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trabalho, ele passa na casa da irmã Zélia. Quando não é ele, é sua esposa, Eliane.
Estão diariamente por lá, para onde levam a filha ainda bebê e o filho do primeiro
casamento de Eliane. A primeira fica parte do tempo aos cuidados de Carla, o outro
fica brincando de bola-de-gude com Gabriel, irmão de Carla.
Geraldo só trabalha aos sábados e domingos, como chefe dos vigias em um
prédio da Prefeitura. Durante os dias da semana, é o único homem da família
presente - organiza campeonatos de bolinha de gude com as crianças, no terreno em
frente à sua casa. Às vezes, faz um ou outro serviço de pedreiro, em benefício
próprio, explica ele – ‘nunca mais trabalho para os outros’. Recentemente, Geraldo
prometeu construir um banheiro na nova casa de Luciano e Eliane. O casal tem
vivido dificuldades financeiras e foi despejado de onde morava. Com um empréstimo
de Geraldo, compraram uma casa de um só cômodo – ‘é um barraco’, define Eliane.
Zélia e suas filhas foram as únicas da família de Luciano a ajudar na mudança do
casal; a geladeira foi carregada por este com a ajuda de Claudinho, noivo de Carla.
‘Aí é que a gente vê a parte boa da família’, comentou Luciano com a irmã Zélia. ‘É,
mas é que a gente é a família mesmo’, ela concluiu.
Geraldo prometeu também que vai comandar a construção da casa de Carla. O
futuro casal acabou de comprar um terreno da Associação de Moradores, uma área
interditada para construção na época do programa Favela-Bairro, que chegou a
demolir uma casa construída ali. Mas, devido ao crescente aumento de denúncias,
veiculadas na imprensa, contra a expansão das áreas ocupadas irregularmente nos
morros cariocas, o prefeito liberou vários terrenos outrora interditados. ‘Porque é
aquele problema, pobre gosta de morar tudo encangado, mas aí, como não podia
mais construir perto da onde a família já tem casa, as pessoas começam a construir
mais longe, e o morro foi crescendo’. Carla está feliz com a nova decisão da
prefeitura, porque põe fim a uma longa discussão sobre onde ela e o noivo
construiriam sua futura casa. Ele queria comprar um terreno ao lado da casa de sua
mãe. ‘Ali é horrível, dizia Carla, lá no alto do morro, não dá pra chegar de carro nem
perto, e ainda é passagem de polícia quando tem tiroteio com o movimento’.
Presenciei longas disputas do casal a respeito de seu futuro local de moradia.
Chegaram a se decidir por uma casa colada à de uma prima de Carla, mas a idéia
nunca vingou; havia sempre um debate no qual os dois discordavam sobre quais
eram os pontos mais ou menos valorizados do morro. Eu os ouvia enquanto aprendia
sobre a estratificação de classes expressa na divisão das áreas da Mangueira.
Por fim, o terreno comprado foi o de frente da casa de Zélia e Geraldo, e o
argumento definitivo não foi o da valorização mercantil – embora a área seja bastante
valorizada – foi o da proximidade em relação à casa que os dois mais freqüentam.
Carla e o noivo, Claudinho, estão sempre na casa de Zélia e Geraldo. ‘Até parece que
meu pai ia deixar eu ir morar lá no alto do morro’, concluiu Carla. Seu noivo mora
com a mãe, ela mora em um ‘barraco’ no Buraco Quente, herdado pela avó. ‘Mas ali
é muito ruim. Primeiro porque é úmido, tem um cheiro... E fica no Buraco Quente, aí
na sexta-feira é aquela barulheira do baile. E quando entra o caveirão? Quando a
polícia sobe o Buraco, sai atirando, não quer saber se é trabalhador ou se é bandido’.
É curioso que, apesar dos problemas do seu barraco e da ‘mordomia’ da casa de
seus pais, Carla se recuse a voltar a morar com a mãe. Não se trata de
independência financeira, posto que é o pai quem arca com as despesas dela.
Tampouco se trata de independência afetiva, pois Carla acompanha os pais nos
momentos de lazer e os ajuda nas tarefas domésticas.
Recentemente, Claudinho foi demitido do emprego de pedreiro e Carla teve que
adiar o casamento, dando o tempo de juntar o dinheiro para a construção da casa.
Perguntei-lhe porque ela não vende o ‘barraco’ no Buraco Quente, e ela disse que
não quer ir voltar a morar com os pais. ‘Mas você praticamente já mora lá’,
retruquei. Ela, como das outras vezes, justificou-me que ‘não dá certo’ morar com
eles. Zélia, por sua vez, diz que a filha, ‘depois que entrou para a Igreja Evangélica,
ficou com a cabeça virada’. Nesta época, começaram as brigas dentro de casa.
Quando os conheci, estavam em fase de paz. Mas os conflitos de antes davam sinais
quando Zélia e Geraldo criticavam as amigas de Carla. Elas são todas evangélicas e
moram na Pedra, uma região no alto da Mangueira onde moram os colegas da Igreja,
formando uma vizinhança de crentes que se relacionam tanto pela afinidade religiosa
quanto pelos laços de parentesco e amizade que ligam as diversas casas do local.
Todo domingo, no fim de tarde, Carla sobe para a Pedra. Ali é seu local de
lazer, a despeito das críticas de seus pais. Esta tensão se parece com a que existe