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para o templo de Jerusalém, enfim, milhares de anos antes da história, tribos tinham
saído da Ásia e, movidas pela fome ou por misterioso tropismo, tinham se dirigido
primeiro para noroeste, para o que hoje é a Sibéria, e depois, atravessando o que é
hoje o estreito de Bering, haviam chegado ao que hoje é o Alasca, descendo para o
sul e se espalhando ao longo do que hoje é a América. Que viagem, doutor.
Viagem? Não, a palavra não é essa. Viagem era o que nós fazíamos a bordo do
Madeira. Aquela gente toda caminhando sem cessar, atravessando planícies e
montanhas, rios e desertos, descendo do Norte para o Sul, derramando-se pelo
continente, aquilo ultrapassava os limites da simples viagem. Tratava-se de um
longo e extraordinário movimento, análogo ao deslocamento das massas tectônicas;
a comparação é adequada porque eles eram telúricos, os índios, ao passo que nós
éramos – e o nome já diz tudo – passageiros. Como viajantes, éramos transitórios.
Eles não, a viagem deles era algo permanente, eles a tinham no sangue – não, eles a
tinham em cada célula, em cada elementar partícula dos corpos bronzeados. (...)
(SCLIAR, 1997: 44-45)
A gradação feita pelo texto estipula a presença dos índios, que vieram caminhando
num ritmo semelhante aos movimentos geológicos e tectônicos responsáveis pelo recorte
geográfico dos atuais continentes, como ancestral, anterior à história, em contraponto à
presença recente dos judeus russos, que chegaram ao Brasil atravessando o Atlântico numa
viagem de algumas semanas. Mas se as diferenças entre o movimento dos índios e a viagem
dos judeus russos são flagrantes, elas não impedem a constatação de que, de um lado, se os
índios, portadores de identidades hifenizadas em relação à nacionalidade brasileira, foram
desapropriados, exterminados, transformados em estrangeiros em sua própria “casa”,
condenados também a permanecer em territórios restritos estabelecidos por leis ambientais
que nem sempre são respeitadas, de outro, os judeus sempre foram os intrusos impróprios e
indesejados não-assimilados à nacionalidade russa, resistentes ao projeto de país soberano,
quer durante o Império czarista quer após a revolução de 1917:
Não era sem tempo. Em meio à guerra civil que se seguiu à Revolução de 1917,
Ananiev, como outras cidadezinhas judias, vivia sob a constante ameaça do pogrom.
Um dia os soldados tzaristas invadiram a aldeia. Quem pôde fugiu, mas eles
conseguiram agarrar o schochet, o homem que matava galinhas e fazia as
circuncisões, santa criatura.
Pequeno, magro, encurvado, o schochet tinha um único motivo de orgulho: a longa
e venerável barba, mais longa e venerável do que qualquer outra barba judaica nas
aldeias do sul da Rússia. Nunca a aparara; obedecendo ao antigo preceito religioso,
deixava que crescesse porque na ponta de cada fio estava contida a verdade: a
verdade da barba e a verdade de Deus. Cada fio da barba estava programado, desde
o início dos tempos, para atingir um determinado comprimento, para dar à barba um
determinado formato, e esse desígnio, natural e ao mesmo tempo divino, não podia
ser contrariado. O schochet nada mais era que o suporte de sua barba, da mesma
forma que o pau nada mais é que o suporte da bandeira, que o mastro nada mais é
que o suporte da vela. Tremulando, essa bandeira panda, essa vela inflada por
ventos que de longe sopravam, navegava num mar imaginário rumo a terras
longínquas, terras de florestas verdejantes e rios piscosos, terras em que as galinhas
tinham o tamanho de pequenos elefantes (e os elefantes, pelo contrário, eram
pequenos e delicados como franguinhos novos). Eu sou a minha barba, dizia o
schochet degolando um frango.