia: duas expressões do imaginário social. In: RICOEUR, P. Do texto a acção. Ensaio
de hermenêutica II. Porto: RÉS, [s.d.]p.373-385
153
Cf. O poder e a glória. In: BLANCHOT, M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.360-3
154
Cf. RICOEUR, op.cit. p.377.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
99
fundadores de determinada identidade social, como, por exemplo, a Declaração de
Independência norte-americana, a tomada da Bastilha ou a Revolução de Outubro. A ideologia
serve, então, para ligar a memória coletiva produzindo a crença e a coesão de determinado
grupo. Eis a escrita pública reverberando. “É difícil manter o fervor da origem; depressa, a
convenção, a ritualização, a esquematização se misturam com a crença, contribuindo, assim,
para uma espécie de domesticação da recordação”
155
. A função de integração se prolonga na de
legitimação e na de dissimulação. Tratamos em nosso primeiro exercício
156
, o da origem
inventada, o aspecto positivo de tal origem coincidir com a manifestação construtiva. É quando
o projeto em arquitetura assumiria o mito de fundação como a re-atualização do próprio devir
construtivo. Se o mito de fundação for tomado como re-atualização construtiva, será sempre
revisada a ideologia como dissimulação para legitimação das relações de poder. Então, o
projeto e o objeto seriam manifestações integrativas auto-criticáveis. Não conseguiríamos
precisar o exagero em tomar cada projeto como uma repercussão da função integrativa e da
passagem à legitimação e à dissimulação num crescendo de dominação. Conduzimos o projeto
para análise no quadro das relações de poder.
FIG. 24: Desenhos de Taccola das máquinas de Brunelleschi.
FONTE: PRAGER e SCAGLIA. 1970. p.68.
155
RICOEUR, P. Do texto a acção. Ensaio de hermenêutica II. Porto: RÉS, [s.d.]. p.379-378.
156
Cf. Exercício 1: A inscrição e a origem mentida da arquitetura.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
100
FIG. 25: Desenho de Taccola do sistema de transporte por barco de Brunelleschi.
FONTE: PRAGER e SCAGLIA. 1970. p.128.
Tomemos os exemplos de projetos das máquinas engenhosas de Brunelleschi no
caderno de notas de Buonaccorso Ghiberti (1451-1516), denominado de Zibaldone. Em seu
caderno, são apresentados desenhos de guindastes com modelos diversos de maquinarias
usadas na construção de edificações, alguns deles com descrições textuais codificadas.
(FIGURA 24). No século XV, Brunelleschi utiliza do projeto dessas máquinas como recurso
de novas soluções tecnológicas. Por exemplo, vejamos o caso mais recorrente da cúpula de
Santa Maria Del Fiore em Florença. Neste período a arquitetura se instituía enquanto ars
liberalis ao passo que a escrita estabelecia seu primado como modelo de interpretação do
mundo. O projeto e a escrita encontram-se voltados para uma interpretação do mundo onde
não existia distinção entre o que se e o que se lê, onde, como coloca Foucault, “o olhar e a
linguagem se entrecruzam ao infinito”
157
. Assim a palavra e o projeto se instituem como uma
invenção de mundo
158
, possibilitando a Brunelleschi desenvolver uma escrita de projeto: a
perspectiva. Entendido, neste contexto, o recurso de representação da perspectiva, volta-se à
aderência entre o legível e o visível para se construir no mundo. As perspectivas das máquinas
de Brunelleschi no Zibaldone exigem sua feitura no mundo. O arquiteto se compromete com o
mundo público como seu inventor
159
. Assumindo a palavra e o projeto como meio de
157
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.54.
158
“A palavra do humanista não ‘copia’, mas ‘inventa’ diversos mundos, tal como ele inventou, estrategicamente,
a Antiguidade Clássica”. BRANDÃO, C. Quid tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2000. p.127.
159
É nesse anseio que temos a primeira gramática da língua vulgar italiana realizada por Alberti, assim como seu
tratado de arquitetura no qual a litterae possui a privilégio sobre o desenho visando o entendimento comum.
Cf.BRANDÃO, C. Quid tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
p.203-204.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
101
construção do mundo, temos que ambos são igualmente indicativos da ação, sendo utilizados
como meio de mover as pessoas. Porém, a tarefa interpretativa não se fundava na produção de
uma verdade absoluta, mas no retorno à verdade original impossível, aquela da aderência plena
da palavra e a coisa. Essa busca da origem vai gerar a autonomia da palavra e do projeto,
deslocando o plano da ação a uma subordinação ao plano intelectual.
O modo interpretativo por semelhança do Renascimento direciona-se à função
integrativa, em que a escrita se endereça a uma escrita primeira, ainda que sem atingi-la
160
, ao
mesmo tempo em que se volta à formação do cidadão. O problema decorrente de tal modo de
saber é que acaba-se por interpretar interpretações, conduzindo por um lado à coisa do texto e
ao esquecimento das obras no mundo e, por outro lado, as obras no mundo assumem
paulatinamente uma negatividade ideológica na medida do esquecimento da função integrativa
e predomínio da legitimação e da dissimulação. O próprio Renascimento nos mostra esta
tensão que vai dissociar o projeto da obra, como no caso do projeto de navio de Brunelleschi
nomeado de Il Badalone
161
. Tal navio fazia parte de um sistema de transporte de carga, para
levar materiais de construção de regiões de extração para os canteiros de obras na cidade de
Florença. O arquiteto inventa o navio para facilitar a construção arquitetônica, o que nos
permite aproximá-lo do empenho construtivo. Porém, Brunelleschi requisitou a patente de seu
projeto em 1421, junto ao governo de Florença, para monopolizar o transporte de cargas pelos
rios nos domínios do Estado florentino. Esta foi uma das primeiras patentes requeridas no
mundo. No pedido da patente, menciona-se a invenção de uma máquina ou de um tipo de
navio que facilita o transporte de cargas a um custo menor. No entanto, a forma, os detalhes
construtivos e os mecanismos do navio nos são desconhecidos, bem como a data precisa do
invento. Provavelmente foi feito entre 1415, período em que trabalhava em Pisa, e 1421, data
do requerimento da patente. Como mostram os desenhos de Mariano Taccola, uma das
inovações são as estruturas rolantes para carga e descarga das colunas (FIG. 25). A
engenhosidade do arquiteto é dissimulada visando o monopólio comercial. O engenhoso
projeto de transporte fica secundário frente ao interesse econômico de monopólio. O navio de
Brunelleschi desvencilha o projeto do objeto servindo para a legitimação do poder de Florença.
160
“Fala-se sobre o fundo de uma escrita que se incorpora ao mundo; fala-se infinitamente sobre ela, e cada um de
seus signos torna-se, por sua vez, escrita para novos discursos; mas cada discurso se endereça a essa primeira
escrita, cujo retorno ao mesmo tempo promete e desvia”. FOUCAULT, op.cit. p. 57.
161
Cf. PRAGER, F, SCAGLIA, G. Brunelleschi. Studies of his technology and inventions. Cambridge, London:
MIT press, 1970. p.111-123.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
102
Nenhum arquiteto se exime das relações de poder e sua inventividade pode se voltar tanto para
a subversão quando para a afirmação de certas ideologias, pode se alinhar tanto ao caráter
integrativo quanto ao da dissimulação negativa. Quando a obra é lançada ao público, não
existem garantias quanto ao emprego posterior da inventividade, que as infindáveis
apropriações estão igualmente submetidas às relações de poder.
O entrecruzamento infinito entre a palavra e a coisa, no início da idade moderna, acaba
por conferir à linguagem uma autonomia enquanto coisa. Na idade moderna, o projeto se
desvencilha da obra, na medida em que a linguagem vai perdendo seu primado. Como coloca
Foucault, as premissas hermenêuticas do século XVI foram fundadas no sistema ternário:
significante, significado e “conjuntura”. O sistema ternário foi herdado da Antiguidade
Clássica e no Renascimento ocorreu o agrupamento de seus termos na “semelhança”. No
século XVII, ocorre a passagem do sistema ternário para o sistema binário fundamentado na
correspondência do significante-significado.
“E isso ocorre de duas maneiras: seja porque as figuras que oscilavam
indefinidamente entre um e três termos vão ser fixados numa forma binária
que as tornará estáveis; seja porque a linguagem, em vez de existir como
escrita material das coisas, não achará mais seu espaço senão nos signos
representativos”
162
Transfere-se o percurso de retorno à origem para o imediatismo do presente da
significação, passagem do que significava para o que significa. “Mas por isso mesmo, a
linguagem não será nada mais que um caso particular da representação (para os clássicos) ou
da significação (para nós). A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha
desfeita. O primado da escrita está suspenso”
163
. Com essa suspensão, o projeto ganha
autonomia da historicidade que o vinculava à obra e à ação no mundo público. Em arquitetura
este problema se evidencia no distanciamento entre projeto e obra. O projeto passa de quase-
objeto a objeto encerrado em si, perdendo sua virtualidade potente. Desvencilhado da obra, o
projeto passa a ser encarado como processo autônomo, como ciclo produtivo completo restrito
pelos interesses sócio-econômicos, reduzindo a positividade utópica e ampliando a
dissimulação ideológica.
162
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.59.
163
Ibidem. p. 59.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
103
Conforme anunciamos acima, a dissociação da palavra e da coisa vai conduzir a uma
reação na literatura
164
e, posteriormente, na arquitetura. Para tentarmos entender o
posicionamento reativo do arquiteto no contexto contemporâneo, caberia, antes, explorarmos o
par complementar na formação do imaginário, o que Ricoeur reconhece na utopia. O senso
comum confere à utopia o estatuto do não realizável. Contrária à ideologia que conserva um
grupo social, a utopia projeta, lança para fora da realidade simulada. Daí vem sua primeira
característica que é a de definir um “lugar sem lugar” ou um “algures que é um nenhures”. É ai
que a utopia prescreve a sua realidade pondo a realidade “mais real” ou a realidade cotidiana
em questão. “A utopia é um exercício de imaginação para pensar um ‘modo diferente de ser’
do social”
165
. Possui a função de minar a ordem social, donde suas múltiplas formas e seus
conteúdos contraditórios, para propor uma outra forma do exercício do poder. Aqui
emparelhamos utopia e ideologia. “Exatamente no momento em que a utopia gera poderes, ela
anuncia tiranias futuras que correm o risco de serem piores do que as que ele deseja abater”
166
.
Tal risco ocorre pela dissociação da utopia dos meios práticos para sua realização, o que a leva
a contaminar-se com a realidade, com o que se encontra disponível numa determinada época.
A utopia passa, então, da função legitimadora para a dissimuladora, mas, ao contrário da
ideologia, atua numa “lógica louca do tudo ou nada”, impositora do perfeccionismo, da pureza
e da ordem ou, de seus contrários, da imperfeição, da impureza e da desordem. Porém, Ricoeur
prefere ater-se ao caráter positivo das utopias que é a abertura para o possível. O imaginário se
encontra sob tensão entre a integração e a subversão, entre o interdito e a transgressão.
“Parece que só nos apoderamos do poder criador da imaginação numa relação crítica com estas
duas figuras de falsa consciência”
167
. Assim, a ideologia e a utopia se encontram como
polaridades complementares de nossa apropriação imaginativa. O jogo entre esses dois los
resguarda os riscos de serem tomados em suas totalidades negativas. A utopia adquire seu
caráter transgressor quando ocorrem certas rupturas, como atualizações parciais sob outras
morfologias. Talvez seja o que Foucault
168
anuncia como heterotopias, estas obras na realidade
que se lançam incessantemente ora à ideologia caracterizada nas suas propriedades de
164
Tratamos aqui de uma certa literatura a partir do século XIX combatendo uma imagem dominante do homem.
A este respeito Cf. FOUCAULT, M. opcit. p.60.
165
RICOEUR, P. Do texto a acção. Ensaio de hermenêutica II. Porto: RÉS, [s.d.]. p.381.
166
Ibidem. p.383.
167
Ibidem. p.384.
168
Cf. FOUCAULT, M. Outros espaços. In: Ditos e escritos. V.3. São Paulo: Forense, 2001. p.414, 415.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
104
confinamento, ora para as utopias subvertidas na sua própria transformação. Mas aqui
avançamos para o objeto construído em arquitetura. Tratemos antes do projeto como
atualização parcial utópica exemplificada pelo projeto Vítimas, do arquiteto John Hejduk.
FIG. 26: HEDJUK. Vítimas Planta
FONTE: HEJDUK, 1993. Sem numeração de página.
Hejduk projeta Vítimas, em 1983, para o concurso de um parque em Berlim. A proposta
é composta por 67 estruturas sendo atribuídos nome, número e personagem a cada uma delas,
segundo suas funções específicas dentro do conjunto. Consta também um diário que abarca o
período de 128 dias. Vítimas foi apresentado na forma de um catálogo e posteriormente foi
publicado como livro
169
(FIG. 26 e 27). Seus desenhos arquitetônicos assemelham-se a
máquinas de distintas funcionalidades. São máquinas abstratas que estabelecem uma
atualização inventiva, diferente daquelas de Brunelleschi, que são funcionais. Diferindo da
repercussão da ação centrada na integração social, como em Brunelleschi, ou do mero
indicativo de execução, como ocorre atualmente, o projeto de Hejduk abre para a ação
inventiva do público com a representação do projeto feito como texto
170
. Por certo, não
podemos considerar este projeto como utópico, pois foi proposto para ser realizado. Os moldes
da realização favorecem o tipo de apropriação do projeto em sua parcialidade utópica. Hejduk
concebe o projeto como um sistema aberto apresentando três possibilidades: “Uma
169
Cf. HEJDUK, J. Victímas. Murcia: COAAT, 1993.
170
A este respeito Cf. BORENSTEIN, L; John Hejduk em Berlim. In: Risco. Revista de pesquisa em arquitetura e
urbanismo programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo. eesc-usp. nº2, 2003.
Disponível em: http://www.eesc.usp.br/sap/revista_risco/Risco1-pdf/art4_risco1.pdf44. Acessado em: janeiro de
2006.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
105
possibilidade é que as 67 estruturas possam ser construídas em dois períodos de 30 anos, uma
outra possibilidade é que nenhuma delas se construa. Uma terceira possibilidade seria que
somente algumas fossem construídas. A decisão depende da Cidade e dos Cidadãos de
Berlim”
171
.
FIG. 27: HEDJUK. Vítimas, desenhos.
FONTE: HEJDUK, 1993. Sem numeração de página.
Juntamente com a abertura às possibilidades do desdobramento morfológico do parque,
o arquiteto expande a decisão até para a conformação da obra pelo cidadão, que entendemos
como público, este leitor qualquer prestes a uma atualização do que foi lido agindo sobre
outras formas. Neste sentido, aproximamos a forma do livro a um projeto. O livro, assim como
a arquitetura, é uma coisa pública, se encontra aberto a qualquer um que saiba ler. Em
arquitetura, saber ler é habitar essa arquitetura, encarná-la. Ela se aproxima do texto ficcional
numa conjuntura ou contextura outra àquela que privilegia a dominância de valores
171
HEDJUK apud BORENSTEIN, L; PASSARO, A. Leituras berlinesas de John Hejduk e Daniel Libeskind. In:
2º Seminário Arquitetura e Conceito. Belo Horizonte: NPGAU. Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. CD-
ROM. p.3.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
106
clássicos
172
com seus riscos ideológicos ou utópicos. Tal contextura privilegia a poesia e a
literatura como linguagens, pois elas se alinham no combate implícito, em suas próprias
formas de expressão, à ideologia e à utopia e privilegiam o imaginário voltado à ação traçando
uma discursividade. O texto ficcional nos remete a origem inventada da arquitetura como fonte
para o próprio devir construtivo. Vítimas se funda, assim, nas possibilidades da própria origem
da obra. O recurso ao diário desloca a memória da linearidade histórica para afirmar o
problema da projetação possível ao autor, tecendo sua própria ficção, bem como para
evidenciar a tessitura da história por vir, de responsabilidade dos que a atualizarão, no caso os
próprios habitantes da cidade. O recurso ao diário é colocado por Blanchot como necessidade
de manter uma relação consigo frente à “potência neutra” da obra, trata-se de um memorial.
“De que é que o escritor deve recordar-se? De si mesmo, daquele que é
quando não escreve, quando vive a sua vida cotidiana, quando é um ser
vivente e verdadeiro, não agonizante e sem verdade. Mas o meio de que se
serve para recordar-se a si mesmo é, fato estranho, o próprio elemento do
esquecimento: escrever.”
173
Lembrar de si mesmo é, antes de mais nada, reconhecer uma memória biológica, redescobrir o
corpo construtor pela suspensão dada na exterioridade da escrita. O corpo fica sem terra. A
generosidade de Hejduk é igualmente a necessidade de reconhecimento do artista
comprometido com o público. O arquiteto exige do cidadão a sua própria escrita, a abertura
para a escritura do diário do cidadão. É, então, uma forma pedagógica, a de fazer do cidadão,
este qualquer um, um construtor. O público é singularizado. A escrita é lançada ao movimento
incessante da própria vida, utilizando a projetação como recurso de nos abrirmos aos possíveis,
de escrevermos nossa própria história e de não sermos meramente “filhos de nosso tempo”. É
o que Blanchot reconhece na escrita diária:
“Talvez o que é escrito já não seja mais do que insinceridade, talvez seja dito
sem a preocupação com o verdadeiro, mas é dito com a salvaguarda do
evento, pertence aos negócios, aos incidentes, ao comércio do mundo, a um
presente ativo, a uma duração talvez inteiramente nula e insignificante, mas
172
A este respeito Cf. BORENSTEIN, L; PASSARO, A. Leituras berlinesas de John Hejduk e Daniel Libeskind.
In: Seminário Arquitetura e Conceito. Belo Horizonte: NPGAU. Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.
CD-ROM.
173
BLANCHOT, M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.19.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
107
ao mesmo tempo sem retorno, trabalho daquilo que se ultrapassa e avança
para amanhã- definitivamente.”
174
Ocorre uma nova aliança do projeto com o objeto construído, em arquitetura, decorrente da
aproximação da palavra, da coisa e da ação fortalecida desde o imaginário, construindo uma
narrativa quase-literária. É a retomada da conjuntura com o primado da escrita aderida à
imagem. Chegamos, em nossos exercícios, à precisão de mostrar o que temos chamado de
escrita pública do arquiteto condizente com sua ação política e poética.
Tanto uma arquitetura quanto um livro estão colocados no mundo para o uso de um
público qualquer. Manifestar uma obra acompanha uma tentativa de eternizá-la tornando-a
pública. O autor recorre ao jogo entre a definição e a indefinição para fazer a obra e colocá-la
no mundo.“É contra a fala indefinida e incessante, sem começo e sem fim, contra ela mas
também com sua ajuda que o autor se exprime”
175
. O público é o leitor qualquer, o outro
indeterminado, do qual ninguém faz parte, ao passo que todos a ele pertencem. A esta
concepção Blanchot agrega a suspeita do poder em relação ao ato de tornar público. “É que
esse ato faz existir o público, o qual sempre indeterminado, escapa às mais firmes
determinações políticas”
176
. Voltando-se ao público, o autor, seja o arquiteto ou o escritor,
depara-se com a indeterminação, a anterioridade de sua obra. Eis a recorrência da
indeterminação para tentar alcançar o lugar originário, anterior à própria integração, rumor
anterior à linguagem. Blanchot diz que nesta busca o autor “orienta-se para uma fala que não
será de ninguém e que ninguém ouvirá, pois ela se dirige sempre a outra pessoa, despertando
naquele que a acolhe, sempre um outro e sempre à espera de outra coisa”
177
. Expandimos tal
concepção para o arquiteto: como autor, ele se lança à exterioridade do mundo em busca do
próprio motivo da sua obra. Para tanto a realiza, a publica.
“Mas a necessidade de ser publicado isto é, de atingir a existência exterior,
a abertura para fora, a divulgação-dissolução de que nossas cidades são o
lugar pertence à obra, como uma lembrança do movimento do qual vem,
que ela deve prolongar incessantemente, que ela gostaria, entretanto, de
ultrapassar radicalmente e a qual um fim, de fato, por um instante, cada
vez que é obra”
178
.
174
BLANCHOT, M. M. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.20.
175
Ibidem. p.362.
176
Ibidem. p.361.
177
Ibidem. p.366-367.
178
Ibidem. p.363.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
108
É para entrar no devir construtivo e pra fazer obra que o autor requer o público, mais do que a
aparência do interesse comum
179
. O interesse comum se encontra no plano ideológico,
efetivamente ele não existe em face do público. O autor sai do risco da autoridade, de se
converter num ditador. O autor busca um público, nesse sentido, para continuar construindo e
para se desmanchar enquanto autor. Busca o público para buscar a própria gênese da obra, o
indeterminado, mas também para manifestá-la e colocá-la em atrito com o outro qualquer.
Avançamos ainda para a arquitetura como escrita ficcional, o que não é convertê-la em
livro. Trata-se, sim, como no livro, de evidenciar o caráter público que exige a traduzibilidade,
como transgressão às suas morfologias para outras formas, repercutindo o devir construtivo em
sua aproximação com a vida. Supomos ser o lugar primeiro da teoria o de indicar a
traduzibilidade como recurso para a ação humana, mais do que o de definir tal ação. Assim,
privilegiamos a palavra poética que renova por si os conteúdos que levam à ação,
aproximando-a da positividade utópica, da abertura aos possíveis e da atualização, afastando-
se da negatividade da dissimulação ideológica. Quando da atualização do projeto, a utopia se
converte em narrativa ficcional. O recurso literário aplicado à projetação formula uma
historicidade diferente da linearidade causal dos fatos ou do apriorismo histórico como
definidor da obra, para assumir uma concepção mais bergsoniana de concentração de toda uma
vida num dado instante. Em termos de representação, deixamos a mimese ou mesmo
ampliamos seu entendimento para, no próprio projeto, mostrar o devir construtivo. Para tanto,
forjaríamos uma tensão entre imagem, texto e desenho técnico, desvencilhando-nos de uma
hierarquização a priori. Instaura-se uma espécie de cut-up, como fez Burroughs na literatura,
no entanto, sem requerer a conformação de um método. O recurso imaginativo coincide o
arquiteto, o público, o freguês. Em tal aliança, mover o outro é produzir imaginação com
potência de atualização sobre outras formas. O público participaria, na própria feitura da
narrativa, como ator e nestes termos se converteria na singularidade de um freguês e talvez no
179
“Pode-se dizer que, quando um escritor cuida hoje de política, com um entusiasmo que desagrada os
especialistas, ainda não cuida de política, mas da relação nova, mal percebida, que a obra e a linguagem literárias
gostariam de despertar, no contato com a presença publica. É por isso que, falando de política, é de outra coisa
que ele fala: de ética; falando de ética, é de ontologia; de ontologia é de poesia; falando enfim de literatura, sua
única paixão’, ele o faz para voltar à política, ‘sua única paixão’”. BLANCHOT, M. M. O livro por vir. São
Paulo: Martins Fontes, 2005. p.365.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
109
próprio construtor. A escrita como a formalização feita obra, competiria ao arquiteto. Como
tal, seria lançada ao público e, assim, seria possível de ser transformada.
Ainda não conseguiríamos afirmar se com essa estratégia diminuímos os riscos
ideológicos ou utópicos. Talvez ocorra apenas um deslocamento, mas este deslocamento pode
fragilizar a dominância desses termos. Ocorre uma refuncionalização da legitimidade e da
dissimulação, o que corresponde à subversão da ideologia. O público vai legitimar a feitura da
obra, na medida em que se confunde com sua origem impossível. E é dissimulando a origem
que chegamos à possibilidade narrativa do projeto. Desta conjunção extraímos uma
historicidade que parte de uma situação da obra vinculada à exterioridade pública, que é sua
manifestação no mundo, a seu passado, no mínimo o mais imediato, e a seus possíveis “por
virem”. O campo da construção joga com uma indeterminação dupla constituinte da
historicidade de uma obra: a do público como proximidade da origem e a do por vir como
desdobramento da obra diante de um público. Uma historicidade que parta da obra é o que a
singulariza, o que vai lhe fornecer data e nome.
A ficção, como propomos, alinha-se contra uma prefiguração à obra, seja de um passado,
seja de um futuro. Contra a hiper-realidade, contra algo dado do futuro no presente, fazendo
do público qualquer uma amorfia. Para construirmos essa ficção partindo da própria feitura da
obra, isenta das determinações a priori de um passado e não antecipatória do futuro,
precisamos de agentes. A ação, no sentido de uma formação poética do indivíduo, conduziria à
própria restituição poética no mundo. O que temos defendido é o primado da formação
humana na arte como contraponto à formação moral. sempre saltos nas relações de poder.
A passagem de uma autoridade para outra ocorre por uma ruptura, uma transgressão que de
fato funciona como um hiato que não podemos prescrever, mas, tão somente, descrever após o
acontecido. Do mesmo modo que não nos compete prescrever ou demonstrar os fluxos, os
acontecimentos, o “aí está” que igualmente ocorre por saltos. Nossa tarefa não é dissecar as
passagens para tentarmos um sistema fechado capaz de reproduzi-las por um método de
projeto. Em nossa concepção de sistema de transgressão, propomos o reconhecimento da
tradução, evidenciamos sua aparição como recurso de construção no mundo e, deste modo,
contribuímos para que desde o próprio reconhecimento exista a possibilidade de sua
manifestação. A tradução não se presta a produzir métodos, não repetíveis sem serem
outras coisas. Trata-se, portanto, de não dissimular ou domesticar os fluxos, de recorrer ao
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
110
público, de voltar ao mundo para continuar construindo nele e transformando-o. E nos
transformando. Talvez esta transformação aconteça em sua parcialidade, considerando a
importância pública, e não dentro de um programa coletivo, feito de cima para baixo feito de
ditados, mas quando o indivíduo se desvencilha da primazia do privado e passa a se importar
mais com as diferenças no mundo. Ao invés do interesse público ser o individual, o individual
será público. Movimento circular que implica a retomada de uma origem inventada, da
aderência da palavra à coisa e do desaparecimento do autor. Voltamo-nos para a formação de
tradutores, de transgressores, capazes de investir com “suas” obras contra as legitimações
ideológicas, contra o engessamento e o autoritarismo das utopias, contra as ditaduras. Este
indivíduo público, imperceptível, sem glória, sem poder, sem ascetismo, o homem construtor,
o arquiteto como escritor público.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
111
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
112
6. Exercício 6: Quando uma arquitetura em sua feitura explicita a construção por
tradução
Temos insistido na tradução como modo de construção em arquitetura, pautado no
reconhecimento da transformação e da incompletude de sua situação atual. Nos exercícios
anteriores, delineamos uma teoria sobre a formação arquitetônica por tradução, tomando
aspectos que extraímos a partir do atrito com algumas artes. Este modo de ler a arquitetura
converge, mais do que para a interpretação, para a experiência, na medida em que mostra o que
tem duração, o que encarna, o que faz consistir uma arquitetura. Mas ainda não adentramos nas
repercussões da tradução na produção de uma obra de arquitetura. Para dizer de tais
repercussões, nos valemos de uma obra que realizamos. Trata-se de uma sala de apartamento
utilizada para estudo, trabalho e lazer do proprietário
180
. Este exemplo nos servirá para enfocar
as contribuições de nossa versão da tradução para outros modos de projetar em arquitetura. Em
específico, para o que denominamos de construções-narrativas. A FIG. 28 mostra uma das
construções narrativas resultantes do processo de produção arquitetônica da obra em questão.
Antes de iniciarmos nossa leitura da obra, caberia uma ressalva. A obra não corresponde a uma
relação causal, como produto de uma sistematização prévia sobre tradução em arquitetura. Foi
realizada no ano de 2004, isto é, cerca de um ano antes deste trabalho, e não foi produto de
um pensamento anterior sobre tradução, porém, em sua construtura se encontra mais ou menos
explícito o recurso da tradução tal como temos desenvolvido. Deste modo, o que propomos
neste exercício é uma leitura do processo de construção desta obra sob a baliza da tradução, e
não uma legitimação quanto à eficiência do método.
Logo nos atritos iniciais, nosso freguês, o proprietário do apartamento, s à mostra seu
problema: a organização de alguns pertences junto a um espaço multiuso, onde pudesse escutar
música, ler livros, assistir à televisão e trabalhar, ministrando aulas de idiomas. Nosso freguês
apareceu sem qualquer imagem prévia e indisposto a aceitar qualquer coisa como uma
mudança ditada pelos acontecimentos. Deparamo-nos com a ausência uma imagem
prefigurada. Isso nos conduziu a inventar uma narrativa como meio de partir do nada instalado
na circunstância dada: um apartamento, uma contextura, um problema, a imagem ausente. O
180
Este trabalho foi realizado pelo escritório Ambulante\ Construções, composto por mim e Louise Ganz.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
113
público ficou concentrado no indivíduo indeterminado, sem exigências e sem particularidades.
Através de imagens e textos, formamos a mescla que se converteria no projeto, compondo o
público qualquer que, à medida de nossas investidas, passou à singularizar-se, ainda que
ficcionalmente. No projeto tais imagens e textos constituíam narrativas. Fundamos uma
história: a do primeiro homem civilizado. História, e não estória, pois as coisas se fizeram
consistir num plano de realidades.
Sem imagem equivale a sem matéria e sem memória. Apesar de nosso freguês morar em
seu apartamento mais de cinco anos ele, estava praticamente vazio. De desorganização e
vestígio, persistiam apenas alguns velhos livros jogados no canto de um quarto de despejo. Na
sala que se foi conformando enquanto espaço capaz de organizar toda a bagunça que não
existia, aparelhos eletroeletrônicos eram dispostos transversalmente em relação as paredes e
colocados sobre os caixotes de papelão que serviram para empacotá-los. Tinha também uma
velha cadeira perpendicular aos equipamentos e um armário embutido, sem o qual
ganharíamos algum espaço. No mais, paredes brancas, piso de tábua corrida e iluminação
central do teto de um apartamento convencional. Tudo limpo.
Diante de poucas imagens oferecidas pelo nosso freguês e pelo espaço que habitava,
começamos nosso plano anterior ao projeto. Sem uma intenção precisa, mas nos valendo das
intensidades produzidas no atrito com nosso freguês e com uma construção prévia, configurada
por seu apartamento, recorremos a imagens e textos que lançávamos para ele. Selecionamos
algumas imagens e textos capazes de se integrarem à história do primeiro civilizado. Algumas
delas se encontram na narrativa da FIG. 28. São imagens como as do avião da Sibéria, no
limite entre a natureza se formando nas geleiras e a cultura entrevista na asa do avião, e as do
trabalho do artista Damien Hirst, em que em duas caixas de formol se encontra uma vaca
seccionada ao meio, indicando uma perenidade na conservação dos corpos, uma crueza da
carne e uma geometria precisa, mas não reguladora. E ainda as imagens dos circuitos
eletrônicos, das margens do rio Nilo e de algumas referências do antigo Egito. Imagens
precisas e desorientadas. Além das imagens, trabalhamos alguns textos, como fragmentos do
conto “Pele de Urso”,de Grimm, e da “Ética”, de Espinosa. Quanto aos recursos gráficos de
projeto usamos, programas de informática que possibilitam um desenho sem rigor. Esse
desenho surge como indício, e não como dado a ser reproduzido. A história foi traduzida em
narrativas como desenvolvimento do projeto. O modo de tessitura do projeto, feito por textos e
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
114
imagens, extrapola o desenho técnico. Nesta lógica falha, o desenho técnico ficou
comprometido na confecção da peça. gerando uma outra coisa. As brechas, as lacunas
permitem as folgas capazes de gerar transformações na passagem do projeto ao objeto
construído. As imagens utilizadas são fragmentárias, recortes parciais de uma arquitetura que
exige experimentação.
A espacialidade proposta reduz a área circulável, que media 2,74m X 2,79m, para 1,70m
x 1,70m. Foram chumbados suportes metálicos nas paredes e no chão que serviam para
suportar as prateleiras e as portas com aberturas diversas cobertas por uma pele de telha
translúcida. Definimos com justeza onde cada coisa aportaria: os equipamento eletrônicos, os
livros, os discos, as fitas, os objetos de trabalho e outros que tendiam a ocupar sempre o
mesmo espaço. A passagem ao objeto construído feita por camadas é dada pela imprecisão. O
projeto não foi detalhado ao extremo, mas tão somente para entendimento do serralheiro. A
execução com soluções complexas, como trilhos sobrepostos verticalmente, foram se
adaptando ao espaço da sala. Quanto à encarnação da obra, está se anunciava desde o
projeto como construção narrativa. Insistimos na multiplicidade de formação que o processo
gerou. O objeto arquitetônico, no sentido restrito, foi consistindo no período de montagem que
durou cerca de vinte dias. O processo de encarnação da obra ocorre internamente, guiado pelos
recursos disponíveis em sua feitura. Na execução ocorreram diversos remendos: nas peças de
ferro dos trilhos que foram cortadas e ressoldadas para se adequarem ao espaço; em toda a
parte elétrica que foi descentralizada em luzes fluorescentes em cada parede e num apêndice
para iluminar a mesa retrátil de acrílico vermelho para trabalho; nos encaixes do armário
existente, que foi desmanchado para abrigar uma das portas de correr e caixas de plástico para
objetos aleatórios; nas peças de borracha fixas na parede para não marcá-las; nos retoques de
tinta do teto pintado de marrom. Obviamente não tratamos do remendo em tradução de modo
tão literal. Nosso entendimento de remendo seria mais condizente ao assumirmos a
parcialidade da obra que realizamos no quadro mais amplo de um apartamento, mas desde os
pormenores.
Se o determinismo formal dado pela estrutura chumbada e pela disposição prefixada dos
elementos no projeto podem indicar um certo ditado do que deve ser feito ou de como deve ser
utilizado, alinhamos tal resposta como a própria necessidade de fixar a obra, recurso de
engenhosidade, para manifestá-la no mundo. Como uma pregnância. Tal fixação não garante
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
115
um uso pré-estabelecido. Aqui caberia uma revisão da noção de flexibilidade como solução
para a participação criativa. A participação ocorre mais por embate entre os corpos, entre os
diferentes, com aberturas para incorporação dos pedaços formados, do que por uma produção
de continuidade plena entre os dois. Muito menos encontra-se alojada na noção de educação do
outro como domesticação para adentrar um campo de possibilidades sufocadas como pleno
entendedor.
Extraímos algumas conclusões entre o modo como traduzimos no processo de produção
desta obra e nossa teorização. A primeira é a de que o original ou a fonte se mantêm como
referência, mas logo deixam brechas para a formação de outras coisas. O que a fonte, no caso,
os textos e as imagens que utilizamos, lança para fora dela nos possibilita produzir outras
coisas, no caso, narrativas escritas, projeto, objeto de arquitetura e, inclusive, este texto. É
desfeita a necessidade de um conceito. O conceito não passa de mais um dado definido nos
entres das narrativas. Converte-se em discursividade amparada mais na ficção do que numa
pretensão de verdade sobre o que fizemos. Mas ficção comprometida com a formação, com a
concretude no mundo. Daí investirmos na formação do personagem do primeiro civilizado e na
fundação de sua civilização como origem mentida, feita uma sala o seu domínio. Poderíamos
ser questionados quanto ao personagem que fomos formando, mas não foi um personagem
passivo. Por certo, não formamos mais poetas do que pessoas abertas a outras imagens e a
outras formas de manifestação no mundo, capazes de agirem no domínio da coisa pública. Se
eles agirão ou como eles agirão, o nos cabe responder. Não nos compete domesticar os
fluxos, inserir os agentes num quadro demonstrativo. Nossa tarefa de escrita é mais descritiva
e propositiva do que demonstrativa de um método ou de um modelo de ação. Espécie de re-
atualização, fomento de construção.
O que temos delineado na leitura do processo de construção desta sala é um sistema de
transgressão, não somente da metodologia de projeto, mas da própria relação do arquiteto e do
freguês com a obra. A autoria não foi coletiva: ela é duvidosa. Podemos, a partir deste
exemplo, insistir no reconhecimento da incompletude da construtura e da abertura da obra para
transformações, numa arquitetura voltada para os interstícios, para as brechas, o que sai da
pureza e da integridade de uma obra, de início e fim prescritos, o que sai do controle do
arquiteto. Ao terminarmos nossa tarefa, deixamos uma arquitetura incompleta, ainda apta a
outras metamorfoses por atrito com outros habitantes. A encarnação suportavelmente continua.
PARTE III – Exercícios de tradução entre a arquitetura e algumas artes
116
Nosso cliente, como o primeiro civilizado, ao final de nossa parte, nos disse algo que,
deslocado do contexto de livros de auto-ajuda, faz sentido neste processo de tradução como
construção. Disse: “vocês me fizeram aprender a lidar com o erro”. O erro aqui é tão
simplesmente certos momentos de formação da obra que explicitam suas aberturas a outras
transformações. Como habitante da sala, ele terá que lidar com o erro. Vemos ainda, neste
exemplo de arquitetura, uma expansão dentre tantas imagináveis para o campo de atuação do
arquiteto. Onde, em suas abordagens, o arquiteto se faz errado, transgressor e tradutor.
Em algumas errâncias, encontramos nosso cliente na rua e ele sempre diz que nos
convidará para construirmos uma outra sala de seu apartamento ao qual, desde nossa pequena
incisão parcial, não mais voltamos.
PARTE IV
Considerações penúltimas
PARTE IV – Considerações penúltimas
118
PARTE IV – CONSIDERAÇÕES PENÚLTIMAS
1. Epílogo para antes de Babel ou Antecedentes e algumas tópicas do nome próprio
Arquitetura
As moradas têm nomes próprios e são inspiradas.
Gilles Deleuze e Felix Guattari
Antes de Babel, do mito sem tempo determinável de seu acontecimento, poderia ser
agora. Assim sendo, reclamamos a atualidade do mito da construção e faremos uma narrativa
arranjando alguns desdobramentos que, por tradução, nos permitem nomear uma arquitetura.
Nosso plano ou pretexto que foi consistindo feito este texto ao qual fez-se livro, é uma
tessitura confusa, babélica. Texto onde os conceitos perdem o privilégio hierárquico para
participarem, juntamente com as imagens, de formações discursivas. Onde Babel é nome de
deus, da cidade, da torre, do mito, do homem, da confusão. Onde a tradução é transgressão,
remendo, erotismo, intersemiose, construção, infralíngua, recaída. Onde todo o verbo ser
persevera em devir, e a tradução se define enquanto é feita. E se traduz quando os termos,
seja a fonte ou o traduzido, são desapropriados parcialmente e lançados ao espaço formado,
desde suas brechas identificadas, como suas aberturas às diferenças e à exterioridade. No
espaço da tradução produz-se uma espécie de linguagem hieroglífica em que as imagens e as
palavras se impregnam por menos de um instante e que serão atualizadas sob outras formas no
retorno ou no remendo dos termos, assim como na produção de outros termos. Deste modo, o
espaço da tradução se apresenta em sua virtualidade como potência de formação que restitui
um espaço pré-babélico de outras formas. Alcançar o pré-babélico não é um retrocesso, mas ir
de encontro às coincidências entre o legível e o visível, às pregnâncias, produzindo novas
formas de linguagens verbais ou não-verbais. O espaço da tradução confunde-se com o
germinal de qualquer construção e foi deste modo que o aproximamos da arquitetura.
Nos termos de uma tradução generalizada, a arquitetura foi um pretexto, um projeto e
uma aparição do texto da torre no mito de Babel. Poderíamos estender nossa investigação
sobre quaisquer objetos produtos de uma construção, feita ou não pelo homem. A arquitetura
se apresenta como um campo favorável pelos seguintes motivos: primeiro, ela é uma atividade
na qual o homem participa intensamente e temos dito do vínculo da tradução como
instrumentalização da ação humana; segundo, o campo arquitetônico demanda uma
discursividade em forma de verbalização como produção teórica, o que vai favorecer as
PARTE IV – Considerações penúltimas
119
investidas no sentido de um sistema de tradução; e , por fim, a arquitetura se confunde com a
própria construção. Talvez seja por essa identificação que o texto de Babel vai se utilizar de
imagens arquitetônicas, como a torre e a cidade, para dizer de uma construção, mesmo antes de
esta poder ser reconhecida pelo homem. E ela é reconhecida pela imagem das setenta cidades
formadas juntamente com a multiplicidade das linguagens. Indiciada, daí em diante seu espaço
de formação é o da tradução. Este espaço possui a sua própria arquitetura, ainda nome comum,
que diz do sistema construtivo por desconstrução, por desapropriação, por transgressão de um
original desde dentro, desde fora. Mas dele a arquitetura adquire seu nome próprio expresso no
mito como “Torre-Bavel”, construção confusa, casa construída pelos homens para habitar o
deus da tradução que impôs aos homens a transgressão e a interdição da continuidade. Quer
dizer, o homem, de certo modo, se condena a traduzir em seu embate com a exterioridade e
com a diferença do mundo. O espaço exterior da tradução é ao mesmo tempo remendo entre
seus termos. Conforma uma zona de limiar onde a quase-continuidade, a pregnância entre o
visível e o legível e a transformação dos corpos em seu duplo sentido de interioridade e
exterioridade, ocorrem como um acontecimento, um está do movimento construtivo. Devir
construtivo, movimento do espaço da tradução que atrai as semelhanças e as diferenças,
coloca-as em atrito e faz outra coisa. Termos, acúmulos e esvaziamentos em suas
consistências.
Antes de Babel, a arquitetura não podia ser nomeada, no entanto, o “grau zero” da
construção foi já dado. Steady State. A terra estase inegendrada. Os movimentos dos asteróides
indo de encontro à terra que irrompia de dentro. A carne cósmica violada. Deste encontro, a
suspeita de William Burroughs de que a palavra é um vírus extra-terrestre quase
confirmado
181
. Os homens condenados que exigem construir foram contaminados: na pré-
história os homens que lascaram a pedra, na pré-babel os homens que chamuscaram o barro, e,
ao longo da história, os artistas, os arquitetos, mas também estes construtores quaisquer, sem o
impacto da precedência disciplinar. A construção como passível de ser traduzida se encontra
sempre incompleta, aparece como um sistema aberto. A tradução como modo de construtura,
isto é, como um modo de construir, é sempre parcial, se encontra entre dois, é, por sua vez,
incompleta. Lançados ao espaço da tradução, os termos são desapropriados parcialmente,
181
Cf. CORREA, H. A escrita insuportável. In: BRANCO, L; BRANDÃO, R. (org.). A força da letra: estilo,
escrita, representação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. p.172-173.
PARTE IV – Considerações penúltimas
1
20
estabelece-se uma zona de indiscernibilidade que não possui nem princípio nem fim, zona de
“entreidade” de onde retorna aos termos algo que vai parcialmente remenda-los conforme uma
continuidade suportável.
Para dizermos do espaço de tradução em arquitetura, foi preciso colocá-lo em
movimento no próprio texto, foi preciso traduzi-lo. A tradução proporcionou a fundação de um
espaço da tradução em arquitetura como uma zona entre o interior e o exterior do campo
arquitetônico, como uma zona de limiar de seu corpo. Situar a zona de limiar seria uma tarefa
pré-babélica, como fundação de um espaço deslocado de um tempo mítico circular ou de um
cronológico e linear. A esse respeito, os exercícios na Parte III acenam para a consistência de
uma arquitetura, para o fenômeno de sua formação que passa pela inscrição cuja determinação
da origem nos escapa e, quando dela falamos, isso não passa de uma eleição isenta de qualquer
pretensão de uma verdade soberana. A inscrição marca a diferença, permite o reconhecimento
da descontinuidade. Esta inscrição confunde-se com a escritura babélica. Foi pelo mito da
Torre de Babel que recorremos a um primeiro esboço para a teorização quase literária da
tradução em arquitetura. Partimos do texto e passamos ao que ele nos lança para fora dele, que
identificamos como a instauração da construção. A inscrição ou a escritura arquitetônica
lança tanto o texto como a coisa para além deles, como que impelidos por um projeto de
remendo e anunciando o por vir. Neste movimento de desapropriação, de tradução, a
arquitetura ganha um corpo e um nome. Seu corpo em construção, ainda não sendo um corpo
próprio, mas um corpo singular que adquire sua interioridade pela zona de limiar com o fora.
Quer dizer que a arquitetura vai se encarnando à medida de sua abertura ao atrito com agentes
externos humanos, ou não, que a transformam. Nesse sentido, como corpo singular, a
arquitetura é segmentariedade pura cuja imagem correspondente seria a do labirinto, onde ela
não cessa de explicitar as distâncias, atritar com a exterioridade e fazer espaços. Labirinto em
obra. Tão logo vai adquirindo consistência, será nomeada, reconhecida por arquitetura e
possuirá tantas mesuras flutuantes, como medidas, extensão, volume, texturas. Se toda escrita
evoca uma memória, a arquitetura toma parte no sistema de crueldade? Ou é a outra memória
que ela evoca, a memória biológica, a encarnação? Ou a mineral que traz em seus farelos a
linguagem?
Nos exercícios da Parte III, tentamos estabelecer um modo de tradução que dissesse da
própria tradução em arquitetura como meio de sua formação por transformação. Traçamos as
PARTE IV – Considerações penúltimas
121
premissas de um sistema de tradução para a arquitetura entendido como sistema de
transgressão, conforme definimos na Parte II, em seu sentido de desapropriação parcial dos
termos postos em atrito. Tais premissas partem da atualidade de uma obra, que pode ser
projeto ou texto de arquitetura, valendo-se do recurso ficcional para identificar um ponto de
partida atual para uma discursividade. À medida que ela vai se fazendo consistir, a arquitetura
mostra sua duração como um bloco de transformação aberto a sua extrapolação, o que, em
termos de formação de uma arquitetura, equivale a uma atualização que indicia o por vir da
obra. A obra se constitui num movimento que ocorre de dentro e de fora, mas que possui a
exterioridade, a diferença como propulsor. É este o fenômeno inumano e inatural de
encarnação da obra, pois se situa entre qualquer humanidade e naturalidade. Ocorre a
segmentação inevitável do processo construtivo, movimento diabólico que numa origem
mentida remete à imagem labiríntica e não deixa de constituir a obra em toda a rigidez das
paredes, pisos e cobertura que a segmentam e nos proporcionam as referências para as
distâncias. Escreve René Char: “Suprimir o distanciamento mata”
182
. Neste momento a
arquitetura se configura como arte das distâncias. A parte maldita da arquitetura é o excesso
que a desapropria, definindo um sistema de transgressão, um sistema barroco de terceira.
Utilizamo-nos de uma aproximação literária para confeccionarmos nosso texto. Tal
recurso faz com que o trabalho assuma um estatuto de narrativa ficcional comprometida com a
formação. Por isso, dela extraímos o nome próprio da arquitetura por meio da restituição
poética como reconhecimento da incompletude da construtura. Neste ponto identificamos as
premissas para uma teoria da arquitetura pautada na literatura. No entanto, como temos
afirmado, a diferença da literatura e da teoria da arquitetura quase literária estaria dada pelos
seus desdobramentos voltados para a investigação arquitetônica, para formas de pensamentos
voltados à ação construtiva. Esta quase literatura seria capaz de dizer da construção a partir de
uma construção textual. A teoria arquitetônica como quase literatura estaria comprometida
com a ação. Talvez ela ocorra por um movimento interpretativo comprometido com a
construção e indissociável da experiência do construtor.
O princípio arquitetônico é inatural na medida em que não participa da continuidade ou
da unidade, e como inatural é construção por sobreposição a uma ordem natural. Como o
princípio é inumano e, por isso, instaura-se uma diferença, o homem poderá reconhecê-lo,
182
Cf. VIRILIO, P. O espaço crítico. São Paulo: Editora 34, 2002.
PARTE IV – Considerações penúltimas
122
participando, assim, da construção no mundo. Passa a exigir a terra, o outro, e esta exigência
passa por seu corpo. A partir daqui, esboçamos o arquiteto como tradutor em seu empenho
construtivo. Destituído de um corpo próprio, faz seu corpo singularizar-se como um
“transductor de signos”. Faz carne do verbo e arquiteta. Forma sua subjetividade de fora de si.
O arquiteto tradutor não é. Ele constrói. Quer dizer, ele adquire o nome daquilo que ele faz.
Enquanto faz, o arquiteto se faz construtor. Construtor de qualquer coisa que ele consiga
realizar por imagens, por textos, por projetos, por objetos, por tudo a ser extraído e lançado ao
mundo. O arquiteto prescinde das garantias diplomáticas. Em seu fazer-se, ele exige o atrito
com os outros e, então, tudo o que faz é inacabado, tão inacabado como sua formação. O outro
costuma assumir a forma do cliente, do freguês, mas é também todas as coisas que convergem
para a construção. É também, ele mesmo que se desconhece fora de si, se construindo. Não lhe
interessa definir as hierarquias das importâncias de antemão. De princípio as coisas se
equiparam em valoração. Seu vigor é participar da construção. se difere do escritor, do
pintor, dos artistas e da infinidade dos profissionais liberais, que vão reclamar sua obra e dizer
que também se transformam enquanto as realizam. Mas o arquiteto, talvez como ninguém, ele
está implicado com isso. Ele forma sem domesticar a transformação e arrisca sua autoria. A
construção é sua perdição. Se as transformações são incessantes, para ele é impossível entregar
uma obra acabada. Mas é exigência entregar uma obra habitável que, por ruído grave e
prolongado, exige outras transformações ou que exige ser habitada por tantos outros. Portanto,
não há como ele ou os outros se esquivarem da matéria e das gostosas aberturas convidativas
da construção. Forçado duplamente, de dentro e de fora, a construir e a se construir, o arquiteto
se faz cativo de e apaixonado por sua tarefa. E sua tarefa é errante. Descobre os corpos
amorosos como narrativas de suas metamorfoses. Não cessa de requisitar a matéria e toda a
gravidade e tesura do mundo. Cheio de horror ao vazio da continuidade, maravilhado diante do
transbordamento do mundo. Constrói para tentar atravessar um abismo intransponível e, nesta
tentativa, evidencia-se a impossibilidade de qualquer universalidade. A construção não cessa
sua aparição. E por estar tão próxima à instauração da multiplicidade da linguagem como
causa e efeito da condenação de construir, a arquitetura carrega em seu nome a origem da
construção.
Parece-nos, pois, que extrapolamos o campo disciplinar da arquitetura. No entanto,
extrapolamos este campo por ela, traçando uma meta-narrativa da construção. A arquitetura
PARTE IV – Considerações penúltimas
123
talvez por ausência de uma teoria própria, quer dizer, fundada sobre a discursividade da obra
de arquitetura, possibilita o trânsito entre campos de saber. Poderíamos, então, tentar atritar
elementos de outros campos para outros modos de se fazer uma arquitetura, como uma espécie
de tradução que poderia resultar em outra coisa diversa da arquitetura. Parece que miramos
sempre outra coisa quando propomos nosso sistema de tradução para a arquitetura. Por outro
lado, a quase literatura como modo de se tecer uma discurssividade para a teoria da arquitetura
nos encaminha para algo externo a seu campo, à instrumentalização que privilegiaria a obra no
sentido de uma construção. Esta teoria não precisa ser conceituada. A arquitetura permite um
sistema de transgressão que lemos para além do mito de babel por sua indissociação da
construção. Os impactos de um sistema de transgressão sobre a disciplina arquitetônica nos
são, por ora, imprevisíveis, mas certamente alteram os modos de se ensinar e de se fazer teoria
e prática na disciplina e talvez convertam a arquitetura para uma indisciplina.
Este trabalho encontra-se permeado de avarias, de brechas, de falhas, que, de outro
modo, não nos permitiram traçar este texto. Quer dizer, produziríamos um sistema fechado,
uma teoria de avaliação universal, científica e não entenderíamos a construção como falha, no
sentido de sua abertura à tradução, à produção de outras coisas, disposta a assumir outras
formas, a se transformar. Aquilo que este texto deixa de lacunas é a validade de nosso sistema
de tradução para a formação da obra de arquitetura. Os exercícios de tradução que fizemos
dizem de uma teoria da construção e apontam para a possibilidade de se instrumentalizar a
tradução de modo direto na produção de uma obra. Seria o caso, por exemplo, de, partindo de
textos literários, chegarmos, e isso sem muita linearidade, a um objeto arquitetônico e daí em
diante.
Trabalhamos no sentido de uma espécie de ontologia sem transcendências da
arquitetura, porém, este ser é nomeado de fora, das suas relações com outros campos, da
amplitude de seu sistema compreendido em sua abertura. Traçamos uma ontologia no sentido
de averiguar este ser, de lhe conferir um nome. E este nome dado de fora vem do processo
construtivo sempre incompleto: é a incompletude da construtura que nomeia nossa versão de
arquitetura. Podemos, então, afirmar a correspondência da arquitetura com a tradução, porque
a arquitetura precede o nome próprio. Enquanto vivida é intraduzível, mostra suas
transformações recorrentemente e não deixa de requerer uma continuidade suportável. Parece-
PARTE IV – Considerações penúltimas
124
nos, então, que a arquitetura sempre será nomeada depois da construção. As construções de
múltiplas Torres de Babel parecem não ter fim.
Para não encerrarmos nossas investigações incompletas, recorremos ao empenho
literário dizendo do apagamento da fala arquitetônica para dar lugar ao poeta. Teoria como
quase literatura que pode ser lida como anexo: parcialidade lançada para fora deste trabalho,
esboço penúltimo. Dizem que as conclusões são as partes poéticas, mais livres do trabalho
acadêmico. Pois, que a conclusão da conclusão seja:
2. Narrativa da casa afrontada
Sem o retalho do verbo, a pedra lascada. A precedência da cantoria e dos movimentos
intraterrestres, os bétilos sabe-se lá de onde, o sol deixando de babar. Cantaria. A razão.
Vistoria da palma-da-mão e das pontas-dos-dedos. São as mulheres as portadoras, com
toda a razão, que entendem da casa, do amor, dos filhos. Enredam-se com as palavras e os
poetas figurais femininos as fazem ex-musas: e Hölderlin já sabia, por isso ao pó quase voltou.
Quase-molécula. Na arquitetura, a origem, partícula mínima do original do qual partiram todas
as formas, as traduções infinitas, este empenho construtivo, nos é impossível chamá-lo antes
das pedras feitas tijolos cozidos e do betume feito argamassa. Mas chamamo-la porque
desritualizada esta mítica diz da impossibilidade de qualquer origem que não se faça aqui e
agora ou quando a pregnância era lábio ainda antes do raio irado instaurador das linguagens.
Mentira ao espelho enviada por setenta anjos tuberculosos, os melancólicos de Dürrer
catadores dos restos solares. Pedras de cada texto que podiam uma frase, se esfarelaram.
Como as antigas imagens das sereias habitantes celestes e cantoras do poder balbuciar,
convertidas em metades peixes. As pedras, então, silenciaram. Espirros dos deuses. Pedras
lançadas no lago com o ruído externo e longo: extenso e não pára de reverberar.
Podíamos forçar a arquitetura a falar?
Diante da afirmação da palavra como um vírus extra-terrestre, a insistência perturbante
de Burroughs, Hélia Correa são as mulheres que entendem da casa –, recuando até antes da
metáfora, aponta com os dedos e acusa as pedras. Diz ao portar a mnemônica de Delfos:
“Vejo o sol, ainda fresco, ainda molhado pelo seu nascimento, sacudindo os pedaços mais
PARTE IV – Considerações penúltimas
125
soltos de seu pêlo que vêm despenhar-se contra o chão. E esses meteoritos são as pedras que
trouxeram com elas a linguagem”
183
. Ela ainda identifica em Artaud, os Bétilos, Pedras de
Bel feita de resto solares: “São fagulhas carbonizadas do fogo celeste. Seguir a sua história é
regressar a origem do mundo criado”
184
.
A linguagem veio do céu, da ira divina, essa exterioridade das coisas, marca da
diferença. Bétilos viraram e dispersaram a razão pelo mundo. A língua veio também do
sexo da terra. Movimento sem ordem de seu interior. É também a pedra do exílio do grego,
homens que requeriam a razão. Poetas. Antecedentes das maravilhas do mundo antigo, o sol e
a memória mineral. Narrar esta memória é trazer a própria formação da terra, os restos solares,
o vírus sabe-se de onde adaptado às formações vindouras intra-terrestres. Em suma, o verbo
é carne isenta de sua origem particular.
Será ainda a arquitetura capaz de trazer em sua matéria meteorítica ou intra-uterina o
vírus da palavra? Um silvo débil emite o nome próprio intraduzível da arquitetura?
A loucura de Hölderlin, ataque das palavras pelas paredes da casa, como reescreve
Maria Gabriela Llansol, são as mulheres cheias de razão da casa. A loucura de Hölderlin
adivinhada pela casa, pelo olhar:
“________ Hölderlin sentou-se silencioso à minha frente que sou casa não
disse nada mas eu conhecia quais eram seus verdadeiros pensamentos pela
inconstância de seu olhar; olhar
Que me era dirigido, longa e baixa,
Que terminava nas paredes, e principiava nas janelas”.
185
Olhar de pregnância à palavra, primeira suspeita da casa da suspeita daquilo que Hölderlin
sabia que a nomearia e a forçaria a falar a contragosto. Os poetas também têm lá seu
entendimento da casa. Razão feminina. A casa não suspeitava de sua presença poética.
Resmungava: “pensa para si ignorando que ouço e vejo”
186
.
Ignorância da sua fala? A casa fala de suas matérias próprias, fala de seus poros onde
ainda se alojam as poeiras capazes de contaminar as cabeças desavisadas. Mas Hölderlin não
estava desavisado e suspeitava o bastante para querer se livrar dos espelhos.
183
Cf. CORREA, H. A escrita insuportável. In: BRANCO, L; BRANDÃO, R. (org.). op.cit. p.175.
184
Ibidem. p.176.
185
LLANSOL, M. Hölder, de Hölderlin. Sintra: Colares, (19? ?). s/ numeração de página.
186
Ibidem. s/ numeração de página.
PARTE IV – Considerações penúltimas
126
“Não suporta que haja espelhos na casa pôs-se a fazer aparecer, verbalmente, figuras
luminosas sobre a sua própria espádua, e deixou-se ir vagando sobre mim apertando o cabelo
sobre a nuca”.
187
A memória da própria casa diz mais da memória biológica do que da narrativa histórica
de seus habitantes. O Egito construiu suas pirâmides. Seu olhar “região-abarcada-pelo-olhar”,
paisagem, primeira cisão do domínio, recaída que o despossuíra da palavra. A casa passava a
falar para ele ouvir, tinha direção em seu retrocesso. “(...) tudo principiava pelo som o som
de fazer o último poema”.
188
Sombras e barulhos pela casa, fumaça e os corpos se perdendo.
Hölderlin acertou em sua suspeita e com o balbuciar avante pré-babélico, com as palavras
sopro enfrentava a pretensa incomunicabilidade da casa. Silenciava e grunhia.
“Por que se perdeu ?”, perguntou Joshua.
“Diz-me, Hölderlin, como se diz, na tua língua, distante como a palma da
mão?”
“Uuu”, repondia-lhe.
“Repete, Hölderlin, eu nunca sentira arrependimento por partir, nem
remorsoss por ficar”.
“Iii”.
“Diz-me, Hölderlin, a tua razão de partir não foi o amor?
“Ooo.”
189
Ressonâncias particulares, partículas de pedras da Síria que a Europa insistiu em pilhar sem
entender bem o que a aguardava depois do século XVIII. Morreram por apego à poesia.
Nosso legado, que vocês hão de querer, vem da margem da incomunicabilidade. Não
categorizamos e muito menos precisamos a loucura. Acreditamos na possessão. Mais fácil a
crença das palavras a balbuciar, a balbúrdia, o inferno dos outros, as versões do otimismo.
A casa solta vagas obscenas. Obsta a paisagem dela mesma, o motivo poético. Pedra lascada
contaminada, esparramado feito pólen sobre os olhos desavisados. Desde então, têm sido
feitos desenhos, condenação circular da construção em não progredir. O da pedra escoou
pelos dois rios que circundavam o mundo: civilizou-o. Do raio para o rio para a cerca. Os
pássaros cantores deixaram de ser confundidos com as sereias que passaram a habitar as águas
onde os raios de sol não as acometem. Estourada e vôo.
187
LLANSOL, M. Hölder, de Hölderlin. Sintra: Colares, (19? ?). s/ numeração de página.
188
Ibidem. s/ numeração de página.
189
Ibidem. s/ numeração de página.
PARTE IV – Considerações penúltimas
127
Passeio no campo das mulheres elétricas, multiplicidade. A todas amou e ainda hoje lhe
escrevem cartas.
Paredes da casa escutando Eletricladyland. Agora a casa vai ter que escutar. lderlin
vai ensurdecê-la ou endoidá-la, fazendo-a ouvir a circulação do ar e do sangue de seu próprio
corpo. Sua pele branco sobre parede creme, em pequenos trechos arrebentada. A pintura onde
parei ou o que eu fui depois de mim. Acúmulos nos cantos, cantos de pilhas e pilhas de papéis,
objetos n+1. Suportes de cadeira e lustres inúteis a adornar, cristaleira de quadro de avisos,
calendários de borracharia. Tantas quase-paisagens mudas. Tudo sedimentando como
cansado de voar e nada fenomenológico. No entanto, sexos em seus tamanhos naturais passam
por ali, paredes escutando Eletricladyland. Não adianta tapar os ouvidos se até o ônibus
passando de madrugada te faz vibrar, esta freqüência que te arrasta e te desvela como causa
segunda da palavra. Passado a limpo? Preto sobre branco.
Infiltração pela cobertura. Casa úmida calada, loucura compartilhada e dissoluta,
Hölderlin restituído a uma lucidez estranha da pedra balbuciante. Visível cantura. Passeio na
terra da mulher elétrica, mas não sem risco. A coisa crua, a pregnância é a força da forma. E
Hölderlin nomeou a arquitetura e, desde então, ela se calou. Chamou-a Bavel minha amada.
Preferiu ficar por lá, juramentando o que os outros confundiam com balbuciar. não podia,
quase-feminil, cheio de razão; não podia, quase-molécula, identificando o canto do .
Preferiu ficar perturbando a casa enlouquecendo-a por atrito. Virilmente, de tanto torturar a
casa, ela se calou para agora nunca falar. As pedras silenciaram e a mnemotecnia foi invertida.
E virilmente violando, deixou de ser poeta. A arquitetura passou a parir poetas e a guardar
livros. De Hölderlins Eusébius regressados do exílio com seus próprios nomes narradores de
uma memória mineral que já não entendemos e que vez em quando nos arrebata.
128
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