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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
F A C U L D A D E D E L E T R A S
PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
Pablo Alexandre Gobira de Souza Ricardo
Mestrado em Teoria da Literatura
UTOPIA SELVAGEM, DE DARCY RIBEIRO E A IDADE
DA TERRA, DE GLAUBER ROCHA:
O VISÍVEL, AS VOZES E A ANTROPOFAGIA
Dissertação apresentada à s-Graduação
em Estudos Literários da Faculdade de
Letras da UFMG para a obtenção do grau
de Mestre em Teoria da Literatura
Orientadora: Profa. Dra. Haydée Ribeiro
Coelho
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão
da Alteridade
Belo Horizonte
2007
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2
Pablo Alexandre Gobira de Souza Ricardo
UTOPIA SELVAGEM, DE DARCY RIBEIRO E A IDADE
DA TERRA, DE GLAUBER ROCHA:
O VISÍVEL, AS VOZES E A ANTROPOFAGIA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Estudos
Literários da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Teoria da Literatura.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão
da Alteridade
Orientadora: Profa. Dra. Haydée Ribeiro
Coelho
Belo Horizonte
2007
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3
PABLO ALEXANDRE GOBIRA DE SOUZA RICARDO
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, com vista à obtenção
do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade
Orientador: Prof
a
. Dr
a
. Haydée Ribeiro Coelho
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Profª. Drª. Haydée Ribeiro Coelho – orientadora
UFMG
____________________________________________________
Profª. Drª. Márcia Maria Valle Arbex Enrico
UFMG
____________________________________________________
Profª. Drª. Marília Rothier Cardoso
PUC RJ
4
Para Lívia
sutilmente
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço:
à Profa. Dra. Haydée Ribeiro Coelho que me abriu os caminhos para a leitura
da obra e pensamento de Darcy Ribeiro;
à Lívia Rodrigues Cordeiro por sua importância e afeto, assim como os dias e
noites de concentração, apoio e carinho durante todo o desenrolar desta
pesquisa ao meu lado;
aos meus pais, Alcirene Gobira de Souza Ricardo, Aurita Gobira e Alexandre
de Souza Ricardo que, mesmo não decifrando meus trabalhos, ainda apóiam o
que faço;
ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários;
aos professores da Faculdade de Letras, representados nas figuras da Profa.
Dra. Maria Ester Maciel de Oliveira Borges e Profa. Dra. Vera Lúcia de
Carvalho Casa Nova;
à Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR) pela abertura do acervo do intelectual
para que novos mundos fossem abertos para esta pesquisa;
ao Tempo Glauber na pessoa da gentil Dona Lúcia, mãe do cineasta;
à equipe do Centro Marista de Educação e Cidadania (CEMEC) na pessoa
de Carmem Gonçalves, pelos apoios recebidos;
aos professores do Acervo de Escritores Mineiros, coordenado pelo Prof. Dr.
Wander Melo Miranda;
ao Márcio Pimenta, secretário do Centro de Estudos Literários (CEL), pelo
apoio permanente aos bolsistas;
ao grupo da Revista Eletrônica Café Com Bytes e à redação do Cometa
Itabirano, por compartilhar idéias e inquietações;
aos pesquisadores do Núcleo de Estudos Organizacionais e Simbolismo
(NEOS) da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, na pessoa do Prof.
Dr. Alexandre de Pádua Carrieri, pela oportunidade de participar de seus
projetos;
às Profas. Dras. Márcia Maria Valle Arbex Enrico (UFMG) e Marília Rothier
Cardoso (PUCRJ) pelos apontamentos e comentários pertinentes à este
trabalho.
6
“Glauber pôde expressar tão fortemente nós, brasileiros, em seus
filmes inigualáveis, porque ele encarnava todo o povo brasileiro
em seus séculos de sofrimento e dor.”
Confissões, Darcy Ribeiro
“Ainda estava no Peru quando apareceu lá meu amigo Glauber
Rocha, que sempre me visitava nos meus exílios.”
Confissões, Darcy Ribeiro
7
RESUMO
Essa dissertação tem por objetivo estudar a interlocução entre Darcy Ribeiro e Glauber
Rocha, a partir do visível, das vozes, da antropofagia em Utopia Selvagem: saudades da
inocência perdida, uma fábula, do roteiro de Idade da Terra e o respectivo filme. Para isso,
esse texto é composto por três capítulos. O primeiro fez uma aproximação entre a literatura e
o cinema através dos conceitos de imagem e da tradução intersemiótica. Esses aspectos
permitem elucidar a presença do visível nos textos mencionados. No capítulo seguinte, foi
realizada a análise das vozes, para evidenciar a confluência entre as idéias dos intelectuais
brasileiros. Finalmente, no terceiro capítulo, foi focalizada a antropofagia como um campo de
saber político.
8
RÉSUMÉ
Cette dissertation a pour but d’étudier l’interlocution entre Darcy Ribeiro et Glauber Rocha, à
partir du visible, des voix et de l´anthropophagie, dans Utopia Selvagem: saudades da
inocência perdida, uma fábula, dans le scénario de Idade da Terra et le film de même nom.
Ce texte est composé de trois chapitres. Le premier fait une approche entre la littérature et le
cinéma à travers les concepts d’image et de traduction intersémiotique. Tous ces aspects ont
permis d’élucider la présence du visible dans les textes déjà cités. Dans le chapitre suivant,
nous avons fait une analyse des voix pour montrer la confluence des idées chez les
intellectuels brésiliens. Finalement, dans le troisième chapitre, nous envisageons
l´anthropophagie comme un champ de savoir politique.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 O VISÍVEL EM UTOPIA SELVAGEM E EM
A IDADE DA TERRA 22
1.1 A LITERATURA E O CINEMA: A IMAGEM 23
1.2 REFLETINDO SOBRE A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA 28
1.3 ELEMENTOS DO VISÍVEL NA LITERATURA E NO CINEMA 30
1.4 DO ROTEIRO PARA O TEXTO FÍLMICO 32
1.5 CAAPINAGEM: ROTEIRO DE FILME OU FILME ROTEIRO? 41
2 AS VOZES EM UTOPIA SELVAGEM E EM
A IDADE DA TERRA 49
2.1 AS VOZES NO ROTEIRO DE A IDADE DA TERRA 50
2.2 AS VOZES EM UTOPIA SELVAGEM 68
3 REVISITANDO A ANTROPOFAGIA EM
UTOPIA SELVAGEM E EM A IDADE DA TERRA 79
3.1 A CONFLUÊNCIA ENTRE AS VOZES E AS IDÉIAS:
DARCY RIBEIRO E GLAUBER ROCHA 80
3.2 ANTROPOFAGIA: UM CAMPO DE SABER 83
3.3 REVISITANDO A ANTROPOFAGIA EM UTOPIA SELVAGEM 87
3.4 A ANTROPOFAGIA EM GLAUBER ROCHA 90
CONCLUSÃO 97
REFERÊNCIAS 100
FILMOGRAFIA 107
INTRODUÇÃO
11
Esta dissertação é resultado de percursos anteriores, realizados desde a Graduação
como bolsista de iniciação científica, no período de 2000 a 2003, em que estive sob
orientação da Professora Haydée Ribeiro Coelho. Inicialmente, estudei a aproximação entre o
pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro e as reflexões do filósofo mexicano Leopoldo
Zea
1
, tendo como base o personagem Isaías, do romance Maíra.
2
Em seguida, dediquei-me ao
estudo do escritor em interlocução com o cineasta Glauber Rocha a partir das noções de
utopia e anti-utopia e, ainda, o enfoque da imagem nos textos dos autores já mencionados.
O interesse pelo diálogo entre os dois intelectuais surgiu com a leitura da entrevista
que Darcy Ribeiro concedeu à professora Haydée Ribeiro Coelho,
3
dizendo que o capítulo
final de Utopia Selvagem foi escrito para ser filmado pelo cineasta.
4
Na medida em que ia apresentando trabalhos em congressos e seminários, e
consultando o “Tempo Glauber” e a “Fundação Darcy Ribeiro” (FUNDAR), verificou-se que
a hipótese de trabalho parecia confirmar-se, considerando os documentos encontrados nos
respectivos arquivos dos intelectuais. Além disso, lendo a bibliografia crítica sobre Darcy
Ribeiro e Glauber Rocha, constatou-se que não havia trabalho contemplando, de forma
comparativa, os textos escolhidos para esta dissertação, a saber: Utopia Selvagem, o roteiro de
A Idade da Terra e o filme.
Estudar a literatura de Darcy Ribeiro e o cinema de Glauber Rocha não é tarefa fácil.
O antropólogo, escritor de romances, também pensou o Cinema, a Crítica, a Literatura, os
fenômenos sociais e políticos. O cineasta, diretor de curtas e longas, escreveu livros como se
1
ZEA, 1972; 1975.
2
RIBEIRO, 1976.
3
COELHO, 1997a.
4
RIBEIRO, 1997b, p. 47.
12
filmasse narrativas experimentais,
5
assim como também refletiu sobre a cultura latino-
americana, sobretudo a brasileira.
A Utopia Selvagem, de Darcy Ribeiro, conta a história de Pitum, um negro gaúcho do
exército brasileiro que se perde de sua tropa na Floresta Amazônica. É, então, seqüestrado por
mulheres índias, referência que remete às Amazonas. O militar se encanta e se acovarda com
as índias, se entre índios de outra tribo, a dos Galibis, que o assumem como um dos seus.
Pitum que, entre os Galibis, chama-se Orelhão, é um personagem que se mimetiza nessas
vivências, um anti-herói que protagoniza e antagoniza no enredo em que o narrador ilude o
leitor sobre suas intenções a cada página. Utopia Selvagem trata da Europa, do Brasil e da
América Latina a partir dos olhares sobre a utopia, as esperanças, o conhecimento e a
transformação social.
Para que fosse possível mostrar a interlocução entre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro,
selecionei o filme A Idade da Terra, que é composto por três partes montadas, em separado.
Foi criado, para ser exibido em qualquer ordem, não respeitando padrões de linearidade
narrativa. Seu enredo não pode ser resumido, mas se o pudesse seria a história do Cristo no
Terceiro Mundo, como diz seu diretor na versão comercial distribuída pela “Embrafilme”.
Esse Cristo, no roteiro, se divide em quatro: o Cristo Índio; o Cristo Negro; o Cristo Militar; e
o Cristo Guerrilheiro. Todos revezam o espaço de protagonismo e antagonismo com Brahms,
uma espécie de antiCristo glauberiano.
A análise de A Idade da Terra será realizada, na maior parte da dissertação, com base
em seu roteiro. Por hora, para delimitar o objeto, basta dizer que ele tem seu primeiro
tratamento no roteiro intitulado Anabaziz o primeiro dia do novo século.
6
Esse roteiro foi
escrito por Glauber Rocha, com o objetivo de captar recursos em diversos países, em 1977.
No México, chegou a ser proibido. Nesse processo, pode ser vista a dificuldade gerada na
5
ROCHA, 1978.
6
ROCHA, 1985a, p. 193-236.
13
delimitação do corpus da análise, uma vez que não existe um roteiro “pronto” ou “fechado”
de A Idade da Terra; porém, para tentar solucionar esse problema, o roteiro que aqui se
estudará é aquele publicado no livro organizado por Orlando Senna, intitulado Roteiros do
Terceyro Mundo.
A opção dessa leitura, a partir da linguagem literária, pode ser respaldada com base em
uma carta do cineasta a Carlos Augusto Calil:
Gostaria de publicar estes roteiros num volume - de umas 300 ginas - sob o
título geral de Roteiros do Terceyro Mundo porque estes 8 filmes são referentes ao
III Mundo e marcam uma fase de meu trabalho. Se isto for possível - depois
acertaremos por carta ou telefone detalhes da edição. A edição seria bom (sic) para
preservar a base literária dos filmes - pois estes roteiros podem ser refilmados +
televizados + montados em teatro e ainda funcionam como romances ou novelas
etc...
7
As possibilidades literárias se revelam não somente em A Idade da Terra, mas em
todos os filmes de Glauber Rocha, como se vê acima.
Para o estudo da recepção de A Idade da Terra, deve-se entender o processo de
produção do cineasta de maneira, ao menos geral, com base em suas duas estéticas, a da
fome
8
e a do sonho.
9
O último filme de Glauber Rocha é profundamente marcado por reflexos
do movimento cinemanovista das décadas de 1950 a 1970, encabeçado pelo próprio cineasta.
O Cinema Novo surge, na vida de Glauber Rocha, a partir de sua
atividade crítica [e da] (...) participação ativa e constante nas inumeráveis discussões
sobre o cinema brasileiro que precederam (...) uma visão crítica de nossa cultura,
processada incessantemente na busca inquieta de uma apreensão e compreensão
cada vez mais exata de uma realidade brasileira em permanente dinamismo.
10
Sob a perspectiva da formação de Glauber Rocha e da sua vontade de entender a
realidade, não apenas brasileira, mas também latino-americana, Guido Bilharinho percebe a
busca dessa geração de cineastas comprometidos com um fazer cinematográfico que
represente seu povo.
7
ROCHA, 1985b, p. XV.
8
Idem, 1965.
9
Idem, 1971.
10
BILHARINHO, 1970.
14
Pode-se destacar a continuidade da temática trabalhada por Glauber quanto às idéias e
ideais estéticos já apresentados em filmes anteriores baseados em “Uma estética da fome”,
11
manifesto que analisa a estética do Cinema Novo como
uma estética da violência [que] antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto
inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: sòmente
12
conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode
compreender, pelo horror, a fôrça da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as
armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o
francês percebesse um argelino.
13
A base de contestação e reflexão crítica do Cinema Novo ampliou-se. Ela não constrói
apenas imagens que pretendem refletir sobre um agrupamento de sujeitos de modo
regionalista, mas reflete-se amplamente sobre a situação latino-americana e do “Terceiro
Mundo”.
Há uma realidade de conflito e colonização representada nos discursos. Glauber Rocha
não está mais preocupado com a construção estética da temática do personagem
poeta/intelectual (Terra em Transe, 1967), ou com a luta do profeta com o cangaceiro (Deus e
o Diabo na Terra do Sol, 1964). O cineasta demonstra preocupação com a situação política
internacional, mantenedora de uma ideologia de exploração dos povos do sul. Uma ordem
mundial neocolonizadora que, como a colonização européia, também se nega a enxergar
a fome latina, por isto, não é sòmente um sintoma alarmante: é o nervo de sua
própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Nôvo diante do
cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta
fome, sendo sentida, não é compreendida.
14
Ao reconhecer a realidade específica do contexto de 1950 e 1960, pode-se notar que a
crítica nos jornais e suplementos demonstra um caráter comprometido com a produção de arte
e atribui importância devida a ela. No caso específico de Glauber Rocha, um entendimento da
11
ROCHA, 1965.
12
Neste trabalho foi conservada a ortografia original dos textos citados.
13
ROCHA, op. cit., p. 169.
14
Ibidem, p. 167.
15
crítica sobre seu desempenho de diversos papéis intelectuais e artísticos é fundamental para
ilustrar a efervescência daquele momento histórico.
Também é memorável que certo setor da recepção crítica especializada chamou o
discurso de A Idade da Terra, no momento de seu lançamento, de “ininteligível”.
15
Em outros
trabalhos, se delineiam leituras da estrutura,
16
e até mesmo dos percursos imagéticos na
obra.
17
Nesses estudos, se encontram sinalizações de que as imagens de Glauber Rocha se
formam na intenção de um discurso antropofágico e propositivo de um Terceiro Mundo que
se reconheça culturalmente, construindo uma voz que o delineie com base em sua diversidade,
em frente à realidade de seu povo.
Ao contrário do que é dito no artigo de Orlando Fassoni
18
sobre a impossibilidade de
descodificação dos discursos presentes em A Idade da Terra, o percurso intelectual de
Glauber Rocha revela-se uma chave para a compreensão das imagens do filme.
Entendendo as imagens como construções, que se dão através da associação de
significações, rejeita-se uma limitação do conteúdo da (ou o que é mostrado na) imagem ao
meio usado para transmiti-la, seja ele o Cinema, a Literatura, ou as artes plásticas, a música,
etc.
Jair Tadeu da Fonseca
19
diz, na década de 1990, que “Glauber Rocha sempre
transitou pelas fronteiras de artes e ofícios diversos”. O crítico percebeu que “a
correspondência de sua obra cinematográfica com a poesia é evidente”, como as imagens
poéticas construídas a partir da semiótica literária que se revela em filmes como Terra em
Transe (1967).
15
FASSONI, 1980.
16
TEMPO GLAUBER. S/A. A estrutura da obra de Glauber Rocha. Movimento, São Paulo, 1974. Série
Produção Intelectual do Titular. Subsérie A Idade da Terra. Rio de Janeiro. Documento consultado em: out.
2005. O nome da referência foi atribuído ao documento por não haver outra forma de fazê-lo. Ressalto-se que o
documento é muito importante para ser omitido apenas por esse motivo.
17
VASCONCELLOS, 1980.
18
FASSONI, op. cit.
19
FONSECA, 1997, p. 18.
16
O crítico mencionado
20
desenvolveu estudo profundo sobre Glauber e sua trajetória
artística e intelectual que não pode ser desprezada. Além de Jair Tadeu da Fonseca, ressalto
ainda o trabalho de Raquel Gerber,
21
que aborda a questão política no cineasta e seu lugar no
cinema brasileiro.
No que diz respeito ao modo de analisar os filmes de Glauber Rocha, o crítico Ricardo
Gomes Leite, em texto sobre o realismo e irrealismo,
22
compara Antonioni, Bruñel e Bergman
com o cineasta brasileiro, afirmando que a análise de cada obra desses cineastas deveria ser
feita não seguindo uma abordagem descritiva (tentativa de tradução de tudo o que
aparece na tela) mas procurando os propósitos fundamentais do autor, sua coerência,
onde as palavras realismo, fantástico, documentarismo, fantasia não seriam critérios
de valor, mas se enquadrariam dentro de um sistema escolhido pelo cineasta.
23
A proposta de Ricardo Gomes Leite sugere que a análise tenha como núcleo a
liberdade do cineasta no desenvolvimento de sua obra, ou seja, seu(s) tema(s), suas idéias,
suas proposições estéticas.
Darcy Ribeiro, em documento existente em arquivo consultado na Fundação Darcy
Ribeiro” (FUNDAR), afirma que “cada filme dele [Glauber Rocha] é um berro. É o único que
faz o homem tremer. Eu jogo no filme da morte do Di. No ano 2500 vai-se ver o Di. É de uma
importância enorme.”
24
Pelas palavras do escritor mineiro, seria muito exigir de toda a crítica
uma recepção satisfatória de qualquer um dos filmes de Glauber Rocha, em especial de A
Idade da Terra, filme que por vezes é considerado sua obra-prima.
25
A busca pelo vínculo
coerente entre o autor e a sua produção, enquanto papel da crítica, é também assumida por
Carlos Henrique Santiago, com base em sua análise da estética glauberiana:
20
FONSECA, 1995; 2000.
21
GERBER, 1977; 1982a; 1982b.
22
LEITE, 1968.
23
Ibidem.
24
RIBEIRO, Darcy. Trechos de entrevista sobre Glauber Rocha. Arquivo Darcy Ribeiro, série produção
intelectual do titular. Fundação Darcy Ribeiro. Repórter ZCV/Redator ZVC/Editora PAR. Edição 17/07.
Quarta/Data: 16/07/1991. Início 18:37/Fim: 11:24. 59 linhas. Este trecho foi retirado de documento existente na
FUNDAR.
25
GARDNIER, 2005.
17
Nos filmes de Glauber Rocha encontramos uma coerência radical entre a forma e o
conteúdo. Tanto a ‘mise-en-scene’ como todos os procedimentos técnicos
(montagem, som, fotografia...) são convocados para servir de suporte material ao
pensamento, às idéias que o filme sistematiza e busca comunicar ao espectador.
A desenvolvida consciência política e social do cineasta explode em seus filmes e
textos, e engloba também a sua definição pessoal do que é a arte e sua visão do que
é o cinema. E é esta coerência imanente à obra glauberiana que nos incentiva a
buscar nos seus escritos o fio condutor da sua obra cinematográfica.
26
A partir dessa constatação, pensar o visível nas cenas do roteiro de A Idade da Terra
não significa distanciar-se da realidade posta pelo filme, mas pressupõe uma análise que
atente para o modo como o roteiro é escrito, para que se reflita sobre sua transposição para a
tela do cinema.
Sobre Utopia Selvagem, pode-se dizer que não foram estudados os elementos da
fábula que apontam suas potencialidades fílmicas; porém, trabalhos que demonstram a
visualidade no texto de Darcy Ribeiro podem ser encontrados.
27
Este não é o primeiro trabalho que pretende identificar a fábula do antropólogo como
um texto crítico à realidade social. Franklin de Oliveira, no artigo “A esperança crítica”,
publicado na Folha de S. Paulo na ocasião do lançamento de Utopia Selvagem, já enxergava a
narrativa e seu projeto de mudança social.
28
No que se refere a Utopia Selvagem, é importante dizer que a narrativa é constituída
também pela colagem de diversos textos. Darcy percorre as tradições literárias brasileiras,
passando pela antropofagia de Oswald e Mário de Andrade. Inclui, ainda, relatos de viajantes
e pensadores europeus como Thomas Morus e Jean-Jacques Rousseau, dentre muitos outros.
Nas palavras do próprio antropólogo, de acordo com texto de Gilso Rebello:
Em meu livro, a utopia, que quer dizer em nenhum lugar ou em tempo nenhum,
julga o real. Porém a minha proposta enquanto ficção, já que não quis escrever um
ensaio, é a de contestar a crítica de George Orwell, em 1984, e de Aldous Huxley,
em Admirável Mundo Novo, que falam da deterioração do stalinismo e procuram ver
o mundo do futuro de forma terrível.
29
26
SANTIAGO, 1985, p. 8.
27
COELHO, 1989; 1997b.
28
OLIVEIRA, 1982.
29
REBELLO, 1982.
18
É a partir desse comentário de Darcy Ribeiro sobre sua crítica à realidade social, com
esperança em um futuro diferente dos autores europeu e norte-americano, que se pode pensar
em seu livro como um olhar diferenciado sobre a realidade. Esse olhar é insubmisso ao olhar
europeu ou norte-americano. Marcílio Farias afirma que:
Poucas vezes a nossa mitologia foi tão sacudida em sua beleza. Como se de repente
centenas e centenas de anos de esquecimento fossem removidos com um soro. E
tudo numa linguagem onde o rigor do conhecimento histórico caminha par a par
com uma escancarada aproximação com o belo que, no caso, transborda pelas
margens da cultura revisitada.
30
Darcy Ribeiro busca, em sua fábula, dar à terra latino-americana um outro mito de
fundação que não seja o mito criado pelos europeus. Propõe respostas latino-americanas para
os dilemas dos povos dessa Terra contando sua história.
31
Antes de tudo, ele mostra os povos
originais da América Latina praticando seus ritos de uma forma revisitada, recriada. A
recepção crítica do antropólogo percebe, desde o lançamento de Utopia Selvagem, o caráter
contestatório que o texto possui. Como Marcílio Farias escreve, Darcy “co-rompe” a “noção
idealista pelas bases; vai buscar no barro da cultura a realidade, negada de uma utopia que não
se coloca num tempo futuro por ter sido, por ter entranhado na memória aniquilada,
naquilo que se chama civilizatio (sic).”
32
Não se pode dizer, no entanto, que o antropólogo
não pense em um futuro para o brasileiro ou o latino-americano. É a partir dessas questões
extraídas de Utopia Selvagem que João Domingues Maia, em sua dissertação, remete ao
drama apresentado na fábula, que trata
de um retrato de múltiplos brasis, em múltiplos tempos e espaços, pois, como medita
Orelhão: “O tempo é muitos tempos simultâneos. Impossíveis. O espaço também”
(p.102). E o que é o Brasil e, por extensão, a América Latina senão múltiplos
contrastes?
33
30
FARIAS, 1982.
31
RIBEIRO, 1979.
32
FARIAS, 1982.
33
MAIA, 1985, p. 80.
19
Considerando o exposto, esta dissertação tem como objetivo: estudar a interlocução
entre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro, com base no visível, nas vozes e na antropofagia. Em
conformidade com esse objetivo, a dissertação será composta por três capítulos.
O primeiro capítulo irá aproximar a literatura e o cinema pelo conceito de imagem.
Discutirá também o conceito de tradução intersemiótica por esta dissertação tratar de uma
fábula, de um roteiro e de um filme. Com base nisso, serão levantados elementos do visível na
literatura e no cinema que permitirão enfocar a passagem do roteiro para o texto fílmico.
Abordarei, ainda, o último capítulo de Utopia Selvagem, “feito para Glauber filmar”.
34
O segundo capítulo irá analisar as vozes no roteiro de A Idade da Terra e em Utopia
Selvagem. Tais vozes serão estudadas, com base na possibilidade de confluência entre
Glauber Rocha e Darcy Ribeiro. Desta forma, serão observados os pontos comuns entre as
vozes assim como o modo que elas surgem nos textos analisados.
O terceiro capítulo estudará a confluência entre as vozes e as idéias em Darcy Ribeiro
e em Glauber Rocha. Depois irá analisar a antropofagia como campo de saber. Em seguida, a
bibliografia sobre Utopia Selvagem será revisitada buscando levantar apontamentos críticos
acerca da antropofagia na fábula. Esses apontamentos também serão pesquisados em Glauber
Rocha.
No primeiro capítulo, para o estudo comparativo entre a literatura e o cinema, será
estudada a bibliografia sobre “imagem”. Será possível examinar trabalhos de autores como
César Guimarães,
35
Maria de Oliveira,
36
Sergei Eisenstein,
37
André Bazin,
38
Charles Peirce,
39
Jacques Aumont,
40
e Valdir Nogueira de Almeida
41
. A partir desses autores, percebe-se que o
conceito de montagem também é fundamental para o estudo da literatura e do cinema nos
34
RIBEIRO, 1997b, p. 47.
35
GUIMARÃES, 1997.
36
OLIVEIRA, 1984.
37
EISENSTEIN, 2002.
38
BAZIN, 1991.
39
PEIRCE, 1977.
40
AUMONT, 2002.
41
ALMEIDA, 2003.
20
autores enfocados, principalmente por esse se tornar um dos elementos que podem facilitar a
tradução intersemiótica, estudada em Julio Plaza.
42
A transposição do meio literário para o
cinematográfico também pode ser pensada através de Leo Hoek e de Claus Clüver. Na
discussão sobre a transposição, será possível selecionar elementos do visível nesse processo.
Por meio do estudo de Waldir Batista Pinheiro de Barcelos
43
, reflito sobre a passagem da
literatura para o cinema. O livro, organizado por Márcia Arbex, com base em vários textos
44
sobre o visível, foi fonte fundamental de consulta para essa dissertação.
Com base nos estudos desses teóricos e críticos, mostrarei como Glauber Rocha
sinaliza a possibilidade da transposição do roteiro para o filme e como o texto de Darcy
Ribeiro possui elementos do visível, que permitem que seja filmado por Glauber.
No segundo capítulo, estudarei as vozes de A Idade da Terra, atendo-me àquelas que
permitem a aproximação com as que estão representadas em Utopia Selvagem. Associarei as
vozes ao espaço, para que seja possível demonstrar as relações de poder que se instituem a
partir delas.
Para este estudo, são resgatados os trabalhos de Mikhail Bakhtin
45
que tratam do
“riso”, do “cômico-sério”, e do “carnaval”. Também serão estudados o narrador
46
de Utopia
Selvagem, assim como o seu autor implícito, através do estudo de Wayne Booth.
47
Com base
nas vozes também será possível constatar a ironia no texto de Darcy Ribeiro e de Glauber
Rocha.
No terceiro capítulo, enfocarei os sentidos da antropofagia com base nos estudos de
Maria Cândida Ferreira de Almeida
48
e Heloisa Toller Gomes.
49
Para revisitar a antropofagia
42
PLAZA, 1987.
43
BARCELOS, 2003.
44
LOUVEL, 2002, p. 147, apud ARBEX, 2006, p. 48-49.
45
BAKHTIN, 1979; 1981; 1990.
46
GENETTE, 1995.
47
BOOTH, 1980.
48
ALMEIDA, 1999.
49
GOMES, 2005.
21
na crítica sobre Darcy Ribeiro e Glauber Rocha, utilizarei, respectivamente, as abordagens
críticas de João Domingues Maia,
50
Susana Célia Leandro Scramim
51
e Ivana Bentes.
52
50
MAIA, 1985.
51
SCRAMIM, 2000.
52
BENTES, 2002.
1 O VISÍVEL EM UTOPIA SELVAGEM E EM
A IDADE DA TERRA
23
1.1 A LITERATURA E O CINEMA: A IMAGEM
Para o estudo do visível, inicio o estudo estabelecendo a relação entre o cinema e a
literatura, a partir de um dos conceitos de imagem, aspecto fundamental para o entendimento
da confluência entre essas artes.
César Guimarães, ao tratar da imagem na Literatura e no Cinema, no seu livro
Imagens da Memória, afirma:
Um trabalho comparativo entre literatura e cinema, (...) poderia se realizar
paradoxalmente no lugar em que os dois tipos de imagem que os constituem (a
verbal e a visual) não se encontram, separados pela diferença do meio material no
qual cada uma se realiza e pela natureza diferenciada dos signos que os
constituem.
53
Mesmo com a divergência dos meios de produção que se pautam na forma de
representatividade: visual, sonora, verbal no Cinema (em que a imagem é visual
principalmente através das significações na tela) ou verbal na Literatura (em que a imagem se
torna visual através do conceito),
54
confirma-se a existência de processos comuns de formação
imagética como a técnica de montagem.
Para este trabalho, utiliza-se o conceito de imagem que permite enfocar a visualidade
tanto na literatura quanto no cinema. Sergei Eisenstein, ao definir imagem, demonstra que seu
conceito cabe à Literatura. Dentre seus exemplos constam citações de imagens montadas,
originárias de textos literários de Leon Tolstoy (Anna Karenina), John Milton (Paraíso
Perdido) e exemplos extraídos da poesia russa de Puchkin.
No artigo “A montagem no Cinema e na Literatura”, Maria de Oliveira aproxima as
duas artes com base no conceito de montagem. A autora do ensaio conclui que:
De todos os recursos cinematográficos fornecidos pelo cinema à literatura, a técnica
da montagem constitui, sem dúvida, a maior contribuição oferecida, na medida em
que permite ao escritor romper com o tempo linear, acelerar ou retardar o fluxo dos
acontecimentos, controlar o ritmo da narrativa, jogar com alternâncias abruptas de
objetos vistos à distância ou muito próximos.
55
53
GUIMARÃES, 1997, p. 67.
54
Ibidem, p. 62.
55
OLIVEIRA, 1984, p. 10.
24
Logo à frente, em seu artigo, cita Robert Richardson, em Literature and Film, dizendo
que
(...) a literatura tem tido de fato uma influência decisiva sobre o filme, tanto na
teoria como na prática. Eisenstein, em particular, torna claro que a conexão não é
periférica ou figurativa, mas em algum sentido, orgânica e crucial.
56
(Grifo nosso)
No livro O Cinema, André Bazin usa o seguinte conceito de imagem:
Por imagem, entendo de modo bem geral tudo aquilo que a representação na tela
pode acrescentar à coisa representada. Tal contribuição é complexa, mas podemos
reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem e os recursos
da montagem (que não é outra coisa senão a organização das imagens no tempo).
57
Optou-se por uma releitura do crítico francês e seu conceito de imagem para o Cinema
por encontrar nele uma legitimação da idéia de que a imagem é formada por agregação de
significações e por se organizarem temporalmente. No cinema, a plástica da imagem é
constituída pelo cenário, a maquiagem e outros elementos da cena, anunciados desde o
roteiro, e a montagem que, além de ser “a organização das imagens no tempo”, também é,
segundo Bazin, “a criação de um sentido que as imagens não contêm (...) e que procede
unicamente de suas relações”,
58
levando em consideração os movimentos da câmera e as
opções do diretor no roteiro.
Esse conceito mostra que, no processo da construção da imagem, uma recriação da
coisa representada pela sensibilidade artística, o que se relaciona com a noção de signo,
segundo Charles Pierce.
Para o lingüista norte-americano:
Um signo é um ícone, um índice ou um símbolo. Um ícone é um signo que possuiria
o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não existisse, tal como um
risco feito a lápis representando uma linha geométrica. Um índice é um signo que de
repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas
que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o
caso de um molde com um buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro
não teria havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tendo alguém ou não a
capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um mbolo é um signo que perderia o caráter
que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso de qualquer
56
RICHARDSON, 1969, apud OLIVEIRA, 1984, p.10.
57
BAZIN, 1991, p. 67.
58
Ibidem, p. 68.
25
elocução de discurso que significa aquilo que significa apenas por força de
compreender-se que possui essa significação.
59
O conceito de signo precisa ser compreendido, pois a idéia de imagem neste estudo se
dá por significações que provocam a visualidade. Não sendo analisado a partir de seus
fotolitos, nesta dissertação, o texto fílmico será entendido a partir de seqüências de
significantes aglomerados, formando a narrativa.
O visível, focalizado a partir da imagem que se constrói pelos signos, apresenta-se na
arte cinematográfica. Para Valdir Nogueira Almeida, em sua leitura de Roland Barthes,
a arte cinematográfica é um campo naturalmente sensível, privilegiado para a
guarnição de significados, e o filme configura-se como o bojo dentro do qual se
abriga e se insemina a sorte das ideologias, que são neste caso, os produtos de uma
determinada história e sociedade reconhecíveis nos ‘significantes conotadores’ do
discurso imagético. O conjunto de elementos conotadores contidos na imagem, a
semiologia vai tratar por retórica da imagem, a ‘face significante da ideologia’ que a
imagem revela. Em tempo, o cinema é um verdadeiro manancial de significações,
porque a imagem é um novelo de significantes. A retórica da imagem
cinematográfica é um desafio instigante para o espectador crítico, pois é sua cultura
pessoal que está em questão, no jogo das decifrações imagéticas.
60
Retornando ao conceito de imagem para André Bazin, e levando-se em consideração
as contribuições já destacadas, ressalta-se a teoria cinematográfica de Sergei Eisenstein para
quem o visível era essencial. Em seu livro O Sentido do Filme, o teórico russo afirma que a
imagem no Cinema é aquilo que surge do processo de montagem. E a montagem nada mais é
que a justaposição de elementos representativos. Esse conceito amplia um pouco mais a noção
de imagem.
Para André Bazin, quando a imagem decorre de uma montagem, o espectador
participa da criação mais ativamente porque tem que lidar com a relação entre os seus
elementos constituintes, produzindo, assim, seus sentidos. Para Sergei Eisenstein, o processo
de criação do espectador acompanha o da montagem. Desse modo, esse espectador está
participando da formação da imagem fílmica.
59
PIERCE, 1977, p.74.
60
ALMEIDA, 2003, p.84.
26
Para o teórico russo, assim como para o crítico francês, “esta ‘mecânica’ da formação
de uma imagem” no texto fílmico e literário, como é o caso aqui, se assemelha aos
“mecanismos de sua formação na realidade”.
61
então, concretamente, uma participação do
leitor/espectador/interpretante na construção da imagem desde a pretensão crítica do artista
até à competência do leitor/espectador em organizar aquele emaranhado de signos e
respectivas significações.
As imagens obedecem ao mesmo processo de criação na vida cotidiana, ou seja, são
produzidas com base “na consciência e nos sentimentos humanos”.
62
Eisenstein afirma que,
ao se formar uma imagem, se constrói uma cadeia de significações, uma vez que:
(...) apesar de a imagem entrar na consciência e na percepção, através da agregação
[de significações] cada detalhe é preservado nas sensações e na memória como parte
do todo. Isto ocorre seja ela uma imagem sonora uma seqüência rítmica e
melódica de sons ou plástica, visual, que engloba, na forma pictórica, uma série
lembrada de elementos isolados.
Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar
imagens no sentido e na mente do espectador. É isto que constitui a peculiaridade de
uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador
recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vez de
ser absorvido no processo à medida em que este se verifica.
63
Apesar de essa passagem de Eisenstein se concentrar na perspectiva cinematográfica,
ela pode ser estendida ao texto literário. Compreende-se que, através do narrador, o texto
literário também realiza esse movimento de se apresentar ao leitor para sua descodificação
com base na organização de seus sentidos.
É importante essa discussão atenta de Sergei Eisenstein, tendo em vista a importância
atribuída a ele na formação cinematográfica e política de Glauber Rocha. Eisenstein, nesse
trecho acima, revela alguns elementos que auxiliam a fixação da imagem. Tais elementos,
signos do visível, podem ser enumerados em: os sons provocados por seqüências rítmicas ou
melódicas que também estão presentes na literatura assim como os caracteres plásticos típicos
61
EISENSTEIN, 2002, p. 19.
62
Ibidem, p. 21.
63
Ibidem, p. 20.
27
dos filmes e suas cenas ou, ainda, em descrições de quadros e outros objetos plásticos na
literatura.
Tendo isso em vista, e lembrando-nos da montagem como um dos pontos de contato
entre a literatura e o cinema, é necessário estudar o conceito de narrativa, essencial em ambos
os meios artísticos como direcionador de sua organização e que, em alguma medida, se
aproxima do modo como vem sendo explicitado até aqui o conceito de imagem.
Jacques Aumont, em A Imagem, diz que a narrativa “é definida muito estritamente
pela narratologia (...) como conjunto organizado de significantes, cujos significados
constituem uma história”
64
e também que ela se inscreve “tanto no espaço quanto no tempo,
por conseguinte, toda imagem narrativa, e até toda imagem representativa, é marcada pelos
‘códigos’ da narratividade, antes mesmo que essa narratividade se manifeste eventualmente
por uma seqüenciação”.
65
Estando o imagético associado assim à narrativa que, por sua vez, se associa à noção
de montagem, entendem-se aqui os “códigos da narratividade” como os elementos que
sinalizam o caráter de espaço e tempo na imagem. Esses “códigos” são, mais especificamente,
a possibilidade de a imagem mostrar algo em movimento a partir de uma organização de seus
elementos estáticos.
Vê-se, então, no texto de Jacques Aumont, que “a imagem narra antes de tudo quando
ordena acontecimentos representados” - como o faz a montagem - quer essa representação
seja feita no modo do instantâneo fotográfico, quer de modo mais fabricado e mais
sintético”.
66
Pode-se concluir que a imagem pode ser narrativa, pois é organizada a partir de
elementos que sinalizam para o tempo e o espaço pelo movimento, ou seja, uma montagem. A
imagem pode ser também estática, contendo elementos com potenciais de narratividade.
64
AUMONT, 2002, p. 244.
65
Ibidem, p. 247.
66
Ibidem, p. 246.
28
No texto literário, a ocorrência freqüente da imagem narrativa formada por
seqüenciação, enquanto no filme podem ocorrer os dois tipos de imagem com igual
constância. Propõe-se que o conceito de montagem seja compreendido em três dimensões: a
primeira, enquanto montagem do filme/narrativa como um todo; a segunda, como a
montagem da cena, que é o sentido mais utilizado aqui, pois as cenas em Glauber Rocha e as
passagens de Darcy Ribeiro possuem um núcleo de significação no qual se concentram vários
signos; e a terceira, que diz respeito diretamente à montagem da imagem em que ocorre a
partir de dois ou mais significantes.
A partir disso, nas próximas seções, focaliza-se o visível que se manifesta no âmbito
da narrativa.
1.2 REFLETINDO SOBRE A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
O conceito de Tradução Intersemiótica se torna fundamental no desenvolvimento deste
capítulo, uma vez que se trata do estudo comparativo entre uma fábula, um roteiro e seu texto
fílmico. Para isso, é necessário expô-lo de maneira a satisfazer essa necessidade:
A Tradução Intersemiótica ou ‘transmutação’ foi por ele (Roman Jakobson) definida
como sendo aquele tipo de tradução que ‘consiste na interpretação de signos verbais
por meio de sistemas de signos não verbais’, ou ‘de um sistema de signos para outro,
por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura’, ou vice-
versa, poderíamos acrescentar.
67
Segundo Julio Plaza, deve-se estar atento para os meios de reprodutibilidade do texto,
verificando o suporte ao qual sua rede de significações está vinculada, tendo em vista a sua
tradução. Para o crítico, “o processo tradutor intersemiótico sofre a influência não somente
67
PLAZA, 1987, p. 1.
29
dos procedimentos de linguagem, mas também dos suportes e meios empregados, pois que
neles estão embutidos tanto a História quanto seus procedimentos”.
68
Compreende-se a tradução não apenas como um esforço sobre a transformação da
linguagem, mas das características socioistórico-culturais que interferem na mudança de
meio, como da Literatura para o Cinema. Por esse motivo, é possível concordar com Leo H.
Hoek, quando este diz que “os tipos de relações que podemos distinguir entre o texto e a
imagem dependem (...) da situação de produção/recepção, e não mais da natureza intrínseca
do texto ou da imagem”.
69
Nesse contexto, a Tradução Intersemiótica vem sendo compreendida como “forma de
arte no contexto da pós-modernidade”,
70
como uma “transtradução”, uma recriação, pois não
é possível compreender a tradução como uma outra forma de apresentar o texto artístico
integralmente em outro suporte ou linguagem. Em relação ao texto da pintura e da literatura,
no que se relaciona à transposição, Claus Clüver afirma:
A literatura, entendida como um sistema semiótico, é tão fraca ou fortemente
determinada como a pintura, e como ela sujeita a flutuações em abordagens
interpretativas. O sentido de um poema não é mais claro e auto-evidente do que o do
texto pictórico. A decisão do tradutor quanto à preservação das características
formais será determinada pela sua interpretação e julgamento, e também pela
importância e eficácia dessas características nos hábitos de interpretação do leitor.
71
Diante da confluência entre o cinema e a literatura com base na imagem, no conceito
de tradução intersemiótica, e na diversidade de objetos selecionados para este estudo, optou-
se pelo enfoque do visível presente no roteiro de A Idade da Terra, no filme de Glauber
Rocha e no último capítulo de Utopia Selvagem, realizado para Glauber filmar.
68
PLAZA, 1987, p. 10.
69
HOEK, 2006, p. 168.
70
SANTAELLA, 1987, apud PLAZA, 1987.
71
CLÜVER, 2006, p. 117-118.
30
1.3 ELEMENTOS DO VISÍVEL NA LITERATURA E NO CINEMA
Utiliza-se o sentido de visível, tal como o faz Márcia Arbex em Poéticas do visível, no
sentido de transformação da palavra escrita em “potência imagética”. Embora a ensaísta
utilize o termo “visível” no estudo entre literatura e pintura, é perfeitamente possível
compreender o “visível” como categoria que permite estabelecer um diálogo entre Glauber
Rocha e Darcy Ribeiro.
Para que este estudo fosse possível, tomou-se conhecimento de outros textos
defendidos na Faculdade de Letras da UFMG, e que estabelecem o diálogo entre literatura e
cinema.
Na dissertação de Waldir Batista Pinheiro de Barcelos, em que estuda a “tradução” de
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para o cinema, de Nelson Pereira dos Santos, podem ser
vistos alguns traços cinematográficos que um cineasta procura no texto literário, para
transformá-lo em filme e que, assim, se aproximam da visualidade. O cineasta afirma:
Transformar o livro em filme significa recriar, em outra forma de expressão, o
universo do autor [...] Vidas Secas tinha um tempo determinado, uma cronologia
estabelecida dois verões, dois anos, portanto, uma ação bem definida. (...) O livro
é tão rico de imagens, os detalhes são tão surpreendentes, que é uma espécie de
roteiro. Tem a mesmo a posição da mera. “Fabiano agachou, pegou a cuia...
bebe... olhou e viu os beiços secos de Sinhá Vitória”. O plano está feito a câmera
começa em Fabiano, e depois, de baixo para cima, focaliza Sinhá Vitória. [...] Outra
questão fundamental na adaptação para o cinema é a decisão de quem vai contar a
história. Quem conta a história no livro deve definir, em princípio, a posição da
câmera. Em Vidas Secas, foi fácil, acho que é o único livro de Graciliano contado na
terceira pessoa, e o narrador, portanto, passa a ser a própria câmera.
72
Nesse trecho, retirado do livro de Helena Salem, Nelson Pereira dos Santos revela que
Graciliano Ramos construía seu texto como um roteiro, pois sua narração era semelhante ao
olho da câmera formando um plano cinematográfico. A escolha do narrador em terceira
72
SALEM, 1987, p. 181-182, apud BARCELOS, 2003, p. 61.
31
pessoa facilitava essa adaptação do livro para o filme por meio de uma roteirização do texto
literário.
73
Barcelos afirma que:
Quando Nelson Pereira dos Santos escolhe Vidas Secas, tem em mente mais do que
a filmagem de um texto literário. O cineasta pressente que o tema do livro, sua
estrutura narrativa, a composição dos personagens, a organização dos tempos das
cenas e os espaços e, sobretudo, a linguagem e a simbologia textual colocadas de
modo como concebidas pelo escritor, coadunam com seu projeto cinematográfico.
74
Nota-se que Nelson Pereira dos Santos observa o modo em que os personagens são
construídos na descrição literária assim como também são apresentados os espaços. O tempo,
que significa a “ação” da narrativa, assim como os detalhes nas imagens criadas, ou a posição
da câmera que pode ser metaforizada pela narrativa em terceira pessoa constituem, assim,
elementos suficientes para o estudo das potencialidades visuais de um capítulo do livro.
Soma-se a essas potencialidades do visível o dinamismo típico da imagem pictórica
que aumenta sua velocidade no “cinematógrafo”. No texto literário, essas marcas são, por
exemplo, a presença de verbos que constroem uma dinâmica do movimento. Segundo Liliane
Louvel, com base nas considerações de Márcia Arbex,
esses operadores de conversão de um médium em outro produzem efeitos de leitura
específicos que se traduzem no texto pela indecisão da oscilação infinita que rege a
relação entre o texto e a imagem, jamais totalmente estabilizada, mas sim
movimento perpétuo entre ver e ler, dada a produção dessas ondas do visível que
não param de perturbar a superfície do legível. As interferências assim comprovadas
pelo dinamismo inerente ao iconotexto produzem um vai-e-vem entre os dois media
que se faz ler na temática estrutural do ver de perto/ver de longe, quando o desejo da
imagem de entrar no texto se desdobra em desejo do sujeito de entrar na pintura
(...).
75
73
SALEM, 1987, p. 181-182, apud BARCELOS, 2003, p. 61.
74
BARCELOS, 2003, p. 61.
75
LOUVEL, 2002, p.147, apud ARBEX, 2006, p. 48-49.
32
Essa dinâmica, provocada pelos verbos nessa demonstração de movimento, aponta
para outro elemento estudado no início deste capítulo: a montagem, que passa a corresponder
à justaposição de planos narrativos,
76
e que também acontece em Utopia Selvagem.
77
Por fim, a utilização do aspecto sonoro é também importante para potencializar o texto
literário. Esse aspecto já foi apontado por Sergei Eisenstein, como explicitado no início deste
capítulo, acenando para a possibilidade de a imagem visual se tornar sonora e o visual se
tornar visível pela “seqüência rítmica e melódica de sons”.
78
Com base no exposto até aqui, será estudado como o visível é revelado pelos seguintes
aspectos: o narrador-câmera (indicações de cena) e seu registro do espaço, dos personagens,
de detalhes e do tempo; a montagem da cena/trecho narrativo ligada ao movimento; os
elementos sonoros, considerando, em todos esses aspectos, a agregação de significações que
se dá nessa construção, muitas vezes, ao mesmo tempo com todos os aspectos citados.
1.4 DO ROTEIRO PARA O TEXTO FÍLMICO
A Idade da Terra, último filme de Glauber Rocha, pode ser considerado
conceitualmente envolvente e reflexo de toda a sua produção cinematográfica. Um reflexo
explosivo, pois se encarrega de trazer diversas significações, sobrecarregando a tela de
significações.
O filme contém, em seu núcleo, uma junção de mistério e provocação irônica a todos
os setores da sociedade. Por esse aspecto limítrofe, foi louvado e odiado pela crítica. Foi
76
É importante destacar que a questão da justaposição de planos narrativos foi estudada por Haydée Ribeiro
Coelho (1989).
77
Saliento que a justaposição não contrapõe a noção de seqüência enquanto a presença de uma temporalidade. É
a partir dessa organização temporal que se pode pensar a montagem tornando-se, no pensamento e prática
artística de Glauber Rocha, a montagem nuclear como será apresentado mais a frente neste trabalho. A
montagem nuclear apresenta um núcleo sobre o qual as significações se concentram.
78
EISENSTEIN, 2002, p. 20.
33
esperado por essa crítica e pela mídia na cada de 1970, tendo filmagens programadas para
os meses de outubro, novembro e dezembro de 1977 na Bahia, em janeiro e fevereiro de
1978, em Brasília e ainda em fevereiro e março de 1978, no Rio de Janeiro. São cerca de 150
minutos editados, em VHS, resultado do trabalho de três montadores, um para cada espaço do
filme: Salvador/BA, Brasília/DF, Rio de Janeiro/RJ.
A Idade da Terra é uma produção que deveria, originalmente, ser exibida a partir das
três montagens e com base na vontade do exibidor, como afirma Ricardo Miranda,
79
um dos
montadores do filme, em debate publicado na Revista ContraCampo.
Pensando na realidade de fome e miséria latino-americanas, Glauber Rocha escreve,
no contexto cinema-novista, “Uma Estética da Fome”, transpondo para o cinema essa fome e
miséria enquanto violências da realidade.
80
Em 1971, porém, o cineasta potencializa uma
outra estética para nortear sua prática artística e política.
Será em Di Cavalcanti, curta-metragem posterior à “Estética do Sonho”
81
, que a
proposta da montagem nuclear aparecerá pela primeira vez através do cineasta. Esse conceito
remete, segundo Glauber Rocha, a uma montagem que concentra um maior número de
significações em um menor espaço temporal. Segundo Ricardo Miranda, no referido debate,
a questão da montagem nuclear na verdade era um pouco isso: quando você não tem
início nem fim, você não tem um plano inicial, você não tem um plano no final, não
um significado produzido pelos planos que começam e terminam o filme, como
os filmes geralmente têm. O filme na verdade pode ser passado em qualquer ordem,
o projecionista faz a montagem, ele que faz a estrutura final do filme.
82
Nesse contexto, a corrente de significação fica à deriva, esperando que o espectador, a
partir da noção de ordem praticada pelo projecionista, possa carregá-la de significados
relativos ao que é mostrado, falado, escutado primeiro, com base em seu meio cultural. Essa
79
MIRANDA et al., 2005. Participaram do debate sobre o filme A Idade da Terra: Ricardo Miranda, Joel
Pizzini, Paloma Rocha, Luiz Carlos Oliveira e Ruy Gardnier. Esse debate foi publicado em meio eletrônico, por
isso não indicação de página para as citações. Ressalto-se que a referência a esse texto se fará como se viu
nesse trecho citado.
80
ROCHA, 1965, p. 169.
81
Idem, 1971.
82
MIRANDA et al., 2005.
34
noção da montagem em Glauber Rocha deve ser observada desde o roteiro, em que as cenas
são desconectadas, não apresentando uma ligação seqüencial.
Em “Estética do Sonho” existe a noção de que:
Uma obra de arte revolucionária deveria não atuar de modo imediatamente
político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do
eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica. (...) O sonho é o único
direito que não se pode proibir. (...) Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz
de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade
absurda. (...) Sua estética é a do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que
contribuiu para dilatar a minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos
originais da minha raça. Esta raça, pobre e aparentemente sem destino, elabora na
mística seu momento de liberdade.
83
Apenas essa “não-convenção” de um roteiro multilinear de Glauber é que explica o
caos gerado pelas gravações em toda locação pública onde foi filmado. Como exemplo podem
ser lidas as notícias sobre as filmagens em Salvador nas quais se divulga que o cineasta
pretendia filmar a santa ceia, e os doze apóstolos, etc.
Durante as filmagens, acontecem dois incidentes: as ameaças a Glauber Rocha feitas
por religiosos durante a procissão em Salvador,
84
e a proibição de que se realizassem as
filmagens de cenas que envolviam atrizes vestidas de freiras dentro de um Museu. Nesse
local, houve uma discussão entre o diretor do Museu e Glauber Rocha, o que gerou mais
indisposição para que as coisas se acertassem.
85
Todas as confusões e desentendimentos
gerados na gravação do filme talvez tenham fundamento em seu percurso demorado de
elaboração e escrita, transposição do roteiro para o texto fílmico, e o seu lançamento.
indícios, presentes no acervo de Glauber Rocha no “Tempo Glauber”, de que o
filme começou a ser pensado em 1971. Em 1977, tem-se um roteiro linear intitulado Anabazis
- o primeiro dia do novo século, que seria o primeiro tratamento do filme A Idade da Terra.
Em 1980 sua exibição no Festival de Cinema de Veneza. Em 1981, a “Embrafilme” o
83
ROCHA, 1971.
84
FILME, 1977. Os textos da Tribuna da Bahia e do Jornal da Bahia são documentos encontrados no Acervo do
Cineasta (Tempo Glauber). Ambos não possuem página, por isso elas não são citadas.
85
DIRETOR, 1977.
35
lança comercialmente. No acervo, também podem ser encontradas muitas folhas de
manuscritos e datiloscritos de pelo menos duas versões do roteiro do filme.
Pressupõe-se que o roteiro de A Idade da Terra
86
tenha tomado ao menos dois
caminhos. O primeiro aponta para a divulgação do roteiro por um setor da indústria
cinematográfica para fins de captação, como fica claro em Roteiros do Terceyro Mundo:
Este filme é a antítese da dramaturgia ocidental – uma remake da Utopia Dramátika,
pertence ao sonho fluxo atemporal, a Teoria da Montagem em Quarta Dimensão.
Deve ser realizado em Cinemascope, com som estereofônico, e terá duas horas de
duração.
(...)
Não necessito de uma grande equipe mas de tempo e orçamento racional. Calculo 3
meses de filmagem e 6 de montagem.
O orçamento poderá ser calculado entre 3 e 5 milhões.
(...)
Observações:
Esta é a tradução, ligeiramente modificada, da versão em inglês, que foi recusada
por vários produtores internacionais e proibida no México.
87
O segundo indica que Glauber Rocha tinha sempre algum datiloscrito em mãos para
apresentar à imprensa durante as filmagens, o que levava a equívocos, pois o que está nos
roteiros pré-filmagens é sempre modificado por Glauber Rocha.
A questão não é a de escolher a primeira ou a segunda opção, mas de constatar que o
cineasta construiu um tratamento do roteiro do filme entre 1971 e 1977, até o último dia das
filmagens. Também não seria errado dizer que ele construiu seu filme até o último dia das
montagens realizadas com todo o material.
Sobre o roteiro “final” de A Idade da Terra, se é que se pode tratar o trabalho de
Glauber como algo acabado, há a versão de Orlando Senna que diz:
Na primeira carta um parêntese relacionado com A Idade da Terra - “é preciso
tirar este na moviola”. Como eu sabia da existência de pelo menos dois textos (o
roteiro apresentado no México e muitas laudas que escreveu na época das filmagens,
algumas em minha casa, e que eram guardadas em uma pasta verde) deduzi que
Glauber havia perdido o material ou achava difícil localizá-lo em suas muitas malas
espalhadas pelo mundo. Com o auxílio de sua mãe Lúcia e sua irmã Lu, e das dicas
de seu primo Kim Andrade, produtor do filme, os textos foram encontrados.
88
86
ROCHA, 1985b.
87
Idem, 1985a, p. 235.
88
SENNA, 1985, p. X.
36
Ao ler esse trecho da introdução de Senna, entende-se que o roteiro de A Idade da
Terra, publicado em seu livro, é aquele usado por Glauber Rocha para nortear sua filmagem.
Ao assistir ao filme, comparando-o com o roteiro, aas intervenções do diretor “em offsão
correspondentes àquelas do roteiro. Quase todas as palavras dos diálogos são transpostas, o
que faz pensar que toda a filmagem seguiu o texto. Porém, acredita-se na hipótese apresentada
anteriormente segundo a qual o cineasta possuía um roteiro basilar que escrevia e reescrevia
constantemente, inclusive durante as filmagens enquanto estava na casa de Senna. Para
corroborar essa afirmação, pode-se valer da argumentação de Glauber Rocha em Anabaziz – o
primeiro dia do novo século,
89
quando diz:
O diretor se reserva o direito de modificar diálogos e cenas nas filmagens mas não
se afastará da estrutura nuclear, da mensagem nem do elenco, permitindo o convívio
da planificação com o improviso.
Glauber Rocha, 16 de Março de 1977.
90
Orlando Senna, provavelmente, incluiu nesses originais os trechos retirados da
moviola. Mais especificamente aquelas seqüências em que o ator que interpreta Brahms,
Maurício do Valle, machuca seu pé,
91
ou as intervenções em que Glauber Rocha dirige as
cenas: “Rebola mais, Danuza e Geraldo. Vai!”
92
Liberdade essa que aponta para o
“improviso” durante as filmagens que o cineasta havia anunciado em 1977.
Glauber Rocha realizou uma filmagem transversal dos roteiros, gerando o roteiro final
conhecido pelo livro de Orlando Senna, de modo a englobar as questões lineares de maneira
“subliminar”, como as reações e relações humanas em um Mundo pós-apocalíptico e, de
maneira liminar, pelos discursos dos personagens e suas representações do poder, com base
na desconstrução da figura ocidentalizada do Cristo crucificado. Para Glauber, o Cristo não
era aquele crucificado, mas constrói-se
89
ROCHA, 1985a, p. 193-236.
90
Idem, 1985b, p. 236.
91
Ibidem, p. 460.
92
Ibidem, p. 448.
37
a ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz (...) um Cristo que era
venerado, vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição (...) eu pensava que o
Cristo era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito
nova.
93
Essa afirmação do cineasta permite uma analogia com a imagem final da versão da
“Embrafilme”, em que o Cristo-índio, interpretado na tela por Jece Valadão, expressa o êxtase
durante a procissão da Nossa Senhora dos Navegantes. O discurso de Glauber Rocha, “em
offno filme, se antepõe ao final da festa religiosa dessa imagem. Isso remete à constatação
de que o filme se realiza como uma enorme montagem nuclear, como disse Ricardo Miranda,
em que significações trazidas por Glauber Rocha “em offnorteiam e atravessam as imagens
montadas em suas intermediações.
Procurando focar nas potencialidades de o roteiro ser visível, chama-se a atenção para
as indicações de cena. Elas trazem um aspecto da construção cinematográfica, pois
ambientam as falas dos personagens, antecipando, sucinta e verbalmente, o que o “olho da
câmera” mostrará na tela:
A mulher bate em Brahms, que acha graça e fica excitado. A mulher pára de bater.
94
No processo de transposição, a existência de indicações em terceira pessoa no texto
pode ser um ponto de aproximação muito concreto, como disse Nelson Pereira dos Santos.
95
Tal concretude se manifesta quando se percebe nas indicações uma maneira sucinta de trazer
informações importantes sobre cenas que aparecerão no meio do turbilhão de signos visuais
na tela, mas que permanecem nucleares, fundamentais.
É necessário, nesse momento, remeter à imagem formada pela montagem da primeira
cena na tela em que se tem o princípio do nascer do sol. Com essa cena, pretende-se apontar o
movimento como potência do visível no roteiro. No caso dessa imagem específica, salienta-se
o movimento do nascimento, do princípio, do começo de algo. Está repleta da noção de que
93
Ibidem, p. 461.
94
ROCHA, 1985b, p. 449.
95
SALEM, 1987, p. 181-182, apud BARCELOS, 2003, p. 61.
38
logo tudo estará iluminado. O movimento é inerente à imagem e o sentido dos signos visuais
é facilmente compreendido pelo “leitor” daquela cena. Visualmente, narra-se o nascer do sol
simbolizando o reino solar, a idade solar.
96
Essa cena possui no roteiro apenas uma pequena descrição:
Amanhecer. O Sol aparece lentamente, iluminando a Terra deserta.
97
Porém, esse trecho basta para direcionar aqueles minutos iniciais transpostos para a
tela em que o nascer do sol é mostrado. Apesar de ser uma imagem estática, descrita no
roteiro com poucas palavras, ela está sinalizando o começo, ainda não frenético, da narrativa
glauberiana, presente no roteiro. Esse aspecto pode ser observado nos verbos “amanhecer”,
“aparecer”, e “iluminar”. O que parece estático no roteiro se transforma, posteriormente na
tela, em uma cena com movimento.
Outra cena essencial para apresentar o movimento é aquela no final do filme, em que a
câmera mostra um Cristo Índio, de pé na proa de um barco. Essa cena, e não apenas o que está
enquadrado nela, apresenta características de movimento, como se confirma nas dobraduras
das roupas do Cristo. Aqueles espectadores, que o reconhecem como “índio”, irão ver, em sua
expressão, e em sua presença ali no barco, na finalização do percurso do Cristo Índio, o auge
do processo de colonização. Antes, o índio recebe o colonizador na praia; em outra cena, ele
está junto ao colonizador em sua embarcação. um movimento que permeia todo o filme
montando não apenas essa cena, mas uma imagem da superação da colonização.
O Cristo Índio, ao final da versão para a “Embrafilme”, se encontra dançando com o
povo. Consegue-se ler essa cena montada, tendo em vista o fato de Glauber apresentar em
uma de suas falas “em off que ele acreditava em um “Cristo que era venerado, vivido,
96
ROCHA, 1985b, p. 439.
97
Ibidem, p. 439.
39
revolucionado no êxtase da ressurreição”,
98
como citado. No roteiro, somente a seguinte
indicação de cena:
37.
Salvador. Bahia. Procissão marítima. Cristo Índio de pé na proa de um barco.
Música de carnaval.
A multidão na praia. Samba.
Cristo Índio dança com o povo.
99
No roteiro, além de outros verbos que apresentam o movimento na montagem da cena,
indicações dos dois locais em que os personagens estão, suscitando o olhar de câmera que
os focaliza: “Cristo Índio de na proa de um barco”; e “A multidão na praia”, por exemplo,
etc.
Glauber Rocha transpôs para a tela as indicações do roteiro enquanto elementos do
visível. A apreensão do movimento acontece desde o roteiro.
No roteiro, muitas das indicações de cena aparecem representadas por verbos de ão
e de gestos como: “nasce no mato, surge das plantas” (p. 439);
100
“descobre o fogo” (p. 439);
“dançam ao som” (p. 439); “entrevista o jornalista” (p. 440); “chega agitado” (p. 442);
“abraça Cristo Negro” (p. 442); “sente-se mal, aperta o peito, é amparado” (p. 442); “Brahms
grita” (p. 443); “Brahms discursa” (p. 443); “Brahms entrevista” (p. 443); “Brahms dirige-
se” (p. 443); “Brahms sente dores” (p. 444); “curva-se” (p. 444); “Cristo Negro ampara-o” (p.
444); “Brahms anda” (p. 444); “falando com alguns deles” (p. 444); “barcos de pescadores
chegam” (p. 445); “trazendo Cristo Índio” (p. 445); “aparecem na praia” (p. 445); “dançando”
(p. 445); “Cristo Índio corre na praia” (p. 445); “O Babalaô batiza” (p. 445); “O Babalaô
entrega” (p. 445); “aparece o diabo” (p. 445); “assoviando a Marselhesa (p. 445);
“encontram-se junto ao mar” (p. 446); “Cristo Índio está” (p. 446); “o Diabo transforma-se
em Brahms” (p. 447); “logo volta a ser” (p. 447); “Cristo Índio dispara várias vezes” (p. 447);
98
Ibidem, p. 461.
99
ROCHA, 1985b, p. 466.
100
Como todas as citações são do roteiro de A Idade da Terra, presente no livro Roteiros do Terceyro Mundo
(ROCHA, 1985b), aqui serão mostrados apenas os números das páginas.
40
“repórteres fotografam a cena” (p. 447); “A mulher de Brahms e Cristo Guerrilheiro trocam
carícias, abraçam-se, beijam-se” (p. 447); “Brahms aparece, mete-se entre os dois, junta-se ao
jogo erótico” (p. 448); “a mulher bate em Brahms” (p. 449); acha graça e fica excitado” (p.
449); “a mulher pára de bater” (p. 449); “Cristo Negro ressuscita um homem” (p. 451); “Ary
Pararraios declama Os Lusíadas (p. 451); “dirige-se ao Cristo Negro” (p. 452); “Cristo
Negro devolve a visão” (p. 452); “que recuperou a visão canta, acompanhando-se ao violão”
(p. 452); “Cristo Negro fala ao telefone” (p. 453); “Conversando com uma Prostituta” (p.
453); “ele desce da árvore e corre no campo” (p. 453); “uma delas dança” (p. 455); “Cristo
Índio trabalha(p. 455); “as freiras dançam, Rainha das Amazonas entre elas gritando” (p.
456); “as freiras dançando na rua(p. 456); “Rainha das Amazonas dança com um negro” (p.
456); “dançam, entram no mato” (p. 456); “diálogo em vários pontos” (p. 457); “faz a
maquilagem, suja a roupa(p. 464); “mostra como devem ser feitos alguns movimentos” (p.
464); “Cristo Guerrilheiro fala” (p. 465); “Brahms imita” (p. 465); “Mulher de Brahms
diverte-se” (p. 465); “Cristo Índio dança com o povo” (p. 466).
Um outro modo de perceber o visível no texto nessa relação entre a literatura e o
cinema são as indicações de som no roteiro. Tais indicações contribuem para outras
construções de imagens na tela. É necessário relacionar as indicações da presença do som em
seu roteiro do filme, como se vê em:
(...) homens e mulheres que dançam ao som de flautas e berimbaus.
101
Rio de janeiro. Carnaval.
102
Aparece o Diabo, assoviando a Marselhesa.
103
A jovem mulher que recuperou a visão canta (...)
104
Som de umbanda.
105
Música: um ponto para Ogum.
106
Samba.
107
101
ROCHA, 1985b, p. 439.
102
Ibidem, p. 440.
103
Ibidem, p. 445.
104
Ibidem, p. 452.
105
Ibidem, p. 453.
106
Ibidem, p. 464.
107
Ibidem, p. 466.
41
Além dessas indicações, pode ser visto, na ficha técnica do roteiro de A Idade da
Terra, que a trilha sonora foi composta por: Rogério Duarte, Orquestra Mística da Bahia,
Nana, e Villa-Lobos, conforme orientação de Glauber Rocha. Pensando no som, apenas como
indicação no roteiro, é possível constatar que uma transposição imediata para a tela a partir
da informação encontrada no roteiro. A trilha sonora, ou a existência de música, dança e/ou
sons ambientes nas indicações concisas, constituem um pretexto para que haja a construção
mais elaborada e direta na tela, onde o visual tem o elemento sonoro como grande
colaborador seja pelas vozes dos atores, pela sonoplastia, ou pela música que ambienta a cena.
Fica claro que os elementos destacados potencializam a visualização do cineasta para
se criar: do storyboard da cena no ato da filmagem à montagem durante a edição do filme.
Isso significa que a visualização do que se deseja ver na tela é facilitada.
Com todos esses recursos auxiliando a prática da filmagem, pode-se dizer que há nessa
transposição uma perda e um ganho que não se pode mensurar. Por esse motivo, aqui se
afirma e aponta a contribuição do meio textual àquele fílmico em Glauber Rocha. Isso se faz
pensando o roteiro como um pretexto da filmagem e não como a primeira fase dela.
Agora serão demonstrados alguns elementos do livro Utopia Selvagem, sobretudo em
Caapinagem, visto como roteiro para Glauber filmar.
1.5 CAAPINAGEM: ROTEIRO DE FILME OU FILME ROTEIRO?
Para completar as possibilidades de o último fragmento da bula ser visto como um
roteiro de filme, com base em seu potencial visível, resta discutir como ocorre a utilização
dessa visualidade na narrativa de Darcy Ribeiro. Essa análise se concentrará no último
capítulo da fábula, em especial atenção à declaração de Darcy Ribeiro que diz: “Tem um
42
capítulo final que escrevi para o Glauber filmar”.
108
Além disso, na fábula, o antropólogo
evoca o cineasta: “Salve, salve Glauber. Bem-vindo seja cá”.
109
Desde o início de Caapinagem é como se a evocação a Glauber Rocha se equivalesse
a uma claquete ou a um botão de “rec” da câmera. O narrador não é mais aquele que segue a
viagem de Carvalhal/Pitum/Orelhão e suas metamorfoses identitárias. Agora a metamorfose é
física, é carnal e, principalmente, visual. O último capítulo da fábula muda a proposta de
narrador. Antes ele era um cronista irônico que passeava pelo conhecimento dos viajantes das
tradições européia e latino-americana. Agora, ele se propõe a mostrar o que acontece com os
Galibis, Orelhão e Tivi sob efeito do “caapi”.
Esse alucinógeno pode ser interpretado como metáfora para a liberdade dos índios
Galibis, das Monjas de um Brasil religioso, e pelo Orelhão, antes Pitum ou Tenente Carvalhal.
Em Utopia Selvagem, a bebida, depois de ingerida, liberta os personagens da forma física
humana podendo todos se metamorfosear e quebrar as regras preestabelecidas sejam de ordem
sexual, religiosa ou política. Torna-se um capítulo que difere dos outros pelas suas
motivações já citadas com base em Darcy Ribeiro.
A construção textual da fábula se volta para a formação de imagens que buscam
traduzir o pensamento do antropólogo como aquelas de resistência de um povo autóctone.
Quando o narrador diz, no início do capítulo, que “a roda da festa gira que gira”,
110
está
designando a dramatização dos personagens na tribo dos galibis. Darcy Ribeiro encontra
nessa forma de exposição verbal um modo mais eficaz de construção da narrativa. O teatral
ou o dramático na fábula remete diretamente ao movimento assim como em Glauber Rocha,
no qual o roteiro traz cenas em que os personagens requerem uma interpretação teatral,
dramática, com muito movimento, conforme mostrado anteriormente.
108
RIBEIRO, 1997b, p. 47.
109
Idem, 1986, p. 198.
110
RIBEIRO, 1986, p. 197.
43
O “olhar do diretor”, metáfora para o movimento da câmera, também está presente na
narrativa do antropólogo com o movimento frenético do fluxo narrativo. necessidade de
mostrar, antes mesmo de narrar, em alta velocidade combinando descrição, adjetivação e
movimentação:
O combate, lere, começa. A artilharia roda e aponta canhões infantes e canhões
marinhos para atirar. A aviação põe no ar seus mirages e ataca. Os aviões jogam
bombas napalm que, passando ao lado da ilha voante, vão explodir no chão,
acendendo incêndios e fazendo estragos na caipirada recruta com três meses de
conscrita. Os artilheiros, afinal, põem seus canhões em posição e atiram. As balas
gigantes saem, triscam a ilha por fora ou furam e saem para explodir na
putaqueopariu.
111
(Grifo Nosso)
Ao tratar de A Idade da Terra, Glauber Rocha afirmou que todos os seus filmes,
posteriores ao curta-metragem sobre Di Cavalcanti, seguiriam a técnica da “montagem
nuclear”. Esse processo nos filmes do cineasta brasileiro significa, além da negação de uma
ordem linear, o aumento veloz e quantitativo das significações que se sobrepõem na
montagem do filme – desde o roteiro – e de suas imagens.
Pode-se notar esse mesmo processo na narrativa de Darcy Ribeiro, no que diz respeito
à opção pela velocidade e à saturação de construções visuais, onde existem diversas
significações se sobrepondo.
Pensando essa sobreposição a partir da idéia de movimento, advinda da técnica de
montagem, cita-se a imagem da aldeia dos Galibis se transformando em uma ilha voadora.
Essa imagem, praticamente uma cena, acontece através de uma passagem curta, fazendo uma
alusão a Cuba:
De repente, toda a bicharada índia se levanta e começa a correr, desordenada.
Depois corre em círculos, ao redor da Casa dos Homens, sem parar. O tropel de pés
batendo, compassados, faz do chão um tambor rufante. O batecouro sobe, sobe,
atordoa, entontece todo mundo até entontecer o mundo.
Aí se ouve o esturro ensurdecedor. É a terra que ruge e esturge, se abrindo num rego
ao redor da aldeia. Agora, a aldeia é uma ilha que balança, se levanta do chão e
sobe, sobe.
112
111
RIBEIRO, 1986, p. 200-201.
112
Ibidem, p. 198-199.
44
Darcy Ribeiro eleva sua narrativa a um status mais próximo ao cinema. Utiliza
recursos diversos, aproveitando a sensação de velocidade dada pelas frases curtas assim como
a profusão de verbos de movimento. A literatura torna-se cada vez mais visual, pois encontra
na aglomeração de signos uma forma de tornar seu texto visível. As imagens, que se formam,
oníricas, questionam e metaforizam a realidade representada em uma construção que lembra a
“Estética do Sonho” de Glauber Rocha
113
.
Essa imagem da tribo, tornando-se ilha, é apresentada aqui por seu caráter de
desenvolvimento espacial, como se o narrador estivesse filmando a cena. A aldeia dos índios
Galibis torna-se uma ilha que “sobe” aos céus, como um plano onde a câmera mostra a ilha se
desprendendo do chão e subindo. Esse trecho narrativo é produzido visualmente através da
montagem de signos que se concentram na imagem da decolagem da aldeia assim como os
seus efeitos e as ões que acontecem nesse momento organizados temporalmente. Ela é uma
cena montada pelo narrador de modo saturado.
O movimento é o principal elemento que aproxima a visualidade na literatura do
cinema, tornando o texto literário na comparação com o cinema visível. A dinâmica
aponta uma temporalidade no seu processo de construção. Com ele, a imagem torna-se
dinâmica, o significado dessa dinâmica é o tempo de seu movimento típico do meio
cinematográfico.
Na imagem retirada da fábula, confirma-se novamente esse movimento através dos
verbos “levantar”, “correr”, “subir”, “bater” e a mesmo “entontecer” que constroem um
tempo narrativo nesse deslocamento pelo espaço descrito. Os períodos são curtos. Conclui-se
que as imagens, como essa do vôo da ilha, são formadas na agregação de signos que suscitam
a visualidade cinematográfica pela técnica de montagem e pelas escolhas de significantes
verbais específicos na narrativa de Darcy Ribeiro.
113
ROCHA, 1971.
45
Essa mesma imagem também suscita outra potencialidade que torna o texto literário
visível: o sonoro. A imagem da ilha também é montada com elementos sonoros (rítmicos)
como as aliterações que surgem das palavras “correr”, “círculos”, “redor”, “desordenada”,
“parar”, dentre outros, nessa proliferação de sons da consoante “r”, assemelhando-se ao
“rosnar” ou mesmo ao “rugir”. Pode ser observada a descrição do aspecto sonoro da imagem
na convocação do sentido dos sons dos pés batendo, compassados” que fazem “do chão um
tambor rufante”.
Essa especificidade provoca outros elementos que completam a imagem formada a
partir desse processo. Existe a hipérbole na passagem que diz “entontece todo mundo até
entontecer o mundo” e, logo em seguida, o trecho que traz o oxímoro que também pode ser
lido como metáfora em que diz: “a terra ruge”.
A partir disso, pode-se pensar outras potências do visível além do narrador-câmera, do
movimento, ou do som. Sendo a festa do “caapi” o foco do último capítulo de Utopia
Selvagem, centra-se na descrição dos efeitos da bebida. O principal deles é a metamorfose dos
personagens que se tornam animais, enquanto esse poderoso alucinógeno age em seus
organismos. O zoomorfismo não é sempre verossímil quando a referência é o mundo real,
apenas é feito como metáfora realizada pelo próprio personagem, ou o indígena em seu ritual,
o que não é o caso de Utopia Selvagem.
A transformação, que ocorre no capítulo, é um sinal não apenas do visível no texto,
como é uma descrição complexa e figurativa do que é visto na passagem. Tal descrição é,
muitas vezes, repleta de elementos sonoros, traz uma concisão, e é sempre dinâmica no que
narra e no modo de narrar, não possibilitando nem ao menos a facilitação de uma análise mais
organizada pelo amontoado de signos que se encontra. Veja esse trecho:
Calibã, convertido num espantoso crocodilo negro esverdeado, se levanta sobre as
patas dançando alegre ao redor de Tivi. então, esquecida de quem era, a
monjinha se vê no que é: da cintura pra cima é uma pantera de duas patas. O pelame
prateado, olhos verdes cintilantes, negros lunares e aquela elástica, sedutora
46
presença que paralisa, encantando, todo bicho, toda gente. Encanta e mata. Da
cintura para baixo, a pantera é cobra boiúna, escamada, serpenteante.
114
Uma passagem de transformação como essa, a partir do narrador, é quase como
assistir pelo olho da câmera” que os acontecimentos sem emitir juízo, procurando apenas
mostrar. Seus elementos, que confirmam essa afirmação, são a presença da dinâmica,
acompanhando o que acontece com os personagens. Essa dinâmica pode ser vista no
movimento representado pelos verbos: “levanta”, “dançando”, “vê”, “é”, “paralisa”,
“encanta”, “mata”.
Também é possível percebê-la na indicação precisa do narrador sobre os espaços que
os personagens ocupam, como Calibã que se coloca “ao redor de Tivi”, ou no interior dos
signos, como em “serpenteante”, pois o adjetivo não apenas atribui uma qualidade, mas situa
o personagem no espaço (preso ao chão) e em movimento.
Essas descrições no texto enriquecem a imagem que é construída. Nota-se a sua
riqueza com a descrição dos personagens e suas mutações a partir das cores apresentadas,
como “prateado”, “esverdeado”, “verde” ou “negro”, e ainda o reforço no adjetivo
“cintilante”.
Um trecho citado por Louvel, pertencente à Enciclopédia do século XVIII, diz que “a
descrição é uma figura de pensamento por desenvolvimento que, em lugar de indicar
simplesmente um objeto, o torna de algum modo visível, pela exposição viva e animada das
propriedades e das circunstâncias mais interessantes.”
115
Em Caapinagem, o visível na narrativa pode surgir agregando significações em um
espaço textual curto ou longo. Por modo de descrições e sinalizações dos locais dos
personagens, o visível também vai além do que é escrito.
114
RIBEIRO, 1986, p. 194.
115
LOUVEL, 2006, p. 200.
47
Todos os elementos destacados formam a imagem da aldeia e/ou as ações que nela
ocorrem, transformando-se em uma ilha que se desprende da terra e vai aos céus como em um
sonho. Todas aquelas palavras sinalizando o movimento das imagens montadas, os sons, as
figuras de linguagem se relacionam com o narrador de terceira pessoa para constituir uma
imagem narrativa, uma imagem montada.
O seu movimento se assemelha ao que acontece no Cinema, mais especificamente, no
filme de Glauber Rocha, em que as significações se multiplicam, com o objetivo de
representar uma imagem formada por sua consciência crítica. Os locais são apontados,
conferindo precisão à imagem: “ao redor da Casa dos Homens”; “Ao redor da aldeiae uma
ilha que balança”.
Nesse instante, se percebe que a afirmação feita por Darcy Ribeiro, de que o texto foi
feito para Glauber filmar, se confirma pela identificação do visível no texto. Apesar da
diferença dos “signos que os constituem”,
116
há claramente essa aproximação entre a literatura
de Darcy Ribeiro ao cinema, em especial àquele de Glauber Rocha na construção de A Idade
da Terra.
A narrativa possui duas dimensões: o significado depreendido dos significantes; e a de
princípio organizador que pode envolver os significados, mas sempre vinculado à forma e sua
técnica, ou seja, está ligado ao aspecto do signo e à sua formação.
Após essa leitura da intersemiose, pode-se dizer que existem limitações típicas da
transposição de um texto de um meio semiótico para outro. Porém, diante do exposto, Utopia
Selvagem (Caapinagem) constitui um roteiro feito para Glauber Rocha filmar, possuindo
elementos visuais de uma potência enorme.
Para mostrar que outros aspectos, no âmbito temático, aproximam o pensamento de
Glauber Rocha ao de Darcy Ribeiro, a análise das vozes e da antropofagia será feita, tomando
116
GUIMARÃES, 1997, p. 67.
48
como base os textos aqui destacados (o roteiro, de Glauber Rocha, o filme e Utopia
Selvagem).
2 AS VOZES EM UTOPIA SELVAGEM E EM
A IDADE DA TERRA
50
2.1 AS VOZES NO ROTEIRO DE A IDADE DA TERRA
A análise das vozes, no roteiro de A Idade da Terra, será realizada com base nas
indicações feitas pelo diretor, o que corresponde a Glauber Rocha “em off”. Ocorre,
especificamente, quando está orientando os atores (1), ou nas indicações de cena (2) em que
as falas dos personagens são apresentadas (ambos no roteiro), como:
(1) GLAUBER ROCHA (off)
Se abaixa aí, Ana.
117
(2) Rio de Janeiro. Brahms, Cristo Militar e rainha Aurora Madalena dialogam em
vários pontos da cidade: Copacabana, Teatro Municipal, Morro da Urca.
118
As outras vozes que serão estudadas são as do Cristo Militar; Brahms; Cristo Índio;
Cristo Negro; e Cristo Guerrilheiro. Ressalte-se que tais vozes não se modificam na passagem
do roteiro para a tela. Por esse motivo, a base da análise não será, a priori, a tela e, sim, o
roteiro, observando que ambos os meios poderão ser utilizados neste estudo. As vozes
possuem aspectos que as associam e, principalmente, reiteram as significações existentes
no roteiro.
Glauber Rocha escolhe, como personagens, os quatro Cristos que se pulverizam na
narrativa fílmica. Essa escolha está relacionada com as opções que o cineasta vinha fazendo a
partir da “Estética do Sonho” (1971), em que o simbólico e o mítico tinham mais importância
do que o material em sua construção artística. Também diz respeito à visão que tem de Cristo.
Segundo Glauber Rocha, trata-se de focalizar o Cristo não sob a forma do sacrifício e, sim,
pela ressurreição:
GLAUBER ROCHA (off)
No dia que Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado eu pensei em filmar a
Vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a Vida de Cristo na mesma
época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em
relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo, e também
em relação à classe operária européia. Foi o renascimento, a ressurreição de um
117
ROCHA, 1985b, p. 460.
118
Ibidem, p. 457.
51
Cristo que não era adorado na Cruz. Mas um Cristo que era venerado, vivido,
revolucionado no êxtase da ressurreição.
119
Nesse sentido, o cineasta constrói quatro Cristos que representam o século XX. Eles se
misturam com o povo, transitando nas três oposições: poder popular poder estatal; nação
Estado; e sul – norte.
O Cristo Militar se situa no lugar do Estado. Seu discurso político-social se vincula a
este espaço de uma elite que está ligada ao Norte do mundo, especialmente, à América do
Norte, aos Estados Unidos. Brahms é o personagem que dialoga com esse Cristo, vendo-o
como um aliado. Por sua vez, Brahms é associado ao Norte do mundo, ligado a esse poder do
Estado, das instituições.
O Cristo Índio representa uma das matrizes étnicas que formam o povo brasileiro e
latino-americano. Sua escolha no roteiro diz respeito à encenação da chegada do colonizador
e metaforiza o neocolonialismo. Seu discurso se articula à perspectiva da nação, do Sul e do
poder popular. Ele se no confronto com Brahms quando este se transforma no Diabo na
narrativa.
120
O Cristo Negro é escolhido por Glauber Rocha no contexto social e político do povo
brasileiro e latino-americano, subjugado à condição de escravo por séculos. É por meio desse
Cristo que o povo do Terceiro Mundo fala. Ele é um Cristo que se opõe a Brahms de forma
direta. No final da década de 1970 e início da década de 1980, um fortalecimento do
movimento negro, concretizando espaços de luta, como o Dia da Consciência Negra (20 de
novembro); por isso, o Cristo Negro se vincula ao poder popular, ao discurso da nação e aos
povos do Sul.
O Cristo Guerrilheiro representa uma das formas de resistência aos regimes opressores
na América Latina. Não é à toa que seu lugar é de oposição ao Estado. Também se aproxima
119
ROCHA, 1985b, p. 461.
120
Ibidem, p. 447.
52
do poder popular e das vozes que emanam do Sul do mundo. Sua oposição na narrativa é ao
Brahms.
A Idade da Terra se baseia na proposta de reformulação do Cristo europeu, revelando
um modo experimental de discurso, a partir de personagens específicos que manifestam
solitariamente a sua história e seus anseios. Glauber Rocha traz os figurantes, o povo do
carnaval e das procissões para o enquadramento da câmera, movimento explicitado desde o
roteiro. Mesmo quando não mostra os personagens em suas indicações de cena, está
planejando seu futuro.
A principal complexidade, no que se refere à figura do diretor, é o seu surgimento no
roteiro e como ela retorna ao filme. Também intriga o aparecimento de intervenções do
cineasta como “Glauber Rocha em off durante o decorrer do roteiro e do filme na tela. Essa
aparição ocorre, ora no dirigir dos atores, ora na voz do cineasta.
No roteiro, esse diretor se manifesta a partir das indicações que se assemelham às
descrições narrativas dotadas de detalhamento da cena, apresentação de posicionamento dos
personagens e outros sinais que facilitam a compreensão da história contada antes da
filmagem.
Nas falas atribuídas a “Glauber Rocha em off”, explicitação do texto fílmico e seu
roteiro assim como aparecem sinais ideológicos de sua construção. Essas são idéias caras ao
cineasta e que surgem tanto na tela quanto no roteiro. Há, na presença de Glauber Rocha “em
off”, uma parte do cineasta, quase do mesmo modo que nas indicações de cena que são fruto
de uma intervenção subjetiva e estruturante da narrativa.
121
Na primeira ocorrência no roteiro ou no filme, Glauber Rocha, “em off”, diz:
No final do século XX, a situação é a seguinte: Existem uns países capitalistas ricos
e uns países capitalistas pobres. Na verdade, o que existe é o mundo rico e o mundo
pobre.
122
121
ROCHA, 1985b, p. 444; p. 447; p. 448; p. 460; p. 461; p. 462; p. 463.
122
Ibidem, p. 444.
53
Nessa fala, Glauber critica a ordem mundial e esse aspecto aparece em outras partes
do texto. Glauber Rocha, no momento de construção desse roteiro, está vivenciando um misto
de estética da fome com estética do sonho. Enquanto constrói seu roteiro pela estética do
sonho, realiza sua crítica ainda colada na estética da fome do Cinema Novo.
A “Estética do Sonho” é um manifesto escrito pelo cineasta em 1971. Tem como foco
a construção fílmica que propõe a linearidade onírica assim como suas distorções e imagens
que suscitam a revolução social. Tais imagens surgem por arquétipos místicos e simbólicos.
Um exemplo é o Cristo multifacetado. “Uma Estética da Fome”, do ano de 1965, portanto
anterior àquela do sonho, norteia o Cinema Novo. Essa estética glauberiana propõe um olhar
concentrado sobre a fome e uma resposta a ela. Sugere aos cineastas que representem, no
cinema, essa fome latino-americana e a revolta contra a miséria sofrida pelo povo. A “Estética
do Sonho” opta pelo místico, pela crença, enquanto a “Estética da Fome” opta pelo concreto e
racional. Nenhuma das duas estéticas deixam de pensar a revolução social e política, apenas
divergem no modo como deve ser realizada tal revolução no campo estético, portanto se
complementam.
Essa voz de Glauber Rocha, “em off”, que também se vincula às indicações de cena,
traz uma coerência crítica para todo o roteiro e, posteriormente, nas suas três partes filmadas
em: Brasília, Rio de Janeiro e na Bahia. Ou seja, coerência entre o que expõe o cineasta
nessas intervenções e o restante do roteiro, somando-se também aquela intervenção do diretor
que grita, como surge no próprio roteiro: “Fale mais alto, Danuza!”
123
Na cena de número trinta e um, de um roteiro com o total de trinta e sete, a presença
de Glauber Rocha é a mais forte, revigorando todo o filme, trazendo diversas explicações.
Dentre essas explicações existem aquelas relativas aos motivos da filmagem da vida de
“Cristo no Terceiro Mundo”.
124
123
ROCHA, 1985b, p. 447.
124
Ibidem, p. 461.
54
Essa voz também vem dizer:
Essa pirâmide, esta pirâmide que é a geometria dramática do Estado Social. No
vértice, o Poder. Embaixo, as bases. Depois os labirintos intricados das mediações
classistas. Tudo isto no teatro. Pois sim, a cidade e a selva. Brasília é o Eldorado,
aquele que os espanhóis e outros visionários perseguiam.
125
O onírico se mistura com os discursos históricos nessa voz do cineasta e intelectual.
As relações de poder são expostas a partir das classes sociais. Nas intervenções, ele se
posiciona. Essa sua posição se esclarece entre a discussão cristã e a política, como se no
roteiro:
Um Cristianismo que não se realiza somente na Igreja Católica, mas também em
todas as outras religiões. Que encontram em seus símbolos mais profundos, mais
recônditos, mais eternos, mais subterrâneos, mais perdidos, a figura do Cristo. Um
Cristo que não está morto mas está vivo, espalhando amor e criatividade. A busca da
eternidade e a vitória sobre a morte. Porque a morte é uma estruturação determinada
por um código fatalista, talvez de origens sexuais ou genéticas. Quién lo sabe? Pero
se pode vencer a morte. Então, a civilização é muito pequena, antes de Cristo e
depois de Cristo. Um desenvolvimento tecnológico na Europa, econômico, o
mercantilismo, o capitalismo, o neo-capitalismo, o socialismo, transcapitalismo, o
transsocialismo, todo um desespero de uma humanidade em busca de uma sociedade
perfeita.
126
Percebe-se que esse discurso, independente da orientação, visa à mudança do status
quo vinculada à esperança da humanidade. Ele se explicita na crença de uma América Latina
diferente daquela subordinada ao chamado Primeiro Mundo. Para isso, é necessário se
mobilizar:
Estou certo disso. E no Terceiro Mundo seria o nascimento da nova, da verdadeira
democracia. A democracia não é socialista, não é comunista nem capitalista. A
democracia não tem adjetivos. A democracia é o reinado do povo. A de-mo-cra-cia é
o desreinado do povo. Sabemos todos que morremos de fome nos Terceiros-
Mundos. Sabemos todos das crianças pobres, dos velhos abandonados, dos loucos
famintos. Tanta miséria, tanta feiúra, tanta desgraça. Sabemos todos disso.
127
Nessas passagens, pode-se tentar extrair as direções do filme em seu sentido social.
Uma História é narrada com base na desconstrução de um Cristo europeu. A função dessa
narrativa, com apoio na fala de Glauber, é contribuir para as mudanças sociais que ele aponta.
125
ROCHA, 1985b, p. 461-462.
126
Ibidem, p. 462.
127
Ibidem, p. 463.
55
Nesse instante, anuncia-se a bipolarização do mundo entre Primeiro e Terceiro Mundo,
propondo-se uma transformação dessa realidade.
A voz de Glauber Rocha que se delineia se direciona para uma oposição ao
personagem John Brahms que não está explícita em diálogos no roteiro. Essa oposição surge
quando Glauber propõe a mudança. Brahms está a favor da conservação do estado social, e é
nesse estado que ele sabe interagir. Essa oposição também pode se dar contra o Cristo Militar,
mas apenas quando ele representa os interesses do mundo de fora da América Latina, do
Terceiro Mundo.
Esse Cristo aparece mais de uma vez ao lado de Brahms para apoiá-lo. A fala, que
pode confirmar de modo preciso essa aproximação, é aquela proferida em aviso a Brahms no
roteiro:
CRISTO MILITAR:
John Brahms, não ao Senado amanhã! Não vá ao Senado antes que os peixes de
março voltem. Os abutres de abril comerão teu fígado.
BRAHMS:
Os abutres de abril comerão o fígado de Brahms? Jamais! Os fanáticos... os
fanáticos traem da mesma forma. Todos os amigos estão conspirando contra mim.
Ratos! Imundos! (...)
128
O diálogo, mostrado anteriormente, diz respeito ao Cristo se aliando a Brahms. Parece
estar solto em uma das cenas do roteiro. No entanto, em conexão com outros momentos do
texto, revela uma das afinidades entre as vozes e os personagens.
Com base nisso, poder-se-ia pensar que os “abutres de abril” são os militares do golpe
de 1964. Essa metáfora está encobrindo essas figuras históricas e, ainda, afastando o Cristo
Militar desses militares. O Cristo Militar, mesmo se identificando com Brahms, está mais
ligado ao povo e à nação do que aos “abutres de abril”.
Isso pode ser confirmado pela ocupação dos espaços na narrativa pelo Cristo Militar
que aparece no carnaval do Rio de Janeiro, em um rochedo à beira do mar poluído, em
128
ROCHA, 1985b, p. 458.
56
Copacabana, em um bar na Cinelândia, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e no Morro da
Urca.
A dimensão ideológica de sua voz pode ser vista em outra fala retirada, também, do
roteiro:
CRISTO MILITAR
A Independência, a Proclamação da República, a Abolição da Escravatura são
conquistas de nosso povo. E por isso eu as defenderei até à morte. Mesmo quando
exerço a violência eu estou consciente de que estou defendendo os mais sagrados
direitos humanos. (...) Nós não conhecemos o luxo da decadência! Os guerreiros
dormem com a história na cama das revoluções!
129
No trecho acima, é feita a defesa das mudanças que são focalizadas como sendo do
povo. No entanto, todas as conquistas históricas arroladas a Independência, a Proclamação
da República, a Abolição da Escravatura foram transformações que surgiram do poder.
um rebaixamento do sentido de revolução, pois essa ocorre “na cama”, originando um duplo
sentido.
Na tela, o Cristo Militar traz a elegância como outra significação. O personagem está
sempre bem vestido, com roupas brancas, signos visuais da limpeza de sua imagem e uma
tentativa de representar um caráter imaculado. A sua fala no roteiro, no trecho citado, traz o
discurso oficial. Enquanto o Cristo Negro discursa a Nação, o Cristo Militar discursa o Estado
e a sua "defesa", a qualquer custo.
Seu local discursivo é, paradoxalmente, entre as pessoas ou onde não mais
esperança, como se vê no trecho abaixo:
CRISTO MILITAR
As nossas estruturas, nossos alicerces foram destruídos. A qualquer momento
poderemos ser tragados num abismo. Nós estamos condenados! Nós estamos
condenados! Houve uma implosão no centro da Terra... Os nossos alicerces foram
destruídos. A qualquer momento poderemos ser tragados. s estamos condenados!
Houve uma implosão no centro da Terra...
130
129
ROCHA, 1985b, p. 457.
130
Ibidem, p. 455.
57
Do mesmo modo que a repetição das falas pessimistas significa a marcação de um
evento importante da narrativa, há uma referência às fraquezas do Cristo Militar quanto ao
acontecimento. Ele está denunciando o poder na destruição das estruturas. O preenchimento
dos sentidos sobre esse Cristo acontece com as repetições constantes, de modo teatral, sobre
um rochedo à beira-mar, como sinalizado no roteiro. Há lixo e óleo no mar que está ao fundo.
Sua imagem não mais está limpa e imaculada, pois a água poluída trata de metaforizar a
corrupção das estruturas as quais o Cristo aponta. É importante assinalar que a fala do Cristo
Militar é idêntica no roteiro e no filme.
Brahms, seu principal interlocutor, é sempre visto em espaços públicos como: o
carnaval, aeroporto de Brasília, ruas de Brasília, praça pública, entrevista à imprensa, em uma
construção, Esplanada dos Ministérios em Brasília, Copacabana, Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, Morro da Urca, Estádio de Futebol. A única cena de que Brahms participa e não se dá
em local público é aquela do jogo erótico entre ele, sua mulher, e o Cristo Guerrilheiro.
Essas aparições auxiliam no entendimento da construção da voz desse personagem,
fazendo com que se possa identificá-la de modo mais claro, ligando-a ao espaço físico de
onde se profere o discurso. As preferências de Brahms por locais de aglomeração de pessoas
ou pela mídia identificam esse personagem com o poder. Nesse sentido, seu discurso acontece
relacionado à necessidade de manutenção ou conquista do poder.
Brahms representa o “alienígena”, cuja “missão é destruir a Terra, este planeta
pequeno e pobre”,
131
e paradoxalmente, o discurso pacificador de um estrangeiro que diz
possuir mais capacidade de realização do que os latino-americanos:
Eu vim para trazer a paz, não para trazer a vitória. A paz! A paz mundial, a paz
universal! Com o ouro desta cidade...
132
131
ROCHA, 1985b, p. 439.
132
Ibidem, p. 443.
58
Na oposição entre “trazer a paz, não para trazer a vitória”, fica claro o desejo desse
personagem, agente externo, que chega ao Brasil para trazer a salvação que retoma uma idéia
de ancestralidade imperial:
Eu ser um industrial. Meu pai... meu pai era um filósofo. E meus ancestrais todos
foram impradores (sic).
133
As afirmações de Brahms sempre aludem a esse caráter salvacionista estrangeiro,
sobretudo norte-americano. O personagem elege o estrangeiro como referência positiva ao
povo do Terceiro Mundo e é desse lugar que se escuta sua voz. Brahms afirma:
Tenham paciência porque melhores dias virão. A sociedade começou na Grécia e
terminou nos Estados Unidos.
134
Na voz de Brahms, transparece o imperialismo vindo da visão colonialista européia e
do neocolonialismo norte-americano. Seu local de enunciação, aparentemente ao lado do
povo, demonstra poder. Ele é visto, junto ao Cristo Militar, no carnaval. Brahms faz
demonstrações de seu poder apresentando conhecimento da língua estrangeira:
BRAHMS
(...) Gold, gold! My name is Gold!
135
A voz de Brahms se opõe à do cineasta, mas também à do Cristo Guerrilheiro. Seu
discurso reitera o conceito de poder, segundo Roland Barthes:
Chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a
culpabilidade daquele que o recebe. (...) Nossa verdadeira guerra (...) é contra os
poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é,
simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece
ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente
reviver, re-germinar no novo estado de coisas.
136
Essa noção de poder contribui para este trabalho, na medida em que manifesta vários
tipos de poderes nos discursos e não apenas o poder político do Estado na sociedade.
133
ROCHA, 1985b, p. 459.
134
Ibidem, p. 464.
135
Ibidem, p. 443.
136
BARTHES, 1996, p. 11-12.
59
Em O dilema da América Latina, Darcy Ribeiro
137
demonstra que os poderes se
manifestam nessa relação explicitada entre os sujeitos políticos na esfera pública. Em A Idade
da Terra, uma forte presença dos poderes associados aos personagens. Primeiro, a figura
bíblica do Cristo adquire atribuições, etnias e uma identidade latino-americana a partir dos
protagonismos de figuras históricas estereotipadas. Segundo, por se identificar com os
dilemas que a América Latina e o Terceiro Mundo representam. Já Brahms é um personagem
que representa o Primeiro Mundo. Ao se opor ao Cristo Negro, Cristo Índio e Guerrilheiro,
torna-se uma espécie de antiCristo.
O Cristo Índio, no roteiro, circula em espaços como: floresta, praia da Bahia,
coqueiral, edifício em construção (enquanto um Cristo Índio operário), em uma procissão
tradicional e uma procissão marítima. Esse personagem é sempre visto em movimento. No
roteiro, depreende-se o fragmento elucidativo da voz do personagem:
CRISTO ÍNDIO
Ninguém tem que seguir ninguém! Aqueles que querem vir, venham se querem vir.
Venham se querem vir. Ninguém vem obrigado a nada. Ninguém deve ser obrigado
a nada! Nero também pensava a mesma coisa, meu irmão, e no entanto se deu mal.
Eu não tenho nada contra a violência. Agora eu vou lhes mostrar que vocês estão
endemoniados. Vou provar a você o que acontece da matéria sobre o espírito e você
terá paz, meu irmão.
138
Nessa fala, percebe-se que o discurso do roteiro e o da tela, demonstra o desapego de
Cristo para com quem o acompanha. Os verbos "ter", "seguir", "querer", "vir" representam a
liberdade dada pelo personagem a seus possíveis seguidores, aos quais trata de "irmão" e por
"você", demonstrando proximidade. Porém, uma ambigüidade na base do texto. O Cristo
Índio não tem “nada contra a violência”, podendo, então, fazer uso dela quando necessário.
Porém, não há garantias de que o Cristo saberá usá-la, podendo repetir a loucura de Nero.
Entretanto, e paradoxalmente, os signos verbais mostram a distância entre o Cristo
Índio e seus seguidores ao disponibilizar uma escolha. A cena do roteiro mostra um Cristo
137
Livro de Darcy Ribeiro publicado em 1979 que trata das relações políticas existentes na América Latina.
138
ROCHA, 1985b, p. 464.
60
que olha para as pessoas rapidamente, procura apenas passar sua mensagem, interpretando-a
teatralmente com o corpo.
O Cristo Índio também se relaciona às passagens bíblicas recriadas, como a tentação
realizada pelo Diabo que se transformava em Brahms e, em muitos momentos, se postava
junto às pessoas nas procissões. O Cristo Índio também aparece em locais que representam a
natureza, como a praia, ou próximo às matas. É um Cristo não mais natural, trazendo um
discurso religioso, como se nos espaços que ocupa no texto. A partir das indicações de
cena no roteiro, é possível pensar em um destaque dado pelo roteirista a esse personagem.
O Cristo Negro é encontrado em espaços públicos como: aeroporto de Brasília, um
pátio de obras, Esplanada dos Ministérios em Brasília, torre de televisão em Brasília, terreiro
de umbanda, e cerrado do Planalto Central.
Seu discurso é expresso metonimicamente no roteiro da seguinte forma:
CRISTO NEGRO
Eu tenho uma missão a cumprir. Libertadas estejam as cozinheiras! Libertados
estejam todos os paralíticos! Libertada uma democracia, uma liberdade maior!
Estive preso, condenado... Fugi. Adeus. Você viverá em paz. Você está curada. Está
libertada.
139
Essa fala do Cristo Negro se afina com a voz de Glauber Rocha. Dentre todos os
Cristos, esse parece ser o que mais luta pelo povo. Seu discurso se forma a partir de sua
"missão" de buscar a "liberdade” e a "democracia".
Ele é um Cristo com um discurso político sobre o poder, mesmo em cenas de recriação
de passagens bíblicas como a da ressurreição de um homem realizada por ele.
140
O ator, que no filme interpreta o Cristo Negro, Antônio Pitanga, é também o repórter
que entrevista o jornalista Carlos Castelo Branco sobre o Golpe de 1964. Em certo momento
dessa entrevista, Antônio Pitanga pergunta a Castelo:
CRISTO NEGRO
139
ROCHA, 1985b, p. 454.
140
Ibidem, p. 451.
61
Castello (sic), e o povo em tudo isso? Teve algum benefício com a Revolução?
141
O Cristo Negro surge do meio do povo, podendo falar como um de seus segmentos,
mais especificamente, a população negra. E partes do seu discurso em que ele diz ser o
"enviado de Getúlio"
142
e, mesmo assim, não se faz populista, por acreditar que "a revolução
tem que ser feita pelo povo".
143
Tal discurso se opõe ao de Brahms que veio “para trazer a
vitória”
144
e ao do Cristo Militar que revela o desejo de dormir com a História na “cama das
revoluções”.
145
O Cristo Guerrilheiro, no roteiro e na tela, é identificado como “filho de Brahms”:
CRISTO GUERRILHEIRO:
Eu sou o herdeiro. Eu não posso mais esperar o fim do século por uma herança.
(...)
146
Uma hipótese de interpretação dessa relação é acreditar na figura de Brahms como
metáfora dos Estados Unidos, que contribuíram para o golpe de 1964 no Brasil e outras
ditaduras na América Latina. O resultado de tal intervenção é um filho armado: a guerrilha.
Em Glauber Rocha, essa metáfora construída no Cristo Guerrilheiro se manifesta em
poucas falas no roteiro. Mesmo descartando essa hipótese, o que fica é a clareza de que o
Cristo Guerrilheiro desempenha o papel de se esgueirar por entre outros personagens, não
tendo muito destaque no roteiro ou na tela, mas sendo aquele que é mais visto com Brahms.
Quando as indicações se centram nele, está se opondo a seu pai.
Os espaços em que ele é visto são: “surubada com Brahms”, uma favela do Rio de
Janeiro e um tio com colunas. Está de frente a seu opositor ou em locais nos quais pode se
esconder ou dos quais pode fugir facilmente.
141
ROCHA, 1985b, p. 442.
142
Ibidem, p. 456.
143
Ibidem, p. 456.
144
Ibidem, p. 443.
145
Ibidem, p. 457.
146
Ibidem, p. 450.
62
Apesar de alguns dos quatro Cristos estarem em espaços físicos parecidos, como é o
caso do Cristo Militar e do Cristo Negro, ou mesmo esses dois Cristos e Brahms, suas
posturas, ações e, principalmente, as falas são diferentes umas das outras. A liberdade na
narrativa é compartilhada por todos eles. Um Cristo não se encontra com o outro, mesmo
compartilhando o espaço social, como é o caso do carnaval do Rio de Janeiro ou o centro
político de Brasília. É assim com o Cristo Guerrilheiro.
A fala que ilustra sua postura no roteiro e no filme é a seguinte:
CRISTO GUERRILHEIRO
Enquanto houver tiranos não haverá felicidade! A cama é o jogo do Poder.
147
Nela o Cristo Guerrilheiro afirma sua oposição à tirania, ligando o sexo ao poder,
contrapondo-se àquela fala do Cristo Militar que acredita em guerreiros dormindo “com a
história na cama das revoluções”.
148
A partir da observação de sua participação no texto como um personagem que está se
esgueirando, sempre nas margens da narrativa, nota-se também a sua ligação com a
infantilização e uma revolta vazia. Não um vínculo forte com a idéia de uma revolução
pensada e embasada significativamente.
No discurso desse Cristo, pode ser visto o signo "tiranos" em contraposição a
"felicidade", levando a crer que sua luta é contra o poder autoritário, fascista, podendo chegar
até mesmo à negação das hierarquias.
O Cristo Guerrilheiro atenta, de forma denunciadora, para a "cama" como o espaço
onde se decide o "Poder". A insinuação sexual para determinar a revolução sinaliza para uma
limitação asseverando que toda batalha política é determinada pela relação sexual, pelo jogo
de interesses, e não pela luta política.
O Cristo Guerrilheiro está sempre próximo de Brahms, a quem ele chama de "pai
147
ROCHA, 1985b, p. 451.
148
Ibidem, p. 457.
63
amado".
149
Nesse instante se configura uma ironia. Sua luta é, aparentemente, contra Brahms.
um momento em que o Cristo se envolve em uma "surubada"
150
com Brahms e a Mulher
de Brahms. Essa última personagem questiona e aponta partes do discurso de Brahms. Ela se
envolve na discussão entre pai e filho, seduzindo o filho sexualmente. A Mulher de Brahms
chega a sugerir que ele mate Brahms em um momento edipiano do texto.
151
A presença das
mulheres em A Idade da Terra merece um estudo à parte, mas aqui é possível dizer que a
narrativa parece se encaminhar para que o Cristo Guerrilheiro ensaie um patricídio.
Esse patricídio pode ser visto quando o Cristo Guerrilheiro diz: "O povo teme o seu
lugar, o processo vai começar."
152
Suas palavras de ordem determinam sua voz. Seu local de
enunciação é o da revolução e o da denúncia.
Ao mesmo tempo em que o Cristo Guerrilheiro se vincula ao povo através de
fragmentos de seu discurso, outros signos se agregam, levando-o a ser considerado um Cristo
sem uma direção específica, ainda em crescimento político, intelectual e, talvez, até religioso.
Pode-se, inclusive, vê-lo estritamente ligado a Brahms, vivendo da oposição a ele. Ensaiando
uma hipótese, pode-se pensar: se o personagem Brahms não mais existisse, o Cristo
Guerrilheiro deixaria de existir também?
Constatando isso, observa-se que a mobilidade discursiva é comum a todos os
personagens. Em um momento, o Cristo Guerrilheiro deseja tomar o poder como na passagem
analisada anteriormente; em outro, ele deseja a herança de Ogulaganda, o país da África
colonizado e que é disputado em Anabaziz - o primeiro dia do novo século,
153
primeiro
tratamento de A Idade da Terra. O Cristo Negro e o Cristo Índio oscilam em sua
149
ROCHA, 1985b, p. 450.
150
Ibidem, p. 451.
151
Ibidem, p. 448.
152
Ibidem, p. 465.
153
ROCHA, 1985b, p. 193.
64
ambigüidade, representando determinado segmento do povo. O Cristo Militar aproxima-se de
Brahms e, ao mesmo tempo, diz defender as conquistas do povo até à morte.
154
A aparição dos Cristos revela os atores políticos que formam e evidenciam a América
Latina. Essas caracterizações podem ser encaradas como comuns a todos os povos do
Terceiro Mundo; pois, como disse Glauber Rocha, estava filmando "a Vida de Cristo no
Terceiro Mundo", um Cristo "revolucionado no êxtase da ressurreição".
155
Essa ressurreição acontece para os quatro Cristos em um contexto apocalíptico
descrito pelo Cristo Militar. No roteiro, um anúncio da destruição, do caos, do descontrole
e do êxtase praticado, principalmente nas passagens religiosas do filme ou, ainda, naquelas
em que está presente a alegria do carnaval.
Cada cena, no roteiro e também no filme, é uma construção própria e acabada, sem um
princípio ou fim previsível ou mesmo identificável. Talvez apenas talvez as três partes
montadas do filme se passem nesse momento pós-apocalíptico.
Como não se pode afirmar essa hipótese, confirma-se que a estética do roteiro se
sujeita ao tema. O tema se sujeita ao descompromisso popular para com uma revolução que
não aconteça no dia-a-dia. Tecem-se caminhos que se fazem pela concretude da existência
pela liberdade, e não pela forma dura e séria de qualquer ideologia preestabelecida, seja ela
alojada nos signos do discurso daqueles Cristos, de Brahms, de Glauber Rocha “em off” ou do
diretor.
Resta, assim, pensar nesses Cristos de Glauber Rocha como personagens próximos ao
povo não apenas brasileiro e latino-americano, mas do “Terceiro Mundo”. Assim como suas
contradições, lutas contra o “pai” colonizador, na construção de uma nação dentro de uma
instituição estatal, e na liberdade que pode vir seguindo ou não um Cristo ou uma religião,
154
Ibidem, p. 457.
155
Ibidem, p. 461.
65
como demonstra Glauber Rocha através dessas vozes entrelaçadas desde o roteiro de A Idade
da Terra.
É importante lembrar que a nação aparece em A Idade da Terra nos Cristos e nas
resistências que eles oferecem ao Norte do mundo, no caso do Cristo Guerrilheiro, Índio e
Negro. Também pode se falar em uma tentativa do Cristo Militar se ver dentro desse quadro
de busca por uma nação, ao tentar legitimar as conquistas de uma elite consagrando-a ao
povo, como a Independência, a Proclamação da República, etc.
Considerando as diferentes orientações discursivas no roteiro de Glauber Rocha,
reiteradas no filme, pode-se dizer que ambos são dialógicos no sentido usado por Mikhail
Bakhtin.
O crítico russo propõe, no estudo das vozes, examinar a narrativa, determinando os
elementos que deixam claro o plurilingüísmo, a carnavalização e o dialogismo. A referência,
aqui, à noção de carnavalização de Mikhail Bakhtin não é nova sob a perspectiva crítica,
considerando a divulgação de sua obra nos anos 1970 e a tradução feita de Problemas da
Poética de Dostoievsky nos anos 1980. Apesar disso, pela importância do texto, recorre-se aos
estudos do crítico russo, especialmente Questões de Literatura e de Estética,
156
e Marxismo e
filosofia da linguagem.
157
Para Mikhail Bakhtin, o plurilingüísmo é responsável por tornar mais concreta – e, por
que não, verossímil – o texto do roteirista, pois ele é composto por
palavras e formas que povoam a linguagem [como] vozes sociais e históricas, que
lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um
sistema estilístico harmonioso, expressando a posição sócio-ideológica diferenciada
do autor no seio dos diferentes discursos de sua época.
158
Mesmo não sendo um romance, o roteiro enquanto organizador de signos narrativos
traz construções que carregam a característica do ideológico. No roteiro e no filme, estão
156
BAKHTIN, 1990.
157
Idem, 1979.
158
BAKHTIN, op. cit., p. 106.
66
presentes “‘linguagens’ e perspectivas ideológico-verbais multiformes de gêneros, de
profissões, de grupos sociais (a linguagem do nobre, do fazendeiro, do comerciante, do
camponês) linguagens orientadas e familiares (a linguagem do mexerico, da tagarelice
mundana, a linguagem dos servos), etc. (...)”
159
Assim, abre-se espaço para uma leitura de A Idade da Terra como “janela” que
permite enxergar a pretensão e concretização de um projeto de Glauber Rocha. Ao perceber a
multiplicidade de vozes no roteiro, é possível dizer que elas se entrecruzam trocando alguns
papéis. O Cristo, que é considerado casto na tradição do Novo Testamento Bíblico, no roteiro,
de Glauber Rocha, sempre está acompanhado por uma mulher: o Cristo Negro, por uma
“mulher morena” no cerrado de Brasília; o Cristo Guerrilheiro, nas “surubadas” com o “pai” e
a mulher de Brahms; o Cristo Militar, pela Rainha Aurora Madalena e o Cristo Índio, pela
Rainha das Amazonas. O signo da subversão se faz presente desde aí.
Nessa configuração, o dialogismo torna-se o "princípio constitutivo da linguagem e a
condição do sentido do discurso", uma vez que se desdobra em dois aspectos: o da interação
verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto, o da intertextualidade no interior do
discurso".
160
Na análise dos textos, foram considerados os níveis das relações dialógicas
interpretadas por Isabel Fernandes, estudiosa de Bakhtin:
Entre o autor e o leitor ou, no plano intratextual e tratando-se de uma narrativa, entre
o narrador, o narratário e as personagens (e respectivos pontos de vista), entre a série
literária e a série lingüística, entre a obra concreta e o sistema literário precedente e
contemporâneo entre a obra e o contexto social saturado de discursos e linguagens
concretas de várias espécies. O que Bakhtin designa de plurilingüísmo.
161
Nessa proposta onde se expõem os pontos de análise, nota-se que o dialogismo existe
em função do plurilingüísmo. Além desses, Bakhtin ensina que, nas formas composicionais
159
BAKHTIN, 1990, p. 116.
160
BARROS, 2003, p. 2.
161
FERNANDES, 2005. Não número de página citado, pois a referência foi retirada do E-dicionário de
termos literários, disponível apenas na Internet.
67
como a estilização, a paródia, os gêneros incorporados (crônica, poesia, etc.), as construções
híbridas refratam as intenções e pontos de vista. Com ele, deve-se ater especialmente às
construções textuais híbridas, pois:
Estas últimas (...) consistem na inclusão do discurso e perspectiva do senso-comum
no tecido da prosa narratorial, que assim passa a reverberar ironicamente a posição
crítica do narrador autoral face àquele. Estamos perante um diálogo implícito ou
virtual, um diálogo de duas vozes, duas visões do mundo, cujas fronteiras
permanecem esbatidas ao nível do discurso (aparentemente da exclusiva
responsabilidade do narrador).
162
Assim, a construção pode ser compreendida enquanto carnavalizada. Essa perspectiva
literária se prende àquilo que Mikhail Bakhtin chama de cômico-sério. Esse conceito foi
concebido, pelo crítico russo, tomando como base o riso.
O riso tem o extraordinário poder de aproximar o objeto, ele o coloca na zona do
contato direto, onde se pode apalpá-lo sem cerimônia por todos os lados, revirá-lo,
virá-lo do avesso, examiná-lo de alto a baixo, quebrar seu envoltório externo,
penetrar nas suas entranhas, duvidar dele, estendê-lo, desmembrá-lo, desmascará-lo,
desnudá-lo, examiná-lo e experimentá-lo à vontade.
163
Nota-se então a importância dada à diminuição da distância entre os personagens e a
realidade social. Busca-se uma ligação com o mundo popular. O que há é a carnavalização das
vozes, das ações e das relações entre os personagens, sendo que
o carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre os atores e espectadores.
No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca.
(...) As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida
comum, isto é, extra carnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes
de tudo o sistema hierárquico e todas as formas conexas de medo, reverência,
devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social
hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os
homens.
164
Essa proposta, em Glauber Rocha, acontece nas divisões das vozes entre os Cristos,
assim como na possibilidade de polarização com a figura opressora de Brahms. A hierarquia
parece sumir quando até Brahms é visto no mesmo patamar que os outros personagens. Todos
são vistos junto ao povo, circulando entre sua respectiva realidade social.
162
FERNANDES, 2005.
163
BAKHTIN, 1979, p. 413.
164
Idem, 1981, p. 105.
68
2.2 AS VOZES EM UTOPIA SELVAGEM
No estudo de Utopia Selvagem, para o confronto com o roteiro de Glauber Rocha,
foram selecionadas, como foco da análise, as vozes do narrador, do Tenente
Carvalhal/Pitum/Orelhão, das monjas Uxa e Tivi, sua relação com o mundo civilizado, e o
diálogo entre os ditos civilizados com Calibã e os Galibis.
Em Utopia Selvagem, o narrador é também um cronista. Quando se fala em crônica,
no contexto desse livro de Darcy Ribeiro, é importante que se reporte aos textos dos viajantes
do século XVI, mencionados na fábula do autor, como: Carvajal, Orelhana, Acunha de
Condamíni, Manuel da Nóbrega, dentre outros.
Diferentemente desses cronistas, o narrador não possui a palavra como também
concede a voz aos atores dessa viagem, ocorrida no século XX. Os personagens entram em
conexão com o narrador sendo apresentados, ora de forma dramática, ora de forma indireta.
A esse respeito cabe introduzir o que pensa Wayne Booth sobre o narrador implícito,
em seu livro A retórica da ficção. Inicialmente, para o crítico, a “neutralidade” do autor não
existe.
165
Assim, um autor implícito pode ser determinado incluindo nele “não os
significados que podem ser extraídos, como também o conteúdo emocional ou moral de cada
parcela de acção e sofrimento de todos os personagens.”
166
É esse autor implícito que “escolhe, consciente ou inconscientemente, aquilo que
lemos; inferimo-lo como versão criada, literária, ideal dum homem real ele é a soma das
opções deste homem”.
167
Sabendo, então, que um narrador é esse aglomerado das escolhas do
autor, pensa-se em Darcy Ribeiro enquanto antropólogo, historiador, etc., influindo nos rumos
da narrativa de Utopia Selvagem.
165
BOOTH, 1980, p. 85.
166
Ibidem, p. 91.
167
BOOTH, 1980, p. 92.
69
Desse modo, pode muito claramente incluir nessa fábula elementos daquelas
narrativas de viagens que leu. E ainda, além dos viajantes, o narrador também lembra os
pensadores europeus expondo cada vez mais esse autor implícito:
Em 1754 o moço paradoxal de Genebra, intoxicado por estas leituras, cai na
subversão, proclama a bondade inata dos selvagens, funda nela a moderna
pedagogia e a política científica.
168
O fluxo dessa narrativa oscila entre uma velocidade da câmera (como se mostrou no
primeiro capítulo desta dissertação), e a lentidão das digressões históricas, filosóficas e
culturais, ou mesmo nos comentários típicos de uma crônica, trazendo uma hibridez a essa
voz que se direciona claramente para a construção de uma História, com sua ambientação
própria e a desconstrução do olhar do branco e europeu.
Tal incorporação de análise histórica e antropológica é um ponto claro em que o autor
implícito surge na fábula, manifestando não apenas suas conclusões, mas sua voz enquanto
construção socioideológica. O narrador deixa de mediar as vozes passando a compor a sua
própria, conferindo outros significados à narrativa a partir do desvelamento do jogo
ideológico do processo colonizador.
Constata-se que o narrador de Utopia Selvagem discursa com ironia. Ironia é
compreendida por Leyla Perrone-Moisés, que o conceito como “uma forma clássica de
distanciamento (...) ela supõe uma hierarquia, um olhar lançado de cima”,
169
tornando-se uma
forma discursiva de poder ou de “antipoder” na relação entre colonizador-colonizado. Desse
modo, é importante lembrar aquilo em que acredita Wayne Booth, para quem “o autor usa da
ironia para se proteger e não para revelar o tema”,
170
o que não significa que o autor implícito
não confronte idéias a partir dela.
168
RIBEIRO, 1986, p. 31.
169
PERRONE-MOISÉS, 1996, p. 57.
170
BOOTH, 1980, p. 102.
70
Por ser o mediador das vozes na narrativa, é necessário iniciar pelo seu estudo baseado
no que ele representa. De modo não-convencional, o narrador conduz a narrativa, incluindo
elementos da realidade, como em um ensaio. Também apresenta um forte apelo ao diálogo
com possíveis interlocutores. Isso ocorre quando o narrador interpela Glauber:
Salve, salve Glauber. Bem-vindo seja cá.
Este mundo é do homem.
Não é de Deus, nem de Mulher.
171
No capítulo sobre as Icamiabas, o narrador divaga a respeito dos viajantes e seu olhar
sobre esse “novo mundo”. Em tom de crônica e, ao mesmo tempo, com ironia, oposição à
sociedade machista, como se vê no trecho:
Refiro-me aos testemunhos de Carvajal de Orelhana, Acunha de Condamíni e do
ante-santo Manuel da Nóbrega. O que se lê, neles todos, a meu ver, é sempre a
mesma história.
Seus testemunhos não são mais que diversas versões da notícia veraz de alguém que
viu estas mesmas valorosas donas sempre metidas numa continuada guerra, sempre
na mesma estação do ano; e também sempre contra a mesma tribo macha,
complementar à delas.
172
O narrador segue acompanhando os personagens, conforme sua intenção de mostrar o
mundo do branco ao qual ele ironiza. O personagem Carvalhal/Pitum/Orelhão realiza o
trânsito, sob a condução do narrador, entre os mundos (das Amazonas e dos Galibis), e é
confrontado também com o mundo das Monjas Uxa e Tivi. Além desse acompanhamento dos
personagens, sua atuação é dramática, confirmada por meio de vários diálogos.
O Tenente Carvalhal passa por diferentes transformações. Primeiro, ele possui uma
patente militar. Em posição de comando, seu lugar era de autoridade. Depois, entre os índios,
ele é Pitum, seqüestrado pelas Icamiabas. Amedrontado, no meio das índias, acaba sendo
rejeitado por elas. Entre as Icamiabas, diz o narrador, “Pitum acaba virando índio nesse ofício
de marido comum das mulheres sem marido”.
173
171
RIBEIRO, 1986, p. 198.
172
Ibidem, p. 21.
173
RIBEIRO, 1986, p. 43.
71
Entre os Galibis, a voz militar do Tenente Carvalhal se desestabiliza. De “macho
prenhador”, engravidando as Icamiabas, ele passa a ser um Hans Staden
174
do século XX. Em
um livro como o de Darcy Ribeiro, tal passagem deve ser lida atenciosamente:
- Que me importa? Delas só quero distância. Quero é nunca mais pôr o pé lá. Quero
é nunca mais ver nenhuma delas. Bonitonas, é verdade. Gostosonas até, mas elas
com o mundo delas e eu cá, neste mundo ou noutro qualquer, desde que não seja o
delas. Canibalas!
175
Entre as Icamiabas, Pitum é um Hans Staden revisitado que consegue escapar da morte
nas mãos delas. Darcy Ribeiro, nessa inclusão do relato de Hans Staden, dessacraliza o modo
como escrevem os cronistas com, por exemplo, a escolha do vocábulo “gostosonas”, com o
qual vulgariza as Amazonas.
O Tenente Carvalhal toma nova identidade entre os Galibis, tornando-se Orelhão.
Orelhão é um personagem atento à cultura do “outro”, seja a das monjas, ou a dos Galibis.
Diferente de Pitum, que confrontou as Monjas na sua chegada à tribo, Orelhão apenas escuta
o que se tem a dizer.
As três facetas (Tenente Carvalhal, Pitum e Orelhão) de um personagem revelam
um discurso móvel, sem uma identidade definida no sentido de pertencimento. Sua principal
lição vem de suas tentativas de confrontar sua cultura com a do outro:
Não pode haver um Brasil assim – diz ele. – Certamente não há mesmo. Será
invenção delas. E se pergunta: - para que fantasiam tanto? Que é que lucram com
isso? A quem é que querem enganar?
176
O autor, por meio de seu personagem, faz com que Pitum conheça esses novos
mundos, esses “brasis”.
Sobre Pitum e sua vida entre os Galibis e as monjas, o narrador comenta:
174
Ao atualizar Hans Staden aprisionado pelos índios Tupinambás, Darcy Ribeiro situa Pitum identificando-o
não com um antropófago, mas como a comida, a representação de mundos que são devorados. Hans Staden foi
um alemão que escapou de um ritual antropofágico, demonstrando medo de seu destino antropofágico. A história
de Hans Staden já foi contada na Literatura Brasileira, antes de Darcy Ribeiro, por Monteiro Lobato (LOBATO,
1988, p. 87). O alemão deixou seu relato registrado, e hoje pode ser conhecido através do livro A verdadeira
história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens... (1548-1555) (STADEN, 2004).
175
RIBEIRO, op. cit., p. 72.
176
Ibidem, p. 94.
72
Curioso, inseguro e inquieto, o ex-tenente deu pra viver na escuta. Anda tão atento
que, agora, é chamado Orelhão. Passa o tempo todo de orelha em pé, ouvido aceso,
na oitiva, escutando.
177
Assim, não mais Pitum e, sim, Orelhão, o ex-tenente” começa a compreender o
dialeto indígena. Seu discurso vai se aproximando cada vez mais daquele da tribo, inclusive
se diferenciando do mundo das monjas que, no momento em que chegou à tribo, “quando
pôs os olhos nas brancarronas vestidas de zuarte Pitum se deu por salvo”.
178
Mesmo assim,
sua voz não se identifica com a dos Galibis, com os quais mantém um vínculo apenas para
sobreviver.
A assunção da identidade indígena por Pitum ocorre no capítulo final da fábula, em
que ele é forçado a engolir o “caapi” pelo pajé Axi. Essa voz mutável, de acordo com o
contexto, é peculiar a Pitum. Ser “forçado” a tomar o “caapi” constitui uma prova de que sua
condição de “Galibi” não é real. Orelhão ainda carrega resquícios de Pitum e de Carvalhal,
não assumindo nenhuma identidade fixa.
Outros personagens marcam a presença dos civilizados no texto. No capítulo
“Selvagens Letrados”, Tivi e Uxa representam essas vozes. Uxa conta a Orelhão a última
conversa que ocorreu entre Tivi e Calibã:
O selvagem escreveu na folha de sororoca: Vocês mataram mesmo o filho de Deus?
Ela respondeu: Sim.
O tuxaua pergunta, embaixo: Ele era todo-poderoso?
Ela: Não era não: é!
Ele: E morreu, assim, de besta?
Ela: Não, ressuscitou.
Ele: Então foi só uma treita?
A velha se danou novamente com Tivi, rasgou as folhas renegando da companheira:
- Estou é com Anchieta. Missão é na sojigação. Certos assuntos são pra extrema-
unção. Tivi quer falar de tudo: nisso. Azeda, Uxa comenta outra vez que foi
tolice, tolice grossa, essa de ensinar os índios a ler e escrever. Analfabetos não
ficariam tão acesos e perguntões.
179
177
RIBEIRO, 1986, p. 94.
178
Ibidem, p. 79.
179
RIBEIRO, 1986, p. 103.
73
No trabalho pedagógico de Tivi, é possível ver a relação que se dá entre o colonizador
e o colonizado. Parece que apenas o colonizador tem o que dizer e o que ensinar. Essa relação
acontece entre Tivi e Calibã no diálogo apresentado, mas se de maneira violenta quando
Uxa perde a paciência com as tentativas de Tivi. A voz etnocêntrica de Uxa se revolta,
posicionando seu discurso em confluência com aquele de Anchieta que opta por uma missão
mais agressiva, com a conversão dos indígenas à força.
Os locais de enunciação das vozes em Utopia Selvagem, com relação a Uxa, Tivi e
Pitum, se constroem a partir de mundos diferentes. No capítulo “Os Brasis”, as monjas
ressaltam essa diferença entre os mundos:
- É outro país esse seu, Orelhão. Parecido com o nosso, é certo, na língua que falam
e na mistura das raças, mas muito diferente e muito debochado demais.
180
Considerando que as vozes nos informam sobre as posições ideológicas dos
sujeitos
181
, é possível relacionar o relato dos personagens sobre seu mundo, seu” Brasil, com
a sua posição discursiva. A posição discursiva móvel de Carvalhal-Pitum-Orelhão faz com
que se veja Orelhão em sua relação com as monjas como um personagem de fora que vê o de
dentro. Suas perguntas pelo que ocorre no mundo das monjas podem ser entendidas como
uma “gozação”. Assim, é possível perceber esse riso no trecho:
- É o comunismo! O partidão já ganhou lá? – interroga Orelhão.
- Qual o que, seu bocó. Não seja herege – xinga Uxa.
182
O vocábulo “herege” não apenas acusa, mas reflete uma posição ideológica de Uxa
que delimita o espaço discursivo dela em relação àquele de Orelhão; porém, o personagem
também é brasileiro. É desse modo que uma provocação pode ser vista no conflito entre as
vozes.
180
Ibidem, p. 96.
181
Por se considerar aqui a posição discursiva como móvel, cabe pensar na posição ideológica também como
móvel, pois é ela a principal acionadora dessa delimitação discursiva encontrada da caracterização dos
personagens.
182
Ibidem, p. 119.
74
A voz de Calibã, assim como a de Orelhão, polariza com aquelas de Tivi e com a de
Uxa, pertencentes a um mundo branco e cristão. Essa polarização é mediada pelo narrador.
A voz do personagem Calibã se aproxima daquela do autor implícito, na medida em
que assimila, na narrativa ficcional, um discurso irônico. A voz irônica de Calibã mostra
curiosidade, principalmente quando em diálogo com Tivi e Uxa, as monjas missionárias,
representantes de um mundo civilizado, como se neste trecho sobre a possível viagem de
Calibã para conhecer este “outro mundo”:
A viagem não preocupa tanto a Calibã. Ele inquieta mesmo é com o tratamento
que vai ter.
- Tivi, eles vão me deixar morar lá na Casa dos Homens? Vão me dar mulher?
- Não, tuxaua, não vão não! nem tem Casa dos Homens. (...) Vovai ficar é
hospedado com minhas irmãs.
- Vou gostar demais. Vou sururucar muito com elas.
- Nada disso, seu tuxaua – intervém Uxa. Lá ninguém mulher pra hóspede não.
Esta pouca-vergonha é mau costume só de vocês daqui.
183
Nesse diálogo do não-civilizado com o civilizado, Calibã manifesta seu desejo não
apenas de conhecer a cultura do branco civilizado, mas de incutir nela a sua cultura. No papel
de colonizador, Uxa nega essa abertura ao tuxaua. Como se confirma, a voz de Calibã diverge
daquela voz de Uxa e de Tivi.
Calibã, chefe dos Galibis, é a imagem de um chefe indígena que age como seu povo, e
está sujeito a erros e conquistas semelhantes a esses. Com a oportunidade de conhecer o
mundo civilizado das monjas, o tuxaua demonstra sua própria forma de interpretar o que irá
fazer neste “outro” lugar:
Conta que na viagem com Tivi andará a muito tempo, através da mata. Ele caçará
e pescará.
Conta que montará, primeiro, numa anta de verdade; depois numa onçona de ferro,
com rodas nos pés.
Conta, por fim, que voará num pássaro de lata.
Certamente passarão sede e passarão fome, mas confia inteiramente em que ele e ela
lá chegarão.
184
O olhar de Calibã recria a viagem que Tivi lhe contou. O Calibã de Darcy Ribeiro não
183
RIBEIRO, 1986, p. 140.
184
RIBEIRO, 1986, p. 141.
75
é pré-definido, ou pré-conceituoso com as descobertas, seu desejo é encontrar a nova cultura
para poder conhecê-la e experimentá-la. Ele quer aproveitá-la onde lhe interessar. O autor
implícito participa da narrativa, ironizando o mundo civilizado, também, a partir de Calibã.
O discurso de Calibã mantém sua coerência. O personagem sabe quem ele é,
principalmente quando se diz que é impossível realizar algo, ou que ninguém o fez antes:
"Bestagem sua, Diaba. Não que eu sou Calibã".
185
Ele acredita em si. Todas as falas de
Calibã são parecidas na condução de sua ironia.
O personagem também se mostra confiante e desafiador, quando se interessa em
empreender viagem ao "mundo civilizado" das monjas. Seu olhar curioso imagina esse mundo
a partir de sua vontade de conhecê-lo:
- Quero muito ver os formigueiros de gente nas tais casas amontoadas, umas em
cima das outras.
- Quero, sobretudo, conhecer este povo todo de gentes vestidas de panos e de pés
metidos em sapatos.
- Quero demais beber água no grande lago salgado.
- Quero, preciso, visitar o fazedor de fósforos e o de ferros.
- Quero e vou tomar todos os doze remédios: um a um. Todos.
- Quero, principalmente, sururucar com as mulheres de verdade, pintadas e
enfeitadas, as que fodem e parem filhos.
186
Sua vontade está representada pelo verbo "querer" na primeira pessoa do presente.
Esse verbo sintetiza a crença em sua força e capacidade de conquista do que deseja. Sua
curiosidade é reforçada com a presença do verbo "precisar", também na primeira pessoa e no
presente. O seu olhar procura, então, manifestar seus desejos ressignificando-os pela sua
curiosidade e vontade.
Todos esses aspectos, que representam Calibã, são signos de uma mentalidade que se
conhece e que quer descobrir novidades de "outros mundos", aproximando-os, como se
delimitou, do autor implícito. O personagem Calié o “experimentador”, constituindo um
lugar de enunciação seguro, potencializando-o para essas novas vivências no mundo do
185
Ibidem, p. 138.
186
Ibidem, p. 141-142.
76
“outro”, sem tornar-se esse “outro”, aproveitando-se de seus saberes.
O estudo das vozes permitiu demonstrar aspectos ideológicos que ambos os textos
possuem. Usa-se o sentido de ideologia, sabendo-se que tanto Darcy Ribeiro quanto Glauber
Rocha e a sua geração foram leitores de Karl Marx, e aproximaram os textos do filósofo à
realidade latino-americana. A esse respeito é importante ler o seguinte trecho da entrevista
realizada por Haydée Ribeiro Coelho com Renzo Pi Hugarte, que diz:
En síntesis, no puede atribuírsele a Darcy ser un autor marxista y él ponía especial
cuidado en que no se lo encasillara de esa forma. Es evidente que como todo
investigador lúcido, percib que el marxismo operó una verdadera revolución
copernicana en lo que tiene que ver con la comprensión de la estructuración de las
sociedades y de la determinación de los mecanismos fundamentales del cambio
social, por lo que resultaría absurdo no tomarlo en cuenta. (...) Los conceptos de
Darcy referidos a los grandes cambios socioculturales en una perspectiva abarcativa
de complejos procesos como los de “aceleración evolutiva” y “actualización
histórica” a los que ya hemos aludido ponen de manifiesto cuánto podían deber a
la teorización marxista y cuánto expresaban su propia originalidad.
187
Com a importância atribuída a Marx no pensamento de Darcy Ribeiro, é possível
resgatar um de seus principais conceitos através de Marilena Chauí, que pensa ser função da
ideologia:
Ocultar a origem da sociedade (relação de produção como relações entre meios de
produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença
da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos proprietários
privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas
como se fossem conseqüências de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina
laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado) originada do
contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é a gica da dominação
social e política.
188
Ao esclarecer o conceito de ideologia, pretende-se lembrar que todo discurso está
vinculado a elas. Sendo que essas ideologias representam um ponto de vista, um
posicionamento social, um local de enunciação que, naturalmente, têm por inclinação carregar
de sentidos uma proposta político-socioistórica. Nesse sentido, Calibã está relacionado ao
discurso antropofágico de Darcy Ribeiro. Essa relação será focalizada, de forma mais
detalhada, no terceiro capítulo desta dissertação.
187
HUGARTE, 2003, p. 102-103.
188
CHAUÍ, 2000, p. 219.
77
A relação com o dialogismo na fábula foi tratada por João Domingues Maia, que
focalizou o carnaval, a utopia e a paródia em Utopia Selvagem, por isso o elemento
parodístico no texto de Darcy não foi analisado, embora se saiba que a ironia faz parte da
paródia. Segundo Nancy Maria Mendes, “a ironia literária” pode ser “vista numa situação
intermediária entre a seriedade da mensagem literal e a zombaria ridicularizante da sátira,
sendo, entretanto, reconhecido seu parentesco com esta”.
189
Para a autora, tanto a ironia,
quanto a sátira, a paródia e o humor “guardam entre si relações mais ou menos estreitas”,
“apresentam peculiaridades que as tornam independentes umas das outras”, e “uma dessas
categorias pode ser tomada como denominador comum entre as demais: a ironia”.
190
Como se viu, os discursos em Utopia Selvagem se perpassam e se confrontam. Pitum é
um mediador das vozes, porém atenta-se para o autor implícito
191
que age por meio não
apenas do narrador que apresenta e se posiciona, mas também se materializa através de Pitum.
Muitas vezes, esse narrador exprime juízos, opiniões e desejos com relação à narrativa, aos
personagens e ao leitor de maneira irônica, como no caso das Icamiabas:
Aqui entre nós, leitor, eu digo que estas sisudas donas são nada mais nada menos
que as primeiras revolucionárias da história. São as pioneiras da revolução feminista
permanente: trotskistas.
192
Pela voz de seus personagens, Darcy Ribeiro atualiza a discussão entre índios e
brancos, colonizado e colonizadores, civilizado e civilizador. O autor traz para o texto
diversos autores, como: William Shakespeare
193
e o seu A Tempestade, Rousseau e
Montaigne, a literatura de George Orwell e Aldous Huxley, assim como o manifesto
antropofágico de Oswald de Andrade e o Macunaíma, de Mário de Andrade.
Nessa profusão de textos colados, recortados e desconstruídos na fábula, pôde-se
demonstrar o modo com que Darcy Ribeiro constitui Utopia Selvagem, revelando a voz do
189
MENDES, 1980, p. 4.
190
Ibidem, p. 9.
191
BOOTH, 1980, p. 91
192
RIBEIRO, 1986, p. 38.
193
SHAKESPEARE, 1954.
78
narrador e as oposições entre as vozes dos personagens. Por fim, a confluência entre as vozes
analisadas nos textos de Darcy Ribeiro e de Glauber Rocha está relacionada ao projeto
antropofágico dos dois intelectuais, conforme será mostrado no próximo capítulo.
3 REVISITANDO A ANTROPOFAGIA EM
UTOPIA SELVAGEM E EM A IDADE DA TERRA
80
3.1 A CONFLUÊNCIA ENTRE AS VOZES E AS IDÉIAS: DARCY RIBEIRO E
GLAUBER ROCHA
Com base nas vozes analisadas, pode-se pensar na confluência do pensamento dos
intelectuais e seus textos. O Tenente Carvalhal (Pitum/Orelhão) e as monjas de Utopia
Selvagem se relacionam, respectivamente, com os vários Cristos e Brahms. O Calibã do
antropólogo/escritor encontra ressonância na voz de Glauber Rocha em off.
A partir disso, pode-se dizer que, em ambos os textos, existem “protagonismos”, no
plural. Enquanto A Idade da Terra é povoada por quatro Cristos diferentes, Utopia Selvagem
possui o Tenente Carvalhal/Pitum/Orelhão.
O poder exercido pelas monjas, especialmente Uxa, é parecido com o de Brahms no
seu teor cultural e político. Elas detêm a escrita, que é ensinada aos Galibis, reiterando os
signos da civilização e do ocidente – as roupas, os modos, a religião cristã.
Calibã, personagem de Utopia Selvagem, usa de sua inocência perdida tanto para
conquistar a monja Tivi quanto para contrapor-se à monja Uxa. É ele, principalmente, entre os
Galibis, que representa a cultura do “outro”, em relação a Uxa e a Tivi. Assim, como o Cristo
Negro e o Cristo Guerrilheiro se opõem a Brahms, Calibã é contrário ao neocolonialismo das
monjas e de Brahms. Calibã é o único personagem em Utopia Selvagem que não apresenta
conflitos com o que deseja. Também possui projetos: o de “devorar” Tivi e o de viajar até o
país das Monjas.
Ao analisar o narrador no livro comparado ao roteiro, viu-se que é difícil determinar a
voz do diretor e do cineasta de A Idade da Terra. Esse diretor surge nas indicações de cena,
assim como por meio de Glauber Rocha “em off”. Apesar das diferenças, decorrentes do meio
em que esse diretor produz, pôde-se analisar a sua voz no roteiro e não na tela, a qual apenas
seria evocada quando da necessidade extrema do complemento da análise.
81
Além da semelhança entre as indicações de cenas feitas pelo roteirista e pelo narrador
de Utopia Selvagem, ambos os textos possuem interventores durante uma seqüência, ou
mesmo nas falas de personagens. Um exemplo é quando Glauber Rocha em off“dirige” a
cena, sendo incorporado ao roteiro:
GLAUBER ROCHA (off)
Fala mais alto. Diga outra vez: “Eu quero o Poder”.
(...)
GLAUBER ROCHA (off)
Fale mais alto. Dez tons mais alto. “Amo, amo amo”.
194
Em Utopia Selvagem, a intervenção de um narrador intruso ocorre várias vezes.
Ressalte-se a passagem em que trata do dilema latino-americano:
Nosso enigma é muitíssimo mais complicado. Começa com a tenebrosa invasão
civilizadora. Mil povos únicos, saídos virgens da mão do Criador (...)
195
O Cristo Militar possui, como o Tenente Carvalhal, um local de enunciação militar.
Esse Cristo está em um lugar de autoridade que se fortalece na relação com o povo. O Cristo
Militar se relaciona com as estruturas estatais, e é a elas que se refere, quando o mundo se
desmorona no apocalipse:
CRISTO MILITAR
As nossas estruturas, nossos alicerces foram destruídos. A qualquer momento
poderemos ser tragados num abismo. Nós estamos condenados!
196
O Cristo Índio remete ao momento da chegada dos portugueses e dos espanhóis, mas
também aponta para um forte diálogo com o mundo contemporâneo. O discurso do Cristo
Índio se aproxima do povo e das paisagens indicadas no roteiro:
32.
Salvador, Bahia. Cristo Índio com o povo, à frente de uma grande procissão.
197
194
ROCHA, 1985b, p. 448.
195
RIBEIRO, 1986, p. 32.
196
ROCHA, op. cit., p. 454.
197
Ibidem, p. 463.
82
O Cristo Guerrilheiro é o que mais se distancia tematicamente de Pitum; porém, sua
presença e sua voz no roteiro de A Idade da Terra se aproximam da resistência das
Amazonas, opondo-se ao “outro” que as quer subjugar.
A voz do Cristo Guerrilheiro guarda em si a necessidade de se contrapor a Brahms.
Essa oposição justifica a existência desse Cristo. A guerrilha também está presente em Utopia
Selvagem, quando a ilha se desprende do chão, alçando vôo. Uma guerra irregular é travada
contra as Amazonas e, depois, contra o Exército Brasileiro. Os Galibis atacam como podem e
são contra-atacados por todos os lados,
198
na ilha que já se despregou do chão.
A mesma aversão que ocorre entre o Cristo Guerrilheiro e Brahms acontece em
relação às Icamiabas de Utopia Selvagem, que invertem a hierarquia de uma cultura machista.
Porém, a postura das Amazonas é autoritária, assemelhando-se ao modo como o Cristo
Guerrilheiro se opõe a Brahms com palavras de ordem.
As vozes, na fábula e no roteiro, estão ligadas a uma postura contrária ao imperialismo
norte-americano, representado por John Brahms e por Uxa e Tivi.
Em 1961, no artigo intitulado “O Cinema Novo e o Cinema Livre”, Glauber Rocha
afirma que como um passe de mágica surgirá a consciência de uma geração. Então sem
perigo – garantiremos um cinema novo, livre e audacioso”.
199
A audácia e a liberdade, com relação às potências econômicas mundiais, eram uma das
crenças de sua geração de 1950, 1960 e 1970, porém essa consciência política se manifestará
em diversas áreas, nos anos que se sucederam àquele 1961, principalmente no caso do
Cinema Novo. Para Ivana Bentes, “se historicamente ou materialmente a revolução desejada
por toda uma geração não aconteceu, Glauber monta seu apocalipse estético-revolucionário-
cinematográfico e projeta no Brasil o seu Parayzo Material Dezenraizado’”.
200
O cineasta,
no entanto, “constrói nos seus filmes um discurso não apenas sobre o Brasil, mas tenta
198
RIBEIRO, 1986, p. 200-201.
199
ROCHA, 1961.
200
BENTES, 2002, p. 9-10.
83
esboçar um pensamento transnacional, pan-americano (sic), luso-afro-brasileiro, ibero-
hispânico, euro-latino ou tricontinental, inserindo o devir latino-americano na história do
capitalismo”.
201
Na medida em que Glauber e Darcy, pelo confronto entre as vozes, discutem as
relações de poder, e a cultura em seus múltiplos aspectos, pode-se afirmar que há uma
proximidade entre o modo como o antropólogo e o cineasta refletem sobre o modelo
colonizador e neocolonizador vivido pelo Brasil e pela América Latina. Em contrapartida,
uma das respostas a essas questões vai se dar pela antropofagia.
3.2 ANTROPOFAGIA: UM CAMPO DE SABER
A antropofagia se pensada aqui com base em dois textos. Fundamenta-se,
primeiramente, na tese de Maria Cândida Ferreira de Almeida, intitulada Tornar-se outro: o
topos canibal na Literatura Brasileira; depois no capítulo “Antropofagia”, de Heloisa Toller
Gomes.
202
A tese de Maria Cândida Ferreira de Almeida trata da antropofagia na literatura
brasileira, mostrando o seu topos. Em termos literários, a autora afirma que “a antropofagia
tornou-se um lugar comum e fixou-se na tradição literária, podendo ser definida como um
topos que faz emergir no texto, a cada momento diferente, uma representação partícipe da
construção da identidade brasileira.”
203
Inicialmente, o estudo relaciona a idéia de canibalismo
à origem da antropofagia como movimento literário em Oswald de Andrade. Remontando à
etimologia da palavra “canibal”, é possível perceber um retorno ao “descobrimento” das
201
BENTES, 2002, p. 10.
202
O capítulo ressaltado foi publicado no livro Conceitos de Literatura e Cultura, organizado por Eurídice
Figueiredo (2005).
203
ALMEIDA, 1999, p.13.
84
Américas assim como daquela projeção do imaginário europeu sobre o “novo mundo”.
Aproximando a origem da palavra aos europeus que pensaram sobre a antropofagia, como
Montaigne, ou conviveram com os “canibais”, como Hans Staden, pensa-se em canibal”
como uma representação da Europa especialmente sobre a América Latina.
Da origem das palavras, a estudiosa procura desvendar os sentidos de “antropofagia” e
“canibalismo”. Descobre a associação feita pelo dicionário Aurélio da antropofagia à
literatura brasileira. Assim, pôde delimitar o que seria o ato canibal como uma absorção
simbólica do “outro”, não importando mais nesse momento de onde surgiu a palavra. Dessa
visão metafórica da antropofagia, a tese se encaminha para a divisão dessa prática em
contingencial e ritual.
A partir dessa exposição teórica, a autora propõe enfocar o canibal na literatura
brasileira, tendo em vista a tradição antropofágica modernista de Oswald de Andrade,
demonstrando que a antropofagia se relaciona com uma identidade que se forma na
construção literária brasileira.
Em função do que foi desenvolvido por Maria Cândida, a antropofagia é considerada
uma prática de inversão dos conceitos europeus realizada por Oswald de Andrade. Ressaltam-
se suas considerações sobre as antropofagias endógenas e exógenas enquanto parte da
antropofagia ritual:
Existem aqueles grupos que praticam endo-canibalismo, ou seja, devoram os
membros da própria família ou grupo; e existem outros que praticam o exo-
canibalismo, isto é, o inimigo, aquele que está fora do grupo, é quem é devorado.
204
Nos textos enfocados, esses dois sentidos de antropofagia
205
serão compreendidos no
esforço de construção identitária. Além dessa concepção, serão importantes as noções da
origem do movimento antropofágico em Oswald de Andrade, ligados ao modernismo e à
204
ALMEIDA, 1999, p. 15.
205
A antropofagia exógena é entendida aqui do modo com que Maria Cândida expôs em seu estudo, enquanto
ritual de deglutição dos “inimigos” da tribo. a antropofagia endógena é executada dentro de sua própria
cultura, onde seus pares são comidos (ALMEIDA, 1999).
85
construção da identidade nacional. Esses são elementos que podem ser estendidos aos textos
que vêm sendo analisados.
Heloisa Toller Gomes faz um histórico da antropofagia, mostrando seu legado que
“tem sido vasto, atingindo a cultura brasileira em áreas diversas” como “o tropicalismo dos
anos 60 e o Cinema Novo”.
206
Partindo do Manifesto da Revista de Antropofagia,
207
revela-se
a participação de diversos intelectuais no movimento:
Guilherme de Almeida, Marques Rebelo, Guilherme César, Menotti Del Picchia,
Abgar Renault, Plínio Salgado, José Américo de Almeida, Sérgio Milliet, Antonio
de Alcântara Machado, Ascanio Lopes, Ascenso Ferreira, Augusto Meyer, Yan de
Almeida Prado, Josué de Castro, Pedro Nava, San Tiago Dantas, Camara Cascudo,
Augusto Schimidt, Raul Bopp, Eneida, Mario de Andrade. Artistas como Tarsila do
Amaral e Pagu.
208
A esses nomes, acrescentam-se ainda os poetas Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Nessa construção coletiva, a autora
mostra o grande esforço que tais intelectuais empreenderam para refletir sobre a cultura
nacional de uma maneira ampla. Revela-se o “antropófago” como intelectual brasileiro.
Depois disso, o artigo associa o movimento antropofágico à questão da utopia. A
autora revela o “não-lugar” que a antropofagia provoca, resgatando o indígena como figura
originária. Segundo a autora, “toda a ênfase dada por Oswald e pelos ‘antropófagos’ ao
elemento indígena (núcleo da metáfora central da antropofagia) diz respeito a um índio
emblemático, figurado e mítico.”
209
Heloisa Toller, com base em Haroldo de Campos, aproxima, o “selvagem
antropófago”, de Oswald de Andrade, não do “bom selvagem”, segundo Jean-Jacques
Rousseau, mas do “mau selvagem” de Montaigne.
210
Tal aproximação delimita o pensamento
de Oswald no sentido de romper com as imposições morais e culturais européias. Assim, “na
206
GOMES, 2005, p. 35.
207
ANDRADE, 1976.
208
GOMES, op. cit., p. 37.
209
Ibidem, p. 41.
210
Ibidem, p. 41.
86
rejeição de falsos purismos, de cópias subservientes ou de xenofobias redutoras, a
Antropofagia condenava o indianismo, em sua feição ufanista e romântica.”
211
A autora não apenas distancia o movimento intelectual e artístico da Revista de
Antropofagia, de 1928, do romantismo brasileiro, como também mostra a diferença existente
em relação às vanguardas européias. O artigo ressalta que o Manifesto de Oswald de Andrade
não se aproxima do olhar europeu da Revista Canibale, editada por Tristan Tzara e Francis
Picabia. No Manifesto, “a proposta relativa à identidade cultural brasileira toma ali a forma de
uma estratégia cultural que, sem pretender englobar uma leitura consistente da nossa realidade
social (ou política, ou econômica), aponta para o espaço da utopia.”
212
E o mais importante é
que essa utopia não é aquela projetada pela Europa sobre o “novo mundo”.
Heloisa Toller Gomes mostra que o intelectual foi quem assumiu o lugar do
antropófago no movimento antropofágico encabeçado por Oswald de Andrade. Esse
intelectual, segundo a autora, contribui para a construção de uma identidade cultural nacional.
Nesse processo de construção, principalmente em relação ao Manifesto de Oswald, constitui-
se o espaço da utopia.
Considerando os vários aspectos enfocados, é possível discuti-los nos textos de Darcy
Ribeiro e de Glauber Rocha. Nas próximas seções, será mostrado como os intelectuais
participam desse movimento de deglutição cultural.
211
GOMES, 2005, p. 42.
212
Ibidem, p. 43.
87
3.3 REVISITANDO A ANTROPOFAGIA EM UTOPIA SELVAGEM
No âmbito da bibliografia crítica sobre Utopia Selvagem, destacam-se dois textos que
estudaram a antropofagia na fábula de Darcy Ribeiro. O primeiro é da autoria de João
Domingues Maia
213
e o segundo é de Susana Célia Leandro Scramim.
214
João Domingues Maia aborda a paródia em Utopia Selvagem mostrando as alusões e
as apropriações que Darcy Ribeiro faz de textos europeus como: Hans Staden,
215
Thomas
Morus,
216
Rousseau
217
e Voltaire.
218
Com base na subversão das relações hierárquicas entre os
textos do colonizado em relação ao colonizador, João Domingues Maia trata da antropofagia.
Ao enfocar o personagem Calibã, de Darcy Ribeiro, João Domingues Maia se reporta
ao texto Calibán y otros ensayos, de Roberto Fernández Retamar, ampliando o sentido da
antropofagia para a América Latina. Partindo desse aspecto, crê-se que a antropofagia deixa
de ser apenas estudada, no âmbito da linguagem, com base na paródia, para se estender a um
campo político. Essa abordagem tem confluência com o sentido da antropofagia para Glauber
Rocha, como ato político.
No livro Calibán y otros Ensayos, Roberto Retamar retoma William Shakespeare
relendo o Calibã como símbolo de resistência latino-americano. O filósofo cubano afirma que
até então os latino-americanos estiveram aficcionados a essa versão européia da selvageria
que aqui existia, provando o envolvimento profundo na “ideologia do inimigo”.
219
O prefácio, em português, ao livro Calibã e outros ensaios foi escrito por Darcy
Ribeiro. Segundo o antropólogo, o livro de Roberto Fernández Retamar é importante, pois
“no plano intelectual, Roberto, a seu modo, encarna a consciência crítica latino-americana
213
MAIA, 1985.
214
SCRAMIM, 2000.
215
MAIA, op. cit., p. 62.
216
Ibidem, p. 63.
217
Ibidem, p. 63.
218
Ibidem, p. 64.
219
RETAMAR, 1979, p. 18.
88
como cubano assumido, Martiniano professo e fidelista fiel”.
220
Darcy Ribeiro compartilha
com Retamar da crença em uma América Latina unida e descolonizada, conforme Nossa
América, de José Martí.
221
Ainda no prefácio do livro do autor cubano, Darcy Ribeiro afirma:
Roberto recapitula conosco a Shakespeare e Montaigne, a Thomas Morus, a
Rousseau, e a quantos pensadores mais se ocuparam de s, lendo e relendo seus
textos, bem como os escritos de Andrés BelloK, de Sarmiento, de Martí, ou de
Alfonso Reyes, de Ureña, de Mariátegui e de Marinello.
Num esforço ingente com base nestas vivências, nestas leituras e em suas
meditações, o filósofo Retamar recompõe os caminhos pelos quais viemos sendo o
que fomos; configura o ser que hoje somos; e ainda antevê as promessas que
portamos, delineando destinações que a história teima em negar e a filosofia insiste
em postular.
222
Não cabe dizer que Darcy Ribeiro se espelha no intelectual cubano para trazer
ficcionalmente as críticas tecidas aos olhares sobre a América Latina, mas é inegável a
aproximação que se entre essa obra e Utopia Selvagem, principalmente pelas referências
que os ensaios de Retamar possuem, textos também assimilados e modificados pelo
antropólogo, como se viu através de João Domingues Maia. Nessa direção, em “A recepção
crítica de Darcy Ribeiro na América Latina”, Haydée Ribeiro Coelho mostrou que: “Retamar
recorda que Darcy, tendo lhe enviado a fábula Utopia Selvagem, escreveu à frente do texto:
‘Para mi Hermano cubano, que me servió de modelo para crear Pitum’.”
223
Ressaltou, ainda,
que “no texto antropológico Calibã e outros ensaios, o crítico cubano afirma, em nota de
rodapé, que se baseou em algumas idéias, expressas pelo antropólogo brasileiro, em Américas
e a civilização”.
224
A partir do que foi estudado por João Domingues Maia, pode-se dizer que o crítico
contribui para a identificação da antropofagia no texto do antropólogo assim como sinaliza
para a sua ampliação no âmbito da América Latina.
220
RIBEIRO, 1988, p. 7.
221
MARTÍ, 1891.
222
RIBEIRO, op. cit., p. 9.
223
COELHO, 2000b, p. 95.
224
Ibidem, p. 95.
89
Tanto no texto de Heloisa Toller Gomes como naquele de João Domingues Maia, a
antropofagia está relacionada ao conceito de utopia. Para Susana Célia Leandro Scramim,
com base na obra de Darcy Ribeiro, a utopia possui vários meandros como: espacial,
temporal, educacional, revolucionária, e nacional. Nesse trabalho, é importante que sejam
destacadas perspectivas que estão relacionadas à idéia de antropofagia como utopia nacional e
revolucionária, que acenam para um futuro.
Para a autora, Darcy Ribeiro propunha uma utopia educacional, a partir de um projeto
para a educação, que seria o agente desse discurso de transformação. A nação seria, por fim,
esse objetivo utópico maior no pensamento do antropólogo, objetivo esse que é esmiuçado
pela autora no intuito de relacionar o pensamento de Darcy Ribeiro com suas variantes
políticas, filosóficas, educacionais e literárias.
Susana Célia Leandro Scramim, no entanto, não chega a desenvolver uma análise de
Utopia Selvagem com base nos discursos da fábula. Ela se detém no que chama de
“identidade flutuante”, a partir do estudo do personagem Carvalhal/Pitum/Orelhão e suas
mudanças identitárias entre as Icamiabas e entre os Galibis.
A tese de Susana Scramim se concentra no estudo da antropofagia textual que ocorre
na fábula, algo realizado por João Domingues Maia; porém, sua novidade está em
identificar que essas apropriações feitas por Darcy Ribeiro dizem respeito a uma utopia do
futuro, organizando elementos do presente, para que essa utopia se concretize.
Para concluir, a respeito dos estudos existentes sobre Utopia Selvagem, é necessário
lembrar que a análise de João Domingues Maia sobre a fábula foi a primeira no Brasil,
destacando, de forma pioneira, o diálogo de Darcy Ribeiro com a América Latina, em
decorrência da remissão ao texto de Roberto Fernández Retamar. Sob essa perspectiva, é
possível refletir sobre a antropofagia em A Idade da Terra, relacionando-a também à América
Latina.
90
3.4 A ANTROPOFAGIA EM GLAUBER ROCHA
O artigo “Terra de fome e sonho: o paraíso material de Glauber Rocha”, de Ivana
Bentes, possibilita aproximar Glauber Rocha ao modernismo antropofágico de Oswald de
Andrade. O texto trata das relações existentes entre os dois manifestos do cineasta “Uma
Estética da Fome e “Estética do Sonho” com a sua produção fílmica. Assim, traz uma
discussão da “revolução mística” aliada à “pedagogia da violência”, em Glauber.
A partir da fome e do sonho, no contexto de A Idade da Terra,
Glauber Rocha procura mostrar que toda ordem, estrutura ou indivíduo poderá ser
submetida, confrontada a um transe ou crise radicais, capazes de despertar um
pensamento que nasce dessa violência. E encontra esse transe em manifestações
como o Candomblé, o transe místico e o Carnaval, mas também na instabilidade
estrutural que constitui o imaginário político latino-americano.
225
Da constatação de uma preferência do cineasta pelo Carnaval, o Candomblé e o transe
místico como essenciais na produção do filme, a autora passa a estudar o transe que associa a
uma crise encenada. Nela, a paisagem é um elemento importante. Além de simbolizar os
espaços hierárquicos que podem ser transgredidos, as paisagens complementam os
personagens, auxiliando na determinação dos locais de enunciação. Para Bentes,
a paisagem ou o meio é importante figura conceitual na ‘tropicologia’ oswaldiana e
glauberiana. Na tradição brasileira, a idéia de uma dissolução do sujeito está
fortemente ligada a uma espécie de dissolução na paisagem: derreter-se ou deixar-se
vencer pelos trópicos.
226
Com base na afirmação anterior, a aproximação entre Glauber Rocha e Oswald de
Andrade se realiza na “preferência” pelo sujeito fixado em uma paisagem tropical. Em
Glauber Rocha, os personagens confluem com a paisagem, e “a cultura é mostrada não como
algo que se opõe a natureza, mas como a natureza é continuada por outros meios”.
227
225
BENTES, 2002, p. 5.
226
Ibidem, p. 7-8.
227
Ibidem, p. 8.
91
Desde “Uma estética da fome”, em 1965, que a “fome” pode ser relacionada à
antropofagia:
As metáforas da fome e da devoração já tinham alimentado o modernismo de 1922,
a teoria antropofágica de Oswald de Andrade e chegou [ao cinema de Glauber
Rocha] atualizada pelo movimento pop-tropicalista brasileiro, nos anos 70, uma
devoração típica da cultura de massas e sua ‘geléia geral’.
228
Apesar de óbvia essa relação entre a fome, a antropofagia, e o cinema de Glauber
Rocha, é necessário problematizar esse cinema e sua relação com a antropofagia nas décadas
de 1960 e 1970. “No Brasil”, a fome
é um tema recorrente do Cinema Novo, que explodiu nos anos 60. A fome, diz
Glauber, foi tratada nesses filmes de modo fenomenológico, social, político,
estético, demagógico, experimental, documental, cômico. Mas sua proposta iria
além: transformar a fome em ‘princípio’, uma espécie de ‘impensado’ latino-
americano, capaz de funcionar como motor de um pensamento, novo.
229
É inegável esse caráter político do cinema glauberiano, sobretudo em A Idade da
Terra. Esse filme de Glauber traz a utopia latino-americana como pano de fundo na luta do
Cristo Negro e do Cristo Guerrilheiro em sua oposição ao Brahms neocolonizador, e do Cristo
Índio contra os resquícios inclusive religiosos da colonização. Já o Cristo Militar anuncia
o apocalipse no roteiro, a partir do abalo das estruturas.
O tempo do filme remete a um presente apocalíptico; porém, acena para um futuro
diferente, uma utopia futura do latino-americano, ou um Terceiro Mundo que passa a ser
escutado depois da catástrofe dentro de uma perspectiva revolucionária. O anúncio da
catástrofe pelo Cristo Militar sinaliza o fim de um mundo como se conheceu, e aponta para
uma utopia, inclusive, identitária a partir de quatro Cristos de etnias e orientações políticas
diferentes.
O texto de Glauber Rocha se aproxima de Utopia Selvagem, ao realizar esse
movimento político e utópico pela estratégia antropofágica. Nessa busca, o Cinema Novo
228
BENTES, 2002, p. 1.
229
Ibidem, p. 1.
92
encontra seu caminho na luta pela transformação social, ao representar a realidade do latino-
americano a partir do brasileiro.
Constata-se que essa construção textual de Glauber, em A Idade da Terra, também
engloba uma proposta voltada para o futuro que se vincula ao conceito de “utopia”, como
abordado por Susana Célia Leandro Scramim a respeito do pensamento de Darcy Ribeiro. Tal
conceito é complexo, pois prevê um inacabamento, um povo em construção.
230
Em A Idade da Terra, na construção de uma utopia, o cineasta busca, no povo, as
forças e sinais que se direcionam para a revolução. Ao representar o Cristo quadripartido,
Glauber Rocha questiona a tradição européia. O povo aparece em diversas cenas. Em
algumas, está submetido ao poder de Brahms na construção de sua pirâmide. Quando ao lado
dos Cristos, o povo está em êxtase e o clima é de esperança e alegria. Junto com o povo, o
Cristo Negro opera milagres; o Cristo Índio sai em procissão; o Cristo Militar desfila no
carnaval; e o Cristo Guerrilheiro, em oposição ao opressor, se faz presente em uma favela no
Rio de Janeiro.
Há uma possibilidade de os militares serem vistos como sujeitos da mudança social, ao
menos em busca do fim daquele regime. Essa perspectiva ambígua entra em cena no
momento em que Glauber Rocha insere o povo ao lado de Cristos em ressurreição. Tais
Cristos têm como papel a salvação de seu povo. Vê-se essa ambigüidade em A Idade da
Terra, quando o Cristo Militar constitui o poder que apóia o imperialismo de Brahms e, em
outra cena, é o arauto do fim apocalíptico que representa a mudança.
Atravessando o roteiro, como Glauber Rocha “em offe, na tela, sendo enquadrado
pela câmera, o cineasta, o diretor e o crítico se registram na narrativa de um Jesus Cristo não-
cristão, mas revisitado. Glauber Rocha, “em off”, representa o “Calibã” do roteiro e do filme
A Idade da Terra, expondo um extravasamento do próprio roteirista. Dividido entre dirigir,
230
SCRAMIM, 2000.
93
montar e escrever o roteiro, Glauber Rocha não pode ser considerado um mero personagem
ou narrador.
Em A Idade da Terra, como se disse, não protagonismo ou antagonismo, mas
uma narrativa fragmentada, cujos atores assumem ora papel de figuração, ora foco da câmera,
não comprometendo a integridade do desenvolvimento do tema utópico. A narrativa se divide
e acompanha a multiplicidade dos discursos de seus personagens.
Tal pluralidade exposta e identificada nas vozes no filme é o que garante a
carnavalização no texto glauberiano
231
e seu sentido antropofágico, refazendo o olhar de sua
cultura nas diversas releituras das paisagens Brasília, Bahia e Rio de Janeiro assim como
de figuras públicas como o Jornalista Castelo Branco, o escritor João Ubaldo Ribeiro, o cantor
Jamelão na trilha sonora, o poeta Ary Pararraios, todos dissolvidos” no caldeirão de A Idade
da Terra.
Portanto, a antropofagia se manifesta não apenas na apropriação do Cristo europeu
(exocanibalismo), como também de uma apropriação da própria cultura no texto artístico.
Glauber Rocha apresenta personagens baseados em representações alojadas no imaginário
social latino-americano como o negro, o índio, o militar e o guerrilheiro (endocanibalismo).
Desses personagens, ensaia-se a utopia latino-americana com base na antropofagia por ele
exercida.
Nesse processo utópico, que se volta para a mudança da realidade pela antropofagia,
sob a “Estética do Sonho” em A Idade da Terra, Glauber Rocha realiza uma produção em que
o “alegórico” ou “metafísico” tem “a força de uma verdade”.
232
231
Aqui, a carnavalização é entendida do mesmo modo com que João Domingues Maia a entende em Utopia
Selvagem no contexto de estudo da paródia: “A teoria da carnavalização amplia o sentido do termo [paródia]. A
paródia carnavalesca seria um tipo de percepção vasta e popular, caracterizada por uma visão às avessas: uma
oposição ao sério, ao tradicional, ao dogmático, ao oficial, numa atitude de dessacralização, recusando o
absoluto da ordem oficial” (MAIA, 1985, p. 12). A partir da análise do crítico é possível estender a
carnavalização descoberta na fábula ao roteiro do cineasta.
232
BENTES, 2002, p. 6.
94
É desse modo que Glauber Rocha se insere na tradição antropofágica brasileira.
Porém, ao perceber que não apenas a cultura do “outro” é “comida”, mas que também a sua
cultura e seus artistas entram na “roda antropofágica”, vê-se que a antropofagia tanto de
Darcy quanto de Glauber não é aquela mesma de Oswald e Mário de Andrade.
Com base na crítica comentada e nas vozes estudadas no segundo capítulo, conclui-se
que a antropofagia em Glauber Rocha não ocorre com o foco no nacional, mas se estende para
a América Latina na construção de uma utopia. Também se observa que uma absorção
tanto das tradições européias e norte-americanas quanto de elementos nacionais para a
assunção dessa nova perspectiva antropofágica.
Deve-se lembrar que o que mais contribui para isso é o contexto sociopolítico-cultural
vivido pelos dois intelectuais, diferente daquele de 1928, em que os intelectuais brasileiros
entraram em contato com os hispano-americanos no exílio,
233
quando a América Latina
constituiu uma alteridade.
234
Mesmo aproximando-se de Oswald e Mário de Andrade pela prática artística, como
mostrou Susana Scramim, e como afirmado pelo antropólogo inúmeras vezes, Darcy Ribeiro
e como se viu Glauber Rocha, conforme apontado por Ivana Bentes, distanciam-se deles
na construção de seus textos, ampliando o foco do canibal nacional para o Calibã latino-
americano, lavando os olhos e compondo espelhos para essa América Latina se ver.
235
Para Darcy Ribeiro, Glauber Rocha é um dos artistas que compõem esses espelhos.
Nas palavras do antropólogo:
Glauber não é simples. Ele é a encarnação mais veemente da alma brasileira. Artista
é aquele que pode dar o espelho a seu povo. A maior parte não fabrica coisa
nenhuma. O grande artista é o que dá um espelho para que o povo possa se
reconhecer.
Glauber era um apaixonado. Passei horas com o Glauber chorando, chorando a
desgraça do país, a merda em que estava o Brasil. Glauber sofria o povo com fome,
233
COELHO, 1998; 2000a; 2002a; 2002b; 2005.
234
Idem, 2003.
235
RIBEIRO, 1986, p. 33.
95
os trombadinhas, os milhões de crianças se organizando. Glauber falava frianmente
(sic) disso. É essa paixão de artista que pode construir os espelhos.
236
Ao tratar Glauber Rocha como compositor de espelhos do povo, o antropólogo faz do
cineasta o seu espelho. Nesse movimento de reflexo e reflexão, o cineasta ri em seu filme até
mesmo com Brahms que, na surubada com sua mulher e com o Cristo Guerrilheiro, “come” e
é “comido”, ironiza e é ironizado.
O cineasta parece rir mais ainda, quando intervém, no roteiro e no filme A Idade da
Terra, rejeitando a oposição entre socialismo versus capitalismo” e atentando para a noção
de “países pobres versus países ricos”. Essa deglutição se inclui no âmbito da diferenciação
entre o movimento antropofágico e o projeto antropofágico nos textos de Darcy Ribeiro e de
Glauber Rocha.
Em frente à câmera, conversando com o ator que interpreta o Cristo Guerrilheiro, ou
em suas falas “em off”, desde o roteiro, Glauber Rocha lança críticas e análises que se
misturam às cenas descritas. Transformando a arte em espelhos, como concebe Darcy Ribeiro,
a antropofagia motivou o estudo do diálogo entre os intelectuais.
236
RIBEIRO, Darcy. Trechos de entrevista sobre Glauber Rocha. Arquivo Darcy Ribeiro, série produção
intelectual do titular. Fundação Darcy Ribeiro. Repórter ZCV/Redator ZVC/Editora PAR. Edição 17/07.
Quarta/Data: 16/07/1991. Início 18:37/Fim: 11:24. 59 linhas.
CONCLUSÃO
97
Este trabalho demonstrou a interlocução entre Darcy Ribeiro e Glauber Rocha. A
análise do primeiro capítulo resultou na possibilidade de entender o último capítulo de Utopia
Selvagem, saudades da inocência perdida como um possível “roteiro” para Glauber Rocha
filmar. O conceito de tradução intersemiótica permitiu evidenciar as técnicas narrativas,
utilizadas como potencialidades visuais.
O diálogo de Darcy Ribeiro com o cinema foi estudado com base na análise dos
elementos encontrados na fábula e no roteiro, tais como: a dinâmica representada por verbos
de movimento, as indicações e detalhamento de lugares, personagens, e suas posições no
cenário; o narrador que se assemelha ao olho da câmera; as frases curtas da fábula que se
aproximam das indicações de cena no roteiro; a preferência de Darcy Ribeiro por construir o
texto justapondo planos narrativos, criando imagens sonoras e visuais.
Assim, percebi que a fábula não possui somente elementos fílmicos como também se
assemelha à construção fílmica de Glauber Rocha, sobretudo, no que diz respeito à
linearidade narrativa, à visualidade, e à utilização de digressão que aprofunda questões
políticas e filosóficas.
O segundo capítulo apresentou as vozes dos Cristos e de Brahms em A Idade da Terra.
Assinalou-se a vinculação existente entre as vozes dos personagens e os espaços dos quais
falavam, conforme as indicações de cena do roteiro. Por fim, foi mostrado que havia uma
dramatização no texto, manifestada na marcação das cenas. O trânsito existente entre as
posições ideológicas das vozes dos personagens demonstrou: o Cristo Negro e o Cristo Índio
contra Brahms; o Cristo Guerrilheiro contrapondo Brahms, afiliando-se de modo irônico a ele
enquanto “seu filho e herdeiro”; o Cristo Militar próximo de Brahms, representante de uma
elite latino-americana que se sujeita ao pensamento imperialista. Mesmo, na voz do Cristo
Militar, na maioria as cenas, ao lado de Brahms, foi possível identificar todos os Cristos com
98
o (neo) colonizado e Brahms com o (neo) colonizador. Foi evidenciado que a ironia está
presente tanto no texto de Glauber Rocha (roteiro) quanto no de Darcy Ribeiro.
Em Utopia Selvagem, as posições ideológicas também foram identificadas: o Calibã se
contrapõe a Uxa e Tivi, representantes de um mundo que pretende colonizar os Galibis;
Carvalhal (também Pitum e Orelhão), como mediador da narrativa, transita entre os mundos
letrado e iletrado (o do Brasil em guerra com as Guianas, o das Amazonas/Icamiabas e o da
tribo dos Galibis).
Assim como Brahms, nota-se que Pitum é um estranho, um estrangeiro. Diferente de
Brahms, no entanto, Carvalhal/Pitum/Orelhão não defende uma neocolonização, constituindo-
se como instrumento do narrador para ver de dentro o mundo dos Galibis.
Ao explicitar a oposição entre Primeiro e Terceiro Mundo, ou Sul ao Norte do mundo,
por meio dessas vozes e metáforas, descobre-se um desejo de transformação sociopolítica.
Darcy Ribeiro evoca a figura de um Calibã que propicia refletir sobre a condição latino-
americana.
No terceiro capítulo, a confluência das vozes nessa relação entre colonizado e
colonizador, ou do imperialismo para com os países do Terceiro Mundo foi estudada. A
exemplo da relação lúdica entre Calibã e as monjas, vê-se o jogo de poderes entre os Cristos
Negro, Guerrilheiro e Índio com o Brahms.
Ao pensar a antropofagia como campo de saber, é possível ressaltar que a prática
antropofágica constrói identidades, desde o Manifesto oswaldiano. No entanto, diferente do
que está em Oswald de Andrade, aponta, no texto do cineasta e do antropólogo, para um outro
lugar, um outro estado de coisas, um futuro. A antropofagia se torna espaço de utopia e de
sua dimensão política, considerando as décadas de 70 e 80.
Ao revisitar a crítica de Utopia Selvagem, no que diz respeito à antropofagia, foi
possível perceber que a fábula possui tanto a dimensão utópica como política. Notei a ligação
99
existente em Darcy Ribeiro com a intelectualidade latino-americana. Também revisitei a
ligação de Glauber Rocha com essa tradição desde seu manifesto “Uma Estética da Fome”
que, ao pensar em um Cinema Novo latino-americano, já se remetia a um olhar antropofágico.
De acordo com Confissões, de Darcy Ribeiro, Glauber Rocha acompanhava-o em
todos os exílios
237
. Em contrapartida, Darcy Ribeiro demonstra sua grande amizade pelo
companheiro inseparável de idéias e textos. Não é à toa que Darcy Ribeiro despede-se do
amigo com uma oração fúnebre.
As interfaces entre os percursos dos dois intelectuais merecem outros
aprofundamentos que serão realizados oportunamente.
237
RIBEIRO, 1997a, p. 449.
100
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1964. 1 fita de vídeo (125 min.) 35mm, VHS, NTSC.
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Embrafilme/CPC, 1980. 1 fita de vídeo (160 min.) 35mm, VHS, NTSC.
MACUNAÍMA. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Rio de Janeiro: Grupo Filmes/Condor
Filmes/Filmes do Serro/Embrafilme, 1969. 1 fita de vídeo (108 min.) 35mm, VHS, NTSC.
TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. São Paulo: Vídeo Três S.A., 2000. 1 fita de
vídeo (115 min.) 35mm, VHS, NTSC.
VIDAS Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Sino Filmes, 1963. 1 fita de vídeo (105
min.), 35mm, VHS, NTSC.
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