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RICARDO ALEXANDRE FERREIRA
CRIMES EM COMUM:
Escravidão e liberdade no extremo
nordeste da Província de São Paulo
(Franca 1830-1888)
FRANCA
2006
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Ferreira, Ricardo Alexandre
Crimes em comum: escravidão e liberdade no extremo
nordeste da Província de São Paulo (Franca 1830-1888) /
Ricardo Alexandre Ferreira – Franca : UNESP, 2006
Tese – Doutorado – História – Faculdade de História,
Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Escravidão – História – Brasil. 2. Criminalidade – His-
tória – Franca (SP).
CDD 981.0435
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RICARDO ALEXANDRE FERREIRA
CRIMES EM COMUM:
Escravidão e liberdade no extremo
nordeste da Província de São Paulo
(Franca 1830-1888)
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de História, Direito e
Serviço Social da Universidade Estadual
Paulista – Campus de Franca como requisito
parcial para a obtenção do título de Doutor em
História. Área de concentração: História e
Cultura Social. Sob orientação do Prof. Dr.
Horacio Gutiérrez.
FRANCA
2006
AGRADECIMENTOS
Muito tempo se passou desde a primeira vez em que me deparei com a
caligrafia de um escrivão do século XIX. Naquele momento, eu não seria capaz
de imaginar quantas pessoas gentilmente disporiam do seu próprio tempo para
me auxiliar. Em outras oportunidades pude agradecer uma parte delas. Nestas
linhas, gostaria de relembrar algumas e estender a minha gratidão a outras.
Nos últimos anos encontrei no professor Horacio Gutiérrez mais que um
orientador. Sua experiência profissional e disponibilidade para sugerir caminhos,
sempre que a dúvida me impedia de tomar decisões, foram fundamentais. A ele
agradeço e me desculpo pelas vezes em que nossas reuniões começaram muito
cedo, a ponto de transtornar a sua rotina diária.
Como a maior parte dos meus colegas, tive a oportunidade de desenvolver
no curso de Doutorado algumas questões preliminarmente abordadas em minha
pesquisa de mestrado. Assim, nos últimos três anos e meio pude contar com a
contribuição de outros profissionais da área de história que ouviram os primeiros
resultados, debateram e sugeriram aprimoramentos.
Ainda na defesa da dissertação, contei com a leitura dos professores Ida
Lewkowicz e Manolo Florentino, os quais, ao saberem que o trabalho
prosseguiria, além de argüir a dissertação, realizaram algumas sugestões agora
incorporadas ao presente texto. A ambos gostaria de agradecer.
Às professoras Marisa Saenz Leme e Maria Aparecida de Souza Lopes sou
duplamente grato por terem debatido comigo, tanto o trabalho de mestrado
quanto o de doutorado, sempre dispostas a contribuir e chamar a minha atenção
para aspectos relevantes da interpretação da documentação de época e do
diálogo com a historiografia.
Com professores de diferentes países da América Latina pude discutir o
tema da criminalidade escrava no Brasil, por ocasião do Primer Congreso
Sudamericano de Historia, realizado em Santa Cruz de la Sierra na Bolívia. Lá
conheci o professor argentino Ernesto Bohoslavsky, a quem sou grato por me
apresentar questões abordadas pela historiografia internacional.
Aos professores Adriana Pereira Campos e Marcos Luis Bretas agradeço
por terem gentilmente me recebido, primeiro, em um congresso promovido pela
Universidade Federal do Espírito Santo e, depois, no 2º Seminário Regional do
Centro de Estudos do Oitocentos, realizado nas dependências da Universidade
Federal de São João del Rei.
Durante o doutorado, além de intensificar a pesquisa em arquivos, pude
aprofundar meus estudos a respeito da história da escravidão e do direito penal
no Brasil. Para tanto, foi fundamental a atenção que recebi dos funcionários da
Biblioteca do Campus de Franca da Unesp, bem como da Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas e do
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. No Rio de Janeiro
também pude contar com a solicitude dos profissionais da Biblioteca Nacional, do
Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Embora não consiga nomeá-los gostaria de agradecer a todos.
Nos arquivos Municipal de Franca e do Estado de São Paulo pude contar
com o pronto atendimento de todos os funcionários, aos quais também gostaria
de agradecer. Em especial, sou grato ao Fabrício e à Michele, meus auxiliares de
pesquisa, sem os quais eu não conseguiria completar a coleta, leitura e o
processamento das centenas de processos criminais que pesquisei no Arquivo
Histórico Municipal de Franca. Ambos reúnem qualidades necessárias ao
pesquisador e por isso espero que, em breve, defendam suas próprias
dissertações e teses.
Gostaria de agradecer uma vez mais a meu pai Devair Messias Ferreira e a
minha mãe Hélida Maria dos Santos Ferreira, que mesmo preocupados com a
notícia de que eu seria bolsista por mais três anos, nunca me negaram apoio
durante todo o doutorado. Aos dois gostaria de lembrar que tenho uma dívida de
gratidão eterna.
Mais uma vez quero agradecer a Dulce Maria Anhezini, mãe de minha
esposa, que não merece o título de sogra. Nestes últimos anos passei momentos
agradáveis em sua companhia e na de seus familiares. A todos eles o meu muito
obrigado.
Nenhuma das palavras que me vêm à mente neste momento é suficiente
para agradecer e adjetivar Karina Anhezini. Devo a ela, e sobretudo a ela, a
possibilidade de concluir este trabalho no prazo. Além de agradecer devo me
desculpar por não conseguir dar à sua própria tese a mesma contribuição que ela
ofereceu à minha. Por tudo que passamos e, espero, pelo que ainda passaremos
juntos, muito obrigado.
Por fim, devo registrar o meu agradecimento à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo pelo apoio integral concedido a este trabalho
em todas as suas fases. Além da possibilidade de dedicação exclusiva à
pesquisa, a importância dos recursos disponibilizados pela fundação foi
particularmente sentida, quando, a consulta a um simples ofício administrativo de
época ou a uma obra jurídica rara, demandava um deslocamento superior a
quatrocentos quilômetros do local onde se realizou a pesquisa.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
9
CAPÍTULO 1
UM ESTADO POUCO LISONJEIRO: CRIMINOSOS LIVRES,
ESCRAVOS E O TEMA DA SEGURANÇA INDIVIDUAL SOB O
OLHAR DO EXECUTIVO
24
1.1 A criminalidade vista da Corte 27
1.1.1 O que compete ao ministro? 27
1.1.2 É preciso reformar 32
1.1.3 Aumentam as notícias de homicídios e outros crimes violentos 43
1.2
A criminalidade vista da província
53
CAPÍTULO 2
COSTUMES E CRIMINALIDADE: LIVRES E ESCRAVOS NUM
MUNDO RURAL
67
2.1 Facínoras, entrantes e escravos 68
2.1.1 Repositório de homens perigosos: a construção de uma má fama 68
2.1.2 Costumes mineiros em terras paulistas 84
2.1.3
Possuir poucos escravos: uma tranqüilidade e um problema
89
2.2
Livres, libertos e escravos: crimes e criminalidade
99
CAPÍTULO 3
UM JULGAMENTO, DUAS PENAS: LIVRES E ESCRAVOS NAS LEIS
E NOS TRIBUNAIS
115
3.1 Escravos e livres no mesmo banco dos réus 116
3.1.2 Sob o Livro V 117
3.1.3 No período Imperial 122
3.2 Livres e escravos na sala das sessões do júri
132
CAPÍTULO 4
DOS CRIMES QUE SÃO MANDADOS: LIVRES E ESCRAVOS EM
EMBOSCADAS, CONFLITOS E PARCERIAS
149
4.1 Na Assembléia Geral: exíguos informes 151
4.2 Na Assembléia Provincial: um assassinato em destaque 156
4.3 Na comarca: confrontos, emboscadas e parcerias 159
4.3.1
Camaradas, filhos e escravos em intimidações, surras e mortes
159
4.3.2
Desordeiros e assassinos
172
4.3.3 Vinganças e outras associações criminosas entre livres e
escravos
177
CONSIDERAÇÕES FINAIS
185
FONTES
189
BIBLIOGRAFIA
193
LISTA DE GRÁFICOS, TABELAS E ILUSTRAÇÕES
210
ANEXO
211
RESUMO
O presente estudo aborda o tema da criminalidade no Brasil Imperial com o
objetivo de compreender as possibilidades de interpenetração dos mundos de
livres e escravos em áreas de produção agrícola e pecuária destinadas ao
consumo e ao abastecimento interno. Para tanto, são analisados os processos
criminais remanescentes do Termo e depois Comarca de Franca em conjunto com
os relatórios da Secretária de Estado dos Negócios da Justiça e da Presidência da
Província de São Paulo, produzidos na vigência do Código Criminal do Império,
durante a existência legal do cativeiro de africanos e descentes no Brasil (1830-
1888). No cotidiano, a fronteira entre a escravidão e a liberdade reafirmava-se
sempre que o limite do tolerável era ultrapassado. No entanto, muitos livres e
escravos ocuparam os mesmos espaços, lutaram pelos mesmos interesses e
praticaram crimes em comum.
Palavras-Chave: Escravidão, liberdade, crimes, criminalidade.
INTRODUÇÃO
As revoltas de escravos compuseram uma das mais importantes páginas
da história do cativeiro de africanos e descendentes no Novo Mundo
1
. No âmbito
do Estado, sob a óptica legal, a punição dos integrantes de uma sublevação
passava pela transfiguração jurídica do levante em crime. Mesmo que, para isso,
muitas vezes os crimes, e não somente aqueles que envolviam escravos,
1
Para uma análise abrangente das mais significativas revoltas de escravos nas Américas,
bem como do levantamento de alguns dos principais estudos a respeito delas produzidos,
Cf: GENOVESE, Eugene D. Da rebelião à revolução: as revoltas de escravos nas Américas.
São Paulo Global, 1983.
pudessem “ser puxados e empurrados por todos os lados, até que coubessem
dentro das formas jurídicas adequadas”
2
. No entanto, a transformação da rebeldia
escrava em crime representou uma das intromissões mais espinhosas de poderes
externos e normativos em conflitos que, durante muito tempo, foram resolvidos
interna e reservadamente pelos senhores, seus feitores, administradores e
escravos. A fronteira que demarcava o fim do direito de castigar dos proprietários
e o início da atribuição de punir do Estado constituía-se num território de
artimanhas e enfrentamentos. Contudo, essa intervenção, aos poucos, tornou-se
mais efetiva
3
e legou ao futuro uma formidável massa documental.
Em sua maior parte, produzidos no século XVIII e, principalmente, no XIX,
esses papéis oficiais abrangem, ainda que de maneira muitas vezes fragmentária,
desde o princípio dos debates a respeito da elaboração de uma determinada lei
até o cumprimento de sentenças condenatórias em comarcas localizadas nos
mais distantes sertões da época. Por tal amplitude, essas atas parlamentares,
códigos, alvarás, avisos, decretos, livros cartoriais, ofícios, inquéritos, processos,
apelações e relatórios administrativos têm sido cada vez mais freqüentados por
estudiosos interessados na interpretação de uma história crítica do cotidiano
4
, que
sem dúvida é mais ampla do que a história do cativeiro. No entanto, o interesse
dos pesquisadores dedicados ao estudo do nosso passado escravista por essa
2
Tomo aqui, por empréstimo, uma afirmação de E. P. Thompson a respeito da justiça na
Inglaterra do século XVIII, por acreditar que ela contempla o caráter de composição jurídica do
crime. THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 333.
3
Stuart Schwartz afirma, por exemplo, que os senhores de engenho da Bahia colonial
indubitavelmente dispunham de elevado status e riqueza, além de controle de instituições locais e
extensas redes de parentesco, constituindo-se no segmento mais poderoso daquela sociedade.
Mas, sua autoridade não era irrestrita. Segundo o autor: “Após a fase inicial de desbravamento do
território, no século XVI, a presença de administradores régios e da relação na Bahia estabeleceu
certos limites aos senhores de engenho. Os funcionários da Coroa raramente interferiam em
questões de controle da escravaria, matéria em que os senhores de engenho o mais das vezes
possuíam total liberdade; entretanto, as ações destes últimos eram restritas pelo governo régio
quando conflitavam com o governo civil ou a administração da justiça. A capacidade da Coroa de
controlar o mundo dos engenhos era limitada, porém, pela distância, dificuldades e redes de
parentesco e influência que não raro incorporavam os próprios magistrados”. Ainda segundo o
mesmo autor, “à medida que se desenvolveu a estrutura judiciária nas vilas do Recôncavo, as
autoridades centrais puderam organizar e executar melhor as funções de policiamento [...] O
mundo dos engenhos não esteve completamente fora do alcance da lei, e não só a palavra dos
senhores de engenho imperou nessas propriedades”. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos:
engenhos e escravos na sociedade colonial 1550 - 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988,
p. 234.
4
O desenvolvimento e as contribuições teórico-metodológicas de uma historiografia crítica do
cotidiano são detidamente analisados em: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do
quotidiano na historiografia contemporânea. Projeto História. São Paulo, (17), nov. 1998.
documentação gerou uma conseqüência peculiar. Ao consultar, organizar e
recortar esses documentos
5
estabelecendo um diálogo entre suas questões
contemporâneas e os textos produzidos no passado, os historiadores
encaminharam, de certa maneira, um movimento inverso ao das autoridades
coloniais e imperiais — a vinculação entre crimes cometidos por cativos e a
rebeldia dos escravos contra o cativeiro
6
.
No âmbito da historiografia dedicada ao estudo do cotidiano e da
resistência escrava no Brasil, a conjugação do trinômio “escravidão – crime –
liberdade” propiciou, em conjunto com outras abordagens e fontes, instigantes
debates e até polêmicas interpretativas. Uma delas desencadeou-se há quase
duas décadas, quando alguns pesquisadores argumentaram que a historiografia
precedente, principalmente dos anos 1960 e 70, apesar de contribuir com o
avanço na compreensão do papel do cativo na luta contra a escravidão, centrava-
se excessivamente na violência como principal arma usada tanto para a
dominação senhorial quanto para a resistência empreendida pelos escravos
7
.
Explorando fontes de natureza criminal, alguns desses historiadores se lançaram
à tentativa de interpretar os significados e sentidos conferidos pelos próprios
cativos aos planejamentos de ataques individuais e coletivos contra senhores,
feitores e administradores, à prática de furtos e desvios da produção das
fazendas, à resistência às autoridades policiais nos núcleos urbanos, à aplicação
de pequenos golpes e às relações não autorizadas estabelecidas com escravos
fugitivos, quilombolas
8
, ex-escravos, tropeiros, mascates, taberneiros, boticários,
5
Ações peculiares ao trabalho do historiador que, na acepção de Michel de Certeau, produz seus
documentos “pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao
mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto”. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 81.
6
No Brasil, embora não devam ser esquecidos os nomes de Clóvis Moura, Décio Freitas e Alípio
Goulart como estudiosos pioneiros das insurreições e das revoltas de cativos, um dos primeiros
trabalhos a lançar mão da análise sistemática de processos criminais envolvendo cativos de uma
dada região para a análise da rebeldia escrava foi: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão
negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1977.
7
Realizei uma exposição mais detalhada deste debate em: FERREIRA, Ricardo Alexandre.
Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade num ambiente rural, 1830-1888.
São Paulo: Editora da UNESP, 2005. il.
8
Em especial, para o tema dos quilombos, quilombolas e suas relações com a população
escrava e livre em diversos pontos do Brasil, desde o período colonial, Cf: REIS, João José
; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996 e GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os
bacharéis em Direito e tantos outros membros da sociedade que gravitava ao
redor do cativeiro. Embora não sejam uníssonos, de maneira geral, estes estudos
concluíram que o crime, sobretudo o de morte, era um ato limite antecedido por
uma série de outras manifestações cotidianas de desagrado dos cativos em sua
relação com os senhores. Cientes destas demandas muitos senhores realizavam
concessões aos seus escravos — interpretadas pelos pesquisadores como
estratégias de dominação fundadas em critérios paternalistas
9
. Do seu lado, os
cativos compreendiam essas concessões como conquistas e eram capazes de
negociar com os proprietários entre os extremos da submissão e da rebeldia
10
.
Não acredito que a vinculação entre crimes cometidos por escravos e sua
luta consciente pela conquista da liberdade, tal como a concebiam os cativos, ou
mesmo pela obtenção de melhores condições de vida dentro do cativeiro deva ser
colocada em dúvida. Embora não se possa atribuir a todos os escravos a
compreensão da escravidão em sua amplitude institucional, os ataques
individuais e coletivos a senhores, feitores e autoridades estatais — por quebras
de acordos, durante sessões de castigos e humilhações públicas ou reservadas,
ou ainda, como desfechos de planos cruentos cuidadosamente elaborados dia-a-
pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX).
São Paulo: Ed. UNESP; Ed. Polis, 2005.
9
Uma das obras que mais contribuiu para o desenvolvimento dessas reflexões na historiografia
brasileira foi: GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
10
Foi por ocasião do centenário da abolição (1988) que, inspirados pelos desdobramentos
da historiografia internacional, principalmente inglesa e norte-americana, alguns
pesquisadores se lançaram ao estudo de documentos cartoriais para dialogar com as
tradições historiográficas a respeito do escravismo brasileiro que lhes antecederam.
Engajados no debate, do qual emergiu a interpretação do “cativo sujeito de sua história”, é
possível destacar: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos
malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986 (posteriormente ampliado e publicado em nova
edição de 2003; MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta
e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987; REIS, João
José ; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989; ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor ausente: estudo
sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes, 1988; LARA, Silvia Hunold.
Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990;
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e
forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998 e SLENES, Robert W. Na
senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. As principais críticas à idéia do
“cativo sujeito de sua história” encontram-se em: GORENDER, Jacob. A escravidão
reabilitada. São Paulo: Ática, 1990 e QUEIROZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em
debate”. In: FREITAS, Marcos Cezar. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:
Contexto, 1998.
dia em meio a ameaças e padecimentos — ocorreram nas diversas regiões do
país e, na segunda metade dos oitocentos, de maneira mais concentrada nas
áreas exportadoras do sudeste, permeando a literatura
11
, os debates promovidos
nas assembléias parlamentares, os relatórios emitidos por secretarias de governo,
a imprensa e, consequentemente, contribuindo de maneira decisiva com a
extinção legal do cativeiro no Brasil
12
.
Ainda assim, dependendo da época e do lugar onde ocorria a relação entre
senhores e escravos, se em áreas urbanas ou rurais, nos sertões ou litorais, de
acordo com o tipo de atividades desenvolvidas, com a dimensão das
propriedades, com a quantidade de cativos possuídos por proprietário, com a
maior parcela de crioulos ou de africanos na população de escravos e libertos,
dentre outros fatores, uma parte significativa das ações tidas como delituosas
praticadas pelos escravos os aproximava mais da população livre em geral
13
do
11
A questão das relações entre a percepção do aumento dos crimes cometidos por
escravos contra o poder senhorial nas décadas de 60 e 70 do século XIX e sua abordagem
na literatura produzida no mesmo período, é discutida em: SÜSSEKIND, Flora. “As vítimas
algozes e o imaginário do medo”. In.: MACEDO, Joaquim Manoel de. As vítimas-algozes:
quadros da escravidão. 3ª ed. São Paulo: Scipione, 1988.
12
Nos últimos anos, alguns estudiosos têm se dedicado ao entendimento da participação dos
cativos no processo de abolição da escravidão no Brasil. A importância da criminalidade escrava
praticada na segunda metade do século XIX no sudeste é discutida em: AZEVEDO, Célia Maria
Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987 e MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. O Plano e o pânico: os
movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro: UFRJ, EDUSP, 1994 e MATTOS,
Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Também inserido nesse debate, porém visando
compreender os significados conferidos às noções de legalistas e radicais atribuídas à atuação
dos escravos no movimento pela abolição da escravatura, desde a década de 1870, em São
Paulo, encontra-se o estudo: AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e
abolicionismo na província de São Paulo na segunda metade do século XIX. 2003. Tese
(Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
13
Alguns trabalhos foram particularmente relevantes ao estudo dos homens livres que viveram no
seio da sociedade escravista. Caio Prado Júnior é apontado como um dos pioneiros autores a
considerar a importância crescente da população livre e pobre, comprimida entre senhores e
escravos, na história da colonização do Brasil. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil
contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense: Publifolha, 2000. Maria Sylvia de Carvalho
Franco foi pioneira no Brasil ao lançar mão da análise de processos criminais da Comarca de
Guaratinguetá para estudar a vida dos homens livres no mundo rural na “velha civilização do café”
no século XIX. FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed.
São Paulo: Ática, 1974. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. Peter Einsenberg era um
crítico da idéia que reputava incompatível a convivência do trabalho livre e escravo no Brasil
afirmando que apesar de não se confundirem, ambas as formas podiam ser contemporâneas e até
semelhantes em certos aspectos. EISENBERG, Peter Louis. “O homem esquecido: o trabalhador
livre nacional no século XIX: sugestões para uma pesquisa”. In: Homens esquecidos: escravos e
trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989. Tomando
em conta estes estudos, outros pesquisadores também se dedicaram à análise do cotidiano da
que propriamente dos seus senhores. É justamente essa percepção que o
presente estudo procura desenvolver sustentando a pergunta: Era o crime de um
escravo, em qualquer tempo ou lugar, um ato contra a escravidão? Ao admitir,
como pressuposto de abordagem da questão, que nem sempre existia uma
relação linear entre qualquer tipo de crime atribuído a um escravo e a revolta
contra a instituição escravista é possível ir além dos estatutos jurídicos da época
e penetrar no universo das fronteiras que separavam cotidianamente a escravidão
e a liberdade, tentando compreender as possibilidades de ambos os conceitos em
lugares e arranjos sociais peculiares, que participaram da composição do Império
do Brasil. Em outras palavras, o que pretendo ao longo dos capítulos deste
trabalho é empreender um estudo comparativo de ações tidas como
transgressões praticadas por livres, libertos e escravos para compreender, sob o
prisma da criminalidade, como os mundos da escravidão e da liberdade se
interpenetravam no cotidiano das regiões rurais dotadas de poucos cativos.
Há mais de duas décadas, pesquisadores de diferentes áreas das
humanidades argumentam que havia escravos africanos e seus descentes
nas mais variadas regiões do Brasil desempenhando um conjunto
diversificado de atividades que não se limitava à produção destinada ao
mercado externo
14
. Uma parcela significativa dos escravos que viveram no
população livre, bem como de suas relações com escravos e libertos em diferentes regiões do
Brasil. Dentre estes trabalhos é possível destacar: SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira,
trabalho livre e cotidiano: Itu, 1780-1830. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005
(Versão revisada da dissertação de mestrado da autora “O papel do agregado na região de Itu –
1780 a 1830”, publicada na Coleção Museu Paulista – Série de História vol. 6, 1977, acrescida de
um novo texto a respeito do “trabalho livre nas áreas de colonização Ibérica”); CAMPOS, Alzira
Lobo de Arruda. O agregado na cidade de São Paulo. 1978. Dissertação (Mestrado em História) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo;
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de
Janeiro: Graal, 1982; DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no
século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984; MATTOS, Hebe Maria. Ao sul da História: lavradores
pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987; MOURA, Denise Aparecida
Soares de. Saindo das sombras: homens livres no declínio do escravismo. Campinas: Área de
Publicações CMU/Unicamp, 1998; FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A colônia em movimento:
fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Um balanço de
produção historiográfica recente a respeito do tema é realizado no texto: DIAS, Maria Odila Leite
da Silva. “Sociabilidades sem história: votantes pobres no Império, 1824-1881”. In: FREITAS,
Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 57-72.
14
Em conjunto com outros trabalhos, as pesquisas que se dedicaram ao estudo da demografia e
da posse de cativos em diferentes regiões do Brasil foram particularmente importantes ao
conhecimento das várias possibilidades de existência da escravidão no país. Cf: LUNA, Francisco
Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores. Análise da estrutura populacional de alguns centros
migratórios (1718-1804). São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1981; LUNA, Francisco
Vidal ; COSTA, Iraci Del Nero da. Posse de escravos em São Paulo no início do século XIX.
Brasil pertencia a senhores de posses modestas, habitantes de localidades
rurais que, para o trabalho de produção de gêneros alimentícios e
mercadorias destinadas ao consumo e ao mercado interno, contavam com
uma mão-de-obra mista composta por alguns cativos
15
(na maioria dos
casos, menos de cinco escravos), um ou outro trabalhador livre ou liberto e,
principalmente, filhos, sobrinhos, tios, afilhados, irmãos dentre outras
pessoas que mantinham laços de dependência com os proprietários
16
.
Convicto da relevância em aprofundar o conhecimento do cotidiano
de escravos, libertos e livres em tais condições, sem pretender com isso
afirmar a maior importância dessa modalidade do cativeiro sobre as outras
formas coexistentes no país, e, pelo contrário, da mesma maneira que
outros historiadores, entendendo-as como facetas interdependentes da
mesma história, escolhi para este estudo o Termo e depois Comarca de
Estudos Econômicos. São Paulo, v. 13, nº. 1, p. 211-221, janeiro/abril, 1983; SCHWARTZ, Stuart
B. Padrões de propriedade de escravos nas Américas: nova evidência para o Brasil. Estudos
econômicos. v. 13, nº. 1, p. 259-287, janeiro/abril de 1983; SLENES, Robert W. Os múltiplos de
porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século XIX. In: Cadernos do IFCH,
nº. 17, 1985; GUTIÉRREZ, Horacio. Demografia escrava numa economia não exportadora:
Paraná, 1800-1830. Estudos Econômicos. v. 17, nº. 2, p. 287-314, maio / agosto de 1987;
MATTOS, Hebe Maria. “A escravidão fora das unidades agro-exportadoras”. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion (org.) Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1988; SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001;
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de cativos e família escrava em
Bananal (1801-1829). São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999 e BACELAR, Carlos Almeida Prado.
“A escravidão miúda em São Paulo colonial”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (org.). Brasil:
colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 239-254. Também se inseriram
no debate com os autores que atribuíam às relações com o mercado externo os principais
elementos da formação econômica e social do Brasil, revelando a importância dos negociantes
coloniais nesse processo, as obras: FLORENTINO, Manolo G. Em costas negras: uma história do
tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX).São Paulo: Companhia
das Letras, 1997 e FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1998.
15
Herbert Klein e Francisco Vidal Luna afirmam que “o uso de mão-de-obra escrava,
inicialmente de índios e depois de negros, para produzir gêneros de subsistência e
destinados ao mercado local, foi uma das características distintivas da escravidão
brasileira. Poucas foram as outras sociedades escravistas nas Américas que fizeram uso
tão sistemático da cara mão-de-obra escrava nessa área de produção.” LUNA, Francisco
Vidal ; KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de
1750 a 1850. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p.107-108.
16
Refiro-me aqui ao modelo patriarcal vigente durante muito tempo no Brasil, o qual, na acepção
de Kátia de Queirós Mattoso, é o tipo de família “na qual o pater famílias reúne, sob sua
autoridade e sob seu teto, tias e tios, sobrinhos, irmãs e irmãos solteiros, vagos primos, bastardos,
afilhados, sem contar os ‘agregados’. Estes últimos são livres ou alforriados, brancos pobres,
mestiços ou negros, que vivem na dependência tutelar da família e são considerados como
parcelas dessa comunidade familiar. Também os escravos fazem parte da família. Todos os
escravos, pois o privilégio não é restrito aos domésticos”. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser
escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 124.
Franca, situada no extremo nordeste da então Província de São Paulo, na
divisa com Minas Gerais (ver mapa “Império do Brasil”
17
, na página
seguinte), num dos mais importantes caminhos, a Estrada dos Goiases, que
ligava o litoral às províncias de Goiás e Mato Grosso. Uma região, como
tantas outras áreas de fronteira, mal afamada no século XIX pela notícia da
recorrência de distúrbios e assassinatos. Uma área, incluída entre as
chamadas “novas regiões a oeste” da província paulista que, sem nunca ter
se inserido na produção de açúcar para exportação, foi uma das últimas a
desenvolver durante os oitocentos, em larga escala, a cultura dos cafezais.
Um ambiente rural, habitado, durante todo o século XIX, por senhores de
poucos escravos.
A vigência do Código Criminal do Império durante o período de
existência legal da escravidão no Brasil (1830 – 1888) foi escolhida como
delimitação temporal deste estudo. O marco inicial da pesquisa poderia ser
estabelecido no ano de 1841, quando o aparato jurídico-policial do Império
sofreu a sua reforma mais contundente. No entanto, ao enfocar uma região
específica, cujo povoamento iniciou-se ainda em fins do século XVIII, é
relevante considerar as possibilidades interpretativas oferecidas pelos
processos criminais
17
”Império do Brazil”. In: Atlas do Império do Brasil - Os Mapas de Cândido Mendes (1868). Rio de
Janeiro: Arte e História Livros e Edições, 2000, p. II. Área do Município de Franca por mim
destacada em vermelho, a partir das delimitações dos rios Pardo, Grande e divisas da Província
de São Paulo com a de Minas Gerais constantes no mapa original.
produzidos em toda a vigência do Código Criminal do Império. Ademais,
esta delimitação temporal permite a análise de um corpus documental
produzido a partir de uma uniformidade de princípios jurídicos que definem
os crimes, os criminosos e as penas. Sempre que necessário, entretanto,
retomarei a situação de livres e escravos diante da justiça criminal no
período colonial para a identificação de rupturas e permanências.
Acredito que para detalhar as fontes e as estratégias de pesquisa por
mim utilizadas na construção deste trabalho é oportuno narrar brevemente a
trajetória de que o originou. Narrativa esta que se encerrará com a
exposição de cada um dos capítulos que compõem o estudo. Pesquisar
possíveis peculiaridades da criminalidade escrava ocorrida fora do
ambiente da clássica plantation escravista, numa região rural, foi um
objetivo que passei a perseguir já há algum tempo. Espalhados pelo país,
outros pesquisadores, também estimulados pelos desdobramentos da
historiografia dedicada ao estudo da história de africanos e desdentes,
abraçaram empreitada semelhante na tentativa de ampliar o conhecimento a
respeito da história do cativeiro em suas várias formas de ocorrência no
Brasil
18
.
18
Muitos desses estudos, embora centrados na análise da criminalidade escrava, reforçam
as conclusões da história demográfica a respeito da relevância da existência de senhores
de pequenas posses de escravos ao longo do século XIX em diferentes localidades de Mato
Grosso, de São Paulo, do Paraná, da Bahia, do Espírito Santo e de Minas Gerais. Acredito
que o número de pesquisas regionalmente localizadas a respeito do tema seja maior,
contudo é possível destacar as obras: VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida
cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888. São Paulo: Marco Zero, 1993; SILVA,
César Múcio. Escravidão e violência em Botucatu 1850-1888. 1996. Dissertação (Mestrado
em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis;
SOUZA, Claudete de. Formas de ações e resistência dos escravos na região de Itu: século
XIX. 1998. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Estadual Paulista, Franca; PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face; a astúcia
escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos,
1999; SANTOS, Luciana de Lourdes dos. Crime e liberdade: o mundo que os escravos
viviam. 2000. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara, Universidade Estadual Paulista, Araraquara; GUIMARÃES, Elione Silva.
Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora, segunda metade do século XIX. 2001.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas a Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói; DANTAS, Mônica Duarte. Fronteiras movediças:
relações sociais na Bahia do século XIX (a comarca de Itapirucu e a formação do arraial de
Canudos). 2002. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo; REIS, Liana Maria. Por ser público e
notório: escravos urbanos e criminalidade na Capitania de Minas (1720-1800). 2002. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo; CARDOSO, Maria Tereza Pereira. Lei branca e justiça negra:
crimes de escravos na comarca do Rio das Mortes (Vilas Del- Rei, 1814-1852). 2002. Tese
Alguns estudiosos que lidam com os conceitos de crime e
criminalidade, sob o ponto de vista da análise historiográfica, advertem para
a necessidade de distingui-los: Crime é o fenômeno social em sua
singularidade, dotado não obstante, em alguns casos, de um potencial para
análise que possibilita múltiplas interpretações, enquanto, criminalidade é o
fenômeno social em sua dimensão mais ampla, que, a partir do
estabelecimento de regularidades e cortes, permite a compreensão de
padrões
19
.
Atento a estas distinções conceituais, passei a listar todos os autos-
crimes nos quais existia a categoria réu escravo, em todos os tipos de crime
contra todos os tipos de vítima, no período e lugar delimitados para a
pesquisa, pois assim seria possível verificar quais padrões existiam na
documentação selecionada, articulando-os com a interpretação de casos
específicos. Logo, o conjunto dos processos criminais estudados deveria
representar uma amostra da criminalidade escrava praticada no país, pelo
menos dos casos que chegaram até o presente por meio do registro policial
e judiciário preservado. Portanto, toda a questão era estabelecer uma
comparação entre regiões.
No entanto, o trabalho com os processos criminais — pertencentes ao
Cartório do 1º. Ofício Criminal de Franca lotados no Arquivo Histórico
Municipal “Capitão Hipólito Antonio Pinheiro” — que envolviam escravos
(Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas; PIRES, Maria de Fátima Novaes. O crime na cor. Escravos e forros
no alto do sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2003; CAMPOS,
Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: direito e escravidão no Espírito Santo, século
XIX. 2003. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; SOARES, Geraldo Antonio.
Cotidiano, sociabilidade e conflito em Vitória no final do século XIX. Dimensões – Revista
de História da UFES. Vitória: UFES, Centro de Ciências Humanas e Naturais, nº 16, 2004, p.
57-80; DE JESUS, Alysson Luiz Freitas. O sertão oitocentista: violência, escravidão e
liberdade no Norte de Minas Gerais (1830-1888). 2005. Dissertação (Mestrado em História) -
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte. Alguns trabalhos analisam escravos e livres criminosos unidos pelas
vicissitudes da pobreza, é o caso dos estudos: ZENHA, Celeste. As práticas da justiça no
cotidiano da pobreza: um estudo sobre o amor, o trabalho e a riqueza através dos
processos penais. 1984. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências
Humanas a Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói; SOTO, Maria Cristina
Martinez. Pobreza e conflito: Taubaté 1860-1935. São Paulo: Annablume, 2001 e
ROSEMBERG, André. Ordem e burla: processos sociais, escravidão e justiça, Santos,
década de 1880. São Paulo: Alameda, 2006.
19
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo 1880-1924. 2ª ed. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
indiciados como réus indicava-me que havia um problema no uso do termo
“criminalidade escrava” para toda aquela documentação. Chamavam a
minha atenção inicialmente o volume e a intensidade de relações,
aparentemente corriqueiras, entre cativos e livres (donos de lojas,
proprietários de gado, parceiros de jogo, lavadeiras de roupas, costureiras,
entre outros). Definitivamente estes escravos não viveram em uma
localidade urbana, onde as pesquisas demonstram que o cotidiano de
cativos e livres pobres era bem próximo dadas às peculiaridades do
trabalho escravo, principalmente, dos chamados “cativos ao ganho”
20
.
Apesar da existência de ruas nos arraiais e na principal vila da região de
Franca, pelo menos até a chegada da ferrovia e das plantações em maior
escala de café, nas últimas décadas do século XIX, mantinham-se, como em
tantas outras localidades do Brasil, os precários limites entre o incipiente
núcleo urbano, os subúrbios da vila e a área rural. O cotidiano era marcado
fundamentalmente pela vida no campo. A criação de gado, porcos e as
lavouras de alimentos eram as paisagens predominantes.
Concentrei a minha atenção nos crimes que envolviam os cativos e
seus senhores, pois poderiam partir dali algumas das respostas aos meus
questionamentos. Deparei-me com versões e mais versões jurídicas de
20
Percorrer as ruas vendendo alimentos, refrescos, ervas medicinais, ou mesmo prestando
serviços, com o fim de arrecadar uma quantia a ser entregue aos senhores em períodos
previamente acertados era, em geral, o trabalho dos cativos ao ganho, os quais, algumas vezes
nem mesmo residiam com seus proprietários. Os estudos que abordam a história da escravidão
brasileira dos meios urbanos já não são tão raros, dentre eles é possível citar: a respeito do Rio de
Janeiro: ALGRANTI, Leila Mezan. op. cit.; SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de
Janeiro do século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 8, nº 16, p. 107-142,
março/agosto 1988; HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência
numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997; KARASCH,
Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1805-1850). São Paulo: Companhia das Letras,
2000 e SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio
de janeiro (1808-1850). Campinas: Editora da UNICAMP; Centro de Pesquisa em História Social
da Cultura, 2001. Para Salvador, outro importante centro urbano de cativos no Brasil, Cf:
MATTOSO, Kátia de Queiroz. op. cit., sobretudo o item: As solidariedades encontradas: o
trabalho, pp-134-143; REIS, João José. op. cit (2003) e OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. O liberto:
o seu mundo e os outros. São Paulo: Corrupio, 1988. A cidade de São Paulo, principalmente, a
partir de meados do século XIX, apresenta-se como um centro urbano em desenvolvimento, no
qual livres, libertos e escravos disputavam espaços nas ruas e chafarizes, Cf: DIAS, Maria Odila
Leite da Silva. op. cit. (1984); WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. op. cit. e MACHADO, Maria
Helena P. T. “Sendo cativo nas ruas: a escravidão urbana na Cidade de São Paulo”. In: PORTA,
Paulo (org.). História da Cidade de São Paulo: a cidade no Império. v. 2. São Paulo: Paz e Terra,
2004, p. 57-97.
encarniçadas lutas travadas, principalmente, no momento em que o
proprietário, de posses modestas e quase sempre sem feitores, tentava
castigar sozinho o homem escravo que um dia fora o menino negro nascido
e criado na fazenda, filho dos escravos de nação que se mudaram com os
entrantes mineiros no movimento de povoação da região nordeste de São
Paulo, ou o escravo comprado ainda jovem de um vizinho por ocasião da
partilha de um inventário, que desde a infância mostrou ser altivo. Os
castigos infligidos aos cativos — denunciados à justiça, sobretudo, por
simpatizantes da abolição na localidade — eram terríveis, mas alguns
senhores morreram, ou quase, nas pontas das facas e sob as ferramentas
de trabalho de seus escravos. Nesses casos, a máxima entre os
proprietários locais era a mesma de outras regiões. Para não se perder um
dos únicos escravos da casa em idade produtiva, o senhor deveria vendê-lo
logo para outro lugar antes que um desafeto político, familiar ou mesmo um
vizinho descontente denunciasse o caso à polícia ou a promotoria pública e
o escravo fosse para a cadeia a espera do julgamento, ou pior, de lá para a
forca ou para as galés perpétuas. Contudo, não era tão fácil numa
comunidade onde todos se conheciam burlar a lei nem conter a língua ferina
do “sei por ouvir dizer”, manejada por mera curiosidade ou calculada
vindita. Estes crimes, homicídios e ferimentos graves, me auxiliaram muito
na interpretação da relação dos cativos com os seus proprietários, mediada
pela ação da justiça, na região. O cotidiano de senhores e escravos era
marcado pela tolerância de algumas práticas dos cativos (pequenas
desobediências quanto à forma de conduzir o trabalho, namoros não
autorizados e furtivas andanças pelos mais variados locais do município)
que com o tempo se alargavam até serem abruptamente interrompidas pelos
proprietários
21
.
No entanto, os crimes de sangue que opunham de um lado os
escravos e de outro a população livre desvinculada dos senhores
compunham a grande maioria dos casos e tudo indicava que a resposta
para minhas perguntas estava no estudo dos padrões do que poderia ser
21
Cf: Ferreira, Ricardo Alexandre. op. cit. Especialmente o “Capítulo 1 – Criminalidade e cotidiano
entre senhores e escravos” e o “Capítulo 2 – Senhores — autoridades — escravos”, p. 31-115.
chamado — por oposição à escrava — de criminalidade livre. A partir do
aprendizado resultante dessa trajetória, os 120 processos criminais que
envolviam escravos, analisados em pesquisa anterior, foram expandidos
para todos os 1160 relacionados no índice do Arquivo Histórico Municipal
de Franca para o período de 1830 a 1888. Após a leitura de todos os
documentos, excluí muitos que eram duplicatas de outros processos
(traslados), queixas seguidas da desistência formal do autor, autos de corpo
de delito sem prosseguimento, autuações de exames de mortes
consideradas naturais ou provenientes de suicídios (sem indiciamento de
réus por cumplicidade, ajuda ou incitação), outros ainda eram petições
avulsas, habeas-corpus soltos e autos de prisão em geral. Evidentemente,
toda a documentação lida foi considerada sob o ponto de vista qualitativo.
Para o estudo dos padrões da criminalidade foram selecionados os
processos que chegaram à fase da pronúncia, ou seja, todos aqueles
documentos que contavam pelo menos com a fase inicial de inquirição das
testemunhas. Assim, o montante considerado nas quantificações passou de
1160 para 779 documentos. Um corpus documental bastante extenso,
dotado de um conjunto de informações homogêneo. Obras produzidas por
contemporâneos do período estudado, códigos de leis, ofícios trocados
pelas autoridades locais com a presidência da província, bem como
relatórios emitidos pelos membros do executivo imperial complementaram o
conjunto de fontes consideradas na pesquisa.
Uma vez que é de natureza judiciária o principal corpus documental
analisado neste estudo, é importante pontuar, como pressuposto interpretativo,
que a justiça tinha — mesmo no período em apreço, fortemente marcado pela
presença de bacharéis em Direito, juízes e juristas em todos os poderes que
compunham o Estado — a necessidade em reafirmar-se constantemente diante
da sociedade como uma instância autônoma, um campo de constantes embates,
de maneira a tornar crível sua função de mediar conflitos, pois de outra maneira
ela não se sustentaria no intricado jogo de forças em que estava imersa e não
teria condições nem mesmo de favorecer, quando era o caso, este ou aquele
grupo
22
.
Apesar de, por um lado, ser este um pressuposto interpretativo corrente em
trabalhos historiográficos que se valem do estudo de documentos ou personagens
do judiciário no Brasil
23
, ele ainda gera alguns debates, levados adiante por
estudiosos que, baseados em referenciais teóricos distintos, optam por denunciar
uma vinculação necessária e explícita do judiciário com os grupos dominantes da
sociedade
24
. Contudo, reafirmo minha opção interpretativa no tocante à justiça, na
medida em que estudos que analisaram diferentes períodos e regiões do Brasil,
com distintos instrumentais teórico-metodológicos, têm demonstrado, para o
período imperial brasileiro, a procura empreendida por pessoas de diferentes
setores sociais, inclusive os mais pobres, pela polícia e pelo judiciário em busca
da mediação e solução de seus conflitos
25
.
Assim, norteado por tais questões e pressupostos, o primeiro capítulo
deste estudo tem como objetivo abordar o problema da criminalidade em
22
O estudo de referência para esta afirmação é: THOMPSON, E. P. op. cit, especialmente o
Capítulo 10 – item 4 – O Domínio da Lei.
23
A presença das reflexões de E. P. Thompson a respeito da justiça pode ser destacada,
entre outros aqui já citados, nas obras: GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: as
ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1994; Idem. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil
no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002;
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os
caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Centro de Pesquisa em
História Social da Cultura, 1999. PENA, Eduardo Spiller. Pajens da Casa Imperial:
jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas: Editora da UNICAMP; Centro de
Pesquisa em História Social da Cultura, 2001 e AZEVEDO, Elciene. (2003). op. cit.
24
Nesta tendência interpretativa podem ser situadas as obras: MALERBA, Jurandir. Os
brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil.
Maringá: EDUEM, 1994 e NEDER, Gislene. Iluminismo jurídico-penal luso brasileiro:
obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. (Pensamento criminlógico 4).
25
De acordo com Ivan de Andrade Vellasco: “Aos homens pobres livres, escravos e forros
não passou despercebida a utilidade do poder judiciário e seus usos como espaço de
negociação da ordem e de afirmação de suas visões de justiça e liberdade; não viveram ao
largo de um mundo institucional supostamente projetado e funcional apenas para os
membros da elite. É certo que lhes foi necessário vencer os óbices de toda natureza que
certamente lhes surgiam no caminho quando buscavam utilizar a justiça; é certo que sua
participação no mundo da ordem foi uma experiência e um aprendizado das diversas faces
desse universo, no qual foram também atores, ainda que como neófitos numa organização
que, em muitos aspectos, lhes era secreta pela impenetrabilidade de suas regras e
linguagens; mas, como tal, demonstraram estar atentos a certos aspectos e ações do
poder, e interpretaram, à sua maneira, o que era a justiça e qual o papel do seus
funcionários. VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade
e administração da justiça: Minas Gerais - século 19. São Paulo: ANPOCS e Bauru: EDUSC,
2004, p. 163-164. Pioneira neste debate foi a obra: ZENHA, Celeste. op. cit. Na mesma
direção de afirmações, ver também: ROSEMBERG, André. op. cit.
sua dimensão mais ampla, tal como era concebido pelas autoridades do
Executivo Imperial. Interessa saber como os crimes cometidos por livres e
escravos eram integrados ao problema geral da segurança pública e
individual nos discursos proferidos pelos ministros da justiça e presidentes
de São Paulo, nas respectivas casas legislativas, na Corte e na sede da
província paulista.
Composto um quadro geral do problema da criminalidade no Império
e nele compreendido qual era o lugar conferido aos diferentes tipos de
delitos praticados por livres e escravos, é possível concentrar a análise em
uma região rural específica do país, onde o contato dos cativos com a
população livre em geral era bastante amplo — o Termo e depois Comarca
de Franca. Desta maneira, no capítulo 2 procuro compreender qual a gênese
da má fama criminosa desta localidade no século XIX. Quais as principais
atividades nela desenvolvidas? Em que se ocupavam os trabalhadores
livres e escravos? Quais eram as similitudes e diferenças das
circunstâncias de ocorrência dos crimes por eles cometidos?
Praticada a ação, qualificada como transgressão à lei penal vigente
dava-se início ao inquérito que, declarado procedente, poderia tornar-se um
julgamento. O próximo passo do trabalho é abordar, nesse ambiente, o
mundo da legislação e da prática jurídica nos tribunais. No capítulo 3 busco
compreender a situação de livres e escravos na esfera do judiciário criminal.
Como ambos eram entendidos pelo Direito Penal no Brasil dos períodos
colonial e imperial? Quais as implicações de se ter ou não um senhor na
hora de responder judicialmente por um crime num tribunal do interior do
país? Quais réus eram mais constantemente punidos pela lei — livres ou
escravos?
Encerra o estudo a análise de uma das faces dos crimes cometidos
por livres e escravos que, muitas vezes, é deixada de lado, ou apenas
rapidamente mencionada, pela historiografia. No capítulo 4 são analisados
os crimes cometidos por mando e associações entre livres e cativos. O
envio de escravos para o cumprimento de mortes e surras era uma
especificidade regional ou um aspecto integrante do cativeiro no país?
Havia pessoas especificamente designadas para o cumprimento destas
missões ou o lavrador de hoje podia tornar-se o capanga de amanhã? Em
que circunstâncias livres e escravos se juntavam para a execução de
práticas tidas como delituosas?
CAPÍTULO 1
UM ESTADO POUCO LISONJEIRO:
CRIMINOSOS LIVRES, ESCRAVOS E A SEGURANÇA
INDIVIDUAL SOB O OLHAR DO EXECUTIVO
A violação da segurança individual repercute
necessariamente na segurança pública, e produz se não
verdadeiras alterações, ao menos abalos que amiudados
podem promover graves perturbações. Por este lado não é de
certo lisonjeira a condição do país. Embora agravado pela
guerra [contra o Paraguai] e suas conseqüências, o estado
precário da segurança individual tem sua origem na falta de
instrução das classes menos favorecidas, e sobretudo na
impunidade. (José de Alencar, Relatório do Ministério da
Justiça do ano de 1868.)
Insurreições, sedições e rebeliões foram, durante algum tempo, as formas
de transgressão mais freqüentemente abordadas pela historiografia. Em geral,
dotadas de grande repercussão, essas ações coletivas conceituadas como crimes
em códigos de leis figuraram como circunstâncias privilegiadas para o estudo de
lutas travadas em nome da transformação das sociedades em que ocorreram
26
.
Nas últimas décadas, contudo, pesquisadores de diferentes áreas das
humanidades também têm se interessado pela interpretação de outros registros
de criminalidade produzidos para a apuração de eventos tidos como delituosos
cuja repercussão muitas vezes circunscreveu-se à região onde foram praticados.
Homicídios, ferimentos, roubos e furtos têm sido estudados na perspectiva de uma
história do cotidiano que muito contribuiu para a interpretação de “práticas,
costumes e estratégias de sobrevivência”
27
protagonizadas por homens e
mulheres que viveram em diferentes épocas e lugares.
26
Inúmeros estudos poderiam ser aqui citados, destaco dois por terem abordado delitos
conceituados respectivamente como rebelião e insurreição, os quais compõem a parte II do Código
Criminal de 1830, intitulada “Dos crimes públicos”. São eles: MARSON, Izabel Andrade. O Império
do progresso: a revolução praieira em Pernambuco. São Paulo: Brasiliense, 1986 e REIS, João
José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Edição revista e
ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
27
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do quotidiano na historiografia contemporânea.
Projeto História. São Paulo, (17), nov. 1998.
Entretanto, acompanhando um movimento mais amplo de transformações
da justiça criminal em países europeus, já no Brasil do século XIX essa
criminalidade miúda passou a interessar cada vez mais às autoridades
administrativas estatais. Relatórios periodicamente emitidos por altos funcionários
de Estado eram dotados de um tópico obrigatório a respeito do estado da
“segurança individual e da propriedade” no Império. Compor o cenário desses
debates administrativos, ocorridos sob a vigência do Código Criminal de 1830, é o
objetivo central deste capítulo.
Parte-se aqui do pressuposto de que na esfera da segurança
individual ou mesmo no plano mais amplo “dos crimes particulares”, como
eram conceituados os delitos compreendidos na terceira parte do Código
Criminal do Império, não havia, de modo geral, entre as autoridades
administrativas, o interesse em diferenciar crimes cometidos por livres,
libertos ou escravos. Tal hipótese se apóia em duas ordens de questões que
perpassaram, em maior ou menor medida, tanto ministérios da justiça
imperiais norteados por tendências políticas mais liberais, quanto por
convicções mais conservadoras. De um lado, a preocupação de ministros da
justiça e presidentes das províncias com a frágil estabilidade interna do
Império implicava em cautela no tratamento de notícias que conjugavam os
assuntos “crime” e “escravidão”. O tema já causava grandes transtornos à
administração quando figurava em papéis oficiais de governo na forma de
tentativas de insurreições e assassinatos de senhores e feitores
28
. De outro
lado, havia a prática enraizada entre as mesmas autoridades em reunir, em
seus relatórios, escravos, libertos e livres criminosos sob expressões
genéricas, tais como: “classes menos favorecidas”, “classes inferiores” ou
“classes ínfimas da sociedade”. Neste caso, além da sistemática reiteração
do estereótipo da vadiagem
29
, é preciso considerar a incapacidade
demonstrada pelo Estado, mesmo após as reformas centralizadoras da
28
A respeito do tema, Cf: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o
negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 e MACHADO,
Maria Helena Pereira Toledo. O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da
abolição. Rio de Janeiro: UFRJ, EDUSP, 1994.
29
Para uma visão geral da história do processo de desclassificação social no ocidente, bem
como da construção da categoria social do vadio no Brasil colonial, Cf: SOUZA, Laura de
Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 4ª ed.rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2004, especialmente “II – Da utilidade dos vadios”.
década de quarenta do século XIX, para a coleta, organização e análise dos
registros de criminalidade produzidos em todo o país
30
.
Desde o início do período imperial coube ao ministro da justiça elaborar um
detalhado relatório a respeito de suas atividades que incluía uma apreciação
sobre o problema da criminalidade no país. Anos mais tarde, tarefa semelhante,
porém restrita à sua circunscrição administrativa, também foi atribuída aos
presidentes das províncias. Conforme as prescrições legais, ministros e
presidentes se dirigiam às sessões de abertura das respectivas casas legislativas,
na Corte e nas sedes das províncias, e apresentavam suas narrativas. Estes
relatórios eram compostos a partir de uma rede de informações que abrangia
desde a mais longínqua freguesia rural até a sede do Império, constituindo-se,
portanto em fontes adequadas para o estudo da criminalidade numa perspectiva
governamental
31
.
Na primeira parte deste capítulo são abordadas as questões mais gerais
relativas às alterações sofridas pelo aparato jurídico-administrativo do Império,
com especial atenção às atividades da Secretaria de Estado de Negócios da
Justiça, a qual, só mais tarde (1891) passaria a ser denominada oficialmente
Ministério da Justiça e Negócios Interiores e finalmente, em 1967, apenas
30
Um estudo que aborda os projetos de elaboração de estatísticas criminais no Brasil Imperial em
comparação com suas congêneres francesas é: PIMENTEL FILHO, José Ernesto. A produção do
crime: violência, distinção social e economia na formação da província cearense. 2002. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
31
Não há aqui, do ponto de vista interpretativo, uma aceitação tácita do quadro da
criminalidade composto pelos membros do executivo imperial, mas sim a oportunidade de
compreender as transformações do cenário da segurança individual no Brasil oitocentista
apresentado como crível aos legisladores, o qual por sua vez, acabava por integrar os
principais debates nas casas de leis do Império. Durante algum tempo, a historiografia
brasileira manifestou certo receio em lançar mão de documentos produzidos por
instituições oficiais que compunham o aparato burocrático do Estado em estudos que se
interessavam pela interpretação das ações de grupos tidos como marginais nas épocas em
que viveram. Uma primeira transformação sofrida por essa cautela, de caráter teórico-
metodológico, ocorreu no início dos anos 80 do século XX com o uso massivo e
generalizado pelos historiadores de processos-crime como fontes, principalmente os
produzidos no século XIX. No entanto, nos últimos anos, alguns estudos têm encontrado
em outros conjuntos documentais provenientes do Poder Executivo um valioso contraponto
para as interpretações que partem de recortes espacialmente localizados na tentativa de
compreender, por um lado, os mecanismos de repressão e controle, e, por outro lado, as
práticas e estratégias de alguns grupos sociais no cotidiano. Nessa linha de abordagem,
que valoriza o estudo conjunto de processos criminais e relatórios oficiais, destacam-se:
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. op. cit. (1994); PIMENTEL FILHO, José Ernesto. op.
cit., e VELLASCO, Ivan de Andrade. As seduções da ordem: violência, criminalidade e
administração da justiça: Minas Gerais - século 19. São Paulo: ANPOCS e Bauru: EDUSC,
2004.
Ministério da Justiça. Dentre as províncias que compreendiam o Império do Brasil
foi escolhida a de São Paulo por sua posição de destaque no Centro-Sul do país,
principalmente em decorrência dos problemas com a necessidade de substituição
da mão-de-obra escrava no contexto da expansão das plantações cafeeiras na
segunda metade dos oitocentos.
Algumas questões nortearam o desenvolvimento do capítulo: Como
as autoridades administrativas imperiais concebiam o tema da
criminalidade? Como operavam os diversos interesses? O que se entendia
por “criminalidade escrava” no âmbito administrativo? Constituiu-se,
durante o período escravista, entre as autoridades de governo imperiais a
noção de uma “criminalidade livre”? Qual a freqüência do registro de
homicídios e ferimentos graves praticados por escravos contra os senhores
e seus prepostos, e dos escravos contra a população livre desvinculada do
poder senhorial? Como ministros e presidentes concebiam a segurança
individual sob o aspecto regional? Na opinião destes agentes do Estado,
havia diferenças entre as características dos crimes praticados nas
principais cidades e nos distantes sertões do Império?
1.1 – A criminalidade vista da Corte
1.1.1 – O que compete ao ministro?
À compreensão das transformações da concepção do problema da
segurança individual pelos ministros da justiça é relevante considerar
alguns elementos que delineavam a função no cenário institucional do
Império. Quem eram os ministros? Quais as suas atribuições? Como o cargo
era institucionalmente concebido e delimitado pela Constituição do Império?
A incursão pelos caminhos do aparato burocrático da época na busca por
algumas respostas para as questões formuladas conduz inicialmente à
interpretação do texto constitucional de 1824, elaborada por um dos
conhecidos juristas do Império.
Os ministros são não só os primeiros agentes do monarca no
exercício do Poder Executivo, mas também partes
integrantes ou complementares deste poder; sem que eles
referendem ou assinem os atos, não há atos do poder
Executivo, não tem força obrigatória. Antes disso são
projetos de atos ou atos incompletos, e cujo cumprimento
imporia aos executores inteira responsabilidade, pois que
procederiam sem ordem ou autorização legítima. São agentes
importantíssimos da Coroa, são seus conselheiros
administradores, juízes administrativos, tutores dos
estabelecimentos pios e de proteção, executores das leis do
interesse coletivo ou social encarregados de dirigir e
inspecionar os agentes da administração; enfim, são as
forças vivas do chefe do Estado para o andamento e bem-
estar deste
32
.
O Direito Público brasileiro e análise da Constituição do Império, de
1857, obra da qual este excerto é parte, era um dos livros de cabeceira do
Imperador Pedro II, conta-se mesmo que o monarca o tinha todo na
memória
33
. Ao mesmo tempo, e não por acaso, o estudo de autoria do jurista
José Antônio Pimenta Bueno (1803-1878) constituiu-se na interpretação dos
fundamentos jurídicos do Brasil Imperial mais convergente com a leitura
legal do Estado elaborada pelo próprio Trono
34
. Ao expor sua interpretação
da Constituição de 1824, bem como das modificações por ela sofrida, o
autor explica e sugere alterações ao quadro institucional que compunha o
Estado no Império do Brasil de meados dos oitocentos. Sua explanação a
respeito da relevância e das atribuições dos ministros de Estado indica
alguns dos fundamentos jurídicos que norteavam a função. Entretanto, no
decorrer das diferentes fases políticas da história imperial os
comprometimentos — algumas vezes alternados durante os anos — com
diferentes correntes partidárias
35
, com divergentes concepções e propostas
de condução do Estado
36
, integravam fundamentalmente as opiniões dos
32
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de / organização e introdução de
Eduardo Kugelmas. José Antônio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente. São Paulo: Ed. 34,
2002, p. 340.
33
DUTRA, Pedro. Literatura jurídica no Império. 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Padma,
2004.
34
KUGELMANS, Eduardo. In. SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de. op.
cit.
35
Embora já próximo do período de Conciliação (1853-1862) entre os partidos políticos imperiais, o
próprio Pimenta Bueno deixou os liberais para, paulatinamente, juntar-se aos conservadores. Essa
mudança, ocorrida entre os últimos anos da primeira e os primeiros da segunda metade dos
oitocentos, precedeu sua nomeação para o cargo de Presidente da Província do Rio Grande do
Sul (1850) e, posteriormente a eleição para ao cargo vitalício de Senador (1852). Ibidem.
36
Entre as polêmicas jurídicas e políticas que envolveram a obra de Pimenta Bueno,
destaca-se a da responsabilidade, ou não, dos Ministros de Estado pelos atos do Poder
Moderador. Para Bueno as decisões do Poder Moderador eram privativas do Imperador.
Porém, para outro estadista/jurista, Zacarias de Góis e Vasconcelos, os ministros também
eram responsáveis pelos atos de tal poder, argumento defendido no seu Da Natureza e
limites do Poder Moderador, cuja primeira edição data de 1860 e a segunda de 1862. No
ministros a respeito do “estado da segurança individual” e de outros
inúmeros temas tratados nos relatórios oficiais por eles emitidos.
De maneira semelhante ao que ocorreu com outros ministros da
época, Pimenta Bueno ocupou os mais variados cargos ligados aos
diferentes poderes que compunham o Estado Imperial. Uma rápida
apreciação sobre sua trajetória auxilia na compreensão do caminho que
muitas vezes era trilhado até o ministério. O futuro Visconde (1867) e depois
(1873) Marquês de São Vicente, cuja origem modesta, os apadrinhamentos e
a estreiteza de relações com o Imperador Pedro II são sempre lembrados
pelos estudiosos, bacharelou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, foi
presidente das Províncias do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul e atuou
como representante diplomático, na condição de Plenipotenciário do Brasil
no Paraguai. Na carreira jurídica foi magistrado e ascendeu ao cargo de
Desembargador. Em sua longa e típica trajetória
37
no cenário institucional
do Império, Pimenta Bueno também desempenhou as funções de Deputado
Provincial, Senador, Ministro e membro do Conselho de Estado.
No final dos anos cinqüenta dos oitocentos, quando publicou O
Direito Público brasileiro (...), Pimenta Bueno dava conta da existência de
seis secretarias de governo ou ministérios, número que ele aconselhava ser
elevado a pelo menos oito, dado a grande quantidade de atribuições de cada
ministro. O autor dizia que a Secretaria do Império, por exemplo, estava
excessivamente sobrecarregada “não só por grande peso de trabalho, mas
debate também se envolveu Paulino José Soares de Souza, o visconde do Uruguai, que
combateu os argumentos de Zacarias na obra Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862).
Recorrentemente tomadas pela historiografia como um embate entre a leitura conservadora
(Bueno e Uruguai) e a leitura liberal (Zacarias) da Constituição do Império, as obras
referidas continuam despertando o interesse dos pesquisadores para o aprofundamento da
compreensão dos matizes e nuanças envolvidos na composição do Estado Imperial
brasileiro. Cf: OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. “Da natureza do Poder Moderador e a
memória do Conselheiro Zacarias de Góis e Vasconcelos”. In: VASCONCELOS, Zacarias de
Góis e / organização e introdução de Cecília Helena de Salles Oliveira. Zacarias de Góis e
Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34, 2002; Idem, O Poder Moderador no segundo reinado –
mediações entre fontes e historiografia. Justiça e História. Porto Alegre. Vol.3, nº 5, p.141-
160, 2003.
37
De acordo com José Murilo de Carvalho: No Império do Brasil, “embora houvesse distinção
formal e institucional entre as tarefas judiciárias, executivas e legislativas, elas muitas vezes se
confundiam na pessoa dos executantes, e a carreira judiciária se tornava parte integrante do
itinerário que levava ao Congresso e aos conselhos de governo. CARVALHO, José Murilo de.
Construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. 2.ed. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996, p. 129.
pela concentração nela de serviços inteiramente heterogêneos entre si”
38
.
Quase uma década antes, em 1848, o próprio Bueno ocupou a pasta da
justiça. Além dele, se sucederam na chefia da Secretaria de Estado dos
Negócios da Justiça personagens centrais do cenário político de fases
decisivas da história imperial. Dentre os mais de quarenta nomes que
ocuparam o ministério até a abolição do cativeiro é possível destacar: Diogo
Antonio Feijó (1784-1843) que foi responsável pelo relatório de 1831,
Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850) que apresentou à Assembléia
Geral o relatório de 1837, Paulino José Soares de Souza (1807-1866)
responsável pelos relatórios de 1840 e pelo primeiro do ano de 1842,
Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Camara que apresentou os relatórios
relativos aos anos 1849 e 1851, José Thomaz Nabuco de Araújo (1813-1878),
um dos ministros que por mais tempo ocupou o cargo, figura como autor
dos relatórios de 1853 a 1856 e também de 1865, Zacarias de Góis e
Vasconcellos (1815-1877) que apresentou o segundo relatório relativo ano
de 1863. Na lista de nomes que chefiaram a pasta da justiça figura também o
do autor do romance O Guarani (1857), José Martiniano de Alencar (1829-
1877), que apresentou à Assembléia Geral Legislativa o relatório relativo ao
ano de 1868, ao qual pertence o excerto que inicia este capítulo.
Apesar das mudanças ocorridas no decorrer dos anos, as atribuições
e competências dos ministros da justiça permaneceram bastante amplas,
como alegou Bueno. Em meados dos oitocentos, cabia à secretaria a
suspensão das garantias constitucionais nos casos previstos em lei.
Estavam também a cargo do ministro a organização e divisão das
administrações da justiça civil, comercial e criminal, bem como todo o
movimento da magistratura, que envolvia atividades como nomeações,
suspensões, promoções e remoções
39
. Quando a Graça Imperial era
solicitada pelos condenados, na forma de pedidos de anistia, perdão ou
comutações de penas, competia ao ministro da justiça intermediar as
relações entre o Poder Judiciário e o Poder Moderador
40
. Em caráter
38
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit., p. 339.
39
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit.
40
O Poder Moderador foi definido pela Constituição de 1824. “Perdoar ou moderar as penas
impostas a réus condenados por sentença (o direito de graça)” era apenas uma das várias
especial, a secretaria da justiça acumulava ainda a função de Ministério do
Culto, organizando as divisões eclesiásticas, provimentos de bispados e
todos os assuntos que representassem a necessidade de relação das
ordens e instituições religiosas com o Estado
41
.
Na apresentação de seus relatórios à Assembléia Geral os ministros
da justiça separavam os assuntos por temas, expunham o estado (a
situação) de cada item, explanavam suas ações, propunham projetos e
alterações legais. Entre os assuntos tratados estavam os contingentes de
Soldados Permanentes e Guardas Nacionais, os problemas relacionados à
polícia em suas atribuições administrativas e judiciárias
42
e, correlatas a
estas, a situação da iluminação pública, das estradas, dos correios, dos
telégrafos, além de diversos temas relativos aos desdobramentos do
problema da escravidão de africanos e descendentes no país, e ainda, dos
vadios, dos mendigos, das sociedades secretas, entre outros. Os ministros
também prestavam contas a respeito das instituições carcerárias,
educacionais, bem como das constantes tentativas de levar a termo as
estatísticas, populacional, policial e judiciária do Império.
No período compreendido entre a promulgação do Código Criminal do
Império, em dezembro de 1830, todo o período regencial (1831-1840), e a
primeira década do segundo reinado, o mundo da segurança individual, ou
seja, das vinditas, das disputas por divisas que acabavam em tiros e
atribuições concedidas ao seu detentor – o Monarca. A existência e as atribuições desse Quarto
Poder foram motivos de constantes controvérsias e embates políticos nas diferentes fases do
Império, mas o Poder Moderador não deixou de existir nem mesmo durante as regências. “Como,
de acordo com a Constituição, o Poder Moderador era ‘privativamente delegado’ ao monarca, a
abdicação de Pedro I levantou dúvidas sobre a legalidade ou não de os Regentes exercerem este
Poder. Ficou estabelecido [pela lei de 14 de junho de 1831 que definiu o modo da Regência
governar] que os regentes poderiam desempenhar todas as prerrogativas do Poder Executivo e
todas as funções do Poder Moderador, ‘com o referendo do ministro competente’, excetuando-se
apenas uma: a de dissolver a câmara dos deputados”. Durante os debates em torno do Ato
Adicional de 1834 os Liberais não conseguiram extinguir o Quarto poder, apenas o Conselho de
Estado, o qual, por sua vez foi recriado pela lei de interpretação do Ato Adicional em 1841.
OLIVERIA, Cecília Helena de Salles, op. cit. (2003) p. 147 e 148.
41
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit.
42
“A polícia em geral é a constante vigilância exercida pela autoridade para manter a boa
ordem, o bem-ser público nos diferentes ramos do serviço social; é ela quem deve segurar
os direitos e gozos individuais e evitar os perigos e os crimes. Chama-se administrativa ou
preventiva na parte em que se destina ou dirige a manter tais gozos e prevenir os delitos, e
então entra na competência do poder administrativo; chama-se judiciária quando tem por
encargo rastrear e descobrir os crimes que não puderam ser prevenidos, capturar seus
autores, coligir os indícios e provas, e entregar tudo aos tribunais”. SÃO VICENTE, José
Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit., p. 240. Grifos nossos.
pancadas, dos conflitos matrimoniais e das brigas em ruas, tabernas e
festas, ocupava um espaço pequeno nos relatórios emitidos pelos ministros
da justiça. Nesta época, a atenção dos membros do Executivo voltou-se
principalmente para a segurança pública, mais especificamente para as
notícias a respeito da origem e desdobramentos das revoltas civis e
militares, das sedições, rebeliões e insurreições que irromperam nas
diversas províncias do país.
Entre os anos de 1824 e 1848 explodiram no Império do Brasil:
[...] levantes liberais de diferentes configurações políticas,
organização e composição social: a Confederação do
Equador, a Farroupilha, a Sabinada, a Revolução de 1842 em
São Paulo e Minas e a Praieira. Por sua vez, os homens livres
pobres e escravos aquilombados marcaram sua presença em
insurreições como as Cabanadas do Pará e de Alagoas, a
Balaiada, o Ronco da Abelha e o Quebra Quilos. E
acompanhando esses episódios
de maior projeção, é importante lembrar a atuação escrava,
tanto nos enfrentamentos cotidianos e nas pequenas
rebeliões quanto na revolta dos Malês na Bahia, em 1835
43
.
Ademais, os ministros alegavam um outro problema que impunha a
realização de menções rápidas e gerais, a respeito de homicídios e
ferimentos nas províncias — a deficiência das comunicações entre as vilas e
a capital do Império que impedia o estudo dos padrões da criminalidade
individual. A recorrente queixa a respeito da ineficiente integração das
autoridades da Corte com as das diferentes províncias figurou na base dos
principais argumentos que conduziram às reformas sofridas pela justiça
criminal do Império, principalmente a ocorrida no início da década de
quarenta.
1.1.2 – É preciso reformar
No relatório do ano de 1837, o então ministro da justiça, Bernardo
Pereira de Vasconcelos argumentou que a recorrente reclamação contra a
impunidade que se espalhava por todo o território do Império só poderia ser
adequadamente avaliada quando os mapas com os perfis de crimes e
criminosos fossem produzidos a partir das informações enviadas pelas
províncias. Ainda assim, Vasconcelos divulgou números parciais remetidos
pelas províncias do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Piauí,
Maranhão, Minas Gerais, Santa Catarina e Goiás. Foi apresentada ao
parlamento uma lista simples, sem especificação da participação de cada
localidade, na qual os crimes classificados como “contra a segurança da
pessoa e vida”, ou os chamados crimes de sangue, compunham a metade
dentre todas as tipificações
44
. Mesmo sem apresentar elementos mais
43
MARSON, Izabel Andrade. “O Império da revolução: matrizes interpretativas dos conflitos da
sociedade monárquica”. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia brasileira em
perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 73-10, p. 73. Para um panorama geral do período, ver
também: CARVALHO, José Murilo de. op. cit., especialmente Teatro de sombras: a política
imperial.
44
“Ataques contra a segurança da pessoa e vida 537 [50,1%]. Contra a propriedade 271 [25,3%].
De natureza mista 59 [5,5%]. Fuga de presos, resistência e injúrias 130 [12,1%]. Diversos
outros crimes 75 [7,0%]. Total 1072 [100 %]”. Relatório do Ministério da Justiça
(Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos) do ano de 1837, disponível na Internet na página
eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research
Libraries e Latin American Microform Project”, em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1828/000008.html
e http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1828/000009.html.
detalhados a respeito dos crimes e dos criminosos, esse primeiro esforço de
produção de um perfil dos delitos praticados era composto por duas
características que se perpetuaram nos debates a respeito da criminalidade
individual durante todo o período imperial: 1) O maior número de crimes
contra a pessoa sobre os que eram cometidos contra a propriedade; 2) A
impunidade.
Bernardo Pereira de Vasconcelos foi uma das personagens
emblemáticas no processo de construção do Estado brasileiro, com especial
destaque na organização da justiça criminal. Seu nome figurou tanto entre
os principais reformadores liberais do período regencial, quanto na
construção do chamado “regresso conservador”, que conferiu algumas das
feições definitivas à conceituação, apuração e julgamento dos crimes no
Império do Brasil. Desde O Estadista do Império de Joaquim Nabuco, os
estudiosos da história política do Brasil imperial atribuem a Vasconcelos,
ainda que com alguma incerteza quanto à autoria, esta auto-descrição:
Fui liberal, então a liberdade era nova no país, estava nas
aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias
práticas; o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso
o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo
ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então
corria risco pelo poder, corre agora risco pela
desorganização e pela anarquia. Como então quis, quero hoje
servi-la, quero salvá-la, e por isso sou regressista. Não sou
trânsfuga, não abandono a causa que defendo, no dia de
seus perigos, da sua fraqueza; deixo-a no dia em que tão
seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete
45
.
Uma década antes de redigir o relatório ministerial acima mencionado,
em 1827, Bernardo Pereira de Vasconcelos apresentou à Câmara dos
Deputados, então na segunda legislatura após a dissolução da Assembléia
Constituinte em 1823, um projeto para a criação de um novo código penal
destinado a substituir o Livro V das Ordenações Filipinas. Dias depois, outro
deputado, José Clemente Pereira (1787-1854), apresentou uma proposta
parcial para o mesmo fim. Os dois textos foram submetidos à apreciação de
45
Excerto atribuído ao então (1837) Ministro da Justiça Bernardo Pereira de Vasconcelos, citado
em: NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império. São Paulo: IPÊ - Instituto Progresso Editorial
S.A., 1949, volume I, p. 43. Para um estudo mais amplo da trajetória de Bernardo Pereira de
Vasconcelos Cf: CARVALHO, José Murilo de. “Introdução” In: VASCONCELOS, Bernardo
Pereira. Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34, 1999.
uma comissão que decidiu não escolher entre eles um vencedor. A
comissão, após apontar aspectos mais ou menos favoráveis a cada uma das
propostas, optou por combiná-las em um terceiro texto a ser exposto ao
debate parlamentar. Diante das negativas dos legisladores, a idéia seguinte
foi a de imprimir os dois textos e distribuí-los aos parlamentares para que se
procedesse ao debate. Venceu, por fim, a opinião que resolvia o impasse
com a criação de uma comissão composta por deputados e senadores. Essa
nova comissão tomou o projeto mais completo por base sem, contudo,
abandonar o texto de Clemente Pereira. Dos debates que se seguiram, a
tentativa de abolição da pena de morte foi a mais polêmica, mas apenas
resultou na extinção da pena última nos casos dos crimes entendidos como
de origem política, ficando previsto com base na Constituição de 1824 o
recurso do pedido de Graça ao Poder Moderador como última chance aos
réus condenados no grau máximo como “homicidas” ou “cabeças de
insurreições”
46
. Foi promulgado o Código Criminal do Império no último mês
do ano de 1830, imortalizado, a partir de então, como o código de Bernardo
Pereira de Vasconcelos
47
.
Dois anos antes de Vasconcelos assumir o Ministério da Justiça sua
obra mais conhecida figurava como um dos mais recorrentes alvos de
críticas nas discussões a respeito do tema da criminalidade. Gustavo Adolfo
D’Aguilar Pantoja (1798-1867), seu antecessor na pasta da justiça, teceu
comentários desabonadores ao, então, novo Código Penal e a seu
complemento o Código do Processo Criminal
48
. Os argumentos expostos
por Pantoja apoiavam-se na idéia de que a maior causa da impunidade
46
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Anotações teóricas e práticas ao Código Criminal. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & C. editores, 1864. 4 tomos.
47
Os fundamentos jurídicos imbricados na criação do Código de 1830 serão abordados no
capítulo 3 do presente estudo.
48
Enquanto ao Código Criminal competia a conceituação dos crimes, criminosos e suas penas,
cabia a outro código, o do Processo Penal de Primeira Instância promulgado em 1832, elaborado a
partir de um projeto apresentado à Câmara dos Deputados por Manuel Alves Branco, a definição
de todo o rito que validava a composição das peças que compunham o processo criminal, da
formação da culpa até a realização dos julgamentos pelo Tribunal do Júri. Era o Código do
Processo que definia as autoridades policiais, judiciárias sua hierarquia e competências, portanto
ao longo do século ele recebeu duas reformas, a primeira em 1841 e a segunda em 1871, as quais
serão tratadas a seguir neste capítulo. Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do
Império do Brasil com a Lei de 3 de dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–
Editor, 1899.
estava entranhada nas deficiências dos próprios códigos criados para
apuração dos crimes, julgamento e punição dos criminosos. Sua crítica era
ampla, mas atacava fundamentalmente a noção de que o Código Criminal do
Império era um avanço em relação às antigas leis portuguesas. Na opinião
do ministro, ambas as legislações se colocavam em extremos indesejáveis.
Se o Livro V das Ordenações dos Filipes pecava por
nimiamente severo, os princípios do Código do Processo e
do Código Criminal pecam por nimiamente indulgentes, e
ainda assim não seria tanto o mal, se todas as Leis fossem,
como deviam ser, executadas, e se a organização do Código
do Processo não desse lugar a tantas impunidades. Todas as
Leis derivam, mais ou menos, das máximas e princípios do
tempo. Antigamente quase todos os crimes tinham pena
capital, ou de cortamento de alguma parte do corpo, pena
bárbara e horrível, hoje quase todos os crimes têm penas
muito leves, quase todos são afiançáveis, certos mesmo não
têm pena alguma
49
.
No relatório ministerial de 1837 Vasconcelos assumiu a existência de
problemas pontuais no código elaborado a partir de seu projeto, embora não
tenha deixado de mencionar as traduções realizadas e o interesse de juristas
europeus pelo texto. Contudo, afirmou que tais problemas eram próprios do
desafio envolvido na elaboração de um código que carregava consigo a
missão de produzir a “transição rápida de uma Legislação feita em diversas
circunstâncias, e tempos, fundada em costumes peculiares, em
preconceitos de remotos séculos, para outra acomodada à organização das
sociedades modernas”
50
que, ao nascer, se colocava em desarmonia com
muitos interesses, hábitos e costumes do país. Às pequenas reformas
sugeridas ao Código Criminal, entre as quais a revisão do artigo que tratava
do crime de rebelião, Vasconcelos opôs a necessidade de mudanças
profundas na organização da justiça nas comarcas, estabelecida no Código
do Processo Criminal de 1832. Suas críticas recaíam, principalmente, sobre
49
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Gustavo Adolfo D’Aguilar Pantoja) do ano de 1836,
disponível na Internet, na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1827/000034.html.
50
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos) do ano de 1837,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1828/000012.html.
a figura do juiz de paz
51
eleito nas freguesias com competências cíveis,
criminais e, em não poucos casos, leigo em assuntos jurídicos. Ainda em
seu relatório de 1837, assevera o ministro Vasconcelos:
Muitas vezes, e a experiência o mostra, os Processos
organizados pelos Juízes de Paz abundam em nulidades,
para cujo suprimento não subministra o Código [do Processo
Criminal] meios convenientes. Sendo apresentados ao Juiz
de Direito para os sujeitar ao conhecimento do Júri na
ocasião da sua reunião, não tem ele o necessário tempo para
os rever e examinar. D’aqui tem resultado muitas vezes que
na sustentação da pronúncia pelo Júri [decisão pela
procedência ou não da acusação contra o réu], apareçam
nulidades insanáveis no Processo, para as quais nenhum
outro remédio se tem conhecido, senão o da Apelação, que
ocasiona despesas exorbitantes, com grave dano da Justiça,
e, não raras vezes, com prejuízo da inocência
52
.
Relembrando a auto-descrição, mencionada páginas atrás, é oportuno
ressaltar que nem sempre foi assim. Vasconcelos, juntamente com outros
liberais do Primeiro Reinado, foi um entusiasta da Lei de 15 de outubro de
1827 que criou um juiz de paz em cada paróquia, chegando mesmo a redigir
um manual destinado a instruir os futuros juízes acerca de suas atribuições.
Em sua “Carta aos senhores eleitores da Província de Minas Gerais” de
1828, o então deputado Vasconcelos afirmava que, como bons pais de
família, esses juízes procurariam conciliar as partes que intentavam em
juízo. “Os pleitos insignificantes e os delitos de pequena entidade serão
julgados perante estes escolhidos do povo”
53
, escreveu ele. Já no final da
década de 1830, quando atacava o Juízo de Paz, Vasconcelos, então à frente
51
De acordo com Thomas Flory: “La ley original de 1827 había creado un magistrado con poderes
principalmente conciliatorios y civiles que, no obstante, tenía cierto potencial coercitivo para
movilizar la resistencia local ante una amenaza absolutista. El Código Procesal invirtió el orden de
prioridades, quitándole importancia a la jurisdicción civil del juez de paz en favor de sus poderes
penales y de vigilancia. Después de 1832 el juez de paz poseyó autoridad para arrestar criminales
buscados por la justicia en su jurisdicción o en cualquier otra, y juzgar delitos cuyo castigo máximo
no excedía una multa de 100 milreis (77 dólares) y seis meses de cárcel. Más importante aún, el
Código dio al magistrado responsabilidad no sólo para reunir pruebas, sino también para
determinar la causa de las denuncias, arrestos y presentación de cargos (formação de culpa) en
todos los procesos penales. Como funcionario encargado de presentar cargos penales formales, el
juez de parroquia estaba en la base de todo el sistema de justicia penal”. FLORY, Thomas. El juez
de paz y el jurado en el Brasil imperial, 1808-1871: control social y estabilidad política en el nuevo
Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. p. 104.
52
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos) do ano de 1837,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1828/000015.html e http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1828/000016.html.
53
VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. op. cit, p. 112.
do chamado “regresso conservador”, afirmou ter ocorrido um desvio da
função daquela autoridade localmente eleita, em relação ao que foi
originalmente previsto na lei de criação do cargo.
As críticas de Vasconcelos não paravam no Juízo de Paz, outro
elemento do sistema judiciário do Império, fruto das reformas liberais de
inícios dos anos 1830, criticado no relatório ministerial de 1837 foi o
conjunto de critérios adotados para a escolha dos Conselhos de Jurados.
Antes, porém, de passar à crítica do ministro é oportuno explicitar
brevemente um pouco da história e funcionamento do júri no Brasil.
Inspirado em modelos de países europeus, principalmente na tradição
anglo-saxônica, o júri existiu no Brasil antes mesmo da Independência. As
Cortes de Lisboa, por lei de 1821, criaram o júri para atuar nos crimes de
liberdade de imprensa. Em junho de 1822 as Cortes também criaram a
instituição no Brasil, entretanto, diferente de Portugal, onde os jurados eram
eleitos localmente, no Brasil eles eram indicados por corregedores da Coroa
portuguesa. A existência e as atribuições do Conselho de Jurados chegaram
a ser debatidas na Assembléia Constituinte dissolvida em 1823
54
. Estes
debates nortearam a elaboração dos artigos 151 e 152 da Constituição de
1824, nos quais consta respectivamente: O poder judicial é independente, e
será composto de juízes e jurados, os quais terão lugar assim no civil, como
no crime, nos casos e pelo modo que os códigos determinarem [...] Os
jurados pronunciam sobre o fato e os juízes aplicam a lei
55
.
Embora tenha havido uma lei datada de 20 de setembro de 1830 que
regulou mais detidamente o funcionamento do júri brasileiro, o fez ainda
como instituição política. Foi apenas com a promulgação do Código do
Processo Criminal de 1832 que o júri tornou-se efetivamente um Tribunal
Judiciário com alçada em todos os crimes. Por conseqüência, foi também o
Código do Processo que definiu o conjunto de regras para a escolha dos
chamados juízes de fato (os jurados). Os jurados eram selecionados nos
municípios por vereadores, juízes de paz e párocos entre os habilitados
como eleitores na localidade. No sistema que prevaleceu até a reforma de
54
FLORY, Thomas. op. cit., especialmente “El sistema de jurado” , p. 180-199.
55
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit. p. 593.
1841 as referidas autoridades locais excluíam de listas previamente
elaboradas nos distritos de paz os nomes que não lhes pareciam gozar de
conceito público, inteligência, integridade ou bons costumes. A lista dos
selecionados devia ser afixada nas portas das paróquias ou capelas para
que fossem encaminhadas reclamações, em razão de nomes ausentes ou
indevidamente relacionados. Uma vez por ano as mesmas autoridades se
reuniam para revisar a lista, os nomes finalmente apurados eram transcritos
em livros, publicados nas portas da Câmara dos Vereadores e na imprensa,
transcritos em cédulas e depositados em uma urna que permanecia trancada
por duas chaves guardadas pelo presidente da câmara e pelo promotor de
justiça. Antes do início de uma sessão de julgamento, sempre presidida por
um juiz de direito, eram sorteados sessenta nomes entre os qualificados.
Esse grupo era dividido em dois conselhos de jurados. O que atuava
inicialmente era chamado de Primeiro Conselho de Jurados ou Júri de
Acusação. Para a composição deste primeiro conselho eram sorteados por
um menino, entre os sessenta nomes do sorteio inicial, pelo menos vinte e
três jurados. Em uma reunião fechada, após nomearem um presidente e um
secretário, esses jurados debatiam a respeito de cada um dos processos
criminais em pauta. Caso considerassem necessários esclarecimentos
suplementares, os jurados podiam solicitar a presença das testemunhas ou
dos representantes de acusadores e acusados. Após todas as deliberações,
os jurados definiam se havia ou não provas que motivassem o julgamento.
Quando este júri não encontrava evidências contra o acusado o caso era
encerrado e a causa declarada improcedente pelo juiz de direito, ficando
sem efeito a queixa ou denúncia. De outra forma, quando o primeiro
conselho opinava pela procedência da causa dava-se prosseguimento ao
processo, com a pronúncia, a determinação da prisão do réu e a produção
do libelo acusatório (um documento redigido pela parte acusadora, na
maioria dos casos pelo promotor público, contendo os argumentos que
sustentavam a culpa do réu). Terminada a formação da acusação e com a
anuência do juiz de direito, eram sorteados outros 12 jurados entre os
nomes restantes na urna. Essa escolha obedecia ao direito de algumas
recusas de nomes pelas partes acusada e acusadora. Este conselho era
chamado Segundo Conselho de Jurados ou Júri de Sentença, dele sairia a
decisão pela culpa ou pela inocência do réu
56
.
De posse de um esclarecimento mais detalhado a respeito do
funcionamento legal da instituição do júri de acordo com as determinações
do Código do Processo Criminal de 1832, voltemos à crítica elaborada por
Bernardo Pereira de Vasconcelos contra a instituição. De acordo com o
ministro:
O derramamento de nossa população em um território
extenso, e pouco povoado, torna em muitos lugares
sumamente difícil a reunião de sessenta jurados, que devem
concorrer em cada Sessão. O mesmo Código [do Processo
Criminal] supõe a existência de Municípios, onde se não
encontra esse número, e por isso admite a convocação
daqueles indivíduos, que como indignos excluíra para
exercer as funções de Jurados, como se a falta de pessoas
dignas tornasse tais aquelas, que o não eram; ou como se o
Cidadão, que habita lugares menos povoados, gozasse de
menos garantias, que os outros! Por esta maneira entregou o
nosso Código [do Processo Criminal] a honra, a fortuna, e a
vida desses Cidadãos àquela mesma incapacidade, ou
indignidades, que é repelida nos Municípios mais
populosos
57
.
Tais argumentos de Vasconcelos contra os juízes de paz e o júri não
eram opiniões isoladas, pois traduziam interesses e convicções políticas
que acabaram por se concretizar na mudança sofrida pelo Código do
Processo Criminal em 1841
58
. A reforma criou os cargos de subdelegado,
delegado e chefe de polícia, todos indicados pelo Executivo, os quais
56
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de
dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899, artigos 23 a 31, p.45-
54.
57
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos) do ano de 1837,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1828/000015.html.
58
Thomaz Flory defende a idéia de que as transformações da estrutura de competências policiais
e judiciárias introduzidas pela reforma de 1841 do Código do Processo marcaram
fundamentalmente uma fase de centralização política no Império do Brasil. “La ley de 1841 sí creó
una magistratura dependiente del gobierno central. La esencia política de la ley se derivaba de los
lazos coercitivos de dependencia (el primero de los cuales era el poder para hacer nombramientos)
que ligaban a la red magisterial con el gobierno y daban al ministerio control fundamental sobre
sus representantes judiciales. Dicho más simplemente, a cambio de su nombramiento y de su
salario, el magistrado representaría y haría admisible la autoridad de su patrón, el gobierno central.
Ésta era una dependencia en el sentido ideal, puesto que no tenía necesariamente un contenido
partidista”. FLORY, Thomas. op. cit. p. 285.
substituíram, a partir de então, o juiz de paz em quase
59
todas as suas
funções policiais. O Primeiro Conselho de Jurados ou Júri de Acusação foi
extinto. A formação da culpa nos processos criminais passou à competência
dos delegados de polícia que ao final da inquirição de testemunhas remetia
os processos aos juizes municipais
60
, também indicados pelo governo
central dentre bacharéis formados em direito. Os juízes municipais
revisavam os processos, sustentavam ou revogavam a decisão pela
procedência da culpa contra o acusado feita pelos delegados de polícia,
para finalmente enviar os autos ao juiz de direito, quem, a partir de então,
realizava a pronúncia e presidia o processo até o julgamento, onde um único
conselho de jurados resolvia pela culpa ou inocência do réu.
A lei de 1841 também mudou os critérios para a escolha dos membros
do júri. Se em apenas um Termo não fosse possível qualificar 50 pessoas
aptas para serem jurados reunir-se-iam duas ou mais localidades. As listas
iniciais dos candidatos a jurados passaram a ser produzidas pelos
delegados de polícia, que deveriam arrolar todos os indivíduos moradores
na sua jurisdição que fossem eleitores, soubessem ler e escrever e
possuíssem rendimentos anuais:
[...] por bens de raiz ou emprego público 400$000 nos Termos
das Cidades do Rio de Janeiro, Bahia [sic], Recife e São Luiz
do Maranhão; 300$000 nos Termos das outras Cidades, e
200$000 em todos os mais Termos. Quando o rendimento
provier do comércio ou indústria, deverão ter o duplo.
Exceptuam-se os Senadores, Deputados, Conselheiros e
Ministros de Estado, Bispos, Magistrados, Oficiais de Justiça,
Juízes Eclesiásticos, Vigários, Presidentes e Secretários dos
Governos das Províncias, Comandantes das Armas e dos
Corpos de 1ª linha
61
.
59
Segundo o artigo 65 da reforma de 1841 do Código do Processo Criminal, nos limites de sua
jurisdição territorial, o juiz de paz ainda possuía poderes para proceder a execução de exames de
corpos de delito, reprimir os bêbados, os mendigos, os vadios e as ‘meretrizes escandalosas, que
perturbam o sossego público, obrigando-os a assinar termos de bem viver’, destruir quilombos e
vigiar para que novos não se formassem, prender os criminosos procurados e comunicar a outros
juízes a prisão deles em seus distritos. Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do
Império do Brasil com a Lei de 3 de dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–
Editor, 1899, p. 390.
60
O cargo de juiz municipal não foi uma novidade da reforma de 1841. De acordo com o Código do
Processo Criminal de 1832 o juiz municipal era escolhido a partir de uma lista tríplice composta por
bacharéis em Direito, indicada pelas Câmaras Municipais. A partir de 1841, eles passaram a ser
indicados pelo governo central, em geral pelos presidentes das províncias, e sua função judicial se
misturou à policial, o que só se alterou com a reforma do Código do Processo Criminal de 1871.
61
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de
Uma cópia da lista era afixada na porta da paróquia local e outra
remetida ao juiz de direito em época pré-determinada de todos os anos. As
listas ainda eram submetidas a juntas revisoras, compostas pelo juiz de
direito, pelo promotor público e pelo presidente da câmara municipal, em
sessões públicas. Essas juntas deveriam atender reclamações, corrigir
erros, inserir e excluir nomes, até que a listagem fosse registrada em livros
apropriados. Uma vez terminada a lista geral, os nomes nela contidos seriam
transcritos em cédulas e depositados em uma urna trancada por três chaves
que ficariam em poder dos três membros da junta revisora ou de seus
suplentes. Os livros com os nomes dos jurados, bem como a urna contendo
as cédulas eram guardados pela Câmara Municipal que se responsabilizava
por fornecê-los nos dias de trabalho do júri
62
.
Entretanto, mesmo com as reformas o sistema do júri continuou
dividindo a opinião de juristas e políticos. A cada novo gabinete ministerial
e, em alguns casos, a cada novo relatório apresentado à Assembléia Geral,
os ministros da justiça atribuíam à instituição do júri grande parte da
responsabilidade pela impunidade dos acusados pela prática de crimes.
Quando as denúncias de fraude não se dirigiam diretamente à escolha dos
jurados, identificavam-se parcialidades dos Juízes de Direito e dos “juízes
de fato” atribuídas à cooptações e intimidações promovidas por chefes
locais que não se interessavam pela condenação deste ou daquele réu.
Vejamos o que disse a esse respeito, quase dez anos após a reforma de
1841, o também conservador Eusébio de Queiroz, ministro da justiça
responsável pela apresentação do relatório de 1849 à Assembléia Geral na
segunda sessão da oitava legislatura:
Não é possível dissimular, Senhores, o grande número de
atentados cometidos contra a segurança individual; não há
uma só província que não tenha contribuído com seu
contingente para a história de assassinatos e violências,
ultimamente perpetrados, que seria longo referir-vos. A
dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899, p. 430.
62
Cf. Capítulo III da Reforma do Código do Processo Criminal de 1841, artigos 223 a 239. Código
do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de dezembro de
1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. Rio de
Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899, p. 429-434.
pouca ou nenhuma força de que podem dispor as
autoridades policiais, o desleixo e negligência de algumas, a
conivência de outras, e mais que tudo a impunidade que
acoroçoa os criminosos, são as principais causas a que se
devem atribuir tantos e tão atrozes assassinatos, como os
que têm chegado ao conhecimento do Governo. Nos sertões,
onde abundam os crimes desta natureza, ou não há julgamentos,
ou representa-se uma farsa ridícula com aparências judiciais em
que as decisões são de antemão conhecidas ou porque os juízes
são cúmplices, ou porque são fracos e subscrevem as sentenças
que lhes impõem os potentados do lugar
63
.
Apesar da persistência de problemas anteriores, a lei da reforma do
Código do Processo de 1841 definiu quase todas as bases sobre as quais
funcionou a justiça criminal brasileira até o final do Império, sem grandes
alterações. Nesse sentido, argumenta Joaquim Nabuco ao discutir as
atuações de liberais e conservadores à frente dos Gabinetes Ministeriais no
contexto das reformas judiciárias:
O Código do Processo [de 1832] havia feito dos juízes de paz
o elemento ativo da justiça criminal: a reação conservadora
substituíra esse mecanismo popular pela polícia, que foi
centralizada nas capitais, com a criação dos chefes [de
polícia] e unificada nas mãos do ministro da justiça. Quando
se votou a lei que assim transformara completamente o
sistema da justiça, o partido Liberal protestou em nome das
conquistas populares da Regência, e levantou-se em armas
em São Paulo e Minas. No governo, porém, de 1844 a 1848,
ele nunca seriamente pensou em reformar a lei de 1841; fez
algumas tentativas sem insistência
64
.
No que concernia especificamente à justiça criminal, foi apenas em
1871 que se realizou nova e última mudança legal significativa durante o
Império
65
. Efetivada no mesmo ano que a “Lei do Elemento Servil”, no
63
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Camara) do
ano de 1849, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1841/000006.html. Grifos nossos.
64
NABUCO, Joaquim. op. cit., volume I, p. 194.
65
Segundo o jurista Vicente Alves de Paula Pessoa as leis que reformaram Código do Processo
Criminal de primeira instância de 1832 assim se sucederam: “Foi reformado em muitas partes pela
Lei nº 260 de 3 de Dezembro de 1841, para cuja execução se deram os regulamentos de 31 de
janeiro de 1842, 2 fevereiro e 15 de março do mesmo ano. Ainda tivemos novas reformas, pela Lei
nº 2033 de 20 de setembro de 1871, e Regulamento nº 4824 de 22 de novembro do mesmo ano;
não sendo vicioso citar como reformas o Decreto nº 5456 de 5 de novembro de 1873, que contém
providencias e medidas transitórias para a instalação de novas relações, que são sete, criadas
pelo Decreto nº 2342 de 6 de agosto de 1873. O Decreto nº 5485 de 7 de novembro de 1873,
declarando especiais as comarcas sedes das Relações. O de nº 5467 de 12 de novembro de
1873, dando Regulamento para a interposição dos agravos e apelações cíveis. O de nº 5618 de 2
conjunto da qual ficou mais conhecida a “Lei do Ventre Livre”, a Reforma
Judiciária levada a termo pelo Ministro Francisco de Paula de Negreiros
Sayão Lobato, formalizada pela lei de 20 de setembro de 1871, atendia a
algumas das propostas de reforma sugeridas por antigos projetos que se
sucederam à reforma de 1841
66
. No plano criminal, destacou-se o fim da
sobreposição de competências policiais e judiciárias nas mesmas
autoridades. De acordo com a reforma de 1871, os crimes afiançáveis, tais
como os ferimentos leves, não eram mais levados ao tribunal do júri,
ficavam restritos à competência policial. Por sua vez, os delegados de
polícia perderam a competência para a formação da culpa nos processos
criminais que apuravam crimes considerados graves, tais como o homicídio.
Essa atribuição passou à alçada exclusiva dos juízes municipais, os quais
submetiam suas decisões aos juízes de Direito
67
.
Cada uma dessas reformas culminou na alteração dos destinos de
muitas pessoas, fossem elas, membros da polícia e da justiça, ou mesmo do
conjunto geral dos habitantes do Império, homens e mulheres, livres e
escravos, criminosos ou não.
1.1.3 – Aumentam as notícias de homicídios e outros crimes violentos
No início dos anos 1840, e ainda com a repetida alegação da ineficácia
das leis figurando entre os principais motivos para a perpetuação da
impunidade, o ministro da justiça Francisco Ramiro D’Assis Coelho, no
relatório relativo ao ano de 1839, reiterou argumentos e críticas de seus
de maio de 1874, dando novo Regulamento às Relações do Império. Código do Processo Criminal
de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de dezembro de 1841 nº. 261,
comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho
Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899, p. 7.
66
Em seu Estadista do Império, Joaquim Nabuco assim descreve a seqüência de projetos de
reforma do judiciário produzidos pelos ministros da Justiça entre a lei de 1841 e a lei de 1871: “...
em 1846 e 1848 (situação liberal) propostas de [José Joaquim] Fernandes Torres e [José Antonio]
Pimenta Bueno; em 1854, projeto de [José Thomaz Nabuco [de Araujo] (ministério Paraná); em
1858, projeto substitutivo de [Francisco] Diogo [Pereira] de Vasconcelos; em 1862, proposta de
[João Lins Vieira Cansansão de] Sinimbu; em 1866, proposta de [José Thomaz Nabuco [de
Araujo]. Em 1861, [Francisco de Paula de Negreiros] Saião Lobato preparou um projeto de reforma
que foi impresso e distribuído, mas não chegou a ser apresentado à Câmara”. NABUCO, Joaquim.
op. cit. volume 3, p. 236.
67
Para uma análise especifica dos debates em torno da Reforma de 1871, Cf: CERQUEIRA
LEITE, Beatriz Westin de. A reforma judiciária de 1871 e sua discussão no Senado do Império.
História, São Paulo, v.1, p. 61-75, 1982.
antecessores e apresentou à Assembléia Geral a relação nominal dos réus
sentenciados à pena de morte, que recorreram ao Poder Moderador. No
documento constam 62 réus, todos do sexo masculino. Dentre eles, a maior
parte, 28, eram provenientes do município da Corte e de outros tribunais da
Província do Rio de Janeiro, 9 foram enviados por Minas Gerais, 8 pela
Província do Ceará, 5 pela Bahia, 3 pelo Maranhão, 3 por São Paulo, 2 pela
Paraíba, 2 por Pernambuco, 1 por Goiás e 1 por Santa Catarina. Do total de
réus (62) que apelaram das sentenças apenas onze tiveram suas penas
comutadas para: prisão perpétua, galés perpétuas, desterro (para fora da
comarca) e degredo (para outras partes do Império). O ministro enfatizou
que a maior parte (64,5%) dos pedidos de clemência foi negada e os réus
definitivamente condenados à execução na forca, conforme as disposições
do Código Criminal. Entre os nomes dos 40 réus que morreriam no patíbulo
é possível identificar 11 escravos. Outros quatro cativos tiveram as penas
comutadas e nenhum figurou entre os 11 réus perdoados
68
.
Francisco Ramiro D’Assis Coelho não foi o primeiro ministro da
justiça a divulgar as execuções, pois essa era uma atribuição da pasta.
Entretanto, ostentar enforcamentos como prova de controle dos distúrbios
provinciais, eficiência das leis e medida contra a impunidade parece não ter
sido uma estratégia de unânime aceitação frente ao problema da
criminalidade. Outros ministros preferiram adotar em seus relatórios
distintas estratégias de explicação para o problema da criminalidade no
Império, estreitamente vinculadas ao ataque à estrutura judiciária então
vigente.
No início de 1841, o ministro da justiça Paulino José Soares de Souza,
futuro Visconde do Uruguai, adotou em seu relatório a respeito do ano
anterior uma explicação para a criminalidade fundada nas diferenças
existentes entre as populações do litoral e as que viviam no interior das
províncias. Segundo o ministro, separados uns dos outros e das povoações
por enormes distâncias cobertas por serras e matas, sem instrução moral e
68
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Francisco Ramiro D’Assis Coelho) do ano de 1839,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1830/000044.html.
religiosa, os habitantes do interior viviam fora do alcance do governo e
estavam imbuídos de uma mal entendida noção de liberdade:
[...] os homens bons que habitam esses lugares vêem-se
forçados, em defesa própria, a oprimir para não serem
oprimidos; constituem-se pequenos centros de força, a que
se aglomeram os perseguidos, que depois a vingança torna
também perseguidores. Essa força cresce na razão dos
acontecimentos quotidianos, e procurando cada um obter
maior grau de preponderância e tornar-se temido para ser
respeitado, abre a sua proteção ao maior número de
facinorosos e turbulentos. Como as justiças territoriais são o
resultado das eleições, recaem estas muitas vezes em pessoas
que deveriam expiar nas prisões uma longa carreira de crimes, e
que reforçadas com a autoridade dos cargos se tornam pequenos
potentados, de fato independentes do Governo, e acima de toda a
responsabilidade. Dispondo nas eleições de grande número de
votos, não é raro que encontrem proteções valiosas e
decididas. Tal é o estado de muitos dos nossos sertões
69
.
Quando redigiu o mencionado relatório Paulino cerrava fileiras ao lado
de Bernardo Pereira de Vasconcelos na chefia do Partido Conservador
70
.
Apesar de manifestarem temperamentos distintos, os dois políticos/juristas
tornaram-se amigos íntimos. Conta-se que Vasconcelos pedia a Paulino
discursos para serem lidos no Senado e, até mesmo, empréstimos em
dinheiro. Contudo diferente de Vasconcelos, Paulino não defendeu a
escravidão. “Na questão do tráfico, reconhecia o dano que sua abolição
traria para a indústria nacional, mas as razões de Estado e a pressão
externa, física e moral, lhe pareciam falar mais alto”
71
.
No que se refere ao problema do controle dos registros de
criminalidade produzido nas províncias, da mesma maneira que seus
antecessores no ministério, Paulino reclamou da ausência de uma
estatística criminal para todo o Império. De acordo com o ministro: “apenas
69
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Paulino José Soares de Souza) do ano de 1840,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1831/000019.html
. Grifo nosso.
70
Mais que isso, Paulino era membro, ao lado de Joaquim José Rodrigues Torres (futuro Visconde
de Itaboraí) e Euzébio de Queirós, da trindade Saquarema, núcleo fundamental na direção do
Partido Conservador no período chave do processo de construção do Estado no Império do Brasil.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. 4ª ed. Rio de
Janeiro: ACCESS, 1994.
71
CARVALHO, José Murilo de. In: URUGUAI, Visconde do / organização e introdução de José
Murilo de Carvalho. Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 40.
ultimamente [1841] poucos presidentes tem empreendido coligir [...] alguns
dados em seus relatórios, mas, além de poucos, são seus trabalhos
baseados em diverso plano, e feitos com diversas vistas, pelo que a sua
falta de uniformidade os torna pouco aproveitáveis”
72
.
Dois anos depois, em 1844, o ministro Manuel Alves Branco, autor de
grande parte do projeto original do Código do Processo Criminal de 1832,
“ferrenho inimigo” de Bernardo Pereira de Vasconcelos
73
, tentou levar
abaixo a argumentação de, seu também adversário político, Paulino José de
Souza a respeito da civilidade das regiões litorâneas em detrimento dos
sertões. Segundo Branco:
[No que toca] aos crimes de natureza individual, cumpre-me
dizer, que nesta parte ainda é mui lastimoso o nosso estado.
Fatos horríveis dos mais bárbaros atentados são ainda muito
freqüentes em todas as Províncias do Império, sem excetuar
mesmo (coisa incrível) a Província do Rio de Janeiro, sem
dúvida a mais civilizada, de população mais concentrada, e a
face das autoridades numerosas, e das Supremas do
Império
74
.
Em meados da década de quarenta, os ministros já manifestavam na
Assembléia Geral a opinião de que havia alguma melhora na situação das
rebeliões nas províncias, que marcaram fundamentalmente o período das
regências e o início do reinado de Pedro II. No entanto, se a tranqüilidade
pública não era mais o único foco de atenção em pauta, pelo menos no
plano das afirmações oficiais de governo, a segurança da pessoa e da
propriedade passava paulatinamente a figurar no plano mais elevado das
preocupações do Executivo.
Alguns crimes, em especial, começavam a ganhar relevo. Dentre eles,
destacava-se a perpetuação de delitos entre famílias
75
. No relatório de 1846
72
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Paulino José Soares de Souza) do ano de 1840,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1831/000025.html.
73
DUTRA, Pedro. op. cit. p. 39.
74
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Manuel Alves Branco) do ano de 1843, disponível na
Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras do “Center
for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1834/000008.html.
75
Para uma análise ampla do binômio “violência-família”, no período compreendido entre as duas
últimas décadas do período colonial e meados dos oitocentos, no Ceará, Cf: VIEIRA JÚNIOR,
Antonio Otaviano. A família na Seara dos sentidos: domicílio e violência no Ceará. 2002. Tese
o Ministro José Joaquim Fernandes Torres menciona a continuação dos
conflitos entre as famílias Militão e Guerreiro na Bahia, cuja sucessão
alternada de assassinatos já envolvia bandos armados com duas dezenas de
pessoas. Além dessas ocorrências, o ministro destacou a generalizada
prática de crimes “puramente individuais” em todas as províncias,
principalmente nas regiões mais remotas onde, segundo ele, “as povoações
ainda pouco ilustradas tem como recurso a prática brutal do punhal e do
bacamarte, e não as leis, para vingar-se de seus inimigos pessoais
76
”.
José Antônio Pimenta Bueno, então ainda entre os liberais, assumiu o
Ministério da Justiça na segunda metade da década de quarenta e ficou
encarregado de apresentar o relatório relativo ao ano de 1847. O ministro
asseverou que o problema da segurança pessoal e da propriedade individual
se avultava, principalmente no interior de algumas províncias no norte do
país. Na Bahia permanecia o conflito familiar entre Militão e Guerreiro com a
multiplicação de homicídios e enfrentamentos. No norte da província de
Alagoas, diversos fugitivos da justiça acusados por assassinatos e outros
delitos sobressaltavam os povoados. O ministro destacou o nome de
Vicente de Paula que, a partir das matas de Jacuípe, e junto com outros
homens, realizava façanhas, invadia vilas, festas públicas, praticava assaltos
e diversos delitos narrados nas páginas dos relatórios dos chefes de polícia.
Vicente de Paula tornou-se a cada dia mais conhecido e seu bando teria
alcançado alguns povoados das regiões limítrofes entre Alagoas e
Pernambuco.
A essa altura, nos anos finais da década de quarenta, as estatísticas
criminais não eram inexistentes, mas continuavam a ser vistas com reservas
pelos ministros, o que tornava corrente nos relatórios a narrativa de alguns
crimes considerados atrozes. Em 18 de dezembro de 1847, na Província do
Ceará, foram assassinados na fazenda Cana Brava João Ribeiro de Mello,
dois filhos menores, uma filha, uma afilhada, um vaqueiro e uma agregada
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
76
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro José Joaquim Fernandes Torres) do ano de 1846,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1838/000015.html.
da casa. Os assassinos teriam sido vários homens chefiados por Raimundo
Gadelha, Lourenço Gadelha e José Bezerra. Horas após o crime um dos
filhos da vítima seguiu com homens armados à procura dos assassinos de
sua família, matou o principal chefe Raimundo Gadelha e outros dois
homens. Uma escolta armada foi até a Província do Piauí prender José
Bezerra, terceiro acusado pelas mortes no Ceará. Contrariando a autoridade
do delegado local, a escolta prendeu Antonio Bezerra, José Bezerra e um
escravo. Tão logo o grupo atravessou a divisa da Província do Ceará, José
Bezerra foi assassinado por pessoas que se diziam vingadoras da morte da
família de João Ribeiro de Melo
77
.
Aos poucos, os chamados facinorosos, identificados com nome,
sobrenome e o epíteto de “célebres homicidas e ladrões”, perseguidos
durante anos pelas autoridades policiais, passaram a dividir as páginas dos
relatórios oficias de Estado não só com as vinganças desencadeadas por
conflitos eleitorais e familiares, mas também com assassinatos cometidos
por maridos traídos, companheiros de trabalho e cateretês envolvidos em
rixas e desafios, fossem eles livres ou escravos. É verdade que esses crimes
não eram inicialmente apresentados em relatos detalhados, pois, de maneira
geral, até meados dos oitocentos, os ministros preferiam narrar na
Assembléia Geral os crimes considerados de maior gravidade e
repercussão. Mas, eles estavam presentes em menções gerais ao avultado
número de homicídios de diversas naturezas que se espalhavam por todas
as províncias do Império comunicados pelos chefes de polícia e arrolados
nas estatísticas criminais e judiciárias.
Gráfico 1
ESTATÍSTICA CRIMINAL DO IMPÉRIO DO BRASIL (1853-1862)
77
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro José Antônio Pimenta Bueno) do ano de 1847,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1839/000014.html.
0
100
200
300
400
500
600
700
800
1853 1854 1855 1856 1857 1858 1859 1860 1861 1862
Homicídios
T ent atativas de homicídios
Feriment os
Ro ubo s
Resistências
Fonte: Relatórios dos ministros da justiça 1853-1862.
Obs.: Não há nos mapas que deram origem ao presente gráfico a distinção entre
criminosos livres, libertos ou escravos.
Entre o início da década de cinqüenta e o ano 1862, sob a égide da
política
de conciliação
78
, as estatísticas criminais passaram a seguir a padronização
tão reclamada (ver Gráfico I, abaixo). Neste aspecto em particular, apesar
das permanentes reclamações a respeito de mapas parciais ou não enviados
pelas províncias, a nova estrutura policial e judiciária estabelecida pela
reforma de 1841 dava mostras de uma ligação mais efetiva na integração dos
municípios com as sedes das províncias e destas com o Ministério da
Justiça.
78
No período compreendido entre os anos de 1853 e 1862 inicia-se com o Gabinete ministerial
presidido por Honório Hermeto Carneiro de Leão (Marquês do Paraná) uma política de conciliação
entre os Partidos Liberal e Conservador em nome da integridade do Império. Nas palavras de
Joaquim Nabuco “durante, pode se dizer, dez anos antigos Liberais e antigos Conservadores vão
aparecer misturados nos mesmos gabinetes, até que com a formação do Partido Progressista os
conservadores puros se extremam outra vez e de novo recomeça o antagonismo dos partidos”.
NABUCO, Joaquim. op. cit. p. 176. É para caracterizar esse período que Joaquim Nabuco cita a
famosa frase de Holanda Cavalcanti: “’Não há nada mais parecido com um Saquarema que um
Luzia no poder’, era a verdade sentida por todos”, completa Nabuco. Idem, p. 174. Ver também:
Marson, Izabel de Andrade. op. cit (1986), especialmente o capítulo: “O império do progresso”.
Entretanto, a maior preocupação com a segurança individual e a
organização da estatística parece ter resultado numa dor de cabeça
adicional às autoridades administrativas. A análise dos dados enviados
pelos presidentes de província ao Ministério da Justiça nos anos cinqüenta
indicava que os números da criminalidade individual cresciam
vertiginosamente. Ano a ano mais e mais homicídios e ferimentos chegavam
ao conhecimento da polícia e da justiça. Vez por outra, a estatística era
usada pelas autoridades do Executivo para sustentar a opinião da
manutenção ou de um ligeiro decréscimo do número de “crimes contra a
pessoa” entre um ano e outro.
A comparação entre os números de 1855 e 1854, período em que a
quantidade de homicídios apontada pelos dados coligidos nas províncias
caiu quase pela metade (ver Gráfico I acima), ficou a cargo do primeiro
ministro da justiça do período da conciliação partidária, José Thomaz
Nabuco de Araújo, um dos maiores entusiastas da quantificação. Segundo
seu filho Joaquim Nabuco, as propostas de reforma do judiciário elaboradas
por Nabuco de Araújo seguiam o traço marcante da personalidade do
estadista, pois se originavam do resultado da identificação de falhas e
lacunas observadas durante sua experiência como: advogado, juiz e
ministro. Entre estas falhas, Nabuco de Araújo conferia especial atenção à
ausência da quantificação dos delitos e dos dados a respeito do andamento
dos processos criminais. Especificamente com relação a esse tema nos
conta o filho biógrafo, citando o próprio pai:
‘Não existindo entre nós outros registros criminais senão os
livros dos culpados, livros disseminados por inúmeros
cartórios sem garantia alguma de autenticidade, dos quais com
dificuldade e grande despesa os cidadãos tiram folhas corridas
para mostrarem-se livres de culpa’ (são palavras suas), nomeia
ele uma comissão de advogados, Perdigão Malheiro, sendo
relator, para organizar um projeto instituindo no Império os
registros criminais, à imitação dos da França, reproduzidos em
Portugal, na Itália e em outros países.
‘... Esses registros criminais, dizia ele, além de serem um
elemento da estatística prestam uma prova fácil das
reincidências e um meio cognoscitivo pronto para saber-se o
passado dos acusados’
79
. Assim como os registros criminais,
79
NABUCO, Joaquim. op. cit. Volume II, páginas 351 e 352.
é de Nabuco o primeiro ensaio de estatística criminal, decreto
nº 3572 de 30 de dezembro de 1865, mandando executar o
regulamento da Estatística Policial e Judiciária
80
.
Ainda assim, mesmo Nabuco de Araújo via os dados quantitativos
com cautela. Em seu relatório ministerial o estadista alertou os legisladores
que seria uma temeridade a inferência de conclusões a partir dos números
de crimes relativos a um único ano, principalmente, segundo ele, do ano de
1855 quando uma epidemia de cólera-morbus “infundiu por toda parte o
terror e destruiu muitos algozes e vítimas, acometendo principalmente a
classe que fornece à estatística criminal o maior número deles
81
”. A
estatística trazia a criminalidade individual à ordem do dia, sem, contudo,
diferenciar livres de escravos ou bandidos afamados e reincidentes de
pessoas que recorreram a soluções violentas para seus desentendimentos
cotidianos.
Terminada, contudo, a fase da conciliação partidária tornou-se mais
difícil, mesmo para os contemporâneos, empreender nos relatórios
ministeriais um estudo sistemático da progressão das estatísticas criminais
e judiciárias. Em geral, cada novo ministro da justiça de um novo Gabinete
adotava novas estratégias de coleta, organização e apresentação dos dados
recolhidos nas comarcas. Muitos lamentavam não poder contar com os
dados por atrasos, ausências ou a existência apenas de números parciais.
Acresce que o mais completo levantamento demográfico do Império só foi
levado a termo em 1872
82
. Até então, sem os números da variação
populacional do país tornava-se quase impossível compreender o aumento
ou a diminuição dos números de crimes, embora os ministros sempre
tenham tentado chamar a atenção para alguns temas que estariam
diretamente vinculados com a elevação dos números de delitos violentos
registrados e processos julgados nas comarcas do Império.
80
NABUCO, Joaquim. op. cit. Nota explicativa do autor número 2, p. 352.
81
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro José Thomaz Nabuco de Araújo) do ano de 1855,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1847/000007.html.
82
BOTELHO. Tarcísio Rodrigues. População e nação no Brasil do século XIX. 1998. 248 f. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
Contudo, os padrões gerais dos crimes apresentados pelos ministros
a cada novo relatório se perpetuaram durante as décadas dos oitocentos. As
características mais marcantes da época do primeiro esforço estatístico aqui
mencionado, da década de 30, permaneciam inalteradas. Refletindo o padrão
mais comum de criminalidade estudada a partir de processos criminais em
diferentes regiões no mesmo período, o número de delitos chamados
violentos (ferimentos e homicídios) continuou a se sobrepor aos que
chegavam ao conhecimento das autoridades a respeito dos danos e
subtrações da propriedade
83
.
Quanto aos perfis de criminosos, inicialmente as estatísticas não
separavam os delitos cometidos por escravos do restante da população.
Apenas no item “Infração de Posturas” essa distinção era feita, mantendo-se
durante os anos um número muito superior de réus livres em relação aos
que se encontravam no cativeiro. Em alguns relatórios da década de setenta
foram quantificados os réus que responderam a julgamento, dentre eles
mais de noventa por cento eram livres. No entanto, à medida que o país se
desenvolvia, a população crescia e os problemas com a substituição da
mão-de-obra escrava se tornavam incontornáveis. Assim, dois novos
complicadores foram agregados às explicações das autoridades do Poder
Executivo a respeito do problema da criminalidade no Império. De um lado, a
necessidade de deslocar cativos do Nordeste do Brasil para as lavouras
cafeeiras do Rio de Janeiro e de São Paulo, significativamente intensificada
após o encerramento do tráfico transatlântico (1850)
84
, convergiu com o
83
Refiro-me aqui sempre aos delitos que chegaram à fase de inquérito policial e aos que se
tornaram processos criminais. Os padrões obtidos a partir dos números de prisões, principalmente
em centros urbanos como o Rio de Janeiro, por exemplo, demonstram por vezes percentuais
significativos de crimes contra a ordem pública ou contra a propriedade. Cf: ALGRANTI, Leila
Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Petrópolis: Vozes,
1988.
84
O tráfico interprovincial no Brasil existia antes de 1850. Foi, entretanto, após esta data que se
adensou o envio de escravos, principalmente, das províncias do Nordeste para o Centro Sul. No
entanto, em 1871, preocupados com o grande contingente de escravos rapidamente transferidos
para a Província de São Paulo, os representantes dos senhores de escravos propuseram na
Assembléia Provincial taxações sobre a importação que culminaram no significativo encarecimento
dos cativos. O debate se seguiu no restante do país. Entre fins de 1880 e início de “1881 as
províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro criaram impostos de tal monta que
virtualmente proibiam a importação de escravos de outras províncias, assim pondo fim ao tráfico
interprovincial de seres humanos [...] Finalmente, em 1885 uma lei foi aprovada libertando todos os
escravos transferidos de uma província para outra”. GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma
vez? O Comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro-Ásia. nº. 27, 2002, p.140-141.
aumento das tensões nas regiões de lavouras exportadoras, e com o
incremento no registro de ferimentos e assassinatos praticados pelos
cativos contra seus senhores e feitores
85
. De outro lado, o aumento
paulatino da presença da população de imigrantes no país também era
citado como uma das causas do crescimento do número de crimes.
Ao ver-se legalmente compelido a justificar o número de homicídios
que saltara de 423 em 1859 para 579 em 1862 (Ver Gráfico 1 acima), o então
Ministro João Lins Vieira Cansansão de Sinimbú, lançou mão dos dois
complicadores aqui mencionados. Vejamos os argumentos usados pelo
ministro para explicar aos legisladores da Corte as causas da elevação dos
índices da criminalidade individual:
São conhecidas as causas que influem diretamente para o
aumento na perpetração de crimes. Os Chefes de Polícia são
unânimes em atribuí-lo principalmente à falta de educação
moral e religiosa, à deficiência de força que auxilie a
autoridade na perseguição dos criminosos, à fraqueza das
prisões, ao patronato dos particulares e a indulgência dos
jurados nos julgamentos. A essas causas gerais devem
acrescentar-se ainda outras que me parecem dignas de atenção.
Muitas empresas têm sido iniciadas no Império e encontram-
se em pleno andamento. A falta de braços que geralmente se
sente, obriga os empresários a procurar fora do país os
trabalhadores que aqui não encontram, e, como não é natural
não há aí melhor escolha no tocante à moralidade. O mesmo
acontece com os estrangeiros que vêm para a lavoura a título
de colonos, e pior ainda pelos que chegam com destino ao
serviço das cidades e ao doméstico. A maior parte deles traz
como principal ambição enriquecer com pouco trabalho, para
voltar em breve à pátria: poucos se destinam à vida estável
de proprietários modestos e regrados. Esta população
variadíssima em religião, em nacionalidades, em costumes,
não encontra nas cidades e mesmo nos campos a polícia
ativa e severa a que estava acostumada e que
constantemente pesava sobre ela; entra em plena e ampla
liberdade, quase licença. O desejo ardente de enriquecer e
má educação fazem o resto. Por outro lado, a escravidão e
principalmente a transferência que em tão larga escala se fez
85
Para os principais debates a respeito da vinculação entre o movimento interprovincial de cativos
do nordeste para o centro-sul e o aumento da criminalidade escrava nas áreas exportadoras do
Rio de Janeiro e de São Paulo na segunda metade dos oitocentos, Cf: AZEVEDO, Célia Maria
Marinho de. op. cit.; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas
da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MACHADO, Maria Helena
Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888.
São Paulo: Brasiliense, 1987, &, Idem, op. cit. (1994) e MATTOS, Hebe Maria. Das cores do
silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
de escravos do Norte para o Sul em procura dos altos preços
por que são aqui pagos, não tem sido causa menos
abundante de crimes contra a pessoa
86
.
Além de criticar a ineficiência das execuções e açoitamentos de
escravos julgados culpados segundo a Lei de 10 de junho de 1835
87
, que
punia particularmente os ataques contra senhores e feitores, o ministro
Sinimbú argumentou que não eram apenas os delitos que aumentavam, mas
o trabalho das autoridades policiais que se tornava dia-a-dia mais ativo e
vigilante, revelando um maior número de crimes. Reconhecia, contudo, que
ainda era elevado o número de criminosos que não chegavam aos tribunais.
Ao final de seu comentário, o ministro arrematou com o adjetivo mais
corrente no período: “Se não é lisonjeiro o estado da segurança individual,
também não é desanimador, e com severidade e constância chegaremos, em
próximo futuro, ao estado das nações mais policiadas”
88
.
Cabe agora efetuar uma pausa no acompanhamento do tema da
criminalidade nos relatórios ministeriais. A partir dos anos 1870 as
principais características da criminalidade individual persistiram. Contudo,
como advertiu o ministro Sinimbú, o problema da substituição da mão-de-
obra foi definitivamente colocado no centro das questões de segurança
pública e particular. No Centro-Sul, a Província de São Paulo era motivo de
grandes preocupações.
1.2 – A criminalidade vista da província
A relação entre o poder central, simbolizado pela Corte do Rio de
Janeiro, e as lideranças regionais das províncias, apresentou-se como um
tema profícuo em interpretações historiográficas que visaram, sobretudo,
responder à questão de como a América Portuguesa, com exceção da
86
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro João Lins Vieira Cansansão de Sinimbú) do ano
de 1862, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1854/000004.html.
87
Consta a transcrição integral desta lei no anexo. O tema será mais amplamente tratado no
capítulo 3.
88
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro João Lins Vieira Cansansão de Sinimbú) do ano
de 1862, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1854/000004.html.
Cisplatina, manteve-se unida num mesmo Estado. Em estudo recentemente
publicado, Miriam Dolhnikoff assevera que a importância conferida pela
historiografia às reformas de caráter descentralizador
89
e centralizador
90
, da
primeira metade do século XIX, relegou ao segundo plano um aspecto
fundamental da política imperial — a existência de um pacto de tipo
federalista organizado tanto por liberais quanto por conservadores, no seio
da monarquia constitucional, que perpassou todo o processo de construção
do Estado e permitiu a manutenção de sua unidade. De acordo com a autora,
prevaleceu no Império um jogo de negociação e conflito, no qual as elites
provinciais se constituíram à medida que conseguiam participar
efetivamente do governo central, assumindo compromissos com a
construção de um Estado Nacional
91
.
Escaparia às pretensões do presente capítulo remeter a todos os
participantes do debate historiográfico para recompô-lo em suas
complexidades
92
. Contudo, mesmo Dolhnikoff, que reavalia o binômio
descentralização-centralização, reconhece que a reforma de 1841 consolidou
o processo centralizador de um setor da burocracia imperial, o judiciário,
embora, para a autora, essa revisão conservadora não tenha alterado pontos
essenciais do arranjo liberal estabelecido logo após a abdicação de Pedro I
em 1831
93
.
89
Reformas corporificadas em duas legislações significativas: a criação do Código do Processo
Criminal de 1832, que reforçou a função policial do juiz de paz eleito nas freguesias, e a emenda
constitucional (o Ato Adicional de 1834) que extinguiu o Conselho de Estado e criou as
Assembléias Legislativas Provinciais com competência para tomar diversas decisões autônomas.
90
Em conjunto, a Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 que interpretou a reforma constitucional de
1834 (Ato Adicional) e limitou os poderes das Assembléias Provinciais, a Lei nº 234, de 23 de
novembro de 1841 que recriou o Conselho de Estado, bem como a reforma do Código do
Processo Criminal de 1841, foram apontadas como as grandes reformas do Regresso
Conservador.
91
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São
Paulo: Globo, 2005.
92
Os debates a respeito do tema datam ainda do século XIX. Contudo, na historiografia brasileira
das últimas décadas é possível destacar entre outros, três textos fundamentais: CARVALHO, José
Murilo de. op. cit. (1996), DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Ideologia liberal e construção do
Estado. In: A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005 e MATTOS,
Ilmar Rohloff de. op. cit. Os dois primeiros foram produzidos na década de setenta do século XX e
o último em meados da década seguinte. Com ênfase na figura do juiz de paz, também participou
do debate o aqui já citado estudo de Thomas Flory, originalmente publicado nos Estados Unidos
em 1981, cuja tradução para o espanhol, pelo Fondo de Cultura Económica, data de 1986.
93
DOLHNIKOFF, Miriam. op. cit.
Nesse delicado jogo, estabelecido entre o centro e as províncias, a
figura dos presidentes de província
94
funcionava como a de delegados do
poder central nas diferentes partes do Império, encarregados da negociação
com as lideranças regionais. Sua existência estava prevista na Constituição
de 1824 e suas atribuições foram alteradas de acordo com a criação de
novas instituições e cargos provinciais. A emenda constitucional de 1834
estabeleceu como competência dos presidentes sancionar as leis aprovadas
nas Assembléias Legislativas Provinciais ou devolvê-las para serem revistas
e novamente votadas. Os presidentes eram também encarregados de
submeter à Assembléia Provincial as propostas de reforma ou criação de
novas posturas, conforme as solicitações enviadas pelas câmaras
municipais, ou mandá-las executar em caráter emergencial até que
pudessem ser votadas pelo legislativo da província. Suas diversas
atribuições correspondiam às de todo o gabinete ministerial restritas à sua
circunscrição administrativa e à relação hierárquica do executivo. Entre as
inúmeras competências dos presidentes de província estava a comunicação
dos problemas apontados pelas autoridades policiais e judiciárias das
comarcas, termos e municípios aos ministros da justiça, bem como a
mobilização de soldados permanentes e guardas nacionais para o combate
às revoltas e aos crimes individuais considerados de maior gravidade, por
gerarem comoções nas povoações
95
.
Em especial, é a função de autoridade executiva com alçada nos
assuntos vinculados aos delitos públicos e particulares na província que
torna o presidente um elo fundamental para o entendimento das
transformações nas concepções do problema da criminalidade no período
imperial, sob o olhar administrativo. Em São Paulo, como de resto nas
demais províncias, os relatórios regularmente emitidos pelos presidentes
eram apresentados nas sessões de abertura da Assembléia Legislativa
94
O cargo de presidente provincial foi criado com a Constituição de 1824, o projeto chegou a ser
discutido na Assembléia dissolvida em 1823. Ao interpretar o artigo constitucional que
regulamentava a livre nomeação e demissão dos presidentes, afirma Pimenta Bueno: “Esses
agentes da administração central são os motores, as sentinelas avançadas da ação executiva, os
encarregados de esclarecer o governo geral, de guardar a ordem, a paz pública, de promover os
interesses, o progresso, o bem-ser das províncias, de coadjuvá-lo enfim em suas importantes e
variadas funções”. SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit. p. 395.
95
SÃO VICENTE, José Antônio Pimenta Bueno, marquês de, op. cit.
Provincial. Em relação à criminalidade, alguns presidentes, principalmente
na segunda metade do século, preferiram realizar considerações gerais e
anexar a seus relatórios os textos produzidos pelos Chefes de Polícia.
Assim como ocorria nos relatórios dos ministros da justiça, antes de
passarem à narração do “estado da segurança individual e da propriedade”,
os presidentes referiam-se à situação da “tranqüilidade pública” na
província. Nesse item, as notícias de revoltas de escravos ocupavam várias
laudas dos relatórios dos presidentes de São Paulo. Apesar de tornarem-se
mais freqüentes na segunda metade do século, as informações a respeito da
suspeita do planejamento de levantes escravos percorriam a província de
um lado a outro, durante boa parte do período Imperial, espalhando-se
mesmo pelas localidades que produziam apenas para o consumo de seus
moradores e um pequeno comércio regional, onde as autoridades sequer
conseguiam indiciar vinte escravos para que se configurasse legalmente a
prática do crime de Insurreição conforme os preceitos do Código Criminal
de 1830
96
.
Já no segundo relatório de 1848, o presidente Vicente Pires da Motta
97
comunicou aos legisladores ter recebido notícias a respeito do receio de
insurreições em Campinas, Piracicaba e Itu (pertencentes respectivamente
às regiões identificadas com os números XI, XVII e XIII no mapa “Província
de São Paulo”
98
, a seguir). Os inúmeros ofícios remetidos à presidência
pelas autoridades locais informavam que os fazendeiros da Freguesia de
Indaiatuba, com medo, teriam abandonado suas residências. Soldados
foram deslocados da capital para a região, mas nada foi encontrado. Apesar
de não se ter confirmado a suspeita, o presidente advertiu os legisladores
que a combinação de uma revolta de escravos com a delicada situação
política do país poderia causar “males incalculáveis”.
96
Cf. FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e
criminalidade num ambiente rural, 1830-1888. São Paulo: Editora da UNESP, 2005. il..,
especialmente o sub-item “Uma insurreição sem escravos”, p. 98 a 103.
97
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Vicente Pires da Motta)
segundo de 1848, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de
Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform
Project”, em http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1085/index.html.
98
“Província de São Paulo Comarcas”. In. Atlas do Império do Brasil - Os Mapas de Cândido
Mendes (1868). Rio de Janeiro: Arte e História Livros e Edições, 2000, p. XVII.
Mas, foi principalmente a partir dos anos sessenta, com o aumento
das denúncias e informações enviadas à presidência da província pelas
autoridades locais a respeito de escravos que se insurgiam contra seus
senhores ou feitores e logo após entregavam-se à prisão, que os chefes de
polícia intensificaram suas críticas quanto à não aplicação da pena de morte
prevista na Lei de 10 de junho de 1835.
A penalidade imposta pela referida Lei tem sido burlada,
principalmente no Júri da Capital; condescendência ou
escrúpulo dos jurados que evitam sempre concorrer para
imposição da pena capital; entendendo alguns erradamente
que ela só pode ser aplicável, concorrendo testemunho
ocular com a confissão dos réus. A conseqüência
desgraçada deste prejuízo ou fraqueza, é que a penalidade
ordinariamente aplicada a tais delitos se converte em
estímulo para os escravos assassinarem seus senhores,
como um meio de chegar as galés, que alguns
preferem ao cativeiro. Em vão se tem feito sentir isso no Júri
da Capital
99
.
Os motivos para a não aplicação da referida lei, e em especial da pena
de morte nela prevista como grau máximo, obedeciam a pelo menos duas
ordens de questões. Por um lado, houve a prática, incentivada pelo próprio
Imperador Pedro II, de se promover a sistemática comutação das penas de
morte — por meio das prerrogativas de Clemência (recurso de graça)
conferidas pela Constituição de 1824 ao detentor do Poder Moderador — em
outras penas tais como: prisão com trabalhos no caso de réus livres ou,
como ocorria frequentemente no caso dos réus escravos, em galés
perpétuas
100
. Por outro lado, não interessava a alguns senhores que cativos
de vultoso custo fossem perdidos por uma condenação à morte. Para evitar
o transtorno havia entre senhores de Campinas e Taubaté, por exemplo, a
tentativa de descaracterizar em juízo a condição de feitor da vítima
101
para
que o seu cativo réu não fosse condenado com base na severa lei de 1835,
mas sim pelo Código Criminal
102
. Caso a estratégia fosse bem sucedida, ao
cativo condenado em penas que não fossem de morte, caberiam outros
recursos jurídicos, além da comutação das penas de prisão em açoites.
Ainda a respeito deste tema, há um aspecto jurídico digno de nota.
Tanto nos relatórios administrativos da época, como visto acima, quanto na
historiografia que tratou do tema da criminalidade escrava, afirmou-se que
muitos escravos no sudeste na segunda metade do século XIX atentavam
contra a vida de senhores e feitores e depois se entregavam à polícia por
preferirem a prisão e as galés ao rigoroso cativeiro das plantations.
99
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio José Henriques) de
1861, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/998/000046.html.
100
“Art. 46 – A pena de prisão com trabalho obrigará aos réus a ocuparem-se diariamente no
trabalho que lhes for destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das
sentenças e dos regulamentos policiais das mesmas prisões [...] Art. 44 – A pena de galés
sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a
empregar-se nos trabalhos públicos da província onde tiver sido cometido o delito à
disposição do governo.” Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria
Popular de A. A. da Cruz Coutinho, 1885, artigo 46, p. 119 e artigo 44, p. 115. (Os grifos são
nossos).
101
MACHADO, Maria Helena P. T. op. cit. (1987).
102
Este tema será tratado no capítulo 3, que aborda mais detidamente as punições de cativos
indiciados como réus pelo judiciário.
Dependendo das condições em que se davam o cativeiro este argumento é
bastante plausível. Entretanto, em seus comentários ao Código do Processo
Criminal do Império do Brasil o jurista Vicente Alves de Paula Pessoa
acrescenta um outro aspecto relevante. De acordo com o autor, segundo o
Aviso de 30 de Outubro de 1872:
O direito dominical [do proprietário] sobre o escravo
desaparece pelo fato da condenação definitiva do mesmo
escravo a pena de galés perpétuas; e assim uma vez
perdoado, e considerada a pena extinta, não pode o
condenado voltar à escravidão
103
.
Paula Pessoa cita ainda, no mesmo sentido, um parecer dado em
resposta a uma consulta à Seção de Justiça do Conselho de Estado,
publicado no segundo número da Gazeta Jurídica de 1873:
O perdão conferido pelo Poder Moderador anula a condição
social dos escravos condenados a galés perpétuas que não
podem voltar à escravidão; visto como em seu benefício, e
não no interesse do antigo senhor, cessa por virtude da
Graça, a perpetuidade da pena
104
.
Ou seja, pelo menos em teoria, caso um escravo fosse condenado às
galés perpétuas pelo assassinato de um feitor ou senhor, e ainda assim, por
habilidade das argumentações de seu defensor, fosse merecedor da Graça
Imperial, ele se tornaria um homem livre. Esse era um expediente à mão dos
interessados em ajudar os cativos a conquistarem a liberdade por meio dos
tribunais. Já é conhecida da historiografia brasileira a atuação de advogados
e juristas simpatizantes da abolição para a libertação de escravos por meio
de processos cíveis
105
. Contudo, se em muitos casos o direito penal servia
103
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de
dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899, nota 3206, p.499.
104
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de
dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899, nota 1644, p. 271.
105
Dentre as obras que estudaram a libertação de escravos por meio de ações cíveis,
destacam-se: GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambigüidade: as ações de liberdade da
Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994;
Idem. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; CHALHOUB, Sidney, op. cit. e
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na Imperial cidade de São
Paulo. Campinas: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura,
1999. No tocante às estratégias jurídicas de libertação de escravos no contexto da lei dos
aos interesses de controle e punição a serviço dos senhores, em outros não
estava descartada a sua utilização como “arena receptível e acessível às
demandas escravas”
106
.
A criminalidade escrava, sob o olhar administrativo, sempre tomou a
feição das notícias de insurreição e atentados contra proprietários de
escravos e seus prepostos. Contudo, no alvorecer da segunda metade dos
oitocentos o executivo da província paulista fazia coro com a sede do
Império, no que respeitava à segurança individual. O mesmo presidente
Pires da Motta que em 1848 alertou os legisladores quanto à possibilidade
de novas revoltas de escravos, manifestou na reunião de abertura da
Assembléia Provincial, anos depois, suas precauções quanto aos crimes
violentos cometidos pela população em geral os quais, em diferentes
circunstâncias do cotidiano, envolviam livres, libertos e escravos, mas não
eram assim especificados no relatório. Em seu discurso relativo ao ano de
1850 o presidente Pires da Motta asseverou:
Estão quase extirpados os últimos restos da revolta em
Pernambuco [Praieira], e todas as províncias gozam de paz.
Nesta Província [de São Paulo] a ordem e a tranqüilidade
permaneceram inalteráveis, e devemos esperar que continue
esse estado feliz. Se, porém, não tem aparecido crimes, que
ameacem o sossego público, é muito para lamentar, que o
mesmo se não possa dizer dos atentados contra a segurança
individual. Não são raros os delitos contra a propriedade,
mas a freqüência das violências contra as pessoas assusta e
horroriza. Constantemente recebem-se participações de
homicídios, alguns acompanhados de circunstâncias as mais
agravantes, e odiosas
107
.
Os temores pareciam não ser de todo injustificados. Se no final dos
anos 40, o avanço da criminalidade preocupava as autoridades
administrativas provinciais, duas décadas mais tarde (1870), no auge da
sexagenários, Cf: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos
sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Centro
de Pesquisa em História Social da Cultura, 1999.
106
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província
de São Paulo na segunda metade do século XIX. 2003. Tese (Doutorado em História)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
p. 57.
107
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Vicente Pires da Motta) do
ano de 1850, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/984/000003.html.
expansão da produção cafeeira, São Paulo figurava na estatística policial do
Império como a terceira colocada na lista das províncias com maior número
total de delitos praticados. Na época, segundo o relatório do chefe de
polícia, São Paulo perdia apenas para Pernambuco, cuja população era
maior “na razão de um terço”, e para o Ceará que tinha metade dos
habitantes da província paulista
108
.
O então futuro ministro da justiça, José Thomaz Nabuco de Araújo
tomou posse na Presidência de São Paulo em 27 de agosto de 1851, quando
ainda pertencia ao Partido Conservador. No ano seguinte, da mesma
maneira como faria logo a seguir à frente da pasta da justiça na Corte,
providenciou a preparação das estatísticas criminais e judiciárias da
província. Os padrões constantes nos mapas de São Paulo não destoavam
daquele apresentado em relação ao restante do Império. Consta que foram
submetidos aos tribunais do júri de primeira instância em São Paulo, no ano
de 1851, 176 crimes em 151 processos
109
. Mais de oitenta por cento tratavam
de crimes particulares, e dentre esses, quase noventa por cento se referiam
a homicídios e ferimentos.
No entanto, mais recorrentemente do que ocorria nos mapas criminais
do Ministério da Justiça, na Província de São Paulo o número de réus
escravos era, em alguns casos, divulgado separadamente dos réus livres e
libertos. Ainda assim, entre os processos julgados nas comarcas de São
Paulo em 1851 o pequeno número de réus cativos (11,1%)
110
em relação aos
livres ratificou a tendência entre os números apurados para o país como um
todo. Nos anos seguintes, mesmo considerando-se que ora constavam
estatísticas criminais preparadas pela secretaria de polícia, ora o número de
processos-crime julgados pelos tribunais do júri de cada comarca, a
108
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente José Theodoro Xavier) do ano
de 1874, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”.
109
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente José Thomas Nabuco de
Araújo) do ano de 1852, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de
Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform
Project”.
110
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente José Thomas Nabuco de
Araújo) do ano de 1852, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de
Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform
Project”.
participação cativa manteve-se em torno de dez por cento do total. Anexada
ao relatório de 1871, uma listagem intitulada “Crimes cometidos na Província
de São Paulo em 1870”
111
apresenta um total de 389 réus listados, dos quais
26 (6,68%) eram cativos. Com base nestas informações é possível inferir que
independentemente das variações locais entre a população livre e escrava,
manteve-se a tendência geral na província dos escravos comporem uma
pequena fração do total de réus.
Ainda no relatório de 1871, foi apresentado um recenseamento dos
“presos existentes nas cadeias da Província de São Paulo em 1870”
112
. A
listagem totalizou 292 encarcerados, dos quais 114 eram escravos. Num
período em que os ataques violentos à autoridade senhorial em São Paulo
sofreram um grande incremento, o documento menciona 52 (45,6%) cativos
condenados pelos crimes da Lei de 10 de junho de 1835, ou seja, crimes
contra os senhores, seus prepostos ou familiares deles. Todos os demais
escravos 62 (54,4%) estavam presos por crimes cometidos contra outros
cativos e pessoas livres distintas de seus proprietários, feitores e
administradores, ou seja, estavam no âmbito dos crimes cometidos por
escravos que as autoridades administrativas simplesmente agrupavam à
criminalidade atribuída à população em geral, pois eram ações motivadas
por razões semelhantes às dos crimes cometidos por pessoas livres.
Mas nem só de números eram compostos os relatórios. Após
apresentar as tendências apuradas na estatística criminal, as autoridades
provinciais passavam a atribuir causas aos problemas com a segurança
individual. Os motivos apontados eram os mais variados embora seguissem
os mesmos tópicos constantes nos relatórios dos ministros da justiça e
vise-versa. Predominavam as motivações consideradas pelas autoridades
como frívolas e ocasionais, sempre acompanhadas de menções ao
111
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio da Costa Pinto Silva)
do ano de 1871, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000152.html até http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000159.html.
112
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio da Costa Pinto Silva)
do ano de 1871, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000142.html até http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000147.html
corriqueiro porte de armas de fogo e facas, à prática de jogos, ao abuso de
bebidas alcoólicas e, principalmente, às disputas envolvendo amantes.
Conta o chefe de polícia em 1871 que no dia 24 de julho do ano
anterior, na cidade de Pindamonhangaba (pertencente à região VII - Comarca
de Taubaté identificada no mapa da página 57), Francisco Antonio Ferreira
assassinou sua esposa Francelina, e feriu gravemente a Bento José da
Costa. A suspeita inicial de Ferreira recaiu sobre outro homem, de nome
Cândido, com quem Francelina estaria mantendo relações amorosas. Ciente
das promessas de vingança, Cândido teria se antecipado ao esposo traído e
lhe denunciado Francelina que naquele momento estava em um dos quartos
da casa de Nicolau com o verdadeiro amante.
Ferreira corre precipitadamente para a casa de Nicolau, seu
patrão, e ali encontra sua mulher em adultério com Bento da
Costa. Enquanto Ferreira sacia sua cólera no sangue de
Bento, que recebe muitas facadas, Francelina foge para o Rio
Paraíba, que corre perto da casa, com intenção de ocultar
nas águas sua desonra, porém é em tempo detida pelo
marido que a feriu mortalmente com a mesma faca, que
gotejava o sangue de seu infeliz amante
113
.
Francisco Antonio Ferreira foi preso, julgado e, após justificar-se
perante o conselho de jurados, inocentado de todas as culpas. O juiz de
direito da comarca apelou da sentença, mas o resultado não foi conhecido.
Nem todos os homicídios eram narrados detalhadamente pelas
autoridades provinciais do Executivo. Em 1872 o chefe de polícia mencionou
a prisão de Maria Antonia do Espírito Santo na Vila de Lençóis, termo de
Itapeva, situado na região sudoeste da província (Comarca identificada com
o número XVI no mapa da página 57). A mulher teria se associado ao cativo
Vicente, que pertencia ao Tenente Domingos Luiz do Santos, para juntos
assassinarem seu esposo Theodoro José Rodrigues, que foi encontrado
morto. Submetidos ao julgamento ambos foram absolvidos. Na narrativa
deste crime não foram citadas as motivações que levaram a esposa a se unir
a um cativo para juntos assassinarem seu marido, porém entre as
113
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio da Costa Pinto) do
ano de 1871, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000120.html e http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000121.html.
atribuições de causa da criminalidade individual na província apontadas
pelo chefe de polícia em seu relatório estava o adultério.
No relatório de 1885
114
, o presidente José Luiz de Almeida Couto
narrou outro crime motivado por intrigas amorosas ocorrido no Termo da
Penha do Rio do Peixe, atual município de Itapira, (pertencente à Comarca
de Mogi Mirim, identificada com o número X no mapa da página 57) na
manhã de 12 de outubro, nas imediações da Fazenda de Bento Domingues
de Alvarenga. De acordo com o presidente, o escravo Vicente foi morto com
uma foiçada na cabeça que lhe dera seu parceiro Francisco Mineiro, por
motivos de ciúmes. As intrigas amorosas envolvendo tanto réus cativos
quanto réus livres apresentavam características bastante semelhantes no
tocante às situações do cotidiano tidas como inaceitáveis, entre as quais o
adultério figurava como uma das motivações mais recorrentes para
desfechos cruentos.
Somavam-se ainda, aos motivos alegados pelos presidentes da
Província de São Paulo, em seus relatórios, para a perpetração de
assassinatos e ofensas físicas, os conflitos eleitorais, as disputas por terras
e o crescimento da população de trabalhadores flutuantes, principalmente
os operários da estrada de ferro. Em especial, entre os homicídios os
presidentes destacavam, como as principais causas “o instinto do mal
entendido desforço e as rixas de ocasião” a “falta de educação moral e
religiosa nas classes menos favorecidas da fortuna”
115
, outras vezes referida
como as “mais baixas camadas sociais
116
” ou “a classe ínfima da
sociedade
117
”.
114
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente José Luiz de Almeida Couto)
do ano de 1885, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”.
115
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Vicente Pires da Motta) do
ano de 1864, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1003/000002.html.
116
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio Candido da Rocha)
do ano de 1870, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1011/000005.html.
117
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio Roberto D’Almeida)
do ano de 1856, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/991/000003.html.
Em geral, com exceção dos homicídios e ferimentos enquadrados na
lei de 1835 (dos escravos contra senhores e feitores) não era comum a
diferenciação de causas dos crimes cometidos por livres, libertos ou
escravos nas sessões reservadas à análise da segurança individual, salvo
quando o crime mencionado era narrado entre os “fatos notáveis”, como foi
o caso que envolveu um cativo e o livre Estevão: No Bairro denominado
Ribeirão da Prata, na Freguesia dos Dois Córregos, na Vila de Brotas (região
identificada com o número XVII no mapa da página 57), um escravo, cujo
nome não consta no relatório, teria assassinado Estevão de 20 anos, tido
como rapaz de boa reputação na localidade, com golpes de enxada sobre o
rosto e a nuca que dilaceraram o crânio da vítima. O cativo, após cometer o
crime narrou-o a um morador próximo e fugiu. Preso, o cativo confessou
com detalhes o homicídio ao delegado. O escravo teria dito que “não
empregou violência para levar a vítima ao lugar do delito, levou-a sob o
pretexto de procurar mel. Tinha premeditado o crime, e para não perder a
ocasião acompanhou Estevão até a Freguesia e com ele voltava sem outro
intuito”. Perguntado pelos motivos que o levaram a assassinar sua vítima, o
cativo réu disse que em um dia furtara de seu senhor alguns mantimentos
para vender. Estevão teria denunciado o escravo a seu proprietário e por
isso morreu
118
.
O século XIX marcou a entrada de São Paulo no cenário exportador do
Império. Primeiro com a produção de cana-de-açúcar e depois com o café.
As regiões do Vale do Paraíba e as chamadas novas regiões a Oeste, foram
sofrendo grandes alterações em suas paisagens
119
. Contudo, a infra-
estrutura de governo disponível às autoridades administrativas e judiciárias
parece não ter acompanhado tamanho desenvolvimento. Além das causas
da criminalidade atribuída aos costumes da população, outro problema
118
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Antonio da Costa Pinto) do
ano de 1871, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000120.html e http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1012/000121.html.
119
Para o estudo da economia paulista no século XIX, Cf: BEIGUELMAN, Paula. A formação
do povo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2005, originalmente publicada em 1973 e LUNA, Francisco Vidal e KLEIN,
Herbert: Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
alegado pelos presidentes era a deficiência dos recursos materiais e de
pessoal disponível. Nas vilas, os delegados de polícia nem sempre podiam
contar com os Soldados Permanentes e Guardas Nacionais para a patrulha e
cumprimento de mandados judiciais. Muitas prisões eram feitas por escoltas
formadas por soldados e outros indivíduos que, por meios (cavalos e armas)
e interesses próprios, se dispunham a colaborar. Quando, enfim, os
perturbadores da ordem ou os indiciados em processos criminais eram
presos — não havia prisões. Os mapas a respeito da situação das prisões de
São Paulo demonstram a precariedade da maioria das cadeias de toda a
província. Em muitas vilas as prisões funcionavam em casas alugadas, em
péssimas condições de uso, onde os presos livres e escravos eram
acorrentados a troncos, por falta de celas. Em outros casos, a enxovia se
situava em porões sem janelas de onde, não raramente, livres e escravos se
associavam para
fugas
120
.
Em quase toda a primeira metade do século XIX o problema da
criminalidade no Império aos olhos do Executivo tomou a forma dos crimes
públicos, principalmente daqueles conceituados no Código Criminal de 1830
como “crimes contra a segurança interna do Império e pública
tranqüilidade”. Contudo, em meados dos oitocentos o arrefecimento das
revoltas provinciais abriu espaço à preocupação com a segurança
individual, mais precisamente com a notícia do aumento do número de
homicídios que de todas as províncias eram enviados ao Ministério da
Justiça na Corte.
Compreendidos no debate que se estabeleceu a respeito da segurança
individual, os crimes cometidos por escravos só ganhavam maior relevo
quando se voltavam contra seus senhores e feitores. A regra geral entre os
diferentes ministros da justiça e os presidentes de província de São Paulo
foi tratar como criminalidade escrava apenas estes ataques ao poder
senhorial e às ações coletivas de cativos qualificadas como crime de
insurreição.
Os demais tipos de crimes praticados por escravos, embora presentes
nos levantamentos policiais, judiciários e carcerários, e até em algumas
narrativas dos Chefes de Polícia, como foi possível observar neste capítulo,
tendiam a ser reunidos pelas autoridades administrativas como delitos
praticados pelas “classes ínfimas da sociedade”: cativos, libertos, livres
pobres e, na segunda metade do século, até mesmo imigrantes europeus.
Assim, se no plano do Executivo uma parte dos cativos e livres
criminosos figuram indistintamente, é nos processos de uma das comarcas
do Império que se tornará possível compreendê-los mais detidamente. Para
tanto, no capítulo seguinte o estudo sai da capital paulista e toma o rumo do
extremo nordeste da província. Seu destino é o Município de Franca (ver no
120
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente João Crispiano Soares)
do ano de 1865, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de
Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American
Microform Project”, principalmente o relatório do Chefe de Polícia a respeito do estado das
cadeias da província em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1005/000068
até
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1005/000080.html.
mapa da página 57 “Província de São Paulo Comarcas”, a área indicada com
o número XVIII), uma região de fronteira e passagem, marcada na época
simultaneamente pela má fama criminosa e pelo estreito contato entre livres
e escravos num ambiente rural.
CAPÍTULO 2
COSTUMES E CRIMINALIDADE:
LIVRES E ESCRAVOS NUM MUNDO RURAL
A escravidão típica da média e, principalmente, da grande propriedade
rural no Brasil dos períodos colonial e imperial coexistiu com o cativeiro
praticado em regiões rurais onde predominavam os senhores de pequenas
posses. Viver entre poucos escravos, contudo, não era sinônimo de um
cotidiano suavizado. Infere-se, neste capítulo, que ocorria nessas regiões
um cativeiro peculiar, o qual, embora fosse fundamentalmente marcado pelo
tipo de relação estabelecida entre os senhores e seus cativos, cedia espaço
ao contato recorrente dos escravos com a população livre em geral.
Um dos momentos privilegiados para o estudo de algumas facetas
dessas relações entre cativos e livres é o conflito. Os processos criminais
instaurados pelas autoridades policiais e judiciárias para a apuração de
bordoadas, facadas e tiros possibilitam a compreensão de alguns dos
limites cotidianos que separavam a escravidão e a liberdade. Este tipo de
estudo beneficia-se tanto da análise dos delitos que envolveram cativos,
libertos e livres, quanto da composição dos padrões que delineiam as
similitudes e diferenças da criminalidade praticada por ambos. Ademais,
estudando os processos criminais de uma das comarcas do país é possível
lançar alguma luz sobre o mundo nebuloso dos “crimes cometidos pelas
classes ínfimas da sociedade”, segundo a óptica das autoridades do
Executivo Imperial.
Para tanto, este capítulo vai ao ponto inicial de onde partiam as
informações que, passando pela presidência da província, chegavam ao Ministério
da Justiça. O foco central do estudo recai sobre a comarca e dentro dela o
município, sua localização, seu povoamento, suas atividades econômicas, bem
como, as especificidades e generalidades dos crimes cometidos por seus
habitantes. A criminalidade praticada na região em apreço é aqui interpretada a
partir dos processos criminais remanescentes do Cartório do 1º Ofício Criminal de
Franca, produzidos na vigência do Código Criminal do Império durante o cativeiro
(1830-1888).
2.1 – Facínoras, entrantes e escravos
2.1.1 – Repositório de homens perigosos: a construção de uma má fama
Vista do Largo da Matriz da Vila Franca em 1827
Desenho produzido pelo viajante inglês William John Burchell. O desenho acima representa a
vista do Largo da Matriz de Franca em setembro de 1827, três anos após a criação da Vila
Franca do Imperador. Imagem disponível na página eletrônica do Museu Virtual de Franca em:
http://www.francasite.com/mumu/default.asp
Ao visitar o então incipiente Arraial de Franca, no percurso de sua “viagem
do porto de Santos à cidade de Cuiabá”, em 1818, o oficial de engenheiros
português Luiz D’Alincourt descreveu as principais atividades em que se
ocupavam os moradores locais, além de narrar a cena que quase dez anos mais
tarde (1827) seria representada no desenho produzido pelo viajante inglês William
John Burchell. De posse de informações precedentes, D’Alincourt viu, ouviu e
escreveu:
Os habitantes deste lugar são industriosos, e trabalhadores;
fazem diversos tecidos de algodão; boas toalhas, colchas e
cobertores; fabricam pano azul de lã muito sofrível; chapéus:
alguma pólvora; e até já tem feito espingardas: a sua principal
exportação consta de gado vacum, porcos e algodão, que levam
a Minas: plantam milho, feijão e outros legumes para consumo do
país. O Arraial está bem arruado, porém a maior parte das ruas é
ainda mui pouco povoada, só o largo da Matriz está mais
guarnecido de casas que são construídas de pau a prumo, com
travessões e ripas, cheios os vãos de barro, e as partes
rebocadas com areia fina, misturada com bosta, geralmente são
pequenas, e a maior parte delas cobertas de palha.
121
Entretanto, localizada no extremo nordeste de São Paulo, já nos limites
territoriais com a Província de Minas Gerais, num dos caminhos mais utilizados
entre o litoral paulista
122
e as províncias de Goiás e Mato Grosso, a “região da
sétima comarca”
123
era geralmente lembrada na época como o mais remoto lugar
da província (ver os mapas: “Áreas desmembradas do Município de Franca” e
“Província de Minas Gerais
124
”, a seguir), o distante sertão para onde fugiam os
facinorosos. Esta má fama, construída entre fins do século XVIII e início dos
121
D’ALINCOURT, Luís. Memória sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 71.
122
A importância da região de Franca na ligação comercial entre o porto de Santos e o
interior do país é destacada por autoridades governamentais e viajantes da época. Neste
ofício de 1857 enviado pela Câmara Municipal de Franca ao Presidente da Província de São
Paulo a importância da estrada é destacada: “Ilmo. Exmo. Sr. Achando-se este município
ameaçado da invasão de bexigas [varíola], que consta já estarem graçando pelos municípios
da cidade de Mogi-Mirim e Distritos de Cajurú , e de Casa Branca, que ficam todos na direção
desta cidade pela estrada geral mais freqüentada, que dirige o comércio de Santos, São Paulo e
Campinas aos portos da ponte Alta, Rifaina, Santa Bárbara do Rio Grande limítrofe neste
município com a província de Minas, sendo todo o transporte daqueles para estes pontos por
dentro desta cidade, sendo para tanto de recear que tal contágio se apresente neste
município sem dar tempo às medidas preventivas: resolveu esta Câmara solicitar de V.
Excelência a remessa de algumas lâminas de pus vacínico, afim de poder precaver do mal,
quando por ventura infelizmente se apresente. Deus guarde a Vª. excelência por mais anos.
Paço da Câmara Municipal da Cidade da Franca do Imperador em sessão ordinária de 23 de
janeiro de 1857”. Ofícios Diversos Franca, lata 01021, pasta 2, documento 76D,
Departamento de Arquivo do Estado de São Paulo (A partir desta nota identificado como
DAESP).
123
“Dos primeiros tempos do povoamento até fins do século XIX a circunscrição judiciária
da região desenvolveu-se da seguinte maneira: de 1804 a 1833 pertencia à Comarca de Itu.
Entre 1833 e 1839 pertenceu à 3ª Comarca da Província de São Paulo (Campinas). Em 14 de
março de 1839 foi sancionado o decreto que criava a 7ª Comarca da Província de São Paulo
constituída pelo termo da Vila Franca do Imperador, o qual, por sua vez, era composto pela
então simultaneamente criada Vila de Batatais que figurava como cabeça do termo, e ainda,
pelo termo de Mogi-Mirim, além dos distritos pertencentes a cada uma destas localidades.
Dois anos mais tarde, no mapa da organização e divisão criminal da Província de São Paulo,
conforme a lei nº. 261 de 3 de dezembro de 1841, e regulamentos respectivos constam como
componentes da 7ª Comarca os termos de Mogi-Mirim, Casa Branca, Franca do Imperador e
Batatais. Apenas em 17 de julho de 1852 foi criada a Comarca da Franca (16ª Comarca), a
qual tinha a Vila Franca como sede e compreendia os termos de Franca e Batatais”.
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e criminalidade
num ambiente rural, 1830-1888. São Paulo: Editora da UNESP, 2005. il, p. 23.
124
”Província de Minas Gerais”. In.: Atlas do Império do Brasil - Os Mapas de Cândido Mendes
(1868). Rio de Janeiro: Arte e História Livros e Edições, 2000, p. XXI. O nome Franca foi por mim
destacado em vermelho, para ressaltar a presença da localidade na divisa da Província de São
Paulo com a de Minas Gerais.
oitocentos, com a chegada dos primeiros povoadores à região, chamou bastante a
atenção de Luiz D’Alincourt, que em seu texto conferiu ao tema amplo destaque:
Deu-se a este Arraial o nome de Franca, por virem a ele
estabelecer-se toda a qualidade de pessoas de diversos lugares;
todavia a maior parte delas veio de Minas Gerais: a fama deste
lugar é muito má, por causa dos facinorosos, que em grande
número, o habitam; e de certo a conservará enquanto ali se não
estabelecerem as Autoridades, que mantenham as Leis do
Soberano, e a Justiça. Este povo existe como os da primitiva: o
mais astuto, e valente, ou para dizer melhor, o de pior coração dá
a lei, os outros tremem, e cegamente obedecem; e, como a
Justiça está muito longe, nada receiam. Houve ali um malvado,
que fez catorze mortes, e se recreava com a narração delas;
porém graças as diligências do Exmº D. Manoel de Portugal e
Castro, Capitão General de Minas, que fizeram acabar com tal
monstro, que se tinha refugiado neste Arraial, onde ainda existe
um delinqüente de sete mortes, e vários outros de menor número
(confissão dos mesmos povos). Não trato da qualidade de
mortes, das traições, e de muitos pais roubados a seus filhos;
pois são tão diferentes os casos, que seria necessário descreve-
los muito por miúdo; finalmente pela mais leve causa não há
escrúpulo em tirar a vida
125
.
125
D’ALINCOURT, Luís. op. cit. pp. 70 e 71.
Mapa adaptado a partir de: BACELAR, Carlos de Almeida Prado ; BRIOSCHI, Lucila Reis,
orgs. Na Estrada do Anhangüera: Uma visão regional da história paulista. São Paulo:
Humanitas FFLCH/USP, 1999, p. 18.
Principal estudioso do povoamento da região nordeste da Província de São
Paulo, José Chiachiri Filho acredita ter havido um excesso por parte de D’Alincourt
ao creditar aos criminosos e fugitivos da justiça o maior peso na constituição do
povoamento local. Em Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do Imperador
126
,
Chiachiri Filho procura demonstrar que o povoamento de Franca foi caracterizado
pelos hábitos e costumes levados à região nordeste de São Paulo pelas famílias
de migrantes egressas de Minas Gerais, que se estabeleceram na região do
“Sertão do Rio Pardo até o Rio Grande” a partir do primeiro qüinqüênio do século
XIX. O nome Franca, que certamente para D’Alincourt teria relação com o adjetivo
franco, ou seja, livre e desimpedido, embora sugestivo para a nomeação de um
lugar de passagem, aberto também aos facinorosos, teria sido, segundo Chiachiri
Filho, escolhido na época em homenagem ao Capitão e Governador Geral da
Capitania de São Paulo Antônio José da Franca e Horta que apoiou a criação, em
1805, da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Franca, a qual, mais
tarde, em 1824, compôs o núcleo central da Vila Franca do Imperador.
Embora seja possível concordar que D’Alincourt tenha se excedido em seus
comentários, após ouvir histórias de crimes comuns a outras regiões de fronteira e
passagem no Brasil e em outros países, é preciso considerar que, tanto sob o
olhar administrativo do Império quanto nas narrativas de outros visitantes da
região nordeste de São Paulo a má fama de Franca teve existência e longevidade.
Histórias contadas em “rodas de causos”, comunicações oficiais de governo e
jornais das capitais a respeito das duas invasões de homens armados à Vila
Franca durante o ano de 1838 em nada contribuíram para a mudança dessa
opinião.
Na segunda metade dos anos trinta do século XIX, o quadro político local
era semelhante àquele que serviu de base às criticas dos conservadores
regressistas contra o cargo de juiz de paz e o Conselho de Jurados, mencionados
no capítulo 1. Na Vila Franca do Imperador, de um lado colocaram-se os
representantes das mais antigas famílias mineiras que povoaram a região; no pólo
oposto situou-se um grupo de negociantes que, embora não fossem tão antigos
na localidade, aos poucos se estabeleceram no pequeno núcleo urbano, para
126
CHIACHIRI FILHO, José. Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do Imperador. Ribeirão
Preto: Ribeira, 1986.
onde as famílias afluíam principalmente aos domingos e dias santos, vindas de
suas propriedades rurais, como acontecia em tantas outras regiões rurais pelo
Brasil
127
.
No município estava em pauta a disputa eleitoral para as cadeiras da
Câmara de Vereadores e de juiz de paz, a ser realizada em sete de setembro de
1836. Uma vez realizadas, as eleições destituíram de seus cargos homens que
até então gozavam de expressão política na região como o Capitão-Mor Francisco
Antonio Diniz Junqueira e o Capitão Anselmo Ferreira de Barcelos. Ambos
perderam os seus postos na Câmara e, com eles, a influência direta sobre o
controle fiscal, administrativo e policial do município. À derrota eleitoral sofrida
pelos fundadores da Vila, seguiram-se outros episódios conflituosos que acirraram
as rivalidades entre os dois grupos.
Nomeado pelo governo provincial, o prefeito do município Joaquim José de
Santa Anna destituiu um juiz de paz, aliado de Anselmo, e colocou em seu lugar
Antonio Barbosa Sandoval, membro do grupo opositor. Outro protegido de
Anselmo, o crioulo Basílio Magno Rodrigues Alves, rábula oriundo da Vila de
Araxá com fama de foragido, também foi perseguido e só não acabou
definitivamente preso em virtude da intercessão do Capitão Anselmo que o
acolheu em sua fazenda. Em outro episódio, uma das cunhadas de Anselmo,
Luciana Angélica do Sacramento filha do homem que ficou conhecido como o
fundador de Franca, Hipólito Antonio Pinheiro, ao chegar à vila, após ter
permanecido uma temporada em sua fazenda, viu que as folhas da janela lateral
de sua casa haviam sido fechadas com pregos por um vizinho. Ao ordenar a
abertura da janela, a mulher quase foi baleada e teria sido insultada publicamente
por Luiz Gonçalves de Lima (o vizinho) e pelo suplente de juiz de paz Manoel
Rodrigues Pombo. Conta-se que a gota d’água dos conflitos entre os dois grupos
teria sido a sucessão do cargo de juiz de paz, que por eleição deveria ser ocupado
127
O principal processo criminal relativo às invasões da Vila Franca lideradas por Anselmo
Ferreira de Barcelos, as “Anselmadas”, desapareceu de uma vitrine onde estava exposto no
interior do Fórum de Franca no ano de 1988. Para a composição desta narrativa, que se
restringe apenas aos eventos mais significativos da sedição, foram consultados dois
trabalhos que lançaram mão de vasta documentação para interpretar mais detidamente os
significados deste episódio local no cenário político do Brasil Imperial. São eles: ANTÔNIO,
Edna Maria Matos. A Anselmada: a trama de uma sedição (1838). 1999. Dissertação
(Mestrado em História), Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade
Estadual Paulista, Franca; e BASTOS DE MATOS, Carlos Alberto. Apontamentos sobre a
história da comarca da Franca. Franca: MIMEO, (sem data de publicação).
no final do ano de 1837 pelo amigo de Anselmo, José Joaquim do Carmo. Dias
antes da posse, foi instaurado um processo por injúrias contra o futuro juiz de paz
José Joaquim do Carmo que, por isso, não pôde assumir sua função, ficando o
cargo com Antônio Barbosa Sandoval, desafeto de Anselmo.
Era manhã do primeiro dia de 1838, quando Anselmo Ferreira de Barcelos,
à testa de mais de 30 cavaleiros armados com facas, facões, espingardas e
bacamartes invadiu a Vila Franca. Quem pôde fugiu. Os demais moradores se
trancaram em suas casas e enterraram seu dinheiro e objetos de valor. Anselmo
reuniu seus homens defronte à casa do juiz de paz em exercício, Luiz José
Fradique. Depois, separou-se do grupo maior, acompanhado de alguns cavaleiros,
e saiu pelas ruas da vila anunciando aos gritos que haveria naquele dia muito
sangue. Bradava o Capitão que colocaria José Joaquim do Carmo no cargo de
juiz de paz. Anselmo também lançava ameaças contra Luiz Gonçalves de Lima —
o homem que insultara sua cunhada no episódio da janela — demoliria sua casa,
salgaria o lugar e depois o arrastaria preso a uma corrente “até esbandalhá-lo”.
Contudo, Felisbino, filho de Luiz Gonçalves, dotado de certa presença de espírito,
conseguiu convencer o Capitão de que naquele dia estava sendo empreendida a
revisão dos jurados do distrito e, em virtude disso, não seria possível realizar a
transmissão do cargo de juiz de paz. Felisbino prometeu que no dia 6 de janeiro o
amigo de Anselmo seria empossado no cargo para o qual foi eleito — sem
oposição alguma. Além de acreditar na promessa, o Capitão teria acedido a
repetidos pedidos de seu irmão para que se retirassem da vila e o fez às três da
tarde daquele mesmo dia.
No entanto, as autoridades locais mandaram comunicações ao Presidente
da Província de São Paulo que determinou a abertura de um processo por crime
de sedição contra os invasores da Vila Franca e o indiciamento de Anselmo como
cabeça do movimento. Os dias se passaram, o juiz de paz eleito Antonio Barbosa
Sandoval preferiu assumir o cargo de vereador deixando o de juiz de paz para
Manoel Rodrigues Pombo. Pombo, por atribuição de seu novo cargo, passou a
conduzir o sumário de culpa contra Anselmo e seus seguidores. José Joaquim do
Carmo, que por ordem de Anselmo deveria ter assumido o cargo de juiz de paz,
foi submetido ao Júri de Acusação, porém os jurados não encontraram matéria
para a pronúncia e ele foi solto. Contudo, empossados na Câmara e em outros
cargos públicos do município, os inimigos de Anselmo continuaram a persegui-lo
com mandados de prisão. Homem ainda temido e respeitado por muitos
moradores da região, Anselmo encontrava-se acuado e escondido.
Oito meses se sucederam desde a primeira tomada de Franca pelo
Capitão. Na manhã de 27 de setembro de 1838, Anselmo voltou a invadir a vila.
Desta vez, à frente de setenta e quatro cavaleiros bem armados. O fiscal da
Câmara tentou combatê-los, mas foi logo alvejado por um disparo. Anselmo
estacionou seus homens na praça central, bem defronte a casa do negociante e
juiz de paz Manoel Rodrigues Pombo, que presidiu o inquérito instaurado contra
Anselmo pelo crime de sedição. O quintal da casa do juiz Pombo foi invadido, seu
cão morto, e no interior da residência sua família permaneceu aterrorizada. Sem
outro recurso, foi chamado em sua chácara o padre João Teixeira de Oliveira
Cardoso, simpático a Anselmo, que mediou a rendição de Pombo e a entrega dos
cargos de juiz de paz e juiz de direito a aliados de Anselmo. Antes, porém, Pombo
ordenou a soltura de amigos de Anselmo presos na cadeia local e comprometeu-
se a não comunicar a nova invasão às autoridades da sede da província. Dois
dias depois, em 29 de setembro às duas da tarde, Anselmo deixou a vila —
vitorioso.
Entretanto, dias depois, já no mês de outubro, retornou à Franca, vindo da
Corte, para onde havia viajado a negócios, o Tenente-Coronel da Guarda
Nacional e Presidente da Câmara de Vereadores José Teixeira Álvares. Após
repreender os que aceitaram a conciliação com Anselmo e não avisaram
prontamente as autoridades provinciais, Teixeira Álvares passou a reunir homens
e armas no sobrado de Antonio Barbosa Sandoval, localizado na praça central da
vila. A casa se transformou em uma fortaleza. Para lá, foram levadas provisões,
armas e munições do batalhão policial. Furos foram feitos nas paredes para que
fosse possível introduzir os canos das armas. Uma vez montada a “casa forte”, o
presidente da Câmara ali reuniu extraordinariamente os vereadores, que entraram
pela noite insultando os sediciosos. A residência foi batizada com o nome de Paço
da Legalidade.
Talvez para a decepção de alguns, ao contrário das expectativas dos
habitantes do Paço da Legalidade, o enfrentamento com Anselmo não voltou a
acontecer. Depois de muitas insistências dos vereadores, o juiz de paz Manoel
Pombo e o juiz de direito José Cursino dos Santos reassumiram seus cargos.
Com o passar do tempo e a falta de novidades, as primeiras deserções
começaram a acontecer na “casa forte”. O tenente-coronel Teixeira Álvares
resolveu enviar dois emissários para tentarem um acordo com Anselmo, os quais
nada conseguiram além de um aviso do Capitão — caso o acordo de setembro
fosse descumprido a vila seria invadida pela terceira vez. De volta ao Paço da
Legalidade, os emissários narraram o que ouviram de Anselmo e acrescentaram
terem visto na fazenda do Capitão a chegada de muitas pessoas. Oriundos de
diferentes lugares, estes homens reuniam-se na propriedade de Anselmo, de onde
partiriam para uma nova invasão à vila.
Enfraquecidos, os inimigos de Anselmo fugiram. Alguns se mantiveram
próximos da Vila Franca, procurando abrigo em Batatais e Cajurú. Outros
atingiram localidades mais distantes. Conta-se que Luiz Gonçalves de Lima,
personagem do episódio da janela, que desde a primeira invasão recebeu a
promessa de ser esbandalhado pelo Capitão, teria escapado da vila escondido
dentro de um grande alambique, na direção dos limites com a Província de Minas
Gerais. Antonio Barbosa Sandoval só teria parado para tomar fôlego em
Sorocaba. Num ato final, após estas cenas e sem a proteção do Paço da
Legalidade, o juiz de paz Manoel Rodrigues Pombo acreditou poder ir sozinho até
a fazenda de Anselmo negociar uma trégua. Após sair de Franca, Pombo não foi
mais visto. Seu corpo foi encontrado dias depois em um buraco à beira de um
caminho, apodrecido e sem as orelhas.
Conforme o prometido, o Capitão Anselmo, seguido de uma quantidade
ainda maior de homens, adentrou a Vila Franca pela terceira vez. Contudo, o fez
por ordem do Presidente da Província de São Paulo. A autoridade expediu uma
portaria solicitando ao Capitão que restabelecesse a segurança e o sossego na
localidade. Alguns desafetos de Anselmo ainda tentaram resistir, sem sucesso.
Suplentes dos vereadores que fugiram de Franca nos dias anteriores, os aliados
de Anselmo expediram comunicados à sede da Província relatando sua versão de
todo o ocorrido. Um destacamento de Guardas Nacionais de Mogi-Mirim foi
deslocado para Franca. Porém, os guardas não tinham instruções para combater
Anselmo, apenas de manter a ordem.
Treze anos mais tarde, foi publicado em Paris, na França, o relato a
respeito da Viagem à Província de São Paulo realizada pelo naturalista Augustin
(Auguste) François César Prouvençal de Saint-Hilaire. De ampla repercussão, o
texto de Saint-Hilaire, talvez mais que a obra de D’Alincourt, inscreveria Franca
definitivamente na história das localidades mal afamadas do interior do país no
século XIX. Não fosse a menção pouco lisonjeira à Vila Franca feita pelo
naturalista francês na descrição do percurso de sua viagem, o episódio das
Anselmadas foi escolhido por Saint-Hilaire para ilustrar suas opiniões a respeito
das causas da impunidade no Brasil oitocentista. Sob o título “Justiça Criminal” o
autor argumenta:
Em todos os países, sempre que se escoa um espaço de tempo
regular entre o crime e o castigo, o horror que o primeiro causou
acaba por se diluir, e o público, já não vendo no culpado senão
um homem que sofre, termina por se interessar por ele e se
apiedar de sua sorte. À época de minha viagem, a compaixão
pelos criminosos tinha sido levada ao último grau entre os
brasileiros, cujos sentimentos são talvez mais vivos e mais
passageiros que os nossos e cujos costumes, pelo menos no
estado habitual, são geralmente mais relaxados. As execuções,
muito raras no Rio de Janeiro, sempre causam ali uma espécie de
insurreição. Não há uma única pessoa, nas camadas inferiores da
sociedade, que não seja capaz de ajudar de bom grado um
criminoso a escapar das mãos da justiça. Percebe-se que, num
país onde predominam semelhantes sentimentos, a instituição do
júri deve conceder absolvições com muito mais freqüência do que
na Europa. Em 1838 foram cometidas terríveis atrocidades
depois de uma revolta no território da Franca, cidade da
Província de São Paulo. Os culpados foram levados a júri;
havia as mais claras provas de seus crimes, e, no entanto
eles foram absolvidos por unanimidade. Isso levou o
presidente da Província, em 1840, a dizer com amargura que as
sedições não poderiam deixar de triunfar com tanta facilidade. O
temor das vinganças, tão fáceis no interior, onde a polícia não
tem poder suficiente, contribui para tornar indulgentes os jurados.
São levados a isso pelo hábito, muito antigo, de cederem a todos
os empenhos, e, para completar, até 1841 a própria lei brasileira
favorecia a excessiva indulgência dos jurados
128
.
Em suas apreciações específicas à região de Franca, na mesma obra, o
naturalista francês repete afirmações de Luiz D’Alincourt, contudo o faz com um
tom fatalista, projetando para o futuro as raízes de uma colonização realizada por
criminosos. Saint-Hilaire parece sugerir que não havia nada de novo nas
128
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia;
São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976, p. 78. (Grifo nosso).
Anselmadas. Para ele, as duas invasões à Vila Franca — que causaram tanta
comoção no lugar e repercutiram nos debates políticos entre liberais e
conservadores na Assembléia Legislativa de São Paulo e em jornais da Corte do
Rio de Janeiro — figuravam como uma sina plenamente previsível já no início do
povoamento da região nordeste de São Paulo. Segundo o autor:
No princípio, os assassinatos e um grande número de outros
crimes se multiplicaram de maneira assustadora no seio da
nova colônia, que abrigava, como já disse, numerosos
aventureiros e homens perseguidos pela justiça. À época de
minha viagem [1819] as coisas não tinham mudado muito.
Franca ainda era considerada um repositório de homens
perigosos e mal afamados, mas o então governador da
província, João Carlos Augusto d’Oeynhausen estava
tomando severas medidas para impedir novas desordens.
Talvez essas medidas tenham tido, momentaneamente, bons
resultados. Todavia, se mesmo depois de terem decorrido
alguns séculos e uma longa série de revoluções cada povo
ainda conserva alguns traços de sua origem, como poderiam
deixar de persistir numa segunda e terceira geração os
costumes de seus antepassados numa população
extremamente escassa, perdida no meio do sertão sem
nenhuma possibilidade de recuperação, e sobre a qual as leis
e a polícia não poderiam se fazer sentir a não ser muito
fracamente?
129
Por que tantas referências a uma suposta gênese criminosa de
Franca? Talvez, um dos caminhos possíveis para a elucidação desta
pergunta possa estar nos textos do mesmo viajante a respeito de
localidades próximas à Franca por ele visitadas na Província de Minas
Gerais.
O naturalista francês permaneceu no Brasil entre os anos de 1816 e
1822, quando voltou para a França. Em suas viagens pelas províncias do
Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, Saint-Hilaire colheu amostras da fauna, da flora, observou a
geografia, nomeou regiões e produziu análises quase sempre explicitamente
comparativas entre os costumes dos “campônios franceses” e os dos
moradores dos sertões brasileiros. Quando passou por Franca em 1818,
Saint-Hilaire voltava de uma longa peregrinação pelos sertões de Minas
129
SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1976), op.cit, p. 88.
Gerais e Goiás
130
. Esta viagem havia principiado no Rio de Janeiro, de onde
o naturalista partiu com destino às nascentes do Rio São Francisco, na
Serra da Canastra em Minas Gerais.
Após percorrer a fase inicial do trajeto, na altura de São João Del Rei,
Saint-Hilaire notou uma mudança na paisagem e nos costumes dos
moradores em relação a outras regiões por ele visitadas em Minas Gerais.
Ao chegar à propriedade do Capitão-Mor João Quintino de Oliveira, o
viajante observou uma grande quantidade de gado vacum, carneiros e
porcos. Soube ainda, que numa negociação de porcos para o Rio de Janeiro
no ano anterior o proprietário teria arrecadado uma significativa quantia em
dinheiro. Contudo, na fazenda, a casa de residência do Capitão-Mor parecia
incomodar o viajante. Assim a descreveu Saint-Hilaire: “Ficava situada,
como as senzalas, ao fundo de um vasto terreiro e rodeada por mourões que
tinham a grossura de uma coxa e altura de um homem, tipo de cercado
muito em uso na região
131
”.
Impressão semelhante teve Saint-Hilaire em relação a casa de Dona
Tomásia, que se localizava adiante, no caminho entre o povoado de Pium-i e
a Serra da Canastra:
A propriedade era de extensão considerável e vi aí vários
escravos, gado vacum e numerosos porcos. Entretanto, em
meio a várias casinhas que serviam de celeiros e senzalas, a
dona da fazenda ocupava uma miserável cabana construída
sem os mínimos requisitos de estética e conforto, cujo
mobiliário consistia apenas numa mesa e alguns bancos
rústicos
132
.
Um pouco adiante, ainda na mesma região, Saint-Hilaire descreveu de
forma semelhante a propriedade de João Dias:
A fazenda tinha um terreiro imenso cercado de paus e vários
casebres onde dormiam os escravos e se guardava a
colheita, etc., mas procurei em vão pela casa do dono. Ele
também morava numa miserável choupana, que em nada
130
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio S. Francisco. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975 e Viagem à Província de Goiás. Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
131
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do rio S. Francisco. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p. 75.
132
Ibidem, p. 75.
diferia das outras. Não fui mal recebido, mas tudo que
puderam fazer por mim foi me instalarem numa pequena forja
varrida pelos ventos por todos os lados e onde eu e meus
acompanhantes mal nos podíamos mexer
133
.
Saint-Hilaire ficou indignado com as acomodações que lhe ofereciam
pelo caminho até a cidade de Paracatu. Seu “passe real”, bem como as
cartas de recomendação por ele solicitadas a influentes proprietários e
autoridades locais de governo nada valeram no percurso que se seguiu à
região de São João Del Rei. Após dormir acompanhado por pulgas e porcos
e ter sucessivos tratos descumpridos por ajudantes que, depois de serem
contratados, simplesmente desapareciam, Saint-Hilaire anotou suas terríveis
impressões a respeito das áreas de Minas Gerais por ele percorridas até a
chegada aos limites da Província de Goiás. “Creio poder afirmar, entretanto,
que os habitantes da região que atravessei para chegar a essa cidade
[Paracatu] são constituídos pela escória da Província de Minas Gerais
134
”.
Muitas das críticas empreendidas pelo viajante aos costumes dos
moradores daquela região de Minas Gerais integraram as concepções que
mais tarde informariam os juízos por ele emitidos quando atingiu a Província
de São Paulo e teceu seus comentários pouco lisonjeiros a respeito de
Franca. Especificamente em relação às opiniões do autor a respeito da
gênese criminosa de algumas localidades, é relevante destacar as
observações por ele produzidas a respeito de duas localidades do trajeto
entre São João Del Rei e Paracatu — os arraiais de Formiga e Araxá.
No Arraial de Formiga, Saint-Hilaire observou que as principais
atividades eram a criação e o comércio de suínos. Realizava-se também na
localidade o intercâmbio de produtos entre diferentes regiões. A localidade,
“situada à entrada do sertão” — no sentido de quem ia da Corte para o
interior — tinha, segundo o autor, um comércio ativo com o Rio de Janeiro, e
constituía-se em uma passagem obrigatória para as caravanas que partiam
de Goiás. Encerrando seu relato a respeito da população do lugar o viajante
asseverou:
133
Ibidem, p. 99.
134
SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1975) op. cit, p. 118.
Parece também que muitos criminosos, perseguidos pela
Justiça, vêm procurar refúgio nesse lugar afastado,
contribuindo assim para aumentar a sua população. Seus
habitantes não gozam absolutamente de uma boa reputação, e
na época em que estive lá houve um assassinato motivado
pelo ciúme. O criminoso fugiu com sua amante, que não
passava de uma prostituta, e não me consta que tenha sido
tomada qualquer providência para prender o culpado
135
.
A respeito de Araxá, localidade relativamente próxima de Franca,
Saint-Hilaire principia sua narrativa explicando que a região, onde mais tarde
seria fundado o Arraial, foi antes um lugar procurado por inúmeros escravos
fugitivos de diversas regiões de Minas Gerais. Segundo o viajante, o
povoamento da região teria sido fruto da disseminação, pelo restante da
província mineira, da notícia de que ali havia terras sem donos e boas
pastagens naturais onde era possível criar gado sem despender dinheiro
com a compra de sal. Segundo Saint-Hilaire, quando essas notícias se
espalharam, a região foi tomada por inúmeros indivíduos fugitivos da
justiça. Criminosos, lavradores de terras exauridas e devedores em geral
afluíram para a região.
As famílias se reuniram em grupos para que pudessem
atravessar com mais segurança regiões despovoadas até
chegarem ali. Entretanto mesmo os homens que tinham a
consciência limpa descambaram para o crime tão logo se
viram longe de qualquer tipo de vigilância à época em que a
nova colônia começou a se formar os assassinatos se
tornaram freqüentes
136
.
Como é possível observar, uma região de passagem, como do Arraial
de Formiga, e uma localidade situada nas proximidades das fronteiras entre
Minas Gerais e São Paulo, como Araxá, não escaparam da associação com
lugares perigosos e mal afamados. Franca, como aqui já foi dito, reunia
estas duas características. Franca e Araxá inclusive partilharam um mesmo
movimento migratório mineiro. Mas foi, contudo, a sedição capitaneada por
Anselmo Ferreira de Barcelos, que certamente conferiu maior destaque à má
fama do nordeste Paulista no texto do viajante francês.
135
SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1975) op. cit, p. 91.
136
Ibidem, p. 128.
Ao voltar para França, Saint-Hilaire cotejou suas anotações com farta
bibliografia, em geral outras crônicas de viagens, dentre as quais figurou a
“Memória sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá” de Luiz
D’Alincourt, citada no início deste tópico, e relatórios administrativos. Entre
a documentação de governo consultada por Saint-Hilaire a respeito dos
“sucessos da Vila Franca” consta o “Discurso recitado pelo presidente da
Província de São Paulo, Manoel Machado Nunes [proferido] no dia 07 de
janeiro de 1840”.
O presidente abriu o item “tranqüilidade pública” de seu relatório
ponderando a respeito da situação da Vila Franca do Imperador desde a
última sessão legislativa. Quase dois anos após a sedição, constava que as
autoridades do lugar não tinham sido novamente desrespeitadas.
Entretanto, afirmou o presidente não ter motivos para acreditar que a
tranqüilidade pública estava ali restabelecida. Os sediciosos ainda não
estavam punidos e os cargos públicos e eletivos ainda não estavam
ocupados pelos “homens bons do lugar”.
As informações recebidas da única autoridade civil cuja presidência
creditava confiança eram insuficientes e, por muitas insistências do
Governo Imperial, foram solicitados relatórios mais detalhados ao juiz de
direito da 7ª Comarca, criada em 1839 com o nome de “Comarca da Franca”,
cuja sede funcionou até o julgamento de Anselmo e seus aliados na Vila de
Batatais (Ver no mapa da página 70 a vasta região que se desmembrou do
município de Franca, com a criação da Vila de Batatais – Desmembramento
1). No entanto, a autoridade judicial, então recentemente constituída
abandonaria a região dias depois de ter enviado seu relatório ao presidente
para ocupar uma cadeira no legislativo provincial. Problema este que,
segundo o presidente da província Machado Nunes: “só redobra a minha
ansiedade”.
Os acusados pela sedição, julgados na Vila de Batatais, foram todos
absolvidos por unanimidade. Os cargos públicos da Vila Franca
permaneciam incompletos e desorganizados por não existir, segundo o
presidente, uma autoridade provincial que pudesse auxiliá-lo nas escolhas,
embora alguns nomes tenham sido remetidos à presidência pela Câmara
dos Vereadores. Machado Nunes emitiu seu parecer final, o qual,
certamente, muito contribuiu para a formação do juízo do viajante Saint-
Hilaire a respeito do evento:
Receio, Senhores, que os hábitos de revolta se vão ali
enraizando, porque a sedição obteve um completo triunfo, e
tão completo, que seus autores podem dizer que o Governo
lhes mandou daqui força, para dela disporem, como lhes
aprouvesse, e vós sabeis que eles agradeceram o socorro
com o tom da mais íntima convicção de que tinham bem
merecido de seu país
137
.
Mesmo com o passar de décadas, a sedição de 1838 ainda compunha,
em relação à região de Franca, o universo de referências dos diferentes
homens que por ali passaram e deixaram registradas suas impressões. Em
geral, as narrativas principiam por simpáticas anotações a respeito da
pureza do ar, da amenidade do clima e da beleza das colinas que marcam o
relevo. No entanto, os visitantes logo fazem um alerta a respeito da má fama
e dos perigos do lugar.
Alfredo de Escragnolle Taunay, futuro Visconde de Taunay, que mais
tarde escreveria o conhecido romance Inocência (1872) com base em suas
observações pelos sertões, partiu da Corte em 1865, com um grupamento de
militares, encarregado de traçar um mapa detalhado da geografia, da fauna,
da flora, bem como da situação das pontes, estradas e povoados de todo o
percurso do Rio de Janeiro até o sul da Província do Mato Grosso, onde
participou do famoso episódio da Guerra do Paraguai, que descreveria em A
retirada da Laguna (1871). A tropa passou pela região de Franca no dia 9 de
julho de 1865, onde pernoitou. Em seu relatório, intitulado Marcha das
forças, o engenheiro militar reafirmou as opiniões de seus antecessores e
deixou registrado: “Cumpre dizer que a Franca foi sempre reputada lugar de
grandes distúrbios e assassinatos
138
”.
137
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Manoel Machado Nunes) do
ano de 1840, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/975/000003.html, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/975/000004.html e
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/975/000005.html.
138
TAUNAY, Alfredo de E. Marcha das Forças: (Expedição de Matto Grosso) 1865-1866. Do Rio de
Janeiro ao Coxim. São Paulo: Melhoramentos, 1928, originalmente publicado em 1867.
A pecha de lugar perigoso não deixaria, durante muito tempo, de ser
associada àquela “boca de sertão” que teve papel importante no
povoamento de outras regiões localizadas no atual oeste de São Paulo, na
direção do Mato Grosso do Sul. Contudo, apesar de persistente, a má fama
foi apenas um dos elementos constitutivos do município de Franca nos
oitocentos. As atividades ali desenvolvidas, os hábitos e costumes levados
para a região pelos primeiros povoadores mineiros, compuseram
fundamentalmente o ambiente que cercava os mundos de livres e escravos
na região, e consequentemente a prática de crimes. Portanto, é a respeito
deles que falarei a seguir.
2.1.2 – Costumes mineiros em terras paulistas
Os carros puxados a boi [...] São casas ambulantes, que
muitas vezes vão transpondo para grandes distâncias
famílias emigrantes com todos os seus haveres, seus
móveis, animais e aves domésticas. Logo que o sol
descamba do meio dia fazem alto à beira de qualquer
córrego, onde haja abundante pastagem, desjungem os bois,
e aí estabelecem durante a metade do dia e durante a noite
uma cômoda e agradável vivenda, qual se continuassem
como sempre sua vida simples e uniforme. Bernardo
Guimarães. O Ermitão de Muquém (escrito em 1858 e
publicado em 1869).
Em fins do século XVIII, Minas Gerais assistiu ao desenvolvimento de
uma parte de sua economia, baseada na pecuária e na produção de
alimentos, que a marcaria, talvez, tanto quanto os tempos da mineração.
Essa transformação levou Minas a figurar, já nas primeiras décadas dos
oitocentos, como um dos maiores centros abastecedores de alimentos, e
como a região detentora da maior população escrava do Brasil
139
.
A criação extensiva de gado, entretanto, demandava vastas áreas.
Notícias a respeito de terras férteis e disponíveis nas regiões hoje ocupadas
pelo triângulo mineiro e pelo nordeste paulista levaram inúmeras famílias
interessadas nos “campos de criar” a se mudarem. Certamente, nas viagens
empreendidas pelos entrantes presenciou-se um ritual semelhante ao
descrito por Bernardo Guimarães no excerto que inicia este tópico. A partir
do sul de Minas e da Comarca do Rio das Mortes iniciou-se, nos finais dos
mil e setecentos, um fluxo migratório
140
que delineou fundamentalmente o
desenvolvimento de uma vasta região. A área ocupada pelo município de
Franca na época de sua fundação, em 1824, deu origem, ao longo dos anos,
139
Para um acompanhamento mais amplo dos desdobramentos da economia de Minas
Gerais no século XIX, Cf.: SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a
economia escravista de Minas Gerais no século XIX. In: Cadernos do IFCH, nº. 17, 1985;
LIBBY, Dougllas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista. Minas
Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988 e FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens
de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-
1830). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
140
A respeito da migração mineira para o nordeste de São Paulo Cf.: CHIACHIRI FILHO, José. op.
cit.; BRIOSCHI, Lucila Reis. Entrantes no sertão do Rio Pardo: o povoamento da Freguesia de
Batatais – século XVIII e XIX. São Paulo: CERU, 1991. Cf. ainda: BACELLAR, Carlos de Almeida
Prado ; BRIOSCHI, Lucila Reis (orgs.). Na estrada do Anhanguera: uma visão regional da história
paulista. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, 1999.
ao desmembramento e a criação de mais de três dezenas de cidades hoje
existentes no Estado de São Paulo
141
.
Os primeiros migrantes mineiros, contudo, não ocuparam uma terra
completamente desabitada. A região então conhecida como “Belo Sertão de
Goiás”, situada entre os rios Pardo e Grande, já havia recebido, desde o final
dos setecentos, moradores paulistas que desde o século XVIII foram se
estabelecendo em pousos às margens da “Estrada dos Goiases” — um
caminho aberto por bandeirantes que, como aqui já mencionado, se
transformou na principal rota de ligação entre a região Centro-Oeste do país
e o litoral de São Paulo
142
.
Entretanto, predominantes na população local, principalmente a partir
da primeira década dos oitocentos, os migrantes mineiros levaram consigo
para o nordeste de São Paulo as práticas de sua terra. Por “gosto e hábito”
dos moradores, a criação de gado vacum, também comum em outras
regiões paulistas, perpetuou-se como a principal atividade desenvolvida em
Franca durante a maior parte dos oitocentos. O número pequeno de vacas,
contudo, mantinha os campos, vastos e de boa qualidade, pouco povoados.
Nos anos cinqüenta dos oitocentos, alguns pecuaristas tentaram melhorar
141
O primeiro desmembramento do município de Franca figura como conseqüência das
duas invasões de homens armados à Vila Franca, chefiadas por Anselmo Ferreira de
Barcelos, em 1838. Para que se tornasse a sede da nova comarca onde Anselmo seria
julgado, Batatais (então Bom Jesus da Cana Verde) foi elevado à condição de vila
(município) em 1839. Administrativamente independente do município de Franca, essa
região (indicada no mapa “Áreas desmembradas do município de Franca” localizado no
tópico anterior deste capítulo com o número 1) abarcou um território atualmente partilhado
por quinze cidades, são elas: Batatais, Cajurú, Santo Antonio da Alegria, Cássia dos Coqueiros,
Santa Cruz da Esperança, Nuporanga, Orlândia, Guaíra, Morro Agudo, São Joaquim da Barra,
Ipuã, Jardinópolis, Brodósqui, Altinópolis e Sales Oliveira. O segundo desdobramento do
município de Franca ocorreu três décadas mais tarde, em 1873, quando foi criado o
município de Santa Rita do Paraíso, atual Igarapava a partir da qual surgiram posteriormente
as cidades de Rifaina, Pedregulho, Buritizal e Aramina. O terceiro e o quarto
desmembramentos do município de Franca, ocorridos ainda antes da abolição da
escravidão (respectivamente representados pelos números 3 e 4 no mapa), ocorreram em
1885, quando foram criadas as atuais cidades de Patrocínio do Sapucaí (hoje Patrocínio
Paulista), que por sua vez deu origem a Itirapuã e o município do Carmo da Franca
posteriormente denominado Ituverava, que deu origem aos municípios de Miguelópolis e
Guará. O último desmembramento circunscreveu área do município de Franca à região do
mapa identificada com o número 5. Nos dias atuais essa região corresponde ao território
dos municípios de Franca, Restinga, Cristais Paulista, Jeriquara, São José da Bela Vista e
Ribeirão Corrente. SANTOS, Wanderley dos. Quadro demonstrativo do desmembramento do
município, Diário da Franca (Suplemento Especial de Aniversário da Cidade), Franca, 28 de
novembro de 1991 e BACELAR, Carlos de Almeida Prado ; BRIOSCHI, Lucila Reis, op. cit.
(1999).
142
CHIACHIRI FILHO, José, op, cit.
as raças e preparar pastagens artificiais para os tempos de seca
143
. Dez anos
mais tarde, era possível perceber que esse esforço havia aumentado o
número de bois e vacas nas pastagens. No entanto, o aprimoramento da
qualidade do gado não surtiu o resultado desejado. No decorrer do século, a
população local aumentou e sua preferência de consumo, como sempre
ocorreu, recaía exatamente sobre as vacas, as quais permaneceram
inferiores ao número de bois. Muitas fêmeas eram ainda misturadas ao
restante do gado que, junto com boiadas provenientes de Mato Grosso,
Goiás e da parte ocidental de Minas Gerais (região do atual triângulo
mineiro) eram vendidos para a Comarca do Rio das Mortes — também em
Minas Gerais — e para o Rio de Janeiro. Em 1860 foram comercializadas na
região cerca de mil cabeças de gado vacum, estimava-se que apenas
trezentas ou quatrocentas delas eram originárias de Franca
144
. Ou seja, na
atividade pecuária a região de Franca figurava tanto como um criatório
modesto quanto como um entreposto comercial.
O gado demandava a edificação de instalações apropriadas ao seu
manejo. Currais, barracões e porteiras eram construídos por homens livres e
escravos que trabalhavam como oficiais de carpinteiros, ferreiros e
taipeiros. Nos pastos, era preciso perfurar longos buracos, verdadeiras
trincheiras, que cumpriam a função de impedir que bois e vacas passassem
de um lugar a outro — os valos. Regulamentados nas posturas municipais,
os valos possuíam dois metros e sessenta e quatro centímetros de diâmetro
e outros dois metros de profundidade. Nesse trabalho empregava-se muito
recorrentemente o trabalho dos escravos, os quais nas propriedades de
seus senhores ou alugados a terceiros se punham a perfurar estes longos
fossos
145
.
Para a criação de gado também era necessário o sal. Comprado em
localidades distantes, o comércio de sal compunha o principal fluxo de
trocas de mercadorias excedentes produzidas na região. Os poucos artigos
produzidos para além do consumo, seguiam para Campinas pela Estrada
dos Goiases (depois conhecida como “estrada do sal”) em carros de boi
143
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
144
Ofícios Diversos Franca, lata 1022, pasta 1, documento nº. 1-C, de 24/01/1861, DAESP.
145
FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit.
tocados por carreiros livres (sobretudo libertos) e escravos. Os carros
retornavam posteriormente para Franca, carregados de sal a ser usado na
região e redistribuído para outras localidades do interior do país
146
.
Entre os animais criados na região havia ainda alguns cavalos e
muares destinados a suprir as necessidades gerais de transportes. Porém,
muitos cavalos, mulas e bestas usados na região eram comprados na cidade
paulista de Sorocaba
147
. Alguns carneiros também eram criados e sua lã
utilizada na manufatura de tecidos grosseiros destinados ao uso dos
moradores
148
.
Em meados dos oitocentos, os principais itens produzidos pela
indústria manufatureira local ainda eram semelhantes aos que descreveu
Luiz D’Alincourt em 1818
149
. Os produtos limitavam-se ao artesanato feito
com couro, à tecelagem de algodão, ao qual se dava o nome de “da terra”, a
produção de tecidos chamados “de minas”, e de outros artigos fabricados
com lã. O trabalho em teares e rodas grosseiras nas casas de famílias era
destacado como a atividade na qual, em geral, se ocupavam as escravas no
tempo que restava após o cumprimento das atividades domésticas.
Especialmente do tecido de algodão chamado “da terra”, produzia-se pouca
quantidade de excedentes que eram exportados para Campinas
150
. Os
demais tecidos eram destinados à produção de colchas e roupas, as quais
não suplantavam as necessidades dos moradores.
Nos anos cinqüenta foram encontrados alguns diamantes no Ribeirão
do Carmo, no Rio Sapucahy-Mirim e no Ribeirão Santa Bárbara, todos nos
limites do município
151
. Mas sob o ponto de vista da administração
municipal, o afluxo de muitos desconhecidos para a região, as constantes
reclamações a respeito de invasões de terras, animais mortos, roubos,
146
OLIVEIRA, Lélio Luiz. Economia e história em Franca: século XIX. Franca: UNESP-FHDSS:
Amazonas Prod. Calçados S/A, 1997. Outro estudo que também toca no tema da economia local
nos oitocentos é: TOSI, Pedro Geraldo. Capitais no interior: Franca e a história da indústria
coureiro-calçadista (1860-1945). 1998. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Sobretudo - Capítulo II – “Clube da lavoura e
comércio”.
147
Ofícios Diversos Franca, lata 1022, pasta 1, documento nº. 1-B, de 24/01/1861, DAESP.
148
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
149
D’ALINCOURT, Luís, op. cit.
150
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
151
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
furtos e conflitos que culminavam em ferimentos e assassinatos, não
chegaram a compensar as pedras garimpadas
152
.
A agricultura contava com um clima apropriado com estio úmido e
quente na primavera e um outono seco e temperado. Contudo, em 1871
diziam os vereadores que as técnicas empreendidas eram as mesmas dos
primeiros anos do povoamento
153
. As ferramentas eram simples: machados,
foices e enxadas, manejadas pelo braço da população em geral (livres e
escravos) e auxiliadas exclusivamente pelo fogo, usado em larga medida no
trabalho de limpeza e preparação das terras para o plantio. As lavouras de
feijão, arroz e mandioca compunham a paisagem, mas apenas o milho
ocupava grande distinção, pois era usado como alimento para um dos
produtos cujo comércio era bastante significativo — o suíno. Muitos porcos
eram vendidos vivos, principalmente para o Rio de Janeiro. Outros tantos,
feitos em toucinho, eram enviados para Campinas e para a sede da província
em São Paulo
154
. Nos anos setenta, os vereadores estimavam que quatro
quintos das propriedades rurais de Franca se dedicavam à criação de
porcos
155
.
Os cultivos de cana, algodão e café concentravam a maior expectativa
de melhora dos rendimentos do município. Desde o ano de 1827, as
autoridades locais reclamavam da precariedade dos engenhos de cana, os
quais muito antigos, nunca produziram além do necessário para o
consumo
156
. Em meados do século XIX, nada parecia muito mudado. Nos
únicos três ou quatro engenhos bem montados produzia-se algum açúcar,
rapadura e água-ardente. Contudo, nessa época, para suprir todo o consumo
local de produtos feitos com cana era necessário comprar também os
fabricados no município de Jacuí, na Província de Minas Gerais
157
. Uma
década mais tarde noticiavam os vereadores alguma melhora no ramo
“sacarino”, pois já existiam, além dos engenhos antigos (tocados por bois),
152
Ofícios Diversos Franca, lata 1022, pasta 1, documento nº. 1-B, de 24/01/1861, DAESP.
153
Ofícios Diversos Franca, lata 1023, pasta 1 , documento nº. 5, de 14/01/1871, DAESP.
154
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
155
Ofícios Diversos Franca, lata 1023, pasta 1 , documento nº. 5, de 14/01/1871, DAESP.
156
Ofícios Diversos Franca, lata 1017, pasta 1, documento nº. 43, anexo 77, de 10/03/1827,
DAESP.
157
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
oito novos equipamentos dotados de cilindros movidos pela força da água,
cuja produção gerava um pequeno lucro aos proprietários
158
. O algodão era
plantado em boa quantidade, sobretudo nas margens do Rio Grande. Além
da produção de tecidos para o suprimento local, vendiam-se algumas varas
para outras localidades, porém nenhum produtor se destinava com
exclusividade a esta produção, de maneira que ela pudesse ser
aprimorada
159
. No final dos anos cinqüenta o café que se produzia na região
era tido como prodigioso, mas, segundo os vereadores, a necessidade de
muitas roçadas nos primeiros anos para o combate à abundante vegetação
que rapidamente crescia em tempos chuvosos, as grandes distâncias entre
as propriedades e o número reduzido de trabalhadores disponíveis numa
localidade que sempre possuiu poucos escravos fazia com que os cafeeiros
fossem tidos como acidentais em 1856
160
e presentes, como “promessa de
uma grande safra”
161
apenas no alvorecer da década de oitenta do século
XIX.
No entanto, segundo os vereadores de meados do século, um dos
problemas mais sérios para o desenvolvimento das plantações na localidade
era um costume antigo: a necessidade a qual se impunham todos aqueles
que dispunham de condições de produzirem tudo o que julgavam necessário
para o consumo das famílias no interior de suas propriedades. Cada fazenda
cultivava sua cana, seu algodão, seu milho, seu arroz, seu café, seu feijão,
criava seus porcos, seus bois, suas vacas e seus carneiros, produzia sua
carne, sua lã, seu leite, seus queijos, seus tecidos, suas rapaduras, suas
farinhas e seus polvilhos. Tudo “isto em uma grande superfície e com
poucos braços”
162
.
Essa descrição das principais atividades desenvolvidas na região,
composta a partir dos relatos de vereadores — alguns deles filhos dos
primeiros entrantes e de outros moradores que afluíram para a região no
decorrer dos oitocentos — sugere certa impaciência com a perpetuação,
durante décadas, em todos os ramos (pecuária, comércio, indústria
158
Ofícios Diversos Franca, lata 1022, pasta 1, documento nº. 1-B, de 24/01/1861, DAESP.
159
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
160
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
161
Ofícios Diversos Franca, lata 1023, pasta 3 , documento nº. 48, de 16/02/1878, DAESP.
162
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 2 , documento nº. 75, de 31/12/1856, DAESP.
manufatureira e agricultura), dos mesmos hábitos, das mesmas técnicas e
dos mesmos procedimentos dos primeiros povoadores do lugar — homens
que realizavam todo o trabalho que consideravam necessário em suas
chácaras, sítios e fazendas com poucos escravos.
2.1.3 – Possuir poucos escravos: uma tranqüilidade e um problema
[...] tenho a honra de levar ao conhecimento de Vossa
Excelência que nesta Comarca a população não se mostra
receosa de insurreição de escravos. Segundo informações
que tenho dela não há o menor perigo, não só porque o
número de escravos não é tão avultado como em outros
lugares da Província, e pelo contrário ele é limitado e muito
inferior à população livre; como também porque o gênero de
trabalho em que são empregados não é tão pesado que os
leve a cometer o crime de insurreição. Parece-me, pois que
sobre este objeto nenhuma providência é necessária. Deus
guarde a Vossa Excelência. Franca do Imperador 12 de
outubro de 1854 [Ofício de resposta enviado pelo Promotor
Público da Comarca de Franca Evaristo de Araújo Cintra ao
Presidente da Província de São Paulo]
163
.
Embora os anos 50 dos oitocentos tenham marcado apenas o início
das preocupações do Executivo paulista com possíveis levantes de
escravos, em Franca, como sugere a opinião do Promotor, as revoltas
coletivas de cativos não deixaram registros na documentação do judiciário,
salvo uma suspeita. O único inquérito policial para a apuração de um crime
de insurreição foi instaurado em 1865. No entanto, após a prisão de vinte
escravos — incluindo um que nem mesmo constava no mandado — e um
ferreiro livre morador em Minas Gerais, o Promotor concluiu que, apesar da
existência de indícios, os depoimentos das testemunhas impunham o
encerramento do processo
164
.
Contudo, se por um lado ter poucos escravos na segunda metade dos
oitocentos podia ser sinônimo de tranqüilidade na Província de São Paulo,
por outro lado era também um empecilho. Nas décadas de 1860 e 1870,
quando alguns proprietários locais decidiram incrementar as lavouras de
suas fazendas escolhendo um produto para cultivar em maior escala,
parecia ser tarde. O país já se encontrava às voltas com os problemas
163
Ofícios Diversos Franca, lata 1021, pasta 1 , documento nº. 99, de 12/10/1857, DAESP.
164
Cf. FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. Capítulo 2 – “Uma insurreição sem escravos”, p. 98-
103
desencadeados pelo fim do tráfico transatlântico de escravos e a elevação
do preço da mão-de-obra em geral inviabilizava quaisquer projetos. Os
relatórios dos vereadores são enfáticos quanto a essa questão. Em 1861
dizia a Câmara de Franca à Presidência da Província de São Paulo:
A agricultura não tem progredido, existe como estacionária
por causa da falta de braços, e de não ter se podido ainda
introduzir melhoramentos no sistema agrícola, que é o
mesmo que era outrora, quando o braço escravo obtido a
preços razoáveis, dispensava o lavrador de estudar o
trabalho, os trabalhadores livres, apesar de serem poucos,
que às vezes se prestam ao pesado serviço da lavoura,
exigem uma diária muito alta em relação ao serviço que
prestam e daí vem a elevação dos preços dos gêneros
alimentícios [...]
165
.
Dez anos depois, o texto dos vereadores era quase o mesmo: “[...] a
causa da decadência da lavoura provém da falta de braços escravos e da
elevação extraordinária do preço dos jornais dos trabalhadores livres, e da
dificuldade de se achar esses mesmos trabalhadores”
166
.
Ainda que insuficientes para a expansão das atividades
desenvolvidas, os cativos figuravam entre os bens mais valiosos dos
proprietários locais até o fim dos oitocentos. A média de escravos
possuídos por senhor na região durante todo o século XIX ficou sempre
próxima dos cinco cativos. Entre os inventariados ela era de 4,8 entre 1822 e
1830, e subiu a 5,3 entre 1875 e 1885, embora, no mesmo período, a
proporção de donos de escravos entre os proprietários locais tenha caído
pela metade
167
.
No último ano da década de cinqüenta dos oitocentos, a casa de Francisco
Marques do Reis era o exemplo mais recorrente das propriedades da região que
possuíam escravos. A fazenda ficava no Distrito do Chapadão, seu proprietário
não era um homem abastado, criava gado e produzia alguns mantimentos.
Principal escravo da fazenda, Antonio era filho dos escravos João de Nação e
Delfina que pertenciam a Antonio do Couto Parreira, também morador em Franca.
Com apenas dois anos de idade, Antonio foi arrematado por Francisco Marques
165
Ofícios Diversos Franca, lata 1022, pasta 1, documento nº. 1-C, de 24/01/1861, DAESP.
166
Ofícios Diversos Franca, lata 1023, pasta 1 , documento nº. 5, de 14/01/1871, DAESP.
167
OLIVEIRA, Lélio Luiz. op. cit.
dos Reis quando se realizou a partilha no inventário do senhor de seus pais
(Antonio do Couto Parreira). Após ser vendido, Antonio permaneceu escravo de
Francisco Marques dos Reis por mais de vinte e cinco anos. Além de Antonio, seu
senhor possuía na propriedade uma família de escravos: João Crioulo de 16 anos,
Joaquim Crioulo de 15 anos, José Crioulo de 13 anos e Manoel Crioulo de 12
anos, todos, filhos de Antonio de Nação (que era conhecido como Pai Antonio ou
Pai Velho) e Maria de Nação. Oficial de carpinteiro, mais velho que os cativos
jovens, mais vigoroso e altivo que os cativos de nação, Antonio era muitas vezes
considerado pelo senhor como o responsável pelos trabalhos executados pelos
outros escravos da propriedade.
Em 1859, Francisco Marques dos Reis determinou a seus cativos que
trabalhassem na perfuração de um valo que dividiria os pastos de sua propriedade
com os da fazenda vizinha. Contudo, o senhor alertou seus escravos que antes de
dirigirem-se para o trabalho no pasto deveriam cumprir suas obrigações do
terreiro. Para se ter uma idéia do que eram essas obrigações do terreiro, basta
lembrar que as propriedades da região produziam o maior número possível de
gêneros necessários ao consumo de seus moradores. Os senhores podiam
determinar diferentes trabalhos aos escravos, tais como: ordenhar vacas,
descascar arroz, moer milho no pilão ou no monjolo, bater feijão, alimentar porcos,
patos e galinhas, secar, descascar e torrar algum café, colher algodão para os
tecidos, cuidar da horta, matar e limpar animais para o consumo, reparar currais e
outras benfeitorias da fazenda.
Entretanto, na manhã do dia 19 de abril, Antonio pegou suas ferramentas e,
acompanhado pelos outros escravos homens da propriedade, seguiu bem cedo
diretamente para o valo. Furioso, o senhor chegou ao lugar e começou vociferar e
estapear Pai Antonio, o escravo mais velho da casa. Dizia o senhor que os cativos
não cumpriam as obrigações do terreiro e iam direto para o valo a fim de
acabarem a tarefa do dia mais cedo. Castigar com bofetões e pancadas escravos
armados com facas e ferramentas, com quem conviveram durante décadas, era
uma situação comum entre os senhores da região. Vendo o “pai velho” ser
castigado, Antonio disse ao senhor que eles voltariam para fazer o trabalho não
realizado. Ouvindo isso, o senhor quis bater em Antonio com uma das enxadas. O
cativo levantou sua enxada e empurrou o senhor para o interior do valo. Em
seguida, saltou sobre o senhor e cravou-lhe a faca no pescoço quatro vezes.
“Já que a perdição está feita vamos tirá-lo daqui
168
”. O pai velho ainda quis
repreender Antonio, mas foi por ele ameaçado com a mesma faca. Após
planejarem deixar o corpo no valo até a noite e depois coloca-lo junto a seu cavalo
na divisa dos pastos, “onde seu senhor sempre brigava com outros por amor do
campo
169
”, Antonio e João Crioulo (o filho mais velho de Pai Antonio) resolveram
logo esconder o corpo no mato antes que alguém os visse. Pegaram um cipó e
uma estaca, usados para marcar o valo, e arrastaram o corpo atravessando uma
estrada que ficava acima do pasto.
Nesse momento, passou pelo local um liberto campeando algumas bestas.
O homem era Bernardo Crisóstomo de Oliveira, camarada de tropa, empregado
do proprietário da fazenda vizinha que, ao ver a cena perguntou aos escravos o
que era aquilo. Eles responderam que não era nada. Enquanto Bernardo,
montado em seu cavalo, contornou o valo para verificar o que estava
acontecendo, Antonio e João esconderam o corpo no mato e voltaram para a casa
da senhora sem nada lhe contar. O pai velho e os cativos menores continuaram a
trabalhar. Embora sem conseguir encontrar o corpo, Bernardo foi à cidade dar
parte do que tinha visto.
Descobertos, todos os cativos foram inicialmente presos. Apenas Antonio
Crioulo, João Crioulo e Joaquim Crioulo foram levados a julgamento. A estratégia
da defesa de fazer recair apenas sobre Antonio a culpa pelo assassinato do
senhor surtiu efeito. O cativo mais jovem, Joaquim Crioulo, foi absolvido. Seu
irmão, João Crioulo foi condenado, como cúmplice de Antonio, a receber duzentos
açoites e carregar uma pega de ferro no pé por seis meses.
Contra Antonio Crioulo, além do assassinato, pesavam várias acusações de
ter anteriormente convidado seus parceiros para matarem o senhor. Segundo o
primeiro depoimento de Antonio, negado por ocasião do julgamento, os problemas
com o seu senhor teriam começado na época da última “planta de milho”, quando
ele foi acusado pelo roubo de uma moeda de ouro. Mesmo apenado segundo a lei
de 1835, que inicialmente não admitia nenhum recurso, Antonio foi beneficiado por
168
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 523, cx. 17, folha 05, 1859, Arquivo
Histórico Municipal de Franca (A partir desta nota identificado como AHMUF).
169
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 523, cx. 17, folha 05, 1859, AHMUF.
uma mudança na legislação realizada em 1854 que permitiu aos cativos o recurso
ao Poder Moderador
170
. Entretanto, a Clemência Imperial foi negada. A última
execução de escravos em Franca tinha ocorrido vinte e três anos antes, em 1837,
quando os escravos José Crioulo e Antonio Africano foram enforcados pela morte
de seu senhor Caetano Barbosa Sandoval
171
. Certamente acreditou-se na Corte
que já era tempo de se consumar, no extremo nordeste da província paulista,
outra sentença exemplar. O escravo Antonio Crioulo expirou na forca na noite de
vinte e seis de novembro de 1860.
O caso do cativo Antonio tem grande importância para o entendimento
da relação dos senhores com seus escravos no Município de Franca. O
assassinato do proprietário durante o trabalho é representativo do tipo de
conflito mais comum entre os cativos e seus proprietários na região. A
fazenda onde Antonio e seus companheiros trabalhavam e a origem de cada
um deles é também exemplar em relação às propriedades que possuíam
escravos no município. A presença do liberto Bernardo, camarada que
trabalhava para o dono da fazenda vizinha, completa o cenário, onde muitos
escravos também trabalhavam em companhia de libertos e livres.
Contudo, se temos aqui elementos recorrentes na região, é necessário
destacar a existência de propriedades que, apesar de escaparem à regra,
também integravam a paisagem local. Uma das exceções entre os
proprietários de escravos do Município de Franca foi o Major Manoel
Claudiano Ferreira Martins. Homem abastado para os padrões locais,
Claudiano era o maior senhor de escravos da região nos anos 1880.
Enquanto a média local era de cinco escravos por senhor, o Major possuía
quarenta cativos entre homens, mulheres e crianças
172
.
Declarado conservador e defensor do escravismo, Claudiano era um
dos principais desafetos dos partidários da abolição na região
173
. Seu nome
170
Código Criminal do Império do Brasil: Comentado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A. A. Da Cruz Coutinho, 1885,
nota 594 (c).
171
Ofícios Diversos Franca, lata 01019, pasta 1, documento 2A, DAESP.
172
Edital da Coletoria Provincial por ocasião do lançamento da cobrança de tributos sobre cativos.
Publicado no Jornal O Nono Distrito entre 15 de novembro e 20 de dezembro de 1884.
Hemeroteca do MHMF.
173
A presença de partidários do fim do cativeiro, vinculados ao movimento abolicionista local, foi
analisada, por meio de disputas manifestadas em artigos de jornais de Franca, no trabalho:
esteve envolvido em fraudes contra o Fundo de Emancipação
174
e em uma
denúncia por maus tratos que teriam culminado com a morte de um escravo.
O Major era um homem poderoso, e como tal, tinha como prática resolver
reservadamente os problemas ocorridos em suas propriedades. O escravo
morto, de que fala a denúncia, teria sido enterrado irregularmente na
fazenda, sendo necessário exumar o cadáver para a realização do auto de
corpo de delito. Consta que, enquanto pôde, Claudiano obstou a realização
do inquérito
175
.
O Major perdeu um de seus filhos precocemente. Em 23 de novembro de
1885, na casa que abrigava a máquina de beneficiar café da Fazenda Vanglória,
João Garcia Ferreira Martins costurava uma correia “sobre a roda da máquina”,
quando se desequilibrou e caiu no “caixão de separar café”. Simultaneamente, em
cima do rapaz, despencou uma pesada viga de madeira que se desprendera da
“beneficiadora” atingindo-o mortalmente na cabeça. Em seguida, as escravas que
trabalhavam no local correram para avisar o senhor que, no entanto, não teve
coragem de ver o filho morto. O rapaz foi sepultado no Cemitério Religioso da
Fazenda Jaborandy.
Um mês mais tarde houve um desentendimento entre duas escravas da
Fazenda, Firmina e Ricarda, situação esta, diante da qual a segunda cativa,
acreditando resguardar-se debaixo do poder de seu senhor, deu uma nova versão
para a morte de João Garcia, que incriminava outra cativa da fazenda, de nome
Firmina, como assassina
176
.
GOMES, Janaína Maria Vergara. Polêmicas do abolicionismo: Franca 1850-1888. 2001.Trabalho
de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Estadual Paulista. Franca.
174
Claudiano recebeu duas acusações: primeiro, por arrolar para a indenização alguns de seus ex-
escravos; depois por sobrevalorizar o preço de alguns de seus cativos. Ofícios Diversos Franca,
lata 1022, pasta 1, documento nº. 29, de 26/10/1861, DAESP.
175
Diversos casos de escravos torturados por seus senhores foram levados ao judiciário em
Franca. Cf. FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. Capítulo 2. Em especial, esta denúncia contra o
Major Manoel Claudiano Ferreira Martins, de 1885, foi localizada por Maria Helena Machado entre
a documentação dos ofícios da polícia, lotada no Arquivo do Estado de São Paulo. MACHADO,
Maria Helena P. T. op. cit. (1994), p. 74-75.
176
No município de Franca, durante o século XIX, as rés, tanto livres quanto escravas,
representavam uma pequena parcela em relação ao total geral de indiciados nos processos
criminais. Estes crimes foram especificamente analisados em: CALEIRO, Regina Célia Lima.
Mulheres e cotidiano na ordem escravocrata: a violência que se adivinha. 2004. Tese (Doutorado
em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte.
Mais uma vez o cemitério particular da fazenda foi visitado pelas
autoridades policiais e judiciárias de Franca para a exumação de um cadáver
sepultado sem a realização de nenhum exame. Descobriu-se que a vítima havia
falecido em razão de pancadas que tomou na cabeça. Apurou-se ainda, que a
posição em que o cadáver foi encontrado “no teatro do crime” não justificava a
causa dos ferimentos constantes no auto de corpo de delito feito por ocasião da
exumação.
Mais de uma vez Firmina foi interrogada e, por sua vez, acabou
incriminando a cativa Ricarda como sua cúmplice.
Perguntada se conheceu um filho de seu senhor de nome João?
Respondeu que conhecia e que já morreu.
Perguntada do que morreu esse seu senhor moço?
Respondeu que ela respondente o assassinara, dando-lhe com
uma mão de pilão uma pancada sobre os ouvidos, com a qual
caíra o mesmo ofendido, e que ela respondente, depois desta
pancada estando o mesmo atirado ao chão já nas agonias da
morte, ela respondente chamou sua companheira Ricarda para
precipitá-lo no caixão do separador da máquina
177
.
Segundo as demais testemunhas do processo — na maioria informantes
por serem também cativas, pois as testemunhas juradas apenas repetiram o que
destas ouviram em razão de não terem presenciado o crime —, o senhor moço,
no momento do delito, estava administrando o serviço das escravas na casa da
máquina de beneficiar café, sentado em uma mesa de separação, quando Firmina
aproximou-se sorrateiramente pelas costas do rapaz, armada com uma mão de
pilão e o matou. Em seguida, Firmina teria obrigado duas escravas menores
(Graciana e Roza) a colocar o corpo no caixão separador de café. Aterrorizadas
por terem presenciado o crime, as escravas cumpriram o que lhes foi mandado.
Em seguida Firmina instruiu todos os atos para que tudo parecesse um acidente,
obtendo sucesso, até que a escrava Ricarda resolveu denunciá-la.
As testemunhas cativas ressaltaram insistentemente, em seus
depoimentos, que seu senhor não lhes deixava nada faltar e só lhes dava bolos e
relhadas quando não “trabalhavam direito”, e que ele não havia castigado Firmina
depois de saber que ela matara seu filho. Disseram ainda, que a ré era comadre
da vítima e que nunca haviam presenciado uma discussão séria entre eles. Alguns
177
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 1160, cx. 54, folha 05, 1885, AHMUF.
dos parceiros de Firmina afirmaram que ela assassinou o senhor moço por
maldade e propensão ao crime. Em busca de uma justificativa para o acontecido,
o juiz determinou que a escrava ré fosse submetida a um exame com a finalidade
de apurar um possível “desarranjo mental”, mas nada se verificou de loucura na
mulher. Segundo a própria Firmina no final de um dos seus depoimentos: no dia
em que não reza o tinhoso atenta. No entanto, segundo conta o jornalista do
Diário de Campinas Alberto Sarmento, em Os crimes célebres de São Paulo, de
1886, durante o julgamento, quando foi perguntada pelo motivo do crime, Firmina
alegou que ao recusar-se a servir de intermediária das “relações ilícitas” entre seu
senhor moço e uma das escravas da fazenda ele começou a maltratá-la e, por
isso, ela resolveu matá-lo
178
. A escrava Firmina foi condenada a pena de morte,
comutada em galés perpétuas e finalmente em “prisão perpétua com trabalho
análogo ao seu sexo”
179
.
Gráfico 2
População escrava e livre
(Franca 1778 - 1879)
178
SARMENTO, Alberto. Os crimes célebres de São Paulo: histórico e julgamento dos
crimes mais importantes ocorridos nesta província nos últimos Tempos (...). Campinas: Typ.
a Vapor do Diário de Campinas, 1886.
179
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 1160, cx. 54, folha 05, 1885, AHMUF.
0,00% 20,00% 40,00% 60,00% 80,00% 100,00%
1778
1791
1793
1803
1804
1813
1814
1824
1826
1834
1836
1843
1853
1854
1879
Escravos
Livres
Fonte: FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. “Tabela 4 - Variação porcentual da
população cativa na região de Franca entre 1778 e 1879”, p.45 e 46.
Como de resto em todo o Brasil, a região de Franca não dispõe de números
uniformes para o estudo das variações da população durante a maior parte do
século XIX. No entanto, se considerados os dados disponíveis, é possível afirmar
que os cativos representaram algo entre 20 e 30% do total da população em geral
do município até o fim do cativeiro (ver Gráfico II). Vale ressaltar, contudo, que ao
contrário do que se poderia imaginar, essa divisão entre a população livre e
escrava não era tão distinta na Província de São Paulo como um todo, mesmo
considerando-se que desde meados do século havia médias e grandes
escravarias trabalhando em propriedades exportadoras.
Peter Eisenberg assevera que durante o século XIX, na maioria das
províncias do Império, a população livre, fosse ela composta por libertos ou
pessoas nascidas livres, era sempre maior que a população de escravos. De
acordo com informações populacionais cotejadas em diferentes estudos,
Eisenberg afirma ainda, especificamente com relação à Província de São
Paulo que:
a produção de café implicava uma intensificação do uso de
escravos até a década de 1880. Essa intensificação reflete-se
no crescimento, em termos absolutos, do tamanho da
população escrava até 1874. Mas, mesmo em São Paulo, a
população escrava não chegava nem à terça parte [pouco
mais de 33%] da população global. Até nas zonas mais
produtivas do café, antes da abolição, no Vale do Paraíba e
no Oeste Velho, a população livre constituía a grande
maioria
180
.
Embora diferentes sob o ponto de vista jurídico, homens e mulheres
livres, libertos e escravos mantiveram um conjunto variado de relações no
cotidiano desse pedaço de Minas Gerais assentado na região nordeste do
território paulista, durante quase todo o século XIX. Desde a chegada dos
primeiros entrantes mineiros, a circunscrição administrativa, a economia, os
costumes e hábitos dos moradores pouco se alteraram. O primeiro
desmembramento do município de Franca foi realizado em 1839, por ocasião
do julgamento das “Anselmadas”. As próximas regiões a tornarem-se
administrativamente independentes, só o fizeram em 1873 e 1886. Ademais,
apenas a plantação, em larga escala, de café, ou melhor, a tríade café,
ferrovia e imigração européia mudariam a paisagem local. No entanto, a
distância entre o extremo nordeste da Província de São Paulo e a expansão
dos cafezais que principiou em Campinas em meados do século era longa.
Portanto, mudanças mais significativas somente foram sentidas na região
nas duas últimas décadas dos oitocentos. Enquanto isso não ocorreu, livres,
libertos e escravos, moradores na mais distante localidade paulista da
Estrada dos Goiases continuaram a se encontrar recorrentemente em
estradas, ruas, tavernas, campos — nas vilas e nos vales, em dias e noites.
2.2 – Livres, libertos e escravos: crimes e criminalidade
Era madrugada do ano de 1852. Nos subúrbios da Vila Franca, do alto
de travessas de madeira sustentadas por grossos esteios de aroeira, três
vidas expiraram. Alguns instantes após a queda, pendurados em cordas, os
corpos permaneceram imóveis tendo por testemunhas autoridades e
moradores da região. Mesmo acompanhando todo o ritual da execução — a
partida dos sentenciados do prédio da cadeia pública, o cortejo até o campo
180
EISENBERG, Peter Louis. “O homem esquecido: o trabalhador livre nacional no século XIX:
sugestões para uma pesquisa”. In.: Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil
– séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989, p. 224.
da forca, os atos religiosos e a consumação do trabalho do carrasco —, a
platéia só se ausentou após ouvir dos peritos a confirmação oficial de que
as penas últimas estavam cumpridas.
O boticário e cirurgião Guido Eugênio Nogueira foi um dos peritos que
atestou a morte dos condenados. Quatro anos antes, em 1848, o mesmo
boticário Nogueira foi encarregado da execução de um exame de auto de
corpo de delito no cadáver de um homem negro, encontrado na Fazenda do
Sapê, em um caminho do lugar denominado vendinha, próximo a um capão
de mato de onde foi posteriormente conduzido para o adro da Igreja Matriz
de Franca. A cena era terrível. No corpo, morto já há algum tempo, faltavam
as duas orelhas, os genitais, o lábio superior e a mandíbula inferior, partes
das carnes da virilha esquerda, da coxa esquerda e do pescoço. O cadáver
apresentava ainda vergões que circulavam os tornozelos, sinais de
pancadas em diferentes regiões e ferimentos produzidos por arma de fogo.
Dias antes do encontro do cadáver, em uma sexta-feira, Domingos
Pinto da Silva, carpinteiro, natural de Bambuí na Província de Minas Gerais,
os irmãos José Ignácio de Oliveira e Mariano Antonio de Oliveira, ambos
jornaleiros (alugavam seus serviços por jornadas de trabalho) nascidos em
Franca, acompanhados ainda por Floriano Joaquim Cardoso encontravam-
se em uma pequena venda localizada no caminho da Borda da Mata, Distrito
do Chapadão, Município de Franca, quando ali chegou o liberto Vicente
Crioulo.
Ao ver Vicente, Floriano teria pedido que o dono da venda lhe servisse
um vintém de cachaça. Vicente não quis a bebida, pediu licença a Floriano,
que a concedeu, e jogou a cachaça fora. Por sua vez, Vicente também pediu
ao vendeiro um vintém de cachaça oferecendo-a a Floriano que bebeu. Logo,
Domingos e José Ignácio sacaram suas armas. Uma foi apontada para o
peito de Vicente a outra para suas costas. Rapidamente, as outras pessoas
presentes à cena do conflito apaziguaram os ânimos. Tudo parecia não ter
passado de um pequeno desentendimento. Os contendores foram vistos
saindo juntos da venda. Vicente levava consigo uma faca e quarenta mil réis
em dinheiro. Os demais também portavam facas e armas de fogo.
Os cinco homens, um liberto e quatro livres, teriam seguido pela estrada em
aparente harmonia até ultrapassarem uma encruzilhada. Nesta altura, Floriano
sacou sua espingarda, apontou para Vicente e remeteu-se à desfeita da cachaça
— “tu não disseste que não fazia conta de dez caianas”
181
— e, com a arma, deu
uma bordoada no liberto. Ao bater contra a cabeça de Vicente a arma disparou e o
tiro ainda lhe feriu a parte esquerda do corpo. Rapidamente, os outros três
homens amarraram Vicente e o empurraram até um capão de mato onde o içaram
em uma grossa árvore seca, muito utilizada para a construção de mourões,
chamada salta-cavaco. Pendurado de cabeça para baixo, Vicente foi despido e
duramente surrado por Floriano, José Ignácio, Domingos e Mariano com grossos
cipós cortados na mata. Quase morto, Vicente foi desamarrado da árvore. Não se
sabe se nesse momento, ou ainda quando estava pendurado, Floriano cortou-lhe
as orelhas e os genitais.
Nos interrogatórios que compõem o processo criminal, foram
oferecidas diferentes versões para o episódio ocorrido dentro da vendinha.
Ora o desentendimento teria começado por um vintém de cachaça, ora por
meia garrafa. Chegou-se a afirmar que o próprio Vicente teria convidado
seus algozes para tomar cachaça de melhor qualidade em uma fazenda
adiante no caminho por onde seguiram antes do assassinato. O Promotor
alegou que a cachaça foi apenas um pretexto para a solução de uma rixa
antiga. No julgamento, como sempre fizeram os réus livres ou escravos,
Mariano, José Ignácio e Domingos tentaram argumentar que não estavam
em seu juízo perfeito no primeiro interrogatório prestado ao subdelegado de
polícia, quando confessaram o crime. Alguns disseram apenas ter assistido
à morte, outros teriam apenas participado dos açoites. Contudo, ainda
assim, Mariano, seu irmão José Ignácio e Domingos Carapina foram
condenados no grau máximo do artigo 192 do Código Criminal do Império —
à morte. Em vão, os réus recorreram da sentença a todas as instâncias. Por
fim, esgotou-se o último recurso quando o então ministro da justiça Eusébio
de Queiroz Coutinho Matoso Camara comunicou ao então Presidente da
Província de São Paulo José Thomaz Nabuco de Araujo que os três réus não
foram merecedores da Clemência do Imperador Pedro II e, portanto,
181
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo nº. 293, cx. 10, 1848, AHMUF, folha 7.
deveriam ser executados conforme a sentença do Tribunal do Júri de
Franca. Entre os acusados pela morte de Vicente Crioulo, apenas Floriano
conseguiu fugir efetivamente. Dele nunca se teve notícia.
Fosse ou não a cachaça um pretexto, medir forças e trocar desafios com
homens livres e armados não foi uma boa idéia. Talvez poucos libertos, como
Vicente Crioulo, tenham pagado um preço tão alto por essa imprudência. Mas, se
por um lado a história de Vicente é triste, por outro lado, para o pesquisador ela se
torna um testemunho precioso, pois se consideradas as quase seis décadas de
vigência do Código Criminal do Império durante o cativeiro, chama atenção a
reduzida presença de réus e vítimas libertos (ver tabela 1). Num primeiro
momento, a ausência de réus libertos também pode ser atribuída à distribuição
populacional da localidade. Afirmou-se até aqui que o número de escravos na
região manteve-se sempre pequeno em relação ao restante da população durante
os oitocentos. Logo, é possível concluir que existia na localidade uma quantidade
ainda menor de ex-escravos
182
.
Especificamente em relação à ausência de libertos na documentação
analisada é preciso considerar a questão dos nomes. Embora informalmente
muitos continuassem a carregar no nome a sua condição de ex-escravos (Maria
de Nação, Vicente Crioulo, João Forro, entre outros), alguns aparecem na
documentação com o nome que assumiram após a liberdade. Esse é o caso, por
exemplo, do liberto Bernardo Crisóstomo de Oliveira que denunciou o cativo
Antonio e seus companheiros pelo assassinato do senhor no valo. Foi também o
que aconteceu com outro cativo acusado pela prática de diversos raptos e
estupros na região. Conhecido pelas autoridades policiais como o “monstro
Joaquim”, figurou em três processos como Joaquim escravo de José Pedro Alves
Branquinho, e num quarto processo, já libertado, como Joaquim Miguel
Gonçalves
183
. Assim, é possível supor que na documentação criminal, uma grande
parte dos libertos está agregada aos homens livres.
Tabela 1
Participação de réus livres, libertos e escravos
no conjunto da criminalidade
182
Não é possível realizar um estudo da população de libertos na região em razão da falta de
documentos. As listas populacionais que mencionam os ex-escravos são restritas ao período
compreendido entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX.
183
Ver Ferreira, Ricardo Alexandre. op. cit. Capítulo 3.
(Município de Franca 1830-1888)
Condição
social do
réu
Século XIX – Décadas Total
30 40 50 60 70 80
Livre
153 155 214 168 236 154
1080
90,5% 92,8% 87,4% 78,5% 87,7% 93,4%
87,9%
Liberto
3 1 4 7 16 4
35
1,8% 0,6% 1,6% 3,3% 5,9% 2,4%
2,8%
Escravo
13 11 27 39 17 7
114
7,7% 6,6% 11,0% 18,2% 6,4% 4,2%
9,3%
Total 169 167 245 214 269 165 1229
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
Voltemos ao caso do assassinato do filho do Major Claudiano pela escrava
Firmina, mencionado no tópico anterior. A sétima testemunha ouvida no inquérito
policial foi “Cypriano Paulo Ferreira, com cinqüenta anos mais ou menos, casado,
natural de Minas, lavrador. Aos costumes disse nada
184
”, ou seja, não possuía
nenhum grau de parentesco com os envolvidos. Mas, a certa altura de seu
depoimento, provavelmente instruído a dar mostras de que seu patrão era um
homem justo, Cypriano, acompanhando o depoimento dos outros escravos
ouvidos como informantes, declarou como testemunha jurada: “que o Major trata
muito bem os seus escravos, tanto que ele depoente sempre foi cativo do mesmo
Major e que hoje se achando forro não sai e nem pretende sair da companhia de
seu ex-senhor
185
”. Se Cypriano exprimia uma opinião ou apenas cumpria uma
ordem não será possível saber.
Entretanto, nem todos os libertos tinham a mesma opinião quanto aos seus
antigos senhores. Numa “quinta-feira santa” do ano de 1875, Gervásio chegou à
fazenda onde havia trabalhado como escravo decidido a receber por alguns pés
de café que existiam na propriedade, os quais ele dizia ser dono. Do terreiro,
184
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 1160, cx. 54, folha 21, 1885, AHMUF.
185
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 1160, cx. 54, folha 21 verso, 1885,
AHMUF.
Gervásio bradava: “hoje já não [é] mais o tempo em que [fui] seu cativo”
186
. Com
um cacete nas mãos, Gervásio incitava Joaquim Alves Faleiros, o antigo senhor, a
descer ao terreiro para que ambos acertassem as contas. Segundo sua versão,
Faleiros ficou dentro de casa insistindo para que Gervásio fosse embora. Seis dias
depois, Faleiros compareceu à delegacia de polícia para dar queixa contra o seu
ex-escravo pelo crime de ameaças dizendo que, desde a época em que o libertou,
Gervásio prometia matá-lo. Ouvido no inquérito como testemunha, Manoel
Ferreira de Melo disse que logo que saiu da casa do ex-senhor, Gervásio passou
em sua residência e contou em detalhes o ocorrido gabando-se de quase ter
acabado com o “homem lá da outra banda”
187
. Faleiros não mais compareceu em
juízo para ratificar sua queixa e o caso foi encerrado.
Uma forma de identificar possíveis libertos na documentação seria por meio
da indicação da cor dos réus e vítimas livres. Contudo, como observou Hebe
Maria Matos de Castro, a cor deixou de ser uma característica presente na
documentação oficial durante quase todo o século XIX no Brasil
188
. Contudo, ao
entrar em conflito, tanto no mundo dos livres quanto dos escravos, os negros e
mulatos eram sempre tratados por palavrões que associavam a cor a um
xingamento. O problema se generalizava mesmo entre aqueles que nunca foram
cativos.
Em 17 de março de 1862, por volta das quatro horas da tarde, Balduíno
Ribeiro da Silva saiu de sua casa, localizada nos subúrbios da Vila Franca, com o
fim de comprar remédios para sua esposa, que se encontrava enferma. No meio
do caminho, já na entrada da vila, parou na residência de Manoel Damião para
levar um recado de sua esposa à Balbina, mulher que ali também residia. Na
mesma casa se encontrava Antonio Lourenço Barbosa, homem pardo, alto, cheio
de corpo, de pouca barba e bigodes longos, morador em Mogi Mirim, conversando
186
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 811, cx. 30, folha 2, 1875, AHMUF.
187
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 811, cx. 30, folha 9 verso, 1875, AHMUF.
188
De acordo com Mattos: “O sumiço do registro da cor consiste num dos processos mais
instigantes e irritantes, ocorridos no século XIX, do ponto de vista do pesquisador. [...] O
sumiço da cor referencia-se [...] a uma crescente absorção de negros e mestiços no mundo
dos livres, que não é mais monopólio dos brancos, mesmo que o qualificativo ‘negro’
continue sinônimo de escravo, mas também a uma desconstrução social do ideal de
liberdade herdado do período colonial, ou seja, a desconstrução social de uma noção de
liberdade construída com base na cor branca, associada à potência da propriedade
escrava”. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista - Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.p. 97 e p. 99.
e tocando uma viola. Ao ver Balduíno, Antonio Lourenço perguntou-lhe: Onde
nasceu? Balduíno respondeu que nos subúrbios da Vila Franca, em uma chácara.
Ao ouvir a resposta Antonio Lourenço disse: “subúrbio é a puta que o pariu, tu és
meu cativo
189
”. Balduíno e o dono da casa contestaram a acusação, mas ninguém
demoveu Antonio Lourenço do intento de recuperar o suposto cativo. O homem
saiu com Balduíno pelas ruas da vila aos sopapos, empurrões e pontapés dizendo
que o levaria até a delegacia. A cena atraiu a atenção de muitas pessoas que
diziam conhecer Balduíno e saber que ele não era escravo. João José Dias de
Canoas — que em um outro processo criminal figurou como defensor de uma
cativa acusada de homicídio — tentou deter Antonio Lourenço, mas este
continuou obstinado. A patrulha e o juiz municipal foram chamados e só com a
aglomeração de muitas pessoas Balduíno foi solto e seu agressor preso. Por
queixa de Balduíno, um processo foi instaurado, mas uma vez solto sob fiança,
Antonio Lourenço fugiu e nunca respondeu pelo crime de “reduzir à escravidão a
pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade”.
O estudo da distribuição da população de réus nos processos criminais
produzidos em Franca entre 1830 e 1888 (ver Tabela 1) evidencia ainda um
crescimento percentual geral do número de escravos indiciados até a década de
sessenta, quando a participação cativa começa a declinar. Essa oscilação do
número de réus cativos em Franca não pode ser diretamente relacionada a uma
possível entrada da localidade no movimento de venda de cativos para as regiões
de lavouras exportadoras após o final do tráfico internacional (1850), pois o estudo
dos registros de compra e venda de escravos — para os quais foram criados livros
específicos em 1860
190
— não apontam nessa direção. Em geral, o comércio de
cativos na região, quando ocorria, era realizado entre vizinhos
191
.
O cruzamento dos dados gerais da criminalidade com a análise de cada um
dos processos criminais é elucidativo. Como referido no tópico anterior, a década
de 1860 foi marcada no cenário da escravidão local pela denúncia de um crime
diretamente vinculado à noção de criminalidade escrava corrente no período. Em
189
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 576, cx. 20, folha2, 1862, AHMUF.
190
FLORENTINO, Manolo Garcia ; GOÉS, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e
tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 - c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
191
BATISTA, Dimas José. Cativos e libertos: A escravidão em Franca entre 1825-1888.1998.
212 f. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
Universidade Estadual Paulista, Franca.
1865 vinte cativos foram presos como suspeitos do planejamento de uma
insurreição. Essa foi uma situação atípica no padrão dos crimes cometidos por
escravos em Franca e explicaria o motivo do crescimento dos números em
relação às décadas anteriores. Acredito que a queda na participação de réus
cativos no final do século esteja vinculada ao desmantelamento do sistema
escravista no país. Na década de 1880, o número de cativos alforriados em
Franca subiu de cinqüenta (registrados na década de 1870) para trezentos e
onze
192
.
Ainda quanto aos réus, salta aos olhos o número significativamente maior
de livres do que de escravos. Essa seria uma afirmação redundante, uma vez que
a característica da localidade é exatamente o número pequeno de cativos.
Entretanto, quando confrontados os percentuais populacionais com os números
de réus livres e escravos em cada década é possível perceber que a participação
dos livres no cômputo geral da criminalidade é maior que a sua participação na
população (ver Tabela 2).
Acredito ser necessário evitar inferências como a de que os réus livres
seriam mais propensos à prática de crimes do que os escravos. Um caminho mais
profícuo seria investigar porque os cativos aparecem proporcionalmente menos
como réus do que como parte da população. As explicações para esse fenômeno
não devem estar nos crimes, mas sim no tipo de registro aqui analisado. O
processo criminal era talvez o estágio de ação jurídico-policial mais indesejado
pelos senhores. Mesmo considerando que o crime não fosse enquadrado na lei de
1835 — que poderia culminar na perda definitiva do escravo — uma vez indiciado,
o cativo poderia ser preso a qualquer momento e só sairia da cadeia após seu
senhor conseguir um habeas-corpus ou empenhar uma quantia em dinheiro no
pagamento da fiança. Até que o escravo fosse finalmente absolvido ou condenado
transcorreriam meses ou até anos de mandados, exames, averiguações,
testemunhos, pareceres, custas, depoimentos, julgamentos, apelações e outras
rotinas jurídicas. Inferindo que os senhores, mesmo numa localidade onde todos
se conheciam, conseguiam omitir da justiça os crimes tidos na época como de
menor importância cometidos por seus escravos, essa ausência refletiria
necessariamente nos números de réus escravos presentes na documentação.
192
BATISTA, Dimas José. op. cit. .
Sem a mediação dos senhores, a população liberta e livre ficava mais exposta à
queixas e denúncias levadas à justiça por outros libertos e livres, logo figura mais
freqüentemente no cômputo geral dos réus
193
.
Tabela 2
Distribuição percentual de cativos e livres
na população e no conjunto dos réus indiciados
em processos criminais no Município de Franca
Décadas Livres Escravos
% na
população
% no número de réus
% na
população
% no
número de
réus
%
livres
%
libertos
%
total
1830 69,9
90,5 1,8
92,3 30,1 7,7
1840 71,4
92,8 0,6
93,4 28,6 6,6
1850 71,1
87,4 1,6
89,0 28,9 11,0
1870 83,9
87,7 5,9
93,6 16,1 6,4
Obs: Os anos considerados para o cálculo da população foram: 1834, 1843, 1854 e 1879.
Não foi possível localizar os números da população de libertos. Também não foram
localizados dados da população em geral para as décadas de 60 e 80.
Fontes: FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. “Tabela 4 - Variação porcentual da
população cativa na região de Franca entre 1778 e 1879”, p.45 e 46 e Cartório do 1º Ofício
Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
Vale ressaltar, contudo, que as características dos crimes praticados por
réus livres, em linhas gerais, são semelhantes aos dos réus libertos e também aos
dos réus escravos. Segundo as informações disponíveis para o Município de
Franca, os três tipos de réus encontram-se principalmente envolvidos em
circunstâncias violentas para a solução de questões pessoais, com destaque para
os homicídios e ferimentos graves, compreendidos, segundo as definições do
Código Criminal do Império do Brasil no item “Crimes Particulares” (Ver Gráfico 3).
Este padrão, não só indica a semelhança de práticas entre réus livres, libertos e
escravos no Município de Franca, como também dos índices desta região em
relação aos números de criminalidade apurados para todo o país no mesmo
período, como foi visto no capítulo anterior.
193
Uma análise dos registros da polícia poderia auxiliar na elaboração de hipóteses para o estudo
deste aspecto dos crimes cometidos por livres e escravos na região de Franca. No entanto, tais
documentos ainda não estão disponíveis à consulta.
Gráfico 3
Divisão comparativa dos tipos de crimes
cometidos por réus livres, libertos e escravos
no Município de Franca entre 1830 e 1888
0,00%
20,00%
40,00%
60,00%
80,00%
100,00%
Réus Livres Réus Escravos Réus Libertos
Crimes Particulares
Crimes Públicos
Crimes Policiais
Réus Considerados: Livres: 1080, Escravos: 114, Libertos: 35 = Total: 1229
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
Gráfico 4
Condição social dos réus e de suas vítimas no
Município de Franca entre 1830 e 1888
0,00%
20,00%
40,00%
60,00%
80,00%
100,00%
Réus livres Réus Escravos Réus libertos
Vítimas livres
timas escravas
Vítimas libertas
timas
desconhecidas ou
inexistentes
Total de réus considerados: Livres: 1080, Libertos: 35, Escravos: 114 – Total: 1229
Total de vítimas consideradas: Livres: 660, Libertos: 17, Escravos: 59 – Total: 736
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
Gráfico 5
Locais da ocorrência dos crimes no
Município de Franca entre 1830 e1888
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
Réus Livres Réus Escravos Réus Libertos
Núcleos urbanos
Subúrbios da Vila Franca
Área Rural
Local não informado
Total de réus considerados: Livres: 1080, Libertos: 35, Escravos: 114 – Total: 1229
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
Gráfico 6
Horários em que os crimes foram praticados no
Município de Franca entre 1830 e1888
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
Réus Livres Réus Escravos Réus Libertos
Crimes praticados durante o dia
Crimes praticados durante a noite
Hora do crime desconhecida
Total de réus considerados: Livres: 1080, Libertos: 35, Escravos: 114 – Total: 1229
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
A mesma semelhança pode ser percebida quando analisada a relação
entre a condição social dos réus e de suas vítimas, com o predomínio em todos os
grupos de réus e vítimas livres (Ver Gráfico 4). Neste aspecto, como já afirmei em
trabalho anterior, os escravos aparecem mais vezes como vítimas de outros
escravos porque a maior parte de suas relações conflituosas se dava no âmbito
da família cativa, com destaque para os assassinatos motivados por traições
conjugais
194
. Merece destaque também a convergência dos principais lugares e
horários em que réus livres e escravos cometiam crimes, na zona rural à noite
(Ver Gráficos 5 e 6). Muitas destas convergências estavam ligadas à constância
com que os cativos se locomoviam em todo o município, cumprindo tarefas
determinadas pelos senhores ou mesmo resolvendo questões particulares.
No entanto, compreender os limites do ser escravo e do ser livre na esfera
da criminalidade numa região rural implica considerar principalmente os crimes
que envolveram a população livre, liberta e escrava em conjunto. No que respeita
exclusivamente aos réus escravos é preciso tomar em conta um aspecto
diretamente vinculado às características locais de que falamos até aqui no
presente capítulo. Em Campinas, por exemplo, uma região que se inseriu na
produção de exportação a tempo de presenciar o braço escravo largamente
utilizado em suas lavouras, no período compreendido entre os anos de 1830 e
1888, Maria Helena Machado localizou, num total geral de 1274 processos
criminais 140 que relacionavam escravos como réus, entre eles 98 eram crimes
de sangue, dos quais 42% aproximadamente eram compostos por “ataques à
autoridade senhorial
195
”. Diferente do trabalho de Machado, a questão central
deste estudo recai sobre o número de réus, que é maior que o de processos,
ainda assim é possível comparar. Em Franca, considerados todos os autos
existentes no Cartório do 1º Ofício Criminal encontrei 114 escravos arrolados
como réus, destes apenas 17,2% praticaram crimes contra a autoridade senhorial
no decorrer das mesmas seis décadas consideradas por Machado para a região
de Campinas. Ou seja, em Franca mais de oitenta por cento dos réus escravos se
envolveram em crimes contra a população livre desvinculada dos senhores.
Vejamos as situações, típicas na região, em que se envolveram os escravos Luiz
e Joaquim.
— Senhora Maria onde está a Delfina?
— Não sei, acabei de chegar da chácara.
— Senhora Maria, estou perdido!
194
Cf. FERREIRA, Ricardo Alexandre, op. cit. Capítulo 3 – tópico “Vestígios da família cativa em
delitos de escravos contra escravos”, p. 138-151.
195
MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência
nas lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 64.
— Pelo que senhor João?
— Esfaqueei um negro do Neiva.
— Qual negro?
— O Luiz.
— Aonde foi isso?
— Na rua.
— Pelo amor do quê?
— Pelo amor de jogo
196
.
O ano era 1853. No interior da residência de Delfina Maria de Jesus três
homens jogavam cartas. Luiz, que vinha à rua, mandado por seu senhor, com um
objetivo certo, viu a porta da casa aberta e resolveu parar para pedir fogo. Na
casa de Delfina, Luiz permaneceu por algum tempo, até que, às oito horas da
noite juntou-se ao carteado o ferreiro João Fernandes de Oliveira e Silva. Estavam
ali reunidos os ingredientes do conflito. O ferreiro atingiu a cabeça do cativo com
uma bordoada e o fígado com uma facada.
Logo após a briga, trêmulo e muito aflito, João Fernandes narrou o ocorrido
a Maria Thomásia de São José, furtou um cavalo de Miguel Joaquim da Silva que
estava em um pasto próximo
197
e fugiu. Indiciado no inquérito policial instaurado
para a apuração do conflito, João Fernandes foi mais tarde preso, julgado e
condenado culpado pelos ferimentos sofridos por Luiz, escravo do Capitão de
Ordenanças Joaquim da Rocha Neiva
198
.
Cinco anos mais tarde, na mesma pequena vila, passava das oito horas da
noite, quando, de dentro de sua morada, Vicente Rodrigues de Oliveira ouviu o
som de uma pedrada. Logo percebeu que alguém tentava colocar sua porta
abaixo. Ao sair para ver o que ocorria deparou-se com Joaquim Crioulo, que
aparentava seus trinta anos, morava “na roça” de seu senhor, mas também
exercia o ofício de sapateiro. Diante da afronta, os dois começaram a lutar.
Vicente pediu a sua esposa que fosse até a casa de um vizinho buscar uma
corda, com a qual pretendia conter Joaquim e o levar até o Inspetor de Quarteirão.
196
Diálogo produzido com base no depoimento da testemunha Maria Thomásia de São José.
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 382, cx. 13, 1853, AHMUF, folha 13.
197
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 377, cx. 13, 1853, AHMUF.
198
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 382, cx. 13, 1853, AHMUF.
Durante o conflito, ao ser agarrado por Vicente pelo poncho, o cativo
Joaquim apanhou uma faca que trazia na cintura e feriu gravemente seu
oponente. Após aplicar a facada em Vicente, Joaquim conseguiu desvencilhar-se
e fugir deixando seu desafeto no chão esvaindo-se em sangue. Instaurado o
inquérito policial, as testemunhas confirmaram a denúncia feita por Vicente. Um
primo de Vicente, em segundo grau, depôs que, dias após o conflito, soube ser o
motivo das rixas entre os dois as “confianças” que Joaquim tinha com a esposa de
Vicente. O inquérito tornou-se um processo criminal, Joaquim Crioulo, escravo do
Alferes Miguel Joaquim da Silva, foi preso, julgado e condenado culpado pelos
ferimentos sofridos por Vicente Rodrigues de Oliveira
199
.
Numa região onde o número de escravos por proprietário e a rotina de
trabalho não demandavam o uso de prepostos da ação senhorial, torna-se
importante para a compreensão das relações conflituosas entre livres e escravos
analisar um dos poucos casos, nos quais houve o envolvimento de um feitor de
profissão.
Em 1848, por volta das quatro horas da tarde, Francisco Antonio de Souza,
feitor e oficial de pedreiro seguia montado em uma besta pela estrada das
Macaúbas. Quando chegou a uma descida que levava ao Córrego do Anchieta,
Francisco foi surpreendido por Manoel Africano, escravo do vigário Joaquim
Martins Rodrigues, que, armado com um pedaço de pau, saltou na frente da
besta. “Você que está a favor dos escravos do senhor Manoel Ferreira Cândido?”
— perguntou Manoel Africano. Francisco respondeu “que sim, como feitor dos
ditos escravos
200
”. Nesse momento, Manoel deu uma bordoada em Francisco que
ao descer da besta passou a mão pelos coldres e pegou uma faca com a qual
golpeou o cativo.
Um soldado do Corpo de Municipais Permanentes da Vila Franca passava
pela mesma estrada na ocasião e, a certa distância, viu Francisco agarrando
Manoel pelas costas, segurando em uma das mãos o porrete e na outra a faca.
Vendo Manoel sangrar o soldado correu em direção ao conflito, prendeu os dois
brigões e os levou até o delegado. Como estratégia de defesa, o senhor do cativo
logo acusou o feitor Francisco como culpado pelo conflito. No entanto, com o
199
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 497, cx. 16, 1858, AHMUF.
200
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 296, cx. 10, 1848, AHMUF.
desenrolar do processo os dois foram considerados réus e vítimas, sendo ambos
absolvidos.
No entanto, fica uma dúvida. Por que Manoel Africano atacou o feitor que
trabalhava para um senhor que não era o seu? Segundo o depoimento de
Francisco, o conflito ocorreu entre Manoel e um dos escravos de seu patrão. Dias
antes do crime, Manoel tocava um carro de boi vazio em uma das estradas que
dava acesso à Vila Franca. No sentido contrário, também tocando um carro de boi
carregado com tábuas, ia um cativo de propriedade do patrão de Francisco. Os
dois carros não passariam ao mesmo tempo pela estreita estrada. Deu-se o
conflito porque o escravo que tocava o carro carregado exigia que o condutor do
carro vazio lhe concedesse a passagem. Francisco entrou na história quando
tomou as dores do escravo pertencente a seu patrão.
A ausência de feitores profissionais não só influía na relação direta mantida
pelos senhores com seus escravos, mas também nos conflitos estabelecidos entre
os cativos e os demais trabalhadores livres das fazendas. Terminou em homicídio
um conflito entre o cativo Lázaro e um camarada de sua senhora de nome
Venâncio Martins. Em março de 1847, Venâncio teria ido da fazenda de sua
patroa, Dona Maria Rosa da Conceição, acompanhado pelo escravo Lázaro até o
Distrito do Carmo. Na ocasião, Venâncio montava um cavalo e Lázaro tocava um
carro de boi. No dia seguinte, Venâncio negou-se a voltar à fazenda de sua patroa
para devolver o cavalo. Lázaro saiu à procura do camarada armado com um
pedaço de pau. Ao encontrar Venâncio o cativo deu-lhe tantas pancadas que ele
morreu.
Algumas testemunhas relataram no processo que Lázaro teria buscado o
cavalo por medo de sua senhora. Outras, disseram que o escravo era “bastante
desordeiro e atrevido, que até em certo tempo neste Arraial puxara uma faca para
um branco
201
” e considerava que o camarada havia roubado um cavalo seu. O juiz
corregedor deixou anotado que o processo criminal foi tecnicamente mal feito
pelas autoridades formadoras da culpa. O cativo Lázaro nunca foi capturado e o
crime prescreveu.
A região nordeste da então Província de São Paulo foi um dia associada
com um lugar perigoso supostamente povoado por muitos facinorosos. Contudo, o
201
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 287, cx. 10, 1847, AHMUF.
estudo dos processos criminais do município, em desabono da idéia de uma
gênese criminosa da região, aponta para o conflito violento como esfera de
resolução de questões pessoais, fruto dos desacertos no cotidiano. Raros foram
os crimes cometidos por assassinos profissionais ou bandoleiros, como veremos
mais detalhadamente no capítulo 4.
Já se passaram décadas desde que o trabalho pioneiro de Maria Sylvia de
Carvalho Franco contribuiu fundamentalmente para o entendimento da existência
de um “Código do Sertão” estabelecido informalmente pelos homens livres pobres
do Vale do Paraíba. Um código criado por imposição das adversidades da vida
com parcos recursos materiais que sancionava o uso da violência sempre que no
dia-a-dia de mutirões e festas, em família ou nas relações de vizinhança, o limite
das atitudes toleradas era ultrapassado. Em seu texto, Franco reconheceu “que
por vezes, e especialmente em pequenas propriedades, o escravo trabalhou ao
lado do homem livre, participando então das instituições próprias a este último”
202
.
No entanto, afirmou que essas não eram situações relevantes para o seu estudo.
Com o passar dos anos, os pesquisadores conferiram uma maior
importância às pequenas propriedades no quadro geral da economia do país no
século XIX. A análise dos crimes cometidos por escravos em regiões onde
predominavam as pequenas posses tem apontado a utilização do código do
sertão também pelos cativos, como parte de seus recursos de defesa e
sobrevivência
203
.
O estudo da criminalidade no Município de Franca demonstra que a prática
das soluções violentas para os desacertos do cotidiano era generalizada, tanto
nas relações extremas dos cativos com seus senhores, quanto nos conflitos
estabelecidos com a população em geral. No pequeno núcleo urbano, nos
subúrbios da vila e na zona rural, livres e escravos, em diferentes circunstâncias,
lutavam por interesses e espaços comuns.
Entretanto, afirmar que livres e escravos tenham adotado práticas violentas
para a solução de seus conflitos cotidianos não é o mesmo que entender o
judiciário como um mero coadjuvante, ao qual restava a missão de registrar e
202
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed. São
Paulo: Ática, 1974. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 46.
203
Entre outros, Cf. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências
ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998.
julgar alguns poucos casos. Como já mencionado na introdução deste estudo, a
historiografia brasileira tem argumentado que queixar-se ao delegado e denunciar
ao Promotor Público foram práticas que aos poucos, e com a afirmação do Estado
Imperial, transformaram delegacias e tribunais em locais tão importantes para
embates quanto o âmbito das formas privadas de solução de conflitos. É desse
emaranhado de discussões jurídicas e conflitos de interesses, que abarcava
desde os debates de juristas na Corte do Rio de Janeiro até os veredictos
proferidos no tribunal daquela que, sob o ponto de vista das autoridades que
habitavam a capital paulista, era uma das mais longínquas comarcas da Província
de São Paulo, que tratará o próximo capítulo.
CAPÍTULO 3
UM JULGAMENTO, DUAS PENAS:
LIVRES E ESCRAVOS NAS LEIS E NOS TRIBUNAIS
Em relação ao processo, devemos observar que não há entre nós
autoridades, juízes, ou tribunais especiais, que conheçam delitos
cometidos pelos escravos. São processados, pronunciados e
julgados, conforme os delitos e lugares, como os outros
delinqüentes livres ou libertos (...) São, portanto, aplicáveis, em
regra, aos escravos os princípios gerais do Direito Penal e do
Processo Criminal (Agostinho Marques Perdigão Malheiro
204
).
Embora ferir e matar fossem, por vezes, desfechos da disputa por
interesses e espaços comuns, não residia nestes atos extremos o fim de um
problema, mas sim o início de outro — lidar com o aparato jurídico-policial.
Infere-se que mesmo sem um código específico para o julgamento de
homens e mulheres cativos, ser livre ou escravo no banco dos réus fazia
toda a diferença, pois era uma oportunidade para a exacerbação de conflitos
de interesse que não raro transcendiam a transgressão em pauta e o réu em
julgamento.
O presente capítulo dá continuidade à compreensão das
interpenetrações dos mundos de livres e escravos na esfera da
criminalidade, agora sob o ponto de juristas e juízes. A primeira parte se
204
MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico e social. 3ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1976, vol. 1, p. 45. Estudo originalmente publicado entre os anos de 1866 e
1867.
inicia com a abordagem do tema da indistinção de livres, libertos e escravos
no âmbito específico do Direito Penal e do Processo Criminal no Império,
norteado pela seguinte questão: A passagem de um modelo de justiça
fundado nos pressupostos punitivos expressos nas antigas ordenações
portuguesas para outro, alicerçado em princípios que visavam à
constituição de códigos criminais modernos representou uma ruptura para o
entendimento do cativo em juízo no Brasil?
Na segunda parte, por meio do estudo dos processos criminais
produzidos na Comarca de Franca na vigência do Código Criminal do
Império, busca-se compreender as peculiaridades da prática jurídica dos
tribunais numa localidade onde a maior parte dos crimes que envolveram
escravos se referia aos conflitos com a população livre e não dos cativos
com seus próprios senhores.
3.1 - Escravos e livres no mesmo banco dos réus
Não existiu no Brasil, desde o período colonial, um Código Negro. O Code
Noir, um decreto real baixado em 1685 por Luiz XIV, legislava a respeito do
regime interno das colônias francesas conferindo especial atenção à vida dos
escravos e suas relações com os senhores. Seus sessenta artigos não abrangiam
apenas a escravidão, pois tratavam também da obrigatoriedade da observação da
religião católica, contudo, regulamentavam temas como os casamentos de
escravos, os direitos dos libertos, as indenizações a senhores e as punições de
cativos criminosos
205
. Havia no Brasil, entretanto, obras que recomendavam aos
senhores o tratamento mais cristão em relação aos cativos, como as dos jesuítas
Jorge Benci
206
e André João Antonil
207
, ou a gestão escravista mais eficiente,
205
BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo, 1492-1800. Rio de Janeiro:
Record, 2003. Para uma análise abrangente e comparativa do Code Noir, do Código Negro
Carolino — produzido por ordem de Carlos III, no final do século XVIII nos moldes franceses, para
vigorar na parte espanhola da ilha de Hespaniola — e das diferentes teorias de organização e
gestão dos escravos nas Américas Cf. MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo,
missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860.
Companhia das Letras, 2004.
206
BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. (1705). São
Paulo, Grijalbo, 1977.
207
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. (1711).
Introdução e Vocabulário por A. P. Canabrava. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1967.
como os manuais de agricultores do século XIX
208
. Porém, tanto na colônia
portuguesa
209
quanto no Império brasileiro, a legislação a respeito dos escravos e
também dos libertos encontrava-se dispersa pelos códigos legais e na forma de
cartas de lei, posturas municipais, alvarás, decisões, decretos, avisos,
aditamentos, regulamentos e leis excepcionais
210
. Especificamente, a
conceituação das ações consideradas criminosas, a definição e o cumprimento
das penas a serem aplicadas, bem como as regras de funcionamento dos
tribunais não eclesiásticos, eram principalmente regulamentados pelas
ordenações portuguesas até 1830 e, posteriormente, pelos códigos criminal e de
processo criminal do Império e suas reformas.
3.1.1 - Sob o Livro V
Precedidas pelas Ordenações Afonsinas (promulgadas em meados do
século XV) e Manuelinas (1ª edição de 1514 e 2ª edição de 1521), entraram em
vigência, a partir de 1603, em todo o território português, as Ordenações
Filipinas
211
. Seu Livro V ocupou, no Brasil até 1830, a função de Código Penal.
Nessa obra, que guarda as características mais comuns às legislações penais
vigentes em alguns países europeus até o período compreendido entre fins do
século XVIII e o início do XIX, os títulos que definem os crimes e suas punições
são, em geral, marcados pela distinção, tanto entre criminosos, quanto entre
vítimas. Distinção esta, que ia muito além da diferenciação entre livres e escravos.
Os crimes se dirigiam inicialmente contra o poder representado na pessoa do
208
Para uma abordagem das transformações nas concepções de administração das fazendas
escravistas no Brasil, ver MARQUESE, Rafael de Bivar. Administração e escravidão: idéias sobre
a gestão da agricultura escravista brasileira. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 1999.
209
De acordo com Marquese: “A tradição legislativa portuguesa sobre a escravidão negra,
composta desde o início da expansão ultramarina, não levou a uma codificação tal como a que
ocorreu nas Antilhas francesas. As linhas gerais estipuladas pelas Ordenações Manuelinas e
Filipinas não regulavam de forma explícita a posse e o domínio senhorial sobre os escravos,
indicando apenas os fundamentos que legitimavam o cativeiro negro”: MARQUESE, Rafael de
Bivar, (2004) op. cit., p. 50.
210
Um dos mais completos trabalhos de catalogação dessas leis é o de Dea Ribeiro
Fenelon. Levantamento e sistematização da legislação relativa aos escravos do Brasil.
Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. São Paulo, p.199-
307, 1975. Para o mesmo tema ver também: BANDECCHI, Pedro Brasil. Legislação sobre a
escravidão africana no Brasil. Revista de História. São Paulo, v. XLIV, n.º 89, p. 207-213,
janeiro-março, 1972; Idem. Legislação da Província de São Paulo sobre escravos. Revista de
História. São Paulo, v. XXV, n.º 99, p. 235-240, 1974.
211
Para uma visão ampla da organização do aparato jurídico-administrativo no Brasil colonial Cf.
SALGADO, Graça (org.). Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
Rei
212
e, posteriormente, eram conceituados de acordo com a “qualidade dos
envolvidos” — fidalgos, escudeiros, peões, mulheres, libertos
213
, escravos.
Vejamos alguns exemplos:
[Título] 8 Dos que abrem as cartas Del-Rei ou da Rainha, ou de
outras pessoas - Qualquer que abrir nossa carta assinada por
nós, em que se contenham coisas de segredo [...] e descobrir o
segredo dela, do que a nós poderia vir algum prejuízo ou
desserviço, mandamos que morra por isso. [...] E se as ditas
cartas nos sobreditos casos abrir e não descobrir os segredos
delas, ser for escudeiro ou pessoa de igual ou maior
condição, perca os bens que tiver para a Coroa do Reino e
seja degredado para a África para sempre; e se tal não for,
além do dito degredo, seja publicamente açoitado
214
.
[Título] 36 Das penas pecuniárias dos que matam, ferem ou tiram
arma na Corte - Todo aquele que matar qualquer pessoa na Corte
onde nós estivermos ou no termo do lugar onde nós estivermos,
até uma légua, [...] se for em rixa nova pague cinco mil e
quatrocentos réis, e se for de propósito pague o dobro. [...] E
estas penas não haverão lugar no que tirar arma ou ferir em
defesa de seu corpo e vida, nem nos escravos cativos que
com pau ou pedra ferirem, nem na pessoa que for de menos
idade de quinze anos que com qualquer arma ferir ou matar,
ora seja cativo, ora forro; nem nas mulheres que com pau ou
pedra ferirem, nem nas pessoas que tirarem armas para
estremar [apartar brigas ou pessoas que estão brigando] e não
ferirem acintemente, nem em quem castigar criado ou
discípulo, ou sua mulher ou seu filho ou seu escravo, nem
em mestre ou piloto de navio que castigar marinheiro ou
servidor do navio enquanto estiverem sob seu mandado
215
212
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 28ª ed., Petrópolis: Vozes,
2004. Embora seja importante ressaltar que o objetivo de Michel Foucault está centrado na
construção de uma história da ruptura na concepção das práticas punitivas, entendida na
perspectiva de um processo mais amplo de transformação da própria teoria do
conhecimento ocidental na época, “uma história correlativa da alma moderna e de um novo
poder de julgar”, seu Vigiar e Punir segue como uma das mais completas e citadas
referências a respeito do tema das punições, em especial da abolição dos suplícios nos
códigos criminais elaborados a partir de fins do século XVIII em diferentes países europeus.
213
De acordo com Russell-Wood, na sociedade do Brasil colonial a integração dos libertos era
obstada por um conjunto de leis discriminatórias que os equiparavam aos escravos. Os principais
temas diziam respeito à proibição do uso de armas e de tipos específicos de vestimentas.
RUSSEL-WOOD, A. J. R., op cit. Especialmente o capítulo 4 - “Negros e mulatos livres na
sociedade da América portuguesa”. A respeito das proibições de determinadas roupas a negros e
mulatos livres, libertos e a escravos no Brasil colonial Cf. Lara, Silvia Hunold. Sedas, panos e
balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador (XVIII).
In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da.(org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
214
Ordenações Filipinas: livro V / organização Silvia Hunold Lara. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, p. 80 (Grifo nosso). Cito aqui a edição do Livro V organizada por Silvia Hunold Lara
em virtude desta já contar com a atualização da grafia do texto produzido no período colonial.
215
Ibidem, p 147, 148 e 149.(Grifo nosso).
[Título] 38 Do que matou sua mulher por a achar em adultério -
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente
poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for
peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou
pessoa de maior qualidade
216
.
Além das variações das demais penas — degredos, espancamentos,
marcações com ferro em brasa, utilização de tenazes ardentes e outros
espetáculos punitivos executados nos pelourinhos sempre localizados em locais
de destaque nas vilas — segundo a maior ou menor qualidade dos criminosos e
de suas vítimas, nas execuções das penas de morte, aos “bem nascidos” era
reservado o machado, e aos demais restava a corda considerada morte
desonrosa
217
.
Faz-se necessário, entretanto, lembrar que a interpretação que ressalta o
aspecto de “desigualdade perante a lei” como característica intrínseca e negativa
do Estado no Antigo Regime é tributária, em grande medida, da crítica elaborada
ainda no século XIX por membros de tendências liberais e socialistas em suas
lutas contra os princípios atribuídos à sociedade que precedeu a Revolução
Francesa
218
. Em Direito e Justiça no Brasil Colonial, Arno Wehling e Maria José
Wehling afirmam que além do legado transmitido pelos críticos oitocentistas, é
preciso ainda considerar que a noção de justiça praticada no Antigo Regime
fundamentava-se numa visão religiosa que comportava “uma concepção integrada
do universo, inteiramente antagônica às idéias pós-renascentistas que distinguem
diferentes esferas da realidade”
219
.
Na ordem jurídica romano-germânica, como na common law
inglesa, a integração entre fundamentos teológicos, preceitos
morais e normas jurídicas foi intensa no Antigo Regime, o que se
reflete no âmbito jurídico — lei, doutrina e jurisprudência — pela
grande quantidade de tipos penais que se originam em artigos de
fé. A tradição jurídica portuguesa demonstra isso na própria
organização do direito penal no Livro V das três Ordenações —
216
Ibidem, p. 151. (Grifo nosso).
217
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: a Suprema Corte da Bahia e
seus Juízes: 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.
218
WEHLING, Arno e Maria José. Direito e justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio
de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
219
Ibidem, p. 28.
Afonsinas, Manuelinas e Filipinas: todos principiam pela
tipificação dos crimes de heresia e suas penas
220
.
No caso específico do escravo em juízo nos domínios portugueses
predominavam, segundo os Wehling, as ambigüidades. O problema residia no
conflito que muitas vezes opunha os fundamentos cristãos da sociedade de um
lado, e os interesses de proprietários rurais e comerciantes de escravos de outro.
Em razão de ser exercido sobre o escravo o direito de propriedade, na área civil,
ele figurava como objeto da relação jurídica. Contudo, por lhe ser a prática de
crimes imputável, o cativo figurava na área penal como sujeito e objeto da relação
jurídica
221
.
Os atos de rebeldia coletiva dos escravos podiam ser considerados, em
casos mais graves, até mesmo como crime de Lesa Majestade (traição).
Testemunho disso, como afirmou Silvia Hunold Lara
222
, é o Alvará de 10 de março
de 1682:
Eu o Príncipe Regente e Governador dos Reinos de Portugal e
Algarves. Faço saber aos que este meu Alvará virem, que
pedindo a conveniência pública do sossego e quietação dos meus
vassalos do ‘Estado do Brasil’ pronto remédio sobre os Negros
fugidos para o Sertão: Fui servido resolver que com gente armada
fossem dominados; e porque sucedendo maior a sua resistência
na Capitania de Pernambuco, se travou em demanda deles tão
crua peleja que, durando há muitos anos, ainda hoje não estão
reduzidos todos [...] encomendo muito ao [...] meu Governador
que ponha todo cuidado em que se continue a redução dos ditos
Negros fugidos pelo meio de armas [...] enquanto, porém, se não
averiguar a inocência ou culpa de todos, que foram presos e
cativos, estarão nesta Corte, como em depósito judicial,
ganhando de comer para seu sustento no serviço da República;
porque deste modo não são castigados antes da prova do crime,
se estiverem inocentes, nem de todo livres para se faltar ao
castigo, se contra eles se provar que o mereceram. Nomeio para
fazer esta averiguação ao Doutor Francisco da Silveira Souto-
Maior, Desembargador da Bahia [...] Tirará o dito Desembargador
devassa do crime de traição, que o dito meu Governador avisou
intentaram fazer os ditos Negros de Palmares [...] sendo
finalmente sentenciados se mandará fazer neles a execução
pelas penas declaradas e impostas nas sentenças; e serão
levadas as cabeças dos dois principais conspiradores, que forem
220
Ibidem, p. 28.
221
Ibidem.
222
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de
Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. A autora analisa amplamente não só as
ordenações, mas também os diversos alvarás e decretos que regulamentavam as punições
de escravos no Brasil colonial.
condenados à morte, ao lugar do delito, onde serão levantadas
em postes altos e públicos, que possam ser de todos vistas, e se
não poderão tirar até que o tempo as consuma, para que sirva
este exemplo, não somente de satisfação à culpa, mais de horror
aos mais, que se não atrevam a cometer outros semelhantes
223
.
Em diferentes títulos do Livro V das Ordenações Filipinas há destaques
para o caso de escravos, impondo a estes penas diferentes de todos os demais
tipos de culpados por um mesmo tipo de crime. O título 86, destinado à punição
dos que pusessem fogo e causassem danos, previa penas que variavam da venda
de bens para o pagamento dos prejuízos (no caso dos fidalgos) até a prisão, o
ressarcimento do dano e o degredo para África (no caso de escudeiros e peões).
Mas, aos escravos a mesma lei impunha a pena de sofrer açoites públicos,
permanecendo o senhor com a obrigação de arcar com o dano causado por seu
cativo. Já o título 60 impunha a pena de açoites públicos “a qualquer pessoa” que
furtasse “valia de quatrocentos réis e daí para cima”, e para os escravos açoites
com baraço (laço passado em volta do pescoço do condenado) e pregão (a
proclamação em voz alta pelo carrasco da culpa e da pena) mesmo que furtassem
“valia de quatrocentos réis para baixo”. No Livro V, havia ainda uma lei específica
para a punição exemplar dos escravos que atentassem contra a vida dos seus
senhores. O título 41 dispunha que, antes de ser executado “por morte natural na
forca para sempre”, o escravo que matasse “seu senhor ou o filho de seu senhor”
teria suas carnes apertadas por tenazes ardentes e as mãos decepadas. Caso o
cativo, mesmo sem ferir o senhor, arrancasse contra ele uma arma, seria açoitado
publicamente e teria uma das mãos cortadas
224
.
Entretanto, não havia, sob a vigência das leis portuguesas no Brasil,
tribunais específicos para o julgamento dos casos que envolviam escravos. Os
“processos corriam regularmente como os dos homens livres, quer com os juízes
223
Excerto extraído do “Alvará de 10 de março de 1682”. In: Código Filipino, ou, Ordenações
e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe I. – Ed. fac-similar
da 14ª ed. (1870), segundo a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra, de 1821. 4 v. / com
introdução e comentários de Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2004. Livro IV, Aditamentos – Legislação Portuguesa, p. 1045-1047.
224
Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado
d’el-Rei D. Filipe I. – Ed. fac-similar da 14ª ed. (1870), segundo a primeira, de 1603, e a nona,
de Coimbra, de 1821. 4 volumes / com introdução e comentários de Cândido Mendes de
Almeida. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, Título 41, p. 1190-1191, título
60, p. 1207-1210 e título 86, p 1233-1235.
ordinários, os ouvidores ou na instância do Tribunal da Relação”
225
. Cabia aos
senhores a possibilidade de entrar com recursos contra as sentenças impostas
aos cativos da mesma maneira que ocorria com os homens livres, guardadas as
distinções de posição na hierarquia social previstas na legislação da época.
Considerado de ínfima condição e, portanto, digno das mais severas
punições previstas no Livro V, o escravo criminoso deixava de ser juridicamente
coisa. Embora sujeitos a todos os tipos de ações punitivas privadas que lhes
fossem impostas pelos senhores, os cativos submetidos a julgamentos no Tribunal
da Relação da Bahia, no período colonial, eram, segundo Stuart Schwartz, mais
freqüentemente soltos, por meio da intercessão de seus proprietários, do que os
libertos ou livres sem posses
226
. A situação ambígua dos escravos no direito
colonial, de muitas maneiras, acompanhou a perpetuação do escravismo nas leis
penais produzidas no Brasil Independente.
3.1.2 - No período Imperial
Durante as primeiras décadas do século XIX, e ainda sob as tensões da
Independência, os deputados brasileiros se reuniram em Assembléia Geral
Constituinte. Na sessão de 3 de maio de 1823 os Representantes da Nação
postaram-se para ouvir Sua Majestade Imperial.
É hoje o dia maior, que o Brasil tem tido; dia em que ele pela
primeira vez começa a mostrar ao Mundo, que é Império, e
Império livre. Quão grande é Meu prazer Vendo juntos
Representantes de quase todas as Províncias fazerem conhecer
umas as outras seus interesses, e sobre eles basearem uma
justa, e liberal Constituição que os reja!
227
.
Principiaram os debates. Um Império livre e uma liberal Constituição
sugeriam a então moderna noção de cidadania no lugar da distinção entre
pessoas de maior ou menor qualidade. No entanto, os problemas eram tão
numerosos quanto os conflitos de interesses. Idéias de base iluminista e posse de
escravos eram duas características aparentemente divergentes que acabavam por
225
WEHLING, Arno e Maria José, op. cit, p. 482.
226
SCHWARTZ, Stuart B. (1979) op. cit.. Para uma análise da relação entre senhores de escravos
criminosos e a justiça em fins do período colonial, na região de Campos dos Goitacases, na
Capitania do Rio de Janeiro Cf. Lara Silvia Hunold. (1988) op. cit.
227
Diário da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil - 1823. Edição Fac-
Similar. Introdução de Pedro Calmon. 3 Tomos. Brasília: Editora do Senado, 2003, Tomo I, p. 15.
se encaixar de acordo com as mais variadas interpretações em diferentes partes
da Europa e das Américas, permeando o aparato institucional das ex-colônias
228
.
Dissolvida a Assembléia, ainda em novembro de 1823, foi outorgada a
Constituição Política do Império por Pedro I em 25 de março de 1824. Quanto à
cidadania, diz o artigo 6º item 1º que são cidadãos brasileiros todos os nascidos
no Brasil quer sejam ingênuos (os descendentes de africanos nascidos livres, ou
seja, que nunca foram escravos) ou libertos. Mas, cidadania não era, no texto da
lei, sinônimo de plenitude de direitos políticos. Aqueles que um dia foram escravos
e tornaram-se libertos, juntamente com todos os livres que não possuíam renda
líquida anual de 200$000 (Duzentos mil réis) por bens de indústria, raiz, comércio
ou empregos, e ainda, os criminosos pronunciados, não poderiam votar nas
eleições para deputados, senadores e membros dos conselhos de províncias,
conforme o artigo 94
229
.
Em O fiador dos brasileiros, Keila Grinberg, ao reconstruir a trajetória
política e jurídica de Antonio Pereira Rebouças, argumenta que não havia
teoricamente, na interpretação de Rebouças, uma contradição entre ser liberal e
não deixar de ser escravista. No entanto, “enquanto houve escravidão, não houve
Código Civil no Brasil”
230
. Segundo a autora, um dos maiores empecilhos ao
Código era a transitoriedade da condição civil do cativo que se tornava cidadão ao
conquistar sua alforria. Sobre os libertos sempre pairava a suspeita de serem
cúmplices em levantes de escravos ocorridos nas mais variadas regiões das
Américas. A conjugação das idéias de cidadania e segurança pública esteve no
centro dos debates. Conceder igualdade de direitos políticos a todos foi um tema
228
Para uma ampla análise do tema, Cf. DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na
cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Especialmente o capítulo 13 -
O iluminismo como fonte do pensamento antiescravocrata: a ambivalência do racionalismo,
p. 433-465.
229
SÃO VICENTE, José Antonio Pimenta Bueno, marquês de / organização e introdução de
Eduardo Kugelmas. José Antonio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente. São Paulo: Ed. 34,
2002. Pimenta Bueno refere-se aos citados artigos nas páginas 269, 528, 554 e 555.
230
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 316. A respeito da
situação de exceção da cidadania dos libertos, bem como sobre a tutela estatal e privada sobre
eles exercida Cf. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista - Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, especialmente a
“Quarta parte - ‘Nós tudo hoje é cidadão’”.
de constantes embates entre juristas e políticos, permanecendo sem solução no
Império do Brasil
231
.
Se o Código Civil só passou a vigorar na República, em 1º de janeiro de
1917
232
, o Código Criminal do Império, após a realização de alguns debates e
disputas na comissão mista da Câmara e do Senado que trabalhou no projeto de
Bernardo Pereira de Vasconcelos
233
, entrou em vigor logo em Dezembro de 1830.
O novo código afirmou-se entre muitos juristas dos oitocentos como um corpo de
leis moderno, produzido em sintonia com as mudanças de seu tempo. Norteado
pelo artigo 179 da Constituição de 1824, o Código Criminal não adotou a punição
com a marca de ferro quente. O crime não passava da pessoa do delinqüente
estendendo-se a seus descendentes. Crime e delito, entendidos como palavras
sinônimas, não tinham efeito retroativo, pois nenhum delito poderia existir sem
uma lei anterior que o qualificasse. A pena de morte foi sustentada, mas sem a
distinção entre a forca e o machado — prevalecendo a primeira
234
.
No entanto, apesar de elogiado e tido como inspiração para o Código Penal
Espanhol de 1848, bem como para outros códigos de países da América Latina
235
,
231
Além do estudo de Grinberg, sobre os embates de políticos e juristas em torno do tema do
cativeiro no Brasil Imperial, Cf. PENA, Eduardo Spiller. Os pajens da casa imperial: jurisconsultos,
escravidão e a lei de 1871. Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2001.
232
Iniciado formalmente com o trabalho de compilação das leis existentes, pelo Jurista Augusto
Teixeira de Freitas, que resultou na Consolidação das Leis Civis de 1857, o esforço de produção
de um Código Civil no Império, nas palavras de Keila Grinberg, “não passou de tentativas
individuais”. Teixeira de Freitas não chegou a completar seu “esboço do código”, abandonando a
tarefa, sob a justificativa de “incompatibilidades com o governo”, em 1867. Outros juristas tomaram
para si a empreitada. Em 1872, José Thomaz Nabuco de Araújo iniciou o trabalho que se
encerraria com sua morte em 1878, deixando muitas “notas, mas nenhum texto”. No início da
década de 80, Felício dos Santos também trabalhou na redação de um código civil, mas seus
esforços se esgotaram em 1883 quando a comissão que compunha foi dissolvida. Em 1889 uma
comissão integrada pelo próprio Pedro II, Afonso Pena e Candido de Oliveira tentou levar avante a
produção do código civil no Império, mas o regime ruiu e levou consigo o derradeiro esforço.
Finalmente, em 1899, Clóvis Beviláqua assumiu o posto de “redator do código definitivo”.
GRINBERG, Keila. op. cit.
233
Nas palavras de José Murilo de Carvalho, “Concebido sob a inspiração do utilitarismo de
Bentham, o novo código representou enorme progresso em relação ao Livro V das Ordenações do
Reino, que ainda vigia no país. A qualidade da obra foi reconhecida no exterior, tendo servido de
modelo para a legislação de outros países”. VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. / organização
e introdução de José Murilo de Carvalho. Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34,
1999, p 19 e 20. O Código Criminal de 1830 é mais detidamente analisado em: MALERBA,
Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil.
Maringá: EDUEM, 1994.
234
A respeito do tema da pena de morte no Império do Brasil Cf. SILVA, Francisco Angenor
Ribeiro. Pena de morte no Brasil autônomo. Rio de Janeiro: Gonçalo Ferreira Studio Gráfico
Editora, 1993.
235
PIERANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo:
Jalovi, 1980.
a legislação, que em 1832 foi complementada pelo Código do Processo Penal,
guardava, quanto à escravidão, ambigüidades semelhantes às do período
colonial. Como apontou Luiz Felipe de Alencastro, para a continuação do sistema
escravista no Império foi decisivo “o enquadramento legal”. O Direito assumiu “um
caráter quase constitutivo do escravismo”.
[...] o escravismo não se apresenta como uma herança colonial,
como um vínculo com o passado que o presente oitocentista se
encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um
compromisso para o futuro: o Império retoma e reconstrói a
escravidão no quadro do direito moderno, dentro de um país
independente, projetando-a sobre a contemporaneidade
236
.
A Constituição de 1824, apesar de conter exceções como a que limitava a
cidadania dos libertos nas eleições, não continha nenhuma regra para a definição
jurídica dos que se encontravam no cativeiro. Por um lado, é possível afirmar que
o silêncio do texto constitucional quanto aos cativos era juridicamente sustentável
e reafirmava a escravidão não incluindo coisas ou objetos de propriedade (os
escravos) em regras destinadas a cidadãos. Por outro lado, essa falta de
princípios constitucionais norteadores gerou uma conseqüência direta: os
escravos continuaram a ocupar até a abolição o mesmo banco dos réus livres.
Jurisconsulto, parlamentar e presidente do Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros
237
entre 1861 e 1866, Agostinho Marques Perdigão
Malheiro foi um dos mais destacados pesquisadores dos fundamentos jurídicos —
principalmente alicerçados em argumentos provenientes do Direito Romano —
que sustentaram a legislação a respeito dos escravos no Brasil. Em sua obra mais
conhecida, A escravidão no Brasil, publicada entre 1867 e 1868, o autor é
enfático:
236
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A vida privada e a ordem privada no império. In: NOVAIS,
Fernando Antonio ; ALENCASTRO, Luis Felipe de (orgs). História da vida privada no Brasil:
Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 17.
237
Fundado em 1843, O IAB constituiu-se como um dos principais centros de discussão do Direito
e da prática jurídica dos tribunais na Corte do Rio de Janeiro, bem como em todo o Brasil. Seu
primeiro presidente foi o jurisconsulto, e membro da Constituinte dissolvida em 1823, Conselheiro
Francisco Gê Acaiba de Montezuma. Perdigão Malheiro assumiu a presidência da Ordem entre
1861 e 1866, quando foi eleito para a direção da instituição o Conselheiro José Thomaz Nabuco de
Araújo. Perdigão Malheiro também atuou na Assembléia Geral, pela Província de Minas Gerais,
entre 1869 e 1872 como membro do Partido Conservador. Para uma análise ampla deste instituto,
de seus membros, bem como dos debates que ali se travaram a respeito da elaboração da Lei do
Elemento Servil de 1871, Cf. PENA, Eduardo Spiller, op. cit.
Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente
dele, não é coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente
humano, um homem enfim, igual pela natureza aos outros
homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e
diretamente pelos delitos que cometa; o que foi sempre sem
questão.
238
Entretanto, na mesma obra, Perdigão Malheiro assevera que as penas
relativas aos escravos eram entendidas como exceções ou excepcionalidades. O
Código Criminal do Império impunha exclusivamente ao condenado escravo,
quando sentenciado a outras penas, que não à de morte ou galés perpétuas
239
, a
substituição da pena de prisão pela de açoites, que não poderiam ultrapassar a
quantidade de cinqüenta por dia, complementada pelo uso de ferros nos pés ou
pescoço durante o período determinado pelo juiz. Pena exclusiva dos escravos
desde as últimas décadas do século XVIII
240
, os açoites só foram abolidos no
Brasil em 1886
241
.
Diferente do Livro V, não havia no Código do Império destaques artigo a
artigo que explicavam a maneira de se imputar pena aos escravos. Havia um
artigo (o de número 60) que se encarregava de prescrever a exceção para o caso
dos condenados escravos, o qual deveria ser considerado pelos juízes na
aplicação de todas as leis penais então vigentes. O mesmo código, entretanto,
não possuía uma lei específica para a punição do escravo que assassinasse seu
238
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. op. cit., p. 49. Perdigão salienta que, embora
pudesse ser apenado como qualquer pessoa liberta ou livre, o cativo não podia recorrer à justiça
ou ser por ela julgado senão sob a mediação de uma pessoa livre capaz, quando o senhor não o
fizesse como seu curador natural. Além disso, “o escravo não podia dar denúncia contra o senhor”;
não depunha como testemunha jurada, apenas informante, ou seja, a validade ou não das
declarações por ele prestadas em juízo era avaliada pela autoridade que presidia a respectiva fase
do processo. No final dos oitocentos, com o aumento das pressões, tanto dos escravos quanto de
políticos e juristas, a legislação sofreu modificações tornando possível ao cativo informar como
testemunha em processo movido contra o seu senhor, nas ocasiões em que a causa versasse a
respeito de fatos da vida doméstica, ou que, por outra maneira não se pudesse conhecer a
verdade. Por fatos da vida doméstica, entendia José Maria Vidal, os casos em que o Juiz de
Órfãos da localidade realizasse “averiguações de maus tratos, atos imorais e privação de
alimentos”.
VIDAL, José Maria. Repertório da legislação servil. Rio de Janeiro: H. Laemmert, 1883,
p.50.
239
“Art. 44 – A pena de galés sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro,
juntos ou separados, e a empregar-se nos trabalhos públicos da província onde tiver sido cometido
o delito à disposição do governo.” Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular
de A.A. da Cruz Coutinho, 1885, p. 115.
240
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. op. cit.
241
Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de
Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A.A. da Cruz Coutinho,
1885, Artigo 60, p. 137-141.
senhor ou qualquer outra pessoa, salvo quando se caracterizava o crime de
insurreição.
Nas suas Anotações Teóricas e Práticas ao Código Criminal do Império, o
jurista oitocentista Thomas Alves Júnior encontrava no crime de insurreição uma
das maiores falhas da obra. Segundo ele, a escravidão gerava uma população
diversa em direitos e deveres do restante dos membros da sociedade, logo, esses
direitos e deveres distintos não podiam “ser classificados e definidos por um
código comum”. Ele ia mais longe, argumentava que os crimes cometidos por
escravos revestiam-se de “caráter e gravidade especiais”, e necessitavam de leis,
procedimentos processuais e julgamentos especiais
242
.
Mas, os partidários do que seria uma espécie de “código negro brasileiro”
não foram ouvidos. O crime de insurreição não só definia a punição para as
reuniões de vinte ou mais escravos “para haverem a liberdade por meio da força”,
como estendia a mesma punição dos cativos aos livres identificados como
cabeças do levante, punindo ainda, na forma do artigo 115, todos aqueles que
participassem da insurreição incitando ou ajudando os escravos a se rebelar
“fornecendo-lhes armas, munições ou outros meios para o mesmo fim
243
.
Estudioso de uma das insurreições de escravos que mais repercutiu no Império, o
levante dos Malês ocorrido em Salvador na Bahia em 1835, João José Reis
argumenta que:
O artigo 115 tinha como único objetivo atribuir ao homem livre,
mas sobretudo ao liberto, uma maior periculosidade para
distingui-lo do escravo e justificar sentenças mais duras. E o alvo
principal dessa lei eram forros de origem africana, pois eles e
seus patrícios escravos eram os que se rebelavam com maior
freqüência no Brasil, e na Bahia em particular”
244
.
242
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Anotações teóricas e práticas ao Código Criminal. Rio de
Janeiro: Francisco Luiz Pinto & C. editores, 1864. Tomo II, p. 312.
243
Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente
Alves de Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A.A. da
Cruz Coutinho, 1885, p. 212. Apesar de haver lei específica para os cativos revoltosos no
Império, durante a composição do processo criminal que culminou com o julgamento e
punição dos membros “da luta armada que se desenrolou na província de Pernambuco,
entre novembro de 1848 e abril de 1849” (Praieira), pessoas livres de diferentes estratos
sociais e escravos réus foram reunidos no crime de Rebelião (artigo 110 do Código Criminal
do Império). Para uma análise específica deste episódio, Cf. MARSON, Izabel Andrade. O
‘cidadão-criminoso’: o engendramento da igualdade entre homens livres e escravos no
Brasil durante o segundo reinado. Estudos Afro-Asiáticos nº 16, 1989.
244
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Edição
revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 452.
Contudo, mesmo julgados culpados pelos crimes punidos com a morte
245
(insurreição, homicídio agravado
246
e roubo com morte) livres e escravos
condenados em primeira instância só subiriam ao patíbulo após serem negados
todos os recursos jurídicos previstos (apelação, protesto por novo julgamento e
revista
247
). Ainda assim, antes da forca era facultado ao condenado o direito de
recorrer à Imperial Clemência que, por meio de uma das atribuições do Poder
Moderador, podia perdoá-lo, mudar a pena (comutação) ou mandar executar a
sentença.
Menos de cinco anos se passaram desde a promulgação do Código
Criminal do Império em 1830, os problemas com notícias de planejamento de
insurreições e assassinatos de senhores se impuseram, e a lei nº. 4 de 10 de
junho de 1835 suspendeu a possibilidade dos recursos aos cativos condenados
pelo assassinato ou prática de ferimentos graves contra seus senhores, os
familiares dos seus senhores e prepostos (administradores e feitores, bem como
as mulheres que com eles vivessem). Estabeleceu a mesma lei que, nestes
casos, nos crimes de insurreição e em outros cometidos por cativos para os quais
estivesse prevista a pena de morte, o julgamento fosse realizado o mais
brevemente possível, reunindo-se extraordinariamente o júri do termo se
necessário. As penas variavam dos açoites, caso os ferimentos fossem
considerados de menor gravidade, até a morte, que não poderia ser decidida por
245
Para o estudo da pena de morte no Império do Brasil Cf. RIBEIRO, Agenor. op. cit.
246
Agravavam o homicídio as seguintes circunstâncias: matar ascendentes, descendentes,
mestres e superiores ou outra qualquer pessoa que ocupasse o lugar de pai do ofensor; ou
cometer o homicídio usando venenos, incêndio ou inundação; ou ter ocorrido um acordo prévio
entre duas ou mais pessoas para a execução da morte; ou abusando o assassino da confiança
nele depositada; ou ter o assassino praticado a morte por pagamento ou expectativa de receber
uma recompensa; ou preparando emboscadas; ou ainda, praticando arrombamento ou invasão na
casa da vítima para matá-la. Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular
de A.A. da Cruz Coutinho, 1885. Homicídio, artigo 192, p. 335-350. As agravantes previstas no
artigo 192 encontram-se no artigo 16, parágrafos 2, 7, 10, 11, 12, 13, 14, 17, p. 62 a 77. Para o
crime de roubo com morte (latrocínio), ver artigo 271, p. 460-461.
247
A hierarquia, função e os procedimentos necessários para cada tipo de recurso estavam
prescritos no Código do Processo Criminal. Para uma visão ampla desta legislação, bem como da
infinidade de interpretações e complementações posteriores, Cf. Código do Processo Criminal de
Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de dezembro de 1841 n..º 261, comentado e
anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos
Santos Livreiro–Editor, 1899.
maioria simples. Ou seja, para que se condenasse o escravo à morte era
necessário que dois terços dos jurados votassem pela culpa do réu
248
.
É significativo observar que, ainda no século XIX, ao comentar o título 41
do Livro V das Ordenações Filipinas — o qual, como foi visto no tópico anterior
deste capítulo, punia com a morte precedida de tormentos o escravo que matasse
o senhor — Cândido Mendes de Almeida se veja impelido a colocar uma nota na
expressão matar o senhor, que diz: “este crime tem lei especial entre nós o
Decreto de 1835”. Por mais que se possa argumentar que essa nota era um
corriqueiro exercício de erudição do jurista, aos olhos do presente, ela sugere uma
linha de continuidade entre o título 41 Livro V e a lei de 1835 que integrou a
coleção das leis do Império do Brasil.
Perdigão Malheiro cerrava fileiras com os críticos da lei de 1835:
Esta legislação excepcional contra o escravo, sobretudo em
relação ao senhor, a aplicação da pena de açoites, o abuso da
de morte, a interdição de recursos, carecem de reforma. Nem
estão de acordo com os princípios da ciência, nem esse
excesso de rigor tem produzido os efeitos que dele se
esperavam. A história e a estatística criminal do Império têm
continuado a registrar os mesmos delitos. E só melhorará, à
proporção que os costumes se forem modificando em bem do
mísero escravo, tornando-lhe mais suportável ou menos
intolerável o cativeiro, e finalmente abolindo-se a
escravidão
249
.
Mesmo sofrendo diversos ataques como esse, a lei de 1835 nunca foi
totalmente abolida enquanto vigeu o cativeiro no Brasil. Apenas algumas
correções foram feitas. Num primeiro momento a imediata execução da sentença
foi suspensa, para que houvesse tempo de se empreender uma revisão dos autos
antes da consumação da pena. Posteriormente, em 1837, o recurso à Graça
Imperial foi permitido aos cativos condenados à morte por homicídios que não
vitimaram seus proprietários. Um aviso de 1849 mandava estender aos cativos
condenados na lei de 1835 um dispositivo geral do Código do Processo que
proibia a aplicação da pena de morte nos casos em que a única prova contra o réu
era a confissão. Mais tarde, em 1854, os escravos que vitimaram seus senhores
248
Coleção das Leis do Império do Brasil (1835- 1ª Parte). Rio de Janeiro: Tipografia Nacional,
1864.
249
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão, op. cit., p. 47.
também puderam fazer suas condenações subirem à apreciação da Clemência
Imperial
250
.
Nos tribunais, os interesses em jogo tornavam a situação bem mais
complexa. Caso a caso — com atuação dos solicitadores de causas e advogados
contratados pelos senhores ou mesmo daqueles que defenderam os cativos réus
por seus próprios ideais
251
— as instâncias superiores da justiça foram obrigadas
a emitir uma infinidade de interpretações e senões à aplicação da lei de 1835. Em
1868 um acórdão do Tribunal da Relação da Corte dizia que, uma vez negado por
empate o quesito sobre a qualidade de feitor da vítima, seria o réu julgado com
base no código e não na lei de 1835. Em 1873, outra decisão da Relação da Corte
desclassificava da lei de 1835 o escravo menor. A Relação da Bahia afirmou que
matar e tentar matar eram crimes distintos, assim entendeu o tribunal que a
tentativa de morte não estava contemplada na lei de 1835, devendo o escravo ser
julgado com base no código. Outro acórdão da relação da Corte de 1880
confirmava a interpretação do Tribunal da Bahia quanto a exclusão dos crimes
não consumados e entendia que os cativos réus por cumplicidade também
estavam fora da lei de 1835. Por fim, um novo acórdão da Relação da Corte, de
1881, dizia que o escravo que matasse o feitor e fosse abandonado pelo senhor
no correr do processo não devia ser julgado com base na lei de 1835
252
.
Ser julgado com base no Código Criminal e não na lei de 1835 era sem
dúvida uma vitória da defesa ocorrida antes mesmo da decisão dos jurados pela
culpa ou inocência do cativo. Significava a possibilidade de o réu escravo
recuperar os mesmos direitos e instrumentos de defesa dos réus livres. Era, por
exemplo, a possibilidade dos defensores contarem com a argumentação de que
250
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3
de dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899. Ver também:
GOULART, José Alípio. Da palmatória ao patíbulo. Rio de Janeiro: Conquista/INL, 1971;
LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia negra e abolicionismo. Rio de Janeiro: Achimaé, 1981 e
RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de
1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005.
251
A esse respeito, Cf. AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo
na província de São Paulo na segunda metade do século XIX. 2003. Tese (Doutorado em História)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
252
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de
dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899. As decisões citadas
constam nas notas do autor ao crime de morte previsto pelo artigo 192, p. 341-349.
para a prática do crime existiu alguma das circunstâncias atenuantes previstas no
Código Criminal — estratégia que uma vez acatada pelo júri, resultava
efetivamente na diminuição da pena. Em caso de condenação pelo código e não
pela lei de 1835 retornava a possibilidade do defensor impetrar recursos contra as
sentenças condenatórias às instâncias superiores da justiça.
Vicente Alves de Paula Pessoa — um dos mais citados anotadores e
intérpretes do Código Criminal do Império entre seus pares — afirmava não
conhecer nenhuma justificativa para não se estenderem aos casos da lei de 1835
todos os recursos jurídicos previstos para os outros tipos de crime.
Não vemos nisto o menor perigo e nem o admitimos quando a
reflexão, a calma, a verdade e a justiça não podem ser excluídas
das ações humanas, maxime tratando-se de um julgamento em
que muitas vezes entra a paixão e tanto mais se considerar que o
escravo não é tido por muitos como um ser racional. Haja a
máxima severidade quando o crime é o da lei de 1835, mas
admitam-se todos os recursos e todos os meios de defesa, tanto
mais necessários por isto que o escravo é de uma triste e infeliz
condição. A sociedade não tem o direito de tais meios para se
manter e nem o rigor demasiado moralizou nunca
253
.
É preciso asseverar, contudo, que a lei teve longevidade. Os escravos
assassinos de seus senhores, feitores e administradores continuaram a
subir ao patíbulo até a segunda metade dos oitocentos, quando a prática da
substituição da pena de morte pela de galés perpétuas ou prisão perpétua
com trabalhos, para condenados escravos ou livres, tornou-se uma
recorrência imposta pela intervenção do Poder Moderador, obrigatoriamente
ouvido antes das execuções.
No fim dos anos 1860, quando era ainda um jovem estudante de
direito no Recife, Joaquim Nabuco atuou em três julgamentos de escravos.
Em suas palavras, “eram todos crimes de escravos, ou antes atribuídos a
escravos [...] alcancei três galés perpétuas
254
”. Nesse período de fim da vida
acadêmica, Nabuco preparava um estudo, que classificou como “uma
253
Código Criminal do Império do Brasil: Comentado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A. A. Da Cruz Coutinho, 1885,
nota 594 (oo), p. 349.
254
NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004. p. 47.
espécie de Perdigão Malheiro inédito sobre a escravidão entre nós
255
”, o
qual ficou incompleto. Era A Escravidão, escrito em 1870, mas publicado
pela primeira vez apenas em meados do século XX pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Nesse texto, Nabuco expressa sua inconformidade
com as leis de exceção contra os escravos e defende a idéia de que apesar
de “não ter o escravo o direito de matar o seu senhor, assim como não é
atenuante a condição servil
256
”, maior que o crime de um escravo é o crime
de escravidão. O autor cita a Virgínia, então um “dos estados escravagistas
da União americana
257
”, que possuía em sua legislação 71 casos de pena de
morte exclusivamente para os negros, mas não deixa de qualificar a lei
brasileira de 1835, como o nosso código negro.
Comparados alguns aspectos da punição de cativos criminosos pela
justiça nos períodos anterior e posterior à Independência, é possível
concluir que não havia um descompasso ou um atraso nas leis penais
brasileiras do período imperial em relação a outros países que também
abandonaram legislações baseadas nos fundamentos do Antigo Regime
para reger-se por leis de base iluminista. O que existia era a manutenção do
cativeiro e com ele a perpetuação de uma situação de exceção que se
acomodou à sociedade, até que a própria sociedade, inclusive os escravos,
movida por interesses, pressões, ideais e aspirações derrubou o
escravismo.
Até aqui foi possível observar que os crimes cometidos por escravos
se vinculavam tanto às questões de segurança pública (insurreição) quanto
às de segurança individual (a lei de 1835). Ambas as situações, tanto no
período imperial, quanto entre historiadores da atualidade, são mais
diretamente associadas à noção de criminalidade escrava. Viu-se ainda, que
os principais debates a respeito da legislação penal contra os cativos
também se focavam mais recorrentemente nestes dois tipos de crime. No
entanto, é preciso lembrar que embora de grande repercussão e
importância, em diferentes localidades do país, estes dois tipos de crimes
constituíam a minoria dentre os processos criminais que envolveram cativos
255
Ibidem, p. 47.
256
NABUCO, Joaquim. A Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 40.
257
Ibidem, p. 35.
como réus. Aspecto que torna relevante analisar os conflitos de interesse e
a prática jurídica dos tribunais em casos de crimes que envolviam, em
condições semelhantes, livres, libertos e escravos. Para tanto, voltemos
uma vez mais ao nordeste paulista.
3.2 - Livres e escravos na sala das sessões do júri
A partir da década de 30 do século XIX havia em cada Comarca do
Brasil três tipos diferentes de juiz diretamente envolvidos nas questões
criminais: o juiz de paz, o juiz municipal e o juiz de direito. Até 1841, o cargo
de juiz de paz reunia poderes administrativos e policiais e, portanto, era
disputadíssimo pelas facções políticas locais que, em geral digladiavam-se
nos períodos de eleição. Em Franca, como pudemos ver no capítulo anterior,
o final da década de 1830 era de grande desassossego. Os ânimos estavam
exaltados, Anselmo Ferreira de Barcelos havia promovido suas três
incursões na vila — só a última pacificamente.
Escolhido pela presidência da província, dentre os três nomes
indicados pela Câmara Municipal para ocupar o cargo de juiz municipal,
Antonio Francisco Junqueira declinou. Junqueira remeteu um ofício à
Câmara, no qual alegava que apesar de ser fazendeiro, sua fortuna ainda
estava no início e a aceitação do cargo seria o mesmo que a “sua redução à
mendicidade”. A Câmara retransmitiu o pedido de dispensa à presidência da
província, explicando as razões alegadas por Junqueira: “Sua família consta
de sua mulher, filhos menores e escravos e, por isso, não lhe será pouco
difícil deixar sua casa muitas repetidas vezes”. Junqueira insistia que não
lhe agradava a idéia “de deixar sua mulher e filhos pequenos unicamente
acompanhados por escravos, num lugar distante da povoação e com
vizinhos não muito bem morigerados”
258
. Nessa época, foi criada a 7ª
Comarca da Província de São Paulo que abarcou Mogi Mirim e Franca como
termos. No entanto, o termo de Franca era composto pelas vilas Franca do
Imperador e Batatais, a última ereta vila e escolhida como cabeça do termo
258
Ofícios Diversos Franca, lata 01019, pasta 2, documentos 35 e 35B, 1839, DAESP.
para que pudesse sediar o julgamento de Anselmo
259
. Uma vasta e
conturbada área que Junqueira não quis assumir.
Dois anos mais tarde, a lei de 3 de dezembro de 1841 reformou o
Código do Processo Criminal e definiu uma nova hierarquia para o aparato
policial e judiciário, centralizada diretamente no ministro da justiça. O juiz de
paz foi destituído da maioria de suas funções policiais, sendo substituído
pelos delegados e subdelegados de polícia. Na prática, em muitos casos, os
mesmos homens que assumiram o cargo de juízes de paz acabaram
ocupando também a função de delegado de polícia, não mais eleitos, e sim
indicados pelo chefe de polícia, outro novo posto criado pela reforma.
O cargo de juiz municipal sofreu uma alteração significativa. Conforme
prescrevia a lei de 1832, na ausência de um bacharel em direito ou alguém
versado em leis, a função poderia ser ocupada por uma pessoa de bom
conceito na localidade. Após 1841, com a supressão dessa possibilidade, o
cargo se tornou uma espécie de campo de provas para o jovem bacharel em
direito
260
com pelo menos um ano de prática forense após a formatura, que
desejava ascender na carreira. Após servirem durante quatro anos como
juízes municipais, responsáveis pela justiça nas subdivisões das comarcas
(os termos), os bacharéis subiriam ao cargo de juiz de direito, de acordo
com a necessidade e disponibilidade de vagas
261
. A transferência para uma
comarca remota, contudo, nem sempre era entendida como uma promoção.
Muitas vezes, e Franca podia ser incluída nesses casos, a transferência
tornava-se um castigo ou, no mínimo, uma moeda de troca negociada em
função dos posicionamentos políticos dos candidatos em relação ao
governo central
262
.
Em 14 de setembro de 1840, o juiz de direito da 7ª Comarca
263
,
Joaquim Firmino Pereira Jorge, enviou de Franca uma correspondência
259
CONSTANTINO, Antonio. Crônicas Francanas: 17 de julho de 1852, data histórica.
Comércio da Franca, Franca 19 de julho de 1931.
260
FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, 1808-1871: control social y
estabilidad política en el nuevo Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.
261
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil com a Lei de 3 de
dezembro de 1841 n..º 261, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899.
262
FLORY, Thomas. op. cit..
263
Como já mencionado no capítulo anterior, o nome Comarca de Franca só passou a existir
reservada ao então Presidente da Província de São Paulo, Rafael Tobias de
Aguiar, ressaltando que seu trabalho havia rendido pelo menos um fruto:
[...] tenho feito todos os esforços para acabar o bárbaro e
inveterado costume que achei nesta Comarca especialmente
neste termo de andarem todos ou quase todos carregados de
armas proibidas mesmo no centro das povoações; e apesar
das absolvições que conseguem no júri os que são
processados por um tal crime — o que não está ao alcance
de um Juiz de Direito evitar — lisonjeio-me de que hoje é
esta Vila, entre todos os lugares por onde passo na estrada
que sai a essa Capital aonde é raro aparecer um indivíduo
com armas
264
”.
Embora não seja possível afirmar se o trabalho deste juiz em particular
tenha ou não surtido o efeito alegado, nota-se, ao compulsar a documentação do
cartório criminal de Franca, que entre as décadas de 1840 e 1850 o número de
processos criminais instaurados para a apuração do crime de “uso de armas
defesas
265
”, bem como, de todos os outros tipos de crimes na região, elevou-se
significativamente (ver Gráfico 7).
É curioso observar que nas décadas 1860, 70 e 80, quando as hostilidades
entre grupos políticos locais
266
— então principalmente divididos entre liberais e
conservadores — voltaram a se acirrar no município, o número de processos
motivados por crimes como ameaças, calúnias, injúrias, roubos, furtos e danos
voltaram a decrescer. Este movimento dos números da criminalidade sugere que
a justiça acabou por se tornar menos eficiente em sua função de mediar os
conflitos locais. Ademais, a leitura dos processos criminais de Franca indica que
no mesmo período (1860, 70 e 80) os crimes contra “a boa ordem e administração
pública” — que apuravam principalmente o envolvimento de escrivães, delegados
oficialmente com a criação da 16ª Comarca da Província de São Paulo em 1852.
264
Ofícios dos Juízes de Direito - Franca, ordem 4773, 1836, DAESP.
265
No Gráfico 5, o crime de “uso de armas defesas” está compreendido no item “Outros tipos de
Crimes”. Particularmente, os processos por este crime subiram de 7 na década de 1840-49 para
20 na década de 1850-59.
266
A conformação dos principais grupos políticos de Franca até meados do século XIX foi
estudada em: MARTINS, Antonio Marco Ventura. Um império a constituir, uma ordem a consolidar:
elites políticas e Estado no sertão, Franca-SP, 1824-1852. 2001. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista. Franca.
O mesmo tema, no período posterior do século foi analisado em: NALDI, Mildred Regina
Gonçalves. Coronelismo e poder local: Franca 1850-1889. Franca: UNESP, 1992.
e juízes e em causas que envolviam abusos de autoridade, descumprimento de
leis e até desaparecimento de processos — tornaram-se bem mais freqüentes.
Gráfico 7
Progressão dos Crimes
(Município de Franca 1830-1888)
-
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
1830-39 1840-49 1850-59 1860-69 1870-79 1880-88
Homicídios e Ferimentos
Roubos, Furtos e Danos
Calúnias, Injúrias e Ameaças
Outros tipos de crimes
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888,
AHMUF.
Poderíamos supor que a queda dos números estivesse ligada ao
movimento populacional da região. Mas, em desabono dessa hipótese figura a
progressão dos números de crimes contra a pessoa. Com exceção do período
compreendido entre meados dos anos quarenta e cinqüenta, o número de
processos deste tipo não chegou a sofrer grandes alterações, mantendo-se uma
variação de dez crimes a cada década (ver Gráfico 7). Em Franca, como de resto
em todo o país, quando estudados a partir da documentação remanescente da
justiça, os chamados crimes violentos, figuraram sempre como a grande maioria,
tanto em relação aos réus livres, quanto aos libertos e também aos escravos.
Analisados a partir dos números do judiciário, os crimes contra a
propriedade sempre se apresentaram pouco expressivos na região. É possível
inferir que nestes casos, com exceção da década de cinqüenta, prevaleceram os
acertos pessoais resolvidos longe da pena dos escrivães. No entanto, da mesma
maneira que encontramos crimes de libertos entre os de homens livres, também é
possível localizar crimes de sangue que tinham como motivação acertos de
dívidas e disputas por bens.
Quem passou pelas imediações das ruas do Ouvidor e da Outra Banda por
volta das cinco horas da tarde de 07 de junho de 1854 presenciou um tumulto
envolvendo cinco escravos de José Francisco da Costa e o liberto Matias de
Nação Benguela. Dias antes do conflito, Matias procurou o escravo Olímpio para
cobrar-lhe uma dívida. O cativo não pagou e ainda prometeu ao liberto que na
próxima vez em que se encontrassem o acerto seria com pancadas. Dito e feito.
Olímpio, acompanhado de seus parceiros de cativeiro João, Malaquias, Manoel e
Adão cercaram o liberto Matias e deram nele muitas pancadas. Todos foram
presos, menos Olímpio.
Começaram os conflitos entre o senhor dos escravos e as autoridades
policiais. Quase toda a fortuna de José Francisco da Costa fora colocada na
cadeia para responder por um crime de ferimentos. Imediatamente, o senhor
mandou redigir um pedido de habeas-corpus para a soltura dos cativos. O
delegado acatou o pedido, mas o subdelegado conseguiu, por meio de uma
manobra, revogá-lo. Apesar de ser subordinado ao delegado, seu auxiliar remeteu
uma petição diretamente ao juiz que mandou prender os cativos novamente. O
senhor impetrou um pedido de soltura dos escravos por meio do pagamento de
fiança. José Francisco da Costa ofereceu em garantia sua própria fazenda,
denominada Pouso Alto, avaliada em 1.000$000 (um conto de réis). O valor
deveria ser pago caso os cativos fugissem ou fossem considerados culpados pelo
júri.
Restava ainda ao solicitador de causas contratado pelo senhor preparar a
defesa dos quatro cativos julgados pelos ferimentos causados no liberto Matias de
Nação. A estratégia foi relativamente simples. O defensor argumentou que
Olímpio, o escravo que tinha logrado sucesso na fuga, foi o único a espancar
Matias, já os demais escravos apenas passavam coincidentemente pelo local na
hora do crime e foram presos pelos soldados por pertencerem ao mesmo senhor.
Todos os cativos julgados foram inocentados
267
.
Motivados por questões financeiras, os crimes cometidos por cativos contra
libertos em Franca acabavam por chegar à justiça na forma de crimes de sangue.
267
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo nº. 798, cx. 29, 1867, AHMUF.
Alguns crimes praticados exclusivamente entre livres, como veremos adiante
também tinham esta motivação. No entanto, as intervenções senhoriais para
proteger o patrimônio contido em cada escravo faziam grande diferença quando
livres e cativos sentavam-se no banco dos réus. Além das leis mencionadas no
início deste capítulo, havia outro dispositivo do Código Criminal do Império sempre
acionado em casos de crimes cometidos por livres contra outros livres e destes
contra escravos.
A composição dos relatórios provinciais e ministeriais, analisados no
capítulo 1 deste estudo, começava nas cabeças dos termos de cada comarca. As
autoridades locais eram encarregadas de preparar mapas detalhados que
relacionavam os crimes cometidos em cada distrito, as características dos
criminosos, bem como o resultado dos processos. Em casos de crimes
considerados mais graves, os juízes pessoalmente redigiam comentários mais
longos e pormenorizados. Em 1868, o juiz de direito da Comarca de Franca,
Francisco Lourenço de Freitas, assim definiu um criminoso de morte: “O réu de
costumes muito rústicos e de caráter selvagem, morador em lugar agreste distante
desta cidade tem por costume castigar seus filhos e escravos barbaramente
268
”. O
juiz falava de José Magdaleno da Silva.
Em dezembro de 1867, na fazenda do Chapadão, José Magdaleno da
Silva trabalhava cavando covas para o plantio de milho com seus dois filhos
menores: Joaquim, de oito anos, e Pedro, de dez anos. A certa altura do
trabalho José Magdaleno repreendeu seu filho mais velho por estragar duas
covas. O filho teria “respondido desabridamente” ao pai, que por isso
resolveu castigá-lo. Outros homens trabalhavam próximos e podiam
interferir na aplicação do castigo imaginado pelo pai. José Magdaleno
apanhou um laço de couro trançado, amarrou os braços da criança à cauda
de um cavalo e mandou que seu outro filho, Joaquim, conduzisse o irmão
até a sua casa. O pai seguiu atrás de seus dois filhos. A certa altura do
caminho, José Magdaleno percebeu que Pedro conseguiria se desvencilhar
do cavalo e ordenou a Joaquim que lhe entregasse o cabresto. Joaquim,
percebendo que o pai castigaria Pedro longe de casa para que sua mãe não
o impedisse, soltou o cavalo e correu para avisar a mãe. Assustado, o cavalo
268
Ofícios Diversos Franca, lata 01022, pasta 3, documento 116 A, 1868, DAESP.
disparou arrastando o menino Pedro pelo chão por cerca de 100 braças
269
até que o laço se arrebentou. Seriamente ferido, Pedro foi levado para casa,
onde morreu uma hora mais tarde.
Durante o julgamento, José Magdaleno foi perguntado pelo juiz de
direito pelo motivo que o levara a não refletir sobre as conseqüências de seu
ato antes de fazê-lo. O pai réu respondeu que seu único objetivo era evitar
que seu filho escapasse da “merecida correção”. Apesar da comoção gerada
pela morte do menino Pedro, José Magadlaeno foi absolvido por
unanimidade de votos. Sua defesa foi baseada em duas circunstâncias
atenuantes: “não ter havido no delinqüente pleno conhecimento do mal e
direta intenção de o praticar” e “ter o delinqüente cometido o crime em
desafronta de alguma injúria ou desonra que lhe fosse feita, ou a seus
ascendentes, descendentes cônjuge e irmãos
270
”. O defensor arrematou a
sua argumentação dizendo: “é lícito a todo pai castigar o filho culpado,
podendo para isso amarrá-lo e até prendê-lo, contanto que seja moderado o
castigo“
271
.
Ao retomarmos a crítica do juiz de direito, no comentário dirigido ao
Presidente da Província de São Paulo a respeito de José Magdaleno, vemos
que o magistrado descrevia um homem rude cujo costume era o de castigar
barbaramente seus filhos e escravos. Parece claro que o objetivo do juiz era
o de relacionar a idéia do castigo bárbaro com um comportamento
inaceitável, próprio de homens rústicos que habitavam lugares agrestes. No
entanto, sob o ponto de vista criminal o castigo era uma prática sancionada,
como afirmou o advogado de José Magdaleno. Ao compor sua
argumentação, o defensor se referiu a um artigo do próprio Código Criminal
do Império que, pelo menos em tese, expunha livres e escravos ao mesmo
tipo de tratamento.
“Capítulo 2 – Dos Crimes Justificáveis: Art. 14. Será o crime
justificável, e não terá lugar a punição dele [...] § 6º. Quando o
269
Aproximadamente duzentos e vinte metros.
270
Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de
Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A.A. da Cruz Coutinho,
1885, 82.
271
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo nº. 674, cx. 25, 1867, folha 45 verso,
AHMUF.
mal consistir no castigo moderado que os pais derem a seus
filhos, os senhores a seus escravos e os mestres a seus
discípulos, ou desse castigo resultar, uma vez que a
qualidade dele não seja contrária à lei em vigor
272
”.
Uma das brechas encontradas pelos defensores que lançavam mão do
artigo 14 residia exatamente na carga excessivamente subjetiva da
expressão “castigar moderadamente”, principalmente, numa sociedade
onde a punição física estava incorporada ao universo das práticas toleradas.
Ademais, diferente do que aconteceu em outros crimes que também
envolveram homens livres como réus, no caso de José Magdaleno, não
houve nenhum interesse por parte do juiz de direito ou do promotor público
em recorrer da sentença de absolvição, o que demonstra certa conformidade
destas autoridades com o desfecho do caso.
É possível concordar que nem todas as pessoas compreendidas nos
casos mencionados pela lei chegassem a extremos como os de José
Magdaleno, entretanto, o direito de castigar fisicamente era reivindicado por
todos — pais, senhores e mestres. Em 1833, a Câmara Municipal de Franca
levou ao conhecimento do Presidente da Província a decisão de autorizar o
professor de primeiras letras da vila a utilizar a palmatória. Segundo o
requerimento, o professor e os vereadores se preocupavam com a proibição
dos castigos “moderados, decentes e prudentes”, pois, escreveram eles:
“quase ordinariamente os meninos todos, por falta de madureza só a esses
são sensíveis
273
”.
A mesma estratégia usada para absolver José Magadaleno foi
largamente empregada pelos advogados dos senhores levados à justiça, em
geral pela ação da “voz pública”, por motivos de sevícias e até do
assassinato de seus escravos. Mas, na década de setenta dos oitocentos,
mesmo numa localidade sem grandes escravarias, juízes e promotores
tinham especial atenção quando o assunto era um cativo morto em
circunstâncias mal explicadas.
272
Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo Conselheiro Vicente Alves de
Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A.A. da Cruz Coutinho,
1885, p.52 e 59.
273
Ofícios Diversos Franca, lata 01018, pasta 1, documento 100, 1833, DAESP.
O corpo do escravo Tiburcio, outra criança de dez anos, foi colocado
no Adro da Igreja Matriz de Franca para aguardar a chegada do promotor
público e dos peritos que realizariam o Auto de Corpo de Delito. Antonio
Bernardes Pinto, senhor do cativo, limitou-se a informar na ocasião que
Tibúrcio havia morrido repentinamente. Ao examinarem o corpo, entretanto,
os peritos encontraram marcas de castigos nas pernas e nas costas, além
de dois ferimentos na cabeça de Tibúrcio, que teriam sido os causadores de
sua morte.
Interrogado, Antonio Bernardes disse que seu cativo apresentava um
comportamento incomum na roça. A tarefa do sábado era plantar sementes
de café. Juntos trabalhavam: o senhor, um cativo mais velho, um outro
escravo de quinze anos, chamado Luiz, e Tibúrcio. Ao longe, o senhor
observou que, de tempos em tempos, o cativo parava de plantar, fixava os
olhos em diferentes lugares, ria e cantarolava. Pensando que Tibúrcio estava
brincando, o senhor resolveu puxar-lhe a orelha. O escravo esquivou-se,
jogou sobre o senhor a bacia com as sementes de café e começou a correr
pela roça. Antonio Bernardes e um dos escravos colocaram-se a persegui-lo
até que, ao tentar saltar um galho, Tibúrcio levou um tombo, levantou-se,
mas caiu novamente e foi agarrado pelo pescoço por Antonio Bernardes. O
senhor deu-lhe várias pancadas com um cipó, entregou-lhe uma enxada e
mandou que ele o acompanha-se na perfuração das covas, onde o café seria
plantado. Recomeçado o serviço, após perfurar duas covas a criança voltou
a cantarolar e, novamente “com os olhos perdidos”, largou a enxada e foi
sentar-se em um tronco.
No dia anterior, Tibúrcio havia passado muito tempo trabalhando sob
o sol forte em uma horta, motivo que levou o seu senhor a supor que o
cativo estava doente. O senhor mandou que um dos escravos levasse
Tibúrcio para tomar água, mas, como era preciso saltar uma cerca, o cativo
recusou-se. Vendo que a cabeça do escravo sangrava, Antonio Bernardes
resolveu mandar o escravo mais velho levar Tibúrcio para casa. Após o
trabalho, o senhor deu água ardente ao menino, passou remédio no
ferimento da cabeça e o mandou dormir. No outro dia, Tibúrcio não acordou,
estava morto.
Ninguém presenciou a cena a não ser o senhor e seus escravos.
Contudo, um homem livre, conhecido por José Floriano, disse ter ouvido do
cativo Luiz que os ferimentos na cabeça de Tibúrcio não foram provocados
pelos tombos. Luiz teria afirmado que o senhor espancou Tibúrcio com uma
estaca — usada para marcar os locais onde seriam perfuradas as covas do
café — até o menino ficar desacordado. Vendo os ferimentos de Tibúrcio,
José Floriano disse ter se convencido de não se tratar de uma morte
repentina.
Ouvido como informante, o escravo Luiz inicialmente nada
acrescentou à versão dada em juízo pelo senhor. No entanto, ao ser
perguntado pelo promotor público a respeito do teor de sua conversa com
José Floriano, Luiz disse que incriminou o senhor para que todos na casa
ficassem livres. O cativo disse ainda, que a ordem para assim proceder
partiu do marido de sua irmã Cristina, todos escravos de Antonio Bernardes.
O cunhado, que também se chamava Luiz
274
, em seu depoimento, confirmou
a história, pois tinha ouvido dizer “de muitas pessoas brancas e pretas”, das
quais não conseguia lembrar os nomes, que quando um senhor “fica
criminoso por espancar ou matar um escravo que os mais ficam forros
275
”.
Após encontrar dificuldades por não conseguir nenhuma pessoa livre
que pudesse testemunhar o ocorrido “de vista” — todas diziam “saber por
ouvir dizer”—, o promotor público compôs sua denúncia afirmando que o
senhor havia assassinado seu escravo ao lhe infligir um “castigo
imoderado”. Antonio Bernardes foi levado a julgamento e absolvido.
O juiz de direito, Joaquim Augusto Ferreira, redigiu um parecer de
dezessete páginas, desarticulando toda a narrativa preparada pela defesa,
que sustentava a versão de que o escravo Tibúrcio morrera em
conseqüência das quedas na roça. No entanto, o juiz alegou que havia
flagrantes discordâncias entre os ferimentos relatados no Auto de Corpo de
274
Um ano mais tarde, em 1875, ao ser castigado por Antonio Bernardes Pinto por não ter
cumprido a sua tarefa do dia na roça, o escravo Luiz esfaqueou o senhor. Apesar de seriamente
ferido, Antonio Bernardes não morreu. O cativo fugiu, quis matar sua esposa, a escrava Cristina, e
depois suicidar-se, mas foi preso, processado e condenado à morte. Sua pena foi comutada em
galés perpétuas pela Princesa Imperial Regente. Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca,
Processo n.º 821, cx. 31, folha 04, 1875, AHMUF.
275
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo nº. 799, cx. 30, 1874, folha 24, AHMUF.
Delito e a versão dos tombos. O magistrado acrescentou, ainda, que o
senhor tentou esconder o cadáver antes de comunicar a morte à polícia. Tão
consistentes foram os argumentos que o Tribunal da Relação de São Paulo
acatou a apelação e Antonio Bernardes foi levado a um novo julgamento, do
qual saiu mais uma vez absolvido.
É inegável que nos fins do século XIX, muitos advogados, juízes e
promotores tenham conseguido questionar o direito de vida e morte sobre
os escravos que muitos senhores acreditavam possuir — mas a lei não lhes
facultava. Contudo, tanto nestes tipos de crimes, como nos poucos casos
que chegaram formalmente ao conhecimento da justiça em Franca a respeito
de crianças livres espancadas, nenhuma condenação foi levada a termo.
Além dos interesses em jogo, dos valores pessoais de advogados,
promotores, juízes e, principalmente, dos jurados — lavradores e pequenos
comerciantes que precisavam responder sim ou não a quesitos sobre
circunstâncias agravantes e atenuantes que, em geral, escapavam ao seu
conhecimento —, é preciso considerar que uma condenação judicial não era
muito simples. Cada fase do processo podia ser questionada por ambas as
partes (defesa e acusação), o que resultava em nova inquirição de
testemunhas, novos exames e novos argumentos. Em alguns casos,
principalmente na segunda metade dos oitocentos, defesa e acusação
montavam versões absolutamente opostas e convincentes baseadas nas
mesmas evidências e nos depoimentos das mesmas testemunhas. Isto tudo
sem mencionar as possibilidades de adulterações, do constrangimento de
testemunhas e da intimidação de jurados. Em conjunto, todos esses
elementos culminavam num dos temas mais mencionados pelas autoridades
do Executivo Imperial a respeito do problema da criminalidade no Brasil dos
oitocentos — a impunidade.
Nesse aspecto, Franca não foi uma exceção. Embora não seja possível
associar de maneira linear as absolvições com a impunidade, vale ressaltar
que 88,9% dos réus indiciados em todos os tipos de crimes, durante seis
décadas, não foram condenados. Desse total, cerca de um terço (32,6% -
impronunciados) nem mesmo teve as denúncias ou queixas consideradas
procedentes após o encerramento do inquérito policial. Outros, apesar de
indiciados como culpados, ou conseguiram provar sua inocência entre o fim
do inquérito e a realização do júri (12,1% - despronunciados), ou
simplesmente, desapareceram (16,3% - pronunciados) antes da realização
do julgamento. Finalmente, menos de um terço dos réus (27,9%) foi
efetivamente absolvido nos tribunais, em primeira instância ou recorrendo
das sentenças (ver Tabela 3).
De modo geral, no que respeita à condição social dos réus, é possível
afirmar que livres, libertos e escravos mantiveram um mesmo padrão, com um
número muito superior de não condenações. Contudo, se compararmos a
proporção de réus efetivamente condenados é possível constatar que,
proporcionalmente, os livres foram considerados menos frequentemente culpados
na sala das sessões do júri que os escravos (ver Tabela 3).
Os réus livres tinham uma possibilidade maior que os cativos de escapar à
ação da justiça. Os libertos e, principalmente, os livres sem posses podiam
simplesmente colocar os seus pertences em uma trouxa e mudarem-se de um
lugar para outro. Loriano, escravo do Tenente Coronel José Justino Faleiros foi
esfaqueado pelo Soldado Municipal Permanente José de Santa Anna. No
domingo após a missa, quatro escravos de senhores diferentes se juntaram na
casa de Francisca Crioula, irmã de Loriano também cativa, mas que residia fora
da casa de seu senhor. Na mesma residência morava Iria Felisbina em companhia
do soldado Santa Anna. A certa altura da noite, Santa Anna chegou à casa e viu
os cativos que ali estavam. Logo se desentendeu com Loriano, os dois brigaram e
o cativo foi esfaqueado duas vezes.
Tabela 3
Situação final de réus livres, libertos e escravos
nos processos criminais do Município de Franca entre 1830 e 1888
Sentença sumária
Condição social do réu
Total
Livre Liberto Escravo
Absolvido
319 8 16
343
29,5% 22,9% 14,0%
27,9%
Pronunciado
185 4 11
200
17,1% 11,4% 9,6%
16,3%
Despronunciado
135 6 8
149
12,5% 17,1% 7,0%
12,1%
Impronunciado
331 12 58
401
30,6% 34,3% 50,9%
32,6%
Sub-total de réus
não condenados
970 30 93 1093
89,8% 85,8% 81,6% 88,9%
Condenado 110 5 21 136
10,2% 14,2% 18,4% 11,1%
Total 1080 35 114 1229
100% 100% 100% 100%
Fonte: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processos Criminais 1830-1888, AHMUF.
As testemunhas ouvidas no processo foram unânimes em afirmar que a
origem do conflito residiu nas disputas entre o escravo Loriano e o soldado Santa
Anna por ciúmes de Iria. Os ferimentos foram graves, mas o cativo não morreu.
Santa Anna obrigou Iria a acompanhá-lo rumo a um garimpo. No caminho, foram
parados por uma escolta. Santa Anna fugiu deixando para trás a sua trouxa de
roupas e Iria. Embora tenha ficado pronunciado no inquérito policial, Santa Anna
nunca foi preso para responder pelo crime
276
.
Em 1856, no Distrito do Carmo da Franca por volta das cinco da tarde
Francisco Pereira encontrou-se com Joaquim Antonio e Antonio José. Ao cobrar
uma dívida, foi brutalmente espancado pelos dois homens. A gravidade das
pancadas foi tamanha que Francisco Pereira morreu após a realização do Auto de
Corpo de Deito. Os dois acusados foram indiciados, mas nunca foram presos para
serem julgados
277
.
Os réus livres com maiores posses podiam mobilizar seus recursos na
contratação de advogados capazes de realizar as mais inacreditáveis defesas,
muito recorrentes nos crimes que envolviam capangas, assunto do próximo
capítulo. Outros réus livres envolvidos em crimes graves usavam um expediente
inusitado, mas previsto em lei. Após serem acusados por crimes de morte, por
exemplo, mudavam-se com toda a família da localidade por um período de dez
anos. Depois, retornavam e enviavam ao juiz um pedido de reconhecimento da
prescrição do crime, alegando que embora sempre tenham residido no mesmo
lugar, nunca foram intimados ou citados para comparecerem em juízo. Tudo
276
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo nº. 502, cx. 17, 1858, AHMUF.
277
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo nº. 457, cx. 15, 1856, AHMUF.
comprovado com documentos e testemunhos. Nos casos em que esta estratégia
foi utilizada os pedidos foram todos deferidos.
Em geral, como venho argumentando durante todo o trabalho a motivação
dos crimes cometidos por escravos, libertos e livres em Franca é semelhante. Na
maioria dos casos, eram conflitos pela posse de objetos ou animais, pelo direito
de permanecer em determinados lugares e, às vezes, até pelos mesmos amores.
Contudo, uma vez indiciados por um crime, os escravos tinham uma chance maior
de efetivamente irem a julgamento e serem condenados (18,4%) do que os
membros da população livre (10,2%) (ver Tabela 3).
Na região a pena mais recorrentemente aplicada contra os cativos
condenados foi a combinação de açoites com ferros nos pés ou pescoço, definida
pelo artigo 60 do Código Criminal do Império. Dos 21 escravos condenados em
seis décadas (ver Tabela 3) 15 receberam a pena de açoites. Nesses casos, a
maior parte das penas impostas oscilou entre 50 e 200 açoites e o uso de ferros
por períodos que variaram entre seis meses e um ano e meio. Os práticos e
facultativos recomendavam que a quantidade de açoites infligidos considerasse a
idade e as condições físicas do cativo apenado, pois previam as “funestas
conseqüências” que mais de duzentos acarretariam, ainda que divididos em
cinqüenta por dia
278
. Em 1865, o próprio ministro da justiça criticou a pena de
açoites e citou um dos médicos da Casa de Correção da Corte, que alertava: “a
pena de açoites, assim aplicada equivale à de morte com martírio”
279
. No entanto,
em Franca, houve dois casos de condenação a quatrocentos açoites e um a
oitocentos açoites e seis anos de ferro no pescoço, imposta ao escravo Matheus,
acusado pelo rapto de uma menina livre de 12 anos
280
. Sempre que os cativos
réus eram condenados à pena de açoites havia, por parte dos proprietários,
insistentes envios de petições aos juízes solicitando que os prazos
regulamentares para apresentação de apelações fossem dispensados. Assim, os
escravos cumpririam logo suas penas e retornariam ao trabalho.
278
Código Criminal do Império do Brasil: Comentado pelo Conselheiro Vicente Alves de Paula
Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de Janeiro: Livraria Popular de A. A. Da Cruz Coutinho, 1885,
notas 236 e 237.
279
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Francisco José Furtado) do ano de 1864, disponível
na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras do
“Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1857/000008.html.
280
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 183, cx. 06, folha 02 e 03, 1877.
Em alguns casos, quando não se tratava de crimes de morte, os escravos
criminosos nem chegavam a ser julgados prevalecendo os acordos entre os
senhores e as vítimas. Em suas andanças pelos mais diferentes lugares da Vila
Franca, o cativo Valentim, escravo de Luiz Gomes Gaia, por mais de uma vez se
envolveu em conflitos com homens livres na Vila Franca. Em um dia trocou
pancadas com um carpinteiro durante um carteado numa casa que,
provavelmente, era um prostíbulo
281
. Mais tarde, o cativo reaparece entre os
processos criminais. No entanto, a possível casa de prostituição deu lugar a um
presumível lar, onde a fidelidade marital foi questionada.
Joaquim Martins de Siqueira, tropeiro, casado, ofereceu uma queixa contra
Valentim, alegando que este o teria injuriado, furtado alguns pertences de sua
casa, e só não atacou sua esposa por ter chegado uma vizinha. Após ser preso e
inquirido, Valentim disse que realmente foi até a casa do queixoso, com um
saco cheio de espigas de milho que estaria vendendo, e lá — por ser perguntado
pela mulher do mesmo se o tinha visto — disse que o havia visto conversando
com Ritinha, mas negou as acusações de agressão contra a mulher e furto de
pertences da casa. Apesar de envidar todos os esforços para convencer o
delegado dos fatos que relatava, no dia seguinte à queixa , Joaquim Martins de
Siqueira, o marido injuriado, retirou-se formalmente do processo, alegando que
Luiz Gomes Gaia, senhor de Valentim, prometeu-lhe castigar publicamente o
escravo. O acordo foi aceito pelo delegado, que ordenou a aplicação de 50 açoites
no cativo
282
.
Entretanto, é preciso considerar ainda, no caso de escravos envolvidos em
brigas e assassinatos, que as artimanhas senhoriais começavam antes que o
crime fosse informado à justiça. O ano era 1861. Em uma “casinha de capim”
morava Maria, uma ex-escrava que lavava roupas para diferentes pessoas,
inclusive para alguns cativos. Manoel, um escravo de nação africana, solteiro, com
trinta e cinco anos de idade, foi até a casa da liberta para apanhar algumas roupas
deixadas com ela para serem lavadas, pois no dia seguinte faria uma viagem com
seu senhor moço. O cativo chegou à porta da casa, viu algumas pessoas, pediu
licença, entrou e foi ao encontro de Maria que, ao vê-lo, se retirou sem nada dizer.
281
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 307, cx. 11, 1848, AHMUF.
282
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 375, cx. 13, 1853, AHMUF.
Subitamente, apagou-se uma candeia que existia em um dos cômodos da casa.
Manoel recebeu um golpe que lhe feriu a cabeça e um dos braços. Vendo-se todo
ensangüentado, o cativo pediu socorro, mas ninguém o atendeu, então fugiu
primeiro para o mato e depois, sob a noite, para a chácara de onde havia saído.
Uma vez instaurado o inquérito policial para a apuração do ocorrido,
Manoel acusou como seu agressor outro escravo de nome Geraldo, dez anos
mais novo, pertencente ao dono da fazenda onde se situava a casa da liberta
Maria. Ao juiz, o escravo Geraldo, já na condição de réu, disse que quando
chegou à casinha de capim o cativo Manoel estava espancando Maria e que por
isso, com a intenção de defendê-la, lançou mão de um pedaço de pau sem se dar
conta de que era na verdade o cabo de uma pequena foice. Como resultado do
julgamento, a versão da vítima foi mais convincente aos ouvidos dos jurados.
Geraldo foi condenado, recebeu cem açoites e carregou um ferro no pescoço
durante um mês.
A disputa jurídica não foi a primeira solução tentada pelos proprietários
dos escravos. Durante os interrogatórios de testemunhas, José Ferreira Lopes,
vizinho dos envolvidos, disse que após saber do conflito entre os escravos, fez
uma visita à casa do senhor do cativo Geraldo. Lá chegando, presenciou a
preparação de um acordo lavrado em duas vias e assinado pelos proprietários de
Geraldo e Manoel. Caso Manoel morresse seu senhor seria indenizado em um
conto e oitocentos mil réis, se perdesse um braço receberia um conto e
quatrocentos mil réis e se perdesse apenas um dedo receberia setecentos mil
réis. Ficaria assim resolvido o conflito não fosse o caso delatado ao judiciário e
transformado em um crime.
No caso que envolveu os escravos Geraldo e Manoel, fica evidenciada
outra prática que sempre cercava os crimes cometidos por escravos em
Franca. Algumas pessoas enxergavam, nestas situações, uma excelente
oportunidade para vinganças e desforras que, muitas vezes, nem se
relacionavam aos cativos criminosos. Os depoimentos de José Ferreira
Lopes e de outras testemunhas apenas confirmaram a existência do acordo,
mas a denúncia ao delegado de polícia foi atribuída à ação informativa da
voz pública.
Escravos e livres de uma região rural onde predominavam as
pequenas posses cometiam muitos crimes semelhantes ao disputarem
objetivos comuns. No entanto, quando submetidos ao mesmo julgamento,
com o mesmo código e o mesmo juiz afloravam as diferenças. Não cabia aos
escravos definirem seus destinos nestes casos. A opção pela fuga não era
uma boa idéia, pois teriam que escapar da polícia e dos senhores. O direito
aos recursos jurídicos, amplamente disponíveis para os casos não
enquadrados na lei de 1835, também eram condicionados à vontade dos
proprietários.
Assim, conclui-se, neste capítulo, que se as diferenças regionais e os
distintos padrões de posse de escravos podiam interferir na maior ou menor
intensidade das relações estabelecidas entre os cativos e a população livre,
contribuindo fundamentalmente para que no cotidiano fossem testados os
limites do ser escravo e do ser livre, no banco dos réus, contudo, cativos
permaneciam cativos e livres permaneciam livres mesmo quando eram
julgados com base nas mesmas leis.
Um último tipo de crime em comum praticado por livres e escravos ocorria
em matas e caminhos. É sobre as emboscadas preparadas, em geral a mando,
mas também, por coação ou desforra, protagonizadas por livres e escravos, que o
próximo e último capítulo deste trabalho se deterá.
CAPÍTULO 4
DOS CRIMES QUE SÃO MANDADOS:
LIVRES E ESCRAVOS EM EMBOSCADAS,
CONFRONTOS E PARCERIAS
Nas páginas da documentação do judiciário criminal foram registradas
muitas ações que colocavam livres e escravos de uma comunidade rural do
extremo nordeste da Província de São Paulo frente a frente, em conflitos por
interesses comuns. Contudo, nem sempre cativos e livres se opunham. Por
vezes, os crimes cometidos por eles provinham do mando
283
de patrões e
senhores ou de associações para a resolução de problemas comuns.
283
O conceito de “mando” e, sobretudo sua utilização para o estudo da história política do Brasil
Imperial, foi objeto de intensos debates na historiografia brasileira. Não se pretende aqui retomar
tal discussão, pois ela escaparia ao objetivo deste capítulo que aborda o mando como uma das
O cumprimento de ações criminosas praticadas por homens livres
sem posses — tanto por profissão, quanto por atribuições advindas de
relações de dependência — são mais freqüentemente abordados pela
historiografia brasileira relativa aos oitocentos. Ao estudar a documentação
criminal da Comarca de Guaratinguetá na então Província de São Paulo,
Maria Sylvia de Carvalho Franco afirma que os agregados:
Destituídos de meios próprios de subsistência e com uma
vida despojada de significado para aqueles de quem
dependiam, tudo deviam e nada de essencial podiam oferecer
aos senhores das fazendas onde se fixavam. Por isso
mesmo, transformavam-se em seus instrumentos para todo e
qualquer fim, inclusive os de ofensa e da morte. Por vezes,
essas missões emprestaram às suas existências avulsas o
sentido de que careciam, ligando-os por um nexo firme e
importante àqueles que lhes davam a casa de morada mais o
espaço para plantar e criar, junto com o encargo de
defenderem o chão à volta
284
.
Em relação à Bahia, Kátia de Queirós Mattoso assevera que ao ter que
se submeter às regras de pertencimento condicionadas pela família de tipo
patriarcal os agregados — no campo — eram “como uma força policial a
serviço do senhor naqueles lugares em que a administração pública [esteve]
ausente; [eram] os jagunços do chefe da casa”
285
.
Na documentação analisada no presente estudo, não há registro da
expressão jagunço, pois esse era um termo típico da região privilegiada pela
autora. Em seu lugar, a palavra mais recorrentemente empregada para
nomear os que partiam em missões que visavam a execução de atentados e
emboscadas, eram os capangas. Embora preocupado preponderantemente
com o mundo dos conflitos políticos, Richard Graham afirma que:
Um dicionário do século XIX define capanga como um ‘valentão
que é pago para guarda-costas de alguém ou para serviços
eleitorais; mas neste caso é mais que um galopim eleitoral, é um
caceteiro, às vezes um assassino’. Uma opinião mais branda,
embora irônica, descreve o capanga como ‘um indivíduo que se
esferas de ocorrência das práticas tidas como delituosas protagonizadas por livres e escravos.
Para o debate a respeito do conceito de “mandonismo”, Cf: CARVALHO, José Murilo de.
Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: uma discussão conceitual. Dados. 1997, vol. 40, nº 2.
284
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed. São Paulo:
Ática, 1974. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 153.
285
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 124.
lança nas lutas eleitorais em busca de um salário e muito mais
ainda por gosto. A definição de capanga dependia de quem
assinava o documento. Do ponto de vista de alguns, os capangas
podiam ser chefiados até por autoridades governamentais [...]
286
.
No que respeita aos estudos que se dedicaram à análise de crimes
cometidos por escravos, poucos foram os pesquisadores que mencionaram
esta prática. Analisando a história da escravidão, por meio das devassas da
região de Campos dos Goitacases, Silvia Hunold Lara constatou que, na
medida das necessidades senhoriais, os cativos utilizados habitualmente
nos serviços domésticos ou agropastoris, transformavam-se “numa espécie
de milícia particular que executava atentados, castigava invasores de terras,
galanteadores, pretendentes desqualificados, entre outros
287
”. Aspecto
semelhante foi evidenciado por Márcia Elisa de Campos Graf, com relação
aos crimes cometidos por escravos no Paraná. A autora destacou “que a
criminalidade escrava nem sempre foi autônoma, isto é, por vezes o escravo
atuava como capanga de seu senhor
288
”.
Admitir que cativos de vultoso custo tomassem parte em empreitadas
criminosas com certa recorrência, à primeira vista, pode parecer um contra-
senso. Sob o ponto de vista jurídico da época, Perdigão Malheiros deixa
claro que o senhor tinha o direito de auferir do escravo todo o proveito
possível, isto é, exigir seus serviços gratuitamente pelo modo e maneira que
mais lhe conviesse. Não podia, contudo, exigir dos cativos atos criminosos,
ilícitos e imorais
289
. Ademais, é preciso considerar que armar um escravo de
confiança para “correr a roça” ou para praticar um atentado era uma atitude
que, potencialmente, poderia voltar-se contra o próprio senhor.
No entanto, parte-se aqui do pressuposto de que, apesar de não ser
uma prática generalizada entre os senhores e os escravos, este tipo de ação
286
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Edit.UFRJ,
1997, p. 185.
287
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 200.
288
GRAF, Márcia Elisa de Campos. Imprensa periódica e escravidão no Paraná. São Paulo, 1979.
401 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 142.
289
MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico e social. 3ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1976, vol. 1.
era uma outra possibilidade de interpenetração dos mundos de livres e
cativos na esfera da criminalidade de uma região de poucos escravos.
Existiam profissionais especializados ou era essa uma possibilidade
imposta e aceita por trabalhadores livres e escravos que, dependendo das
circunstâncias, compunham milícias privadas a mando de senhores e
patrões? Quais as condições em que os cativos e libertos participavam
destas atividades? Norteado por tais questões o presente capítulo visa
compreender o mundo dos crimes por encomenda na região de Franca, sem
descartar as associações criminosas de livres e escravos em outras partes
do Brasil nos oitocentos.
4.1 – Na Assembléia Geral: exíguos informes
Contemplados pela lógica dos crimes cometidos por escravos que
escapavam à lei excepcional de 1835 e aos planos de insurreição, os delitos
praticados por cativos a mando de seus senhores, de terceiros ou em
associações com livres e libertos, dificilmente eram destacados nas análises
ministeriais a respeito do tema da segurança pública e particular no Império.
Depois do arrefecimento das revoltas provinciais, já no Segundo Reinado,
não convinha sublinhar a ocorrência de distúrbios locais, os quais eram
integrados, estatística e genericamente, ao crescimento geral do número de
delitos violentos praticados nas diferentes regiões do Império.
Ainda assim, estes crimes — na forma de exíguos informes —
começaram a figurar com maior recorrência, nos discursos proferidos pelos
agentes do Executivo na Assembléia Geral, a partir da segunda metade do
século XIX, sobretudo, quando as estatísticas criminais e judiciárias foram
praticamente abandonadas e, em seu lugar, passaram a ser relacionados
comentários curtos, em geral, transcrições dos relatórios dos Chefes de
Polícia a respeito dos crimes cometidos em cada província do Império,
organizados sob o título de “fatos diversos” ou “fatos notáveis”.
Em 1850, o ministro da justiça Eusébio de Queiroz ressaltou na
Assembléia Geral um conflito que tomou grandes proporções na localidade
de Minas Novas, Província de Minas Gerais, por ocasião da troca dos
suplentes de juízes municipais na localidade, no ano anterior. Conta
Eusébio, que a “voz pública” do lugar incriminava o juiz preterido no cargo
como o autor de um atentado sofrido pelo filho de seu sucessor. O acusado,
de nome Silvério José da Costa, sob a alegação de se proteger, reuniu-se
com homens armados em sua residência, constituindo-a em “casa forte”, e
proibiu a passagem de quaisquer soldados pela rua. Segundo o ministro, um
dos graves eventos ocorridos durante os conflitos que se sucederam foi a
perseguição de um soldado por dois filhos e um cativo de Silvério. Depois
de diversas e mal sucedidas tentativas de resolução dos conflitos as
“agitações cessaram”
290
.
Mais tarde, já nos anos 70, as notícias de assassinatos cometidos por
mando, bem como da deflagração de confrontos armados chegavam à Corte,
enviadas pelos Presidentes das Províncias de Alagoas, do Maranhão, do
Piauí, de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do
Sul. Conflitos por terras, lutas eleitorais, conflitos por heranças,
desentendimentos matrimoniais, dentre outros temas, eram motivos para
que livres e escravos fossem enviados em missões criminosas.
No Distrito do Carangola, na Província do Rio de Janeiro, no ano de
1877, uma escolta foi enviada à fazenda Santa Fé, pertencente a Antonio
Barbosa Duarte, com o fim de apreender dois escravos que integravam o
inventário de Reginaldo Werneck, e ali estariam escondidos. Barbosa armou
os seus escravos e deu ordem para que atirassem em qualquer pessoa que
se aproximasse das senzalas. “Um dos homens da escolta, desprezando a
ameaça, aproximou-se e levou um tiro”
291
. A escolta resolveu arrombar a
casa. No entanto, protegidos pela escuridão da noite, os cativos e seu
senhor começaram a disparar suas armas e com isso travou-se um intenso
confronto. Um cativo morreu, dois foram presos e os demais conseguiram
fugir. A porta da casa foi finalmente arrombada. Os dois escravos
290
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Eusébio de Queiroz Coutinho Mattoso Camara) do
ano de 1849, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1840/000013.html.
291
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Lafayett Rodrigues Pereira) do ano de 1878,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1871/000033.html.
procurados foram encontrados. Barbosa ainda resistiu à prisão, mas foi
ferido e, finalmente, preso.
Principalmente após a reforma do Código do Processo Criminal de
1871 — que separou as competências entre as autoridades policiais e
judiciárias até então unidas pela reforma de 1841
292
— alguns conflitos
passaram a envolver, de um lado, delegados de polícia e, de outro lado,
juízes municipais, de direito e seus aliados. Ambos contavam com seus
filhos, escravos, camaradas e agregados durante os confrontos.
Na madrugada de 28 de março de 1879, o delegado de polícia João
Tibúrcio da Silva, acompanhado por Pedro do Couto e seus escravos —
armados com garruchas e cacetes — tomaram de assalto a casa do juiz
municipal do Termo de Santo Antonio do Monte, na Província de Minas
Gerais. O juiz escapou da morte com a ajuda de moradores que, ao ouvirem
os tiros, correram até a casa dispersando os assassinos
293
.
Na Província de São Paulo, também no ano de 1879, deu-se um
conflito no termo de Jaú, quando, o então ex-delegado de polícia Antonio
Benedito de Campos Arruda, acompanhado de seus camaradas e escravos,
travaram um confronto com o Vereador Manoel José Pereira de Campos,
esse, por sua vez, acompanhado de seus filhos, genros e um escravo. O
conflito resultou na morte de Antonio Benedito, em ferimentos sofridos pelo
camarada Antonio Ephigenio, pelo escravo Maximiano, e, em menor
gravidade, pelo escravo Antonio. Entre os partidários do Vereador Manoel,
foi ferido levemente um escravo, e gravemente um de seus filhos, de nome
João, que morreu dias depois do conflito
294
.
Com o passar dos anos, os conflitos locais que envolveram cativos e
livres passaram a se concentrar em questões pessoais tanto de seus
292
Abordada no capítulo 1, deste estudo, no item: “É preciso reformar”.
293
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Manoel Pinto de Souza Dantas) do ano de 1879,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1873/000047.html.
294
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Manoel Pinto de Souza Dantas) do ano de 1879,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1873/000032.html e Relatório dos Presidentes da Província de São
Paulo (Presidente Laurindo Abelardo de Brito) do ano de 1880, disponível na Internet na página
eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research
Libraries e Latin American Microform Project” em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1024/000323.html.
senhores e patrões quanto de outros mandantes dos crimes. Em 1880, em
Alagoas, no Distrito do Taboleiro da Mata do Rolo, “Belmiro José de
Amorim, residente no sítio do Messias, dirigiu-se armado com seus escravos
à propriedade de Ventura Antonio Ribeiro”
295
, seu vizinho. Ambos já se
batiam nos tribunais por um conflito de divisas de terras. Lá chegando,
Belmiro e seus cativos demoliram uma casa de Ventura e se retiraram.
Ventura ordenou que seus filhos e agregados reparassem os danos.
Enquanto trabalhavam, os familiares de Ventura e os outros homens foram
novamente surpreendidos por Belmiro e sua pequena milícia, travando-se o
confronto. No mesmo ano, no Termo de Dom Pedrito, na Província do Rio
Grande do Sul, Aurélia Ramires dos Santos mandou dois escravos
assassinarem o português Joaquim Pinto da Silva
296
.
Na Província do Maranhão, em 05 de julho de 1883, no Termo de
Monção, foi assassinado Wencesláo Vianna Herinques. Quando principiou a
tomada de depoimentos de testemunhas para a produção do inquérito
policial que deveria terminar com a descoberta dos acusados, apurou-se que
o principal suspeito, Joaquim José, já havia sido morto pelos escravos de
Wencesláo, de nomes Mariano e Porfírio. Este segundo crime teria sido
executado a mando da esposa
295
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Manoel Pinto de Souza Dantas) dos anos de 1880 e
1881 disponíveis na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1874/000029.html.
296
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Manoel Pinto de Souza Dantas) dos anos de 1880 e
1881 disponíveis na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1874/000056.html.
de Wencesláo, senhora dos cativos
297
. Em novembro do mesmo ano, foi
assassinado, no Termo de Cachoeira, na Província do Rio Grande do Sul, o
colono Jorge Becker. Aberto o inquérito para a apuração do crime,
descobriu-se que a morte foi executada pelo cativo Paulino, a mando de
Mathias A. de Paiva
298
.
Em 1885, o então ministro da justiça Afonso Pena — que mais tarde
(1906-1909) se tornaria Presidente da República — relatou um crime ocorrido
na Bahia, no Termo de Santanna do Catú, onde 16 escravos do Barão de
Camaçari foram indiciados por serem os mandatários da morte de Francisco
Maria de Carvalho. Autoridades da sede da província foram enviadas para
apurar o crime, o juiz de direito e o promotor público locais foram demitidos.
Contudo, tanto o Barão quanto seus cativos foram absolvidos em
julgamento
299
.
Dois anos mais tarde, um último caso mereceu maior destaque na
Assembléia Geral. Em Alagoas, no Temo de Porto Calvo, foi assassinado
Jancitho Paes de Mendonça Sobrinho, apunhalado no caminho para o seu
engenho. As suspeitas recaíram sobre o genro do morto, também
proprietário de um engenho, que teria mandado dois de seus cativos,
Candido e Joaquim, executarem Jacintho. Não se soube do resultado do
processo ao qual deveriam ser submetidos o mandante e seus
mandatários
300
.
Evidentemente, esses informes representavam uma pequena amostra
de muitos outros crimes semelhantes praticados em todo o Império. O que
297
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Francisco Prisco de Souza Paraizo) do ano de 1883,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1877/000021.html.
298
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Francisco Prisco de Souza Paraizo) do ano de 1883,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1877/000069.html
e http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1877/000070.html.
299
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Affonso Augusto Moreira Penna) do ano de 1884,
disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais
Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1878/000040.html e http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1878/000041.html.
300
Relatório do Ministério da Justiça (Ministro Antonio Ferreira Vianna) do ano de 1887, disponível
na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras do
“Center for Research Libraries e Latin American Microform Project”, em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1881/000030.html.
fica sugerido pela análise dos relatórios ministeriais é que não havia uma
peculiaridade regional no uso de escravos em conjunto com agregados,
camaradas e familiares em missões criminosas. Se, por um lado, é possível
argumentar que a prática era mais difundida entre proprietários mais
abastados, por outro, ela foi registrada nas mais diversas regiões do
Império.
O que estes informes não permitem, contudo, é avançar na
compreensão de como e por que, em diferentes circunstâncias, cativos e
livres se envolviam em tais conflitos. O texto dos ministros limita-se a
registrar a existência dos crimes, seguida sempre de comentários a respeito
da competência dos representantes do poder central (delegados, juízes,
chefes de polícia e presidentes de província) na resolução das questões
locais.
Integrantes de um mesmo circuito de informações oficiais, os
relatórios dos presidentes de província seguiram uma lógica semelhante à
dos de seus superiores na cadeia hierárquica do Executivo, no que
concernia à divulgação de crimes por mando. No entanto, nos relatórios de
São Paulo, figura a narrativa de um assassinato, cometido em uma
emboscada, que pode auxiliar no entendimento de questões que os informes
ministeriais não ajudam a compreender.
4.2 – Na Assembléia Provincial: um assassinato em destaque
Até meados do século, os presidentes de São Paulo denunciavam que
as “paixões odientas” e o “espírito de partido”, que dominavam diferentes
regiões da província, eram algumas das principais causas que levavam a
perpetuação dos crimes violentos e à impunidade dos agressores. Em 1852,
contudo, o então presidente José Thomas Nabuco de Araujo considerou
relevante argumentar na Assembléia Legislativa Provincial que os números
da estatística judiciária evidenciavam a ausência de crimes cometidos por
mando:
[...] dos 59 homicídios julgados no ano de 1851, quase todos
foram cometidos pelos réus por sua própria conta, e não
como mandatários e por esperança de recompensa: esta
observação vale muito em favor da moralidade dos paulistas
301
.
No entanto, na década seguinte, as emboscadas começaram a figurar
nos textos dos presidentes da província paulista com maior freqüência. No
relatório do Chefe da Polícia de 1864, consta que em 21 de julho, nos
arrabaldes da cidade de Jacareí “foi acometido o Tenente-coronel Cláudio
José Machado Júnior, por indivíduos que se achavam emboscados”. O
primeiro tiro acertou o cavalo que Cláudio montava o segundo feriu-o
gravemente. Alguns escravos do Tenente Coronel, logo tentaram socorre-lo,
mas “dois foram mortos e três feridos gravemente”
302
.
Em 1869, outra emboscada que resultou em um assassinato exaltou
os ânimos da população de Lorena. O Chefe de Polícia, José Ignácio Gomes
Guimarães foi enviado pelo Presidente da Província à cidade onde ocorreu a
morte, acompanhado das guardas policiais de Jacareí e Taubaté, para
conduzir pessoalmente todo o processo de formação da culpa contra os
acusados. Em seu retorno à capital da província, o chefe produziu um relato
completo a respeito do crime.
Após ignorar diversas cartas anônimas que o ameaçavam de morte
caso não abandonasse a vida política, o Coronel José Vicente de Azevedo
foi mortalmente ferido por dois tiros disparados do interior de uma pequena
moita, que ficava no alto de um barranco, em uma curva do caminho que
seguia da cidade de Lorena para a sua fazenda. Cravado de chumbos da
barriga até o peito, o coronel foi derrubado pela besta que cavalgava, mas
conseguiu montar em um cavalo que vinha logo atrás na estrada, conduzido
por um rapaz que o acompanhava. José Vicente buscou refúgio na casa de
um parente, localizada próxima ao local da emboscada. Os ferimentos, no
entanto, eram graves e o coronel morreu dois dias depois do atentado.
301
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente José Thomas Nabuco de
Araújo) do ano de 1852, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de
Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform
Project” em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/986/000006.html.
302
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Vicente Pires da Motta) do
ano de 1864, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project” em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1003/000006.html.
O assassinato teria sido tramado por um padre, dois doutores e dois
comendadores. Todos, membros do Partido Liberal na localidade e
adversários políticos do morto. Estes homens teriam mobilizado outras três
pessoas para a preparação da emboscada e escolha dos assassinos. Assim,
descreveu o Chefe de Polícia, o lugar onde se instalaram os executores da
morte:
Na moita, de onde havia partido o tiro, viam-se dois lugares
distintos, separados apenas um do outro [por] três braças
mais ou menos
303
, que indicavam terem sido ocupados por
dois indivíduos, visto como em cada um deles existia um
pequeno tronco de árvore que servia de assento, restos de
farinha, pontas de cigarro, e uma forquilha que servia de
descanso à arma. Esses dois lugares pareciam ter sido
ocupados por alguns dias; porque em torno dos troncos, que
serviam de assento, estava perfeitamente amassado o capim.
Efetivamente foram ocupados pelo escravo Vicente e por
João Barbosa, desde o dia 16 à noite até as 11 horas mais ou
menos do dia 19 de Fevereiro
304
.
Já em fuga, conforme o planejamento dos homens que o contrataram,
o escravo Vicente parou em uma casa para tomar café e percebeu que
alguém o seguia. O cativo trocou tiros e travou “renhida luta” com seus
perseguidores, mas foi finalmente preso. Na cadeia, quando o Chefe de
Polícia tentou ouvir Vicente pela primeira vez não foi possível, o cativo não
conseguia falar. O escravo teria sido vítima de uma xícara de café
envenenado. Após receber cuidados médicos, ficou assentado que o cativo
havia sofrido uma congestão cerebral. Logo depois, Vicente se restabeleceu
e contou sua versão do crime.
Vicente havia fugido de seu senhor há mais de uma década e passou a
residir em Entrecosto, um bairro rural distante sete ou oito léguas
305
de
Lorena. Em seu depoimento, o cativo disse que foi procurado diversas vezes
por homens que desejavam contratá-lo para assassinar o Coronel José
Vicente de Azevedo, dizendo ainda, que ele não devia ter nenhum receio,
303
Aproximadamente seis metros e meio.
304
Relatório dos Presidentes da Província de São Paulo (Presidente Senador Barão de Itauna) do
ano de 1869, disponível na Internet na página eletrônica do Projeto de Imagens de Publicações
Oficiais Brasileiras do “Center for Research Libraries e Latin American Microform Project” em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/1009/000080.html.
305
Aproximadamente cinqüenta quilômetros.
pois existiam diversas pessoas importantes na cidade interessadas na morte
do coronel. Nas primeiras tentativas o cativo negou-se, sob a alegação de
que não conhecia o homem e por isso não tinha motivos para matá-lo. As
ofertas foram aumentando. Primeiro lhe ofereceram a liberdade, depois,
além desta, outros duzentos mil réis, e por fim, as duas propostas e mais um
emprego na lavoura. Vicente concordou.
O cativo foi levado à fazenda de um de um dos homens que
encomendou o crime. Inicialmente, Vicente foi trabalhar na lavoura com os
filhos do proprietário. No entanto, ao vê-lo na roça, o homem fez questão de
recordar que aquele não era o motivo pelo qual ele ali estava. Munido com
armas, provisões e acompanhado por João José da Silva Moreira (conhecido
no lugar como João Barbosa), o cativo dirigiu-se ao lugar da emboscada.
Vicente disse ainda ao Chefe de Polícia, ter desistido da morte pouco antes
da passagem do Coronel pelo caminho, atribuindo o assassinato a João
Barbosa. Este, por sua vez, fez o mesmo, e incriminou apenas o escravo
pela morte. Todos os denunciados, inclusive, coronéis, doutores e
comendadores foram presos e pronunciados ao final do inquérito, mas
recorreram da pronúncia ao Tribunal da Relação.
A leitura do relatório do Chefe de Polícia indica que Vicente foi
contratado para praticar a morte e fugir. No entanto, uma vez preso,
interessava aos idealizadores do crime a sua própria morte — o que não
ocorreu. Não consta no documento qual foi o destino do escravo Vicente.
Pode ser que ele tenha sido assassinado, que conseguira fugir, ou que foi
julgado e condenado à morte, nos anos que se seguiram.
A história do escravo Vicente é mais detalhada do que a dos cativos
que constaram nos relatórios dos ministros da justiça, como criminosos por
mando e cumplicidade com seus senhores. Entretanto, sua condição era
especial. Fica apontado no texto do Chefe de Polícia que o cativo era um
assassino profissional, cuja sabida condição de escravo fugitivo foi
acobertada por homens influentes na localidade. Seu parceiro na execução
do crime, o livre João Barbosa, era sobrinho de um dos homens que o
contrataram. Barbosa foi designado para acompanhar Vicente durante o
crime, estaria ali para ajudá-lo caso fosse necessário, mas, sua função era,
sobretudo, certificar aos interessados que a missão seria levada a termo.
Outros livres e escravos também se envolveram em crimes como
estes. Para tentar compreender um pouco melhor suas histórias, voltemos
uma última vez para o extremo nordeste da Província de São Paulo. Lá,
livres e escravos também tomaram parte em emboscadas e confrontos.
4.3 – Na comarca: confrontos, emboscadas e parcerias
4.3.1 – Camaradas, filhos e escravos em intimidações, surras e mortes
Quase três décadas após a sedição que marcaria sua história no
século XIX, a Vila Franca se ressentia mais uma vez da cisão política de suas
autoridades. Sistematicamente, eram enviados ofícios ao Presidente da
Província com reclamações de liberais contra conservadores e vice-versa.
Num desses ofícios, datado de 1867, em que reclamavam de distúrbios
ocorridos por ocasião do recrutamento de Guardas Nacionais para a guerra
contra o Paraguai, os vereadores disseram que o juiz de direito, partidário
dos conservadores, tinha proibido quaisquer autoridades policiais de
auxiliarem no recrutamento. Segundo os vereadores, o juiz e seus aliados
prometiam uma revolução caso o Chefe do Estado Maior da Guarda Nacional
levasse avante o seu intento de recrutar homens na localidade. Ao final de
seu ofício os vereadores acrescentavam:
Faz-nos crer mais, que pode haver a dita revolução visto que
além do Juiz de Direito e do Vigário apresentam-se alguns
fazendeiros que conservam grande número de capangas sob
o título de camaradas e são alguns destes mesmos
fazendeiros daqueles que no ano de 1838 junto com Anselmo
Ferreira de Barcelos fizeram uma revolução nesta cidade que
resultou imensos assassinatos nas pessoas das autoridades
e mais cidadãos
306
.
A associação não era fortuita. A figura dos camaradas, por vezes, foi
vinculada, na documentação da região, bem como em outras áreas do país,
com a de capangas. Em 10 de março de 1862, Antonio Soares Guimarães
apresentou uma queixa pelo crime de ameaças, na Subdelegacia de Polícia
306
Ofícios Diversos Franca, lata 1022, pasta 3 , documento nº. 64, de 11/03/1867, DAESP.
do Distrito do Carmo, contra “Antonio Andrade Guimarães e seus
capangas”
307
.
Antonio Soares relatou ao subdelegado que Antonio Andrade esteve
um dia em sua casa e lhe comprou toda a fazenda. No entanto, o contrato foi
celebrado sob uma condição. Antonio Soares permaneceria na casa durante
dois anos após a venda. Passado algum tempo da concretização do negócio,
o comprador resolveu mudar-se para a casa. Mais tarde, Antonio Andrade
levou para a residência uma mulher. Antonio Soares logo passou a imputar à
mulher a condição de meretriz, dizendo que ela estava ali apenas para
manter “relações ilícitas” com Antonio Andrade. Antonio Soares disse ao
comprador da fazenda que não seria possível suportar aquela situação, uma
vez que, na mesma casa moravam suas filhas moças e sua esposa. A
discordância em relação à permanência da mulher na casa foi o suficiente
para que ocorresse o conflito. Ultrajado, Antonio Andrade pegou uma
tesoura, cortou a barba — dizendo que ela não havia sido respeitada — e
prometeu vingar-se.
Após o conflito, Antonio Soares antecipou a saída da casa, levando
consigo a esposa e suas filhas para uma chácara. Soube posteriormente,
que seu inimigo havia viajado para São Paulo, de onde voltou com armas e
um novo camarada que lhe serviria de capanga. Na região de Franca,
Antonio Andrade Guimarães contratou mais homens. Antonio Soares
descreveu-os como quatro indivíduos sem residência certa e com
ocupações desconhecidas, todos contratados como camaradas.
Por meio dos vizinhos, chegou aos ouvidos de Antonio Soares a
notícia de que seu desafeto havia decidido mandar matá-lo. Declarando-se
sem forças nem armas para resistir, trancou-se com sua família em um dos
quartos da casa e não mais saiu. Noite após noite, durante três dias, eles
ouviram os passos dos cavalos que rodeavam a residência. No quarto dia,
às oito horas da manhã, Antonio Soares foi visitado por Cândido da Barra,
um vizinho que se prestou a ouvir a longa história de perseguições. Nesse
momento, entrou pelo terreiro da chácara um dos camaradas-capangas, de
nome Silvério Garcia Leal, que dizia estar ali para intermediar as pazes entre
307
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 575, cx. 20, 1862, AHMUF.
seu patrão e Antonio Soares. Cândido e Silvério se puseram a discutir.
Ambos estavam armados e não tardou a ocorrer um tiroteio. Ferido, Silvério
gritou por seus companheiros, mas não foi atendido, motivo pelo qual fugiu.
Ao final do processo, apenas Cândido da Barra foi pronunciado por tentativa
de morte, mas nunca chegou a ser preso. Apesar de alguns vizinhos terem
confirmado a história contada por Antonio Soares sua queixa foi julgada
improcedente.
Nos casos em que as vítimas procuravam a polícia para apresentarem
queixas pelo crime de ameaças, é possível observar uma outra face das
ações violentas cometidas a mando de terceiros. Em muitas situações, a
simples presença de camaradas armados, associada a algumas promessas
de morte e intimidações eram suficientes para que desafetos fossem
contidos sem a necessidade do disparo de um só tiro.
Oito anos depois de ter cortado a barba para assinalar o desrespeito
sofrido, Antonio Andrade Guimarães foi novamente processado por
ameaças
308
. Desta vez, o problema teve início no não pagamento de uma
dívida de novecentos mil réis. Manoel Lucas Ribeiro, credor de Guimarães,
moveu contra ele uma ação civil para tentar receber o dinheiro. No
desenrolar do processo, o oficial de justiça Gabriel Romão foi até a fazenda
levar uma intimação a Guimarães. Gabriel mal havia chegado à porta da casa
de Guimarães e foi impedido de prosseguir pelos camaradas Anastácio e
Geremias, ex-escravos da mesma propriedade. O oficial foi expulso e
ameaçado de morte. Guimarães e um de seus filhos mandaram avisar a
Manoel Lucas que não aparecesse na fazenda, pois ele seria morto.
Disseram ainda ao oficial Gabriel Romão — um homem negro — que caso
ele ali retornasse com uma nova intimação, seria chicoteado com um
bacalhau.
Dias depois, Manoel Lucas mandou que um de seus filhos,
acompanhado por um camarada, fosse campear algumas cabeças de gado
num pasto próximo das divisas da fazenda de Antonio Guimarães. Assim
que o rapaz tomou o caminho que levava à fazenda do devedor de seu pai,
foi cercado por um filho de Guimarães, um camarada livre e dois libertos,
308
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 733, cx. 26, 1870, AHMUF.
todos armados, que o obrigaram a recuar. No entanto, no Código Criminal
do Império o crime de ameaças era de natureza particular. Mesmo com as
intimidações sofridas pelo oficial de justiça e pelo seu próprio filho, após
terminar a inquirição das testemunhas, o queixoso desistiu formalmente da
causa e o processo foi encerrado.
Como foi possível observar nos capítulos anteriores deste estudo,
muitos camaradas trabalhavam ao lado dos cativos nas propriedades um
pouco mais abastadas da região. Daí para a prática conjunta de crimes havia
apenas uma pequena distância. Contudo, é importante não vincular tão
imediatamente a figura de qualquer camarada à de um guarda-costas pronto
a praticar violências a mando de seu patrão.
Em suas funções originais, os camaradas eram trabalhadores livres
ou libertos contratados por tempo determinado. Podiam ser tropeiros,
lavradores ou prestar outros serviços estipulados por seus contratantes. Em
1849, José Pedro Teixeira, um taberneiro de Santa Rita do Paraíso,
localidade pertencente ao Termo de Franca, enviou um ofício ao delegado de
Polícia, solicitando a libertação de seu camarada, João Francisco de Morais,
que então estava preso para ser recruta no Corpo de Guardas Municipais
Permanentes.
A justificativa se apoiava em três argumentos: o primeiro era legal,
dizia o patrão que seu camarada estava contratado “com papel passado de
trato de engajamento” celebrado com base na Lei de Locação de Serviços
de 1830
309
, e por isso, o recrutamento era uma medida ilegal; o segundo
argumento era de que o rapaz, então com dezesseis anos mais ou menos,
era o filho mais velho de uma “mísera mãe”, que por falta de seus socorros
andava mendigando; por fim, argumentou o patrão que o camarada “acudia
a sua obrigação, vivendo livre de súcias e desordens”
310
. Junto ao seu
pedido, o taberneiro enviou uma declaração do próprio camarada onde ele
confirmava a existência do contrato e expunha as condições de trabalho e
remuneração acordadas:
309
Para o estudo das leis de locação de serviços no Brasil do século XIX, ver: LAMOUNIER,
Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre: a lei de locação de serviços de 1879.
Campinas: Papirus, 1988.
310
Ofícios Diversos Franca, lata 1020, pasta 3 , documento nº. 27-B, de 1849, DAESP.
Digo eu João Ferreira de Morais abaixo assinado que é
verdade tenho contrato com o Sr. José Pedro Teixeira para a
prestação de meus serviços pelo preço de vinte mil réis por
ano [e] por haver recebido do mesmo Sr. adiantado a quantia
de dois mil réis, cujos serviços lhe ficam engajados da data
deste a um ano sem interrupção alguma com a condição do
dito Sr. me prestar a roupa necessária ao serviço e por este
me obrigo a cumprir o referido contrato de engajamento
debaixo das penas estabelecidas na lei de 13 de setembro de
1830, e para todo o tempo constar lhe fiz passar este
assinado a meu rogo por Ignácio José de Miranda por eu não
saber ler nem escrever [...] Santa Rita, 17 de abril de 1849
311
.
Diferente dos agregados, que podiam ser “tanto filhos, filhas solteiras,
viúvas, genros, mães, tias, irmãos, irmãs”, entre outros, quanto “amigos e
estranhos” que se congregavam “ao grupo familiar”
312
, os camaradas,
mesmo que não fossem formalmente contratados, tinham uma relação
transitória com seus patrões
313
. Contudo, nem sempre era preciso ser um
camarada com contrato, ou mesmo um agregado, para que ao trabalhador
livre que prestava serviços nas fazendas fosse imposta a missão de
combater e matar em nome de seu patrão.
O ano era 1847, no Distrito do Carmo da Franca, Dona Ana Rosa de Jesus
foi avisada por Antonio Marques da Silva que muitos bois do Capitão Jacob
Ferreira de Menezes — lembrado por moradores da região até meados do século
XX como Jacó Bravo
314
— haviam invadido a propriedade e estavam destruindo
toda a plantação de feijão. A primeira atitude de Dona Ana Rosa, que era vizinha e
aparentada de Jacob, foi a de mandar redigir uma carta endereçada ao capitão,
pedindo que ele evitasse que os animais invadissem sua fazenda pelo menos até
a colheita dos mantimentos. Jacob disse que o gado ficaria onde estava, comprou
dois novos bacamartes e determinou que um de seus filhos vigiasse os animais.
Dias depois a cena se repetiu. Ao ver os bois e vacas de Jacob comendo
todo o seu feijão, Dona Ana Rosa mandou que três dos seus camaradas: Manoel
Veríssimo da Silva, Joaquim Antonio da Silva e Manoel José Pinto, retirassem o
gado da lavoura. De sua casa Jacob viu a cena. Logo, chegou seu filho e o
311
Ofícios Diversos Franca, lata 1020, pasta 3 , documento nº. 27-C, de 17/03/1849, DAESP.
312
SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira, trabalho livre e cotidiano: Itu, 1780-1830.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005, p. 94.
313
A questão é detidamente abordada em: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho, op. cit.
314
Recebi esta informação do Prof. Dr. José Chiachiri Filho, a quem agradeço.
avisou que os camaradas tocavam o gado da roça para os currais de Dona Ana
Rosa. O capitão chamou seu sobrinho, José Ferreira Telles Júnior, um de seus
camaradas de nome Prudêncio e entregou a eles os dois novos bacamartes. Para
seu filho Francisco Ferreira de Aguiar, que ainda era menor de quatorze anos, e
para os escravos Jacinto e Francisco o capitão entregou “espingardas finas”,
dizendo que eram suficientes. Enquanto armava seus homens, Jacob mandou
buscar dois carapinas que trabalhavam em um dos barracões da fazenda e
ordenou que ambos também acompanhassem os demais. Os dois homens
recusaram-se, dizendo que estavam ali para trabalhar e não para brigar. O filho, o
sobrinho, o camarada e os dois escravos de Jacob montaram seus cavalos e
partiram rumo aos três camaradas de Dona Ana Rosa que tocavam o gado.
Presente à cena, o lavrador Joaquim José Soares disse que os homens de
Jacob “meteram os cavalos no meio do gado e o espalharam”. Ele e o camarada
de Dona Ana Rosa, Manoel José Pinto, foram reagrupar os animais quando
ouviram quatro tiros e viram seus companheiros Manoel Veríssimo e Joaquim
Antonio tombarem. Manoel Pinto correu em socorro dos camaradas de sua patroa,
mas foi perseguido pelo escravo Jacinto que disparou contra ele “um tiro pelas
costas”
315
. Manoel Veríssimo morreu imediatamente. Joaquim Antonio, apesar de
ter tomado um tiro de chumbo disparado pelo camarada Prudêncio e outro de
pistola, no rosto, disparado pelo filho de Jacob, sobreviveu e conseguiu fugir,
sendo encontrado mais tarde, em um caminho abandonado, sentado e sem
sentidos. Todos os demais, também feridos, voltaram para as fazendas de onde
haviam partido.
Indevidamente informado que dois camaradas de Dona Ana Rosa haviam
morrido, o Capitão Jacob foi novamente ao encontro dos “carapinas e, ralhando
com eles, disse que não queria camaradas só para trabalhar, que os queria
também para matar gente”
316
. Os carapinas eram José Ribeiro do Espírito Santo e
seu companheiro Floriano de tal. Após ouvirem a bronca do capitão, reuniram
suas ferramentas e retiraram-se imediatamente da fazenda. A caminho de casa,
os dois oficiais de carpinteiro passaram na residência de Manoel de Godoy
Moreira e contaram o que ouviram na casa de Jacob antes e durante o crime.
315
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 284, cx. 10, 1847, AHMUF, folha 22.
316
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 284, cx. 10, 1847, AHMUF, folhas 23 e
24.
Manoel figurou como uma das principais testemunhas do processo criminal que
Dona Ana Rosa de Jesus, com grande dificuldade, moveu contra o Capitão Jacob
Ferreira de Menezes e seus mandatários.
Logo após ser participada do conflito, Dona Ana Rosa apresentou ao
subdelegado do Distrito do Carmo, contra o Capitão Jacob e seus mandatários, a
sua petição de queixa. Esforço vão. As negativas do subdelegado em dar
continuidade ao processo levaram o juiz municipal e delegado de polícia suplente
da Vila Franca, Joaquim da Rocha Neiva, a remeter um comunicado ao
Presidente da Província narrando todo o acontecido:
O delito foi cometido na Freguesia do Carmo, distante desta Vila
mais de nove léguas
317
onde é costume haver reproduções,
várias vezes, de iguais delitos, não sei se por medo ou frouxidão
das autoridades subalternas ali residentes, ou por apoio de sua
parte, o que sei é que se o referido processo levou tanto tempo a
formar-se, foi mesmo por culpa do subdelegado, Juiz do
Processo, a quem a parte requereu contra os delinqüentes para
serem punidos porque em lugar de pronto despacha-los e dar o
devido andamento, procurava sempre delongar e desculpar afim
de dar tempo aos agressores de evadirem-se, dizendo às partes
que era melhor acomodarem-se. Logo que soube disso dirigi-me
ao lugar e imediatamente dei andamento ao processo e as mais
diligências necessárias
318
.
O esforço do juiz municipal, entretanto, não evitou que uma coação maior
ocorresse, ou mesmo que um possível acordo extrajudicial entre Dona Ana Rosa
de Jesus e o Capitão Jacob Ferreira de Menezes fosse celebrado. Assim que foi
encerrado o inquérito policial, quando o delegado e o juiz municipal decidiriam se
Jacob e seus mandatários seriam levados a julgamento, a mulher e seus
camaradas desistiram formalmente de ser parte na causa. O processo prosseguiu,
pois o homicídio era um crime da alçada do promotor público. Com dinheiro e
bons conhecedores de leis, Jacob teria menos dificuldades em se livrar da
possibilidade de ser julgado.
Nesta fase do processo, despontou a habilidade de seus advogados, que
descobrindo as mais insignificantes falhas técnicas na confecção dos autos, bem
como dispondo da conveniente reorganização e justificação dos indícios até então
investigados em cada peça do processo, conseguiram a despronúncia de Jacob
317
Um pouco mais de sessenta quilômetros.
318
Ofícios Diversos Franca, lata 1020, pasta 2 , documento nº. 34, de 14/12/1847, DAESP.
no ano de 1848 e a retirada da acusação contra seus mandatários no ano de
1849. É relevante destacar um dos argumentos usados em uma das petições
enviadas ao juiz de direito “a bem de seu recurso”, elaborada pelos advogados
Manoel José Pereira e Silvério Claudino da Silva:
Como é possível que tão torpe crime envolvesse seus próprios
filhos
319
e escravos de tanto valor? Se fosse verdade que o
recorrente quisesse praticar semelhante desacato não é certo que
ele poupasse aos filhos, que estima, e aos escravos de tanto
preço um encontro de armas em capo raso, do qual lhes poderia
resultar a morte, ou outra ofensa, como é certo que resultou,
ficando eles feridos de balas e chumbo, bem que isto não conte
do processo? Se tão danado projeto tivesse o recorrente faltariam
braços mercenários, que ele empregasse às ocultas sem riscos
de haverem vestígios de provas; e mesmo às claras, quando
quisesse afrontar as leis e seus próprios costumes pacíficos?
Sem dúvida não faltariam. Daí, pois se segue que imputação é
tão grave, que só pode ser crida com provas fora de toda
execução, que não existem e jamais existirão
320
.
O absurdo da situação de usar filhos estimados e escravos de vultoso valor
em uma empreitada perigosa, apontado pelos advogados, foi fundamental para a
vitória conseguida pelos acusados no processo, mas pareceu não convencer o
próprio Capitão Jacob. Cinco anos mais tarde, foram novamente indiciados seu
filho Francisco Ferreira de Aguiar, um de seus escravos chamado Vicente Cabra e
dois de seus camaradas, de nomes Manoel Lopes e Jesuíno de tal, os quais
teriam assassinado o arrieiro Joaquim Leandro a mando do capitão — pai, senhor
e patrão dos acusados.
Joaquim Leandro era, ao mesmo tempo, agregado e camarada. Ele era
tratado como agregado por Dona Maria Venância de Carvalho em razão de morar
em sua fazenda, numa casa que se localizava a um quarto de légua
321
da
residência da proprietária, em companhia de sua esposa, sogro, sogra e dois
cunhados também casados. Por exercer a profissão de arrieiro, era camarada de
Antonio Pacheco de Macedo, cuja tropa fazia viagens entre a região de Franca e a
cidade de Campinas. O corpo de Joaquim Leandro foi encontrado com um tiro no
319
Os advogados optaram por chamar de filho, o sobrinho de Jacob que também foi acusado de
participar do conflito.
320
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 284, cx. 10, 1847, AHMUF, petição
integrante do recurso.
321
Aproximadamente um quilômetro e meio.
braço esquerdo e uma facada no lado direito do pescoço. O arrieiro teria sido
vítima de uma emboscada no caminho entre a casa de seu patrão e a fazenda de
Dona Maria Venância, onde morava.
O arrieiro trabalhou durante algum tempo com a tropa do Capitão Jacob.
Posteriormente, abandonou o capitão e foi se juntar à tropa de Antonio Pacheco.
A rixa com Jacob teria começado quando Joaquim lhe enviou um bilhete cobrando
por alguns dias de serviço não pagos e por algumas cangalhas não devolvidas
pelo capitão. Contaram os moradores do local que o arrieiro Joaquim foi visto em
diferentes lugares chamando o capitão de ladrão. Quando um dos arrieiros que
ainda trabalhava com Jacob resolveu deixar o patrão, o capitão logo imputou a
culpa a uma má influencia de Joaquim Leandro sobre o rapaz. Estes motivos
foram suficientes para Jacob procurar Antonio Pacheco, patrão de Joaquim, e
avisar que iria mandar aplicar um corretivo em Leandro na próxima viagem, antes
que ele cruzasse o Rio Pardo.
No entanto, Joaquim Leandro não tinha atritos apenas com o capitão. A
dona da fazenda onde ele morava com a família de sua esposa, disse que o
arrieiro e o sogro estavam sempre em conflito. Ouvido pelo delegado, o sogro
declarou que as suas divergências com o genro começaram quando o rapaz quis
se mudar com sua filha para a casa do patrão. Maria Cândida teria dito ao marido
que só sairia da casa de seu pai quando Joaquim “comprasse terras para que eles
se arranchassem no que era seu”
322
.
Joaquim Leandro também tinha inimizades com seus cunhados. Gabriel,
que era afilhado de Francisco Ferreira de Aguiar, filho de Jacob, foi até a fazenda
do capitão pedir permissão para lá esconder sua irmã, Maria Cândida, pois no dia
da última partida da tropa ela e o marido tiveram uma séria briga. Joaquim
desejava levar a esposa consigo na viagem, ela não quis acompanhá-lo e ele
prometeu matá-la quando voltasse. Joaquim suspeitava que sua mulher
mantivesse “relações ilícitas” com Manoel Lopes, o camarada de Jacob que
figurava como um dos principais suspeitos pela morte. Jacob não consentiu na
permanência da moça em sua casa.
A sogra de Joaquim Leandro disse em seu depoimento que o camarada
Manoel Lopes, na madrugada em que ocorreu a morte, foi até a sua casa pedir
322
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 355, cx. 13, 1851, AHMUF, folha 13.
perdão a sua filha por ter matado o marido. Na casa de Joaquim Leandro, Manoel
Lopes permaneceu toda a noite e partiu antes do amanhecer. Nessa
oportunidade, Manoel disse a, já viúva, Maria Cândida que o camarada Jesuíno, o
escravo Vicente e o filho de Jacob também haviam participado da morte.
Os camaradas Manoel e Jesuíno nunca foram presos. O filho de Jacob,
Francisco Ferreira, apresentou cinco testemunhas para comprovar que no dia do
crime ele estava feitorizando os escravos de seu pai, inclusive o cativo Vicente,
em um roçado, distante três quartos de légua
323
do ribeirão onde o corpo foi
jogado pelos assassinos. O cativo Vicente ordenhava uma vaca quando a escolta
chegou à fazenda de seu senhor para prendê-lo. Ao ver os homens, o escravo
fugiu. Quinze meses após o encerramento do inquérito, que apontava como
culpados apenas os dois camaradas fugitivos e o escravo Vicente, Jacob levou
seu cativo ao delegado de polícia. No dia seguinte, acompanhado do advogado
Bernardino José de Campos, apresentou um “termo de recurso” ao juiz municipal,
alegando não haver no depoimento das testemunhas provas contra o cativo.
Vicente Cabra foi despronunciado e solto
324
.
É oportuno observar que cinco anos após ser imputado a Jacob Ferreira de
Menezes o mando deste último crime o capitão teve sérios problemas no lugar
onde sempre foi temido. Na noite de 27 para 28 de setembro de 1856, sua casa
foi cercada por um grupo de vinte ou trinta homens armados que dispararam
diversos tiros contra as portas e janelas, exigindo que o capitão e seus familiares
abandonassem a Freguesia do Carmo da Franca.
Um dos genros de Jacob havia produzido uma denúncia contra o pároco do
Carmo, José da Silva Camargo. No entanto, a população do lugar tomou o partido
do pároco e se insurgiu contra o capitão. Não houve outra opção a Jacob e a seu
genro senão mudarem-se para a Vila Franca. No ofício reservado em que relatou
a ocorrência ao Presidente da Província de São Paulo, o juiz de direito Manoel
Bento Guedes de Carvalho, considerou:
Parece-me que Jacob oprimia o povo e que seu genro, ainda
moço e fogoso, prevalecendo-se da influência de intimidação que
ele exercia, se ostentava exigente e caprichoso: o que é certo é
323
Aproximadamente cinco quilômetros.
324
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 284, cx. 10, 1847, AHMUF, petição
integrante do recurso.
que a vontade que eles se mudassem [era] geral e prevaleceu-se
das circunstâncias com o padre para se manifestar ameaçadora e
impôs a mudança. O próprio subdelegado [do lugar], irmão dele
[Jacob] reconhece isto e não viviam em harmonia
325
.
Ser camarada não era o único motivo que levava à prática de surras e
assassinatos. Livres e escravos tinham motivos variados e, em alguns
casos, comuns, para cometerem um crime determinado por outra pessoa. O
mando, por vezes, podia ser também o momento ideal para que os próprios
executores pudessem resolver suas questões pessoais. Joaquim Leandro
morreu por uma confluência de fatores que reuniam o interesse de um
homem que, durante muito tempo, foi poderoso na região, mas também o
interesse do camarada Manoel Lopes, suposto amante da esposa do arrieiro.
Não fica claro, por meio do estudo da documentação do Cartório Criminal
de Franca, se os cativos envolvidos em crimes por mando recebiam de seus
senhores compensações adicionais para o cumprimento de ações criminosas.
Parece mais plausível inferir que, da mesma maneira que ocorria no caso dos
camaradas e dos agregados, essa tenha sido uma possibilidade do seu cotidiano,
a qual, uma vez atendida, podia representar um reforço positivo na manutenção
da relação com os senhores. Um cativo que arriscava a própria vida podia se
tornar um dos escravos de confiança da casa e até mesmo um liberto que
continuaria a morar na propriedade, como camarada ou agregado. No entanto,
assim como no mundo dos homens livres, entre os cativos a valentia também era
uma qualidade prezada e podia ser reivindicada até mesmo em público, atraindo
para o próprio escravo a fama de capanga.
Ao chegar em sua casa, na Rua do Comércio, uma das principais da
pequena Vila Franca do ano de 1846, o médico Antonio José Ruddok foi vítima de
um tiro que acertou a porta da residência. O crime teria ocorrido no mês de maio
de 1846, no entanto, o processo só foi instaurado em setembro do mesmo ano.
Nesta ocasião, Ruddok, já havia sido assassinado em outro atentado.
Em relação ao crime da Rua do Comércio, Ruddok contou a algumas
pessoas que ao chegar a sua casa, já tarde da noite, carregando um cigarro
aceso, viu dois cavaleiros. Um deles se aproximou e lhe pediu fogo. O médico
atendeu ao pedido, o cavaleiro acendeu seu cigarro, afastou-se, sacou a arma e
325
Ofícios dos Juízes de Direito, Franca, ordem 4773, maço 1851, DAESP.
disparou contra ele. O tiro não acertou Ruddok, mas sim a porta de sua
residência.
O capitão Simão Ferreira de Menezes, coletor de rendas da vila, ouvido
como testemunha no processo que apurou o primeiro atentado sofrido por
Ruddok, disse ter ouvido na Festa do Carmo que o escravo Joaquim Crioulo fora
visto muito embriagado, gabando-se de que havia sido ele o autor do tiro na porta.
O coletor acrescentou ainda que, certa vez, ouviu dizer “não se lembra onde, nem
a quem”, que o Vigário Joaquim Soares Ferreira resolveu vender o seu cativo
Joaquim Crioulo, por um conto de réis. O próprio cativo dizia que seu senhor pedia
tanto dinheiro “só para não o vender”, pois ele “servia para capanga”
326
. A história
do “sei por ouvir dizer” foi repetida pelas demais testemunhas e o cativo Joaquim
tornou-se o principal suspeito da tentativa de morte praticada contra o médico
Ruddok, a mando do vigário. No entanto, a frágil consistência dos depoimentos
não culminou com a pronúncia do escravo, nem de seu senhor e o processo
acabou encerrado.
Não somente a utilização de escravos era comum em atentados ou
espancamentos, como também o envio conjunto destes com os parentes de
primeiro grau dos senhores, principalmente quando os crimes envolviam as
pessoas mais ricas da região. Uma festa religiosa serviu de cenário para uma
contenda entre o Guarda Nacional Diogo José Lopes Pontes e o Alferes Antonio
Barbosa Sandoval
327
. No dia 06 de abril de 1834, estavam os moradores da Vila
Franca na porta da Igreja Matriz, por ocasião dos eventos da Semana Santa. Ali,
em forma, encontravam-se os Guardas Nacionais quando se aproximou o Alferes
Antonio Barbosa Sandoval e, observando a tropa, inquiriu os soldados a respeito
de suas armas, afirmando que algumas estavam limpas e outras sujas. Segundo o
Alferes, os guardas cujas armas estavam sujas deveriam ser punidos. Ouvindo a
repreensão e desconsiderando a autoridade de seu emissor, um dos Guardas
Nacionais de nome Diogo José Lopes Pontes teria respondido que:
[...] o que areava era cobre de dinheiro e se ele [...] Alferes
Barbosa queria elas areadas, que lhe desse dinheiro para ele
326
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 273, cx. 10, 1846, AHMUF.
327
Sandoval foi um dos membros do grupo que se opôs tempos depois, em 1848, ao Capitão
Anselmo Ferreira de Barcelos, por ocasião das invasões da Vila Franca.
arear e, portanto que ele não era seu oficial para querer tomar
conta das armas”
328
.
Considerando-se ofendido, o Alferes Barbosa mandou o Cabo José Vicente
dar queixa ao Capitão da Guarda Nacional. A partir da denúncia dirigiu-se até eles
o capitão, que, todavia, não considerou o ocorrido. Ouviu-se, então, o Alferes
Barbosa prometer que caso o capitão não repreendesse o guarda Diogo, ele
mesmo cobraria por seus modos, porque “os paus do mato ainda não tinham
acabado
329
”.
E como foi prometido, por volta de meia noite do dia seis de abril, dirigia-se
o guarda Diogo para sua residência quando em uma das escuras esquinas da vila
foi abordado por dois homens. Ambos, trajando calças brancas, chapéu, poncho e
munidos de porretes, aplicaram o corretivo no Guarda Nacional. Eram eles
Antonio Barbosa Lima e Ignácio Pardo, o primeiro sobrinho e genro do Alferes
Antonio Barbosa Sandoval e o segundo oficial de ferreiro e escravo do mesmo
Alferes.
O Guarda Nacional sobreviveu para denunciar seus algozes, estes foram
presos e, posteriormente, soltos sob fiança, porém, misteriosamente quando das
sessões do Conselho de Jurados, o guarda Diogo não mais compareceu para
ratificar a sua denúncia. Diante disso, por petição apresentada pelo Alferes
Barbosa, alegando a prescrição do prazo legal para ser julgado, foi declarada pelo
juiz perempta, isto é, finda a acusação mandando dar baixa na culpa dos réus.
É preciso asseverar que nem todos os patrões e senhores eram
assassinos. Entretanto, quando esta era uma prática da casa ou uma necessidade
do momento, não havia dúvidas quanto à possibilidade da realização de missões
criminosas por camaradas, filhos ou escravos. Hoje lavrando a terra e tocando
bois, amanhã atirando, espancando e esfaqueando. Isto não significa que todas
as imposições eram cumpridas incondicionalmente. Os dois carpinteiros de Jacob,
que se recusaram a participar do confronto nas terras de Dona Ana Rosa de
Jesus, apontam uma possibilidade de negativa ao mando. O camarada Manoel,
acusado pela morte do arrieiro Joaquim Leandro, resolveu um problema pessoal
328
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 149, cx. 05, 1834, AHMUF.
329
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 149, cx. 05, 1834, AHMUF.
ao eliminar o concorrente de uma relação amorosa e, ao mesmo tempo, um
desafeto do patrão.
4.3.2 – Desordeiros e assassinos
Argumentar que o recurso às intimidações, aos espancamentos e até
à morte era um componente potencial da vida de alguns livres e escravos
não é o mesmo que afirmar que todos eram de antemão criminosos. Aqueles
que efetivamente lançavam mão da violência tornavam-se temidos e, por
isso, eram vinculados aos crimes que lhes foram imputados. Era a chamada
“gente desalmada”. No entanto, havia momentos do cotidiano capazes de
reunir os moradores de um vilarejo contra um inimigo comum — grupos de
homens armados e turbulentos que chegavam ao local, oriundos de outros
lugares, e eram logo identificados como criminosos. Em um dos poucos
casos deste tipo, ocorridos na região do município de Franca, havia também
livres e escravos.
Já tivemos a oportunidade de acompanhar alguns crimes cometidos
por mando na região da Freguesia do Carmo da Franca, atual cidade de
Ituverava. Entretanto, foi durante a semana de 02 a 08 de agosto de 1854 que
a localidade vivenciou um de seus mais marcantes conflitos. Tudo começou
cerca de um mês antes, quando Felício José Borges mudou-se para o
pequeno arraial e ali se estabeleceu como negociante. Felício passou a
contratar outros forasteiros para com ele trabalhar, dentre eles João
Marcelino da Silva e Vicente Gonçalves Pereira, ambos caixeiros viajantes
do ramo de fazendas secas. O negociante também levou para o Carmo um
de seus escravos, Paulo “de nação Cabinda”, e como camaradas os irmãos
órfãos Ignocêncio Lourenço Gonçalves e José Lourenço Gonçalves, ambos
menores de vinte e um anos; José Soares Ferreira acompanhado do escravo
de sua esposa, de nome Rafael; João Bernardo e Leonardo, cujo sobrenome
nunca se soube, apenas a alcunha — “o Onça”
330
.
Os habitantes do arraial se inquietaram com a simples presença de
tantos homens desconhecidos. Aos poucos, os camaradas começaram a
imiscuírem-se nos ambientes freqüentados pela população e aí principiaram
330
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 149, cx. 05, 1834, AHMUF.
os conflitos. Certa noite, em um de seus passeios pelas ruas do arraial,
Leonardo interessou-se pela esposa de José Marques que caminhava com o
marido. Com faca e garrucha em punho, o Onça tomou a esposa do marido,
levou-a para a casa que seu patrão havia destinado aos camaradas e lá
permaneceu com ela toda a noite. No outro dia, levou a mulher de volta para
a sua casa.
Dois dias depois, Felício Borges, acompanhado do caixeiro Vicente e
dos camaradas José Soares e Leonardo, foram jogar cartas na casa de
Felício José da Silveira. No entanto, o negociante e seus camaradas
perderam mais de sete mil réis em apostas. Aos gritos, Leonardo e José
Soares puxaram suas facas e exigiram que seus adversários lhes pagassem
trinta mil réis. Com o poncho perfurado pela ponta da faca do Onça, o dono
da casa pediu que arrumassem logo o dinheiro, entregou-o a Leonardo que
o passou às mãos de seu patrão.
Os homens de Felício tinham por costume tocar viola nas ruas durante
a noite provocando as autoridades. Por vezes, invadiam a Igreja Matriz e
davam duas badaladas no sino, simulando o toque destinado aos funerais.
Em suas melodias, os camaradas escarneciam os habitantes do arraial e
mandavam recados aos fazendeiros mais poderosos, como o aqui já
mencionado Capitão Jacob Ferreira de Menezes, dizendo que não havia ali
quem os pudesse enfrentar. A um escravo de Jacob, o caixeiro Vicente disse
que ofereceria um baile “em casa de Bárbara” e caso o capitão tivesse
coragem que fosse até lá para enfrentá-lo. Leonardo, por sua vez, prometeu
arrancar as barbas de Jacob.
Em uma dessas noites, os camaradas resolveram inquirir a patrulha
de guardas municipais a respeito de sua utilidade. Líder dos guardas, o cabo
Ignácio Ferreira do Prado respondeu que a escolta trabalhava sob as ordens
do subdelegado de polícia e ali estava para o que fosse preciso. Os
camaradas afrontaram novamente o cabo com inúmeros palavrões e
desafios, e, após prometerem que “ele havia de pagar”, saíram todos do
lugar. Horas mais tarde, Ignácio estava na casa de Joaquim Ferreira da
Costa e foi surpreendido por Leonardo, Vicente, José Soares e João
Bernardo. Mais uma vez com as armas em punho, os homens arrastaram o
cabo para a rua. O dono da casa tentou impedi-los puxando o rapaz de volta
para o interior da residência, defendendo-se com uma faca. O Onça tomou-
lhe a faca das mãos, a quebrou e saiu com os seus companheiros pelas ruas
bradando contra as autoridades do lugar.
Na madrugada do dia 08 de agosto, o subdelegado de polícia do
Carmo reuniu vinte guardas e todos os homens que quiseram se juntar a
eles e partiram com um mandado de prisão para “Felício Borges e seus
capangas”. O destino era a loja de Felício que ficava próxima à Igreja Matriz
do arraial. Ao se aproximar da igreja, a escolta deparou-se com Leonardo
que ia à frente de seu patrão e dos outros camaradas de encontro aos
guardas, armado com uma faca em uma das mãos e uma pistola na outra.
Não se sabe quem deu o primeiro tiro, mas no momento seguinte o cadáver
do Onça estava estendido no chão, todo cravado de chumbos.
O negociante e seus homens recuaram até a casa de onde haviam
saído e se trancaram. A escolta os perseguiu e começou a cercar o lugar. O
caixeiro Vicente e o camarada João Bernardo fugiram. Felício, os dois
cativos e os demais camaradas estavam armados com espingardas de dois
canos, clavinotes, garruchas, pistolas, facas e resolveram resistir. Antes que
fosse declarada a ordem de prisão, começou o fogo de parte a parte.
Conclamando seus companheiros a não se entregarem, o camarada José
Soares saltou do forro de um dos quartos, de onde atirava na escolta, e
desafiou a todos. No chão, foi morto com diversos tiros. Sem saída, Felício,
os escravos e os demais camaradas se entregaram à prisão.
Felício José Borges foi processado por tentativa de homicídio,
resistência, ameaças, furto, ajuntamento ilícito e uso de armas defesas.
Apelou de todas as sentenças condenatórias que lhe foram impostas,
apresentando as mais variadas versões para cada um dos episódios aqui
narrados. Por fim, foi definitivamente condenado a diferentes penas, sendo a
maior delas quatro anos e meio de galés. Os caixeiros, camaradas e
escravos julgados foram absolvidos.
Livres e escravos foram associados ao mesmo crime e ao mesmo
bando, citado no processo criminal como “a comitiva de Felício”. No
entanto, suas posições eram diferentes. Na narrativa das testemunhas a
respeito de cada um dos episódios que antecederam o confronto final, o
roubo da esposa, o roubo no carteado, as provocações à patrulha e a
tentativa de homicídio contra o cabo, não há nenhuma menção à presença
dos dois cativos. Eles não pertenciam ao grupo, mas sim a seus senhores. A
participação de Paulo de Nação e do escravo Rafael no último conflito, essa
sim relatada pelas testemunhas, aparece mais como uma contingência do
que propriamente uma equiparação entre livres e escravos. O fato de
pertencer a um grupo capaz de desafiar as autoridades de um lugar, e
apostar nisso suas próprias vidas, não fazia dos senhores pertencentes ao
bando homens diferentes de quaisquer outros donos escravos.
Pelo que se pôde depreender até aqui, nos casos de crimes cometidos
a mando, os cativos ficavam sujeitos às ordens de seus senhores, como os
camaradas às de seus patrões. É possível considerar, contudo, que a
sujeição aos senhores tornava mais difícil aos escravos negarem-se ao
cumprimento de uma ação criminosa. No entanto, havia escravos, como foi
o caso de Joaquim Crioulo, pertencente ao Vigário Joaquim Soares Ferreira,
que até se vangloriavam da condição de capangas. Na Freguesia de Santa
Rita do Paraíso, atual cidade de Igarapava, então integrante do município de
Franca, existia um outro escravo, também pertencente a um padre, cuja fama
era de ter matado sete pessoas.
O pescador José Bernardes Ferreira vivia em companhia de uma
mulher conhecida no arraial de Santa Rita do Paraíso apenas como Vida,
com quem constava que ele mantinha “relações ilícitas”. Certo dia, ao
retornar do trabalho, José Bernardes surpreendeu Vida, dentro de sua casa,
em companhia do Padre Zeferino Candido da Costa. José Bernardes,
descontente com a situação, espancou a mulher na frente do padre, que era
um dos homens influentes do lugar.
O padre tomou a situação como um grande insulto. Saiu da casa de
Bernardes e foi até a residência de Maria Silvéria, conhecida como Maria
Tica. Lá, contou a história à mulher e disse que o pescador “não insultaria a
outro
331
”. Tica pediu ao Padre Zeferino que não levasse avante o seu intento,
mas foi ignorada. Três noites mais tarde, o pescador estava em sua cama,
331
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 579, cx. 20, 1861, AHMUF.
quando de um orifício cuidadosamente preparado na parede de seu quarto,
abaixo da janela, recebeu um tiro que atingiu a altura do cotovelo esquerdo
penetrando o peito. A companheira do pescador gritou por ajuda, mas não
houve o que fazer. Segundo os peritos que examinaram o cadáver para a
elaboração do Auto de Corpo de Delito, José Bernardes havia morrido quase
instantaneamente.
A autoria do crime tornou-se um mistério. Os homens que foram
acudir aos pedidos de socorro não viram o assassino, apenas um buraco
feito na cerca que protegia a frente da casa, por onde o atirador entrou. Dias
após o crime, o subdelegado de Santa Rita se recusava a abrir o inquérito
para a apuração da morte. Após muitas insistências dos inimigos políticos
do padre, foi mandado ao escrivão que lavrasse o auto de inquirição de
testemunhas. Os depoimentos mencionaram que nos dias que se passaram
entre a desfeita sofrida pelo padre e a noite do assassinato, um escravo de
nome Modesto, pertencente ao Padre Zeferino, foi visto rondando a casa do
pescador.
Tão logo a inquirição começou, o padre e seu cativo foram vistos
cruzando o Rio Grande na direção da Província de Minas Gerais. Pesava
sobre o Padre Zeferino a suspeita de ter sido o mandante do crime. O
escravo Modesto foi citado por mais de uma testemunha como um
assassino de sete mortes. Sua fama se espalhou para além da divisa com
Minas. Alguns dos viajantes que faziam o percurso entre o porto do Rio
Grande e o Arraial de Santa Rita diziam ter ouvido falar do escravo Modesto
em distantes paragens. Preso, Modesto negou qualquer participação no
crime dizendo que todas as noites, à mesma hora, era trancado por seu
senhor em um dos quartos da casa onde dormia. Modesto alegou que não
havia rondado a casa de José Bernardes, como afirmaram as testemunhas,
pois naqueles dias estava trabalhando na construção de uma cerca para a
propriedade de seu senhor. Perguntado pelo motivo de sua fuga, Modesto
disse que a ordem partiu de seu senhor. O Padre Zeferino lhe explicou que
eles haviam sido acusados pela morte de José Bernardes, e deveriam se
retirar para não serem presos. Dizendo, ainda, que só voltariam ao lugar por
ocasião do julgamento, quando ambos poderiam se defender.
O processo criminal estava condenado ao arquivamento. Os primeiros
autos de inquirição de testemunhas foram roubados da subdelegacia.
Novamente instaurado o processo, travou-se um longo debate entre o
subdelegado de Santa Rita, o delegado e o juiz municipal de Franca, pois
cada um, partidário ou inimigo do padre, opinava alternadamente pela
procedência e improcedência do processo. Uma década depois do crime, em
1871, Heitor Leal da Fonseca, tido pelo Padre Zeferino como seu “inimigo
capital” tentou mais uma vez oferecer uma denúncia e reabrir o processo.
No entanto, apresentando testemunhas e certidões de idoneidade, o padre
se libertou das acusações e o processo foi declarado extinto por prescrição.
Ao que parece, não houve na região de Franca um escravo como
Vicente Crioulo, preso em Lorena como assassino profissional, de quem já
falamos neste capítulo. Joaquim Crioulo, acusado pelo atentando da Rua do
Comércio, no Centro da Vila Franca, não foi levado a sério, pois estava
embriagado quando se intitulava capanga. Por fim, todo o processo
montado para apurar a morte do pescador José Bernardes mostra que o
assassinato foi cometido por alguém que tinha algum conhecimento do
ofício de matador. No entanto, as intrigas políticas do lugar eram tamanhas
que não é possível saber se na época poderia ser plausível admitir que o
escravo Modesto era o assassino das sete mortes.
4.3.3 – Vinganças e outras associações criminosas entre livres e escravos
Em uma região rural onde as relações estabelecidas entre livres e escravos
eram significativas, em razão da ampla mobilidade espacial de que dispunham
muitos cativos, a prática de ações criminosas conjuntas também era uma
possibilidade sempre que a necessidade de resolução de um problema comum se
tornava iminente. Nestes casos também predominavam as mortes e ferimentos,
no entanto, no Município de Franca foram registrados crimes contra a propriedade
praticados por cativos sob a influência de pessoas livres.
Germano de Annecy, religioso francês — responsável pelo projeto e
execução do Relógio Solar que adorna a praça central de Franca até os dias
atuais — queixou-se ao delegado da então Vila Franca por ter sido vítima de um
roubo. Os ladrões invadiram o seu quarto, arrombaram uma canastra e dela
retiraram todas as suas economias em cédulas e moedas, além de um
cronômetro, que lhe fora presenteado pelo Imperador Pedro II. O crime ocorreu na
chácara do Monsenhor Candido Martins da Silveira Rosa onde residiam os
clérigos acompanhados de algumas pessoas livres e seus escravos. O dia e a
hora do roubo foram cuidadosamente escolhidos. Uma “sexta-feira da paixão” do
ano de 1886, por volta das dezoito horas, oportunidade em que os religiosos
encontravam-se na Igreja Matriz de Franca.
As suspeitas logo recaíram sobre uma das cativas da casa de nome
Joaquina, pertencente a Dona Maria Antonia de Jesus que também morava na
chácara. Envolvida amorosamente com o italiano Francisco Tarssia, Joaquina
teria fraqueando a entrada dele e de seu compatriota Pascoal Pezzine no quarto
de Annecy. Os dois italianos não tiveram nenhuma dificuldade para carregar a
canastra até o quintal, arrombá-la e retirar do seu interior os objetos que lhes
interessavam.
Como os padres eram muito conhecidos na cidade, os diferentes
depoimentos prestados pela cativa atraíram a atenção de várias pessoas.
Pressionada, Joaquina ofereceu diferentes versões para o roubo. Entre um e outro
depoimento, o escrivão registrou uma frase atribuída a ela na qual dizia: “se
vacilou algumas vezes em suas respostas foi porque é mulher e fraca”
332
.
Inicialmente, Joaquina incriminou seus tios, um casal de escravos,
moradores na mesma chácara onde ocorreu o roubo. Em outro depoimento, disse
que ela e os tios estiveram no quarto de Anneccy apenas para ver os livros que o
padre possuía. Posteriormente, a cativa acusou os italianos Pascoal Pezzini e
Francisco Tarssia de terem mandado que ela os ajudassem a praticar o roubo,
ameaçando-a para que não os incriminassem. Por medo das ameaças, ela
acusou inicialmente seus tios. Em um novo interrogatório, Joaquina mudou mais
uma vez de história. Disse que foi espancada na prisão para confessar o crime e
acusar os dois italianos. As sucessivas mudanças de depoimento da ré,
associadas aos testemunhos conseguidos pelos italianos que atestavam suas
presenças em lugares distantes da chácara dos religiosos no momento em que a
canastra foi arrombada, fizeram com que o juiz de direito julgasse o sumário de
culpa improcedente, ordenando a libertação de todos os acusados.
332
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 1182, cx. 56, 1886, AHMUF.
Todas as histórias contadas por Joaquina tinham algum elemento plausível.
Por isso, ela foi mantida na cadeia durante todo o inquérito. No entanto, o
comportamento das autoridades, principalmente do juiz de direito, permite
observar que a maior suspeita era a de que ela cometeu o crime a mando dos
italianos. Pois, tão logo eles conseguiram comprovar seus álibis o processo foi
encerrado.
Crimes cometidos por livres em conjunto com escravos também podiam se
originar em situações coerção pessoal. No dia 13 de abril de 1864 à tarde na
Fazenda Ribeirão Corrente, ocorreu um triplo homicídio. As vítimas foram
Constancia Maria da Conceição — grávida de oito meses — e sua filha também
chamada Maria.
Os Autos de Corpo de Delito realizados nas vítimas registraram as
dimensões da crueldade empregada pelos assassinos. De acordo com os peritos,
além de vários ferimentos pelo corpo, Constância teve um dos olhos arrancado,
todos os ossos do peito quebrados, um corte na vagina que media seis polegadas,
o lábio superior do lado esquerdo cortado, além de ter sido morto o feto que ela
trazia no ventre. A “inocente Maria”, além de vários ferimentos pelo corpo, também
teve a orelha do lado direito cortada e, como a mãe, todos os ossos do peito
quebrados. O crime causou grande comoção nos moradores da região que no
local construíram uma capela. À Constância atribui-se inclusive a realização de
milagres. A fazenda deu origem a atual cidade de Ribeirão Corrente.
Os acusados pelo delito foram Francisco Antunes de Camargo —
dono de um longo rol de antecedentes criminais: furto, deserção, homicídio,
fuga de cadeia, sedução e faltas disciplinares no destacamento de
permanentes de Franca, onde servia como militar — e Francisco, escravo de
Dona Rosa Angélica de Jesus. Após um primeiro depoimento, no qual
negava qualquer culpa no crime, o escravo foi novamente inquirido e, desta
vez, atribuiu sua participação no assassinato ao fato de ter sido obrigado
por Francisco Antunes de Camargo, que desejava vingar-se do marido e pai
das assassinadas.
De acordo com o cativo, a casa da vítima localizava-se a uma pequena
distância da residência de sua senhora. No dia do crime, o cativo se ocupava
com as tarefas de alimentar os animais, abater e limpar um porco quando foi
surpreendido por Francisco Camargo. Com uma arma em punho, Camargo
obrigou o cativo a segui-lo até a casa de Constancia Maria da Conceição. Lá
chegando, o homem perguntou a ela por seu marido. Em seguida, agarrou a
mulher pelos cabelos e a arrastou para o interior da residência onde a
assassinou, obrigando o cativo a fazer o mesmo com a pequena Maria.
Os dois Franciscos, o livre e o escravo, foram pronunciados e levados
a julgamento. No entanto, a versão de que o cativo Francisco foi obrigado a
cometer o crime sob ameaças de morte, surtiu efeito entre os jurados que o
declararam inocente. Francisco Antunes de Camargo, por sua vez, foi
condenado a pena capital, comutada pelo Imperador em galés perpétuas.
Seu último destino foi a Ilha de Fernando de Noronha onde morreu — vítima
de um assassinato — em 07 de julho de 1878
333
.
Havia diferentes tipos de conveniências mútuas que levavam livres e
escravos a cometerem crimes juntos. A vingança era um dos argumentos
mais recorrentemente empregados para a justificação de terríveis
assassinatos. O corpo de Cândida Figueira foi encontrado à margem de um
caminho todo ensangüentado. Após realizarem os exames, os peritos
descreveram que a morte foi o resultado de uma grande pancada que a
mulher recebeu na cabeça, onze facadas profundas e outras seis
“facadinhas pelo corpo”
334
. Durante algum tempo ninguém soube quem
poderia ter matado a mulher, até que os vizinhos começaram a comentar que
Manoel Crioulo, escravo de Ambrósio Gonçalves Pinheiro foi o assassino.
Ao ouvir os boatos que proliferavam a cada dia, Manoel fugiu da
fazenda de seu senhor e foi pedir a outro fazendeiro, Silvestre Magalhães
Portilho, que o comprasse. A tentativa frustrou-se, pois, Portilho prendeu o
cativo e o levou até José Machado Diniz para que esse o entregasse ao
proprietário. Perguntado por Diniz a respeito da morte de Cândida Figueira,
o escravo Manoel confessou que ele, acompanhado de Lina Silveira da Cruz,
havia matado Cândida. Segundo contou o escravo a Diniz, por várias vezes
Lina o convidou e ele se recusou: “em uma ocasião o Diabo o atentou ele
333
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 609, cx. 21, 1864, AHMUF.
334
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 429, cx. 15, 1854, AHMUF, folha 4.
escutou o convite e foram matar a dita Cândida Figueira”
335
. Diniz devolveu o
cativo a seu proprietário. O senhor desejava pessoalmente castigar Manoel,
mas ele fugiu.
Presa, Lina só confirmou que o escravo Manoel havia cometido o
crime por ter estabelecido um acordo com uma mulher que não era ela.
Certo dia estando todos reunidos no pátio da casa do senhor de Manoel,
Anna Rosa, esposa de Manoel Fidellis, pegou uma faca e começou a
perseguir Cândida dizendo que queria matá-la. Cândida tornou-se inimiga de
Anna Rosa por “desencaminhar” Fidellis. De seu lado, segundo Lina, o
cativo Manoel também tinha motivos para matar Cândida porque ela fazia
muitos enredos ao senhor. Em razão destes enredos, o senhor sempre
castigava seus escravos, inclusive Manoel. No entanto, durante o inquérito
todas as testemunhas repetiam ter ouvido do cativo Manoel, que ele e Lina
foram os assassinos de Cândida. Como Manoel nunca foi preso, todos os
depoimentos seguiram a lógica do “sei por ouvir dizer”. As informações
prestadas por Lina não foram comprovadas. A denúncia contra a própria
Lina também foi considerada improcedente e o processo encerrado.
Até aqui foram expostas diferentes possibilidades de junção de livres
e escravos para a prática de crimes, sob as mais variadas motivações. No
entanto, temos um último tipo de associação bastante comum dentro da
casa de senhores que tratavam muito mal seus escravos, além de
desagradarem outras pessoas livres que com eles conviviam.
Num domingo, por volta das nove horas da manhã, José da Costa
Ribeiro, conhecido como Zé Gordo, montado em seu cavalo e acompanhado
por um sobrinho, saiu da casa de Anselmo Gomes da Silva e tomou a
estrada rumo à Vila de Santa Rita do Paraíso. A certa altura, em uma
depressão, onde a estrada cortava uma mata, José da Costa recebeu um tiro
e caiu ainda vivo. Com muito medo, seu sobrinho foi até a vila em busca de
ajuda. Quando voltava resolveu tomar um caminho lateral ao do conflito e
encontrou-se com um enteado de José da Costa, Antonio Alexandre
Barbosa, carregando uma garrucha. Ao ser perguntado a respeito do que
fazia por ali, o rapaz disse que estava a caminho da vila. Ocorre que Barbosa
335
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 429, cx. 15, 1854, AHMUF, folha 24.
não foi visto pelas pessoas que visitavam José da Costa antes da morte e
nem mesmo no dia do velório. Apenas à noite se divertindo em uma “súcia”.
Os conflitos entre o morto e seu enteado começaram quando José da
Costa negou-se a emprestar dinheiro e alguns animais para que Barbosa
fosse até a cidade mineira de São Gonçalo da Campanha comprar um
carregamento de chapéus afim de negociá-los na região de Santa Rita do
Paraíso. Seis meses antes do assassinato, padrasto e enteado tiveram uma
outra discussão que terminou com José da Costa expulsando Barbosa de
sua fazenda. No mesmo período José da Costa Ribeiro foi até a sua roça
verificar o serviço que lá fazia o escravo Quintino. Insatisfeito, José da Costa
espancou Quintino e mandou que ele fosse tapar um buraco em uma cerca
próxima. O cativo se dirigiu até a cerca, mas quando o senhor retornou para
verificar o trabalho, decidiu novamente bater no escravo. Só que desta vez o
cativo estava com um machado nas mãos e não teve dúvidas em defender-
se do senhor. José da Costa prometeu terminar o castigo quando o cativo
voltasse para casa. No caminho entre a roça e a casa do senhor, o cativo
Quintino encontrou-se com o enteado de seu senhor, Antonio Alexandre
Barbosa, e lhe contou o que havia se passado na roça. Barbosa sacou uma
garrucha que trazia nos coldres e a entregou ao cativo dizendo que ele
poderia matar o senhor. O escravo recusou-se, dizendo que não tinha
coragem para matar José da Costa. “Em vista desta recusa, Barbosa
oferecera-se para coadjuvar a perpetração do assassinato, ou para, por si só
perpetra-lo e que assim ficaram conversados”
336
.
Ouvido em depoimento, o escravo Quintino confirmou toda a historia
do castigo e da oferta da arma que lhe fez o enteado Barbosa. No dia da
emboscada Quintino saiu pela manhã com a missão de levar alguns bois até
uma invernada. O cativo afirmou que não teve nenhuma participação no
crime, apesar de saber da intenção de Barbosa. Antonio Alexandre Barbosa
também foi interrogado e disse não ter sido o assassino, mas sim o escravo
Quintino. No momento do crime Barbosa disse que estava a caminho da Vila
de Santa Rita do Paraíso onde ia buscar uma viola, mas resolveu mudar de
336
Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca, Processo n.º 852, cx. 33, 1876, AHMUF, folha 45.
direção e ir até a casa de um amigo jogar cartas. A troca de acusações
marcou as fases seguintes do processo.
Quintino e Barbosa foram levados a julgamento. O enteado sob a
acusação de efetivamente ter assinado seu padrasto. O promotor público
reconheceu que Quintino não teve participação direta na morte, mas o
considerou cúmplice no crime por ter conhecimento das intenções de
Barbosa e não avisar a ninguém a respeito do assassinato iminente do
senhor. Neste caso, sem o apoio do senhor mandante, como ocorreu com
outros cativos réus aqui já mencionados, Quintino foi condenado a pena de
duzentos açoites e a carregar um ferro no pé por um ano. Antonio Alexandre
Barbosa, no entanto, conseguiu, por meio de apelações e recursos jurídicos,
arrastar o processo por quatro julgamentos. Cinco anos após o crime,
Barbosa foi absolvido com base na tese de que o único assassino foi o
cativo Quintino.
Perseguindo uma suspeita levantada por alguns estudos integrantes
da historiografia dedicada à compreensão da história social da escravidão
no Brasil, foi possível concluir que, tal como ocorria no mundo dos
trabalhadores livres (camaradas e agregados), alguns escravos estavam
sujeitos ao cumprimento de missões criminosas a mando de seus senhores.
Em exíguos informes ou em relatos um pouco mais detalhados observou-se
que esta prática era disseminada em diferentes regiões do Império.
Centrar a análise em uma região específica da Província de São Paulo
possibilitou o entendimento mais acurado das relações e costumes do lugar
e a investigação mais detida das facetas dos mundos de livres e escravos
que se envolviam em tais ações. O núcleo privilegiado dessas relações era a
família onde todos os participantes estavam submetidos a uma só ordem,
fossem eles livres ou escravos. Evidentemente, mesmo numa região onde
predominavam as pequenas posses, os conflitos mais graves estavam
sempre relacionados aos proprietários mais abastados, pois, se por um lado
o mandante deveria ser obedecido, por outro, cabia a ele garantir o resgate
dos mandatários, fosse do conflito em si ou das conseqüências jurídicas
dele advindas. No entanto, a relação não se esgotava no proprietário, livres e
escravos podiam conciliar seus próprios interesses com os de seus
senhores e patrões. Num primeiro momento, a valentia e o se tornar temido
já os distinguia de seus iguais. Em cada missão, contudo, abria-se a
possibilidade de resolver uma questão de interesse próprio, ao mesmo
tempo, em que se solucionava um problema do patrão ou senhor.
Poucos foram os processos do município de Franca que registraram a
presença de assassinos profissionais desvinculados do núcleo familiar dos
patrões e senhores. Em todos os autos analisados existem apenas cinco casos, a
maioria envolvendo exclusivamente homens livres. No único processo, em que
existe o envolvimento dos cativos entre os criminosos, assim reconhecidos por
toda a população de um povoado, os escravos permaneceram sempre em
segundo plano, sendo considerados como parte do grupo apenas no momento
fatídico de sua dissolução.
Livres e escravos também eram capazes de se organizar para a prática
conjunta de ações criminosas que visavam à solução de problemas comuns. No
entanto, o que fica patente no estudo de alguns casos específicos é que após o
descobrimento da ação delituosa pelas autoridades havia uma negativa
sistemática das associações, recaindo sobre os escravos a culpa e as punições.
Assim foi no caso da cativa Joaquina e dos italianos, no do escravo Manoel e de
sua parceira Lina, bem como do escravo Quintino e do livre Alexandre Barbosa,
enteado de seu senhor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A historiografia dedicada ao estudo da escravidão no Brasil demonstrou
que a história do cativeiro não poderia ser compreendida exclusivamente sob o
viés da grande propriedade exportadora. Com base nesta assertiva, os estudos
se multiplicaram, complementando o debate com evidências a respeito do
cotidiano do cativeiro praticado nas mais diferentes regiões do Brasil.
Um aspecto fundamental desse movimento historiográfico foi o
entendimento de que além da relação primordial estabelecida pelos escravos com
os seus senhores, havia um conjunto amplo de possibilidades de associações dos
cativos com a população livre, principalmente, nas áreas urbanas e nas regiões
rurais de predomínio das pequenas posses de escravos. Inserido neste debate, o
presente estudo dedicou-se à compreensão de um aspecto do tema: o das
interpenetrações dos mundos de livres e escravos, adotando como fio condutor o
tema da criminalidade — um assunto de Estado.
Uma primeira aproximação com os debates a respeito da segurança
pública e individual no Império poderia sugerir que os escravos cometeram crimes
exclusivamente contra os seus senhores, feitores e prepararam planos
insurrecionais. No entanto, a documentação criminal remanescente das regiões
onde predominavam as pequenas posses de escravos revela que esses tipos de
crimes figuravam como uma pequena parte do conjunto das ações tidas como
delituosas praticadas pelos cativos. O exame aprofundado dos relatórios emitidos
pelos ministros da justiça e presidentes da Província de São Paulo, sobretudo dos
debates a respeito da segurança individual, resultou na percepção de que os
crimes cometidos por escravos, que não se enquadravam nas insurreições ou na
famosa lei excepcional de 1835, eram agrupados com a criminalidade atribuída à
população em geral. Ministros e presidentes reuniam réus cativos e livres sob a
denominação de “classes ínfimas da sociedade”. Ao omitirem as diferenças de
condição jurídica dos réus em grande parte dos delitos cometidos no Império, os
membros do Executivo admitiam que livres e escravos praticavam crimes
similares. A esses delitos, principalmente os chamados crimes contra a pessoa,
que se avultaram na segunda metade dos oitocentos, eram atribuídas causas
genéricas. O estudo mais detalhado dos motivos que levavam livres e escravos a
cometerem crimes em comum demandou a interpretação dos processos criminais
produzidos em uma das regiões não exportadoras do Império do Brasil.
O Termo e depois Comarca de Franca foi durante muito tempo associado
com um lugar perigoso, povoado por facinorosos. A origem desta má fama estava
relacionada com dois aspectos principais: a localização da região — no extremo
nordeste da Província de São Paulo, um lugar de fronteira e passagem — e um
episódio de sua história noticiado tanto na sede da província quanto na Corte do
Rio de Janeiro — as Anselmadas. Contudo, apesar de persistente, a má fama foi
apenas um dos elementos constitutivos da história da região no século XIX. As
atividades ali desenvolvidas, os hábitos e costumes levados para a região pelos
primeiros povoadores mineiros, perpetuados sem grandes alterações durante
décadas, compuseram fundamentalmente o ambiente que cercava os mundos de
livres e escravos.
A criação de gado, de porcos e o cultivo de lavouras destinadas à produção
de gêneros para o consumo nunca demandou muitos cativos. No entanto, ser livre
ou escravo em uma região rural onde predominavam os senhores de pequenas
posses não era uma situação irrelevante. Sem meios materiais para a compra de
escravarias maiores que demandavam a contração de feitores e administradores,
os proprietários cuidavam pessoalmente da administração do trabalho de seus
escravos. No entanto, morando durante anos nas mesmas propriedades, os
cativos conseguiam ampliar os limites de suas ações, principalmente, a
capacidade de circular pelos mais variados locais. Nesses momentos, a
proximidade com a população livre se tornava mais intensa.
O estudo da criminalidade praticada por livres e escravos na região,
demonstrou que o recurso às soluções violentas para os desacertos do cotidiano
permeava tanto as relações extremas dos cativos com seus senhores, quanto os
conflitos estabelecidos com a população em geral. No pequeno núcleo urbano,
nos subúrbios da vila e na zona rural, durante os dias e as noites, as disputas por
jogos, pela possibilidade de freqüentar os mesmos lugares, pelos mesmos
amores, por dinheiro, pela posse de animais ou objetos de valor pessoal levavam
livres, libertos e escravos a travarem disputas que acabavam em ferimentos e
mortes.
Embora o ato de ferir ou matar pudesse representar uma solução para
os conflitos enfrentados no cotidiano, essas ações criavam um outro
problema — a necessidade de prestar contas à polícia e à justiça. Neste
âmbito a balança pesava desfavoravelmente aos cativos. Mesmo compondo
uma parte pequena da população local, quando comparados aos réus livres,
os escravos eram mais recorrentemente condenados, pois pesava sobre
eles o interesse dos proprietários. Os senhores tinham a prerrogativa, como
curadores natos de seus escravos, de prescindir do direito de apelar das
sentenças condenatórias, sempre que optavam pelo cumprimento imediato
da pena de açoites para que seus escravos retornassem rapidamente ao
trabalho. Sentados no mesmo banco dos réus, julgados pelo mesmo juiz,
com base no mesmo código de leis, escravos permaneciam escravos e
livres permaneciam livres, independentemente da região onde habitavam.
Da mesma forma que ocorria com trabalhadores livres, muitos escravos
estavam sujeitos ao cumprimento de missões criminosas a mando de seus
senhores. O núcleo privilegiado dessas relações era a família onde todos os
participantes estavam submetidos a uma só ordem, fossem eles livres ou
escravos. Em geral, mesmo numa região onde predominavam os senhores de
poucos recursos, os conflitos mais graves envolviam os proprietários mais
abastados, pois, se por um lado o mandante deveria ser obedecido, por outro,
cabia a ele garantir o resgate dos mandatários, fosse do conflito em si ou das
conseqüências jurídicas dele advindas. A relação de mando não se esgotava no
mandante. Por vezes, livres e escravos enviados para uma missão criminosa
podiam resolver um problema do patrão ou senhor e, ao mesmo tempo, solucionar
uma questão de interesse próprio.
Nem sempre, contudo, o senhor ou patrão eram os idealizadores de mortes
e ferimentos destinados ao reparo de uma situação considerada ultrajante. Em
alguns casos, livres e cativos se associavam para a eliminação de um desafeto
comum. Embora seja necessário observar que, tão logo a notícia se espalhava
chegando aos ouvidos das autoridades, livres e escravos parceiros se separavam
definitivamente.
Mesmo convivendo muito próximos, livres e escravos não se confundiam no
cotidiano de uma região rural onde predominavam os senhores de poucos cativos.
A fronteira entre a escravidão e a liberdade era constantemente reafirmada todas
as vezes que o limite do tolerável era ultrapassado. No entanto, muitos livres,
libertos e escravos ocuparam os mesmos espaços, lutaram pelos mesmos
interesses e praticaram crimes em comum.
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Demais obras pertinentes à pesquisa
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Universitária, 2002
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FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 28ª ed., Petrópolis:
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______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora
da UNICAMP, 2001.
ANEXO
Lei nº. 4 de 10 de junho de 1835
Artigo 1º - Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas,
que matarem, por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem
gravemente ou fizerem qualquer outra grave ofensa física a seu senhor, à sua
mulher, descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a
administrador, feitor e às suas mulheres que com eles viverem.
Se o ferimento ou ofensa física forem leves a pena será de açoites à
proporção das circunstâncias mais ou menos agravantes.
Artigo 2º - Acontecendo alguns dos delitos mencionados no artigo 1º, o de
insurreição, e qualquer outro cometido por pessoas escravas em que caiba a
pena de morte, haverá reunião extraordinária do júri do termo (caso não esteja em
exercício) convocada pelo juiz de direito, a quem tais acontecimentos serão
imediatamente comunicados.
Artigo 3º - Os juízes de paz terão jurisdição cumulativa em todo o município
para processarem tais delitos até a pronúncia, com as diligências legais
posteriores, e prisão dos delinqüentes, e concluído que seja o processo, o
enviarão ao juiz de direito, para este apresentá-lo no júri, logo que esteja reunido,
e seguir-se os mais termos.
Artigo 4º - Em tais delitos, a imposição da pena de morte será vencida por
dois terços do número de votos; e para as outras, pela maioria; e a sentença se
for condenatória, se executará sem recurso algum.
Artigo 5º - Ficam revogadas todas as leis, decretos e mais disposições em
contrário.
Fonte: Coleção das Leis do Império do Brasil (1835- 1ª Parte). Rio de Janeiro:
Tipografia Nacional, 1864, p. 5 - 6.
RICARDO ALEXANDRE FERREIRA
CRIMES EM COMUM:
Escravidão e liberdade no extremo
nordeste da Província de São Paulo
(Franca 1830-1888)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista
Campus de Franca como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor
em História. Área de concentração: História e Cultura Social.
BANCA EXAMINADORA
Presidente: _____________________________________________
Prof. Dr. Horacio Gutiérrez
1º Examinador (a): _______________________________________
2º Examinador (a): _______________________________________
3º Examinador (a): _______________________________________
4º Examinador (a): _______________________________________
Franca - SP, _______ de ________________ de 2006.
FONTES
Manuscritas
1 - Arquivo Histórico Municipal de Franca “Capitão Hipólito Antonio
Pinheiro” - AHMUF
Fundo: Cartório do 1º Ofício Criminal de Franca
Processos Criminais – 1830 – 1888 – Caixas 02 a 56
2 – Departamento de Arquivo do Estado de São Paulo - DAESP
Ofícios Diversos – Franca – 1822 -1888 – Latas C01017 a C01024
Ofícios dos Juízes de Direito – Franca – 1835 - 1888 – Latas CO 04773 a CO
04775
Disponíveis em meio digital
Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras do “Center for
Research Libraries e Latin American Microform Project”.
Pesquisa realizada entre março de 2005 e janeiro de 2006.
Relatórios Ministeriais – Justiça – 1830 -1888. Disponível para consulta em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/justica.html
Relatórios dos Presidentes das Províncias – São Paulo – 1838 -1888. Disponível
para consulta em: http://www.crl.edu/content/brazil/sao.htm
Fontes impressas e obras contemporâneas à delimitação temporal da pesquisa
A Abolição no parlamento: 65 anos de lutas, 1823-1888. 2v. Brasília: Senado
Federal, Subsecretaria de Arquivo, 1988.
Almanak da Província de São Paulo para o ano de 1873, organizado e
publicado por Antonio José Baptista Luné e Paulo Selfino Fonseca. Edição
fac-similar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado S.A., 1985.
ALVES JÚNIOR, Thomaz. Anotações teóricas e práticas ao Código Criminal.
Rio de Janeiro: Francisco Luiz Pinto & C. editores, 1864. 4 tomos.
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e
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2040 de 28 de setembro de 1871. Rio de Janeiro: B. L Garnier, sem data de
publicação.
Código do Processo Criminal de Primeira Instancia do Império do Brasil
com a Lei de 3 de dezembro de 1841 nº. 261, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. Rio de Janeiro: Jacintho
Ribeiro dos Santos Livreiro–Editor, 1899.
Código Criminal do Império do Brasil, comentado e anotado pelo
Conselheiro Vicente Alves de Paula Pessoa. 2ª ed. (aumentada). Rio de
Janeiro: Livraria Popular de A.A. da Cruz Coutinho, 1885.
Coleção das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional,
1864.
CORDEIRO, Carlos Antonio. Novíssimo assessor forense reformado ou
Formulário de todas as ações conhecidas no foro brasileiro. Tomo 1 - Ações
Criminais. 7ª ed. Rio de Janeiro: LAEMMERT & C., 1888.
D’ALINCOURT, Luís. Memória sobre a viagem do porto de Santos à cidade
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de São Paulo, 1975.
Diário da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil -
1823. Edição Fac-Similar. Introdução de Pedro Calmon. 3 Tomos. Brasília:
Editora do Senado, 2003.
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3ª ed. São Paulo: Scipione, 1988. Originalmente publicado em 1869.
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os anos de 1866 e 1867.
MÜLLER, Daniel Pedro. Ensaio dum quadro estatístico da Província de São
Paulo: ordenado pelas leis municipais de 11 de abril de 1836 e 10 de março
de 1837. 3ª ed. (fac-similada) São Paulo: Governo do Estado, 1978.
NABUCO, Joaquim. A Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
______. Um Estadista do Império. 4 volumes. São Paulo: IPÊ - Instituto
Progresso Editorial S.A., 1949.
______. Minha Formação. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004.
Ordenações Filipinas: livro V / organização Silvia Hunold Lara. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recopiladas
por mandado d’el-Rei D. Filipe I. – Ed. fac-similar da 14ª ed. (1870), segundo
a primeira, de 1603, e a nona, de Coimbra, de 1821. 4 volumes / com
introdução e comentários de Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2004.
Reforma Judiciária (Lei nº 2033 de 20 de setembro de 1871). Comentada pelo
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Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
______. Viagem à Província de Goiás. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo,
Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
______. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São
Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976.
SÃO VICENTE, José Antonio Pimenta Bueno, marquês de / organização e
introdução de Eduardo Kugelmas. José Antonio Pimenta Bueno, marquês
de São Vicente. São Paulo: Ed. 34, 2002.
______. Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro. (Edição
anotada, atualizada e completada por José Frederico Marques). São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais”, 1959. (Livro elaborado a partir da 2ª ed. da
obra de Pimenta Bueno originalmente publicada em 1857).
SARMENTO, Alberto. Os crimes célebres de São Paulo: histórico e
julgamento dos crimes mais importantes ocorridos nesta província nos
últimos Tempos (...). Campinas: Typ. a Vapor do Diário de Campinas, 1886.
TAUNAY, Alfredo d’ Escragnolle. Marcha das forças: (Expedição de Mato
Grosso) 1865-1866. Do Rio de Janeiro ao Coxim. São Paulo: Melhoramentos,
1928. originalmente publicada em 1867.
URUGUAI, Visconde do / organização e introdução de José Murilo de
Carvalho. Visconde do Uruguai. São Paulo: Ed. 34, 2002.
VASCONCELOS, Zacarias de Góis e / organização e introdução de Cecília
Helena de Salles Oliveira. Zacarias de Góis e Vasconcelos. São Paulo: Ed.
34, 2002.
VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. / organização e introdução de José
Murilo de Carvalho. Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34,
1999.
VIDAL, José Maria. Repertório da legislação servil. Rio de Janeiro: H.
Laemmert, 1883.
LISTA DE GRÁFICOS, TABELAS E ILUSTRAÇÕES
Gráfico 1 Estatística Criminal do Império do Brasil (1853-1862) 48
Gráfico 2 População escrava e livre (Franca 1778 – 1879) 97
Gráfico 3 Divisão comparativa dos tipos de crimes cometidos por
réus livres, libertos e escravos no município de Franca
entre 1830 e 1888
107
Gráfico 4 Condição social dos réus e de suas vítimas no
Município de Franca entre 1830 e 1888
107
Gráfico 5 Locais da ocorrência dos crimes no Município de
Franca entre 1830 e1888
108
Gráfico 6 Horários em que os crimes foram praticados no
Município de Franca entre 1830 e1888
108
Gráfico 7 Progressão dos crimes (Município de Franca 1830-
1888) 135
Tabela 1 Participação de réus livres, libertos e escravos no
conjunto da criminalidade (Município de Franca 1830-
1888)
102
Tabela 2 Distribuição percentual de cativos e livres na população
e no conjunto dos réus indiciados em processos
criminais no Município de Franca
106
Tabela 3 Situação final de réus livres, libertos e escravos nos
processos criminais do Município de Franca entre 1830
e 1888
143
Ilustrações
Desenho Vista do Largo da Matriz da Vila Franca em 1827 68
Mapa Império do Brazil 16
Mapa Província de São Paulo 57
Mapa Áreas desmembradas do Município de Franca 70
Mapa Província de Minas Gerais 71
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