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Flávio de Souza Coelho
COMPREENDER-SE EDUCADOR MATEMÁTICO
JUIZ DE FORA
2007
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Flávio de Souza Coelho
COMPREENDER-SE EDUCADOR MATEMÁTICO
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Juiz de
Fora, linha de pesquisa, Linguagem,
Conhecimento e Formação de Professores,
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Educação.
Orientador:Prof. Dr. Adlai Ralph Detoni.
Juiz de Fora
2007
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TERMO DE APROVAÇÃO
Flávio de Souza Coelho
COMPREENDER-SE EDUCADOR MATEMÁTICO
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Juiz de Fora, pela seguinte banca examinadora:
_______________________________________
Prof. Dr. Adlai Ralph Detoni
(Orientador)
Programa de Pós-Graduação em Educação, UFJF
_______________________________________
Profª. Drª Sônia Maria Clareto
Programa de Pós-Graduação em Educação, UFJF
_______________________________________
Prof.ª Drª. Verilda Speridião Kluth
Programa de Pós-Graduação em Educação, UNICSUL
Juiz de Fora, 29 de março de 2007.
Aos meus amores
Ana Claudia, Mateus, Moisés e CAMILA, nascida
no dia de defesa desta dissertação.
AGRADECIMENTOS
A experiência deste trabalho também foi uma experiência de relações vivenciadas. não sou
o mesmo eu, aquele do dia zero.
Sou grato a diversas pessoas que vieram tocar em mim, minhas significações, constituir minha
pertença a um mundo cultural. Sou acolhido e acolho sentidos dessa vivência pelas palavras
de Merleau-Ponty. Palavras às quais habito e trago para agradecer, não no sentido de
demonstrar uma satisfação pura, mas uma agradabilidade pela nossa co-existência mundana.
E Merleau-Ponty ensina-me percebê-las meus semelhantes, pessoas com as quais meu campo
existencial foi-se revelando fonte inesgotável de ser, e não somente de ser para mim, mas
ainda de ser para outrem, com os outros que me possibilitam ver um mundo menos opaco,
sem, contudo, pretender à transparência total.
Talvez não consiga descrever todos os nomes, mas todos que até aqui ajudaram-me a ver o
mundo, configuram minha expressão no mundo e, com eles, foi-me possível experienciar este
trabalho.
No âmbito acadêmico,
É um dever começar agradecendo ao meu orientador, Adlai, por acreditar e acolher-me desde
a proposta de projeto de pesquisa, no ato de seleção ao programa. Mais que orientador, um
companheiro de estudos, uma abertura a um intermundo cultural, acadêmico e relacional.
Das Marias, a Queiroga me convida para a festa do acontecer [aí falamos de Tiago Adão
Lara]. Convoca-me a um banquete, com o propósito de uma educação pela matemática, uma
vivência que faça sentido estar-no-mundo, sendo professor de matemática.
À também Maria, a Sônia --- Clareto, um sentido de luta contra a perda do potencial de
inventividade é percebido/compartilhado em cada encontro, cada aula, cada banquetear.
Pelas oportunas e enriquecedoras contribuições de Soninha (Clareto), Garnica, Verilda e
Márcio Lemgruber, pessoas participantes das bancas de qualificação e/ou defesa, cujas
sugestões tornaram este trabalho mais rico em possibilidades de interpretações e, ainda,
abriram-me o olhar para outros sentidos do texto.
Os alunos que me cederam o estar-no-mundo sala de aula. Agradeço, especialmente aos
alunos Lacerda, Érica, Laís, Carneiro, Mariana Lima, tor, Priscila Lima, Caio, Carolzinha e
Arthur, por emprestarem-se suas palavras na constituição deste trabalho, tornando-se
presenças indispensáveis aos meus objetivos de pesquisa, bem como à Professora Valquíria,
que passou a integrar o corpo de sujeitos de investigação.
À Regina Meirelles, incansável na trajetória de estudos, uma atuação que, para mim, teve um
sentido de co-orientadora, auxiliando-me na compreensão da proposta hermenêutica, pelos
textos de Ricoeur. Laura, valeu. Com você, também pude interpretar melhor Heidegger e
Ricoeur.
Com o Crochet, uma educabilidade “filosofar” situou-me num campo em que seu olhar de
professor de Filosofia, na escola em que trabalho esteve sempre comigo, nos intervalos e nos
corredores, iluminando minhas intenções de pesquisa.
Com a Professora Cássia Segrégio, revisora deste texto, um desenho semântico o organiza
melhor, trazendo fluidez às suas linhas gramaticais.
Pelo invariável apoio pessoal, incentivo e pelo trabalho de tradução do abstract, Simone
Pironi faz-se presente.
No suporte técnico, com Luciano, Adolfo, Luis, Rodrigo e André Luigi, profissionais da
Seção de Informática do colégio onde leciono, as configurações de imagem e de formatação
foram possíveis.
Agradeço especialmente ao Víctor, Luciano e Adolfo, pela colaboração no desenho da “Rede
Ideológica”.
Aos professores, servidores de secretarias, de serviços, diretores, que comungaram comigo
uma trajetória da pré-escola ao mestrado, por mostrarem-me que não é possível caminhar
sozinho.
Ao pessoal do “xerox”, Carlos Eduardo, Alessandro, Philipe e Rafael, com os quais as
impressões de textos nos foram providenciadas de modo sempre competente.
Pela companhia, no ambiente de pesquisa, de meus colegas deste Curso de Mestrado, a textura
de convivência supera a estreita cronologia de dois anos. Quero focar no relacionamento com
as colegas que investigam em Educação Matemática, Fabíola, Fernanda, Cristiane, Margareth
e Silvana, com as quais os discursos convergiram em ocupar-nos de um refletir o humano pelo
papel pedagógico no ensino de matemática escolar.
Pela coordenação deste PPGE, uma organização que nos permite transitar bem no vai-e-vem
de créditos, documentos, etc..., contando com o inestimável apoio de secretaria pelas pessoas
de Getúlio, Adriana, Margareth, Nilce, Marisley.
Pela intersubjetividade vivenciada com a professora Claudia, na intenção de uma prática
pedagógica em educação pela matemática, perseguindo possíveis sentidos para objetos
matemáticos veiculados no mundo-vida escolar, um aprendizado significativo: é possível
acreditar numa escola menos solipcista.
No âmbito pessoal,
Devo começar pelo meu pai, José de Resende, e minha mãe, Maria, expressões de amor,
responsabilidade e respeito, origem do mundo de minha vida, existência, possibilidade de
estar-no-mundo.
De minha esposa, Ana Cláudia, e meus filhos, Mateus e Moisés, percebo mais que ajuda.
Foram meses de abstinência, recolhimento e distanciamento de um convívio mais próximo,
mas tínhamos um tecido comum de intenções. Foi necessário. A eles meu carinho, com amor.
À Camila, presente de Deus, obrigado pela sua existência. Com a sua chegada, este texto teve
outro sentido.
Com os meus irmãos e minhas irmãs, e respectivas famílias, pela força e um motivo para, com
a educação, constituirmo-nos familiares.
No ambiente de trabalho, onde misturamos nossas experiências, Claudia, Flávia, Silvana,
Valquíria, Wagner, Luiz Carlos, Sérgio, Irla, Roberto, Aristeu, Rejane, Renata, somos
solidários na vivência ideológica, ao concebermos objetos matemáticos como entes culturais,
tentamos ultrapassar a visão mecanicista de uma educação pela matemática.
Do (a)s colegas que atuam no mesmo ambiente de trabalho, mas em outros campos do saber, e
que, no fundo cultural comum, recorro-lhes sem embaraços, e com os quais percebo
possibilidade de intercomunicação entre as “áreas” de ensino.
No âmbito espiritual,
Jussara Goretti é presença, luz, possibilidade de viver pela humanidade, um sentido de viver
pelo sentido da existência do outro.
Nos outros âmbitos, por todos que, de algum modo estiveram comigo nessa trajetória,
agradeço-lhes.
“... a palavra de outrem não somente desperta em
mim pensamentos formados, mas ainda me arrasta
num movimento de pensamento de que eu não teria
sido capaz sozinho, e me abre finalmente a
significações estranhas. É preciso então aqui que eu
admita que não vivo somente meu próprio
pensamento mas que, no exercício da palavra, eu me
torne aquele que escuto.”
MERLEAU-PONTY
RESUMO
Este trabalho pretende ser um texto descritivo pelo qual se possa vislumbrar uma compreensão
do ser educador matemático no mundo-vida escolar. Trata-se de uma interpretação da
interpretação de uma vivência com um grupo de dez alunos de quinta série do Ensino
Fundamental, a partir de uma situação de discurso, quando, ao falarem sobre matemática,
possibilitaram-me uma visão mais ampla do que a tradição usual nos impõe.
Ao transcrever o que me pareceu ter sido dito, pelo recurso de gravação em fitas k-7, um texto
escrito pôde ser constituído e, das fagulhas de significados, percebidas por mim, outros
sentidos do ser educador matemático tornaram-me menos próximo à concepção solipsista de
conhecimento, realidade e educação.
À luz da fenomenologia, principalmente com Merleau-Ponty e da Hermenêutica
fenomenológica, sobretudo com Paul Ricoeur, as interpretações convergiram em categorias
abertas, solicitando-me descrevê-las em termos como Aritmeticidade, geometricidade,
pedagogicidade, perspectividade e educabilidade filosofar, admitindo-as como fenômenos
ideológicos. Ideologia, aqui, tem um viés que constitui a pertença de um grupo cultural no
sentido hermenêutico descrito por Ricoeur, e, portando um fenômeno.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Matemática. Fenomenologia. Hermenêutica. Ideologia.
ABSTRACT
This work intends to be a text consisting of descriptions througt which professionals can
glimpse an understanding of the being a mathematical educator in the world-life. It deals with
a group of ten fifth grade pupils of Ensino Fundamental, in a situation of speech. Based on
their speaking, it became possible to extend my vision from of the formal tradition usualy
imposes to one more realistic and centered in education.
From sparks of meaning, captured in recordings, it was perceived by me other ways of being a
mathematical educator, more distant of the solipsista conception of knowledge.
Iluminated by the fenomenology, mainly in Merleau-Ponty and Paul Ricoeur
phenomenological hermeneutics, the interpretations had converged in opened categories,
which requested me to descibe them in terms as Aritmeticidade, pedagogicidade,
perspectividade and educabilidade to filosofar, admiting them as ideological phenomena. It is
interesting to stand out that ideology has a bias in this study, which means, belonging to a
cultural group in the describle hermeneutic direction for Ricoeur, and, therefore, a
phenomenon.
Keywords: Mathematical Education. Phenomenology. Hermeneutics. Ideology.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................................12
I – INTRODUÇÃO ..........................................................................................................15
II - UM CAMPO PARA A INVESTIGAÇÃO....................................................................35
III – TRAJETÓRIA METODOLÓGICA............................................................................39
IV - PERSPECTIVAS DE COMPREENSÃO DAS FALAS.............................................41
V – CENAS PARA A COMPREENSÃO DAS MENSAGENS........................................43
VI – AS CENAS E MINHAS INTERPRETAÇÕES..........................................................44
VII - DAS CATEGORIAS ABERTAS, RUMO À INTERPRETAÇÃO...........................84
VIII - APRESENTAÇÃO DE UMA REDE IDEOLÓGICA..............................................85
IX - INTERPRETANDO AS CATEGORIAS ABERTAS.................................................87
X – UMA INTERPRETAÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA VIVIDA..............................100
XI - CONSIDERAÇÕES PARA RECOMEÇOS.............................................................105
XII - REFERÊNCIAS........................................................................................................109
APRESENTAÇÃO
Pela experiência perceptiva eu me afundo na espessura do mundo
Merleau-Ponty
A Matemática que a tradição privilegia conduz ao ceticismo, pois ela faz aparecer cada
um de seus objetos como entes puros e se fecha ela própria em seus algoritmos e propriedades.
Mas esse universo de objetos também possibilitou uma expressão, uma experiência vivida,
com a qual e a partir da qual este texto foi desenhado.
Um texto, cuja subjetividade inalienável dos códigos tornou capaz de compreender
algumas subjetividades apagadas de que a matemática objetiva me dava traços. Vejo-me
ensinando e aprendendo com os alunos-sujeitos, num ambiente em que, na busca de
compreender-me educador matemático, me percebo melhor que antes. Melhoria no sentido de
ter superado-me ao vivenciar outros sentidos na minha existência, no meu estar-no-mundo
como projeto educativo.
Inspirei-me em meus educadores matemáticos da escola básica em Vista Alegre,
povoado onde nasci e tive as primeiras caminhadas pelo espaço escolar; da Escola Estadual
Manuel Inácio Peixoto, em Cataguases (MG), onde cursei o ensino secundário e da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Cataguases, onde concluí a educação Superior. Mais
diretamente ligado à pesquisa, nos entre espaços da Universidade Federal de Juiz de Fora,
inspirei-me nos educadores matemáticos Adlai Ralph Detoni, Sônia Maria Clareto e Maria
Queiroga Amoroso Anastácio. Minha intenção de trabalho também foi (e é) uma luta contra a
perda de potencial criador que a prática tradicional parece instalar no professor, quando a ele
faz sentido agarrar-se às certezas e às verdades imutáveis de sua disciplina; quando a noção de
currículo prende-o às grades curriculares entendidas como aprisionamento; quando avaliar
significa apenas verificar se uma técnica operatória foi reproduzida tal como transmitida;
quando não se vislumbra a possibilidade de pesquisar o que é educar pela matemática; quando
a aritmeticidade se resume em técnicas de operações aritméticas, a geometricidade se confina
em reconhecer figuras geométricas segundo uma classificação sacramentada; quando a
espacialidade apenas lhe permite conceber o espaço físico mensurável, a pedagogicidade não
transgride o que está prontinho para ser aplicado; quando a perspectividade é una e atrai todos
para um mesmo situar-se; quando uma educabilidade filosofar não está presente em seu
projeto educativo, cujo papel principal é ensinar conteúdos; quando as possibilidades de
vivências desses fenômenos que considerei ideológicos não estão no seu horizonte projetival.
Enfim, parece-me que isso começa quando o professor se perde nas fendas onde habitam os
monstros de uma pedagogia que somente lhe um caminho no qual se esmaecendo-se,
dissipando-se, aniquilando-se, mutilando-se, ou num contexto mais restrito, nem se a si
próprio.
Esta pesquisa não pretende ser uma carta de tarefas para solucionar questões
educacionais, nem de ensino de matemática, mas uma descrição de uma interpretação, tendo a
educação como ocupação geral e, mais focadamente, a educação pela matemática.
A questão em foco - o que é matemática para os alunos que constituem o grupo de
discussão no campo de pesquisa - desdobrou-se numa tentativa de compreender-me a mim
mesmo, enquanto educador matemático. Esta apresentação não é um delineamento de passos
que foram seguidos, mas uma organização que me pareceu pertinente para compor o corpo da
dissertação.
Preferi não capitular nem seccionar, com a intenção de possibilitar uma leitura a partir
de qualquer um dos temas que abrem cada texto. Sendo assim, esta dissertação pode ser
considerada um texto no qual outros textos estão inseridos. Com os primeiros textos, faço uma
narrativa situando-me como educador matemático, num desenho onde os traços, às vezes não
tão claros e objetivos, situam-me numa temporalidade, numa historicidade, numa
racionalidade formal, numa intencionalidade.
O campo para investigação constituiu-se com um grupo de dez alunos de quinta série
do ensino fundamental, meus alunos na época de coleta de dados. Esses dados foram sendo
solicitados por mim, enquanto buscava uma compreensão de nossas vivências escolares. Os
textos escritos representam os discursos, articulados nas cenas, obtidos a partir de transcrições
do que suas falas pareceram-me dizer, ao ouvir as gravações em fitas K-7, vivenciados em
dois encontros.
Para interpretar esses discursos em cenas, tentei ancorar-me em uma postura
hermenêutico - interpretativa, tendo como substância teórica a Fenomenologia da Percepção,
de Merleau-Ponty e a hermenêutica de Paul Ricoeur. As cenas foram interpretadas de acordo
com as temáticas sobre as quais eu percebia estarem cuidando: a primeira cena foi uma
abertura, um pré-texto para as demais, que trataram da infinitude da matemática, da limitação
de um sistema de numeração, da base da matemática, da descoberta ou da invenção, o infinito,
da geometria e da presença do outro, juntamente com a participação de uma professora que
chega ao espaço de discussões.
Das interpretações, percebi fazerem sentido cinco categorias abertas, vistas na
perspectiva de fenômenos ideológicos, num sentido de ideologias, proposto por Paul Ricoeur,
cuja abordagem é diferente da tradição marxista: Aritmeticidade, geometricidade,
espacialidade, pedagogicidade, perspectividade e educabilidade filosofar.
I - INTRODUÇÃO
0 - UM DIA ZERO
Um dia me percebi sendo outro professor. Uma nova vivência desprendia, de mim, as
sólidas e herméticas convicções impregnadas em minhas atitudes e posturas pedagógicas,
sustentando meus argumentos acerca de objetos matemáticos até aquele momento.
Zero é um insight que me situa num começo para esta discussão. Um zero que utilizo
para descortinar esta proposta investigativa tem um sentido de pré-texto ou de uma
provocação que me remete a um campo de reflexões inserido neste trabalho.
Um objeto matemático, carregado de discussões em relação a sua inclusão num
conjunto de números que tem uma ambígua denominação de “naturais”, também se
presentifica nas falas dos alunos, tornando-se um ente que passa a merecer cuidado ao se
perguntarem: “qual é a base da matemática, o zero ou o um?
O zero, evocado nesse movimento, tem uma presença distinta daquela voltada às
compreensões de suscetibilidade, ancorada numa axiomática, que se pretenda defini-lo como
válido ou não e, às vezes, comparado ao vazio. Posso até pensar numa sucessão como um
modo de trazer o zero a esta cena, mas seria diferente e distante da concepção de vazio ou da
ausência de algo. Aqui, há um movimento, uma tentativa de ganhar vida, marcada pelo
deslizamento de um morto à busca de sentido. Uma fronteira na qual se afastam posturas que
cedem lugar à aproximação de novos fazeres pedagógicos.
Um dia decidi ser professor de matemática. Na minha trajetória de estudante, o
conhecimento matemático vinha se constituindo de modo linear e progressivo no que diz
respeito ao seu grau de complexidade
1
. Reabro esse vivido e me encontro com as operações
aritméticas que eram passadas no quadro-de-giz. Durante alguns meses eram de adição, depois
subtração, multiplicação e divisão, nesta ordem, extremamente mantida de modo que, ao final
do ano, as quatro operações tinham de estar na “ponta da
língua”. Esta era a expressão utilizada na época para indicar o que se deveria saber de cor, ou
seja, saber repetir prontamente.
Decorar era a ordem dada em todas as disciplinas: os questionários de história,
geografia e ciências com os respectivos mapas e gravuras, bem como as regras gramaticais da
Língua Portuguesa. Decorar nos solicitava atitudes mecanicistas no cuidado com o saber
1
Complexo, aqui, ressoa como tradicionalmente se considera dificuldade à compreensão dos objetos
matemáticos.
escolar, enfatizando a objetividade e a unicidade de compreensões acerca dos objetos
pedagógicos.
Reencontro-me, ainda, com as listas de exercícios que esgotavam a seqüência de letras
do nosso alfabeto e, às vezes, até retornava à seqüência. Aí eram as expressões numéricas com
parênteses, colchetes e chaves, e eu me enchia de satisfação quando chegava aos resultados
finais e as respostas estavam corretas, de acordo com os gabaritos. Este procedimento repetia-
se com as frações, equações, polinômios e radicais. A geometria era pouco argumentada.
Ficava discreta, no final do livro, esperando as férias escolares para se cumprir o desejável:
intocada por ser comparada a um monstro, temido por aqueles que se consideravam não afins
com o ramo das chamadas disciplinas exatas.
A matemática escolar era reprodutora de conteúdos formais, internalizando os sentidos
de existência em si mesma e sem a pretensão de convergir à sua originalidade no humano
como um modo de ser algo que tivesse sentido no mundo vivido. Tinha que ser sistematizada,
alicerçada na Linguagem dos Conjuntos, focada em símbolos e representações, o que a
aproximava de uma matemática produzida pela comunidade acadêmica dos matemáticos.
Ficavam, às margens, os significados históricos e culturais dos objetos matemáticos. A
matemática tinha que ser moderna
2
rejeitando a tradicional e clássica postura educacional.
Iniciei minha graduação pretendendo ser professor de matemática, em 1985,
impregnado dessa visão mecanicista acerca dos objetos de ensino. Sentia-me cada vez mais
alimentado de admiração pela rainha das ciências, assim entendida com as inspirações
cartesiana e positivista. O único sentido que as equações diferenciais representavam, para
mim, fossem elas ordinárias, lineares, parciais, homogêneas etc., era um modelo de ordem e
de beleza; um mundo que, para ser compreendido, necessitava compreender suas partes
decompostas e dispostas das mais elementares às mais complexas.
A primeira aula que lecionei, em 1988, não foi encerrada. Dar um passo atrás é um
movimento que me possibilita viver cada aula, hoje, como uma reelaboração daquele primeiro
encontro com alunos. Uma tentativa de constituir uma experiência vivida, refletida, melhorada
no sentido de não considerá-la completa, perfeita e pronta para servir como modelo a ser
aplicada, isentando-me de posturas que apenas evocam repetição de crenças e posturas. Quero
sim, cada aula como uma experiência.
Esse rever e reelaborar mostram-me um início de carreira condenado pelos desígnios
de uma escola hermética, fundamentada numa crença de educação que se valesse como
2
Sobre o Movimento de Matemática Moderna, Ana Maria Stephan, Sônia Maria Clareto e Viviane Cristina de
Oliveira realizaram uma pesquisa com professores em Juiz de Fora e região, refletindo sobre esta vivência, sendo
publicada na revista Educação em Foco, v. 5, n.1.
garantia de acesso ao progresso e ao desenvolvimento humano, voltado estritamente ao âmbito
científico e tecnológico. E minhas atitudes estavam ajustadas a este modelo. Eram coerentes
com o sistema educacional, acordado em primazia entre as pessoas que viviam o cenário
escolar. A disciplina matemática, considerada a mais importante e a que mais colaboraria para
atingir esse intento, e, ainda, base para a compreensão do mundo físico, também era a mais
excludente. Dentro ou fora do cenário escolar, dos concursos e seleções aos altos índices de
retenção nas diversas séries, expressiva quantidade de alunos sem “médias” nas provas, o que
acarretava um elevado número de alunos em recuperação e, ainda, professores tachados de
“carrascos” e outras denominações pejorativas sempre associadas ao fracasso na escola.
Esta faceta do ensino causava-me incômodo e me trazia à reflexão em torno de
possíveis atitudes que deveria assumir. Não sabia como, e, evidentemente, ainda não sei
plenamente.
Apenas percebia-me capaz de buscar outras maneiras de transitar com os objetos
matemáticos, sem a intenção de conquistar conformismos e adesões no âmbito de notas mais
“agradáveis”. Como? Perguntava-me. As buscas em manuais pedagógicos, tradicionalmente,
anexos ao livro do professor eram vãs, seus conteúdos não respondiam a estas questões.
Percebia as angústias aumentarem na medida em que meu olhar abarcava mais a sala
de aula, ou seja, o cenário de aula, para mim, cada vez mais, deixava de ser constituído apenas
por paredes, carteiras perfiladas, quadro-de-giz, giz, aluno e professor. Passei a compreender
também, como sala de aula, a fala do aluno; suas intenções enquanto pessoa, seus projetos,
seus modos de conceber objetos matemáticos, seus movimentos, suas atitudes.
Sem a experiência acadêmica ou mesmo de formação continuada, envolvida por
estudos no âmbito filosófico, seja da matemática seja da educação matemática, minha
vivência pedagógica foi sendo mediada pela própria experiência no estar em sala de aula
ouvindo, refletindo, adequando
3
a argumentação ao auditório. Posso compreender essa
experiência como uma vivência focada na linguagem matemática; na escola que, segundo
Garnica (2001, p.45), evoca um discurso pedagógico que deve “reconhecer a pluralidade das
formas de ensino e aprendizagem de matemática”, entendendo que a comunicação, na prática
pedagógica, deve estar aberta a pluralidades “contextos educativos distintos são distintos
mundos, comportando pessoas distintas” (Idem, p.46).
Considerar a prática argumentativa mediadora na educação matemática, no momento
em que me encontro, enquanto educador/pesquisador traz, à cena, alguns estudos realizados
por Chaïm Perelman que nos auxilia a ver, neste enfoque, uma possibilidade de o educador
3
Adequar, neste texto, tem o sentido de tornar possíveis as compreensões acerca de objetos matemáticos,
buscando significações que, neste caso, convergem para a prática pedagógica.
matemático permitir que o seu auditório, personificado pelos alunos, vivencie as situações
num espaço constituído também de comunicação, diálogo, e discussão. É claro que, para isto,
é necessário se perguntar: Como desejo a adesão do auditório sala de aula de matemática?
Como permitir que os discursos produzidos rompam as fronteiras de autoridade dos
algoritmos?
Neste sentido, Perelman (1997) lança luz ao nosso olhar quando declara que é em
função do auditório que toda argumentação deve se organizar e, ainda, que o orador busque
conhecer o auditório. Conhecer o auditório solicita-me perceber as múltiplas manifestações:
como o meu aluno transita com os objetos matemáticos em debate? Como ele fala de? O que
ele escreve sobre? Como ele gesticula para? Como ele compreende suas facetas históricas,
sociais, escolares, políticas e outras?
Estas atitudes possivelmente oferecem lugar às subjetividades, convergindo às
intersubjetividades e, neste aspecto, compreendemos, em Perelman, que o discurso objetivo e
o universalmente válido não se definem na argumentação por o abrigarem uma
controvérsia, uma possível crítica e, ainda, prezam por uma ontologia e uma epistemologia
que privilegiam a evidência e a intuição irrefutável tais como presentes na técnica
argumentativa cartesiana.
Não tenho a pretensão de, ao abordar esta nuança do campo argumentativo, extirpar as
afetabilidades com as quais o pensamento cartesiano vem constituindo os modos de conceber
o que se conhece, mas ao dirigir minhas reflexões para o local onde acontecem aulas de
matemática, pergunto-me sobre que sentidos fazem, neste campo da educação, os apelos às
persuasões racionais, presentes nos argumentos matemáticos, produzidos num e pelo campo
destinado à comunidade acadêmica dos matemáticos?
Vinculado à trajetória fenomenológica, pretendo trazer as contribuições de Perelman,
ao compreender que ela revela uma racionalidade inacabada e aberta, permite ampliação do
conceito de auditório com uma filosofia que, segundo Lemgruber (1999), combate o monismo
metodológico e “bate de frente” com a tradição do pensamento ocidental, indo muito além da
discussão das limitações internas à construção dos sistemas, nos quais, segundo Garnica
(2001, p.46), os textos científicos são, radicalmente, formalizados e nos quais os discursos
tratam de formas de matemática em estado nascente.
Sem a intenção de valorar as posturas pedagógicas que venho assumindo, ao me
despertar para a compreensão do outro, admito que hoje minhas atitudes são bem diferentes
daquelas incipientes em minha trajetória de educador matemático, mesmo sabendo que alguns
cuidados já se faziam presentes em minha sala de aula. Porém, os tratamentos epistemológicos
vêm encontrando luzes e sendo aclarados desde a minha participação num curso de
especialização em Educação Matemática, oferecido pelo Núcleo de Educação em Ciência,
Matemática e Tecnologia, NEC, da Faculdade de Educação da UFJF, em 2002, e no início
deste curso de Mestrado em Educação.
O que é matemática para o meu aluno? Para a construção de um texto que acredito não
responder, mas sustentar uma possível discussão a essa pergunta, considero pertinente
perguntar ao meu aluno, para que a pesquisa também tenha sentido na minha carreira. Não se
trata de uma auto-avaliação, por acreditar que a aula que ministro não é melhor que uma aula
ministrada por outro alguém. É apenas outra aula. Todavia, para os objetivos deste trabalho,
entendia ser necessário ouvir alunos que estivessem vivenciando um processo ou uma postura
didática diferente da tradicional.
Mas, o que estou considerando diferente? Explicitar a prática pedagógica de trabalho
com matemática, no contexto escolar após essa mudança, limita-me no âmbito da sala de aula
de série, que é a série na qual tenho vivenciado o processo. Não pretendo, deste modo,
retirar as outras séries escolares deste campo de possibilidade de tratamentos significativos
com os objetos ou conteúdos matemáticos.
O que é, então, o livro didático para o nosso trabalho? Digamos que seja algo
incompleto, sendo uma das primeiras situações de crítica posta diante dos alunos ao fornecer-
lhes diversos autores e solicitar-lhes uma pesquisa, por exemplo, sobre tópicos de história da
matemática. Esta atitude já me possibilitou ouvir, de diversos modos a expressão: professor,
não há um livro que tenha tudo legalzinho...” “este aqui é melhor em...” “este aqui é melhor
para...” aquele ali traz melhor o assunto...” Amplia-se, aí, a idéia de livro, propiciando ao
aluno se perceber também no livro didático com suas opiniões, sugestões, críticas.
Dessacralizar o livro didático de sua pretensa unicidade de fonte de trabalho e
investigação tem provocado, inclusive, entusiasmo em explorá-lo com mais dedicação na
busca do que falta para a atividade proposta. Há, com isso, um olhar crítico também sobre os
exercícios quando, na tentativa de se fazer o que chamam de contextualização, percebem-se
situações incoerentes com a vivência, descontextualizadas e, portanto, sem sentido. Isto tem
provocado outro movimento interessante porque os alunos trazem suas revistas, jornais, livros,
depoimentos de pais, avós, familiares em geral, seus próprios depoimentos, interpretações,
seus textos escritos produzidos além de manifestações como gestos, olhares e inclusive
silêncios. Não há, portanto, o que decorar. o que falar, o que interpretar. um agregar
das contribuições de cada participante ao que formalmente existe no cenário escolar onde
ocorrem as situações de ensino e de aprendizagem.
Suspensa a questão de recursos materiais, podemos destacar, neste proceder, o ato que
permite manifestar a intersubjetividade no tratamento de objetos matemáticos. um recriar
constante de procedimentos pedagógicos, não cabendo, assim, em manuais de instrução ao
mestre; é um fazer que se desenvolve tentando, fazendo, refletindo sobre o realizado,
corrigindo, tentando completar, ciente do inacabável.
Importante ressaltar, porém, que esta atitude traz consigo inquietações e
questionamentos acerca da validade deste proceder didático, o que é inclusive esperado por se
tratar de uma postura que foge à regra do tradicionalmente praticado, ou seja, nossa
racionalidade tende a nos solicitar matemática apenas como um emaranhado de fórmulas,
algoritmos, símbolos, operações aritméticas, equações, figuras geométricas.
Criamos oportunidades para a escrita, com a qual os alunos transitam com objetos
matemáticos, abordando assuntos dos âmbitos político, científico, esportivo, religioso,
artístico, social, ou econômico e outros. Coerente com esta postura, a avaliação também difere
do tradicionalmente praticado. Não há um único gabarito. Há gabaritos. Com os textos
produzidos, é possível uma avaliação que se aproxime mais do modo como cada aluno se
abriu para aquela atividade. As respostas às questões dependem do modo de como o aluno
percebe e compreende tal objeto matemático, sem deixar de atentar ao rigor exigido na
coerência, atribuição de significados e ressignificação da matematicidade que é própria do
homem como ser no mundo.
A matemática escolar, nessa perspectiva, deixa de ser um texto pronto, acabado,
repleto de certezas absolutas, retornando, portanto, à sua gênese no humano: um texto
inacabado, aberto a interpretações, o que não deve ser confundido, entretanto, com um
descaso e um abandono total das verdades matemáticas historicamente constituídas; aliás,
entendemos como um avanço. Avanço no sentido de que se trata de um acordo pedagógico
4
entre a escola, representada pelo professor, equipe de pedagogos e os pais ou responsáveis
pelos alunos.
Acreditamos, assim, num ensino com o qual se possa experienciar a inclusão,
incluindo. Um sentido de Inclusão que abarca a difícil tarefa docente – não formado para tanto
- em ouvir o aluno, ler o que ele escreve, deixá-lo perceber-se co-autor, participante no fazer a
aula de matemática acontecer, superando a imposição unifacetada dos objetos matemáticos
como dados prontos e independentes do humano.
4
Um dos momentos do nosso planejamento consiste em nos reunirmos com os pais, mães ou
responsáveis pelos alunos, neste caso, da série, com o propósito de apresentarmos nossa proposta de trabalho,
tentando explicitar motivos que nos levaram a esta escolha de tratamento matemático, bem como algumas
possibilidades de avaliação.
1 - A PARTIR DE VIVÊNCIAS TENTO ME MOSTRAR COMO EDUCADOR
MATEMÁTICO
A tentativa de explicitar o vislumbre que permeia minha trajetória de educador
matemático, no âmbito da prática docente escolar, solicita-me algumas reflexões pertinentes
aos modos pelos quais tenho vivido e experienciado objetos matemáticos em
sala de aula, na situação de um professor que busca evocar atitudes pedagógicas que
pretendam possibilitar aos alunos compreenderem propósitos do fenômeno “matemática” e
manifestarem sentidos no estar com a matemática escolar. O vislumbre ao qual me refiro,
aponta-me uma investigação que pretende encontrar o aluno de matemática vivendo e
refletindo sobre o que vive, enquanto participante do que denominamos aula de matemática.
Problemas pedagógicos, no processo de ensino e de aprendizagem com matemática e teorias
de aprendizagem e modelos de ensino, não são objetos principais desta investigação, ainda
que sejam tangenciados.
Parece-me uma escolha que busca colocar meus questionamentos em evidência e, ao
mesmo tempo, evidenciar algumas concepções que tenho a respeito de educação pela
matemática. Assim pretendo considerar os momentos em que estou em aula com os alunos, ou
seja, momentos de educabilidades em que me educo e contribuo na formação educacional
destes alunos, sem o que, na minha visão, uma aula perderia o seu sentido de ser aula.
Percebo-me neste movimento, inserido num campo onde ser professor não me isenta
de questionar como é que experiencio o ensino de matemática nem de considerar as verdades
imutáveis, que tradicionalmente esta disciplina tenta impor, e os sentidos que ganham na
experiência vivida pelos alunos.
Prefiro me ver e às pessoas existindo nas ações dessa experiência e existência, aqui,
tem um sentido que supera o ato de viver estritamente biológico como um sistema
sincronizado de órgãos vitais. Heidegger nos possibilita compreender o humano como “ser-
no-mundo” – o dasein como o existente
5
num estar inserido em um mundo no qual
experimenta um ambiente umwelt -, num estar que supera a concepção de mundo como
ambiente apenas físico, objetivado e quantificado.
Abro-me numa visão, conforme Merleau-Ponty (1996), de que o mundo não é um
objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; “ele é o meio e o campo de todos os meus
pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas” (1996, p.6). Uma visão que me
permite, também, ampliar a abrangência de sala-de-aula como um todo cujo sentido se no
5
Vida e morte: não só a vida existencial se diferencia no sentido biológico; também a morte. Há várias
oportunidades de morrermos. Algumas vezes experienciamos a morte.
cotidiano vivido pelas pessoas que se interagem no espaço educacional, cada qual em sua
subjetividade, constituindo-se em “um pólo de intencionalidade, um ponto-zero a partir do
qual traça sua perspectiva de mundo” (BICUDO, 1999, p.46). Assim entendemos que cada um
é o seu ponto-zero, tem sua visão de mundo a partir de sua experiência vivida.
Desde que tomei contato com o olhar existencialista, venho questionando e buscando
alternativas para a prática de docente. Percebo que esta maneira de compreender a
constituição do mundo-vida escolar exige-me, ao lidar com os objetos matemáticos, um
cuidado para com estes, e que as atitudes pedagógicas, assumidas por mim, possibilitem
aberturas nesse entendimento, ou seja, exige um movimento que deixe cada aluno se
manifestar, mostrar-se como experiencia o objeto posto em discussão e, principalmente, que o
aluno se perceba como participante colaborador no ato de re-criar uma matematicidade na
fluidez daquela aula. Um recriar que desliza da objetividade de tratamento matemático a uma
atitude perspectival com esses objetos. Começou a acontecer, nesta prática, uma aula de
matemática capaz de ceder espaço para manifestações interpretativas dos educandos.
Por mundo vivido, entendo as afetabilidades para as quais o ser se abre e é afetado por
acontecimentos, que pretendo tratar como mundaneidades. Algumas mundaneidades me
tornam professor de matemática ou educador pela matemática, das quais tentarei descrever em
torno da temporariedade, da historicidade e da racionalidade formal, admitindo-as não como
acontecimentos isolados, independentes um do outro e que se dão mesmo quando não são
requisitados pelo ser, mas co-existências inerentes ao estar-no-mundo, que não se separam por
constituir um todo, sendo possibilitadores de reflexões acerca desta constituição. Uma
constituição da espacialidade, onde a existência relacional com os entes mundanos se
concretiza, vivencializa-se.
2 - A TEMPORALIDADE/TEMPORARIEDADE QUE ME LANÇA NO MUNDO
Aquilo que para mim é passado ou futuro está presente no mundo.
Merleau-Ponty
Se, em algum momento, volto minha atenção à temporalidade/temporariedade para ver
a minha carreira no magistério, me entendo estar num porvir, dessacralizando a noção de
passado, presente e futuro, porque o que eu entendia por passado ainda ressoa no meu
presente
6
. Posso admitir, ocupando-me dele, vivendo-o como uma interferência no agora,
numa tentativa de me lançar num acontecer não determinável. É um movimento que me
coloca, seja pela memória, recordação ou pelo realizado e até por outras ambientações em
meu projeto ingênuo de ser professor de matemática. Ingênuo por ainda não ter experienciado
o ser professor. A única experiência, nesse sentido, era a de ser aluno. Um aluno que não tinha
problemas na compreensão dos objetos matemáticos veiculados e exigidos pela escola.
Projetava-me, portanto, num porvir em que talvez não houvesse conflitos, porque iria
atuar numa disciplina que me era fluida e expressava-me um certo encantamento; desde as
séries escolares iniciais à pós-graduação latu-sensu em Cálculo Superior. Com o tempo
vivido, fui-me pondo à compreensão e à aceitação da necessidade de, enquanto educador
matemático, embrenhar-me em questionamentos, em atitude crítica e reflexiva sobre os
propósitos do meu ser-professor e como lidar com os objetos matemáticos numa perspectiva
não objetivante em termos de significados. A maneira tradicional de ensinar matemática foi,
para mim, sendo posta como uma interrogação.
Como Merleau-Ponty parece apontar, a temporalidade na qual tento retomar e
descrever minha carreira de professor nasce da minha relação reflexiva com a própria carreira.
O tempo, assim concebido, permite que o passado e o futuro se constituam no fluxo temporal
dela mesma, isto é, minha carreira não está no tempo que passa; ela é o tempo vestido dessa
carreira. Merleau-Ponty tem, na minha visão, a intenção de aclarar que o tempo é pensado por
nós antes das partes do tempo, compreendendo, assim, que o tempo nunca está completamente
constituído. Daí, o que tradicionalmente consideramos uma série de relações possíveis,
segundo o antes e o depois, não é o próprio tempo, “é o seu registro final, é o resultado de sua
passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender.”
(MERLEAU-PONTY, 1996, P.556). É interessante eu fazer essas digressões que, como
professor de matemática, lido com a organização temporal, exposta na álgebra, na aritmética e
6
Minkowsky nos fala de um passado em aberto, a ser realizado (contra a noção corrente), sendo o futuro
o plano dos projetos de sua realização. De fato, conto meu passado de maneiras distintas, assim que vou
compreendendo os outros que sou.
mesmo na geometria. Ponho-me a questionar-me se o tempo, enquanto seqüência ou sucessão,
o tempo total que, em seus subconjuntos, permite os números, o tempo do qual falo, vestido
de objetos matemáticos, é apresentado segundo esse pensamento objetivo ou se consigo tornar
didático o tempo das vivências. De qualquer modo, vou compreendendo que meu aluno é
capaz da compreensão objetiva porque ele é tempo vivido, e se empresta à minha aula.
Ao me abrir como educador matemático, portanto, ganho liberdade na compreensão
temporal tal como a Fenomenologia da Percepção nos sugere para, assim, evocar um passado
num movimento que me reabre o tempo, recoloco-me numa experiência de, em dezoito anos
vividos na carreira de magistério, conceber cada encontro com os alunos na situação de aula
como uma experiência, não sendo possível
precisar se em algum momento uma experiência tenha se repetido da mesma maneira que
outra vivida.
3 - A HISTORICIDADE/HISTORIEDADE: UMA ABERTURA PARA ME VER
EDUCADOR MATEMÁTICO
A historicidade que me situa como ser histórico, na e com a prática pedagógica de
ensino de matemática, pode, talvez, questionar-me sobre o como me apresento ao mundo
enquanto educador matemático. As vias pelas quais se pode compreender o tempo vivido
historicamente parece-me ter, na fenomenologia, uma solicitude de abertura a “reapoderar-se
da intenção total” (MERLEAU-PONTY, 1996, p.16) que abarca não apenas aquilo que são
para a representação a “poeira dos fatos históricos” (p.16), mas também a maneira de existir
na história, com a história, constituindo um mundo em que o educador deve ser capaz de
retomar e assumir. Talvez essa compreensão sirva para iluminar ou até mesmo me reapoderar,
como educador, das minhas primeiras vivências matemáticas, no âmbito escolar, como aluno.
Historicamente, refaço-me como alguém que vivia num contexto escolar desprovido
de aberturas à criticidade e reflexões acerca dos objetos matemáticos. Importavam apenas as
repetições de algoritmos seqüenciais, lógicos e sistemáticos e comparar os resultados; ou seja,
esta experiência matemática consistia apenas em aplicar um método para confirmação do que
se esperava como resposta. Com esta vivência, não seria estranho que eu também me
dispusesse a essa maneira de conduzir aulas. Almejava ser professor de matemática a partir da
experiência matemática que me constituía como aluno, como professor especialista em
Cálculo Superior e como devoto à matemática acadêmica. Entretanto, percebia a exigibilidade
de um estar atento às manifestações dos alunos, dos quais algumas atitudes pareciam querer
mostrar-me estranhamentos em relação ao que propunha como atividades pedagógicas, nas
quais nem todos os alunos se abriam para as situações postas. Por quê? Perguntava-me. Não
encontrava justificativas no âmbito político de escola municipal, estadual ou particular, urbana
ou rural, nem quanto à idade ou série escolar, nem mesmo quanto a metodologias aplicadas.
Uma possibilidade que me parecia emergente seria superar a repetição de posturas
pedagógicas e intencionava cuidar cada aula como um momento original, não admitindo ser
impossível suspender a historicidade que constitui nossa ação enquanto educadores. Foi
quando me abri para perguntar aos alunos
7
: “O que é matemática para você?”, na tentativa de
interpretar suas concepções a partir de seus textos escritos – redações.
8
7
Esses alunos estavam cursando a série do Ensino Médio, no ano 2002. A minha função, enquanto professor
de matemática, era a de “prepará-los” para os vestibulares das diversas Universidades brasileiras, bem como para
os concursos de admissão às Escolas Militares.
8
Ainda não tinha cursado a Especialização em Educação Matemática. Tive esta idéia por um ato livre,
no sentido de não estar vinculado a uma postura de pesquisa acadêmica. Hoje percebo, academicamente, a
importância desta postura para uma vivência em investigação.
Dos relatos, pude destacar alguns núcleos, para mim significativos, que apontam a
matemática como criação humana, contribui para o desenvolvimento tecnológico e social mas,
que, no contexto escolar, ela “ultrapassa a necessidade do dia-a-dia”; “Ela é uma peça chave
na classificação da sociedade”; “...a matemática é a base de tudo”; “...antigamente esta ciência
era acessível apenas a grandes filósofos e matemáticos que a desenvolviam e a tornavam
como é, talvez por isso eu tenha dificuldade”; Sobreviver sem ela é impossível, o mundo
viraria uma grande desordem”; “sem dúvida ela é uma das matérias mais difíceis de ser
compreendida”; “Ela estimula o raciocínio e ajuda também na interpretação teórica de outras
disciplinas”; “...também são conhecidos o preconceito e o natural desinteresse que causa, por
ser uma das mais complexas ciências”; “Tudo também depende muito do professor, visto que
todos são diferentes entre si e cada um, do seu modo, tem diversificadas maneiras de ensinar”;
“No começo, achávamos até interessante aprender quanto é dois mais dois, três vezes cinco ...
Entretanto, o terror surgiu com o logaritmo, a matriz inversa, o seno, o co-seno, tangente...”;
“Entendo por Matemática a ciência que estuda qualquer tipo de cálculo, envolvendo a sua
carcaça: os números”; “Para mim, ela é a representação da realidade, da natureza. A
matemática é exata, nunca subjetiva como o pensamento, o sentimento... a realidade
matemática ultrapassa a imaginação”; “... me lembro que a primeira dificuldade era para eu
aprender a subtração e adição com várias casas decimais, porque não dava para fazer no
dedo a conta, porque tinha que subir o primeiro número da casa da dezena para cima e na
subtração tinha que pegar ‘emprestado’ do número à esquerda”; “eu adorava trabalhar com
quadro valor do lugar, mas não tinha noção da aplicação daquilo tudo na vida real”;
“entretanto, parte do conteúdo é totalmente desnecessário... esse é um dos problemas do
sistema educacional brasileiro”; Fonas F3-2.16558(r)2.80561(a)3.74(p)-110.212(a)3.74( )85(o)-0.2220.276(d)-10.299(o)2.80439(e)3.74244.80561(a)3.74024(s)23ere( )-220.276(e)3.2659( )-20.e2659( )-20.e hascio-2.16436(d)-0.293142(a)3015(e)3.74(s)-1.22997(0.295585(m)-2.459952.16436(m)3142(c)3.74244(o.295585(r)2( )250]TJ-264.396 -20.3015( )-220.270a)3.74( )-110.212(d)-0.29554439(i)-2.185( )-60.18378(p)-0.29550.151457( )-40.1702(n-40.1702(n-40.17021596(“)3.74( )-20.1584(F)1( )-10m)-2.4623(a)3.74(l)-2e)3.74(s)-1.2312(n)-0.320.335(d)-0.293142(a)3.74( )-(o)-0.295585(b)-0.29-220.278(c)3.74(o)-10.3015585(p)-0.29558585(-2.16436( )255(r)4(c)3.74(i)-c9a)3.74( )-11 )255(r)4(c)3.74(i)-c9agn9
postura que eu ainda não sabia descrever. Percebia, entretanto, que se tratava de um
movimento. Algo novo, manifestado diante de mim e em mim. Uma inquietação para a qual
me abria e tornava possível superar a visão que a racionalidade tradicional nos impõe.
4 – A RACIONALIDADE CARTESIANA: UMA INTERVENÇÃO NO FAZER
PEDAGÓGICO
Um argumento pertinente, quando faço referência à racionalidade como um modo de
expressar-me no mundo-vida sala-de-aula de matemática, talvez esteja relacionado com a
estabilidade e nitidez que o pensamento matemático, historicamente constituído, tenta
transmitir: a crença numa ordem universal, numa natureza objetivável, num modo único de
vivenciar e experienciar a matematicidade presente para cada aluno, estaria afetando os nossos
procedimentos pedagógicos? Essa crença é consoante com o mundo vivido pelos alunos?
Parece-me que um problema que criamos no âmbito da matemática, como um campo
do saber, possa ter origem na abordagem e na concepção estritamente científica no fazer
pedagógico. Uma interpretação de “A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de
ser que o mundo percebido” (MERLEAU-PONTY, 1996, p.3), nos lança numa via pela qual
talvez possamos compreender que, para o mundo percebido, a matematicidade, enquanto
experiência vivida, não tem o mesmo sentido dos pressupostos por explicações absolutas,
causais, determinadas, independentes do homem?
Esta compreensão não nos possibilitaria abertura a outras concepções de educação pela
matemática, que não sejam apenas aquelas que pretendam reproduzir uma determinação ou
uma explicação quantitativa do mundo sensível?
Das abordagens que tentam explicitar o que se entende por racionalidade formal, da
qual a tradição cuida e privilegia, trago o que Anastácio (2000) descreve, como uma proposta
pela qual Descartes situa a condição de existência da pessoa, centralizada no espírito ou
pensamento, separando-a do mundo dos objetos e das coisas, e, segundo a autora, “...persegue
um método que lhe proporcione o acesso à Verdade e intui que a Matemática, no seu aspecto
filosófico, oferece um conhecimento que não não admite erro, como tampouco aceita algo
que seja apenas provável.” (p. 90). Compreendemos que talvez esteja, aí, instalado um
pensamento que se tornou hegemônico que merece um cuidado à luz de novas concepções
acerca de conhecimento e realidade. Anastácio, nesse trabalho, se lança na crítica que
Merleau-Ponty expõe ao pensamento cartesiano e ao modo como a ciência ocidental tem
dificuldade em lidar com o mistério do humano.
A autora faz referências ao ensino de matemática, no âmbito da escola, imbricado
naquele modo de concebê-la, ressaltando que a ênfase aos “aspectos dedutivo-formais,
apriorísticos e axiomáticos” (p.91) interfere, inclusive, na composição dos currículos, nos
quais os conteúdos estão inseridos num corpo de conhecimentos que se identificam com essa
“racionalidade cartesiana carregada de formalismos, abstrações e desvinculadas do vivido.”
(p. 91).
É muito provável que esta crença esteja, a priori, afetando nossos procedimentos
pedagógicos. Não se pode negar a existência desta racionalidade; mas uma racionalidade
que me permite uma experiência pessoal. Com Merleau-Ponty (1996, p. 18) entendo que
“Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam,
um sentido aparece. Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito absoluto ou
em um mundo no sentido realista”. Porém, em Anastácio & Clareto (2005), “A matemática
(escolar), tal como a conhecemos e a identificamos hoje, é a materialização da racionalidade
cartesiana”; busca-se a verdade absoluta como garantia de certezas fundamentadas num
processo de encadeamento lógico de proposições; um método que vai respaldar todo o
processo científico, sem recorrência à sensibilidade, rejeitam-se os sentidos, tomando como
certo apenas o pensamento claro e universal. Não é este o problema central que quero
desenvolver. Parece-me que o problema emerge com as atitudes que o professor assume ao
estar com os objetos de discussão em sala de aula e ao estar consigo mesmo, perguntando-se
sobre o seu projeto enquanto educador, convergindo para o tratamento que pretendo fazer em
torno da intencionalidade.
5 - UMA INTENCIONALIDADE QUE ME ABRIU PARA O SER
EDUCADOR/PESQUISADOR
Por intencionalidade, vou considerar um modo de estar no mundo, um modo que não
se separa da temporalidade/espacialidade
9
, da historicidade nem da racionalidade que, juntas,
constituem uma teia de referências mundanas em que a minha experiência racional, como
educador matemático, situa-me no mundo.
Aqui, tento abordar com um sentido que Merleau-Ponty reconhece ser ampla em
Husserl, no terreno fenomenológico, a noção de intencionalidade como projeção, intencionar-
se é dirigir-se às coisas, é estar atento. Intenciono-me para que eu viva compreensivamente os
sentidos nas vivências, nas experienciações.
Parece-me uma vivência de sentido, um sentido que o mundo tem com o sentido que
eu percebo no mundo. Esta compreensão me faz retornar à perplexidade em que me
encontrava, quando o eco dos textos produzidos pelos alunos a respeito do que é matemática,
conforme descrevi anteriormente, ressoava como uma manifestação diante de mim e em mim.
Talvez estivesse percebendo-me em direção a uma investigação acerca da minha prática
docente, a uma interpretação de uma realidade vivida, experienciada.
Uma correspondência, originada do cleo de Educação em Ciência, Matemática e
Tecnologia NEC da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora,
chega às minhas mãos, como um convite à seleção para um curso de Especialização em
Educação Matemática. “Educação Matemática?” perguntava-me. O que é isto? Dentre as
informações presentes na carta, destaco: “... estamos propondo uma discussão sobre
tendências em Educação Matemática e possibilidades da matemática escolar. Nesse sentido,
serão objeto do curso uma abordagem filosófica da matemática e da educação matemática e
discussões sobre algumas metodologias de trabalho com a matemática.”. (Correspondência).
A indagação “o que é educação matemática” alia-se à outra: “uma abordagem
filosófica da matemática e da educação matemática” e passaram, desde então, a constituir
minhas ocupações e provocaram um movimento em minha intencionalidade. Logo, nas
primeiras aulas, foram-me apresentados alguns propósitos de Filosofia da Educação
Matemática com os professores. Com a nota de aula de um deles “Três Termos para constituir
chama à atenção para “todos nós estamos, inexoravelmente impregnados de alguma Filosofia,
quando somos profissionais e agimos de uma certa maneira, quando estamos em família e
temos certas maneiras de ver o mundo”
11
; propõe que talvez a primeira tarefa de uma
disciplina em Filosofia seja a de “explicitar os modos de proceder, clareando a compreensão
de nós mesmos”, alarga para as contribuições do filosofar da educação, situando-a como um
campo onde a sala de aula, “um dos lócus da educação, é um espaço humano prodigioso em se
rever os fundamentos metodológicos, os antropológicos, os epistemológicos, entre outros.”
Converge para a filosofia da matemática como uma reflexão sobre o fazer do matemático e
suas questões podem ser de natureza ontológica ou epistemológica”. Alerta-nos, outrossim,
que “a fusão (mesmo que este termo talvez não seja devido) das três áreas tocadas nos
possibilitam um novo tratamento, um campo novo, com articulações explicitamente novas de
estudo: a filosofia da educação matemática”.
Um novo campo que converge num pensar filosófico e focaliza a matemática no
contexto da educação vislumbrava-me. Segundo o professor, compreende questões que vão
desde a sala de aula de matemática até a matemática no cenário amplo da sociedade. Aborda
algumas vias possíveis de investigação em Filosofa da Educação Matemática, citando alguns
exemplos, dentre eles o trabalho desenvolvido pelo Prof. Rômulo Lins que, ligado às questões
epistemológicas, estuda com um grupo que intenciona compreender o que é álgebra, e como
se elabora o que significa, pedagogicamente, a linguagem algébrica, entre outros aspectos.
Questões acerca de currículo são cuidadas pelo prof. Ole Skovsmose, associado ao prof.
Marcelo Borba para os quais a definição de um currículo “passaria por uma negociação, em
princípio tendo a escola como palco, mas também em larga escala social” (nota de aula).
Apresenta-nos, também, o prof. Ubiratan D’Ambrósio como referência à Etnomatemática
apontando para duas funções primordiais: “a preocupação ética e moral de se compreender
como a multiplicidade de culturas pensa matematicamente” daí podermos compreender
Educação Matemática como uma via científica de combate ao extermínio ou ao preconceito.
O último exemplo delineado na nota de aula parece-me traduzir um sentido diferente ao
vivenciar as palavras: “... o grupo Fenomenologia e Educação Matemática...” busca voltar
todos os objetos da Educação Matemática para a sua manifestação primeira. Explicita, ainda,
que este grupo, coordenado pela profª. Maria Bicudo se funda nas idéias fenomenológicas,
postas desde Husserl, passando por Heidegger, Merleau-Ponty, Ricoeur, entre outros filósofos
existencialistas. Um modo de pensar que situa todo o fazer científico “nas manifestações mais
11
Essas falas constituem a Nota de Aula com a qual o professor nos apresenta o campo da Educação Matemática.
mundanas do homem no mundo” tratando de evitar conceitos que estruturem uma visão
sobre os objetos matemáticos.
Essas aulas me afetaram de um modo que minhas angústias, em relação ao ensino de
matemática, pareciam aumentar. Não no sentido de acrescentar questões, mas de se
misturarem às que eu estava vivendo, recriando-as em minha intencionalidade. O novo estava
diante de mim e em mim mesmo enquanto educador. As palavras que eram novas para mim, o
cuidado que elas pareciam mostrar-me; as possibilidades de reflexões e a própria disciplina
Filosofia da Educação Matemática como uma disciplina aberta, sendo constituída por todos
os que a habitam. Neste movimento, não me sentia mais ser o mesmo professor.
O movimento no qual me doava às vias da Filosofia da Educação Matemática parecia
extrair-me de um solo talvez considerado firme, e me lançava numa região onde me
perguntava sobre quais deveriam ser os propósitos do ensino de matemática, bem como qual
deveria ser meu papel enquanto educador matemático. Que sentidos a matemática escolar
deveria fazer no mundo-vida dos alunos? Isso me remetia, ainda, à indagação o que é
matemática, na visão do aluno?
Como educador matemático, atuando no Ensino Fundamental, tenho buscado assumir
uma postura coerente com a que os pesquisadores nos sugerem e que, para mim, fazem
sentido enquanto professor. Da noção ampliada de currículo, sugerida por Joel Martins (1992),
entendo que o currículo é o próprio aluno, um planejar que é um estar em planejamento.
Sendo assim, ao interpretar a que o autor interpreta acerca de currículo, percebo uma nova
abordagem que se baseia num modo fenomenológico de ver e conceber currículo e propõe que
o mesmo seja visto como poiésis, ou seja, um recriar inacabado e interminável. Considera o
humano como ser de possibilidades. Possibilidades de estar no mundo com os outros
estabelecendo, para isso, relações sociais e culturais. A educação, nesse enfoque, refere-se a
um processo de crescimento, no qual as questões devem-se iniciar sempre a partir de decisões
tomadas pela comunidade, por pais, professores em geral e pela escola como instituição, tendo
como orientação um julgamento educacional: “que tipo de adultos querem que suas crianças
sejam.” (MARTINS,1992).
Privilegiamos Educação Matemática vista como fenômeno, “... como uma totalidade
que se mostra no cotidiano do mundo-vida mediante as percepções dos sujeitos a ela atentos”
(BICUDO, 1999, p.31). Parece-nos, porém, que esta totalidade está imbricada, conforme a
autora, na busca do sentido daquilo que se faz na situação de ensino e de aprendizagem com
matemática; na busca de compreensão do sentido que o mundo faz para cada pessoa; no ficar
atento ao outro ao proceder analítico, reflexivo e crítico em relação a verdades que se
pretendiam absolutas.
Uma tentativa de trabalhar com a percepção, “uma didática fenomenológica da
matemática” (p.40), possibilitando a cada aluno manifestar os modos como os objetos
matemáticos se mostram a si, os modos como cada um vivencia o mundo e a matemática, uma
postura que busca considerar o mundo escolar como uma realidade vivida que se mostra em
perspectivas; uma atitude que se abre para a compreensão de que a idealidade
12
dos objetos
matemáticos não se presentifica apenas nos livros e textos específicos de matemática; o
cotidiano vivido pelos alunos também se constitui em material didático; claro que este
proceder exige ouvir o aluno com atenção, procurando interpretar sua fala, seus gestos e
movimentos na situação de aula, buscando convergências à proposta de trabalho onde, pela
subjetividade, pela intersubjetividade o sentido daquele momento de expressão matemática vai
se pondo, num processo contínuo, não necessariamente linear, mas que vai abarcando o que se
entende por currículo. Um processo que tem continuidade, inclusive, no processo de avaliação
que, nessa perspectiva é qualitativa, admite o sentido e a significação que os sujeitos elaboram
na situação de aprendizagem. Um processo que também permite a reflexão do realizado, do
vivido, do experienciado, um texto a ser reelaborado, interpretado, completado e não acabado.
Iluminado por Bicudo (1999), talvez possa compreender este proceder como uma
prática pedagógica que tem a fenomenologia como diretriz de visão de mundo, e a
interrogação inicial “Como alunos de série do ensino fundamental compreendem os
processos de numeração no seu mundo-vida” passou a constituir o meu viver pedagógico
enquanto educador matemático numa tentativa de convergir para uma interpretação como
pesquisa de mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal
de Juiz de Fora.
I - UM CAMPO PARA A INVESTIGAÇÃO
Permeada de relevância para a comunidade científica de educadores matemáticos,
sendo admitida para este Programa de Mestrado em Educação, a minha interrogação inicial
buscava investigar, principalmente, a compreensão de “Como alunos de série do ensino
fundamental compreendem os processos de numeração no seu mundo-vida?”
Porém, ao estar com os alunos no campo de pesquisa, percebi a possibilidade de outros
cuidados com as suas falas, deslizando minha intencionalidade para a interrogação: “O que é
matemática para o meu aluno?e, posteriormente, para: “mensagens matemáticas manifestas
na fala de alunos”, das quais tento descrever “Compreender-se Educador Matemático”.
12
Idealidade como pertença cultural, tem sentido diferente de idealismo.
Um percurso, cuja opção solicitou-me estudar e investigar por vias onde alguns
autores tratam da abordagem fenomenológica, no âmbito da filosofia de Edmund Husserl,
Merleau-Ponty e Paul Ricoeur; vivenciar uma prática pedagógica em que os alunos se
expressem, mostrem-se, e, ainda, um propósito de difundir entre os professores, não somente
os de matemática, mas aqueles que se abrirem a essa concepção, o procedimento
fenomenológico como um modo de abertura a um tratamento significativo aos programas que
circunscrevem os currículos escolares. Abertura possibilitadora de liberdade para a
ressignificação desses programas.
Esta interrogação me lança numa região de inquérito que solicita estar com os sujeitos
de pesquisa, interpretar e descrever o fenômeno conhecimento matemático que poderá se
manifestar nas interpretações das falas desses sujeitos, ao transitarem por objetos matemáticos
possíveis para esta pesquisa, sendo esses sujeitos convidados entre alunos com os quais me
encontro no experienciar a sala de aula como professor de matemática.
Para os objetivos de uma pesquisa, neste enfoque, poderia escolher outra escola e outra
série escolar, não importa; apenas seria um outro estar com, um outro experienciar
vivenciando; mas, o investigar na escola onde leciono, e, mais ainda, com alunos com os quais
me educo educando com a matemática, dando abertura para a manifestação de suas diversas
facetas, percebendo-as, constitui uma decisão que gravita em torno de uma intencionalidade
de também refletir sobre o próprio trabalho, sem a pretensão de estabelecer juízos que tendam
a declarar o que é certo e o que é errado, o que é bom e o que é ruim, pontos negativos e
pontos positivos do meu proceder pedagógico. Pretendo, sim, nesta maneira de pesquisar,
abrir-me para uma prática reflexiva como parte constituinte de minhas atitudes pedagógicas.
Garnica (2001, p.40) defende que “O pensar a realidade, vivendo-a, é o ponto de
referência do que chamam de análise crítica, reflexiva e abrangente, necessária ao que
comumente denomina-se ação/reflexão/ação”. O autor me orienta e me ajuda a compreender
que sermos parte de um coletivo que elabora, analisa, divulga, compartilha conhecimentos,
implica sermos com os outros (p. 41). Um movimento no qual os significados vêm da prática,
sem os quais a expressão Educação Matemática seria vaga. Daí podemos entender que
Garnica se ocupa em aclarar que a Educação Matemática dá-se como uma reflexão-na-ação
(p. 40), que, para mim, é a busca de sentidos a partir de vivências, a partir de uma relação
espaço/temporal, onde e quando as práticas cotidianas constituem o ser educador.
A opção em constituir esse grupo de alunos tem, ainda, uma intencionalidade fundada
num rigor de pesquisa na qual as referências emergirão ao vivenciar o fenômeno. Tento,
portanto, ancorar-me no modo fenomenológico de ver e conceber o que se está manifestando
diante de min: paredes, carteiras, quadro de giz, ventiladores, piso, teto, janelas, paisagens
quando, além delas, posso ver, as pessoas que trabalham e transitam por ali, os sons
provenientes de diversas direções, o ar, o clima, os alunos e, dentre outros eventos, eu mesmo.
Seremos todos uma constituição que se mostrará naquele momento, e jamais nos
presenciaremos do mesmo modo tal como estaremos.
Independente da nossa relação aluno/professor, a intenção, ainda, se funda em ir-à-
coisa-mesma, conforme Bicudo (2000, p. 74) como um modo de obtenção de dados para uma
pesquisa que pretende ser qualitativa. Ou seja, no âmbito da investigação, aquelas crianças
não estarão na situação de aluno nem o investigador estará na situação de professor, mesmo
sendo alunos e professor
13
em outras cenas.
Por independente, aqui, não pretendo dizer que neutralidade. Aliás, consideraremos
tal como Garnica (1997, p. 111) considera que o interrogar as coisas com as quais
convivemos, possibilita-nos compreender nossa relação com o mundo do qual fazemos
parte, não havendo, assim, neutralidade do pesquisador em relação à pesquisa, pois “ele
atribui significados, seleciona o que do mundo quer conhecer, interage com o conhecido e se
dispõe a comunicá-lo.” (p. 111).
A escolha/convite dos sujeitos teve origem em uma aula quando, ao refletirmos sobre
possíveis significados que os processos ou sistemas de numeração traduzem historicamente
no, para e com o humano, dois alunos iniciaram uma discussão sobre a base da matemática.
Chamavam base a menor quantidade contável, e se perguntavam: é o zero, ou é o um? Os dois
alunos, Lacerda e Arthur, estenderam a discussão para um grupo interessado nesse objeto
matemático a numeração totalizando oito alunos da turma. Com eles participavam
Carneiro, Mariana Lima, Vítor, Caio, Érica e Laís.
O limite cronológico para aquela aula impediria a continuidade das discussões,
enquanto me percebia com eles, num possível campo de pesquisa, que minha intenção era
vivenciar uma investigação com um grupo de alunos de série. Outras duas alunas, sujeitos
de pesquisa, Carolzinha e Priscila Lima, respectivamente, alunas de duas outras turmas, foram
convidadas por mim para integrarem o grupo de discussão, formado por pelo menos um (a)
aluno (a) da cada turma.
Aceito o convite, procedi aos contatos com o responsável pela divisão de ensino do
Colégio onde leciono para realizar a pesquisa nas dependências físicas da própria escola, e
com os responsáveis pelos alunos, solicitando permissão para que as crianças participassem
13
estruturas de poder, da e na escola. Da escola, por se tratar de uma escola apoiada em regulamentos muito
rígidos, uma vez que pertença ao sistema Colégio Militar do Brasil, que tem suas peculiaridades, sua tradição. Na
escola, a relação professor/aluno, de certo modo, evoca uma hierarquia, se considerarmos a tradição vivida. Em
nosso caso, esperamos outros sentidos que não estão nessas metáforas, mas na matematicidade que nos for
possível interpretar nas falas dos alunos.
desse grupo, cujas discussões convergiriam em dados empíricos para a minha pesquisa de
mestrado.
Constituído o grupo para as discussões, optamos por não avisá-los de que suas falas
seriam interpretadas para esta pesquisa. Uma postura em que acreditamos estar mais próximos
do fenômeno pretendido e não apenas diante de um fato
14
. Além disto, o grupo havia se
formado espontaneamente, sem ser colocada a pesquisa em questão. Para os registros,
anotações escritas e gravações em áudio, o grupo concordou que seria um modo de refletirmos
sobre as falas produzidas, com a intenção de mantermos um grupo de discussões na escola.
Da proposta inicial, partimos para o agendamento dos encontros, um primeiro encontro
em que ficara definido o próximo e o terceiro encontro seria num evento mais amplo, aberto à
comunidade escolar, ocorrendo uma vez a cada ano na escola, denominado Feira de Cultura.
Passados os três momentos de coleta de dados, registros das informações que
constituem material empírico para esta investigação, comuniquei aos alunos que trabalharia
com as suas falas em minha pesquisa de mestrado, previamente, autorizado por seus
responsáveis, quando se manifestaram favoráveis e curiosos por saberem em que suas falas
poderiam colaborar para uma pesquisa de mestrado. Tudo, disse-lhes. Cada palavra, gesto e
atitudes teriam um sentido atribuído por mim, ao vivenciá-los. Legal, mais um motivo para
continuarmos nos encontrando e discutindo matemática”, disse um dos alunos.
14
Fatos são eventos, ocorrências, realidades objetivas, relações entre objetos, dados empíricos disponíveis e
apreensíveis pela experiência, observáveis e mensuráveis no que se distinguem do fenômeno. (GARNICA,
1997).
III - TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
Na busca de um texto para me compreender diante de uma obra escrita, enquanto
pesquisador de cunho qualitativo fenomenológico, tentei embrenhar na investigação, no foco
fenomenológico, e descrevi minhas interpretações em torno do que me pareceu ter sido dito
acerca do que é Matemática pelos alunos participantes do grupo. Projetei-me, portanto, num
horizonte comum de compreensão, tecido com as fagulhas de significado que se estabilizaram,
da perspectiva, durante a interlocução.
Dentre algumas possibilidades de tratamento de dados para esta pesquisa,
consideramos pertinente um movimento de retorno ao texto escrito, transcrito a partir de
gravações em fitas K-7, sobre o qual pretendemos assumir uma postura hermenêutico-
interpretativa para a qual buscamos em Paul Ricoeur, filósofo francês, nosso principal
referencial teórico.
Ricoeur desenvolve uma hermenêutica fundamentada na fenomenologia, explicitando
um pressuposto mais geral que é a escolha pelo sentido no ato de interpretar, como uma via de
compreensão do homem pela linguagem, de modo mais especial a linguagem escrita. Para este
filósofo, a noção de texto é ampliada, admitindo-o como todo discurso fixado pela escrita.
Porém, segundo Ricoeur (1989, p. 118), a escrita torna o texto autônomo em relação à
intenção do autor. “O que o texto significa não coincide com aquilo que o autor quis dizer.
Significação verbal, quer dizer, textual e significação mental, quer dizer, psicológica, têm,
doravante, destinos diferentes” (RICOEUR, 1989, p. 118).
Ricoeur considera que a autonomia do texto possibilita o distanciamento ou
objetivação da obra, e a ressignificação é um voltar-se à coisa do texto; ou seja, no ato de
leitura de um texto, o distanciamento dele é que permite a sua interpretação. Após escrito, o
texto ganha “vida própria” em relação ao autor e, mesmo para este, que novamente sua
produção teórica, um novo sentido atribuído é perceptível.
Esperamos, assim, o caminhar em uma direção em que a obra, produzida a partir do
meu texto escrito como uma fixação das falas dos alunos, permita-nos compreendermo-nos
diante da mesma, ao vivenciarmos, com ela, sentidos na sua interpretação.
Considero possível um diálogo entre a trajetória metodológica, indicada para as
pesquisas de cunho fenomenológico e a própria postura que pretendo assumir na busca de
minhas interpretações, no percurso da investigação à qual me propuz.
Uma postura que buscou um procedimento descritivo, partindo do vivido pelos sujeitos
para a elaboração das descrições, intencionado na compreensão de mim mesmo, isto é, não
farei análise de discurso desses alunos com a intenção de colocá-los classificados em
grupos.Trata-se da busca de uma relação mundana na qual cada novo olhar, nova presença
humana, pode produzir ampliação de sentido.
O solo metodológico no qual estamos imbricados abarca a “Fenomenologia da
Percepção” de Merleau-Ponty, com os procedimentos delineados por Bicudo (2000) que trata
da Pesquisa Qualitativa Fenomenológica à procura de Procedimentos Rigorosos, aclarando
que a investigação fenomenológica trabalha sempre com o qualitativo, com o que faz sentido
para o sujeito, como percebido e manifestado pela linguagem.
Dentro da experiência hermenêutica no trabalho de compreensão sobre os dados
produzidos, o pesquisador fenomenológico assume uma postura de descrever o vivido. Uma
descrição fenomenológica que cuida de descrever o visto, o sentido, o experienciado como
vivido pelo sujeito e o pesquisador, sem julgamentos e avaliações. Esta é uma descrição que
assume a forma de um texto a ser interpretado, propiciando a compreensão do fenômeno
investigado. Caracteriza-se por um modo de proceder que não pretende ser conclusivo, assim
como não possui caráter generalizante por se referir apenas aos sujeitos que experienciam o
fenômeno no mundo-vida.
Para a Fenomenologia, a realidade não se estabelece numa relação de causa e efeito; é
o compreendido, o interpretado. Não é única, mas perspectival: mostra-se de tantas maneiras
quantas forem as interpretações.
15
A análise fenomenológica das descrições defronta-se com
um exercício de hermenêutica
16
, sendo, neste caso, uma interpretação da interpretação que os
alunos fizerem no ambiente de pesquisa. Uma atitude hermenêutica de se estar no mundo
compreendendo, conduzindo-se a dois momentos de análise que pretendemos fazer, a
Ideográfica e Nomotética. Com a análise ideográfica, busca-se uma interpretação das
descrições dos sujeitos, visando às unidades de significados na linguagem articulada, indo-se à
análise nomotética como uma passagem do aspecto individual para uma estrutura geral de
compreensão, identificando semelhanças entre as unidades significativas com a intenção de
construir um sentido de todo, permitindo reflexões acerca da questão de estudo.
Em todas essas passagens, o sentido do originalmente vivido não se perde. Ele vai se
desvelando em articulações maiores, na intencionalidade do pesquisador que interroga.
IV - PERSPECTIVAS DE COMPREENSÃO DAS FALAS
15
BICUDO, M. A. V. (1994 P. 17)
16
No sentido apontado por Paul Ricoeur na interpretação e compreensão no foco hermenêutico.
As primeiras vivências com as falas dos alunos e o texto escrito que as representam
apontaram-nos uma trajetória, para a qual os textos que cuidam da Filosofia da Matemática e
Filosofia da Educação Matemática nos serviram de apoio. Numa primeira busca, elegemos o
trabalho do Prof. Antônio Vicente Marafiotti Garnica com o qual pretendemos dialogar nesta
investigação.
Trafegando pela Filosofia da Educação Matemática e o foco em Linguagem e
Educação Matemática, Garnica (2001, p.47) nos apresenta uma via de investigação que nos
parece um percurso pertinente e coerente com a nossa proposta de descrever mensagens do
texto matemático, manifestas na fala e outros meios expressivos de alunos. O autor, além de
nos ajudar a compreender que a comunicação na prática pedagógica é rica em pluralidades e
que significativa diferença na qualidade das mensagens enviadas nos distintos grupos de
vivências contextuais, abre-nos à possibilidade de uma descrição com a qual as mensagens
serão gestadas em processos interpretativos, nos quais se interconectam discurso, escrita,
oralidade, linguagem e textos.
Mediado pelo filósofo francês Paul Ricoeur, Garnica nos mostra suas interpretações
ampliando, em nossa visão, uma abordagem que nos aproxima de uma hermenêutica. Discurso
e linguagem se mesclam numa possibilidade de manifestar nossas compreensões acerca de
mensagens, objeto desta investigação, que deslizarão da fala dos alunos para a nossa escrita.
O discurso, nessa visada, é “tido como articulação da inteligibilidade” (GARNICA,
2001, p. 47), um modo de manifestar a linguagem, a significação que retira de um evento sua
evanescência e sua transitoriedade. Sendo assim, o discurso tem seu caráter duradouro dado
pela significação do evento; é na comunicação que essa dialética evento/significação se
mostra. A comunicação é uma via que possibilita a publicidade da compreensão do vivido, do
experienciado, e não a experiência própria. Esta, sendo incomunicável tal como experienciada
permanece privada, intransferível.
Esta incomunicabilidade da experiência será superada, segundo Garnica (p. 48), na
procura por uma referência que, no âmbito ontológico, tem como condição o “trazer à
experiência”, possibilitando a publicidade da significação “ao fazer com que o outro perceba,
na comunicação, a experiência experienciada como vivida” (p. 48). Há, assim, meios de se
pensar linguagem como discurso. Porém o autor nos convoca a preocuparmos, especialmente,
com a questão da escrita, do texto.
Este é o foco principal quanto à postura de compreensão sugerida para este trabalho.
Julgamos pertinente trabalhar com o texto que se mostra em um discurso, que deve ser fixado
pela escrita, o que realizamos ao transcrever os discursos produzidos pelo grupo de alunos,
sujeitos na pesquisa, da mídia gravada em fita K-7 para a escrita. A partir daí, intencionamo-
nos em significar o texto pela leitura, num espírito do que Garnica (p. 49) chama de
“possibilidade de revelação do mundo”, ou seja, as mensagens que esperamos descrever,
interpretando o texto escrito a partir das falas e de outros meios expressivos dos quais as
intenções dos alunos em dizerem o que é matemática serão percebidas pela intencionalidade
dessa investigação.
Apostamos nesse proceder, que nos parece transitar bem com a hermenêutica, que
sugere compreender interpretando, propondo-nos debruçar sobre aquele texto dos alunos,
tentar aprofundar compreensões que subsidiem interpretações outras que forneçam, conforme
Garnica (2001, p.51) nos sugere, possibilidades de outras interpretações para outras
compreensões, ou seja, uma trama de interpretações e compreensões contextualizadas, onde
esperamos que as significações se estabeleçam.
Uma trama que pretensamente se desenvolverá numa idiossincrasia, com a qual
esperamos fundir nossos horizontes de compreensão aos horizontes de compreensão dos
alunos, convergindo nossa intencionalidade numa experiência hermenêutica para tentarmos
ressignificar o texto, tornando-o presença no diálogo, no encontro onde “o texto descortina
sua mensagem de forma a inserir-se em ambos os horizontes, cada qual a seu modo” (p.54).
Consideramos pertinente aclarar que a possibilidade de diálogo hermenêutico se deve à
facticidade de sermos seres da história, pertencentes a uma comunidade da qual herdamos
uma tradição que nos une numa racionalidade, num contexto ideológico. Interpretando
Ricoeur, o homem tem a capacidade de se compreender através de sinais da própria existência
e compreender é uma possibilidade de ser; é a essência do ser humano.
V – CENAS PARA A COMPREENSÃO DAS MENSAGENS
Na fecundidade do terreno que tem a abordagem fenomenológica como um modo de
aclarar o que buscamos compreender, Bicudo (2000) nos apresenta uma literatura que abarca
textos de pesquisadores qualitativo-fenomenólogos que nos disponibilizam algumas
possibilidades de tratamentos metodológicos com os dados de pesquisa.
Não temos a pretensão de adaptar nosso trabalho a um método; porém, buscamos
aproximações com um modo de apresentação que acreditamos mostrar melhor os sentidos que
os textos nos trazem, ao vivenciá-los, intencionados nesta investigação.
Vimos, no texto de Detoni & Paulo (2000), “A Organização dos Dados da Pesquisa em
Cena , uma orientação pertinente que nos leva a considerar os “conjuntos de significados
articulados” (p.142) que trazem a idéia de cena significativa. A organização das falas em
cenas vem como um recurso que organiza os discursos dos sujeitos em recortes que, além de
trazerem em si um sentido de todo, rogam por uma descrição ampla e situada de uma
mensagem.
Trata-se de uma maneira de olhar para as expressões obtidas, percebendo núcleos de
significados, o que não significa, segundo os autores, “escolher situações ao acaso, mas
considerá-los a partir de manifestações dos sujeitos, que oferecem nuanças do sentido do
todo” (Idem, p.143), daí a consideração de cenas significativas, que abandona a mera cadeia
de movimentos, tal como numa concepção de eventos lineares, que cada uma delas é um
pulsar próprio desde a implantação de um tema localizado até as reticências temporais que
indicam seu esgotamento.
Antes de assumir esse modo de tratamento, devemos esclarecer o sentido
fenomenológico de cena. Para seu alargamento, os pesquisadores citados mergulham numa
investigação que interpreta, no sentido mais tradicional da dramaturgia, o termo cena, vendo-o
confrontar-se com a ideologia
17
fenomenológica. Uma das distinções pode ser vista à luz do
que se concebe como sujeitos/atores. Para a modalidade de pesquisa a que estamos nos
propondo, na qual se trabalha no pré-reflexivo, e as pessoas não estão na situação de atores
que se orientam por textos pré-dados; o texto emerge, no ambiente de sala de aula, “na
liberdade que o pesquisador tem de organizar sua atividade e de conviver com seus sujeitos”.
(p.151). Por isso, as cenas que emergirão, na minha empiria, terão uma reação nem sempre
clara. Desse modo, não há uma linearidade.
Assim, os autores recuperam esse termo como importante na articulação metodológica
de uma pesquisa, tomando-a em seu estado poiético como núcleos de significações e gerando
recortes de situações convergentes às categorias abertas. Dessa maneira, procederemos nossas
reflexões em torno das falas de alunos, das quais esperamos nos compreendermos educadores
matemáticos.
17
Ideologia, em nossa compreensão, tem o sentido hermenêutico descrito por Ricoeur, como constituição,
pertença de um grupo cultural.
VI – AS CENAS E MINHAS INTERPRETAÇÕES
A seguir, apresento as cenas, cujas constituições reúnem falas que, na minha
perspectiva, gravitam em torno de temáticas, às quais denominei: Cena 1 Um pré-texto para
as demais cenas; Cena 2 Infinitude da Matemática; Cena 3 A Limitação de um Sistema de
Numeração; Cena 4 A Base Zero ou Um; Cena 5 Matemática: descoberta ou invenção?;
Cena 6 O Infinito: pela Matemática; Cena 7 A Geometria e Cena 8 – A Presença do Outro
me Constrange.
Procederei, em cada cena, às análises Ideográficas, transcrevendo, descrevendo e
interpretando , vivenciando um ato no qual buscarei significações genuínas e no compromisso
aberto por todos, e não farei busca dos significados que atenderiam a alguma hipótese minha,
que francamente não foi posta.
Entrando em Cena : Um Pré-texto para as Cenas Seguintes
CENA 1 - C1
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ARTHUR: Eu elaborei esta pergunta (a pergunta, aqui, é: “Como se define o
jeito de olhar matemático?”) naquela aula em que lhe perguntei: Professor, por
que a nota do TI (trabalho interdisciplinar) entra na matemática, se nós não
precisamos fazer nenhum cálculo?
VÍTOR: Do jeito que nós temos estudado e visto nas aulas de matemática, com
o senhor, pra perceber, com os textos trabalhados, e como o senhor disse, a
matemática não está apenas com os números.
ARTHUR: Eu nunca imaginei que seria possível chegar a um assunto, uma
matéria tão trabalhosa que é fração e porcentagem começando por uma redação
sobre o que é felicidade para mim, depois analisar e descrever sobre um gráfico
da reportagem, fazer outro gráfico, escolher uma outra reportagem qualquer,
escrever o que eu compreendi sobre ela, trocar estas reportagens com os
colegas e, sem querer, a gente estava conhecendo vários tipos de gráficos com
frações, porcentagens,... é muito interessante mesmo!
CARNEIRO: É que, como o senhor sempre nos diz, a matemática não pode ser
representada apenas onde tem números, e a gente pode ver que ela está ali.
Quando você o livro (pegou um livro que estava sobre a mesa), você tem
na cabeça, já percebe que aquele formato é retangular...
PRISCILA LIMA: Você olha para este monte de papéis e você já sabe mais ou
menos quanto papel tem aqui.
ARTHUR: Tudo tem número?
PRISCILA LIMA: Nem tudo.
ARTHUR: Claro, por exemplo, (ainda olhando e folheando o trabalho da
Priscila) 50% não é possível falar que você tem 50 % de felicidade. É... a gente
aprende a ver as coisas de outra maneira
VÍTOR: Acho que o olhar matemático não tem definição. Ao olhar para um
texto, você não vai ver a matemática sempre do mesmo jeito.
MARIANA LIMA: Matemática vai além de números, acho que vai além
daquilo que se vê na escola.
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CARNEIRO: (dirigindo-se aos colegas): O que é matemática em si?
LACERDA: Para mim, matemática está presente em tudo, é até diversão.
Vocês podem até me chamar de viajante. . . como aquele ator no filme Matrix.
A matemática não é linear. É assim que a apresentamos, mas é um conjunto
que está sempre em movimento.
ARTHUR: O kumon, não sei quem daqui conhece, é bem diferente da
matemática que a gente vê aqui. Aqui, matemática é aprender a olhar a
matemática.
ÉRICA: Que tal cada um falar sobre o jeito do professor ensinar matemática?
LACERDA: Não me ensinam a matemática... cada um a usa de acordo com
seus sonhos... A matemática é infinita. vários modos de usá-la, até um
sonho que não seja bom . . . A matemática é o poder; neste meu depoimento,
matemática e poder são sinônimos.
MARIANA LIMA: Ele quis dizer que, sendo ela poderosa...
ARTHUR: Depende da interpretação da pessoa, sobre o que é matemática.
Por exemplo, esta carteira. Nós chamamos de carteira, retângulo, bloco
retangular, mas poderia ter outro nome.
PRISCILA LIMA: Mas acho que a gente descobre matemática...
ÉRICA: Este novo modo que a gente aprendeu matemática é diferente. A
outra matemática, a gente fazia dois mais dois igual a quatro.
ARTHUR: Não dá pra explicar.
Tratarei, a partir daqui, fala 01, fala 02, fala 03 etc., respectivamente como F1, F2,
F3,... como referências aos dados brutos para mostrar uma transcrição do que as falas dos
sujeitos pareceram-me dizer.
ANÁLISE IDEOGRÁFICA – AI1
Ao delimitar núcleos de significados nas cenas, pareceu-me possível desenvolver
outros textos, afins entre si, mas que permitem descrições de acordo com as nuanças de
significados, percebidas após diversas leituras e, sem perder o sentido de todo das mesmas,
busco compreendê-las/interpretá-las em subcenas.
Subcena 1.1 Uma Descrição.
O grupo acolhe o tema “avaliação”, enquanto uma experiência vivida no TI (Trabalho
Interdisciplinar), como um pré-texto para a discussão, com a qual oportunizam um questionamento
sobre a pertinência da nota, obtida neste trabalho, compor também a média de notas em
Matemática, embora não tenham efetuado cálculos durante a sua realização. A questão gravita em
torno de uma tentativa de definir o jeito de olhar matemático, ressoando na maneira do professor
avaliar um trabalho em que os números não estão explícitos nem evidenciados. O próprio grupo se
encarrega de dizer que não uma definição. Pelas aulas que vivenciaram, mostram terem
percebido que a matemática não se restringe apenas aos números e dizem, ainda, que a matemática
vai além do que se vê na escola.
Uma Interpretação.
A falta de uma definição objetiva abre-lhes espaço para uma crença em que, a
o olhar para um texto,
a matemática não é vista sempre do mesmo jeito. O olhar, enquanto “ver” ou se compreender no
mundo pela matemática, não se ancora numa definição (F9). Acredito que esta explicitação, que me
projeta nas falas dos alunos, mostra-me out
ros modos de entender o que se pode articular em torno
do que seja “visão”. Tento trazer a esta reflexão o “olhar” de que trata Merleau-
além da ação de “ver” , como uma função biológica que intercruza com um estar-no-
mundo “vendo”
pela per
cepção. Ou seja, não é uma visão de sobrevôo que apenas fala do visto, mas vivendo o que
se pode ver. Um sentido de visão impregnado na existência corpórea, um corpo que pode ver e é “ao
mesmo tempo vidente e visível” (Merleau-Ponty,1980, p. 88). Se o alun
o percebe que “a matemática
vai além do que se na escola” (F 10), isso mostra configurar uma escola que mutila outras
possibilidades de expressão matemática. Somos levados a refletir sobre onde residem as fontes de
obstrução do ato criador que significa a existência humana no cenário escolar.
Uma Interpretação.
A abrangência das questões postas pelo grupo: “O que é matemática, o poder com o qual ela
não tenta se impor e críticas a atitudes pedagógicas na educação”, motiva-me realçar que
esse grupo de alunos não fala de um lugar comum no tocante à prática pedagógica de
matemática escolar. Esta pesquisa pretende, intencionalmente, ser também uma interpretação de
uma vivência experienciada no cotidiano escolar, cuja proposta se aproxima de uma didática
fenomenológica tal como abordada por Bicudo (1999, p. 31). Esse proceder visa à crítica das
verdades aceitas, o que viabiliza, na tarefa que desenvolvemos, como professor delas, o aluno se
colocar num horizonte onde “ver” matemática é “aprender a olhar a matemática”. O movimento
de compreensão vai se alargando, e o sentido da matemática vai se pondo segundo um ato
descritivo e não explicativo: a não limitação do que se entende por matemática, a visão como
um poder humano, mas um poder sobre o caos, inclusive podendo ser vista descomprometida de
linearidade. A linearidade que a tradição cartesiana lhe atribui e nos apresenta, perde-se no
movimento que a lança num novo horizonte visto, segundo uma concepção crítica e aberta,
permeada de interpretações também subjetivas. Realça também a importância de atitudes
pedagógicas favoráveis e mediadoras nas compreensões e desvelamentos de concepções
latentes acerca de objetos matemáticos; posturas que não retiram o professor da sua função
principal. Há um rompimento das fronteiras reduzidas de matemática escolar, alicerçada e
acabada em algoritmos. Frente ao novo, o aluno se desprende de noções pré-concebidas de
conhecimento.
Subcena 1.2 Uma Descrição.
O que é, então, matemática, em si? (F 11) Ela é apresentada linearmente, mas não é assim; é
um conjunto em movimento (F 12) . Os alunos estão falando da matemática “vista” na escola
onde estudam e, para eles, “aqui, matemática é aprender a olhar a matemática” (F 13). Há,
ainda, um apelo à matemática como poder , um poder que não é ensinado, devido à sua
infinitude, mas que possibilita a cada um usá-la de acordo com sua vivência (F15), um poder
que transfere à pessoa suas interpretações (F 17), e, paradoxalmente, uma abertura que se fecha
ao nomearmos as coisas com as quais relacionamos: “Por exemplo, esta carteira. Nós
chamamos de carteira, retângulo, bloco retangular, mas poderia ter outro nome” (F17) .
Significativa, também, a fala “a gente descobre matemática” (F 18) e “A outra matemática, a
gente fazia dois mais dois igual a quatro (F 19)”.
A infinitude da Matemática
Cena 2 – C 2
Fala 21
Fala 22
Fala 23
Fala 24
Fala 25
Fala 26
Fala 27
LACERDA: No nosso último encontro, definimos que a matemática é infinita
eee... ééé..., como dizem que os números são infinitos, bom sim, que a
matemática, para a maioria das pessoas, matemática é um bando de números,
contas, não é coisa que a pessoa pensa; matemática, é número porque o número
é, digamos, aaa.. representação da matemática, porque os números são
infinitos.(nesse momento, o aluno, enquanto falava, tocava algumas sementes
de um jogo,o Kalá, que estava sobre a mesa, e os colegas que estavam mais
próximos insistiam para que ele as largasse, uma voz mais insistente, a do
Carneiro, dizendo: Larga!).
LACERDA (continua) Bom, mas, por exemplo, os números são apenas a
representação e não a matemática ao todo, é..., a matemática, por exemplo, é...
muitos pensam que a matemática é como uma prisão assim que prende o
cérebro a um bando de cálculos e coisas assim, mas a matemática, na verdade,
é tudo que existe, a matemática acompanha o mundo, qualquer coisa, mesmo
assim, não olhando com um olhar matemático dá.. assim...que...
LAÍS, (com um tom meio sorridente): Em tudo está incluído matemática?
LACERDA: Não, assim,...
ÉRICA: Mesmo sem olhar matemático tem matemática?!
CAROLZINHA: Em todas as matérias acho que incluímos a matemática.
LACERDA: Que nem no TI. No TI, o Arthur perguntou ao professor Flávio:
Por que nós usamos a matemática no TI, se a matemática não teve nenhuma
influência no TI? Mas, na verdade, a matemática influenciou no TI e muito,
porque, como, por exemplo, é... oo.., para calcular no teatro, tínhamos que
calcular o número de pessoas, calcular o número de falas para cada um e
dividir . Dividir, digamos, já é mais um termo usado na matemática, né?
ÉRICA: Eu acho que também não foi só nesta parte sim do dividir o número de
falas sim, só de no primeiro momento a gente ter feito um texto coerente assim,
acho que a matemática já entra ali, entendeu? sabe, não porque dividiu o
número de falas por cada personagem...acho que porque a gente ter feito um
texto coerente a matemática já entra ali.
ANÁLISE IDEOGRÁFICAAI 2
Subcena. 2.1 Uma Descrição.
O aluno Lacerda inicia esta cena, trazendo para aquele ambiente algumas considerações
apontadas no encontro anterior, admitindo que a matemática é infinita (F 21). Embora os
números sejam infinitos, eles são apenas uma representação da matemática; sendo que esta não
é uma prisão; é tudo o que existe. Surgem, então, questões como: “em tudo está incluída
matemática?” (F 23) e “Mesmo sem o olhar matemático tem matemática?” (F 24). Em todas as
matérias incluímos a matemática (F 25). No caso do TI (Trabalho Interdisciplinar), não
precisamos fazer cálculos, mas a matemática influenciou no teatro (F26). Para calcularmos o
número de pessoas, o número de falas de cada um. Na fala 27, Érica recupera o sentido de
considerar matemática no TI, argumentando que a matemática se mostra também na coerência
textual; “só de, no primeiro momento, a gente ter feito um texto coerente, acho que a
matemática já entra ali” (F 27).
Uma Interpretação.
Com esta cena, recoloco-me num cenário em que as falas de Lacerda me permitem denunciar
e criticar as crenças em objetos matemáticos como entes que se encerram apenas em cálculos e
adequações algorítmicas. Nesse horizonte de compreensões, não um fim para o que
chamamos ‘matemática”. É possível compreender, com as falas, uma concepção de
matemática como unidade originária no humano, uma retomada ao ato de existir. Uma
mensagem que nos traz essa visão ontológica, acompanhada de uma crítica ao proceder
epistêmico-pragmático; muitos ainda pensam que a matemática se resume nos números e em
suas relações operatórias. Considerar isto é vivenciar uma prisão. Talvez, se nos libertarmos
deste modo simplista de transacionarmos com os objetos matemáticos, poderemos nos
aproximar do conhecimento matemático existente na totalidade da nossa vivência. Esta é uma
via que me possibilita compreender a fala com a qual Lacerda se expressa ao apontar que
matemática é tudo que existe..., matemática acompanha o mundo..., qualquer coisa...
Há, nessa visada, um apelo à liberdade; o aluno/sujeito me lança num movimento de
desrealização da Matemática como um estreito vínculo à ciência e à Escola, oportunizando-
nos, desta maneira, uma abertura à percepção de infinitude, ou seja, matemática existe no
mundo, mundo que nos acolhe e, por estarmos, estamos condenados ao sentido (Merleau-
Ponty, 1996, p. 18). Somos, desse modo, capazes de experienciar matemática numa relação de
atribuição de sentidos. Resta-nos a incessante busca do seu sentido pedagógico.
Subcena 2.2. Uma Descrição.
Érica, na fala 27, parece-me recuperar um sentido na atitude do professor ter considerado a nota
do trabalho interdisciplinar (TI) em matemática, mesmo sem terem sido necessários fazer
cálculos. A aluna argumenta que a matemática se mostra também na coerência textual; “só de,
no primeiro momento, a gente ter feito um texto coerente, acho que a matemática já entra ali” (F
27). Laís fala de sua experiência vivida com esse trabalho, cujo tema foi “O Lixo”, e considera
que “matemática também são as formas, como um bloco retangular” (F 28) e (F 34).
Uma Interpretação.
A questão fundamental que me salta, dessa cena, é a possibilidade de ampliação do universo de
objetos matemáticos, como elementos culturais, estendendo-os à coerência textual. Uma
racionalidade que, compreendida numa perspectiva fenomenológica, é manifestada numa
experiência pessoal de organização da expressão lingüística.
Ao vivenciar os discursos que constituem essa cena, abrem-se oportunidades para percebermos
presenças matemáticas além daquilo que a tradição escolar nos ensina a ver. Daí, a importância
de matematizar com um grupo de alunos afins com a proposta, pode estar relacionada à
possibilidade de conceber matemática além de números e formas geométricas. Cabe ao
educador matemático, cuja escolha seja pelo sentido de educar pela matemática, a tarefa de
enfrentar os desafios de atividades pedagógicas que deslizem das estreitas concepções dadas e
impostas, às manifestações das quais possam ressoar outros sentidos do estar em sala de aula.
Esse proceder nos permite concordar com Merleau-Ponty, admitindo que “O essencial do
pensamento matemático é então neste momento em que uma estrutura se descentra, se abre a
uma interrogação e se reorganiza segundo um sentido novo que no entanto é o sentido dessa
própria estrutura”. (MERLEAU-PONTY, 1974, p.136).
A Limitação de um Sistema da Numeração.
CENA 3 – C3.
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VÍTOR: Puxa gente, seria interessante se a gente começasse dessas perguntas,
essa então seria assim como uma resposta pra primeira, que a matemática é
infinita. Sei lá,... mas porque, se a gente chegar lá na hora e não tivesse
nenhum ponto de partida assim de onde começar, acho que agente devia ter
uma pergunta assim na base e depois ia passando...
VÍTOR (Continua):A primeira era... por que dez divido por três. O Arthur
disse que era por causa do sistema, né?
ARTHUR: É... porque se a gente dividir dez por três no sistema fracionário, a
gente consegue.
ÉRICA: Se a gente pegar dez barras e dividir, a gente consegue.
VÍTOR: É...
Prof. Pois é, e a pergunta que vocês colocaram no quadro é: por que dez
divididos por três não pode ser dividido no sistema hindu-arábico? Qual foi a
discussão provocada?
VÍTOR: Por causa do sistema. Porque, a gente fala, depende de cada um
sistema, e o sistema indu-arábico não permite é, divisão assim, mas é por causa
dele, não porque não pode dividir dez por três e, sim por causa daquele jeito ali
de dividir.
Uma Descrição.
O aluno Vítor se encarrega de organizar a discussão, propondo começar por uma pergunta e
ir passando. É possível dividirmos dez por três ; não no sistema de numeração hindu-
arábico, mas no “sistema” fracionário.(F 36) (estavam se referindo ao conjunto Q, na forma
a/b, com b 1). Consideram que o sistema de numeração hindu-arábico não permite dividir
10 por 3, por causa do jeito de ali dividir. (F 40).
Uma Interpretação.
No contexto da cena, compreendo que os alunos articulam, na discussão, nuanças do
fenômeno da divisibilidade e ainda elaboram uma situação em que as partes “iguais”,
resultados da divisão de 10 por três não podem ser representadas por um número classificado
como “inteiro”.
Esta ação de pôr um número dividindo outro, configura um algoritmo. Posso entendê-lo com
Merleau-Ponty (1969, p. 140) , “uma verdade de adequação” que se instala na expressão exata,
estruturada segundo uma visão de mundo cuja linguagem é alicerçada em códigos
convencionais.
Tomando as contribuições da fenomenologia nesse aspecto, quero propor que as falas dos
alunos, nessa cena, permitem uma reestruturação dessa verdade. Ao dizer: “... não porque não
pode dividir dez por três e, sim, por causa daquele jeito ali de dividir”, o aluno Vítor parece
evocar um ultrapassamento de conhecimento matemático no âmbito da escola, um
A Base – Zero ou Um ?
Cena 4 - C4.
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PRISCILA LIMA: qual vai ser a próxima pergunta?
LAÍS: a base da matemática... o valor...
MARIANA LIMA: A gente vai considerar aqui que qualquer valor pode ser a
base da matemática. Pode ser que tenha uma lógica. Para mim é o 1 , para o
Lacerda é 1...
CARNEIRO: Qual é o significado de base para você?
LACERDA: Pra mim, base é algo assim que suporta alguma coisa. Se o valor da
base é o zero, que pode ser, por exemplo, a partir daquela base, nós podemos
fazer ... alguma ééé..., nós podemos fazer... é para a frente assim,..
PRISCILA LIMA: Lacerda, fala por que que você acha uma base ....
CARNEIRO: Mas, rapidinho.Você acha que, assim, esta base para tirar
alguma coisa assim , vamos dizer, é, mais baixa que ela assim?
ÉRICA: Não entendi sua pergunta não.
Outras vozes: eu também não...
LACERDA: Com o 1, você vai chegar a todos os números. O zero não chega a
número nenhum por multiplicação. Com o um, você pode usar qualquer é,
digamos, qualquer operação pra modificar, assim, o seu valor e o zero não, por
exemplo, não dá pra usar multiplicação com o zero e ele ser ... modificado.
MARIANA (espantou-se): Como assim?
CAROLZINHA: se você multiplicar, ele não vai ser ..
LACERDA: o que mudou o zero?
Várias vozes, primeiro a da Carolzinha: nada.
LACERDA: Mas o um. Se multiplicar um a zero, dá zero. O um virou zero.
Érica convoca Arthur a falar: Arthur, não quer falar alguma coisa?
O grupo se manifesta com murmúrios...
ARTHUR: zero é o ponto neutro, é a marca. Vamos supor: numa pista de
atletismo, ela começa do um ou do zero?
LACERDA: Eu não estou o va.. eu estou dizendo o valor e não a posição do zero.
CARNEIRO: Vamos supor...
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ARTHUR: é que no sistema hindu-arábico, há..., acabei de pensar numa
coisa... cada sistema de numeração deve ter seu ponto de começo. No hindu-
arábico é o zero.
LACERDA: Você está falando da posição do zero na nossa seqüência. Mas a
gente não disse que a matemática não é uma coisa de seqüências? A
matemática é tipo imaginando é um todo, é um tipo de universo e que nada
tem uma seqüência exata.
ÉRICA: Tá, mas no sistema que a gente usa, a base é o zero. Tanto é que ele é
o único, único número que é neutro.
CARNEIRO: Eu acho que é assim: Você não disse que é, é a base pra você é o
que suporta os outros?
MARIANA LIMA: o quê?
LACERDA: O zero?
CARNEIRO: Suporta, então,... rapidinho..ééé..Vamos supor que assim, tipo
categorias, assim do tipo aqui ( e pegou um dos trabalhos )categorias das
meninas, ée, o zero é o número que está mais abaixo, podemos dizer, que está
suportando os outros...do zero não tenho um número menor.
LACERDA: Nós, aqui nessa nossa reunião, nós temos que um ouvir a idéia do
outro sim, e meditar sobre ela. Eu acho que ninguém tem a mesma idéia.
CARNEIRO: Eu também tô na sua, só que isso que estou falando eu tava...
LACERDA: Então estou tocando na seqüência, o lugar onde nós tocamos o
zero...
ÉRICA: Eu entendi o que você quis dizer.
CARNEIRO: E você, você..., eu estou tentando defender a minha idéia,
porque eu estava pensando em casa, sobre a base da... da matemática e eu tive
esta idéia, porque é igual quando você vai ver uma régua. Ela não começa do
um. Ela começa do zero.
LACERDA: Aí, outra coisa que nós, a gente não disse..., nós ...não chegamos
à conclusão de que não foi o homem que inventou a matemática, mas ele
descobriu a matemática?
CARNEIRO: É, mas aí...
LACERDA: Então, é como eu disse, a matemática é, digamos, um universo
assim, contendo todas as coisas: cálculos,..
ANÁLISE IDEOGRÁFICA – AI 4.
Uma Descrição.
Nessa cena, o foco principal é o que os alunos vão chamar de “base” da matemática,
retornando à indagação “de qual valor a matemática parte, do zero ou do um?”. É possível
considerar que qualquer valor pode ser a base da matemática (F 43), mas qual é o significado
de base? (F 44). Base é algo que suporta alguma coisa (F 45). Surge uma questão: Existe algo
menor que a base? (F 47). Ao considerarem zero como valor-base para a matemática (F 63),
zero é o que está mais embaixo, suportando os outros; não há um número menor que ele.
Qualquer operação modifica o um (1). Com o zero não. Se eu multiplicar por zero, ele (o
zero) não será modificado (F 49). Sendo assim, o valor-base da matemática é o um. Ninguém
tem a mesma idéia (F 64). O ponto de começo depende do sistema de numeração. No hindu-
arábico é o zero (F 57). Matemática é um universo contendo todas as idéias.(F 71).
Uma Interpretação.
Um modo de compreender o que os alunos estão chamando de “base” da matemática, no que
concerne aos números, encaminha-nos à idéia de sucessão, no escopo epistemológico que
congrega esquemas filosóficos seguidos por matemáticos fundamentalistas, ou seja, eu preciso
produzir os elementos numéricos a partir de algo que estabeleço como dada (a base). O
número 1 seria a base porque, a partir dele, eu conseguiria, por intermédio de operações,
produzir os demais números.
A existência do zero é posta em questão. Daí, a suscetibilidade que ordena os números
“naturais” desconfigura-se quando a operação não é a de adição. E a discussão nos endereça a
conceber que os sistemas não são construídos por multiplicação, ou seja, não se aplica o
princípio multiplicativo. Mesmo assim o zero é trazido à cena como um ente que provoca uma
interlocução, evocando um modo de pensar matematicamente a questão do valor e da posição,
sendo esta duplicidade de compreensão e de funcionamento dos números revelada na lin-
guagem comum que espacializa o fluxo comunicativo da cena.
A racionalidade formal, como ato de constituição desses discursos pode ser superada quando,
intencionalmente, interpreto as falas do aluno Lacerda (F 58) “A matemática é tipo
imaginando, é um todo, é um tipo de universo, e que nada tem uma seqüência exata”. Aqui, a
matematicidade vivida potencializa-se numa realização ontológica, como possibilidade de
abertura pedagógica.
Matemática: descoberta ou invenção?
Cena 5 – C5.
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CARNEIRO: É, mas e a base da matemática? O que você estava falando?
Houve um movimento de vozes simultâneas, e, nesse momento, fiz uma intervenção
no sentido de tentar organizar a discussão, convergindo-os ao foco da questão: a
matemática foi descoberta ou inventada?
Nesse momento, mais de um dos componentes do grupo queriam falar ao mesmo
tempo. Porém , o próprio grupo fez um acordo.
Uma voz: vamos fazer rodinha. Tá bom, eu também acho, vamos fazer assim,
ó...Começa Laís!
LAÍS: Eu acho que a matemática foi descoberta porque você não vai inventar uma
coisa assim. As pessoas foram sentindo necessidades, elas foram descobrindo
mesmo sem saber que aquilo era matemática.
ÉRICA: Eu acho a mesma coisa e ia falar isso. Porque, assim, as pessoas, muito
tempo atrás, elas passaram a perceber assim, o que elas precisavam, assim, da
matemática pra... elas , elas, elas não... elas não faziam assim, sabe, contas com
cálculos de terras, medidas de terras assim,só falando que aquilo era matemática. Aí,
depois eles foram ver, aquilo era a matemática. Eu acho que a matemática não foi
inventada. Ela foi descoberta e depois fizeram com que ela virasse a matemática.
PRISCILA LIMA: Eu acho que a matemática foi descoberta também e eu acho
assim que para inventar a matemática, acho que não sei se descobriram ou
inventaram, mas, pra mim descobriram, porque pra inventar matemática assim ééé.
Priscila foi interrompida por Lacerda, que tenta dar continuidade à sua fala:
LACERDA: ééé... meio impossível ao nosso alcance cerebral...
PRISCILA LIMA: risos... é, nem tanto...risos...
MARIANA LIMA: Èéé... pra mim também matemática foi descoberta, porque,
como todo mundo disse, assim, tipo assim, práaa, pro homem atender às suas
necessidades, aos poucos ele foi descobrindo a matemática. Por exemplo, pra ele
atender uma necessidade de saber a quantidade que ele tinha, ele precisou de contar,
mas, isso, antes do homem nascer, sei lá o que aconteceu com a origem do
homem,é, tinha matemática que aos poucos ele foi descobrindo, é, é, pra
satisfazer suas necessidades.
Vítor: Eu acho também assim que a matemática, ela foi descoberta, porque, a
matemática, na verdade, é um nome só. Matemática é apenas um nome que a gente
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deu para ela, mas, assim, ela existia e o que o homem não vai inventar aquilo. Na
verdade, acho que ele vai nomear aquilo comooo, assim, como uma ciência
mesmo, como a palavra matemática, mas ele não inventa aquilo, aquilo ali estava
inventado. Ele nomeia porque aquilo vai ser uma ciência, mas ele não... ele como
que descobre então, porque ele não vai ter que começar inventar aquilo; vai
descobrir que aquilo pode assim, receber um nome, e no caso é esse: matemática
como ciência. (Carolzinha interrompe):
CAROLZINHA: Mas aí entra no caso: quem inventou matemática? Se ela foi
inventada, quem inventou? Ela foi só descoberta, mas quem inventou?
Houve, neste momento, várias manifestações, dentre elas:
PRISCILA LIMA: tudo que está incluído agora na matemática, é o que eles
descobriram pra colocar um nome na matemática.
LACERDA: é que, é a mesma coisa que o fogo...
Continua Carolzinha: mas, aí, quem fez pra que ela existisse?
Alguém disse: agora é o Carneiro.
CARNEIRO : Eu acho que a matemática, ela é, foi assim, descoberta, porque
também pela ciência, né? Quando nós viemos o mundo já tava, vamos dizer , vamos
dizer que pronto né? Pra nós chegarmos aqui. tinha matemática... a Terra era,
vamos dizer, redonda, né? e como o homem poderia ter montado ela se quando ele
chegou aqui, ela estava pronta, vamos dizer. Então acho que a matemática foi
descoberta eee, assim, ela é representada pelaaa com uma matemática com os
números que, porque, porque igual um coreano eles falam de outro jeito. a
matemática pra ele é diferente , é, tanto quanto quando eles montaram a matemática,
eles poderiam chamar de português e colocar números e colocar letras em vez de
números e chamar de matemática.então, pra mim, ela foi descoberta.
CAROLZINHA: eu acho que elaaa, foi descoberta, mas eu queria abrir a questão de
quem quem no caso inventou ela para ela pra ela ser descoberta?
LACERDA: bem, eu, não, depois eu falo, vai.
CAROLZINHA: eu tenho uma idéia que ela seja, foi descoberta. Não tenho certeza.
E não necessariamente o homem que inventou ela. Mas sim aaa, alguma, alguma
coisa.
LACERDA: Uma entidade.
CAROLZINHA: Isso mesmo, alguma coisa.
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ARTHUR: Eu acho que a matemática foi descoberta, não por isso, mas tudo aquilo
que a gente sabe, hoje em dia, foi descoberto. De uma certa forma sim; isto podia
ter sido feito que nem quando os egípcios descobriram foi uma inovação. (vozes:
ohhh!!!) foi uma espécie de descoberta. Eu acho que a matemática foi descoberta
como o fogo tipo assim: o fogo existia no sol... mas agente....( as palavras não
saiam . Arthur foi interrompido por:)
CARNEIRO: ... mas a gente descobriu , vamos dizer assim, nós descobrimos ele
por acidente..
MARIANA LIMA: Ele já existia, mas agente não sabia...
CAIO: Para mim, ela foi descoberta porque... (risos..) ... (risos)... se a gente for
pensar igual ... diz que o homem sentiu a necessidade de ... de... da matemática... a
primeira VI (teste) que o senhor deu no ano estava falando sobre , igual falou que
descobriram a matemática pareceu inovação. Porque igual estava escrito sobre
eles contarem o rebanho deles ee com pedaços de madeira, pedra ee.. e que
mais? Sei lá, sei lá... ( risos...), várias vozes, e alguém disse: continua Caio!
Caio continua... hã? A pergunta sobre quem descobriu a matemática. Eu acho que
se a gente for pensar assim em quem fez a matemática, é..., eu acho que você não
vai encontrar, porque você ... ééé..., o homem descobriu e se quando ele existiu o
mundo já estava vamos dizer, pronto,é ,é, natural, sei lá, gente...
LACERDA: para complementar... Eu acho que, a matemática, foi a primeira
coisa assim a ser inventada, não, assim, a ser criada. Ela nasceu junto com o
universo. A matemática criou o universo. Do mesmo jeito que ela ainda persiste no
mundo. Ela ainda consiste, quer dizer, ela ainda consiste o mundo do mesmo jeito
que ela assim, digamos, ela criou o universo. Eu acho que se a matemática foi
criada, inventada, então ela foi inventada por Deus.
ÉRICA: A Carolzinha falou assim, então, quem inventou a matemática? Eu acho
que, se fosse.., se não foi a matemática que foi criada ou inventada, porque uma
ANÁLISE IDEOGRÁFICA – AI 5.
Uma Descrição.
Da discussão em torno da origem da matemática, consideramos núcleos de significados,
momentos em que os alunos se abrem às concepções de matemática como uma descoberta pelas
necessidades humanas, mesmo sem saber que aquilo era matemática (F 73); ela foi descoberta e
depois fizeram com que ela virasse matemática (F 74). Ela foi descoberta por ser apenas um nome
que a gente deu para ela. O homem a nomeia como uma ciência (F 79). Uma descoberta
representada por números (F 83). Mas, quem a inventou para ela ser descoberta? (F 84). pode ter
sido descoberta como o fogo (F 89), ou, quando o homem existiu, o mundo estava pronto,
sendo natural a existência da matemática (F 92). A matemática foi a primeira coisa a ser criada.
Ela criou o universo e persiste no mundo do mesmo modo. Se ela foi criada, inventada, ela foi
inventada por Deus (F 93). Cada pessoa teve uma descoberta diferente na matemática (F 94). Nós
ainda estamos querendo descobrir qual é a base da matemática (F 95).
Uma Interpretação.
Da cena, como um todo, vejo configurar uma faceta de pretensa objetividade científica que
me parece tentar dizer que o humano encontra o mundo já constituído e, por sua
necessidade, vai desvelando seus conteúdos, identificando-a com as partes que compõem seu
universo. Platão, Pitágoras, Euclides, Galileu, Descartes, para citar alguns semelhantes
nossos, contribuem na manutenção das justificativas que colocam o humano e o mundo face-
a-face. Nessa dualidade, o humano vence por dominar, por estruturar, por encaixar e por
nomear pela matemática. Esse caráter de cientificidade pode ser exaurido na fala de Vítor (F
79): “Na verdade acho que ele (o humano) vai nomear aquilo como uma ciência mesmo,
como a palavra matemática, mas ele não inventa aquilo, aquilo estava inventado. Ele
nomeia porque aquilo vai ser uma ciência... vai descobrir que aquilo pode, assim, receber
um nome e,. no caso, é esse: matemática como ciência”.
Uma questão é suscitada por Carolzinha (F84) como convite à reflexão Se a matemática foi
descoberta, quem a inventou? Este chamado retorna-me à fala de Érica (F 74) e vislumbro
outros sentidos para o que estão chamando de “descoberta”.
Há, aí, a possibilidade de um apelo à historicidade que desenha um esboço melhorado para a
trajetória indicativa de uma construção da matemática: [... muito tempo atrás, elas
passaram a perceber assim o que elas precisavam,... elas não faziam cálculos de terras,
medidas de terras... falando que aquilo era matemática...] Acredito estar falando da cultura
egípcia. [Aí, depois eles foram ver, aquilo era a matemática] Parece-me falar da cultura
grega. ”Eu acho que a matemática não foi inventada. Ela foi descoberta e depois fizeram
com que ela virasse a matemática”, prossegue Érica em seu discurso.
Ao experienciar a espacialidade constituída pelas fagulhas de significados da cena, ressoam-
me duas vias de compreensão: uma que se projeta numa linguagem comum, adquirida, mas
que desaparece no desenvolver da própria discussão, deslizando ao sentido de uma outra via,
interpretada à luz do que Merleau-Ponty (1980, p. 85) me fala em “ciência manipula as
coisas e renuncia a habitá-las”. O manipular científico, nesse viés, concretiza-se numa
fabricação de modelos internos que, segundo Merleau-Ponty, só minamente se defronta com
o mundo atual. Voltemos, assim, à concepção de um pensamento de sobrevôo.
Sendo assim, na intencionalidade desta pesquisa, há um sentido de descoberta da matemática
ainda não prevista, ou seja, pelas falas estamos descobrindo ou inventando uma matemática,
independente de nominalismos. O importante, nessa vivência, é acreditar poder despertar
educadores afins desse projeto; é a possibilidade de, ao poetar no ambiente escolar, deixar
fluir o que os alunos estão buscando, como supõe o aluno Lacerda(F95): “...nós ainda
estamos querendo descobrir qual é a base da matemática”.
O infinito: pela matemática.
Cena 6 – C6.
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PROF: Estamos produzindo matemática. Porque, ao falarmos sobre a matemática,
estamos produzindo matemática.
LACERDA: é, ué; que nem na última; a gente começou éé, porque o dez não
podia ser dividido por três, e nós chegamos à conclusão que a matemática é
infinita, que nem uma árvore genealógica....
PROF.: e o que é o infinito para vocês?
ARTHUR: é disso mesmo que eu ia falar... a matemática não é tão infinita. Tem
coisas que assim, são limitadas justamente por isso. Eu não sei se é a mente
humana que não alcança, ou se é a gente que não consegue, mas a gente não
consegue imaginar um círculo quadrado ao mesmo tempo. Círculo não tem
nenhum lado, mas ,.. e um quadrado não tem nenhuma face, nenhum lado
redondo, então, se a gente mudar uma coisinha, não é considerado um quadrado
ou círculo. Já muda. E, por exemplo, a gente não consegue imaginar uma máquina
que produza sons em todo o universo. A gente não consegue imaginar um som tão
alto assim,; que o nosso corpo alcança vinte mil daqueles,,, negócio para medir
o som. Então depende, e a matemática não é tão exata justamente por isso. Mais
um exemplo do círculo quadrado e a matemática tem suas limitações. Ela tem seus
limites.
Uma voz: “então fala assim: dentro de um um ....”
ARTHUR: ah, eu ia perguntar justamente isso: quem que acha que a matemática é
infinita e quem acha que ela não é infinita. Começa a rodinha, desta vez começa
do Caio.
Neste momento, houve várias vozes se manifestando e quem se lançou à frente foi
o Carneiro.
CARNEIRO: Rapidinho, ééé... ainda em relação ao anterior,... professor, eu acho
que assim, se esse disco. . . é, ... vamos dizer, ... ééé, descobrir, nós estávamos
falando, e, é, eu acho que assim de..ver que aquilo, assim, iii, esqueci a palavra. É,
igual matemática tá, vamos ver, ela escondida e nós achamos ela, assim
descobrimos ela, eu acho que assim, não é porque, ela sempre perto da gente,
mesmo que nós não repare iii, não reparamos, porque, assim, quando s olhamos
assim prá todos os lados, nós vimos matemática ; até quando nós olhamos pro
céu.Eu acho que tem matemática em todos os lados. É igual o Lacerda falou uma
vez que tem éé, o ponto de fuga ... quando a gente olha reto num lugar ele não tem
Fala 101
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Fala 104
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Fala 106
um infinito, vai sempre reto.
CAROLZINHA: Então, a contagem, por exemplo, sabemos que as estrelas são
infinitas, né? mas, para a gente contar em um único pedaço, temos um número
envolvido com a matemática.
CARNEIRO: uma quantidade, né?
ÉRICA: e a forma deee, dááá, igual a forma das nuvens, assim, às vezes nos a
idéia de linhas curvas e as formas também que as nuvens nos dão idéia.
VÍTOR: eu achei foi o seguinte: falamos se a matemática foi descoberta ou
inventada, então a gente caiu praticamente de novo em qual seria a base, porque,
se alguém inventou aquilo ou se alguém descobriu, ela tem uma base, e naquele
outro encontro da outra vez que eu disse que achava que a matemática não veio
nem de zero nem veio de um. [várias vozes, e uma que diz: vai.. continua,
continua... e Vítor continuou: ] a matemática o veio nem de zero nem de um,
porque não vai partir, a matemática , ela é uma ciência, ela não, sei lá, cê não
vai inventar ela,você vai como se você vai descobrir alguma coisa, igual se está
dormindo e você descobre aquela pessoa, ela vai acordar como se vôo,
assim,
caindo na idéia da base, a matemática não veio de zero nem do um, o homem, ele
sentiu ali a necessidade de contar, por isso que ele a matemática surgiu. Eu acho
que a matemática, assim, tem como se fosse a base quem inventou foi por causa da
obser
vação porque quando a gente observa, uma, observou ali a necessidade tem
a gente que criou o zero, criou o um , e o resto dos números, então, a matemática
não veio nem de zero nem um, ela veio da observação.
LACERDA: bom, o Arthur perguntou se a matemática é infinita. [vozes,...] Bom,
é, mas depois que o Arthur falou aqui, do círculo e do quadrado, eu concordo com
ele, eu concordo com o Arthur... esta parte já limitou a matemática.
[Arthur não queria falar, mas alguém disse-lhe: você não foge da rodinha, não,
tá?]
ARTHUR: Olha só, é o seguinte: ééé... matemática tem seus limites; não em
termos de números. mero a gente pode cada vez, cada vez pensar em mais
números. legal, que a gente vai ficar assim conseguindo representar eles, a
gente sempre vai poder, tipo assim, a gente pensa: cilindro com um furo no meio
igual a a a a algum número super grande. [uma voz de menina: nossa... nem tento].
Arthur risos e prossegue: Então, número é uma limitação. Mas as outras
partes como a álgebra, . . . não, a álgebra não. A geometria quero dizer. A álgebra
e as equações, elas têm um limite, sabe? Ela não é totalmente infinita. Uma parte
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dela sim, e outra, não.
CAROLZINHA: é... eu acho que como os números estão envolvidos na
matemática, e os números são infinitos, eu acho que a matemática não se limita
também como os números.
CARNEIRO: eu acho que a representação da matemática, ela é infinita, assim
porque, os números sempre vão aumentando, aumentando, aumentando sem fim
né? E... eu acho que a matemática é, tipo o que eu vi outro dia assim, uma lógica
porque, nós não montamos a matemática, né? ela foi mais pela lógica do homem
pela necessidade que ele teve ... de... contar quantos animais ele tinha, então a
representação pra mim ainda é infinita, mas a matemática, em si, ainda não foi
definida.
PROF: bem, gostaria que vocês discutissem um pouco sobre as operações que
vocês fazem por aí...
LACERDA: mas, eu posso falar minha opinião sobre isso?
PROF.: claro.
LACERDA: bom, Arthur, nós não chegamos à conclusão de que a matemática
consiste no universo?
ARTHUR: Nnnão exatamente, porque, tudo bem, a matemática está em tudo, mas
a lei do universo é mais a física, também envolve muita matemática, e... [Lacerda
interrompe]:
LACERDA: E nós também não falamos que a matemática está em todas as
matérias, pro físico, e essas coisas assim?
ARTHUR: humm! Sim! Todas as matérias estão em todas as matérias. Se a gente
não soubesse português, a gente não poderia discutir sobre matemática; se a gente
não tivesse as cordas vocais seria uma deficiência, a gente não estaria aqui; se a
gente não soubesse o mapa para chegar até esta sala, nós não estaríamos
discutindo; tudo entra em tudo.
LACERDA: Então, você diz..., mas mesmo assim, a matemática está em tudo. E
por isso, se o universo é infinito, por que não a matemática?
ARTHUR: Hããã?
LACERDA: Por exemplo, ée, lembra do...
ARTHUR: Uma parte, sim. A outra não. Por exemplo: a geometria é infinita: tudo
bem; a gente pode cada vez mais criar polígonos, polígonos, polígonos de dez, mil
lados de onze mil, trezentos e oitenta e quatro lados,...
LACERDA: Já é um sinal de infinidade...
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ARTHUR: Tá, mas aí, é sempre a ver com os números. Tudo na matemática, que é
relativo aos números, é infinito. O que muda um pouquinho, não é. A prova...
[interrompido]
CARNEIRO: O que você acha que é finito, então?
ARTHUR: Eu dei o exemplo do círculo e do quadrado, que pra imaginar e
além de outras coisas mais..
LACERDA: Nós podemos aumentar o círculo...
Continua ARTHUR: Por exemplo, a equação. A gente não pode ficar imaginando
milhares tipos de ....
Muda para o lado B da fita.
... Operações.
LACERDA: Arthur, os números não são infinitos? [insistiu, repetindo esta
pergunta]
Enquanto isso, Arthur tentava responder à pergunta feita por Priscila Lima: Por
que não? (referindo-se à sua afirmação: “a gente não pode imaginar vários tipos de
operações”).
ARTHUR: Eu me refiro à operação: trezentos e oitenta e quatro, mais novecentos
e vinte...........taí o meu na matemática: a gente não pode botar um número maior
dentro de um número menor que ele.
PRISCILA LIMA: a gente pode imaginar...
ARTHUR: a gente não pode imaginar mil, dentro de novecentos
CARNEIRO: imaginar, pode.
Vários repetiram simultaneamente: imaginar pode...
CARNEIRO: É imaginação, cara...
ARTHUR: Se a gente imaginar tentar botar, dez mil barras de chocolate, dentro de
nove mil barras de chocolate. A gente ia conseguir?
CARNEIRO: mas, sim, ia dar, vamos dizer, as vírgulas, né?
LAÍS: Imaginar, a gente pode fazer qualquer coisa.
LACERDA: É por isso que eu digo que a matemática é infinita. É como a nossa
imaginação. A nossa imaginação é infinita também.
CARNEIRO: Quanto mais a gente aprende, mais tem pra aprender.
LACERDA: exatamente. E, por exemplo, se os números são infinitos, claro que
nós podemos inventar infinitas operações.
ARTHUR: Não. A gente tem mais, vezes, mais ou menos , se é que a gente pode
dizer assim, a gente não pode sai inventando . . .ia ficar ridículo, né? esse
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número....aí faz um sinal maluco, tipo assim: o negócio desse aqui, uma roda, com
uma outra roda com um furo em cima. Aí a gente imagina: oh!...esse símbolo aqui,
quer dizer que é esse número mais mil, menos cem, mais novecentos e
quarenta.....[ o interromperam:]
CARNEIRO: Mas, ô Arthur, têm pessoas, que, Arthur, olha só, têm pessoas que
vão montar, igual, é estão na aula, vai, têm que escrever rápido porque o professor
falando pra ele ver que é uma folha pra saber o que teve na aula. Ele pode
colocar abreviações, ele pode montar váriass... representações pra uma coisa
pelo jeito que ele saiba
LACERDA: é, por exemplo, antigamente, eles usavam uma pedrinha para cada
ovelha. Aí, como acumulavam muitas pedrinhas, eles usavam um gravetinho.
Então, olha só, aquele gravetinho era igual a dez.
ARTHUR: Então ta! Eu também acho.
LACERDA: [algumas palavras truncadas]
ARTHUR: Então, ta, já me convenceu. E aí, qual vai ser a próxima pergunta?
LACERDA: O pessoal pediu pra continuar a rodinha.
ARTHUR: É isso aí: rodinha! Formas geométricas!
ANÁLISE IDEOGRÁFICA – AI 6.
Das possibilidades de interpretação, com esta cena, pretendo dar relevo a dois focos de
descrição, trazendo-os como importantes para esta investigação. Trago, como eixos nucleares,
os discursos que cuidam do “infinito” e da “imaginação”, que me pareceram realevantes nas
falas dos alunos.
Uma Descrição.
O grupo assume a matemática como um campo de reflexões acerca do que cada um entende
por infinito. Articulam que a matemática não é tão infinita, tem suas limitações, seus limites,
e qualquer mudança na estrutura, por exemplo, de um quadrado, ele deixa de ter essa forma
(F 99).
Embora ainda não tendo definido a matemática (F 108), a sua representação pelos números é
infinita. Os números são uma limitação da matemática (F 106). Cabem, na matemática,
aspectos finitos e aspectos infinitos. Mas... se a matemática consiste no universo, e se o
universo é infinito, por que não a matemática? (F 116). A geometria é infinita: podemos
cada vez mais criar polígonos... (F 119). Tudo na matemática, que é relativo aos números, é
infinito. (F 121). O círculo e o quadrado são finitos. A matemática é infinita tanto quanto a
como nossa imaginação (F 135). Com a imaginação, a gente pode fazer qualquer coisa (F
134).
Uma Interpretação.
DO INFINITO.
Abrindo-me, com Merleau-Ponty, na concepção de que “O pensamento objetivo ignora o
sujeito da percepção”(1996, p. 279), doei-me à tentativa de compreender uma relação entre
matemática e infinito, buscando superar as clássicas definições de finitude/infinitude pelo
que me pareceu ter sido dito pelos alunos. Na discussão desenvolvida, o significativo
mostrou-me não ser a matemática tão exata (F 99) como tenta se praticar. Há, aí, um
primeiro indício de infinitude, mas com seus limites. Ou seja, mesmo sendo impossível, por
exemplo, contar todos os números (F 108) ou até mesmo construir todos os polígonos
possíveis (F 108) e (F 121), ela se limita na álgebra e nas formas (F 123).
A discussão faz explodir o que se entende por finito/infinito num nível de comprometimento
cultural, que, “A sedimentação da cultura que a nossos gestos e às nossas palavras um
fundo comum’(Merleau-Ponty 1969, p.148). Há, então, uma convergência à comparação da
matemática com o universo (F 112) considerado infinito pela tradição, sendo pertinente a
pergunta de Lacerda (F 116): “se o universo é infinito, por que não a matemática?”
Vivencia-se, a partir daí, um ambiente de reelaboração das falas e outro sentido para a
questão de infinitude vai tornando-se presença. Esse movimento desobstaculiza as
considerações que se estacionam na idéia da “conquista de ter concebido o universo como
infinito ou pelo menos sobre o fundo do infinito (os cartesianos) (Merleau-Ponty 1984,
p.166) e o próprio Merleau-Ponty critica as pressuposições positivas que, para ele,
desvalorizam o mundo fechado em proveito de um infinito positivo, infinito cristalizado ou
dado a um pensamento que ao menos o possui suficientemente para prová-lo.
No âmbito da educação matemática, talvez busquemos o infinito no sentido de não nos
estacionarmos, mas que seja, como nos ensina Merleau-Ponty, o que nos ultrapassa: o
infinito de abrimento e não da infinidade; o infinito do mundo da vida, mundo do cotidiano,
não o infinito da idealização.
Foi-me possível perceber um abrimento na discussão, entoado pela aluna Laís (F 134), em:
“Imaginar, a gente pode qualquer coisa”, remetendo-me à busca de uma interpretação para
“imaginação”, e parece-
me que o cotidiano escolar solicita o infinito de abrimento,
conforme a fala do aluno Lacerda: “...se os números são infinitos, é claro que nós podemos
inventar infinitas operações”(F 137). Cabe-nos, ainda, questionar sobre os momentos em que
permitimos e /ou acreditamos nas infinitas operações que o aluno pode nos apresentar.
Uma Interpretação.
DA IMAGINAÇÃO.
O infinito do mundo da vida, mundo cotidiano torna-se possível, ainda com Lacerda (F135)
ao admitir a nossa imaginação também infinita o que nos abre à invenção de infinitas
operações. Essa visada causa estranhamento ao aluno Arthur (F 138) para o qual são válidas
apenas as quatro operações clássicas da aritmética. Porém, há compreensão pelo aluno
Carneiro (F 139) ao defender que cada um pode criar suas representações “só pelo jeito que
ele saiba”.
“Imaginar é sempre fazer surgir um ausente no presente, fornecer uma quase presença, uma
presença mágica a um objeto que não está aí”. (Merleau-Ponty, 1973, p.35). Nessa proposta
de formar certo modo de relação com o objeto ausente, Merleau-Ponty, baseando-se nos
trabalhos de Sartre, abre-nos à compreensão de que a imagem é uma operação da
consciência e não apenas um conteúdo, uma elaboração aleatória.
Na situação vivenciada pelo grupo e manifestada pelos alunos foi possível perceber duas
vias de compreensão para o que chamavam de imaginação: uma criadora, que parece
pretender fazer aparecer o que ainda não foi percebido e uma que pretende mostrar uma
idealização (no sentido de projeção) incapaz de reproduzir o existente. Para esses alunos,
imaginário é o físico, oposto à concretude, à realidade, mas eles mesmos estão atestando que
é impossível imaginar. Todavia, o aluno Lacerda (F135) propõe, ao meu olhar, uma
aproximação entre imaginação criadora e a matemática ao tentar trazer um sentido para o
infinito, dizendo: “É por isso que eu digo que a matemática é infinita. É como a nossa
imaginação. A nossa imaginação é infinita também” (F135).
Mas é preciso termos uma experiência do imaginário, perguntando-nos qual o sentido do ato
de imaginar e em que esse fazer surgir um objeto matemático, ausente na aula presente,
colabora para a Educação Matemática.
A Geometria
Cena 7 – C7
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LACERDA: Agora, nós vamos discutir a geometria.
CAIO: Pra você o que que é redondo?
ARTHUR: Redondo? Por exemplo, a gente pegar isto aqui, ó, passar a mão e não
sentir nenhuma irregularidade; é uma coisa que não tem nenhum tipo de
irregularidade.
PRISCILA LIMA: ô cara, redondo, pra você, é essa forma assim . . .
LACERDA: . . . é uma forma que não contém, digamos, ...
ARTHUR: irregularidades.
LACERDA: É... é o elemento, né?
Várias vozes, ao mesmo tempo.
CARNEIRO: o Vítor quer falar, “pêra” aí, rapidinho.
Neste momento, Vítor colocou o seguinte problema no quadro-de-giz: Como
colocar 11 presos em 10 celas, se em cada cela só pode ficar um preso?
VÍTOR: Aquilo era a maior pegadinha que minha mãe me mostrou e eu nem sabia
que tinha alguma coisa a ver; o Arthur falou assim, que através da nossa
imaginação, a gente não consegue imaginar várias operações. Mas na verdade, sim
a gente pode. Igual aquilo ali, Suponha que cada lugarzinho daquele ali fosse uma
cela. A brincadeira era, aquilo ali corresponde a uma cela; você perguntava:
Como consigo prender onze presos ali, naquelas dez celas, sendo que eu não
poderia colocar, nem dividir presos ao meio, nem aumentar celas, tinha que ser
naquilo dali. , lembra que a pessoa ficava, ficava, ficava, quando ela ia
olhar mesmo, ela só tinha que pegar e escrever a frase O N Z E P R E S O S aqui
. Então, eu acho que depende de onde que vai a sua imaginação, porque, na
verdade, onze presos é a frase, e não cada lugar. E, então, acho que a gente pode
sim, através da imaginação imaginar várias e rias operações; depende de qual
lado que a gente vai olhar.
MARIANA LIMA: E disso você espera o quê? Imaginando a matemática.
VÍTOR: Como assim, Mariana?
MARIANA: Você me deu um exemplo de imaginação. Você tem que imaginar,
pensar, não sei mais o quê.... Carneiro interfere: raciocinar, observar, . . .
LACERDA: mas pensa bem, se a gente não tivesse imaginação, como é que a
gente ia chegar até o que a gente chegou até agora?
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[várias vozes, falando sobre a importância da imaginação...]
Destaca a de CARNEIRO: nós não sobreviveríamos...., (ficou meio embaraçado
para pronunciar esta palavra) quanto foi interrompido por Lacerda: Ah, não,
começou oo, a sobrevivência, Tarzan!
Continua CARNEIRO: Nós não iríamos sobreviver a nenhum “animais”, porque
nós não iríamos ter imaginação pra. . . , sair correndo, prá fazer as coisas que nós
fazemos.
VÍTOR: Então, a imaginação, também é como se fosse uma base mesmo, porque,
igual, se a gente ,... o senhor falou em falar, assim do valor dos números. Os
números, eles, sim, aparecem em grande quantidade na matemática, mas eles
também são um trechinho pequenininho ; porque, o homem, quando ele chegou
na pré-história, e começou a necessidade ahah, contar o rebanho dele, ahah, ver o
sol, a lua, precisava saber quantos tinha ali, ele partiu de tudo.De tudo ele partiu da
observação e da imaginação: o zero, o um, o dois, são coisas assim, como que
secundárias que eles vieram depois da observação, então, acho assim, a
imaginação, a observação, é como se fosse a base da matemática, não sendo nem
zero nem um. É através da imaginação que a gente vai conseguir assim criar várias
hipóteses, várias..., mostrar que a matemática é infinita mesmo, mas porque não
vão ser números que vão ser ali, aquela parte principal da matemática; os números
são uma pequena parte que veio depois da observação.
CARNEIRO: Isto é a matemática em si que você falou, né? é a base em si, e não
...é isso mesmo!é isso mesmo?!
PRISCILA LIMA: Então, é a pequena parte. E a qual é a maior parte?
VÍTOR: É a imaginação.
MARIANA LIMA: Então, pra você, acha que pro homem descobrir a
matemática, ele teve que observar e imaginar?
VÍTOR: Sim! Porque, igual, até mesmo o homem, seria até mais imaginar mesmo
se tem uma pessoa cega, ela não vai, assim, vamos dizer, relacionar visão, ela não
vai conseguir ver, observar; mas, imaginando, ela consegue aprender a
matemática; os cegos eles conseguem aprender matemática; que através da
imaginação.
LACERDA: Bom, éééé , por exemplo, lembra que uma vez assim, eu acho que eu
levantei um tema aqui, que os números são apenas uma pequena parte da
matemática e agora, o tor me fez lembrar disso, né?...Porque, como ele disse, o
que tá, o que está mais presente na matemática mesmo é a imaginação e não
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assim...Carneiro interrompe: e a observação. Lacerda: não, é mais a imaginação.
Insiste Carneiro: e a observação. Lacerda: não, mas e o cego? [várias vozes,
realçando a da Érica: ahahah, calma, gente!, ô, Carneiro!] . Carneiro: mas ele tem
que ter uma observação; não é questão de ver; Lacerda: ele quer dizer uma
observação do espaço entre nós; a imaginação é um espaço imenso, infinito; a
nossa imaginação é que, aqui den... é o único lugar onde cabe a matemática; é
aqui dentro da nossa cabeça. É o único lugar onde a matemática tem liberdade. A
nossa cabeça; mesmo parecendo assim uma prisão, alguma coisa assim, nós
entramos dentro dela prá meditar, nós meditamos, comooo as, acho que o senhor
deve ter ouvido a expressão entrar na nossa cabeça, ééé, alguns acham que é uma
prisão, alguma coisa assim, mas , na verdade, é umaaa, ééé é uma liberdade que
aqui é que a matemática se encaixa bem na nossa imaginação, porque ambas são,
digamos, infinitas.
MARIANA LIMA: A imaginação e a matemática?!
ANÁLISE IDEOGRÁFICA – AI 7.
Uma Descrição.
Pela iniciativa de Lacerda, o grupo inaugura essa cena discutindo geometria com uma
questão, o que é redondo? (F.147). É uma coisa que, passando a mão, eu não sinto nenhuma
irregularidade (F 146). Manifestado o consenso em relação à regularidade do redondo, Vítor
propõe um exercício, com o qual tenta mostrar a importância da imaginação (F 154).
Imaginação é como se fosse uma base mesmo (F 157), seguida da observação. A numeração
é secundária. Veio depois da observação, sendo, portanto, uma pequena parte da matemática.
Através da imaginação que a gente pode criar hipóteses e mostrar que a matemática é infinita
(F 157). Para o homem descobrir a matemática, ele teve que, mais do que observar, imaginar
(F 162). O cego aprende matemática através da imaginação (F 162). Carneiro se e na
discussão, dizendo que observar não é uma questão de ver (F 163). Para ele, o cego tem que
ter uma observação. Lacerda parece compreender que Carneiro quer dizer uma observação do
espaço entre nós. A imaginação é um espaço imenso, infinito (F 163). Matemática, na nossa
cabeça, ganha liberdade com a imaginação. Ambas são infinitas (F 163).
Uma Interpretação.
Subcena 7.1 – DA GEOMETRIA.
Os alunos abrem a cena com um proceder que parece repetir o esquema de separação da
matemática escolar por assuntos, considerando a geometria separada, desvinculada das
demais “áreas” de estudo : “Agora, nós vamos discutir a geometria”(F 146).
Porém, no fluxo dessa cena, pude vivenciar uma aula de geometria. Uma aula sem um
roteiro pré-estabelecido em um plano de curso. Aliás, o curso foi se constituindo no percurso
das falas dos alunos, que traziam os elementos geométricos apenas como um pré-texto para
estarem ali falando sobre o tema geometria, o que me possibilitou interpreta-los num
contexto mais amplo, na busca do manifestado.
Sem abandonar os conceitos geométricos enraizados na tradição cultural do ocidente, e
mesmo não sendo possível isso por uma vontade da mente, o movimento das discussões é
inaugurado num tom de pensamento criador: “O que é o redondo?”, questão posta pelo aluno
Caio (F 147). Na fala de Arthur, uma tentativa de resposta objetiva, que repetiria um ato
tradicional que clama por exemplificações. Porém, no mesmo ato, o aluno recupera o
expressivo ao empregar o corpo, colocando-o em movimento: “... a gente pegar isto aqui, ó,
passar a mão e não sentir nenhuma irregularidade”. Percebe-se a experiência do “redondo”
dispensando uma teoria construtiva para sua fundamentação. Merleau-Ponty (1973,p.44) ,
interpretando Husserl, colabora nessa explicitação aclarando-me que as essências que
descobrimos quando nos esforçamos por pensar o vivido, a experiência, não são essências
exatas, suscetíveis de uma determinação unívoca, mas o essências morfológicas, inexatas
por essência, constituídas a partir do percebido.
Definir, portanto, o que é redondo, torna-se uma tarefa que exige outras elaborações
construtivas para um ser que roga por uma definição geométrica rigorosa com a formalidade
cartesiana. Nessa experiência, o sentido do “redondo” manifestou-se na vivência do redondo
pelo aluno.
Acreditamos que o educador matemático possa abrir os espaços que constituem suas aulas
de geometria às manifestações do geometrizar, não limitado apenas no que a ciência
consagrou, mas uma geometrização que se mostra nas atitudes ao estar ali, cuidando desses
objetos matemáticos como um modo de se compreender no mundo.
Uma Interpretação.
Subcena 7.2 - Da Observação.
Parece-nos que o falar sobre geometria suscitou novas reflexões em torno do que os alunos
estavam considerando acerca da “base” da matemática, da imaginação, do infinito, e uma
nova discussão cria um ambiente proporcionando novos sentidos ao que se denomina
observação.
A vivência de matemática está diretamente relacionada à sobrevivência, à manutenção da
vida. Para o aluno Carneiro(F159), sem a imaginação, nós não faríamos as coisas que nós
fazemos. Vejo-me, portanto, num contexto em que foi possível aproximar imaginação à
intencionalidade. Pareceu-me que cuidar da vida também constitui o pró-jeto de existência.
Um cuidado mais amplo do que o ato matemático da contagem.
Com esses alunos-sujeitos, percebo que a numeração é secundária na existência humana; os
números são uma pequena parte da matemática “... são um trechinho pequenininho...”
(F 161).
O aluno Vítor propõe, inclusive, que a base da matemática sobre a qual discutiam na Cena 1,
não é o zero nem o um (F 161). É a imaginação que possibilita uma observação e desta é
que nascem os números. É imaginando, inclusive, que os cegos conseguem aprender
matemática, segundo o aluno Vítor, e não observando. (F 166).
Com essa fala, o ato de imaginar supera a observação, porém objetivando-a, tornando-a um
ver pelo mecanismo da visão. Mas observar não é fazer uma substância tornar-se visível.
Essa é a maneira pela qual o aluno Lacerda possibilita ampliar o conceito de observação, ao
dizer que “... não é questão de ver...” (F 167). Observação pode ser compreendida em termos
de espacialidade vivida. “... a imaginação é um espaço imenso, infinito” (idem).
Nessa experiência, as cenas se intercruzam, os sentidos vão sendo vivenciados: numeração,
base da matemática, infinito, imaginação, observação, geometria se mesclam num discurso
pelo qual tentamos desenhar uma possível liberdade para a matematicidade fundamentada no
humano, sendo a cultura escolar uma de suas facetas.
A presença do outro me constrange.
Cena 8 – C8.
Nesse momento, o grupo movimentou a discussão em torno de uma possível organização
para a sua apresentação na Feira de Cultura, interrogando, inclusive, sobre a tendência em
abarcar outras pessoas, visitantes ou participantes da Feira, que estivessem ali, no momento e
no ambiente da discussão, a participarem também, objetivando ouvir o que outras pessoas
falam a respeito de matemática.
Chega, então, a professora Valquíria, que também trabalha no Colégio Militar de Juiz de
Fora, quando aproveitei a oportunidade e lhes disse: é claro que vocês poderão envolver outras
pessoas no trabalho de vocês. Por exemplo, chega a professora Valquíria e vocês estão
discutindo. E daí? Fiquem à vontade...
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Professora VALQUÍRIA: Boa tarde!
Alunos e eu retribuímos: Boa Tarde!
ARTHUR: A gente podia pensar em como definir a matemática para cada um de
nós, e a gente podia...
MARIANA LIMA: compartilhar...
ARTHUR: compartilhar com nossos colegas de encontro, aqui.
[risos... risos...]
MARIANA LIMA: né, professor?
LACERDA: Professor tem muita influência...
[risos... risos...]
MARIANA LIMA: Então começa por você. Para você, o que é matemática?
LACERDA: Gente, e o negócio das operações que o professor estava dizendo?
CARNEIRO: É, vamos falar um pouco sobre as operações.
LACERDA: Ô gente, professor, posso puxar um assunto?
PROFESSOR: Claro que sim!
LACERDA: Pra mim, as operações, ééé..., por exemplo, os números compõem a
matemática; que, por exemplo, como eu dizia, pro mundo se ééé, transformar
na matemática, quando ele viu que era a base, ele tinha que fazer uma operação;
eu usei várias operações aqui, como exemplos, como se não usarmos operações,
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nada vai se modificar, assim..
ARTHUR: modifica a matemática?
LACERDA: Não.
CARNEIRO: Tá falando dos números.
LACERDA: Tô falando das operações na matemática. A matemática é tudo,
assimmm, nós sabemos disso; mas o que a modifica, mesmo, são as operações;
mas, e nós, e nós, ééé, definimos as operações como uma seqüência, uma linha em
que há símbolos e números.
ARTHUR: Alguém gostaria de dar alguma contribuição?
VÍTOR: Eu acho que as operações, igual, elas são uma pequena parte; a partir dos
números o homem vai operar, vai fazer uma coisa, vai virar uma relação, mas,
as operações, mesmo elas sendo uma pequena parte, a gente vai envolvendo
praticamente mais é, número, a partir delas, é como se elas multiplicassem, se
você assim, começar a pensar em operação, você pode, como, ir multiplicando,
multiplicando e multiplicando. Que, é, é como..., eu acho que é uma parte da
matemática que, ela mesma permite ser... a operação permite ser operada, porque
através dela, ali, você vai conseguindo outras, e outras, e outras.
Houve um momento de silêncio...
Uma risada . . . Parece-me de Priscila Lima.
CARNEIRO: Pode ir...
LACERDA: Começa pelo Caio!
ARTHUR: Tem gente aí que tá muito quietinha...
ÉRICA: Laís,...Caio, ...
[várias vozes se misturaram citando nomes de quem estava mais quieto]
CARNEIRO: Já que ninguém tá... tá tendo muitas idéias pra falar agora, eu
gostaria que a professora desse a, falasse o que você acha.
Alguém disse: “puxa-saco!”... risos...
CARNEIRO: Eu queria montar uma pergunta que todo mundo aqui falou um
pouquinho o que acha, antes da senhora chegar, ééé, o que que a senhora acha que
é matemática, em si?
Professora VALQUÍRIA: O que que é matemática , em si? Ééé´, mas você está
perguntando, matemática, eu que não acompanhei, né? o desenvolvimento ... a
matemática no geral, ou matemática escolar?
Vários respondem: em geral.
Professora VALQUÍRIA : Vou tentar falar ..É, pra mim ,a matemática, bom,
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quando eu estudei, matemática pra mim era assim, era um jogo; eu achava que
tudo dava certo; tudo tinha uma resposta, tudo era muito bonitinho, e não tinha
que ficar, ééé... questionando nada não. Entendeu? Achou aquele resultado, a
resposta está atrás no livro, então... certo e, se alguma pessoa pensava que
aquele desenvolvimento poderia ser feito de outro jeito e achasse outra resposta,
eu pensava que estava fora das regras do jogo da matemática. depois, né?
quando a gente veio... ééé..., estudar, e veio conviver com os alunos, e os alunos
também trazem pra gente alguns questionamentos que talvez a gente nem
apresente, né, Flávio? Respondi: Sim, claro! Continua Valquíria: ééé..., a gente
passa a despertar, pelas perguntas dos alunos a nossa curiosidade também, que são
questionamentos que eu não tinha, né? ééé..., vou dar um exemplo pra vocês ;
vocês vão entender . Que... o primeiro questionamento que me despertou muito
pra poder questionar a verdade que a matemática tenta passar ..... foi uma
pergunta que um aluno me fez quando eu estava, é, quando eu vim trabalhar aqui
no Colégio , na sexta série, quando eu estava explicando regra de três. Regra de
três, basicamente, relaciona grandezas; por exemplo; são situações que vocês estão
acostumados a lidar; é um probleminha assim: se tantos pedreiros fazem uma casa
em tantos dias, se eu dobrar o número de pedreiros, vinte pedreiros vão fazer a
casa em quantos dias?
LACERDA: Tipo assim: quanto eu tiraria numa prova se ela valesse...
Professora VALQUÍRIA: Isso! A conversão, né? Quanto você tiraria se fosse dez?
que essa situação, em particular, estou trazendo, porque ele me perguntou o
seguinte: é, professora, então, deu esta resposta; mas quem te garante que os
pedreiros vão trabalhar com a mesma vontade? E se um adoecer? E se um tiver...
com mais fome, tiver mais mole, naquele dia? Ele tiver colocando tijolo... Quer
dizer, essas coisas, desses fatores, a matemática não conta; né? a matemática
não consegue traduzir esses fatores, esses fenômenos , né? naturais ; a matemática
não consegue falar assim ó: é verdade, e esses coisas voesquece. Na verdade, a
matemática fala o seguinte: essa é a resposta; agora, o que influenciou essa
resposta, isso aí você esquece. Ela tira algumas... variáveis...
LACERDA: Eu acho que não é a matemática que não consegue explicar; acho que
é nós que não conseguimos explicar a matemática...
CARNEIRO: Eu acho muito interessante que a senhora disse no início, que,
quando a senhora era menor, ensinavam que dois mais dois é igual a quatro, então,
era aquilo ali; eles não explicavam que..., porque dois mais dois era igual a
Fala 200
Fala 201
quatro...;mais ou menos assim; né? eee, quando, no meu colégio anterior, eles
não... eles ensinavam assim, igual, dois mais dois é quatro, e tal, aí quando eu vim
pra cá, o Flávio, né? me ajuda bastante, porque ele sempre fala assim: dois mais
dois é quatro, mas por quê? O que vocês acham? É, se eu te dou duas balinhas,
amanhã eu te dou mais duas, por que você acha que dois mais dois é igual a
quatro? A gente vai pensando o que é a matemática; não ééé, que é uma parte da
matemática que é..., que são os números, né?
Professora VALQUÍRIA: que bom, que isso aconteceu.
Professor FLÁVIO: É, aconteceu, tem acontecido.
ANÁLISE IDEOGRÁFICA – AI 8.
Uma Descrição.
A presença de outra pessoa, da professora Valquíria, afeta a ambientação na qual o grupo se
encontrava. Constitui-se, a partir daí, um novo ambiente de discussão. Embora houvesse uma
sugestão para que cada aluno definisse a matemática (F 170), evocaram um retorno à questão
em torno de operações (F 176), que eu mesmo tinha lhes sugerido, (C6 F 109), sendo que a
conversa não abarcou esse foco naquele momento.
Para Lacerda (F 180), são as operações que provocam transformações na matemática. Se não
usarmos operações, nada vai se modificar (F 180), sendo que as operações constituem-se de
símbolos e números. Outra visão, a do Vítor (F 186), entende operações como uma relação
entre os números (F 186), e que, mesmo sendo uma pequena parte da matemática, se
permitem ser operadas.
A presença da professora ao texto falado é solicitada (F 191), para a qual, quando estudante,
matemática era como um jogo (F 195). Bastava seguir suas regras e encontrar uma única
resposta, igual à que estava no final do livro. Estudar e conviver com alunos é importante,
pois seus questionamentos despertam nossa curiosidade também, além de possibilitar
questionar a verdade que a matemática tenta passar (F 195). Nas situações vivenciais, a
matemática não dá conta de alguns fatores. Apenas fala qual é resposta ao fenômeno. (F 197).
Para Lacerda, não é a matemática que não consegue explicar; nós é que não conseguimos
explicar a matemática (F 198). Embora, segundo Carneiro, do jeito que estudamos, aqui no
colégio, a gente vai pensando o que é matemática (F 199).
Uma Interpretação.
Subcena 8.1 – DA PRESENÇA DE OUTREM
Oportunizando-nos com a presença da professora Valquíria, outros aspectos de educação
matemática puderam ser percebidos com a organização do espaço físico e inter-relacional,
com as palavras, com os movimentos corporais, com um abrimento a discussões que, mesmo
tocando em assuntos já abordados em outras cenas, mostraram-lhes sua inexauribilidade.
Falar de matemática, nessa perspectiva, nos mostra uma fonte inesgotável de
interpretações e compreensões. É nesse momento, inclusive, que os alunos dão importância a
uma questão, lançada anteriormente por mim (Cena 6), em torno de operações aritméticas.
Um sentido diferente para as operações pôde ser percebido. Aritmetizar, como um ato
humano, é libertar-se nas e com as operações que o próprio ato de operar permite. Vivencia-
se, aí, um apelo à liberdade contra as violências dos algoritmos que, na perspectiva formal,
constituem apenas relações numéricas.
A adesão da professora ao grupo retira-a do lugar de expectadora; aliás, um campo de
presença já tinha se constituído por despojamento, como diz Merleau-Ponty,
Uma vez outrem posto, uma vez que o olhar de outrem sobre mim,
inserindo-me em seu campo, me despojou de uma parte de seu ser,
compreende-se que eu possa recuperá-la travando relações com outrem,
fazendo-me reconhecer livremente por ele, e que minha liberdade exija
para os outros a mesma liberdade. (MERLEAU-PONTY, 1996, p.479)
Ao travar relações com outrem, um projeto comum é pactuado e, na situação desta
investigação, ao interpretar essa cena, posso falar de um intermundo vivenciado. A
professora acolhida é ao mesmo tempo acolhedora, não sendo possível distinguir, por
identificação, quem é o acolhedor ou quem é o acolhido. um interacolhimento. Cria-se
um ambiente cultural experienciado, onde as pessoas deixam-se apresentar num
acontecimento em que a existência do outro não representa “dificuldade como o é para o
pensamento objetivo” (Idem, p.467), mas potência enquanto vida, enquanto abertura para as
vidas que se comunicam.
Uma Interpretação.
Subcena 8.2 – DO OLHAR DO OUTRO.
O fenômeno tem outras nuanças com o olhar do outro, ainda que haja um projeto comum
entre as pessoas que o vivenciam. Com Merleau-Ponty, compreendo que esse projeto
comum não é um projeto único e ele não se oferece sob os mesmos aspectos para um e para
outrem. Essa compreensão traz-me descrições diferentes se desejo falar sobre o que pareceu
ter sido dito pelos alunos ou pela professora. Interessa-me, nessa cena, uma tentativa de
compreender-me diante do texto que me foi possível transcrever a partir da fala da
professora.
Suas primeiras atitudes me despertaram a considerá-la uma educadora que parece cuidar
ou conceber educação num contexto mais amplo. para mim, isto se deu ao percebê-la
tentando se esclarecer com a questão posta pelo grupo, “O que é matemática para a
senhora?” e a mesma lhes questiona: “matemática no geral, ou matemática escolar?”
Essa atitude não é comum em um professor de matemática que não a concebe além de uma
estrutura edificada academicamente. A professora assume ter mudado de postura frente às
suas concepções de matemática escolar pela convivência com alunos e seus questionamentos
nas aulas. Ou seja, temos no nosso horizonte de interpretação a vivência de uma educadora
que fala de sua formação na pretensa objetividade científica, mas percebe a mudança em sua
prática educativa pela matemática, ao colocar em questão a verdade que essa disciplina
escolar tenta passar.
Pelo modo como a professora se deixa estar presente com suas falas, posso compreender,
ainda, que sua motivação é uma experiência vivida no inter-relacionamento educativo. Esse
é o sentido que permeia a vida de um educador matemático. Uma postura reflexiva, crítica e
a tentativa de melhoria em sua prática pedagógica, em sua convivência no mundo-vida
escolar.
VII - DAS CATEGORIAS ABERTAS, RUMO À INTERPRETAÇÃO.
As convergências ideográficas de falas entre as cenas que apresentamos reúnem os
invariantes com os quais tentaremos conferir caráter significante ao nosso pesquisar.
Objetivamos, assim, compreender-nos pedagogicamente, ao vivenciarmos intencionalmente o
texto escrito produzido ao interpretar as falas dos alunos-sujeitos, num movimento
convergente de idéias, as categorias abertas.
Dessas, as que nos pareceram pertinentes à presente investigação, buscamos interpretar
na perspectiva que Ricoeur chama “ideologias”, com um sentido diferente que este termo tem
na perspectiva marxista. Optamos pela ideologia das cidades”: aritmeticidade,
geometricidade, espacialidade, pedagogicidade, perspectividade e educabilidade filosofar. São
as “cidades”
18
que têm um papel mediador de representar uma realidade vivida para este
trabalho, não sendo nossa pretensão que o nosso texto tangencie pela generalização e
universalização ideológicas.
Ricoeur, em “Interpretação e Ideologias”, adverte-nos das armadilhas que sustentam as
concepções sobre o que se entende por ideologias e critica as análises que se fundam em
termos de classes sociais. Seria uma polêmica estéril fechar-se pró ou contra o marxismo,
segundo o hermeneuta. O que precisamos em nossos dias, segundo Ricoeur, é de um
pensamento livre com referência a toda operação de intimidação exercida por alguns, de um
pensamento que tivesse a audácia e a capacidade de cruzar Marx, sem segui-lo nem tampouco
combatê-lo.(1990 p.64).
Nos dizeres de Ricoeur, a ideologia é ao mesmo tempo interpretação do real e
obturação do possível. Toda interpretação se produz num campo limitado (RICOEUR, 1990,
p.71). Esperamos, todavia, que esse paradoxo possibilite um novo pensar a educação pela
matemática, mesmo considerando que o ato fundador deste grupo de trabalho, que se
representa ideologicamente em concepções de matemática. Um novo pensar que também
permita novos discursos, como manutenção do inacabamento da matematicidade
fundamentada no humano.
Com esse proceder, esperamos que os nomes atribuídos por nós arrastem,
ideologicamente, as redes de significados que têm o foco na direção de nossa interrogação,
como nos compreendemos matematicamente, existindo no mundo com os alunos,
interpretando o que eles parecem nos dizer como se compreendem ao matematizar num
discurso em grupo.
18
Cidades, aqui, passam a ser os sítios em que cada manifestação encontra pouso para a vida.
VIII - APRESENTAÇÃO DE UMA REDE IDEOLÓGICA.
Como recurso para apresentar, num esquema gráfico, as convergências das unidades
de significados nas categorias abertas com as quais tentaremos fazer nossas
descrições/interpretações, construímos a rede ideológica a seguir.
Não é nossa intenção, nesse ato, visar a uma simplificação ou redução dessas
categorias ao estático, a um plano cartesiano, mas um desenho que possibilite, ao mesmo
tempo, uma visualização de interconexões entre as falas, mostrando que as cenas não são atos
demarcatórios dessas categorias, mas as mesmas são originadas de falas de diferentes posições
no texto.
outros recursos, dentre eles, a Matriz Nomotética, utilizada pelo prof. Joel Martins
e citado por Bicudo (2000, p.93), a Rede de significados, elaborada por Kluth (2003, p.
96/97), e, ainda, uma sugestão de rede de interligações de categorias, por Kluth (2006, p.128).
Para Kluth, a rede de interligações das categorias pode ser interpretada a partir de
qualquer uma delas. Segundo a autora, nenhuma categoria é isolada, elas formam um todo.
Porém, o gráfico apresentado neste trabalho, que eu denominei de rede ideológica, não segue
exatamente nenhuma dessas modalidades. Tentamos criar um esboço “simples”, não
simplificado, mas que nos traduza uma compreensão geral do todo, o que não impede o leitor
de optar por qualquer uma das descrições para suas interpretações sem, necessariamente,
começar por uma determinada categoria como suporte para, linearmente, avançar às demais,
além de intencionar mostrar que as cenas se interligam nas constituições das categorias, o que
poderá ser percebido pelas falas, que constituem cada fenômeno ideológico, partirem de
espaços diferentes na trajetória de interlocução.
Daí, a acolhida de um texto para desenvolver uma possível reflexão pode ser feita a
partir da intenção que esteja em torno do que tentamos descrever sobre a aritmeticidade, da
geometricidade/espacialidade, da pedagogicidade, da perspectividade, ou da educabilidade
filosofar.
IX – INTERPRETANDO AS CATEGORIAS ABERTAS
ARITMETICIDADE
Entendemos ‘aritmeticidade’ como um modo de se expressar pelos meros. Isso quer
dizer que, no desenvolvimento de nossa pesquisa, orientados pela questão norteadora como
nos compreendemos matematicamente pelas falas de alunos, foi possível perceber outros
sentidos para a existência dos números no nosso mundo-vida. Daí pretendermos, nesse
trabalho, abordar aritmética como uma possibilidade de lidarmos com os números, produzindo
discursos matemáticos.
Comecemos por considerar que exista uma ideologia comum que perpassa nossas
experiências com os meros, ainda que cada ser possa falar de sua vivência pessoal nesse
âmbito. Quero propor que essa pessoalidade seja uma via pela qual o matematizar se
fundamente no humano e nos permita continuar uma história de que já dispomos.
Se quisermos recorrer à tradição de teorias matemáticas como pré-textos para a
continuidade ou recriação dessa história, lançar-nos-emos às contribuições da Filosofia da
Matemática, da Filosofia da Educação Matemática, da Antropologia Filosófica e da História
da Matemática, tentando ressignificá-las, ao interpretarmos a aritmeticidade que se manifesta
numa aula de matemática.
Com o texto de Barker (1976), um exercício de reflexão nos insere num campo de
questões sobre a matemática dos números. Nesse campo, o autor nos sugere perguntar sobre o
significado dos termos empregados, sobre a possibilidade de alcançar a verdade e se a noção
de verdade poderia ser buscada nessa parte da matemática. Nesta direção, apenas se constrói
um percurso a fim de mostrar que a aritmética, tal como a escola tradicionalmente trata, é
apresentada na forma de regras de computação e não na forma de sistemas axiomatizados de
leis, justificando sua origem na matemática dos babilônios, hindus e árabes e não da
matemática dos gregos. Prosseguindo sua investigação, Barker descreve que os gregos
trataram de problemas numéricos, dando-lhes interpretações geométricas. As outras
civilizações apontadas introduziram, gradativamente, símbolos e regras de cálculo que
tornaram possível tratar das questões numéricas de modo mais abstrato e eficiente do que era
viável para os gregos.
Entendemos que este nível de reflexão é insuficiente para a nossa questão. Aliás, nos parece
que isso apenas configura um problema filosófico, pois, se comparadas, as interpretações
geométricas, numa perspectiva cultural mais próxima à dos gregos, talvez pudessem assegurar
a existência da matemática dos números num sentido hipotético. Ocupar-nos com esta questão
desviaria nosso olhar para interrogações clássicas tais como: Que tipo de existência estaria em
foco? Com que espécie de realidade trabalha essa parte da matemática?, encerrando-as em
questões gerais acerca de significado, verdade, realidade e conhecimento.
Lorenzen (1975), numa perspectiva antropológica, insinua que o problema do
fundamento humano do nosso matematizar reside na própria questão que persiste em nós: o
que afinal fazemos, ao teorizar matematicamente, ao fazer de números (no nosso caso), um
dos momentos de uma investigação em Educação Matemática? Não nos sendo possível
objetivar uma resposta a essa questão, consideramos importante perseguir a vivência de
significado, verdade, realidade e conhecimento numérico numa experiência vivida.
Na Cena 1, ao dizer que “a matemática não se restringe aos números”, Vítor se mostra
exercendo uma aritmetização diferente daquela de que a escola tradicionalmente trata.
Oportuniza, assim, viver a existência dos números, sociabilizando-se com outras falas dos
outros colegas, donde se pode compreender que números não resumem todo o significado da
matemática. Rompe-se, daí, com uma possível necessidade de rastreamento de propriedades
que envolvem a numeração. Essa ocupação também aparece como não principal na fala de
Mariana Lima, na mesma Cena: “Matemática vai além de números, acho que vai além do que
se na escola”. Ao meu ver, os alunos querem possibilitar outros sentidos ao falarem de
números e de numeração. Posso ressaltar que, enquanto objeto matemático escolar, os alunos
se comunicam no âmbito de números inteiros. E, quanto a estes, segundo Merleau-Ponty,
Desde que os números inteiros aparecem na história humana, eles se
anunciam por certas propriedades que derivam claramente de sua definição:
toda propriedade nova que nós lhes encontramos, já que ela deriva também
das que serviram primeiro para circunscrevê-los, nos parece tão antiga
quanto elas, contemporâneas do próprio número; enfim, de toda propriedade
ainda desconhecida que o futuro desvendará, nos parece que se deve dizer
que pertence ao número inteiro; mesmo quando não se sabia ainda que a
soma dos n primeiros números inteiros é igual ao produto de n/2 por n + 1,
esta relação não existia entre eles? (MERLEAU-PONTY , 1974, p.128)
Com Merleau-Ponty, nesse texto, é possível vivenciar uma abertura em contraposição à prisão
que os matemáticos tentam privilegiar, ao desenharem algumas propriedades como se fossem
um “achado” ou uma descoberta que a tornam uma história a condecorar uma pessoa que se
torna autora. Nesse aspecto, a fenomenologia me ajuda a compreender essas propriedades
como imanentes à existência dos números, uma produção anônima, mas que se constrói
ideologicamente por representar um grupo social. Liberdade que me pareceu evocada pelo
aluno Lacerda, na cena 2, ao dizer que “...os números são apenas a representação e não a
matemática ao todo”... “muitos pensam que a matemática é como uma prisão...mas a
matemática... é tudo que existe, que acompanha o mundo”. Acredito que o libertar-se dessa
possibilidade de prisão nos solicite uma atitude de ressignificação das definições clássicas
que se enraízam pelos critérios nos quais a matemática é concebida como ciência da
quantidade (ABBAGNANO, 2001, p.616) , ou uma ciência que parece ser indispensável para
alcançar a verdade pura (PLATÃO,1999, p.239).
Há a possibilidade de entendermos aritmeticidade, enquanto vivências de relações
numéricas que vão além da redução da aritmética concebida como um sistema lógico, fundado
nos cinco axiomas de Peano, que também já é uma leitura de Dedekind.
No fluxo de nossa vivência como educadores matemáticos, comutar, associar,
distribuir são ações que, no sentido que estamos tentando desenhar para esta interpretação,
abandonam suas funções de legalidade, de unificação e de rigor lógico à análise matemática,
num processo de deslizamento a outras exigências no cotidiano escolar. Essas exigências não
se restringem a uma teoria de números reais, exigida por volta da metade do século XIX, mas
se libertam numa aritmeticidade não demarcada por um calendário, uma vez que é vivenciada
enquanto um fenômeno ideológico, enquanto ato humano de contar.
GEOMETRICIDADE / ESPACIALIDADE.
Dissemos que o espaço é existencial; poderíamos dizer da mesma maneira que a existência é
espacial.
Merleau-Ponty
Uma aliança se concebe culturalmente entre espaço e geometria, de modo a
inviabilizar, nos estudos, uma cisão desses constitutivos mundanos. Pretendo trazer a esta
reflexão um momento que não cala em si mesmo e nem é formado por si mesmo. Espaço e
geometria, como modos de existência, são abordados numa interpretação que me pareceu
possível como contribuições à minha questão central que é uma tentativa de compreender-me
educador matemático, mediado pelos fenômenos ideológicos que entendi terem sido
manifestados nas falas dos alunos.
As contribuições vêm, principalmente, dos trabalhos de Verilda Speridião Kluth, Sônia
Maria Clareto, Maria Queiroga Amoroso Anastácio, Maria Aparecida Viggiani Bicudo e
Adlai Ralph Detoni, pesquisadores no campo da Educação Matemática, que se ocuparam de
investigar o espaço/conhecimento geométrico em contextos mais amplos, tomando como vias
de compreensão a existência do ser-no-mundo, deixando fendas entre as quais as nossas
interpretações de suas interpretações libertam-nos das amarras puramente idealistas e
intelectualistas.
Kluth (2000), ocupa-se em descrever uma abordagem da construção do conhecimento
geométrico com sentido e significado em sínteses de transição às quais tenta fazer uma
articulação enquanto forma percebida, forma sentida e forma produzida (KLUTH, 2000,
p.133). Nessa pesquisa, a autora propõe uma reflexão em torno das possibilidades de
transformação que essas “formas” apresentam, e considera que, sem abandonar a forma
originária, o ser abre-se ao conhecimento geométrico.
Para desenvolver sua narrativa de compreensão, a autora busca pressupostos
fenomenológicos que permitem interpretar a SENSAÇÂO a partir da proposta de Merleau-
Ponty, focada na noção do eu corpóreo numa perspectiva que solicita “reaprender a viver as
qualidades como o nosso corpo as vive, como concreções dos comportamentos sugeridos por
elas” (Idem, p.134).
Sensação, nesse escopo, assinala uma intencionalidade, uma projeção do ato de sentir como
modo, um modo de existir, uma maneira particular de ser no espaço, espacializando-se. Abre-
se, em nós, uma espacialidade enquanto percebida, vivenciada e que se mostra num
comportamento “criador, prazeroso e revelador” (p.136). Um movimento perceptivo e,
conforme descreve Merleau-Ponty, é intencional, gerador de espaço.
Caminhando em direção a uma possível compreensão do papel do educador que, junto
com os alunos, apresenta vivências geométricas/espaciais na escola, seria oportuno investigar
acerca dos desvios que algumas propostas provocam na constituição das experiências de aulas
de matemática, ou seja, como se escapam sentidos enraizados na intencionalidade humana,
quando não se vivencia a espacialidade isenta da concepção puramente euclidiana do espaço.
O desenvolvimento de um estudo que tenha a construção do conhecimento como
núcleo gerador de observações interpretativas endereça-se à realidade. O trabalho de Bicudo
(2000, p.13-70) mostra como essas idéias, a construção do conhecimento e construção da
realidade formam uma trama, uma rede firmemente tecida, mundo onde vivemos. Trata os fios
da temporalidade como constituintes dessa rede. Fios que, nos seus emaranhados, denotam
possibilidades de conceber a realidade como construída, percebida, criada. Uma perspectiva
embasada nas leituras de obras de Edmund Husserl, de Martin Heidegger e de Maurice
Merleau-Ponty e de obras de autores que trabalham com Filosofia da Ciência, segundo a
autora.
Bicudo, nessa obra, persegue a questão “Da construção do conhecimento geométrico”
enfocando a experiência vivida pelo corpo-próprio, corpo encarnado que vive e percebe o
espaço originário. O espaço é sempre constituído [... pois estamos, como corpos-
encarnados, sempre situados, e é em situação que a percepção se e, com ela, o
estabelecimento de um nível espacial] (BICUDO, 2000, p. 44). Não se trata, aí, de um nível
estático, não um nível primeiro, referência de todos os outros. Há, na interpretação de
Bicudo, instabilidade de níveis espaciais e possibilidade de passar-se de um nível a outro (p.
45).
Estamos afins com Merleau-Ponty na acepção do espaço desprovido de uma
contingência que o trate como objeto, como ato de unificação efetuado por um observador.
Não deve ser o resultado de uma operação constituinte, nem mesmo desvinculado da
temporalidade. Num contexto mais amplo, segundo Bicudo, corpo-próprio, tempo, espaço,
movimento e ação estão imbricados existencialmente.
Um trabalho que se desdobra em explicitar uma relação espaço/tempo tem, por
Anastácio (1999), uma articulação provocada pela Física Quântica e pela Teoria da
Relatividade que também desestruturam, ou melhor, sugerem uma outra estrutura daquela
relação e seus conceitos não podem mais ser interpretados em si, isoladamente. O tempo
universal, no sentido totalizante e comum a todos os seres na situação de observadores, é
abalado e é reinterpretado, na teoria da relatividade possibilitando conceber a realidade em
perspectivas.
Clareto (2003) provoca uma discussão a partir de uma reflexão que tem, no projeto da
modernidade, uma questão fundamental. Trata-se da “busca da ordem, da homogeneidade e da
eliminação das ambivalências”. “Um projeto fracassado, pois não se consolidou aquelas
eliminações, nem foi possível homogeneizar as culturas nem as economias”. (p. 130).
Dos significativos desse fracasso, concordo com Clareto que:
“Espaços e representações espaciais não são, pois, descomprometidos, ao
contrário, são produções perspectivais que se desenvolvem sob determinadas
condições sócio-culturais e político-ideológicas e, como tais, são múltiplas,
não objetivas e não neutras. Portanto, são interpretativas” (CLARETO, 2003,
p. 131).
Essa percepção acerca de espacialidade choca-se, no âmbito da matematicidade, com a
proposta da matemática ocidental que se identifica com a racionalidade cartesiana. Esse modo
de compreender o mundo impõe a geometria como uma ciência do espaço e sua representação
verdadeira. Essa matematização do espaço, segundo Clareto, é fortemente assumida por
diferentes áreas do conhecimento como a cartografia física e a cosmologia científica (, p. 110).
Entretanto, oposições a esse pensamento, uma vez que representações espaciais diferentes
são experienciadas e aceitas.
Compreendemos, com Clareto, o fato de as crises também estarem situadas no
espaço/tempo, ao percebermos que as maneiras de experimentar esse espaço, assim como esse
tempo, modificam-se nessas crises.
Mas as crises também movem as vivências pedagógicas. E no fervilhar dessas crises a
geometria, como disciplina escolar, não fica às margens; encontra-se inserida e, como ciência
do espaço, as interrogações que se mostram em pesquisas em educação são pertinentes.
Uma interpretação do descrito abre-me à compreensão de que a espacialidade,
manifestando nos sujeitos, não se fez por um elenco de achados ordenados criteriosamente dos
mais simples aos mais complexos. Percebo-me num contexto em que espacialidade tem
sentido de abertura ao ser-no-mundo, uma vivência que me prepara o acontecer geométrico e,
no âmbito pedagógico, dentre outras contribuições, considero significativa a mensagem de que
o professor deva considerar que “todo ambiente didático é um tecido de intencionalidades”
(DETONI, 2000, p. 263).
Quero convergir a descrição do ambiente didático como tecido de intencionalidade,
explicitada por Detoni, à descrição com a qual Clareto (2006) traz à reflexão Formação do
Professor de Matemática: Algumas reflexões” , partindo de sua interpretação de espaço e
subjetividades como partes integrantes de um mesmo processo, ou seja, “são produtos e
produtores mútuos, se constituem mutuamente” (p. 11), propondo-nos pensar espacialidade,
formação de professor e subjetividades também como devir, ou seja, nunca prontos, não
acabados, estando em construção, sendo constituídos nas inter-relações que se estabelecem no
e se constituem o espaço.
Sendo assim, com as interpretações que faço das interpretações de Clareto e Detoni,
percebo-me num tecer intencionalidades, despojo-me nas falas dos alunos-sujeitos dessa
investigação e outros sentidos de vivências de espacialidades percebo serem interpretados. Da
geometricidade que me pareceu, conforme descrevi na subcena 7.1 “Da Geometria”, um
movimento de pensamento criador, o sentido do redondo mostrou-se pela relação encarnada
com os objetos. A geometrização, assim, foi mostrada nas atitudes de tentativas de
compreensão dos objetos geométricos, permitindo, assim, que as essências morfológicas
fossem constituídas a partir do percebido. [... se a gente mudar uma coisinha, já não é
considerado um quadrado ou um retângulo (F 99)].
A vivência de uma espacialidade, que percebo ser o que fez todo o processo da
experiência ter sentido, vejo-a sendo constitutiva desde os primeiros questionamentos, ainda
durante uma aula, “Como se define o jeito de olhar matemático”, “Por que dez divididos por
três não é possível no sistema hindu-arábico”, “Por que a nota do TI (Trabalho
Interdisciplinar) entrou na matemática, se nós não realizamos cálculo nenhum”. Espacialidade
também como um modo de possibilitar a aproximação dos alunos entre si, para constituírem o
grupo de trabalho, o modo como se organizaram, como se comportaram e como se articularam
pelas falas, as pertinências de cada “entrada” de um na fala do “outro”, e, ainda, uma
espacialidade vivida que vou considerar fundamental: a abertura dos alunos Caio, Carneiro,
Arthur, Érica, Lacerda, Laís, Carolzinha, Mariana Lima, Priscila Lima e Vítor, a se
desdobrarem no ato de criação do espaço que, para mim, tornou-se um espaço gestor desta
investigação.
Espacialidade apresentada ao dizerem que a matemática tem seus limites (F 99), e,
ainda, disse o aluno Arthur: [... o nosso corpo alcança vinte mil daqueles... negócio para
medir o som (99)]. Isto me mostra um limite para a matemática, na existência encarnada, o
corpo mede essa amplitude.
Uma espacialidade vivenciada pela fala do aluno Vítor (F 104): “A matemática não
veio nem do zero nem do um, veio da observação”, dando-nos um fundamento antropológico
para entender matemática como sendo um ato humano.
Também pela fala de Laís (F 134): “Imaginar a gente pode fazer qualquer coisa”,
provocando-me conceber imaginação como ato libertador das significações apreensíveis de
um a priori idealista/intelectualista.
A manifestação espacial que possibilita o cego aprender uma matemática,
espacializada pela fala de Vítor (F 166). Uma compreensão que me faz pensar que aprender
matemática não exige necessariamente um mecanismo físico da visão composta apenas de
carne, músculos, sangue e lentes.
Matemática como manifestação de coerência textual, trazida à cena pela aluna Érica (F
27), e outras falas e não falas, quer não resumir, mas convergir o espaço relacional à
intencionalidade de estarem ali, falando sobre matemática, uma vivência possibilitadora de
reflexões.
PERSPECTIVIDADE.
Quero propor que, no percurso desta discussão, haja uma via pela qual possamos
acreditar em uma experiência educacional pela perspectividade como um modo de ampliar o
campo de acolhida de manifestações pessoais no projeto de trabalho em grupo, enquanto
atitude pedagógica.
Nessa proposta, a intenção é radicalizada no sentido da existência compreendida a
partir da concepção de perspectivas e o ponto de vista, descritas por Merleau-Ponty “como
nossa inserção no mundo” (1996, p. 469). Ressoa-nos, aí, um contexto mais amplo acerca da
perspectividade, que nos abre à percepção individual, como possibilidade de experienciações
mundanas diferentes, mesmo quando o objeto cultural
é trazido a uma cena compartilhada por um grupo de pessoas que pertençam a uma
constituição cultural semelhante.
Entendemos, assim, com Merleau-Ponty, que as camadas de significações individuais
escorregam umas nas outras, daí compreendermos existir um lastro comum que esboça um
sentido geral a esse objeto cultural, vendo-o existente como fenômeno ideológico.
Torna-se central a este texto, a partir de leituras que faço ao me empreender na
autonomia do texto do fenomenólogo, na perspectiva hermenêutica, sermos sujeitos anônimos
da percepção enquanto participantes do mundo, onde as perspectivas individuais são
recolhidas e não têm limites definidos. Perspectividade, aqui, tem um sentido de existência
perspectival, inerente à condição humana, e, portanto, ontológica.
O ambiente de pesquisa possibilitou-me uma experiência com a qual a perspectividade
foi-me manifestada num amplo contexto de falas que não se fecham, mas solicitam um lugar
no qual o que se entende por matemática seja um encontro de diversidades ou pluralidades de
concepções, ainda que relações de poder no espaço escolar sejam sinalizadas ou insinuadas,
sem o compromisso de serem abordadas como foco principal.
Mesmo ao fazerem referências a objetos matemáticos cristalizados pela tradição
cartesiana, é possível perceber nuanças perceptivas, como nos casos “... a gente descobre
matemática” (F 18), ... cada pessoa teve uma descoberta diferente da matemática...” (F 94),
ou até mesmo fazerem referências a objetos matemáticos cristalizados pela tradição cartesiana
“... cada sistema de numeração deve ter seu ponto de começo. No hindu-arábico é o zero” (F
57) ou, ainda, nas relações hierarquizadas Do jeito que temos estudado e visto nas aulas de
matemática” (F 2); ... como o senhor sempre nos diz...”
abertura à compreensão de um momento vivido estando, já interpretado numa perspectiva, que
é a do pesquisador e que pretende descrever uma realidade a ser interpretada, re-
perspectivada.
PEDAGOGICIDADE.
Vou desenvolver uma reflexão, tendo como direção uma proposta: a pedagogia que o
professor conhece é a pedagogia que ele vive, praticando-a. Não é aquela da qual ou sobre a
qual se falou um dia pelo currículo acadêmico. Um currículo que nos põe numa situação
paradoxal ao estarmos no mundo-escola com os alunos. Paradoxal, inclusive, no projeto de
educação para a cidadania, se não há participação do cidadão nessa escolha.
Interpretar a fala ... todas as matérias estão em todas as matérias” (F 114) instala-me num
campo onde não cabe separar o conhecimento em áreas disciplinares, provocando-me deslizar
atenção a um aspecto fundamental na educação matemática: como tenho experienciado a
pedagogia de minha sala de aula, e, num contexto mais amplo, ao perceber que os alunos
cedem seus corpos-próprios na constituição dessa pedagogicidade, a questão central solicitou-
me uma interpretação acerca da formação de
professores, convergindo não a um relato , mas a uma descrição de uma vivência de mudança
na minha prática pedagógica.
Por formação”, optamos por admitir como um movimento, um recriar interminável,
um constituir-se que permita lançar-se num pró-jeto de educação pela matemática, que o
professor se perceba numa temporalidade que não desvincula passado/presente/futuro, que
habite um “formar-se” em sua totalidade enquanto ser-no-mundo. Na nossa compreensão, esse
ser é percebido existente, lançado numa experienciação mundana com os objetos pedagógicos,
os quais não consideraremos apenas como instrumentos didáticos, mas pré-textos para uma
prática escolar que se pretenda significativa.
A experienciação mundana à qual me refiro, colabora no sentido de também
deslinearizar a questão da formação do professor, subdividida pela tradição em inicial e
continuada. A intenção, aqui, não é a de desconsiderá-las, mas inseri-las como um momento
do processo, e não como o processo. Admitimos, assim, que o professor carrega em sua
trajetória toda a experiência que o constitui, desde a situação de aluno, enquanto presença em
aulas de matemática, às aulas que ministra como professor, e, em cada aula, estarão presentes
todas as aulas ministradas, alimentando a intencionalidade para as que ainda serão
ministradas. Faz-nos sentido, nessa visada, concebermos a formação de professor enquanto
vivência da própria formação, formando-se; sem concluir-se, sem um estar pronto, acabado,
formado.
No cerne desse devir formar-se formando-se, entendemos reflexão como um voltar-se
para si e se questionar sobre o seu projeto de educação pela matemática; trata-se, aí, de uma
retomada ao vivido como uma via alternativa à clássica
19
concepção filosófica que nos parece
confundir reflexão como ato meditação. Não se trata de um retorno ao tempo constituído, mas
uma vivência no fluxo temporal como um modo de me entender como educador/pesquisador
que traz, em sua existência, um tempo também constituído em cronologias e que constitui a
minha experiência corporal no mundo, existindo com os existentes, no caso, os alunos com os
quais minha convivência se concretiza.
19
Entendemos por concepção clássica, como Merleau-Ponty sugere seja a de um Kantismo, seja a de Husserl no
segundo período de sua filosofia. (Fenomenologia da Percepção, p. 327).
EDUCABILIDADE FILOSOFAR.
Para que percebamos as coisas, é preciso que as vivamos.
Merleau-Ponty
Filosofar, enquanto ato educativo, possibilitou-me uma compreensão da minha
existência no cenário escolar. O sentido da questão, inicialmente intencionada a esta
investigação, tomou outras direções na medida em que outras questões eram manifestadas nos
discursos constituintes do cenário em que são apresentadas as cenas que tentei descrever e
interpretar à luz de minhas compreensões no âmbito da hermenêutica fenomenológica.
Havia, sim, um script intencionado: compreender-me educador matemático pelo que
os alunos-sujeitos dissessem sobre os sentidos que os processos de numeração trazem-lhes no
mundo-vida. Mas, no movimento constituinte da trajetória de pesquisa, esses sujeitos
mostraram-me que é preciso perguntar, e não apenas objetivar o que se pretende compreender.
Percebo uma intersubjetividade vivida na criação do ambiente de discussões, num ato
que me pareceu praticar uma filosofia pela liberdade de se comunicarem pelos movimentos
corporais, pelos gestos, pelas palavras, pelo silêncio. Ou seja, um filosofar filosofando por
estarem ali, se questionando sobre os objetos matemáticos, não se importando se a indagação
tratava-se sobre a natureza e constituição desses objetos, seus mecanismos pedagógicos ou sua
aplicabilidade cotidiana, nem mesmo classificações em escolas filosóficas.
Uma ideologia emerge como uma indicadora de pertença ao grupo que discute
matemática escolar e sua extensão em outros espaços vivenciais, trazendo à cena outros
fenômenos ideológicos que não se bastam por explicações causais, mas que solicitam
descrições fundamentadas em vivências, para uma melhor ou mais abrangente justificativa de
suas importâncias no contexto escolar.
Na fala 1, com a questão: Como se define o jeito de olhar matemático? , já é
possível perceber um questionamento que não espera uma resposta objetiva. Faz-me sentido,
porém, perceber atitudes filosóficas com as manifestações livres de cada participante no
ambiente de pesquisa. Um campo filosofal se abre nesse instante, e não tenho uma resposta
imediata a conformar o grupo. Talvez, ao final de todas as falas, eu pudesse dizer ao grupo: “o
jeito de olhar matemático define-se assim: do jeito que vocês acabaram de falar”. Mas seria
pretensioso dizer isso. Prefiro caminhar, com Merleau-Ponty, compreendendo que “a filosofia
não é a passagem de um mundo confuso a um universo de significações fechadas. Ela começa,
ao contrário, com a consciência do que rói e faz explodir, mas também renova e sublima
nossas significações adquiridas.” (Merleau-Ponty, 1974, p.32).
Ao optar pelo movimento de ressignificação do texto escrito, como Ricoeur me ensina,
vejo a possibilidade de dizer, inclusive, que esses momentos são responsáveis por uma
conexão entre as diversas nuanças que a discussão apresenta, sem perder um sentido de
totalidade, deixando aberturas a interpretações. Na experiência desta investigação, outros
momentos vividos que me permitem ressignificá-los percebendo a importância de uma
educabilidade pelo filosofar, como renovação de significações adquiridas.
Numeração, algoritmos, infinitude, formas geométricas, dentre outros objetos
matemáticos, comumente na escola, são cuidados com o lastro que a tradição científica
intercruza nossa constituição cultural, enxertados de um pensamento criador. Experiencia-se,
nesse caso, um ato livre, cuja liberdade “consiste em assumir uma situação de fato, atribuindo-
lhe um sentido figurado para além de seu sentido próprio” (MERLAU-PONTY, 1996, p. 635).
Com isso, quero dizer que não seja possível ou até mesmo desnecessário separarmos
Ciência e Filosofia. Aliás, ainda com Merleau-Ponty, entendo que a ciência não é voltada a
um mundo estranho à nossa vivência, mesmo manipulando as coisas e renunciando a habitá-
las. O que o mundo me parece, é a partir de uma visão experienciada por mim mesmo. Habitar
não é uma propriedade que diz respeito a uma pretensa universalização de sentidos a partir de
determinada linguagem.
Habitar, na concepção que acreditamos ser pertinente a este percurso investigativo,
mostra-se nas atitudes de construção de subjetividades, numa atmosfera em que um
intermundo cultural permeia a motivação de um grupo social que reúne pessoas em
construção, visando a combater um pensamento solipcista, mutilador ou aniquilador de
potencialidades humanas.
Com esse trabalho não tenho a pretensão de sugerir maneiras de vivenciar uma educabilidade
filosofar; percebo que assumir, na prática pedagógica, uma postura com essa visão, exige do
educador um chamamento próprio. É necessário, antes de tudo, abrir-se a uma auto-
educabilidade da própria existência pedagógica e tentar se compreender como educador,
questionando-se, dentre outras, qual é o seu projeto enquanto educador (a) pela matemática?
X – UMA INTERPRETAÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA VIVIDA.
Considero oportuna uma retomada ao sentido da pedagogicidade que tenho tentado
vivenciar na minha prática pedagógica. Sem a pretensão de criar aqui um modelo de trabalho,
a intenção é a de um esboço de uma ação, uma atitude experienciada, encarnada em minha
existência pedagógica.
Com relatos escritos pelos alunos
20
, considero possível uma interpretação da nossa
prática enquanto experienciada. Dos textos produzidos, pudemos construir significações que
abarcam diversas facetas do processo de Educação pela Matemática no âmbito da escola. A
minha experiência com estes textos tem me possibilitado compreender também o que o aluno
parece querer dizer da sua experiência. Constroem, na minha interpretação, categorias com as
quais tentam dizer de suas perplexidades iniciais, os modos como vão habitando os “métodos”
até então não vivenciados, opinam sobre o processo de avaliação e desenvolvem suas
considerações gerais acerca da experiência vivida.
“No início foi estranho. Eu nunca havia estudado matemática assim, matemática essa,
baseada no dia-a-dia, no hoje.” (Aluna do ano de 2006).
O (a) aluno (a) também vivencia a estranheza da mudança, logo no início do ano.
Parece-nos que um desvio em relação à tradição escolar, uma vez que nosso planejamento
de mudança não tem uma data marcada para início. Aliás, iniciamos o período letivo vivendo
a proposta desde a primeira aula.
Isto tem provocado perplexidade nos alunos, o que talvez leve alguns deles a se
sentirem “não-adaptados”, “nervosos”, “surpreendidos”. Porém, admitem começarem a ver
matemática de outro modo, um modo pelo qual tentamos compreender o cotidiano tal como
ele ocorre, sem, necessariamente, recairmos numa mera transposição didática, muitas vezes,
equivocadamente, tratada como contextualização.
A nossa envergadura tenta assumir uma postura fenomenológica na educação pela
matemática perseguindo um “contexto” vivendo o sentido de texto sejam os de conteúdos
matemáticos, sejam os veiculados em jornais, revistas e livros, aos vividos no
senso comum, os acadêmicos ou, até mesmo, os textos pessoais pelos quais os alunos tentam
mostrar o que compreendem acerca de um determinado evento, oportunidade onde podem
manifestar suas ideologias.
20
Esses alunos não são alunos-sujeitos da investigação. Eu diria que passaram a ser co-sujeitos, uma vez que se
tornaram presenças neste trabalho.
“No começo do ano não me adaptei ao modo do Sr. explicar, mas depois me acostumei...”
“No começo do ano eu achava a matemática chata...” (Alunos do ano de 2003)
A interpretação de algumas falas situa-me num outro horizonte de compreensões que
nos convida à reflexão em torno da tarefa de romper tratamentos hegemônicos, consagrados
pelas atitudes pedagógicas no campo de ensino de matemática. Questiona-se por que o aluno
se choca contra um modo diferente de “explicar matemática?” Este chamamento abre, em
mim, um olhar sobre o trabalho realizado e percebo que, talvez porque não houvesse a
intenção de explicar conteúdos, o aluno se sente descentralizado, sem aquele ponto de
segurança que tradicionalmente se pratica ao explicar exemplos e listar exercícios de fixação.
A proposta, em nosso projeto, é a de que o ato de explicação ceda espaço para a
compreensão como via de possibilidade para o aluno perceber o sentido de cada objeto
matemático em sua existência. A noção de interpretação/compreensão que elegemos mais
afim do nosso trabalho é aquela descrita e proposta por Ricoeur, em sua Fenomenologia
Hermenêutica. Inspirados neste estudo, convergimos numa tentativa de constituirmos, em
nossas práticas docentes, espaços onde o sentido de ser professor de matemática exige-nos,
além do cuidado conteudista, transcendermo-nos às nossas interpretações racionalistas formais
e objetivadas de mundo. O ato de explicar pode ser, nesse proceder, substituído por atitudes
que nos permitam considerar as interfaces onde se cruzam nossas experiências com as dos
alunos, viabilizando uma aula de matemática intersubjetiva, uma vivência fluida intencionada
em relativizar verdades instaladas e enraizadas em hipóteses explicativas.
“Eu não gostei dos textos que foram dados, pois muitas vezes trabalhamos mais com o
português do que com a matemática, que também atrapalhou na minha nota.”
(Aluno de uma turma do ano 2003)
É possível definirmos uma fronteira limítrofe para a matemática? Parece-nos que a
tradição escolar tenta criar uma concepção segmentada do saber, e o aluno se encontra com
esta dificuldade inicial, às vezes, arrasta-se até o final do período letivo neste fechamento. Não
nos cabendo desconectar o processo de avaliação do “todo” que mostra a proposta
pedagógica, enfrentamos outros questionamentos acerca da validade do nosso proceder. Se, ao
lidarmos com informações, passarmos por textos que, aparentemente dizem respeito a um
objeto exclusivo da história, da geografia, das ciências naturais ou da língua portuguesa, não
seriam indícios de ampliação do conceito de trabalho pedagógico na matemática?
“Atrapalhar” na nota pode até querer dizer que mudar não significa, arbitrariamente,
“facilitar” notas mais elevadas com o intuito de promover alunos. Faz-nos sentido, no entanto,
uma prática avaliativa que evoque pela qualidade, que tenha o intuito de provocar uma
vivência tal como explicita outro(a) aluno(a) do ano de 2004: ‘...além de eu aprender mais
sobre ela, ela me influenciou em outras matérias, e mais do que isso: na minha vida” .
Salta-nos pluralidade nas interpretações em torno da proposta experienciada. Se, por
um lado, a mesma não possibilita uma certeza, um solo firme e incontestável, e, por outro, o
aluno declara ter feito sentido não somente no âmbito escolar, mas na sua existência, não
podemos vislumbrar, daí, um conflito saudável de interpretações?
De qualquer modo, tenho me inspirado, até o momento, no planejamento e
reorganização de posturas em sala de aula com as experiências vividas também na escuta de
alunos, o que tem possibilitado interessantes orientações didáticas. Não quero dizer, com isso,
que tenho atuado melhor ou pior que outros professores de matemática, mas devo ressaltar que
esteja sendo o mais significativo período para a minha carreira. O que não quer dizer, ainda,
que não haja embates. Pelo contrário: constantes enfrentamentos. Seja com os alunos que
ainda não se abriram a articulações mais receptivas em aulas de matemática seja com os pais
e/ou responsáveis que, muitas vezes, descrentes com uma proposta nessa modalidade se
mostram receosos5( )-90.200(e)3.74(o)-4.483 -20.76 Td[(r)2.805(6436(d)-0.293142(af2 0 Td[(,)-0.146571( )-460.418(n))-1.2312(s)-1.2312(a)3.74( )-295585(s)-4-1.22997( )-120.219(p)-0.296(o)]TJ309.062 96(TJ309.0c436(s)-1.2312( )-63585(á)3.5(q)-0.295585(u)-0.295585(62( )-63585(á)3.5(q)-0.24771(m)1.57564(i)-12.1703(n-0.295585(r)2.80561(a)-6.2659.20151(r85(s)-1.231(á)3.5(q0439(o)-0.295o)-0.295585(23.74( )-250.294(m)0439(3.74(x)-2(d)-0.293142(a)-)-2(e)3.74(BO1643(q)-10.3012.16436(v)-0.29594974( )-250.2571( )-2D(a)-)-2(e)3.(0.295585(v)-0.295585(e)3.74(r)2.-0.295585()-0.295585(a)3.7375N.R85(a)3.3.74(o)-0.295585( )-608585(m)-2.4592.16558(t)-2.16558(a)a)3.3.74(o)-0.29595585(n)-0.295585(s)-1.2312(2.16558(t)82-608585(m)-2.4592.16558(t)-2.16558(a)a)3.3.74(o)-0.295-2.16558(q)ê636(d)-10.3015(a)3.74(d)p)-0.296(o)]TJ309.062 12(84(a)3.74(l)-2.16436(u)-0.295585(n)v0518(e)3.74d)-0.293142(a)-6.26346(,6293142(d)-0.2(s)-1.231225(b56-608585(m)-2.2u4(ma)3.74(n)-10.30151(e)-6.26346)-10.3015(í))-1.231(á)3.5(q04-0.294974(561(a)3.74( )-17256-608585(m)-2.2u9.062 12(84r71( )-460.418(n))-1.2312(s)-1.234)1.57564( )-70.1879(q)-0s)-1.234)1.5712(84r71( )-460.418(n))R9.74(l)-2.16436(u)-35995(á)3.74(t)-2.1m)-2.45995(b)-0.295294(p6m12(84r71( )-460.4)-12.4654(u)-0.294974( )-2500.1987(e)3.74244(s)8812(c)3.74(r)-7.20151(e)2659(e)3.74(p)-0.2955852D95585( )-60858)-2.16558(i)-2.16558(c)3.74(u-12.1705585(e)-6.269.062 (a)3.74( )-120.21722997(o)-0r[(u)-0.294974( )-2500.1987(e)u)-0.295585(i)-2.16558(t)-2585(f)2.80439(r)2.295585(i)-2.1655850.)-250.2942(d)-0.2(s)-1.231225(b56-608585(m)-2.216436(t)-2.9(e)3.74l0.2942(d)-0.2(s)-1.231225585(i)-2.16558(t)-0.295585( ))2.80439(a)3.74(i)-2.16436(s)-o-0.29392.16436(c)3.74(a)3.74879(O)1.57564(c)3.74(i)-2.16558(l)-2.1óma)3.74(n)6(e)-6.2659(s)-1.2312(.74(n)6(e)-6.2659(s)-1..57564(c)3.74(i)-2.16558(l)-2.146571(m)1.39(,)-0.146571( )-30-0.295585(,)-0.146571( )-460.418(i)-2.16558(l)-2.1ó74()-0.293142(a)-.17 )-30-0.23.5(q04)71( )230-0.295585(,)-0.146571( )-460.4518(e)3.74d)-â253.95 0 Td[( )-80.3015(í)qví o 295915(í)iicm3812(c)3.29591d[(r)2.805(0.295585(a)3.74(d)--0.147792(d)(i)-2.16432974(m)-2.45995(p)-0.29-0.295585(n)-71( )-170.247(m2.16436(r)-7.20151(a)3.74(b)-0.292f1295585(i)-2.16558(t)-2585(“7585(i)-2.16436(z)-6.263-)-6.2659(s)pê81ó74()-0o)-0.295585( )-460.418(m)s974(e)3.5995( )04-295585( )-460.47ó74()-0o)-58(o)-0.294974(u74(n)-0.295585(d)2.16558(a)35(á)3.74(t)-2.16558(.874()-0o)-0.28(s)-10o)-58(o)-0.015(í) u74(n)-0o os54(b)-0.292f1295585(i)-0.146571( 1293142(a)363-)-6.294(m)3-mm0371(e)-6.26346( )250]TJm
Agora, eu tenho a agradecer, pois compreendi que a matemática é como uma trilha que
nós mesmos devemos construir, cortando todas as árvores da floresta aritmética...
(aluno de uma turma do ano de 2006).
O conflito: um deslizamento da morte ao sentido.
Vivenciar a mudança de prática pedagógica solicita-me, a todo o momento, reabrir o
vivido. Um exercício com o qual me situo numa carreira permeada de nuanças das quais posso
vislumbrar a experiência de morte com os objetos matemáticos. Lidar com o morto, na
investida que pretendo para esta reflexão, era uma maneira de conviver num contexto escolar
desprovido de aberturas a criticidade e reflexões, importando apenas em repetições de
algoritmos seqüenciais, lógicos e sistemáticos, concretizando uma experiência matemática,
baseada apenas em aplicação de um método para confirmação da resposta esperada, morta.
Morta para classificar e selecionar, excluir as pessoas consideradas, por ela, “inaptas” ao
direito de viver como ser livre; morta por ser difícil de ser compreendida, por ser considerada
a única modalidade de estímulo racional; uma racionalidade, portanto, limitada.
Como experienciamos esta morte? Talvez na sua pretensa exatidão, ou ao utilizá-la
como a representação da realidade mundana; morta por configurar-se apenas como um
conteúdo curricular que sirva como base para a Física, a Química, dentre outros campos de
saber, ou quando se pretenda, com ela, construir um caminho que assegure o acesso a
verdades imutáveis, um caminho pré-determinado e que não admite erros. Percebo, também, a
morte ao lidar com os “ismos” que a constituem, mas os ismos por si sós; sem uma
compreensão de nós mesmos.
Na trajetória de minha própria formação, percebo alternativas para lidar com o morto,
não no sentido de superar ou tornar-lhe um não-morto, mas cuidar para que o sentido de morte
não domine minhas atitudes enquanto educador matemático. Há, assim, um deslizamento de
posturas, com as quais tento ganhar vida que faça sentido para a minha própria existência.
Vivo, assim, uma espécie de conflito, o que evita a morte em minhas vivências de sala de aula
e comigo mesmo. E é, neste solo, onde vivo um deslizamento da morte dos objetos
matemáticos aos sentidos que com eles assumimos em nosso mundo-vida escolar.
XI - CONSIDERAÇÕES PARA RECOMEÇOS.
UM OLHAR RETROSPECTIVO, COMPREENDENDO-ME NO PROSPECTIVO.
Não sendo possível terminar, a proposta é a de um recomeçar. Estas últimas linhas
que, impressas, concretizam fisicamente esta investigação, não significam o seu encerramento.
A delimitação fica apenas no âmbito de uma cronologia estática. Entretanto as interpretações
que tentei descrever devem ser reinterpretadas, ressignificadas no contexto de
compreensão/interpretação à luz de uma fenomenologia hermenêutica tal como desenvolvida
por Ricoeur. O tom, aí, não é o de considerações finais, mas de possibilidades, de re-
começos.
Ideologia,... não quero uma para viver. Aprendi, com Ricoeur, que vivo por fenômenos
ideológicos, enquanto Heidegger me situa como ser-no-mundo e Merleau-Ponty me fala que
os sentidos estão naquilo que percebo e, ainda, que pesquisar, em Educação Matemática, é
uma possibilidade de me educar matematicamente.
Parti, nos rumos desta investigação sem um caminho perfeitamente tracejado,
delimitado, mas intencionado a melhor compreender-me como professor, como ser-no-mundo
sendo educador pela matemática, percebendo sentidos em duas principais perspectivas, uma
que me fala de formação enquanto ação, pela Filosofia da Educação Matemática, que abre um
campo à importância de cada ator no cenário educacional em:
... também pela matemática as pessoas se mostram, se expressam, marcam
sua presença no mundo dos outros. Se se pede a atenção do professor de
Matemática a esse aspecto, não se trata de desviá-lo de suas funções, de
retirá-lo do seio de sua ciência e solicitá-lo em trabalhar facetas que não
dizem respeito à Matemática. É, de outro modo, vê-lo aprofundar-se na
Matemática, recuperando-a no mundo-vida de seus alunos e tratando o estar-
no-mundo de seus alunos como ato correlato de conhecê-la . (DETONI,
2000, p. 269)
E outra com a qual entendo melhor os entre-lugares, as pontes, as margens, a viver nas
fronteiras,...
Ora, nossa insistência em criar categorias para “classificar” e ordenar” nossas
idéias e “achados” vem da noção de que a cultura que estamos investigando
forme um todo compreensivo, coerente, inteiro epistemologicamente contínuo,
sem rupturas ou incompreensões, passível de ser abordado por uma Teoria
Unificada”... Mas é exatamente nas fendas, nas rupturas, nas rachaduras, nas
incompreensões – ou seja, onde os monstros habitam, que a diferença e,
portanto, o “outro”, se manifesta. É desde estas fendas que as culturas, o
“outro”, tornam-se minimamente audíveis. Assim, é através dos monstros que
poderemos não digo compreender, seria uma ambição descabida dar lugar
para que as culturas se manifestem, para que uma comunicação mínima se
realize.CLARETO, 2003, p. 192).
São interpretações em que, ao interpretá-las, percebi maior liberdade, em termos de
pesquisa e de sentido para compreender-me educador matemático, como abertura para
compreender minha tarefa educativa.
Com os alunos, fizemos de nossos gestos e de nossas palavras um fundo cultural
comum, acordado pelas mundaneidades que nos constituem seres-no-mundo-escola. De
suas palavras, as que me foram possíveis registrar, tentei, com o que me fez sentido nas
leituras de Ricoeur, interpretá-las. Das interpretações dessas interpretações, compreendi-me
numa convergência que denominei “categorias abertas”: aritmeticidade,
geometricidade/espacialidade, pedagogicidade, perspectividade e educabilidade filosofar,
considerando-as fenômenos ideológicos. Não ideologias a Max Weber nem a Karl Marx, mas
no escopo que Ricoeur nos convida a compreender ideologias como pertença, como
constituição cultural, como uma crença. E se, em algum momento, cair a questão acerca de
uma avaliação nos parâmetros de cientificidade que tenta negar a validade do fenômeno
ideológico, faz-se uma pergunta já feita por Ricoeur: “Existe um lugar não-ideológico de onde
seja possível falar cientificamente da ideologia?”
Ensinar matemática, para mim, passou a ter outros sentidos a partir não apenas desta
investigação, mas a partir das reflexões que o Curso de Mestrado da Faculdade de Educação
da UFJF possibilitou-me. Percebo-me um professor melhor”, ao compreender que a cultura
matemática escolar constitui-se de ideologias enquanto pertença de um povo, uma
comunidade que faz um acordo, por nascer num mundo constituído, ideologicamente, no
sentido hermenêutico, já constituído de possibilidades.
Creio não ter explorado tudo o que o texto das falas dos alunos nos permite interpretar,
todavia admito ter interpretado o que me foi possível neste momento de minha formação
acadêmica. O texto está aberto a outras questões e outras interpretações podem ser realizadas a
partir dele; outros projetos de pesquisa em educação, não apenas pela matemática. Percebo a
não necessidade de elencar “Questões”. Essas devem estar encarnadas em quem se perceber
aberto a conceber educação na perspectiva de possibilidades do aluno habitar o espaço escolar
como participante criador, não apenas como ser cognitivo ou um ser racional que busca
explicar um mundo racional, mas que lhe seja possibilitada abertura à compreensão de si
próprio ao considerar os objetos de estudo como entes que têm sentido pela existência
humana. Um ser que é capaz de se relacionar com esses, expressando-se no mundo.
Digo, com isso, uma postura que tende a exigir que os atores da educação ultrapassem
as explicações racionais daquilo que pensam ser apenas produto de uma razão usual. Cabe-
nos, inclusive, uma questão: os atos pelos quais classificamos os objetos matemáticos são
puramente racionais, ou usamos nossa razão para dizê-los racionais?
Um sentido de ultrapassamento me fez crescer, nesta investigação, ao perceber a
possibilidade de uma educação que não prepara um ser, às vezes considerado “indivíduo” para
a vida, mas que “prepare” um ser para um mundo de conflitos, não organizado, inacabado,
uma diversidade onde possa haver deslizamento a sentidos no tornar-se educando, tornar-se
educador, tornar-se intérprete, interpretando experiências cotidianas.
O vivido, nesta pesquisa, direciona-nos a uma atitude de competência na vivência
fenomenológica e hermenêutica, na busca de desmistificação de crenças que parecem
transferir os problemas e dificuldades encontrados na educação para o âmbito administrativo,
sobremodo no tocante ao material didático adotado pelas instituições, às grades curriculares,
aos programas de seleção, às políticas salariais e, ainda, à falta de motivação que julgam haver
por parte dos alunos. Aliás, a dicotomia professor/aluno exige outro olhar que não seja o de
uma oposição binária, onde o papel do professor seja o de dominar, comandar e preencher um
vazio e o do aluno seja o de submeter-se, obedecer e ser preenchido. É preciso, portanto,
reconhecer um sentido de autoridade também presente no aluno, por sua possibilidade de
interpretar a intenção do professor e a autoridade para interpretar o modo como pode se
apropriar do aprendizado e vivenciar outros sentidos dos objetos pedagógicos no seu mundo-
vida.
Isso não significa uma liberdade do tipo descomprometida ou uma inversão de papéis
no espaço escolar, ou, ainda, um movimento desordenado de saberes e fazeres pedagógicos.
Não se trata de vislumbrar uma escola tecida brownianamente. Há, sim, a
exigência de uma raiz, mas uma radicalidade no sentido humano de uma prática onde o
professor, por sua experiência mais ampla de vivência e de conhecimento, é responsável por
desenvolver um ambiente educacional de abrimento ao aprender, a um mundo de
possibilidades.
Estar atento às manifestações plurais no aluno, impregnando-se de uma
pedagogicidade pelo sentido, é uma opção que exigirá, do educador a desagregação de um
passado distante de si, tornando-o presente, como um modo de projetar o seu devir pela
experiência de possíveis mudanças e de novos direcionamentos, de possibilidades de
incertezas, de mistérios. Exigirá, ainda, do professor, perceber o aluno um ser consciente,
capaz de, mesmo no caos e na perspectividade, criar suas educabilidades particulares.
Pela Matemática Escolar, a educação também pode se desvencilhar de pressuposições
imutáveis. Pelo experienciado nesta pesquisa, uma abertura à matematicidade encarnada no
aluno pode desdobrar-se em facetas. Ao interpretar a aritmeticidade como modo de
manifestação de relações aritméticas fundadas no humano, esperamos, com esse fenômeno,
que educadores possam também se compreender, percebendo o ato de contar como
possibilidade do ser-estar-no-mundo, abra-se à concepção de que, o ato de contar é perceptivo,
anterior ao processo de escolarização e, principalmente, que as prisões algorítmicas são
apenas um modo relacional com os números.
uma intenção prospectiva, uma mensagem ao desenvolver as interpretações acerca
de geometricidade/espacialidade, visando a uma educação geométrica que seja vivenciada
num espaço mais amplo, que não se limite à geometria de fatos e de conceitos universais,
abstratos. Não quero dizer que esperamos por uma prática geométrica autêntica, mas que o
professor, na situação de aula de geometria, esteja atento ao que possa ser manifestado como
original com o aluno presente no mundo, no ambiente de aula. Esperamos, sim, pela
experiência desta investigação, que seja possível um ambiente no qual entre a geometria
estruturalmente organizada e a geometricidade como manifestação do original, uma não seja
considerada mais importante que a outra, mas co-existências, ambas interpretações
perspectivais.
E os discursos dos alunos-sujeitos desta investigação mostraram-me, numa experiência de
uma Educabilidade Filosofar, na qual o conhecimento não se mostra apenas em testes avaliativos,
mas é mais livremente desvelado em falas diversas: pela falada, pela gestual, pela escrita, pela
silenciada, e por outras falas percebidas, principalmente, quando o professor pretenda
compreender-se educador.
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