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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE
CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS
NÍVEL DE MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE
CONSTRUÇÕES DO IMAGINÁRIO EM JOÃO MANUEL SIMÕES
SUELI APARECIDA DA COSTA
CASCAVEL – PR
2007
1
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SUELI APARECIDA DA COSTA
CONSTRUÇÕES DO IMAGINÁRIO EM JOÃO MANUEL SIMÕES
Dissertação apresentada à Universidade
Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE,
para obtenção do título de Mestre em Letras,
junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Letras, área de concentração
Linguagem e Sociedade. Linha de Pesquisa:
Linguagem e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Donizeti da
Cruz
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CASCAVEL – PR
2007
CONSTRUÇÕES DO IMAGINÁRIO EM JOÃO MANUEL SIMÕES
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Letras e
aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível
de mestrado, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, em 14 de fevereiro
de 2007.
Lourdes Kaminski Alves
___________________________________________________
Profa. Dra. (UNIOESTE)
Coordenadora
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos Professores:
Luis Carlos Santos Simon
______________________________________________
Prof. Dr. (UEL)
Membro Efetivo (convidado)
Lourdes Kaminski Alves
____________________________________________________
Profa. Dra. (UNIOESTE)
Membro Efetivo (da Instituição)
Antonio Donizeti da Cruz
_______________________________________________________
Prof. Dr. (UNIOESTE)
Membro (orientador)
Cascavel, 14 de fevereiro de 2007.
Aos meus pais,
Demetrio e Joana,
pelo amor incondicional e por terem ensinado
o mágico exercício de sonhar
AGRADEÇO, ab imo corde,
À Santíssima Trindade, na presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pela luz e
discernimento na caminhada da vida e dos estudos.
Aos meus pais, Demetrio e Joana, minha eterna gratidão, pela coragem que
tiveram de enfrentar o desconhecido e mudar seus caminhos para me apoiar
integralmente e com imenso amor.
Ao Maximiliano, por ter cruzado o meu destino, revelando-me a arte de amar.
À Angela Maria e Elisangela, irmãs adoráveis e amigas e, também, ao Gabriel e
Ana Caroline, sobrinhos amados, que encantam e tornam mais doce a vida.
Ao Mestre, Orientador e Poeta Antonio Donizeti da Cruz, pessoa amável,
inspiradora e profissionalmente competente que, com sua sensibilidade e gentileza,
contagiou-me com a magia da poesia.
Ao dileto poeta João Manuel Simões que, com disponibilidade, confiou-me
importantes materiais que compõem sua fortuna crítica e grande parte de sua lavra
poética.
Ao casal Antoninho e Maria Demenech, pela sincera amizade e apoio nos
momentos mais difíceis dessa jornada.
À CAPES, pela concessão da Bolsa de Estudos, ajuda fundamental no
desenvolvimento da pesquisa.
Aos Professores do Programa de Mestrado da Unioeste, pela seriedade no repasse
do conhecimento.
Aos professores João Carlos Cattelan e Lourdes Kaminski Alves que, na Banca de
Qualificação, fizeram relevantes considerações e observações precisas.
À Alessandra Oliveira dos Santos, amiga fiel que, desde a graduação, compartilha
as emoções e torce pelo sucesso deste trabalho.
À Clarice Braatz Schmidt Neurkichen, pela amizade que temos partilhado e pelo
diálogo constante.
Aos funcionários da Unioeste e, em especial, à Ruti Rosane Pêgo dos Santos,
secretária do Programa de Pós-Graduação em Letras, pelo atendimento e
disponibilidade.
Agradeço ainda a todos os amigos, familiares e colegas, cuja presença e incentivo
foram fundamentais para que esta etapa fosse realizada com êxito.
Na liturgia,
as minhas mãos
erguem a hóstia
da poesia.
Tomai e comei
todos quanto tiverem
fome de verbo e alegria.
(João Manuel Simões, Flauta Mágica, 1993, p.5)
RESUMO
COSTA, Sueli Aparecida da. Construções do Imaginário em João Manuel Simões. 2007.
219 p. Dissertação (Mestrado em Letras) Programa de Pós-Graduação em Letras,
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2007.
Orientador: Antonio Donizeti da Cruz.
Defesa: 14 de fevereiro de 2007
Este estudo tem por objetivo investigar as construções do universo imaginário e poético de
João Manuel Simões, poeta brasileiro, nascido em Mortágua Portugal e radicado
definitivamente, desde 1953, em Curitiba Paraná. A pesquisa engloba temas e imagens em
que se constata com mais evidência a relação entre poesia e imaginário, tais como o sonho, a
inspiração, a imaginação, a palavra e o silêncio, a infância, a memória, o tempo, o pássaro, a
duplicidade e o espelhamento. O poeta, apesar de pouco conhecido nos meios acadêmicos, é
reconhecido pela crítica brasileira. Possui uma vasta produção, envolvendo crítica literária,
ensaio, prosa e poesia. A pesquisa bibliográfica está pautada em autores que abordam os
temas do imaginário e da poesia, tais como Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Fhilippe
Malrieu, Claude-Gilbert Dubois, Claude Esteban, Mikel Dufrenne, Percey B. Shelley, Paul
Valéry, Octavio Paz, Alfredo Bosi e outros. A dissertação apresenta-se composta por quatro
capítulos e, em cada um deles, procurou-se fazer uma intersecção entre o referencial teórico e
a análise dos poemas, a partir dos temas pesquisados na obra poética de João Manuel Simões.
No primeiro capítulo, o tema escolhido refere-se às associações entre o universo imaginário e
poético, sobretudo no que diz respeito à apresentação da poesia como pertencente ao mundo
dos sonhos e da imaginação. O segundo capítulo ressalta as imagens do pássaro, do tempo e
do espelhamento e duplicidade, imagens estas que aparecem com mais freqüência na rica
simoniana. No terceiro capítulo, desenvolve-se a análise de poemas em que se observa a forte
relação da palavra e do silêncio na trama da construção poética. No quarto e último capítulo,
destaca-se como o trinômio poesia-memória-imaginação aparecem relacionados quando se
trata das imagens e recordações da infância. Do fazer poético às imagens e símbolos, a
pesquisa pretende investigar as construções do imaginário e as construções poéticas do poeta,
apresentando a intrínseca vinculação existente entre a poesia e o imaginário.
Palavras-chave: Poesia, Imaginário, João Manuel Simões.
ABSTRACT
COSTA, Sueli Aparecida da. Construções do Imaginário em João Manuel Simões. 2007.
219 p. Dissertação (Mestrado em Letras) Programa de Pós-Graduação em Letras,
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Cascavel, 2007.
Orientador: Antonio Donizeti da Cruz.
Defesa: 14 de fevereiro de 2007
The objective of this study is to investigate the constructions of an imaginary and poetic
universe by João Manuel Simões, Brazilian poet, from the state of Paraná, was born in
Mortágua Portugal and definitely settled down in Curitiba. The research embodies images
and subjects in which is possible to notice, with more evidence, the relation between poetry
and the imaginary, such as the dream, the inspiration, the imagination, the word and the
silence, the childhood, the memory, the time, the bird, the duplicity and the mirror. In spite of
not being a well known poet in academic means, he is recognized by Brazilian critics. He has
a vast production, involving literary critic, essay, prose and poetry. The research of
bibliography is related with authors that deal with the imaginary and poetry subjects, such as
Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Philippe Malrieu, Claude-Gilbert Dubois, Claude Esteban,
Mikel Dufrenne, Percey B. Shelley, Paul Valéry, Octavio Paz, Alfredo Bosi and others. The
paper is composed of four chapters, in each one of them, we look for an intersection between
the theoretical reference and the analysis of the poems from the subjects of the research in the
Simões’ poetical work. In the first chapter, the chosen subject is referring to the association
between the poetic universe and the imaginary one, especially when what concerns is the
presentation of the poetry as belonging to the world of imagination and dream. The second
chapter points out the images of the bird, the time, and the mirror and duplicity, images that
appear with more frequency in the simonian lyric. In the third chapter an analysis of the strong
relation between the word and the silence in the plot of the poetic construction. In the fourth
and last chapter, stands out the poetry-memory-imagination that is related just when deals
with childhood images and memories. From the poetical making to the images and symbols,
the research intends to investigate the constructions of the imaginary and the poet’s poetical
constructions showing the intrinsic relation between the poetry and the imaginary.
Key-Words: Poetry, Imaginary, João Manuel Simões
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................1
CAPÍTULO I ASSOCIAÇÕES ENTRE O UNIVERSO IMAGINÁRIO E
POÉTICO.............................................................................................................................9
1.1 POESIA: A FÁBRICA DOS SONHOS ........................................................................35
CAPÍTULO II IMAGENS POÉTICAS: PÁSSAROS, ESPELHOS E
TEMPO...............................................................................................................................58
2.1 DEVANEIO AÉREO E O FANTÁSTICO CANTO DOS PÁSSAROS.......................65
2.2 A DIALÉTICA DO DESDOBRAMENTO: EU E OUTRO/O MESMO .....................79
2.3 FLUXO TEMPORAL: A VIDA NO COMPASSO DO TEMPO ...............................95
CAPÍTULO III CONSTRUÇÕES POÉTICAS: A PALAVRA E O
SILÊNCIO........................................................................................................................111
3.1 A GÊNESE DA CRIAÇÃO POÉTICA .....................................................................124
3.2 PALAVRA E SILÊNCIO: INSTRUMENTOS DO CANTO POÉTICO ..................144
CAPÍTULO IV – MEMÓRIA, INFÂNCIA E IMAGINAÇÃO: SÍNTESE DA POESIA E
IMAGINÁRIO .............................................................................................168
4.1 MEMÓRIA: A SECRETA VIAGEM DE REGRESSO AO PASSADO ...................176
4.2 INVENTÁRIO OU INVENÇÃO DA INNCIA ....................................................194
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................206
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................213
INTRODUÇÃO
O estudo sobre as construções do imaginário em João Manuel Simões tem por
propósito investigar o universo poético e imaginário do poeta, que engloba uma constelação
de temas, imagens e símbolos, contribuindo assim para a intrínseca relação entre a poesia e a
imaginação. O fio condutor que orienta a pesquisa é o entrelaçamento das imagens poéticas e
das temáticas apresentadas na obra simoniana. As imagens do pássaro, da duplicidade e do
tempo, ou ainda, os temas referentes à memória e infância, à palavra e o silêncio se
consubstanciam em uma constante indagação e afirmação existenciais, na qual se constata a
força da imaginação criadora do poeta.
A opção pelas obras de João Manuel Simões justifica-se pela importância do autor no
panorama mais amplo da literatura do Estado do Paraná e brasileira, destacando-se pelas
associações pertinentes ao universo do imaginário, das imagens poéticas e da memória,
relacionada, sobretudo, à evocação da infância. Em sua lírica, observa-se um olhar atento do
poeta em relação ao tempo e às manifestações vitais e também à reflexão acerca da criação
poética e de sua condição de poeta, o que demonstra uma certa cumplicidade com a estética da
modernidade, aliada ao constante diálogo com a tradição literária e com a literatura brasileira
e mundial.
João Manuel faz uma “viagem” em versos, percorrendo tempos e espaços, mesclando
formas (sonetos, poemas em prosa, elegias, haicais, poemas sintéticos) e temas que vão da
simples contemplação da vida e da morte, aos mais filosóficos como a passagem temporal e
condição ontológica do homem e a reflexão sobre a poiesis. Em “A poesia vem do Paraná”,
Ribeiro Ramos (1982) afirma que, Sem se prender a nenhuma escola, Simões é sempre
grande em qualquer das formas poéticas”.
Para David Carneiro (1979), Simões, sob o aspecto da forma, “realiza todas as
experiências, desde o soneto petrarquino até aos modernismos mais futuristas. A concepção
lhe deve sair e a fantasia será moldada, depois que a idéia seja atingida em sua representação”.
O poeta sabe “usar as formas clássicas”, afirma Carneiro, no entanto, o que se sobressai e o
que mais importa é o sentido e o conteúdo dos poemas, pois Simões toma o cuidado para que
“forma” não deprecie a “mensagem”.
No entanto, a variedade temática e de formas poéticas não invalidam o requinte na
seleção vocabular, nem um forte refinamento cultural e intelectual que se faz transparecer no
diálogo intertextual com grandes personalidades e figuras da literatura e artes plásticas, tais
como Picasso, Yeats, Eliot, Saint-John Perse, Neruda, Dante, Mallarmé, Novalis, Valéry, Ezra
Pound, Ungaretti, Montale, Guillén, Shaskespeare, Flaubert, Marinetti, Fernando Pessoa,
Carneiro, Camões, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello
Neto e outros que compõem a nominata dos “grandes mestres”.
A poesia de Simões apresenta uma relevante contribuição para a literatura
contemporânea, destacando-se pelo elaborado trabalho com a palavra e a construção poética e
pelo poder alquímico de manipulação do verbo, do qual o poeta extrai a contingência de
sentido e percorre o paradoxal caminho que liga o silêncio à palavra. Ao fazer isso, promove
uma poesia reveladora da essência humana, que canta o ser e o mundo.
O fazer poético, na poesia de Simões, ocorre no sentido de produzir uma poesia viva,
que prima justamente pela “alquimia verbal”, aliando sensibilidade, imaginação e
racionalidade em prol da reflexão sobre o poeta, o poema e a poesia. A construção poética
deve produzir uma poesia que, no dizer de Borges, promove uma experiência nova a cada
leitura, porque a vida é feita de poesia e esta permanece “à espreita” e pode “saltar sobre nós a
qualquer instante” (BORGES, 2000, p. 11). A cada vez que a poesia “salta” para a vida tem-se
o que Borges chama de “ressurreição da palavra” (2000, p. 12). Pela visão conceitual que o
poeta e crítico literário João Manuel Simões apresenta sobre a poesia, percebe-se uma relação
de magia e encanto que emana dos versos líricos, como se a poesia fosse algo divinal. A cada
novo poema em que o poeta tenta decifrar o enigma da criação poética, ele promove estes
“saltos” pelos labirintos da imaginação, em uma constante busca de entender a “aura” da
poesia e sua faculdade onírica.
As construções do imaginário, por sua vez, ocorrem através de um trabalho elaborado
com a linguagem, em busca de imagens poéticas que configuram o campo do imaginário e
que revelam o dinamismo criador do poeta e a pureza da poesia. Assim, as construções do
imaginário se evidenciam no plano das construções poéticas, em que o poeta deixa
transparecer uma singular ligação entre a poesia e o sonho, uma vez que a poesia parece
nascer de um misto de sonho, magia e alquimia verbal.
João Manuel Simões, embora tenha nascido nos “jardins da Europa” (Mortágua,
Portugal), em março de 1939, é “paranaense de papel passado” (conforme disse, certa vez,
Túlio Vargas). Radicou-se, definitivamente, no Brasil (Curitiba) em 1953, quando os pais
decidiram voltar ao Brasil. Sua mãe, Irene dos Anjos Nogueira Ferreira Jorge [Simões],
nascida em Belém do Pará, era filha de pais portugueses, que vieram para o Brasil em 1916,
radicando-se na capital paraense. Depois da prematura morte do avô, João Ferreira Jorge, em
virtude da gripe espanhola de 1918, a mãe e a avó regressam a Portugal. Mas seria na capital
paranaense, mais precisamente no ano de 1964, que João Manuel Simões nasceria
“literariamente”, estreando duplamente com Eu sem mim (poesia) e À margem da leitura e da
reflexão (ensaio).
O corpus
1
da pesquisa é composto pela obra lírica do autor, uma vez que o presente
1 Embora o corpus da pesquisa seja relativamente extenso, em virtude da quantidade de livros publicados pelo
autor (29 de poesia), cumpre ressaltar que o fio condutor do trabalho privilegia núcleos temáticos e imagéticos
que implica uma seleção de poemas em que se constata maior afinidade com as associações pertinentes ao
universo imaginário. Os temas e imagens pesquisados, mesmo distintos entre si, se entrecruzam, formando uma
rede na qual se percebe uma visão conceitual da poesia e do fazer poético como pertencente ao mundo da
imaginação e dos sonhos. Sendo assim, pode acontecer que alguns livros sejam mais utilizados do que outros. O
trabalho surgiu com o objetivo de apresentar e resgatar o percurso poético-literário do poeta
João Manuel Simões. A pesquisa consiste na investigação das construções do imaginário, o
que envolve, conseqüentemente, a investigação das construções poéticas do escritor, que a
imaginação, entre outras coisas, (adotando a perspectiva de Gaston Bachelard) é, também,
vetor de criação, ou seja, imaginação criante.
A obra poética de João Manuel Simões é composta pelos seguintes livros e suas
respectivas siglas
2
: Eu, Sem Mim (EM 1964); Poesia (PO 1967); Os Labirintos do Verbo
(LV –1973); Moderato Cantabile (MC 1975); Roteiro Interior (RI 1978); Suma Poética
(SP –1979); Rapsódia Européia (RE 1980); Sonetos do Tempo Incerto (SI 1981);
Guernica e outros quadros escolhidos de Picasso (GE 1982); Inscrições para os Muros da
Babilônia & Vôo com Pássaro Dentro (IB 1982); Alguns Poemas para Drummond (AD
1982); Canto em Mim ou a Secreta Viagem (CM 1982); Réquiem para Sete Quedas (RQ
1983); Sintaxe do Silêncio (SS 1984); Rudepoema ad Peregrinatio ad Loca Iníqua (RU
1985); Ode ao Alferes Joaquim José da Silva Xavier (OJ 1985). Sonetos escolhidos (SE
1986); Rapsódia Mineira (RM 1987); Odes, elegias e outros poemas (OE – 1987); Poemas
de um heterônimo cri(p)tico (PH – 1988); Poemas da Infância (PI – 1989); Micropoética (MI
1989); Lira de Dom Quixote (LQ 1992); Canto plural ou a Tentação de Ícaro (CP
1990); Flauta mágica (FM 1993); Cadeira Vazia (CV 1997); Armorial do Verbo (AV
2002); Sonetos do tempo onívoro (SO – 2004); A Álgebra do Canto (AC – 2006).
trabalho de investigação das construções do imaginário segue a lógica das constelações de imagens e não da
cronologia das obras publicadas.
2 As siglas utilizadas para identificar as obras não obedecem à ordem cronológica, mas sim, as afinidades
temáticas. A opção por siglas também tem por objetivo facilitar a identificação das obras, uma vez que, muitas
delas, foram publicadas no mesmo ano. Assim, todos os poemas e fragmentos transcritos são acompanhados da
sigla da obra, ano e número da página em que se encontram.
A pesquisa sobre a poesia de João Manuel Simões tem uma relevância especial e
justifica-se, primordialmente, pela qualidade literária da mesma, sobretudo no que se refere à
riqueza de imagens poéticas e pelo alto grau de concentração verbal, tornando sua obra um
campo fecundo de construções simbólicas e imaginárias.
Outra razão de suma importância deve ao fato de que o poeta é aplaudido e consagrado
pela crítica brasileira, tendo seu nome citado em diversas antologias como Sincretismo: a
poesia/a geração 60, de Pedro Lyra (1995), História da Literatura Brasileira, de Massaud
Moisés (1989), Sesquincentenário da Poesia Paranaense, da Pompília Lopes dos Santos
(1985), Introdução à Literatura Paranaense, de Marilda Binder Samways (1988), e em vários
jornais e revistas de todo o Brasil, tais como: O Estado do Paraná (Curitiba), Jornal do Piauí
(Teresina), O Povo (Fortaleza), O Diário (São Paulo), O Norte (Paraíba), Tribuna do Ceará
(Fortaleza), Gazeta do Povo (Curitiba), Estado de São Paulo (São Paulo), Jornal de Letras
(Rio de Janeiro), Revista de Poesia e Crítica (Brasília), Colóquio (Lisboa), entre outros.
A crítica brasileira tem-se mostrado simpática para com a produção poética de João
Manuel Simões que, segundo Ribeiro Ramos (1992), é fecunda e notável em todos os
sentidos. Considerado um “vulto da mais alta projeção em nossa Literatura”, Simões é
magistral na retórica e detentor de um lirismo contagiante, pois “Seu ofício é fazer versos, e
os faz inspirados, lindos, sonoros, por puro amor à arte poética, com devoção de um crente”
(RAMOS, 1992, p. 45).
Para Artur Eduardo Benevides (1984), João Manuel Simões “é uma das mais
categorizadas e expressivas vozes da poesia brasileira contemporânea”. E acrescenta que
Simões tem sido o “Poeta Maior do Paraná na atualidade, com uma bibliografia das mais
ricas, em que demonstra larga cultura humanística, ao lado da força criadora do seu estro,
tocada por temática universal e eterna”.
No dizer de Hildeberto B. Filho (1993), Simões é um poeta maduro, pois pensa, pesa,
reflete e sonda os limites viáveis de sua relação com a poesia. Filho afirma ainda que Simões
é dotado de uma capacidade para sentir o peso estético da palavra: “é um dos que, na poesia
brasileira contemporânea, soube compor uma trajetória, elaborar um roteiro poético, enfim,
construir uma obra com perfil próprio e definida singularidade”.
Segundo A. Tito Filho (1981), a literatura paranaense vem se enriquecendo cada vez
mais com as produções espirituais de João Manuel Simões, “poeta de linguagem pura,
domínio de severa técnica de poetar, estilo férreo, elegante, pleno de sabedoria comunicativa”.
Por meio dos versos líricos e filosóficos, “A poesia de João Manuel Simões é magistério”.
Os comentários sobre a produção poética de João Manuel Simões ou sobre sua poiesis
têm se destacado pela elevação que fazem da linguagem, pelo encantamento e magia que os
versos despertam, pela “aura divinal” da poesia e pela força criativa do poeta. Guilhermino
César (1983), por exemplo, lamenta que não sabia da existência de João Manuel Simões, mas
“Só agora vejo que ele não existe; é também excelente poeta”. E faz a seguinte afirmação:
“Leio-o atentamente, encantado. É uma voz lírica de primeira escolha; tem a sonoridade
temperada de malícia, dos que fazem poesia [...] Melhor do que tentar interpretá-lo é frui-lo ao
acaso, deixando que as coisas aconteçam, que a surpresa de seu verbo nos fira” (CÉSAR,
1983, p. 3).
A motivação para o desenvolvimento desta proposta de estudo é a necessidade de
ampliar o reconhecimento do escritor João Manuel Simões que, em pouco mais de quatro
décadas, publicou vinte nove livros de poesia, três de contos e vinte e quatro de crítica, ensaio,
crônica, conferência e pensamentos, com uma qualidade crescente de tulo para título, que o
tem distinguido como expoente da poesia paranaense. Sua produção poética encontra-se em
sintonia com o seu tempo, qualificando a poesia contemporânea com pinceladas de crítica e
reflexão poética e constituindo-se um “poeta autêntico”, que produz não simplesmente versos,
mas Poesia.
Para desenvolver a pesquisa e atingir os objetivos anunciados de busca das construções
do imaginário em João Manuel Simões, a dissertação apresenta-se composta por quatro
capítulos, sendo que o referencial teórico engloba os temas da poesia e do imaginário, a partir
de teóricos como Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Jean Cohen, Claude-Gilbert Dubois,
Mikel Dufrenne, Mircea Eliade, Philippe Malrieu, Octavio Paz, Alfredo Bosi, Claude
Esteban, Percey Shelley, Paul Valéry, Hegel, Emil Staiger e outros.
O primeiro capítulo apresenta as associações entre o universo imaginário e poético,
sobretudo àquelas que se referem ao contingente da imaginação, dos sonhos, da inspiração e
encanto na tessitura poética. Observa-se que a parceria existente entre a poesia e a magia
onírica aparece mais nitidamente nos poemas em que o poeta reflete sobre a “Ars poetica”,
como se a poesia fosse uma imensa “fábrica” produtora de sonhos e de imaginação.
No segundo capítulo, analisa-se as imagens poéticas que aparecem com mais
freqüência na lírica simoniana e apontam para as construções imaginárias do poeta. Este
capítulo divide-se em três subcapítulos. No primeiro, são apresentadas as imagens do pássaro,
cuja capacidade de vôo e liberdade relaciona-se ao fenômeno da criação poética e também à
poesia, por sua faculdade ascensional e alada. No segundo subcapítulo, aborda-se a imagem
do desdobramento do eu, por meio do espelhamento e da presença do outro, na qual se
evidencia que o Outro é o espelho que reflete a imagem do Eu, funcionando como um
elemento constituinte da identidade do indivíduo. O terceiro subcapítulo gravita em torno da
imagem do tempo em seus dois aspectos: a célere e inexorável passagem temporal e a reflexão
de que, apesar do tempo ser onívoro, a vida é o que de mais belo há no compasso do tempo.
O terceiro capítulo constitui-se da análise temática da palavra e do silêncio na teia da
construção poética. Os dois subcapítulos versam sobre a força e o poder da palavra e do
silêncio, tanto como instrumentos da gênese da criação poética quanto elementos constituintes
do canto poético. uma elevação da expressão do poeta enquanto potencialidade de canto,
como se o cantar fosse mais significativo que o dizer, uma vez que, no canto, o silêncio parece
exaltar e destacar a sonora e encantadora melodia da palavra poética.
O quarto capítulo trata da questão de como a memória, a imaginação e a infância
formam a tríade que liga a poesia ao imaginário. No primeiro subcapítulo, aborda-se a
memória enquanto promotora da “secreta” viagem que possibilita ao sujeito poético recordar
as doces imagens pueris, revivendo os acontecimentos da benévola infância. No segundo,
analisa-se o inventário ou a invenção da “infância permanente” que acompanha a vida adulta,
ajudando o “homem/mulher maduro” a buscar respostas para a própria existência. Nota-se que
as construções que moldam este inventário ou as “memórias de um menino” passam pelo
crivo da imaginação, pois as construções poéticas que primam pela temática da infância
permitem que se veja ou (re)viva a infância pelos olhos da memória e da imaginação.
Das construções do imaginário às construções poéticas, a pesquisa pretende apresentar
a intrínseca relação existente entre a poesia e o imaginário, a imaginação e os sonhos. No
entanto, a produção poética de João Manuel Simões tem trilhado uma multiplicidade de temas
e de imagens, apresentando vários eixos norteadores, como as indagações metafísicas, a
condição do poeta, a busca da palavra e do silêncio, a síntese poética, a metalinguagem, a
passagem temporal, a vida e a morte, a liberdade, as inquietações ontológicas, a infância, a
memória, o fazer poético, a exaltação da poesia, a mitologia, as imagens poéticas da noite e do
dia, do pássaro, do tempo, do duplo, do mar, da rosa, etc. Esta variedade temática e amplidão
de imagens não se esgotam nestas páginas, nem poderiam, porque a poesia de João Manuel
Simões parece constituir matéria inesgotável para novos estudos.
CAPÍTULO I
ASSOCIAÇÕES ENTRE O UNIVERSO IMAGINÁRIO E POÉTICO
Para além das fronteiras do conhecimento/ fogem os caminhos
da imaginação.
(Helena Kolody. In: CRUZ, 2001, p. 63)
O campo do imaginário, na perspectiva de Gilbert Durand, representa a verdadeira
liberdade da vocação ontológica das pessoas, o vínculo que liga e religa o mundo e as coisas
ao coração da consciência, o meio fundamental para a compreensão das bases míticas do
pensamento humano. A retomada dos estudos sobre o imaginário veio demonstrar o
dinamismo das imagens que povoam o imaginário humano.
Durand afirma que um estudo sobre o imaginário não pode ser conduzido nas
exigüidades ou caprichos da imaginação do pesquisador. Antes, exige um vasto conhecimento
e exaustivo repertório do “Imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais que
a história, as mitologias, a etnologia, a lingüística e as literaturas nos propõem” (2002, p, 18-
19). O imaginário é uma rede complexa de relações e “constitui o capital pensando pelo homo
sapiens”: aparece como denominador fundamental do pensamento humano, pois ele “é esta
encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência
humana por um outro aspecto de uma outra” (DURAND, 2002, p. 18).
No viés de seu mestre Bachelard (2001b, p. 48-49), que afirma que uma imagem
pode ser estudada pela própria imagem, Durand insere o imaginário no centro fundamental da
pesquisa, procurando desfazer sua velha impressão de “louca da casa” ou sua classificação
como um fenômeno insignificante ou secundário.
Durand destaca que o estudo do imaginário sofreu um processo de desvalorização e
deformação, uma vez que o pensamento ocidental tende a reduzir a imaginação “àquela franja
aquém do limiar da sensação que se chama imagem remanescente ou consecutiva”
(DURAND, 2002, p. 21). No domínio da imaginação, a imagem não pode ser degradada, pois
ela é portadora de um sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária.
Sendo assim, Durand assegura que a imaginação é dinamismo organizador (e não caos):
“muito longe de ser faculdade de ‘formar’ imagens, a imaginação é potência dinâmica que
‘deforma’ as cópias pragmáticas fornecidas pela percepção” (2002, p. 30). Isso se deve ao fato
de que “esse dinamismo reformador das sensações torna-se o fundamento de toda a vida
psíquica porque ‘as leis da representação são homogêneas’” (DURAND, 2002, p. 30).
Ao traçar um breve histórico das condições que levaram à “marginalização” das
imagens e do imaginário, Durand salienta que são três as principais fontes da repressão da
imagem na mentalidade ocidental. São elas: a redução “positivista” da imagem a signo; a
redução “metafísica” da imagem a conceito; e a redução “teológica” da imagem às servidões
temporais e deterministas da história e às justificativas didáticas (DURAND, 1995b, p. 29).
Ainda segundo Durand, há, por outro lado, uma forte corrente de ressurgência da
imagem que se opõe como constante protesto a essas três etapas, na tentativa de ordenar a
imagem no contexto social da contemporaneidade. No entanto, antes que a hermenêutica e o
símbolo encontrassem seus direitos, houve um processo deplorável de clandestinidade do
imaginário: “privado de uma tradição hermenêutica e mais geralmente dos seus mecanismos
profundos, este não pôde garantir de forma normal o papel terapêutico e espiritual da
imagem” (DURAND, 1995b, p. 29).
A moderna ressurgência do imaginário permaneceu marcada por três características
principais que se opõem às fontes e intenções de repressão, o que fez com que a instauração
das hermenêuticas modernas fosse consagrada a uma tríplice clandestinidade: à margem da
ortodoxia (ao lado das heresias); à margem do racionalismo conceitual dos filósofos e
teólogos (ao lado dos poetas e artistas, preferencialmente dos artistasmalditos”); e à margem
da ciência, do positivismo universitário (ao lado dos autodidatas, amadores e, às vezes, dos
charlatões) (DURAND, 1995b, p. 30).
Durand lastima esse tríplice efeito de clandestinidade forçada a que foram
constrangidos os hermeneutas, chamando a atenção ao fato de que vale observar que “os
maiores hermeneutas da nossa época Cassirer, Jung, Ricoeur, Corbin, Eliade, Bachelard,
Guemón – são ou heréticos, ou poetas, ou autodidatas e universitários marginais, e até mesmo
as três coisas ao mesmo tempo” (DURAND, 1995b, p. 30).
Vale observar, ainda, que o ressurgimento do imaginário teve, historicamente, o nome
de Romantismo. Sem dúvida, afirma Durand, esta é uma denominação imprecisa com a qual
se marginaliza no século XVIII, o “Século das Luzes”, o pré-romantismo e os iluministas, e
que se amplia até o século XX, através da iconolatria marginal da civilização técnica e através
do Surrealismo e das hermenêuticas contemporâneas (1995b, p. 31).
Esta vasta corrente em que o imaginário se expande marca sua resistência aos ataques
do racionalismo e positivismo. Para Durand, esta estética reconhece e descreve um “sexto
sentido” que possui a faculdade de atingir o belo, criando, ao lado da razão, uma outra e nova
ordem de realidade que privilegia mais a intuição pela imagem do que a demonstração pela
sintaxe (DURAND, 2004, p. 27).
Nota-se, contudo, que a resistência do imaginário e sua reabilitação ao espaço da
ciência deve-se ao trabalho de literatos (poetas) e filósofos ou poetas-filósofos. No cerne dos
movimentos do Romantismo, Simbolismo e Surrealismo houve uma reavaliação positiva do
sonho, do onírico e, até mesmo, da alucinação por meio da “descoberta do inconsciente”.
As experiências do “funcionamento concreto do pensamento” comprovam que o
psiquismo humano não funciona apenas à luz da percepção imediata e de um encadeamento
racional de idéias, mas também, na penumbra ou na noite de um inconsciente, revelando, aqui
e ali, as imagens irracionais do sonho, da neurose ou da criação poética (DURAND, 2004, p.
36). Esta descoberta fundamental está ligada, sobretudo, aos estudos de Freud, que reconhece
o papel decisivo das imagens como mensagens que afloram do fundo do inconsciente do
psiquismo recalcado para o consciente.
Com isso, o imaginário perde sua clássica desvalorização de simples “louca da casa”
para transformar-se na chave que acesso ao “aposento mais secreto do psiquismo”
(DURAND, 2004, p. 36). Os estudos de Jung
1
também tiveram papel de destaque nesta
valorização do imaginário no ocidente, uma vez que, como esclarece Durand, ele trata a
imagem como modelo da autoconstrução da psique (DURAND, 2004, p. 37).
Os vários testes psicológicos representaram outra importante contribuição, pois vieram
demonstrar os resultados das “estruturas” do imaginário, segundo a qual todo imaginário
humano articula-se por meio de “estruturas plurais e irredutíveis, limitadas a três classes que
gravitam ao redor dos processos matriciais do ‘separar’ (heróico), ‘incluir’ (místico) e
‘dramatizar’ (disseminador), ou pela distribuição das imagens de uma narrativa ao longo do
tempo” (DURAND, 2004, p. 40). Neste sentido, Durand conclui que o cérebro do homem é
marcadamente diferente das demais criaturas vivas, o que o torna um “homo symbolicus desde
suas origens mais remotas” (2004, p. 48).
No ocidente, o imaginário e os processos de todas as imagens possíveis não apenas
foram considerados suspeitos como reprimidos durante séculos pelos valores cognitivos
existentes. Atualmente, o progresso das ciências permitiu, por meio de um “efeito perverso”
2
notável, uma divulgação gigantesca das técnicas da imagem. Por conseguinte, todas as
disciplinas universitárias colaboraram na criação de uma “ciência do imaginário”, exigindo
1 Conforme salienta Durand, com a formulação de que o símbolo remeteria para algo, mas que não se reduziria a
uma única coisa, ou ainda, que o conteúdo imaginário da pulsão pode interpretar-se quer redutivamente como a
própria representação da pulsão (semioticamente) quer simbolicamente como sentido espiritual do instinto
natural, Jung chega a importante definição de arquétipo. O inconsciente forneceria a “forma arquetípica”, que
seria preenchida pelo consciente com a ajuda de elementos de representação. O arquétipo seria como “um centro
de força invisível” da psique, uma forma dinâmica ou uma estrutura organizadora de imagens (DURAND, 1995a,
p. 56).
2 De acordo com Durand, desde a eflorescência romântica no século XIX e, nos dias atuais, com os meios
audiovisuais, sobretudo o cinema, amplificaram o clima de alta pressão no qual se compromete toda a cultura se
não toda a civilização ocidental. Um dos fatores que contribuiu para esta inflação do imaginário e do mito é a
inflação dos meios técnicos de reprodução da imagem (livro, folhetim, romance, fotografia, rádio, televisão, etc.)
que criou não um “museu imaginário” e sim um “museu inimaginável” (1982, p. 15-16).
uma transferência de poder revolucionária das pedagogias, políticas e éticas:
[...] toda esta alta pressão imaginária e simbólica na qual vivemos é o
sintoma de uma revolução profunda ou, melhor, de uma grande ressurgência
do que as nossas pedagogias para não utilizar um termo pretensioso como
episteme tinham cuidadosamente, durante séculos e séculos, recalcado ou,
pelo menos, “posto a pão e água” (DURAND, 1982, p. 17).
Para Durand, o homem do século XX pode, finalmente, viver a experiência simbólica
autêntica, desde que esta experiência lhe fosse recomendada enquanto antídoto contra a maré
avassaladora das imagens passivas que as técnicas forneceram em superabundância. Durand
alerta, porém, que isto é possível sob uma tríplice condição, a saber:
[...] consentir na prenhez simbólica e recusar uma pedagogia totalitária do
tempo mecanicista; consentir na inserção numa tradição rica em imagens e
recusar as reduções do imaginário a imagens mentais tão pletóricas na nossa
“civilização da imagem”; aceitar por fim o esforço de recondução
hermenêutica e recusar a idolatria da história. São três condições que
exigem pragmaticamente um retiro espiritual que possa subtrair cada dia um
certo número de horas ao mecanismo iconoclasta da nossa civilização.
Porque é tão comum dar à nossa civilização o título de “civilização do
lazer” como o de “civilização da imagem” (DURAND, 1995b, p. 50, grifo
do autor).
Pode-se dizer, portanto, que uma coerência de sentido entre as imagens, o
imaginário e os símbolos, que se firma por meio de uma dialética entre a unicidade do
pensamento e de suas expressões simbólicas. Uma afinidade deste tipo, formadora de imagens
significativas para o imaginário, não pode ser estudada de forma redutora. O próprio plano
simbólico coloca as imagens na raiz de qualquer pensamento e, assim, se colocando na
perspectiva simbólica, é que se torna possível estudar os arquétipos fundamentais da
imaginação.
Durand ilustra que esta tentativa de classificação das motivações simbólicas havia
sido feita por Krape (símbolos celestes e terrestres), Eliade (símbolos uranianos, agrários) e
Bachelard (fenomenologia da matéria: água, terra, ar, fogo) e, em hipótese alguma, o termo
“estruturas” do imaginário deve ser entendido em seu sentido metódico de forma parada. Ao
contrário, o substantivo “estrutura” do imaginário designa, em sua etimologia, a palavra
“forma” que, por sua vez, está sujeita a transformações, construindo tanto um modelo que
serve para classificação quanto de objeto de modificação do campo imaginário: “uma
estrutura com uma forma transformável, desempenhando o papel de protocolo motivador para
todo um agrupamento de imagens” (DURAND, 2002, p. 64).
Percorrendo o trajeto antropológico, Durand pensa esta “constelação de imagens” e as
“estruturas do imaginário” em termos de conteúdos dinâmicos, como meio fundamental para
compreender as bases míticas do pensamento humano, levando em conta a homologia do
psíquico, do cósmico, do social e biológico, até chegar à conclusão de que o pensamento
humano passa por articulações simbólicas.
Dessa forma, Durand tece uma divisão entre as imagens que compõem o universo
imaginário humano em termos de Regime Diurno e Regime Noturno das imagens. O Regime
Diurno é marcado pela antítese, separação e antinomias; representa a luta contra a passagem
temporal e contra a morte. De um modo geral, este regime define-se pelas antíteses da
presença e ausência, ser e não-ser, ordem e desordem. Pode ser descrito como regime
dualístico e antitético por natureza, tendo como constelações simbólicas primordiais os
esquemas diairéticos e ascensionais e o arquétipo da luz. Para Durand,
O Regime Diurno da representação, pelo seu fundamento diairético e
polêmico, repousava sobre o jogo das figuras e imagens antitéticas. [...] todo
o sentido do Regime Diurno do imaginário é pensado “contra” as trevas, é
pensado contra o semantismo das trevas, da animalidade e da queda, ou seja,
contra Cronos, o tempo moral. (DURAND, 2002, p. 188, grifos do autor).
Deste modo, o Regime Diurno é uma espécie de antítese do tempo e das suas múltiplas
facetas. Apresenta-se carregado de figurações verticalizantes e do semantismo diairético, cujo
Cetro e o Gládio são as ilustrações mais significativas deste dinamismo das imagens. Durand
salienta que o Regime Diurno poderia ser definido em termos de um “trajeto representativo
que vai da primeira e confusa glosa imaginativa implicada nos reflexos posturais até a
argumentação de uma lógica da antítese e ao ‘fugir daqui’ platônico” (2002, p. 190). Neste
sentido, as imagens da dominante postural, das armas, dos rituais de elevação e purificação
configuram o quadro arquetípico do Regime Diurno, que consagra ao fundo das trevas o
brilho vitorioso da luz a reconquista das valorizações negativas das imagens do animal, das
trevas e das águas sombrias pela valorização positiva das armas cortantes e dos guerreiros
combatentes, dos ritos de purificação e ascensão e do raio fumegante da luz.
No contraponto do Regime Diurno das pulsões do devir e da iluminação, surge outro
que sucede o regime heróico e antitético pelo regime do eufemismo. Trata-se do Regime
Noturno das imagens em que não a noite sucede ao dia, como também, e sobretudo, às
trevas nefastas, em uma espécie de eufemização dos horrores e terrores brutais, constituindo-
se pela inversão radical do Regime Diurno.
O Regime Noturno encontra-se relacionado ao signo da conversão e do eufemismo: da
inversão do valor afetivo atribuído às faces do tempo e da procura e descoberta de um fator de
constância da fluidez temporal. A inversão do conteúdo afetivo das imagens opera-se quando
“no seio da própria noite, o espírito procura a luz e a queda se eufemiza em descida e o
abismo minimiza-se em taça, enquanto, no outro caso, a noite não passa de propedêutica
necessária do dia, promessa indubitável da aurora” (DURAND, 2002, p. 198).
Conforme o precedente, há uma forte oposição entre os dois regimes do imaginário. Se
no Regime Diurno as imagens gravitam em torno dos esquemas ascensionais e diairéticos,
promovendo imagens purificadoras e heróicas, no Regime Noturno uma identificação das
imagens com os mistérios da intimidade, da procura do tesouro, do repouso sepulcral e dos
alimentos terrestres, direcionando-se para a simbologia da digestão e da descida. No entanto,
os símbolos noturnos não chegam a se libertar das impressões diurnas, mas nota-se uma
eufemização e antífrase da noite, em termos de iluminação.
No dizer de Durand, oRegime Noturno do imaginário tende a ligar as imagens umas às
outras sob a forma de narrativas dramáticas ou históricas, aproximando-se da simbologia
mítica. O mito é uma narrativa em que não importa o encadeamento da narrativa, mas
também o sentido simbólico dos termos, porque o mito é discurso e, como tal, reintegra uma
certa linearidade do significante. Este, por sua vez, subsiste enquanto símbolo e não enquanto
signo lingüístico arbitrário o mito é presença semântica, formado de símbolos que contém
seu próprio sentido e que não pode ser traduzido sob pena de um empobrecimento semântico.
O mito “é uma repetição rítmica, com ligeiras variantes, de uma criação. Mais do que contar,
como faz a história, o papel do mito parece ser o de repetir, como faz a música” (DURAND,
2002, p. 361, grifos do autor).
Segundo Durand, o mito constitui a dinâmica do símbolo, pois “é o mito que, de
algum modo, distribui os papéis da história e permite decidir aquilo que <faz> o momento
histórico, a alma de uma época, de um século, de uma idade da vida” (DURAND, 2003, p.
87). Nesta perspectiva, o mito é o referencial a partir do qual se pode compreender a própria
história, atestando-a e legitimando-a. A dinâmica do símbolo constitui o mito, consagrando a
mitologia como “mãe” da história.
No que diz respeito às imagens simbólicas, Durand destaca que o símbolo é uma
“representação que faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério” (DURAND,
1995a, p. 12, grifo do autor). A imagem simbólica aparece como “transfiguração” de uma
representação concreta através de um sentido abstrato. Assim, o símbolo evoca um sentido
ausente, remetendo sempre para um “indizível e invisível significado” (1995a, p. 16). A
virtude do símbolo consiste em assegurar, no seio do mistério pessoal, a presença da
transcendência. Por isso, todo simbolismo é uma espécie de gnose – um processo de mediação
por meio do conhecimento concreto e experimental, um conhecimento salvador, que
proporciona a liberdade. E, sendo assim, o símbolo se revela como “a alquimia da
transmutação, da transfiguração simbólica”, por meio da qual se efetua a experiência de uma
liberdade. Mais do que isso, “o poder poético do símbolo define a liberdade humana melhor
do que qualquer especulação filosófica”, uma vez que esta última vê na liberdade uma escolha
objetiva, ao passo que, na experiência do símbolo, “a liberdade é criadora de um sentido: ela
é poética de uma transcendência no seio do sujeito mais objectivo, do mais implicado no
acontecimento concreto” (DURAND, 1995a, p. 33, grifos do autor).
Para Mircea Eliade, o pensamento simbólico é consubstancial ao ser humano; ele
precede à linguagem e à razão discursiva: imagens, símbolos, mitos respondem a uma
necessidade e preenchem a função de revelar as mais secretas modalidades do ser. Estudar
este pensamento simbólico permite desvendar melhor o homem e esta parte da humanidade
que é anterior à História. Essa parte a-histórica do ser humano traz a marca da lembrança de
uma existência mais rica e mais completa. O inconsciente não é povoado apenas por
monstros, mas também é morada dos deuses, deusas, heróis, fadas e ajuda o homem a libertar-
se e aperfeiçoar sua iniciação (ELIADE, 1996, p. 10).
As imagens e símbolos jamais desaparecem da atualidade psíquica do homem. Eles
podem mudar de aspecto, mas sua função é perene. Há, no homem moderno, toda mitologia
ou uma teologia escondida na vida, uma série de imagens envelhecidas e de mitos degradados.
Mesmo sendo livre para menosprezar as mitologias e as teologias, isso não significará que ele
deixará de se alimentar dos mitos decadentes e das imagens degradadas: “a extirpação dos
mitos e dos símbolos é ilusória” (ELIADE, 1996, p. 15).
Assim, “ter imaginação” implica gozar de uma riqueza interior, de um fluxo
espontâneo de imagens. A imaginação encontra-se relacionada à idéia de representação e
imitação a imaginação imita as imagens, reproduzindo, reatualizando e repetindo-as
infinitamente. No dizer de Eliade, ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade, uma vez
que “as Imagens têm o poder e a missão de mostrar tudo o que permanece refratário ao
conceito. Isso explica a desgraça e a ruína do homem a quem ‘falta imaginação’: ele é cortado
da realidade profunda da vida e de sua própria alma” (1996, p. 16, grifos do autor).
Na concepção de Gaston Bachelard, mais do que a faculdade de “formar imagens, a
imaginação constitui a faculdade de “deformar” as imagens fornecidas pela percepção, porque
ela liberta o homem das imagens primeiras, mudando-as (2001a, p. 1). Bachelard afirma que
se não mudança de imagens ou união inesperada das imagens não imaginação;
simplesmente percepção, lembrança, memória familiar “se uma imagem presente não faz
pensar numa imagem ausente, se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de
imagens aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação” (BACHELARD, 2001a, p.
1, grifos do autor).
De acordo com Bachelard (2001a), o vocábulo que fundamenta a imaginação, ao
contrário do que muitos pensam, não é “imagem”, mas “imaginário”, uma vez que o valor de
uma imagem se mede pela extensão de sua auréola imaginativa, e não o inverso. É graças ao
imaginário que a imaginação torna-se aberta e evasiva, fazendo com que as imagens adquiram
mobilidade e possam ativar a imaginação, pois uma imagem estável e acabada cessa a
imaginação, tornando-se pensamento sem imagens.
O caráter fundamental de constituição das imagens é sua mobilidade; esta capacidade
de modificação e facilidade de mover-se. As imagens adquirem vida e fertilidade imaginativa
e criativa pelo poder de deslocamento e movimentação. Esta mobilidade das imagens é
facilmente identificada na imaginação literária, mais precisamente, na imaginação poética. Por
meio da imaginação, o leitor abandona-se ao ato de imaginar, ausentando-se e lançando-se a
uma vida nova, a imagens novas e renovadas pela criação imaginante. É como se o sonhador
se deixasse ir à deriva sem saber ao certo qual o curso ordinário que esta ausência sem lei ou
devaneio o conduziria. A imaginação é uma viagem que leva a caminhos evasivos, fugidios e
imprevisíveis.
Na linguagem imaginante da poesia, o poeta lança “convite à viagem”, através da qual
o leitor poderá sentir um impulso, que põe em marcha o devaneio dinâmico das imagens em
movimento e transcendência. Essa viagem deve conduzir a um sonho poético, a uma vida
imaginária que terá um verdadeiro sentido vital. A viagem imaginária promovida pela
mobilidade das imagens poéticas diz respeito ao mobilismo imaginado, ao psiquismo aéreo
que projeta o ser no infinito imaginativo. No reino do imaginário, a imaginação é uma das
formas da audácia humana e do dinamismo renovador (BACHELARD, 2001a, p. 8).
Na acepção de Ana Maria Lisboa de Mello, mito, poesia e imaginário aparecem como
termos correlatos. Para a autora, a relevância do mito enquanto expressão do imaginário
coletivo, que forma à produção cultural da humanidade, tem despertado o interesse de
estudiosos e a diversidade de enfoques teóricos. No dizer de Mello, o conceito de mito resiste
a uma definição estanque, que limita a sua amplitude e pluralidade (MELLO, 2002, p. 30).
Conforme Mello, o mito é uma narrativa instauradora e organizadora de sentidos, que
possibilita ao homem sua integração no mundo, na comunidade, na família e suas relações
com o plano divino, pois ele segue a trajetória dos heróis míticos, no que diz respeito aos
“paradigmas de posturas morais e éticas, que, projetadas especularmente na criação
imaginária, fornecem modelos de conduta humana” (MELLO, 2002, p. 242)
A força e a magia do mito, segundo Mello, explicam a sobrevivência de seus
elementos na produção literária de todos os tempos, uma vez que o mito constitui a matéria-
prima das criações artísticas em todas as suas manifestações, além de ser a linguagem que
melhor responde “à necessidade humana de sair temporariamente do mundo prosaico e
profano para se abeberar nessa fonte inesgotável de sentidos” (MELLO, 2002, p. 242).
O caráter plurissignificativo do mito o aproxima da literatura e, mais ainda, da poesia
lírica, pois é na poesia “que se sente o constante renascimento da mitologia” (MELLO, 2002,
p. 243). A poesia tem em sua origem uma forte associação com o mito, uma vez que, os
relatos míticos propiciam o surgimento de cantos, hinos e celebrações divinas, que enfatizam
a mensagem mítica. Assim, a poesia apresenta profunda afinidade com o mito, pois os poetas
fazem renascer ou regenerar símbolos arquetípicos, próprios da produção mítica, por meio da
imaginação (MELLO, 2002, p. 43).
Na poesia, a linguagem conserva a integridade das fórmulas mágicas dos cantos
míticos: “a linguagem é, sobremaneira, ambígua, polissêmica, equívoca, e, por tudo isso, rica
e inesgotável” (MELLO, 2002, p. 244). A poesia, a exemplo do mito, é revelação e ruptura
com o prosaico e realiza um hiato no tempo e no espaço profanos para dar lugar ao sagrado e
epifânico. O poema enseja o encontro do homem consigo mesmo, mostrando a interioridade
do sujeito poético, exprimindo e revelando a condição do homem no mundo. Com isso, a
poesia comprova a unicidade existente entre o homem e o mundo. Assim como o mito, a
poesia assume uma dimensão de desvelamento, uma vez que a “palavra poética provém do
interior do homem e nele tem ressonância, funcionando como recurso de auto-revelação”
(MELLO, 2002, p. 53).
A palavra do poeta é a voz e a palavra do mundo, o que faz com que mito e poesia
sejam produções da cultura humana que têm em comum o uso da linguagem. A imagem
simbólica e o ritmo são os elementos-chave que direcionam a significação do poema e
procedem à revelação própria do poetizar lírico (MELLO, 2002, p. 57). A imaginação, por sua
vez, implica movimento ação imaginante através da qual uma imagem presente leva a
pensar em outra ausente (MELLO, 2002, p. 71).
Bachelard assegura que é pela “intencionalidade” da imaginação poética que a alma do
poeta encontra a abertura “consciencial” de toda verdadeira poesia (2001b, p. 5). Embora na
psicologia o devaneio possa ser entendido enquanto fuga para fora do real ou “distensão
psíquica” e, portanto, destituído de memória; o devaneio poético não pode ser visto nesta
perspectiva, uma vez que se trata de um devaneio de crescimento e não de descida ou
obscurantismo (BACHELARD, 2001b, p. 6).
O devaneio poético é marcado por uma polifonia dos sentidos; é um impulso de
imaginação: “O devaneio poético escrito, conduzido a dar a página literária, vai, ao
contrário, para nós um devaneio transmissível, um devaneio inspirador, vale dizer, uma
inspiração na medida dos nossos talentos de leitores” (BACHELARD, 2001b, p. 7).
Diferentemente do sonho, o devaneio não se conta. Para comunicá-lo a outrem é preciso
escrevê-lo com emoção e gosto, procurando reviver o melhor ao transcrevê-lo. Um poema
pode congregar os devaneios e reunir sonhos e recordações, porque “o devaneio ilustra um
repouso do ser”, no qual “o sonhador e seu devaneio entram de corpo e alma na substância da
felicidade” (BACHELARD, 2001b, p. 12).
Valendo-se do método fenomenológico
3
, Bachelard propõe (re)examinar com um
olhar novo as imagens fielmente amadas e fixadas em sua memória, a fim de trazer à luz a
tomada de consciência e apreender o próprio ser do homem por meio das imagens poéticas.
Isto torna-se possível graças a qualidade das imagens poéticas de iluminarem com sua luz
própria a consciência humana.
Para Claude Esteban, Bachelard restitui ao poema a consistência orgânica original,
uma vez que para o filósofo, a palavra, mais do que signo, é sinal, é sintoma de ser. Esteban
chama a atenção ao fato de que, para Bachelard, a imagem poética identifica-se com o devir
de uma palavra, que, liberta do conceitual, vem irradiar-se sobre o espaço psíquico do sujeito
e da memória. A palavra, quando “Reconquistada pelo poeta em sua novidade”, não produz
imagem, ela passa a ser imagem, “sem processo mediador, sem intervenção obrigatória de
nossa faculdade de reprodução ou arranjo combinatório das percepções anteriores”
(ESTEBAN, 1991, p. 92).
A imagem poética apresenta-se como uma epifania súbita e imprevisível da palavra, ou
na expressão de Bachelard, “um novo ser da linguagem”. A imaginação, por sua vez, constitui
o meio mais seguro de ultrapassar as leis da lógica e de permitir “a comunicação e talvez a
33
Fundada pelo filósofo Edmund Husserl, a fenomenologia consiste em liberar a análise literária de seu
compromisso cientificista. Caracteriza-se, principalmente, pela abordagem dos problemas filosóficos segundo um
método que busca a volta “às coisas mesmas”, numa tentativa de reencontrar a verdade nos dados originários da
experiência, entendida esta como a intuição das essências. Conforme declara Roberto Acízelo de Souza (1991, p.
58), a fenomenologia parte do princípio de que o fenômeno literário “é conatural à sua teoria, razão por que é
necessariamente poética a reflexão acerca do poético”.
reconciliação do Interior e do Exterior, do Ínfimo e do Imenso, da Gravidade e da Falta de
Gravidade” (ESTEBAN, 1991, p. 92). Nas palavras de Esteban, o imaginário faz com que o
Eu descubra que não es sozinho, pois, como aponta o próprio Bachelard, “Os devaneios
mais profundos são freqüentemente comunicáveis” (BACHELARD apud ESTEBAN, 1991, p.
99).
Na perspectiva de Malrieu (1996), a imaginação criadora é apresentada enquanto poder
inexplicável e o imaginário surge como o estabelecimento de correspondências entre domínios
distintos, como a descoberta de uma identificação do sujeito com outro eu. O imaginário
torna-se a expressão de uma simpatia que se sente pelos seres a quem o sujeito se encontra
ligado, constituindo uma forma elementar de representação dos possíveis, indispensável ao
desenvolvimento da inteligência.
Para Malrieu, a construção do imaginário mítico processa-se em dois níveis distintos:
afetivo e social. No primeiro, o imaginário é dotado de um substrato afetivo, consistindo em
uma tentativa de domínio das coisas e dos seres. Trata-se de um imaginário fugidio e não
organizado, como o do sonho e do devaneio. O imaginário afetivo, isolado, não teria força
suficiente para conduzir o mito, pois o inconsciente primitivo, intrínseco a cada indivíduo,
não serve de fundamento ao recurso do imaginário enquanto conduta social. No segundo
nível, porém, intervêm o enriquecimento deste imaginário por meio da tradição mítica, na
qual se percebe uma influência das regras sociais, dos modelos religiosos, as relações entre os
sexos, as classes etárias, as corporações: “O imaginário mítico surge como diálogo entre o
indivíduo e o seu grupo. Este coloca as questões, sugere as respostas, enquanto o primeiro,
testa, nas suas tarefas, a validade de ambas” (MALRIEU, 1996, p. 79).
A imaginação, como afirma Malrieu, “põe a descoberto um real oculto e desconhecido,
escondido sob o real conhecido”, fazendo com que o ser humano veja, escute e pense que
existem outras realidades a que ele não está habituado (1996, p. 81). A arte, por exemplo,
move o desejo de criar formas novas a partir de elementos que se encontram disponíveis ao
homem e afirmam sua existência real, pois revela o que de enigmático em seu ser: “A arte
tem por função, não a expressão de uma realidade preexistente mas, partindo das inquietações
próprias da época, de pôr em dúvida as instituições e propor novos projetos culturais”
(MALRIEU, 1996, p. 96).
No reino da imaginação, as imagens são instrumentos da construção do imaginário,
pois “a imagem é um momento, não apenas da tomada da consciência confusa das tendências
e das atitudes, mas também da constituição destas” (MALRIEU, 1996, p. 116). No decurso do
ato de imaginar, as tendências tomam forma e fixam-se por meio dos objetos que elas põem
em evidência. As imagens encontram-se integradas em um todo e em uma forma que lhes
conferem uma função e um sentido.
De acordo com Malrieu, o ato de imaginar consiste na recuperação de um passado com
o intuito de transfigurá-lo, operando um movimento em direção ao futuro uma progressão
ou projeção. Neste sentido, o imaginário é, de certa forma, “imitação do passado, tal como o
simulacro do qual decorre”, mas trata-se de “uma imitação deformada pelo próprio
mecanismo da projeção, que mais não pode fazer a não ser transformar os preceitos, [...]
condicionando-os a tornarem-se, sem apelo nem agravo, diferentes daquilo que são”
(MALRIEU, 1996, p. 130).
O imaginário difere do conhecimento conceptual tanto pelo seu caráter de
transformação quanto pelo imediatismo da transferência simbólica, pois diz respeito a um
conhecimento que se apresenta como uma revelação, em que uma única imagem invade uma
forma de estar e não a estrutura das coisas (MALRIEU, 1996, p. 227).
A atividade da imaginação é um fator de procura e de superação, englobando aspectos
baseados em emoção, simulacro e imitação. A imaginação é a expressão de uma insatisfação
relativa a comportamentos instituídos, de um desejo de sair de si mesmo; é um meio de aceder
à existência segundo outrem um outro que não é o indivíduo concreto, mas uma pessoa
reconstruída a partir das aspirações do sujeito (MALRIEU, 1996, p. 239).
Se, como afirma Bachelard, a imaginação consegue fazer as correspondências entre as
imagens e as palavras, revelando um lirismo inesgotável, estudar a imaginação pela obra
poética, pela palavra tem a vantagem de possibilitar uma ampliação das imagens. A poesia,
por sua função de despertar a imaginação, suscita imagens que estão nos sonhos e devaneios
do ser humano. E, neste sentido, Octavio Paz aponta para a relação entre o universo poético e
imaginário, ao afirmar que “A poesia exercita nossa imaginação e assim nos ensina a
reconhecer as diferenças e a descobrir as semelhanças” (PAZ, 1993, p. 147).
O mundo da operação do pensamento poético é o campo da imaginação e esta
consiste, essencialmente, na faculdade de relacionar realidades contrárias ou dessemelhantes.
No dizer de Paz, todos os recursos da poesia contribuem para produzir imagens nas quais se
juntam todos os tipos de relações, porque cada poema representa um “pequeno cosmo
animado” (PAZ, 1993, p. 147).
Assim, a poesia é o fio condutor das imagens e da imaginação, ela suscita uma tomada
de consciência dos fenômenos que ocorrem na alma do sonhador. A poesia é força capaz de
dar sentido a vida e clarificar a história ou a própria existência, pois ela promove o encontro
do homem consigo mesmo por meio da imaginação. Por sua capacidade imaginante, o ser
humano transforma a poesia em campo sensível para a revelação de sua condição original,
abre as fontes do ser e se lança em uma viagem onírica, pelos campos sensíveis da memória,
dos sonhos e devaneios e da imaginação.
O imaginário, por sua vez, não pode estar separado da noção de imagem, pois, como
afirma Claude-Gilbert Dubois, o imaginário simbólico é um modo de significação constituído
em linguagem, não a partir de signos lingüísticos, mas sim, de imagens significantes. Dubois
explica que o imaginário situa-se com relação a dois termos que podem ser classificados como
móveis e relativos. São eles: o realismo e a loucura. No entanto, o imaginário não pode ser
confundido com a loucura, nem se opõe ao realismo. Ele se fundamenta em uma convenção e
em uma ilusão. O autor chama de imaginário “o resultado visível de uma energia psíquica
formalizada individual e coletivamente” (DUBOIS, 1995, p. 22).
Dubois acrescenta, ainda, que o homem vive em florestas de símbolos, cuja face,
familiar ou enigmática, o incita a fazer correspondências e atribuir sentidos. O imaginário
serve de meio de dar outro sentido, de atribuir um sentido por outros por meios além da
atividade mecânica superficial” (1995, p. 47).
A respeito da aproximação da poesia com a magia ou a imaginação, Hugo Friedrich
sublinha a severidade da magia poética, afirmando que se trata de uma “fusão da fantasia com
a força do pensamento” (FRIEDRICH, 1978, p. 28). O autor assevera que é da magia que
Novalis deduziu o conceito de que cada palavra é um encantamento. O poeta é como um
mago que encanta as palavras. A linguagem é capaz de determinar o processo poético, uma
vez que possibilidade de se criar um poema a partir de um processo combinatório operado
tanto por elementos sonoros e rítmicos quanto por fórmulas mágicas: “O lírico se converte em
mágico do som” (FRIEDRICH, 1978, p. 50).
Este parentesco entre poesia e magia é muito antigo e remete à mitologia. Depois de
haver sido relegada, pelo Humanismo e Classicismo, a mitologia renasce, ainda com os
românticos, e ganha vigor na estrutura da lírica moderna, buscando apoio na magia da
linguagem, pois “mediante o operar com as possibilidades sonoras e associativas da palavra,
se destacam outros conteúdos de sentido obscuro, mas também mistérios, como as forças
mágicas da sonoridade pura” (FRIEDRICH, 1978, p. 52).
Para o poeta e crítico literário João Manuel Simões, a parceria existente entre a poesia
e o universo imaginário pode ser sentida pelo fascinante jogo lúdico (quase encantatório) da
alquimia verbal. A poesia é exercício espiritual: “ato litúrgico celebrando a beleza implacável,
a poesia, nas suas múltiplas facetas, sob os seus incontáveis disfarces, esconde sempre
terríveis enigmas. Decifrá-los constitui, a um tempo, o suplício e o deleite do exegeta
(SIMÕES, 1991, p. 26).
Na lírica de João Manuel Simões, este parentesco da poesia com a magia, imaginação,
sonho ou fantasia aparece de forma sutil nos poemas em que o poeta trata do fazer poético. A
poesia é vista, simultaneamente, como “alquimia verbal” e “exercício mágico”, o que
demonstra que no ato de construção poética o poeta mescla, aos aspectos artesanais de escrita
e elaboração poética, outros elementos que pertencem ao plano da imaginação e ao domínio
do imaginário.
No poema “43”, a criação ou “invenção” de um poema surge como um “ato litúrgico”
da escrituração poética, formada por uma teia complexa e de difícil definição:
A máquina do verbo,
esse tear de espantos.
Poesia. Ato litúrgico, ofício
mágico? Epifania da beleza
em transe? Geometria simbólica,
álgebra cantante? Caligrafia
do inefável? Ou moenda que mói
o trigo das metáforas?
Poeta. Sempre
um tecelão de assombros.
Perpetuamente tece
a sua teia:
arco-íris de música
e verdade.
(SIMÕES, FM, 1993, p. 43)
Neste poema, o eu lírico deixa transparecer que a aura imaginativa e transcendental
que a poesia inspira vem da força do verbo, ou seja, da palavra poética, este “tear de espanto”
capaz de despertar emoções e sentimentos indecifráveis. Tão indefinidos que o sujeito lírico
formula várias perguntas ou alternativas para defini-la, sem encontrar uma resposta certa,
preferindo deixar para que o leitor faça sua escolha e veja qual a melhor alternativa para
definir a dimensão da magia poética.
Porém, qualquer uma das “opções” ou “alternativas” que o eu lírico propõe ao leitor,
implicará na seleção de uma definição de poesia que atende ao plano quase “sobrenatural”,
pois, seja ela um exercício mágico, epifania da beleza, geometria simbólica ou caligrafia do
inefável, sua essência ultrapassa a simples nomenclatura verbal para se transformar em
transcendência, epifania e revelação. Muito mais do que ornamentação das palavras, a poesia
possui a função de provocar algum sentimento ou emoção no leitor, por meio desta “operação
alquímica” com a “máquina do verbo”.
O poeta, por sua vez, possui a capacidade de lidar com a palavra, fazendo com que ela
transcenda seu poder significativo de signo lingüístico e alcance a plenitude simbólica e
mágica. Ele é como um “tecelão de assombros”, que é da “transfiguração” que ele fará na
“máquina do verbo” que determinará se a poesia atingiu ou não sua função imaginativa de
“tear de espanto”.
A teia de palavras com que o poeta tece o poema será “arco-íris de música e verdade”.
Além desta capacidade de provocar um certo “espanto”, a poesia também está comprometida
com a sintaxe do canto e com a verdade, pois, como afirma Hegel, o poeta precisa fazer com
que os sentimentos sejam autênticos, capazes de despertar em outras pessoas sentimentos e
considerações (HEGEL, 1980, p. 218).
O poeta é, portanto, semelhante a um “arquiteto” ou “obreiro” da palavra, aquele que
move e desloca seu sentido, e, por meio de analogias, metáforas e correspondências, promove
a centelha de luz poética que emerge das páginas brancas pelas mãos do poeta tecelão e
artesão do verbo.
O poema “Words, words, words” é significativo no que diz respeito à força e magia da
palavra poética, mas também mostra, por outro lado, que a poesia o é feita de palavras.
No fazer poético, o poeta alia, ao seu trabalho artesanal com a linguagem, outro elemento de
igual valor – a inspiração:
Palavras? Palavras são
a lenha que faz arder
a fogueira da poesia.
Mas somente a inspiração
(fósforo na lixa breve
aceso) pode fazer
com que a chama, intensa ou leve,
torne a negra noite dia.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 92)
Ao interrogar sobre o que são as palavras, o sujeito poético apresenta uma bela
imagem que, de certa forma, sintetiza uma possível definição para a poesia. Esta é como uma
fogueira, cuja lenha são as palavras. No entanto, para acender esta fogueira, o poeta necessita
de um fósforo especial que recebe o nome de inspiração. É somente com este fósforo que as
palavras podem incendiar, fazendo com que a poesia queime, com chamas intensas ou leves,
dependendo da quantidade de lenha ou palavras. No contato do fósforo-inspiração com a
lenha-palavra a fogueira-poesia atinge chamas capazes de tornar a noite negra em claro dia, ou
seja, capaz de transmutar sentimentos, clarear a existência e iluminar a vida.
Nota-se, com isso, que a poesia é dotada de uma força maior e transformadora,
suficientemente grande para ativar a imaginação. A força das palavras e o poder da inspiração
e imaginação do poeta dão conta da operação de transfiguração da palavra em palavra poética,
criando a poesia.
No poema “Tessitura” é possível identificar uma matéria nova no tear do poema. Nem
de “words, words, words” e inspiração o poema é feito, mas também de sonho, ilusão,
magia e fantasia:
O poeta, tecelão,
produz, no tear da poesia
(feito de sonho e ilusão),
de seus poemas a teia,
com linha de fantasia.
No inverno ou no verão,
lua nova ou lua cheia,
faça noite ou faça dia,
em silêncio (e solidão),
o tecedor tece – cria.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 88)
Para compor a tessitura do canto poético, o poeta necessita reunir uma série de
matérias que se encontram em um plano imaterial. A operação alquímica da palavra por meio
da inspiração não é suficiente para designar a “aura mágica” da poesia. É preciso que ela tenha
uma outra matéria para que o poeta efetue a argamassa com a qual edificará a tessitura da
criação.
Quando, onde e como o poeta fará esta tessitura não tem relevância, pois o que
realmente importa é que neste poema que será criado não falte sonho e ilusão, ou seja, que ao
tecer seu poema, o poeta utilize uma linha especial uma linha de fantasia com a qual ele
tecerá a teia do poema. Assim, fantasia e palavra constituem os fios que ligam esta trama do
poema, formando uma composição de sonho, em que é possível encontrar uma forte relação
entre o universo imaginário e poético.
A fantasia, de acordo com o poeta Samuel Taylor Coleridge, apresenta profunda
afinidade com a imaginação e com a memória, embora admita que a imaginação seja superior
à fantasia por ser mais original e criativa; aparecendo como uma autêntica potencialidade
criadora que se desdobra em primária e secundária. A imaginação primária é o agente
primordial de toda a percepção humana e de onde emerge a imagem; a imaginação secundária,
por sua vez, é como um eco da imaginação primária, pois coexiste com a vontade consciente.
As duas diferem-se pelo grau e forma de atuação, uma vez que a imaginação secundária tem o
poder de diluir a imagem para recriá-la (COLERIDGE, 1917. In: LOBO, 1987, p. 201).
No poema “Tessitura”, a fantasia é a linha com a qual o poeta tece a trama poética,
mas ela também aparece relacionada à imaginação, constituindo um instrumento que ajuda o
poeta a moldar sua criação: a fantasia é o fio que liga a palavra e a inspiração na construção
poética, uma vez que o ato poético requer “operação alquímica” com o verbo e “operação
imaginativa” com a criação. De qualquer forma, o elemento da imaginação aparece associado
à composição poética, o que aponta, novamente, para a intersecção entre o fazer poético e o
universo imaginário.
No soneto “Teoria do Pastor”, o poeta é comparado a um pastor que apascenta seu
rebanho onírico de palavras, mesclando criação e imaginação:
Em silêncio e tranqüilo, eis que apascento
meu rebanho infinito de palavras
brancas, azuis, algumas roxas, outras
da cor da luz sutil em que me invento.
Doce rebanho, caminhando, lento...
Ante os meus olhos de pastor insone,
vai mastigando as pétalas do verbo,
docemente tangido pelo vento.
É meu rebanho. Foi por mim criado
com imaginação, na fantasia
em cuja linfa, sem querer, me afundo.
É meu rebanho onírico, sagrado,
regressando ao redil da poesia,
indiferente aos lobos deste mundo.
(SIMÕES, AV, 2002, p. 91)
Percebe-se que os elementos constituintes da trama poética encontram-se
dimensionados à criação e transfiguração da palavra e ao universo imaginário e onírico. Para
regressarem ao redil da poesia, as palavras precisam ser (re)criadas pelo poeta, este pastor
incansável e vigilante que não deixa seu rebanho onírico dispersar, protegendo-o sempre dos
“lobos deste mundo”, que podem oferecer perigo à poesia, como “profanizar” este “sagrado”
rebanho de que fala o eu lírico.
No entanto, o pastor insone permanece fiel à sua missão de criação imaginativa, pois
seu rebanho de palavras tem regressado ao redil, indiferente aos “lobos deste mundo”, o que
demonstra, todavia, que a força da fantasia e da imaginação na textura poética tem se
mostrado eficiente, não permitindo que a poesia perca sua configuração sublime e fantástica.
Se as palavras são o alicerce do poema, a fantasia é uma espécie de linfa através da qual o
poeta mergulha para compor seu canto onírico e extrair as constelações de palavras e imagens
que povoam o imaginário coletivo e individual. A simples leitura de um poema pode despertar
estas imagens, fazendo com que o leitor (re)viva, em sua imaginação, toda uma vida ou
recorde uma emoção ou sentimento que tal imagem provocou ou despertou.
Assim, a imaginação e a fantasia não são componentes apenas do imaginário do poeta
ou da trama poética. No dizer de Sartre, a “imaginação se apresenta como uma seqüência de
pequenos sonhos instantâneos seguidos de bruscos despertares” (1964, p. 104). A relação
entre a poesia e o imaginário encontra sua fundamentação justamente nesta capacidade que a
poesia tem de despertar a imaginação, de fazer com que o leitor experimente estes pequenos
instantes de sonho e devaneios, despertando-se em seguida.
Nos versos do soneto “Arquitetura & Música”, a voz rica afirma que a composição
do seu canto, independente de ser sacro ou pagão, possui a forma translúcida de um sonho:
Com estrofes de mármore e cristal
e versos feitos de ouro, luz e espanto,
eu construo o palácio do meu canto
lírico ou polifônico, sensual.
Há nele notas doces de acalanto,
e sons graves de infrene temporal.
E tem na melodia, bem ou mal,
a filigrana onírica do encanto.
Esse canto imperfeito que eu componho
(sacro ou pagão, que importa? Tanto faz)
tem a forma translúcida de um sonho
que eu sonho enquanto sonho, já desperto,
tendo na mão a pena (ó lira audaz!)
que inventa o mundo inteiro no Deserto.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 15).
O processo de construção poética é singelo e puro, envolve palavra, espanto e encanto,
mas também apresenta uma sintonia com o sonho. Porém, o estado onírico do poeta é
diferente, pois trata de um sonho desperto, em que o poeta está consciente de que sua pena
“lira audaz” trará para o deserto da página um mundo inteiro de sonho, de realidade, de
fantasia e de imaginação. O poeta proclama fazer uma poesia alada, moldada com argila de
verbo e imaginação. São estes os componentes essenciais da poesia.
No poema “4”, do livro Lira de Dom Quixote, a imaginação apresenta-se como força
dinâmica capaz de transformar a realidade e dirigir a vida do homem:
Engana-se quem pensa que eu confundo
moinhos gigantes.
Tudo aquilo que a gente vê no mundo
é o que habita antes
na imaginação.
E tanto o sonho pode ser real
como a realidade
um sonho vão
que se sonha na noite mineral,
parecendo verdade.
(SIMÕES, LQ, 1992, p. 8).
A imaginação parece vir antes que qualquer outra coisa, como se fosse a base das
atitudes humanas, como se o homem pudesse ser tudo aquilo que sua imaginação quer que
seja. Nestes versos pode-se perceber que os liames entre o real e o imaginário, ou entre a
lucidez da loucura e a loucura da lucidez, são mais sutis do que se pensa. Tanto o sonho pode
ser real quanto a realidade ilusória. Em se tratando da poesia, estas duas forças se atraem e a
imaginação constitui um fenômeno singular e essencial no exercício da operação verbal. O
poeta alia as forças da racionalidade à sensibilidade da imaginação, do sonho e da inspiração,
promovendo uma poesia reveladora da essência humana, que canta o mundo inteiro a partir da
sinfonia das palavras, dos símbolos e das imagens poéticas.
O mundo da operação do pensamento poético é a imaginação, e esta consiste,
basicamente, em uma forma de subjetivar o sentido, como salienta Dufrenne (1969). Ela pode
ser potência do sonho que traz à luz as agitações e inquietudes do ser. Além disso, a
imaginação ainda é criadora e pode “definir o homem como capaz de transpor os limites pelo
‘poder de despertar as fontes’ como bem lembra Bachelard” (DUFRENNE, 1969, p. 161).
A poesia de João Manuel Simões projeta-se como potencialidade da palavra poética e
como força imaginativa. Esta consciência das virtudes da palavra e da imaginação faz com
que o poeta busque, em sua lírica, novas formas de expressão, seja pela alquimia e
direcionamento do “rebanho onírico” das palavras, seja pela magia transcendental das
imagens que rondam o imaginário humano. O poeta transita nestas duas potencialidades e,
assim, apresenta uma poética portadora de novos sentidos, uma lírica que busca e leva a uma
reflexão sobre a “Ars poetica” e para a intrínseca relação existente entre a poesia e o
imaginário.
Nas palavras de Cruz, a imaginação é força dinâmica pela qual o homem consegue
imaginar mundos e dar sentido à vida por meio de imagens; a poesia, por sua vez, “é o vetor
de operacionalização dos instantes vividos, das transmutações da linguagem, da valorização
dos sentimentos e das coisas mais simples (CRUZ, 2001, p. 48). Por meio da imaginação e
da concretização da poesia, o ser humano consegue “dar forma às coisas mais tênues,
evanescentes e se auto-afirmar” (2001, p. 49). Estas considerações apenas reforçam a
designação da poesia enquanto “transcendência, contemplação, força que edifica e revigora o
homem frente às vicissitudes da vida. É também ‘milagre’ da linguagem” (2001, p. 49).
A relação entre poesia e imaginário aparece como algo indissociável, uma vez que sua
conciliação não serviu de base para a “ressurgência” dos estudos do imaginário como
também tem se mostrado uma fonte para se chegar às bases do pensamento mítico e
simbólico. A poesia reúne uma série de valores e imagens que encontram pousada no universo
imaginário. Estas imagens vêm ao lume pelas mãos do poeta, que consegue, no ato da criação
poética, transformar em poesia aquilo que só tinha existência na imaginação. O fazer poético é
repleto de imaginação. Sem a força da imaginação e das imagens que integram o imaginário
humano, a poesia não teria toda a capacidade que tem de tocar a imaginação do leitor, fazendo
despertar um estado anímico que acompanha o fluxo da imaginação criadora do poeta; nem o
poeta seria capaz de compor, com técnica, uma poesia portadora da capacidade de desvelar
e revelar os enigmas existenciais que acompanham a humanidade e permitem uma retomada
do tempo mítico.
Embora o aspecto imaginário seja pertinente ao universo lírico, isso não significa que,
no fazer poético, não exista trabalho e construção com a linguagem. Pelo contrário, se não
houvesse todo um cuidado com a elaboração do poema, certamente, o “milagre” da linguagem
não existiria. É justamente a união entre a linguagem da poesia lírica e a imaginação criadora
do poeta, que faz com que a poesia seja este campo fértil através do qual as construções do
imaginário podem se manifestar em forma de linguagem e imagem poéticas.
Na lírica de João Manuel Simões, a união entre poesia e imaginário aparece realçada
nos poemas em que o poeta deixa transparecer uma visão conceitual sobre a poesia, na
tentativa de encontrar uma fórmula que a defina. Nesta tentativa, o poeta mostra seu lado de
crítico literário que, consciente da grandiosidade do fenômeno poético, não deixa de exaltar a
poesia enquanto reserva de memória, sonho, fantasia, inspiração e imaginação.
Simões afirma que a poesia encontra-se comprometida, desde seu surgimento, “com
uma certa e determinada cosmovisão” (SIMÕES, 1991, p. 13). Nesta imensa “fábrica” da
poesia, sua matéria-prima a palavra torna-se um instrumento ativador de sonhos e
desencadeador de imaginação. Tentar definir a poesia é uma tarefa árdua (senão impossível),
pois ela é feita para sentir e fruir. Em sua fórmula, os componentes o dotados de magia e
encanto, sua tessitura é composta por fios de fantasia e as palavras são revestidas de uma
alquimia verbal. Definições como estas são constantes na lírica de Simões e fomentam uma
concepção de poesia que se liga intimamente à aventura ontológica que desemboca no centro
das construções do imaginário.
1.1 POESIA: A FÁBRICA DOS SONHOS
Desde a formulação clássica de Aristóteles (2005), segundo a qual todas as artes, de
um modo geral, seriam imitações e a poesia estaria ligada à propensão congênita e natural do
homem em imitar
4
, pode-se dizer que a poesia tem oferecido com freqüência, com maior ou
menor felicidade, constantes tentativas de definição e, permanentemente, surgem novas
alternativas. Apesar do vasto repertório conceitual, a poesia não tem se desvencilhado de uma
de suas principais matérias: a linguagem. Esta, ao longo dos séculos, tem sido vista ora com
rigor formal e racional (regida por Apolo) ora como elemento inspirador e idealizado (regida
por Dionísio). A divergência conceitual envolve aspectos históricos e literários que passam
pelo crivo delicado de uma classificação que tende a restringir a poesia (ou a literatura em
geral) a um “período literário”.
Embora seja ponto pacífico que estas definições por “períodos” literários não sejam
tão fechadas e estanques, para fins didáticos, elas continuam presentes nos estudos literários.
Conforme esclarece Salete de Almeida Cara (1986), poder-se-ia dizer, a partir disso, que, na
Antiguidade, a poesia nasce de uma expressão pessoal ligada diretamente à música. No
Renascimento, aparece uma visão mais normativa e perceptiva de poesia, com ênfase nos
esquemas classificatórios. No Romantismo, por sua vez, acontece uma explosão tanto da
teoria quanto da prática poética, ou seja, ocorre uma revolução do conceito de poesia e o poeta
passa a ocupar um novo papel na sociedade. A poesia adquire um prestígio inusitado e aparece
ligada ao elemento da magia e imaginação. No entanto, é no Modernismo que o poeta adquire
uma visão mais crítica da linguagem, entrando em crise a “expressão pessoal”, isto é, inicia a
“idade crítica” tanto para o poeta quanto para os teóricos e críticos.
Desde o advento do Romantismo, a palavra de ordem da poesia deixou de ser a
mimesis aristotélica e passou a ser a “expressão inspirada de uma alma”, afirma Cara. O poeta
44
A poesia nasceu desta qualidade natural e dessa tendência à imitação, melodia e ritmo, mas a poesia se
diversificou de acordo com o gênio de cada autor, que uns representam as ações nobres de pessoas e outros
imitam as ações inferiores, dando origem aos gêneros da tragédia, epopéia, comédia e poesia. Todas as artes
efetuam a imitação pelo ritmo, pela palavra e pela melodia, mas aquelas que se valem de todas as formas,
como a poesia ditirâmbica, que utiliza o ritmo, o metro e a melodia ao mesmo tempo (ARISTÓTELES, 2005, p.
19-21).
assemelha-se a um organismo vivo que acompanha seu tempo e evolui junto com ele (CARA,
1986, p. 31). Na poesia moderna, o sujeito lírico não se refere a uma pessoa particular, pois a
poesia não alimenta nenhuma ilusão de ser um “armazém” de emoções reais. Não se pode
buscar fatos e dados na bibliografia do poeta, como os românticos permitiam. O sujeito lírico
da poesia moderna não pode ser confundido com o poeta que escreve, porque sua existência
nasce da melodia, do canto, da sintaxe, do ritmo: o sujeito lírico é o texto, e é no texto que o
poeta real transforma-se em sujeito lírico: “Mesmo naqueles textos para cuja total
compreensão a biografia do autor pode ajudar, o ‘eu’ que fala no poema, a subjetividade, não
se refere apenas ao poeta que escreveu o texto” (CARA, 1986, p. 48).
Cohen afirma que a analogia entre poesia e sonho é mais uma descoberta do
Romantismo, pois “sonho e poesia partilhariam a ficcionalidade concebida como liberdade
relativamente ao real. Seria pelo aspecto estranho, se não fantástico, daquilo que descrevem
ou contam que deveria aproximá-los” (COHEN, 1987, p. 245). Sonho e poesia encontrariam
solidariedade no imaginário, pois a consciência sonhadora poderia ser definida como
linguagem poética:
O sonho não conhece nem esperança nem saudade, nem antes nem depois.
Está inteiramente na presença, não tem qualquer dimensão de ausência,
através da qual pudesse ser diferente do que é. E é enquanto tal que o sonho
é poesia pura. Toda poesia não tem outro objetivo que não seja produzir, por
meio da arte, esse efeito estrutural específico, a que podemos chamar “efeito
de sonho”, onde cada ser e cada coisa, liberta da sua negação, é entregue à
sua própria identidade poética (COHEN, 1987, p. 249).
A poesia é, portanto, uma exaltação do mundo ou uma celebração das coisas,
devolvida pela consciência ao seu poder emocional original. O sonho representa um dos
momentos essenciais da subjetividade e da capacidade produtiva do poeta: um momento de
magia e criação poética.
Segundo Fernando Pessoa, “Quem quisesse resumir numa palavra a característica
principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é
arte de sonho” (PESSOA, 1973, p. 153). O poeta português afirma que o maior poeta da época
moderna “será o que tiver mais capacidade de sonho” (PESSOA, 1973, p. 157). O poeta é um
sonhador de palavras, porque ser sonhador é, de certa forma, ser “músico”, pois a música é
essencialmente a arte do sonho e a poesia é a emoção expressa em ritmo. No dizer de Pessoa,
poesia e música seriam termos correlatos, pois a poesia lírica é uma poesia cantada: “a poesia
é assim a prosa feita música, ou a prosa cantada; o artifício da música é conjugado com a
naturalidade da palavra” (PESSOA, 1973, p. 78).
Para Staiger, a poesia e a música também estão próximas, uma vez que o termo
“lírico”, por si mesmo, suscita a imagem de uma canção, pelo fato de que a canção remete à
musicalidade e esta ao som e ao ritmo. A obra lírica participa, portanto, de uma unidade entre
o significado das palavras e a música que as mesmas ecoam (STAIGER, 1997, p. 21).
Staiger também faz uma aproximação entre a criação poética e o sonho, uma vez que,
para o autor, o poeta abandona-se à criação e inspiração da “disposição anímica”, através de
um “discreto inflamar-se do mundo no sujeito”. A poesia lírica é dotada de alma, pois
constitui uma fluidez da imaginação na recordação. O poeta lírico não tem destino próprio,
não cria história, ele deixa-se conduzir pela inspiração, pela “recordação”. A canção constitui
a essência do lírico na medida em que a música evoca a recordação, caracterizando a
totalidade do ser e a plenitude da vida (STAIGER, 1997, p. 75).
A composição de um poema lírico, segundo Fernando Pessoa, deveria ocorrer no
momento da “recordação” e não no da emoção, pois um poema é um produto intelectual, ao
passo que a emoção não é. Somente a recordação seria capaz de conservar uma emoção e
convertê-la em poesia lírica, exprimindo os sentimentos tal qual eles aconteceram (PESSOA,
1973, p. 72). Assim, Pessoa define a arte moderna como “uma representação central vaga, em
torno da qual brilham nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias”
(PESSOA, 1973, p. 71). Neste sentido, a arte moderna é altamente sugestiva pelo liame de
imagens que circunda a linguagem poética, provocando, no leitor ou no ouvinte, imagens
mentais.
Para Bachelard, a capacidade de sonhar do poeta é descrita como um estado de
devaneio. O autor adota, portanto, o método fenomenológico, uma vez que este estuda o
fenômeno da imagem poética no momento em que ela emerge na consciência como o produto
direto da alma e do coração. Bachelard se vale deste método de investigação partindo do
pressuposto de que a fenomenologia estuda a imagem a partir da consciência individual do
sujeito, bem como sua representação no sujeito-ouvinte ou leitor. Assim, a poesia tem sua
origem enquanto produto de uma consciência sonhadora ou de um devaneio (BACHELARD,
1974, p. 342).
Esta afirmativa tende a mostrar que, na fenomenologia do devaneio poético, qualquer
imagem, por mais simples que seja, é capaz de revelar o mundo. A poesia seria o fio condutor
das imagens e da imaginação, ela suscitaria a tomada de consciência dos fenômenos que
ocorrem na alma do sonhador. A função do poeta, portanto, é sonhar para poder oferecer ao
leitor os mundos que nascem de uma imagem cósmica, elevada à potência máxima de
exaltação pela criação poética. Segundo Bachelard, compete ao poeta “o dever de ensinar-nos
a incorporar as impressões de leveza em nossa vida, a dar corpo às impressões quase sempre
desprezadas” (2001, p. 199).
Na perspectiva de Shelley, a poesia aparece sempre acompanhada de prazer, uma vez
que os espíritos por ela tocados se abrem para receber a sabedoria que se encontra misturada
com seu prazer. A poesia desperta e aumenta a própria mente, tornando-a receptáculo de
milhares de combinações de pensamento antes inapreendidos, ela descortina o véu da beleza
oculta do mundo; contribui para a ampliação do círculo da imaginação, inundando-a de
pensamentos que possuem o poder de atrair e assimilar outros pensamentos. Assim, a poesia
reforça a faculdade da imaginação e contribui para a felicidade e perfeição do homem
(SHELLEY, 1987, p. 227-228). Nas palavras de Shelley,
A poesia é sem dúvida algo divino. É simultaneamente o centro e a
circunferência do conhecimento; é aquilo que encerra toda a ciência e a
referência para toda a ciência. É, ao mesmo tempo, a raiz e a flor de todos os
outros sistemas de pensamento; é aquilo de onde tudo brota e que tudo
adorna; é aquilo que, se arruinado, nega a fruta e a semente, e priva o mundo
estéril do alimento e da sucessão das sementes da árvore da vida. É a
superfície perfeita e consumada e o viço de todas as coisas (SHELLEY,
1987, p. 239).
A poesia não é como o raciocínio ou um poder que pode ser exercido de acordo com a
determinação da vontade. Ao contrário, o espírito da criação poética é sensível como a brasa
que vai se apagando com a influência do vento. É feito de um brilho transitório, tal qual a cor
de uma flor que se esmaece e muda à medida que se desenvolve. Se esta força criadora
perdurasse na sua força original, Shelley diz que seria impossível prever a grandeza dos
resultados. No entanto esta força não vigora, porque, “ao iniciar-se a composição, a inspiração
está no declínio, e a mais gloriosa poesia que jamais foi comunicada ao mundo é
provavelmente uma tênue sombra das concepções originais do poeta” (1987, p. 240). Ou seja:
A poesia transforma tudo em encanto; exalta a beleza do que é mais belo e
acrescenta beleza ao que houver de mais deformado; combina júbilo e
terror, tristeza e prazer, eternidade e mudança; subjuga à união, sob seu
brando domínio, todas as coisas inconciliáveis. Transmuda tudo em que
toca, e todas as formas que se movem no resplendor da sua presença se
transformam por maravilhosa simpatia em uma encarnação do espírito que
dela emana; sua secreta alquimia transforma em ouro potável as águas
venenosas que da morte fluem pela vida; arrebata o véu da familiaridade do
mundo e revela a beleza nua e adormecida, que é o espírito de suas formas.
(SHELLEY, 1987, p. 241).
Esta capacidade de deleite da poesia – presente na concepção de Shelley – faz com que
a poesia seja direcionada àquelas faculdades que são as últimas a serem destruídas, porque ela
comunica todo o prazer que os homens são capazes de sentir ou receber e, por isso, a poesia é
esta fonte de deleite e sabedoria.
Neste sentido, a poesia difere da lógica e da razão por o se encontrar sujeita ao
controle das forças ativas do espírito, nem seu nascimento possui relação necessária com a
consciência ou vontade. Shelley defende a idéia de que a poesia está subordinada à faculdade
criadora e imaginativa, uma vez que os poetas “são os hierofantes de uma inspiração”, isto é,
“os espelhos das sombras gigantescas que o futuro lança sobre o presente; [...] a influência
que não é movida, mas move. Os poetas são os legisladores desconhecidos do mundo”
(SHELLEY, 1987, p. 244).
Para Bosi, o ser da poesia – quer refazendo zonas sagradas que o sistema profana, quer
desfazendo o sentido do presente em nome de uma lucração futura contradiz o ser dos
discursos correntes. A luta, muitas vezes subterrânea e abafada, tende a subir à superfície da
consciência. No dizer de Bosi, o caminho que leva a (re)descobrir as fontes do mito, rito,
sonho abriu-se com a primeira revolução industrial e reabriu-se de modo mais consistente
durante a segunda revolução, com os simbolistas, dadaístas, expressionistas e surrealistas
(2000, p. 173). A poesia recompõe cada vez mais arduamente o universo mágico que os novos
tempos renegam: “Demiurgo da própria impotência, o poeta tenta abrir no espaço do
imaginário uma saída possível” (BOSI, 2000, p. 176). O meio que a poesia do mito e do sonho
encontrou para resistir à dor das contradições que a consciência vigilante não pode deixar de
ver foi reinventar imagens da unidade perdida.
Bosi destaca que na resistência aos ídolos, a voz do canto chama a si todos os tempos,
evocando o passado, provocando o presente e invocando o futuro: “Resistir é subsistir no eixo
negativo que corre do passado para o presente; e é persistir no eixo instável que do presente se
abre para o futuro” (2000, p. 226). O tratamento poético é feito no tempo da consciência que
produz sentido e valor. Segundo Bosi, o trabalho poético pode até cair na arte pela arte,
tecnicista ou na arte para o consumo mercantil, mas a arte que resiste a isso, procurando uma
ruptura com a percepção cega do presente, levou a palavra poética a escavar o passado mítico,
os subterrâneos do sonho e a imagem do futuro. A força capaz de “modelar imagens” passa
tanto pela fantasia que produz mitos quanto pela prática do poeta. Tanto uma quanto a outra
lidam com experiências que se encontram retidas na memória e que aparecem como uma
faculdade poética de base (BOSI, 2000, p. 233).
No dizer de Paz, a poesia é a forma natural de convivência entre os homens. Sua
crítica é um diálogo aberto com o mundo, sendo seu desejo a busca de identidade da natureza
humana na multiplicidade de signos. Entre as muitas qualidades da poesia, Paz destaca que ela
“é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a
atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de
libertação interior” (PAZ, 1982, p. 15). A poesia revelaria o mundo e a condição original do
homem; ela seria como um convite à viagem e a possibilidade de regresso à terra natal.
E, nesta multiplicidade de funções que a poesia apresenta, o poeta seria o fio condutor
e transformador da corrente poética, pois ele converteria o poema em poesia e em um lugar de
encontro entre o homem e a poesia. No entanto, como adverte Paz, a poesia não pode ser
entendida como a soma de todos os poemas, pois cada unidade poética é auto-suficiente e
cada poema é único, irredutível e irrepetível (1982, p. 18). Segundo Paz, a única característica
comum a todos os poemas é o fato de serem obras, produtos humanos, objeto único, criado
por uma técnica que morre no instante mesmo da criação. Esta técnica não é transmissível,
porque ela “não é feita de receitas, mas de invenções que servem para seu criador” (PAZ,
1982, p. 20).
No fazer poético, as palavras convertem-se em “outras coisas”, pois na criação poética
“não vitória sobre a matéria ou sobre os instrumentos, como quer uma estética de
artesãos, mas um colocar em liberdade a matéria. Palavras, sons, cores e outros materiais
sofrem uma transmutação mal ingressam no círculo da poesia” (PAZ, 1982, p. 26). A palavra
poética consegue a proeza de ser isto e aquilo ao mesmo tempo; de ser outra coisa e converter
a palavra e o som em imagem. Pela linguagem e pela palavra, o homem tenta superar a
barreira que o separa da realidade exterior, pois a linguagem é poesia em estado natural e cada
palavra possui uma carga metafórica disposta a explodir ao toque da força criadora do poeta:
A criação poética se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro
ato dessa operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta
arranca-as de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo
informativo da fala, os vocábulos se tornam únicos, como se acabassem de
nascer. O segundo ato é o regresso da palavra: o poema se converte em
objeto de participação. Duas forças antagônicas habitam o poema: uma de
elevação ou desenraizamento, que arranca a palavra da linguagem; outra de
gravidade, que a faz voltar. O poema é uma criação original e única, mas
também é leitura e recitação participação. O poeta o cria; o povo, ao
recitá-lo, recria-o. Poeta e leitor são dois momentos de uma mesma
realidade. Alternando-se de uma maneira que não é inexato chamar de
cíclica, sua rotação engendra a chispa – a poesia. (PAZ, 1982, p. 47).
Como se vê, o ciclo da poesia encerra a dupla operação de separação e regresso. O
poema se nutre da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas
paixões, mas ele é, também, mediação entre a sociedade e aquele que a funda. A obra poética
se torna completa pela participação: sem leitor, a obra existe pela metade. Na comunhão
entre a poesia e seu leitor, o poema é convite a desvendar a condição original de cada ser, quer
dizer, ele é feito de palavras necessárias ao homem, pois o poeta não é um homem rico em
palavras mortas, mas em vozes vivas: “O poeta transforma, recria e purifica o idioma; e
depois o reparte” (PAZ, 1982, p. 56).
De acordo com Paz, a poesia é “a outra voz”, uma vez que, independentemente do
tema ou do poeta, todos ouviram esta outra voz como “trovão” ou “jorro de água”: sua voz é
“outra”, porque “é a voz das paixões e das visões; é de outro mundo e é deste mundo, é antiga
e é de hoje mesmo [...] Todos os poetas, nesses momentos longos ou curtos, repetidos ou
isolados, em que são realmente poetas, ouviram a voz outra. É sua e é alheia, é de ninguém e
é de todos.” (PAZ, 1993, p. 140, grifo do autor).
É possível observar uma flutuação de concepções sobre a poesia, pois em
determinados momentos ela é vista sob a perspectiva romântica e idealista, fruto da inspiração
ou disposição anímica do poeta; em outros, ela é artesanato e trabalho com a linguagem; ou
ainda, aparece ligada aos aspectos da psicanálise e do imaginário com relação ao devaneio,
sonho e imaginação. Embora “divergentes” entre si, é possível dizer que estas concepções não
se excluem, mas se somam. A poesia constitui-se por uma soma de fatores. Não se pode negar
que às construções poéticas se juntam aspectos que passam tanto pelo artefato da linguagem
quanto pelo universo imaginário. Da conciliação entre linguagem, imagem e imaginação surge
a poesia, que pode despertar determinadas emoções ou sentimentos, suscitar lembranças e
recordações, ativar a imaginação despertando sonhos e devaneios. Por meio destas
combinações, a poesia torna-se um campo fecundo para a produção de sonhos
5
e imaginação.
João Manuel Simões destaca que a poesia pode ser definida sob muitos aspectos: pode
ser “Palavra divina revelada ao homem” (Herder), “apreensão do universal através do
discurso” (Hegel), “criação tmica da beleza” (Poe), “reino da metáfora” (Proust), “palavra
essencial no tempo” (Machado), “espelho do mundo” (Croce), “alquimia verbal” (Rimbaud),
“arquitetura de signos” (Jakobson), “língua dos escolhidos” (Paz), “mistério essencial de todas
as coisas” (Lorca), “expressão do inexprimível e inexpressão do exprimível” (Barthes), etc.
(SIMÕES, 1991, p. 35). Mas, na qualidade de poeta e crítico, Simões tem formulado suas
próprias visões conceituais, mostrando que o exercício da poesia é uma atividade que concilia
elementos que pertencem ao plano simbólico da imaginação e da arquitetura verbal. A poesia
seria como uma “fábrica” que produziria, por meio das palavras e imagens, estados de alma,
sonhos e devaneios poéticos.
O poema “Le rêveur eveillé” é exemplar no que tange a conciliação da palavra e do
sonho na tessitura do poema, sobretudo pela maneira através da qual o poeta conduz a matéria
55
A palavra “sonho”, utilizada para expressar um tipo de produto da “fábrica-poesia”, não tem por objetivo
fazer uma discussão que abrange os termos da psicanálise e do inconsciente, com Freud (sonho é expressão ou
realização de um desejo reprimido) e Jung (sonho é auto-representação da situação atual do inconsciente) . A
expressão refere-se a um veículo de imaginação, que se aproxima da concepção bachelardiana, segundo a qual o
poeta seria um “sonhador de palavras”: “O devaneio de um sonhador é suficiente para fazer sonhar todo um
universo” (BACHELARD, 2001b, p. 60). O universo poético estaria ligado ao universo imaginário pela
capacidade que a poesia tem de despertar e ativar a imaginação, isto é, os sonhos e os devaneios.
do sonho e do verbo:
Máquina antiga
de fabricar
espanto: o poema.
Matéria-prima
arcaica: o verbo.
(De olhos abertos
e pulsação cardíaca
no zênite,
o maquinista
sonha).
(SIMÕES, AC, 2006, p. 47)
Na primeira estrofe, o sujeito lírico compara o poema a uma máquina antiga de
fabricar espanto, como se o poema fosse um instrumento que teria como função produzir e
despertar determinados sentimentos e emoções, ou seja, o poema seria como uma maquinaria
encantada e produtora de espanto. Na segunda estrofe, o ente poético revela a matéria-prima
arcaica desta fábrica de produzir espanto, afirmando que o verbo seria o responsável pelo
funcionamento do poema e, por meio desta matéria-prima, o poeta sonharia acordado. A
terceira estrofe faz referência a um tipo de devaneio acordado, no qual o poeta (ou maquinista
condutor da máquina) seria um sonhador de palavras e, na esfera do espaço celeste e onírico, o
poeta fabricaria a poesia reveladora e encantada. Ao sonhar, o poeta fabrica espanto, uma vez
que, para a máquina da poesia funcionar, ela precisaria de uma matéria verbal e de outra
onírica: sonho e fantasia estariam na base da construção poética mas, sem a matéria-prima
verbal, o sonho da poesia não se concretizaria. O poeta seria um sonhador que colocaria em
funcionamento a característica onírica da palavra ao transformá-la em poesia.
“Ave, poesia” é um poema que, além de exaltar a dimensão onírica da poesia, também
apresenta hipóteses sobre a forma como o poeta consegue, por meio de uma série de ações,
fazer da poesia uma forma de “sagrada liturgia” que canta o mundo e a vida:
Reinventar a cada instante
a frágil, perecível beleza
do mundo. Perpetuar na estranha
geografia onírica do poema,
as irisadas fulgurações
do humano. Congelar na argila
do verbo a essência volátil
da vida. Eternizar o efêmero,
petrificar o célere relâmpago.
Materializar o sonho, transfigurar
o real. Esses os itens eleitos
do programa perpétuo do oficiante
da tua sagrada liturgia,
ó deusa!
(SIMÕES, AC, 2006, p. 14)
Registra-se, através dos versos do poema, as etapas ou os itens necessários ao poeta
para fazer da poesia uma espécie de “deusa”, capaz de realizar missões (ou milagres) que
seriam impossíveis fora do universo poético. O poeta preside um ofício quase divino quando
executa ações como reinventar a perecível beleza do mundo, perpetuar na geografia onírica do
poema as várias fulgurações do humano, congelar no verbo a essência volátil da vida,
eternizar o efêmero ou petrificar o célere relâmpago, materializar o sonho e transfigurar o real.
A série de verbos no infinitivo tende a evidenciar que as ações do poeta, ao compor o poema,
pertencem a um plano fantástico, pois, no reino da poesia, seria possível conciliar o
inconciliável ou dizer o indizível: realizar ações humanamente impossíveis.
Ao eleger estes itens para executar seu oficio de poeta, a poesia se converteria em uma
fonte de sonho e imaginação, em um universo de magia e encanto, onde se encontraria,
materializada e impressa em palavras e imagens poéticas, a beleza do mundo, do homem e da
vida. Verbos como reinventar, transfigurar, materializar, perpetuar, eternizar, petrificar ou
congelar sugerem ações difíceis de serem executadas da perspectiva racional, tendo em vista
que a matéria a ser reinventada e eternizada não são objetos, mas sentimentos, realidade,
sonhos, fugacidade da vida, matizações do humano, enfim, aspectos que dizem respeito à
condição ontológica e imaginária do homem.
Nos últimos versos do poema, o eu poético afirma que são estes os itens eleitos do
“programa perpétuo” da sagrada liturgia lírica, deixando entrever que a poesia seria como uma
deusa que, pelas mãos do oficiante, se transformaria em uma fonte de respostas aos enigmas
existenciais, dotada de um poder transcendental que permitiria concretizar o sonho em
linguagem poética. Ao eleger os “itens certos”, o poeta realça a áurea de magia que envolve a
poesia e faz uma saudação à deusa poética, elevando e exaltando sua essência onírica.
No poema “Segundo movimento: invenção da poiesis”, constata-se mais uma
exaltação da poesia, na qual o sujeito lírico, mais do que cantá-la, tenta conceituá-la ou definir
sua inexplicável matéria onírica:
1
Nascem no teu chão, Poesia,
flores e cactos. E pedras,
quando os teus campos são sáfaros.
(Umas doces, outras ásperas)
De que se faz tua essência?
De luz, de sombra, de trevas,
de caminhos, de diásporas,
de ausência, de permanência.
Corre por tua textura
de mar, vitral e de lírio,
o vôo leve dos pássaros
na sua aérea escritura
de calígrafos alados,
misto de sonho e delírio.
2
Doce-amarga, pura-impura,
és sempre assim, Poesia:
êxtase, bênção, martírio,
tenso alambique, lagar,
mágico arcano, alquimia,
cadinho, forja, tear
(teces de noite e de dia),
retorta, usina, moenda
que mói o trigo estelar
do verbo, é bom que se entenda,
tambor, guitarra, aboé,
hóstia de assombro, pão ázimo,
monção, solstício, maré
cheia ou vazante (que importa?),
necrópole e carrossel
em perpétuo movimento,
eclusa, dique, comporta
que nunca detém o tempo.
3
Exílio, pátria, viagem
até as fontes do ser,
couraça, escudo, blindagem,
alada deusa bifronte,
és mar e barco e naufrágio,
álgebra, sintaxe, fonte
em cujas águas me afogo
ferido pelo contágio
do vírus que há no teu fogo.
4
Lira de Orfeu, doce flauta
para os concertos de Pã,
em cuja música exausta
a noite se faz manhã,
Jerusalém, Santo Gral,
canto profano e sagrado,
confiteor, miserere,
céu, purgatório, Pasárgada
(inferno nunca, isso não)
panacéia contra o tédio,
flor de lótus, flor de lis,
ladeira, abismo, ascensão,
ópio, veneno, remédio,
és caule, fruto, raiz,
és linfa, bálsamo, pão.
5
Lúdico, vago exercício,
misto de tudo e de nada,
o que és tu mais, Poesia?
És meu tempo, meu ofício,
és minha rota na estrada.
(SIMÕES, AD, 1982, p. 13-15)
Em um tom de exaltação e exortação, a voz lírica tece uma espécie de ode à poesia, na
qual não eleva suas virtudes e qualidades, mas tenta responder a tão enigmática questão “o
que é a poesia?”, falando daquilo que ela representa e do que ela é para o poeta. A lista de
definições da poesia parece ser inesgotável, uma vez que conceituar a poiesis não é uma tarefa
muito fácil, pois a poesia reúne, em sua matéria, diversos componentes.
Na primeira estrofe, o sujeito lírico afirma que, quando o chão da poesia é árido e
agreste, podem nascer flores, cactos e pedras, umas doces e outras ásperas. Esta pluralidade de
frutos aponta para a diversidade da essência poética, uma vez que a colheita dependerá da
forma como a semente foi plantada e do terreno onde foi semeada. A essência da poesia é feita
de uma matéria fugidia que não pode ser vista ou tocada: é um misto de luz e sombra,
caminhos e diásporas, ausência e permanência. A sua textura parece ainda mais indefinida,
que se assemelha ao vôo leve dos pássaros, formando um misto de sonho e delírio. Todos
estes aspectos reforçam uma dimensão transcendente da poesia, como se esta fosse um
mistério indecifrável que, embora tenha existência concreta, seria fruto de uma composição ou
operação mágica, por meio da qual o sonho (delírio ou devaneio) colocaria como normal sua
essência inorgânica e fantástica.
A segunda estrofe aparece como extensão das características indefinidas da poesia.
Porém, independentemente de ser pura ou impura, doce ou amara, a poesia surge sob o signo
da alquimia, ou seja, como usina e moenda que mói e transforma o “trigo estelar do verbo”
nesta matéria translúcida de magia. Por mais que a poesia esteja revestida de elementos
fantásticos, o sujeito poético reforça que o ingrediente verbal é essencial para que a poesia se
transforme em hóstia ou pão ázimo: em sonho e encanto.
O sujeito lírico, na terceira estrofe, confessa que a poesia é também uma forma de
chegar às fontes do ser, uma vez que ela pode exercer a função de exílio, pátria ou viagem,
pode ser couraça, escudo ou blindagem, ou ainda, mar, barco, naufrágio e fonte em que o eu
lírico (o poeta e o leitor) se afoga. A poesia parece exercer as mais variadas funções, penetra
nos labirintos secretos da existência, porque ela pode assumir muitas faces ao mesmo tempo e,
nem por isso, deixar de tocar, de maneira individual, cada ser que é contagiado pelo “vírus
que há no teu fogo”.
Segundo Lotman, a necessidade da arte assemelha-se à necessidade do saber, ou
melhor, “a própria arte é uma das formas de conhecimento da vida, uma das formas de luta da
humanidade por uma verdade que lhe é necessária” (LOTMAN, 1978, p. 27). No dizer de
Lotman, a arte seria linguagem da vida, uma manifestação que encanta: pensar o mundo sem
arte seria como viver em um mundo mudo (1978, p. 32).
Da forma como o eu lírico apresenta a grandiosidade da poesia, ela se aproxima de um
bem necessário à vida, pois adquire propriedades que ajudam o ser humano a pensar a própria
existência: um tipo de vírus para o qual não existe antídoto. O ser contaminado pela poesia
encontra-se “condenado” a viver e alimentar de sua essência, a ser um sonhador.
Na quarta estrofe, o sujeito da enunciação
6
aproxima a poesia da lira de Orfeu, o que
remete, conseqüentemente, ao poder de sedução da poesia. Segundo Chevalier & Gheerbrant,
Orfeu se destaca como o músico que, com a lira ou cítara, “apazigua os elementos
desencadeados pela tempestade, enfeitiça as plantas, os animais, os homens e os deuses.
Graças a esta magia da música, chega a obter dos deuses infernais a liberação de sua mulher
Eurídice” (2002, p. 662). A poesia apresenta-se como esta lira encantada que enfeitiça e seduz
os homens tocados pela melodia poética. Mais do que isso, ela estaria ligada ao dom encantar
com a música, alimentar a vida e iluminar o espírito, uma vez que se equipara à simbologia do
Santo Graal que, entre muitas significações, seria instrumento de revelação do mistério
eucarístico.
Todas as expressões que descrevem a poesia apontam para seu ao caráter alquímico,
divino, celeste, mágico e ascensional. Para reforçar esta idéia o sujeito lírico ressalta que a
poesia é céu, purgatório, Pasárgada
7
, mas nunca é inferno, uma vez que ela seria completa,
reunindo e conciliando em seu corpo, um “misto de tudo e de nada”. Na última estrofe, o eu
66
A expressão “sujeito da enunciação” é utilizada por Käte Hamburger para designar o conhecido “eu lírico”.
De acordo com Hamburger, a linguagem criadora de literatura que produz a poesia rica pertence ao sistema
enunciador da linguagem e isso justifica, do ponto de vista básico-estrutural, o fato de que “experimentamos um
poema de modo completamente diferente do que a literatura ficcional, narrativa ou dramática. Experimentamo-lo
como enunciado de um sujeito-de-enunciação. O muito discutido eu lírico é um sujeito de enunciação” (1986, p.
168, grifos do autor).
77
O termo “Parsárgada” faz referência ao poema de Manuel Bandeira, intitulado “Vou-me embora pra
Pasárgada”. No poema, Pasárgada representa o plano ideal, lugar imaginário em que os sonhos e fantasias seriam
possíveis. O eu lírico projeta viver em Pasárgada todos os sonhos e desejos que, na vida real, não aconteceram ou
não seriam possíveis.
poético revela que, além de tudo que ele havia descrito enquanto qualidades da poesia, ela
ainda é seu tempo, seu ofício e sua rota na estrada, o que evidencia, ainda mais, a influência
da poesia com a vida do poeta, ou a dependência que o poeta nutre em relação à poesia. Um
poema seria a conjugação de sonhos, devaneios e recordações: nele o poeta canta a vida e
congrega, à substância verbal, a força da imaginação, fazendo com que a poiesis seja um
espaço de sonho, fantasia e criação.
De acordo com Friedrich, o poeta é aquele que trabalha na explosão do mundo por
força de uma violenta fantasia que penetra o desconhecido. O trabalhador técnico e o
“trabalhador” poético são ambos ditadores e encontram-se na urdidura poética, exercendo sua
ditadura, um sobre a terra o outro sobre a alma (FRIEDRICH, 1978, p. 64).
Friedrich salienta que, desde o século XVIII, generalizou-se a aproximação entre
poesia e alquimia e, um dos aspectos que devem ser levado à sério nesta analogia é o fato de
ver no ato poético uma correspondência à operação mágica e alquímica, segundo a qual
metais inferiores seriam transformados em ouro, pela utilização de uma substância misteriosa:
“Que os poetas se remetam a esta analogia, cada vez mais e até hoje, pertence à tendência,
especificamente moderna, de situar a poesia entre os atos do intelecto e o encanto arcaico
misterioso” (FRIEDRICH, 1978, p. 92).
“Santo Graal” é um poema que expressa, por um lado, a dimensão transcendental do
poema, mas não deixa de exaltar, por outro lado, a participação do verbo nesta composição:
Each poem, an epitaph.
T. S. Eliot
Habita em cada poema
um epitáfio? Nunca,
Eliot. Cada poema
é gênese, princípio,
aurora. Dentro dele
a vida pulsa, vibra
e mais que tudo sonha
e canta. Um canto claro
tornado verbo em flor
ou (duma estranha espécie)
álgida sarça ardente
iluminando o mundo
aquém e além da morte.
Um poema, um grande poema
não é urna – é Graal.
Guarda o sangue do Verbo.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 81)
O poema inicia fazendo referência à epígrafe “Each poem, an epitaph”, de T. S. Eliot,
segundo a qual cada poema seria um epitáfio, ou seja, traria uma inscrição que marcaria desde
a sua morte. No entanto, a voz lírica se vale deste primeiro mote para reforçar justamente o
oposto: cada poema é gênese, princípio e aurora e, portanto, traz o selo da vida. O poema seria
como um reservatório de fantasia e sonho, dentro do qual a vida adquiria mais beleza e vigor.
No poema, a vida pulsa com mais intensidade e, mais que pulsar, sonha e canta, como se a
operação poética fosse promotora de alegria e encanto.
A capacidade do poema em fazer com que a vida pulse, sonhe e cante deve-se,
sobretudo, à magia do canto transformado em verbo e capaz de iluminar o mundo “aquém e
além da morte”. A magia do verbo é semelhante à magia da poesia e, juntos, eles adquirem
tamanha força que faz com que um poema seja como o “Graal”: um vaso santo que guarda a
principal matéria do poema. Simbolicamente, assim como o Graal representaria o cálice da
Santa Ceia ou o cálice que recolheu o sangue de Cristo, o poema representaria o cálice que
guarda o sangue do Verbo, ou seja, o verbo seria tão importante no poema quanto é a
representação do sangue de Cristo na celebração eucarística. Por isso, como afirma a voz
lírica, um poema não é urna, isto é, um tipo de vaso utilizado para guardar as cinzas dos
mortos ou um cadáver e nem se refere a um epitáfio, porque um poema não faz referência à
morte. Ao contrário, o poema celebra a vida e, portanto, ele é Graal: guarda a matéria que
anima o poema.
“Messe” reforça a idéia de que um poema, para atingir o valor onírico e mágico,
deveria ser composto de verbo, de símbolos e metáforas. A voz lírica faz uma espécie de
convocação aos poetas para que comecem a semear, na seara da poesia, estas sementes
necessárias à colheita dos sonhos:
É tempo de plantar. Árvores
ou flores, tanto faz. É tempo
de semear o grão: as planícies
esperam o gesto largo do semeador
lançando no útero da terra
a semente, véspera da messe.
Mas é tempo de semear também
símbolos e metáforas – trigo
para a moenda onírica da poesia.
É da sua farinha, luz em pó,
que se faz o pão que mata
a fome do poeta, lavrador
da fazenda antiqüíssima do sonho.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 43)
São versos que apontam para a necessidade de uma mudança de postura dos poetas,
uma vez que as planícies da poesia aguardam a plantação de novas sementes e esperam a
abundante colheita. Na primeira parte do poema, o eu lírico apenas sugere que é chegado o
tempo de plantar, não importando o tipo de plantação, pois a terra está preparada para receber
as sementes, ou seja, a poesia espera novos poemas e novas formas de expressão. Na segunda
parte, por sua vez, a voz lírica apresenta qual o tipo de semente que o poeta deveria lançar na
terra para a realização de uma boa messe, afirmando que é chegado o tempo de semear
símbolos e metáforas.
Neste sentido, símbolos e metáforas representariam as sementes plantadas nos trigais
da poesia e, por meio da qual o poeta efetuaria a colheita poética. A poesia aparece
simbolizada como uma grande moenda, em que o poeta, depois de plantar e colher o trigo das
metáforas e símbolos, transforma-o em farinha onírica e, conseqüentemente, em pão que mata
a fome do poeta. Nota-se, assim, que a imagem do poeta se assemelha à imagem do lavrador,
que precisa trabalhar a terra, plantar a semente e, depois de árduo trabalho, desfrutar dos
benefícios da colheita. Lavrador da fazenda dos sonhos, o poeta precisa escolher as sementes
certas e cultivar o solo da página para obter uma “messe” frutífera e para que a poesia
continue sendo uma moenda onírica e uma fábrica que produz encanto. Dependerá, portanto,
do trabalho do poeta com a semente da linguagem, a condição para que a poesia torne-se (ou
não) fabricante de sonho.
No dizer de Vygotsky (1999), a arte não é regida pela lei do menor esforço, mas, ao
contrário, consiste em um consumo tempestuoso e explosivo de forças, em um dispêndio da
psique e em uma descarga de energia
8
. A arte não pode surgir onde existe simplesmente o
sentimento vivo e intenso, uma vez que, por si só, nem o mais sincero sentimento ou o
sentimento expresso em técnica seriam capazes de criar arte: “para ambas as coisas se faz
necessário ainda o ato criador de superação desse sentimento, de sua solução, da vitória sobre
ele, e então esse ato aparece, então a arte se realiza” (VYGOTSKY, 1999, p. 314, grifos
do autor). Seria necessário, portanto, “superar criativamente” o seu próprio sentimento e
encontrar a sua catarse para que o efeito da arte se manifestasse em sua plenitude.
Vygotsky afirma que, quando a arte realiza a catarse, ela atinge um efeito social: “a
arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual
incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser” (1999, p.
315). Por isso, a arte pode funcionar como uma espécie de organização do comportamento
humano, que “leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela” (VYGOTSKY,
1999, p. 320).
88
Para Vygostsky, a base da reação estética são as emoções suscitadas pela arte e por nós vivenciadas com toda
a realidade e força, mas é na atividade da fantasia que encontram a sua descarga. Nessa unidade de sentimento e
fantasia é que se baseia qualquer arte: “sua peculiaridade imediata consiste em que, ao nos suscitar emoções
voltadas para sentimentos opostos, pelo princípio da antítese retém a expressão motora das emoções e, ao pôr
em choque impulsos contrários, destrói as emoções do conteúdo, as emoções da forma, acarretando a explosão e
a descarga da energia nervosa” (1999, p. 272). A catarse da reação estética consiste nesta transformação das
emoções, nessa autocombustão, nessa reação explosiva que impele a descarga das emoções imediatamente
suscitadas, ou seja, a cartarse consiste na “transformação desses sentimentos em sentimentos opostos”
(VYGOTSKY, 1999, p. 309).
Na perspectiva de Wordsworth, a poesia é a “imagem do homem e da natureza”, uma
vez que o poeta escreve em função de proporcionar um prazer imediato ao ser humano: a
“poesia é o alento e o refinamento de espírito de todo o conhecimento; é a expressão
apaixonada que constitui o apoio de toda a ciência” (In: LOBO, 1987, p. 179).
Para Emerson, o poeta é o “nomeador” ou “criador” da linguagem, mas, consegue
nomear e criar na medida em que se entrega à “divina aura”, falando apaixonadamente com a
expressão da alma, do espírito e da imaginação, e não apenas com o intelecto. Quando o poeta
consegue unir estas forças criativas, ele atinge a plenitude da poesia pela universalidade da
linguagem simbólica, alcançando a função de “deuses libertadores” (EMERSON. In:
CHIAMPI, 1991, p. 80).
A multiplicidade de pontos de vista a respeito da poesia e da função do poeta ora
priorizando o trabalho intelectual e formal com a linguagem, ora exaltando o poder
imaginativo que governa a criação poética apenas ressalta a complexidade da poesia e dos
enfoques teóricos que tentam defini-la ou conceituá-la. Simões (1991), por sua vez, afirma
que a poesia pode ser tudo o que disseram sobre ela, mas também é muito mais. Neste
sentido, Simões oferece ao leitor uma longa lista de definições que expressam sua percepção
sobre a poesia:
[...] fascinante jogo lúdico que o poeta joga consigo mesmo e com o
mundo; jogo de xadrez em que as pedras foram colhidas nos garimpos do
léxico; prestidigitação, sortilégio, ofício mágico de saltimbancos
existenciais; retorta, usina, moenda onde se mói o trigo sarraceno do
espanto; lenta peregrinação pelos labirintos onde se perdem – e reencontram
os significados das coisas; ato litúrgico, rito em que a palavra é hóstia,
transubstanciando o mundo (e o homem) em quintessência verbalizada;
tecnologia verbal do indizível [...] cristalografia em flor do silêncio volátil;
estuário dos rios e dos arroios do canto primordial; caligrafia do inefável,
solitude habitada; confissão, ficção, conficção; céu, purgatório, Pasárgada
inferno nunca, isso não: “de profundis”, “miserere”, “Kyrie”. “Gloria in
excelsis” (SIMÕES, 1991, p. 36).
Os poemas de João Manuel Simões traduzem (e consubstanciam), em sua textualidade,
uma visão axiológica positiva da poesia. Definições como estas, citadas acima, aparecem com
freqüência nos versos de seus poemas, demonstrando uma profunda identificação com a
poesia, que pode ser definida, simultaneamente, enquanto ato litúrgico com a matéria verbal e
ofício mágico com a imaginação. Na poesia, a palavra e o sonho são complementares e,
juntos, formam a essência do lírico, pois o caráter elevado, mágico e celeste (ou sagrado) da
poesia torna-se visível e possível no plano da alquimia verbal e das imagens poéticas.
“Limiar” é um poema que deixa transparecer a relação do sonho com a poesia, em uma
trama simbólica capaz de ativar a imaginação:
Usina de esperanças e tear
de sonhos, a poesia.
Se não for simples forma de fazer
da noite de luar
o dia
a amanhecer.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 48)
Vale ressaltar, de antemão, que a forma sintética do poema e o recurso de imagens
poéticas como usina, tear, noite de luar e dia a amanhecer, além de proporcionar, em poucas
palavras, o máximo de sentido, exigem uma exegese mais apurada, uma vez que aumentam o
campo simbólico e significativo do poema. Ao comparar a poesia à usina de esperanças e tear
de sonhos, o sujeito poético estaria atentando para a característica metafísica e transcendental
da poesia, porque ela não pertenceria simplesmente a uma forma de manifestação da
linguagem artística, mas estaria relacionada ao plano fantástico e imaginário, sobretudo,
porque se constituiria de uma matéria onírica capaz de alentar e enlevar os desejos da
humanidade (ou daqueles tocados pela magia dos versos poéticos). Por sua capacidade de
despertar sonhos, a poesia passa a ser dotada de qualidade sublime e de poder quase
sobrenatural, capaz de modular (ou moldar) os sentimentos mais íntimos e secretos.
Mas, o sujeito lírico também chama a atenção ao fato de que a poesia pode ser uma
“simples forma de fazer/ da noite de luar/ o dia/ a amanhecer”. Nesta proposição, é possível
destacar que a poesia representaria, mais do que fonte de esperança e sonho, uma forma
singela de encantar a vida e o mundo, pois, com sua luz, iluminaria as trevas, tornando-se
fonte de vida, limiar da alvorada e romper da aurora. A urdidura poética seria composta por
fios de luz e raios solares, capazes de incendiar e aquecer a esperança e os sonhos.
O poeta é, segundo Bachelard, um “sonhador de palavras” e, na trama poética, deixa
subjacente um mundo de encanto e magia, em que o poema significaria um claro invento e a
poesia um fio condutor das imagens e da imaginação. Por isso, a poesia é força capaz de dar
sentido a vida e clarificar a própria história; ela inunda de sonhos a alma do poeta e do leitor e
ainda possibilita o encontro do homem consigo mesmo, por meio deste sonho acordado e da
imaginação.
Pela forma como João Manuel Simões concebe a poesia como uma espécie de fábrica
dos sonhos, pelo emprego de expressões que ressaltam seu caráter sublime e “sacro”, pela
elevação da palavra e da imagem na composição lírica e pelo reconhecimento da imaginação
como elemento participante do ato criador, sua poesia encontra-se repleta de associações entre
o universo poético e imaginário. Destaca-se, além disso, que Simões atribui à poesia a virtude
de uma inaudível ânsia de infinito e eternidade, bem como a competência de elevação do
pensamento, ao cantar, exaltar e compartilhar, com o leitor, que a poesia é como a vida: feita
de sonho e imaginação.
CAPÍTULO II
IMAGENS POÉTICAS: PÁSSAROS, ESPELHOS E TEMPO
Como prender na imagem/ a dança e o vôo,/ a cada instante
mutáveis?
(Helena Kolody. In: CRUZ, 2001, p. 29)
Cassirer (1972) sublinhou apropriadamente que, antes de ser um animal rationale, o
homem é um animal symbolicum, pois a razão é um termo “pouco adequado” para abranger
todas as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. São vários os fios
que compõem a rede simbólica da experiência humana, uma vez que o homem tem se
envolvido de tal maneira em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos
que “não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela interposição desse meio artificial
[...] Vive antes no meio de emoções imaginárias, entre esperanças e temores, ilusões e
desilusões, em seus sonhos e fantasias” (CASSIRER, 1972, p. 50). Sendo assim, o autor
afirma que, lado a lado com a linguagem conceitual a linguagem emocional, como
também, lado a lado com a linguagem lógica ou científica a linguagem da imaginação
poética, pois, em primeiro lugar, a linguagem não expressa pensamentos nem idéias, mas
sentimentos e afeições (CASSIRER, 1972, p. 51).
Conforme esclarece Gilbert Durand (1995b), o símbolo constitui o dado primordial da
consciência humana; ele é dotado de um poder equilibrante, uma vez que lastreia a libido com
um “sentido” e carrega a consciência com uma energia que lhe permite um constante “salto
para frente”. Este estatuto equilibrante faz reconhecer no símbolo o que o matemático René
Thom abordou como o encontro necessário de dois modos exclusivos de identidade: a
identidade do simbolizante, que localiza e “encarna” o sentido e também a identidade do
simbolizado, que transcende todos os limites locais” (DURAND, 1995b, p. 37).
Para Alleau, um mbolo não significa, ele simplesmente “evoca e focaliza, reúne e
concentra, de forma analogicamente polivalente, uma multiplicidade de sentidos que não se
reduzem a um único significado, nem apenas a alguns” (ALLEAU, 1976, p. 11). A palavra
velada do símbolo pode ajudar a evitar o equívoco de atribuir um sentido definitivo e último
às coisas e aos seres, uma vez que os símbolos não significam algo de predeterminado para
alguém. Conforme esclarece Alleau, o símbolo é, simultaneamente, centro de acumulação e
de concentração das imagens e das suas ‘cargas’ afectivas e emocionais, um vector de
orientação analógica da intuição, um campo de magnetização das semelhanças” (ALLEAU,
1976, p. 57, grifos do autor).
Durand salienta que, com o Simbolismo, a imagem icônica poética ganha o título de
“símbolo” e a obra de arte liberta-se, aos poucos, dos serviços antes prestados à religião e à
política, fazendo com que a reabilitação do imaginário no espaço da ciência estivesse ligada
ao trabalho de poetas e filósofos ou poetas-filósofos (DURAND, 2004, p. 29).
A vasta corrente literária em que o imaginário se expande e ao mesmo tempo se
reinveste reflexivamente na corrente antagônica tem o mesmo sinal, pois houve uma
avalanche de imagens que acompanha a revolução técnica do mundo moderno, exercendo um
paradoxo dialético. Com o aperfeiçoamento das artes gráficas há, no século XIX, a difusão do
livro, folhetim e o apogeu do romance. Ocorrem, também, os meios mecânicos de gravação da
voz e do som, os meios de reprodução da imagem, a fotografia, o cinema, enfim, um
gigantesco e imperialista meio de divulgação das imagens faladas e visuais representado pelo
rádio e televisão (DURAND, 1995b, p. 31).
Os meios de comunicação social permitiram a irrupção triunfante do imaginário na
sociedade contemporânea e, assim, anunciam o “retorno de Dionísio”
1
, ou seja, a retomada da
imagem, do símbolo, do imaginário e da imaginação na cena da modernidade. Segundo
Maffesoli, a função essencial que se pode atribuir à imagem é a que conduz ao sagrado, como
se existisse uma “fé sem dogma” ou antes, uma série de “fés sem dogma” que expressassem o
reencantamento do mundo (1995, p. 107).
A imagem, afirma Maffesoli, convida a um eterno presente, porém, este
“presenteísmo” não despreza a temporalidade, apenas enfatiza um tempo intemporal, que
pode ser entendido como um tempo que é tanto hoje como ontem o tempo do mito.
Maffesoli destaca que este tempo do mito, como bem formulou Gilbert Durand, é um tempo
“portador de imagens”; ele não demonstra, mas se contenta em mostrar: “o mito, ao mostrar,
favorece o estar-junto, o sentir comum” (MAFFESOLI, 1995, p. 113).
A imagem que serve de suporte ao tempo do mito religa as pessoas entre si e religa o
tempo imemorial em sua atualidade. Esta ênfase colocada no mito permite lembrar que a
imagem que lhe serve de base é um elemento essencial em toda estrutura social:
[...] a imagem não é simplesmente um suplemento da alma, dispensável,
algo na melhor das hipóteses superficial, na pior, primitivo ou anacrônico,
mas, ao contrário, ela está no próprio âmago da criação, ela é
verdadeiramente uma “forma formante”, certamente do indivíduo: a imagem
de si, mas igualmente de todo o conjunto social que se estrutura graças e
pelas imagens que se dá, e que deve rememorar regularmente
(MAFFESOLI, 1995. p. 115).
1 Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, o simbolismo de Dionísio se estende a uma pluralidade de
significados, pois ele é o jovem deus, ou o deus nascido duas vezes. Representa a fecundidade humana e animal;
é o deus das catarses e da exuberância; libertador dos Infernos e, do ponto de vista da psicanálise, simboliza a
ruptura das inibições, das repressões e dos recalques. É uma figura que se opõe à sábia face apolínea; simboliza
as forças obscuras que surgem do inconsciente: “Ele é o deus das formas inumeráveis, o criador-mor de ilusões, o
autor de milagres” (2002, p. 340-341).
Pode-se dizer que a imagem fornece os vínculos e relaciona todos os elementos do
dado mundano entre si. Por outro lado, ela permite essa “confiança” que, para existir, deve-se
ter diante daquilo que nos cerca, quer seja o ambiente social quer seja o natural. Assim,
Maffesoli afirma que “o imaginário, as imagens, o símbolo suscitam essa confiança mínima,
que permite o reconhecimento de si a partir do reconhecimento do outro”, independente de
qual seja este estatuto do “outro” (1995, p. 115).
De acordo com Lezama Lima (1996), depois que a poesia e o poema formaram um
corpo e um ente, armado da metáfora e da imagem, e formado a imagem, o símbolo e o ritmo,
percebe-se que integrou uma das mais poderosas redes que o homem possui para capturar o
fugaz e as vicissitudes do ser humano. Por meio das imagens pode-se traçar as proporções,
ocupações e desigualdades do ser no ente: “As imagens como interposições nascendo da
distância entre as coisas. A distância entre as pessoas e as coisas cria outra dimensão, uma
espécie de não ser, a imagem, que alcança a visão ou unidade dessas interposições” (LIMA,
1996, p. 148). Isso se deve ao fato da existência de uma rede de imagens no poema, cuja
derivação, cria uma substância poética capaz de conciliar realidades aparentemente
contraditórias.
Para Sartre (1964), a imagem não é posta diante da consciência como um objeto novo
a se conhecer, mas possui a propriedade de poder motivar as ações da alma e os movimentos
do cérebro a partir do momento que despertam idéias na alma. Esta capacidade que as
imagens tem de despertar idéias e sentimentos faz com que elas estejam relacionadas ao
fenômeno da imaginação (1964, p. 11). No entanto, imagem e idéia são acontecimentos
diferentes e não podem ser confundidos, pois, como explica Sartre, a diferença entre uma e
outra é vista enquanto a de que em um caso a expressão do objeto é clara e, em outro, é
confusa: “entre imagem e idéia uma diferença matemática: a imagem tem a opacidade do
infinito; a idéia, a clareza da quantidade finita e analisável. Ambas são expressivas”
(SARTRE, 1964, p. 14).
Alfredo Bosi, por sua vez, destaca que a imagem, além de ser palavra articulada, é
anterior à palavra, constituindo-se um elemento da sensação visual, uma vez que é pelo olho
que o ser humano tem as formas dos elementos da natureza, do perfil, da dimensão, da cor. A
imagem “é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a
realidade do objeto em si e a sua existência em nós” (2000, p. 19). As imagens podem, ainda,
ser retidas na memória e na percepção e depois suscitadas pela reminiscência, pelo sonho ou
imaginação. A imagem amada ou temida, afirma Bosi, tende a perpetuar-se sem sofrer
deformações no tempo. Mesmo as imagens mais fugidias e vaporosas podem ser objeto de
retenção e de evocação; elas terão sempre o mínimo que seja de coesão para que possam
subsistir na mente e no imaginário.
A imagem pode ser estudada pela própria imagem e, neste sentido, a força capaz de
“modelar imagens” passa tanto pela fantasia quanto pela imaginação. Tanto uma quanto a
outra lidam com experiências que se encontram retidas na memória e que aparecem como
uma faculdade poética basilar. Conforme argumenta Bosi, as imagens, vindas da experiência e
guardadas pela memória, podem dilatar-se, organizando e produzindo conjuntos, com a
“articulação dos significantes” (BOSI, 2000, p. 242).
Em Seis propostas para o próximo milênio, Calvino destaca que a visibilidade é um
processo criativo, uma vez que, na criação literária, o autor tanto pode partir da palavra para
chegar à imagem visiva quanto partir da imagem visiva para chegar à expressão verbal (1990,
p. 99). O primeiro caso ocorre normalmente quando, ao ler um texto, vê-se a cena como se
esta se desenrolasse diante dos olhos ela é “vista mentalmente” pela imaginação do leitor.
No segundo tipo, a imagem torna-se expressão verbal a partir do momento que o autor
desenvolve a história partindo da imagem colocada no início do texto. É como se à busca de
um equivalente da imagem visual se sucedesse o desenvolvimento coerente da impostação
estilística inicial, até que, aos poucos, a escrita fosse conduzindo a narrativa na direção em
que a expressão verbal flui com mais felicidade, não restando outra saída à imaginação visual
senão seguir atrás (CALVINO, 1990, p. 105). O objetivo de Calvino nesta proposta de
“visibilidade” é unificar a geração espontânea das imagens e a intencionalidade do
pensamento discursivo, pois, mesmo quando o impulso inicial parte da imaginação visiva,
cedo ou tarde, ela cai nas malhas da expressão verbal (1990, p. 106).
Na perspectiva de Octavio Paz, o vocábulo “imagem” possui um valor psicológico,
uma vez que “as imagens são produtos imaginários”. Por imagem entende-se “toda forma
verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que unidas compõem um poema” (PAZ,
1996, p. 37). Cada imagem (ou cada poema composto de imagens) contém muitos
significados díspares ou conciliatórios, pois, a “imagem é cifra da condição humana” (PAZ,
1996, p. 38). A imagem desafia o princípio da contradição ao enunciar a identidade dos
contrários. Isso porque a realidade poética da imagem não pode aspirar à verdade, uma vez
que o poema “não diz o que é e sim o que poderia ser” (PAZ, 1996, p. 38).
A imagem, escreve Paz, é uma frase em que a pluralidade de significados não
desaparece: ela “recolhe e exalta todos os valores das palavras, sem excluir os significados
primários e secundários” (1996, p. 45). Paz salienta, ainda, que a imagem não é nem um
contra-senso nem um sem-sentido; sua unidade tem sentido em diversos níveis. Em primeiro
lugar, as imagens possuem autenticidade, pois elas são a expressão genuína do poeta, sua
visão e experiência do mundo. Em segundo lugar, essas imagens constituem uma realidade
objetiva – são obras e possuem realidade e consistência.
De acordo com Paz, as imagens possuem sua própria lógica e esta pretensão das
imagens cria uma certa ambigüidade, que não é diferente da realidade, tal qual a apreende no
momento da percepção. É por obra da imagem que se produz a instantânea reconciliação entre
o nome e o objeto, entre a representação e a realidade. No entanto, esta conciliação seria
impossível se o poeta não usasse a linguagem e, por meio da imagem, não recuperasse a sua
riqueza original. Esta volta à pluralidade de significado é apenas o primeiro ato da operação
poética:
Toda frase possui uma referência a outra, é suscetível de ser explicada por
outra. Graças à mobilidade dos signos, as palavras podem ser explicadas
pelas palavras. [...] Toda frase quer dizer algo que pode ser dito ou
explicado por outra frase. Em conseqüência, o sentido ou significado é um
querer dizer. Ou seja: um dizer que pode dizer-se de outra maneira. O
sentido da imagem, pelo contrário, é a própria imagem: não se pode dizer
com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela,
pode dizer o que quer dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um
poema não tem mais sentido que as suas imagens (PAZ, 1996, p. 47, grifos
do autor).
E, sendo assim, a imagem é seu sentido, pois nela acaba e nela começa. O sentido do
poema é o próprio poema. Ao contrário das palavras, que podem ser substituídas por outras
para dizer a mesma coisa sem tanto prejuízo de sentido, as imagens não podem, pois a
imagem faz com que as palavras percam a sua mobilidade e intermutabilidade, fazendo com
que os vocábulos se tornem “insubstituíveis, irreparáveis”. Com isso, a linguagem deixa de
ser utensílio e retorna à sua natureza original. A linguagem, tocada pela poesia, cessa
imediatamente de ser linguagem para tornar-se imagem: “Nascido da palavra, o poema
desemboca em algo que a transpassa” (PAZ, 1996, p. 48).
A linguagem poética constitui atividade geradora de texto simbólico porque, devido às
imagens criadas, as significações expressas pelo poema se multiplicam fazendo com que a
poesia seja apreciada por seu caráter transcendente. A criação de uma poesia imagética
propicia uma experiência sensorial e visual; suprimindo a necessidade do objeto concreto. O
emprego das imagens no poema faz com que o objeto esteja presente sem realmente estar.
Além disso, faz com que o leitor ative sua imaginação e se lance em uma viagem de sonho e
imaginação.
Na poética de João Manuel Simões, observa-se uma constelação de imagens que
ganham sentido e coerência na medida em que o poeta se vale delas para expressar uma
experiência singular de criação poética. A recorrência às imagens do pássaro como símbolo da
liberdade de criação poética; da passagem temporal simbolizada ora pelo envelhecimento ora
pelo relógio ou por outras marcas do tempo; do espelho enquanto instrumento que reflete o
próprio ser, a condição existencial e o outro que coabita o ente, revelando seu outro eu (seu
duplo), são alguns exemplos de como Simões constrói uma poética de imagens na qual fica
evidente uma forte relação com o universo imaginário dos símbolos e mitos.
A constante utilização de imagens poéticas na composição dos poemas sugere que a
imaginação é o elemento basilar da criação poética de João Manuel Simões. Ao elaborar uma
poiesis alicerçada em uma rede de imagens, ele realiza um fazer poético que remete à
condição humana, dando ênfase às construções poéticas a partir de elementos que apontam
para uma poesia edificada de fantasia, sonho e imaginação. Nota-se, contudo, que Simões
permanece fiel às imagens, numa tentativa de (re)inventar o verbo e, ao mesmo tempo,
transcender as palavras, aproveitando o silêncio e as imagens para reforçar o sentido do
poema e exaltar a poesia, elevando-a à dimensão mágica que faz soar o sopro da vida e o
cântico da beleza de existir.
2.1 DEVANEIO AÉREO E O FANTÁSTICO CANTO DOS PÁSSAROS
De acordo com Bachelard (2001a), o valor de uma imagem se mede pela extensão de
sua auréola imaginativa, e não o inverso, pois é graças ao imaginário que a imaginação torna-
se aberta e evasiva, fazendo com que as imagens adquiram mobilidade e possam ativar a
imaginação. Assim, o caráter fundamental de constituição das imagens é sua mobilidade, ou
seja, esta capacidade de modificação e facilidade de mover-se.
A imaginação é um tipo especial de “mobilidade espiritual, o tipo de mobilidade
espiritual maior, mais viva, mais vivaz” (BACHELARD, 2001a, p. 2). Ela adquire vida e
fertilidade imaginativa e criativa pelo poder de deslocamento e movimentação. Segundo
Bachelard, esta capacidade de deslocamento das imagens é facilmente identificada na
imaginação literária, mais precisamente, na poesia. A imaginação possui um papel de sedução,
pois através dela, o leitor abandona-se ao ato de imaginar, ausentando-se e lançando-se a uma
viagem em busca de imagens novas.
Neste sentido, a viagem imaginária promovida pela mobilidade das imagens poéticas,
diz respeito ao psiquismo aéreo que projeta o ser no infinito imaginativo. No reino do
imaginário, a imaginação é uma das formas da audácia humana e do dinamismo renovador. A
sublimação aérea é uma sublimação discursiva cujos graus são mais regulares. Ela se prolonga
por uma sublimação dialética, como se o ser voante ultrapassasse a própria atmosfera em que
voa (BACHELARD, 2001a, p. 8).
No dizer de Bachelard, o sonho de vôo se converteu em um dos símbolos mais claros
que simboliza os desejos voluptuosos: “O sonho de vôo é o sonho de um sedutor fascinante”
(2001a, p. 21). O sonho de vôo possui um caráter vetorial, não tanto por seu movimento
imaginado quanto por seu caráter substancial íntimo. Ele se submete à dialética da leveza e do
peso, recebendo duas espécies diferentes de vôo: o leve e o pesado. E é em torno desses dois
caracteres que se acumulam todas as dialéticas da alegria e dor, da exaltação e fadiga, da
atividade e passividade, da esperança e desalento, do bem e do mal (2001a, p. 22).
Essa experiência onírica do sonho de vôo pode deixar marcas profundas na vida
acordada, sendo muito comum o devaneio acordado, em que o sonho de vôo aparece sob a
representação das imagens visuais. Porém, o sonho mais profundo é essencialmente um
fenômeno do repouso óptico e do repouso verbal e, neste sentido, a noite e o silêncio são os
dois grandes guardiões do sono, pois, para dormir, é preciso não falar mais nem ver mais.
Assim, qualquer adjunção, por mais natural que pareça, sujeita-se a ocultar a realidade onírica,
arrisca-se a desviar a vida onírica profunda. Diante do sonho de vôo essa realidade onírica
tão nítida é preciso defender-se contra a ingerência das imagens visuais e aproximar-se da
experiência essencial (BACHELARD, 2001a, p. 27).
A expressão “vôo” é uma palavra que fala aos sentidos e ativa a imaginação dinâmica.
Na imaginação humana, o vôo é uma transcendência da grandeza, é um “buquê de flores do
céu” (BACHELARD, 2001a, p. 64). pela imaginação dinâmica, as imagens criam asas
atingindo o sonho onírico da imaginação aérea. A poética do vôo aparece associada à imagem
do pássaro por sua capacidade de voar. Bachelard afirma que “invejamos a sorte do pássaro”,
emprestando asas àquela que amamos, porque sentimos por instinto que, na esfera da
felicidade, nossos corpos gozarão da faculdade de atravessar o espaço como o pássaro
atravessa o ar” (2001a, p. 68). A força da asa consiste em seu poder de elevação e condução às
alturas e ao espaço divino.
A imaginação do vôo evoca o céu; o pássaro impressão de leveza, felicidade e
juventude, ele une pureza do ar ao movimento alado porque o vôo é onírico e se anima em
uma alma sonhadora: “vôo onírico é um fenômeno da felicidade dormente, desprovido de
tragédia. Só voamos em sonho quando somos felizes” (BACHELARD, 2001a, p. 70, grifo do
autor). Nas palavras de Bachelard, o pássaro é uma força ascensional que desperta a natureza
inteira; uma identificação onírica entre a imagem do pássaro e a força íntima do vôo pela
pureza criadora do ar.
Frente ao “vôo aéreo” e “liberdade do pássaro”, Simões tece uma série de poemas,
cujo pássaro constitui a imagem fundamental e significativa. Na poesia simoniana, o pássaro é
um elemento de acesso ao divino, como também, de criação poética. E, muitas vezes, o
pássaro é comparado à poesia, por apresentar características semelhantes no que diz respeito à
sua força dinâmica de elevação às alturas e ao sonho.
No poema “Pássaro luminoso, sempre”, esta relação entre o pássaro e a poesia é
sugerida pela forma como o sujeito poético aproxima o vôo do pássaro ao vôo da poesia,
deixando claro sua dimensão luminosa e transcendente:
O pássaro da poesia,
mesmo voando de noite,
voa de dia.
(SIMÕES, IB, 1982, p. 59).
O caráter luminoso da poesia faz com que ela vença a noite da inanidade, a pátria da
escuridão e das trevas, sobressaindo-se por seu vôo diurno que vence o peso terrestre até
atingir a leveza celeste. É impossível para o pássaro da poesia se prender a qualquer noite ou
trevas, porque sua essência parece ser límpida como o dia. Seu vôo aéreo ultrapassa as névoas
da falta de expressão tornando-se radiante, “sempre”.
O poema “O limiar do pássaro” expressa de forma singela a imagem de uma
poesia/pássaro, cuja formação é semelhante a um vôo sobre o céu da página deserta:
Vôo
à espera
do pássaro
que o cumpra.
Essa a poesia,
antes de ser poema
desatado no céu alvinitente
da página deserta.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 62).
Há, no texto, a aproximação entre a poesia e o pássaro, no sentido de que o processo
de construção poética é um contínuo alçar vôo em busca da sublimação aérea ou divina para o
espaço do poema. Em termos de imagem poética, a idéia que se tem é a de uma poesia que
voa ou percorre o céu do poema em busca de encontrar um lugar para pousar e, assim,
cumprir seu ciclo de liberdade e fazer a passagem que a leva a ser poema expresso no limiar
do céu da página. Voar e pousar: estas as duas etapas que o pássaro e a poesia fazem.
Enquanto o pássaro não cessa sua atividade; a poesia, por outro lado, encontra repouso na
página deserta, mas, nem por isso, cessa de voar, pois, em sua essência, a poesia possui a
capacidade de despertar a imaginação, de fazer com que, também o leitor, coloque-se em
movimento aéreo. E, neste sentido, ocorre um vôo etéreo e eterno: da poesia em busca do
poema e do pássaro em busca do vôo.
O simbolismo do pássaro é rico de sentidos, uma vez que o vôo que ele representa
aponta para várias pulsões vitais, que remetem para o fenômeno da transformação. Ele deixa
entrever uma ponte de contato entre o céu e a terra e, por isso, é símbolo da força
sublimadora; aparece como um símbolo de transcendência, indicando um caráter “luminoso,
numinoso” (CENTENO, 19_, p. 57).
A imagem do pássaro é uma constante na lírica de Simões; sua imagem aparece
associada à imagem do levantar vôo da alma, da inspiração, da nostalgia e da aspiração a um
além que ultrapasse o próprio eu. Por isso, como explica Centeno, o pássaro pode tornar-se,
depois de muitas aventuras e sofrimentos, “um diamante indestrutível e irradiante, uma ‘pedra
filosofal’, um ‘filho divino’” (CENTENO, 19_, p. 54).
No poema de número “54”, o eu lírico faz uma espécie de comparação entre poema,
poesia e poeta com o pássaro e seu vôo, o que sugere que as construções do imaginário e as
construções poéticas entram em sintonia quando diante da imagem do pássaro:
Pássaro inquieto,
o poema.
Vôo inconsútil,
livre,
a poesia.
Passarinheiro,
o poeta.
(Em torno, o círculo
exato do silêncio,
o sono cataléptico
das coisas.)
(SIMÕES, FM, 1993, p. 55)
Os versos do poema registram a imagem de um poeta que é visto enquanto
“passarinheiro”, ou seja, um criador, caçador ou vendedor de pássaros. O poeta é um produtor
de ssaros, que o poema é um “pássaro inquieto”; um pássaro ansioso por iniciar seu vôo
“inconsútil” e atingir as alturas da poesia.
O “pássaro inquieto” (poema) quer ser poesia, uma vez que esta é o fim último do
poema. Quando atinge o estágio de poesia, o poema se realiza enquanto pássaro, pois pode
lançar seu vôo livre e completo, sem nenhuma barreira, sem nenhum impedimento e, assim,
vencer o silêncio e o “sono cataléptico das coisas”. O poeta tenta desvendar os segredos da
poesia por meio de sua experiência poética. Em seu oficio de “passarinheiro”, ele consegue
fazer do poema um pássaro alado que atende pelo nome de poesia e que tem por função a
liberdade do vôo dos pássaros, porque percorre pátrias e mundos, universos imaginários e
oníricos. E, neste sentido, a poesia é imagem transcendental, feita de matérias fantásticas que
despertam a imaginação do poeta e do leitor.
No poema “37”, a voz lírica tenta encontrar uma explicação para o constante emprego
da imagem do pássaro enquanto símbolo para a poesia:
Não procuro nos pássaros
em trânsito
a forma informe, as penas, os remígios,
o bico quase adunco,
passageiro.
Nem sequer busco aquele canto grave
que encanta o mundo
enquanto o mundo rola.
Quero achar neles simplesmente a calma,
a pura essência alada,
o claro vôo.
Ele me basta pelo simples fato
de ser como a poesia, esse pulsar
do coração do poema.
(SIMÕES, FM, 1993, p. 38)
São versos de beleza e simplicidade, feitos, justamente, neste tom de calma que o
sujeito lírico tenta achar no “claro vôo” dos pássaros. A declaração do eu lírico é comovente,
pois o pássaro é o elemento exemplar que o poeta tem em mente para tecer seu poema com as
mesmas qualidades do pássaro, sobretudo, com relação à “pura essência alada”. Esta é uma
das causas que leva o eu lírico a buscar o pássaro enquanto símbolo para representar a poesia,
pois seu vôo é como o vôo da poesia – este pássaro alado que encanta o poeta e o mundo, que
sobrevive no tempo como pulsação vital e encanto da alma.
De acordo com a “explicação” do eu lírico, a imagem do pássaro é fonte inesgotável de
relação com a poesia. Seria possível recorrer a imagem do pássaro em seus outros atributos,
como a forma, as penas, o canto, no entanto, conforme afirma o sujeito lírico do poema,
somente basta a imagem do claro vôo, pois ela é suficiente para expressar a grandeza da
poesia: sua essência volátil.
Embora o sujeito lírico declare que neste momento não busca no pássaro nem sequer
“aquele canto grave que encanta o mundo”, mas apenas o vôo; em outros momentos, o canto
do pássaro é exaltado de forma enfática como sendo uma possibilidade de revelação. Em
“Pássaro de Fogo”, o eu lírico afirma que o canto do pássaro é também discurso:
Vinha na aurora um pássaro de fogo
para brincar nas platibandas. Vinha,
e o seu canto-discurso demagogo
parecia conter (melhor, continha)
um pouco das lições do pedagogo
e o timbre musical de ladainha,
tão parecendo brinco, invento, jogo
que só de pressenti-lo se adivinha.
Era um pássaro ígneo, de açafrão,
e voava tranqüilo, rente ao solo,
flor viva entre o silêncio e a solidão.
Porém seu canto, sem malícia ou dolo,
era o gume sonoro de um punhal
aceso na manhã, luz e cristal.
(SIMÕES, AV, 2002, p. 72).
O canto deste “pássaro ígneo” é um tipo de linguagem que revela um conhecimento
espiritual. Por ser um pássaro de fogo, ele pode estar relacionado ao mito da Fênix
2
, o que
explica, de certa forma, este poder de transcendência que faz do canto um “punhal aceso na
manhã, luz e cristal”. A morte e o renascimento da Fênix simboliza a transformação que a
alma aspira, e faz do pássaro um símbolo de sabedoria, pois ele possui algo de “humano” que,
no caso, seria a voz ou a linguagem que utiliza para ecoar seu canto-discurso.
O canto do pássaro, no texto, possui uma aura de revelação, pois aparece ligado às
imagens de luminosidade, limpidez cristalina e à força cortante (e sonora) do punhal aceso na
manhã. Este pássaro de cor vermelho-fogo e amarelo-açafrão instaura um canto que
contém lições pedagógicas e o “pedido” das ladainhas. Além disso, a imagem de um pássaro
de açafrão também remete à imagem de um pássaro da sabedoria, uma vez que o açafrão, por
sua cor brilhante, cor de ouro, tem relação com a sabedoria, além de ser a cor das vestimentas
dos monges budistas, conforme explica Chevalier & Gheerbrant (2002, p. 10). Porém, ao
mesmo tempo, o canto também é uma espécie de invento ou jogo que, só de pressenti-lo, já se
advinha o ensinamento que ele expressa e ressoa neste sujeito que ouve o canto do pássaro de
fogo.
O canto do pássaro não se expressa apenas enquanto ensinamento pedagógico, ele
também se fundamenta na dialética alegria e tristeza, memória e nostalgia, tal como ocorre
nos versos do soneto “Memória”:
Na árvore frondosa da memória
há pássaros cantando. Cantos tristes,
cantos alegres, cantos simplesmente
2 Um pássaro tico que, segundo Chevalier & Gheerbrant, é de um esplendor sem igual, dotado de uma
extraordinária longevidade, e que tem o poder, depois de se consumir em uma fogueira, de renascer de suas
cinzas. Os taoístas designam a fênix com o nome de “pássaro de zarcão, sendo o zarcão o sulfeto vermelho de
mercúrio: “A fênix corresponde, além disso, como emblema, ao sul, ao verão, ao fogo, à cor vermelha. Seu
simbolismo se relaciona também com o Sol, a vida e a imortalidade” (2002, p.422).
cantos. Mas há também negras ausências
de cantos entre os ramos ressequidos
da antiqüíssima árvore, memória!
E o conjunto dos cantos faz um Canto
imenso que ressoa nas abóbadas
do cérebro onde a árvore se esconde
e em cujos ramos longos breves pássaros
construíram seus ninhos e modulam
o seu canto nostálgico e feliz
e simultaneamente amargo e triste.
Quem cortará a árvore, ó memória?
(SIMÕES, SI, 1981, p. 45)
A memória é vista como um atributo que constitui o ser humano, podendo ser evocada
em sua função de guardar conteúdos e experiências existenciais, crenças e saberes humanos,
enfim, recordações felizes ou tristes. A referência a uma frondosa árvore da memória revela
uma experiência rica de recordações, uma vez que muitas reminiscências guardadas nos
ramos longos da memória. No entanto, o sujeito lírico acrescenta que esta frondosa árvore da
memória é habitada por pássaros que cantam cantos tristes e alegres ou simplesmente cantos,
o que aponta para um universo imaginário em que o pássaro assume uma função diferenciada
de ser fonte de secretos devaneios ou recordações.
O conjunto dos cantos constrói um imenso canto que parece se expandir no cérebro do
ser que o ouve. O pássaro apresenta-se como um ser místico, capaz de adentrar o pensamento
e fazer ressurgir as experiências de vida do sujeito, desde as mais felizes e nostálgicas às mais
amargas e tristes. A exuberância do canto é como um despertar da alma, faz acender a
centelha da memória e devolver luz aos ramos ressequidos da antiga árvore onde havia
“negras ausências de cantos”. A construção dos ninhos, nos ramos longos da árvore, é um
sinal de que os pássaros continuarão habitando a memória e, enquanto houver pássaros
cantando, sua memória será preservada do esquecimento. Assim, é como se ninguém pudesse
cortar a árvore da memória sob pena de cair no desalento de não ter mais lembranças.
A imagem de uma árvore que serve de morada ou simplesmente base de pouso para o
pássaro também aparece no poema “21”, do livro Flauta Mágica, em que o eu lírico afirma:
O pássaro descansa
sobre um ramo
da árvore da alma.
Como foi longo e largo
seu vôo desde o fim do mundo!
Agora, docemente, canta
na noite calma
em que aos poucos me afundo.
(SIMÕES, FM, 1993, p. 22)
Na árvore da alma, o pássaro descansa de sua longa jornada desde o fim do mundo.
Sua missão, desde então, foi de levar canto e ser instrumento ascensional de libertação e de
elevação. Enquanto descansa no ramo desta árvore, ele canta, docemente, na noite calma.
Porém, é nesta mesma noite que o sujeito lírico afirma se “afundar”, como uma forma de
ingressar nesta calmaria que o canto do pássaro faz ecoar. O pássaro é tomado,
freqüentemente, como símbolo de vida e, seu canto, é uma maneira de expressar esta vida e
torná-la mais encantada.
A admiração pelos pássaros se estende, além de sua capacidade de vôo, à sua
capacidade inexplicável de canto, como mostra o poema “O inexplicável canto”:
Inexplicavelmente, os pássaros cantam.
Cantam ainda, apesar de tudo. Apesar
da fome que se alastra como um câncer,
apesar da música maldita dos instrumentos
bélicos e do coral fúnebre das bombas
e dos sonhos, trigo ceifado sem perdão
pela foice afiada do real. Inexplicavelmente,
os pássaros continuam cantando. Cantam,
alegres, apesar de tudo. Cantam, apesar da vida
que vai sendo vivida como um rio doente
fluindo no tempo,
fugaz,
sem remédio.
(SIMÕES, CM, 1982, p. 51)
Nota-se no poema, por um lado, um certo desânimo diante de tantas tristezas no
mundo, tais como a fome, armas e guerras e a falta de esperança na vida representada como
um “rio doente”. Por outro lado, indiferente a tudo isso, o eu lírico tenta entender o
“inexplicável canto” do pássaro, que insiste em continuar cantando apesar de todos os
contratempos e adversidades. É como se o sujeito lírico não entendesse como um canto que
representa vida e alegria pode coexistir com a tristeza de um mundo que perdeu sua beleza e
seu encanto. E, ainda, cantam alegres, apesar de tudo, apesar de cantar diante de uma vida
doente que flui no tempo sem remédio ou cura. A constatação do belo canto dos pássaros pelo
eu lírico apresenta um tom melancólico e de nostalgia, como se estivesse ressentido com os
rumos tortuosos pelos quais o homem caminha, não vendo razão para os pássaros continuarem
cantando seu inexplicável canto de vida.
O poema “Pássaro Ferido” talvez expresse melhor que o inexplicável canto dos
pássaros não foi suficiente para libertar o mundo e, por isso, o seu canto cessou subitamente:
Era vermelho o pássaro
ferido: coração.
E cantava. Cantava
ainda, mas em vão.
Cantava como que
sabendo que o seu canto
era demais: inútil
(tão frágil!) acalanto.
Talvez por isso, um dia
o seu canto cessou
subitamente. E nunca,
e nunca mais cantou.
(SIMÕES, CM, 1982, p. 53)
São versos que sugerem a imagem de um pássaro relacionado ao coração e que, como
no poema anterior, apresenta um certo desalento diante da “inutilidade” de seu canto, como se
este não fosse suficiente para encantar novamente o mundo ou a vida. A triste certeza de que
seu canto era “inútil acalanto” fez com que este coração/pássaro deixasse de cantar para
sempre. Ferido pela dor de que em seu canto não havia a força que ele desejava que tivesse, o
pássaro emudece e, conseqüentemente, participa de uma espécie de “morte” simbólica, que o
priva da esperança de continuar cantando.
No entanto, nem sempre se tem a imagem de um pássaro desmotivado, que questiona a
validade de seu canto. No poema “Pássaro, sempre pássaro”, o eu lírico destaca a imagem de
um pássaro que, independentemente de todas as adversidades, não deixa de ser pássaro, o
deixa de cantar nem de voar, pois são estas as qualidades que melhor o representa:
Parágrafo de carne
escrito no azul
sem fronteiras, na tarde.
(Busca o norte ou o sul?)
Solto, fugiu do cárcere
em que talvez sonhasse
périplos e diásporas.
(Seu canto é seu disfarce).
É esse o negro pássaro
que a palavra inventou
(não sei se doce ou áspero)
liberto no seu vôo.
Canta como se o canto
fosse um vôo infinito.
Voa como se o vôo
fosse um canto interdito.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 40)
Conforme salienta Bachelard (2001a), a luz e o esplendor do céu azul chamam seres
alados e provoca um movimento feliz, pois a pureza do mundo aéreo e celeste poderia
atrair seres puros e mágicos. No poema, o pássaro é um “parágrafo de carne escrito no azul” e
vive livre por seu vôo e seu canto. O pássaro é a palavra alada que o poema toma para si,
fazendo com que o dizer (cantar) e o voar compartilhem de uma mesma transcendência aérea,
na qual o canto da palavra seja um vôo infinito da imaginação e o vôo a que se submete a
palavra seja um canto interdito que, dizendo nada, diga tudo, e evoque um mar de sonho e
imaginação.
Uma das características mais importantes dos símbolos é a sua capacidade de
transformação, pois reflete o caráter dinâmico, vivo, que o torna, muitas vezes, difícil de
entender. De acordo com Centeno, o símbolo vivo atuante não se deixa fixar em uma só forma
(19_, p. 53). O simbolismo do pássaro é um exemplo clássico deste dinamismo do símbolo.
Isso significa que, se por um lado, o pássaro é empregado freqüentemente para designar a
perfeição, há, por outro lado,ssaros perversos e decaídos. Assim, ao mesmo tempo em que
o pássaro é símbolo de vida, aqueles que simbolizam a morte, sem que se tome a morte
como “transformação” do símbolo. O que acontece é que o símbolo não se fixa; ele é o que é
em cada texto, em cada manifestação: não se pode cometer o erro de generalizar significações
simbólicas (CENTENO, 19_, p. 53).
No imaginário aéreo de João Manuel Simões, o pássaro ora assume uma aproximação
com a poesia ora com a palavra ou o coração. No entanto, o poeta não deixa de exaltar as
qualidades de canto e vôo dos pássaros enquanto atributos fundamentais deste símbolo
ascensional. Embora no poema “Pássaro, sempre pássaro” o autor faça referência ao “negro
pássaro”, este não pode ser entendido no sentido de que fala Gaston Bachelard ao tratar do
pássaro da noite, que evoca o lado sombrio e pesado do vôo, realizando um vôo mau, mudo,
negro e baixo (BACHELARD, 2001a, p. 75). A imagem do pássaro, na lírica de Simões,
relaciona-se de forma mais evidente ao devaneio aéreo, ao vôo leve e suave e ao fantástico
canto dos pássaros como sendo uma possibilidade de tornar a vida mais bela e feliz.
Em “Le vol de L’oiseau bleu”, a temática do vôo do pássaro apóia-se na natureza
“quase mágica” do pássaro. Nos versos do poema, o eu lírico reafirma a supremacia deste ser
alado:
I
Anatomia estranha
a do pássaro, máquina
feita para voar:
pulsante
aeronave
sem aço ou alumínio
na fuselagem,
tórax.
II
O bico, cartilagem:
projeto de mandíbulas
transformadas
em dardo
lançado contra o vento.
Asas, remígios:
bússola.
III
A arquitetura mágica
do corpo, em cujo abdômen
palpitam embriões
de iluminados
vôos
(ó pura transparência
obsessiva
do azul!)
(SIMÕES, GE, 1982, p. 41)
Na primeira parte do poema, o sujeito lírico refere-se ao pássaro enquanto uma
“máquina feita para voar” uma aeronave que não possui, em sua anatomia, nem aço nem
alumínio. Esta imagem pode remeter à idéia dos pássaros dos mitos, vistos como uma espécie
de “veículo” que transporta os heróis, ajudando-os ou salvando-os. Na segunda parte, o sujeito
da enunciação evidencia que o corpo do pássaro parece ser projetado para voar, pois todas as
partes que o compõe (bico, asas, remígios, abdômen) contribuem para seu dinamismo aéreo,
funcionando como uma bússola que o orienta na direção do vento.
Por fim, a vozrica confessa que a anatomia do pássaro aproxima-se, muito mais, de
uma “arquitetura mágica”, tamanha é a leveza do corpo através do qual palpita os “embriões
de iluminados vôos”. O caráter elevado e alado do pássaro faz dele um ser puríssimo que
flutua sobre a “transparência obsessiva do azul”.
Vale ressaltar a importância do azul na simbologia das cores, pois ele é a mais
profunda, imaterial e pura das cores, uma vez que nele o olhar “mergulha sem encontrar
qualquer obstáculo; ele é feito apenas de “transparência, de vazio acumulado, vazio de ar,
vazio de água, vazio do cristal ou diamante” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p.
107). Ainda conforme Chevalier & Gheerbrant, os movimentos e as formas desaparecem no
azul: “afogam-se nele e somem, como um pássaro no céu. Imaterial em si mesmo, o azul
desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se
transforma em imaginário” (2002, p. 107).
Percebe-se, com isso, que a imagem do pássaro é como um transcender-se, cuja
transparência obsessiva do azul, revela um aspecto de profundo devaneio aéreo, de
sublimação para o espaço mágico do vôo onírico que conduz ao plano divino e celeste. A
imagem do pássaro surge como uma força de síntese para ascender ao fantástico mundo do
vôo dos pássaros por meio do devaneio aéreo. A imperceptível (e certa) gestação do vôo faz
do pássaro um símbolo mágico, fonte de imaginação.
João Manuel Simões se vale desta imagem que simboliza a força, o canto e a vida para
“tecer” alguns de seus poemas, apresentando uma poesia que se identifica com a imagem do
pássaro por sua propriedade ascensional. Simões é um poeta que se preocupa, acima de tudo,
em cantar a beleza e grandeza da poesia, pois o poeta é semelhante ao pássaro, que vive de
viagens e voa no espaço aéreo da poesia. Ao analisar os poemas em que o poeta trata da
imagem do pássaro, é possível observar que o poeta não foge de uma de suas principais
características: expressar esta “transparência” ou “transcendência” de uma poesia-pássaro e
compor, ou melhor, cantar como os pássaros uma poética repleta de lirismo existencial.
2.2 A DIALÉTICA DO DESDOBRAMENTO: EU E OUTRO/O MESMO
O poetizar, na perspectiva de Octavio Paz, é um ato que desvenda a condição humana:
a “experiência poética é uma revelação da condição original. E essa revelação é sempre
resolvida numa criação: a de nós mesmos. [...] o ato de descobrir entranha a criação do que vai
ser descoberto: nosso próprio ser” (1982, p. 187). A poesia torna-se a possibilidade do homem
poder ser, quer dizer, é criação do homem pela imagem, que insurge como experiência da
“outridade”, que a poesia abre espaço para o homem se nomear outro, passando a ser, ao
mesmo tempo, ele mesmo e outro.
O tema do eu e do outro, relacionado ao desdobramento ou duplo, aponta para uma
inquietação existencial que promove uma reflexão sobre a vida e a condição humana. Este
tema pode ser expresso de diversas formas, mediante os recursos imagéticos do espelho,
alteridade, retrato, sombra, reflexos e todas as demais condições que permitem um
desdobramento da imagem do eu. É a partir da imagem do outro refletido que surge o
questionamento sobre a existência deste “outro eu”. Vive-se a alternância cíclica das partes
duplicadas do próprio ser, uma constante busca deste outro e do próprio ser. No dizer de
Octavio Paz, a busca do outro constitui o encontro consigo mesmo, uma vez que o “outro é o
nosso duplo”, ele é o “fantasma inventado pelo nosso desejo. Nosso duplo é outro, e esse
outro, por ser sempre e para sempre outro, nos nega: está além, jamais conseguimos possuí-lo
de todo, perpetuamente alheio” (PAZ, 1991, p. 77, grifo do autor).
O duplo desempenha um papel de destaque na literatura e tem sido um tema recorrente
na lírica ocidental. Ele é sugerido ou estimulado pelos espelhos ou fontes, como acontece no
Mito de Narciso
3
. Para Gilbert Durand, o espelho não é apenas “processo de desdobramento
das imagens do eu, e assim símbolo do duplicado tenebroso da consciência, como também se
liga à coqueteria, e a água constitui, parece, o espelho originário” (2002, p. 100). Durand
3 De acordo com Favre, a lenda de Narciso se apresenta constituída de significação mítica e ainda continua
desconhecida para nós. Narciso nasce dos amores do rio Cefiso e da ninfa Liríope. O jovem nasce dotado de
extrema beleza, mas insensível ao amor. Durante uma caçada, a ninfa Eco toma-se de amores por Narciso que a
despreza, como havia desprezado outras ninfas. Uma delas, então, suplica à deusa Nêmesis para que
intervenha e o castigue por sua frieza, para que, também ele, possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor.
Certo dia, ao se aproximar de uma fonte límpida, Narciso debruça-se sobre a água para matar a sede. Percebe sua
imagem e imediatamente se apaixona por ela. Sem saber que se trata da própria imagem, ele deseja a si mesmo.
Quando se conta de que ama a si mesmo, ele deseja morrer, privando-se de alimento, começa a definhar até
que seu corpo desaparece, nascendo no lugar, a flor do narciso (FAVRE. In: BRUNEL, 1997, p. 747).
salienta, ainda, que o reflexo da água também se associa ao complexo de Ofélia, uma vez que
mirar-se é, de algum modo, “ofelizar-se” e participar da vida das sombras, neste campo de
lágrimas que se assemelha ao rio da morte e do afogamento.
Segundo Durand, o tema do espelho remete para dois mitos da antiguidade clássica,
revelando a força das imagens míticas engendradas pela convergência dos esquemas e
arquétipos. O primeiro desses mitos é o de Narciso, “o irmão das Náiades, perseguido por
Eco, companheira de Diana, e a quem estas divindades femininas fazem sofrer a metamorfose
mortal do espelho” (DURAND, 2002, p. 101). O segundo é o do Acteão
4
, em que se
cristalizam todos os esquemas e símbolos dispersos da feminilidade noturna e terrível, pois,
neste mito, a teriomorfia é apresentada na sua forma mais perversa e devorante água
profunda que flui e que, pela profundidade e negrume, nos escapa. Mas também, faz
referência ao reflexo que duplica a imagem, tal como a sombra que faz redobrar o corpo
(DURAND, 2002, p. 101).
O motivo do espelho e do duplo, na lírica de Simões, constitui um recurso literário por
meio do qual o poeta desenvolve a análise reflexiva de uma das grandes inquietações que
percorre sua poética: o problema da identidade ou da condição existencial.
No poema “22”, o eu lírico declara ser o espelho um instrumento no qual habita seu
ser, como também, o mecanismo através do qual sua imagem pode se desdobrar:
Estilhacei o espelho
a pontapés
pensando destruir
a própria imagem.
(E era eu que habitava
além do espelho.)
Por isso em cada caco
4 Segundo Durand, Acteão surpreende a toilette da deusa, que, com os cabelos soltos, se banha e se mira nas
águas profundas de uma gruta. “Assustada pelos clamores das Ninfas, Ártemis, a deusa lunar, metamorfoseia
Acteão em animal, em veado, e senhora dos cães lança a matilha para a carniça”. Acteão é, portanto,
despedaçado, lacerado e, seus restos dispersos sem sepultura fazem nascer lastimosas sombras que andam pelas
sarças (DURAND, 2002, p. 101).
habita agora
um pedaço de mim,
esquartejado.
(SIMÕES, FM, 1992, p. 23).
Nos versos do poema, é possível constatar que “Eu” e “imagem” são a mesma coisa:
um duplicados. O espelho insurge como possibilidade de desdobramento e de
sobrevivência ou “perpetuação” do Eu, uma vez que, ainda que esta imagem seja destruída,
ela se multiplicará nos fragmentos do espelho quebrado, porque o ser humano é
essencialmente duplo: Eu e outro. Os homens se olham em espelho de imagens; ele é
especular e faz refletir o outro.
No entanto, o outro (melhor, os outros) que passa a existir no espelho é o próprio ser
que se desdobrou em cada caco do espelho. Assim, o espelho é um instrumento através do
qual o sujeito lírico toma conhecimento de sua própria existência, pois é apenas quando o
estilhaça que ele se vê fragmentado, percebendo que não pode destruir a própria imagem, uma
vez que esta se renova e se multiplica. No espelho da identidade, a imagem é indestrutível; ela
possui a capacidade de desdobramento e, portanto, simboliza um espaço mágico de
reciprocidade das consciências.
De acordo com o escritor Umberto Eco, o “espelho é um fenômeno-limiar, que
demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico” (1989, p. 12). Esta concepção, explica
Eco, aponta para o fato de que a experiência especular surge do imaginário, uma vez que o
domínio do próprio corpo permitido pela experiência do espelho é prematuro em relação ao
domínio do real: o “desenvolvimento só acontece à medida que o sujeito se integra ao sistema
simbólico, ali se exercita, ali se afirma através do exercício de uma palavra verdadeira” (ECO,
1989, p. 12).
Eco salienta, ainda, que o homem confia no espelho tanto quanto confia nos óculos ou
binóculos, porque assim como estes, os espelhos são “próteses”, pois substituem um órgão
que falta, como também é um “aparelho” que aumenta o raio de ação de um órgão. Neste
sentido, Eco afirma que a magia dos espelhos consiste no fato de que sua “extensividade-
intrusividade não somente nos permite olhar melhor o mundo mas também ver-nos como nos
vêem os outros: trata-se de uma experiência única, e a espécie humana não conhece outras
semelhantes” (ECO, 1989, p. 18).
Na perspectiva de Chevalier & Gheerbrant, o espelho reflete a verdade, a sinceridade,
o conteúdo do coração e da consciência. Na doutrina budista, o espelho é “símbolo da
sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do espírito obscurecido
pela ignorância” (2002, p. 394, grifos do autor). Neste sentido, o espelho reflete, mais do que
uma imagem, a inteligência criativa e o conteúdo anímico do poeta, pois ele tanto busca o
reflexo das palavras quanto o meio através da qual elas podem refletir e expandir as vozes
perdidas no sonho; focalizando e refratando a fugacidade do instante poético.
No texto “Quem fita, quem fita quem?”, o sujeito lírico declara que a busca da imagem
no espelho nem sempre é um exercício confortável e vantajoso, pois ele não devolve as
imagens que não reteve em si, imagens estas que, muitas vezes, constituem a essência do ser
ou o seu reverso:
Do outro lado
do espelho eu sou
o meu antípoda.
(SIMÕES, IB, 1982, p. 61)
A imagem do desdobramento do eu aparece, nos versos do poema, de modo a criar um
duplo que constitui o inverso da imagem que fita o espelho. A pergunta, presente no título,
fica no plano do interdito, uma vez que não é possível respondê-la a partir do poema. Há,
todavia, duas imagens opostas que se confrontam diante do espelho, mas descobrir qual delas
é a imagem-fonte e qual é o reflexo é uma tarefa difícil, pois as duas imagens, ao mesmo
tempo em que se distanciam se aproximam e se complementam.
Tem-se, do outro lado do espelho, o “antípoda” da imagem, o que remete,
conseqüentemente, à dialética do desdobramento da imagem do eu (duplo), que converge para
a presença de duas “personas” no mesmo ente, como se um e outro fossem o mesmo, embora
diferentes entre si. O espelho reaparece como este “ser mágico” que possui a faculdade de
“revelação”, pois é através do “mira-se” ou “fitar-se” que ocorre a constatação da existência
do sujeito e do outro no mesmo ser.
O soneto “Meditação ao Espelho” reflete esta capacidade quase “sobrenatural” que o
espelho tem de possibilitar o encontro do ser consigo mesmo ou de servir de fonte de reflexão
sobre sua própria existência:
Para me construir a que se ateve
a mão que me criou? Qual a mensagem
que incógnito me trouxe, como a aragem
que chega impressentida, em vôo leve?
Qual será a energia que concebe
no cristal da existência a minha imagem?
Quem me pinta nos olhos da paisagem
e do rosto os contornos circunscreve?
Vendo-me retratado, assim, descreio
na matéria desnuda que me aperta,
como a um vulto fantástico, no seio.
Busco-me em vão no espelho. Não descubro
minha íntima fórmula desperta,
lançada num abismo fundo e rubro.
(SIMÕES, SP, 1983, p. 32)
Nota-se que o eu lírico se envolto em uma reflexão ontológica, na ânsia de
encontrar a matéria e energia de que é feita sua imagem. Nos dois últimos tercetos, a voz deste
sujeito poético revela desconhecer sua matéria, pois tenta, em vão, ver-se no espelho, que
este não lhe diz nada a respeito de quem seja e de qual seja sua condição existencial. Embora
a busca no espelho seja vã, percebe-se que o espelho é o promotor desta reflexão, ainda que
ele não seja um espelho totalmente “mágico” que traga as respostas prontas.
A meditação ao espelho revela um retrato ou uma imagem que até então o sujeito lírico
não conhecia, o que demonstra que houve um certo grau de “descobrimento” de si mesmo ou,
pelo menos, um interesse por descobrir-se, que a busca ao espelho não lhe trouxe todos as
respostas que desejava saber sobre sua imagem, mas apenas uma incógnita “aragem
impressentida”. A imagem refletida parece não coincidir com a imagem que o eu lírico tem de
si mesmo, uma vez que ele declara que, ao ver-se retratado, descrê “na matéria desnuda” que
lhe aperta como a um “vulto fantástico”. Descobrir-se é uma tarefa bem mais complexa do
que o simples “mirar-se” no espelho. Conforme salienta Cruz (2001), o tema do duplo se
refere à existência do outro, que duplica a existência do sujeito rico. Assim, o tema do eu e
do outro aparece regido por uma lógica que lhe confere unidade:
[...] o desdobramento do eu reflete uma inquietude metafísica e, ao mesmo
tempo, aponta para uma profunda reflexão sobre a vida. A interrogação que,
em um primeiro momento, pode se delinear da maneira mais simples: “quem
somos?”, porém, é um questionamento que evolui para: “somos quem
realmente cremos ser?”, até a mais profunda e inquietante indagação:
“somos?” (CRUZ, 2001, p. 117).
O poema “Auto-Retrato Provisório” apresenta este tipo de reflexão sobre as
inquietações pertinentes à constituição da identidade e que refletem, de certa forma, o medo
do homem com a idéia da duplicação:
Sei que sou
mas não sei
se realmente sou
quem pensei.
Sei que vou
mas ignoro
se com certeza vou
aonde moro.
De certo, apenas isto:
meu caminho é assim
sem render-se, resisto.
Resisto até o fim.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 25).
Ao traçar seu auto-retrato, o sujeito lírico afirma desconhecer quem realmente é ou
mesmo para onde vai. A única certeza que ele declara ter é o caminho de resistência constante,
ou seja, de não se render diante de nada, nem mesmo da desconhecida existência. A dúvida de
não saber se é quem pensou ser ou a falta de certeza da verdadeira morada faz com que o eu
lírico construa um auto-retrato provisório, uma vez que, tendo por base a constante
“resistência”, esta imagem de si mesmo pode cambiar, que, por ser provisória, ela está
sujeita a transformações e (re)construções: em constante processo de formação.
Verifica-se, ainda, que o sujeito poético parece viver o dilema da dúvida existencial:
ao mesmo tempo em que pensa saber quem é, já não tem certeza se é quem pensa ser. Embora
estas dúvidas acompanhem o eu lírico, há, por outro lado, um ponto de vista positivo sobre a
imagem do eu: a certeza de trilhar veredas tendo por base a resistência. Esta qualidade de não
se deixar render aponta para um auto-retrato, ainda que provisório, que demonstra agir
conscientemente, palmilhando os contornos da condição ontológica sob o viés da busca pelo
(auto)conhecimento.
O poema “Heteronimia” expressa essa busca de forma que, ao indagar-se sobre sua
própria existência, tem-se a revelação da existência de um outro (seu duplo):
Quando indago de onde vim,
não sou eu quem me responde,
mas um outro (vindo de onde?)
que se faz passar por mim.
(SIMÕES, PH, 1988, p. 29)
É a partir da indagação “quem sou?” ou “de onde vim?” que surge a constatação de um
outro habitando o próprio ser, como se um e outro formassem uma heteronimia, em que dois
seres, cujos nomes e personalidades, ainda que diferentes, se complementassem para dar conta
de responder o questionamento sobre a origem existencial. A presença de um outro “que se
faz passar por mim” traz para o poema a reflexão acerca da “alteridade”; dessa capacidade de
o homem se nomear outro, passando a ser, simultaneamente, ele mesmo e outro.
O poema “Os dois heterônimos” reflete bem esta capacidade de desdobramento do Eu
como se, no mesmo indivíduo, houvesse dois heterônimos ou habitassem dois seres, cujas
características fossem divergentes entre si, mas nem por isso, conflituosas:
Ser estranho: eu, sem mim.
Busco-me e não me encontro.
(Sou Abel ou Caim?)
(SIMÕES, PH, 1988, p. 26)
A estranheza que causa ao eu lírico a evidência de que, ao buscar-se, não se encontra
porque seu ser é construído de um desdobramento que não coincide com o próprio eu,
promove uma reflexão que envolve a questão da identidade. A grande indagação é descobrir
quem é este outro que comunga do Eu, que adentra o próprio ser, tornando-o duplo e
diminuindo o plano de ação do próprio ser, que o Eu passa a existir sem ser totalmente ele
mesmo: “eu, sem mim”. Na outra metade do Eu, habita um outro que o sujeito lírico não sabe
se é Abel ou Caim
5
.
A referência aos dois personagens bíblicos aponta para a reflexão sobre a índole deste
outro ou sobre a própria identidade, uma vez que, a personagem de Caim é vista sempre como
aquela que simboliza o primeiro assassino ou o revelador da morte pelo fratricídio que comete
contra Abel. De acordo com Chevalier & Gheerbrant, Caim é também considerado o primeiro
5 Abel e Caim são os filhos de Adão e Eva. Caim é o primeiro homem nascido do homem e da mulher, é o
primeiro lavrador, o primeiro sacrificador cuja oferenda não é bem recebida por Deus. É o homem que apresenta
o selo de “Perigo de morte”; é também o iniciador da morte. Tal como Prometeu, Caim é o símbolo do homem
que “reinvindica sua parte na obra da criação”; ele desejou conquistar para a humanidade um poder divino e
libertá-la de uma total dependência. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 162-164).
“errante à procura da terra fértil e o primeiro construtor de cidade: representa a “aventura do
homem entregue a si mesmo, assumindo todos os riscos da existência e todas as
conseqüências de seus atos” (2002, p. 162).
O desejo de Caim, segundo Chevalier & Gheerbrant, era a posse da terra e a edificação
da cidade, mas Deus não via com bom grado as oferendas e os sacrifícios do lavrador que,
além de não o recompensar, ainda aceitava as oferendas de seu irmão Abel, recompensando-o
com fartas colheitas, que este oferecia generosamente as oferendas a Deus, reconhecendo a
sua misericórdia. Caim se revoltou contra Deus por não obter nenhuma vantagem a partir de
suas oferendas e contra o “desprezo de Deus”: “É contra essa ordem de Deus que ele se
revolta quando abre com uma pedra afiada a garganta de Abel, o favorito do céu
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 163). No entanto, conforme relata o mito bíblico,
a atitude de Deus não expressa um “desamor”, mas simplesmente uma justiça, porque a
oferenda de Caim não era total, pois ele atribuía a si próprio parte de seu trabalho, sem
reconhecer que até mesmo essa parte ele devia a Deus: “E assim, com ciúme do irmão,
orgulhoso de seu trabalho e revoltado contra Deus, Caim matou, afirmou o valor próprio de
seu esforço, renunciou a Deus” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 163).
O desdobramento do Eu a partir de múltiplos outros, ou mais precisamente, da
incerteza de ser “Abel ou Caim”, é registrado no poema “28” de modo singelo, como se a
existência de outros no Eu fosse um fenômeno normal, ou mesmo, como se a essência do ser
humano fosse o constante desdobramento:
Sou começo e fim:
antes ou depois.
Comigo ou sem mim,
eu sou sempre dois:
Abel e Caim.
Caliban, talvez.
Talvez Ariel.
Um de cada vez:
esse é meu papel.
(SIMÕES, FM, 1993, p. 29)
Nestes versos, o sujeito poético registra sua condição dual ou plural de ser. A
coexistência de “outros eus” em seu ser é um acontecimento natural. Mais ainda, constitui o
seu papel: ser todos ao mesmo tempo ou um de cada vez. O jogo dialético começo e fim,
antes e depois, comigo e sem mim, Abel e Caim reforça a dualidade do Eu e aponta para a
consciência do sujeito lírico de poder reunir todos em um para formar sua identidade. Com
isso, pode-se dizer que é impossível que o sujeito se constitua “genuinamente” sem a presença
dos outros, que o ser humano é um ser social que se forma a partir do grupo e da
sociedade
6
.
Ao declarar ser sempre dois, o eu lírico assume sua condição dualística, reconhecendo
ser possível a presença de outros no mesmo ser. Assim, assumir que é, simultaneamente, Abel
e Caim implica fazer coexistir duas presenças diametralmente opostas entre si, uma vez que,
enquanto Abel simboliza a passividade e o reconhecimento da força divina como fomentadora
das graças e realizações, Caim reivindica para si uma parte do trabalho e da criação,
simbolizando a imagem do homem que desafia as convenções e, sobretudo, o homem errante.
Mas, de acordo com a voz lírica, este Ser desdobrado ou duplicado também declara
ser, talvez Caliban, talvez, Ariel. E isso representa que, ao contrário de quando ele diz ser
sempre dois: Abel e Caim, com relação ao Caliban e Ariel, o sujeito poético afirma ser “Um
de cada vez” , justificando que este é o seu papel. Nesta perspectiva, pode-se dizer que a
atitude do eu lírico revela a constituição de um sujeito que se constitui mediante a real
presença de Outro(s). Este Outro, por sua vez, faz com que o Eu se desdobre e passe a existir
6 Esta afirmação se apóia na estrutura sociológica da enunciação, que segundo Mikhail Bakhtin, constitui a
verdadeira substância ou a realidade fundamental da língua. A língua é regida por leis puramente sociológicas,
pois cada sujeito constrói-se a partir da colaboração de outros, num processo de interdiscursividade, na qual os
“eus” são autores um dos outros e, juntos realizam um evento histórico e social: “As palavras não são de
ninguém, em si mesmas nada valorizam, mas podem abastecer qualquer falante e os juízos de valor mais diversos
e diametralmente opostos dos falantes” (BAKHTIN, 2003, p. 290).
em função dessas outras presenças que não são mais alheias a si, mas sim, inerentes à sua
pessoa. A condição do ser humano é ser Outro e de buscar esse Outro que é o seu duplo.
Todavia, não se pode deixar de mencionar que as imagens poéticas utilizadas pelo
poeta dão conta de dizer o máximo de expressividade e significação com uma certa economia
de palavras, o que faz das imagens uma fonte de riqueza para a lírica e um recurso que
promove a síntese poética.
A voz lírica, no poema “O Homem sem Rosto”, afirma que no jogo da duplicidade é
possível projetar ausência e presença do Eu no encontro do Outro, o que faz o Outro ser
apresentado enquanto possibilidade de complementação do Eu, mas sempre com a face
velada:
1
Máscaras. Um louco
festival de máscaras.
A volúpia de pôr
e de tirar as máscaras
na infinita mascarada
do quotidiano.
2
Máscaras, pessoas, personae, héteros,
outros eus, ficções do interlúdio
ou meros simulacros?
Tanto faz. São sempre outros,
outros. Outramente.
3
De repente, sentiu-se cansado
de tantos disfarces sobre a pele.
Com um esgar de raiva, foi se desfazendo
de todas as máscaras, uma a uma.
4
Então olhou o espelho
mas não viu
ninguém.
Ninguém.
(Por onde andam as máscaras?)
(SIMÕES, PH, 1988, p. 53-54, grifos do autor)
O poema apresenta imagens da necessária presença do Outro na constituição do Eu. A
voz lírica declara que o homem vive a loucura de pôr e de tirar uma infinidade de máscaras na
vivência quotidiana. São tantas máscaras, pessoas, “personae”, héteros e outros eus que causa
uma confusão e estafa no sujeito. Não importa se “ficções do interlúdio ou meros simulacros”,
o que se percebe é que são outros, sempre outros, interferindo no eu, fazendo com que se viva
a experiência diária da “outridade”, de ter que vestir máscaras e incorporar “personae”. Este
cansaço ou “esgar de raiva” em ter que fazer parte do “louco festival de máscaras”, desperta,
no indivíduo poético, a atitude de desfazer-se de todas elas: “uma a uma”, conforme evidencia
o “narrador” lírico.
Na quarta estrofe, após despir-se de todas as máscaras, o eu lírico olha-se no espelho e,
então, se conta de que sem as máscaras, sem os outros, não imagem nenhuma para
refletir no espelho. Novamente, é o espelho o agente promotor da revelação ou reflexão. Ao
fitar-se no espelho sem as máscaras não imagem, o que demonstra que o Outro é o reflexo
do Eu, sua outra parte, seu outro eu. Não vendo ninguém no espelho, o sujeito lírico, por meio
dessa voz onipresente que relata o acontecimento do “homem sem rosto”, indaga o destino das
máscaras que ele abandonou, como se buscasse reavê-la, na tentativa de voltar a ter uma
imagem refletida. Livre da presença do Outro, o indivíduo é equivalente a um “homem sem
rosto”, ou seja, perde a capacidade de reflexão e passa a ser não dotado de auto-imagem, uma
vez que a imagem do Eu se reflete no Outro, ou vice-versa.
A característica do Outro, de ser a imagem do Eu, é apresentada por Raïssa Cavalcanti,
ao afirmar que o outro terá sempre o papel psicológico de espelho: “O homem estará sempre
sendo refletido pelo outro, em qualquer momento da vida. E este espelhamento cria nova
oportunidade de auto-reflexão” (CAVALCANTI, 1992, p. 211). Esta idéia aparece claramente
no poema, de forma que, por mais estafante que seja a necessidade de adaptação de máscaras
e o constante convívio com outros eus, esta é a realidade do ser humano: sem Outro não
Eu; sua existência depende da coexistência do Outro. O homem e o mundo formam um
diálogo ininterrupto, em que um reflete o outro.
No poema “Ernani Reichmann: apenas uma tentativa de estudo (auto?) biográfico,
com base em informações de João Paulo (um dos “outros” eus)”, o poeta tece um canto que
exalta esta duplicidade humana e a constante busca por revelar-se e descobrir-se:
1
Sou tantos! (Tanta gente!)
E em todos sou um só:
o único – outramente.
2
No espelho que eu fito
os “outros” fitam-me
ou fitam-se?
3
Em vão, em vão
“os” sou, pois “eles”
são (-me).
4
Sei que no fim
eles irão salvar-se
em mim
(e eu neles?)
5
Ser todos – todos os outros!
Hipostasiado, ser
nos outros. SER (-me?).
(SIMÕES, IB, 1982, p. 17).
São versos em que o eu lírico assume que seu único estado de ser é ser outro
“outramente” uma vez que ele é constituído por muitos. Mas da mesma forma que ele é
constituído por “Tanta gente”, os outros também são por ele constituído, que o espelho em
que se fitam é o mesmo. Neste espelho, o eu o outro descobrem mutuamente que sua essência
é feita de matéria desconhecida e múltipla, sendo uma atitude vã tentar identificar estes outros
eus, pois todos eles possuem participação especial na moldura que o define enquanto sujeito.
A quarta estrofe corrobora para esta visão de simultaneidade entre o eu e outro na
constituição da identidade, pois o sujeito poético “confessa” que é nesta permuta de “eus” e
“outros” que mantém o ser humano ontologicamente coeso. Os liames da “outridade” são
apontados na poesia de Simões de forma a complementar a face do eu no outro, de tal maneira
que, ao ser outros e todos, o homem naturalmente é: passa a existir.
Em uma espécie de “oração” que precede a confissão, o sujeito lírico declama nos
versos do poema “Confiteor do poeta” a intersecção de Outros na matéria de seu ser,
confessando, assim, sua pluralidade:
1
Sou muitos. (Tanta gente!)
Solitário e plural,
em todos sou um só,
sempre o mesmo, outramente.
Busco o meu Santo Gral:
a Luz, antes do pó,
o Sonho, antes do real.
2
Terei que arder? Embora.
Será meu corpo a lenha,
e a minha vida a Hora.
O que vier, que venha!
Se o futuro é agora,
será meu canto a senha
e a negra noite a aurora.
(SIMÕES, PH, 1988, p. 58)
O poema inicia, assim como o anterior, fazendo referência à constatação de que sua
condição é ser muitos: “Tanta gente”; ao mesmo tempo solitário e plural. Esta condição gera
uma segunda constatação: o fato de que o sujeito lírico vive cercado de Outros Eus, mas
também vive solitário consigo mesmo: “em todos sou um só,/ sempre o mesmo, outramente”.
Neste sentido, é possível levantar a questão do jogo dialético em que ocorre a imagem do
desdobramento, como se cada pessoa pudesse ser ela e outra, e também ela mesma, em um
instante.
No entanto, nesta “confissão” do poeta, o eu lírico também declara, além da
capacidade de desdobramento, estar em constante busca de seu “Santo Gral” e de fazer seus
versos buscando, “o Sonho, antes do real” ou “a Luz, antes do pó”. Sabe-se que na
simbologia, o “Santo-Graal” possui, além do poder de alimentar (dom da vida), o poder de
iluminar (iluminações espirituais) e de fazer invencível. De acordo com Chevalier &
Gheerbrant, a demanda do Graal simboliza, no plano místico, “a aventura espiritual e a
exigência de interioridade, que ela pode abrir a porta da Jerusalém celeste em que
resplandece o divino cálice” (2002, p. 477). Associada a esta busca da plenitude interior, o eu
lírico busca o Sonho e a Luz, antes do real e do pó.
A respeito do sonho, Chevalier & Gheerbrant salientam que constitui um símbolo da
aventura individual que se aloja na intimidade da consciência: “o sonho nos aparece como a
expressão mais secreta e mais impudica de nós mesmos” (2002, p. 844). Com relação à Luz,
os autores destacam que são muitos os significados atribuídos a ela, mas pode-se dizer que a
Luz simboliza o conhecimento, aparece relacionada à vida, salvação, felicidade, sucedendo as
trevas (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 567-571). Sendo assim, o eu lírico
confessa que vive a aventura de ser muitos sem deixar de ser ele mesmo, de procurar a
felicidade, primeiro nas coisas luminosas e nos sonhos, depois na realidade. Em sua confissão,
o eu lírico indaga se terá que “arder”, ou seja, se terá que pagar pelo “pecado” de buscar estas
coisas. Caso seja necessário pagar a “penitência”, ele não temerá e ainda fará de seu corpo a
lenha, pois venha o que vier, seu canto é a senha que incendeia sua condição de poeta.
Na busca do Ser, a poesia se presta como fonte de revelação da identidade, pois ela é
força de síntese da essência humana; ela ajuda entender melhor aquilo que, sozinhos, não
conseguiríamos converter em palavra. Os poetas dão forma e expressão a sentimentos e
indagações que fazem parte das reflexões existenciais. No caso da busca do Ser e da
duplicidade do ser humano, o poeta João Manuel Simões promove uma fantástica viagem, que
promove o encontro do sujeito poético consigo mesmo, por meio de imagens que apontam
para a existência do Outro no Eu.
Aquilo que o poeta diz converte-se, para o leitor, na revelação de sua condição e de
sua reconciliação consigo mesmo. No dizer de Octavio Paz, esta revelação não é um saber de
algo sobre algo, do contrário, a poesia seria filosofia, mas sim, um efetivo voltar a ser aquilo
que o poeta revela que somos. A poesia não é uma explicação da condição existencial, mas
uma experiência em que a ela pode revelar-se ou manifestar-se (1996, p. 58).
Para além do Eu existe todo um universo que contempla a presença do Outro. No reino
da poesia, estas associações se tornam pertinentes; elas ativam a imaginação criante do poeta e
a imaginação do leitor, abrindo espaço para reflexões mais complexas, como o tema do duplo
e do desdobramento. A poesia presta-se como esta “outra voz” (utilizando a expressão de
Octavio Paz), que percorre as galerias abissais do espírito e sensibilidade humana para ajudar
o homem a entender-se melhor, a encontrar-se consigo mesmo pela magia e alquimia dos
versos líricos. Assim, entre o Eu e o Outro, a poesia se manifesta como linguagem que
permite o resgate das questões ontológicas e da busca do próprio ser, chegando-se ao ponto
basilar sobre o qual pousa a grande incógnita: eu e outro/o mesmo.
2.3 FLUXO TEMPORAL: A VIDA NO COMPASSO DO TEMPO
Para Claude-Gilbert Dubois, o tempo não pode ser compreendido enquanto hipótese
metafísica que fundamenta os deuses: Destino, Fortuna, Natureza, Eternidade. O tempo é o
instante: “não se apresenta sob outra forma na vida real. O ser e o tempo não m mais
sentido, e geram discursos vazios; será preciso falar da existência” (1995, p. 147).
Dubois afirma que, na Renascença, o tempo era um objeto intelectual que excitava a
imaginação. Foi o interesse pelo tempo que permitiu o desenvolvimento da astronomia,
reorientou a historiografia e revigorou o lirismo. O imaginário do tempo orienta-se de acordo
com três eixos que dizem respeito a um tempo “regulado como um relógio” que serve para
enunciar uma concepção científica do universo; a um tempo impessoal e coletivo regulado por
arquétipos culturais (queda, criação, redenção); e a um tempo existencial no qual o tempo é
inseparável. Neste último, a “riqueza polifônica das sensações, dos pensamentos e das
lembranças, reunida e harmonizada no instante, constitui uma arte de viver, cuja concepção e
elaboração representam a marca distintiva da Renascença” (DUBOIS, 1995, p. 148). Assim,
as imagens de fuga são recorrentes e usadas para transcrever esse fluir contínuo e irreversível
do tempo. Dubois acrescenta que, sobre esse fundo lábil, o instante aparece como a única
realidade tangível (1995, p. 141).
Na perspectiva de Meyerhoff, o tempo é mais geral que o espaço porque se aplica ao
mundo interior das impressões, emoções e idéias: “Não há, por assim dizer, nenhuma
experiência que não tenha um índice temporal ligado a ela” (1976, p. 1). O tempo é
significante para o homem e torna-se inseparável do conceito do “eu”, uma vez que o ser
humano é consciente de seu próprio crescimento orgânico e psicológico no tempo. Homem e
tempo encontram-se tão impregnados um do outro que a pergunta “o que é o homem” reporta-
se a conseqüente questão “o que é o tempo”. Isso se deve ao fato de que a busca de um
conhecimento do “eu” leva à busca do tempo perdido.
O “espírito moderno” está consciente do tempo como uma condição universal de vida
e como fator inextirpável de conhecimento do homem e da sociedade. Essa emergência do
tempo no primeiro plano da consciência moderna se expandiu para os domínios da Literatura,
que também passou a refletir as categorias de tempo na arte. Como a música, a literatura é
uma arte temporal, pois o tempo é o veículo da narração e da vida. A arte espelha a natureza
humana e, se o homem está cada vez mais consciente da penetrante natureza do tempo, essa
consciência será gradativamente refletida nas obras literárias: o tempo tornou-se tema global e
predominante na literatura recente, mas o tempo tem estado sempre dentro e sobre a mente
dos homens (MEYERHOFF, 1976, p. 3). O tempo sempre se refere a elementos que
compreendem a experiência do sujeito. O tempo na literatura é o tempo humano, pautado na
consciência do tempo como parte de um passado de experiências, o que faz dele uma
categoria privada, pessoal, subjetiva ou psicológica.
Octavio Paz destaca que, no século XX, a manifestação da poesia configura-se como
uma aparição errante em um tempo que também é peregrino: “esse tempo que acaba e esse
tempo, ainda sem nome, que está começando” (1991, p. 97). A poesia seria, portanto, uma
configuração de signos em rotação e em dispersão, fruto da perda da imagem do mundo, ou
“imagem de um mundo sem imagem”. Paz salienta que o tempo moderno é filho do tempo
cristão: trata-se de um tempo em linha reta e irreversível, mas falta-lhe começo e não terá fim,
não foi criado nem será destruído:
[...] O fundamento da modernidade é um duplo paradoxo: por um lado, o
sentido não reside nem no passado nem na eternidade, mas no futuro, de
onde a história se chama também progresso; por outro lado, o tempo não
repousa em qualquer revelação divina, nem em algum princípio inamovível:
nós o concebemos como um processo que se nega incessantemente e assim
se transforma (PAZ, 1991, p. 98).
Sendo assim, o fundamento do tempo é a crítica de si mesmo, sua divisão e constante
separação: a mudança é sua essência. De acordo com Paz, o tempo não é infinito, pelo
contrário, ele tem um fim imprevisto. O mundo é instável e a mudança não é sinônimo de
progresso, mas de repentina extinção: “a técnica começa como negação da imagem do mundo
e acaba sendo uma imagem da destruição do mundo” (1991, p. 100).
Na poética de João Manuel Simões, o tempo aparece cristalizado na imagem do
relógio, que funciona como a mola implacável que conduz o homem nesses atalhos em
direção a um fim inútil e certo. A interrogação é a motivação que proporciona sua curiosidade
lírica, o que afasta sua visão conceitual sobre o tempo dos elementos cotidianos para os
filosóficos e reflexivos.
A imagem de um rio-tempo, por exemplo, ajuda a caracterizar uma vida que segue o
curso do tempo, sem se deixar intimidar pela inexorabilidade do fluxo temporal. O tema da
morte e da vida é desenvolvido pelo poeta não no sentido de temor e receio, mas como um
processo natural inscrito nessa permanente travessia da vida pelo rio-tempo, que tira o homem
da infância e o conduz a novos percursos.
Para Reinoldo Atem, a poesia de Simões está repleta de ato interrogativo que permeia
os “atalhos obscuros” da vida, pontilhando, “aqui e ali”, interrogações que não possuem
respostas: “O poeta é um homem perdido no deserto da vida e não quem lhe apresente
explicações sobre esse fato” (ATEM, 1990, p. 176).
Para o poeta e crítico João Manuel Simões, a imagem é o suporte básico da poesia; ela
“representa uma ‘leitura’ não convencional de um dado objeto. Do mundo. E constitui, em
última análise, o cerne da grande poesia” (SIMÕES, 1991, p. 23). Desta forma, o emprego de
imagens é um recurso que realça o poder significativo do poema e eleva a grandeza da poesia.
Neste sentido, as imagens do fluxo temporal, presentes na lírica de Simões, se
organizam de modo a formar um todo coerente, em que o tempo, seja ele o tempo físico do
relógio ou o tempo psicológico que marca o contorno da vida e experiências, é apresentado
como uma força inexorável e irreversível que “devora” tudo e todos. No entanto, é possível
observar que este mesmo tempo traz, em retorno, a capacidade de reflexão de que a vida é
mais importante que a morte ela se sobressai diante do fluxo temporal como um bem
precioso, ainda que um bem passageiro e breve no curso deste tempo onívoro.
No poema “Silenciosamente”, a idéia de um tempo célere e discreto, que penetra
sutilmente nos labirintos da vida e marca sua passagem de maneira quase imperceptível, é
apresentado pelo eu lírico por meio de imagens expressivas:
Nas muralhas do tempo,
alastra-se em silêncio
a hera das horas.
(SIMÕES, IB, 1982, p. 62)
A imagem de “hera das horas” ornamentando os muros do tempo é de uma sutileza
que enriquece o poema e aumenta seu poder significativo, pois, tão imperceptível quanto a
hera que cresce e toma conta dos muros é o tempo que flui silenciosamente. Ele passa sem
que se conta de sua passagem e, quando se percebe, ele passou, deixando no passado o
curso de uma vida breve que não acompanha o silente e veloz fluir do tempo.
De hora em hora, o tempo segue seu itinerário e, em seu implacável percurso, ele vai
penetrando nas galerias da vida e do ser humano, sem que nada se possa fazer. A imagem de
um tempo indestrutível que anula o poder de ação do homem é constante nas constelações de
imagens que aflora do imaginário do poeta, fazendo do tempo um “deus” impiedoso e
insensível.
Em “Morfologia do Tempo”, a temática expressa no título apóia-se no tempo, na
tentativa de buscar sua estrutura e formação para entendê-lo melhor:
O tempo dúctil,
maleável,
porém de modo algum físsil.
É possível laminá-lo.
Já destruí-lo,
é difícil.
(SIMÕES, CV, 1997, p.17)
Nota-se que, ao buscar a “morfologia do tempo”, o sujeito lírico tem a revelação de
que, em sua forma, ele é indestrutível, porém, suscetível à lapidações. Pode ser possível
contornar situações marcadas pelo tempo, adaptando-se às suas condições de acordo com
experiências individuais. O que não é possível, contudo, é contornar seu curso, fazê-lo parar
ou destruí-lo. Pode-se dizer que, em sua morfologia, o tempo acompanha as experiências do
sujeito, tornando-se dúctil e maleável, no entanto, em hipótese alguma “físsil”. O tempo
humano é marcado pela finitude, cabendo ao homem “laminar” o tempo da maneira como lhe
convém.
A imagem do interminável ciclo temporal remete à imagem do relógio enquanto
símbolo da passagem silenciosa do tempo onívoro. Esta idéia deixa-se transparecer no poema
“Relógio”, em que o eu lírico declara:
O invólucro
de ferro
guarda
o tempo:
usina nuclear
que nunca pára.
Seu urânio
translúcido jamais
jamais se esgota.
E somos
sempre nós
no cotidiano
holocausto as vítimas
da sua
fissão interminável.
(SIMÕES, SS, 1984, p.33)
No texto, o sujeito poético parece acreditar que o relógio é uma espécie de usina
nuclear que guarda o tempo, lançando contra o homem seus testes nucleares. Trata-se de uma
usina que jamais esgota sua fonte de energia, fazendo do ser humano uma espécie de “vítima”
destes “testes nucleares” do tempo. O relógio, por sua vez, é uma “arma radioativa” que não
cansa de “aprisionar” o homem em “sua fissão interminável”. Ele é um mecanismo portador
do tempo; em sua pulsação infinita e inexorável, ele alastra-se com seu poder letal sobre a
humanidade, assim como uma “bomba nuclear”.
De acordo com Dubois, a invenção do relógio pode ser entendida como uma tentativa
de aprisionar o tempo no círculo encantado de um mostrador: “o tempo mecanizado escapa à
alternância cíclica do dia e da noite; a posição da sombra e a intensidade da luz tornam-se
secundárias” (1995, p. 121). Esta mecanização do tempo pelo relógio fez com que se perdesse
o sentido cósmico do tempo. O homem passa a ser a vítima de sua própria criação, pois as
“batidas” do relógio demarcam, por meio dos segundos, minutos e horas, a fatal e irreversível
passagem temporal. No “invólucro de ferro”, o relógio é portador do tempo: uma máquina que
funciona como instrumento do tempo e reafirma, no compasso das horas, que ele é o senhor
que governa infinitamente a fluxo temporal.
No poema “Os instrumentos do tempo”, o desejo que o eu lírico expressa é libertação
dos instrumentos que tendem a aprisionar o tempo e o homem:
Calendários,
relógios,
ampulhetas:
mágico instrumental
que pesa e que divide
o breve tempo que nos foi marcado
sob o infinito périplo do sol.
Ampulhetas,
relógios,
calendários:
quebremos, uma a uma,
essas obscenas máquinas do tempo
em cujas engrenagens
(ó mágicos teares!)
se tece a nossa vida:
sem remédio.
(SIMÕES, SP, 1983, p.50)
O aprisionamento do sujeito pelo “mágico instrumental” do tempo, que pesa sobre o
homem, marcando a breve trajetória que lhe foi concedida, revela, na voz do eu lírico, um
desejo de libertação. É como se o sujeito poético percebesse que é chegado o momento de
banir e quebrar todos os instrumentos do tempo ampulhetas, relógios, calendários e voltar
ao “infinito périplo do sol”, regressando aos “mágicos teares” com os quais se tece a vida.
Pode-se dizer que o poema deixa transparecer uma nostalgia do tempo primordial,
como se a invenção dos “instrumentos do tempo” impusessem um cárcere sobre a vida,
tecendo-a “sem remédio” na prisão dos calendários e dos relógios. O tempo cronometrado por
estes instrumentos diminui o campo de ação do homem, impedindo que a vida seja vivida em
sua plenitude. As engrenagens desse “mágico instrumental” ceifa a vida, nas páginas do
calendário, na areia da ampulheta e nos ponteiros do relógio.
O poema “(In) Temporal” é salutar na imagem de um tempo representado por sua
tirania. A necessidade de “vencer” o tempo deve-se ao medo que este impõe sobre o homem,
devido à sua inexorabilidade:
Tempo, animal onívoro, serpente
infinita, volátil, circular,
cuja boca multímoda, demente,
vai engolindo a cauda sem cessar.
Seu corpo invertebrado, inconsistente,
lembra as águas inóspitas do mar
em cujos interstícios vão a gente
ignara apenas pode naufragar.
Por isso naufragamos uns após
os outros, nesse vórtice profundo
em que, juntos embora, estamos sós
nesta violácea solidão do mundo
que é o sonho de Deus, ou Sua sombra
chão onde o tempo, réptil, nos assombra.
(SIMÕES, AV, 2002, p. 31)
No texto, as imagens do tempo aparecem como que dotadas de uma força destruidora,
sobretudo no que tange sua aproximação com a animalidade e onivoridade da serpente. A
qualidade do tempo onívoro torna-se responsável por uma espécie de “aniquilamento” do
sujeito poético no curso do tempo, uma vez que todos se vêem naufragados na “violácea
solidão do mundo”, onde o tempo assombra a humanidade com seu ciclo perene.
A austera progressão do tempo torna-se a sua “tirania”, pois, como salienta Meyerhoff,
é por meio dessa irreversibilidade do tempo que o homem experimenta o sofrimento, angústia
e derrota ao longo do caminho, uma vez que, à força destruidora do tempo, nada perdura, nem
as obras da natureza nem as obras humanas, nem o próprio homem (1976, p. 65).
Este aspecto negativo do tempo que, segundo Meyerhoff, tolhe todo o esforço humano
à sombra da morte, pois as coisas que são feitas no tempo são também desfeitas pelo tempo.
Meyerhoff destaca que Baudelaire sintetizou em uma frase esta força imbatível e irreversível
do tempo ao dizer que “O tempo engole-me de minuto a minuto como a neve profunda
engolfa um rígido corpo gelado”. Ou ainda, “O tempo é um jogador voraz que ganha em cada
lance” (BAUDELAIRE apud MEYERHOFF, 1976, p. 64). Tem-se um tempo cruel e onívoro
que parece esmagar o sujeito a cada momento pela idéia do tempo voraz e veloz.
O tempo é representado, no poema, pela imagem de um animal onívoro com boca
multímoda, uma serpente circular, remetendo à simbologia da serperte Uroboros
7
. A
referência a este Tempo enquanto réptil assustador que assombra o ser humano, fazendo-o
naufragar um após outro, lembra, também, as imagens do Regime Diurno, cuja característica,
segundo Gilbert Durand (2002), é a luta contra a passagem temporal e contra a morte, em um
jogo de antíteses em busca do antídoto do tempo uma epifania imaginária da angústia
humana diante da temporalidade, representada pelos símbolos teriomórficos.
Nestes símbolos, encontram-se as imagens animais, tidas como as mais comuns do
imaginário, pois o animal apresenta-se “como um abstrato espontâneo, o objeto de uma
assimilação simbólica, como mostra a universalidade e a pluralidade da sua presença tanto
numa consciência civilizada como na mentalidade primitiva” (DURAND, 2002, p. 70). Além
disso, o animal aparece com uma significação que se sobrepõe à animalidade, como acontece,
por exemplo, com a serpente. A sobreposição das motivações que provoca esta polivalência
semântica do símbolo teriomórfico faz notar que o tipo de animal escolhido é tão significativo
quanto a escolha da animalidade como tema geral, pois o arquétipo animal povoa o imaginário
humano. Durand afirma que o “homem tem assim tendência para a animalização do seu
pensamento e uma troca constante faz-se por essa assimilação entre os sentimentos humanos e
a animação do animal” (2002, p. 71).
Em (In)Temporal, a polivalência do simbolismo ofídico perde sua carga de trevas e
7 A Uróboros é a serpente que morde a própria cauda, evocando a imagem e a dinâmica do círculo como a
primeira roda, uma vez que gira em torno de si mesma, mas cujo movimento é infinito. Além de promotora da
vida, a Uróboros “cria o tempo, como a vida, em si mesma. É freqüentemente representada sob a forma de uma
corrente retorcida, a corrente das horas” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 816).
pecado que expressa a teriomorfia do Regime Diurno e ganha uma simbologia que contém “o
triplo segredo da morte, da fecundidade e do ciclo” (DURAND, 2002, p. 320). A serpente
representa a epifania do tempo, próprio do Regime Noturno das imagens. A imagem da
serpente converge para um duplo enquadramento dos Regimes Diurno e Noturno, que tanto
ela pode representar este tempo indestrutível e cíclico que assombra o homem quanto pode
remeter à faculdade de regeneração da serpente, que se liga ao esquema da Uróboros e integra
a simbologia dialética da vida e morte e o esquema cíclico do retorno: um tempo (in)temporal.
Nos poemas de João Manuel Simões, além das imagens do relógio e do animal
onívoro, o tempo também aparece associado à imagem do rio, ou seja, um Rio-Tempo sobre o
qual flui o presente, o passado, o futuro e a vida.
O poema“Tempo” funciona como uma tentativa de encontrar uma certa “teoria” que
defina e explique o mistério insondável do tempo:
Círculo branco. Rio
sem nascente e sem foz.
Mar imenso, macio
onde as naus somos nós.
(SIMÕES, OE, 1987, p.60)
Tem-se, nestes versos, a imagem de um tempo-rio sem nascente e sem foz, e que,
mesmo assim, forma um imenso mar, onde as naus que velejam são os seres humanos. O
tempo também aparece ligado à imagem do círculo
8
, como se ele fosse uma totalidade
indivisa, o que, de certa forma, explica sua associação com o rio sem nascente e foz, ou seja,
sem começo e sem fim, assim como o círculo. O tempo seria como um “imenso mar”, inteiro,
onde os seres humanos, no mesmo instante que navegam, naufragam.
O poema “Rio” sugere a idéia de que, no rio do tempo, o fluir da vida é feita de
8 Segundo Chevalier & Gheerbrant, o movimento circular é perfeito, imutável, sem variações. Esta característica
do círculo “o habilita a simbolizar o tempo. define-se o tempo como uma sucessão contínua e invariável de
instantes, todos idênticos uns aos outros” (2002, p. 250).
constantes perdas. O eu lírico declara que o tempo, além de ser esta totalidade sem divisas, é
também um “triturador” do momento presente:
Fluindo mansamente,
o passado, a caminho do futuro,
vai triturando as margens do presente.
(SIMÕES, IB, 1982, p.61)
São versos que apontam para a passagem temporal enquanto um fluir tranqüilo mas,
nem por isso, menos cruel e avassalador. A imagem do rio se liga às qualidades do tempo,
como se o manso fluir das águas do rio fossem equivalentes às horas e dias, que passam,
também calmamente, mas vão “triturando” as margens do presente, seguindo o curso que vai
do passado em direção ao futuro.
Nas águas desse rio, o passado e o presente vão sendo apagados e, quando alcançar o
futuro, também este será aniquilado, pois não escapará das águas “venenosas” do rio-tempo.
Como se o passado fosse a nascente e o futuro a foz, o rio do tempo não poupa as margens do
presente, e segue seu interminável fluxo na correnteza da vida.
No poema “Rugas”, o eu lírico demonstra que a passagem temporal deixa traços
indeléveis nos contornos da face. Se as águas do rio simbolizam o percurso temporal, as
inumeráveis gotas de chuva representam as marcas do tempo que caem sobre os rostos:
Inumerável como a chuva, o tempo,
caindo sobre os rostos, devagar,
vai traçando na pele sulcos breves.
Quem os pode apagar?
(SIMÕES, OE, 1987, p.30)
O manso deslizar do rio-tempo não “tritura” as margens do presente, como também
promove alterações na aparência das pessoas, pois as rugas representam a ação do tempo. Tão
inumerável quanto a chuva, o tempo que cai sobre os rostos provoca marcas difíceis de serem
apagadas. As rugas parecem representar mais do que a constatação da chegada da velhice, elas
simbolizam “sulcos” que não se restringem à aparência; podem expressar as adversidades da
vida, cujo tempo feroz, não cansa de proporcionar.
De acordo com Meyerhoff, a mais significante busca na vida do homem é descobrir
um modo de deter ou inverter esse irreversível fluxo do tempo em direção à morte: “a busca
de alguma base na experiência ou existência humana intocada por esse aspecto do tempo que
esteja além e fora do tempo” (1976, p. 66). Esse fato faz com que se leve em consideração a
busca de uma existência sem tempo, que remete mais uma vez ao aspecto do tempo e da
eternidade, que o significado de uma dimensão sem tempo pode ser apreciado
completamente quando colocado no contexto das reflexões resultantes da progressão temporal
para a morte ou o nada.
No entanto, na lírica de Simões, as reflexões sobre o tempo estão mais próximas da
questão vital do que da morte, uma vez que esta é uma condição aceitável e constitui o fim
último do homem. Importa é viver e aproveitar esta “eternidade provisória” que é a vida, no
fluxo desse tempo devorador ou rio sereno e perigoso, em cujas águas, a vida, o presente, o
passado e o futuro vão sendo tragados ou sugados.
O poema “Vida” dialoga com a categoria do tempo e da vida, em sua constante
dialética de brevidade e eternidade:
É mais que provisória, a vida: é breve
e brevemente, como um sopro, passa.
Mas sendo breve, embora, a vida, taça
mais doce de beber ninguém concebe.
(SIMÕES, OE, 1987, p.45)
No poema, o sujeito poético faz uma exaltação da vida em detrimento do horror e
terror contra o tempo. O eu lírico assume o poder implacável do tempo mas não teme essa
passagem, uma vez que, ainda que breve, a vida é a mais doce taça para se beber. Por isso,
deve ser aproveitada em sua brevidade sem medo de que o tempo cortará impiedosamente a
linha que separa a vida e a morte.
No que diz respeito à qualidade de transitoriedade da vida, que marca o tempo em
direção à morte, Meyerhoff destaca que o ponto de referência não é a eternidade e sim a
progressão do tempo na vida humana do nascimento à morte. Meyerhoff assinala, ainda, que a
temporalidade é como a pedra angular de uma elaborada análise metafísica do homem, como
se a natureza do homem fosse acossada pelo tempo e do qual não escapatória
(MEYERHOFF, 1976, p. 59).
Em termos de regimes do imaginário, conforme a acepção de Gilbert Durand, é
possível dizer que a imagem da vida tende a eufemizar os terrores teriomórficos do tempo
onívoro, em uma espécie de supremacia da vida ante a morte. O que se pode observar é que o
tempo aparece em sua dupla forma de atuação: tanto ele causa terror devido à sua
implacabilidade no curso da vida como também causa apaziguamento quando se percebe que,
para além da crueldade de Cronos, a vida pode ser aproveitada neste breve fragmento
temporal que lhe resta.
A transitoriedade o perecível da vida é a alma da existência e confere valor,
dignidade, interesse à vida e cria o tempo. Meyerhoff ressalta, consoante à acepção de Mann,
que o tempo pode ser visto como evolução criadora e progresso humano: “o tempo é o
presente supremo e o mais útil. Relaciona-se com tudo o que é criativo e ativo, e é mesmo
idêntico a isso, a cada progresso em direção a um objetivo mais alto” (MANN apud
MEYERHOFF, 1976, p. 60). O tempo é gerador de reflexões, elemento criador e produtivo na
experiência humana. Ao observá-lo sob esta perspectiva, a transitoriedade ganha um aspecto
positivo, pois o movimento rumo a morte é também uma condição de (re)nascimento
(MEYERHOFF, 1976, p. 61-62).
A imagem do tempo, na poética de João Manuel Simões, gravita em torno do fluxo
temporal que, tanto pode ser visto como um tempo que passa imperceptível e vai devorando
tudo, como pode ser um tempo mais brando que, embora demarque a brevidade da vida, é um
tempo sutil que traz a experiência vital. Neste último caso, não o assombro ou temor com
relação à destruição causada pelo tempo onívoro, pois no breve espaço da vida, o tempo deve
ser aproveitado.
As imagens do pássaro, do desdobramento do eu e do tempo, por sua vez, encontram-
se, polissemicamente, em torno dos dois regimes do imaginário, de que trata Gilbert Durand.
No entanto, é possível verificar uma predominância dos esquemas relacionados ao Regime
Diurno, sobretudo, por sua qualidade dualística e antitética em relação às faces do tempo.
Se, em um primeiro momento, as faces do tempo se revestem do simbolismo
teriomórfico (animalização), nictomórfico (água sombria, trevas) e catamórficas (queda,
carne), em um segundo momento, ocorre um afastamento da face temporal por seu
contraponto, a partir das imagens das dominantes posturais e da verticalização. Forma-se um
simbolismo da fuga diante do devir ou da vitória sobre o destino e a morte, por meio do
esquema ascensional, do arquétipo da luz e do esquema diairético.
No que diz respeito à imagem do pássaro, percebe-se que este aparece relacionado ao
esquema ascensional que se contrapõe ao simbolismo da queda. Segundo Durand, as imagens
dinâmicas da ascensão passam pelo esquema da elevação dos símbolos verticalizantes,
servindo de meio simbólico para atingir o céu (DURAND, 2002, p. 128). Nos poemas que
trazem a imagem do pássaro, ele seria um sinal de elevação, por isso encontra-se relacionado
à poesia, pois também esta, é uma forma de transcendência e de ascensão.
Outra imagem na lírica de Simões é a que abrange o tema do duplo ou do
desdobramento. O outro é o espelho através do qual o Eu é refletido. A imagem do espelho é
salutar quando se trata desta questão do Outro, uma vez que funciona como um símbolo
especular que reflete a verdadeira face do Eu, a partir da presença do Outro. No dizer de
Durand, o simbolismo do espelho surge como uma variação nictomórfica que tem como
elemento fundamental a água que, “além de bebida, foi o primeiro espelho dormente e
sombrio” (2002, p. 95). Para Durand, a imagem do espelho constitui-se símbolo capital do
duplicado e da água enquanto esta espécie de “espelho original” (2002, p. 100).
A imagem do tempo, por sua vez, aparece relacionada à sua face teriomórfica e
onívora, revestindo-se dos símbolos da animalidade que revogam a negatividade do destino e
da morte. Porém, esta imagem não se prende apenas ao aspecto negativo do fluxo temporal,
dada a variação do aspecto negativo para o positivo, promovendo a imagem de um tempo que
não pode ser visto apenas como “devorador”, mas que pode trazer experiências de vida.
O arquétipo do ciclo liga-se à totalidade temporal e do recomeço, fazendo com que o
tempo esteja relacionado ao movimento rítmico do devir. A “aceitação do devir” e a
supremacia da vida sobre o fim inevitável causado pela passagem temporal demonstra que
houve um afastamento da face temporal do Regime Diurno para uma aproximação positiva e
eufemizada, por meio da mudança do medo e horror à aceitação dessa progressão temporal.
Esta conversão ocorre através da procura e descoberta de um fator de constância da fluidez do
tempo na valorização da vida. Aproveitar a vida neste breve percurso de tempo é uma forma
de reconciliar o terror diante do tempo que foge ao controle humano e a esperança da vitória
sobre o tempo (DURAND, 2002, p. 282).
Como se percebe, a “classificação” das imagens não está organizada em quadros
estanques, pois os símbolos são polivalentes, o que obriga mais de um “enquadramento”.
Diferentemente do Regime Diurno, marcado pela luta contra a passagem do tempo, o Regime
Noturno tem outra atitude imaginativa frente ao tempo, justamente por procurar a
“intimidade” e a conversão dos horrores diante do tempo em possibilidade de recomeço.
A poesia constitui um meio através do qual é possível tornar vivas estas imagens ou
“constelações de imagens” que estão no imaginário humano e que são, freqüentemente, (re)
animadas pela imaginação criadora do poeta. Não se pode negar, todavia, que a imaginação,
conforme salienta Cruz, é a força dinâmica pela qual o homem consegue “imaginar mundos e
dar sentido à vida através de imagens” (CRUZ, 2001, p. 48).
João Manuel Simões faz um exercício constante de imaginação, pois traz para o poema
a força das imagens poéticas e, com isso, promove uma poesia reveladora do imaginário e do
saber humano, seja por meio de imagens cristalizadas ou pelas inovações e novas associações
que expressam a essência da poesia e sua qualidade “supraceleste” ou ascensional como o vôo
dos pássaros.
CAPÍTULO III
CONSTRUÇÕES POÉTICAS: A PALAVRA E O SILÊNCIO
São tantas as palavras/ - como as pessoas -,/ mas descobri-las
poéticas é um exercício/ secreto e refeito dia a dia.
(Arriete Vilela, 1999, p. 45)
Sem pontos/ de silêncio/ como entretecer/ a clara tessitura/ do
canto?
(João Manuel Simões, 1984, p. 16)
A poesia lírica é, por excelência, um campo fecundo do imaginário, pois nela pode-se
observar mais nitidamente a polivalência e o potencial da linguagem e das imagens poéticas,
assim como as conexões pertinentes ao domínio da imaginação criadora. A poesia possui a
virtude e a capacidade de sobreviver ao desgaste temporal, uma vez que é construída de
palavras e imagens que adquirem valor capital, ao assumirem a grandeza dos símbolos. Se
existisse uma palavra-chave através da qual se pudesse expressar a dimensão poética, esta
palavra poderia ser “transfiguração”, no sentido de que a poesia transmuta e transforma a
realidade do mundo e do homem em encanto e beleza; ela cristaliza o irreal e concretiza o
abstrato, por meio de uma dialética em que as palavras deixam de ser “estáticas moléculas dos
dicionários” (usando a expressão do poeta João Manuel Simões), para se tornarem dinamismo
criador de sonho, de ritmo e imaginação.
Para João Manuel Simões (1978), esta capacidade de transfiguração da linguagem
poética faz com que a poesia transforme a linguagem em uma linguagem depurada, purificada
e vivificada por uma série de valores, que passam pelo campo sensível da imaginação e
criação poética. Segundo o autor, a missão dos poetas estará finda ao criar esta linguagem
“transfigurada”, uma vez que “a poesia tem, como atributo fundamental o dom de transfigurar,
de reformular o seu objeto imediato” (SIMÕES, 1978, p. 58). É, portanto, pela transfiguração
e reformulação que a poesia atinge a plenitude da criação, que a torna capaz de extrair algo do
nada, de dizer o indizível e tocar no mais profundo do sentimento humano de revelar e
despertar a própria condição original do homem e da linguagem. Assim, a faculdade da
criação poética passa, necessariamente, pela palavra, pois é por ela e nela que se constrói o
edifício poético que sobrevive ao próprio homem e ao tempo, fazendo com que a poesia cante
e encante o leitor a cada nova leitura, independentemente da época ou da sociedade.
No entanto, antes de lançar no papel os versos, o poeta passa por uma experiência que,
segundo Simões, poderá ser caótica, irregular e fragmentária, pois as “imagens tumultuam no
seu cérebro, as palavras gravitam implacavelmente na sua imaginação, com velocidade
vertiginosa, sombras e luzes confundem-se no seu espírito” (1978, p. 61). O poeta passa por
um fenômeno singular da criação, mas esse tumulto anula-se em um determinado momento e
eis que o as imagens se imobilizam, a gravitação cessa e as palavras se ordenam, dizendo ao
leitor aquilo que o poeta quis dizer em sua “alucinação, êxtase ou devaneio”, isto é, a poesia
que surge representa um momento deslumbrado de encontro definitivo com a palavra ou
imagem poética (SIMÕES, 1978, p. 61).
A sensibilidade do poeta faz dele um ser capaz de sintonizar as ondas e captar os ecos
do mundo. Além disso, o poeta deve olhar para si mesmo, mergulhando nas galerias abissais
do seu espírito em busca das emoções e da fonte dos sentimentos, desnudando a própria alma.
O poeta sonda o ser para conferir às imagens verdadeira dimensão poética: ele sente antes de
dizer. A poesia, escreve Simões, antes de qualquer outra coisa, é vida e fonte de vida:
[...] a poesia, mais do que um jogo lúdico de palavras suspensas no vácuo,
mais do que um mero halterofilismo verbal, mais do uma lenta peregrinação
pelos labirintos onde se perdem os significados das coisas, mais do que uma
perpétua resposta às indagações sibilinas da esfinge, mais do que construção
de cosmos oníricos e desintegração de universos reais, mais do que um
prodígio encantatório que vivifica e aliena, faz ascender aos céus e precipita
nos abismos, mais, muito mais do que tudo isso, é vida. Vida e Fonte de
vida. Será isso muito? É muito e é tudo (SIMÕES, 1978, p. 67).
A poesia surge como uma possibilidade de “desvelamento”, em que as palavras não
seriam usadas no sentido de ornamentação ou estética do poema, mas passariam a registrar os
momentos de encanto e afinidade com a vida. Por isso, Simões ressalta que a poesia deve ser
“Sinônimo de criação, reformulação, transfiguração, catarse” (1973, p. 5). Ou seja, ela vai
além do que a linguagem dos sentidos mostra, pois ela transforma esta linguagem em uma
linguagem nova
1
, portadora de múltiplos sentidos e capaz de vencer as fronteiras materiais
que poderiam prender seu canto a um momento específico da história. A poesia faz eclodir um
canto universal, através do qual o poeta proclama que está vivo, que a poesia é vida e, mais do
que isso, é a sua vida.
Para Dufrenne (1969), a poesia não inventa a linguagem, mas a produz e transfigura a
linguagem comum. Essa triunfante metamorfose da linguagem poética opera-se de uma
maneira simples: a poesia restitui o estado primeiro da linguagem e devolve seu vigor e
frescor originais (1969, p. 49). A linguagem poética é de uma natureza que fala e inspira, de
uma “Natureza naturante” que fala por si mesma. O potencial expressivo da linguagem será
tanto mais elevado quanto mais a palavra for restituída à sua natureza
2
e reconduzida à sua
origem, tal qual descreve e experimenta o sentimento. As palavras trazem em si a expressão e,
pela poesia, as palavras são colocadas em liberdade, quer dizer, as palavras que escolheram a
liberdade de expressão, pela magia das imagens, retornam à sua natureza, movimentando-se e
desvanecendo-se no poema de forma surpreendente e graciosa.
Na concepção de Dufrenne, o “poeta autêntico
3
liberta a palavra da natureza e, pelo
seu toque, tudo pode se transformar em poético, uma vez que “há poesia em toda arte”, porque
1 A idéia de uma linguagem nova não quer dizer que, na poesia, o poeta cria uma nova linguagem. Ao contrário,
ele se vale da mesma linguagem (“linguagem antiga”) e a reveste com “cores novas”, promovendo uma
pluralidade de sentidos, por meio do emprego de imagens e símbolos ou outras técnicas que possibilitem a
ampliação significativa do poema ou das palavras que o compõe.
2 A natureza a que se refere Dufrenne (1969) é empregada no sentido de uma necessidade que é reconhecida
pela percepção estética da obra finalizada e bela, por uma necessidade de natureza. No objeto estético fabricado,
não ocorre a imitação da natureza, mas a sua produção. A poesia faz o mesmo com a linguagem: ela reanima as
palavras, reativa seu poder expressivo, produz o necessário à necessidade, tratando a linguagem como natureza.
3 Dufrenne emprega a expressão “poeta autêntico” para fazer referência à autenticidade da criação poética,
quando o poeta se encontra em comunhão com a natureza e consegue converter em poema as imagens oferecidas
por esta “natureza naturante” (1969, p. 231).
a poesia é “comunhão espiritual com o ser” (1969, p. 231). A poesia torna-se poética, porque
expressa o ser poético da natureza; ela é a primeira linguagem que, no homem, responde à
linguagem da natureza, mas a natureza fala por meio da força silenciosa da imagem. A
natureza é potência do aparecer, manifestada nas imagens carregadas de um mundo
(DUFRENNE, 1969, p. 227).
A poesia seria um convite para ultrapassar a concepção, ou a imaginação, em direção à
percepção e ao verbo, pois quando “a percepção do verbo se aprofunda em sentimento,
penetra no mundo que a obra exprime, guiada por imagens suficientemente discretas para não
bloquear seu horizonte” (DUFRENNE, 1969, p. 109). Neste sentido, o estado poético pode ser
identificado com esse estado de encantamento, provocado pelos poderes do verbo no poema.
A virtude da poesia, afirma Dufrenne, “consiste em igualarmo-nos a ela mesma”, pois ela
incita o leitor a ser, ele mesmo, um ser poético. Isso não quer dizer que o leitor equivale ao
poeta, mas que ele se torna uma espécie de colaborador do poeta, uma vez que realiza em si
mesmo o que o poeta criou, sem criar, sem imaginar por sua própria conta.
Para Dufrenne (1969), existem duas imagens de poeta que se contrapõem e, ao mesmo
tempo, se complementam: o poeta-artesão e o poeta-inspirado. A primeira imagem tende a
negar o estado poético em proveito do ato poético, pois ressalta o caráter voluntário, laborioso
e artesanal da criação poética. O poeta seria como um artesão que conhece todas as receitas de
sua arte; é como um obreiro que tem consciência do prestígio que ela lhe confere junto aos
que solicitam seus serviços. Este poeta sente-se responsável pelo destino da linguagem, ao
fazer uma operação que o transcende e o associa ao sagrado (DUFRENNE, 1969, p. 123). O
poeta aparece representado enquanto o depositário de uma verdade que deve ser repetida sem
alterações para que possa ser preservada: “o que foi dito, está dito de uma vez por todas. E o
homem que guarda o segrêdo (sic) dessa palavra pode apenas tornar a dizê-lo, para assegurar
àquela sua eficácia” (DUFRENNE, 1969, p. 124).
Embora o poeta seja comparado a um artesão, existe também a imagem do poeta-
inspirado e, portanto, menos cioso de seu ato do que propriamente de seu estado. O estado
poético, para o poeta inspirado, é a garantia de autenticidade na medida em que não é
responsável por seu estado, como se entre ele e a obra houvesse a interferência de uma
segunda pessoa que anima e orienta a criação (DUFRENNE, 1969, p. 129).
Entretanto, como assegura Dufrenne, é inútil separar inspiração e trabalho, uma vez
que “o trabalho explora a inspiração”, mas também ele “é inspirado” (1969, p. 138). Isso se
deve ao fato de que se à inspiração não acompanhasse o trabalho, sendo apenas uma graça de
instante, ela não seria nada. Os poetas praticam, simultaneamente, trabalho e inspiração, pois
só a inspiração não bastaria para fazer do poeta um gênio: a inspiração não pode ser concebida
sem o trabalho, como também este não pode ser concebido sem inspiração.
O itinerário poético, na acepção de Valéry, vai da sensação em direção a alguma idéia
ou sentimento, voltando, posteriormente, a alguma lembrança da sensação e à ação virtual que
reproduziria essa sensação. A memória seria a substância de qualquer pensamento, pois o
pensamento é o trabalho que faz surgir o que não existe, que faz tomar a parte pelo todo, a
imagem pela realidade, que a ilusão de ver, de agir, de suportar: “Entre a Voz e o
Pensamento, entre o Pensamento e a Voz, entre a Presença e a Ausência oscila o pêndulo
poético” (VALÉRY, 1991, p. 214).
O poeta não se vale apenas de inspiração e da presença do universo poético; ele tem
seu pensamento abstrato e utiliza uma quantidade de reflexão, ou seja, tem sua filosofia. O
poeta é um arquiteto de poemas que, ao se valer das palavras, transforma o poema em “uma
espécie de máquina de produzir estado poético” (VALÉRY, 1991, p. 217). Por isso, ele possui
a capacidade de despertar no homem um incidente externo ou interno, uma emoção, uma
palavra, uma vontade de expressão, uma necessidade de traduzir o que sente, mas, algumas
vezes, também desperta um elemento de forma, um esboço de expressão que procura um
sentido no espaço da alma.
Por ser uma arte que coordena o ximo de fatores e de partes independentes, tais
como o som, o sentido, o real e o imaginário, a lógica, a sintaxe e a dupla invenção da forma e
do conteúdo, por meio da transfiguração da linguagem comum em linguagem poética, a
poesia é capaz de comunicar sem fraquezas e sem aparente esforço uma idéia encantadora que
transcende o próprio sujeito, o tempo e a história (VALÉRY, 1991, p. 218).
Neste sentido, um dos fatores determinantes da poesia seria a “cirurgia estética”
operada pelo poeta na palavra, o que implica a questão da “alquimia verbal”. Desta
“operaçãoé que as palavras poderão tornar-se poéticas ou não e alcançar a dimensão poética
do canto, da “música das esferas”. As palavras que são “operadas” pelo poeta soam
harmonicamente e dão acesso a um mundo singular que expressa o existencial.
Assim, o poeta deveria ser aquele que libertasse a palavra de seu uso cotidiano e
prosaico, ainda que nas margens do silêncio, de um silêncio que pode ser falado e de onde as
palavras brilham, pois, neste caso, o seu silêncio é também uma palavra pela qual algo da
natureza ou do mundo se exprime. Como o som que se propaga no silêncio tornando-se
audível, a poesia nasce no silêncio e no balbucio das palavras, ou seja, no poder de dizer.
A poesia, segundo Paz, aspira irresistivelmente a recuperar a linguagem como uma
realidade total: “O poeta torna palavra tudo o que toca, sem excluir o silêncioe os brancos do
texto” (1982, p. 344). A palavra de ordem que impulsiona a poesia é a “transfiguração”, a
transformação do verbo, a conversão de um estado a outro, de uma linguagem a outra, do
silêncio em voz, pois, na poesia, ele se converte em voz, em canto e em sentido.
De acordo com Paz, a palavra é o próprio homem, pois não pensamento sem
linguagem e nem mesmo objeto de conhecimento, porque “somos feitos de palavras”. A
primeira coisa que o homem faz diante de uma realidade desconhecida é “nomeá-la, batizá-
la”: “As palavras não vivem fora de nós. Nós somos o seu mundo e elas o nosso. [...] A
linguagem é uma condição da existência do homem e não um objeto, um organismo ou um
sistema convencional de signos que podemos aceitar ou rejeitar” (1982, p. 37-38).
O homem é o que é graças à linguagem; ele é um ser que se criou ao criar a linguagem.
E a palavra, por sua vez, é uma ponte através da qual o homem tenta superar a distância que o
separa da realidade exterior. No dizer de Paz, a linguagem é poesia em estado natural, ou seja,
cada palavra ou grupo de palavras é uma metáfora e possui, em si mesma, uma pluralidade de
sentidos.
Simões ressalta que os poetas formam uma porção da humanidade e seus olhos vêem o
que os homens contemplam. Eles conjugam todas as visões em um olhar novo e único. Além
dessa contemplação, os poetas projetam este sentimento no mundo, transmitindo e
comunicando a todos os homens a palavra poética, que é “veículo condutor por onde viaja a
luz da poesia” (SIMÕES, 1978, p. 63).
A poesia, na concepção de Simões, é uma arte que manipula o maior número possível
de elementos que passam pela forma, som, sentido, estrutura, real, imaginário, significado e
significante. Na “oficina” da poesia, “a matéria-prima, a palavra, torna-se simultaneamente
discurso e canto, pintura e música. Imagem e símbolo. Realidade e metáfora. Coisa concreta e
pulsação cardíaca imaterial” (SIMÕES, 1991, p. 14).
Para Hegel, o que constitui a nobreza do poeta lírico é a sua capacidade elevada de
grandeza interior, pois o que se exprime na obra lírica é a totalidade da vida interior do
indivíduo. O poeta impele voz e expressão artística a tudo o que se passa em sua alma ou
pensamento, quer dizer, ele transforma em intuição poética tudo o que o impressiona. Na
poesia lírica, “o poeta atrai o real para a esfera dos sentimentos, transforma-o num objecto
(sic) da sua experiência interna, e é depois de o ter interiorizado que o exprime sob um
revestimento verbal” (HEGEL, 1980, p. 247).
Conforme o exposto, mesmo para Hegel, que pensa a poesia lírica como expressão
autêntica do conteúdo da alma humana e como expressão subjetiva do espírito ou consciência
da interioridade, é possível constatar que o filósofo não nega o caráter da essencialidade do
“revestimento verbal”, pois a poesia é, por excelência, trabalho com a linguagem. Ainda que
se admita a característica de interioridade, a inspiração como exterior e alheia à vontade do
poeta, o resultado final (o poema) passa, necessariamente, por uma “manipulação alquímica”
da palavra.
Na obra poética de João Manuel Simões, é possível verificar este cuidado na
elaboração dos poemas, uma vez que o poeta parece impelir voz e sentido às palavras e
imagens, extraindo do silêncio, das imagens, da palavra, do canto, da intuição e do
pensamento abstrato a expressão para os sentimentos, para as angústias do ser humano, para a
sua condição de poeta ante o ato da criação e da reflexão ontológica sobre a essência humana.
Simões, na qualidade de “poeta autêntico” (usando a expressão e acepção de
Dufrenne), opera uma transfiguração verbal na tessitura da construção poética, extraindo do
silêncio o tema e o canto de sua poesia, em uma poética
4
que eleva, revela e liberta a palavra
de suas conexões cotidianas para o plano do sublime e transcendental.
A preocupação acerca das construções poéticas é uma característica que se acentua
com a modernidade, em que o poeta, por meio da metapoesia, reflete sobre seu ato de criação
e tenta desvendar a “chave que abre o poema”. Sem dúvida, deve-se a Baudelaire a primeira
abordagem daquilo que viria a tornar-se, depois dele, a vocação da modernidade, quando
afirmou que a doutrina da modernidade teria “um elemento eterno, imutável e um elemento
relativo, limitado. Este último... é condicionado pela época, pela moda, pela moral, pelas
paixões. O primeiro elemento não seria assimilável... sem este segundo elemento”
(BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1975, p. 17). Entre a parte móvel e aleatória e a imutável
e eterna, Baudelaire prossegue na ambivalência e no dilaceramento espiritual, pois a arte
acompanha o desenvolvimento contínuo do mundo. A dialética do transitório-eterno tem
fundamento na dualidade da arte e do homem, como se o eterno fosse a essência da arte (o que
não muda) e o circunstancial fosse a matéria que interfere constantemente nas transformações
4 Nos vinte e nove livros de poesia do poeta João Manuel Simões, foram encontrados mais de cento e vinte
poemas que tratam do tema da palavra e do silêncio, em uma constante indagação de como se engendra o poema
e de qual é o mistério que o envolve.
artísticas. A modernidade, cujos desígnios e devir Baudelaire descobre, é, simultaneamente,
sinal de uma perda de substância e uma espécie de queda ou exílio.
Para Rimbaud, a modernidade representaria a libertação de toda forma de tradição que
restringe a poesia a uma espécie de imitação do modelo grego. A poesia deve tomar frente
nesta marcha para o progresso. A modernidade, em Rimbaud, pretende a obliteração mágica
dos elementos mediadores, para se ater ao registro da temporalidade e ao aparecimento do
instante absoluto e bruto. Tal como a concebe Rimbaud, a modernidade coloca-se como uma
leitura do mundo sensível sem antecedentes, como um questionamento da invariância das
estruturas mentais que manifestariam a “natureza” do homem, a “essência do ser”, ou seja,
seria o que Esteban destaca como “intangibilidade” dos elementos constitutivos e originais
(ESTEBAN, 1991, p. 6).
Segundo Esteban, por mais anti-hegeliana que se declare, a modernidade de hoje não
deixa de querer apreender-se contraditoriamente como especificidade pura e como verdade
última da história. Esse equívoco permanece e a contradição mental não cessa de se agravar,
“pois não pode haver cultura que se fundamenta no critério único da simples
contemporaneidade” (ESTEBAN, 1991, p. 8). A modernidade do “atual” aparece sustentada
pela permanência de um “inatual”, que poderia ser confundido erradamente com qualquer
simulacro de intemporalidade.
A escrita que valoriza os brancos da página é, portanto, um mérito da modernidade. E,
se por um lado Baudelaire rompeu com a palavra e, por outro lado, Rimbaud inventou o
“verbo novo”, Mallar conquistou o mérito da conciliação da música e do silêncio. Como
em uma partitura musical, Mallarmé une a palavra e o silêncio na teia da construção poética.
Em seu conhecido e famoso poema, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, a
valorização dos espaços da página, no qual o poeta antecipa o visual, fazendo com que palavra
e silêncio compartilhem uma simetria significativa. A artesania do poeta se faz notar na
disposição das palavras, que não são jogadas ao acaso, como sugere o lance de dados, mas
dotadas de intencionalidade, pois a realidade da poesia consiste justamente no fato de ser
composta de palavras.
Chiampi (1991) foi buscar nas palavras de seus próprios fundadores, desde o início,
nas literaturas de língua alemã, inglesa e francesa, até os seus desdobramentos nas literaturas
italiana, russa, norte-americana, espanhola e hispano-americana, a gênese da idéia de arte e
literatura modernas. De um modo geral, pode-se constatar que os fundadores da modernidade
buscavam uma criatividade artística e uma autonomia da arte. De modo particular, que se
levar em consideração que o quadro histórico e o processo de transição entre a produção
romântica, realista, simbolista e “moderna” diferem entre os países, interferindo,
conseqüentemente, no teor da produção e, sobretudo, no modo de produção e ruptura estética.
Hoje, a tarefa da poesia, segundo Esteban, não pode ser mais a de “repertoriar”
piedosamente as ruínas do passado, mas a de inventar o futuro. A palavra, ontem cativa, deve
fazer-se vocativa e convocar o amanhã (1991, p. 61). O poema é o lugar de uma luta
incansável entre a palavra e o silêncio. A poesia, afirma Esteban, é o lugar das metamorfoses,
é travessia, balbucio dos pensamentos e imagens do homem (ESTEBAN, 1991, p. 115).
Esteban demonstra certo otimismo ao afirmar ver surgirem sinais desta poesia que
tentará, mais uma vez, “fazer brotar no campo desolado do real noite e ferrugem, armas
desconjuntadas, desejos mortos o trigo novo de uma palavra” (1991, p. 224). Nesta busca
incessante da palavra, a poética da modernidade tem buscado, na moenda das construções
poéticas, imagens e símbolos do universo imaginário, de tal forma que a imaginação
simbólica é também imaginação criante. A poesia, ainda que sob os auspícios do mundo
moderno, tecnológico e científico, não conseguiu se desvencilhar totalmente do mundo
imaginário, uma vez que o pensamento humano sofre, constantemente, a interferência do
pensamento mítico e simbólico.
Em Bachelard, por exemplo, a produção poética aparece condicionada pela influência
do imaginário. O poeta alia sua criatividade ao material retido pela memória, recriando, com o
auxílio da imaginação, os motes que compõem sua poesia, dando a eles novos tons. Para
Bachelard (1998), as forças imaginantes desenvolvem-se, na mente humana, em duas linhas
diferentes, pois umas encontram seu impulso na novidade; já, outras escavam o fundo do ser e
querem encontrar tanto o primitivo quanto o eterno. Assim, é possível distinguir duas
imaginações: uma, que vida à causa formal, e outra, que vida à causa material. A
imaginação formal e a material fazem-se indispensáveis a um estudo que queira entender a
criação poética, dada a importância das imagens materiais que povoam o imaginário coletivo.
Há obras, porém, em que as duas forças imaginativas atuam juntas, sendo praticamente
impossível separá-las. Segundo Bachelard, no reino da imaginação, existe uma lei dos quatro
elementos, segundo a qual, as diversas imaginações materiais se associam ao fogo, ao ar, à
água e à terra. Isso porque as imagens poéticas possuem uma matéria, o que obriga um estudo
da causalidade material e da causalidade formal: “Muitas imagens esboçadas não podem viver
porque são meros jogos formais, porque não estão realmente adaptadas à matéria que devem
ornamentar” (BACHELARD, 1998, p. 3).
É nesta perspectiva bachelardiana que a construção poética é feita de um tecido
especial que mescla aspectos imaginários à forma do poema, povoando-o de imagens poéticas
que estão no plano dos devaneios e dos sonhos. No dizer de Bachelard, mais que inventar
coisas e dramas, a imaginação inventa vida nova e cria linguagem nova: poesia (1998, p. 18).
Segundo Bachelard, nesta adesão ao invisível, encontra-se a poesia primordial; a
poesia que permite tomar gosto pelo destino íntimo, dando a impressão de juventude ou
rejuvenescimento ao restituir a faculdade de maravilhamento: “A verdadeira poesia é uma
função de despertar” (1998, p. 18). Para que a poesia cumpra esta função de despertar, é
preciso seguir as imagens que nascem nos homens e que vivem nos seus sonhos; seguir essas
imagens carregadas de matéria onírica que é o alimento inesgotável para a imaginação
material (1998, p. 20). Refazer o caminho onírico ou o caminho que conduz ao poema é o que
Bachelard tenta fazer em vários de seus livros que tratam da imaginação poética, pois,
assim, seria possível resgatar as imagens e a palavra poética que deram origem ao poema.
O poema ser de palavras vai além das palavras. A história, por sua vez, não esgota
o sentido do poema, mas este não teria sentido, nem sequer existência, sem a história, sem a
comunidade que o alimenta e à qual alimenta (PAZ, 1982, p. 225-226). Pode-se dizer, a partir
disso, que o poema é um tecido de palavras perfeitamente datáveis, porque pertencem a um
povo e a um momento da fala desse povo. No entanto, estas palavras também são anteriores a
toda data, o que pressupõe que a palavra poética jamais é totalmente deste mundo: a poesia
parece escapar à lei da gravidade e da história, uma vez que sua palavra nunca é inteiramente
histórica (1982, p. 231). Definir a poesia parece ser uma tarefa difícil, mais ou menos como
assinalou Borges (2000), ao dizer que, se não lhe perguntassem o que é a poesia, ele saberia
dizer, mas, se lhe perguntassem, então, não saberia mais.
Paz sugere respostas, afirmando que a poesia é uma criação verbal, feita de palavras,
sons e sentidos, mas também se constitui de “outras vozes”, vozes estas que falam pela boca
do poeta. A outra voz é “do poeta trágico e a do bufão, da solitária melancólica e da festa, é a
risada e o suspiro, a voz do abraço dos amantes e a de Hamlet diante do crânio, a voz do
silêncio e a do tumulto, louca sabedoria e sensata loucura” (1993, p. 73-74). Segundo Paz, um
poema é um conjuro verbal que provoca no leitor, ou no ouvinte, um fornecedor de imagens
mentais.
Na poesia de João Manuel Simões, é possível constatar que o poeta aborda
constantemente a questão da dependência que se firma entre a palavra e o poema. No entanto,
Simões reconhece que o poema não se compõe apenas de palavra, pois, na criação poética, o
poema estaria condicionado, simultaneamente, ao silêncio e à palavra. Palavra e silêncio
representariam as duas matérias imprescindíveis na elaboração poética, uma vez que, a partir
delas, tanto se chegaria à gênese da criação quanto à “álgebra do canto”, quer dizer, pela
conciliação entre a palavra e o silêncio, se obteria a música ou o canto da poesia.
Vale ressaltar que, ao tentar buscar a equação do canto ou a gênese da criação poética,
a partir da utilização de uma certa dosagem de silêncio, palavra, imaginação e inspiração,
Simões parece promover uma exaltação da poesia, como se esta fosse o tema central. A
reflexão metapoética se expande como uma espécie de “teorização” da poesia, como se o
poeta estivesse tentando conceituá-la ou defini-la, valendo-se, para tanto, de vocábulos que a
elevam à dimensão de transcendência e magia. Ao refletir sobre a construção poética, o poeta
apresenta ao leitor uma glorificação da poesia, privilegiando tanto os aspectos necessários à
sua composição (palavra, silêncio e artesania) quanto os elementos que pertencem ao plano
imaginário e onírico (inspiração, sonho e imaginação). Ou seja, na construção poética, o poeta
precisaria valorizar o trabalho com a linguagem e a inspiração, mas também deveria dar
ênfase ao valor do silêncio enquanto uma forma de linguagem fundamental à trama poética.
3.1 A GÊNESE DA CRIAÇÃO POÉTICA
Na obra poética de João Manuel Simões, palavra e silêncio são temas capitais que
remetem à busca do poeta em tentar entender a gênese da criação poética. A valorização do
espaço, dos brancos do papel e do silêncio, no caso dos poemas sintéticos, conjuga forma e
sentido, na medida em que o silêncio é também palavra pela qual algo é dito. Simões aponta,
por um lado, para um silêncio que fala e que adquire o mesmo brilho das palavras, um
silêncio que ajuda a entender sua própria condição humana. Por outro lado, observam-se
outros tipos de referência ao silêncio, como, por exemplo, a exaltação do canto e da palavra
contra o silêncio árido, ou seja, a tentativa de eliminar o silêncio que anula a criação poética,
por meio da supervalorização da palavra poética e do canto. Com isso, o poeta apresenta as
várias faces do silêncio, mostrando que ele constitui uma matéria importante na construção
poética, uma vez que oscila entre a eloqüência e o sussurro, sem deixar de ser esta “outra
voz
5
” que acompanha a poesia.
A princípio, o silêncio aparece relacionado ao mistério da criação artística,
demonstrando uma forte preocupação, por parte do poeta, em desvendar o processo da
artesania poética. Títulos como “Gênese”, “Busca”, “O primeiro dia da criação”,
“Construção”, “Invenção do poema”, “Teorema” são freqüentes na poesia de Simões e dizem
respeito à reflexão e indagação do modo pelo qual o poema atinge sua plenitude e forma.
No entanto, mesmo colocando em destaque a importância do silêncio na criação
poética, Simões não deixa de ressaltar que, na poesia, a palavra é fundamental, pois um poema
“é uma aventura ontológica que se desenrola à superfície e no âmago do verbo” (SIMÕES,
1991, p. 18). Assim, palavra e silêncio simbolizariam a estrutura basilar que fundamenta o
processo de construção poética, constituindo matérias indispensáveis para uma reflexão acerca
da formação do poema e do canto essencial da poesia.
No poema “Gênese”, nota-se um sujeito lírico que se interroga sobre o fazer poético,
em busca de saber qual a origem do poema:
Como se engendra o poema? Que plausível
sêmen está na sua origem? Onde
a placenta em que ocorre a gestação
(e quanto dura) até que surja, à clara
luz do dia, de verbo e de silêncio
feito? Como saber se ele está vivo
ou não passa de simples natimorto?
De quem a mão, o fórceps que o tira
da noite em que dormia o sono manso?
Pouco importa sabê-lo. Basta apenas
que ele esteja comigo, aqui e agora,
corpo tenro que aperto nos meus braços,
filho eleito do sangue das metáforas.
(SIMÕES, CV, 1997, p. 33).
5 A expressão “outra voz” reporta ao livro A outra voz, de Octavio Paz. O autor a utiliza para designar a
singularidade da poesia moderna como sendo resultante da singularidade da voz do poeta: “A singularidade da
poesia moderna não vem das idéias ou das atitudes do poeta: vem de sua voz. Melhor dizendo: do sotaque de sua
voz. É uma modulação indefinida, inconfundível e que, fatalmente, a torna outra. É a marca, não do pecado, e
sim da diferença original” (1993, p. 141, grifo do autor).
As perguntas do eu lírico fazem referência à investigação do modo pelo qual o poema
é engendrado, onde ocorre a gestação e como ele nasce. A gênese da criação aparece
equiparada ao ato de fecundação humana, na qual o óvulo-poema é fecundado e passa por um
processo de gestação até que nasça. No entanto, a preocupação é justamente saber/descobrir
como ele nasce; se este processo é natural ou precisa da intervenção de uma outra pessoa, de
um “fórceps” que o arranque “da noite em que dormia”.
As mesmas perguntas podem funcionar como uma espécie de resposta, pois, ao
indagar, a voz lírica sugere que o poema passa por um processo de gestação e
amadurecimento, até que seja arrancando desta placenta onde crescia e surja “de verbo e
silêncio feito”, vivo ou natimorto. Embora o sujeito da enunciação demonstre certa
preocupação em desvendar a chave da criação-gestação, nos quatro últimos versos, ele afirma
não ter relevância alguma responder estas questões, uma vez que o que realmente importa é
saber que o poema esteja com ele sempre, como uma criança que tem nos braços “o filho
eleito do sangue das metáforas”.
A singeleza da imagem da criação ganha uma dimensão de amor materno, pois o
poema é como uma criança recém-nascida, que a mãe toma nos braços e, a partir do momento
que a tem junto de si, é como se esquecesse todos os sofrimentos da gestação, as dores do
parto, importando apenas tê-la em seu colo. O poema é como este recém-nascido, cujo sangue
é composto por palavra e silêncio. Porém, diferentemente do homem, o poema nasce para
jamais morrer, que ele é feito de palavras, é filho das metáforas e, em suas veias, corre este
“sangue” diferente que o pode tornar “imortal”. Independentemente de como ocorre o
processo de gestação, a gênese da poesia está relacionada à transfiguração da palavra, porque
a poesia é linguagem e a poesia moderna é poema da poesia.
No poema “Parto”, o sujeito lírico corrobora a idéia de que é o trabalho com a
linguagem que dará grandeza à poesia e o que determinará se ela nascerá viva ou morta,
pois é a partir do parto que o poeta efetua que se tem a dimensão da grandeza ou não da
poesia:
Depois da gestação
do claro poema
nas entranhas da alma
(útero quente)
faço da pena
o fórceps.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 69)
São versos que sugerem a relação do poeta com a realização do “parto” do poema.
Com a pena-fórceps, o poeta arranca as palavras de suas “conexões habituais” e cotidianas,
transformando-as em palavra poética. A gestação, por sua vez, ocorre nas entranhas da alma
do poeta, comparada, no poema, a um “útero quente”, deixando entrever, por meio desta
comparação, o local em que ocorre o processo de gestação. Não se sabe ao certo, porém, qual
o período desta gestação; entretanto, sabe-se que é um processo que requer a intervenção do
poeta, pois o poema nasce, não por um processo de “parto normal” (o que seria equivalente à
inspiração), mas por um parto cesariano, que necessita, acima de tudo, experiência e
conhecimento especializado. O poeta seria como uma espécie de “médico-artesão” (ou
cirurgião plástico) que “opera” as palavras, convertendo-as em “objetos de arte”.
Também no soneto Construção” é possível constatar a imagem do poeta que, com o
fórceps, extrai o poema da placenta, construindo-o a partir de um duro processo de escrita que
pode ser identificada como uma alquimia verbal:
Para reconstruir o mundo invento
a palavra que o diz, nessa alquimia
com que, por sobre a lisa folha, tento
fazer da noite negra claro dia.
Se iluminar o mundo é meu intento,
(já brande o gládio-pena a mão esguia)
como pode existir contentamento
onde o silêncio o som do verbo adia?
Por isso escrevo aos poucos, aos arrancos,
como quem, com o fórceps, extrai
o naciturno, o poema, da placenta
onde talvez sonhasse sonhos brancos.
Assim avança, devagar, e vai
a mão sobre o papel, de luz sedenta.
(SIMÕES, AV, 2002, p. 21)
O poema inicia-se com uma referência ao mito genesíaco, segundo o qual Deus teria
criado o mundo pela matéria verbal a palavra. No poema, o sujeito poético demonstra ter
conhecimento de uma primeira “criação-construção” através do verbo, motivo pelo qual ele
diz fazer (ou tentar fazer) uma “reconstrução”. E, para reconstruir o mundo, ele se valerá do
mesmo processo e da mesma matéria, ou seja, a palavra, através da qual poderá fazer uma
“alquimia verbal” sobre a folha lisa: criar o poema do caos ou do branco da página.
É como se o poeta fosse esse alquimista criador que preenche a folha branca com
palavras, transformando a “noite negra” em “claro dia”. A palavra e a poesia surgem como
possibilidades de claridade e visibilidade, construção e reconstrução do mundo. Com sua
pena, o poeta faria da palavra luz que ilumina e constrói o mundo e elimina o silêncio que
adia o verbo. Na voz do sujeito da enunciação, o silêncio é quase o reverso da palavra, pois
ele adia o verbo e impede o canto, por isso, deve ser combatido pelo gládio-pena do poeta.
Para tanto, o poeta necessita escrever e arrancar o poema da placenta onde está engendrado.
Assim, a escrita ou criação avança sobre o papel, repleta de luz; de uma luz capaz de clarear o
mundo e reconstruí-lo, pois é pela palavra que o poeta exime a palavra do silêncio e a
converte em fonte de luz – palavra poética capaz de iluminar e incendiar a noite do silêncio.
O silêncio e a palavra estão sempre conectados, são dois lados do processo de criação.
A construção poética, porém, é detentora da capacidade de eliminar as marcas da “lisa folha”
e antecipar o canto que canta o mundo, porque possui em seu tecido a trama da palavra que o
sedimenta e constrói.
No poema “Gênese”, o sujeito lírico “confessa criar, manipular e inventar o poema
com “tijolos de verbo”. No entanto, este processo de construção poética não é tão fácil quanto
proferir a palavra e ter o poema pronto; antes, requer duro esforço e trabalho por parte do
poeta:
Crio, construo, manipulo, invento,
com tijolos de verbo cor de espanto,
o edifício altaneiro com que tento
elevar às alturas o meu canto.
É um processo cansativo, lento,
que tem algo de lúdico e de santo.
Arquiteto e pedreiro, meu tormento
é ver que a construção demora tanto.
Mesmo assim, vou erguendo com vagar,
na textura da página vazia,
o poema, o edifício que procuro
com esforço inaudito transformar
num espaço de sonho e de magia.
Só lá o feio é belo. O impuro? Puro.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 33)
Os versos do poema sugerem que não basta a palavra para se ter o poema; é preciso
que o poeta a trabalhe e a transforme em palavra poética. Por isso, ele é comparado tanto com
o arquiteto quanto com o pedreiro, pois, para se ter o edifício altaneiro da poesia, o poeta
necessita ser tanto o idealizador quanto o construtor da palavra, uma vez que, se o arquiteto
projeta o edifício, o pedreiro executa o projeto. Ambas as funções (idealizar e executar) são
essenciais para que a poesia atinja o poder de ser sonho e magia, de transformar o feio em
belo e o impuro em puro. Apenas no espaço da criação poética estes paradoxos parecem ser
possíveis e isso ocorre em virtude do processo de construção, que segundo a voz lírica, é
demorado, lento e cansativo.
Ainda que laborioso, o objetivo do poeta é ver este edifício poético erguer-se das
páginas brancas, como um artesão, um arquiteto ou pedreiro que se orgulha de ver a obra de
arte finalizada e ver que cada tijolo-palavra foi edificado até dar origem ao monumento. Desta
página vazia, ergue-se o canto da poesia, que possui, entre outras coisas, a virtude de ser um
espaço de sonho. Na textura deste edifício, encontram-se reunidos vários tijolos, mas não se
trata apenas destes tijolos “de verbo cor de espanto” que aparecem no poema “Gênese”.
Em “Gênese” (outro poema com o mesmo título), o tijolo-verbo surge de uma matéria
amorfa, o silêncio, que é elevado a uma dimensão de encanto e beleza:
Da crisálida breve do silêncio,
eleva-se a palavra: borboleta,
libélula sonora.
(SIMÕES, IB, 1982, p. 54)
Nem sempre o silêncio aparece como um empecilho que protela o verbo. Neste, e em
vários outros poemas, o silêncio é possibilidade de canto; dele surge a palavra, pois ele é som
em potencial. É preciso tê-lo para que se ouça o som, quer dizer, é um elemento intermediário
entre a palavra e a música que dela emana. Embora essencial, o silêncio é apresentado como
uma “crisálida breve”, uma vez que, a palavra nasce deste “casulo” em que dormia,
transformando-se em “borboleta”.
No entanto, não se trata de uma borboleta qualquer, mas sim, de uma libélula que,
segundo Chevalier & Gheerbrant (2002), é admirada por sua elegância e leveza, ou seja, um
tipo especial de borboleta, que se destaca pela velocidade do vôo. A palavra nasceria do
casulo do silêncio e, após esta “gestação”, despertaria com potencialidade sonora, atingindo a
liberdade do vôo e a velocidade da propagação do canto.
Extrair do silêncio a voz necessária à poesia é o oficio do poeta. No poema “Ofício”, a
voz lírica compara o poeta ao lavrador: tal qual o lavrador que trabalha a terra, planta e cultiva
a semente, o poeta trabalha a palavra e faz nascer da semente-silêncio a seara do canto-poesia:
Poeta, lavrador.
Charrua, pá, semente:
o verbo construído
(em alegria e dor)
no minifúndio breve
do silêncio de jade.
O trigo não demora
a germinar no ventre
da terra, em sua hora,
urgente como o pássaro
incólume do tempo.
Feita de verbo e espanto,
enfeita-se a seara
inconsútil do canto.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 26)
No “minifúndio breve do silêncio de jade”, o poeta-lavrador cultiva o verbo, em um
misto de alegria e dor. As palavras que formam o poema não nascem com um simples toque
de mágica, fruto de uma inspiração criadora, mas com o mesmo trabalho e dedicação do
lavrador que trabalha a terra para plantar a semente. O poeta trabalha o verbo e eis que o
poema germina de suas mãos e do minifúndio do silêncio, até nascer por completo e se
fortalecer, regado no tempo e florido de canto. O poeta-lavrador é semelhante ao poeta-
artesão, pois ressalta o caráter voluntário, laborioso e artesanal da criação poética. O lavrador
conhece os segredos da terra, da lua e a época certa para o plantio e a colheita. O poeta, como
o artesão e o lavrador, seria responsável por sua obra e pela colheita, uma vez que conhece os
mistérios do verbo, valendo-se dos instrumentos necessários para transformar a palavra em
encanto e canto.
E, tendo conhecimento dos mecanismos para o cultivo da palavra, o poeta constrói
“em alegria e dor”, que seu oficio não é tão leve quanto se imagina. Para que a poesia
perdure ilesa no tempo, o verbo precisa ser cuidadosamente trabalhado, mas este labor deixa
entrever um outro componente (o espanto), o que mostra ou demonstra que a poesia é feita
não de árduo labor, mas também de encanto e inspiração. A poesia é uma seara que nasce
da semente-silêncio e atinge a dimensão incalculável da expressão e da palavra poética.
Neste oficio de poeta, ainda que se tenha muito trabalho para extrair da página e da
palavra a colheita da poesia, o poeta seria detentor de uma liberdade de criação. Portanto, a
liberdade de criação permitiria ao poeta valer-se dos mais variados meios para construir o
edifício da poesia e lavrar a terra que cultivará a semente do verbo. Esta liberdade de criação
poderia explicar a paradoxal associação que o poeta faz entre o silêncio e a palavra na
tessitura do poema.
No poema “Fuga”, é possível observar que o silêncio representa uma matéria através
da qual o poeta constrói seu canto poético, uma vez que o poeta sente-se livre pelo canto que
emana da poesia e do silêncio:
Exilado na ilha do silêncio,
o poeta liberta-se
na garupa do canto.
(SIMÕES, IB, 1982, p. 54).
Seria no silêncio que o poeta ouviria a voz da poesia libertadora de onde surge o canto
puro do poeta, que se deixaria conduzir por esta “outra voz” da poesia. O exílio na “ilha do
silêncio” não representa, para o poeta, algo negativo que anula seu canto. Ao contrário, o
exílio apenas reforça seu canto e impulsiona a liberdade, para compor, na “garupa do canto”, o
reverso do silêncio: a voz visível e audível da poesia que é fuga para novas fronteiras e formas
de expressão. Silêncio e palavra ou silêncio e canto estariam sempre imbricados na teia da
construção poética.
Ao sair da ilha do silêncio, o poeta atingiria a liberdade do canto, pois o verbo pode ser
visto como uma espécie de emblema do silêncio, como sugere o poema “Verbo”:
Emblema inverossímil,
tatuagem de fogo
na pele do silêncio.
(SIMÕES, IB, 1982, p. 63).
Nota-se, neste poema, que o verbo aparece ligado ao silêncio, ainda que esta
associação possa parecer estranha. Ao se referir a um “emblema inverossímil” ou “tatuagem
de fogo” que se faz presente na pele do silêncio, como adjetivos do verbo, o eu lírico deixa
entrever que o verbo é também um tipo amorfo, que se nutre de formas aparentemente
inconciliáveis, pois, mesmo sendo um símbolo que não parece realizável ou uma tatuagem
ígnea (também pouco provável de se efetivar), estas são as características do verbo. É possível
dizer que ocorre uma permutação entre o silêncio e a palavra, uma vez que, assim como ela
necessita do silêncio para se efetivar enquanto tal, também o verbo deixa suas marcas no
silêncio, no sentido de fazer eclodir o canto, a voz e a expressão do verbo.
As marcas deixadas no silêncio fazem com que o verbo assuma uma função de
transformação de um estado a outro, como acontece no poema “Metamorfose”, em que as
palavras elevam-se como miragens sobre o deserto da página:
Sobre o deserto branco
desta página elevam-se
as palavras (oásis).
(SIMÕES, IB, 1982, p. 54)
No momento de criação, há uma espécie de revelação pela ação com a linguagem, ação
esta capaz de proporcionar miragens e devaneios, como se a poesia fosse este oásis que surge
no deserto branco da página aos olhos sedentos de quem a deseja ver, ler ou criar. O trabalho
de criação poética consiste em uma metamorfose da palavra ou uma transfiguração do silêncio
em canto, voz, expressão e imaginação.
Da maneira como aparece no poema, esta metamorfose que o poeta executa no
“deserto branco” não seria apenas obra do trabalho, pois as palavras elevar-se-iam como
“miragens”, o que remeteria ao registro de emoções e inspiração. Na acepção de Staiger
(1997), o poeta lírico deixa-se conduzir pelo fluxo arrebatador da “disposição anímica”, mais
ou menos como acontece com o poeta inspirado, de Dufrenne (1969), e, neste caso, o poeta
seria desprovido de intencionalidade. Ele deveria estar “antenado” para não perder o momento
exato da inspiração, que cessa tão rapidamente quanto acontece. No poema “Metamorfose”, a
poesia aparece como produtora de emoção e imaginação e, novamente, a palavra insurge
como instrumento fundamental através do qual o branco/silêncio seria convertido em
expressão ou elocução.
No dizer de Paz, o poema se constitui de uma rede complexa de associações que estão
na dimensão simbólica, imaginária e poética, porque a poesia é feita de palavras de uma
lufada de palavras e de imagens: “O que caracteriza o poema é sua necessária dependência
da palavra tanto como sua luta por trancendê-la” (PAZ, 1982, p. 226).
Mas esta luta com a palavra seria uma luta vã? No poema “Lutar com a palavra é a luta
mais vã?”, esta pergunta se encontra no próprio título e serve de reflexão sobre a construção
poética que se pauta na palavra:
Com marretas, martelos
e machados,
a pedra pode ser
estilhaçada,
depois de intensa luta.
Contra a palavra pedra,
essa palavra
alada
que no silêncio medra
como o ouro antiqüíssimo da lavra,
que pode a força bruta?
Pouco ou nada.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 49)
A palavra seria como o “sangue” do poema, que se constituiria enquanto o “filho eleito
das metáforas”. Sendo a palavra a base constituinte do poema, o eu lírico afirma que pouco ou
nada importa a luta contra a palavra, pois se trata de uma luta
6
, uma vez que a força da
palavra poética se alastra e cresce no silêncio. Mais do que isso, ela ganha mais força ainda no
silêncio, pois se trata de uma palavra-pedra, de uma palavra-alada que não pode ser combatida
ou destruída. Ao contrário da pedra, que pode ser estilhaçada pela força ainda que com
trabalho – com martelos, marretas e machados, a palavra pedra não o pode. A força do homem
não exerce poder algum (ou muito pouco) sobre a palavra. É como se ela possuísse
autonomia, elocução própria e prosperasse com mais força e vigor na lavra de onde extrai seu
canto, ou seja, do silêncio.
O tipo de luta que o poeta trava com a palavra não é um combate intenso que passa
pelo plano físico (esta é uma luta vã), mas uma batalha por tentar transcendê-la, como propõe
Paz (1982). Uma luta para devolver sua condição natural de significar duas ou mais coisas, de
ser isto e aquilo ao mesmo tempo.
O poema transcende as palavras; ele as liberta de seus uso habituais, as converte em
palavra alada que diz isto e aquilo; tudo e nada. O poeta luta com a palavra de uma maneira
diferente, pois ele torna criador a partir do momento que as palavras nascem, morrem e
renascem em seu interior (PAZ, 1982, p. 338). De acordo com Paz, o poeta não é um homem
rico em palavras mortas, mas em vozes vivas; suas palavras são da sua tribo ou comunidade.
Ao lidar com estas “vozes vivas”, o “poeta transforma, recria e purifica o idioma; e depois o
reparte” (PAZ, 1982, p. 56).
A verdadeira luta do poeta com a palavra reside neste processo de transfiguração,
transformação e recriação da palavra em palavra poética. Querer forçar a destruição da palavra
para propor outro sentido ou forçar sua (re)significação é, de fato, uma luta vã, mas (re)
elaborar a palavra pela alquimia verbal é a luta de todo poeta que prima por uma poesia viva e
6 No poema “O Lutador”, de Carlos Drummond de Andrade, aparece essa mesma questão da luta com as
palavras: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã” (ANDRADE, 2004, p.
243-246). Simões reporta-se ao poema de Drummond transformando a afirmativa em questionamento, porém não
nega a luta do poeta com as palavras (e com o silêncio).
vivaz, que extrai dos lugares mais inusitados a força do canto e do dizer poético.
No poema “Exortação”, o que se tem é mesmo uma exaltação do silêncio, no sentido
de que ele seja utilizado para as mais variadas atividades, que seja uma linguagem que diga o
que precisa ser dito:
Não digas nada. O teu silêncio basta
para exprimir o que, dito, não chega
a ferir o ouvido que ouve e apenas
se contenta em ouvir e logo esquece.
As palavras já nada dizem, gastas
de tanto serem ditas. Silencia,
que o silêncio é a única mensagem
que o coração humano entende e cumpre.
Faz do silêncio a língua universal.
Já basta que os canhões não mais se calem
e que os gritos persistam nas gargantas.
Faz do silêncio a lamina que vença
o vão clamor do mundo inteiro. E reza,
reza em silêncio e em silêncio chora.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 96)
Na poética de João Manuel Simões, o silêncio encontra diversos sentidos. Em
determinados poemas, ele é uma espécie de “adiamento” do canto e, conseqüentemente,
uma supervalorização da palavra; em outros, ele é como uma voz interior que ajuda o poeta a
se descobrir. Neste poema, uma inversão, pois a palavra perde força ante o silêncio,
tornando-se menos importante”, pois elas podem ficar “gastas” de tanto serem ditas. Porém,
não se pode entender esta “desvalorização” da palavra literalmente, que a voz lírica deixa
subentendido que o momento é de mudar de estratégia, uma vez que houve e muitos gritos
presos na garganta e isso não tem resolvido uma série de problemas que assolam a sociedade:
“Já basta que os canhões não mais se calem/ e que os gritos persistam nas gargantas”. É como
se o sujeito poético invitasse nova forma de lidar com a problemática social, pensando no
silêncio como um meio através do qual “esse grito preso na garganta” atingisse a propensão
que precisa para que a mensagem seja ouvida.
No último terceto, o sujeito lírico proclama para que se faça desta “língua universal” o
porta-voz da mensagem do mundo inteiro e possa, assim, vencer o vão clamor do povo, que
continua gritando, com palavras, e não tem sido atendido em suas manifestações. No último
verso, o eu poético exorta para que se reze em silêncio e em silêncio chore, como se o silêncio
tivesse outras utilidades que não a comunicação. Fazer do silêncio a lâmina que vença o
vão clamor é uma possibilidade de lidar com o problema da falta de audição. Se a palavra e o
grito não têm resolvido essa questão, a solução poderia estar na mudança de estratégia. Assim,
no reverso da palavra silêncio –, seria possível encontrar a expressividade necessária para
que o grito preso se tornasse audível.
O poema “No reino do silêncio” funciona como uma tentativa de elucidação de como
o silêncio poderia tornar-se uma linguagem comum e de como ele seria um espaço necessário
para que a palavra atingisse a sua propensão significativa:
Aqui, no reino puro do silêncio,
as palavras são tensas, necessárias,
na sua radical ambigüidade.
São raízes do mundo, são o fruto
aceso entre parágrafos de sombra.
São oásis de sangue entre desertos,
e à sombra das palmeiras range o pulso.
Dizem mais do que mostram na epiderme.
Mais que do que tatuagens na brancura
lisa da folha, são insígnias áureas
além das quais se esconde o gesto inútil
de quem sabe que o verbo anula a morte
que entre memórias ancestrais vegeta.
No reino puro do silêncio. Aqui.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 107)
O poema inicia com a afirmativa de que, no reino do silêncio, as palavras tornam-se
mais significativas na sua “radical ambigüidade”. Apenas nesta província, elas “dizem mais
do que mostram na epiderme”, uma vez que este lugar é um reino puro, em que tudo se torna
mais claro e mais expressivo. O eu lírico não opta nem por uma exaltação exclusiva do
silêncio em detrimento da palavra, nem uma exortação desta em detrimento do silêncio. Ao
contrário, a voz lírica demonstra simpatia pelas duas entidades, pois as palavras “insígnias
áureas” – ganham maior dinamismo no reino do silêncio.
O advérbio de lugar aqui usado tanto no início quanto no fim do poema ressalta
esta exaltação do silêncio como sendo o lugar próprio onde as palavras atingem sua máxima
significação. A repetição do primeiro e do último verso, invertendo apenas a ordem do
advérbio, enfatiza a questão que o silêncio é grande e ele é capaz de fazer com que a
palavra seja arrancada de seus usos habituais e possa, assim, voltar à sua condição natural: sua
capacidade plurissignificativa de ser luz que ilumina a sombra, oásis no deserto da folha
branca. Mas, novamente, o advérbio vem ressaltar que é “Aqui”, no reino do silêncio, que
isso seria possível.
Esta aproximação entre o silêncio e a palavra também se faz presente no poema
“Intervalo”, em que o eu lírico assume que é neste intervalo entre a palavra e o silêncio que
surge a poesia, como as águas de um rio sereno ou um momento de encantamento:
Entre o silêncio macio
e a aspereza da palavra
deslizam águas de um rio,
como um enigma que lavra
nas entranhas do momento,
breve clareira encantada
onde o látego do vento
morde as espáduas do nada.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 46)
A presença do silêncio na construção poética é tão importante quanto o uso da palavra
ou da metáfora. Tão significante que o silêncio é descrito como “macio” e é sua “maciez” que
moldará a “aspereza” da palavra, fazendo com que neste intervalo entre os dois deslize as
águas da poesia. A poesia nasce de um breve momento de encantamento, no qual o silêncio e
a palavra entram em comunhão e, neste intervalo, a poesia é como um enigma, como um rio,
como o vento – inexplicável.
Sabe-se apenas de sua existência, mas não se sabe em que momento esta comunhão do
silêncio e da palavra deram origem a este mistério, “onde o látego do vento/ morde as
espáduas do nada.”. É como se a poesia fosse luz, uma clareira encantada, que ilumina tudo,
que canta e encanta tudo, que fala do nada dizendo tudo. No dizer de Shelley, a poesia é fonte
de deleite, ela é “um espelho que embeleza o que é disforme” (1987, p. 225). Por isso, a
poesia reúne em um momento, em um só intervalo, duas realidades diferentes, como o
silêncio e a palavra, e, desta união, extrai a poesia reveladora que, em sua secreta alquimia,
reforça a faculdade da imaginação e contribui para a felicidade e perfeição do homem
(SHELLEY, 1987, p. 228).
De acordo com Durand, o pensamento humano passa por articulações simbólicas e a
imaginação é vista como um dinamismo organizador “potência dinâmica que ‘deforma’ as
cópias pragmáticas fornecidas pela percepção, e esse dinamismo reformador das sensações
torna-se o fundamento de toda a vida psíquica” (2002, p. 30).
A imaginação é o vetor da criação poética, ela embriaga qualquer criação artística de
qualquer época ou “período literário”. Entre as várias missões que se pode atribuir ao poeta,
uma consistiria em atrair esta força poética que se encontra contida no imaginário e convertê-
la em “descarga de imagens”, uma vez que a experiência poética é criação do homem pela
imagem e pela linguagem, ou, como aponta Paz (1982), é o abrir das fontes do ser. Por
intermédio da imaginação, o ser humano consegue dar forma às coisas mais tênues e se auto-
afirmar enquanto ser no mundo.
No poema “Ars poetica”, o ser lírico assume que a arte da poesia ou esse fazer com
arte constitui uma equação algébrica de sonho que é capaz de salvar, uma vez que reúne
beleza, verbo, silêncio, sonho e imaginação:
Música de alma. Cântico dos cânticos.
Clara equação algébrica do sonho.
Geometria do verbo, filigrana
de névoa. Epifania da beleza
em transe, sim, e em trânsito no mundo.
Insondável sintaxe, no silêncio,
de uma voz interdita que nos salva.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 13)
No poema, a arte poética é descrita por meio de imagens que remetem para um viés
imaginativo e transcendente. O sujeito lírico se vale de imagens como a música das esferas,
sonho e epifania de beleza como sendo matérias-primas através da qual a poesia é
confeccionada com filigranas de névoa e geometria do verbo. Uma vez confeccionada, a “Ars
poetica” transita no mundo e na imaginação entre a sintaxe do silêncio e, desta equação
poética ou desta receita de fantasia e sonho, surge a poesia que liberta e que salva, porque é
composta de uma trama delicada que, mais do que dizer claramente, sussurra a fórmula que
leva o homem ao encontro consigo mesmo.
A “Ars poetica”, de acordo com o sujeito lírico, pode ser identificada como uma
entidade “superior”, pois é representada como o “cântico dos cânticos” e a “música de alma”
que é ouvida, no silêncio, na sintaxe “de uma voz interdita que nos salva”. O silêncio aparece
como possibilidade de concretização da poesia, possibilidade de realização e instrumento
através do qual ela se propaga e se consuma, cumprindo sua missão no mundo: ser fonte de
deleite e vetor de imaginação.
No poema “Micro-Ilíada”, o poeta mostra que desta estranha associação entre a palavra
e o silêncio é que teria origem o canto e a poesia, pois o silêncio estaria na base da construção
poética, assim como as palavras:
Nauta no mar
do silêncio,
procuro as palavras,
ilhas.
Meu canto:
arquipélago.
(SIMÕES, CV, 1997, p. 15)
Para falar de suas peripécias poéticas, o poeta faz uma “micro” Ilíada na qual “narra”
sua aventura lírica até que consiga seu objetivo o canto da poesia. Em um poema enxuto e
sintético, o poeta mostra que, ao falar da poesia, as imagens possuem um valor significativo.
Tanto é assim que, em uma espécie de versão poética para a Ilíada, de Homero, o sujeito lírico
“narra” a viagem (ou aventura) que percorre para atingir a construção poética.
Essa viagem se inicia no mar do silêncio, de onde o poeta extrai as palavras que irão
compor seu canto. A imagem que se tem é a de uma poesia que começa em um momento de
profunda reflexão, em que o poeta navegante procura encontrar as palavras certas, as
palavras-ilhas que irão formar seu arquipélago de canto. O silêncio é o mar através do qual o
poeta/nauta navega em busca das palavras/ilhas que formarão o arquipélago do canto/poesia.
A poesia seria, portanto, este conjunto de palavras reunidas no espaço do poema, que, por
meio do trabalho do poeta, formariam o canto, ou seja, esta porção de palavras/ilhas por onde
todos navegam e viajam.
No poema “Semente”, o brado do poeta aparece como o fruto da messe poética. No
entanto, esta viagem em busca das palavras, quase sempre, tem origem no silêncio, o que faz
dele um meio fundamental para que as construções poéticas possam operar a transformação
das palavras e do silêncio em canto e encanto:
Cheio
de amor
fecundo,
semeio
no silêncio
incolor
do mundo
a palavra
perfeita.
Um clamor
há de ser
a colheita.
(SIMÕES, SP, 1983, p. 26)
As mãos do poeta semeiam as palavras no campo do poema. A semeadura, todavia, é
cheia de amor fecundo e ocorre no terreno do silêncio onde a “palavra perfeita” cresce,
floresce e amadure até que fique pronta para a colheita. As palavras representam a semente
que enfeita a seara da poesia, como se fossem o adubo do poema e, delas, é que surgisse o
“clamor”, ou seja, esse brado de metáforas que se faz ouvir pelo mundo inteiro e se espalhar
“no silêncio incolor do mundo”. Porém, a semente poesia terá razão de ser se crescer e
amadurecer neste campo de palavras, pois, para que haja a messe, é preciso, antes, que se
tenha “Um clamor”.
A poesia não é feita para ficar isolada ou infrutífera no solo do poema; ela necessita
ser ouvida e espalhada e, acima de tudo, provocar ou despertar alguma emoção, como apontou
Hegel: a poesia lírica satisfaz a necessidade “de perceber o que sentimos, as nossas emoções,
os nossos sentimentos, as nossas paixões mediante a linguagem e as palavras com que o
revelamos ou objectivamos (sic)” (1980, p. 221). Ainda que a missão da poesia lírica seja a de
revelar o que sentimos, essa revelação pode ocorrer pela palavra. O poeta consegue
converter em palavra e imagem essa emoção; ele forma poética a esta expressão da alma e
dos sentimentos individuais, fazendo com que atinjam uma propensão geral.
Para Trevisan (1993), a poesia parece nascer do ponto de intersecção da consciência e
inconsciente, pois o poeta se realiza na medida em que objetiva sua emoção por meio da
linguagem: além dos sentimentos, a poesia se constrói mediante palavras. Sendo assim,
Trevisan afirma que o poeta seria como um operário da expressão e um proletariado da
mitologia social: “Cada vez que fabrica uma expressão a partir de expressões codificadas, e
sua expressão é reincorporada ao dicionário mitológico comum, seu poema existe
(TREVISAN, 1993, p. 11, grifo do autor).
Trevisan salienta que um poeta não nasce poeta, mas sim, dentro do poema, uma vez
que, ao invés de criador, ele seria um “servidor” da linguagem: àquele que busca, no
equilíbrio entre a palavra e o silêncio, a melhor forma de expressar os sentimentos:
Um poema é uma ou várias palavras rodeadas de silêncio por todos os lados.
O silêncio não subsiste por si mesmo. É como a palavra: um espaço dentro
do qual a significação circula. O silêncio é o lado invisível da palavra. Todo
poeta sabe disso; sabe que uma palavra tem valor na medida em que
consegue expelir de si outras palavras. O silêncio excessivo depaupera a
palavra; a ausência de silêncio torna-a obesa. Um poema por demais austero
acaba por extraviar-se; um poema por demais loquaz mergulha na loucura.
Saber deter-se no ponto preciso em que se opera a síntese, em que se realiza
o beijo da palavra e do silêncio, eis a poesia. O poema não é mais do que a
sombra enternecida desse encontro (TREVISAN, 1993, p. 24).
Assim, o poeta poderia ser designado enquanto aquele que transporia os limites da
expressão ao promover o encontro entre a palavra e o silêncio, pois não existe palavra sem
silêncio. Trevisan salienta que o silêncio praticado com alegria “é a verdadeira pátria da
palavra” (1993, p. 37). A poesia requer uma “Ars poetica” em que o domínio do artesanato
verbal esteja familiarizado com os processos de expressão corrente em uma língua, tendo em
vista que o poeta não acompanha a evolução da língua, como também a precede, ou seja,
“Um poema só pode ser a expressão de um eu quando todos falaram. Como isso é impossível,
resta ao eu do poeta a grandeza de aproximar-se da sarça ardente, de pés descalços. A nudez
subjetiva: fonte primeira de toda poesia” (TREVISAN, 1993, p. 25, grifo do autor).
A lírica de Mallarmé, segundo Friedrich (1978), seria um bom exemplo em que a
poesia estaria relacionada a um processo não nas coisas, mas na linguagem, uma vez que sua
poesia nada mais tem a ver com a poesia de sentimento, de vivência ou de experiência. Sua
poesia aproxima-se de uma música que se impõe silenciosamente, que fala a partir de um
espaço interior incorpóreo e solitário, em que as palavras e o silêncio encerram força
expressiva: o silêncio relaciona-se a “um conceito auxiliar para exprimir algo que se torna
perceptível e agudamente poético através da linguagem” (FRIEDRICH, 1978, p. 158).
O anseio por um silêncio potencialmente rico, em que as palavras pudessem voltar à
sua plena condição plurissignificativa, justificaria a recorrência de composições breves na
lírica de João Manuel Simões, uma vez que o silêncio e as imagens poéticas
complementariam os espaços vazios, dando maior significação ao poema. A reflexão
metapoética sobre a poesia abrange uma reflexão sobre a linguagem, em que o silêncio estaria
ligado diretamente à composição do poema e ao canto da poesia.
3.2 PALAVRA E SILÊNCIO: INSTRUMENTOS DO CANTO POÉTICO
No dizer de João Manuel Simões, a palavra seria o alicerce do mundo, a alavanca que
o faz mover-se, força motriz que o impele para frente, código que explica e explicita os
outros, ou seja, o reflexo do universo e seu símile perfeito (1978, p. 85). A ausência da
palavra representaria o próprio caos, pois a palavra nomeia, rotula, relaciona, integra e
hierarquiza o mundo, ela o ilumina. Sem palavras, o mundo seria vazio e a vida insignificante:
O verbo é o grande sinal da racionalidade, seta arremessada do animal para
o anjo. São as palavras que conferem ao homem um sentido mais nobre,
mais puro e mais exato. É nelas que o homem se projeta e manifesta e vibra.
E existe. E continuará existindo, magicamente transformado,
demiurgicamente convertido numa singular metamorfose em
essencialidade estética (SIMÕES, 1978, p. 86).
As palavraso capazes de refletir o mundo dos sentimentos, das idéias e das grandes
realidades invisíveis. Elas são a representação do mundo e o mundo representado e, tanto no
monólogo quanto no diálogo, a palavra é sempre uma matéria-prima sem a qual o silêncio e o
caos se eternizariam. Na literatura, a palavra atinge grande expressividade e profunda
significação, pois à literatura, compete a tarefa de espelhar o homem e o mundo e de refletir a
vida.
Por isso, para Simões, escrever não é um ato gratuito e inconseqüente, mas ao
contrário, consciente e soberano, uma atitude responsável, repleta de participação em um
processo de instauração ética, de promoção humana e de progresso social. O poeta artífice
da palavra – realiza “a síntese verbal do homem, o resumo discursivo do mundo, o precipitado
dialético da vida”, ou, em outras palavras, “Do homem, pelo homem, para o homem eis o
tema, o projeto, a programática de toda a criação literária genuína e autêntica” (SIMÕES,
1978, p. 88).
A missão do poeta é “criar” esta palavra que canta a vida, o mundo e o homem, como
no poema “Profissão de fé”, em que o poeta apresenta-se comprometido com o canto e a
conversão do silêncio em palavra e música:
Na infinita solidão do mundo o poeta canta.
De fronte erguida
e olhar perdido na distância
o poeta canta. Canta, indiferente
aos gritos, aos risos, aos esgares.
Simplesmente, canta.
Mas por que canta o poeta?
Em que fonte interior nasce o seu puro,
necessário canto?
Ninguém sabe o motivo por que canta.
Apenas o cantor em transe,
semeando a voz nos latifúndios do silêncio, sabe
que é preciso cantar, é preciso cantar,
é preciso cantar.
Por isso, na infinita solidão do mundo
o poeta canta. Canta.
Canta, poeta!
(SIMÕES, AC, 2006, p. 76)
A grande profissão de do poeta é cantar. Indiferente a tudo e a todos, deve seguir
bravamente seu propósito e seu credo, não se desviando de sua missão. Mesmo que os outros
não entendam, o poeta deve cantar sempre, pois basta que ele saiba o motivo pelo qual canta.
Na voz lírica que descreve esta profissão de fé, o poeta deveria espalhar e semear seu canto
nos “latifúndios do silêncio”, não deixar um espaço sem que chegue seu canto, sua voz.
Cantar, na solidão do mundo, a beleza de tudo: eis o lema do poeta.
A mesma voz lírica interroga o motivo pelo qual o poeta canta e de onde nasce este
canto interior e necessário. No entanto, ninguém sabe, nem o poeta revela, em sua profissão
de fé, a razão que o leva a cantar. Simplesmente o faz, pois sabe que é preciso cantar. Em
consonância com esta certeza de canto, o eu lírico termina o poema com uma frase no
imperativo, afirmando e ordenando ao poeta que cante.
O poema apresenta uma estrutura circular, uma vez que começa e encerra com a
mesma estrutura, afirmando que o poeta canta na infinita solidão do mundo. A única certeza
que tem é da necessidade do cantar, por isso, ele canta na solidão do mundo. As repetições
também são freqüentes no poema e funcionam como reafirmação da certeza do canto, além de
proporcionar sonoridade e ritmo ao poema, como se o próprio poemafosse um ensaio deste
canto necessário do poeta.
Se, no poema acima, não fica claro o motivo do canto, apenas a certeza e a necessidade
do cantar, no poema “Canto, logo existo”, o sujeito lírico revela ao leitor a razão, ou uma das
razões, de seu cantar:
Pergunto-me às vezes, enquanto
bebo o silêncio e trinco a solidão,
qual o motivo que me faz cantar.
Talvez eu cante simplesmente porque,
ainda que o quisesse, seria impossível
deixar de cantar. Talvez eu cante
como se o canto fosse a pulsação
cardíaca da alma. Canto como se no canto
houvesse o oxigênio que, inspirado,
alimenta, e expirado, transfigura.
Canto porque cantar significa viver.
Direi por isso que não canto – vivo.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 20)
no título do poema, o poeta deixa transparecer a razão de seu cantar. O conhecido
pensamento do filósofo Descartes “Penso, logo existo” é convertido em “canto, logo
existo”, o que deixa implícito que a atividade do canto poético seria uma necessidade inerente
ao ser lírico. Da mesma forma que a certeza que o filósofo tem é a de seu ser, isto é, de seu ser
pensante, a certeza que o poeta tem é a de seu ser cantante – seu cantar é o que o faz existir e
viver. Quando o sujeito poético pergunta a si mesmo o motivo que o leva a cantar, não
encontra resposta certa, e sim hipóteses. Uma delas é o fato de não ter explicação,
simplesmente, porque, ainda que quisesse, não conseguiria parar de cantar. Uma outra diz
respeito ao fato de que o canto é como a pulsação cardíaca da alma, ou seja, a fonte que o
mantém vivo, que o faz viver.
O canto, no texto, seria parte da vida, pois seria impossível para o poeta deixar de
cantar, uma vez que, em outra hipótese apresentada pelo sujeito poético, o que o leva a
continuar cantando é que este ato seria semelhante à inspiração e expiração do ar. O canto é
como este oxigênio que alimenta e transfigura: é sua vida e o ajuda a viver. Mais do que isso,
o poeta passaria a existir em virtude do cantar e, para continuar existindo, não poderá parar
de cantar, ainda que queira. Por isso, o canto seria a razão do existir ou do viver.
Nos dois últimos versos, o eu lírico assume que a principal razão que o leva a não
abandonar esta atividade é que o cantar significa viver, que o canto é sua vida e que, por isso,
ele não canta, e sim vive. O canto poético – a poesia – é vida e fonte de vida; é a existência do
poeta, sendo impossível para ele viver sem seu canto, sem beber o silêncio e trincar a solidão,
convertendo-os em canto essencial.
O poeta capta e interioriza imagens poéticas, evoca o mundo em sua plenitude,
fazendo emergir o mistério da linguagem e do homem seja por meio da palavra ou do silêncio.
Ao despir a armadura do silêncio branco da página, eis que surge o canto. Silenciosamente, a
ninfa do silêncio desliza pelos becos da criação e canta um canto mudo, um canto que dizendo
nada, diz tudo. Além de uma defesa da poesia, Simões faz uma defesa do silêncio que fala e
que é fonte de criação, desenvolvendo uma poética, cuja força expressiva transcende a
palavra, encontrando repouso e refúgio no reino secreto e pouco explorado do silêncio.
No que diz respeito ao canto extraído do silêncio, Simões apresenta, no poema
“Itinerário”,o percurso de seu fazer poético, revelando que o silêncio é possibilidade de
criação nas mãos do poeta:
Entre
margens
longas
de silêncio
duro
flui
o rio
largo
do meu canto
puro.
(SIMÕES, CM, 1982, p. 35)
O itinerário da composição poética passa de um silêncio duro a um canto puro, como
se o poeta fosse arrebatado de um poder sobrenatural, como um “médium momentâneo” (de
que fala Paul Valéry) que se deixasse dominar pela voz quase inaudível do silêncio que vai
aumentando de volume até que se torne audível. Ou, mais ainda, se torne poesia, imagem e
palavra poética. A imagem de margens longas de silêncio que se transformam em rio largo de
canto puro é tão singela e significativa que coloca o fazer poético como um processo difícil,
mas gratificante. Conseguir ouvir o duro silêncio e convertê-lo em canto puro é trabalho que
exige do poeta sensibilidade, pois se ouve o silêncio, o barulho ou o balbucio das palavras
no próprio silêncio, o que o torna fonte e princípio da poesia, até que ela seja efetivamente
canto, voz, sentido, expressão e fonte de deleite. Entre estas margens longas de silêncio, existe
um processo duro e, nem sempre rápido e fácil, que culminará no rio largo, caudaloso e
transbordante da poesia e da qual o poeta é o porta-voz, o ser que transmuda e transfigura o
silêncio em palavra e canto.
A suprema expressividade e a arte de falar do silêncio é exaltada por Simões, a ponto
de dizer tudo quanto se precisa ouvir ou saber. O silêncio abrevia e sintetiza a compreensão e
a composição, uma vez que a ausência de palavras e as lacunas por elas deixadas são
preenchidas pelo leitor. Na “mudez” do silêncio, o leitor palavras que estão no seu
imaginário e ouve vozes que estão em sua memória e no seu inconsciente, sem precisar ler ou
ouvir da maneira convencional e instituída.
O silêncio é tão expressivo quanto as palavras, pois seria possível dizer quase tudo
sem palavras, apenas ouvindo a voz do silêncio, deixando que ele fale, que diga tudo quanto
queira dizer e expressar. A poesia é uma espécie de silêncio eloqüente, porque ela diz, pelo
sussurro das imagens e pelos brancos do texto, o que linguagem nenhuma conseguiria
converter em sentido e expressão. Isso se deve ao fato de que o poeta dispõe das palavras de
uma maneira completamente diferente da que faz o uso e a necessidade. No dizer de Valéry, o
poeta usa as mesmas palavras, mas de forma nenhuma ele usa os mesmos valores, uma vez
que é o não-uso e o não-dizer que inunda a poesia e que é a sua função: tudo o que não pode
ser falado em prosa é silêncio e voz para a poesia (1991, p. 186).
O silêncio e a mudez constituem a base do canto e da poesia conforme prevê o eu
lírico, no poema “Inominável”:
Um dia nosso canto será mudo
e mudas as palavras cuja teia
se tece com silêncio de veludo
e rútilos cristais, em maré cheia.
(SIMÕES, OE, 1987, p. 62)
A forma de expressão, conforme prevê o sujeito lírico, será um canto mudo extraído de
um silêncio tecido de veludo e cristal. Horrível e revoltante ou suprema eloqüência? A
resposta a esta pergunta não se encontra no plano da expressão, mas do silêncio, o que
demonstra, mais uma vez, que o silêncio está nos mais secretos devaneios e constitui a força
expressiva e criativa da poesia. Canto e palavra: mudos e silentes e, nem por isso, menos
significativos. O silêncio é tecido com fios de alta qualidade (veludo e cristal), o que o torna
um material especial para tecer qualquer canto sem perder seu valor original: a capacidade de
comunicar, despertar, libertar e revelar. O desejo deste sujeito lírico é obter um canto
silencioso, um canto que, sem dizer nada, diga mais que as palavras e a música, um canto que
rompa com as barreiras da inanidade e atinja o brilho e o esplendor da enunciação.
No haicai
7
“Exposição de pintura” esta possibilidade de o silêncio se converter em
canto é apresentada de forma que o silêncio desperta as mais lindas manifestações artísticas:
Eleva-se, em surdina,
do silêncio branco das telas,
a música do arco-íris.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 28)
O acontecimento artístico eleva-se, sorrateiramente, como se não fosse apenas obra do
artista, como se, sobre ele, estivessem envolvidas outras forças de criação, como, por
exemplo, a inspiração. Entretanto, um fato que parece se destacar neste processo de criação
artística é que o silêncio não se faz presente apenas no branco da página, mas também no
branco da tela. É como se a criação artística fosse uma “conversão” de silêncio em palavra,
canto, música, cores, ou seja, como se, a cada palavra criada ou traço desenhado na tela, o
silêncio e o branco fossem cedendo espaço para a elocução da palavra poética, para a
composição rítmica dos versos, para a expressividade das cores e dos traços pintados na tela.
7 O haicai é uma forma de poesia japonesa, caracterizado como um pequeno poema composto de três versos,
com cinco, sete e cinco sílabas sucessivamente. Ele evoca uma singela e delicada impressão do mundo, da
natureza, do homem, das plantas ou animais; às vezes com um refinado toque de lirismo de caráter melancólico
ou nostálgico, outras, com um ligeiro humor (HUIZINGA, 1990, p. 138). Este poema sintético originou-se do
tanka um poema de cinco versos de 5,7,5,7 e 7 sílabas. Pode-se dizer, portanto, que o haicai é um tanka que
perdeu os dois últimos versos.
Este bailado das palavras e das cores sobre a página e a tela parece conviver harmoniosamente
com o silêncio, pois este não aparece como privação da expressividade, mas como espaço em
potencial que dá origem à poesia e artes plásticas.
No poema “Surdamente”, o silêncio é o meio fundamental através do qual o poeta
canta e se mostra como meio constituinte da “gramática do canto”. O silêncio, na obra poética
de Simões, não é impossibilidade de canto, mas se manifesta como desafio para o poeta, no
sentido de que este terá por missão vencer os brancos do papel e preenchê-los de palavras
mágicas, palavras de sonho e emoção, palavras que enchem a alma de magia e imaginação:
Torrencial, o silêncio
inunda tudo.
Equânime, o silêncio
abraça tudo.
Maternal, o silêncio
cobre tudo.
Súbito, um grito
apunhala
a epiderme macia do silêncio.
Foi talvez um anjo
que gritou
na noite de antracite
e lantejoulas
de luz.
(Quem me ensina a gramática
do canto?)
(SIMÕES, AC, 2006, p. 86)
O texto apresenta imagens que apontam para um sentido universal, ou mesmo
onipresente, de um silêncio que está em toda parte, que inunda, abraça e cobre tudo. O sujeito
da enunciação apresenta-o como sendo uma espécie de voz que fala “surdamente” ao ouvido
do poeta, ensinando-lhe a gramática do canto. A torrencialidade do silêncio o faz penetrar em
todas as partes e inundar tudo; o equilíbrio ou imparcialidade o permite ser justo e não
desprezar nada, abraçando a tudo; seu amor materno lhe confere o dom de amar tudo. Ele
impera sobre tudo, espalha-se por superfícies amorfas e palmilha caminhos infindáveis e
desconhecidos.
Mas o silêncio é rompido por um grito que “apunhala” sua macia epiderme e eis que,
na noite de luz, surge o canto da poesia, arrancando do império do silêncio a “gramática do
canto” com que tece a essência poética das palavras que o preenchem. O silêncio ouve os
ditos do silêncio que fala e se manifesta sutilmente nas estruturas da lírica, da vida e do
espaço, em uma espécie de “declamação muda”, que penetra nos enigmas da criação e induz
sonhos vocais. Até o “súbito” grito, o silêncio reinava em seu império, no entanto, o grito não
o anula, uma vez que ele constitui a fonte inesgotável através da qual o grito de um anjo o
transforma em canto, pois, até então, ele era som em potencial, apenas instrumento que cobria
tudo, à espera de sua transmutação em poesia.
Dada esta áurea de mistério que envolve a “muda” declamação do silêncio, o intento
do sujeito lírico no poema “Teoria do silêncio” é buscar descobrir qual a matéria e qual a
teoria que fundamenta o silêncio:
Feltro invisível entre
tênues cristais voláteis
sem cor e sem clivagem.
Sangue do tempo. Éter.
Melodia sem som:
ausência de garganta
ou canto amordaçado?
(SIMÕES, OE, 1987, p. 52)
Descobrir a teoria ou a fórmula do silêncio parece mais uma missão impossível, uma
vez que sua composição envolve aspectos, cujas respostas estão no plano do interdito e do
enigmático. A começar por sua composição, que, por si só, é suficientemente estranha e
indefinível: um misto de feltro invisível entre cristais voláteis que não possuem nem cor nem
clivagem; composto de éter e sangue do tempo; melodia sem som. A composição do silêncio
parece algo indefinível, pois não possui uma forma ou fórmula concreta; é feito de uma
substância para ser, antes que vista ou tocada, sentida e percebida. É como se fosse possível
sentir o silêncio, sabendo que sua existência é real, mas fosse impossível tocá-lo ou vê-lo.
Sua presença é certa, mas sua forma é amorfa e a razão pela qual o silêncio se
apresenta desta maneira é uma pergunta que não se cala na poética de João Manuel Simões,
motivo pelo qual o poeta tenta, incansavelmente, desvendar a chave que explica a teoria do
silêncio. O fato de ser uma substância incolor, volátil, invisível e fácil de se fragmentar torna
o silêncio ainda mais misterioso e enigmático, colocando-o em um plano que não se encontra
no mundo dos fatos concretos que podem ser comprovados cientificamente. Por isso,
encontrar uma teoria que explique algo que não tem forma, que se manifesta em “melodia sem
som”, que não é possível ser percebido pelos sentidos do tato, paladar, olfato, visão ou
audição, seria um empreendimento para o plano fantástico e mágico da poesia.
Na ciência da poesia, estes paradoxos e indefinições são possíveis e o silêncio é uma
matéria que se pode sentir pela percepção poética. A teoria que pode explicar o silêncio é o
próprio poema, que sobrevive aos brancos, transcende o silêncio, dando-lhe forma, porque
palavra e silêncio são um no reino da poesia. Se o poema se torna poesia é porque
conseguiu superar a “ausência de garganta” e soltar o grito do “canto amordaçado”, dando
livre impulso à liberdade do canto que emana do silêncio.
Em “Teoria do Poema”, o sujeito lírico tenta mostrar que, se existe uma teoria do
silêncio que não é tão fácil de ser constatada e elaborada, dada a dificuldade de definição
desta matéria que compõe a argamassa do poema, existe, também, uma “teorização” para o
poema que, embora composto por substâncias um pouco mais fáceis de serem definidas,
também possui materiais que são possíveis de visualizar no universo simbólico e
imaginário:
1
Ilha breve de música
cercada do silêncio
do mar branco da página.
2
Canto ileso de um pássaro em chamas,
voando rente ao chão.
3
Minha alma é o tungstênio que cintila
na lâmpada implacável do poema.
4
Largo vazio cheio,
solidão habitada
por uma voz que é tudo
e não é nada.
5
Lâmpada feita
de êxtase e verbo.
(SIMÕES, OE, 1987, p. 41)
O sujeito da enunciação elabora cinco proposições que compõem a “teoria do poema”.
A primeira delas diz respeito ao fato de que a origem do poema estaria relacionada,
primeiramente, ao silêncio, uma vez que o poema é comparado a uma “ilha de música”
cercada de silêncio no mar branco da página. A imagem que se tem é a de um poema que
mergulha nas galerias deste mar da lisa folha e emerge repleto de música, como se o silêncio
rondasse o poema, cercando-o por todos os lados, como as águas que circundam a ilha.
Embora use imagens do plano simbólico, uma maior “visualização” da imagem da teoria
que rege o poema, pois a voz lírica compara a página vazia com o mar, o poema com a ilha de
música que habita este mar e o silêncio com a água que cerca a ilha.
Deste arquipélago de música e silêncio, o poema nasceria como um “canto ileso de um
pássaro em chamas,/ voando rente ao chão”. Esta segunda proposição elevaria o poema a uma
entidade simbólica, uma vez que o pássaro é símbolo da força sublimadora “um símbolo de
transcendência do Eu Superior, em que os opostos se encontram conciliados” (CENTENO,
19_, p. 57). Também para Bachelard (2001a), o pássaro é uma força ascensional, pois uma
identificação onírica entre a imagem do pássaro e a força íntima do vôo pela pureza criadora
do ar. Liberdade de vôo e canto, o poema é simbolizado enquanto ser mágico que une espaços
aparentemente contraditórios: céu e terra; silêncio e palavra; água e fogo.
Na terceira estrofe, o eu lírico confessa que sua alma seria o elemento químico que
compõe a luz da poesia, como se não bastasse apenas a conversão das águas do silêncio em
música das palavras ou canto aéreo, mas também um toque anímico do poeta, em uma
composição que alia criação e inspiração, como se o poema deixasse transparecer que, em sua
composição, um pouco da subjetividade do poeta. E, nesta mistura, o que se tem é um
poema representado como “largo vazio cheio,/ solidão habitada/ por uma voz que é tudo/ e
não é nada
8
”. Novamente, tem-se associações contraditórias, pois, se for pensar
racionalmente, seria impossível se ter um vazio cheio ou voz que é tudo e nada. O raciocínio
poético, porém, é diferente e a teoria do poema encontra-se envolvida, assim como a teoria do
silêncio, em uma nuvem de mistério e incertezas.
A aparente facilidade das primeiras imagens ganha um grau de obscurantismo no final
do poema, o que demonstra que o mistério que envolve a construção poética transcende o
plano lógico da razão humana. Para se entender a teoria do poema, é preciso se lançar ao
mundo da imaginação, dos sonhos e do devaneio, onde o nada pode ser tudo e o tudo nada,
onde o real é virtual e o virtual é real, onde as mais improváveis associações se tornam
pertinentes e a fantasia governa os sentidos, as percepções e a emoção.
A quinta proposição parece sintetizar as “indefiníveis” imagens simbólicas das
proposições anteriores, abrindo uma possibilidade de entendimento sobre o enigma da teoria
8 A referência a um tudo que é nada aparece também formulada na obra Mensagem, de Fernando Pessoa, nos
versos em que o poeta menciona “O mito é o nada que é tudo” (2003, p.21).
poética. Ao dizer “Lâmpada feita/ de êxtase e verbo”, o eu lírico deixa entrever que, por ser
feito de êxtase e verbo, o poema possuiria, em sua estrutura, matérias-primas que pertencem a
universos diferentes. A poesia seria como uma lâmpada, composta de palavra e imaginação, o
que tornaria possível reunir, em um mesmo espaço, realidades opostas, como silêncio e
palavra. Uma das conclusões possíveis, na “teoria do poema”, diz respeito ao fato de que o
poema seria feito de uma textura espessa, volátil, tão difícil de definir quanto de captar.
No poema de número “49”, de Flauta Mágica, o poder da palavra se manifesta de
forma que constitui, mais que a origem, o fundamento do canto que ecoa da poesia:
Só a palavra
onívora
se nutre
da carne do silêncio
que em nós mora.
Funda a ruminação,
aéreo o canto.
(SIMÕES, FM, 1993, p. 50)
A palavra, em virtude de sua condição onívora, se nutre de tudo, inclusive da “carne
do silêncio”. Este poder da palavra de se alimentar de “alimentos” diversos faz dela o
instrumento através do qual a poesia seria um ser de palavras que possui a capacidade de
ruminação, uma vez que as palavras poderiam ser “reaproveitadas” como alimento em novas
construções.
Somente a palavra pode se abastecer deste silêncio que habita o ser do homem e
transformá-lo em canto, porque, na poesia, “só a palavra” pode fundar a “ruminação”, este ato
em que as palavras são regurgitadas e voltam a ser mastigadas, servindo de alimento ao
poema. A constatação do sujeito lírico reside no fato de que a palavra não escolhe o alimento,
pois ela é onívora e, como tal, “devora” e mastiga” tudo, até que funde o canto que, por sua
condição aérea, se espalha por veredas e céus, fazendo-se ecoar. A palavra poética aproveita
até mesmo o silêncio para fazer o que gosta – ser canto.
O soneto “O canto do poeta” funciona como uma metapoesia, em que o poeta expressa
que esse cantar é uma atividade promotora de encanto, pois canta a beleza, em que as palavras
podem dizer mais que sua epiderme mostra:
Na infinita solidão do mundo
o poeta canta. Canta, indiferente
a tudo quanto é triste, feio, imundo.
Para o poeta bastam simplesmente
as flores dos jardins, mil; o jucundo
sorriso das crianças, transparentes;
ou o vôo dos pássaros no fundo
céu azul onde singra, evanescente,
uma nuvem em forma de jangada
que vai se dissolvendo, vagarosa;
uma fonte de Rilke discorrendo
sobre tudo, talvez, ou sobre nada;
ou as pétalas murchas de uma rosa
que ao canto do cantor vai renascendo.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 46)
Neste poema, o sujeito poético mostra que o canto do poeta esconde a tristeza, a feiúra
e a imundície, dando destaque ao belo e ao alegre, como as flores do jardim e o sorriso das
crianças. Na construção do canto, o poeta também exalta a liberdade, fazendo referência ao
vôo livre dos pássaros no infinito azul do céu por onde singra a poesia, também promotora de
liberdade. A poesia é comparada a uma nuvem evanescente em forma de jangada, por onde o
ser rico e o poeta singram, formulando o tudo e o nada e, sobretudo, fazendo renascer, com
seu canto, as pétalas de uma murcha rosa.
A imagem de uma rosa que renasce por intermédio do canto do poeta faz pensar que a
essência da poesia é ser, além de promotora de liberdade, uma fonte de “renascimento”. Com
seu canto, o poeta atinge as esferas da condição original do ser humano, desvendando o
mistério que envolve a criação poética e desvelando o enigma da poesia.
O poema “Sic transit” retoma a idéia da fecundação, gestação e nascimento da poesia,
até atingir a plenitude do canto. O sagrado ofício do poeta é cantar; e seu canto representa uma
sonora melodia, um acalanto para as horas que, nem sempre são, mas parecem ser as mais
felizes. Por isso, seu canto floresce no silêncio e na alma do cantor que cria a poesia
reveladora, esta poesia que nasce da palavra onívora e do óvulo do silêncio:
O verbo, simples
espermatozóide,
fecunda
o óvulo macio
do silêncio.
Assim começa,
em sigilo, a lenta
gestação do canto.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 85)
Não bastam as palavras para que a poesia a luz ao canto. A fecundação não é feita
só de verbo/espermatozóide, é necessário um óvulo para que a fecundação se processe e tenha
início a gestação. Este óvulo de que fala o eu lírico é o silêncio e se mostra tão relevante
quanto o verbo (ou mais, pois o verbo é “simples” espermatozóide) para o nascimento do
poema/canto, que a gestação se concretizaria por meio do cruzamento da palavra e do
silêncio. Se não houver a fecundação do verbo no silêncio, não haverá, conseqüentemente,
poesia e nem canto. É como se o silêncio fosse a placenta do poema onde as palavras são
geradas e de onde nasce o brilho etéreo de seu canto.
Na construção poética, as palavras representam o “sangue vital do poema”, a matéria-
prima por meio da qual se constrói um “tear de palavras” ou a trama sutil que mescla aspectos
imaginários, estéticos e rítmicos. A poesia (lembremos a lição de Mallarmé
9
) não é feita de
99
A idéia de que as palavras são a fonte da poesia vem de Mallarmé. No diálogo com o grande pintor Degas,
este comenta achar a profissão de poeta algo infernal, pois afirma estar cheio de idéias mas não conseguir
escrever o que quer, no que Mallarmé responde: “Absolutamente não é com idéias, meu caro Degas, que se
fazem os versos. É com palavras”. (VALÉRY, 1991, p. 207-208, grifos do autor).
idéias, mas de palavras. Elas são o sustentáculo de qualquer edifício poemático, fazendo com
que a força da poesia esteja ligada à criação e transformação pela qual a palavra se converte
em poética.
No entanto, conforme mostra o texto, poema não é palavra. Para que o poema seja
poema, é necessário que nele esteja contida também a alma e o trabalho do poeta. Pode-se
dizer, portanto, que as palavras são como os tijolos através do qual se constrói o edifício
poemático; mas o poeta é como o oleiro ou o pedreiro que ergue e cimenta as paredes da
“catedral” do poema com a argamassa de seu fazer poético e de sua alquimia verbal.
No poema “Estilete de sombra”, o silêncio é um tipo de som esdrúxulo e mudo que se
faz ouvir no poema. O que sobra nesta mistura de palavra e cimento é o silêncio, esta placenta
onde acontece a gestação do canto que pode iluminar o mundo:
Silêncio:
é alaúde morto
ou simples flauta
congelada?
E dói
nos tímpanos,
estilete de sombra
pré-histórico.
Longe, um clarim de tule
exausto, expira
num estertor de cisne
moribundo.
(SIMÕES, CV, 1997, p. 59)
O poema pode ser entendido como uma tentativa de esclarecimento do silêncio,
embora esta “definição” se encontre no plano da interrogação e da especulação, uma vez que
não se consegue achar um “sinônimo” perfeito que o defina. A grande incógnita gira em torno
do fato de não se saber, ao certo, como definir um “som” que não tem som, algo que não pode
ser visto ou tocado, mas que existe e até “dói nos tímpanos”. Esta indefinição pode ser
percebida pela imagem do “alaúde morto” e da “flauta congelada”, pois, embora sejam
instrumentos que emitem sons audíveis, encontram-se “morto e congelado”, ou seja,
impedidos de emitir qualquer ruído ou melodia.
Uma das certezas que se tem é que, mesmo morto e congelado, o som do alaúde e da
flauta do silêncio dói como “estilete de sombra”, escutando, longe, um “clarim de tule,/
exausto” que expele uma respiração ruidosa. Todavia, o som desta respiração arquejante é
quase imperceptível, pois é como um “estilete de sombra”, o difícil de ser visto quanto
escutado.
No poema “Fluência”, a poesia parece se “enquadrar” em uma espécie de “anti-
convenção”, sobretudo, quando se trata das construções poéticas, uma vez que extrai seu
canto dos lugares e associações mais inusitados:
Cresce no coração da pedra
o canto claro, enquanto
o rio do silêncio medra
sobre seixos de espanto.
(SIMÕES, AC, 2006, p. 36)
A fluência ou espontaneidade do poema aproxima-se das condições naturais, pois,
enquanto o canto claro cresce no coração da pedra, o rio do silêncio cresce e prospera sobre
“seixos de espanto”. É como se o canto da poesia fosse algo inexplicável, que tem livre curso,
como um rio, que cresce e floresce em lugares cuja lógica jamais aceitaria. O rio do silêncio
torna-se caudaloso na superfície das pequenas pedras, das pedras soltas ou dos fragmentos
destas rochas, mas é no coração da pedra que o canto puro ganha vigor, tornando-se torrencial.
A imagem de um rio de “silêncio” é substancial para que o poema atinja a dimensão do canto
e possa, assim, completar seu ciclo natural jorrar seu canto pelas entranhas e margens do
silêncio.
No poema “52”, o silêncio é um “uníssono”, não possui clivagens, e, por isso, não
aceita matéria que seja diferente da sua, sob pena de perder a expressividade e a sua condição
necessária para o canto:
No cristal sem clivagem do silêncio
o estilhaço assimétrico do canto
dói.
Como um cilício áspero
na epiderme da alma,
dói.
(Por que é que dói?)
(SIMÕES, FM, 1993, p. 53)
Sendo o silêncio um tipo raro de cristal que não possui a propriedade de fragmentação,
receber estilhaços desconformes de canto é como um “cilício áspero” que fere a epiderme da
alma. Essa dor é fruto de uma impropriedade de matérias, pois, para que a harmonia do
silêncio e do canto seja completa, é necessário que canto, palavra e silêncio disponham das
mesmas propriedades. Quando isso não ocorre tem-se a dor que o sujeito da enunciação
descreve como sendo uma dor penitencial, que fere a alma. Canto e silêncio devem ser um
uníssono partilhado, compor a mesma sinfonia para que, no lugar da dor, o ser lírico sinta
prazer e alegria e não tenha que sofrer a dor de ver o canto cessar.
Independentemente da ordem, se a palavra ou o silêncio vem em primeiro plano; de
como se engendra o poema; se a palavra fecunda o silêncio ou se este a palavra e de qual a
dosagem certa de silêncio e de palavra em cada poema, o que sobressai é o resultado: o canto
que a poesia ecoa dessa teia multiforme que combina realidades distintas e, aparentemente,
inconciliáveis. Palavra e silêncio são duas forças motrizes para a construção poética e, aliada a
uma porção imaginativa, constituem os vetores que ajudam no processo alquímico que
origem ao canto puro, claro e essencial da poesia.
No poema “Canto essencial”, esta relação se evidencia de forma que o canto da poesia
abraça o mundo, tornando-se o centro através do qual o homem adquire os mais variados
conhecimentos:
Na fria lucidez da voz despida
e mais que despida, despojada,
o mundo canta. Canta a morte e a vida:
o tudo e o nada.
(SIMÕES, OE, 1987, p. 54)
O poema faz referência a esta capacidade que a poesia tem de dizer e de cantar o
mundo, o ser e tudo quanto mais habita o universo, ainda que despojada de voz. No silêncio
da voz poética, a poesia canta, o poeta canta e o canto é comunicação. Segundo Cohen (1987),
desde Rimbaud, a poesia deixou de ser apenas lírica para ser também “crítica”. A poesia não é
coisa diferente da prosa, ela é mais, pois, assim como a ciência, a poesia descreve o mundo. O
traço pertinente da diferença entre a poesia e a não-poesia consiste na presença ou ausência de
negação, uma vez que “a poesia é uma linguagem sem negação, a poesia não tem contrário de
si mesma. É como tal, um processo de totalização do sentido” (COHEN, 1987, p. 67). A
palavra “totalização”, segundo Cohen, define adequadamente a essência da poesia como
sendo esta linguagem totalitária que abarca o máximo de associações e sentidos e consegue
colocar em um único e mesmo espaço temas e matizes diferentes.
Na linguagem poética, as palavras reencontram a sua identidade própria e, ao mesmo
tempo, a sua total plenitude semântica, que a poesia é a “absolutização do signo e o
esplendor do significado” (COHEN, 1987, p. 111). De acordo com Cohen, a poesia também
pode ser estudada enquanto uma “exaltação do mundo, uma celebração das coisas, devolvidas
pela consciência totalizante ao seu poder emocional original” (1987, p. 251).
Pode-se dizer, a partir disso, que é pelo fato de a poesia não ter “contrário de si
mesma” que ela pode lidar com palavras e sentidos aparentemente contraditórios. Assim como
o tudo e o nada, a morte e a vida, a palavra e o silêncio podem ser vistos como oxímoros, esta
figura que atravessa grande parte dos poemas de Simões, como também atravessou vários
poemas de Fernando Pessoa. Segundo Jakobson, esta aliança de vocábulos apresenta duas
variedades distintas: “uma palavra é unida ao têrmo (sic) contraditório ou então ao têrmo
contrário” (1970, p. 99). O confronto dos oxímoros põe em relevo uma simetria que aponta
para a aliança de palavras contraditórias que se unificam na composição lírica.
Também por isso não soa tão estranho afirmar que a poesia é canto que canta o mundo,
a vida e a morte, o tudo e o nada. Fazer aproximações inusitadas no mesmo espaço poético,
falar que isto é aquilo, que o eu é o outro, que isto pode ser aquilo ou que se pode estar aqui e
ali no mesmo instante é pertinente no universo imaginário e poético. No dizer de Paz, o
poema não proclama a coexistência dinâmica e necessária de seus contrários, como sua
final identidade: “A poesia é metamorfose, mudança, operação alquímica, e, por isso, é
limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas para transformar o homem e fazer ‘deste’
ou ‘daquele’ esse outro que é ele mesmo” (1996, p. 50).
Segundo Paz (1996), um poema puro seria indizível, pois não poderia ser composto de
palavras. No entanto, se não é possível abandonar as palavras, é possível, todavia, despi-las ou
despojá-las de sua voz, conforme mostra o poema “Canto essencial” e, quando isso ocorre, o
poema torna-se canto essencial, que canta o mundo, vida e morte, tudo e nada. Assim, falar
das construções poéticas, é falar da palavra em sua dupla face voz e silêncio revestida de
seu poder “quase sobrenatural” de extrair dos brancos e do silêncio a voz que se propaga pelo
poema, pelos caminhos poéticos da poesia que revela e desvenda a essência do canto pela
alquimia verbal, que transforma o silêncio em voz e a palavra em canto.
A lírica de João Manuel Simões, além de revelar um esforço de “transformação,
reformulação e transfiguração” da poética da linguagem em linguagem poética, apresenta,
ainda, uma constelação de imagens que faz percorrer o paradoxal caminho que liga o silêncio
e a palavra na teia da construção poética. Ao fazer isso, promove uma poesia que trilha o
universo imaginário e poético em busca de uma poesia reveladora da pureza lírica, capaz de
cantar o ser e o mundo.
No que diz respeito à construção poética, na poesia de Simões, nota-se que esta
“operação ou metamorfose pela qual a poesia necessita passar, para ser digna do nome que
recebe, transcende a condição meramente verbal para a dimensão do silêncio, uma vez que, na
grande maioria dos poemas que expressam o fazer poético, o silêncio aparece como uma
“categoria” inerente ao ato de criação poética. Este fato aponta para a formulação de que o
silêncio e a palavra são redes complexas que estão na tessitura do poema, promovendo a
travessia da poesia ao canto, porque, mais do que falar do mundo, com simples palavras, a
poesia parece cantar o mundo, entoando uma melodia que não pode ser expressa apenas com
palavras. A qualidade do canto apresenta-se como superior à fala, pois dispõe de outros
recursos que não só a palavra, dentre eles, a melodia sem som que se encontra no silêncio.
De acordo com Bosi, a voz produz, no lugar do objeto, um fantasma sonoro que atende
por “palavra”. No coração da frase, esse “espectro pode fazer as vezes até de um ser que não
existe: é a mentira, demoníaco poder da voz” (2000, p. 72). O mesmo som pode integrar um
signo de luz ou de treva, de agrura ou de júbilo. Essa propriedade plurissignificativa
desconcerta os que buscam uma relação constante e congruente entre o som e o sentido. Isso
não seria possível, pois até do silêncio, que parece puro e vazio, ou mesmo ausência de som,
se arranca um mar de significações e significados.
Bosi equipara a alternância som/silêncio a dois princípios opostos e complementares:
yang e yin
10
: “Yin e Yang estão co-presentes em todos os fenômenos. Atraem-se mutuamente,
mutuamente repelem-se. O som é Yang. O silêncio é Yin. Yin chama e produz Yang” (2000,
p. 109). Seguindo este princípio, o som (masculino/Yang) é arrebatado pelo silêncio
1010
Segundo a tradição oriental, Yang e Yin designam o aspecto obscuro e o aspecto luminoso, terrestre e
celeste, negativo e positivo, masculino e feminino; são duas forças opositivas que, ao mesmo tempo se atraem,
representando o dualismo universal. O Yin e o Yang, embora representem dois contrários, jamais se opõem de
modo absoluto, pois “entre eles sempre há um período de mutação que permite uma continuidade; tudo, homem,
tempo, espaço, ora é yin, ora é yang, tudo tem a ver com os dois simultaneamente, por seu próprio futuro e seu
dinamismo, com a sua dupla possibilidade de evolução e involução” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2001, p.
969, grifos do autor).
(feminino/Yin) que chama o som e produz sentido. O canto que se tem desta alternância de
opostos – o poema – fica a meio caminho entre aquele inarticulado “grito preso na garganta” e
a liberdade do “discurso em prosa”. O poema abriga pausas internas e deságua no silêncio
final, ou seja, silêncio e som ou silêncio e palavra são duas forças opostas que se atraem e
configuram, no poema, o princípio da construção poética.
O silêncio que acompanha a criação poética e entremeia os versos não é um silêncio
vazio, mas um silêncio vivo que cresce junto com o discurso poético e marca o compasso da
leitura, regula a vibração da voz, potencia o som e o sentido. O ritmo arrebata o som a um
dinamismo extremo, afirma Bosi, e assim, traz à mensagem o abrupto silêncio, repleto de
significados, constituindo a outra face da palavra (2000, p. 127).
Nos poemas de Simões, verifica-se uma confluência da palavra e do silêncio na
instauração do canto essencial, pois a poesia é este canto que canta o indizível, funcionando
como porta-voz da humanidade e como voz silenciosa que informa um sonho e um desejo de
eternidade.
Segundo Bachelard, o verbo escrito tem “supremacia” ou vantagem sobre o verbo
falado, uma vez que evoca “ecos abstratos em que os pensamentos e os sonhos se
repercutem”. O poeta força o leitor a escutar o pensamento, o silêncio do poema e ouvir o
sopro expressivo, o impulso vital dos versos: “O verdadeiro poema desperta um invencível
desejo de ser relido” (BACHELARD, 2001a, p. 260).
Para exprimir o inefável, o evasivo e o aéreo, o texto necessita devolver temas de
riquezas íntimas, fazendo com que a linguagem poética revele-se em sua dupla eficácia:
virtude de clareza e força de sonho. Na construção poética, estas duas forças entram em
harmonia e acordo, induzindo sonhos vocais inexprimíveis. Nas palavras de Bachelard,
“Razão silenciosa e declamação muda aparecerão como os primeiros fatores do devir
humano” (2001a, p. 251). Há, de certa forma, um retorno ao princípio do silêncio, como sendo
constituinte da vocalidade primeira, deste estado nascente que abre as portas do canto e da
“aurora verbal de um belo poema” (2001a, p. 250).
Inexplicavelmente, o silêncio origem ao canto mais completo, ele é uma espécie de
linfa que circula na tessitura do poema, transportando a seiva do canto, conforme mostra o
poema “Noturno, opus 73”:
A linfa
do silêncio
escorre
entre os dedos da noite
que morre.
Nasce nos olhos
brota da garganta?
Sei apenas
que flui
silenciosamente.
E canta.
E canta não sei quê
desesperada.
Talvez um canto mudo
um canto arcaico que dizendo nada
diz tudo.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 51)
No poema, é possível constatar pistas de um silêncio líquido que escorre por entre “os
dedos da noite” e se infiltra silenciosamente na armadura do canto e na artesania poética,
como se o silêncio fosse sendo despido e despojado de “suas defesas” e fosse dando origem a
uma espécie de canto mudo que diz tudo sem dizer nada.
Entender que da “mudez” do silêncio nasce o canto mais completo, podendo extrair a
magnitude da poesia e a totalidade dos dizeres e dos cantares é mistério transcendente que não
pertence ao plano da lógica, mas da dimensão lírica da música das esferas, desta música que
atinge a alma, deste “canto arcaico que dizendo nada/ diz tudo”.
No entanto, este canto, na lírica simoniana, diz o que precisa ser dito e escutado, se
ocupar um espaço de silêncio quase absoluto, isto é, um silêncio que “flui silenciosamente” e
canta a memória de outras épocas, do presente e do futuro em um canto uníssono, puro,
celestial. A melodia do canto silencioso ilumina a escuridão e faz das trevas luz que incendeia
a alma; seu eco ressoa até onde vai o desejo de ouvir, até onde a poesia possa completar sua
missão: espalhar seu canto pelo universo inteiro, superando os brancos e desertos da página e
o silêncio do mundo.
João Manuel Simões representa uma voz a serviço da poesia e, em cada poema que
trata do fazer poético, ele registra lições de construção formal e aproveitamento estético com
versos de grande expressividade e beleza. Da construção poética questionada à indagação da
sintaxe do silêncio, o poeta prossegue sua trajetória poética, anunciando que o “luminoso
exercício” da poesia é um gesto mágico, tecido com fios de sombra e claridade, de silêncio e
palavra, de sonho e imaginação.
Cada poema é gênese, princípio e aurora e, em todos, o ofício do poeta é moldar, com
argila de verbo e silêncio, o artefato que atende por nome “Poesia”. Em cada novo poema que
nasce, a vida pulsa e canta um canto claro tornado verbo em flor ou flor de silêncio. Sobre o
rio do verbo e as margens do silêncio, o intento do poeta é tornar o canto seu secreto invento,
grito aéreo que medra sobre as construções poéticas, fazendo da poesia esse canto essencial
que aflora à imaginação.
CAPÍTULO IV
MEMÓRIA, INFÂNCIA E IMAGINAÇÃO: A SINTONIA ENTRE POESIA E
IMAGINÁRIO
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
(Manoel de Barros, 1996, p. 75)
Para o filósofo Gaston Bachelard, recordar é também uma maneira de sonhar e
imaginar, pois “Sonhamos enquanto nos lembramos. Lembramo-nos enquanto sonhamos.
Nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu apoiado nas colinas”
(2001b, 96). Nota-se com isso, que ocorre um comércio de grandeza entre o devaneio poético
e a memória. As lembranças do passado remoto dão origem às maiores paisagens, às
recordações mais belas e felizes. No devaneio poético, o passado é designado como valor de
imagem, uma vez que a “imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever.
Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores” (2001b, p.
99). Assim, quando se trata das recordações da infância, é que se observa ainda mais a
faculdade onírica e imaginativa da memória, haja vista que não apenas se lembra da infância
que teve, como também daquela que gostaria ou que poderia ter tido.
É possível dizer, portanto, que a memória se constitui tanto por fatos verdadeiros
quanto imaginados, tendo na poesia, um terreno fecundo em que a união entre a memória e
imaginação faz despertar um estado de nova infância, que pode transcender as recordações das
experiências vivenciadas. A força dinâmica da imaginação promove variações até mesmo
nestas lembranças da infância. Estas variações se justificam em virtude da permanência de um
núcleo de infância sempre viva, que se renova na leitura de um poema e faz com que a poesia
dos devaneios de infância seja “naturalmente muito diferente dos exames objetivos, tão úteis,
dos psicólogos” (BACHELARD, 2001b, p. 101). É como se nas lembranças da solidão
cósmica de criança fosse possível encontrar o núcleo de infância que permanece no centro da
psique humana. Bachelard destaca que é neste núcleo que se unem mais intimamente a
imaginação e a memória: “É que o ser da infância liga o real ao imaginário, vivendo com
toda a imaginação as imagens da realidade” (2001b, p. 102).
A memória, na perspectiva de Bachelard (2001b), seria um campo através do qual o
poeta reconstruiria as “ruínas psicológicas” de sua infância. A capacidade que a memória tem
de “armazenamento” das recordações faz com que toda infância possa ser (re)imaginada. E, ao
(re)imaginá-la, tem-se a possibilidade de (re)encontrá-la na vida dos devaneios de criança. Os
devaneios profundos não contam histórias, mas são dotados da propensão de libertar o homem
de sua história, devolvendo-o às solidões primeiras, às solidões de criança, que deixam marcas
indeléveis na alma. O devaneio poético sabe o preço da solidão da infância e pode acalmar
certos sofrimentos, pois as crianças, como os poetas, conhecem a ventura de sonhar. Há,
assim, uma comunhão entre a solidão de “sonhador de palavras”, como diz Bachelard, e a
solidão de criança, justamente porque o devaneio tranqüilo orienta as inclinações que levam
às solidões da infância.
Nas palavras de Bachelard (2001b), uma infância potencial que habita cada ser,
sendo possível (re)encontrá-la nos momentos de iluminação poética ou nos devaneios. A
beleza da infância tem sua morada no íntimo da memória e da imaginação. A presença desta
infância imóvel reanima e põe no ser que sonha o dinamismo de uma beleza de vida, fazendo
com que atravesse, sem envelhecer, todas as idades (da infância à velhice) e, no “outono da
vida”, tente reviver os devaneios infantis. O aprofundamento do devaneio, que se experimenta
ao pensar na infância, explica-se pelo fato de que, no devaneio, o ser é levado ao declive das
lembranças e conduzido aos devaneios antigos, como se um “clarão de eternidade pousasse
sobre a beleza do mundo, fazendo-o regressar a um passado remoto com a mesma beleza de
antes ou com uma beleza ainda maior.
Gilbert Durand, na esteira de Bachelard, afirma que a memória permite uma
eufemização dos fatos vivenciados, bem como das preocupações do presente, uma vez que ela
pertence ao domínio do fantástico. A memória constitui o caráter fundamental do imaginário,
que é ser eufemismo e antidestino: ela “ergue-se contra as faces do tempo e assegura ao ser,
contra a dissolução do devir, a continuidade da consciência e a possibilidade de regressar”
(2002, p. 403). Diante disso, Durand faz a seguinte afirmação:
A memória pertence de fato ao domínio do fantástico, dado que organiza
esteticamente a recordação. É nisso que reside a ‘aura’ estética que nimba a
infância; a infância é sempre e universalmente recordação da infância, é
arquétipo do ser eufêmico, ignorante da morte, porque cada um de nós foi
criança antes de ser homem... Mesmo a infância objetivamente infeliz ou
triste de um Gorki ou de um Stendhal não pode subtrair-se ao encantamento
eufemizante da função fantástica. A nostalgia da experiência infantil é
consubstancial à nostalgia do ser. [...] qualquer recordação da infância,
graças ao duplo poder de prestígio da despreocupação primordial, por um
lado, e, por outro, da memória, é de imediato obra de arte (DURAND, 2002,
p. 402).
A memória é dotada do poder de organizar um todo a partir de um fragmento vivido.
Ela é magia pela qual um fragmento existencial, como a infância, pode resumir e simbolizar a
totalidade do tempo reencontrado (DURAND, 2002, p. 403). A memória funciona como uma
possibilidade de luta contra o nada e o tempo, o que explica sua função fantástica de escapar
ao triunfo de um “tempo reencontrado”: “Longe de estar às ordens do tempo, a memória
permite um redobramento dos instantes e um desdobramento do presente; ela uma
espessura inusitada ao monótono e fatal escoamento do devir” (2002, p. 402). Assim, a
memória assegura a sobrevivência e a perenidade dos acontecimentos, o que faz com que ela
esteja imbuída de uma doçura quando regressa ao passado, proporcionando uma reparação dos
ultrajes do tempo.
De acordo com Bergson, duas formas de memórias: uma que revê as imagens e
imagina e outra que apenas as repete. A primeira é denominada memória espontânea e,
segundo Bergson, parece ser a memória por excelência. A segunda constitui a memória-
hábito, ou seja, aquela que os psicólogos estudam em geral, ela “é antes o hábito esclarecido
pela memória do que a memória propriamente” (1999, p. 91, grifos do autor). A memória-
hábito é conquistada pelo esforço e permanece sob a dependência de nossa vontade; a
memória-lembrança, por sua vez, é completamente espontânea e caracteriza-se por ser “tanto
volúvel em reproduzir quanto fiel em conservar” (BERGSON, 1999, p. 97).
Bergson ressalta que as lembranças adquiridas voluntariamente por repetição são raras
e excepcionais; já o registro, pela memória, de fatos e imagens únicos se processa em todos os
momentos da duração: “A lembrança espontânea é imediatamente perfeita; o tempo não
poderá acrescentar nada à sua imagem sem desnaturá-la; ela conservará para a memória seu
lugar e sua data” (1999, p. 91). A lembrança apreendida, segundo Bergson, torna-se cada vez
mais estranha e impessoal à vida passada à medida que vai se transformando em um hábito ou
repetição.
Consoante ao pensamento de Bergson, Ecléa Bosi destaca que, pela memória, o
passado conserva-se e, além disso, atua no presente de maneiras diferentes, pois, de um lado,
estaria a memória dos mecanismos motores, ou seja, a memória-hábito, em que “o corpo
guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação
sobre as coisas” (1994, p. 48). E, de outro lado, “ocorrem lembranças independentes de
quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituem autênticas ressurreições do
passado” (BOSI, 1994, p. 48).
Neste sentido, enquanto a memória-hábito é adquirida pelo exercício da atenção e pela
repetição de gestos e palavras, até sua fixação e conseqüente transformação em um hábito ou
serviço para a vida cotidiana; a “lembrança pura” é capaz de trazer um momento único e não
repetido da vida. Seu caráter é evocativo e não mecânico: “Sonho e poesia o, tantas vezes,
feitos dessa matéria que estaria latente nas zonas profundas do psiquismo, a que Bergson não
hesitará em dar o nome de ‘inconsciente’” (BOSI, 1994, p. 49). Pode-se dizer, a partir disso,
que a imagem-lembrança refere-se a uma situação definida, individualizada e possui uma data
certa, ao passo que a memória-hábito já se encontra incorporada às práticas do dia-a-dia.
Na acepção de Bosi, a “memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo
profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora”, uma vez que, pela memória, “o
passado não vem à tona das águas presentes, como também empurra, ‘desloca’ estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência” (BOSI, 1994, p. 47).
Para Campos, nada do passado pode ser conservado pela memória voluntária, ou
memória da inteligência, e pelas informações que ela fornece. O passado estaria fora do
alcance e do domínio da inteligência, escondido em algum objeto material insuspeitado ou na
sensação que ele proporciona. Campos afirma que somente o acaso é responsável pelo
encontro desse objeto, que poderá ser “devolvido” ou não antes da morte do sujeito
(CAMPOS, 1999, p. 213).
No dizer de Campos, pela memória, “dá-se a evocação reinventada de cenas infantis
em que a criança visita o adulto que recorda e escreve” (1999, p. 201). As lembranças mais
intensas e duráveis são aquelas deixadas pelos processos que nunca chegaram à consciência, o
que reforça, mais uma vez, que pode tornar-se elemento da memória involuntária aquilo
que não foi expresso e conscientemente “vivido”.
No âmago da memória, uma espécie de fusão entre os conteúdos do passado e da
imaginação, pois, na concepção de Gilbert Durand, a imaginação parece ser a “Rainha das
Faculdades”, uma vez que por ela passa a doação do sentido e com ela funciona o processo de
simbolização: “por ela o pensamento do homem escapa da alienação dos objetos que o
desviam, como dos sonhos e delírios que o pervertem e englobam nos desejos tomados por
realidade” (1995b, p. 40).
De acordo com Meyerhoff, a memória é um repositório ou reservatório “de registros,
traços e marcas dos eventos passados, análogos aos registros preservados nos estratos
geológicos” (1976, p. 19). Não qualquer memória do futuro, o que faz com que a memória
seja um fato empírico que serve de base subjetiva para o passado experimentado. A memória
é um instrumento de registro mais complexo e confuso do que a natureza e os registros
históricos. Sua complexidade surge em virtude de que utiliza uma “ordem” de eventos
dinâmica e não-uniforme no lugar de uma “ordem serial” e uniforme:
As coisas lembradas são fundidas e confundidas com as coisas temidas e
com aquelas que se tem esperança de que aconteçam. Desejos e fantasias
podem não ser lembrados como fatos, como também os fatos lembrados
são constantemente modificados, reinterpretados e revividos à luz das
exigências presentes, temores passados e esperanças futuras
(MEYERHOFF, 1976, p. 20).
A característica do tempo da memória pode ser expressa pela qualidade de
interpenetração dinâmica dos eventos memorialísticos, manifestados em uma seqüência
temporal ordenada. Por mais distorcidos ou desordenados que sejam, os eventos lembrados
seguem um ao outro, de acordo com o princípio causal: “a ordem dos eventos na memória
exibe a qualidade de associação e interpenetração dinâmica” (MEYERHOFF, 1976, p. 21).
Meyerhoff destaca que a notação literária para esse fenômeno é a “lógica de imagens”; lógica
esta que ampara o método de livre associação e do monólogo interior
1
. Especialmente na
poesia, esta lógica de imagens é um mecanismo familiar, pois é caracterizada pelo fato de que
as conexões causais são totalmente diferentes das apresentadas pela lógica do senso comum:
são “ilógicas” mas, nem por isso, menos significativas. O mundo da experiência interior e da
memória exibe uma estrutura de causa determinada mais por “associações significativas” do
que por conexões causais objetivas no mundo exterior.
A recordação constitui uma peça fundamental na busca da recuperação do tempo e do
Eu, pois serve para transmitir um sentido de individualidade que poderia não ser evocado dos
conteúdos da experiência imediata. As associações significativas dessas recordações
estabelecem o processo de imaginação criadora, que também é uma forma de recordação
criadora. A recordação é uma operação não a reprodução passiva das respostas habituais da
memória: “Construir uma obra de arte é reconstruir o mundo da experiência e do eu”
(MEYERHOFF, 1976, p. 43). Pelo ato da recordação criadora emerge um conceito do eu
um encontro com a condição original do sujeito.
A imaginação, como bem definiu Gaston Bachelard (2001a), é potência dinâmica e
não se constitui apenas pela faculdade de formar imagens da realidade, mas pela faculdade de
formar imagens que ultrapassem e cantem a realidade, pois a imaginação é uma atividade viva
e criadora que faz com que o ser humano viva a imagem como acontecimentos súbitos de
vida. A capacidade imaginativa permite que se deixe o mundo real e se passe para a imagem
imaginada, ingressando neste “museu imaginário” que tem por função uma “eufemização”,
1 O monólogo interior, embora pretenda ser a captação da linguagem inarticulada, anterior a toda organização
lógica, não pode ser observado desta forma. O caótico no monólogo interior é apenas aparente, pois mesmo que
ele não se dirija a ninguém, ele se interioriza e acaba em indagação e análise (COUTINHO, 1983, p. 361).
não no ópio negativo, mas no dinamismo prospectivo que tenta melhorar a situação do
homem no mundo.
Diante disso, a imaginação aparece como uma potencialidade superior à fantasia, por
ser criativa e original, autêntica potencialidade criadora, elemento de equilíbrio psico-social
que se abre para as constelações de imagens que aparecem nos textos e na memória. A
imaginação é um labirinto de imagens que reconduz o homem a si mesmo; é uma forma de
subjetivar o sentido porque é potência do sonho que traz luz às inquietações do ser.
Como atividade viva, a imaginação desvincula-se do passado e da realidade para
direcionar-se rumo a um futuro inexprimível. No entanto, memória e imaginação não podem
ser desvencilhadas, pois, se a memória evoca imagens, a imaginação as molda, recriando-as.
Para Darcie (2002), não memória em que o imaginário não se faça presente, assim como
não imaginário sem que se possa encontrar nele a memória dos indivíduos, grupos ou
sociedades. Sem memória, jamais seria possível formar, forjar ou construir o imaginário, do
mesmo modo que o imaginário sobre algo ou alguém é essencial para formação da memória
individual ou coletiva. Em toda memória encontradas em discursos, textos e imagens
perpassam idéias ligadas, por um lado, pela subjetividade de quem a articulou e, por outro,
dos grupos aos quais, quem a realizou, mantém contato.
Graças à imaginação, é possível constituir a poética da infância evocada em um
devaneio, pois conforme salienta Strôngoli, a imaginação “corresponde a um complexo de
faculdades, como perceber, reproduzir, memorizar ou criar imagens” (STRÔNGOLI, 2002, p.
190). O ato de recordar, que se apresenta como uma das características do fazer poético, não
depende simplesmente do meio social, mas também se liga à ventura de sonhar e imaginar.
A infância integra-se aos temas relacionados ao ato de rememorar; quanto mais o
homem se afasta da infância, rumo à velhice, mais ele se aproxima da nostalgia causada pela
recordação das lembranças do tempo da meninice. Relembrar a infância é uma maneira que o
poeta encontra de manter a harmonia entre a memória e a imaginação, bem como a sintonia
entre a poesia e o imaginário.
A literatura brasileira é plena de exemplos de poetas que cantaram e cantam o tema da
infância. Basta lembrar Cassimiro de Abreu, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Mario Quintana, Cecília Meireles, Helena Kolody, Adélia Maria Woellner, João
Manuel Simões, e tantos outros, sem falar aqui, dos grandes prosaístas que também trouxeram
a riqueza deste tema para a literatura.
Conforme esclarece Bachelard (2001b), os poetas convidam o leitor a imaginar a
“infância perdida”, ensinando-lhe as “audácias da memória”, como se os devaneios voltados à
infância devolvessem vida às vidas que não aconteceram, mas que gostaria que tivessem
acontecido. As imagens da infância, presentes na poesia, fazem (re)viver as lembranças do
passado, (re)imaginando-as, como se a infância fosse um “estado de alma” que ajudasse a pôr
o ser em repouso, revivendo a infância sem suas turbulências, uma vez que o devaneio tende a
ocultar os acontecimentos hostis, em busca de trazer a paz e o repouso.
As imagens da infância, presente nos poemas de João Manuel Simões, apenas
confirmam a manifestação de uma infância “permanente”, uma infância “imóvel” e, neste
sentido, os devaneios poéticos adquirem a dimensão de continuidade dos devaneios de
infância. Mas, para que as imagens de criança retornem com a mesma beleza, é preciso que
haja uma comunhão entre a imaginação e a memória, para que possam atingir a plenitude do
devaneio e, assim, “imaginar reviver o passado", ainda que seja apenas no instante de
devaneio poético.
4.1 MEMÓRIA: A SECRETA VIAGEM DE REGRESSO AO PASSADO
A poesia constitui uma das matérias-primas fundamentais para as reflexões
ontológicas, pois traz em seu âmago as respostas, ou pelo menos as insígnias, que abrem as
fontes do ser e da existência humana. Esta afirmativa, apenas reforça a constatação do filósofo
Gaston Bachelard, de que a leitura de um poema despertaria um estado de “nova infância”,
que caminha para a busca de uma identidade existencial. A evocação da infância, na lírica,
tem se mostrado um veículo que conduz a imaginação e a memória rumo à contemplação das
imagens primeiras. Evocar a infância é também uma maneira de lembrar ou recordar a
infância imóvel que acompanha o homem ou a mulher, mantendo sempre viva a chama da
memória e da imaginação.
As imagens da infância, presentes na memória, são evocadas, na maioria das vezes, de
forma benéficas e constituem benefícios que se estendem pela vida adulta e se alojam na
memória cósmica. Segundo Bachelard, a volta ao passado sugere uma volta à infância, uma
vez que, na alma humana, a permanência de uma infância sempre viva, que se revela nos
momentos de imaginação e devaneio: “quando, na solidão, sonhando mais longamente, vamos
para longe do presente reviver os tempos da primeira vida, vários rostos de criança vêm ao
nosso encontro. Fomos muitos na vida ensaiada, na nossa vida primitiva” (BACHELARD,
2001b, p. 93).
A viagem ao passado, por meio da memória e das recordações, revela-se como um
instrumento de revelação dos enigmas existenciais ou uma forma de reencontro com seu
próprio ser. Voltar ao passado é rever, com os olhos da memória e da imaginação, os
acontecimentos vividos e experimentados ou simplesmente sonhados. Nas palavras de Cruz, a
“memória faz parte da vida, ou seja, somos feitos, de certa forma de memória, mas também de
lembranças e esquecimentos” (2001, p. 104). Assim, a memória seria uma espécie de
“mecanismo” que tanto pode servir para reter e ativar as lembranças quanto para promover
seu esquecimento, dependendo das emoções e das experiências individuais:
A recordação é o fator imprescindível que movimenta as aspirações e
sentimentos do sujeito poético, pois no momento da recordação o eu
rememora, com profundidade, os acontecimentos e experiências
anteriormente vivenciados, podendo até imaginar situações que apontam
para o tempo futuro, ou seja, por meio das lembranças e da memória, é
possível concretizar as objetivações à esfera vital (CRUZ, 2001, p. 104).
A memória teria como função reativar, no sonho e na imaginação, as ligações entre a
experiência da vida atual às experiências ou representações dos acontecimentos passados.
Observa-se que, no processo de rememoração, a imaginação aparece como um elemento
necessário e detentor da capacidade de (re)criação dos fatos lembrados. Na secreta viagem da
memória rumo ao passado remoto, a imaginação é o vetor de criação e (re)construção das
imagens da infância.
Através do ato de rememorar, João Manuel Simões faz com que sua poesia se
desdobre, verso a verso, em um imenso canto de regresso ao passado. O poema “Dicotomia”
expressa, de forma singular, a diferença entre a imagem da infância que se teve e a imagem
que se rememora. Na viagem que o eu lírico faz em direção ao passado (infância), as imagens
são verdadeiramente belas e felizes, fruto de um distanciamento temporal que permite reviver,
na memória, a infância amada e sonhada:
Duas imagens da infância:
uma, falsa – a que tivemos;
verdadeira a outra, aquela
que com os olhos rasos de ânsia,
na memória revivemos.
(Mais verdadeira e mais bela)
Lembra a sua tessitura
a de um quadro impressionista:
quanto maior a distância
do espectador à pintura
mais perfeita é sua vista.
(Assim se dá com a pura
imagem da nossa infância
tão passageira, imprevista!)
(SIMÕES, PI, 1989, p. 59)
O poema sugere a existência de imagens dicotômicas da infância: uma falsa e outra
verdadeira. Conforme declara o eu lírico, a infância vivida seria a imagem falsa, enquanto a
relembrada, seria a verdadeira, pois nesta, é possível reviver a infância de maneira mais
verdadeira e mais bela, como se a criança não soubesse reconhecer, no momento em que vive,
a sublime grandeza daquele instante.
No entanto, a distância temporal e o ato de rememorar são capazes de realçar a beleza
da infância, tornando-a mais bela do que foi, que a memória relacionada à infância é, como
afirma o eu lírico, uma pintura impressionista que, “quanto maior a distância/ do espectador à
pintura/ mais perfeita é sua vista”. As imagens da infância ganham maior valor na lembrança
porque, no universo da memória, é permitido sonhar e imaginar a vida de criança com sua
magia e encanto, ainda que não se possa mais tê-la.
No poema “Borgeanamente, ‘Mutatis Mutantis’”, aparece, também, esta dicotomia das
imagens da infância quando lembradas ou relembradas com os “olhos da memória”:
Isto sinto:
enquanto estamos nela
nossa infância
parece um labirinto
(claro/escuro)
rodeado de espelhos.
Só mais tarde, à distância,
ela se torna o puro
sonho extinto
que o menino que somos
(sob as rugas)
venera de joelhos.
(SIMÕES, PI, 1989, p. 56)
Os versos acentuam o valor da memória como possibilidade de reconquista de um
tempo vivido pelo sujeito lírico, na ânsia de reatar, na vida adulta, a pureza original da
infância. Ao (re)visitar este tempo perdido, o eu lírico sente e compreende que a infância não
morre jamais, uma vez que, por mais que não se possa reconhecer sua beleza enquanto se está
nela, no futuro, ela retorna, com mais força e pureza, em forma de um sonho extinto e
venerado pelo adulto.
O tempo funciona como instrumento através do qual se processa esta “mudança ou
compreensão da infância. A memória, aliada à imaginação, torna-se um meio eficaz para que
este tipo de “veneração” ocorra, no sentido de engrandecer a infância enquanto um
acontecimento belo, feliz e nostálgico, que o adulto tenta obter novamente.
Uma das razões que explica esta saudade e veneração da infância vivida, conforme
esclarece Bachelard, deve-se ao fato de que “Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido,
sonhamos no limite da história e da lenda. Para atingir as lembranças de nossas solidões,
idealizamos os mundos em que fomos criança solitária” (BACHELARD, 2001b, p. 95). A
idealização que o adulto faz da infância é uma das garantias de sua permanência, imobilidade
e veneração, além de fazer com que as imagens da infância atravessem, sem envelhecer, toda
a vida do ser que sonha e (re)imagina o tempo pueril.
As marcas indeléveis da infância, deixadas na memória, constitui o tema do poema
“The Ilustrated Man”, em que o sujeito poético declara trazer “tatuadas” na alma as imagens
da infância:
Trago de longe,
tatuadas na epiderme tenuíssima da alma,
as imagens da infância. É um vasto mural
impressionista. Quando olhadas
no espelho côncavo da memória
as imagens parecem distorcidas. Têm
qualquer coisa de onírico e fantástico. Contudo,
são reais. Nenhum esforço é capaz de apagá-las.
Cintilam com luz própria. Resistem a todos os ácidos.
Inclusive ao ácido incolor do pranto.
E movem-se. Têm vida. Agitam-se, inquietas.
É difícil fitá-las longamente sem pestanejar.
(SIMÕES, SS, 1984, p. 44)
A memória parece ser a tônica que movimenta o poema, uma vez que ela é
reservatório das imagens da infância. Como em um quadro impressionista, as lembranças e as
imagens parecem estar distorcidas neste “espelho côncavo da memória”, mas são reais e
acompanham o sujeito lírico constantemente. As imagens da infância são dotadas de um poder
de permanência, que nada nem ninguém consegue apagar; possuem luz própria e resistem a
todos os esforços para detê-la, pois elas têm vida e movimentam-se; agitando-se em
determinados momentos e tornando-se inquietantes em outros. Por isso, é uma tarefa difícil,
para o ser que as contempla na memória, “fitá-las longamente sem pestanejar”, ou seja, sem se
comover, sem chorar, sem sentir saudades ou emocionar-se.
O vasto mural das imagens da infância forma um painel onírico e fantástico no espelho
da memória; um mural imóvel que resiste ao tempo e a todas as adversidades, permanecendo
como um impulso de rever os valores do passado e devolver as imagens que se ligam à vida.
Nas palavras de Bachelard, a poesia é uma forma de reviver as imagens da infância, uma vez
que o poeta não diz nada do passado positivo. Ao contrário, pela virtude da vida imaginada,
“o poeta acende em nós uma nova luz: nos nossos devaneios, pintamos quadros
impressionistas do nosso passado. Os poetas nos convencem de que todos os nossos
devaneios de criança merecem ser recomeçados” (BACHELARD, 2001b, p. 100).
Por mais que se queira esquecer ou apagar as lembranças da infância, elas revivem e
voltam na memória e na imaginação, pois a cosmicidade da infância constitui um núcleo que
reaparece nos momentos de devaneio poético ou solitário. Ou seja, esse “núcleo de infância
cósmica é então como uma falsa memória em nós” (BACHELARD, 2001b, p. 103). Esta
memória evocada pela imaginação ou pelas imagens poéticas fazem com que o ser (re)tome
contato com possibilidades que o destino não soube utilizar, como se o passado perdido
tivesse um futuro de imagens vivas e “reais”. As imagens poéticas da infância, presentes na
poesia, podem formar uma auréola às lembranças, emoldurando-as na recordação pelo
devaneio. Na idade do envelhecimento, as lembranças devolvem uma “saudade risonha” que
realiza a estranha síntese da saudade e do consolo (BACHELARD, 2001b, p. 110).
O poema “Mais um soneto das memórias de um menino” sugere que a pátria perdida
da infância acompanha o adulto pela via da memória, pois o eu lírico recorda, com saudade e
consolo, o país chamado infância:
Houve um país chamado infância, outrora,
(país de sol de onde emigrei um dia)
todo feito da luz que tem a aurora.
Era um país de encanto e de magia
construído de azul e rosa. Mora
ainda dentro da alma, alegoria
e sonho na lembrança. E ri e chora
de descontentamento e de alegria.
Pátria perdida há muito, a pura infância
jaz na memória, carrossel extinto
entre as dobras do tempo, circunstância
feita de vento e solidão magoada.
(Por que será que a lembro? Por que a sinto
sonho de sonhos, noves fora, nada?).
(SIMÕES, SS, 1984, p. 47)
O eu lírico, nessas estrofes, resgata fatos e acontecimentos que dizem respeito a um
passado distante e constituem “as memórias de um menino”. O sujeito poético relembra o
país chamado infância, de onde emigrou um dia, mas que ainda vive em sua memória,
provocando saudade, alegria, lágrimas e descontentamento. Apesar de ser uma pátria distante,
as lembranças deste país de magia e encanto insistem em manter-se vivas em sua memória,
como um sonho entre os sonhos do presente, como uma “prova real” de uma operação
matemática, que comprova o resultado de que a infância permanece na alma, como uma
alegoria que se converte em memória e ensina o homem a viver melhor. Nesta infância da
memória, não devir nem calendário, apenas lembranças fabulosas que encantam a vida
nas “dobras do tempo”.
O poema a seguir, intitulado “Bagatelle”, apresenta de maneira singela, a importância
das recordações da infância na memória, destacando o caráter fabuloso e mágico com que elas
são lembradas:
É sempre dia, e há sol,
na minha doce
infância, quando a lembro,
devagar,
nos plainos da memória.
Embora fosse
melhor, talvez, ser noite
e haver luar.
(SIMÕES, CV, 1997, p. 13)
A temática da memória está presente no poema enquanto um doce acontecimento, que
se assemelha à luz do dia e do sol o representante da luz suprema. Nos “plainos da
memória”, a infância segue a mesma operação do espírito que direciona o imaginário tanto
para a luz quanto para o alto e, por isso, é “a ascensão luminosa que valoriza positivamente o
sol” (DURAND, 2002, p. 150).
Segundo Chevalier & Gheerbrant, a primeira analogia do dia é a sua sucessão regular
“de nascimento, crescimento, plenitude e declínio da vida” (2002, p. 336). O sol, por sua vez,
se liga à vários simbolismos, destacando-se por ser fonte da luz, do calor e da vida: O Sol
imortal, nasce toda manhã e se põe toda noite no reino dos mortos, o que faz com que ele
possa “levar com ele os homens e, ao se pôr, dar-lhes a morte; mas, ao mesmo tempo, pode
guiar as almas pelas regiões infernais e trazê-las de volta à luz no dia seguinte” (CHEVALIER
& GHEERBRANT, 2002, p. 836).
Ainda que na memória do eu lírico, a infância apareça relacionada às divindades
diurna e solar, e, portanto, seja recordada enquanto acontecimento detentor de luz e vida, mas
também fugaz e passageiro, pela sucessão regular de começo e fim; ele sugere que, talvez,
seria melhor haver noite e luar. De acordo com Chevalier & Gheerbrant, para os gregos, a
noite era filha do Caos e a mãe do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). As noites eram
freqüentemente prolongadas segundo a vontade dos deuses, “que paravam o Sol e a Lua, a fim
de realizarem melhor as suas proezas” (2002, p. 639). na concepção céltica do tempo, a
noite representa o começo do dia e simboliza o tempo das gestações, das germinações, das
conspirações, que vão desabrochar em pleno dia como manifestação da vida. Portanto, a noite
é “rica em todas as virtualidades da existência” (2002, p. 640).
No que diz respeito ao simbolismo lunar, Chevalier & Gheerbrant salientam que a Lua
é um símbolo dos ritmos biológicos, pois trata de um astro que cresce, decresce e desaparece,
cuja vida depende da lei universal do vir-a-ser, do nascimento e da morte, mas que nunca tem
uma morte definitiva. O retorno às suas formas iniciais ou esta periodicidade infinita faz com
que a lua seja um astro dos ritmos da vida, que controla todos os planos cósmicos regidos
pela lei do vir-a-ser cíclico: águas, chuvas, vegetação, fertilidade” (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2002, p. 561, grifos do autor).
Neste sentido, é possível dizer que, em termos simbólicos, a infância deveria estar
ligada ao aspecto de infinito que remete à noite e à lua, e não apenas ao simbolismo do dia e
do sol que representam um fenômeno passageiro e regular. A “doce infância” é lembrada
como um valor de grandeza e não poderia se extinguir da vida, como acontece com o fim do
dia ou pôr-do-sol. Se ela possuísse a dimensão da noite e do luar, talvez, poderia voltar e
recomeçar com mais freqüência e, assim, causasse menos dor diante da constatação de que ela
reside apenas nos “plainos da memória”.
Apagar da memória a dor da perda da infância ou dos acontecimentos tristes do
passado é o que o sujeito poético tenta fazer no poema “A programação”:
No seu micro de sonho
o menino ancestral (que mora em mim)
datilografa as teclas
da esperança.
O que faz ele?
Programa a alegria.
E apaga a palavra dor
dos discos da memória.
(Como conseguiu
aprender a sintaxe dos códigos
em linguagem críptica?)
(SIMÕES, PI, 1989, p. 54, grifo do autor)
A temática da memória e recordação da infância aparece novamente ligada à
imaginação e ao sonho, enquanto possibilidade de (re)criação ou nova programação. Nos
“discos” da memória é possível programar as imagens felizes e apagar as tristezas e as dores.
No micro de sonhos e nos labirintos da memória, a infância é (re)programada em linguagem
críptica, ou seja, em códigos especiais que conseguem ocultar as turbulências do passado e
imaginar um mundo de sonho, fantasia, magia e alegria. Ao relembrar a infância, não se deve
voltar aos fatos tristes, mas aos momentos que permitem reviver os instantes de encanto e
felicidade. O menino ancestral que “mora” no adulto é o responsável por esta programação
que traz a esperança de voltar à infância nos devaneios de liberdade e alegria.
“Um & Outro” é um poema marcado por esta co-existência do menino e do adulto e
que também aponta para a capacidade da memória de guardar sempre a imagem da infância
como um aprendizado que acompanha o adulto e lhe ensina a (re)pensar sua história:
São dois meninos.
Coexistem em mim
constantemente:
o adulto terrestre
e o jovem alado,
seu mestre.
Inquilinos,
até o fim,
um dos quartos da mente,
outro do corpo cansado.
(SIMÕES, PI, 1989, p. 80)
A constante presença dos dois meninos que habitam o ser do sujeito lírico adulto
apenas reforça o que Bachelard (2001b) chama de “infância imóvel”, “infância viva” ou
“núcleo de infância”. Nota-se que a imagem do “jovem alado” parece ser praticamente
superior a do “adulto terrestre”, uma vez que é o mestre e, conseqüentemente, aquele que
direciona, encaminha e orienta. No entanto, ambos são “inquilinos” do mesmo sujeito, com a
diferença de que um reside no quarto da mente e o outro no corpo cansado. A localização dos
dois meninos (mente e corpo) faz com que a memória seja um “lugar” sensível que acolhe as
melhores lembranças, aquelas que acompanharão o homem em direção à velhice, mantendo
sempre viva a presença do “jovem alado”.
Assim, a recordação da infância ou do “jovem alado” direciona a vivência do “adulto
terrestre”, o que faz com que a memória atue como um mecanismo de defesa contra o
esquecimento e como uma “válvula de escape” contra o devir e a não-permanência do sujeito.
Manter a memória ativada seria uma forma de fazer com que a infância não morresse e o
menino do passado continuasse hóspede ou inquilino do menino do futuro: dois meninos
coexistindo no corpo cansado do adulto. A coexistência dos dois funciona, ao mesmo tempo,
como um aprendizado e um impulso de vida: uma referência existencial que ameniza a dor e a
certeza da “infância perdida”, reanimando-a constantemente.
Embora haja uma coexistência do infante no adulto, o poema “Semprinfância” sugere
uma dúvida com relação à igualdade do menino do passado e o de hoje:
Lembrar a infância é sempre ofício caro
para quem lembra, absorto. Alegra e dói
como se o tempo álacre que foi,
voltando a ser ficasse doce e amaro.
É como um roedor faminto: rói
(e só pode roer, murídeo ignaro)
no silêncio da noite, ao desamparo.
Perpétua mó que solitária mói
trigo louro antiqüíssimo, a memória
vai remoendo tudo, divagante.
Qual historiador que evoca a história,
revisito o passado que passou
e me pergunto: o cauto/incauto infante
que fui outrora é o mesmo que hoje sou?
(SIMÕES, AV, 2002, p. 82)
A primeira estrofe do soneto sugere que o ato de rememorar é uma atividade difícil
para quem lembra, uma vez que, da mesma maneira que alegra, também dói. Isso se deve ao
fato de que, ao rememorar, tem-se a impressão de que o “tempo álacre” do passado voltasse,
tornando-se doce e amaro, dado o contraste da lembrança do tempo jovial e a constatação de
sua triste ausência. Na segunda estrofe, o eu lírico compara a voracidade da passagem
temporal a um roedor faminto que rói os bons acontecimentos do passado. Estes poderão
voltar pela via da memória que, no silêncio da noite, vai remoendo tudo, causando a
impressão de que o tempo alegre da infância pudesse ser evocado e (re)visitado.
No entanto, é ao (re)visitar o passado que surgem as interrogações e as comparações se
o menino de antes é o mesmo de agora, se o “murídeo” tempo conseguiu roer as lembranças
álacres, se o que sobrou para o infante de hoje são as doces ou amargas recordações, enfim, se
o tempo provocou mudanças ou não alterou a infância que insiste em constituir um núcleo
permanente uma “semprinfância”. De qualquer forma, ainda que não se possa encontrar
todas as respostas, a memória também possui a função de incentivar as motivações da
consciência interior, da busca essencial que promove a revelação do próprio ser.
Será sempre a infância o suporte ou alicerce que vem à memória nos momentos de
reflexão. “Semprinfância” é o título deste poema que trata da força das recordações da
infância que o tempo decepa e despeja no quarto das lembranças:
No quarto muito negro
da memória
desenho
com giz da saudade,
o boneco da infância.
E o giz branco entre os dedos
dói.
Seguramente dói
como o cilício
de sabê-la
um sonho provisório
decepado
rente
pela foice do tempo.
(Apodrece. Seguramente
apodrece,
entre teias de aranha,
no quarto de despejo
da lembrança.
Tão
antigamente!)
(SIMÕES, CM, 1982, p. 57)
Os versos acentuam o valor da memória enquanto lugar de preservação das coisas
aparentemente perdidas, pois o eu lírico sabe da finitude e irreversibilidade da “foice do
tempo” que decepa rente a provisória infância, deixando apenas a saudade e a recordação de
sua existência no quarto de despejo das lembranças. Apesar de ser um sonho provisório e de o
tempo a varrer com sua implacabilidade, a infância sempre volta ao sujeito por meio da
memória, o que torna impossível sua aniquilação definitiva. Por mais distante que esteja o
tempo pueril, por mais que se tenha “apodrecido” entre “teias de aranha” na lembrança, é
sempre com afetuosa saudade que se desenha na memória o “boneco da infância”, porque em
cada ser há uma infância latente que retorna com vivacidade nos momentos de recordação.
Em “Sinos da Infância”, o sujeito lírico, ao mergulhar no labirinto da memória, parece
ouvir os sinos da infância, como se eles ainda ressoassem dentro de si com o mesmo encanto
de quando os ouvia no passado:
Há sinos bimbalhando na memória,
sinos da infância (minha velha igreja,
que entre verdes e azuis, solene, alveja!).
Como se fossem sons de antiga história
de fadas, elfos, gnomos (o que seja),
elevam-se no céu, em toda a glória,
com a alada presença transitória
que a alma anela, aspira, quer, deseja.
Serão sonatas, cânticos ou hinos,
solos doces de um belo recital
que tão logo começa chega ao fim?
Esses sinos de bronze, cristalinos,
com suas vozes puras de metal,
parecem ressoar dentro de mim.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 74)
As lembranças dos sinos da infância parecem transcender o manancial da memória
datada, pois os vínculos que a ligam ao passado são imagens que tocam a alma do sujeito
poético, revelando a mágica sinfonia do recital dos sons da infância. Ao bimbalhar na
memória os sinos da velha igreja, toda uma legião de fadas, elfos e gnomos é evocada na
imaginação, o que aponta para o que Bachelard (2001b) coloca como indissociabilidade da
memória e da imaginação. Quando se distancia da escala das datas, a memória-imaginação é
capaz de fazer viver situações não-factuais pois, no devaneio imaginado, coexistem duas
memórias: uma datável, histórica e outra sem datas, cósmica (BACHELARD, 2001b, p. 116).
Na memória, os sinos voltam com tanta força que o sujeito lírico parece ouvir suas
“vozes puras de metal”, fazendo-o anelar, aspirar, querer e desejar ouvir novamente os
cânticos, hinos e sonatas que os sinos ressoavam em sua infância. Nota-se, contudo, que nem
sempre as recordações da infância voltam em forma de lembranças concretas de fatos ou
acontecimentos vivenciados pelo sujeito. Um simples odor, um som, uma cor, um perfume
são suficientes para fazer desabrochar na memória toda uma rede ou corrente de recordações
da infância. No poema acima, os sinos promovem uma viagem ao universo da infância,
fazendo com que o eu lírico (re)encontre o tempo perdido, imaginando o toque dos sinos
soando dentro de si, tal qual ouvia na infância.
Segundo Bachelard, quando se descobre a infância imóvel, não é o tempo dos
homens que habita na memória, mas sim, o tempo das quatro grandes divindades do céu: as
estações. É a estação que constitui a marca fundamental das lembranças e das reminiscências,
pois as lembranças tornam-se “grandes imagens” que se associam ao universo de uma
“estação total”. Assim, o inverno, o outono, o verão, a primavera, o sol, o rio são raízes de
estações totais porque suas imagens exprimem o mesmo valor da aurora que surge da
memória, tornando-se valores da alma e, por isso, indestrutíveis: “As estações da lembrança
têm o condão de embelezar” (BACHELARD, 2001b, p. 112).
“Tempo de Papagaios” é um poema marcado pela força das estações totais. Nos
versos, o eu lírico declara relembrar o saudoso tempo em que empinava papagaios e não
imaginava que o mel da infância acabaria:
Como era bom aquele tempo, outrora,
lá onde eu empinava papagaios:
naquele antigo outeiro onde agora,
numa árvore triste, cantam gaios.
Foi uma estação doce, sedutora,
quando breves abris e longos maios,
e dias infinitos desde a aurora
ao pôr do sol, eram simples ensaios
de um tempo sem limites que o menino
que fui – e não sou mais – imaginava
que nunca, nunca mais acabaria.
Eu o relembro agora, ultramarino,
e há na língua um sabor acre que trava,
sabendo ao mel da infância e da alegria.
(SIMÕES, SO, 2004, p. 85)
O poema faz referência às “estações totais” de que fala Bachelard, sobretudo quando o
eu lírico relembra, com nostalgia, o bom tempo de outrora: o antigo outeiro onde empinava
papagaios, os breves abris e longos maios, os dias infinitos, brincando, desde a aurora ao
ocaso, davam a impressão de eternidade à infância. São imagens que demonstram uma relação
com o passado que foge das recordações datáveis e históricas, uma vez que são marcadas
pelos elementos da natureza, pela passagem do tempo psicológico (breves abris, longos maios,
dias infinitos) e pelas brincadeiras e estações da infância.
No poema, é possível observar um deslocamento de lugar, entre o menino que
brincava e o adulto que relembra, sobretudo quando o eu lírico menciona, no último terceto,
relembrar, “ultramarino”, este tempo de papagaios. O distanciamento temporal e a separação
do “país da infância” ou da terra natal ajudam a entender o “sabor acre” que causam essas
recordações, justamente por serem imagens que, apesar de indeléveis na memória, fazem parte
de um passado que não se pode recuperar nem regressar, a menos que seja pela via da
rememoração. Todavia, é possível reviver essas estações na memória porque as estações da
infância “são fieis às cores da primeira vez. O ciclo das estações exatas é o ciclo maior dos
universos imaginados. Assinala a vida dos nossos universos ilustrados. Nos devaneios,
revemos o nosso universo ilustrado com suas cores de infância (BACHELARD, 2001b, p.
112, grifos do autor).
No poema “Evocando a capital do país da infância”, o eu lírico revive na memória
todo encanto da terra natal – um espaço feliz repleto de boas e saudosas recordações:
Com pouco se constrói a capital
desse longe país de outrora, a infância:
a casa, a igreja, a escola, o rio, a ânsia
de fazer do futuro áureo fanal
brilhando, luminoso, na distância.
E havia ainda a mãe, o avô, Natal
que dominava tudo, essencial.
Como esquecer jamais sua fragrância.
Havia sobretudo um chafariz
como a fonte de Rilke: a sua boca
dizia sempre, pura, a mesma água.
Pequena vila, esplêndida, feliz,
só murmurar seu nome me sufoca.
Lembro-a tão bem! Chamava-se Mortágua...
(SIMÕES, SO, 2004, p. 30)
A evocação da infância reporta-se ao país natal do sujeito lírico
2
, Portugal, mais
precisamente, a cidade natal chamada Mortágua, onde passou a infância. As imagens da casa,
da escola, da igreja ou do rio são as que marcaram com mais força a memória do menino,
evidenciando o que Bachelard (1974) chama de valor do espaço como ponto de referência no
mundo, como signo de habitação e proteção. As imagens do espaço casa, escola, igreja
constituem um devaneio imemorial, além de promover a comunhão entre a memória e a
imaginação ou lembrança e imagem. É como se a memória da primeira moradia
acompanhasse o homem durante toda a vida, como um signo indelével na imaginação e
memória.
A poesia, neste sentido, apresenta-se dotada de um poder de deflagrar a imagem
poética do espaço que se tem no inconsciente. Segundo Bachelard, pelos poemas, talvez mais
do que pelas lembranças, toca-se o fundo poético do espaço da casa, uma vez que “os lugares
onde se viveu o devaneio se reconstituem por si mesmos um novo devaneio. É justamente
porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradas do
passado são em nós imperecíveis” (BACHELARD, 1974, p. 359).
Assim, a casa é um dos maiores poderes que permitem interligar os pensamentos, as
lembranças, os sonhos do homem e os devaneios. A casa, na concepção de Bachelard (1974),
é como o grande berço, o aconchego e proteção, desde o nascimento do homem é o paraíso
material. As lembranças da casa são guardadas na memória, acompanham o adulto pela vida e
sempre voltam nos momentos de recordação e devaneio. A imaginação trabalha a imagem dos
espaços processando os valores de abrigo e aposento à casa da infância. Nos poemas, essas
imagens são relembradas a partir da leitura, fazendo com que se retorne a uma antiga morada,
2 O sujeito lírico, no poema, apresenta características que remetem ao poeta, uma vez que João Manuel Simões
nasceu em Mortágua, Portugal. Não se pode, todavia, dizer que o eu lírico identifica-se com o poeta
integralmente, uma vez que o poema é também construção com a linguagem, não podendo, a partir disso, utilizar
a biografia do autor para explicar a obra. No entanto, não se pode negar que o canto da terra natal ou do “país da
infância” é recorrente em sua lírica, aparecendo, em vários poemas, aspectos que dizem respeito à vida do poeta,
como a cidade natal, a referência à mãe, ao avô, aos rios de Portugal. Neste sentido, no que se refere aos poemas
que tratam da temática da memória ligada à infância, a poesia de Simões se aproxima muito da poesia de Carlos
Drummond de Andrade, havendo, inclusive, uma forte intertextualidade com o poeta de Itabira.
como se a infância continuasse viva.
Em “Evocando a capital do país da infância”, o eu lírico afirma que para “construir” a
capital da infância não se precisa muito, basta lembrar estes espaços cósmicos que estão em
seu imaginário, brilhando como “áureo fanal”, basta lembrar da mãe, do avô, do Natal, do
chafariz, enfim, uma série de imagens marcantes que formam o universo da infância
imaginada e sonhada. Todas estas recordações provocam saudade no ser que lembra, pois são
lembranças que estão impregnadas em sua alma como uma fragrância sensível e permanente.
“Mortágua” é mais um poema voltado à evocação do país da infância do sujeito lírico
pela memória. O poema, por seu tom memorial, expressa a grandeza das imagens do espaço
da infância, bem como das águas dos rios portugueses:
Chamava-se Mortágua (a velha casa,
a antiga escola, a branca igreja)
a capital provisória
desse país que foi
a infância.
Mortágua: terra das águas mortas
do lago de antigamente,
olvido.
(Guardo a sua foto
amarelada
na parede gasta
da memória.)
(SIMÕES, CV, 1997, p. 51)
É em Mortágua que se encontra a velha casa, a antiga escola, a branca igreja, como é
também em Mortágua que o eu lírico relembra as águas mortas do lago de antigamente. Estas
imagens estão reunidas na memória e formam um parêntese que pode explicar a grandeza das
recordações da infância. Embora seja uma capital provisória, a infância representa um
gigantesco país, cujas marcas, escoltam o adulto pela vida inteira. É como se todo um
universo de magia, grandeza e encanto se abrissem diante das recordações da infância.
No comentário de Barros (2003), a importância da memória não se liga apenas às
reconstituições de épocas, mas sobretudo às representações e construção da identidade. Sob
esta perspectiva, é possível constatar que, no poema, a foto amarelada
3
guardada na memória,
mais que constituir uma fotografia dos registros da infância, representa sua própria vida, o que
o constitui enquanto sujeito, uma vez que a infância institui o tempo elegíaco das saudades e
do desejo de regresso.
Na lírica de João Manuel Simões, a memória e a imaginação trabalham juntas em
busca de promover uma “viagem” de regresso ao passado. Nesta volta ao tempo de criança, as
imagens são sempre carregadas de beleza como se, ao relembrar, o ser que recorda pudesse
reviver um momento de felicidade. Ainda que não se possa voltar materialmente ao passado,
esta viagem torna-se possível graças ao poder de sonhar, recordar e imaginar, (re)vivendo os
instantes em que foi criança e devolvendo à vida adulta a possibilidade de retornar ao passado
pela via da memória e da imaginação.
4.2 INVENTÁRIO OU INVENÇÃO DA INNCIA
O tema da infância, na obra poética de João Manuel Simões, percorre os labirintos da
memória em busca de encontrar o enigma que acalenta a alma e ajuda o adulto a “viver”
melhor e “conviver” com seu passado de sonho e alegria. Um dos aspectos que mais
sobressai, nos poemas em que o poeta aborda esta temática, é a existência de uma infância
sempre viva na imaginação e na memória, quer dizer, uma infância que constitui seu porto
fundamental. No sujeito da enunciação coexistem dois “eus” que se bifurcam em uma relação
dialética e complementar: o adulto e o jovem – um e outro em um único ser.
Da terra natal às mais diversas recordações do passado pueril, João Manuel Simões faz
uma espécie de “ABC” da infância ou percorre o itinerário da infância de A-Z, uma vez que
3 A referência à foto amarelada na parede da memória revela um diálogo com Carlos Drummond de Andrade,
sobretudo no poema “Confidência de Itabirano”, em que o poeta declara “Itabira é apenas uma fotografia na
parede/ Mas como dói” (ANDRADE, 2004, p. 66).
abrange os meandros da memória e resgata as diretrizes do imaginário infantil, em uma
poética madura; construída com versos singelos e significativos, repletos de lirismo e
condizentes com a docilidade e delicadeza das imagens da infância.
Wilson Martins, em “Poetas do Paraná”, afirma que o “verde paraíso da infância é
também o tema obsessivo de João Manuel Simões”, pois o poeta reconstrói pela imaginação o
“país chamado infância, de onde emigrou um dia para perdê-lo sem remédio não no espaço,
embora já não seja o mesmo, mas no tempo, irrecuperável e cruel” (MARTINS, 1994, p. 4). O
poeta retoma, sem cessar, a infância perdida, procurando “desenterrá-la do terreno minado da
memória. Recuperando a própria infância, ele recupera também a nossa” (1994, p. 4).
Neste sentido, a poesia é convite à imaginação, pois nas recordações poéticas da
infância, não apenas se lembra dos fatos vivenciados como também é possível lembrar
eventos que foram ou são imaginados, fazendo com que as lembranças dos acontecimentos
reais se misturem com aqueles imaginados e sonhados. No dizer de Puglielli, Simões
“apreende, privilegiadamente, o real e o irreal da infância, verso e reverso, fundo e figura,
recortando dos seus textos o absoluto perfil do fenômeno”. Os versos de Simões “vão além da
infância dele, poeta, para englobar a infância que é de todos: esse ‘estar-no-mundo’ ainda
envolto em sonho e espanto, em fragilidade e delicadeza vulnerável, e etapa inicial que é do
processo da condição humana” (PUGLIELLI, 1989, p. 8).
De acordo com Neukirchen, o fazer poético voltado à infância “teria o poder de fazer o
homem refletir acerca de seu princípio e redescobrir seus sonhos, amores e amizades mais
primitivas. Seria na infância que o homem aprenderia a amar o mundo, isto é, o cosmos”
(2006, p. 145). O poeta, como a criança, é capaz de perceber as “minúcias do mundo”, com
mais sensibilidade e, assim, ambos “teriam o poder de ver além daquilo que os adultos
costumam ver” (NEUKIRCHEN, 2006, p. 145).
Na lírica de João Manuel Simões, a evocação da infância, além de percorrer os
caminhos da memória em uma viagem ao passado, também ocorre no sentido de construir
uma espécie de “inventário”, cujo patrimônio herdado é composto de verdade e invenção, ou
seja, de fatos vividos e imaginados. Este levantamento sistemático dos bens deixados pela
infância perdida proporciona, ao sujeito lírico, o resgate da infância como uma herança que
serve para reatar, na vida adulta, o impulso de vida que jorrava do tempo de infante.
Outro aspecto marcante diz respeito ao fato de que a infância lembrada surge com
mais vigor que a infância vivida, como se ela fosse revestida de maior encanto e beleza, como
se a pátria rememorada se tornasse idealizada símbolo de um tempo sublime, de magia e de
felicidade. Esta nostalgia do “paraíso perdido” redimensiona a concepção de infância no
imaginário poético, fazendo com que a infância seja descrita enquanto acontecimento mágico,
indelével e permanente, livre dos terrores e dos medos, das tristezas e das adversidades.
No poema “Infância”, o encanto da infância é tão intenso que o desejo do eu lírico é
fazer do passado o futuro, como uma forma de continuidade da infância e de assegurar sua
constante permanência:
Rio sereno e puro
(música a sua voz!)
a deslizar, alado,
por entre verdes margens.
Ah! pudéssemos nós
(breves, sutis miragens)
fazer desse passado
futuro!
(SIMÕES, SP, 1983, p. 30)
A recordação da infância distante suscita, no sujeito lírico, a saudade do tempo
passado, de um tempo que deixou fortes marcas em sua vida e em sua memória. De algum
modo, a infância direciona a vivência adulta, seja através da lembrança, seja através dos
ensinamentos que a envolvem. A beleza pura e simples do olhar de criança, que em tudo o
lado mágico, belo e feliz, faz com que o eu lírico projete no mundo o mesmo encanto e
abstraia deste encantamento os ensinamentos necessários à vida.
É possível constatar, no texto, a riqueza das imagens poéticas que, condizentes com o
título, adquire grande poder enunciativo, uma vez que a presença da infância vem como uma
recordação comparada à sutis miragens, provocando, ao mesmo tempo, saudades e um
sentimento calmo e sereno, como uma música que ecoa no íntimo do ser, alçando vôo na
imaginação e projetando o sujeito lírico em uma viagem rumo à infância pela via imaginação.
A presença da infância viva estende-se à vida adulta, que o desejo do eu lírico é
“fazer desse passado futuro”, deixando que o rio da imaginação corra até os confins do Ser e
possa, assim, deslizar alado por entre “verdes margens”. No entanto, estas memórias da
infância são breves e sutis, pois duram apenas os instantes em que o sujeito lírico encontra-se
navegando “o rio do devaneio”. Além disso, a infância aparece simbolizada pela imagem de
um rio sereno e puro, o que reforça ainda mais seu aspecto transcendental, de constante
fluidez e renovação. A infância seria como este rio de águas puras que atravessa a correnteza
em direção às margens calmas, dando continuidade aos impulsos e sonhos infantis.
Neste sentido, toda infância passa a ser fabulosa, que a fábula não possui a função
de divertir, mas de encantar. Para redescobrir a linguagem das fábulas é preciso, antes,
participar do existencialismo do fabuloso e substituir a percepção pela admiração, ou seja,
admirar para poder receber os valores daquilo que se percebe. É necessário admirar a
lembrança, no próprio passado, pois as lembranças da infância, revividas no devaneio poético,
“estão de fato no fundo da alma dos ‘cânticos de ilusões’” (BACHELARD, 2001b, 114).
No poema “A necessária inversão”, o eu lírico afirma que melhor seria se fosse
possível inverter a ordem da infância e da velhice na vida das pessoas, deixando para depois, a
melhor parte:
A ordem natural da vida humana:
infância, maturidade, velhice.
Eis aí uma ordem simplesmente
anacrônica.
Melhor seria inverter a equação,
deixando para o fim
(exatamente como a sobremesa)
esse doce de coco que é a infância.
Só assim seria possível sentir,
nas papilas gustativas da alma experiente,
seu mágico sabor...
(SIMÕES, PI, 1989, p. 53)
A necessidade de uma inversão da ordem natural da vida humana, nos versos do
poema, aponta para o fato de que, na infância, não há ainda uma certa maturidade para saber a
importância deste período por toda a vida. Por isso, deveria haver uma troca, pois então,
com a alma experiente, seria possível aproveitar e saborear o mágico sabor da infância com
mais intensidade. É como se o sujeito soubesse do valor da infância quando a perdesse,
procurando revivê-la na velhice.
A ordem natural infância, maturidade, velhice constitui uma ordem anacrônica e,
conseqüentemente, encontra-se em desacordo quanto a ordem “lógica” da experiência de vida,
pois a inversão proporcionaria maior valorização desta “estação” que representa o estágio
fundamental da vida humana. Deixar para o fim (como uma sobremesa), a melhor parte
significa viver na velhice, o que a vida tem de melhor: é degustar a magia, a felicidade, o
encanto, o sabor da infância, com a diferença que, na maturidade de uma alma experiente, esta
degustação seria consciente e, com isso, mais completa e com conseqüências ainda mais
benéficas para o ser humano. A inversão da infância para o fim da vida talvez ajudaria a evitar
o problema de não se apreciar a infância no tempo certo.
Em “Pavana breve para a infância morta”, o eu lírico declara que a infância é como a
vida, que só se valoriza quando se corre o risco de perdê-la:
A infância morta
lembra
a própria vida
que indiferentemente
nós vivemos.
Queremos possuí-la
quando está perdida.
E nunca a possuímos
quando a temos.
(SIMÕES, PI, 1989, p. 69)
Nos versos, o eu lírico compara a infância à “própria vida”, que passa imperceptível. É
preciso um acontecimento marcante para que se passe a valorizá-la com mais intensidade.
Com a infância acontece o mesmo, pois é preciso perdê-la para que se comece um processo de
rememoração nostálgica. Enquanto se está nela, vive-se normalmente, seguindo o curso da
vida, sem notar que pequenos acontecimentos vão sendo registrados na memória e, no futuro,
serão relembrados como acontecimentos importantes. Depois que a infância está no
passado, é como se o homem tentasse dar-lhe vida novamente, na ânsia de voltar a ser criança
e ter de volta o passado de encanto que não soube aproveitar enquanto o tinha.
No entanto, embora a infância se por morta, no poema “Fênix”, o sujeito da
enunciação registra que a infância morre apenas aparentemente, pois ela é como uma fênix,
renasce a cada instante e a cada vez que é evocada na recordação:
Só aparentemente
a infância
morre.
Como a fênix, renasce
a cada instante sob
as cinzas.
Perpetuamente jovem
como o amor.
(Na verdade só morre
quando é morto,
por sob as rugas
e os cabelos brancos,
o menino que esquece
o exercício
consuetudinário de viver).
(SIMÕES, PI, 1989, p. 61)
São versos que evidenciam o poder da infância enquanto força mítica, semelhante ao
pássaro mítico que, segundo Chevalier & Gheerbrant, é de um esplendor sem igual, além de
ser “dotado de uma extraordinária longevidade, e que tem o poder, depois de se consumir em
uma fogueira, de renascer de suas cinzas” (2002, p. 422). O simbolismo da fênix aparece
relacionado à capacidade de ressurreição, imortalidade e reaparecimento cíclico.
As características presentes neste pássaro magnífico e fabuloso também são
características que se fazem presentes na infância, haja vista ser esta uma espécie de fênix: por
ser imortal e acompanhar o adulto pela vida inteira, por ressuscitar e reaparecer
constantemente na imaginação e na memória.
Assim como a fênix, a infância morre apenas aparentemente, pois ela consegue
renascer, desde que o adulto não esqueça de continuar vivendo. Na última estrofe do poema, o
sujeito da enunciação tece uma espécie de “receituário” para manter a infância viva e fazê-la
ressuscitar da cinza produzida pelo tempo que a consome. O simples e habitual exercício de
viver é o suficiente para que a infância não morra, pois quando ao homem/mulher de rugas e
cabelos brancos cessa a força da vida e a vontade de viver, cessa também a possibilidade de
permanência da infância sua imortalidade está ligada à vida, como sua ressurreição liga-se
ao exercício de viver. Manter viva a imagem do menino, ainda que por sob rugas e cabelos
brancos, é uma forma de exercitar a imaginação e a memória, bem como de dar à infância o
selo de elemento magnífico e fantástico – imortal.
“Itinerário” traz em cena uma reflexão acerca dos caminhos a serem seguidos na vida,
de uma vida que leva consigo a presença de um menino:
No caminho que sigo, vai
comigo uma criança.
É o menino que fui, meu pai:
um rosto de saudade e de esperança
que o tempo às vezes trai
e a vida de trair não cansa.
(SIMÕES, OE, 1987, p. 61)
A companhia do “menino que fui”, para o sujeito lírico, é semelhante à figura paterna,
pois a criança que o acompanha exerce uma forte influência nos caminhos a serem seguidos.
As marcas indeléveis da infância estão na vida do sujeito poético como ensinamentos, já que a
imagem do “menino que fui” aparece como sendo a de seu pai: aquele que lhe ensina, que
orienta e direciona os itinerários.
A presença desta criança nos caminhos pelos quais o ser lírico palmilha, forma um
“rosto de saudade e esperança” e podem representar uma espécie de volta às origens. No
entanto, ao tentar regressar é que surge a traição do tempo e da vida, pois não lhe é permitido
voltar ao passado. A cada vez que o eu lírico insiste em trilhar os caminhos da infância, o
tempo e a vida mostram-lhe que esta é uma tarefa impossível, a não ser pela via da memória.
Assim mesmo, a criança o acompanha como um pai acompanha o filho, ajudando-o a
encontrar o “itinerário” e deixando sempre um rosto de saudade do passado e de esperança
que possa, um dia, não apenas trazer consigo o menino que foi, mas ser novamente uma
criança, em que nem o tempo nem a vida possam trair o desejo de traçar seu próprio percurso.
No dizer de Neukirchen, a infância é, geralmente, abordada de forma eufemizada, o
que revela um certo “direcionamento à sublimação do plano terrestre e do tempo presente, em
sua procura pelas origens do ser humano”. Revela, ainda, “a necessidade de desvelamento do
verdadeiro sentido do ser e estar no mundo” (NEUKIRCHEN, 2006, p. 206). Neste sentido,
seria impossível rememorar a infância sem que este ato estivesse repleto de uma aura de
encantamento, sonho, imaginação e devaneio.
Em “O cais fundamental”, o eu lírico admite ser impossível trazer de volta o menino
do passado, porém, não nega que seja possível levar a grandeza da infância no coração, como
um porto ou cais fundamental:
Ó porto
inaugural!
Esteja morto
ou não, o menino
não volta nunca mais.
É esse o seu destino,
sem remissão:
levar dentro de si, para o futuro,
o cais
fundamental.
(No coração,
cristal
tão puro!)
(SIMÕES, PI, 1989, p. 66)
Para Bachelard, em todo sonhador vive uma criança que o devaneio magnifica e
estabiliza: “Ele [o sonhador] a arranca à história, coloca-a fora do tempo, torna-a estranha ao
tempo. Um devaneio mais e eis que essa criança permanente, magnificada, se faz deus”
(2001b, p. 129). No poema, a imagem da infância surge como um porto inaugural e um cais
fundamental, quase uma “deusa”, um “cristal puro” que constitui o fundamento da existência
e o direcionamento do futuro.
Mesmo tendo ciência de que o menino não volta nunca mais (estando morto ou não), o
sujeito da enunciação sabe que o halo ou o destino da infância é ir com ele para o futuro,
como um cais fundamental, como um princípio ou um ensinamento, ou seja, como um lugar
que dá acesso aos sonhos, às alegrias, às experiências de vida, enfim, a infância aparece como
um grande porto que assegura ao ser as conquistas e a volta às origens.
O sujeito da enunciação, além de levar a infância dentro de si como um princípio
constituinte da existência, ainda a leva no coração como um cristal puro. Segundo Chevalier
& Gheerbrant, o cristal é um tipo de “embrião”, uma vez que nasce da terra, da rocha. Na
mineralogia, o cristal se distingue do diamante pelo seu grau de maturidade embriológica: “o
cristal não passa de um diamante insuficientemente amadurecido (2002, p. 303, grifo do
autor). A transparência do cristal permite que se veja através dele, fazendo com que ele seja
um dos mais belos exemplos da união dos contrários, ou seja, do plano intermediário entre o
visível e o invisível. Entre os índios peles-vermelhas das Pradarias”, o cristal é usado como
talismã e produtor de visão: “facilitam o transe, o qual permite a percepção do invisível”
(GHEVALIER & GHEERBRANT, 2002, p. 303, grifo do autor).
A infância acompanha o sujeito lírico como um embrião em seu coração, como um
cristal que permite ao ser lírico visualizá-la enquanto matéria translúcida na qual é possível
ver, para além da realidade, um mundo de sonho e magia. Trazer para o futuro a infância
dentro de si é uma forma de se ter presente o elemento embrionário do encanto, é ter em si um
porto ao qual se pode ancorar sempre que a vida pesa. Carregar junto de si a infância,
mantendo-a sempre viva e tornando-a um cais, pode representar a grande diferença entre o ser
que guarda a beleza da infância como um tesouro e fonte de deleite e o ser que não a
transporta para o futuro, deixando-a esquecida nas margens do passado.
Na lírica de Simões, a infância aparece como um porto ou cais, cujo embarque e
desembarque, depende da capacidade de imaginação do sujeito que relembra as memórias do
tempo de criança. Independentemente da forma como são evocadas as imagens de infante, elas
são sempre repletas de nostalgia pela perda deste tempo feliz, mas também trazem uma
espécie de “mandamento” ou “princípio” de vida, pois a infância representa um momento
fundamental que definirá o adulto do futuro.
Da memória à imaginação, os poemas de João Manuel Simões registram um mundo de
felicidade, cuja infância é o cerne das motivações poéticas. Nas imagens e nas palavras que
simbolizam o “paraíso perdido” da infância, Simões consegue fazer o que Bachelard coloca
enquanto a capacidade que o poeta tem de fazer “reencontrar os universos da infância
inerentes ao ser, pois sem a infância não verdadeira ‘cosmicidade’ e, sem esta, não
poesia. O poeta é, pois, aquele que é capaz de redespertar em cada ser a cosmicidade da
infância” (BACHELARD, 2001b, p. 121). Existe em cada ser uma infância latente e esta é
(re)despertada em cada devaneio, em cada sonho ou imaginação, a cada vez que se volta a um
estado de infância ou se deixa contagiar pela força transbordante que emana do passado em
que fora criança feliz.
De uma maneira geral, é como se, ao traçar o “inventário da infância”, as imagens
tristes fossem apagadas. A única tristeza que causa ao ser lírico, ao recordar o passado, é a
constatação de que ele existe no arquivo secreto da memória e no espelho mágico da
imaginação pois, no “país da infância”, morte não há: a criança fica encantada para sempre,
revestida de uma matéria cristalina tecida de sonho onde permanece incorruptível para
sempre.
Neste sentido, o poeta traz consigo estes momentos significantes da infância, tais como
a escola, a igreja, a terra natal, a casa, a mãe, o avô, os rios de além mar, os brinquedos, o
circo, enfim, os lugares que expressam o tempo em que foi criança e que continuarão soando
na memória como uma flauta agridoce, longe, mas, nem por isso, menos sonora e magnífica.
Inventariar ou inventar a infância é uma tarefa que, nas mãos do poeta, ganham majestade e
naturalidade, formando quadros que resumem a nossa própria infância, colocando-nos em
contato com um passado também de encanto e felicidade. Ler e visualizar, na imaginação,
estas imagens, tão nítidas, proporcionam o privilégio de uma evocação de nossas lembranças
de infância.
É por esta e outras razões que a poesia aparece relacionada, como afirma Edgar Morin,
a um estado segundo, pois a reconhecemos, não como um modo de expressão literária, mas
como “um estado segundo do ser que advém da participação, do fervor, da admiração, da
comunhão, da embriaguez, da exaltação e, obviamente, do amor, que contém em si todas as
expressões desse estado segundo” (MORIN, 2005, p. 9). Assim, o amor faz parte da poesia da
vida e a poesia faz parte do amor da vida: amor e poesia se engendram e se identificam um
com o outro. No entanto, a sabedoria também pode problematizar o amor e a poesia, como
estes dois podem, reciprocamente, problematizar a sabedoria, em um constante entrecruzar.
Nos poemas voltados à infância, o entrecruzamento ocorre no sentido de formar uma
sintonia entre a poesia e o imaginário, bem como entre a memória e a imaginação. No dizer de
Octavio Paz, a poesia “é a memória feita imagem e esta convertida em voz” (1993, p. 144),
pois o mundo da operação do pensamento poético é a imaginação.
Além disso, a poesia “exercita nossa imaginação e assim nos ensina a reconhecer as
diferenças e a descobrir as semelhanças” (PAZ, 1993, p. 147). Ler poemas de infância é uma
maneira de exercitar a imaginação e reconhecer as diferenças e as semelhanças entre nossa
infância e a infância sonhada. Quando lemos os poetas da infância e descobrimos que nossa
infância é evocada pela lembrança, compreendemos que a infância na vida de qualquer pessoa
tem um imenso poder, uma vez que, quando a recordamos, todo um tempo onírico e sublime
vem à mente como um impulso de vida e “regresso”.
A poesia de João Manuel Simões evoca esse tempo onírico, no sentido de proporcionar
ao leitor uma viagem de “regresso” à infância sonhada. Ainda que o poeta trate de
acontecimentos de sua infância, quando relembra a cidade de origem, o natal, os figos, os
sinos da igreja, o circo, sua poesia não se isenta de uma tessitura elaborada, tanto pela
linguagem e vocabulário quanto por apresentar uma poesia trilhada nos caminhos da
imaginação criativa.
Na perspectiva de João Manuel Simões, a poesia é concebida enquanto uma perpétua
busca da infância perdida: “Ou talvez a perpétua disponibilidade do espírito para tentar
recuperá-la nos canteiros dos jardins do quotidiano. Mas a poesia pode ser também uma
tentativa crispada de desterrar a infância da província da memória” (SIMÕES, 1991, p. 33).
São estes aspectos que enriquecem ainda mais os poemas que trazem como temática a
memória e a infância, uma vez que a contemplação do passado constitui um mecanismo de
reflexão do presente, fazendo com que o ato de rememorar seja também um ato de buscar
explicações sobre sua condição original e sua existência. Mesmo que soterrada na pátina do
tempo, a infância continua viva, brilhando como um farol, queimando como um fogo ardente,
cuja conseqüência é viver no presente “com os olhos da alma no passado”, isto é, em
constante viagem pelos labirintos da memória e da imaginação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As construções do imaginário em João Manuel Simões são regidas, sobretudo, pelo
equilíbrio entre as imagens dos Regimes Diurno e Noturno, pela exaltação da poesia e sua
força capaz de ativar a imaginação humana, pela contemplação da condição do poeta enquanto
ser que converte a palavra e o silêncio em instrumento do canto poético e pelo inventário das
formas de existência por meio da rememoração do passado e da infância.
Nos poemas de João Manuel Simões, as imagens repercutem umas nas outras,
formando cadeias, cujos elos produzem o tecido semântico. É no espaço textual que as
imagens adquirem sentido, de tal forma que é preciso percorrer, no texto, os itinerários do
poeta. Nas imagens referentes ao pássaro, por exemplo, o desdobramento, por um lado, da
dimensão simbólica do universo imaginário e mítico do pássaro como ser sobrenatural e
místico, que remete à transcendência e elevação e, por outro, assume o sentido metafórico de
aproximação com a poesia, por seu caráter sublime e mágico. Percebe-se uma relação entre a
poesia e o pássaro e entre este e o poeta, pois o poeta canta um canto que expressa a vida e,
indiferente aos rumos da civilização, continua cantando e exaltando a beleza cósmica e vital.
A poesia, por sua vez, alça o vôo cósmico e mágico pelo infinito celeste, pelos labirintos da
existência e pelas galerias abissais da consciência humana.
Por isso, a poesia aparece relacionada ao devaneio aéreo: um instrumento celeste e
alado que voa em busca de um ninho para pousar. Ainda quando encontra seu ninho no céu da
página, ela continua alada, porque faz com que os leitores iniciem (ou continuem) o vôo
iniciado por ela, seguindo o curso da imaginação e os itinerários oníricos.
A lírica de João Manuel Simões encontra-se repleta de imagens que aproximam a
poesia a um mundo de fantasia e imaginação. Não quando se refere à relação pássaro-
poesia, mas também quando aproxima a poesia do sonho e da fantasia, Simões tece um canto
poético que faz ecoar por toda sua obra, um ponto de vista extremamente positivo sobre a
qualidade litúrgica e sagrada da poesia. O tom quase sempre extático, a linguagem
condensada e plena de imagens faz com que a poesia seja percebida como o ecoar de uma
transcendência indeterminada: “algo divino”, como disse o poeta Percey B. Shelley.
Levando-se em consideração a incessante exaltação da poesia ligada às imagens
ascensionais, observa-se, nas construções do imaginário de João Manuel Simões, uma
regência das imagens do Regime Diurno, pois todas as definições de poesia apresentadas pelo
poeta são pensadas contra as trevas, contra o tempo e contra a queda, em um constante jogo de
antíteses na qual a poesia contrapõe-se a tudo que seja escuro, sombrio ou nefasto. Ou seja, a
poesia está sempre relacionada à elevação, à luminosidade, à santidade e ao infinito, porque
ela também é dotada da virtude de atravessar o tempo e adquirir a “imortalidade”, por meio da
palavra poética.
No imaginário poético de Simões, o jogo antitético que marca as imagens do Regime
Diurno também se faz presente na recorrência aos oxímoros “tudo/nada” e “palavra/silêncio”.
A oposição entre as palavras encontra harmonia no reino da poesia, revelando que a poesia
constitui um meio de reunir os contrários para tornar o canto poético mais expressivo. Simões
assume uma posição de “defesa” da poesia, pois a descreve sempre com imagens que
simbolizam o plano sagrado.
Mas há, por outro lado, uma recorrência às imagens noturnas, principalmente na
substituição das antíteses pelo eufemismo. A referência ao Regime Noturno ocorre, de
maneira mais acentuada, quando o poeta promove uma eufemização da morte ou do
envelhecimento, por meio da exaltação da vida, ou ainda, quando insere as imagens da
infância e da terra natal. Pela rememoração do passado e pela celebração da vida, o poeta
consegue encontrar a constância na fluidez temporal, pois as imagens perdem a designação de
luta contra a passagem temporal e o medo da morte, para ganharem um tom de apaziguamento
e tranqüilidade.
Há, assim, uma espécie de confluência entre os Regimes Diurno e Noturno, pois não
ocorre a supremacia de um sobre o outro. Ao contrário, percebe-se um fator de equilíbrio
entre ambos, no sentido de que as imagens convergem, simultaneamente, para o jogo
antitético da teriomorfia temporal e da luta contra o tempo e para a eufemização do devir, da
mesma forma que a poesia pode ser representada tanto pelas imagens que se associam à
verticalização ou ascensão, contrapondo-se à queda e descida, quanto por imagens que
remetem à intimidade e ao encontro com o próprio ser, por meio do desdobramento do sujeito
lírico. Portanto, as imagens poéticas, na lírica simoniana, encontram-se estruturadas nos dois
regimes do imaginário de que trata Gilbert Durand, evidenciando, dessa forma, que as
construções do imaginário em Simões, passam tanto pelo crivo da imaginação criativa do
poeta quanto pelo conjunto de imagens que constituem o que Durand afirma ser o “capital
pensado pelo homo sapiens” (2002, p. 18).
Imagens como as que relacionam a poesia ao sonho, fantasia, pássaro ou do duplo e da
perversidade do fluxo temporal integram o imaginário individual e coletivo do poeta, não
sendo possível definir o limite entre um e outro, uma vez que, como ressalta Dubois (1995), o
imaginário é constituído individual e coletivamente. Mais do que buscar respostas aos
mistérios da vida, Simões sonha, indo buscar nos campos imaginários e inimagináveis, a fonte
e a essência de sua poiesis.
Outro aspecto relevante, na poética de João Manuel Simões, refere-se ao fato de que,
mesmo deixando transparente (ou explícito) a simpatia que nutre pelo elemento da
imaginação e inspiração, Simões não deixa de ressaltar, incansavelmente, que o poema
necessita de uma matéria verbal, sem a qual não seria possível sequer sua existência. Esta
preocupação com a forma de conceber a poesia faz com que, em muitos de seus poemas,
esteja presente a virtude do verbo ou da palavra na composição lírica. Entre os elementos
necessários à trama poética, o silêncio assume um papel de destaque, uma vez que ele não
representa a anulação do verbo e a mudez de expressão. Ao contrário, o silêncio é som em
potencial e sua função, no poema, é reforçar o poder da palavra, que rompe o branco da
página e transforma-se em matéria verbal, apontando para o deslumbramento do lírico, que
a união entre a palavra e o silêncio apenas torna o poema mais eloqüente e expressivo.
Verifica-se que a poesia de João Manuel Simões é essencialmente lírica, uma vez que
a vida, a revelação, a nostalgia, a recordação, a alquimia são forças dinâmicas que se
convertem em imagens que tocam diretamente na alma do sonhador que e que compõe o
poema.
Detentor de um conhecimento erudito da literatura universal e brasileira, Simões tem
sido uma voz a serviço da poesia. Sua obra comprova, seja pelo rigor formal ou seleção
vocabular, seja pelo diálogo constante com a cultura, com os artistas que admira na música, na
pintura, na filosofia e na literatura que, além de um artífice da palavra, é um crítico por
excelência. Estas considerações podem ser percebidas na própria obra, já que o artista se deixa
mostra naquilo que escreve, sobretudo, com relação à visão conceitual sobre a poesia, descrita
sempre com sinônimos e adjetivos que apontam para o aspecto de elevação e brilho, deixando
transparecer que a poesia seria como um céu.
Sua poesia apresenta-se impregnada de ato interrogativo acerca da condição
existencial. Aqui e ali pontilham indagações que não encontram respostas no plano racional,
mas luzes e veredas na seara onírica da poesia. E, tendo na interrogação a motivação
propulsora de sua curiosidade lírica, Simões, mais do que poetizar sobre o tempo, parece
filosofar sobre o sentido do tempo no fluxo da vida.
O tempo é apresentado tanto por seu aspecto de animal perverso e devorante (réptil,
serpente) quanto pelas imagens do rio-tempo e dos instrumentos temporais, que se prolongam
em redes imagéticas, construídas com vocábulos do mesmo campo semântico, tais como o
relógio, o calendário, a ampulheta, as horas.
Apesar de mostrar um tempo onívoro e inexorável, que conduz o homem a um fim
certo, há, por outro lado, uma valorização da vida, no compasso do tempo, pois a vida é
descrita como um bem que, embora breve, é doce e merece ser aproveitada. As reflexões
sobre o tempo evidenciam uma valorização simultânea do presente, do passado e do futuro, já
que o passado benévolo causa certa nostalgia e o presente vivenciado é a condição para um
futuro de esperança e realização. No ciclo temporal, a vida é o que de concreto e o
momento presente é o que assegura ao poeta a necessidade compulsiva do canto poético.
A poesia reflexiva e filosofal de João Manuel Simões se estende para as imagens da
condição existencial do indivíduo, assumindo o itinerário de um Eu em busca de si mesmo e
do encontro com o Outro. O tema em questão é balizado pelas imagens do duplo, por meio do
reflexo especular e pela presença de outro(s) eu(s). Entre o eu e o outro, a poesia revela-se um
meio de o homem se nomear outro, passando a ser, como salienta Octavio Paz, ele mesmo e
outro, sem deixar de ter uma identidade própria. Simões reflete sobre o duplo de forma que a
presença do Outro sustenta a existência do Eu, pois, sem estas “outras faces”, o indivíduo
acaba não produzindo nem refletindo imagem alguma, porque a natureza humana, assim como
a palavra poética, é marcada pelo signo da dualidade: isto e aquilo/ eu e outro.
Consciente da fugacidade do tempo, o poeta não deixa de cantar o passado, por meio
das doces recordações da infância. O tom memorial que marca o compasso de muito de seus
poemas, realça o poder imaginativo dos aspectos relacionados à memória, este “território
sagrado e espaço mágico por excelência”, conforme declara Cruz (2001).
A poesia seria uma forma de lembrar e evocar ou uma maneira de relembrar o passado
com os olhos da imaginação. A recordação por meio do devaneio poético liga-se a capacidade
de sonhar, porque recordar é também uma faculdade de sonhar, como bem definiu o filósofo
Gaston Bachelard (2001a). Quando se trata das imagens e recordações da infância é que esta
faculdade onírica e imaginativa da memória ganha mais força e vigor, pois o poeta não apenas
lembra da infância que teve como daquela que gostaria de ter tido. Isso mostra que a memória
é constituída, simultaneamente, por fatos verdadeiros e imaginados, fazendo com que a
memória seja percebida enquanto um campo de “ruínas psicológicas” que possui o poder de
armazenar as recordações, permitindo que toda infância possa ser (re)imaginada ou (re)vivida.
Na lírica de João Manuel Simões, a evocação da infância tem se mostrado um veículo
que conduz a imaginação e a memória rumo à contemplação das imagens primeiras,
movimentando as marcas indeléveis do passado pueril, por intermédio do devaneio e das
imagens poéticas. Nos poemas em que expressa o tema da infância, Simões a apresenta como
uma qualidade benévola, cujo ato de relembrar não se encontra separado de uma aura de
encantamento, uma vez que a infância representa um “paraíso perdido”, mas que pode ser
resgatado pela imaginação e pela memória, conservando, assim, as lembranças felizes e
ensinando o adulto a apreciar a infância permanentemente.
Desde a primeira publicação, da obra Eu sem mim (1964), até o mais recente livro,
intitulado A álgebra do canto (2006), João Manuel Simões apresenta uma evolução suave da
linguagem, cada vez mais condensada e imagética. Seu canto ultrapassa e transcende o
silêncio e alcança a liberdade do vôo dos pássaros. Observa-se que o poeta tem sido fiel a
quatro exigências por ele mesmo formuladas, que dizem respeito ao fato de que a obra de arte
deveria ser sinônimo de “criação, reformulação, transfiguração, catarse” (SIMÕES, 1973, p.
5). Repleto de poemas emblemáticos e enigmáticos, Simões tem se revelado “demasiado
humano” na escolha temática de sua poesia, ou seja, operador de enigmas (usando a expressão
de João Alexandre Barbosa) que proporciona ao leitor viagens imaginárias. Por meio da
transfiguração poética e pelo processo catártico, Simões compõe uma lírica que tenta purificar
o homem, a partir de temas que pertencem ao plano do fantástico, do mítico, do imaginário e
do poético, isto é, promove uma síntese verbal do homem em versos.
O poeta percorre os vácuos e labirintos da memória para resgatar as doces imagens da
infância e de sua “Itabira”: Mortágua, sem jamais abandonar uma reflexão ontológica que
marca sua condição de poeta que canta o que de “concreto” no mundo e na poesia: a
humanidade, a existência, o tempo, a memória, a vida, a morte. Afinal, na poesia, o concreto
nem sempre pode ser identificado com aquilo que se pode ver, tocar ou ouvir. Simões canta o
canto da vida, canta o tudo e o nada, o tempo e o sonho e, assim, tece com teias de palavras,
silêncio e imagens, uma poesia reveladora do imaginário humano. Constrói sua obra repleta
de lirismo existencial, preenchendo os brancos e vazios da página com o canto vivaz da
poesia, a partir de um exercício mágico e de uma alquimia verbal.
João Manuel Simões revela, pela magia dos versos, que a poesia lida com sentidos e
sensações diferentes, porque a poesia apresenta os sentidos e os valores humanos
transmutados em símbolos e imagens, o que faz com ela esteja relacionada ao universo onírico
e imaginário. Em seus versos, João Manuel Simões faz o prodigioso exercício de alimentar a
imaginação e, por isso, merece ser aclamado e reconhecido por seu justo valor: um poeta que
faz poesia com o encanto de um mago e a habilidade de um artesão do verbo.
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