resolvida numa criação: a de nós mesmos. [...] o ato de descobrir entranha a criação do que vai
ser descoberto: nosso próprio ser” (1982, p. 187). A poesia torna-se a possibilidade do homem
poder ser, quer dizer, é criação do homem pela imagem, que insurge como experiência da
“outridade”, já que a poesia abre espaço para o homem se nomear outro, passando a ser, ao
mesmo tempo, ele mesmo e outro.
O tema do eu e do outro, relacionado ao desdobramento ou duplo, aponta para uma
inquietação existencial que promove uma reflexão sobre a vida e a condição humana. Este
tema pode ser expresso de diversas formas, mediante os recursos imagéticos do espelho,
alteridade, retrato, sombra, reflexos e todas as demais condições que permitem um
desdobramento da imagem do eu. É a partir da imagem do outro refletido que surge o
questionamento sobre a existência deste “outro eu”. Vive-se a alternância cíclica das partes
duplicadas do próprio ser, uma constante busca deste outro e do próprio ser. No dizer de
Octavio Paz, a busca do outro constitui o encontro consigo mesmo, uma vez que o “outro é o
nosso duplo”, ele é o “fantasma inventado pelo nosso desejo. Nosso duplo é outro, e esse
outro, por ser sempre e para sempre outro, nos nega: está além, jamais conseguimos possuí-lo
de todo, perpetuamente alheio” (PAZ, 1991, p. 77, grifo do autor).
O duplo desempenha um papel de destaque na literatura e tem sido um tema recorrente
na lírica ocidental. Ele é sugerido ou estimulado pelos espelhos ou fontes, como acontece no
Mito de Narciso
3
. Para Gilbert Durand, o espelho não é apenas “processo de desdobramento
das imagens do eu, e assim símbolo do duplicado tenebroso da consciência, como também se
liga à coqueteria, e a água constitui, parece, o espelho originário” (2002, p. 100). Durand
3 De acordo com Favre, a lenda de Narciso se apresenta constituída de significação mítica e ainda continua
desconhecida para nós. Narciso nasce dos amores do rio Cefiso e da ninfa Liríope. O jovem nasce dotado de
extrema beleza, mas insensível ao amor. Durante uma caçada, a ninfa Eco toma-se de amores por Narciso que a
despreza, como já havia desprezado outras ninfas. Uma delas, então, suplica à deusa Nêmesis para que
intervenha e o castigue por sua frieza, para que, também ele, possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor.
Certo dia, ao se aproximar de uma fonte límpida, Narciso debruça-se sobre a água para matar a sede. Percebe sua
imagem e imediatamente se apaixona por ela. Sem saber que se trata da própria imagem, ele deseja a si mesmo.
Quando se dá conta de que ama a si mesmo, ele deseja morrer, privando-se de alimento, começa a definhar até
que seu corpo desaparece, nascendo no lugar, a flor do narciso (FAVRE. In: BRUNEL, 1997, p. 747).