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TICIANE RENATA AUKO
Experiências com um grupo de crianças e mães em
situação de violência intrafamiliar atendidas na
brinquedoteca: um estudo psicanalítico
PUC - CAMPINAS
2007
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TICIANE RENATA AUKO
Experiências com um grupo de crianças e mães em
situação de violência intrafamiliar atendidas na
brinquedoteca: um estudo psicanalítico
PUC - CAMPINAS
2007
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós – Graduação Stricto sensu em
psicologia do Centro de Ciências e Vida
da PUC – Campinas como parte dos
requisitos para obtenção do título de
Mestrado em Psicologia Clínica.
Orientador: Dr. Antonios Térzis
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Ficha Catalográfica
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e
Informação - SBI - PUC-Campinas
t155.646 Auko, Ticiane Renata.
A923e Experiências com um grupo de crianças e mães em situação de violência intrafamiliar
atendidas na brinquedoteca: um estudo psicanalítico / Ticiane Renata Auko.- Campinas:
PUC-Campinas, 2007.
151 p.
Orientado r: Antonios Térzis.
Dissertação (mestrado)
- Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de
Ciências da Vida, Pós-Graduação em Psicologia.
Inclui anexos e bibliografia.
1. Pais e filhos
- Aspectos psicológicos. 2. Violência familiar. 3. Crianças - Maus-
tratos. 4. Brinquedotecas. 5. Psicanálise - Estudo de casos. I. Térzis, Antonios. 11.
Pontifícía Universidade Católica de Campinas. Centro de Ciências da Vida. Pós-Graduação
em Psicologia. 111.Título.
22.ed.CDD - t155.646
Experiências com um grupo de crianças e mães em
situação de violência intrafamiliar atendidas na
brinquedoteca: um estudo psicanalítico
Banca Examinadora:
Presidente Prof. Dr. Antonios Térzis
ProF. Dr.a eloí a de Souza Camargo Pieri
ProF. Dr.a Vera Lúcia Rezende
Campinas, 09 de fevereiro de 2007
Aos meus amados pais, João Auko Neto e
Ednéia Aparecida de Andrade Auko, pelo
apoio, pelo exemplo de vida e por terem
favorecido o meu desenvolvimento. Sem
eles, nada disso teria sido possível.
AGRADECIMENTOS
Muitos foram aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram para que
este trabalho fosse realizado. É impossível citar todos, mas gostaria de expressar
meu reconhecimento. Não posso, entretanto, deixar de mencionar alguns que
foram tão próximos:
À Minha família por estar presente desde o momento em que decidi realizar o
mestrado, por terem me ajudado a sustentar e realizar este sonho.
Ao Gustavo, por tanto amor, paciência e carinho durante todo esse meu percurso.
Á Janaína que além de grande amiga, esteve tão presente, seja ouvindo minhas
queixas, alegrias ou fazendo correções em meu texto.
À Maria Isabel Guimarães Penteado, que tem me ensinado a prática do “viver
bem”! Que me mostrou a riqueza do lúdico e tem sido tão amiga.
Às profissionais e amigas do Programa ReCriando: Bel, Terezinha, Giselle,
Cláudia Giovanna, Rachel e Daniela, que dividem comigo o sonho de um trabalho,
e que foram tão participativas e colaboradoras.
Ao S.O.S Ação Mulher e Família que me aceitou como voluntária e possibilitou a
realização desta pesquisa.
À Heloisa Pieri, por ter sido uma supervisora e colaboradora suficientemente boa,
presente em meu crescimento pessoal e profissional, sempre presenteando-me
com preciosas idéias.
Á Ruthi Ciqueira Leite pela atenção nos momentos de dúvidas e incertezas,
enquanto supervisionava os atendimentos realizados no programa ReCriando.
À minha terapeuta, Heloísa Sampaio, que tanto tem me auxiliado, especialmente
na tentativa de compreender o turbilhão de emoções que este desafio despertou.
À Giselle e ao Robert pela contribuição na elaboração do abstract.
Às famílias, crianças e mães, que prontamente aceitaram participar desta
pesquisa.
Aos amigos que fiz durante este caminho e que me ajudaram a passar por todo
processo com mais alegria, em especial a Mirian, a Tatiana, a Ana Paulo e a Thais
que sempre me trataram com respeito e carinho e sem dúvida torcem para o meu
sucesso.
Aos professores de todas as disciplinas, por seus ensinamentos preciosos. E a
professora Tânia Vaisberg que forneceu contribuições decisivas para este
trabalho, tanto em suas aulas, quanto na qualificação.
Por fim, ao meu orientador Prof. Antonios Térzis, por compartilhar seus
conhecimentos e vivências profissionais, por ter sido tão acolhedor e favorecedor
do meu crescimento emocional e profissional. A quem devo a concretização deste
trabalho.
MUITO OBRIGADA!
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 1
1. INTRODUÇÃO .....................................................................................................4
1.1. O Programa ReCriando......................................................................... 4
1.2. Brinquedoteca: espaço transformador ................................................15
1.3. Grupo de crianças e familiares: considerações básica.....................21
1.4. Principais idéias da Escola Francesa ..............................................36
2. OBJETIVOS .....................................................................................................50
3. ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS..................................................................51
3. 1. Participantes .................................................................................... .51
3. 2. Campo de pesquisa: a Brinquedoteca................................................ 43
3.3. Instrumento – Técnica adotada ........................................................... 54
3.4. Procedimento .......................................................................................56
3.5. Análise do material .............................................................................. 60
4. ANÁLISE DOS ENCONTROS............................................................................64
4.1 – Análise do primeiro encontro...............................................................64
4.2 - Análise do terceiro encontro ...............................................................85
4.3 – Análise do sexto encontro ............................................................. .105
5. DISCUSSÃO ................................................................................................... 126
7. CONCLUSÕES ...................................................................................... 136
8. REFERÊNCIAS .................... ........................................................................ .138
9. ANEXOS ......................................................................................................... 151
Vem, filho meu,
Me leva nessa estrada
De anões, dragões e fadas
Que habitam teu quintal...
Me dá tua mão,
Me leva passear.
No teu mundo encantado
O bicho papão não vai pegar.
Vem, filho meu,
Vem me fazer contente.
Que a vida raramente
Convida a gente pra brincar
(FILHO MEU – Toquinho)
RESUMO
Auko, T. R. (2007). Experiências com um grupo de crianças e mães em situação
de violência intrafamiliar atendidas na brinquedoteca: um estudo psicanalítico.
Dissertação de Mestrado, PUC – Campinas, Campinas.
A presente pesquisa teve como finalidade apresentar experiências com um grupo
de crianças e suas mães que vivem em situação de violência intrafamiliar e são
atendidas na brinquedoteca do Programa ReCriando, bem como analisar essas
experiências buscando: estudar o processo grupal, investigar alguns aspectos
emocionais deste processo e, por fim, compreender se a técnica de grupo foi
suficiente para sensibilizar os participantes para conteúdos emocionais. O método
escolhido foi o método clínico psicanalítico. Participaram da pesquisa quatro
crianças com idades de 6-9 anos, sendo uma menina e três meninos e suas
respectivas mães. O instrumento utilizado foi o “grupo diagnóstico”, que, além de
pretender construir um psicodiagnóstico, teve como objetivo favorecer aos
participantes do grupo condições para resolverem alguns dos problemas e
conflitos que os acometem. Foram realizados seis encontros, com duração de três
horas cada, sendo que, desses, apenas três fizeram parte da análise, na qual o
relato do encontro foi pensado como se fosse o relato de um sonho e interpretado
de acordo com o referencial psicanalítico e grupanalítico. Esse estudo possibilitou
a compreensão de alguns dos fenômenos grupais, como o acting out, a
transferência, a condição de espelhamento e outros. Permitiu concluir que o
processo grupal foi um contínuo. No decorrer dos encontros, o grupo passou a
utilizar organizadores psíquicos mais “amadurecidos” e os mecanismos de defesa,
que eram geralmente primitivos, foram substituídos por outros menos arcaicos.
Constatamos, ainda, que a técnica grupal, aplicada na brinquedoteca, propiciou
um ambiente enriquecedor, suficiente para sensibilizar os participantes para suas
emoções, além de ter favorecido a ressignificação de alguns conflitos, percebidos
em mudanças no jeito de ser e de se relacionar consigo e com o outro.
Palavras – chave: grupo; violência intrafamiliar; brinquedoteca; psicanálise.
ABSTRACT
Auko, T. R. (2007). Experience with a group of children and mothers in an
intrafamily violence situation who were attended at toylibrary: a psychoanalytical
study. Master’s Dissertation. PUC – Campinas, Campinas.
This research had as purpose to show experiences with a group of children
and their mothers who live in an intrafamily violence situation and who were
attended at the ReCriando Programme’s toylibrary, as well as analysing those
experiences, searching for: investigating some emotional aspects in the group
process; understanding if the group technique was enough to make the members
sensitive to emotional contents; and finally, studying the group process. The
method chosen was the clinical psychoanalistycal method. Four children, one girl
and three boys, between 6 and 9 years old and their respectives mothers
participated in this research. The instrument used was the “group diagnosis” that
besides to intend making a psychodiagnosis it had as objective to help the group
members developing skills to solve some of trouble and conflict which assail them.
There were six meetings, each one lasted three hours, however only three of them
were part of this analysis in which the narration of the meeting was thought as an
narration of a dream and interpreted in accordance with psychoanalytical and
groupanalytical reference. This study made possible the understanding of some of
the group phenomenon as the acting out, the transference, the mirror condition and
others. It permitted us concluding that the group process was a continuous, in the
course of the meetings the group became using psyche organizer more “mature”
and the defense mechanism that were primitive, in general, they were substitued
for other less archaics. We verified that the group technique applied at toylibrary
provides a rich atmosphere enough to make the members sensitive to their
feelings, besides it had help the remeaning of some conflict that could be note by
the change in themselves and in the relationship between themselves and the
others.
Key-word: group; intrafamilial violence; toylibrary; psychoanalysis
1
APRESENTAÇÃO
Desde a graduação em psicologia, percebia-me motivada em trabalhar e
estudar a família em situação de violência. No início, minha atenção estava
voltada principalmente para a criança e as conseqüências que essa situação
causava. Com esta proposta, iniciei minha participação no programa “Recriando -
um espaço de reflexão e transformação da violência doméstica” em abril de 2001,
sendo que o mesmo havia principiado em fevereiro daquele mesmo ano.
Destinado às crianças e seus familiares, este programa tem como objetivo
desenvolver um espaço de acolhimento e possibilidades de intervenções, usando
como linguagem o brinquedo e a brincadeira, a fim de proporcionar a expressão e
favorecer a ressignificação das experiências vivenciadas, contribuindo para a
“transformação” do contexto de violência intrafamiliar.
Com o desenrolar do programa, questionei algumas de minhas idéias
previamente concebidas e, influenciada pelas observações de toda a equipe,
percebi que considerar a criança como entidade isolada não tinha consistência,
passando, então, a vê-la como um sujeito social, que existe a partir de suas
relações com o ambiente, priorizando o atendimento familiar e grupal.
Com a vivência no programa, também pude constatar o que Gonçalves
(2003) relata sobre a dificuldade encontrada em trabalhar com a violência
intrafamiliar, sendo os resultados, muitas vezes, menores do que o que se planeja,
visto a própria complexidade da sua definição e de suas múltiplas causas.
2
Porém, é evidente a importância de pesquisas que colaborem para o
rompimento do círculo da violência intrafamiliar, contribuindo, possivelmente, para
a prevenção da violência que, hoje, é um dos principais problemas que nossa
sociedade enfrenta.
Na tentativa de buscar caminhos no enfrentamento dessa situação e
motivada por relatos de crianças e familiares sobre suas vivências com o brincar
nesse local privilegiado, tenho refletido sobre o potencial terapêutico da
experiência de grupo na brinquedoteca. Muitos autores têm discutido sobre a
relevância de estudar enquadres clínicos diferenciados, entre eles Aiello –
Vaisberg (2004), que, em sua experiência, percebe o enquadre diferenciado
(oficinas psicoterapêuticas, consulta terapêutica, e outros) como a criação de um
mundo paralelo que favorece a expressão subjetiva e as experiências mutativas,
que permitem o resgate da continuidade do ser e a possibilidade de sentir a vida
pessoal como real e verdadeira, favorecendo gestos transformadores e criativos.
Outros autores enfatizam a possibilidade de aplicar a técnica grupal em
contextos diferenciados como as instituições e escolas, ressaltando que, além de
uma técnica eficaz para a compreensão do indivíduo (o grupo externo ajuda a
compreender o grupo interno, isto é, os processos mentais inconscientes), o grupo
também facilita o estudo de um número maior de pessoas que podem ser
observadas em um mesmo espaço e tempo (Térzis, 2005b & Leal, 1994). Nesse
sentindo, construiu-se a proposta desta pesquisa, que pretendeu refletir sobre o
espaço oferecido pelo ReCriando, segundo o olhar da teoria psicanalítica de
grupo.
3
Para melhor compreensão das questões relacionadas a este trabalho, no
primeiro capítulo - “introdução” - optou-se por, primeiramente fazer uma
apresentação do Programa ReCriando e das questões ligadas a violência
intrafamiliar, desenvolvendo, posteriormente, uma breve explanação sobre a
brinquedoteca - espaço que tem como objetivo favorecer o brincar e, portanto, o
desenvolvimento integral das crianças e familiares – e, finalmente, foram
abordadas algumas considerações sobre a grupalidade, enfatizando os conceitos
e as principais teorias que nortearam a trajetória da pesquisa.
No segundo capítulo, foram expostos os objetivos e, em seguida (terceiro
capítulo), a metodologia utilizada, que se baseia no método psicanalítico e na
técnica grupal. A análise do relato do acontecer clínico foi desenvolvida no quarto
capítulo, no qual, trechos dos atendimentos foram destacados e interpretados
segundo o referencial grupanalítico, possibilitando a compreensão dos fenômenos
grupais. Por fim, desenvolveu-se a discussão, enfatizando o percurso percorrido
pelo grupo e, no último capítulo, foi realizada a apresentação das considerações
finais que a pesquisa possibilitou.
No trabalho, encontra-se, também, a bibliografia consultada para a
elaboração da dissertação e os anexos, que consistem no modelo da carta de
autorização da instituição para realização da pesquisa, assim como, o modelo do
termo de consentimento esclarecido e, ainda, o relato dos encontros realizados
para a construção do material clínico utilizado na pesquisa.
4
1- INTRODUÇÃO
1.1- O programa ReCriando
O S.O.S. Ação Mulher e Família, no qual o programa ReCriando é
desenvolvido, foi fundado em 1980 como ONG de Utilidade Pública Municipal,
trata a violência intrafamiliar e sexual como problema social e de saúde pública,
oferecendo atendimento integral à mulher e à família, numa abordagem
multidisciplinar (jurídico, psicológico e social) com grupos de apoio e programas
preventivos.
O ReCriando surge diante da necessidade de um espaço reflexivo de
transformação da violência intrafamiliar e preventivo de novas ações violentas.
Atende a crianças e seus familiares, utilizando o lúdico como estratégia de
ressignificação da situação de violência.
A atuação dá-se em três modalidades: BrinquedoDia, BrinquedoMês e
Trabalho com a Família. A primeira é uma sessão diagnóstica e ocorre em um
único encontro, com duração de três horas, no qual a equipe tem a oportunidade
de observar a criança em momentos tanto livres, quanto dirigidos e verificar suas
necessidades, visto que a situação de violência pode gerar alguns
comportamentos como: o excesso de agressividade, a apatia, entre outros, o que
é salientado nos estudos de Azevedo e Guerra (1995).
5
A BrinquedoMês, modalidade que pretendo utilizar para o desenvolvimento
do estudo, é uma terapia breve em grupo, centrada no problema da violência
intrafamiliar, acontece em encontros semanais, ao longo de três meses de
trabalho, com duração de três horas cada, com um grupo composto por, no
máximo, oito crianças e suas famílias. Esta modalidade de trabalho contínuo vem
permitindo resultados efetivos no que se refere à forma dessas crianças lidarem
com a situação de violência intrafamiliar, refletindo nos seus relacionamentos no
grupo e fora deste.
O Trabalho com a Família, que, atualmente, vem sendo desenvolvido
principalmente com as mães, consiste em encontros individuais e/ou grupais, para
obtenção de dados, esclarecimentos das atividades, orientações e sensibilização
sobre cuidados com a criança. Este trabalho é desenvolvido em dois diferentes
momentos: grupo de pais
, no qual, juntos, compartilham as histórias de violência,
dúvidas e saberes e se mobilizam num objetivo comum de refletirem sobre
possibilidades e soluções para resolverem seus conflitos. Em um segundo
momento, as mães participam da BrinquedoMês
com o objetivo de resgatar o
brincar, que dificilmente acontece no contexto de violência doméstica, e
desenvolver recursos facilitadores do diálogo familiar.
Ao final do trabalho, verificada a necessidade de continuidade de
acompanhamento à família, esta recebe as orientações e encaminhamentos
quanto aos serviços de apoio existentes na rede pública.
A população atendida pelo programa, como já dito, vive em situação de
violência intrafamiliar. De acordo com Ballone e Ortolani (2005), a violência
6
intrafamiliar é um problema universal que atinge milhares de pessoas, na maioria
das vezes, de forma silenciosa e dissimulada. Trata-se de um problema que
acomete ambos os sexos e não costuma obedecer a nenhum nível social,
econômico, religioso ou cultural específico. Tal nomenclatura pode ser utilizada
tanto para designar a violência contra a mulher, contra o idoso ou contra a
criança, sendo esta última a que caracteriza a população deste estudo.
É inegável que, nos últimos anos, tem ocorrido uma enorme mobilização em
torno da proteção à infância, tendo a violência intrafamiliar tornado-se alvo de
estudo e intervenções no campo das Políticas Públicas Sociais, porém, como
ressalta Gonçalves (2003), sabe-se que falta muito para se avançar no
enfrentamento dessa problemática.
São muitos os estudos durante a história que enfocaram a ocorrência do
fenômeno da violência intrafamiliar. Gonçalves (2003) relata que foi somente em
1951 que os maus tratos contra a criança foram considerados como problema
social, a partir dos estudos de Kempe apud Gonçalves (2003), que, retomando
algumas descobertas, identifica o que foi denominado de Síndrome da Criança
Espancada, conseguindo a difusão do tema.
O estudo de Kempe e outros dessa época marcaram o chamado modelo
médico que, segundo Souza & Vecinas (2002), enfatizava a patologia dos pais
abusivos. No período seguinte, que se inicia em meados da década de 1980,
passou-se a questionar as conclusões do enfoque médico, predominando os
estudos sociológicos, com ênfase na questão do estresse.
7
A psicologia, nesse momento, faz suas contribuições no sentido de enfatizar o
relacionamento familiar e realiza estudos sobre a família abusiva. Entre essas
contribuições está a de Scondelario (2002) que discorre sobre a família abusiva
como sendo aquela que inclui a violência em sua dinâmica, destaca que a sua
comunicação é predominantemente através de atuações, sendo que utilizam
defesas muito primitivas como a negação, a identificação projetiva e a cisão em
seus relacionamentos.
Defende como marca evidente dessas famílias o segredo/silêncio, o
isolamento social e ressalta, como uma de suas principais características, a falta
de limites que permite o abuso de poder, a omissão no exercício da função
materna /paterna.
Rojas (2001) argumenta que a violência familiar implica em distintos
determinantes, sendo necessário considerar: o mundo intrapsíquico dos
envolvidos; as dimensões vinculares; os determinantes socioculturais e a
transgeracionalidade. Além disso, enfatiza que as vertentes
perversotransgressoras da própria rede social, como a impunidade, a legitimação
da violência como recursos e a corrupção, também contribuem para a ocorrência
da violência intrafamiliar.
Para a autora, a violência não se restringe à díade agressor/ agredido, ela
compromete todos os membros do grupo familiar. Entende que a família, pela
qualidade e função de seus vínculos, torna-se um espaço privilegiado para
expressão de tendências narcisistas à homogeneização, isto é, uma tentativa de
moldar o outro a sua própria imagem, introjetando discursos e valores entendidos
8
como insolúveis na psique de seus membros, não os reconhecendo como
singulares, afetando, dessa forma, a subjetividade de todo grupo.
Essas contribuições são também compartilhadas por Bronfembrener
(1994/2002), e caracterizam o terceiro período. O autor discorre sobre o modelo
ecológico como sendo aquele que engloba o microssistema, o mesossistema, o
exossistema e o macrossistema e seriam as variáveis desses grupos que, agindo
em conexão, levariam à ocorrência ou não da violência. Dessa forma, ele valoriza
as descobertas dos modelos anteriores e amplia o olhar para compreensão do
fenômeno da violência intrafamiliar.
Por microssistema, Bronfembrener (1994/2002) elegeu alguns fatores de
personalidade como a baixa auto-estima, falta de controle dos impulsos e
respostas inadequadas à situação de estresse. Já no mesossistema, levou em
consideração a estrutura familiar: o número de membros, a forma utilizada para
resolver conflitos e eventos traumáticos vivenciados pela família. No contexto
comunitário, exossistema, ele ressaltou a disponibilidade de recursos na região, os
vínculos com a vizinhança e a exposição à violência. Dos fatores do
macrossistema, que são os sociais e culturais, foram abordados os valores e as
crenças, como a permissividade e mesmo a valorização do castigo físico como
educação, a presença da violência nos meios de comunicação, entre outros.
Este modelo permitiu reconhecer a violência intrafamiliar como resultado de
múltiplas determinações, nunca podendo ser atribuída a uma única causa. Para
ele, o que determina a ocorrência do abuso é o balanço entre fatores de estresse
(potencializadores) e os de suporte (protetivos).
9
Outro aspecto importante que surge com essa teoria é a necessidade de
contextualização da violência contra a criança, considerando sempre as
implicações locais e culturais, isto é: “a família está imersa na cultura e é a cultura
que estabelece as bases que permitem diferenciar entre o que aceito como não
violento e o que condena como violento.” (GONÇALVES, 2003, P. 116).
A partir dessa consideração, a autora conclui ser impossível obter uma
definição universal de abuso, visto que quem vai estabelecer o que é bom ou ruim
para uma criança são os padrões culturais, nos quais a família e a criança estão
inseridas.
Considerando essa reflexão, busca-se, então, uma forma de melhor definir o
conceito de maus-tratos e seus indicadores, facilitando a compreensão do
fenômeno e não esquecendo que a criança é um ser em desenvolvimento e os
maus-tratos configuram-se como ações ou omissões que influenciam esse
processo e que, assim, podem trazer conseqüências para o desenvolvimento
normal da mesma, como defende Guerra (1986).
Para essa definição, será utilizada à proposta do National Information
Clearinghouse (NIC) (2005), pois como afirma Gonçalves (2003), ele constitui-se
como um órgão pioneiro que foi responsabilizado pelo governo americano em
formular parâmetros técnicos e jurídicos de intervenção, sendo consultado e
respeitado mundialmente. As formulações do NIC consideram como abuso
qualquer ato ou falha por parte dos pais ou responsáveis pelos cuidados com a
criança, que pode resultar em morte, danos graves físicos ou emocionais, abuso
10
sexual, ou exploração, isso é, qualquer ato ou omissão que resulte em perigo
eminente com conseqüências graves para a criança.
Em relação à natureza do mau-trato, o National Information Clearinghouse
(2005) aponta quatro formas de ocorrência, que aqui serão explicitadas
resumidamente. É importante ressaltar que essa é uma classificação apenas para
fins didáticos, podendo, na prática, surgir em conjunto ou separados.
Negligência: não satisfação das necessidades básicas de uma criança,
podendo ser: física, médica ou educacional. Estas situações nem sempre
significam que a criança é negligenciada. Muitas vezes, os valores culturais, as
estratégias de cuidado e mesmo a pobreza podem contribuir, indicando que a
família necessita de assistência e informação.
Abuso Físico: é o dano físico, podendo ser desde ferimentos pequenos até
fraturas graves ou morte, sendo que os danos são considerados como abuso,
independentemente da intenção do cuidador ter sido, ou não, de machucar a
criança.
Abuso Sexual: inclui as atividades como manipulação dos genitais de uma
criança, penetração, incesto, estupro, exposição e exploração, através da
prostituição ou produção de materiais pornográficos, realizadas por um parente ou
cuidador.
Abuso emocional – constitui-se como um padrão de comportamento que
prejudica o desenvolvimento emocional da criança ou seu senso de valor próprio.
Pode incluir constantes desaprovações, ameaças ou rejeição, assim como
11
negação de amor, suporte e direção. O abuso emocional é, usualmente, mais
difícil de ser comprovado, estando quase sempre presente, quando outras formas
de abuso são identificadas.
De Antoni & Koller (2001) consideram que cada tipo de abuso pode
desencadear uma sintomatologia diferente, que vão desde doenças físicas, até
comportamentos que evidenciam ansiedade, depressão, baixa auto-estima, desvio
de conduta entre outros.
Dentre os estudos que enfatizam as conseqüências da violência
intrafamiliar está o de Machado (1996) que caracteriza a criança maltratada como
aquela que apresenta baixa capacidade de expressão e discriminação emocional,
o que contribui para reagirem de maneira agressiva frente a qualquer conflito.
Segundo a autora, é uma situação na qual pais e filhos comportam-se como seres
emocionalmente inexpressivos.
Bokanowski (2005), escrevendo sobre as variações do conceito de
traumatismo, define como trauma a ação negativa e desorganizadora provocada
pela ação traumática, é como uma “ferida precoce” que ataca o ego, acarretando
um estado de sideração, comprometendo a constituição da psique do indivíduo. A
não resposta ou a resposta inadequada dada pelo objeto à criança, a impede de
entrar em contato com suas pulsões libidinais e, assim, de construir um espaço
psíquico para “sonhá-las” e transformá-las. Para o autor, essa impossibilidade de
poder introjetar um objeto interno confiável, seguro e continente faz com que o
indivíduo seja tomado por elementos persecutórios que serão reintrojetados,
12
projetados ou evacuados para o exterior de maneira repetitiva e, portanto,
traumática.
Ferenczi (1933/1991) caracteriza o trauma como a ausência de repostas
adequadas do objeto frente a uma situação de desamparo vivenciada pela
criança, isso é, as necessidades de um adulto prevalecem sobre as da criança.
Essa “confusão de línguas” mutila o ego, fazendo com que a criança, na tentativa
de se defender e de separar de si a parte atingida pelo traumatismo realiza uma
cisão/clivagem. Para o autor, um dos primeiros efeitos do trauma é a identificação
com o adulto autor da violência, assim, à criança esquece o ódio, a revolta e a
repugnância, quando “esquece-se” de si mesma para igualar-se, pelo menos em
parte, ao agressor. Nesse processo, a criança também introjeta o sentimento de
culpa vivenciado pelo adulto e se vê merecedora de punição.
Considerando esta perspectiva teórica, podemos compreender que o
trauma é desenvolvido em três fases: primeiro, é necessário que haja um criança
ainda imatura emocionalmente, vinculada a um objeto (adulto) de sua confiança; a
segunda fase é marcada pela surpresa e decepção da criança, ao perceber que o
adulto se relaciona com ela de forma que contraria sua expectativa; e, por último,
vem a negação dos adultos, é quando a criança fala do acontecimento em busca
de apoio e proteção e encontra a recusa dos adultos em reconhecer os fatos.
Essa terceira fase seria a responsável por efetivar o trauma. (Balint apud Sanches,
1995).
A ênfase dada por Ferenczi (1933/1991) para a importância dos fatores
externos na estruturação psíquica da criança é também encontrada na obra de
13
Winnicott (1971/1975), que enfatiza a importância vital do ambiente nas primeiras
fases do desenvolvimento emocional do bebê. No início, o bebê ainda não se
separou da mãe, o que ocorre gradativamente, variando de acordo com o bebê e
com o meio ambiente. A principal modificação surge quando há a separação da
mãe como aspecto ambiental objetivamente percebido. Se não existe ninguém
para assumir o papel de mãe nesse momento, o desenvolvimento do bebê torna-
se infinitamente complicado.
Portanto, a maternagem suficientemente boa, como é defendida por
Winnicott (1979/1983), é de extrema importância. É através da continuidade dos
cuidados que o meio ambiente se torna um facilitador, influenciando positivamente
na vida da criança. A mãe tem como tarefa proteger seu bebê e apresentar o
mundo a ele, funcionando como um ego auxiliar, que vai fortalecer o ego do bebê,
possibilitando a sua integração e, conseqüentemente, um self separado e
diferenciado. Ocorrendo pouco envolvimento neste cuidado, o desenvolvimento
emocional primitivo é prejudicado, o que pode ser observado com freqüência em
situações de violência intrafamiliar, na qual a criança se encontra exposta à
privação desse cuidado, seja pelo afastamento real ou não da criança de sua mãe
ou cuidadora.
Essa privação pode dar origem a comportamentos hostis e à tendência anti-
social, o que contribui para a efetivação da continuidade do ciclo da violência
(Winnicott, 1984/2002).
14
Um outro autor que discorre sobre o trauma é Levy (2006). Para ele, o
trauma é
...como um episódio, ou uma acumulação de episódios ao
longo da vida, que, por suas características, causam uma
lesão ao “tecido psíquico”. O prejuízo poderá ir além do
conteúdo da fantasia, que eventualmente se instala na mente
e que é de difícil elaboração; o prejuízo deve-se à “lesão” no
aparelho de pensar que termina por prejudicar a própria
função simbólica da mente, a qual, por sua vez, permitiria a
elaboração da situação traumática. (p. 140)
A situação traumática cria-se portanto, quando alguns dos sinais da
relação adulto/criança, por serem violentos ou intrusivos, pelo desamparo que
geram, “tornam-se intraduzíveis e ficam em algum lugar da mente como corpos
estranhos, produzindo as mais variadas perturbações” (Levy, 2006,p. 143).
Porém, nem toda criança exposta a algum tipo de violência intrafamiliar
apresentará algum prejuízo, sendo estas denominadas resilientes
1
.
Vários autores discutem as possíveis saídas para o problema da violência
intrafamiliar. Ferrari (1994) acredita que o ideal é investir em propostas amplas de
educação sexual. Azevedo e Guerra (1995) defendem o investimento na chamada
15
prevenção primária, que é aquela que tenta reduzir a incidência de novos casos,
sugerindo, como estratégias, os programas de pré-natal, treinamento de pais em
escola e, ainda, campanhas pelos meios de comunicação, palestras e debates.
Gruyer e colaboradores (1991) destacam as descobertas da terapia familiar,
que tem alcançado resultados significativos, apontando que, com a utilização
dessa técnica, consegue-se uma mudança na estrutura das relações, minimizando
as resistências e favorecendo a transformação do contexto de violência.
A influência da família na constituição psíquica da criança é também
defendida por Térzis (2002), quando explica que a psicanálise leva em
consideração as relações dos seus indivíduos com o ambiente externo. Desde seu
nascimento, a criança ingressa ao grupo familiar e, durante toda sua vida, convive
e interage com diversos grupos, justificando a importância da grupanálise. Nesse
sentido, o grupo foi escolhido como instrumento para esse estudo, fazendo
necessária a explanação de algumas considerações acerca desse tema. No
entanto, primeiramente, discutiremos sobre a brinquedoteca, local onde a
pesquisa será realizada.
1.2- Brinquedoteca: espaço transformador
O brincar é a forma infantil de se comunicar com o mundo externo, é o
modo autêntico, natural da criança se expressar e interagir com a realidade.
1
Compreendem-se resiliência como o conjunto de processos sociais e intrapsíquicos que
possibilitam o desenvolvimento de uma vida sadia, mesmo vivendo em um ambiente não sadio
16
Quando a criança brinca, deixa fluir seus desejos, representa suas experiências,
reproduz situações criadas pelos adultos, elaborando os conflitos e angústias
vivenciadas nessas situações. O brincar é fundamental na construção da
inteligência e do equilíbrio emocional, contribuindo para a formação pessoal e
integração social da criança (Brougère, 2002).
Pensando na importância do brincar, surge, como facilitadora, a
brinquedoteca, que, de acordo com Cunha (2001), é um espaço onde crianças e
adultos brincam livremente, com o objetivo de estimular o desenvolvimento de
recursos internos, dando oportunidade à expansão de potencialidades, além de
contribuir para o desenvolvimento intelectual, da criatividade e da sociabilidade.
A brinquedoteca surge nos EUA, em Los Angeles, a partir da iniciativa de
um diretor de escola municipal, que, ao receber diversas reclamações que seus
alunos estavam furtando brinquedos em uma loja próxima à escola, compreendeu
que a motivação desses era a impossibilidade de ter brinquedos. Assim, montou
uma brinquedoteca, com o intuito de emprestar brinquedos a essas crianças.
A idéia espalhou-se pela Europa (biblioteca de brinquedos). No inicio, eram
destinadas, principalmente, ao empréstimo de brinquedos e, aos poucos, as
Ludotecas, como são chamadas no exterior, começaram a receber visita de
crianças, sendo que, hoje, em alguns países como Canadá e Austrália, passaram
a ser Centros de Recursos para as Famílias, nos quais são realizadas orientações
sobre questões relativas à saúde, educação e melhor utilização dos recursos que
(Peres e colaboradores, 2005)
17
a comunidade oferece, otimizando, assim, o tempo em que os pais levam seus
filhos para brincar (Cunha, 1992).
As brinquedotecas brasileiras começaram a surgir nos anos 80, sendo que,
em 1984, foi fundada a Associação Brasileira de Brinquedotecas, diferentemente
das Ludotecas. Desde sua criação, tinham como objetivo oferecer um espaço de
estímulo para crianças brincarem livremente (Cunha, 2002).
Relatando sua experiência, a autora diz que o primeiro contato das crianças
com a brinquedoteca é de espanto. Estimula a criatividade, fazendo com que
explorem o ambiente e as diversas formas de brincar: sozinho, em grupo ou com
adultos. É com essas vivências que as crianças vão se desenvolver, atingindo os
objetivos que a brinquedoteca se propõe.
Também aqui no Brasil, tem-se incentivado a participação da família na
brinquedoteca. Cunha (2001) aponta para a importância de, nesse momento,
ajudar o adulto a conseguir brincar. O objetivo maior é que o jogo/brinquedo
funcione como um objeto facilitador do relacionamento, proporcionando
oportunidade de uma convivência familiar mais saudável.
Negrini (2002) ressalta que o brincar, o entretenimento deve ser encarado
como sinalizador de um estado interior fértil, saudável, disponível para agir e
interagir, para cooperar e/ou competir, para imitar, criar e recriar; podendo, assim,
ser utilizado como ferramenta no processo de comunicação, de aquisição de
conhecimento e habilidades, de convivência e integração grupal,
conseqüentemente, refletindo no processo de humanização do indivíduo. Porém,
destaca que a brinquedoteca deve ser diferente de outros espaços lúdicos, pois,
18
independentemente da finalidade para que foi criada, a criança deve freqüentar
por vontade própria, pelo prazer de poder jogar e de encontrar amigos.
Um dos grandes valores da brinquedoteca, destacado por Bomtempo
(1992), é que permite observar a criança e conhecê-la de forma mais completa. Ao
colocar ao alcance delas uma ampla variedade de brinquedos, a brinquedoteca
estimula não só as atividades lúdicas individuais e coletivas como, também,
desvincula o brinquedo do seu aspecto de posse e consumo, despertando na
criança o sentido de responsabilidade coletiva. Além disso, a manipulação de
vários brinquedos conduz a criança à ação e à representação, contribuindo para
seu desenvolvimento integral.
O momento mais rico é quando a brinquedoteca se transforma num “mundo
de trocas”. Utilizando o brinquedo como ponte, a criança constrói vínculos com
outras crianças e adultos. É essa interação que possibilita o crescimento
(Friedmann, 1992).
Atualmente, existem diferentes tipos de brinquedotecas desenvolvidas em
diversos contextos, como em favelas, creches, escolas e em outros locais, sendo
que todas têm como objetivo comum o desenvolvimento de atividades lúdicas e a
valorização do ato de brincar. Cada um desses ambientes tem sua função definida
e usam o jogo e os brinquedos como estratégias para atingi-las. (Santa Marli,
2002).
Cunha (2001) salienta que as mais difundidas são as brinquedotecas
hospitalares e as terapêuticas, sendo essa última a modalidade descrita neste
estudo. São aquelas nas quais se procura aproveitar as oportunidades oferecidas
19
pela atividade lúdica, para ajudar as crianças a superarem dificuldades
específicas, no caso, as geradas com a situação de violência intrafamiliar.
Sendo a brinquedoteca definida como lugar de brincar, acredita-se ser
importante fazer considerações acerca dessa técnica, na ótica da psicanálise,
abordagem utilizada neste estudo.
O brincar vem sendo objeto de estudo da psicanálise desde Freud, como
argumenta Amorim e outras (1997), mas foi apenas com Melanie Klein que se
tornou uma técnica própria do trabalho analítico com crianças. Klein (1975/1997)
acreditava que a atividade lúdica seria a forma própria de expressão da criança,
assim como a linguagem verbal é para o adulto, cabia ao analista, portanto,
interpretar a brincadeira, para ter acesso ao inconsciente da criança. Sendo assim,
o brincar se equivaleria à associação livre.
A idéia do uso da atividade lúdica como uma das formas de revelar conflitos
internos das crianças, é também defendida por Mrech (2002), que destaca, ainda,
que esta seria umas das principais descobertas da psicanálise, que dessa forma,
enfatizou a importância de se passar a palavra à criança, para que ela diga quem
é e como pensa. Segundo a autora, o brinquedo não é um objeto neutro, pois
condensa a história da criança com outros objetos, representa os processos
internos dela, permitindo dar significados aos seus atos e compreender seus
conflitos.
Atualmente, como destaca Felice (2003), a concepção de brincar, para a
psicanálise, sofreu diversas modificações. Valoriza o brincar e a presença do outro
com quem a criança possa brincar. Winnicott (1971/1975), principal representante
20
dessa teoria, defende o brincar como primário e não produto da sublimação dos
instintos, é a forma básica e universal de viver, que facilita o crescimento e conduz
aos relacionamentos grupais, tendo início nas primeiras interações do bebê com
sua mãe. O autor acrescenta que o brincar ocorre em um campo intermediário
entre a realidade interna e externa, isso é, em um campo transicional, sendo os
brinquedos o que ele denomina de objetos transicionais.
Ainda de acordo com Winnicott (1971/1975), as crianças têm prazer em
todas as experiências de brincadeiras. Além disso, brincam para dominar
angústias e controlar idéias ou impulsos que conduzem à angústia. No espaço do
brincar, a criança comunica sentimentos, idéias, fantasias, intercambiando o real e
o imaginário.
Para o autor, é no brincar que “..o indivíduo, criança ou adulto, pode ser
criativo e utilizar sua personalidade integral, e é somente sendo criativo que
descobre seu eu (self)” (WINNICOTT, 1971/1975, p. 80).
Destaca, ainda, que a criatividade está relacionada com o estar vivo, sendo
fundamental para que se constitua um estado saudável, responsável pela
autonomia dos indivíduos. É somente no viver criativo que a pessoa torna-se
capaz e ativa.
Franco (2003), discorrendo sobre o brincar e a sessão analítica, afirma que
esta pode ser pensada como uma manifestação sofisticada e contemporânea do
brincar.
Neste espaço potencial, o interno se torna externo e o
tempo antigo e a expectativa do futuro se tornam presentes.
21
Trata-se de um espaço-tempo teatral, onde se vive, cria-se,
sofre-se e alegra-se a dupla paciente e analista, numa
dramatização que só tem valor se for investida de afeto e
sustentada como se essa brincadeira fosse tão real quanto à
realidade socialmente construída. (FRANCO, 2003,p. 49).
Pensando que o estudo em questão pretende analisar momentos lúdicos
em grupos, torna-se relevante a apresentação de algumas idéias de Eiguier
(2002), que demonstra a riqueza do brincar no processo analítico coletivo, seja
grupo de crianças ou famílias. Ele defende que, quando a criança brinca, leva em
conta os outros, sendo seu jogo produto latente da grupalidade, simbolizando,
assim, os fantasmas coletivos: os afetos, desejos e defesas. Enfatiza, também,
que, em grupo, o pensamento é facilitado e as associações são mais numerosas
e ricas. Acrescenta que o jogo/brincar deve ser entendido como expressão do
inconsciente, que adquire certa autonomia (jogar por jogar) e pode se tornar fonte
de ressonâncias terapêuticas.
É imprescindível abordar, neste momento, algumas considerações gerais
sobre a grupoterapia, enfatizando seu conceito e principais teorias que são
referências para esta pesquisa.
1.3- Grupo de crianças e familiares: considerações básicas
22
Constatou-se na literatura consultada que definir grupo é algo muito difícil,
afinal, seus significados são vagos e imprecisos, podendo designar diversas
concepções. Contudo, neste estudo, o conceito de grupo utilizado representa a
forma e a estrutura de uma organização de vínculos intersubjetivos, na qual existe
uma relação inconsciente entre os vários sujeitos que produzem formações e
processos psíquicos específicos (Kaës, 1997).
Este conceito é também discutido por Anzieu (1984/1993), que define o
grupo como um envelope que faz os indivíduos ficarem juntos, é a colocação em
comum das imagens interiores e das angústias dos participantes. Ele se forma
com a construção de uma rede, que contém pensamentos, palavras e ações,
sendo caracterizado pela formação de um espaço interno e uma temporalidade
própria, que garante a manutenção das trocas entre seus membros.
Freud, apesar de nunca ter trabalhado com grupoterapia, deu importantes
contribuições para essa. Suas obras evidenciam os fenômenos sociais, ele discute
a constituição do sujeito a partir de duas vertentes: a psicologia individual e a
psicologia social ou de grupo, enfatizando as inter-relações e incentivando os
estudos psicanalíticos dos fenômenos sociais. Apesar de ter trabalhado com
multidões e não com pequenos grupos, muitos de seus conceitos e idéias foram
bases para construção da teoria de outros autores como Bion e Kaës, (Térzis,
2005a).
Em seu texto “Psicologia de Grupo e Análise do Ego”, Freud (1959/1996)
faz uma revisão sobre a psicologia das multidões e de dois grupos artificiais, a
igreja e o exército. Ele ressalta aspectos do aparelho psíquico individual quando o
23
sujeito está em grupo, considerando que, neste contexto, há um enfraquecimento
racional e uma exacerbação da impulsividade. Dessa maneira, percebe-se nos
indivíduos uma acentuação das emoções, pouca disponibilidade em adiar suas
ações e em considerar a realidade devido à diminuição do senso crítico e de
responsabilidade.
Ele destaca os processos identificatórios projetivos e introjetivos que
vinculam as pessoas e os grupos, sendo as identificações mútuas, comum nos
grupos, que propiciam, através da escolha de uma figura idealizada (líder), a
coesão de um grupo e o “espírito de grupo”. A identidade grupal forma-se a partir
da perda do senso de separação individual e da entrega das decisões ao líder,
que se torna o ideal, investido pela ilusão de ser capaz de amar todos igualmente.
Esta ilusão é considerada uma formação reativa do medo de ser rejeitado e
exterminado pelo poder deste líder ou pela união dos membros do grupo, contra
seus desejos de tomar o lugar do pai – líder (Freud, 1959/1996).
Foi neste trabalho que Freud escreveu que não existem diferenças na
essência da psicologia individual e social. Essas e outras idéias básicas que
posteriormente foram utilizadas como alicerce para a psicoterapia de grupo, estão
presentes em outros trabalhos como: As perspectivas futuras da terapêutica
psicanalítica (1910), Totem e tabu (1913), O futuro de uma ilusão (1927) e Mal
estar na civilização (1930) (Zimerman, 2000). Porém, para esse estudo, não se faz
necessário aprofundar essas teorias.
Ainda sobre as contribuições de Freud, em relação aos conceitos utilizados
para o entendimento dos processos grupais, é importante destacar que ele recorre
24
àqueles relacionados ao complexo de Édipo. Em contrapartida, a compreensão
das ansiedades e formações psíquicas pré-edipianas no grupo, em especial as
mais regredidas, assumiram destaque nas obras de seus sucessores (Térzis,
2005a). Entre eles, Foulkes (1972/1963) que, em 1948, inaugurou a prática da
análise de grupo, fundando, mais tarde, a Sociedade Grupanalítica. É considerado
como o líder mundial dessa prática, sendo responsável por diversas contribuições,
mostrou preocupação com o inconsciente dinâmico, a interpretação da resistência
e da transferência. O autor apresenta algumas idéias principais que norteiam o
método por ele defendido, entre elas destaca a importância do terapeuta escutar,
entender e interpretar o grupo como uma totalidade no aqui e agora. Foi o primeiro
a considerar as transferências no grupo. Na grupoterapia manifestam –se quatro
níveis de transferência: de cada indivíduo com a figura central do terapeuta
(transferência parental); do grupo enquanto totalidade a essa figura central
(transferência grupal); de cada indivíduo em relação a outro(s) membro(s)
(transferência fraternal); e, por último, de cada indivíduo em relação ao grupo
como todo (transferência de pertencência – imago materna) (Zimerman, 2000).
Foulkes e Antony (1972/1965) desenvolvem também a noção de
ressonância inconsciente entre os integrantes do grupo, considerando que exista
uma tensão comum, ou seja, um denominador comum das fantasias
inconscientes. A ressonância seria um conjunto de respostas emocionais e
comportamentos inconscientes de um indivíduo à presença e comunicação de um
outro indivíduo. Acreditam que o grupo se organiza como uma nova entidade do
todo social, ou seja, é mais do que uma soma de indivíduos, é um organismo vivo,
25
uma totalidade, interpretando-o como uma rede, sendo cada um seus integrantes
comparados com pontos nodais, estando uns interligados aos outros. Os autores
defendem que o grupo é uma matriz psíquica, definindo-a como sendo a trama
comum entre seus membros que será responsável por tudo que ocorre no grupo,
a ela se referem todas as comunicações verbais e não verbais. É nesta rede de
comunicação, sob pressão do inconsciente, que se produzem reações complexas
que reeditam nossos conflitos originários.
São quatro os principais fatores terapêuticos do grupo apontados por
Foulkes (1972,1963): primeiro, é a estimulação da integração social; segundo, é a
reação de espelho, que aparece de modo característico, quando as pessoas se
encontram e agem umas sobre as outras; o terceiro fator é o da comunicação, os
participantes podem se expressar e aprender a lidar com seus medos e também a
compreender os outros; o quarto é o fator da interdependência, pois as
modificações que ocorrem no grupo e em seus membros são derivadas e
construídas por uma rede de integração na matriz psíquica do grupo, oferecendo a
cada membro a possibilidade de se perceber representado e integrado na mesma.
Esta posição considera o grupo como uma entidade específica, um espaço
psíquico peculiar, pressupondo que os sujeitos desapareçam naquilo que os
singularizam.
Essas são idéias também preconizadas por Bion (1961/1970), grande
contribuinte da psicoterapia de grupo. Para ele, o homem é um animal de grupo e,
portanto, tem inerente à sua mente os fenômenos grupais. Diferentemente de
Freud, Bion dirige sua atenção para níveis mais primitivos da vida mental.
26
Refere-se a dois tipos de grupo, fazendo uma alusão aos dois níveis de
funcionamento mental do indivíduo (consciente e inconsciente). O primeiro, ele
chamou de grupo de trabalho ou tarefa, refere-se àquele que opera a serviço do
princípio da realidade, cada membro coopera voluntariamente na atividade de
acordo com suas capacidades individuais, tendo como objetivo o desenvolvimento
de uma tarefa. Este nível de funcionamento grupal requer o desenvolvimento das
funções egóicas dos participantes que, além disso, experimentam o prazer da
pertinência.
Ao segundo grupo, Bion (1961/1970) deu o nome de “supostos básicos”,
referindo-se às estruturas específicas que funcionam nos moldes dos processos
primários e, portanto, obedecem mais às leis do inconsciente dinâmico, ignorando,
assim, a noção de temporalidade e a relação causa – efeito. Para o autor, os
supostos básicos estão a serviço do prazer e têm como objetivo evitar as
frustrações, funcionando como um mecanismo de defesa. Ele descreveu três
modalidades de supostos básicos: de dependência, luta e fuga e de
acasalamento.
O primeiro, de dependência, é a convicção de que um de seus membros
seja capaz de tomar a liderança e cuidar de todo grupo. Essas são atribuições
dadas principalmente ao terapeuta, de quem esperam a satisfação de suas
necessidades e desejos. As idéias deste grupo organizam-se em torno de um líder
divinizado e pela manifestação de passividade e perda de juízo crítico.
O segundo suposto básico é o de luta e fuga, descrito por Bion (1961/1970)
como a fantasia do grupo como um todo, de que exista um inimigo que deve ser
27
combatido ou evitado. Este inimigo é um objeto interno - externo que pode ser
uma idéia má, uma situação catastrófica ou uma perda de controle do próprio
sujeito. Essas fantasias são idéias paranóides e o líder é visto como de natureza
tirânica.
Já o suposto básico de acasalamento corresponde à crença coletiva e
inconsciente de que os problemas e necessidades do grupo serão solucionados
no futuro por alguém ou algo que não nasceu.
Outro autor que fornece contribuições importantes para este estudo, apesar
de não ter trabalhado diretamente com psicoterapia de grupo, é Winnicott. A
universalidade de suas idéias permitiu que Mello (1986) as aplicasse em estudos
sobre a terapia grupal. A visão de ser humano para Winnicott é sempre de um
indivíduo em sociedade, em interação com o outro e com o mundo, enfim um ser
grupal.
Para Winnicott (1979/1983), a criança ao nascer representa uma soma de
partes não integradas e, aos poucos, através do cuidado da mãe, adquire a noção
de um ser total, unitário e coeso. Para isso, ela passa nos primórdios de seu
desenvolvimento por uma fase de dependência absoluta, posteriormente para uma
dependência relativa e segue rumo à independência. Segundo Mello (1986), esse
processo do desenvolvimento individual é também observado na evolução do
grupo, isto é, no início, o grupo não está integrado, é a soma de partes e, aos
poucos, evolui para um estágio de integração, formando uma Gestalt harmônica e
coesa. Essa evolução só é possível através da função de holding, exercida não só
pelo terapeuta, mas também pela matriz grupal.
28
O grupo que atinge esse estágio do desenvolvimento (integração)
possibilita o funcionamento intenso de processos de identificação, contribuindo
para que, cada vez mais, os pacientes se entendam e, assim, consigam ajudar
uns aos outros. Este seria o grupo suficientemente bom. Quando essa evolução
não é atingida e o grupo permanece não integrado, apresenta diversas
dissociações como a formação de sub - grupos e constantes ausências e
abandonos da terapia.
Outro conceito de grande valor para compreensão do grupo é o de objeto
transicional. Esses são objetos aos quais as crianças se ligam para substituir,
transitoriamente, a figura materna, da qual precisam se individualizar. Esses
objetos, que, posteriormente, são substituídos por fenômenos transicionais (mais
abstratos), representam a área intermediária de experiência, eles são vivenciados
ao mesmo tempo como internos e externos ao bebê, localizados na fronteira entre
o bebê e a mãe, no espaço que Winnicott nomeou de potencial. Este é um espaço
sem limite, essencial da existência humana, onde se desenvolve, entre outras
produções, a criatividade. (Winnicott, 1971/ 1975).
Mello (1986) entende que esse espaço é também vivenciado na
grupoterapia, isto é, entre o terapeuta e cada paciente e, entre cada paciente e o
outro, cria-se uma área de experimentação, um espaço potencial que possibilita
trocas de experiência, de informação e o desenvolvimento da criatividade e da
cultura grupal. Para o autor, o grupo privilegia a existência dessa área
intermediária, ao mesmo tempo de ilusão e realidade, isto é, a presença de um
29
espaço potencial cultural e de fenômenos transicionais intragrupais estimula a
criatividade de cada indivíduo e do grupo como todo.
Por último, dentre diversas outras contribuições de Winnicott, é importante
destacar a função especular. Foulkes (1972/1963), como referenciado, já havia
desenvolvido esse conceito em seus estudos com grupos. Para ele, o grupo pode
ser comparado a uma sala de espelho, na qual os participantes entram em
confronto com sua imagem social, psicológica e corporal, o que favorece a
descoberta de sua identidade real. Porém, a função especular do grupo foi pouco
explorada, o que foi feito em trabalhos posteriores como o de Winnicott
(1971/1975).
Para o autor, a criança, quando olha para o rosto da mãe, vê a si mesma,
assim, o rosto, o olhar da mãe representa um espelho. Se a mãe consegue
desempenhar essa função, favorece o desenvolvimento emocional de seu bebê,
porém, se isso não ocorre, seja porque a mãe está preocupada, desatenta,
voltada para si, o bebê tenta predizer o humor da mãe e adaptar-se a ele, tendo
seu desenvolvimento, autonomia e criatividade prejudicadas. (Winnicott,
1971/1975)
Winnicott (1971/1975) já dizia que a função especular é também função do
terapeuta e Mello (1986) amplia e reforça essa afirmação em sua experiência com
grupos. Para o autor, a própria disposição circular do grupo proporciona que todos
os integrantes consigam se ver ao mesmo tempo, favorecendo que um sirva de
espelho ao outro e a si mesmo. Esta função especular tem um inegável papel
terapêutico, afinal, cada participante reflete a imagem real do outro. Assim como a
30
criança ao ser olhada e admirada por objetos que ajudam a estruturar seu Self
(self - objeto), vai, ao poucos construindo sua identidade. No grupo, o terapeuta e
os demais participantes funcionam como Self – objetos para cada participante.
Com influência desses autores, a psicoterapia analítica de grupo tem
crescido e ocupado um grande espaço, mostrando-se eficiente em seu objetivo de
atingir aspectos inconscientes e, assim, possibilitar transformação e crescimento
emocional, sendo utilizada em diversos contextos e formas, entre elas o grupo
com crianças e famílias, que são os de interesse para este estudo.
O pioneiro da terapia de grupo com crianças nos Estados Unidos foi
Slavson (1937). Trabalhou com crianças com distúrbio de caráter e atribuiu seus
resultados à atmosfera permissiva em que as crianças podiam manifestar
sentimentos hostis e agressivos, sem serem punidas. Depois, estendeu seu
método aos adultos e reafirmou sua concepção de que qualquer psicoterapia
grupal sólida tem como elementos comuns: a transferência, a catarse, a
percepção, a prova de realidade e a sublimação.
Um outro autor importante para a psicoterapia de grupo com crianças é
Decherf (1981/1986) que, em seus estudos, define que essa técnica consiste em
reunir pacientes infantis, num enquadre que se assemelhe ao da família e numa
situação transferencial apoiada essencialmente no método psicanalítico. Dessa
forma, as crianças são convidadas a expressarem-se como fazem habitualmente,
isto é, com a palavra ou com o corpo, diretamente ou por intermédio de
produções, jogos e/ou cenas, num clima de liberdade.
31
Segundo o autor, a proposta de associação livre pluriexpressiva
(associações verbais, gestuais e lúdicas), num grupo não diretivo, provoca
reações de ansiedade e de tensão, induz a fantasmas arcaicos, principalmente de
espedaçamento, perda de identidade e de simbiose, gerando angústias que são
combatidas por mecanismos de defesas. Os principais destacados pelo autor são:
1- Sideração grupal: ocorre predominantemente nas primeiras
sessões, é o fenômeno em que as crianças permanecem imóveis,
trocam olhares e observam-se discretamente. Acredita que a
sideração grupal é uma regressão a uma vivência primitiva, onde
psique e corpo não estavam integrados, não existindo ainda a
individuação. Refere-se, portanto, ao narcisismo primário.
2- Violência coletiva: tentativa de viver na realidade os fantasmas
recalcados.
3- A busca de um chefe: trata-se de uma obra coletiva, resultado de
uma das crianças de se afirmar e de dominar e, ao mesmo tempo,
da necessidade das outras de aceitarem uma submissão, mesmo
que a contestem. É um mecanismo de defesa que permite anular
o contrato de liberdade proposto pelos terapeutas e,
conseqüentemente, diminuir a ansiedade que este acarreta.
4- Busca do bode expiatório: o membro escolhido será o suporte do
grupo, receberá, através de um duplo mecanismo de
deslocamento e projeção, todos os “maus” sentimentos, toda a
culpa e agressividade dos outros membros.
32
O conjunto desses mecanismos tem como interesse uma cumplicidade
ligada às angústias que experimentam e contra a qual querem se defender.
Baseando-se nas contribuições de Anzieu (1984/1993), o autor faz alusão
aos organizadores do grupo, fantasmas em torno dos quais as crianças vão se
agrupar. O primeiro organizador seria a tentativa de formar um grupo familiar ideal
(o que é considerado uma resposta à sideração grupal). Para isso, as crianças
negam o Édito, as diferenças e os conflitos. Essa tentativa não deve ser
sustentada pelos terapeutas que, com isso, provocam a desilusão grupal,
motivando o segundo organizador, compreendido como a busca do grupo por uma
lei, um chefe (imago paterna) tentando, dessa forma, tornar o grupo diretivo.
Assim, tranqüilizados pela imago paterna e por sua estruturação interna, o
grupo poderá abordar, com maior seriedade, os fantasmas comuns à espécie
humana, fantasmas que surgiram no início do grupo, mas que foram recalcados
rapidamente e que representam o terceiro organizador. O grupo pode, agora,
evoluir, permitindo, progressivamente, que cada membro encontre uma
autonomia, podendo, em particular, exprimir seus fantasmas individuais.
Para que esse processo ocorra, Decherf (1981/1986) enfatiza a
necessidade de um enquadre e de regras. O enquadre assume dois importantes
papéis: de continente (imago materna) que possibilita as crianças expressarem
suas pulsões, desejos, temores e fantasmas; e de moldura limitante (imago
paterna) simboliza a busca do grupo por um limite, o que ocorre de forma
consciente ou inconsciente, na tentativa de formar suas próprias fronteiras. Essa é
uma função do enquadre fundamental para a estruturação do ego. De acordo com
33
o autor, o enquadre seria o elemento mais importante e estruturante da técnica. O
fato das crianças poderem viver e projetar seus conflitos num enquadre analítico,
permite uma ressignificação desses conflitos, tendo, portanto, o enquadre tanto
valor quanto uma interpretação.
As regras também são fundamentais para que o grupo possa evoluir de
forma que cada um conserve sua liberdade individual e seu direito de expressão,
sendo a transgressão das mesmas encaradas como um acting-out (Decherf,
1981/1986).
Sobre a adequação do fenômeno do acting-out em grupanálise com
crianças, Leal (1994) argumenta que a expressão não verbal e toda atividade
lúdica são reconhecidas e interpretadas como comunicação simbólica. Afinal,
mesmo a criança fazendo uso da linguagem falada, é mais natural a expressão
orgânica, motora e dramática dos conteúdos emocionais. Sendo assim, a autora
acrescenta que, em grupos de criança, o acting-out deve ser reconhecido como
uma forma adequada de catarse.
Essa idéia é aprofundada por Winnicott (1971/1975), quando este afirma
que o “atuar” não é simplesmente uma dificuldade de verbalização ou uma reação
negativa ao processo terapêutico, mas sim uma necessidade de experimentar,
fundamental para o desenvolvimento do indivíduo.
O espaço grupal, de acordo com Térzis (2005b), faz emergir condições de
espelhamento emocional, formando uma rede de ressonância em que as crianças
encontram possibilidades de desenvolver espontaneamente seus recursos
emocionais.
34
Em uma de suas pesquisas, que tinha como objetivo compreender as
produções observadas no grupo de psicoterapia de crianças carentes, conclui que,
no início do grupo, cada criança cultivava a sua própria área, as brincadeiras eram
individuais, os silêncios freqüentes e naturais e as crianças centralizavam-se no
terapeuta. Essas brincadeiras paralelas duravam alguns encontros, até que as
crianças passavam a se inter-relacionarem (intercâmbio grupal). O que permitiu
pensar no grupo como espaço facilitador e transformador dos padrões relacionais
(Térzis,2005b).
Além disso, compreende que essa modalidade de psicoterapia facilita o
desenvolvimento de insight, proporcionando oportunidade de enfrentamento da
realidade e meios de sublimação, contribuindo, dessa forma, para o fortalecimento
do ego.
O autor ressalta, também, que o grupo, funcionado com um sonho, cumpriu
a função de realização imaginária dos desejos irrealizados das crianças,
especialmente aqueles proibidos dentro das famílias. Para finalizar, enfatiza a
eficácia da grupanálise com crianças, destacando os benefícios alcançados,
principalmente no que se refere ao desenvolvimento emocional das mesmas, além
de atingir aspectos preventivos.
Apesar do potencial terapêutico da grupanálise de crianças, Pinho (1992)
sugere que os pais, como figuras essenciais, tanto no desenvolvimento psíquico
quanto na estruturação dos sintomas dos filhos, sejam inseridos no processo
terapêutico.
35
Essa colocação faz ressonância com as de Térzis (2002) que, em seus
estudos, verificou que a atenção do terapeuta deve voltar-se para a família, afinal,
acredita que o filho - paciente normalmente é o porta voz e objeto depositário das
ansiedades e conflitos de seus pais, sendo, portanto, a sintomatologia do mesmo
reflexo da patologia de um ou ambos os pais, ou mesmo do ambiente social que
se encontra inserido. Observou que, na maioria das famílias, a relação pai - filho
era desfavorável, isto é, o pai não atendia às necessidades básicas psicossociais
do filho. Quanto à relação mãe – filho, destacou que normalmente a mãe
demonstrava-se protetora e ansiosa, preservando uma pseudo - harmonia com o
filho. A relação entre os pais era predominantemente constituída de características
agressivas. Conclui-se, assim, que a família e não o indivíduo isolado é que
adoece.
Em sua experiência, Térzis (2002) sugere como eficaz o atendimento de
pais e filho em grupos paralelos. Observou que, após alguns encontros, os
familiares verbalizam sua crescente curiosidade acerca de como sua
personalidade afeta e é afetada pelos demais. Começaram a perceber a
necessidade de ampliar seu repertório de conduta em certas situações, tanto que
buscaram encontrar normas de administrar melhor as necessidades e os vínculos
familiares. Dessa forma, o autor afirma que o grupo possibilita aos seus membros
ampliar as percepções sobre si mesmo e sobre os problemas que o afetam, para
isso, o grupoanalista, através de sua escuta e intervenções, oportuniza aos pais
aproximarem-se de suas verdades, até então alienadas nos sintomas do filho. A
partir dessas considerações, reafirma a necessidade de estender o atendimento à
36
família como forma de viabilizar e aprofundar a psicoterapia das crianças e dos
adolescentes.
O programa ReCriando, compartilhando desse pensamento, convida os
familiares para participarem de alguns encontros com as crianças, o que, segundo
Penteado, Auko e Oliveira (2006) possibilita o contato com o prazer de brincar e a
oportunidade de sensibilizar a família que, dessa forma, pode refletir sobre novas
ações a respeito de seu cotidiano.
Visto a complexidade aqui descrita que envolve a grupanálise, faz-se
necessário enfocar alguns aspectos mais específicos da teoria da escola francesa,
já que essa será a principal norteadora desse trabalho.
1.4- Principais idéias da escola francesa
A presente pesquisa é baseada em especial nas teorias de grupoterapia
formuladas por pensadores psicanalistas representantes da escola Francesa
CEFFRAP (Círculo de Estudos Francês para a Formação e Investigação Ativa em
Psicologia), entre eles Anzieu, Pontalis e René Kaës.
Kaës (1976/1977 e 1997) formulou o projeto de uma metapsicologia
psicanalítica dos conjuntos intersubjetivos e propôs a hipótese do “aparelho
psíquico grupal”. Nesta perspectiva, conceituou o grupo como dimensão de um
grupo interno, que não é a simples projeção antropomórfica de grupos
intersubjetivos, mas uma organização em nível de realidade psíquica. Ressalta
37
que o grupo envolve indistintamente dois níveis de realidade: o primeiro definido
pela psicologia social, dentro de uma perspectiva estrutural, preocupada com
estudo do nível consciente, já o segundo, por sua vez, corresponde à contribuição
da psicanálise que caracteriza o grupo como um objeto, ou seja, como uma forma
mais ou menos autônoma e personificada de existir. Para o autor, tão importante
como distinguir esses níveis é conseguir articulá-los, ou seja, compreender como
o segundo nível (inconsciente) influencia o primeiro e vice-versa.
Aponta como maior problema por ele observado na prática e no estudo dos
grupos, a existência, por um lado, de uma necessidade de ocultar as
representações inconscientes que caracterizam o grupo como objeto representado
e, por outro, a tendência de desconsiderarem o processo grupal no sentido de
suas determinações sociais. Esses dois tipos de redução cumprem a função de
promover uma descontinuidade entre a realidade psíquica e a social. Kaës
(1976/1977) destaca, ainda, que a literatura sobre os pequenos grupos é voltada,
principalmente, para a compreensão de como o grupo se forma e se organiza, isto
é, voltada para as manifestações conscientes. Sua proposta é justamente
considerar as emoções e ações desencadeadas no grupo, que até então eram
ocultadas.
Pautado pelas contribuições de Pontalis (1963), Anzieu (1984/1993) e Kaës
(1997), o grupo, neste estudo, será considerado como um objeto de investimento
pulsional e de representações inconscientes. Os autores acreditam que este
detém um espaço que possibilita a manifestação de desejos. O grupo é um
continente no interior do qual se ativa uma circulação fantasmática e
38
identificatória, ou seja, é um objeto de representações e afetos organizados por
certas formações psíquicas que possuem propriedades grupais. Assim sendo, eles
defendem que, para construir a imagem do objeto – grupo, as pessoas utilizam-se
de referências psíquicas presentes em cada um, como também de referências
materiais e sociais.
Os representantes do CEFFRAP formularam duas hipóteses
complementares: a primeira defende que a representação do grupo é um
componente do processo grupal, analisando o grupo em termos de tarefa, de
estrutura. Já a segunda considera que as representações do grupo estão em
condições de funcionar como organizadores das relações intersubjetivas, grupais
e intergrupais. Portanto, concluem que os grupos se organizam e se estruturam
de acordo com a integração de objetos internos que cada um traz para o grupo.
Dessa forma, o grupo seria uma tópica projetada. (Anzieu, 1984/1993; Kaës,
1976/1977 e Pontalis,1963).
Porém, não se reduz a isso, o grupo é também lugar de uma realidade
psíquica, de formações e processos que se produzem apenas em grupo e são
regidas por uma lógica de determinações e por instâncias próprias a esse
conjunto. O grupo é, assim, um sistema de formação e processos psíquicos
derivados do inconsciente, é um aparelho gerador de efeitos psíquicos
relativamente autônomo em relação às psiques singulares. Dessa maneira o grupo
pode ser encarado como reserva de representações imaginárias que objetariam
em uma imago, sustentando a noção de grupo como entidade específica (Kaës,
1997).
39
Kaës (1997) é assim levado a propor o conceito de “aparelho psíquico
grupal”, que seria uma ficção de um grupo psíquico sustentado por um grupo
mítico, que se atualiza na construção real de um grupo concreto. Ele é constituído
como um aparelho psíquico subjetivo, reproduzindo seus elementos constitutivos:
imagem do corpo, fantasias originárias, redes de identificação e estruturas. A
construção do “aparelho psíquico grupal” é resultado de uma atividade projetiva e
introjetiva do objeto – grupo comum entre os membros de um grupo, sua principal
característica é assegurar a mediação e a troca entre a realidade psíquica nos
seus componentes intrapsíquicos, intersubjetivos e grupais e a realidade grupal
em seus aspectos sociais e culturais. A partir disso, pode-se pensar na construção
do aparelho psíquico grupal como internalização de um modelo proporcionado
pelos organizadores grupais do psiquismo e como uma construção transicional à
medida que asseguram uma relação entre o universo intrapsíquico e o universo
social.
A representação do grupo como objeto se efetua através de dois
organizadores: psíquicos e socioculturais. Cada um desses contém organizadores
específicos, ou seja, esquemas subjacentes que organizam a construção do gr
upo em sua condição de objeto de representação.
O primeiro, organizadores psíquicos, correspondem a uma formação
inconsciente parecida com um sonho e são constituídos por objetos do desejo
infantil, podem ser comuns a vários indivíduos ou ter um caráter único. Já o
segundo, organizadores socioculturais, são comuns entre os membros de uma
determinada área sociocultural e, eventualmente, a várias culturas, funcionam
40
como código registrador, tal qual o mito; possibilitam a elaboração simbólica do
núcleo inconsciente das representações e a comunicação entre os membros de
uma sociedade, dessa forma, atuam na transformação do sonho (individual) para
o mito (coletivo) (Kaës, 1976/1977).
1. Os organizadores psíquicos:
Consistem em configurações inconscientes típicas da relação entre objetos,
possuem propriedades figurativas e projetivas. Kaës (1976/1977) distingue quatro
organizadores psíquicos principais: a imagem do corpo, as fantasias originárias,
os complexos familiares e as imagos parentais e por ultimo a imagem do aparelho
psíquico individual.
a) A imagem do corpo:
O grupo representado como um organismo ou parte de um organismo. A
representação do grupo como corpo oscila entre duas tentativas: a de ser corpo
(existir), na busca de garantias contra o sentimento de inexistência, de exclusão; e
a de fazer corpo (unificar-se), reconstruir uma unidade constantemente ameaçada
pelos perigos internos e externos. Ser corpo em grupo é fazer corpo contra a
angústia de separação e do temor de não ter assegurado um lugar dentro de um
conjunto. No estudo de Kaës (1976/1977), é ressaltada a dimensão fundamental
que a identificação tem na tentativa de ser, de fazer e seguir sendo corpo, também
destaca que esta representação assume função de luta contra angústias
psicóticas de fragmentação.
41
A representação visual do grupo como corpo do qual cada um é uma parte
integrante de um conjunto idealizado e supervalorizado, constitui um componente
narcísico da identificação com o objeto – grupo, o que foi denominado de “ilusão
grupal”, ou seja, o objeto-grupo é maciçamente investido pelas pulsões libidinais,
garantindo que o grupo se organize como uma unidade – corpo contra a
fragmentação, a angústia de ser parte desligada do todo grupal, de estar
aprisionado por ele e de poder ser devorado, engolido e digerido; contra a
dissociação de si, do corpo, do espaço e do grupo, isso é, contra as “fantasias de
quebra”. (Anzieu, 1984/1993 e Kaës, 1976/1977).
A análise das representações do grupo tem mostrado que todas as partes
do corpo podem ser a base das representações do objeto grupal: a boca, o
estômago, o ventre, o pênis. No entanto, quase sempre o objeto - grupo é
representado pelo corpo materno, simbolizando o desejo de regresso ao útero,
que tem a representação de uma barreira protetora contra agressões e danos
exteriores.
b) As fantasias originárias:
Toda representação do grupo como corpo, ou como parte de um corpo
estão conectadas a um cenário fantasmático, através do qual o sujeito representa
sua origem, o destino de sua concepção, de seu nascimento, da sexualidade e da
diferença entre os sexos. Segundo Kaës (1976/1977), estes fantasmas originários
têm propriedades grupais e representam, às vezes, de maneira individual, às
42
vezes, coletivas, um conjunto de encenações de vínculos e processos entre
objetos psíquicos. As fantasias originárias são:
Fantasias intra-uterinas:
o grupo é como um útero, como uma
placenta (boa ou envenenada). O grupo é a utopia e a ucronia das
origens, isto é, é o espaço e o tempo onde emerge o drama da
separação e perda do primeiro objeto, que é o habita materno. A
fantasmática intra-uterina assinala o desejo de regressar ao ventre
materno para fugir da realidade exterior.
Fantasias da cena primária:
são interpretações das relações
sexuais entre os pais. Esta fantasia organiza a representação do grupo
como coito ininterrupto. Os membros do grupo representam, deste
modo, ao mesmo tempo e em uma mesma figura combinada, a mãe, o
pai e os filhos – o grupo é uma família.
Os fantasmas de sedução:
trata-se da encenação de sinais
sexuais desejados e temidos pelo sujeito. De acordo com Anzieu
(1984/1993), corresponde ao terceiro pré - suposto de Bion (1961/1970),
o Pariamento.
Os fantasmas da castração:
constitui-se como representação da
angústia suscitada pela ameaça da perda do pênis, forma uma resposta
ao enigma da diferença do sexo. O grupo pode manifestar uma luta para
eliminar as diferenças, o que desperta nos membros fantasias
persecutórias ligadas à posição esquisoparanóide, expressa por Anzieu
(1984/1993) como “fantasias de quebra”.
43
Ao contrário, o grupo organizado em torno de um fantasma originário
admite diferenças entre seus membros, já que estão seguros quanto a sua origem.
Os aparelhos psíquicos individuais são reconhecidos em sua autonomia relativa e
em sua transitividade com os outros aparelhos psíquicos individuais (Anzieu,
1984/1993).
c) Os complexos familiares e as imagos parentais:
O grupo é representado pelos complexos familiares, que funcionam como
organizadores do desenvolvimento psíquico, como por exemplo, o complexo do
desmame e o do Édipo. Isto significa que o grupo é representado através das
relações construídas dentro do grupo primário que é a família, ou seja, o grupo
mobiliza o princípio da repetição das relações familiares, sua estrutura libidinal, as
identificações, seus conflitos e angústias. É importante destacar que a
representação não é uma simples replicação ou reflexo, mas, sim, a tentativa de
transformação de crença em novos nexos intrapsíquicos e novas relações
interpessoais e sociais. Dessa forma, o grupo pode ser considerado como sede de
manifestações das representações e dos afetos reprimidos, é um sonho, que,
apesar de regido pelo principio do prazer, também está submetido à censura, que
disfarça o objeto de desejo, utilizando-se de mecanismos de defesa primários
(Kaës, 1976/1977).
Na análise de desenhos que Kaës (1976/1977) realizou, concluiu que o
grupo é uma cópia da família, mas também se destingue por alguns elementos: é
um cópia sobretudo pela organização fantasmática comum, e a diferença é que no
44
grupo os afetos são mais facilmente expressos, o que o transforma em “outra
família”, na qual parece predominar o princípio do prazer entre iguais e a realidade
moldada pelos sonhos. Neste sentido, a família se apresenta como um anti-grupo
e o grupo como anti-família, ou melhor dizendo, como seu negativo.
Em relação às imagos parentais é primeiramente importante compreender
que imago é a forma como o indivíduo apreende o outro e não um reflexo da
situação real. É a representação elaborada a partir das primeiras relações
intersubjetivas reais e fantasmáticas com o meio familiar (Laplanche e Pontalis,
1971/ 2001). Anzieu (1984/1993) acredita que a imago tenta garantir a unidade e a
estabilidade de um grupo, porém previne que são comuns desordens ou
transformações na organização interna e no funcionamento do grupo pela
bivalência das imagos.
A noção de imago pode ser atribuída a três funções: materna, paterna e
fraterna. A imago materna favorece manifestação do Ego Ideal, dos objetos
parciais como o seio bom e o seio mau; a imago paterna se favorece pela
onipotência do pensamento, pela intelectualização, pelo predomínio da lógica e da
razão, demarcando o Ideal de Ego; a imago fraterna, por sua vez, mobiliza a
cooperação, a igualdade, mas para isso impõem ao líder a necessidade de amar a
todos de uma forma igualitária, enquanto que no grupo é despertada a competição
e a rivalidade (Anzieu, 1984/1993).
d) Aparelho psíquico individual:
45
Neste caso, a estruturação topográfica do aparelho psíquico individual seria
aplicada ao grupo. O que significa que a representação do grupo elabora-se
através do funcionamento e dos componentes do aparelho psíquico subjetivo.
Estas considerações permitem realizar uma distinção entre organizadores e
estrutura de um grupo, isto é, os fantasmas individuais, originários, as imagos, o
Complexo de Édipo podem organizar ou reorganizar o aparelho psíquico grupal,
mas é necessário que ele possua uma estrutura própria denominada por Kaës
(1976/1977) como envelope psíquico, o Si mesmo do grupo. Uma das
representações mais difundidas do grupo como figuração de uma instância
psíquica é a que faz do grupo a figura do Eu heróico.
Anzieu (1984/1993), escrevendo sobre esse organizador, descreve que
todo encontro vivido como autêntico ou intenso entre dois ou mais indivíduos
desperta, mobiliza esses seus fantasmas pessoais. O que ocorre é que o grupo se
organiza em torno do fantasma de um de seus membros que é eleito
inconscientemente pelos outros participantes a ocupar a posição de Eu do grupo,
que terá a difícil tarefa de estabelecer uma comunicação entre o id, o superego e a
realidade.
2. Os organizadores socioculturais:
Consistem nas figurações de modelos (práticos e teóricos) de relações
interpessoais, grupais e coletivas. Sua finalidade maior não é a de designar
lugares concretos e históricos da existência grupal, mas também de proporcionar
imagens coletivas míticas e proféticas. Os organizadores socioculturais resultam
46
da elaboração social da experiência das diferentes formas de grupalidade, sendo,
portanto, influenciadas pelos organizadores psíquicos. Funcionam como um
código cultural próprio de uma sociedade, assumem função social na medida em
que organizam a internalização coletiva dos modelos de referências grupais e
interpessoais. Cumprem, assim, função psíquica, sobretudo ao proporcionar
modelos identificatórios (Kaës, 1976/1977).
O estudo das representações sociais do grupo, em suas diferentes
modalidades expressivas (mitos, ideologias) recai sobre a transformação da
experiência e da vivência grupal em um sistema social de representação situado
através da uma linguagem única, cuja maior função é tornar inteligível uma forma
de relação com o objeto e estabelecer uma comunicação intersubjetiva. Segundo
Kaës (1976/1977), um sistema como esse define a cultura, é o código comum a
todos os membros de uma formação coletiva organizada. Este código possui
características essenciais:
a- Registra representações da realidade de ordem variada: psiquismo, social,
religioso, e outros, permitindo, assim, estabelecer um vínculo entre
representações singulares e representações de palavras regidas por um
sentido comum e socialmente admitido.
b- Seus constituintes suportam variações mais ou menos amplas em função
do estado das relações sociais e das necessidades psicológicas dos
diferentes membros desta formação. Por isso, o estudo dos conteúdos das
representações é de menor importância em relação a sua organização e a
sua função psíquica e social.
47
Para Kaës (1976/1977), a hipótese que sustenta esses critérios são:
primeiro, que nenhuma representação do grupo é eficaz no processo grupal se
não estiver em condições de ser duplamente referida: os organizadores psíquicos
e sociais; segundo, que as representações sociais do grupo carregam elaborações
coletivas da realidade psíquica interna; e, por último, as representações estão
carregadas por um eu e contribuem para a construção de modelos ideais do
objeto-grupo no psiquismo.
Assim, uma vez constituídas, as representações sociais do grupo
funcionam como objetos que possuem propriedades análogas às do objeto
transicional descrito por Winnicott (1971/1975), ou seja, um objeto criado que
define um espaço de comunicação, mediação e criatividade. Nesse espaço
estabelece-se um jogo mais ou menos livre entre as representações inconscientes
e as sociais. Em seus estudos, Kaës (1976/1977) encontra três modelos de
representações socioculturais, porém aponta que esses são apenas alguns
podendo ser descobertos tantos outros:
a) Modelo Cristão:
Este modelo constitui-se através da representação mítica oferecida por
Cristo e por seus doze apóstolos. Existe o predomínio de uma estrutura
hierárquica formada por um líder e seus subordinados, além de uma missão a
cumprir (evangelizar o mundo). Provavelmente, organiza as representações e
práticas mais comuns na civilização atual, como as instituições que possuem uma
estrutura hierárquica e uma tarefa a executar (Kaës, 1976/1977).
48
b) Modelo Hebraico:
Estes grupos, segundo Kaës (1976/1977) baseiam-se no modelo das doze
tribos de Israel. São caracterizados por seu isolamento do resto do mundo,
constituindo-se em comunidades com seus próprios costumes e leis. O
isolamento, neste caso específico do povo hebreu, teve como finalidade evitar que
entrassem em contato com outras culturas, desviando-se das leis de Jeová.
Nos dias atuais, temos, como exemplo de grupo representado por este
segundo modelo, diversas tribos indígenas espalhadas pelo mundo, sendo que,
ainda hoje, algumas delas não têm contato com a cultura ocidental. (Huber, 1995)
c) Modelo Igualitário:
Baseado no mito dos Argonautas e na lenda dos Cavaleiros da Tabula
Redonda, Kaës (1976/1977) discorre sobre esse modelo como sendo aquele em
que predomina a igualdade entre todos os membros do grupo e a busca e
conquista de um objeto perdido. Neste caso, o grupo organiza-se em democracia
estritamente horizontal e no modelo de autogestão.
Os organizadores, independentes quanto a sua natureza (psíquicos ou
socioculturais), são interdependentes quanto ao seu funcionamento e estão
presentes em todos os grupos. Eles podem se chocar ou um deles prevalecer.
49
Esta teoria, desenvolvida pelos representantes da escola francesa, possibilita uma
leitura dos encontros grupais de maneira mais profunda, levando em consideração
as fantasias inconscientes. São conceitos que favorecem a compreensão do grupo
em seu desenvolvimento, a elucidação de seus conflitos e de seu funcionamento,
o que, certamente, contribui para que o objetivo dessa pesquisa seja respondido,
isto é, possibilita verificar se o grupo é capaz de sensibilizar, de despertar
emoções em seus participantes e se, dessa forma, os conduz ao
autoconhecimento e à busca de novas maneiras de resolução de seus conflitos.
50
2- OBJETIVOS
2.1- Objetivo geral
O objetivo geral deste trabalho é apresentar as experiências com um grupo
de criança e familiares que vivem em situação de violência intrafamiliar e são
atendidas no programa ReCriando.
2.2- Objetivos específicos
1- Observar o desenvolvimento do processo grupal.
2- Estudar alguns aspectos emocionais deste processo.
3- E, verificar se a técnica de grupo aplicada na brinquedoteca é
suficiente para sensibilizar os participantes, crianças e familiares,
sobre os fenômenos emocionais.
51
3- ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
3.1- Participantes
Este trabalho foi realizado com quatro crianças, sendo uma menina e três
meninos e suas respectivas mães, que participaram do programa ReCriando,
desenvolvido na Brinquedoteca do S.O.S.ão Mulher e Família, na cidade de
Campinas/SP.
Para fazerem parte da pesquisa, o requisito essencial, além de serem
voluntários, foi a disponibilidade do cuidador em participar, em conjunto com a
criança, do encontro na brinquedoteca.
Os participantes com nomes fictícios, escolhidos por eles mesmos, e com a
queixa trazida pelas mães ao buscarem o programa, são:
- Agenor - oito anos - pais separados, assiste, constantemente, às discussões
entre os pais, que são motivadas, em especial, por problemas referentes à
visita e pensão. Agenor visita o pai quinzenalmente, muitas vezes recusa-se
a ir, principalmente quando o pai está alcoolizado, o que provoca reações
agressivas no pai e no filho. Além disso, tem encontrado dificuldade em se
adaptar à nova escola (dificuldade de relacionamento).
- Luzia – quarenta e dois anos - mãe de Agenor, trabalha como auxiliar de
escritório na empresa da família que funciona em sua casa. Separada há 5
anos, vive em constantes conflitos com o ex-marido e demonstra grande
preocupação com o filho.
52
- Lucas - sete anos - está agressivo desde que o pai saiu da prisão (cumpriu
pena de 2 anos e 8 meses por porte de droga e roubo). O pai continua
fazendo uso de droga, é nervoso e briga com a esposa e filhos. Lucas
também queixa-se para a mãe de sua ausência. Segundo a mesma, ele é
muito “independente”, pois ela não tem muito tempo para o filho. Além disso,
há algum tempo, Lucas foi pego furtando doces no supermercado de seu
bairro.
- Maria – vinte e seis anos, mãe de Lucas, é dona de casa. Diz ter um carinho
grande pelo marido (fala dela), mas, no entanto, as brigas são constantes e
motivadas, especialmente, pela dependência química do mesmo. Percebe-se
distante de Lucas, pois tem mais dois filhos (gêmeos) mais novos que
demandam muito de seu tempo e atenção.
- Júlio - nove anos, veio encaminhado para o programa pelo CRAMI, por ter
sido violentado sexualmente pelo pai. Ele revelou à mãe, quando houve a
separação dos pais e, segundo seu relato, o abuso aconteceu por mais ou
menos dois anos. É uma criança agitada, tem dificuldade de aprendizagem
(não está ainda alfabetizado).
- Gisele – trinta e seis anos, mãe de Júlio, trabalha como doméstica. Está
separada há cinco anos. Assim que ocorreu a separação, o filho revelou o
abuso sexual sofrido. Tem também uma filha mais nova.
- Patrícia - seis anos - pais estão em processo de separação, mas continuam
morando na mesma casa, o que tem gerado muitas brigas e agressões (pai
53
muito violento). Patrícia começou a se “auto- agredir” (belisca - se na região
do pescoço até machucar/sangrar).
- Rose - trinta anos, mãe de Patrícia - não trabalha, está em processo de
separação, pois seu marido a agride física e emocionalmente. Não tem
ninguém na cidade que possa apoiá-la, por isso planeja, assim que a
separação estiver judicialmente concluída, ir para uma cidade de outro
estado viver com sua família de origem.
3.2- Campo de pesquisa: A brinquedoteca
A brinquedoteca tem como espaço físico uma sala ampla dividida em dois
ambientes onde encontramos os “cantinhos”, como é recomendado por Cunha
(2001) e adaptado pela equipe do ReCriando. Em um dos ambientes, encontram-
se:
“Cantinho do faz de conta” – consiste em um local com mobílias infantis,
com utensílios de cozinha, bonecas, minicasinha e outros.
“Cantinho da fantasia” – onde se encontram fantasias, perucas, óculos,
espelho e vários outros adereços.
“Cantinho do desenho” – materiais como lápis, tinta, giz de cera, papéis
para a produção gráfica.
“Cantinho da Música”- com instrumentos musicais de brinquedo.
54
“Estantes com brinquedos” – para serem manuseados livremente,
sugerindo diferentes formas de brincar.
“Mural das carinhas” – é um mural utilizado logo no início do encontro, onde
os participantes escolhem a “carinha” que representa o sentimento daquele
dia e pregam com seu nome.
No outro ambiente encontram-se:
“Cantinho dos jogos”- que ficam em prateleiras de livre acesso às crianças,
tendo uma mesa para que possam jogar e, ainda, um tapete com
almofadas.
“Cantinho da leitura” – no qual as crianças e adultos têm acesso a livros
diversos e fitas de vídeo (para empréstimo).
Nesse espaço existe também um local destinado aos profissionais,
contendo um computador, um arquivo e um armário, onde são guardados
materiais didáticos.
As crianças e familiares, envolvidas no programa, circulam livremente por esse
espaço que tem como principal objetivo favorecer o brincar e como conseqüência
a criatividade e espontaneidade, fundamental no enfrentamento da situação por
elas vivenciada.
3.3- Instrumentos – Técnica adotada
Grupo diagnóstico:
55
A técnica de grupo como instrumento a ser utilizada em pesquisa já era
defendida por Foulkes e Antony (1972/1965) que consideravam esta prática como
um subproduto do processo terapêutico espontâneo, na qual o terapeuta é um
observador participante. Sendo assim, na presente pesquisa, o grupo foi o
instrumento básico de trabalho, mais especificamente o “grupo diagnóstico”, como
denominado por Kaës e Anzieu (1976/1989). Este modelo de trabalho apresenta
dois objetivos interligados. O primeiro é construir um diagnóstico (por isso a
técnica foi nomeada de “grupo diagnóstico”) e o segundo é favorecer aos
participantes meios apropriados para resolver alguns dos problemas que
acometem todo o grupo. Para isso, acredita-se que a técnica deva ser suficiente
para sensibilizar os participantes para os fenômenos grupais.
O “grupo diagnóstico” não prevê uma estruturação rígida. Os temas e
fantasias expressadas são trazidas espontaneamente pelos participantes, pois seu
interesse maior é permitir que cada um viva e compreenda uma experiência de
grupo e, com isso, possa compreender seu próprio modo de ser em grupo, assim
como o do outro. Afinal, como demostrou a psicanálise, é com a tomada de
consciência que o indivíduo consegue uma mudança durável.
Conservou-se portanto, as características do método psicanalítico, aqui
direcionado ao estudo do grupo: a associação plureexpressiva circulante, pois
consiste em atendimento grupal com crianças; a atenção flutuante e a
transferência (Decherf, 1981/1986). Dessa forma, mesmo o grupo tendo alguns
momentos semidirigidos, a pesquisadora esteve atenta para o movimento
psicológico do grupo, o que implicou em uma postura aberta e sensível da mesma
56
para tudo que acontecia no “aqui e agora”, estando disponível para a escuta e
observação dos processos mentais do grupo que estavam ativos durante o
acontecer clínico.
3.4- Procedimento
A pesquisa foi realizada com um grupo de crianças e suas mães, na
brinquedoteca do Programa ReCriando, na qual a autora atua como psicóloga
voluntária e, portanto, facilitadora do brincar e da dinâmica do grupo.
Primeiramente, a instituição onde o programa acontece foi consultada e, após sua
conscientização (anexo 1), foi solicitada a autorização das famílias (anexo 2)
convidadas a participarem da pesquisa.
Composição e classificação do grupo:
A metodologia adotada pelo Programa ReCriando determina que os
atendimentos aconteçam em grupos abertos, ou seja, apesar de manter o número
máximo de oito crianças, quando uma tem alta ou desiste do programa, outra é
convidada a ingressar ao grupo. Dessa forma, o grupo nunca tem um fim, ele é
constantemente renovado. No entanto, na tentativa de melhor alcançar os
objetivos propostos por esta pesquisa, definimos que o grupo em questão fosse
fechado, isto é, mesmo com a desistência de algum participante, ninguém entraria
em seu lugar. Além disso, pelos mesmos motivos (melhor atender aos objetivos),
optamos por atender, em todos os encontros, aos familiares, representados neste
57
grupo apenas por mães, juntamente com as crianças. Na rotina do ReCriando, as
mães ou familiares são convidados a participarem apenas em alguns momentos
na brinquedoteca e, quinzenalmente, são atendidos em grupos paralelos de
orientação e reflexão.
Esta decisão de atendermos às mães, em todos os encontros com seus
filhos, deveu-se ao fato de que o intuito desta pesquisa era apresentar e
compreender o grupo formado não só pelas crianças mas por seus familiares,
que esta é a prática que diferencia o Programa ReCriando e a de maior interesse
da pesquisadora. Além disso, era importante que trabalhássemos sempre com o
“mesmo grupo” em todos os encontros. Esta medida fez com que reduzíssemos o
número de famílias atendidas para quatro e não oito como é a proposta do
ReCriando.
O grupo foi composto de acordo com a metodologia do programa, ou seja,
as crianças foram atendidas primeiramente pela equipe da “BrinquedoDia” –
momento de avaliação – que então, por julgar que necessitavam do atendimento
oferecido, encaminharam-nas para a “BrinquedoMês”. Assim, conforme as
crianças iam sendo encaminhadas, o convite à pesquisa era feito à família, que,
ao concordar, ingressava no grupo. Os primeiros integrantes do grupo foram
Luzia, o filho Agenor, Maria e seu filho Lucas. Após dois encontros, Júlio e sua
mãe Gisele entraram para o grupo e, por último, Patrícia e Rose, o que determinou
o fechamento do mesmo. Foi só no dia da entrada de Patrícia e sua mãe e com o
fechamento do grupo que o material clínico a ser analisado começou a ser
“construído” (González Rey, 2005). Acreditamos que o fato de os outros
58
integrantes já terem participado de encontros prévios, os quais denominamos de
pré – grupo, não interferiu em nossa análise, visto que o objetivo da pesquisa é de
apresentar e analisar o material clínico do grupo que só tem início a partir da
entrada das últimas participantes.
É importante ressaltar que, em relação à classificação, além do grupo ser
fechado, ele é também considerado homogêneo em relação à queixa principal ,
ou seja, todos os participantes vivenciam situação de violência Intrafamiliar
(Zimerman, 2000).
O funcionamento do grupo:
O grupo reuniu-se, semanalmente, na brinquedoteca do S.O.S. Ação
Mulher e Família. Os encontros tiveram duração de três horas cada e foram
constituídos de três momentos distintos, o que é definido no procedimento do
Programa.
-Em um primeiro momento, foi solicitado às crianças e mães que
escolhessem a “carinha” que melhor representasse seu sentimento naquele
momento (as carinhas são feitas de cartolina com desenhos de diversas
expressões como de feliz, triste, bravo, assustado). Em seguida, os
participantes podiam escolher livremente a atividade de seu interesse,
oferecidas pelos diversos “cantinhos” da brinquedoteca (muitos brinquedos
além de jogos, livros, fantasias).
59
- No segundo momento – hora do lanche – crianças e mães tinham que
organizar os brinquedos e ajudar na arrumação da sala e distribuição do
lanche.
- Num terceiro momento (semidirigido), foram realizadas atividades
específicas, na quais era solicitado aos participantes que desenhassem,
contassem histórias, entre outras. Essas atividades foram definidas pelas
profissionais e pelo grupo como um todo e tiveram, como finalidade, funcionar
como materialidade que favorece o encontro terapêutico e a expressão
subjetiva, não sendo rígidas, funcionando mais como pretexto para a dinâmica
grupal do que como tarefa a ser cumprida. Tanto que, em alguns encontros, o
grupo iniciou conversas espontâneas, durante o lanche, que continuaram até o
final, não sendo interrompidas para a realização da tarefa pensada para aquele
dia.
O papel da pesquisadora e o registro dos encontros:
A pesquisadora, nos diferentes momentos dos encontros, esteve atenta
observando se as crianças e mães, ficavam sensibilizadas com os fenômenos e
movimentos do grupo. Além disso, através da observação participante, realizou
intervenções a fim de estimular a expressão e comunicação afetiva entre os
participantes. Ressalta-se que a pesquisadora foi auxiliada por duas co-
terapeutas, também psicólogas voluntárias, como acontece na rotina do programa
o que é recomendado para encontros de grupos.
60
O acontecer clínico foi redigido logo após o final de cada encontro e de uma
conversa reflexiva com as co-terapeutas, visto que, durante as atividades, a
pesquisadora esteve interagindo com o grupo. A possibilidade de três pessoas
estarem presentes e poderem dialogar sobre os fenômenos observados favoreceu
a qualidade da pesquisa, pois permitiu que os movimentos do grupo fossem
melhor acompanhados, além de que vários olhares para um mesmo fenômeno
possibilita a soma e a complementaridade e ainda a oportunidade da terapeuta
pesquisadora discriminar suas reações contratransferenciais.
Gostaríamos, ainda, de fazer referência às idéias de Safra (1993), que
acredita que o relato do acontecer clínico não consegue descrever a complexidade
do que ocorre no encontro terapêutico, por isso, precisamos considerar que, por
utilizarmos o método clínico psicanalítico, fazemos um recorte do todo, delimitado
por um determinado ponto de vista. Para o autor, é só reconhecendo esse “limite”
que mantemos a “objetividade” na investigação que nos propusemos a realizar.
Acreditamos que a psicanálise inaugurou uma nova maneira de fazer
pesquisa, deixando de lado a concepção anterior de separação nítida entre sujeito
e objeto, os grupos controles, a busca da aparente confiança proporcionada pelos
tratamentos estatísticos, para considerar a participação do sujeito no fenômeno
que observa. (Safra,1993 e Silva, 1993).
3.5- Análise do material
61
Pretendeu-se realizar uma análise qualitativa, sendo, portanto, um estudo
interpretativo das interações que operam no grupo. O caminho escolhido para esta
análise foi de pensar o relato do material clínico dos encontros grupais como
produtos análogos aos sonhos. Anzieu (1984/1993) propõe esta analogia entre o
grupo e o sonho. Para ele, o grupo é, antes de tudo, a realização imaginária de um
desejo, portanto um sonho, além disso, tanto um quanto o outro são construções,
representações das questões humanas. Por isso, como proposto por Mathieu
(1967), os encontros terapêuticos foram narrados como um relato mítico, ou seja,
como um sonho, que, analisados, possibilitaram acesso aos conteúdos latentes.
Ao analisar um sonho, segundo o enfoque psicanalítico, valorizam-se as
diversas associações que o sujeito faz sobre o mesmo. No caso da análise do
relato mítico (ou dos encontros grupais), considera-se a existência de um conjunto
de temas ou de fantasias como Kaës (1976/1977) denomina, que definem este
relato. A repetição de uma fantasia sobre as demais confere a mesma uma
característica particular, a de expressar a significação simbólica do encontro
relatado. Portanto, a fim de compreendermos qual foi o significado simbólico
expresso em cada encontro, observamos as fantasias, ou temas que se repetiram
tanto no brincar, nos desenhos realizados, quanto nas conversas entre as crianças
e mães.
Tendo este enfoque como norte foi a princípio definido que utilizaríamos
seis encontros em nossa análise, os quais foram relatados segundo o
procedimento acima descrito e discutidos no grupo de pesquisa, com o orientador
deste trabalho e com uma supervisora que acompanha minha prática clínica. A
62
oportunidade de ter este material por mim relatado compartilhado com tantos
olhares, permitiu que a compreensão que tinha dos encontros fosse amplamente
complementada, possibilitando uma imersão nos conteúdos das falas e do brincar
dos participantes. As releituras do material permitiu-nos maior “objetividade”, além
de levantar aspectos que puderam ser aprofundados na análise e conclusão e
contribuir para que elementos contratransferenciais fossem percebidos.
No entanto, levando em consideração a densidade e riqueza do material,
optamos por utilizar apenas três encontros em nossa análise, decisão que também
foi tomada por acreditarmos que essas seriam suficientes para responder aos
nossos objetivos. Para que pudéssemos acompanhar o desenvolvimento do
grupo, utilizamos: o primeiro encontro; o terceiro que representou o meio do
processo e foi escolhido a esmo; e o último. O que possibilitou acompanhar a
trajetória percorrida pelo grupo (Térzis, 2005b; Cociuffo, 2001).
Primeiramente, realizamos um estudo minucioso das falas e movimentos do
grupo dos três encontros selecionados, como também interpretamos as diversas
associações verbais e lúdicas que cada pessoa (crianças e mães) expressou. Em
seguida, procuramos a fantasia emocional predominante naquele encontro, o qual
denominamos de “fato selecionado” – expressão utilizada por Bion (1992/2000),
para designar a busca de um fato que dê coerência, significado e nomeação a
fatos já conhecidos isoladamente, mas cuja intersecção ainda não foi percebida.
Refere-se, portanto, à ação do analista em traçar uma espécie de “mínimo
denominador comum” de todos os assuntos e expressões relatadas, mesmo que,
63
aparentemente, sejam diferentes, ou seja, buscamos o significado simbólico
expresso em cada encontro.
Salientamos que, através da análise, tentamos enfocar as representações
que o grupo produz, pois são elas que sinalizam os processos grupais, que,
segundo Térzis (1995), envolvem o modo pelo qual as várias dimensões teóricas e
técnicas – que contribuem para dar corpo e forma à terapia grupanalítica – são
estruturadas, organizadas e desempenham uma função.
Dessa forma, construímos nossa experiência com o intuito de obter uma
visualização do funcionamento e das transformações ocorridas no grupo,
atingindo, assim, o nosso objetivo. No entanto, ressaltamos que este trabalho não
teve a finalidade de esgotar as possibilidades de interpretações, pois, como dito
por Cociuffo (2001): “o símbolo é polissêmico e, portanto, inesgotável na produção
de sentidos”.
64
4- ANÁLISE DOS ENCONTROS
4.1- Análise do primeiro encontro:
Participantes:
Agenor e sua mãe Luzia
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
Júlio
Falta: Gisele (mãe de Júlio, não compareceu, pois precisou trabalhar).
A sessão tem início com a entrada de Patrícia e sua mãe no grupo.
(1.1) Patrícia chega acompanhada de sua mãe. Elas se apresentam (é o primeiro
atendimento). Patrícia parece assustada, fica escondida atrás da mãe e, depois, entra
bem timidamente na sala... Rose também parece assustada, entra receosa na sala.
Patrícia já teve um primeiro contato com a brinquedoteca, quando passou
pela “brinquedodia”, momento de avaliação, por isso sabe que é um lugar para
brincar. Ela demonstra ter o desejo de estar ali, de brincar, de conhecer melhor
aquele espaço, porém, na hora de sua chegada, esse mesmo espaço que
desperta curiosidade é sentido com medo e receio. Ela e sua mãe experimentam
um sentimento de estranheza, transferem para o grupo tanto sentimentos positivos
(desejo de participar) como negativos (receio), revivendo, dessa forma, a
ambivalência, fantasia primitiva vivenciada nas primeiras relações objetais – entre
o bebê e sua mãe – concomitantemente, o bebê tem sentimentos e idéias opostas
65
em relação à mãe, simultaneamente sente amor e ódio, aproximação e
afastamento (Laplanche e Pontalis, 1971/2001).
(1.2) Lucas senta e logo pergunta sobre a nova integrante...
... Lucas propõe uma apresentação, olhando para Patrícia.
Lucas – como ela chama? (perguntando para a terapeuta)
Terapeuta – Por que você não pergunta para ela?
Lucas – Eu sou o Lucas e essa é minha mãe. Fala seu nome, mãe?
Maria – Maria. E vocês como chamam?
Agenor entra na sala, apressado, deu a impressão de ter ficado incomodado pelo
encontro já ter começado e de ter duas novas pessoas na sala – ele é sempre o primeiro
a chegar.
Lucas, assim como Agenor, também ficam mobilizados com a entrada das
novas integrantes. Eles também vivenciam o grupo com esse sentimento de
estranheza, ficam receosos com a mudança gerada pela entrada das novas
participantes. A apresentação proposta por Lucas tem a função de diminuir esse
sentimento de ansiedade.
(1.3) ... o primeiro a falar foi Agenor, contou que estava mais ou menos feliz,
porque ontem foi aniversário da avó, fez oitenta anos e triste, porque uma vizinha havia
morrido...
Neste fragmento, Agenor traz uma experiência subjetiva carregada de dois
sentimentos, o de alegria (aniversário) e o de pesar (morte). Da mesma forma,
66
entendemos que ele poderia estar atribuindo ao grupo esses mesmos
sentimentos: de alegria com o nascimento do grupo e o de pesar pelo receio
gerado pela entrada das novas participantes.
No início do primeiro encontro, deparamo-nos com um fenômeno comum
quando o grupo está se formando, como é o caso, é o mecanismo de defesa
denominado “sideração grupal”, momento de regressão a vivências primitivas,
onde psique e corpo estavam fundidos, não havendo ainda a individuação eu -
não eu (Decherf , 1981/1986). Pudemos observar um momento de paralisação
das crianças e mães frente a duas forças opostas (desejo X receio). Trocam
olhares e observam-se discretamente, interagindo pouco e com receio, o que
parece ser motivado pela possibilidade que o grupo oferece de que cada um tem
de fazer ou dizer o que quiser. A situação grupal, de liberdade, parece favorecer
um processo regressivo a estágios primitivos, despertando vivências de angústias
e fazendo com que as crianças e mães apresentem um estado mental de
imobilidade.
Estes primeiros fragmentos também nos faz pensar que as crianças e mães
vivenciam neste espaço, no aqui - agora, outros espaços que foram vividos com
estranheza e permeados por angústias persecutórias, o que nos remete ao
conceito de Kaës (1976/1977) do grupo como objeto de representação
2
.
O grupo, após esse primeiro momento de estranheza, segue falando das
tristezas, das faltas e privações que vivem em seu cotidiano:
2
O grupo é um continente no interior do qual se ativa uma circulação fantasmática e identificatória,
ou seja, é um objeto de representações e afetos organizados por certas formações psíquicas que
possuem propriedades grupais. Assim sendo, para construir a imagem do objeto – grupo, as
pessoas utilizam-se de referências psíquicas presentes na história de cada um, como também de
referências sociais (Kaës,1976/1977).
67
(1.4)Lucas disse que estava triste, e conta que seu pai saiu de casa, disse que os
pais tiveram uma briga feia, porque o pai quer sair à noite sozinho como se fosse mais
novo.
(1.5) Maria – Não teve outro jeito, ele age como se fosse solteiro, se não tivesse
família. Eu não agüentei mais.
(1.6) Luzia – Mas foi você que mandou ele embora de casa ou ele que saiu?
(1.7) Maria – Fui eu, ele achou que eu não ia ter coragem, porque sempre falei,
mas nunca fiz nada, só que não deu mais. Ele insistiu em ficar, mas eu disse que não
queria e ele foi embora.
(1.8) Luzia Eu te perguntei isso ,porque, quando o pai do Agenor foi embora, eu
tive que chamar até oficial para tirar ele de casa e foi horrível, tudo que eu queria é que
ele tivesse saindo numa boa.
Agenor – Entrou um homem em casa e tirou ele na marra.
Terapeuta – Vocês hoje estão falando de perdas, separação ...
(1.14) Patrícia – Meu pai bateu na minha mãe e pegou uma faca, aí eu fiquei
brava e briguei com ele, porque ele machucou, cortou todo o braço da minha mãe.
O grupo está se queixando que o ambiente familiar é marcado por
sentimentos de tristeza, perda e abandono, comunicam o que falta no vínculo
entre e com seus pais: a união, afeto, reconhecimento e companheirismo.
Parece-nos, então, que as crianças e mães estão buscando no aqui - agora,
exatamente, o que falta lá fora, o que nos permite dizer que o grupo se encontra
no suposto básico de dependência explicitado por Bion (1961/1970), isto é, o
grupo está funcionando no nível mais primitivo da nossa estruturação psíquica, em
68
busca de proteção, segurança, alimentação material e afetiva, da possibilidade de
vir a ser. O grupo chega carente, privado, os integrantes trazem experiências
subjetivas individuais e múltiplas de como são vividos os vínculos na família.
Ainda, em relação a essas falas, observamos um outro fenômeno
denominado ressonância, ou seja, Lucas traz uma experiência subjetiva singular
para o grupo que provoca uma vibração no mundo psíquico de todos os membros
e faz com que, no aqui – agora, o grupo, através de um portador, pode se ouvir,
pode verbalizar ou encenar suas fantasias. Assim, a experiência individual de
Lucas torna-se o “organizador” do funcionamento do grupo, fazendo despertar nas
outras crianças e mães fantasias similares, assim como a busca de possíveis
soluções para elas (Foulkes e Antony, 1965/1972 & Anzieu, 1984/1993).
(1.18) Luzia diz que gostaria de falar sobre um problema que Agenor vem tendo na
escola e que ela não sabe mais o que fazer.
(1.19) Luzia – Tem um menino na escola que bate no Agenor, ele disse que já
contou para a professora e que ela não faz nada e o menino continua batendo, aí ele fica
nervoso e quer brigar...
Agenor – Eu já falei com a professora e ela nem liga, eu que não vou ficar
apanhando, vou meter a mão na cara dele.
Como notamos, no fragmento, as relações externas à família (escola)
também são permeadas por desencontros e agressividade, portanto, esperam
que, aqui, possam ser acolhidos, têm a fantasia de que o grupo, incluindo as
69
terapeutas, possam suprir todas as suas necessidades e carências com amor e
reconhecimento.
(1.10) Júlio – Eu tô triste, porque meu peixe morreu e meu gato sumiu.
(1.11) Agenor – Se você tá triste, por que você escolheu a carinha de feliz?
(1.12) Júlio – Porque eu vim aqui.
(1.13) Terapeuta 1 – Acho que, como nós estávamos falando de tristeza e perdas,
ele lembrou das suas e resolveu contar.
(1.14) Patrícia – Meu pai bateu na minha mãe e pegou uma faca, aí eu fiquei
brava e briguei com ele, porque ele machucou ela, cortou todo o braço da minha mãe.
(ela havia escolhido a carinha de feliz)
Este é um outro aspecto que também aparece na fala das crianças que
tentam se proteger de tanta tristeza e privações. Patrícia e Júlio escolhem a
carinha de feliz (sempre que as crianças chegam à brinquedoteca, elas escolhem
uma carinha que representa seus sentimentos no momento), no entanto,
verbalizam cenas de perdas, separação e agressões dos pais.
Podemos supor que a escolha das carinhas felizes representa o desejo e a
necessidade que têm de acontecimentos e vivências boas para minimizar as ruins,
reforçando a idéia de que os participantes (mães e crianças) vêm ao grupo com a
esperança de que algo bom seja feito, para que possam suprir essas agressões e
frustrações, a fim de poderem ser felizes, por isso, pensamos que falam das
tristezas não para sucumbir, mas para elaborá-las.
70
Ainda, em relação a esse fragmento, gostaríamos de ressaltar a fala de
Agenor (1.11), que exemplifica um outro fenômeno grupal, no qual todas as
experiências individuais e coletivas trazidas ao grupo podem ser pensadas,
refletidas, questionadas e mesmo interpretadas pelo próprio grupo (Térzis, 1990).
É dessa forma que o grupo possibilita a compreensão e ressignificação das
vivências, favorecendo a criação da “identidade de pensamento”, o que permite
dizer que o grupo é uma técnica que sensibiliza as pessoas para os fenômenos
emocionais.
Voltando à fala de Patrícia (1.14), notamos que ela traz uma experiência
com teor persecutório, despertando, no grupo como todo, a angústia de
aniquilamento e, para lidar com esse sentimento e com o sofrimento que ele
evidencia, eles entram em um estado paradoxal (falam de morte e riem). Esse
sorriso pode ser uma forma de minimizar a angústia persecutória, dando uma
entonação à fala de Patrícia, como se fosse uma brincadeira, revela um estado
eufórico.
(1.17) Eles vão se levantando e pegando os brinquedos, Lucas e Júlio pegam um
jogo de futebol...
(1.17ª) Patrícia fica olhando diversos brinquedos, mas não pega nenhum, sua mãe
fica sentada, parece esperar alguma orientação...
Este trecho refere-se ao momento do encontro – “hora de brincar”.
Notamos que apenas os meninos demonstram iniciativa, escolhem os jogos e
organizam as brincadeiras. Patrícia, por sua vez, permanece mais apática, tímida,
71
o que talvez ocorra por ela ser a única menina. Kaës (1976/1977) discorre sobre
os organizadores psíquicos, sendo um deles apoiado no conceito das “fantasias
originárias”, aqui, em especial, as fantasias geradas pela descoberta da diferença
dos sexos, que são as fantasias inerentes ao Édipo e à castração. Dessa forma,
Patrícia age como se os meninos tivessem algo a mais que ela, o falo, o poder,
portanto, eles sabem, eles têm a força e ela não, ficando inferiorizada em relação
a eles – escondendo-se atrás da mãe.
Está constatação de que os meninos têm uma atuação mais ativa,
agressiva, enquanto Patrícia assume uma postura mais tímida, mais reservada,
também pode ser compreendida, levando em consideração o modelo
sociocultural. Kaës (1976/1977) contemplou em seus estudos os “organizadores
socioculturais” que consistem em configurações de modelos de relações
interpessoais, grupais e coletivas que, funcionam como um código cultural próprio
de uma sociedade. O autor destaca os modelos hierárquicos como, por exemplo,
o modelo cristão (líder/subordinado). No entanto, este fragmento que estamos
destacando nos permite pensar em um outro tipo de organizador sociocultural
determinado pelos modelos de atuação esperados culturalmente para os meninos
e meninas. Dos meninos é esperado que sejam mais atuantes, enquanto que as
meninas mais passivas, envolvidas com atividades relacionadas com o cuidar.
Lucas - Nós não vamos brincar?
(1.18) Luzia diz que gostaria de falar sobre um problema que Agenor vem tendo...
(1.23) Agenor – Ticiane, vamos jogar o jogo do Mico?
(1.24) Luzia – Agenor, eu queria conversar...
72
(1.25) Agenor – Agora, é hora de brincar.
As mães juntam-se à Patrícia, formando um subgrupo. Elas também não
acompanham o jogo, assumem uma postura sociocultural esperada que é a de
desempenhar a função de cuidadoras. Assim, ao invés de brincar, querem
conversar sobre as relações familiares. A relutância em entrar no jogo também
pode ser compreendida porque, talvez, sintam-se ameaçadas pela proposta do
Brincar, que representa uma porta de entrada para o inconsciente e desperta
resistência pelo convite à regressão. Por isso, elas não brincam, continuam
conversando, ou melhor dizendo, descarregando sobre suas vivência cotidianas,
sempre numa postura passiva, idealizando aquele espaço como se fosse possível,
ali, elaborar seus conflitos, sem ter que enfrentá-los, portanto, ainda fazendo uso
de aspectos infantis, mágicos.
(1.26) Quando pedimos para arrumar a sala, porque era hora do lanche, todos
colaboraram, com exceção de Agenor, que estava muito agitado. Ele estava fazendo um
desenho na lousa e Lucas foi apagar para guardar as coisas e os dois brigaram.
No banheiro, enquanto estavam lavando as mãos, eles brigaram novamente...
Agenor – O Lucas brigou comigo, ele apagou o meu desenho e, depois, me jogou
água.
Este trecho também é um outro exemplo que pode ser compreendido
segundo os organizadores socioculturais. Os meninos mostram que atuam, de
maneira primitiva (briga), na tentativa de resolver seus conflitos, de demostrar a
73
força, disputam o poder. A agressão que, primeiramente, foi representada na
brincadeira (jogar bola) é aqui direcionada aos próprios amigos.
(1.27) Agenor, ao entrar na sala, estava bem nervoso, foi para o lado oposto de onde
estava o lanche e deitou no tapete sobre as almofadas...
(1.28) Agenor - É que eu tô de saco cheio da minha mãe, ela fica insistindo...
(1.29) Ela insiste muito, ontem, a minha tia trouxe um bolo, um salgado e um doce, de
uma festa que ela foi. Aí, eu comi o salgado, mas não quis o doce e a minha mãe ficou
mandando eu comer, eu falava que não queria e ela insistia, até eu falar assim: - NÃO
(gritando). Até o meu tio falou: - Tata, você tá chata. É sempre assim, eu falo que não
quero comer carne, ela me faz comer.
Como podemos observar no fragmento, a “hora do lanche” foi marcada pelo
“isolamento” de Agenor. Provavelmente, é assim que age, quando enfrenta um
conflito.
Quando Agenor se aconchega no tapete envolto por almofadas, parece
estar tentando criar um espaço de segurança, posteriormente, denominado pelo
grupo de “confessionário”, local que pensamos ter tido a representação do divã. É
como se o grupo precisasse criar um cantinho para poder viver e verbalizar suas
angústias e partes agressivas que, fora dali, são vividas com muita ansiedade.
Eles criaram um espaço que podemos correlacionar com o espaço transicional
descrito nos estudos de Winnicott (1971/1975): é um espaço virtual que faz uma
espécie de ponte entre o mundo interno e o imaginário, possibilitando alto
potencial e riqueza de criatividade.
74
Nesse espaço potencial criado pelo grupo, Agenor, alimentado pela ilusão
da onipotência, característica essencial desse espaço destacada pelo autor,
consegue expressar sentimentos em relação à mãe que, até então, não se
permitia.
(1.35) Terapeuta – Você quer falar para ela (mãe)? Quer que eu a chame para
você contar para ela?
(1.36) Fez que sim com a cabeça...
(1.38) Agenor - É que eu estava contando que, às vezes, você insiste demais. (ele
tem dificuldade de falar, fala enrolado, quase não dá para entender, fica o tempo todo de
cabeça baixa)...
(1.40) Agenor - ...o bolo que a tia trouxe que eu não queria o doce e você queria
que eu comesse, tive até que gritar. Até o tio falou que você estava chata.
(1.41) Luzia – Ah! É que a minha sobrinha estava ... ficando noivos e ... Eu queria
que o Agenor experimentasse o bolo, porque estava tão bonito e a gente quase nunca
tem chance de comer um bolo assim, só quando tem festa.
(1.42) Agenor – Mas eu não queria.
(1.43) Luzia – Tá bom, eu não sabia que isso te deixava tão triste. E o que mais te
deixa assim?
(1.44) Agenor – Toda vez que eu falo que eu não quero e você insiste (conta
algumas situações, todas relacionadas à comida).
Este fragmento revela que, com a intervenção da terapeuta e a segurança
que sente nela e no espaço, Agenor consegue ir além e dizer à mãe o que sente,
construindo, dessa forma, um diálogo transformador.
75
A fala de Agenor com a mãe mostra a insistência de Luzia de que o filho
tenha que agir conforme seus desejos. A mãe impõe-se ao filho sem reconhecê–lo
como um indivíduo diferente dela. Eles sentem-se ainda fundidos, não atingiram a
capacidade de discriminar entre o eu e o outro, tampouco a capacidade de
separação e individuação, o que, segundo Malher (1979/1982), caracteriza um
vínculo simbiótico. Essa atuação da mãe cria em Agenor o sentimento de
exaustão, fica sufocado, sente a ameaça de perder sua identidade.
Na verdade, parece que Agenor, apoiado pelo grupo, demonstra em sua
fala o desejo de evoluir para a diferenciação. É esse o pedido que faz à mãe,
neste encontro, quer ser reconhecido como um sujeito. Porém, é uma evolução
que gera muita angústia, em especial, de perder o amor de sua mãe e de não
suportar a separação, por isso podemos notar tanta fragilidade em sua fala “(ele
tem dificuldade de falar, fala enrolado, quase não dá para entender, fica o tempo
todo de cabeça baixa)”.
Ainda, em relação a esse fragmento, gostaria de ressaltar que. quando ouvi
esse diálogo, essa fala confusa e praticamente inteligível, senti-me presenciando
um encontro entre um bebê e sua mãe, uma mãe que, por um pequeno instante,
assume uma postura devotada (1.43). Durante a conversa, ela toma consciência
da maneira como atua em sua relação com o filho, do quanto tem imposto a ele
seus sentimentos, desejos e medos e, apesar de assustada com a situação, Luzia
foi capaz de compreender o pedido de Agenor e reconhecer seu sofrimento,
expresso quase como um “choro, um balbucio”.
76
(1.48) Luzia – Eu fiquei pensando se isso também não acontece, quando o pai vai
buscar você, Agenor? Porque, às vezes, o Agenor fala que não quer ir, mas o pai dele
insiste e o Agenor fica muito bravo.
(1.51) Percebo que Agenor fica disperso com essa conversa. Ele me pergunta,
novamente, como chama e como se joga o jogo que está na mão.
(1.52) Terapeuta – Agenor, me parece que você não quer muito falar sobre isso...
(1.53) Agenor Eu não quero falar do meu pai, hoje, só da minha mãe.
No início desse fragmento, percebemos o quanto a idéia de ter que se
separar do filho, reconhecê-lo como um indivíduo diferente dela, gera em Luzia
muita angústia e, para se proteger, para afastar a sensação de ameaça, tenta
projetar na relação de Agenor com seu pai os conflitos e desconfortos expressos
pelo filho, buscando, assim, não entrar em contato com seu desejo de invadir e
possuir aquele filho.
Contudo, Agenor consegue manter-se firme em seu pedido, dizendo que
não é sobre isso que deseja conversar. Parece que, com a criação desse
“confessionário”, lugar próprio para que as pessoas contem seus “pecados” e
sejam absolvidos, Agenor consegue sentir-se seguro, livre para dizer o que sente
a sua mãe, saindo da postura habitual de submissão.
(1.37) Lucas vem até onde estamos, deita sobre as almofadas e, quando a outra
terapeuta vem chamá-lo, ele diz que não vai porque também quer conversar. Diz que ali é
o confessionário.
77
A procura de um lugar protegido para conversar com as mães também
parece fazer ressonância em Lucas que, logo que observa o que estava
acontecendo, pede para também ter o seu tempo de conversa com a sua mãe.
(1.56) Lucas – Mãe, porque você largou do meu pai? Você vai voltar com ele?
(1.57) Maria A mãe já te contou, eu e seu pai estávamos brigando muito e, por
isso, a gente se separou, mas entre você e ele não vai mudar nada, ele vai continuar
sendo seu pai.
(1.59) Lucas – Eu queria que eles dormissem juntos, que desse certo, a gente lá
na Santa Clara, na piscina, meu pai fazendo churrasco e minha mãe ajudando. Assim era
gostoso.
Ele chora e a mãe o abraça.
Como podemos constatar, ele aproveita esse espaço para falar
essencialmente de suas faltas, da dor que tem sentido com a separação dos pais
e mostra o desejo de que tudo termine bem, que os dois voltem e sejam felizes. A
separação dos pais pode, no aqui – agora, ser compreendida como a
possibilidade de fragmentação do grupo, o que gera angústias persecutórias e, na
tentativa de minimizá-las, Lucas expressa o desejo de ver os pais unidos
novamente para que, assim, reconquiste a segurança e a força. Seu choro
parece-nos assumir a função de sensibilizar a mãe do quanto está sendo sofrido
experienciar a separação dos pais.
78
Fato selecionado: “Ele chora e a mãe o abraça” - a ilusão grupal.
O fato aqui selecionado parece-nos traduzir todos os assuntos e
sentimentos expressados pelas crianças e mães. O grupo “chora” durante todo
encontro, não apenas para descarregar, mas sobretudo como forma de refazer os
vínculos que se encontram permeados por rupturas – vêm ao grupo em busca do
“abraço materno”.
Neste encontro, aparece o nível de regressão ao narcisismo primário, o
grupo quer ser amparado, colocado dentro do corpo materno. Durante toda
sessão, eles falam do desamparo, de como vivenciam relações catastróficas, do
quanto o mundo externo é hostil e agressivo, regridem ao pré-suposto de
dependência, o que corresponde ao primeiro organizador psíquico descrito por
Kaës (1976/1977), o grupo como um organismo vivo. Dessa forma, buscam ser e
fazer corpo, ou seja, buscam garantias contra o sentimento de inexistência,
exclusão, separação e o desejo de recuperar o prazer proporcionado pelo colo
materno, representado por uma envoltura protetora que simboliza as
possibilidades de lidarem com os danos e sofrimentos vivenciados com a dinâmica
familiar.
As terapeutas parecem ter sido idealizadas como uma instância psíquica de
“ego ideal” que têm o compromisso de solucionar os problemas apresentados
pelos participantes. Não só as terapeutas, mas especialmente o grupo parece ter
sido idealizado, o que é denominado por Anzieu (1984/1993) de “ilusão grupal”, ou
seja, o objeto-grupo foi investido pelas pulsões libidinais das crianças e mães,
79
garantindo que este se organize como uma unidade – corpo contra a
fragmentação, a angústia de ser parte desligada do todo grupal, contra a
dissociação de si, do corpo, do espaço e do grupo, isso é, contra as “fantasias de
quebra”. Idealizam e projetam tudo no grupo, porque, conforme explicitado no fato
selecionado, têm esperanças de que desse grupo nasça um Messias, um
salvador, funcionando regidos pelo pré-suposto do acasalamento descrito por Bion
(1961/1970).
O fenômeno da ilusão grupal é certamente uma resposta ao mecanismo da
sideração grupal, vivenciada no inicio do encontro. Na verdade, ambas as
alternativas propõem-se ao mesmo objetivo inconsciente, que consiste em
eliminar ou minimizar as angústias presentes no encontro.
Essas observações são reforçadas pela análise dos desenhos das crianças
e mães.
80
No desenho de Patrícia, podemos pensar que o fato dela ter colocado seu
nome
3
envolto por estrelas, demonstra a necessidade de um lugar circular,
semelhante àquele formado no desenho pelas estrelas, que a ilumine e a guie em
direção a espaços mais seguros. Seu desenho inclui, ainda, uma casa com portas
e janelas fechadas e uma árvore, ambas representações de espaços fechados, o
que revela a fragilidade emocional de Patrícia e sinaliza a necessidade que tem de
uma envoltura pelica que a proteja de sua realidade marcada pela violência
familiar. Dessa forma, parece depositar no grupo a expectativa de que o mesmo
funcione como lugar de amparo e sustentação - como um abraço materno.
A ilusão grupal, idealização desse espaço, é também observada no
desenho de Luzia, no qual deixa explícito o desejo de uma vida tranqüila, sem
conflito, sem sofrimento, sem ameaça de abandono, tanto que intitula seu
3
O nome foi parcialmente apagado, para que o sigilo da identificação da participante fosse respeitado.
81
desenho de “paz, amor e união”. Essas palavras combinam com o ambiente
expressado em seu desenho, no entanto é destoante da realidade que vivencia,
assim como a forma como ela se representa, uma mulher evoluída, intelectual
(óculos), elegante, negando novamente a realidade. No desenho que faz de seu
filho, notamos que ele é uma extensão sua, é uma continuidade narcísica da mãe.
A forma com que pega na mão do filho mostra uma leveza, uma delicadeza
também diferente da realidade na qual ela “insiste” com o Agenor, sufocando-o.
Agenor traz em seu desenho o símbolo da vida, a árvore. Demonstra a
necessidade de também encontrar, aqui, no grupo uma envoltura pelica, capaz de
sustentar e transmitir segurança (enfoca, em especial, a copa da árvore – que
forma um círculo fechado), ele vem ao grupo realizar os desejos irrealizáveis,
como o explicitado neste encontro durante sua conversa com a mãe no
“confessionário”, onde revela estar saturado com a “insistência” da mãe.
82
Lucas também mostra, em seu desenho, a representação de um grupo que
seria a flor formada por seus membros, as pétalas. Nesse desenho, o grupo toma
forma de um organismo vivo, onde seus membros estão interligados. Representa
o grupo como corpo unificado contra a ameaça de fragmentação, de não
pertencer, de não existir, supervalorizando o grupo.
83
No desenho de Maria, o que mais se destaca é a leveza dos traços e das
cores. Faz três montanhas unidas, uma com as outras, todas com formas iguais.
Aves voando, simbolizando a liberdade, flores e borboleta que representam o
afeto, um sol sorrindo que ilumina o ambiente. Enfim, elementos da natureza que
compões um estado harmônico. Provavelmente, é essa harmonia que Maria,
assim como os outros participantes, estão buscando no aqui - agora do grupo.
Observamos no desenho Júlio os mesmos elementos já apresentados,
árvores e casas (sem janela nem porta). Podemos compreender, segundo a teoria
de Kaës (1976/1977), que, ao representar espaços fechados, Júlio mostra a busca
de segurança e acolhimento.
Dessa forma, levando em consideração a análise das produções gráficas
do grupo, constatamos que, apesar da singularidade de cada desenho, eles têm
um denominador comum que foi compreendido como o desejo de encontrar, no
84
grupo, uma envoltura pelica capaz de protegê-los, assegurá-los e, assim,
minimizar as angústias persecutórias desencadeadas pelas experiências vividas
em seu cotidiano. Os participantes, crianças e mães, vêm ao grupo chorando, em
busca do abraço materno.
85
4.2- Análise do terceiro encontro:
Participantes
Agenor e sua mãe Luzia
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
Faltam – Júlio e sua mãe Gisele
Essa sessão tem início com relatos de acontecimentos cotidianos:
(3.1) Agenor e Lucas entram na sala acompanhados de suas mães. Lucas estava
eufórico, escolheu a carinha de feliz e foi logo contando ao grupo que havia ganhado um
cachorrinho. O grupo o questiona sobre como ele é e Lucas o descreve, às vezes,
solicitando ajuda de sua mãe. Ela também diz que está feliz, porque as coisas em casa
andam bem. Lucas a interrompe dizendo que seu pai vai virar pastor e ele pastorinho. A
mãe acrescenta que o pai de Lucas tem ido à igreja e, por isso, está bem em casa.
(3.2) Agenor, que está mais quieto, senta-se ao lado de sua mãe, que começa a
falar que precisa muito contar o que ela tem passado:
(3.3) Luzia – No final de semana, o pai de Agenor arrumou uma confusão em
casa. Ele foi buscar o Agenor que não queria ir, aí, pronto, o pai já ficou agressivo,
começou a ameaçar. Eu não agüento mais ele fazendo isso e, além do mais, ele não
ajuda em nada...
(3.6) Luzia – E teve mais confusão, ele e meu irmão brigaram feio, e o pai do
Agenor já pegou até facão para avançar no meu irmão, por isso, quando os dois
86
começaram a brigar todo mundo ficou com medo. No fim, a minha sobrinha acabou
gritando para o Agenor que ele tinha logo que ir com o pai, o Agenor ficou até chateado
com o jeito que ela falou, mas ele tem que entender quem é o pai dele...
Notamos que parte do grupo traz experiências de ganho, transferem para o
aqui agora um sentimento bom, de alegria. Em contrapartida, a outra parte traz
experiências ruins, de conflito familiar e violência. Dessa forma, observamos o
início da rede de comunicação que se constrói entre os membros do grupo, na
qual cada participante revela o que trouxe para ser compartilhado no encontro.
Utilizando a analogia defendida por Anzieu (1984/1993), entre o grupo e o sonho,
entendemos que esses relatos seria o que Freud (1900/1996) classificou como os
“restos diurnos”, ou seja, estímulos que surgem durante o sono e que representam
uma ponte entre a realidade dos problemas ou alegrias do dia (falas iniciais das
crianças e mães) e a elaboração disso no mundo interno (no encontro grupal).
...não há, portanto, nenhum outro caminho aberto às
excitações que ocorrem à noite no Pcs (pré consciente).
senão o que é seguido pelas excitações de desejo que
provêm do Ics (inconsciente); as excitações pré-conscientes
têm de buscar reforço no Ics. e acompanhar as excitações
inconscientes ao longo de seus caminhos tortuosos. Mas
qual é a relação dos restos pré-conscientes do dia anterior
com os sonhos? Não há dúvida de que eles penetram nos
sonhos em grande quantidade e se valem do conteúdo
destes para ganhar acesso à consciência mesmo durante a
noite. De fato, ocasionalmente, dominam o conteúdo do
sonho e forçam-no a dar prosseguimento à atividade diurna.
87
É também certo que os restos diurnos podem, com a mesma
facilidade, ter qualquer outro caráter além do de desejos,
mas é altamente instrutivo nesse contexto — e de
importância positivamente decisiva para a teoria da
realização de desejo — observar a condição a que eles têm
de submeter-se para serem acolhidos num sonho (FREUD,
1900-1901/1996 p. 584-585)
As experiências relatadas por Luzia denunciam ainda um outro fenômeno.
Na sua fala, percebemos que ela, ao referir-se ao ex – marido, a todo momento
com o “pai de Agenor”, deposita toda a responsabilidade das suas frustrações e
dos desencontros familiares no filho. Compreendemos que essa atitude, assim
como as brigas por ela relatada, denunciam uma imaturidade, parece-nos uma
reação impulsiva, um acting out, isto é, uma forma de comunicação primitiva não
verbal que busca o alívio inconsciente de tensões internas através da descarga de
impulsos rechaçados (Zimerman, 2001).
(3.3).... o Agenor sempre pede para ele (o pai) levá-lo no judô e ele nunca pode.
Aí, a semana passada, ele (o pai) até que concordou, mas, para isso, fez com que eu
passasse umas roupas para ele, eu pensando no Agenor, em como o Agenor queria que
o pai fosse, concordei. Só que ele não tem responsabilidade, ele largou o Agenor lá e veio
embora me atormentar. Tá certo que a gente tinha combinado que ele levaria e eu
buscaria, mas eu mudei de idéia. A gente pode mudar de idéia, não pode? Então, eu
mudei e pensei que ele podia trazer o Agenor já que tinha ido até lá, mas ele não ficou
esperando e o Agenor me ligou chorando. Mas foi bom, porque, desculpa falar, Agenor,
mas assim você viu quem é seu pai (Luzia).
88
(3.5) Agenor - Meu pai só briga (fala bem enrolado, quase não é possível
compreender).
(3.6) ... ele tem que entender quem é o pai dele (Luzia).
É possível perceber a tentativa da mãe de forçar uma aliança com seu filho
contra o pai. Esse movimento tem sido observado em diversas sessões, em
especial na relação de Luzia e Agenor e nos permite pensar que “essa aliança”,
esse contato estreito que a mãe busca ter com o filho, reflete o desejo de
neutralizar as partes ruins, inseguras e persecutórias dela, projetando no ex -
marido toda imaturidade emocional que também é sua. A postura de Luzia, ao
enfatizar a necessidade que sente de que Agenor “saiba quem é o pai”, nos
remete às elucubrações de Rojas (2001) que acredita que a família, pela
qualidade e função de seus vínculos, torna-se um espaço privilegiado para
expressão de tendências narcisistas a homogeneização, isto é, a mãe tenta
moldar o filho a sua própria imagem, introjetando em Agenor discursos e valores
entendidos como insolúveis, não o reconhecendo como singular, Luzia impõe sua
percepção, a imagem que tem do pai de Agenor, ao filho, sem considerá-lo.
A forma com que Luzia vai descrevendo as atitudes do pai de Agenor,
reforça a imagem de alguém agressivo, possesivo, autoritário e que, portanto, não
merece o carinho e a atenção do filho. Agenor parece aceitar a concepção de sua
mãe e, com isso, distancia-se da figura paterna aproximando-se e intensificando a
“aliança” com a mãe. Parece ser essa a forma que encontraram para lidar com a
conduta do pai, com seu comportamento sentido como autoritário e opressor. Eles
89
formam um sub-grupo dentro da família, caracterizado pelo que Bleger
(1979/2003) denominou de sociabilidade sincrética, isto é:
Caracterizada por uma não relação e por uma
indiferenciação, na qual cada indivíduo não se diferencia do
outro ou não se acha discriminado do outro, e na qual não
existe discriminação estabelecida entre eu e não-eu, nem
entre corpo e espaço, nem entre eu e o outro. (p105)
Acreditamos, ainda, que esse conluio entre mãe e filho colabora para o
distanciamento do pai no cuidado com Agenor. Luzia, que demostra sentir-se
ansiosa com a separação (dela e o do filho enquanto sujeitos diferentes),
provavelmente por vivenciá-la como abandono, impede, mesmo que por manobras
inconscientes (quando repete o quanto o pai de Agenor é agressivo e
irresponsável), que Agenor se aproxime do pai para que, assim, ela não se sinta
excluída. O pai, por sua vez, é impedido de assumir o seu papel , ficando com
raiva e atacando o par.
Pensamos que o fato dele ser excluído da relação pode estar sendo um
dispositivo para suas reações violentas, saídas de casa e também da sua pouca
participação no acompanhamento terapêutico e outras atividades (judô) de seu
filho. Por ser também emocionalmente imaturo, o pai atua em respostas às
angústias despertadas por essa exclusão, dessa forma, ao invés de acompanhar o
filho ao judô - como foi descrito no fragmento - e fazer disso um momento de
aproximação entre os dois, de fortalecer o vínculo assistindo à aula do filho,
acompanhando-o em sua atividade, ele se “atrapalha” na confusão da dinâmica
90
familiar e, ao contrário, se desfaz daquele momento rapidamente (deixa Agenor e
vai embora).
Este fragmento permitiu também que observássemos um outro fenômeno
em relação à comunicação dessas famílias atendidas pelo ReCriando. Tanto o pai
quanto a mãe de Agenor verbalizam ou demonstram, por seus gestos, um
sentimento bom pelo filho. A mãe mostra-se preocupada com a ida dele ao judô,
com seu desejo de que o pai o leve e o pai, ao levá-lo, também expressa uma
preocupação, uma dedicação ao filho. Assim, eles manifestam carinho e atenção.
Porém, ao mesmo tempo que enviam para Agenor essa comunicação positiva,
agem de maneira contraditória e paradoxal, o pai não demostra vontade de assistir
à aula do filho, deixando-o lá e indo embora e a mãe muda de idéia, sem
comunicar à criança, que fica sozinha no clube onde a aula acontece. Esse
movimento dos pais cria no filho um estado de confusão, favorecendo aspectos
esquizoparanóides, provavelmente sente-se inseguro em relação ao afeto dos
pais (Agenor liga para casa chorando). Bateson apud Térzis (2002) denomina
esse tipo de comunicação como duplo vínculo e argumenta que ela pode gerar
angústias persecutórias e deixar a criança no papel de perdedora.
(3.10) Patrícia chega com sua mãe, pedem desculpa pelo atraso e a mãe diz:
(3.12) Rose – Eu não queria vir hoje, por causa da chuva, do frio, mas a Patrícia
insistiu, disse que, queria porque queria vir. Aí, a gente veio, mas acabamos perdendo o
primeiro ônibus, por isso o atraso.
91
Patrícia demonstra, ao insistir em vir para a brinquedoteca, que o grupo
para ela representa algo bom, a esperança de um espaço para brincar, onde
possa ser reconhecida, conversar e compartilhar suas experiências de
brincadeiras e afetos, assim, percebe o grupo em sua fantasia como um sonho em
que pode realizar seus desejos. O grupo, como nos ensina Kaës (1976/1977), é
representado, aqui, como o corpo materno, que acolhe e possibilita segurança, ou
ainda, lembra o “espaço transicional” descrito na teoria de Winnicott (1971/1975),
como um espaço virtual entre a fantasia e a realidade, que possibilita alto
potencial e riqueza de criatividade, ressaltando a importância do grupo, pois
favorece a criação de um lugar onde possam ser assegurados os objetos bons.
Esse fragmento mostra a importância que tem o grupo para o atendimento a essas
crianças e famílias. Ele possibilita a aproximação e sensibilização dos
participantes que, assim, conseguem entrar em contato com as vivências boas ou
más.
Em contrapartida, a mãe demonstra a sua resistência - ela não queria vir -
pensamos que, talvez, isso seja explicado pelo fato de que, quando a mãe busca
ajuda terapêutica para seu filho, como foi quando Rose veio procurar o ReCriando,
existe, no início, uma tendência a projetar na criança o problema, por ser ela que
manifesta o sintoma. Como a proposta do programa é que a família também
participe dos encontros, isso pode gerar estranheza e desencadear angústias,
visto que, no decorrer do processo, os pais atendidos, no caso Rose, acabam por
defrontarem com seus próprios fantasmas e se conscientizam da sua
“participação” no sintoma apresentado pela criança.
92
(3.9) Luzia continuava falando compulsivamente sobre o pai de Agenor e as
crianças diziam que queriam brincar. Por isso, foi-lhe perguntado se ela gostaria de
escrever o que estava sentindo, pois percebíamos sua necessidade de expressar a
situação que vive e, em contrapartida, o quanto sua fala incomodava o grupo como um
todo. Ela foi até um canto da sala, o “cantinho da leitura”, e ficou lá durante todo
encontro, escrevendo.
(3.14) Agenor - A gente tá estourando bexiga, porque estamos com raiva. Você
não quer estourar? (pergunta à Patrícia)
(3.16) Lucas - Eu não tô com raiva, tô estourando porque é legal.
Notamos que as mães, aqui representadas por Luzia, permanecem
estáticas, querem continuar com a conversa, enquanto as crianças buscam a
brincadeira (estourar bexigas). O grupo incentiva as crianças a entrarem em
movimento, possibilita que, através da atividade lúdica e da expressão não verbal,
comuniquem seus conteúdos emocionais (Leal, 1994). Além disso, o grupo
favorece as crianças realizarem seus desejos, seja de descarregar a raiva ou a
alegria e, por isso, como já dito, podemos correlacioná-lo a um sonho. Segundo
Anzieu (1984/1993),
do ponto de vista da dinâmica psíquica, o grupo é um sonho,
assim, “os sujeitos humanos vão aos grupos da mesma forma que, no seu sono,
entram no sonho”(p 49).
Para o autor, o desejo realizado em um grupo ou em um sonho, é o desejo
reprimido, não satisfeito nas relações individuais, na vida privada e social. A
situação livre proporcionada pelo grupo provoca uma regressão, fazendo com que
os participantes vivam com maior intensidade as pulsões (tanto libidinais, quanto
93
agressivas e narcísicas) em busca do desejo e do prazer, o que faz com que a
situação grupal seja também vivida como fonte de angústia. Assim, o grupo como
o sonho é, em cada um de seus episódios, a associação de um desejo e de uma
defesa.
Parece que as mães também vêm ao grupo com intuito de realizarem seus
desejos. No entanto, não fazem isso por meio da brincadeira - por serem adultas -
participam do grupo através da fala. Pensamos que, no caso de Luzia, essa fala
contínua sobre o pai de Agenor, que remete a tantas frustrações, além de mostrar
o quanto ela se encontra fixada em seus aspectos agressivos, parece ter como
função sustentar a idéia de que seu ex - marido é uma pessoa abusiva e
intolerante, mobilizando os participantes na tentativa de ser acolhida e ter o seu
sofrimento reconhecido, assim como de “contaminar” todo o grupo com esse
sofrimento. Compreendemos, também, essa “compulsão à repetição” como uma
forma de resistência. Freud (1914/1996) já dizia que, quando o paciente está
resistente ao tratamento, ele repete ao invés de recordar.
Em relação à sugestão de que Luzia escrevesse em um canto o que estava
sentindo, ressaltamos que, ao incentivar seu isolamento, tínhamos, como
interesse que, a partir de um distanciamento, ela percebesse que se exclui do
grupo, quando tenta monopolizá-lo com seus aspectos agressivos e narcísicos.
Além disso, acreditamos que, dessa forma, Agenor poderia encontrar um outro
“corpo materno” (vivências no grupo).
(3.18) A terapeuta (1) vai até Agenor, que estava sozinho, e pergunta se ele quer
brincar com ela. Agenor responde que sim e escolhe brincar com a maquininha de fazer
94
tricô. Começa a dar ordens para a terapeuta que, na brincadeira, é a empregada da firma
e ele é o dono. Enquanto brincam, a terapeuta, que estava desenrolando a lã, diz que o
que ela realmente gostaria de desenrolar era o que tinha no coração de Agenor, porque
dava para notar que ele estava bem embaraçado.
(3.19) Agenor -(fica um pouco em silêncio e fala) Eu não agüento mais essa coisa
do meu pai e da minha mãe, eu tenho vontade de sumir.
(3.20) Agenor - ... eu não gosto de deixar ela (a mãe) chateada, às vezes em
casa, eu olho para ela e vejo que ela está com cara de brava, aí eu fico perguntando se
fiz alguma coisa, mas ela não fala nada.
A escolha de Agenor em brincar com a maquininha de fazer tricô, reforça o
que acabamos de ressaltar que, distanciado de sua mãe, ele pode viver relações
diferentes. Acreditamos que com essa brincadeira, ele está tentando, no aqui -
agora do grupo, construir, tricotar uma malha, isso é, um vínculo forte e resistente
capaz de auxiliá-lo a lidar com sua insegurança e ameaças internas e externas,
um vínculo que permita demonstrar a vontade que tem de “sumir” frente aos
sentimentos e a postura dos pais. Brincando com a terapeuta que vai
desenrolando a lã (seus sentimentos) e ajudando a desfazer os nós (conflitos e
inseguranças), mostra o desejo de ser
o dono - aquele que dá ordem - o que
compreendemos como o desejo de assumir um papel adulto e, assim, mostrar que
é alguém e que também tem iniciativa, comando, se individualizando de pais tão
comprometidos.
Na relação com a mãe, ele experiencia a posição contrária, ela é a dona e
ele o submisso, ela o castra, o desapropria de seu falo, do pensamento, de poder
95
olhar para o pai e para o mundo a partir de sua percepção, o impede de construir
o “seu tricô” e, ainda, favorece a “identificação com o agressor”. Sendo assim,
enfatizamos “o sonho” de Agenor no grupo, onde pode realizar desejos até então
irrealizáveis e criar um espaço criativo que facilite lidar com as frustrações e
elaborar seus conflitos psíquicos.
Essa compreensão nos fez lembrar do “mito de Minotauro”. Na antigüidade,
os mitos eram considerados a linguagem através da qual os deuses ensinavam a
arte de viver e de amar, eram tidos como fonte de compreensão da humanidade,
da relação do homem consigo mesmo e com aqueles que o rodeiam. Em especial,
gostaríamos de destacar a passagem em que Ariadne, meia irmã de Minotauro
(corpo de homem, cabeça de touro), se apaixona por Teseu, filho do rei de
Atenas, que vai a Creta na esperança de matar o monstro e libertar sua cidade da
obrigação de, anualmente, enviar quatorze jovens para saciar a fome do
Minotauro, (que vivia isolado em um labirinto construído para esse fim). Ariadne,
impulsionada por seu sentimento a Teseu e pela esperança de se ver liberta da
vida monótona e infeliz que tinha, faz uma proposta a este de que o ajudaria a sair
do labirinto e, em troca, eles casariam. Assim, entrega-lhe um novelo de fio que
permitiu que Teseu demarcasse o caminho de volta, conseguindo o feito de matar
o Minotauro e sair do labirinto com vida (Barguil, 2001). Pensamos que as
terapeutas, assim como o grupo, assumem uma função semelhante à de Ariadne,
fornecem e desenrolam a lã para que Agenor consiga sair de seu labirinto.
O último trecho aqui destacado (3.20) reforça a idéia de que na família não
existe espaço para “tricotar”, ou seja, desenvolver uma conversa, visto que Luzia
não fornece a lã para Agenor, não responde quando ele pergunta o que ela tem,
96
ou quando o faz não é em consideração aos sentimentos dele, mas sim aos seus.
O que contribui para que a relação fique repleta de “nós”, paralisando o
pensamento e o desenvolvimento emocional de Agenor. Gostaríamos, ainda, de
correlacionar as idéias de Winnicott (1971/1975) com essa última fala de Agenor.
Para o autor, quando a criança olha para o rosto da mãe, vê a si mesma. Assim, o
rosto, o olhar da mãe representam um espelho. Apesar de referir-se ao bebê que
está construindo o seu self e não a criança crescida, que, para ele se torna cada
vez menos dependente de obter de volta o Eu do rosto da mãe, entendemos que,
quando Agenor olha para sua mãe e vê a tristeza, a cara de brava que não pode
ser explicada, fica como um bebê, tenta predizer o humor dela, sente-se culpado,
tenta adivinhar o que pode ter acontecido e como ele pode ter contribuído para o
descontentamento da mãe, adaptando-se as suas necessidades e, assim, tendo
sua autonomia, espontaneidade e criatividade prejudicadas.
(3.22) No momento em que organizávamos a sala para o lanche, Lucas e Agenor
começam um briga, discutem, um empurra o outro e ficam se ofendendo por apelidos, a
que, com a intervenção da terapeuta, se sentam para comer.
O segundo momento do encontro, hora do lanche, revela, a partir do
comportamento das crianças que iniciam uma briga, um “empurra - empurra”, que
elas atuam pela emoção, movidas por representações muito primitivas, por
sentimentos de falta e de desconfiança. Aparentemente, no mundo interno delas,
existe a crença de que o afeto e o cuidado não são satisfatórios e são essas
representações internas que se manifestam quando as crianças brigam pelo
97
lanche, elas revivem esse sentimento de escassez, de que o alimento (afeto) não
é suficiente, por isso precisam brigar, disputar. Este fragmento possibilita uma
compreensão do fenômeno da transferência lateral, que aqui se dá de forma
negativa, os irmãos (colegas participantes do grupo) são sentidos como uma
ameaça, como rivais do amor e cuidado da mãe (grupo).
Compreendemos que o grupo é um facilitador para que as crianças
expressem todos esses sentimentos. Movidos por uma sensação de liberdade
podem demonstrar o desejo pelo imediatismo (quem pega o lanche primeiro),
pelo não cumprimento das regras e, com isso, possibilitam que as terapeutas
possam, no aqui - agora, assinalar sobre suas atuações impulsivas e contribuírem
para a construção do pensamento e, portanto, para o crescimento emocional.
Em seguida, observamos um outro movimento no grupo, iniciado por Lucas,
que começa uma conversa com sua mãe, na qual questiona sobre seus familiares,
sobre seu bisavô:
(3,42) Lucas - Como que chama mãe, aquele lá, acho que o seu bisavô?
(3.43) Maria - Nossa, Lucas, esse nem eu conheci, ele morreu antes de eu
nascer.
(3,44) Lucas – Mãe, o que o seu bisavô é de mim?
(3.45) Maria - O seu Bisavô! Esse que você tá falando era meu avô, então ele era
o seu bisavô.
Terapeuta 3 – Nossa, mais que conversa mais interessante...
(3.46) Lucas - E você sabe como meu pai conheceu a minha mãe?
(3.47) Terapeuta 3 – Não, como foi?
98
(3.48) Lucas – Ele sempre via ela e achava ela linda, né mãe?! Aí um dia ela foi
no mercado e ele derrubou tudo porque ficou vendo ela. (ele fala muito confuso e rindo
muito, por isso a mãe explica:)
(3.49) Maria - Não, é que teve um dia que ele foi ao mercado e ficou me olhando.
Aí, sem querer, ele derrubou a prateleira e ficou todo envergonhado, daí a gente
conversou e nos encontramos e aí, começou o namoro.
(3.50) Agenor - Eu também sei a história da minha família. O meu Bisavô era
casado com a minha bisavó Ana, aí ele separou porque ele tinha uma amante e casou
com ela (amante), que estava grávida, só que aí, o cavalo deu um coice nela e ela e o
bebê morreram. Aí ele casou de novo com a minha bisavó Ana e teve o meu avô e os
irmãos dele. Que casou com a minha avó e nasceu a minha mãe. Eu vou chamar a minha
mãe para contar como foi que ela conheceu meu pai.
Vai até a outra sala onde a mãe estava escrevendo e a traz para contar. Enquanto
isso:
(3.51) Terapeuta 1 – E a Patrícia conhece a história da sua família?
Patrícia Faz que não com a cabeça, e a mãe começa a contar:
(3.52) Rose – Eu era empregada de uma casa e seu pai trabalhava na frente e ele
sempre mexia comigo e eu ficava brava, até um dia que eu falei: Nunca viu, não?! E
comecei a rir e ele também, aí começamos a namorar, foi o meu primeiro namorado...
(3.54) Agenor - Conta mãe, conta como você conheceu meu pai.
(3.55) Luzia - Ele trabalhava de motoboy ...
(3.56) Agenor - Ele entregava pizza?
(3.57) Luzia - Não, cobrança mesmo! Aí ele gostou de mim e foi bem insistente.
No começo, eu não queria, mas ele insistiu e meus pais gostaram dele, a gente acabou
casando. Mas logo ele já começou a aprontar e eu não gostava tanto dele...
99
Quando acalmados, acolhidos pela intervenção das terapeutas, podem
vivenciar o lanche como o momento de reunião, de troca, de encontro familiar e
iniciam uma conversa que tem como tema seus antecedentes, demonstrando que
as ressonâncias das histórias do passado familiar são determinantes na história
pessoal de cada membro do grupo, o que nos remete ao conceito de
transgeracionalidade, ou seja, a idéia de que cada um dos pais dessas crianças
mantém a internalização de suas respectivas famílias originais, com os
correspondentes valores, crenças e conflitos e que estes, quando não resolvidos,
são reeditados nos filhos, o que pode acontecer com sucessivas gerações. Kaës
(1993/2001) diz que:
A transmissão psíquica, em torno do eixo das relações
intergeracionais, implica a precessão do sujeito por mais de
um outro. ... faz do sujeito singular o elo, o servidor, o
beneficiário e o herdeiro da cadeia intersubjetiva de que
procede. Sobre essa cadeia vêm apoiar-se mais de uma
formação de sua psique; em sua rede circula, se transmite e
se produz matéria psíquica, formações comuns ao sujeito
singular e aos conjuntos de que é parte constituinte e parte
constituída. Esse ponto de vista leva a considerar o sujeito
do Inconsciente como sujeito da herança e, mais
genericamente, como sujeito do grupo: portanto, em termos
psicanalíticos, o que está em jogo na questão da transmissão
é a formação do Inconsciente e dos efeitos de subjetividade
que, produzidos na intersubjetividade, dela derivam.(p-12).
O grupo, neste fragmento, fala da fantasia originária referente à “cena
primária” – conversam sobre as fantasias envolvidas em suas origens e buscam
100
repostas para o enigma da concepção e do nascimento, reconhecendo a
existência de um casal. Observamos que parte do grupo mostra que é mensageiro
do afeto, herdeiro do amor e, em contrapartida, outros revelam que são frutos do
desamor e da mentira. Podemos dizer que o grupo funciona como um facilitador
para que as crianças e mães possam falar de suas intimidades, compartilhar os
segredos familiares, nomeando seus conflitos. Dessa forma, acreditamos que os
participantes demostram confiarem nesse espaço (grupo) e têm a esperança de
serem compreendidos.
Um outro fenômeno que observamos é que cada integrante do grupo se
torna um contador da sua história individual e familiar. Essas histórias, além de
sua função catártica, tentam buscar a verdade, dar um sentido aos
relacionamentos familiares. Ao contar sobre o passado, crianças e mães reeditam
sentimentos que esses acontecimentos carregam e podem, assim, reconhecê-los
e, se necessário, ressignificá-los. Parece que esses contos estão relacionados
com estágios da vida (nascimento, casamento, morte), mas, em especial,
enfatizam a força, o brilho da juventude e da paixão. As histórias dessas mulheres
nos impressionam, pois percebemos que elas têm um sentido “sagrado”, uma
importância tanto para as mulheres quanto para as crianças que demonstram
sentir curiosidade e necessidade de ouvir como as mães foram paqueradas e
amadas.
Compreendemos que as mães nessas histórias, são as protagonistas, são
heroínas que descobriram o amor, o outro e puderam realizar seus sonhos
(casamentos, filhos), foram desejadas e despertaram o interesse desses homens.
Acreditamos que, ao recordarem esses acontecimentos, elas saem do papel atual
101
marcado pela fragilidade frente a hostilidade do cotidiano, no qual atuam
principalmente de forma passiva e recuperam a esperança de tornarem –se
novamente as protagonistas e autoras ativas de suas histórias, de suas vidas.
Também, podemos compreender essas falas como representantes do
momento vivenciado pelo grupo. No primeiro encontro, falamos do sentimento de
estranheza que as crianças e mães traziam. Hoje, já podemos dizer que elas se
sentem mais seguras e confiantes no grupo, podem enamorar, ou seja dividir
experiências de intimidade.
(3.52) Rose – Ia bem (o casamento) até eu descobrir que ele (marido) já tinha
uma outra família. Na verdade, ele era separado por duas vezes, mas ele não me contou,
ai começaram as discussões e acabou, vocês sabem onde, na separação.
(3.62) Luzia - ... eu tenho que tomar cuidado porque já sofri muito com o pai do
Agenor – começa a relatar as brigas, as vezes que ele não dormiu em casa, a suspeita de
amantes e outros fatos de discussão entre eles.
(3.63) Enquanto isso, as crianças que demonstravam estarem incomodadas com o
rumo que a conversa tomou, levantam e vão para o lado oposto da sala brincar, as mães
continuaram conversando com uma das terapeutas sobre as dificuldades atuais nas
relações com os maridos e ex - maridos e a outra terapeuta acompanhou as crianças.
As mães começam a relatar vivências de desencontros. Uma conversa, que
se iniciou com lembranças de momentos bons, acaba com recordações de brigas
e discussões. Novamente, constatamos o desconforto das crianças frente a essas
histórias. Elas demostram não suportarem mais conviverem com a tristeza da
102
separação e da violência familiar, por isso levantam e vão brincar. Acreditamos,
que, assim como já discutimos no início da análise, as crianças vão brincar a fim
de realizarem o desejo de terem minimizadas as tristezas e angústias que as
experiências cotidianas despertam, e as mães continuam verbalizando, também,
com o intuito de realizarem o desejo de serem acolhidas e compreendidas em seu
sofrimento.
Fato selecionado – “Eu não agüento mais essa coisa do meu pai e da
minha mãe, eu tenho vontade de sumir.” - O grupo como sonho.
A fantasia comum, que encontrou ressonância em todos os membros do
grupo, pode ser expressa através das formulações de Anzieu (1984/1993), ao
comparar o grupo com um sonho. Nessa sessão, os participantes demonstram
confiarem no objeto - brinquedoteca, a percebem como corpo materno que
garante segurança e acolhimento. Assim, podem contar suas histórias e realizar
seus sonhos/desejos.
Freud (1900/1996) mostrou que, durante o sonho, o psiquismo arcaico é
reativado e essa regressão onírica estabelece uma continuidade entre o passado,
o presente e o futuro. No grupo também podemos constatar esse fenômeno, visto
que ele funciona segundo a “ucronia” e a “utopia”, portanto, num mesmo espaço e
tempo atual, vivenciamos o primeiro espaço e tempo, que é o corpo materno. O
grupo sensibiliza crianças e mães para que revivam neste encontro as histórias de
103
seu passado, assim como do presente e também possibilita demonstrarem a
esperança depositada no futuro.
Freud (1900/1996) destacou também a função de realização de desejos dos
sonhos. É neles que, de certa forma, desejos proibidos podem encontrar
satisfação. Anzieu (1984/1993) defende que o mesmo ocorre no grupo. A situação
grupal favorece que o individual dê lugar ao coletivo, com isso as pessoas sentem-
se mais livres, as defesas ficam mais amenas, intensificando a busca pela
realização de desejos, mesmos os mais impossíveis são encorajados.
No grupo estudado, observamos essa busca pela satisfação dos desejos
em diversos momentos do encontro, como na fala contínua de Luzia, na
brincadeira com a maquininha de fazer tricô proposta por Agenor, a de estourar
bexigas, na insistência da Patrícia em vir ao grupo enfrentando a resistência da
mãe e as diversidades externas (chuva, frio). Enfim, os participantes (crianças e
mães), demonstram que vêm ao grupo realizar seus desejos. Em especial,
acreditamos que o de serem acolhidos e reconhecidos em seus sofrimentos e
também em suas potencialidades.
Grinberg (1995) propõe uma classificação dos sonhos em evacuatórios,
mistos e elaborativos, sendo o primeiro, principalmente, a descarga de afetos,
fantasias inconscientes e relações objetais insuportáveis. O segundo
caracterizado, não só pela busca da descarga, mas por tentativas iniciais de
elaborações e o último tem como função primordial a elaboração, contendo
elementos depressivos e reparatórios. Apoiados por essa teoria e ainda segundo a
idéia de Anzieu (1984/1993) que propõe a analogia entre o sonho e o grupo,
podemos dizer que neste encontro as crianças e mães, asseguradas pela função
104
continente e capacidade de “rêverie”
4
do grupo, “sonham um sonho” que podemos
classificar como misto, já que constatamos, seja nas brincadeiras das crianças ou
nas conversas das mães, que elas “evacuam” as angústias e ansiedades (brigas,
conflitos familiares, violência), mas já podem também estabelecer diálogos,
conversas entre si, trocas de intimidades, o que sinaliza a tentativa de elaboração.
Acreditamos que o grupo tem possibilitado a sensibilização das crianças e
mães em relação aos fenômenos grupais, o que favorece a compreensão de suas
emoções e também das relações em que estão envolvidas, além de contribuir
para que encontrem e descubram meios para resolverem alguns de seus
problemas.
4
Rêverie – designa a condição pela qual a mãe capta as necessidades de seu filho, não tanto
através dos órgãos do sentido, mas pela intuição. É um componente da função α capaz de colher
as identificações projetivas da criança independentemente de serem percebidas por esta como
sendo boas ou más (Bion,1962/1966)
105
4.3- Analise do sexto encontro
Participantes:
Agenor e sua mãe Luzia
Júlio e sua mãe Gisele
Faltam:
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
Este encontro além de ser o último realizado para compor o material dessa
pesquisa foi também o último do semestre, marcando a saída para as férias
durante o mês de julho.
(6.1) Júlio entra na sala faltando alguns minutos para o atendimento. Pedimos que
ele esperasse um pouco, que logo chamaríamos. Quando abrimos a porta, ele estava
encostado nela, parecia estar tentando ouvir a conversa das terapeutas. Pedimos que
chamasse sua mãe, mas ele disse que não queria que ela participasse e já foi entrando e
pegando as caretinhas. Perguntamos para Júlio por que ele não queria que sua mãe
entrasse e ele respondeu que fica com vergonha de brincar, quando a mãe está junto.
Mas, em seguida, já disse que era brincadeira e saiu para chamá-la.
Júlio, ao demonstrar a vontade de ingressar logo na sala de atendimento,
sinaliza que o espaço lúdico oferecido pelo programa Recriando tem para ele a
representação de um objeto bom, que proporciona amparo, segurança para que
possa expressar seus sentimentos. Acreditamos que a “função holding” (Winnicott,
106
2002) exercida pelas terapeutas, pelo espaço da brinquedoteca e em especial
pela matriz grupal, propicia que as crianças e mães sintam-se seguras de que
suas necessidades serão reconhecidas e que aqueles sentimentos que não
conseguem suportar serão acolhidos, favorecendo a livre conversação. O grupo é
objeto de catexação da energia psíquica.
Dessa forma, Júlio permite-se expressar que não gostaria que sua mãe
participasse. Apoiados nos estudos de Kaës (1976/1977), entendemos que isso se
deve ao fato de que a criança confere aos pais, aqui no caso a mãe, uma função
inibidora, porque ela é a responsável por transmitir as regras, os valores, a mãe é
a autoridade, a que exige, portanto, uma figura castradora, no sentido que, através
das regras, ela pode desapropriá-lo de realizar alguns de seus desejos. Estar em
grupo, ao contrário, desperta a liberdade, o grupo é o lugar onde as pulsões se
manifestam, lugar que possibilita e realização de desejos “proibidos”. Kaës
(1976/1977) fez essa afirmação ao analisar desenhos de criança que tinham como
tema um “grupo qualquer” e a família. Observou que a família era sempre
representada de forma estática, em contrapartida, o grupo era representado
sempre em movimento e, muitas vezes, expressavam momentos lúdicos. O que
também foi confirmado na pesquisa desenvolvida por Huber (1995) que tinha
como objetivo compreender, através do desenho infantil, como os Organizadores
Psíquicos podem representar o objeto-grupo.
(6.2) Júlio – No final de semana, fui em uma festa junina com minha mãe e minha
irmã, foi legal porque lá tinha cadeia e eu fui preso. Era 25 centavos para prender e 50
107
para sair. A minha irmã e minha mãe também foram presas. Fui eu que mandei prender a
minha mãe.
(6.5) Agenor – Eu também fui na festa de aniversário do SESI, joguei futebol de
sabão... Eu dancei também, dancei seis músicas, lá na apresentação.
(6.6) Luzia – Mas tem mais novidade, no final de semana você foi onde?
(6.7) Agenor Passei com meu pai, almocei com o candidato a presidente do
Brasil, e um monte de gente.
A fala de Júlio reforça o que acabamos de ilustrar. Ele tem realmente o
desejo de “prender” sua mãe, a fim de controlá-la, de triunfar sobre ela e, assim,
ver –se livre de figuras superegógicas. Parece-nos ainda, que sua fala fez
ressonância em Agenor, que, ao relatar sobre a festa que foi, onde brincou,
dançou e pôde mostrar o quanto se sente importante (foi almoçar com o candidato
a presidente do Brasil), demonstra ter a mesma fantasia de Júlio: do grupo como
celebração dos desejos realizados.
(6.8) Luzia – E o que seu pai te contou?
(6.9) Agenor – Ah! Eu vou ganhar um irmãozinho.
(6.10) Agenor – Eu gostei, sempre quis ter um irmão.
Terapeuta 1 – O Júlio também tem irmã, né? Como é ter uma irmã Júlio?
(6.11) Júlio – É legal, mas a mãe faz tudo para ela, compra todas as coisas de
cabelo para ela e não pra mim.
(6.12) Gisele – Ele sempre fala isso, mas é que ele não tem cabelo e é coisa de
menina, mas toda vez que ele vê que eu compro para ela, ele quer também.
Agenor – É, eu já falei
para meu pai que não é para fazer isso...
108
Agenor deposita na idéia do nascimento do irmão um sentimento bom, no
entanto, enfatiza que já falou para o pai que este não deve fazer diferença entre
eles, provavelmente tenha essa preocupação, o receio de que o irmão ocupe o
lugar que hoje é seu. Ainda podemos compreender que o esforço de Agenor em
atribuir um sentimento bom ao nascimento do irmão, deve-se ao fato de que,
assim, pode minimizar os sentimentos persecutórios, desencadeados pela
angústia da separação em relação ao pai, é portanto, um mecanismo de defesa
que busca negar a angústia da perda.
Em relação a Júlio, constatamos que ele atribui à figura da irmã aspectos
negativos, considera-a como uma rival que disputa, em especial, a atenção e o
carinho da mãe, começa com sua fala, mostrar a existência das diferenças (um
ganha, o outro não) e o quanto essas despertam sentimentos como o ciúme e a
inveja. Provavelmente, não se sente cuidado pelos pais: o pai abusou
sexualmente dele e sua mãe o priva desse cuidado para dedicar-se à irmã.
O sentimento de angústia que observamos neste fragmento, quando as
crianças falam sobre a experiência ou expectativa de ter um irmão, pode ter sido
impulsionado por saberem que este é o último encontro antes das férias, estão
vivenciando a angústia da separação, ou seja, a idéia de se afastarem da
brinquedoteca, do grupo e das terapeutas. Todos os envolvidos reeditam o temor
primitivo de perder o amor materno (Zimerman, 2001).
Antes de iniciarmos a brincadeira, como normalmente acontece, por ser o
último dia antes das férias, as terapeutas propõem uma atividade dirigida, a
confecção de um caderno:
109
(6.14) Terapeuta 1-... Quanto a brincar, hoje vai ser um pouco diferente. Lembra
que nós contamos que hoje seria o nosso último dia antes das férias? Então, nós fizemos
um caderno para vocês levarem embora e desenhar ou escrever durante esse mês que
nós não vamos nos encontrar. Por isso, hoje, primeiro, nós vamos fazer a capa do
caderno e, depois, vamos brincar o resto do tempo. Pode ser?
(6.16) Demos os cadernos para eles que começaram a desenhar. As mães
ficaram olhando, depois a mãe de Júlio começou a desenhar com o filho, a pedido do
mesmo, e a mãe de Agenor fez um desenho livre.
(6.17) lio fez um céu com sol e uma mata onde viviam dinossauros. Já Agenor
fez as bandeiras do Brasil e da França. Ao terminarem, quiseram brincar.
A saída para as férias parece despertar angústias não só no grupo, mas
também nas terapeutas. Todos vivenciam a angústia da separação entre os pares,
entre o grupo como todo, do grupo em relação às terapeutas, destas em relação
ao grupo e de todos em relação à brinquedoteca. Provavelmente, porque receiam
que, durante esse período, o trabalho construído se perca, o vínculo seja abalado
ou ainda que as crianças e mães fiquem desamparadas, por isso justifica-se a
sugestão do caderno de férias. Ele tem a função de minimizar essas angústias, de
manter o vínculo entre os membros e o programa, aproximando-se do que
Winnicott (1971/1975) chamou de “objeto transicional”, ou seja, objetos que as
crianças se ligam motivadas pela ansiedade de separação da figura materna,
como forma de substituí-la transitoriamente.
Em relação aos desenhos, compreendemos que Júlio representa os dois
níveis da mente, o céu e o sol seriam a consciência, já a mata, com os
110
dinossauros, representa o inconsciente com todos os impulsos primitivos. O
desenho de Agenor parece expressar a necessidade de determinar uma marca,
um símbolo para o grupo, por isso as bandeiras. Kaës (1976/1977) enfatiza que
todo grupo é representado por uma marca que lhe atribui um significado, permite
identificações e consolida a identidade grupal. A marca realiza uma coesão e uma
igualdade no grupo, é um vínculo unificador (quem é do time do Brasil? Quem é
do time da França?).
No presente encontro, pensamos que a marca do grupo expressasse a
rivalidade, a disputa, já que Agenor faz a bandeira de duas nações que disputam
um jogo importante, decisivo para a Copa do Mundo, que estava acontecendo no
período em que esse encontro foi realizado. Acreditamos que o espírito de
rivalidade seja ativado pelo desejo de pertença e que tenha sido acentuado por
esse encontro ser o último antes das férias e também pela ausência de quatro
participantes (duas crianças e suas mães), fazendo com que os membros
presentes, em especial as crianças, necessitem disputar o espaço deixado pelos
outros.
(6.18) Júlio me chama para escolhermos um jogo para o grupo que seria surpresa.
Agenor não agüenta esperar e fica espiando o que estávamos escolhendo até que diz que
vai escolher junto. Júlio resiste, mas os dois acabam decidindo por um jogo de futebol de
botão. Quem pega o jogo é Agenor, que começa a arrumar o campo, quando Júlio senta
no chão e diz que vai jogar com ele. Agenor primeiro diz não. Júlio reage, os dois
começam a discutir, mas acabam se entendendo e brincando.
111
A brincadeira dura pouco tempo, os dois discutem novamente. Júlio levanta e pega
outro jogo convidando as terapeutas e mães para jogar com ele. Porém, quando
começamos a jogar, Agenor disse que também queria brincar conosco, sentando-se na
mesa em que estávamos. Júlio levanta, diz que não quer brincar e convida a terapeuta
para jogar futebol de botão com ele.
Depois de um tempo, Júlio convida sua mãe para jogar futebol de botão. Ela
recusa, dizendo que não sabe e, por isso, ele convida a mãe de Agenor que concorda.
Enquanto brincavam, Agenor pega o potinho com sabão e fica brincando de fazer bolhas.
Em um momento, ele faz uma bolha grande, bonita e chama a sua mãe para ver. Júlio
reage desmanchando a bolha de Agenor e diz que fez isso porque a “tia” estava
brincando com ele e Agenor atrapalhou.
Agenor, reage dizendo:
(6.19) Agenor – Ela não é sua tia, não é da sua família.
Luzia – Não fala assim, ele só está me chamando de um jeito carinhoso.
(6.20) Gisele – o Júlio anda muito ciumento ultimamente, tudo ele reclama e acha
ruim.
Júlio deita no chão e começa a espernear, imitando uma birra, finge chorar e diz
que vai fazer como a irmã dele. Começa a rir e levanta, indo para o colo da mãe.
Este fragmento reforça a interpretação de que o grupo tem, neste encontro,
a marca da rivalidade, sinalizando o reconhecimento da existência das diferenças,
o que desperta a busca por um lugar narcísico, de ser o filho (membro do grupo)
perfeito, eleito e único, ou seja, eles revivem, no aqui – agora, a rivalidade fraterna
(Kaës, 1997). Agenor, como líder do grupo, tenta triunfar, não suporta esperar que
Júlio tome a decisão sobre o jogo, levanta-se e decide do que vão brincar,
112
retomando o poder. Júlio, por sua vez, até tenta entrar na disputa com Agenor, no
entanto, parece ficar amedrontado, angustiado e foge toda vez que Agenor entra
na brincadeira, reagindo ao controle que Agenor tenta exercer no grupo.
Provavelmente, Júlio sente-se inferior a Agenor, acredita que ele possa
desapropriá–lo de certas vitórias (complexo da castração), por isso convida as
mães e terapeutas para jogar. As mulheres que têm, aqui, a função de cuidar,
amparar (ser mãe ou terapeuta), podem ajudá-lo a tornar-se mais confiante e
seguro, favorecendo que tente ,também ,excluir Agenor (revida).
Júlio sinaliza que a rivalidade vivenciada no grupo é também experienciada
em sua casa na relação com a irmã. Certamente, sente-se diferente dela, é ela
que triunfa (6.11) e ele fica excluído, por isso, acreditamos que ele atualize esta
disputa no aqui - agora do grupo. Pensamos que, em sua fantasia, existe a crença
de que, se ele não consegue ganhar da irmã, provavelmente, não conseguirá
vencer Agenor, o que o deixa ansioso, confirmando a necessidade inicial de fugir
de momentos de confronto (como nas situações de jogo).
Esse sentimento de rivalidade e exclusão vivenciados faz-nos pensar nas
idéias de Britton(1992) que acredita que isto (rivalidade), aconteça quando a
pessoa não pôde elaborar o Complexo de Édipo de forma natural e saudável. O
sentimento de perda é profundo ao reconhecer o relacionamento sexual dos pais e
ter que renunciar à posse única e permanente da mãe, quando a criança não
consegue tolerá-la, um sentimento de perseguição, de injustiça pode ser gerado, e
como conseqüência, tornar as relações, quando envolve um terceiro (um irmão,
um colega do grupo), permeadas por insegurança e ameaças. Portanto,
113
acreditamos que, neste encontro, os participantes puderam reeditar angústias
vivenciadas no Édipo.
Em relação à atuação de Júlio (deitar no chão, fingir chorar),
compreendemos como uma forma bastante primitiva, uma “regressão formal”
(Anzieu, 1984/1993), ou seja, expressa emoções arcaicas, do princípio primário.
Através de seus gestos, do seu olhar, do seu “choro” repete a representação do
simbolismo infantil, na tentativa de seduzir o grupo e ter seu desejo, de conquistar
a atenção da mãe e ocupar um lugar no grupo, satisfeito.
Ao final do momento destinado à brincadeira livre, o grupo organiza-se para
a hora do lanche e inicia uma conversa protagonizada por Agenor sobre a Copa
do Mundo que estava em andamento.
(6.23) Agenor – Eu saí gritando “Argentina, Argentina”, depois, os meninos
ficaram me olhando de cara feia.
(6.24) Luzia – Depois, pediu para dormir comigo porque ficou com medo, mas
também, acha, sair na rua torcendo para a Argentina?!
(6.25) Agenor – Ah! Mas eu torço mesmo. E a propaganda da Skol, que
engraçado! (começa a narrar todas as propagandas, ri muito enquanto fala – ressalta que
o conteúdo das propagandas referem-se a como seria diversas coisas relacionadas ao
jogo, se fossem inventadas por quem criou a Skol. Na propaganda, o Brasil que, na
realidade, poderia, por exemplo, tomar um gol da Argentina, é beneficiado – as traves
saem do lugar).
- Júlio se envolve na conversa, também relata as propagandas e os dois dão muita
risada.
114
Terapeuta 1 – É, essas propagandas mostram como seria bom se tudo
acontecesse do jeito que a gente gostaria, né?!
No início deste fragmento, notamos a necessidade de Agenor sempre ter
um rival, ter alguém com quem possa competir, pois, provavelmente, sente que é
somente pela disputa que vai poder configurar-se vencedor. Entendemos,
também, que, ao torcer pelo maior rival do Brasil em relação ao futebol, a
Argentina, faz referência a uma traição e a uma triangularidade: primeiro, ao torcer
pela Argentina, trai a pátria por seu desejo de triunfar, depois se sente culpado e
conta sobre as propagandas que beneficiam o Brasil em relação à Argentina. Ou
seja, acreditamos que todo esse desejo por disputas, apresentado neste encontro,
faça referências ao Complexo de Édipo. Anzieu (1993) acredita que a situação
grupal mobiliza nos participantes o Complexo de Édipo:
... só a família pode fazer o indivíduo acender a
organização edipiana; todavia, quando ela fracassou, o
indivíduo tende a se reunir em grupos, em bandos, em
comunidades livres, que podem, às vezes, lhe permitir
rematar uma evolução edipiana deixada em projeto. (p – 196)
Pieri (1999) enfatiza que este complexo demarca o reconhecimento do
outro (do casal) real, externo, que não é mero produto de projeção, tem existência
própria, específica, o que acredita ser fundamental para o crescimento emocional,
mesmo quando vivido como um obstáculo ao ego.
115
(6.28) Agenor – Eu vou ganhar um irmão... Mas é do meu pai, não é da minha
mãe.
Terapeuta 3 – Nossa! Porque será que o Agenor falou assim, e se fosse da mãe?
(6.29) Agenor – Ah! Da mãe ainda não. Só que ela e o seu Salvador, Hum!!! (faz
que estão namorando com os dedos), aí, depois, acho que também vão fazer um irmão
para mim.
Terapeuta 3 – Para mim, parece que tem horas que o Agenor quer que a mãe
namore, mas tem horas...!
Agenor – Eu não ligo, minha avó é que fica com ciúme, ela briga com a minha
mãe por causa dele, não quer que ela namore.
(6.30)Luzia – É, a minha mãe implica mesmo, mas o Agenor até que
aceita, mas é
que ele também tá com a namoradinha dele.
(6.31) Agenor – Eu vou começar a namorar ela, vou sair com ela e levar ela para
dormir lá em casa.
(6.32) Luzia – Calma, vai com calma nisso – Ri muito, tanto ela como o filho.
A conversa do grupo reforça a idéia de que, neste encontro, a fantasia que
o organiza é o complexo de Édipo. Agenor mostra, com sua fala, que fica feliz pelo
irmão ser filho de seu pai, mesmo porque, esta notícia minimiza as angústias
provenientes de uma possível volta do relacionamento dos pais, o que implicaria
em perder o “lugar” que tem hoje na relação com a mãe. No entanto, acreditamos
que aqui no grupo Agenor encontrou um lugar propício para repensar sobre esse
seu desejo de triunfar, de controlar, possuir a mãe, tanto que pôde falar sobre o
envolvimento de Luzia com outra pessoa e também do seu desejo de namorar.
Percebe que tem que renunciar à mãe, porque esta é proibida, começando dessa
116
forma a elaborar seu Édipo, o que acontece de maneira ambivalente. Ao mesmo
tempo em que fala do namoro da mãe, mostra resistência, por mais que diga que
aceita, na fala de Luzia (ele até que aceita) notamos que é “forçado”, certamente,
sente-se ameaçado por esta nova figura.
Britton (1992) afirma que o triângulo familiar fornece a criança dois elos de
ligação, conectando – a, separadamente, com cada um dos pais e confrontando-a
com a ligação entre eles que a exclui. No caso de Agenor, compreendemos que
houve uma falha na constituição desse triângulo, marcada inclusive pela saída real
do pai de casa, o que provavelmente contribuiu para que a renúncia à mãe não se
concretizasse. Sendo assim, a possibilidade desse novo relacionamento da mãe
assume essa função. Agenor - apoiado pela matriz grupal – que, no início dos
atendimentos (ver análise dos primeiros encontros), assumiu a função paterna, no
sentido de favorecer a separação – individuação da dupla mãe e filho – pode,
agora, tolerar essa vivência, marcada pelo amor e pelo ódio, e assim caminhar
para a construção de um terceiro tipo de relação, na qual ele é uma testemunha e
não um participante.
Uma terceira posição passa, então, a existir, a partir da
qual as relações de objeto podem ser observadas. Assim,
podemos também visualizar ser observado. Isto nos propicia
uma capacidade de nos vermos em interação com outros e
de levarmos em consideração um outro ponto de vista ao
mesmo tempo em que conservamos o nosso próprio, para
refletirmos sobre nós mesmos enquanto nós mesmos.
(BRITTON, 1992, p73).
117
Luzia demostra ficar desconfortável com o desejo de Agenor em namorar,
ou seja, de crescer. De certa forma, mantém uma relação com o filho que propicia
que este fique preso a ela, sinalizando a existência de uma falha em seu processo
de desenvolvimento emocional.
As atitudes e os sentimentos edipianos, nas famílias
reais, como na lenda, são características de todos os
membros, tanto pais, quanto filhos; Laio, apavorado por
Édipo recém – nascido, manda expô-lo e mutilá-lo; Jocasta,
que verossimilmente reconheceu seu filho no Édipo
conquistador, uni-se a ele com conhecimento de causa; o
complexo de Édipo das crianças para com os pais é, muitas
vezes, a resposta ao complexo de Édipo dos pais com
respeito aos filhos. (ANZIEU, 1993 p. 195).
Sendo assim, acreditamos que a experiência grupal oferecida pelo
Programa é importante não apenas para as crianças, mas também para as mães
que encontram a possibilidade de elaborarem conflitos arcaicos, como os gerados
pelo Complexo de Édipo.
O grupo fica em um pequeno silêncio, mas continuam comendo até que Luzia fala:
(6.34) Luzia – O que ainda tá difícil é que o Agenor tem brigado muito com a prima
dele...
(6.35) Agenor – Ela é muito chata, ela quer pegar as minhas coisas sem pedir, ou
pede e eu falo não, mas ela pega mesmo assim. Outro dia, ela queria o meu videogame
para passar filme e eu falei NÃO, mas ela pegou do mesmo jeito e gritou comigo, falou
118
que eu era igual ao meu pai. Mas é que eu não queria que ela pegasse, o bom é que ela
não conseguiu usar porque, tem que pôr uma senha e eu não dei a senha para ela.
(6.36) Luzia – Eles brigam demais e o Agenor acha que eu tenho que ir lá e brigar
com ela para defender ele, mas eu não penso assim, eu acho que é pior, ela tá numa fase
difícil, tudo ela briga. Eu falei para ele que se eu ficar me intrometendo vai ser pior, afinal
a gente mora tudo no mesmo quintal, ele tem que entender. Só que ela grita muito com
ele. Nesse dia, ele foi para o quarto chorando e gritando comigo, falando que eu era
imprestável, que eu não servia para nada. Eu fiquei muito chateada.
As brigas de Agenor e sua prima relatadas nesse trecho possibilitam
observar que ele parece estar sempre com medo de ser “roubado”, ou seja,
desapropriado de algo que é seu, o que entendemos estar relacionado com a
ameaça da castração gerada pela fantasia da descoberta das diferenças do sexo,
o que, segundo Pieri (1999), desperta fantasias persecutórias ligadas à posição
esquizoparanóide. Contatamos que toda essa manifestação inconsciente é
revivida no grupo e pode, assim, ser ressignificada.
Terapeuta 1 – Eu tô ouvindo essa conversa e pensando no que aconteceu hoje
aqui no grupo, porque Bel (terapeuta 3), hoje, na hora da brincadeira, o Agenor escolheu
um jogo e quando o Júlio foi brincar com ele, ele disse: “NÃO”, igual esse que ele tá
contando para a gente, por isso um ficou bravo com o outro e eles não conseguiram
brincar juntos, quando um entrava o outro saía.
(6.37) Terapeuta 3 – Olha que interessante isso, eu fiquei pensando: o que o Júlio
sentiu quando o Agenor falou esse NÃO para ele?
(6.38) Júlio Eu não senti nada.
119
(6.39) Agenor – Nem eu.
(6.40) Terapeuta 3 – Tá difícil de falar, então, vamos pegar as caretas e tentar
montar com que cara vocês ficaram quando um disse não para o outro? (pega um jogo
onde é possível escolher e montar um rosto e, assim, ilustrar diversas expressões e
sentimentos).
- Júlio disse que ficou assustado e, depois, bravo e furioso, porque tinha que ser tudo
do jeito que o Agenor queria senão ele brigava.
- Agenor – montou a cara de raiva e disse que fica assim quando ele quer uma coisa e
o outro não obedece, igual à prima dele, à mãe dele e o Júlio.
Terapeuta 3 – Olha, Agenor, você sabia que o Júlio ficou assustado com o seu
NÃO?
- Faz que não com a cabeça.
Terapeuta 3 – E olha que interessante, quando a gente se assusta com alguma
coisa, a gente pode ficar furiosa como o Júlio ficou.
Agenor – Nós já terminamos o lanche, vamos brincar. A Ticiane disse que hoje a
gente iria brincar, porque depois é férias.
Júlio – É, vamos brincar.
Terapeuta 3 – E como que a gente termina essa conversa?
Agenor – Depois a gente termina, agora vamos brincar.
(6.41) Os dois levantam-se da mesa e começam a brincar juntos de acertar a bola
no alvo. Cada vez que um acertava perto do centro, eles comemoravam o “gol”,
abraçando se. Depois, começaram a vir abraçar suas mães e terapeutas que estavam de
pé, ao lado do jogo, assistindo à brincadeira. Por último, pediram para que formássemos
equipes, os dois, as mães e uma terceira formada pelas terapeutas. Jogamos algumas
rodadas.
120
O sentimento de ameaça que Agenor experimenta na relação com a prima
é reeditado na relação com Júlio, possibilitando que as terapeutas pudessem
intervir no momento em que ele “atua”, o que é um privilégio do atendimento
grupal, que permite que não só as terapeutas, mas também que os integrantes
possam se observar e sinalizar ao outro a maneira como ele age. Neste trecho,
percebemos que, com a intervenção da terapeuta, eles puderam entrar em contato
com os diversos sentimentos vivenciados no encontro. Através do lúdico, do jogo
oferecido, as crianças conseguiram representar seus sentimentos, reconhecê-los
e, ainda, parece que a intervenção foi suficiente para perceberem que seus
sentimentos mobilizam ações, que, por sua vez, mobilizam sentimentos nos
outros, ou seja, o grupo pôde crescer quando os indivíduos se perceberam e
perceberam – se uns aos outros. Mello (1986), apoiado pelas idéias de Winnicott,
ressalta que o grupo proporciona que todos os integrantes consigam se ver ao
mesmo tempo, favorecendo que um sirva de espelho ao outro e a si mesmo. Esta
função especular tem um inegável papel terapêutico, pois, assim como a criança,
ao ser olhada e admirada por objetos que ajudam a estruturar seu Self, vai ao
poucos construindo sua identidade; no grupo, as terapeutas e os demais
participantes funcionam como este “olhar”, e contribuem para que cada membro,
seja criança ou mãe, possa se estruturar através de um self cada vez mais
íntegro, coeso e harmônico.
Depois de falarem sobre seus sentimentos, puderam “celebrar” juntos,
decidindo encerrar a conversa e iniciarem uma brincadeira. Observamos uma
mudança, os dois podem agora brincar juntos, compartilhar um da vitória do outro,
121
abraçando-se e comemorando os acertos um do outro. Entendemos que, nesse
momento, com a aproximação do final do encontro, o grupo busca se organizar e
assim, poder se despedir com a fantasia de um grupo unido e coeso.
...convidamos a todos para sentarmos à mesa e conversarmos sobre o que tinha
ficado dos nossos encontros até o dia de hoje.
O primeiro a falar foi Júlio:
(6.42) Júlio – O que eu mais gostei foi de brincar e da minha mãe brincar comigo.
(Falou mais algumas coisas, mas não conseguimos entender).
(6.43) Gisele – Eu Também gostei muito, quando eu cheguei aqui, eu estava
desesperada, não sabia como agir com meu filho, do que ele precisava e com tudo que
tinha acontecido eu fiquei muito triste, tanto que, toda vez eu choro (se emociona e
começa a derramar algumas lágrimas). Mas estas são de felicidade porque eu estou mais
perto do meu filho. A gente já combinou de viajarmos nas férias, a gente nunca tinha feito
isso. O que me ajudou muito, também, foi conversar com as outras mães no nosso grupo
(refere-se ao grupo de pais que acontece paralelo aos da brinquedoteca).
(6.44) Luzia – Nossa, para mim também. O que mais me marcou foi que eu
consegui olhar mais para mim e, com isso, também olhar para o Agenor. A gente hoje
consegue conversar mais sobre o que sentimos, principalmente eu que não falava, nem
comigo mesma, sobre o que sinto, acho que me conheço melhor, hoje, de vir aqui no
ReCriando. E percebo mudanças no Agenor.
Terapeuta – Então, vamos ouvir o Agenor.
(6.45) Agenor – Eu gostei de brincar – ele parece nervoso, ansioso, fala bem
enrolado, quase não conseguimos entender. Vira para sua mãe e fala: a gente recebeu
uma ligação lá da Europa e também da Alemanha, o meu pai já recebeu até do Japão.
122
- ficam todos olhando por um tempo.
(6.46) Luzia – É para falar aqui da brinquedoteca.
(6.47) Agenor – Eu já falei.
Terapeuta 1 – Talvez o Agenor esteja tentando dizer que, vindo aqui, ele
conseguiu fazer uma ligação bem difícil que foi conversar com seus sentimentos e com a
mãe dele. Mostrar o que ele sentia para ela.
Agenor – Falar como ela me sufocava, Lembra? (pergunta a terapeuta)
(6.48) Todos se despediram com beijos e abraços.
Este fragmento reforça a necessidade do grupo, movidos especialmente por
esse ser o encontro que antecede as férias, de criar uma “ilusão” e, assim,
conseguir suportar a separação, compreendemos como um recurso positivo do
grupo, que se mostra capaz de se organizar para enfrentar as angústias. Na fala
de Júlio, percebemos que ele atribui ao brincar um sentimento positivo, assim
como à presença da mãe, o grupo é um corpo que ampara e cuida. O que também
aparece na fala de Gisele, que evidencia que o grupo “tem a força”, sensibilizando
os participantes e possibilitando a aproximação das crianças com suas mães, e
também do grupo como todo. Luzia ressalta a função facilitadora dessa técnica, no
sentido de contribuir para o autoconhecimento e o reconhecimento do outro.
Agenor, mesmo com sua fala confusa, em código, parece reconhecer o grupo pelo
seu potencial de favorecer que entrasse em contato com conflitos, sentimentos e
recursos que estavam distantes. A partir disso, podemos dizer que o grupo é uma
técnica que sensibiliza os participantes e favorece a ressignificação.
123
Fato selecionado: “Quem pega o jogo é Agenor, que começa a arrumar
o campo, quando Júlio senta no chão e diz que vai jogar com ele. Agenor
primeiro diz não. Júlio reage, os dois começam a discutir, mas acabam se
entendendo e brincando” - o Complexo de Édipo
O grupo é o espaço em que se desenrola os conteúdos latente,
favorecendo a pesquisa e o conhecimento do inconsciente (Kaës, 1977), assim
como a ressignificação dos momentos mais primitivos, ou a repetição das
posições primárias (Pieri,1999).
Neste encontro, consideramos que o Organizador Psíquico do grupo seja
representado pelas “imagos parentais e os complexos familiares”, mais
especificamente organizado pelas fantasias inerentes ao Complexo de Édipo, que,
para Kaës (1977), estão subjacentes a estes. No entanto, Anzieu (1993) o
considera como um organizador específico, como um meta-organizador, pois
defende que o Complexo de Édipo constitui o núcleo da educação e da cultura,
além de encontrar-se presente nos conflitos neuróticos.
O Complexo de Édipo foi considerado por Freud (1923/1996) como o
complexo nuclear desde a sua descoberta e, permaneceu central na teoria
desenvolvida por Klein (1975/1997), que inclui neste o que Freud denominava de
“cena originária”, ou seja, as relações sexuais entre os pais tanto percebidas como
imaginadas. Para ela, o Complexo de Édipo se desenvolve lado a lado com as
evoluções que constituem a posição depressiva, isto é, a elaboração de um
acarreta necessariamente a elaboração do outro. Sendo assim, acreditamos que,
124
pelo grupo estar revivendo este complexo ou as angústias nele presente e
buscando elaborá-las, está também deixando de ter um funcionamento
predominantemente regido por aspectos esquizoparanóides.
Segundo Anzieu (1993), é o Complexo de Édipo que permite a superação
(sempre inacabada) de um funcionamento grupal que obedece aos princípios da
“auto – suficiência” (ilusão grupal, sentimento de grandiosidade, de onipotência),
pois possibilita a percepção mais atenta da realidade grupal inconsciente e da
realidade externa, assim como de suas interações.
Observamos no encontro os fenômenos grupais destacados por Decherf
(1986), que acredita que a proposta da associação livre pluriexpressiva
(associações verbais, gestuais e lúdicas), provoca reações de ansiedade e de
tensão, induz a fantasmas arcaicos, principalmente de espedaçamento, perda de
identidade e de simbiose, gerando angústias que são combatidas por mecanismos
de defesas. O mecanismo de defesa predominante, neste encontro, foi a busca de
um chefe, de uma lei grupal. Para o autor esse, mecanismo trata de uma obra
coletiva, resultado de uma das crianças de se afirmar e de dominar, aqui, no
grupo, representada por Agenor e, ao mesmo tempo, da necessidade das outras
de aceitarem uma submissão, mesmo que a contestem (Júlio). A necessidade
desta defesa é desencadeada pelo grupo estar num momento no qual parece
vivenciar a “desilusão grupal”, ou seja, estabelece uma trégua na tentativa de
negar as diferenças, os conflitos, enfim, o Édipo. O que, por sua vez, gera muita
angústia expressada através das competições, da agressividade manifestada
individualmente e coletivamente, impulsionando o grupo a eleger um líder na
125
tentativa de minimizá-las, ou seja, alguém que iniba, que controle essas
manifestações. O grupo busca uma lei grupal na tentativa de lidar com a
ansiedade do incesto. Tanto que, quando isso se consolida, o grupo se tranqüiliza
e volta a viver uma espécie de “ilusão”, mais madura no sentido de que não é
preciso negar as diferenças, agora se sentem assegurados pela imago paterna e
por sua estruturação interna e, assim, podem abordar com maior seriedade o
processo fantasmático estimulado pela situação grupal. Cria-se, portanto, um
espaço facilitador da via imaginária, as fantasias originárias poderão, a partir deste
momento, ser expressas com mais liberdade, em especial, nas brincadeiras e
desenhos.
Constatamos que o grupo apresentou uma evolução, a qual permitirá que,
progressivamente, cada membro encontre autonomia para que possa exprimir
seus fantasmas individuais.
126
5 – DISCUSSÃO
Neste capítulo, discutimos as experiências com um grupo de crianças e
suas mães atendidas pelo programa ReCriando. Para isso, extraímos aquilo que
foi manifestado da maneira mais relevante e correlacionamos com a literatura
psicanalítica e grupanalítica.
As famílias atendidas no Programa ReCriando, como pudemos observar
durante toda a nossa experiência, convivem com um ambiente familiar violento. As
agressões e brigas são freqüentes, as interações e as comunicações são
predominantemente feitas por atuações. Ou seja, as crianças e mães comunicam-
se de maneira primitiva, através do que Freud (1914/1996) chamou de acting-out,
isto é, repetem suas inibições, emoções e seus “sintomas” de maneira não verbal,
buscando o alívio inconsciente de tensões internas, através da descarga de
impulsos reprimidos.
Para Grinberg (1995), a raiz do acting-out está freqüentemente associada à
experiência de separação e de perda do objeto, que determinam lutos não
elaborados e portanto, geram afetos dolorosos que são descarregados sob forma
de ataque de raiva. O que corresponde ao modelo primitivo de alívio da dor
psíquica, ou seja, através da projeção de partes do self e dos conflitos para dentro
de objetos externos. A partir disso, compreendemos que os participantes do
grupo, tanto crianças quanto suas mães, necessitam de um ambiente externo, um
objeto capaz de conter sua dor psíquica. Nesse sentido, a experiência de grupo
aplicada na brinquedoteca representou esse objeto, que proporcionou aos
127
participantes expressarem esses sentimentos insuportáveis desencadeados pela
situação de violência que vivenciam em seu cotidiano.
O fenômeno do acting-out, em grupanálise com crianças, pode ser
observado em toda expressão não verbal e toda atividade lúdica, podendo ser
compreendido como uma reação impulsiva, primitiva, que contém uma
comunicação simbólica. Afinal, mesmo a criança fazendo uso da linguagem falada
é mais natural a expressão orgânica, motora e dramática dos conteúdos
emocionais. Sendo assim, o acting-out deve ser reconhecido como uma forma
adequada de catarse. (Leal ,1994). Idéia também defendida por Winnicott
(1971/1975), quando afirma que o “atuar” não é simplesmente uma dificuldade de
verbalização ou uma reação negativa ao processo terapêutico, mas sim uma
necessidade de experimentar, fundamental para o desenvolvimento do indivíduo.
O espaço grupal, portanto, ao possibilitar aos participantes a oportunidade
de expressarem seus sofrimentos e também seus sonhos e seus desejos,
favoreceu a simbolização e, como conseqüência, o desenvolvimento espontâneo
dos recursos emocionais. O grupo funcionou como uma mãe “suficientemente
boa” (Winnicott, 1971/1975), capaz de atender às necessidades de seus “filhos” de
maneira adequada, favorecendo com que os participantes entrassem em contato
com conteúdos latentes, isto é, com fantasias inconscientes primitivas e
construíssem uma trajetória em busca do autoconhecimento e do crescimento
emocional.
Durante o processo grupal, observamos diversos fenômenos, entre eles,
gostaríamos de ressaltar o da resistência, demonstrada, por exemplo, na fala
128
monopolizadora de Luzia (segundo encontro analisado), o que compreendemos
como uma manobra, no sentido de evitar entrar em contato com sentimentos
conflitantes, comprometendo o desenvolvimento natural do grupo. No entanto,
foram as faltas e os atrasos que mais se destacaram. Acreditamos que essas
atuações sinalizam uma resistência dos participantes, em especial dos adultos,
pois percebíamos que as crianças queriam vir, mas dependiam de suas mães.
Pensamos que essa resistência tenha como motivação a dificuldade de saírem do
lugar assumido, habitualmente na dinâmica familiar, de passividade frente às
agressões sofridas, colocando-se, muitas vezes, no papel de “vítimas” de maridos
ou ex-maridos agressivos e intolerantes, para compreenderem que a violência, na
verdade, é uma reação de todos os membros familiares, inclusive delas, mesmo
que de maneira mais velada, como ficou demonstrado nos encontros analisados
por este estudo. Rojas (2001) argumenta que a violência não se restringe à díade
agressor/ agredido. Ela compromete todos os membros do grupo familiar. É
importante considerar que manifestações de resistência eram esperadas, visto
que, como Freud (1905/1996) nos alerta, em trabalho como esse, que se propõe a
desvelar os conteúdos inconscientes, o processo fica associado ao desprazer e,
por isso, ocorre em face de uma contínua resistência.
Além disso, é importante considerar a existência de motivações reais
envolvidas com essas faltas. Um dos principais trabalhos realizados pelo S.O.S.
Ação mulher e Família é incentivar e capacitar as mulheres para o trabalho. No
grupo pesquisado, duas das mães começaram a procurar emprego, necessitando
faltar de encontros para participar de processos seletivos. Um fator importante é a
129
falta de condição financeira para custear a condução até o local onde o programa
acontece. Atualmente, a instituição não está conseguindo fornecer o passe de
ônibus aos usuários, o que gera faltas e, às vezes, desistência.
Um outro fenômeno que não podemos deixar de citar é o da transferência.
Freud (1923/1996), apesar de, inicialmente, ter compreendido a transferência
como um obstáculo à análise, considerou-a, posteriormente, como um instrumento
terapêutico de grande importância no processo de “cura”. Assim, da mesma
maneira que ocorre no processo terapêutico individual, no trabalho com grupos, a
transferência funciona como um dos principais instrumentos do terapeuta. A
diferença é que, na análise individual a transferência se dá com a pessoa do
analista, enquanto que, na de grupo, ela pode se manifestar sobre a figura do
terapeuta (transferência parental), sobre qualquer membro do grupo (transferência
fraternal), sobre o grupo como um todo (transferência do grupo em relação à
figura materna) e, ainda, em relação a um objeto externo ao grupo -
extratransferência (Térzis, 1999).
No grupo pesquisado, o fenômeno da transferência que foi vivenciado com
maior destaque foi em relação ao grupo como todo. O grupo parece ter regredido
a uma fase em que a comunicação com a mãe era ininterrupta, remetendo-nos à
condição fetal. Nesse sentido, estamos de acordo com Kaës (1976/1977), quando
se refere ao primeiro organizador psíquico – o grupo como um organismo ou como
um corpo, de maneira privilegiada, o corpo materno. Para o autor, essa é uma
tentativa de ser e fazer corpo contra as angústias e qualquer sensação
ameaçadora. No grupo atendido, compreendemos que as crianças e mães
130
vivenciaram este espaço como o colo materno que acolhe e dá sustentação.
Dessa forma, mostram a esperança de terem seus desejos e sofrimentos
acolhidos, buscando no aqui agora, exatamente o que falta no ambiente familiar.
Ainda foi observado que, durante o processo grupal, as crianças e mães
envolveram-se, principalmente, com jogos. A brinquedoteca oferece diversos
“cantinhos”, sendo que cada um contém diferentes tipos de brinquedos ou
materiais expressivos (explicados de forma mais detalhada no capítulo das
estratégias metodológicas) e, de maneira geral, os participantes desse grupo
mostraram –se mais identificados com o “cantinho dos jogos”, o que nos parece
um esforço por se auto - afirmarem, por vencerem as inseguranças, é uma
tentativa do ego, que se encontra fragilizado, de se fortalecer. Compreendemos
que o significado dessas brincadeiras sinaliza a busca por triunfarem, em especial,
das crianças que ocupam, neste espaço diferenciado - a brinquedoteca - um lugar
onde são mais valorizadas, ao assumem nos jogos, no aqui agora do grupo,
personagens heróicos e conquistadores (Kaës, 1976/1977).
Neste sentido, acreditamos que, quando as crianças, assim como as mães,
escolhem um jogo e entram em uma disputa, estão tentando “fazer corpo”, ou
seja, se organizar, dar forma a um corpo forte que poderá lutar, competir com um
“antigrupo”, o das ameaças internas e externas, assim como das inseguranças
projetadas no adversário (Kaës, 1976/1977). Ainda em relação às escolhas feitas
pelo grupo, constatamos que, de forma geral, na maioria dos encontros, os
participantes, independente de crianças ou mães, escolhiam a carinha de feliz,
131
mesmo quando relatavam situações de sofrimento, desconforto e agressão, o que
compreendemos como uma tentativa de amenizar a violência vivenciada no
cotidiano. Sendo assim, entendemos que as escolhas do grupo, sejam em relação
aos brinquedos ou às carinhas, tinham como finalidade a expressão do desejo e
da esperança de serem campeões, felizes, de recuperarem a harmonia e
tranqüilidade do corpo materno, que só é possível com um “ego vencedor”.
Essas experiências de brincadeiras foram possíveis porque as crianças e
suas mães puderam sentir-se acolhidas em seus gestos espontâneos e criativos.
Dessa forma, acreditamos que o grupo e o brincar, favorecidos pelo espaço da
brinquedoteca, possibilitaram a cada participante a vivência de ser único, singular
e poder ser reconhecido a partir de sua espontaneidade.
Portanto, acreditamos que o grupo, através da função de rêverie (Bion,
1962/1966), possibilitou aos participantes que seu sofrimento fosse acolhido, que
as angústias tivessem um sentido e um nome, o que observamos em diferentes
momentos do grupo, por exemplo, quando Agenor convida sua mãe para o
confessionário (primeiro encontro), ou quando podem falar de suas intimidades,
das fantasias originárias (segundo encontro) e, ainda, em outros momentos.
Pensamos que, dessa forma, com argumenta Bion (1962/1966), com o passar do
tempo, as crianças e as mães serão capazes de transformarem essas
experiências emocionais em elementos pensáveis. É a partir da relação com o
grupo, como o Outro, que as experiências poderão ser simbolizadas e, portanto,
elaboradas.
132
Um outro fenômeno que gostaríamos de considerar é a condição de
espelhamento favorecida pela situação grupal. O grupo pode ser comparado a
uma sala de espelho, possibilitando aos participantes entrarem em confronto com
sua imagem social, psicológica e corporal, obtendo uma imagem pessoal de si
(Foulkes e Antony, 1965/1972). Esse fenômeno teve um importante papel
terapêutico. Afinal, cada participante refletiu a imagem real do outro, contribuindo
para a construção de uma rede de ressonância, em que crianças e mães
encontraram a possibilidade de se desenvolverem e de “modularem”
espontaneamente seus recursos, caminhando para o crescimento emocional
(Térzis, 2005b).
Nesse sentido, entendemos que a brinquedoteca e o grupo foram
vivenciados como um “espaço potencial”, isto é, entre as terapeutas e cada
participante (criança ou mãe) e entre cada participante e o outro, criou-se uma
área de experimentação, um espaço transicional que possibilitou trocas de
experiência, de informação e o desenvolvimento da criatividade e da cultura
grupal. Acreditamos que o grupo privilegiou a existência dessa área intermediária,
ao mesmo tempo de ilusão e realidade.
O desenvolvimento do processo grupal pode ser observado ao fazermos
uma análise evolutiva dos encontros. No início do primeiro encontro, observamos
o fenômeno da sideração grupal, mecanismo de defesa gerado pela proposta de
liberdade oferecida pela situação grupal e pelo espaço diferenciado
(brinquedoteca) que têm o lúdico como linguagem, responsáveis por despertarem
fantasias que levam os participantes a recorrerem a defesas inconscientes.
133
Porém, após esse momento de paralisação, de estranhamento, constatamos que
o objeto – grupo passou a ser vivenciado como o corpo materno, como uma
envoltura pelica que protege e ampara seus membros (Kaës, 1976/1977).
Acreditamos que, com isso, as crianças e mães estavam tentando sentirem-se
“fundidas” ao grupo, ainda como uma forma de defenderem-se de toda a
ansiedade que a situação grupal proporciona. Por isso, criam um espaço ideal, um
grupo onde não existe confusão, violência, brigas e diferenças, bem distante da
realidade de suas vidas, é a busca por um grupo sem Édipo. A esse processo
denominamos “Ilusão Grupal” (Anzieu, 1984/1993).
No segundo encontro - “o grupo como um sonho” – constituiu-se um espaço
que proporcionou a realização das fantasias. O grupo funcionou como um
facilitador da vida imaginária em oposição ao espaço inibidor criado pela sideração
grupal no início do primeiro encontro. Assim, através das manifestações lúdicas e
verbais, os participantes, mães e crianças, puderam compartilhar coletivamente
suas intimidades, seus mitos e complexos familiares e, ainda, iniciaram um
processo de elaboração e ressignificação dessas vivências, demonstrando que
confiam no objeto - grupo, o percebem como corpo materno que garante
segurança e acolhimento e, em especial, a possibilidade de realizar seus
sonhos/desejos. (Anzieu, 1984/1993 & Kaës, 1976/1977)
Em relação ao terceiro encontro analisado (sexto encontro), observamos
que o grupo foi representado de maneira mais “amadurecida”. Teve como seu
organizador o Complexo de Édipo, que, como qualquer outro complexo, se
caracteriza por forças contraditórias. Neste encontro, observamos que as crianças,
134
através da atividade lúdica, na qual identificaram-se com heróis que tinham como
finalidade escolher e vencer o jogo e, ainda, obter a atenção das mães e
terapeutas, disputavam o lugar de líder do grupo, o que acreditamos que pode ser
compreendido como um desejo edípico de conquistar o grupo mãe (Kaës,
1976/1977). Segundo Anzieu (1984/1993), o grupo que atinge esse momento
assume um lugar mais elaborado, admitindo as diferenças que a ilusão grupal
tentava negar. Os aparelhos psíquicos individuais passam, então, a serem
reconhecidos em sua autonomia relativa e em sua transitividade com outros
aparelhos individuais, podendo, assim, ocupar, nos diferentes vetores do aparelho
psíquico grupal, posições antagônicas, simétricas ou complementares. A vivência
de conflitos ligados ao Complexo de Édipo, além de seu aspecto progressivo,
duplica-se como uma defesa contra angústias e desejos proibidos. Neste
encontro, o mecanismo de defesa utilizado, a forma que o grupo encontrou para
se proteger, amenizar essas ameaças, foi a escolha de um chefe, de uma lei
grupal que transmitisse segurança e tranqüilidade (Decherf,1981/1986).
Desta forma, verificamos uma evolução dos processos grupais. O grupo
torna-se mais móvel, flexível, favorecendo a troca através das brincadeiras e
conversas, os participantes expõem suas particularidades, desejos, fantasias e
sentimentos. Crianças e mães podem, com isso, construir um vínculo diferenciado
com cada um dos participantes, reconhecendo–os em suas necessidades.
Observamos, também, maior aproximação entre as crianças e suas mães. O
grupo construiu uma identidade de pensamento por meio de seus encontros e
desencontros e, através de sua organização, caminha para uma tendência à
135
homomorfia (diferenciação), contrabalançando, ao máximo, a tendência à
isomorfia (fusão, indiferenciação) (Anzieu , 1984/1993).
No entanto, vale ressaltar as considerações de Decherf (1981/1986),
argumentando que, por mais que um grupo evolua em sua dinâmica, ele, assim
como o indivíduo, nunca estará completamente liberto de motivações emocionais
do passado, ou seja, as regressões acontecem a todo encontro, assim como a
possibilidade de elaboração e crescimento.
Portanto, a partir de todas essas observações, concluímos que as
experiências com o grupo de crianças e suas mães na brinquedoteca mostraram-
se suficientes para que cada membro se transforme em suporte ou em projeções
das pulsões, defesas e aspectos contidos no inconsciente de cada um,
favorecendo, mesmo que ainda de maneira tímida, que cada participante fosse
reconhecido e compreendido, à medida que os conflitos emocionais, assim como
os recursos internos e os “sonhos” puderam ser expressos através das
manifestações lúdicas ou verbais.
136
6 – CONCLUSÕES
No presente estudo, concluímos que o processo grupal oferece um espaço
com características que “recriam”, simbolicamente, o ambiente natural favorecedor
do desenvolvimento psicológico, isto é, um meio em que crianças ou mães se
sentem verdadeiramente reconhecidas, apoiadas, não invadidas e encorajadas a
se expressarem livremente. O grupo aplicado na brinquedoteca foi vivenciado
como um continente capaz de acolher os “conteúdos”, dos mais agressivos e
doloridos, até os mais espontâneos e criativos, favorecendo o desenvolvimento de
recursos internos e, como conseqüência, gestos transformadores.
O grupo constitui-se como um contexto enriquecedor, suas múltiplas
possibilidades de transferências, assim como os fenômenos específicos de grupo,
como a ressonância, a condição de espelhamento, demonstram, a nosso ver, ser
de grande importância para o trabalho analítico e, portanto, para o cuidado com o
sofrimento psíquico. O processo grupal foi um contínuo. Observamos que, no
decorrer dos encontros, o grupo foi utilizando organizadores psíquicos mais
“amadurecidos”. Os mecanismos de defesa que eram geralmente primitivos, como
a sideração grupal, a ilusão e a cisão - que tinham como finalidade negar os
conflitos e as diferenças - foram substituídos por mecanismos menos arcaicos
como a escolha de um chefe, por exemplo. O grupo favoreceu a criação de um
espaço seguro para que os participantes (crianças e mães) pudessem expressar
seus desejos e realizarem suas fantasias, possibilitando ao grupo, ao reviverem
algumas das angústias vivenciadas no Complexo de Édipo e, ao caminhar no
137
sentido de elaborá-las, atingir um estágio mais elevado, passando a ter um
funcionamento não mais regido, predominantemente, por angústias persecutórias.
Finalizando, acreditamos que, com este estudo, conseguimos compreender
alguns dos fenômenos grupais, assim como constatamos que a técnica grupal
mostrou-se suficiente para sensibilizar os participantes, crianças e mães, para
suas emoções, além de ter favorecido a ressignificação de alguns conflitos,
percebidos em mudanças no jeito de ser e de relacionar consigo e com o outro.
Por isso, acreditamos no “potencial terapêutico” do grupo desenvolvido na
brinquedoteca, como forma de favorecer que a violência, as atuações dêem lugar
ao diálogo e ao brincar.
Além disso, pensamos que essa nossa experiência pode ser utilizada como
referência para instituições e profissionais que trabalham com crianças e famílias
em situação de violência intrafamiliar, pois alerta para a necessidade de que
fiquem atentos para os aspectos grupais, que, além de auxiliar na melhora da
saúde mental tanto de crianças, quanto de adultos, é útil no trabalho preventivo,
ajudando a evitar o desenvolvimento de “patologias” que, futuramente, poderiam
se constituir em problemas graves e sofrimento psíquico.
Consideramos, ainda, a necessidade de pesquisas futuras a respeito do
tema, à medida que cada grupo trará contribuições científicas diversas e
singulares em relação aos nossos achados.
138
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151
Anexo A
Carta de Ciência a Autorização
Prezada Presidente do SOS Ação Mulher e Família:
Solicito vossa colaboração em minha pesquisa de mestrado, que
tem como objetivo observar o desenvolvimento do processo grupal, estudar alguns
do aspectos emocionais presente neste processo e ainda, verificar se a técnica de
grupo aplicada na brinquedoteca do Programa ReCriando é suficiente para
sensibilizar os participantes, crianças e familiares, sobre os fenômenos
emocionais.
Para a realização do estudo, a pesquisadora irá observar o
desenvolvimento de um grupo por seis encontros, seguindo a rotina do Programa
ReCriando. A pesquisa não oferece riscos aos participantes, que serão
convidados a participarem, podendo recusar ou ainda interromper a qualquer
momento, sem qualquer prejuízo a eles.
O sigilo quanto à identificação dos participantes será mantido. Apenas os
dados obtidos serão analisados e divulgados na dissertação de Mestrado, cujo
título é: “Experiências com um grupo de crianças e mães em situação de
violência intrafamiliar, atendidas na brinquedoteca: um estudo
psicanalítico”, de Ticiane Renata Auko, psicóloga, CRP no. 06/96564, aluna do
152
Curso de Mestrado em Psicologia da PUC – Campinas, sob orientação do Prof.
Dr Antonios Térzis.
Coloco- me à disposição para qualquer esclarecimento. Para tanto, deixo
também meu telefone (19) 32524307, bem como o telefone de contato do Comitê
de Ética em Pesquisa, (19) 3729-6808.
Atenciosamente,
_______________________
Ticiane Renata Auko
CRP: 06/69564
Ciente do texto acima, autorizo a realização da pesquisa com a população
atendida pelo Programa ReCriando.
Nome completo: _________________________________________
Assinatura: ________________________________________
153
Anexo B
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Este termo é o consentimento de duas partes envolvidas em um processo
de pesquisa científica. De um lado, a pesquisadora Ticiane Renata Auko, aluna do
Curso de Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, CRP no. 06/96564, sob orientação do Prof. Dr Antonios Térzis. A outra
parte envolvida são as famílias que vivenciam situação de violência intrafamiliar e
participam do Programa ReCriando – Campinas/SP.
Esta pesquisa com o título " Experiências com um grupo de crianças e
mães em situação de violência intrafamiliar, atendidas na brinquedoteca: um
estudo psicanalítico”, tem como principal objetivo observar o desenvolvimento
do processo grupal, estudar alguns do aspectos emocionais presentes neste
processo e ainda, verificar se a técnica de grupo aplicada na brinquedoteca do
Programa ReCriando é suficiente para sensibilizar os participantes, crianças e
familiares, sobre os fenômenos emocionais. Pretende-se com esse estudo
contribuir para o atendimento a famílias em situação de violência intrafamiliar.
Para a realização do estudo, a pesquisadora irá observar o
desenvolvimento de um grupo (crianças e familiares) por seis encontros, seguindo
a rotina do Programa ReCriando. A análise dos dados será feita de acordo com o
método interpretativo psicanalítico, sendo garantido o anonimato dos participantes,
impossibilitando sua identificação, assim como o sigilo quanto a dados
confidenciais.
154
A participação é totalmente voluntária, podendo o participante recusar a
participar ou retirar seu consentimento em qualquer momento da pesquisa, sem
penalização ou prejuízo.
Em caso de dúvidas ou queixa, dirija-se ao Comitê de Ética em Pesquisa -
PUC-CAMPINAS, Av John Boyd Dunlop,s/nº– CEP 13059-900 –Jd Ipaussurama–
Campinas-SP ou Caixa Postal 317 – CEP 13012-970 - Telefone (019) 3729-6808.
A qualquer momento, os participantes poderão entrar em contato com a
pesquisadora pelo telefone da ONG SOS Ação Mulher e Família (19) 32321544 .
Eu, (nome completo do participante), RG_______
, declaro estar ciente dos
objetivos e métodos desta pesquisa, assim como declaro minha participação
voluntária na mesma e autorizo meu filho(a) __(nome completo da
criança)______, ____ anos a participar, também como voluntário, da pesquisa.
Autorizo também, respeitadas as condições de sigilo e privacidade, a utilização do
material transcrito, nos termos acima descritos. Estou ciente de que poderei me
retirar da pesquisa a qualquer momento, sem nenhum prejuízo a minha pessoa,
ou ao atendimento de meu filho(a). Declaro que recebi um cópia desse termo de
consentimento na íntegra e por mim assinado.
______________________, ______de _________________ de 2006
Assinatura da Participante: _________________________________________
Assinatura da Pesquisadora: ________________________________________
155
Anexo C
Primeiro encontro do grupo:
Participantes
Agenor e sua mãe Luzia
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
Júlio (sua mãe Gisele não compareceu, pois precisou trabalhar).
(1.1) Patrícia chega acompanhada de sua mãe. Elas se apresentam (é o
primeiro atendimento). Patrícia parece assustada, fica escondida atrás da mãe e
depois entra bem timidamente na sala , senta-se à mesa e as terapeutas se
apresentam. Rose também parece assustada, entra receosa na sala.
Sempre que as terapeutas falam seus nomes para Patrícia, ela diz para
todas: - “que nome bonito!”.
(1.2) Lucas chega com sua mãe, entram na brinquedoteca, ele senta e logo
pergunta sobre a nova integrante. Enquanto isso, digo para sua mãe que, se
preferir, pode deixar a bolsa guardada, o que ela faz com naturalidade. Maria
senta-se ao lado de Lucas que propõe uma apresentação, olhando para Patrícia.
Lucas – Como ela chama? (perguntando para terapeuta)
Terapeuta – Por que você não pergunta para ela?
Lucas – Eu sou o Lucas e esta é minha mãe. Fala seu nome, mãe?
Maria – Maria. E vocês como chamam?
156
Enquanto as duas respondiam, Júlio chega apressado, estava correndo no
pátio externo, entra e diz que sua mãe não pôde vir hoje (ela já havia avisado).
Em seguida, chega Agenor e sua mãe. Agenor entra na sala apressado,
deu a impressão de ter ficado incomodado de o encontro já ter começado e de ter
duas novas pessoas na sala – ele é sempre o primeiro a chegar.
(1.3) Todos escolhem a carinha, o primeiro a falar foi Agenor, contou que
estava mais ou menos, feliz porque ontem foi aniversário da avó, fez oitenta anos
e triste porque uma vizinha havia morrido. Sua mãe também escolheu a carinha
de mais ou menos e justificou pelos mesmos motivos que seu filho.
(1.4) Lucas disse que estava triste e conta que seu pai saiu de casa. Disse
que os pais tiveram uma briga feia, porque o pai quer sair à noite sozinho como se
fosse mais novo, o que foi também relatado por sua mãe:
(1.5) Maria – Não teve outro jeito, ele age como se fosse solteiro, se não
tivesse família. Eu não agüentei mais.
(1.6) Luzia – Mas foi você que mandou ele embora de casa ou ele que
saiu?
(1.7) Maria – Fui eu, ele achou que não ia ter coragem porque sempre falei,
mas nunca fiz nada, só que não deu mais. Ele insistiu em ficar, mas eu disse que
não queria e ele foi embora.
(1.8) Luzia – Eu te perguntei isso, porque, quando o pai do Agenor foi
embora, eu tive que chamar até oficial para tirar ele de casa e foi horrível, tudo
que eu queria é que ele tivesse saindo numa boa.
Agenor – Entrou um homem em casa e tirou ele na marra.
Luzia – O Agenor era muito pequeno, acho que ele não lembra direito.
157
Maria – Não, não foi assim, quando eu disse que queria que ele saísse, ele
saiu.
Terapeuta 1 – Vocês hoje estão falando de perdas, de separação...
(1.9) Lucas – Meu pai tá ficando no amigo dele, perto de casa e ontem ele
dormiu no carro.
Maria O Lucas tá triste, claro, mas eu expliquei que não tinha outro jeito.
- Silêncio
Terapeuta 1– Lucas, você quer falar mais alguma coisa disso agora ou
não?
Lucas – Não.
Terapeuta 2 – Então vamos ouvir a Patrícia e o Júlio?
(1.10) Júlio – Eu tô triste porque meu peixe morreu e meu gato sumiu.
(1.11) Agenor – Se você tá triste, por que você escolheu a carinha de feliz?
(1.12) Júlio – Porque eu vim aqui.
(1.13) Terapeuta 1 – Acho que, como nós estávamos falando de tristeza e
perdas, ele lembrou das suas e resolveu contar.
Júlio – É.
Terapeuta 2 – E você, Patrícia?
(1.14) Patrícia – Meu pai bateu na minha mãe e pegou uma faca, aí
eu fiquei brava e briguei com ele, porque ele machucou ela, cortou todo o braço da
minha mãe. (ela havia escolhido a carinha de feliz)
- O grupo, de forma geral, ri muito enquanto ela fala, é um riso
tenso.
Terapeuta 1 – Ver essas coisas deixa a gente com raiva, né?
158
(1.15) Lucas - Eu também fico com raiva, quando meu pai briga com a
minha mãe, mas ele não faz isso, ele só grita.
Terapeuta 2 – E seu pai, ainda mora com você Patrícia?
Patrícia – Mora. Mas, agora, ele não briga mais com a minha mãe, só
xinga, mas não bate mais nela, né mãe?.
Rose – É eu tô vendo a separação, mas, por enquanto, ele continua em
casa.
Terapeuta 2 – E o seu pai, Júlio, mora com você?
(1.16) Júlio – Não, eu moro com a minha mãe, minha irmã e meu tio.
Terapeuta 2 – Mas você vê seu pai?
Júlio – Às vezes, quando eu vou na casa da minha avó.
Lucas - Nós não vamos brincar?
(1.17) Eles vão se levantando e pegando brinquedos. Lucas e Júlio
pegam um jogo de futebol, Patrícia fica olhando diversos brinquedos, mas não
pega nenhum, sua mãe fica sentada, parece esperar alguma orientação. (1.18)
Luzia diz que gostaria de falar sobre um problema que Agenor vem tendo na
escola e que ela não sabe mais o que fazer:
(1.19) Luzia – Tem um menino na escola que bate no Agenor. Ele disse
que já contou para a professora e que ela não faz nada e o menino continua
batendo. Aí, ele fica nervoso e quer brigar...
Enquanto isso, Agenor andava bem agitado pela sala e resmungando.
Quando a mãe conta da briga, ele diz:
Agenor – Eu já falei com a professora e ela nem liga, eu que não vou ficar
apanhando, vou meter a mão na cara dele.
159
Luzia – Aí, ta vendo, eu não gosto dele falando isso, me lembra o pai dele.
Eu já escrevi um bilhete para a professora (pega o caderno na mochila de Agenor
e mostra para uma das terapeutas).
(1.20) Agenor – Eu já sei o que vou fazer, quando ele me bater, eu vou
invadir a sala dos professores e a diretoria, aí elas vão ter que fazer alguma coisa.
Terapeuta 1 – Olha, parece que o Agenor encontrou uma saída.
(1.21) Luzia – Mas o problema é que o menino tá ameaçando ele, é horrível
a gente ser ameaçado.
Maria – É a pior coisa.
(1.22) Terapeuta 1 – Luzia, você percebeu que o Agenor encontrou uma
alternativa para resolver o problema, sei que você se preocupa com ele, mas acho
que o Agenor está tentando ele mesmo resolver o problema (nessa hora, sinto-me
incomodada com a mãe).
(1.23) Agenor – Ticiane, vamos jogar o jogo do Mico?
Terapeuta 1 – Vamos. Agenor, você ouviu o que nós estávamos
conversando?
(1.24) Luzia – Agenor, eu queria conversar...
(1.25) Agenor – Agora é hora de brincar.
Terapeuta 1 – É, Luzia, acho que o Agenor tá certo...
Todos nós jogamos Mico, com exceção de Patrícia e sua mãe, que estavam
fazendo um desenho. Patrícia ficou durante o encontro todo quieta e apática.
Hora do lanche:
160
(1.26) Quando pedimos para arrumar a sala, porque era hora do lanche,
todos colaboraram, com exceção de Agenor que estava muito agitado. Ele estava
fazendo um desenho na lousa e Lucas foi apagar para guardar as coisas e os dois
brigaram.
No banheiro, enquanto estava lavando as mãos, eles brigaram novamente.
(1.27) Agenor, ao entrar na sala, estava bem nervoso, foi para o lado
oposto de onde estava o lanche e deitou no tapete sobre as almofadas.
Terapeuta 1 – Agenor, aconteceu alguma coisa?
Agenor – O Lucas brigou comigo, ele apagou o meu desenho e, depois, me
jogou água.
Terapeuta 1 – Será que ele não estava brincando com você? Acho que tem
outras coisas que estão deixando você assim, até porque, desde que você
chegou, você está assim, principalmente quando a sua mãe fala. Quer conversar?
(1.28) Agenor – É que eu tô de saco cheio da minha mãe, ela fica
insistindo.
Terapeuta 1 – Como assim?
(1.29) Agenor – Ela insiste muito. Ontem, a minha tia trouxe um bolo, um
salgado e um doce, de uma festa que ela foi. Aí eu comi o salgado, mas não quis
o doce e a minha mãe ficou mandando eu comer, eu falava que não queria e ela
insistia, até eu falar assim: - NÂO (gritando). Até o meu tio falou: - Tata, você tá
chata. É sempre assim, eu falo que não quero comer carne, ela me faz comer.
(1.30) Terapeuta 1 – Ela quer decidir por você?
(1.31) Agenor – Não sei, ela insiste e a minha avó também. O meu pai
briga porque a minha avó se intromete muito. Outro dia tinha uma excursão para o
161
Sítio do Pica –pau Amarelo e a mulher ligou em casa para chamar a minha mãe,
aí minha avó atendeu o telefone e já respondeu que a minha mãe não ia, sem
nem falar com ela.
(1.32) Terapeuta 1 – Sua avó faz com a sua mãe igual ela faz com você,
né?
Ele sorri.
(1.33) Terapeuta 1 – Agenor, será que a sua mãe sabe que isso que ela faz
deixa você chateado, bravo? Porque, às vezes, a gente faz as coisas e nem
percebe que o outro não gosta.
(1.34) Agenor – Eu não sei se ela sabe.
(1.35) Terapeuta 1 – Você quer falar para ela? Quer que eu a chame para
você contar para ela?
(1.36) Fez que sim com a cabeça.
(1.37) Lucas vem até onde estamos, deita sobre as almofadas e, quando a
outra terapeuta vem chamá-lo, diz que não vai porque também quer conversar.
Diz que ali é o confessionário. Então, fizemos um trato: primeiro, o Agenor ia
chamar a mãe dele, porque ele tinha uma coisa importante para dizer a ela e,
depois, eu o chamaria para conversarmos, ele e sua mãe.
Terapeuta 1 – Luzia, eu e o Agenor estávamos conversando e tem
algumas coisas que ele gostaria de contar para você.
(1.38) Agenor – É que eu estava contando que, às vezes, você insiste
demais. (ele tem dificuldade de falar, fala enrolado, quase não dá para entender,
fica o tempo todo de cabeça baixa).
162
(1.39) Terapeuta 1 – O Agenor me contou uma história do bolo que vai te
ajudar a entender. Como era Agenor?
(1.40) Agenor - Ah! Do bolo que a tia trouxe, que eu não queria o doce e
você queria que eu comesse, tive até que gritar. Até o tio falou que você tava
chata.
(1.41) Luzia – Ah! É que a minha sobrinha estava namorando um rapaz e
eles acabaram ficando noivos. A minha cunhada e o meu irmão foram, mesmo
não querendo que a minha sobrinha fizesse isso, porque eles não gostam do
rapaz. Eles trouxeram um pedaço de bolo para gente e eu queria que o Agenor
experimentasse, porque estava tão bonito e a gente quase nunca tem chance de
comer um bolo assim, só quando tem festa.
(1.42) Agenor – Mas eu não queria.
(1.43) Luzia – Tá bom, eu não sabia que isso te deixava tão triste. E o que
mais te deixa assim?
(1.44) Agenor – Toda vez que eu falo que eu não quero e você insiste
(conta algumas situações, todas relacionadas à comida).
(1.45) Terapeuta 1 – O Agenor também me contou uma história da sua
mãe, de uma excursão que ela disse que você não ia sem nem te consultar.
Luzia – Qual Agenor?
Agenor – Aquela que a Márcia ligou, do passeio no sítio.
Luzia – Ah! Tá.
Terapeuta 1 – Como você se sentiu, Luzia?
(1.46) Luzia – Nessa situação, eu não liguei muito porque eu não queria ir,
mas teve outras vezes que eu fiquei chateada. Se eu vou, contrariando ela, eu fico
163
triste, passo mal, nem consigo aproveitar o passeio. (conta uma viagem que fez e
teve dor todos os dias, não conseguindo nem aproveitar).
(1.47) Terapeuta 1 – Acho que é assim que o Agenor se sente quando
você insiste, né Agenor?
Ele faz que sim com a cabeça e levanta, indo para uma caixa de brinquedo
e escolhendo o jogo – virando a mesa.
(1.48) Luzia – Eu fiquei pensando se isso também não acontece, quando o
pai vai buscar você, Agenor? Porque, às vezes, o Agenor fala que não quer ir,
mas o pai dele insiste e o Agenor fica muito bravo.
Agenor ignora a fala da mãe e me pergunta sobre o jogo que está em sua
mão.
Terapeuta 1 – Agenor, você ouviu o que sua mãe disse?
Agenor – É, eu não gosto também, fica todo mundo insistindo.
(1.49) Luzia – Agenor, quando acontece isso, você prefere que eu fique
perto de você, que eu te defenda, ou que eu saia?
Agenor – Que você fique.
(1.50) Luzia – Essa é uma situação que me preocupa, porque o pai tem
aquele jeito dele invasivo, vai entrando e eu fico sem saber o que fazer.
Terapeuta 1 – Não dá para combinar a visita?
Luzia – Não, ele não faz nada do que combinamos.
(1.51) Percebo que Agenor fica disperso com essa conversa. Ele me
pergunta, novamente, como chama e como se joga o jogo que está na mão.
(1.52) Terapeuta 1 – Agenor, me parece que você não quer muito falar
sobre isso...
164
(1.53) Agenor Eu não quero falar do meu pai hoje, só da minha mãe.
Terapeuta 1 - Agora que vocês conversaram, será que não gostariam de
fazer um desenho sobre o que conversamos?
Luzia – Eu adoraria.
Foram para a outra sala e, como o combinado, Lucas veio para o
“confessionário”.
Terapeuta 1 – E aí, Lucas, já terminou o seu desenho?
Faz que sim com a cabeça.
(1.54) Terapeuta 1 – E o que você quer conversar?
(1.55) Lucas – Chama a minha mãe.
Terapeuta 1 – bom. (vou até a sala e volto com sua mãe, que se senta
ao lado de Lucas e o abraça).
(1.56) Lucas – Mãe, por que você largou do meu pai? Você vai voltar com
ele?
(1.57) Maria – A mãe já te contou, eu e seu pai estávamos brigando muito e
por isso a gente separou, mas entre você e ele não vai mudar nada, ele vai
continuar sendo seu pai.
(1.58) Lucas – Mas mãe, o meu pai falou que, se você voltar, ele vai
mudar, ele vai melhorar em casa.
Terapeuta 1 – Às vezes, dá vontade que fosse diferente, né?
(1.59) Lucas – Eu queria, queria que eles dormissem juntos, que desse
certo, a gente lá na Santa Clara, na piscina, meu pai fazendo churrasco e minha
mãe ajudando. Assim era gostoso.
(1.60) Maria – É Lucas, mas não era isso que estava acontecendo, era?
165
Faz que não com a cabeça
Maria – Você contou para a Ticiane que foi você que arrumou as malas do
seu pai?
Faz que não com a cabeça
Terapeuta 1 – Como foi isso, Lucas?
(1.61) Lucas – Eles estavam brigando pelo telefone, porque meu pai saiu e
não voltou para casa. Ele saiu com o amigo dele, aí a minha mãe ficou triste e
estava chorando no telefone. Aí ela falou que queria que ele fosse embora e eu fui
no guarda-roupa e tirei as coisas dele e coloquei na cama.
Maria – Quando ele chegou, achou que eu não ia ter coragem, ele ficou
surpreso de ver as coisas todas arrumadas.
Terapeuta 1 – É Lucas, não deve estar sendo fácil passar por tudo isso,
né?
Ele chora e a mãe o abraça.
Lucas – Eu sei que minha mãe vai voltar com o meu pai, porque ela gosta
dele.
(1.62) Maria – Eu gosto, Lucas, mas eu não sei se vou voltar com ele, não
posso te responder isso ainda, eu e seu pai ainda temos que conversar muito,
mas do jeito que estava eu não quero mais.
Lucas pede para ir ao banheiro, quando volta já tinha terminado o tempo e
por isso encerramos o encontro.
- enquanto isso Agenor e sua mãe, assim como as outras crianças e mães
ficam na outra sala, onde fazem desenhos e contam histórias.
166
Segundo encontro do grupo
Participantes -
Agenor e sua mãe Luzia
Júlio e sua mãe Gisele
Patrícia e sua mãe Rose
Falta – Lucas e sua mãe Maria
Agenor chega com sua mãe, ele vem na frente, abre a porta e entra
perguntando pelas outras crianças. Sua mãe, que está atrás, chega na porta e
pára, diz que precisa falar comigo um pouco, porque aconteceu uma coisa muito
séria. Ela parece muito assustada, olhar perdido. Saio da sala para conversarmos,
enquanto Agenor inicia seu atendimento com as outras terapeutas.
Conversa com Luzia:
Luzia – Eu precisava conversar porque aconteceu uma coisa muito séria.
No sábado, o pai do Agenor foi a minha casa e foi entrando, quando eu vi ele
estava no meu quarto com o Agenor. Eu estava dormindo, porque tive um dia
cansativo e estava com dor de cabeça. O Agenor só virou para mim e disse que
estava pegando dinheiro para dar para o pai e também a máquina de fotografia
porque o pai iria precisar. Quando eu olho, vejo que ele (pai do Agenor) está todo
machucado, perguntei o que tinha acontecido e ele contou que uns homens
invadiram a sua casa e quebraram tudo e bateram nele. Aí, o Agenor falou que ia
167
com o pai. Eu fiquei desesperada, falei que não ia deixar, mas ele falou que ia e
pronto. Ele está assim, agora, não obedece, está me enfrentando.
Você imagina como eu fiquei superpreocupada. Esses homens
podiam voltar, machucar mais ainda ele (o pai), e ele queria o Agenor como
escudo. No fim, o Agenor dormiu na casa da avó. Eu fiquei mais tranqüila. Quando
o Agenor voltou, eu falei para ele que não estava certo, que eu tinha ficado muito
preocupada. Não sei se fiz certo, mas eu falei que se o pai gostasse dele mesmo,
não iria ter levado ele para correr algum risco. No fim, eu acho que o Agenor até
entendeu e ficou pensando, mas aí, eu te pergunto, eu devo deixar ele ver esse
pai? Porque ele tá correndo risco.
Terapeuta 1 – O que você acha, Luzia? O que pode acontecer se ele ver
ou se ele deixar de ver?
Luzia – Eu, por mim, proibia, mas sei que é pior, que ele vai ficar com raiva,
capaz de aí, sim ,querer ficar mais com o pai. Não, porque agora é assim, o tempo
todo com o pai, quer ir com o pai todo final de semana, quer ligar para o pai.
Terapeuta 1 Isso deve assustar bastante você, tô lembrando do que
conversamos no grupo que, se você pudesse, não deixava o Agenor ter saído de
dentro da sua barriga.
Luzia – Eu sei que sou muito dependente dele, tenho pensado nisso, mas
não sei como mudar isso.
Terapeuta 1 – Luzia, eu sei que deve estar difícil esse momento para você,
foi bom você ter contado o que aconteceu, mas precisamos voltar ao grupo. A
gente pode conversar mais no grupo de pais da semana que vem, tudo bem?
168
(Sinto-me com raiva, angustiada, porque, quando percebo, estou
conversando com ela há quase vinte minutos, além disso, sinto que ela não ouve
o que falo, apenas diz, evacua, e estou sendo privada de estar no grupo, de
participar das atividades com as crianças e outras mães).
Quando voltamos à brinquedoteca, Patrícia e Júlio, assim como suas mães
já estavam lá. Júlio brincava com sua mãe de trinca, enquanto Agenor jogava
bola sozinho e Patrícia estava conversando com a outra terapeuta, que me
convida para ouvir o que a Patrícia estava dizendo.
Elas mostram um desenho feito pela terapeuta durante a conversa, quando
esta tentava entender o que acontecia com Patrícia, que foi contando que tinha
dois pais, um bom e outro mau. Este segundo seria seu pai verdadeiro e o outro
um amigo de sua mãe, com quem Patrícia brinca, passeia. Relata que o pai bateu
na mãe novamente e que gostaria de saber o que pode fazer para que eles parem
de brigar, já que, normalmente, ela interfere na briga e o pai acaba batendo nela e
dizendo que ela não é sua filha. Sua mãe fica sentada ouvindo a conversa, mas
parece paralisada, não interage, não acrescenta, nem muda o que a Patrícia está
contanto.
Agenor, que está atento à conversa, diz que, na sua casa também já tinha
sido assim e o que ele fazia era chamar o seu tio para segurar seu pai. Júlio
interfere dizendo que ela podia ligar para polícia, dá até o número do telefone. A
terapeuta (2) diz da importância de que ela converse com sua mãe, e que essa
sim pode tomar alguma providência.
169
Enquanto terminávamos a conversa, Agenor convida Júlio para jogar bola lá
fora e eles vão acompanhados de uma das terapeutas e de suas mães, que
demostram estar perdidas no encontro. Pergunto à Patrícia do que ela gosta de
brincar, diz que de boneca e, então, convido-a para brincarmos de boneca.
Observo que ela tem dificuldade em se soltar, olha as roupas, escolhe uma e,
depois, veste a boneca de noiva, dizendo que iria se casar, fizemos um
casamento entre os bonecos. Sua mãe ficou sentada observando, a convidamos
para participar, ela sentou-se com a gente, mas pouco interagiu.
HORA DO LANCHE
Como era a semana que antecedia a Páscoa, conversamos sobre o
seu significado. Júlio e Patrícia disseram que não sabem o que significa e Agenor
explica contando a história da morte e ressurreição de Jesus. Quando terminaram
de comer, vão procurar, acompanhados de suas mães, os ovos de páscoa que
estavam escondidos, saem correndo em direção ao jardim e procuram juntos os
ovos.
Ao retornarem para a sala, enquanto comem, propomos que, sendo
Páscoa vida nova, gostariam que eles falassem sobre o que mudaria em suas
vidas.
Pâmela – Eu queria que meu pai parasse de bater na minha mãe, queria
que eles se separassem.
170
Rose – A gente vai se separar, só tem que resolver na justiça e, aí, a gente
vai embora para Curitiba com a minha família. Eu também quero muito isso. (Ela
se emociona enquanto fala)
Júlio – Eu já queria que a minha mãe voltasse com o meu pai, porque
tenho saudade dele.
Gisele– (chorando) Você sabe que isso é impossível, a gente não tem mais
volta.
Terapeuta 2 – E você, Agenor?
Agenor – Eu falei para o meu pai que não quero que ele mate os caras que
invadiram a casa dele.
Terapeuta 2 – É, Ticiane, o Agenor contou para a gente, enquanto você
conversava com a mãe dele, o que aconteceu com pai dele e que o pai dele quer
matar os moços. Ele falou para o Agenor que não acontece nada matar
vagabundo, que não vai preso.
Agenor – Eu falei para ele, mas ele quer matar, disse que vai dar tudo
certo. Mas acho que ele só falou de raiva, não vai fazer isso, não.
Luzia – É isso que eu estava falando, tá vendo? Como que vou deixar o
Agenor com o pai e ficar tranqüila.
Terapeuta 1 – Hoje, falamos de coisas pesadas, das brigas dos pais, do
que a gente queria que fosse diferente.
O tempo já havia terminado, por isso a sessão foi encerrada.
171
Terceiro encontro do grupo
Participantes
Agenor e sua mãe Luzia
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
Faltam – Júlio e sua mãe Gisele
(3.1) Agenor e Lucas entram na sala acompanhados de suas mães. Lucas
estava eufórico, escolheu a carinha de feliz e foi logo contando ao grupo que tinha
ganhado um cachorrinho. O grupo o questiona sobre como ele é, e ele o descreve,
às vezes, solicitando ajuda de sua mãe. Ela também diz que está feliz, porque as
coisas em casa andam bem. Lucas a interrompe, dizendo que seu pai vai virar
pastor e ele pastorinho. A mãe acrescenta que o pai de Lucas tem ido à igreja e,
por isso, está bem em casa.
(3.2) Agenor, que está mais quieto, senta-se ao lado de sua mãe, que
começa a falar que precisa muito contar o que ela tem passado:
(3.3) Luzia – No final de semana, o pai de Agenor arrumou uma confusão
em casa. Ele foi buscar o Agenor, que não queria ir, aí, pronto, o pai já ficou
agressivo, começou a ameaçar. Eu não agüento mais ele fazendo isso e, além do
mais, ele não ajuda em nada. o Agenor sempre pede para ele (o pai) levá-lo no
judô e ele nunca pode. Aí, a semana passada, ele até que concordou, mas para
isso, fez com que eu passasse umas roupas para ele, eu pensando no Agenor, em
172
como o Agenor queria que o pai fosse, concordei. Só que ele não tem
responsabilidade, ele largou o Agenor lá e veio embora me atormentar. Tá certo
que a gente tinha combinado que ele levaria e eu buscaria, mas eu mudei de
idéia. A gente pode mudar de idéia, não pode? Então, eu mudei e pensei que ele
podia trazer o Agenor já que tinha ido até lá, mas ele não ficou esperando e o
Agenor me ligou chorando. Mas foi bom, porque, desculpa falar Agenor, mas
assim você viu quem é seu pai.
(3.4) Terapeuta – Eu estou aqui pensando, o que o Agenor tá sentindo
ouvindo tudo isso?
(3.5) Agenor - Meu pai só briga (fala bem enrolado, quase não é possível
compreender).
(3.6) Luzia – E teve mais confusão, ele e meu irmão brigaram feio, e o pai
do Agenor já pegou até facão para avançar no meu irmão, por isso, quando os
dois começaram a brigar todo mundo ficou com medo. No fim, a minha sobrinha
acabou gritando para o Agenor que ele tinha logo que ir com o pai. O Agenor ficou
até chateado com o jeito que ela falou, mas ele tem que entender quem é o pai
dele...
(3.7) Enquanto isso, Agenor levanta e começa a estourar alguns balões que
estão pela sala. Lucas levanta e também os estoura.
Terapeuta – Acho que toda essa conversa tá mexendo com os meninos.
(3.8) Agenor - Tô com raiva, vou estourar as minhas raivas (refere-se a
uma dinâmica que participou há algum tempo)
(3.9) Luzia continuava falando compulsivamente sobre o pai de Agenor, e
as crianças diziam que queria brincar, por isso foi perguntado se ela gostaria de
173
escrever o que estava sentindo, pois percebíamos a sua necessidade de
expressar a situação que vive e em contrapartida o quanto a sua fala incomodava
o grupo como um todo. Ela foi até um canto da sala, o “cantinho da leitura”, e
ficou lá durante todo encontro escrevendo.
(3.10) Patrícia chega com sua mãe, pedem desculpa pelo atraso e a mãe
diz:
(3.12) Rose – Eu não queria vir hoje, por causa da chuva, do frio, mas a
Patrícia insistiu, disse que queria porque queria vir, aí a gente veio, mas
acabamos perdendo o primeiro ônibus, por isso o atraso.
(3.13) Quando elas chegaram, às outras crianças já estavam brincado,
estavam estourando as bexigas da sala, o que deixou Patrícia bem assustada. Ela
escolhe a carinha de assustada e diz que está assim porque tá com gripe e por
causa do barulho que estava na brinquedoteca quando ela entrou.
(3.14) Agenor - A gente tá estourando bexiga porque estamos com raiva.
Você não quer estourar?
(3.15) Patrícia - Não. (encontra-se quase escondida atrás da mãe)
(3.16) Lucas - Eu não tô com raiva, to estourando porque é legal.
(3.17) As bexigas terminam e eles andam pela sala, à procura de
brinquedos. Lucas escolhe a dama e convida a sua mãe para jogar com ele.
Agenor pega a maquininha de fazer tricô e vai para um canto da sala. Patrícia
convida sua mãe para brincar com alguns jogos, mas ela queria brincar com
massinha, só depois de algum tempo, que acaba jogando Forca com a filha.
(3.18) A terapeuta (1) vai até Agenor, que estava sozinho em um canto, e
pergunta se ele quer brincar com ela. Agenor responde que sim e escolhe brincar
174
com a maquininha de fazer tricô. Começa a dar ordens para a terapeuta que, na
brincadeira, é a empregada da firma e ele é o dono. Enquanto brincam, a
terapeuta, que estava desenrolando a lã, diz que o que ela realmente gostaria de
desenrolar era o que tinha no coração de Agenor, porque dava para notar que ele
estava bem embaraçado.
(3.19) Agenor -(fica um pouco em silêncio e fala) Eu não agüento mais
essa coisa do meu pai e da minha mãe, eu tenho vontade de sumir.
Terapeuta 1 - Deve ser complicado, porque não sei se estou certa, mas eu
acho que você tem vontade de ficar com seu pai, mas, se fala isso, sua mãe fica
chateada.
(3.20) Agenor - É, eu não gosto de deixar ela chateada, às vezes, em
casa, eu olho para ela e vejo que ela está com cara de brava, aí eu fico
perguntando se fiz alguma coisa, mas ela não fala nada.
Patrícia se aproxima e fica ouvindo a conversa.
Terapeuta 1 – Você também fica com medo de chatear sua mãe, Patrícia?
Patrícia – Faz que sim com a cabeça.
Terapeuta – Por que será que a gente tem tanto medo de magoar nossas
mães?
Eles ficam me olhando.
(3.21) Agenor levanta e diz que quer jogar dama comigo. Como estava na
hora do lanche, combinamos de jogar depois
175
HORA DO LANCHE
(3.22) No momento em que organizávamos a sala para o lanche, Lucas e
Agenor começam um briga, discutem, um empurra o outro e ficam se ofendendo
por apelidos, até que, com a intervenção da terapeuta, sentam –se para o lanche.
(3.33) Lucas – Cadê a Ana (uma das terapeutas que havia faltado nesse
encontro)?
Terapeuta 1 Ela foi viajar, por isso não veio hoje.
Lucas - Onde ela foi?
(3.34) Terapeuta 1 - Lembra que ela disse que iria visitar a família dela?
Lucas – Onde a família dela mora?
Terapeuta 1 – É em Itapeva, mas, depois, vocês perguntam mais para ela,
combinado?!
(3.35) Lucas – Eu também já viajei para visitar a minha família, fui para
Ubatuba, (fala outras cidades e as que não lembra pergunta para a mãe)
(3.36) Terapeuta 3 – E a Patrícia, já foi para Curitiba visitar sua família?
(3.37) Patrícia – Já.
(3.38) Agenor - Quem mora lá?
(3.39) Patrícia - Minha avó, meu avô e os meus primos.
(3.40) Rose – Toda a minha família é de lá, mas a Patrícia só foi quando
era bem pequena, ela não conhece a minha família direito.
Patrícia – Só por foto.
(3,41) Lucas - Eu só não fui em mais lugar porque o resto morreu.
176
Terapeuta – Quem morreu?
(3,42) Lucas - Como que chama mãe, aquele lá, acho que o seu bisavô?
(3.43) Maria - Nossa, Lucas, esse nem eu conheci, ele morreu antes de eu
nascer.
(3,44) Lucas – Mãe, o que o seu bisavô é de mim?
(3.45) Maria - O seu Bisavô? Esse que você tá falando era meu avô, então
ele era o seu bisavô.
Terapeuta – Nossa! Mais que conversa mais interessante...
(3.46) Lucas - E você sabe como meu pai conheceu a minha mãe?
(3.47) Terapeuta – Não, como foi?
(3.48) Lucas – Ele sempre via ela e achava ela linda, né mãe?! Aí, um dia,
ela foi no mercado e ele derrubou tudo, porque ficou vendo ela. (ele fala muito
confuso e rindo muito, por isso a mãe explica:)
(3.49) Maria - Não, é que teve um dia que ele foi ao mercado e ficou me
olhando, aí, sem querer, ele derrubou a prateleira e ficou todo envergonhado, daí
a gente conversou e nos encontramos e aí começou o namoro.
(3.50) Agenor - Eu também sei a história da minha família. O meu bisavô
era casado com a minha bisavó Ana, ele separou porque ele tinha uma amante
e casou com ela. Ela estava grávida, só que aí o cavalo deu um coice nela e ela e
o bebê morreram, aí ele casou de novo com a minha bisavó Ana e teve o meu avô
e os irmão dele. Que casou com a minha avó e nasceu a minha mãe. Eu vou
chamar a minha mãe para contar como foi que ela conheceu meu pai.
- Vai até a outra sala onde a mãe estava escrevendo e a traz para contar.
Enquanto isso:
177
(3.51) Terapeuta – E a Patrícia, conhece a história da sua família?
Patrícia – Faz que não com a cabeça, e a mãe começa a contar:
(3.52) Rose – Eu era empregada de uma casa e seu pai trabalhava na
frente e ele sempre mexia comigo e eu ficava brava, até um dia que eu falei:
Nunca viu, não, e comecei a rir e ele também, aí começamos a namorar. Foi o
meu primeiro namorado. Ia bem até eu descobrir que ele já tinha uma outra
família. Na verdade, ele era separado por duas vezes, mas ele não me contou, aí
começaram as discussões e acabou, vocês sabem onde, na separação.
(3.53) Luzia - A separação já saiu?
Rose – Já.
Luzia - Nossa, como foi rápida.
(3.54) Agenor - Conta, mãe, conta como você conheceu meu pai.
(3.55) Luzia - Ele trabalhava de motoboy ...
(3.56) Agenor - Ele entregava pizza?
(3.57) Luzia - Não, cobrança mesmo! Aí ele gostou de mim e foi bem
insistente. No começo, eu não queria, mas ele insistiu e meus pais gostaram dele,
a gente acabou casando. Mas logo ele já começou a aprontar e eu não gostava
tanto dele...
(3.58) Agenor - Minha mãe gostava de uma outra pessoa...
(3.59) Luzia - É, eu tinha um rapaz que eu gostava, mas ele não se
interessava por mim, aí acabei casando com o pai do Agenor.
Terapeuta – E hoje, Luzia? Por que faz tempo que você é separada, né?
Luzia - No início, eu não pensava nisso, mas até que, ultimamente, eu
tenho pensado.
178
(3.60) Agenor - Ela estava paquerando um moço, aí, mas não deu certo,
ela não sai de casa.
(3.61) Terapeuta – Nossa, o Agenor sabe tudo...
(3.62) Luzia - Eu me interessei mesmo por uma pessoa, mas, aí, acabei
descobrindo que ele já tinha um relacionamento. Eu tenho que tomar cuidado,
porque já sofri muito com o pai do Agenor – começa a relatar as brigas, as vezes
que ele não dormiu em casa.
(3.63) Enquanto isso, as crianças que demonstravam estar incomodadas
com o rumo que a conversa tomou, levantam e vão para a outra sala brincar, as
mãe continuaram conversando com uma das terapeutas sobre as dificuldades
atuais nas relações com os maridos e ex - maridos e a outra terapeuta
acompanhou as crianças.
Luzia - Na verdade, eu acho que ele tem esperança de voltar, mas eu não
quero, mas eu ainda converso com minha sogra...
Terapeuta – Sua sogra?
Luzia - É, eu não sei como devo chamá-la, agora, que aconteceu a
separação.
Terapeuta – Será que essa separação aconteceu?
Luzia - Claro que sim, eu tenho raiva dele, Deus me livre, mas eu tenho
ódio dele. (fica exaltada enquanto fala, parece com raiva da terapeuta).
(3.64) Terapeuta – Eu fiquei pensando quanto tempo da vida da Luzia ela
ainda dedica a esse ex - marido, em pensamento mesmo... e por outro lado,
quanto tempo ela gasta pensando nela, nas coisas que dão prazer a ela.
Luzia - Não, não é isso...
179
Terapeuta – Pensa nisso...
Maria – Eu já falei isso para ela, ela vive em função do que ele faz.
(3.65) Rose – Eu também tenho uma filha, nem por isso vivo em função do
meu ex – marido. Eu decidi terminar e levei até o fim, só estou na casa ainda com
ele por orientação da advogada, mas não vejo a hora de sair e, mesmo morando
junto, eu não fico fazendo as coisas para ele.
Terapeuta – Nosso tempo terminou, a semana que vem conversamos
mais.
180
Quarto encontro do grupo
Participantes
Agenor e sua mãe Luzia
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
Júlio e sua mãe Gisele
(4.1) Lucas é o único a chegar no horário. Ele entra com sua mãe, sentam-
se um ao lado do outro (sempre no mesmo lugar). Lucas escolhe a carinha de
assustado e sua mãe de feliz. Ele começa a dizer que está assustado porque teve
um pesadelo. Pedimos que ele falasse e ele começou a contar que era de um
monstro que o pegava e ele relaciona o sonho com um filme de terror a que
assistiu e começa a falar do filme.
Não conseguimos entender o que ele conta, fala enrolado, confuso. (4.2)
Enquanto contava, chega Agenor e sua mãe. Ele entra agitado, eufórico, falando
da vitória de seu time de futebol. Peço que ele espere Lucas terminar de contar e
que, depois, ele podia falar. Ele senta-se, mas fica mexendo o tempo todo na
cadeira, não pára. Sua mãe também parece agitada, não consegue ouvir o que
Lucas conta. Agenor escolhe a carinha de feliz, o que justifica pela vitória de
virada de seu time. Sua mãe escolhe a carinha de “mais ou menos” e começa
dizendo que precisa falar algumas coisas:
181
(4.3) Luzia - Eu preciso dizer que fiquei bem chateada no último encontro,
porque eu não tive tempo de dizer tudo o que está acontecendo comigo, eu sei
que tem mais gente, mas aqui é o lugar que tenho para falar o que eu sinto e, no
último encontro, eu não pude fazer isso. Eu gostei de escrever, mas eu queria ter
conversado sobre aquilo. Você leu o que escrevi? (pergunta para a terapeuta)
(4.4) Terapeuta 1 – Não, achei que deveria deixar para lermos juntas hoje.
Queria ver com o grupo como que a gente faz isso, eu e você podemos sentar
num canto e conversarmos, ou o grupo pode participar, como vocês quiserem.
Mas queria te dizer que gostei muito de você dizer que sai daqui brava por não ter
tido espaço.
(4.5) Luzia – É, eu não sei, mas achei que devia dizer o que estava
sentindo e quero muito conversar sobre o que acontece, porque tá difícil. Eu
estava até conversando com o meu irmão, que tudo isso que aconteceu com os
presos, os ataques, nem me assustou, porque eu vivo isso o tempo todo, essa
ameaça, o pai do Agenor faz isso para mim o tempo todo. Só que queria contar
para vocês que eu acabei fazendo o B.O, tomei coragem, fiz o B.O, e fui conversar
com a advogada, aqui, do SOS também. Ela vai ver o que pode fazer por mim.
Terapeuta 1 – Nossa, parece que ter ficado com raiva e percebido que
tinha que fazer algo, você por você, deu algum resultado, foi lá e fez o B.O.
(4.6) Luzia – Eu já tinha feito B.O antes, mas o que foi diferente dessa vez
é que eu fui sozinha, não fiquei dependendo de ninguém.
(4.7) Maria – Ela tá até mais bonita, não tá? Tá com o cabelo diferente.
Luzia – Acha! Não fiz nada.
Agenor – Ela pintou.
182
(4.8) Luzia – Eu cansei e senti que devia ter feito alguma coisa, porque
essas semanas o pai do Agenor extrapolou, ele está indo em casa quase todo
dia e eu fico muito assustada. Ele tem ido bêbado, outro dia levou o Agenor sem a
mínima condição. Eu só respirei porque ele disse que ia deixar o Agenor com a
avó porque ia trabalhar. (Ela continua falando muito das brigas e das invasões do
pai do Agenor, sempre muito ansiosa. Ela parece estar sofrendo muito, quando
fala).
(4.9) Enquanto isso, o grupo todo demonstra estar inquieto, em especial
Lucas, por isso, pergunto a ele:
Terapeuta 1 – Lucas, vejo que quando a mãe do Agenor fala, você fica
todo nervoso. Acho que deve lembrar de alguma coisa. Quer contar para gente?
(4.10) Lucas – Eu lembro de quando minha mãe e meu pai separaram, eu
fiquei com muita raiva, tinha vontade de bater com a enxada nele.
(4.11) Luzia interrompe Lucas e continua falando de seu ex – marido.
(4.12) Lucas e Agenor levantam e começam a brincar.
(4.13) Júlio chega e começa a brincar com as outras crianças. Sua mãe diz
que terá que conversar rapidinho lá em cima (com a assistente social) e já voltava.
(4.14) Luzia – Vamos conversar como você tinha dito?
Terapeuta 1 – Vamos.
(4.15) Agenor – Eu queria ouvir, porque é do meu pai que vocês vão falar.
Terapeuta 1 – Por mim, tudo bem.
Luzia – Por mim também.
(4.16) Agenor – Eu quero que os meus amigos também escutem a
conversa.
183
(4.17) Júlio – Eu quero brincar, não quero ouvir.
(4.18) Lucas - Eu vou jogar com a minha mãe.
(4.19) Agenor começa a ouvir, mas logo fala que é chato e vai brincar com
as outras crianças.
(4.20) Luzia começa a ler o que havia escrito, onde relatou as situações em
que o ex – marido invade sua casa e leva o Agenor. A preocupação que sente
nessa situação. Mesmo antes de terminar sua leitura, pergunto a ela o que
gostaria que acontecesse. Responde que queria que o pai de Agenor fosse a sua
casa só nos dias de visita, que ligasse antes, que a respeitasse, que não criasse
nenhuma confusão.
Conversamos sobre o desejo dela de que o pai de Agenor fosse outra
pessoa e da importância de entender que isso só é possível, do jeito que ela
sonha, se ele estiver disponível para mudar, que não depende da gente, da
advogada, da polícia, nem dela, mas que existem algumas coisas que ela, sim,
pode fazer. Falamos da importância de serem colocados alguns limites, e que isso
só ela pode fazer.
Ela responde dizendo que isso é muito difícil para ela, não se sente forte
para fazer isso. Aponto que, de alguma forma, o B.O que ela realizou já foi um
passo. E que gostaria de aproveitar para dizer que sinto como se ela tivesse essa
dificuldade não só com o ex – marido, mas também com o Agenor, com sua mãe,
e com todos à sua volta.
(4.21) Fica emocionada, mas logo desvia o assunto, perguntando sobre
como agir para que o Agenor não sofra. Fala de situações em que ele fica
184
preocupado com ela, quer protegê - lá e que ela tem pensado nisso e acha que
não faz bem para ele.
(4.22) Aponto a importância de ela ter percebido isso, mas, o que mais
chamava minha atenção é que ela sempre desviava o assunto, quando eu falava
dela, ou ela começa a falar do Agenor, ou de seu ex – marido e foge de pensar
sobre ela.
(4.23) Ela ri e diz que, quando falei sobre ela, teve vontade de me contar
uma coisa:
Luzia - Tem uma pessoa interessada em mim, eu o encontrei na padaria,
ele é conhecido da minha família, nós conversamos um pouco e, depois, o meu
irmão veio contar que ele o procurou e disse que estava interessado em mim.
(4.24) Agenor chega nesse momento e pergunta se sua mãe tinha chorado
muito. Ela tenta me falar alguma coisa sem que ele perceba. Entendo que é para
eu perguntar, ou contar algo para ele. Peço que ela mesma fale com ele e ela
pergunta o que ele acha de ter alguém interessado nela. Ele diz que é legal e,
andando pela sala, fala que ela tem que passear mais, mas que tem que ser com
ele, porque ele gosta de sair com ela. Depois, se aproxima e junta os dedos
indicadores, mas coloca um outro entre eles e explica que é sua mãe, o senhor
interessado nela e, no meio, o seu pai atrapalhando. Eles dão risada e juntos vão
para a outra parte da sala, onde estouram algumas bexigas junto com as outras
crianças.
(4.25) Enquanto essa conversa estava acontecendo, Patrícia e sua mãe
chegam para o atendimento e brincam juntas. Na verdade, andam pela sala,
olham alguns brinquedos, mas não escolhem nada. Patrícia apenas coloca uma
185
peruca, o que, aliás, tem feito em todo encontro. Depois, convidados por Júlio,
todos, com exceção de Lucas e sua mãe, e da Luzia que ainda conversava
comigo, brincam de “mico”. É a primeira vez que Patrícia brinca junto com as
outras crianças. (4.26) Quando o jogo termina, eles pegam alguns balões que
estavam pendurados na janela e começam a estourar.
(4.27) Depois que limparam a sala que estava cheia de bexigas estouradas,
Júlio convida todos, novamente, para brincar de “Mico”. Os únicos que não
brincam é Agenor, que convida a mãe de Júlio, Gisele, para jogar “forca” com ele,
o que parece incomodar muito a mãe de Agenor que ameaça levantar, mas acaba
jogando e deixando Agenor lá. Lucas também não jogou porque, quis ajudar a
outra terapeuta a preparar o lanche.
HORA DO LANCHE
(4.28) Na hora de arrumar a sala, Luzia pega as folhas que ela escreveu e
que lemos juntas nesse encontro e me entrega. Pergunto o que vai fazer com
aquilo e pede que eu guarde. Agenor vai até o armário onde coloco as folhas e
pede para eu pegar para ele rasgar. Digo que são de sua mãe e que não posso
fazer isso. Ele fala: - Sou eu que mando, vai, vai me dá.
Luzia olha para mim como se perguntasse o que deveria fazer.
Terapeuta 1 – Como disse, essas folhas são da sua mãe, é ela quem vai
decidir o que fazer.
(4.29) Luzia – Agenor, eu quero que ela guarde, não quero que rasgue.
(percebo sua fala muito insegura)
186
(4.30) Ele sai bravo e ela diz: - Nossa, como colocar limite é difícil.
(4.31) Enquanto comem, falam dos atentados que aconteceram. As
crianças, de forma geral, dizem que ficaram com medo. Agenor diz que queria
estudar na escola que pegou fogo para não ter aula. (4.32) A partir dessa fala,
Luzia diz que Agenor está com problemas na escola. Na verdade, não tem ainda
uma professora fixa, o que o desmotiva.
(4.33) Maria conta que, na escola de Lucas também não é fácil, tem uma
criança que bate nele e em outros alunos e que ninguém consegue conter, diz que
já está providenciando sua transferência para o próximo ano.
O lanche termina e, como já havíamos combinado, fomos desenhar (na
hora em que arrumávamos a sala, Agenor e Lucas pediram para desenhar e
combinamos de fazer isso após o lanche).
(4.34) Cada um pega uma folha e começam. Rose diz que hoje não está
muito a fim de desenhar, que não sabe o que fazer. Maria diz que também não
está com muita vontade de desenhar. Observando, percebo que as crianças
também não parecem envolvidas com a atividade (4.35), então, proponho uma
brincadeira, uma troca de desenhos, o que os anima e possibilita algumas
observações.
Quando passasse um tempo, rodaríamos os desenhos e cada um
completaria da forma como quisesse.
OBSERVAÇÕES:
187
(4.36) Rose demonstra ficar incomodada com as pessoas, mexendo no
desenho dela. Cada vez que ia mudar o desenho, ela verbalizava: “mas já? Me
deixa terminar aqui! Ai, meu Deus, como vai ficar isso?”.
(4.37) Patrícia não consegue desenhar muito, nem no dela, nem no dos
outros. Ela fica olhando a mãe desenhar e tenta reproduzir o que ela faz.
Provavelmente, por sentir-se insegura, pede que ela a ensine, o que sua mãe faz,
de maneira bem rápida, sem paciência.
(4.38) Agenor tem dificuldade em desenhar na folha dos outros
participantes. Ele fica bem rígido, o que pode ser observado em seus desenhos,
sempre quadrados, utiliza a régua com freqüência. (4.39) Em Luzia, percebemos o
mesmo desconforto e mecanismo de Agenor.
(4.40) Maria solta - se, sinto que, como não é mais possível identificar quem
fez o que nos desenhos, ela pôde desenhar com mais liberdade, envolve – se com
a atividade. (4.41) Lucas começa animado, quer continuar rodando os desenhos,
mas, na hora da conversa, resiste.
(4.42) Júlio é espontâneo, complementa os desenhos sem nenhuma
dificuldade ou estranheza. (4.43) Gisele age como o filho.
Depois de três rodadas, pedimos que cada um escolhesse um desenho
para contar a história. (4.44) Agenor ainda desenhava e quando uma das
terapeutas tirou as canetinhas e lápis da mesa, para iniciarmos a conversa, ficou
muito bravo e saiu da sala. Sua mãe perguntou se tínhamos notado. Dissemos
que sim, ela pareceu estranhar o fato de não termos ido atrás dele, mas respeitou
e participou da atividade.
188
(4.45) O primeiro a falar foi Júlio. Ele escolheu o desenho que tinha sido
iniciado por sua mãe. Fala que o desenho é a mãe natureza, que é responsável
pela vida e pela força. Em seguida, sua mãe mostra o seu e começa a descrever o
desenho. Júlio diz que o desenho dela também é da mãe natureza.
(4.46) Terapeuta 1 – Nossa, hoje o Júlio tá falando bastante dessa mãe
boa que é a mãe natureza, né? O que será que ele tá com vontade de dizer?
(4.47) Júlio – Eu queria falar para minha mãe que sinto falta dela brincar
comigo e com a minha irmã, que, antes, ela brincava com a gente, mas que agora
não tem mais tempo e, por isso, não brinca mais com a gente e eu fico triste.
(4.48) Gisele – É verdade, eu também sinto falta disso , mas é que a mãe
tá sem tempo, mas eu vou ver como posso fazer. (fala com os olhos cheios de
lágrimas)
(4.49) Júlio se levanta e vai até a sua mãe, diz para ela não chorar e a
abraça.
(4.50) O grupo fica em silêncio, todos olhando o que acaba de acontecer.
(4.51) Terapeuta 2 – Eu estava esperando o Lucas falar o que ele me
contou na cozinha, enquanto pegávamos o lanche, mas como ele não fala... posso
falar, Lucas?
- Faz que sim com a cabeça.
Terapeuta 2 O Lucas me contou que, hoje, é o último dia que vem na
brinquedoteca. Ele vai jogar bola nesse horário.
(4.52) Lucas – É que eu quero jogar bola lá na rua e é esse horário que
funciona.
(4.53) Júlio – Mas não tem outro horário para você jogar?
189
(4.54) Lucas – Não, só tem esse horário. É de segunda, quarta e sexta.
(4.56) Júlio - E você não pode ir de quarta e sexta e vir aqui na segunda?
(4.57) Terapeuta 3 – Olha, o Júlio tá tentando arrumar um jeito do Lucas
não sair da brinquedoteca, acho que ele vai sentir falta de você, Lucas.
(4.58) Lucas – É, mas não dá, não é por isso, é porque eu tenho que
acordar cedo, tem que acordar seis hora da manhã e eu fico cansado. Minha mãe
vem e fala, vamos, Lucas, acorda que tem que levar seus irmãos na escola. No
dia que não tem que vim aqui também, ela e meu pai não deixam eu dormir, ele
fala que eu tenho que acostumar para quando for grande.
(4.59) Maria – É, o Lucas tem reclamado de acordar cedo, mas é que não
tem outro jeito. Eu tenho que deixar os gêmeos na escola, tem que ser cedo e o
problema é que ele dorme muito tarde, ele gosta de ver televisão até tarde.
(4.50) Rose – Em casa não tem isso. Chega oito e meia, nove horas eu
mando a Patrícia ir dormir e ela vai.
(4.51) Maria - O Lucas teima, mas eu e o pai dele temos mudado algumas
coisas em casa, uma delas é essa, estamos tentando pôr limites.
(4.52) Terapeuta 1 – Mas acho que o Lucas, na verdade, não tá com falta
só de sono, né Lucas? Tenho a impressão que falta outra coisa, esses irmãos que
roubam todo o tempo da mãe, o colo.
(4.53) Maria – Eu sei que ele precisa da minha atenção, mas é difícil.
Terapeuta 1 – Nós já passamos muito do nosso tempo, mas precisamos
terminar essa conversa. Será que dá para vocês continuarem essa conversa no
ônibus, na volta para casa? Aí, semana que vêm, vocês contam para a gente
como foi.
190
Quinto encontro do grupo
Participantes -
Agenor e sua mãe Luzia
Júlio
Patrícia
Faltas:
Lucas e sua mãe Maria (A mãe ligou avisando que não viria pois tinha que ver
um trabalho).
Rose (mãe de Patrícia)
Gisele (mãe de Júlio)
Júlio é o primeiro a chegar. Entrou, olhou para a sala e perguntou sobre as
outras crianças. Dissemos que não sabíamos o que havia acontecido e que,
talvez, chegassem atrasados. Sentou-se à mesa, perguntamos sobre sua mãe,
contou que veio com um tio, porque sua mãe estava doente. Ela estava vomitando
e, por isso não podia vir participar do grupo. Ele olha bem as carinhas, parece em
dúvida, mas escolhe a de assustado, justificando que estava preocupado com sua
mãe. Começou a contar que sua avó preparou um chá para ela, mas ela não
tomou porque era muito amargo. Antes, deu para que ele experimentasse e
falasse se estava bom, antes dela tomar. Júlio conta tudo isso de maneira
confusa. Sua fala não segue uma seqüência, as frases não têm começo, meio e
fim.
191
Levanta e vai até o outro lado da sala onde fica olhando os jogos. Pergunta
à terapeuta o que poderiam jogar. Essa, por sua vez, tenta fazer com que ele
mesmo escolha, mas ele insiste para que ela decida, porém, quando oferece
algumas opções de jogos, ele recusa todas e acaba ele mesmo escolhendo um
que chama “puxa, puxa batatinha”. O jogo pede que cada membro retire uma
batata, sendo que, por algumas serem presas, se puxadas, fazem com que todas
caem do recipiente onde estão. O jogador que escolher esta batata, perde o jogo.
Júlio fica um tempo jogando com duas das terapeutas.
Observamos que ele quer sempre iniciar a brincadeira e tem dificuldade de
esperar e manter a atenção no jogo quando não é a sua vez. Após uns dez
minutos, escolhe um outro jogo “ludo”, que é um jogo de tabuleiro.
Enquanto brincávamos, chega Patrícia acompanhada de sua mãe que, no
entanto, diz que não poderia ficar hoje na brinquedoteca, porque foi chamada para
uma entrevista de emprego. Assim, deixa sua filha e vai embora. Patrícia entra no
jogo que recomeça. Pudemos observar as mesmas dificuldades já apontadas em
relação a Júlio, porém ainda mais acentuadas, porque, nesse jogo, a sua vez
demora mais para chegar, por isso, em alguns momentos, ele levanta e começa a
brincar com outras coisas, até que sua vez chegue. Em uma dessas brincadeiras
“paralelas” ,ele monta a barraca e fica dentro, fazendo de conta que estava
lutando com um gigante. Tentamos perguntar para ele o que acontecia, o que o
gigante queria, mas ele não respondia, ficava brincando e, de vez em quando,
pergunta se já era a sua vez. Se era, ele levanta, fazia a sua jogada e voltava para
a barraca. A única coisa que disse foi que, se sua irmã estivesse lá, ela iria entrar
na barraca com ele, mas não explicou porquê.
192
Patrícia, por sua vez, estava atenta ao jogo e insistia para que ele não
terminasse. Essa é a primeira vez que ela tem essa reação, esboça seu desejo de
que a brincadeira continue e participa de forma mais ativa, interage com o grupo.
Além disso, ela e Júlio conversam sobre algumas coisas relacionadas ao jogo, o
que nunca observamos em Patrícia. Quando ela falava, era com uma das
terapeutas.
Agenor e sua mãe chegam com mais ou menos uma hora e meia de atraso,
entram bem eufóricos, contando que o ônibus quebrou, que vieram do terminal até
o SOS andando. Luzia já dá continuidade a sua fala, dizendo que Agenor
precisava falar uma coisa porque ele não queria mais vir na brinquedoteca e que
ela tinha dito isso à advogada do SOS, que sugeriu que ele viesse
quinzenalmente. (ela fala muito acelerada, iniciando um assunto sem que o
primeiro tivesse terminado).
Terapeuta 1 – Nossa, não estou entendendo nada! O Agenor e sua mãe
chegaram falando um monte de coisa, um em cima do outro. Vocês entenderam
alguma coisa?
Patrícia faz que não com a cabeça e avisa que é a minha vez de jogar.
Luzia É que, no último encontro, o Agenor saiu daqui muito bravo e eu
queria que ele te falasse o que aconteceu.
Agenor – É que eu não quero mais vir aqui, já estou cansado.
Terapeuta 1 – Do que será que o Agenor esta cansado?
Luzia – Não é isso. Ele ficou bravo com a Bel (terapeuta) porque tirou o
lápis dele na outra semana.
Agenor – Ela nem falou se podia, se eu ainda ia usar e ela tirou o lápis.
193
Luzia – O Agenor não aceita limite, ele não aceita “não”, toda vez é assim.
Terapeuta 1 – Se contrariado, já não quer mais...
Agenor– Eu quero continuar vindo, sim. Quanto tempo falta pra mim vim.
Terapeuta 1 – Foi bom falar nisso, Agenor, nós queríamos contar isso
mesmo para o grupo. No final deste mês, você completa os três meses e, por isso,
termina. Depois, como a gente conversou quando você entrou, você vem duas
vezes, de quinze em quinze dias e depois mais uma vez.
Agenor – Só falta este mês?! Então eu quero vim sim, mãe, toda semana.
Luzia - Eu acho que ele tem que vim mesmo porque ele tem muita coisa
para falar ainda.
- Enquanto isso, Patrícia solicitava o tempo todo que eu continuasse o jogo,
pois, apesar de estar movendo a minha peça, jogando o dado, já não tinha mais a
mesma atenção que antes de Agenor e sua mãe chegarem. Júlio continuava
brincando com a cabana sozinho, comportava-se como se não tivesse percebido a
chegada dos outros participantes.
- Uma das terapeutas chega com o lanche e, por isso, paramos para
arrumar a sala e combinamos que, assim que o lanche estivesse na mesa
poderíamos, conversar, até porque não estava entendendo nada, todos falavam
ao mesmo tempo, sobre coisas diferentes, o que disse a eles enquanto
arrumávamos a sala.
Hora do lanche
Com a mesa pronta, o grupo ficou calmo, porém, a princípio, quieto.
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Terapeuta 1 – Nossa! Vocês estavam falando tantas coisas e, agora, esse
silêncio...
Luzia – Eu quero contar uma coisa para vocês. Eu tenho conversado com
aquele senhor que eu falei outro dia, estamos nos conhecendo. Ainda não tem
nada certo, mas é uma amizade. Só que teve um problema, eu até já resolvi, mas
outro dia ele foi em casa e disse que era melhor ele não me ver mais, é que eu
contei para ele o que eu passo com o pai do Agenor, as brigas, como ele é
agressivo e o senhor ficou assustado. Ele disse que tinha medo de piorar a minha
situação, por isso não iria mais em casa. Ele tem medo que o pai do Agenor fique
mais agressivo ainda (começa a chorar). Eu me senti muito triste, porque estava
gostando das nossas conversas, eu me senti abandonada, rejeitada...
Agenor – Já vai minha mãe chorar. É por isso que eu não quero mais vir
aqui, ela sempre chora.
Terapeuta 3 – Então, é ruim quando temos que falar do que nos deixa
triste?
Luzia Eu não vou chorar, afinal, eu já resolvi tudo. No outro dia, ele voltou
em casa e pediu desculpa, resolvemos tudo e estamos nos vendo novamente.
Agenor levanta e recusa voltar à mesa.
Terapeuta 1 – O que será que o Agenor está pensando dessa conversa,
para até querer sair de perto?
Agenor – Eu não quero saber dessa história de namorar.
Luzia – Mas, Agenor, você também não arrumou uma namoradinha? Conta
para as tias.
195
Agenor– É, mas não é namoradinha, ela nem sabe que eu gosto dela, eu
só acho ela bonita.
Terapeuta 3 – Nossa, que interessante, quando um arrumou uma paquera
o outro arrumou também.
Júlio – Tia, a minha mãe não veio hoje, porque ela está doente. Ela está
vomitando desde ontem, agora, não sei se ela melhorou, porque ela tomou o chá,
aquele lá que eu falei, lembra?
Terapeuta 1 – Acho que tá todo mundo desse grupo, hoje, preocupado
com alguma coisa, ou que pode ser abandonada, ou que a mãe arrume
namorado, ou que a mãe não melhore...
Luzia – É verdade, tanto que tá um falando em cima do outro.
Agenor – Então, vamos brincar!
Terapeuta 1 – Hoje, antes de você chegar, nós combinamos de fazer
massinha, eu vou buscar para a gente (refere-se a um pedido de Júlio logo no
inicio do grupo).
Luzia é a primeira a pegar a massinha, começa a fazer uma flor, uma rosa e
diz que é porque quer ganhar muitas dessas de verdade. Agenor, no início, não
quis brincar com o grupo, ficando de fora da mesa, mexendo em alguns
brinquedos. Depois de um tempo, senta-se à mesa e faz uma mala, dizendo que
aquela era uma mala com alça. A terapeuta (3) brinca com ele, perguntando o que
será que ele carrega naquela mala e ele diz que é um segredo, mas não quer falar
sobre isso.
Patrícia pede que uma das terapeutas faça um cogumelo para ela e,
enquanto isso, fica fazendo diversas coisas, mas desmancha todas, antes de dizer
196
o que é. Júlio faz um dinossauro que come todas as produções dos outros
membros do grupo, depois desmancha e faz um fantasma que assombra.
Aqui, também, o grupo estava agitado. Não conseguimos que cada um
fizesse e depois falasse sobre sua produção. Continuaram falando ao mesmo
tempo e, no final, a terapeuta apenas disse que hoje tinha sido um dia bem
confuso até porque o grupo tinha coisas difíceis para dizer, coisas tristes e coisas
felizes, mas que, por serem novas, deixam a gente com medo, como começar um
namoro.
197
Sexto encontro do grupo
Participantes
Agenor e sua mãe Luzia
Júlio e sua mãe Gisele
Faltam –
Lucas e sua mãe Maria
Patrícia e sua mãe Rose
(6.1) Júlio entra na sala faltando alguns minutos para o atendimento.
Pedimos que ele esperasse um pouco que logo chamaríamos. Quando abrimos a
porta, ele estava encostado nela, parecia estar tentando ouvir a conversa das
terapeutas. Pedimos que chamasse sua mãe, mas ele disse que não queria que
ela participasse e já foi entrando e pegando as caretinhas. Perguntamos para Júlio
porque ele não queria que sua mãe entrasse, ele respondeu que fica com
vergonha de brincar quando a mãe está junto. Mas, em seguida, já diz que era
brincadeira e sai para chamá-la. Volta com sua mãe, com Agenor e Luzia, que
aguardavam.
Júlio entra e começa a falar:
(6.2) Júlio – No final de semana fui, em uma festa junina com minha mãe e
minha irmã, foi legal porque lá tinha cadeia e eu fui preso. Era 25 centavos para
198
prender e 50 para sair. A minha irmã e minha mãe também foram presas, fui eu
que mandei prender a minha mãe.
(6.3) Gisele – Foi gostoso mesmo e o Júlio se divertiu muito.
(6.4) Luzia – O Agenor também tem um monte de novidade para contar.
Terapeuta 1 – Ah, é! Conta Agenor.
(6.5) Agenor – Eu também fui na festa de aniversário do SESI, joguei
futebol de sabão.
Luzia – E o que mais?
Agenor – Eu dancei também, dancei seis músicas, lá na apresentação.
(6.6) Luzia – Mas tem mais novidade, no final de semana, você foi onde?
(6.7) Agenor – Passei com meu pai, almocei com o candidato a presidente
do Brasil, e um monte de gente.
(6.8) Luzia – E o que seu pai te contou?
(6.9) Agenor – Ah! Eu vou ganhar um irmãozinho, Mateus, se for um
menino.
Terapeuta 1 – Nossa, que novidade! O que você achou disso?
(6.10) Agenor – Eu gostei, sempre quis ter um irmão.
Terapeuta 1 – O Júlio também tem irmã, né? Como é ter uma irmã, Júlio?
(6.11) Júlio – É legal, mas a mãe faz tudo para ela, compra todas as coisas
de cabelo para ela e não pra mim.
(6.12) Gisele – Ele sempre fala isso, mas é que ele não tem cabelo e é
coisa de menina, mas toda vez que ele vê que eu compro para ela, ele quer
também.
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Agenor – É eu já falei para meu pai que não é para fazer isso. E, agora, a
gente não vai brincar?
(6.13) Júlio – E a Patrícia, não vem hoje?
(6.14) Terapeuta 1- A mãe da Patrícia estava esperando uma resposta de
um emprego se desse certo ela não viria. Acho que deve ter dado certo. Quanto a
brincar hoje, vai ser um pouco diferente, lembra que nós contamos que hoje seria
o nosso último dia, antes das férias? Então, nós fizemos um caderno para vocês
levarem embora e desenhar ou escrever durante esse mês, que nós não vamos
nos encontrar. Por isso, hoje, primeiro, nós vamos fazer a capa do caderno e,
depois, vamos brincar o resto do tempo. Pode ser?
(6.15) Júlio – Pode. Eu vou poder arrancar folha do caderno?
Terapeuta 2 – É seu, você pode fazer o que você quiser.
(6.16) Demos os cadernos para eles que começaram a desenhar. As
mães, primeiro, ficaram olhando, depois a mãe de Júlio começou a desenhar com
o filho, a pedido do mesmo e a mãe de Agenor fez um desenho livre.
(6.17) Júlio fez um céu com sol e uma mata, onde viviam dinossauros. Já
Agenor fez as bandeiras do Brasil e da França e colou no caderno. Ao terminarem,
quiseram brincar. (6.18) Júlio me chama para escolhermos um jogo para o grupo,
que seria surpresa, Agenor não agüenta esperar e fica espiando o que estávamos
escolhendo, até que diz que vai escolher junto, Júlio resiste, mas os dois acabam
decidindo por um jogo de futebol de botão. Quem pega o jogo é Agenor. Ele
começa a arrumar o campo, quando Júlio senta no chão e diz que vai jogar com
ele. Agenor, primeiro diz não. Júlio reage, os dois começam a discutir, mas
acabam se entendendo e brincando.
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A brincadeira dura pouco tempo. Os dois discutem novamente. Júlio levanta
e pega outro jogo, convidando as terapeutas e mães para jogar com ele. Porém,
quando começamos a jogar, Agenor disse que também queria brincar conosco,
sentando-se à mesa em que estávamos. Júlio levanta, diz que não quer brincar e
convida a terapeuta para jogar futebol de botão com ele.
Depois de um tempo, Júlio convida sua mãe para jogar futebol de botão.
Ela recusa, dizendo que não sabe e, por isso, ele convida a mãe de Agenor que
concorda. Enquanto brincavam, Agenor pega o potinho com sabão e fica
brincando de fazer bolhas. Em um momento, ele faz uma bolha grande, bonita e
chama a sua mãe para ver. Júlio reage desmanchando a bolha de Agenor e diz
que fez isso porque a “tia” estava brincando com ele e Agenor atrapalhou.
(6.19) Agenor – Ela não é sua tia, não é da sua família.
Luzia – Não fala assim, ele só está me chamando de um jeito carinhoso.
Terapeuta 1 Nossa! Acho que tem um monte de gente com ciúme hoje
aqui.
(6.20) Gisele – o Júlio anda muito ciumento ultimamente. Tudo ele reclama
e acha ruim.
(6.21) Júlio deita no chão e começa a espernear, imitando uma birra, finge
chorar e diz que vai fazer como a irmã dele. Começa a rir e levanta, indo para o
colo da mãe.
HORA DO LANCHE
(6.22) Enquanto todos comiam e nesse encontro de maneira mais calma,
Agenor começa a falar da copa:
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(6.23) Agenor – Eu saí gritando “Argentina, Argentina”, depois, os meninos
ficaram me olhando de cara feia.
(6.24) Luzia – Depois, pediu para dormir comigo, porque ficou com medo.
Mas também, acha ,sair na rua torcendo para Argentina?!
(6.25) Agenor – Ah! Mas eu torço mesmo. E a propaganda da Skol, que
engraçado! (começa a narrar todas as propagandas, ri muito enquanto fala –
ressalta que o conteúdo das propagandas refere-se a como seriam diversas
coisas relacionadas ao jogo, se fossem inventadas por quem inventou a Skol. Na
propaganda, o Brasil, que na realidade poderia por exemplo tomar um gol da
Argentina, é beneficiado – as traves saem do lugar).
- Júlio se envolve na conversa, também relata as propagandas e os dois dão
muita risada.
Terapeuta 1 É, essas propagandas mostram como seria bom se tudo
acontecesse do jeito que a gente gostaria, né?!
(6.26) Chega a outra terapeuta que estava atrasada
(6.27) Agenor – Agora?
Terapeuta 3 – É, hoje eu me atrasei.
Luzia – Hoje, o Agenor trouxe uma novidade para contar.
Terapeuta 3 Ah, é! Conta Agenor.
(6.28) Agenor – Eu vou ganhar um irmão.
Terapeuta 3 – Nossa!
Agenor – Mas é do meu pai, não é da minha mãe.
Terapeuta 3 – Nossa! Por que será que o Agenor falou assim, e se fosse
da mãe?
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(6.29) Agenor – Ah! Da mãe ainda não. Só que ela e o seu Salvador,
Hum!!! (faz que estão namorando com os dedos), aí, depois, acho que também
vão fazer um irmão para mim.
Terapeuta 3 – Para mim, parece que tem horas em que o Agenor quer que
a mãe namore, mas tem horas ...!
Agenor – Eu não, a minha avó é que fica com ciúme, ela briga com a
minha mãe por causa dele, não quer que ela namore.
(6.30)Luzia – É a minha mãe implica mesmo, mas o Agenor até que aceita,
mas é que ele também tá com a namoradinha dele.
(6.31) Agenor – Eu vou começar a namorar ela, vou sair com ela e levar
ela para dormir lá em casa.
(6.32) Luzia – Calma, vai com calma nisso – ri muito, tanto ela como o filho.
Terapeuta 1 – E o Júlio, o que está achando dessa conversa?
(6.33) Agenor – É mesmo, Júlio, eu falei da minha namorada, agora fala
você.
Júlio – Eu não tenho namorada, não.
Terapeuta 1 – E a Taís?
Júlio – Ela é prima do meu amigo.
Agenor – Mas ela é bonita.
Júlio – É.
(os dois dão risadas e ficam um tirando sarro do outro)
- O grupo fica em um pequeno silêncio, mas continuam comendo, até que
Luzia fala:
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(6.34) Luzia – O que ainda tá difícil é que o Agenor tem brigado muito com
a prima dele...
(6.35) Agenor – Ela é muito chata, ela quer pegar as minhas coisas sem
pedir, ou pede e eu falo não, mas ela pega mesmo assim. Outro dia, ela queria o
meu videogame para passar filme e eu falei NÃO, mas ela pegou do mesmo jeito
e gritou comigo; falou que eu era igual ao meu pai. Mas é que eu não queria que
ela pegasse, e aí, ela não conseguiu usar, porque tem que pôr uma senha e eu
não dei a senha para ela.
(6.36) Luzia – Eles brigam demais e o Agenor acha que eu tenho que ir lá e
brigar com ela para defender ele, mas eu não penso assim, eu acho que é pior.
Ela tá numa fase difícil, tudo ela briga. Eu falei para ele que, se eu ficar me
intrometendo, vai ser pior. Afinal, a gente mora tudo no mesmo quintal, ele tem
que entender. Só que ela grita muito com ele. Nesse dia, ele foi para o quarto
chorando e gritando comigo, falando que eu era imprestável, que eu não servia
para nada. Eu fiquei muito chateada.
Agenor – Mas é que eu queria que ela brigasse com a minha prima.
Terapeuta 1 – Eu tô ouvindo essa conversa e pensando no que aconteceu
hoje aqui no grupo, porque Bel (terapeuta 3), hoje, na hora da brincadeira, o
Agenor escolheu um jogo e, quando o Júlio foi brincar com ele, ele disse: “NÃO”,
igual esse que ele tá contando para a gente. Por isso, um ficou bravo com o outro
e eles não conseguiram brincar juntos, quando um entrava, o outro saía.
(6.37) Terapeuta 3 – Olha que interessante isso, eu fiquei pensando o que
o Júlio sentiu quando o Agenor falou esse NÃO para ele?
(6.38) Júlio – Eu não senti nada.
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(6.39) Agenor – Nem eu.
(6.40) Terapeuta 3 – Tá difícil de falar, então, vamos pegar as caretas e
tentar montar com que cara vocês ficaram, quando um disse não para o outro?
(pega um jogo onde é possível escolher e montar um rosto e, assim, ilustrar
diversas expressões e sentimentos).
- Júlio disse que ficou assustado e, depois bravo e furioso, porque tinha que ser
tudo do jeito que o Agenor queria, se não ele brigava.
- Agenor – montou a cara de raiva e disse que fica assim quando ele quer uma
coisa e o outro não obedece, igual à prima dele, à mãe dele e o Júlio.
Terapeuta 3 – Olha Agenor, você sabia que o Júlio ficou assustado com o
seu NÃO?
- Faz que não com a cabeça.
Terapeuta 3 – Será que sua prima ficou assustada também?
Agenor – Não sei (fala bravo)
Terapeuta 3 – E olha que interessante! Quando a gente se assusta com
alguma coisa, a gente pode ficar furioso como o Júlio ficou.
Agenor – Nós já terminamos o lanche, vamos brincar, a Ticiane disse que
hoje a gente iria brincar, porque, depois é férias.
Júlio – É, vamos brincar!
Terapeuta 3 – E como que a gente termina essa conversa?
Agenor – Depois, a gente termina, agora, vamos brincar.
(6.41) Os dois levantam da mesa e começam a brincar juntos de acertar a
bola no alvo. Cada vez que um acertava perto do centro, eles comemoravam o
“gol” abraçando-se. Depois, começaram a vir abraçar suas mães e terapeutas que
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estavam de pé ao lado do jogo, assistindo à brincadeira. Por último, pediram para
que formássemos equipes, os dois, as mães e uma terceira formada pelas
terapeutas. Jogamos algumas rodadas, até que o tempo de brincar havia
terminado e, então, convidamos todos para sentarmos à mesa e conversarmos
sobre o que tinha ficado dos nossos encontros até o dia de hoje.
O primeiro a falar foi Júlio:
(6.42) Júlio – O que eu mais gostei foi de brincar e da minha mãe brincar
comigo. Falou mais algumas coisas, mas não conseguimos entender.
(6.43) Gisele – Eu também gostei muito. Quando eu cheguei aqui, eu
estava desesperada, não sabia como agir com meu filho, do que ele precisava e
com tudo que tinha acontecido. Eu fiquei muito triste, tanto que toda vez eu choro
(se emociona e começa a derramar algumas lágrimas), mas essas são de
felicidade, porque eu estou mais perto do meu filho. A gente já combinou de
viajarmos nas férias, a gente nunca tinha feito isso. O que me ajudou muito,
também, foi conversar com as outras mães no nosso grupo (refere-se ao grupo de
pais que acontece paralelo aos da brinquedoteca).
(6.44) Luzia – Nossa, para mim também. O que mais me marcou foi que eu
consegui olhar mais para mim e, com isso, também olhar para o Agenor. A gente
hoje consegue conversar mais sobre o que sentimos, principalmente eu, que não
falava, nem comigo mesma, sobre o que sinto. Acho que me conheço melhor,
hoje, de vir aqui no ReCriando. E percebo mudanças no Agenor.
Terapeuta – Então vamos ouvir o Agenor.
(6.45) Agenor – Eu gostei de brincar – ele parece nervoso, ansioso, fala
bem enrolado, quase não conseguimos entender. Vira para sua mãe e fala: a
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gente recebeu uma ligação lá da Europa e também da Alemanha, o meu pai já
recebeu até do Japão.
- Ficam todos olhando por um tempo.
(6.46) Luzia – É para falar aqui da brinquedoteca.
(6.47) Agenor – Eu já falei.
Terapeuta 1 – Talvez o Agenor esteja tentando dizer que, vindo aqui, ele
conseguiu fazer uma ligação bem difícil que foi conversar com seus sentimentos e
com a mãe dele. Mostrar o que ele sentia para ela.
Agenor – Falar como ela me sufocava, Lembra? (pergunta a terapeuta)
Terapeuta 1 – Lembro. Para mim, também isso foi o que mais marcou
nesse grupo, foi o fato de vocês terem conseguido conversar. O Júlio falou para a
mãe dele que queria ela mais perto e ela tá aí tentando. O Agenor falou para a
mãe dele que ela sufocava ele e ela tá tentando entender isso e deixar ele ter
mais espaço, tanto que já arrumou uma namoradinha e a Luzia um “amigo”.
Terapeuta 2 – Eu ia dizer isso, para mim, eles poderem conversar foi o
mais importante.
Terapeuta 3 – Então, é isso agora a gente vai sair de férias. Vocês estão
levando os cadernos e, em agosto, a gente se encontra.
(6.48) Todos se despediram com beijos e abraços.
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