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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MESTRADO E DOUTORADO
UMA ANÁLISE DAS FUGAS PARA PIANO DE
BRUNO KIEFER
UMA BUSCA POR PADRÕES ESTILÍSTICOS
NA SUA ESCRITA CONTR
A
PONTÍSTIC
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R
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L
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Orientador: Profa. Dra. Any Raquel Carvalh
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Co-Orientador: Profa. Dra. Cristina Capparelli Gerlin
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PORTO ALEGRE
2004
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MESTRADO E DOUTORADO
Uma análise das fugas para piano de Bruno Kiefer:
uma busca por padrões estilísticos na sua escrita contrapontística.
Rafael Liebich
Artigo submetido como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre em Música;
área de concentração – Práticas Interpretativas.
Orientação: Profa. Dra. Any Raquel Carvalho
Co-orientação: Profa. Dra. Cristina Capparelli Gerling
PORTO ALEGRE
2004
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Agradecimentos
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para a realização e conclusão
deste trabalho, especialmente:
... a Deus, por ter me dado tudo o que precisei desde o início até a conclusão desta etapa;
... à minha família, pelo apoio incondicional e constante;
... à Profa. Dra. Any Raquel Carvalho, pelos conhecimentos e amizade compartilhados;
... à Profa. Dra. Cristina Capparelli Gerling, pela orientação artística e pela contribuição para com
este trabalho;
... aos membros da banca examinadora, Profa. Dra. Ilza Nogueira, Prof. Dr. Celso Loureiro
Chaves e Prof. Dr. Daniel Wolff, que me honraram com sua presença e sugestões para o
enriquecimento deste trabalho;
... ao PPGMUS-UFRGS e demais professores deste programa de pós-graduação, pelo estímulo e
instrução recebidos;
... à CAPES, pelo apoio financeiro;
... à Josias Matschulat e Martin Dahlström Heuser, pela ajuda com os exemplos musicais;
... aos meus colegas e ex-colegas, em especial à Joana Cunha de Holanda, Elaine Milazzo, Hingrid
Kujawinski, Juciane Araldi, Leonardo Assis Nunes, Nadge Breide, Marcelo Cazarré e Daniela Tsi
Gerber;
... aos amigos que me ajudaram e apoiaram durante a minha estada em Porto Alegre, em especial
a Daniel Reis e família, Bruno Seitz e família, Edson Tammerik e família, Arthur Reinke e família,
Camila Zatti Conceição, Fabio Sampaio Júnior, Luiza Kesterke e Evelin Esperandio;
... a todos os meus amigos que, frente aos encontros e desencontros desta minha caminhada,
incessantemente me incentivam e apoiam para a conquista e concretização dos meus sonhos.
8
RESUMO
Este trabalho oferece um estudo dos padrões estilísticos definidos através da análise dos
processos contrapontísticos encontrados no terceiro movimento da Sonata n
º
I, Fuga e Toccata e
do movimento final de Duas peças Sérias da obra para piano de Bruno Kiefer. A fuga, uma das
técnicas de composição linear mais estabelecidas na escrita musical, reflete as transformações
estilísticas na música ocidental. Considerando a diversidade de possibilidades estéticas na música
do século XX, faz-se mister investigar como Kiefer tratou uma técnica composicional
consagrada, preservando de modo singular e consistente o estilo inovador atribuído às suas obras.
O referencial teórico adotado para este estudo é Twentieth Century Fugue – A Handbook (1962) de
William Graves, Jr.. A partir da análise dos padrões recorrentes nas fugas de Bruno Kiefer,
verificou-se o distanciamento entre os parâmetros da fuga tradicional e o estilo da escrita
contrapontística do compositor.
Palavras-chave:
análise musical – fuga – Bruno Kiefer
9
ABSTRACT
This study offers a view of the stylistic patterns defined by the analysis of the
contrapuntal processes used in the third movement of Sonata I, Fuga e Toccata, and the final
movement of Duas peças sérias [Two serious pieces], from the piano works of Bruno Kiefer. The
fugue, one of the most well established linear techniques of musical writing, reflects the stylistic
transformations in Western music. Considering the diversity of aesthetic possibilities in
twentieth-century music, it is appropriate to investigate how Kiefer dealt with such a technique,
preserving an innovating style in a consistent manner, which has always been attributed to his
music. This study was guided by Twentieth Century Fugue – A Handbook (1962), by William
Graves, Jr.. After the analysis of the recurrent patterns found in the fugues by Kiefer, a
verification of how these patterns relate to traditional parameters of fugal writing was undertaken.
Key-words:
musical analysis – fugue – Bruno Kiefer
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................................6
1 REFERENCIAL TEÓRICO.........................................................................................................10
2
DUAS PEÇAS SÉRIAS
(1957), SEGUNDO MOVIMENTO:
E A VIDA
CONTINUA...
2.1. Análise..........................................................................................................................................22
2.2. Aplicação do Referencial Teórico........................................................................................28
3
SONATA I
(1958), TERCEIRO MOVIMENTO:
FUGA E TOCCATA
3.1. Análise..........................................................................................................................................36
3.2. Aplicação do Referencial Teórico........................................................................................43
CONCLUSÃO...........................................................................................................................................50
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA....................................................................................................55
ANEXOS.....................................................................................................................................................58
INTRODUÇÃO
Bruno Kiefer (1923 – 1987), nascido em Baden-Baden, Alemanha, após sua infância em
Santa Catarina radicou-se em Porto Alegre, onde permaneceu no exercício de suas atividades
musicais até o fim da sua vida. Foi professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), mas seu nome se fez mais amplamente reconhecido como
compositor.
A obra de Bruno Kiefer merece destaque dentre a produção dos compositores gaúchos.
Isso se deve ao fato de perceber-se em suas composições atributos de consistência e
singularidade. A singularidade de suas obras deve-se não só ao fato de serem dotadas de um
vocabulário composicional próprio, mas também por possuírem um estilo peculiar de utilização
deste vocabulário. Este aspecto, uma constante na produção musical de Kiefer, caracteriza as
várias fases da escrita do compositor, conferindo-lhe assim consistência estilística.
Bruno Kiefer foi um compositor que acompanhou os padrões estético-ideológicos
vigentes do seu tempo; conhecia a música de Schoenberg, Stravinsky, Webern, Armando
Albuquerque, Luiz Cosme, Koellreuter, Camargo Guarnieri e Villa-Lobos. Mas sempre lhe foi
inato o esforço de fazer música com “uma originalidade que nem sempre soa natural, embora soe
sempre individual, sempre claramente identificável como sendo Bruno Kiefer” (CHAVES, 1994,
p. 81).
Chaves descreve de maneira poética algumas características da música de Bruno Kiefer:
7
Não encontro melhor imagem para descrever a música de Bruno Kiefer do que a de um
espelho estilhaçado. Ouvir uma de suas obras é sentar-se diante de um tal espelho. É
deixar levar o ouvido como se deixássemos correr os olhos por todas as frações do
espelho, escrutando em cada uma os seus mistérios, as suas angulosidades, as suas
inconformidades, as suas belezas e as suas feiúras, os seus afetos e os seus desafetos
(1994, p. 82 – 83).
O estilo de Kiefer é reconhecido em suas obras para piano devido às peculiaridades de
um discurso que costuma ser mais melódico do que harmônico. Quando ocorrem encontros
verticais, raramente há o estabelecimento de um campo harmônico previsível. O uso de
intervalos dissonantes pode conferir às melodias um caráter áspero, ou até mesmo agressivo.
Gerling acrescenta outras características sobre a música para piano de Kiefer:
A corrente sonora subitamente interrompida pelo silêncio devastador, o uso de
registros extremos do piano, de dinâmicas que exploram o mais alto grau de contraste,
de insistências desatinadas e em ternas sutilezas de colorido e articulação reforçam o
ambiente tenso e o caráter inquieto (1994, p. 46).
As fugas utilizadas no presente trabalho são, respectivamente, a última das Duas peças sérias
(1957) e o terceiro movimento da Sonata I (1958), ambas a duas vozes. Neste primeiro período
composicional, caracterizado pela “relutância em abandonar o tonal” (GERLING, 2001, p. 53),
Bruno Kiefer ainda procurava estabelecer a linguagem e configurar o estilo pessoal que
caracterizariam a sua música. A exploração das possibilidades estilísticas reflete-se de modo
definidor no caráter destas duas obras do compositor. Além destas duas fugas, há apenas uma
outra no segundo movimento de Reflexões (para órgão), escrita em 1986.
A fuga é uma das técnicas de composição linear mais referenciadas da escrita musical e
tem acompanhado as transformações de estilo e linguagem durante a história da música ocidental.
Assim como Bruno Kiefer, compositores brasileiros como Camargo Guarnieri, Edino Krieger,
Oswaldo Lacerda, Gilberto Mendes, Marlos Nobre, Pe. José Penalva e Almeida Prado
8
produziram, mais freqüentemente em Sonatas, obras de caráter contrapontístico – fugas,
invenções, etc.
Esse interesse pelos processos composicionais consagrados configura uma postura
comum a diversos estudiosos e compositores do século XX (Stravinsky, Shostakovich e
Hindemith, entre os mais conhecidos) que, “ao retomarem o desenvolvimento do contraponto,
proporcionaram um certo renascimento da técnica fugal” (RIBAS, 2002, p. 3 – 4). Torna-se
relevante portanto, analisar como Kiefer tratou a técnica fugal ao preservar a sua essência,
construindo de modo singular “a aparente fragmentação e desestruturação de sua obra”
(GERLING, 2001, p. 52), provocando e instigando seus ouvintes.
Observa-se na obra de Bruno Kiefer aspectos que apontam para padrões estruturais e
harmônicos regidos por uma unidade estética e ligados tanto a conceitos tonais quanto atonais.
Trabalhos como os de Bordini (1997) e Gerling (2001) discorrem sobre estes e diversos outros
aspectos da música de Bruno Kiefer, tais como a “utilização de tons estranhos agregados a
acordes diatônicos” (GERLING, 2001, p. 53). Para estes autores, o tipo de análise musical
aplicado às fugas de Bruno Kiefer depende diretamente da linguagem composicional empregada,
ou seja, desenvolve-se de acordo com parâmetros musicais adotados pelo compositor.
O presente trabalho está estruturado nas seguintes etapas:
Analisar a estrutura das fugas para estabelecer seu material temático principal
(sujeito, contra-sujeito) e os procedimentos contrapontísticos secundários
(seqüências, stretti, etc.);
Analisar os elementos da linguagem musical empregada em cada fuga tais como
melodia, ambiente harmônico, organização rítmica e estrutura. Cada elemento
composicional será analisado também com relação ao seu aspecto estrutural e
funcional, considerando as diferenças estilísticas existentes entre o período
barroco e a primeira metade do século XX;
9
Analisar os procedimentos contrapontísticos de cada fuga para verificar e
caracterizar seu distanciamento das obras escritas na linguagem fugal tradicional
do período barroco;
Relacionar os dados obtidos procurando reconhecer padrões que configurem um
estilo para a escrita contrapontística nas duas fugas para piano do compositor.
10
1 REFERENCIAL TEÓRICO
Grande parte da produção musical do século XX funde elementos tanto do idioma tonal
quanto do atonal. Reti sugere o conceito de pantonalidade
1
para compreender toda a música que
expressa traços desta fusão. Para este autor, a pantonalidade pode abranger toda a música não-tonal
que “desenvolve a idéia inerente à tonalidade, e como conseqüência, forma todo um novo
complexo de acessórios técnicos, inclusive um novo conceito para a própria harmonia” (RETI,
1958, p. 4).
Assim como Reti, William L. Graves, Jr., em seu livro Twentieth Century Fugue – A
Handbook (1962), afirma que nos processos contrapontísticos, o ambiente harmônico “atingiu
um ponto de complexidade onde a diferença entre consonância e dissonância é geralmente
irrelevante”, e que nesta música não-tonal, “um grande número de inovações fizeram do ritmo
um dos elementos mais destacados da música contemporânea. Linhas melódicas assimétricas e o
caráter tonal livre encontraram no contraponto seu principal veículo de expressão” (p. 73).
O discurso musical de Bruno Kiefer, sobretudo nas duas fugas apresentadas neste
trabalho, é dotado de diversas características que vão ao encontro da proposta analítica acima
citada. A trama essencialmente contrapontística, tecida por linhas melódicas independentes,
delineadas por intervalos dissonantes e de caráter rítmico elaborado, apresenta um conjunto de
aspectos que podem ser estudados segundo os pressupostos apresentados pelo autor, bem como
as resultantes harmônicas.
A abordagem analítica de William L. Graves, Jr. (1962)
2
servirá de base para o referencial
teórico, o qual fornecerá subsídios para a análise do trabalho contrapontístico. Este autor,
preocupado com o crescimento do interesse nas formas e práticas composicionais das épocas
anteriores, fornece parâmetros sobre contraponto, em especial sobre a escrita fugal, traçando
1
Para Reti, a pantonalidade abrange a tonalidade num sentido ampliado, quase universal. “Pan é, naturalmente, a
palavra do grego antigo que designa o conceito do ‘todo’, do ‘completo’; mas há ainda um significado de
universalidade, de totalidade, ligado ao sentido da palavra pan, que vai além do ‘todo’” (RETI, 1958, p. 4).
2
A partir deste momento, todas as referências que indicarem apenas o número da página pertencem ao Twentieth
Century Fugue – A Handbook (1962), de William L. Graves, Jr..
11
paralelos históricos que abordam as mudanças no procedimento composicional. Segundo ele, “a
fuga é uma das múltiplas técnicas contrapontísticas que, ao acompanharem o processo de
evolução estética, identifica-se com o estilo moderno” e que “atualmente existe uma dúvida
uniforme entre compositores e teóricos, no que diz respeito à adequação das presentes técnicas
de análise” (p. 73). Diante disso, o autor mostra-se flexível para adequar suas abordagens
analíticas às diversas linguagens musicais, contemplando os seguintes aspectos relacionados à
escrita fugal:
I) características lineares;
II) técnicas contrapontísticas;
III) estruturas harmônicas;
IV) ritmo;
V) elementos estruturais.
O autor analisa os procedimentos da escrita na fuga moderna, freqüentemente
comparados ao estilo da escrita fugal tradicional, ou seja, do período barroco. O emprego da
escala diatônica e a conseqüente hierarquia tonal foram preteridos como elementos essenciais na
organização do discurso musical. Graves, Jr. afirma que essa desestruturação interfere também
nos aspectos rítmicos e estruturais (p. 1 – 2), estabelecendo assim os seguintes parâmetros para a
análise musical das fugas:
I) Características Lineares:
As características lineares compreendem novas realizações melódicas e rítmicas. Como o
sujeito é o elemento temático principal na fuga, Graves, Jr. analisa suas características melódicas
classificando-o como (p. 2):
1) Tonal (com tonalidade ou centros tonais definidos):
a) modal;
b) neomodal;
12
c) ambivalente “maior-menor”, com livre ornamentação de apojaturas;
d) cromático livre, com orientação a um centro tonal;
2) Atonal
3
(ou tonalmente ambíguo):
a) diatônico livre;
b) cromático livre;
c) construção serial (sujeito dodecafônico e/ou similares).
O autor considera que a tonalidade pode ser determinada a partir da reiteração de uma
dada nota com suas relações de quarta e quinta. Assim, a tonalidade é entendida como fenômeno
baseado em relações intervalares, podendo ser estabelecida tanto por condicionamento
psicológico do ouvinte, quanto por prova acústica (p. 3).
Das análises utilizadas como exemplos em seu livro, Graves, Jr. abstrai os principais
procedimentos relacionados com a organização das alturas dos sujeitos, e como estes orientam
ou determinam seus pólos. Assim, o autor enumera quatro classes referentes à organização das
alturas no sujeito (p. 6):
1) Ausência de pólo tonal: a repetição de uma nota ou pólo é evitada, bem como de suas
respectivas quartas ou quintas;
2) Unicentricidade tonal: uma única nota reiterada, ornamentada por tons cromáticos
vizinhos ou transposta à distância de uma oitava acima ou abaixo; caráter estático;
3) Bipolaridade ou polipolaridade tonais: duas ou mais regiões tonais fortemente
estabelecidas, apresentadas em justaposição, freqüentemente em relação cromática ou
enarmônica;
4) Pólo tonal sustentado: região tonal sustentada através de continuidade ou reiteração
de elementos diatônicos (modo, neomodo, escala convencional, etc.). Aqui, os efeitos
de “colorido” são obtidos através da mistura de terças e sextas maiores e menores,
3
O termo atonal é muito utilizado na língua inglesa, mas neste trabalho optou-se por utilizar o termo pós-tonal, por ter
uma abrangência mais condizente com o teor aqui pretendido.
13
bem como alterações cromáticas em outros graus da escala, tais como quartas
aumentadas, segundas menores, sétimas menores, etc.
II) Técnicas contrapontísticas:
O primeiro aspecto tratado por Graves, Jr. refere-se à relação intervalar entre sujeito e
resposta. Segundo o autor, esse aspecto mantém estreita relação com as fugas tradicionais do
período barroco, considerando os intervalos de quarta e quinta como fundamentais para o
estabelecimento de uma relação diatônica. Mesmo o sujeito que não apresentar caráter tonal
poderá ter uma resposta ao intervalo de quarta ou quinta acima. Graves, Jr. propõe três
classificações para a relação entre sujeito e resposta (p. 13):
Tipo I: relação repetitiva – quando, numa fuga a quatro vozes, sujeito e resposta
mantêm suas notas originais e a relação intervalar e entre si durante a exposição;
Tipo II: relação parcialmente repetitiva – quando numa fuga a quatro vozes,
apenas duas das quatro entradas ocorrem nas mesmas notas, independentes da
ordem;
Tipo III: relação não-repetitiva – relação intervalar e notas iniciais livres, para
todas as entradas do sujeito e resposta na exposição.
Quanto à relação entre sujeito e contra-sujeito, Graves, Jr. afirma que as fugas com
sujeitos mais extensos tendem também a ter contra-sujeitos igualmente elaborados (p. 18). Mas,
declara que é possível encontrar um número equilibrado de fugas com e sem contra-sujeitos. O
procedimento mais freqüentemente empregado na elaboração entre sujeito e contra-sujeito é o
do contraponto duplo, dada a possibilidade de contraste no caráter das duas linhas.
A ausência de princípios tonais permite que o contraponto enseje processos melódicos
cujo resultado sonoro estabelece relações harmônicas não-tradicionais e com interferência no
fluxo estrutural de uma obra. Logo, respostas tonais isentam-se de sua função tradicional, visto
que não existe mais a preocupação com a manutenção da tonalidade. Nestas circunstâncias,
14
torna-se importante analisar a relação intervalar entre os materiais temáticos, bem como sua
interferência na estrutura da obra e o grau de exatidão das transposições dos materiais temáticos.
Fragmentos derivados dos materiais temáticos servem de base para os procedimentos
contrapontísticos secundários tais como stretto, inversão, retrogradação, aumentação e diminuição,
cânone, ou a combinação destes.
III) Estruturas harmônicas:
Novas possibilidades de conexão entre acordes vieram a permitir um alargamento sem
precedentes no emprego do cromatismo. O acorde passou a ser considerado uma sonoridade, um
arranjo vertical onde qualquer combinação de intervalos é possível (p. 29). No contraponto, o
desenvolvimento das linhas não é necessariamente orientado pela progressão dos acordes ou pelo
movimento das fundamentais. O ritmo contribui para efeitos de oposição e contraste entre as
linhas. Os acordes são considerados entidades independentes, fruto do contraponto linear livre.
Mesmo assim, o grau de semelhança entre as fugas tradicionais e as mais recentes é marcante; a
dissonância é tratada com maior flexibilidade, mas a essência do procedimento permanece a
mesma.
Conforme Graves, Jr. (p. 32), intervalos como terças e sextas são considerados essenciais,
seguidos pelas oitavas e quintas, tal como nas fugas tradicionais, com algumas exceções. O
movimento paralelo de intervalos dissonantes entre as vozes, fenômeno pouco comum nas fugas
tradicionais barrocas, ocorre com maior freqüência. Intervalos aumentados e diminutos, antes
considerados dissonâncias absolutas, são utilizados freqüentemente e considerados dissonantes a
partir do contexto no qual estão inseridos. Via de regra, os movimentos predominantes ainda são
oblíquos ou contrários; movimentos paralelos predominam entre terças e sextas, com algumas
exceções.
15
Na caracterização do tratamento dado às dissonâncias nas fugas da primeira metade do
século XX, Graves, Jr. considera três acessórios como essenciais: notas estranhas, cordalidade
4
e
progressão harmônica. Segundo o autor, um estudo sobre estes elementos contribui na
identificação das linhas que compõem o tecido contrapontístico e na compreensão da
estruturação das alturas. Também aponta para o reconhecimento de entidades cordais definidas e
a relação entre as mesmas, especialmente no que tange às relações de maior e menor tensão – ou
seja, o grau de dissonância.
Segundo Graves, Jr., Piston afirma que elementos harmônicos e lineares fundiram-se e
portanto, tornou-se complexo separar procedimentos contrapontísticos da harmonia. Hindemith,
através da sua teoria sobre tensão harmônica, demonstra que tal como no período barroco, a
identificação de procedimentos como suspensão, notas de passagem, apojaturas, bordaduras e
outros similares, pode demonstrar que o princípio de tensão e relaxamento ainda é válido e
reconhecível, mesmo em ambientes de grande complexidade harmônica. Por outro lado,
Hennings assume a posição de que a identificação das dissonâncias contribui para a percepção
distinta das linhas integradas em uma textura contrapontística (p. 35).
Ao considerar estas colocações, nota-se que ainda não há um consenso definitivo sobre a
definição de dissonância e, como na maioria dos casos, cada análise revelará o modo de pensar de
seu autor. Graves, Jr. considera que o fenômeno da percepção auditiva é relativo e interfere na
determinação e reconhecimento dos acordes, assim como na identificação das notas estranhas
aos mesmos, independente do procedimento empregado na introdução e/ou resolução destas
notas (p. 35). O autor passa a analisar diversos exemplos musicais, considerando as peculiaridades
de cada um e enumera algumas características recorrentes em todos os exemplos (p. 38):
1) Estilos menos radicais ou inovadores podem apontar para uma clara separação
das notas estranhas e dos elementos harmônicos. Nestes casos, a harmonia
4
Por cordalidade expressa-se o processo de reconhecimento de acordes em meio a uma textura contrapontística,
com o objetivo de caracterizar a relação entre estes e compreender a progressão no discurso harmônico.
16
costuma ser mais freqüentemente composta por material triádico, acrescido de
sétimas e nonas;
2) Notas estranhas em contraponto a duas vozes são geralmente mais evidentes
que em tecidos contrapontísticos com três ou mais vozes, independentemente
do estilo particular de cada um;
3) A sucessão de dissonâncias não resolvidas tende a obliterar a distinção entre
tons harmônicos e tons estranhos, resultando na formação de corpos cordais
complexos. Isso ainda pode ser agravado pela ausência de diferenciação rítmica
entre as linhas;
4) A dificuldade na distinção das notas estranhas não limita a identificação clara
das diversas linhas em uma textura contrapontística. Diferenciação rítmica e de
direção das linhas contribuem para a caracterização das consonâncias e
dissonâncias;
5) Percepção auditiva de acessórios tais como suspensão, notas de passagem, etc.,
depende do estabelecimento das normas da cordalidade em meio a uma textura
linear.
Tratando-se do conceito de cordalidade, e considerando a ausência dos princípios da
tonalidade, torna-se complexo determinar se a harmonia é um fator resultante ou causativo no
contraponto moderno (p. 39). Mesmo assim, é possível encontrar soluções parciais para a
problemática da verticalidade neste contexto.
Conforme o autor, a produção musical do século passado caracterizou-se pelo extenso
uso das harmonias quartais e pela minimização da importância da entidade triádica. A partir dos
procedimentos empregados neste ambiente harmônico expandido, formaram-se:
a) acordes construídos em quartas ou quintas;
b) acordes-apojatura (o nome indica a origem em notas estranhas não
resolvidas);
17
c) poli-acordes;
d) formações compostas pela combinação dos anteriores (p. 39).
Por mais complexos ou ambíguos que sejam os padrões harmônicos, os tipos de
formações cordais mencionados integram a estrutura básica dos tecidos contrapontísticos
modernos. A presença de movimento paralelo de blocos cordais, cadências e uso de
preenchimento harmônico apontam para um interesse maior na homofonia, tornando mais
evidente a formação de um organismo harmônico em meio a texturas contrapontísticas.
Alguns exemplos analisados por Graves, Jr. esclarecem o modo de interação das linhas e
formação de corpos cordais. Melodias estruturadas em trítonos e outros intervalos
aumentados/diminutos, por exemplo, quando justapostas, resultam em encontros verticais de
sétimas e segundas/nonas. Acessórios tais como a sucessão paralela de blocos cordais (de
quartas, quintas, sétimas, etc.) são freqüentemente utilizados em seções de clímax estrutural, onde
recursos timbrísticos e enfáticos se fazem necessários. O uso simultâneo de corpos cordais
diversos (poli-acordes) resulta na coexistência de harmonias maiores e menores com freqüentes
atritos de segundas e sétimas.
Dentre as correntes analíticas citadas por Graves, Jr., a teoria de Salzer (1952) parece,
segundo ele, adequar-se aos problemas analíticos propostos pela música da primeira metade do
século XX. Portanto, Graves, Jr. propõe o uso desta teoria para a análise das questões
harmônicas neste conjunto de obras (p. 43). Considerada uma extensão da proposta
Schenkeriana, a teoria de Salzer baseia sua análise de progressão harmônica nas realizações
lineares bem estruturadas e em pontos verticais pivô, onde uma base cordal é evidente. Segundo
Salzer, a progressão harmônica pode ser caracterizada por dois fenômenos principais:
1) movimento prolongado de um mesmo acorde – chamado de
“harmonia estática”; ou
2) estrutura completamente contrapontística.
18
Em nenhuma instância Salzer exclui a existência de centros tonais, que são estabelecidos
principalmente pela reiteração (p. 43). Através de exemplos, Graves, Jr. (p. 44 – 51) demonstra a
aplicação da teoria de Salzer.
No primeiro movimento do Quarteto em Mi bemol de Hindemith, o autor descreve uma
“continuidade linear máxima, com uma mínima cordalidade reconhecível” (p. 46). Assim, esse
exemplo seria uma “estrutura completamente contrapontística”. No primeiro movimento de
Música para Cordas, Percussão e Celesta de Bartók, Graves, Jr. afirma não encontrar nenhuma
entidade cordal significativa; “a estaticidade e a falta de progressão harmônica colocam este
exemplo na categoria de ‘movimento prolongado de um mesmo acorde’ ” (p. 48). Em Stravinsky,
no segundo movimento da Sinfonia dos Salmos, Graves, Jr. descreve a coexistência de uma
cordalidade mais definida e uma ausência de progressão harmônica, já que “a tonalidade, ou os
acordes básicos de cada seção estão meramente ornamentados por acordes adjacentes
secundários” (p. 49). Esse exemplo também é classificado como “movimento prolongado de um
mesmo acorde”.
Assim, através da análise de exemplos musicais, Graves, Jr. enumera um sumário das
características recorrentes sobre a progressão harmônica no contraponto do início do século XX
(p. 51):
1) Mínima existência de formações cordais reconhecíveis com fundamentais distintas
e estabelecidas;
2) Efeito tonal é resultado principalmente de simples reiteração;
3) Progressão harmônica ausente. Ausência de progressão não implica em
inexistência e/ou mudanças de centro(s) tonal(is);
4) Três principais procedimentos contrapontístico-harmônicos:
a) Projeção de longo alcance de um acorde básico (chamado “movimento
prolongado”, por Salzer);
19
b) Projeção de longo alcance de um acorde básico, sem determinação clara de
normas para cordalidade (um tipo elementar de “movimento prolongado”);
c) Progressão linear livre, elaborando sobre uma altura ou célula melódica, e seus
vizinhos à distância de uma segunda ou terça, acima ou abaixo (uma “estrutura
completamente contrapontística”, segundo Salzer).
Graves, Jr. também cita as características da harmonia no contraponto moderno (p. 51):
1) formações cordais novas, com difícil determinação de fundamentais;
2) aumento do uso da dissonância, como um subproduto das novas formações
cordais;
3) forte tendência à fusão de acordes e notas estranhas;
4) a problemática resultante na análise de progressão harmônica e tonalidade.
Conforme Graves, Jr., os procedimentos analíticos sobre uma determinada obra devem
adequar-se às características musicais particulares da mesma. Essa flexibilidade se faz necessária,
dado o amplo dualismo existente nas discussões em torno da problemática da “tonalidade vs.
atonalidade”.
IV) Ritmo:
O enfraquecimento da tonalidade reflete-se também na quebra dos princípios de simetria,
o que acaba interferindo nas outras realizações composicionais, tais como num desenvolvimento
melódico mais livre, em inovações no movimento harmônico e em novos procedimentos
rítmicos. Notamos diversas mudanças no que tange à organização rítmica, tais como a ausência
de barras de compasso, compassos com extensão irregular e, freqüentes mudanças métricas (p.
52).
Conforme Graves, Jr., os principais acessórios que contribuem para a formação de
proporções ou agrupamentos rítmicos assimétricos são: o uso de métrica composta, alternado ou
simultâneo com a métrica simples; fórmulas de compasso menos utilizadas, tais como 5/4, 7/8,
20
etc.; deslocamentos métricos e de acentos; métricas irregulares alternadas; mudanças agógicas;
polimetrias e/ou polirritmias (p. 52).
Visto que as forças da homofonia já não se aplicam mais com a mesma intensidade, fugas
e outros tipos de contraponto imitativo destacam-se por suas diversidade e plasticidade rítmicas
inerentes. Assim, as fugas têm o potencial de serem “polirrítmicas e polimelódicas”
(GHISLANZONI apud GRAVES, JR., p. 52). As inovações rítmicas têm seu foco na
independência linear, contribuindo para a diferenciação do caráter das linhas.
Dentro da métrica regular os procedimentos relacionados às possibilidades de síncope e o
uso de figurações rítmicas variadas (ainda que proporcionais em relação a métrica) configuram os
movimentos flexíveis do acento e do pulso. Quando se pretende realizar encontros verticais mais
polarizados, são permitidas aumentações e diminuições dos valores de certas notas das linhas, de
acordo com a conveniência necessária. Mudanças rítmicas agógicas contribuem para o
deslocamento e flexibilidade do acento, especialmente em seções canônicas, com uso de stretto,
e/ou em episódios onde há contraponto duplo, visto que nestas seções motivos derivados do
material temático são freqüentemente utilizados em todas as vozes.
Mudar a organização métrica no decorrer da obra é um recurso utilizado para a definição
de seções, mais freqüentemente encontrado em fugas duplas ou triplas. Esta ferramenta permite a
utilização de novo material temático e com nova organização métrica, simultaneamente com
material temático já apresentado, mas alterado rítmica ou metricamente, de acordo com a
conveniência. Deve-se salientar que, em fugas monotemáticas, este recurso é utilizado
considerando mais sua função rítmica do que sua função estrutural.
Quanto ao uso de relações de proporção pouco usuais, tais como as freqüentemente
utilizadas nos períodos clássico e romântico, estas exerceram pouca influência na escrita fugal
moderna. Este recurso é mais utilizado por suas propriedades polirrítmicas inerentes do que por
seu caráter expressivo e ornamental, como anteriormente (p. 62).
21
V) Elementos estruturais:
Os princípios tonais vigentes desde o período barroco refletiam-se no controle do
discurso harmônico de uma obra, interferindo assim no seu ritmo estrutural. Com as mudanças
ocorridas no início do século XX, em relação ao emprego da tonalidade, além do
enfraquecimento dos princípios de proporção e simetria, o caráter e função das seções dentro de
uma mesma obra também passam a ser tratados de modo diferente.
As preocupações harmônicas apontavam uma relação com as notas originais e finais do
material temático, o que permitia interferir na estrutura da fuga; na pós-tonalidade, essa
preocupação exerce apenas um valor residual. Quando isso ocorre é por uma questão funcional,
visto que o procedimento orgânico da fuga é essencial, portanto, preservado em qualquer
período. O grau em que isso pode ser percebido auditivamente depende da intensidade de
polarização e de caracterização das linhas, fatores que interferem na estrutura.
Entre as alternativas, duas são as mais comuns. Na primeira, a fuga é um movimento
inteiro dentro de uma obra maior (movimento de uma sonata, ou sinfonia, por exemplo); na
segunda, a fuga insere-se como uma seção dentro de um movimento. Em ambas, a ênfase é dada
ao potencial de desenvolvimento linear inerente ao processo contrapontístico.
O desenvolvimento do material temático no decorrer dos episódios ocorre através da
fusão e da abordagem de diversas possibilidades no decorrer das fugas do repertório moderno.
Segundo Graves, Jr., o episódio é freqüentemente utilizado como uma seção mais longa e mais
recorrente, com desenvolvimento do material motívico e com mistura de texturas homofônicas e
polifônicas. Esta tendência aproxima-se das características das fugas compostas por Beethoven e
outros compositores da época – séc. XVIII e XIX (p. 65).
22
2
DUAS PEÇAS SÉRIAS
(1957), SEGUNDO MOVIMENTO:
E A VIDA
CONTINUA...
2.1 Análise
E a vida continua... utiliza um poema de Carlos Drummond de Andrade como epígrafe
(GANDELMAN, 1997, p. 89). A fuga, escrita a duas vozes, desenvolve-se por 73 compassos e é
precedida pelo movimento Música para as vésperas do último suspiro. De caráter ágil, com andamento
moderadamente rápido, a fuga apresenta seções bem definidas: uma exposição, três reexposições
intercaladas por três episódios, uma inserção inesperada na segunda metade da obra de um
fragmento da primeira peça, e coda. A seguir serão descritas mais detalhadamente a organização
das seções e as características gerais do material utilizado em cada uma delas.
SEÇÕES
Exposição
Episódio
1
a
Reexpos.
2
o
Episódio
2
a
Reexpos.
3
o
Episódio
Inter-
Rupção
3
a
Reexpos.
Coda
COMPASSOS 1 – 9 9 – 15 16 – 24 24 – 39 40 – 44 44 – 49 50 – 53 54 – 61 62 – 73
Quadro 1: Estrutura geral de E a vida continua...
A Exposição (c. 1 – 9) apresenta na voz superior um sujeito iniciando e concluindo em SI
(Figura 1), rico em cromatismo e delineado predominantemente por graus conjuntos que
preenchem os freqüentes saltos de 4ª aumentada. A resposta, na voz inferior, é real, com imitação
à 5ª (FÁ#). As semicolcheias constantes caracterizam a repetição de um padrão rítmico no
23
sujeito. Essa figuração é contrastante com a do contra-sujeito (c. 5), que inicia em MI, com
apojatura (Figura 2), caracterizado pelo amplo uso de síncopes e saltos
5
.
Figura 1: Sujeito, c. 1 – 5
Figura 2: Contra-sujeito, c. 5 – 9
No primeiro episódio (c. 9 – 15) a voz superior está baseada numa figuração rítmica
derivada de S (Figura 3b), seguida de uma seqüência rítmica e de um fragmento cromático,
composto por intervalos de 7
a
e 2
a
.
a)
b)
Figura 3: Sujeito (3a, c. 1 – 5) e derivação na voz superior (3b, c. 9 – 12)
5
As abreviações “S” para sujeito, “R” para resposta e “CS” para contra-sujeito, serão adotadas para referir-se ao
material temático.
24
A voz inferior apresenta em sua primeira metade uma seqüência melódica e a seguir, uma
célula rítmica nova derivada do final do CS (Figura 4b).
a)
b)
Figura 4: Contra-sujeito (4a, c. 5 – 9) e derivação na voz inferior (4b, c. 13 e 14)
A primeira reexposição (c. 16 – 24) apresenta S nas alturas originais (uma 8
a
acima) e R
transposta
6
uma 3ª acima do original (LÁ), logo, à 7ª do S. CS reaparece nesta reexposição e na 3
a
reexposição, sempre com alguma modificação melódica e/ou rítmica. Nesta primeira ocorrência,
CS que acompanha S inicia em DÓ (à 3
a
abaixo do original, c. 16), e CS que acompanha R, em
SI (à 5
a
acima do original, c. 20), compondo uma 7
a
entre suas entradas.
No segundo episódio (c. 24 – 39) encontra-se na voz superior a apresentação sucessiva de
um fragmento sincopado, derivado ritmicamente e por inversão de S (Figura 5b e 5c),
estruturado sobre 4
as
aumentadas e em seqüência descendente por graus conjuntos (c. 25 – 27 e c.
30 – 33). Segue um ostinato de cinco notas (c. 34 – 39) que finaliza o episódio.
6
Na exposição e reexposições desta fuga, onde há a dupla ocorrência do material temático, será utilizada a
denominação S e R respectivamente, independente da relação intervalar estabelecida entre as suas entradas.
25
a)
b)
Seq.
c)
Figura 5: Sujeito (5a, c. 1 – 5) e derivações na voz superior (5b, c. 25 – 27; 5c, c. 30 – 33)
Na voz inferior, três células rítmicas derivadas do CS são desenvolvidas em três
segmentos distintos e sucessivos (Figura 6b, 6c e 6d).
a)
B)
C)
Seq.
Cél. 2
Célula 2
Célula 1
Célula 3
Seq. Cél. 1
7
a
6
a
5
a
b)
c)
26
D)
Figura 6: Contra-sujeito (6a, c. 5 – 9) e derivações rítmicas
na voz inferior (6b, c. 24 – 28; 6c, c. 30 – 34; 6d, c. 34 – 39)
Neste episódio as duas vozes trabalham com padrões sincopados (a voz superior com
padrões derivados do S, e a voz inferior, do CS), produzindo uma resultante rítmica constante de
semicolcheias – característico do S – sendo que os fragmentos sincopados de uma voz
preenchem os espaços da outra. Este trabalho de movimento rítmico alternado produz um efeito
de diálogo entre as vozes. Vale mencionar a ampliação progressiva dos intervalos (5
a
, 6
a
, 7
a
) na
elaboração da célula 2 (Figura 6c).
A segunda reexposição (c. 40 – 44) apresenta S transposto na voz superior, iniciando em
b – à 7
a
alterada acima da altura original – sem CS. Este é acompanhado por movimento
escalar ascendente e descendente em semicolcheias iniciado em SI, sempre em teclas brancas.
O terceiro episódio (Figura 7, c. 44 – 49) tem na voz superior material derivado do S em
seqüência sobre intervalos que diminuem progressivamente (saltos de 7
a
, 6
a
, 5
a
), ao contrário do
segundo episódio. A inversão desta seqüência é apresentada logo a seguir na voz inferior, com
pequenas modificações (c. 47 – 49).
5
a
6
a
7
a
Seq. Cél. 3
Seq.
Seq.
d)
Figura 7: Terceiro episódio, c. 44 – 49
27
Antes da última reexposição ocorre, entre os c. 50 e 54, uma inserção inusitada de um
fragmento de dois compassos provenientes do primeiro movimento (Música para as vésperas do
último suspiro, c. 47 e 48), porém, uma 8
a
abaixo. Esta passagem é repetida nos dois compassos
seguintes (c. 52 e 53), agora no registro original. A importância destes dois compassos revela-se
pela sua ocorrência também no final do primeiro movimento (c. 58 e 59). Na fuga, esta
interrupção ocorre antes da última reexposição e da coda, proporcionando através de uma
mudança de atmosfera, um caráter de preparação para o final. Além disso, essa inserção
estabelece um elo com o primeiro movimento, e todas ocorrências conferem unidade ao
conjunto.
A última reexposição (Figura 8) apresenta S, R e CS nas alturas originais (sendo que S e R
encontram-se uma 8
a
acima), mas dispostos como um espelho da exposição, ou seja, S após a
ocorrência de R com CS. Uma escala de si menor acompanha toda a apresentação de S, o qual é
finalizado com uma mudança de registro no último salto.
S
CS
R
mudança de
registro
Figura 8: Última reexposição, c. 54 – 62
28
A Coda (c. 62 – 73) inicia com o material de S em stretto, o qual vai diluindo-se na voz
inferior. As entradas das vozes em stretto compõem um intervalo de 4
a
aumentada – primeira
entrada em SOL, e segunda entrada em DÓ#
7
. A voz superior mantém a figuração rítmica de S
até o final, enquanto a voz inferior alterna entre esta e a figuração de CS. O arpejo em 4
as
é
enfatizado em ambas as vozes nos últimos sete compassos.
2.2 Aplicação do Referencial Teórico
A seguir, os elementos estrutura, tonalidade, ambiente harmônico, organização rítmica e
técnicas contrapontísticas, serão examinados sob o olhar da proposta analítica de Graves, Jr.
(1962). Cada uma destas aplicações compreenderá uma das seções decorrentes do trabalho, a
começar por:
1. Estrutura:
Em Duas Peças Sérias, a fuga está inserida como o segundo movimento deste conjunto. A
textura essencialmente contrapontística da fuga liga-se à tradição bachiana, conforme discorrido
por Graves, Jr. (p. 67). A tenacidade do trabalho de elaboração motívica e a manutenção da
função e organicidade de todos os elementos estruturais apontam para a adoção de um caráter
autenticamente neobarroco.
Esta fuga apresenta um equilíbrio no número de seções (Quadro 1 – p. 22): entre a
exposição e a coda, existem três reexposições, três episódios e a inserção de um fragmento
trazido do primeiro movimento (ligado ao último episódio). Os episódios são de tamanho
7
Por razões de coerência, sugere-se que a nota DÓ# (c. 62, voz superior) conforme indicado por Kiefer em seu
manuscrito seja substituída por DÒ NATURAL. Assim, o intervalo inicial de 4
a
justa é mantido, como em todas as
demais ocorrências de S. Além disso, ainda que ausente, a cadência esperada no final desse S tende ao DÓ
NATURAL, e não ao DÓ#.
29
irregular: o primeiro é curto, com apenas 7 compassos; o segundo é mais longo (16 compassos) e
o terceiro, é composto por 6 compassos.
A interrupção antes da última reexposição (c. 50 – 54) repete material já apresentado no
primeiro movimento. Este recurso aponta para o processo das autocitações. Em Kiefer, esta
“estratégia composicional envolve a reutilização de idéias musicais idênticas que transitam de
peça para peça” (CARDASSI, 1998, p. 140). Em E a vida continua..., além de conferir coesão e
unidade à obra, esta autocitação proporciona também um descanso para o movimento constante
de semicolcheias característico da fuga, pois ao reviver o caráter “Desalentado” promove também
uma mudança de atmosfera.
Uma característica marcante desta fuga é a organização da exposição e da última
reexposição, no que se refere à apresentação do material temático. Nestas seções, o material
temático é apresentado nas suas alturas originais, sendo que na última reexposição, o material
temático está disposto ao contrário da exposição, ou seja, em espelho, delineando o início e o fim
da fuga.
2. Tonalidade:
Mesmo que a idioma musical não seja tratado de modo tradicional, o compositor utiliza
uma armadura de clave com dois sustenidos que identifica a tonalidade centrada em Si Menor,
ressalvando-se que o sujeito não reflete de imediato esta configuração. Analisando o sujeito desta
fuga, verifica-se o uso das doze notas da escala cromática. Mesmo assim, a disposição das alturas
está de tal forma organizada que demonstra a inclinação do sujeito para um centro tonal.
Considerando as classificações sugeridas por Graves, Jr., este sujeito pode ser caracterizado como
tonal, com “organização cromática livre das suas alturas e inclinação a um centro tonal
predominante” com pequenas células/intervalos tonais de menor força (p. 2). Além disso, as
doze notas não são apresentadas sucessivamente sem repetição, o que descarta a possibilidade do
sujeito ser dodecafônico.
30
Quanto à organização das alturas do sujeito, observando as classes sugeridas por Graves,
Jr., pode-se caracterizar este sujeito como dotado de um “pólo tonal sustentado” (p. 6). A
tonalidade de Si menor é sustentada pela armadura de clave e enfatizada tanto no salto inicial
quanto no final, ambos prefigurando uma 4
a
justa (SI/FÁ# – FÁ#/SI, identificados em
vermelho), contrastando com os freqüentes saltos de 4
a
aumentada (identificados em azul; Figura
9). Este contraste configura uma relação forte de I – V, o que colabora para o estabelecimento de
uma relação auditivamente clara, reconhecida também como um traço da sintaxe tonal.
Figura 9: Sujeito completo, c. 1 – 5
Identifica-se uma “relação parcialmente repetitiva” conforme descrito por Graves, Jr. (p.
13), no que se refere a cada recorrência de S, R e CS. Apenas uma ocorrência do S é transposta
(2
a
reexposição, c. 40); as entradas de CS são diferentes apenas na 1
a
reexposição (duas entradas,
c. 16 e 20), onde a entrada de R também ocorre com transposição (c. 20). As outras entradas,
tanto de S e R, quanto de CS (na exposição – c. 1 ao 9 – e na ultima reexposição – c. 54 ao 61)
ocorrem sempre nas mesmas alturas.
3. Ambiente Harmônico:
As transposições de CS ocorrem apenas na primeira reexposição (à 3
a
abaixo, e à 5
a
acima
do original, respectivamente – c. 16 ao 24), tanto na sua ocorrência simultânea com S (que
permanece na altura original) quanto com R (que também está transposta, à 3
a
do original). Além
31
da transposição, o conteúdo melódico do CS também é alterado, estabelecendo assim novas
relações intervalares intrínsecas e extrínsecas.
Visto que as vozes exibem alto grau de independência, a formação de acordes
reconhecíveis como pólos tonais fica obliterada. O extenso uso de cromatismo e de intervalos
dissonantes em S, R e CS também contribui para este fenômeno. Assim, verifica-se a ausência de
uma progressão harmônica (conforme os pressupostos sugeridos por Graves, Jr., p. 43), o que
não implica na ausência de células tonais. Nesta fuga, o uso contrastante de intervalos
consonantes e dissonantes no material temático contribui para a percepção de um pólo
referencial, amparado em uma estrutura diatônica implícita (Figura 9 – p. 30).
Ao investigar as relações verticais desta fuga, observa-se a “projeção de longo alcance de
um acorde básico” (conforme Graves, Jr., p. 51), sem determinação clara de normas para
cordalidade (um tipo elementar de “movimento prolongado”). Quando da ocorrência do material
temático em uma das vozes, a configuração de elementos diatônicos acaba descaracterizando as
decorrentes relações verticais – os processos contrapontísticos não são nem causativos nem
resultantes das relações harmônicas.
Dois eventos importantes relacionados à harmonia nesta fuga apontam para a
manutenção de um clima de indefinição e ambigüidade. O primeiro é a presença simultânea de
um movimento escalar nas teclas brancas e da apresentação do S transposto à 7
a
alterada acima
do original (Figura 10). Este movimento escalar inicia em SI (c. 40, voz inferior), estando o grau
conjunto anterior (LÁ) ligado por articulação à célula precedente. No final deste movimento
escalar (c. 43 – 44), percebe-se a preparação de uma cadência que configuraria Dó Maior, mas
que não chega a se concretizar. A ambigüidade implica em dificuldade de definição de uma escala
que acompanhe S, podendo ser Lá (ou modo eólio), Si (modo lócrio), ou até mesmo Dó Maior
(ou modo jônico) como anteriormente mencionado.
32
Figura 10: Segunda reexposição, c. 40 – 44
O segundo evento é a presença simultânea do S na altura original (voz superior) e de um
segundo movimento escalar, agora em Si Menor (voz inferior, c. 58 – 62), no final da última
reexposição (Figura 8 – p. 27). O único aspecto não determinado é se o 7
o
grau da escala é maior
ou menor: a escala é antecipada pela sensível (7
a
maior), mas na sua conclusão, bem como no
decorrer de sua apresentação, é sempre utilizada a 7
a
menor. Esta abordagem confirma as
características da produção pianística inicial de Kiefer, tipificadas por um ambiente de exploração
e expansão das possibilidades harmônicas.
4. Organização Rítmica:
As linhas que compõem esta fuga, ainda que complementares, apresentam uma tendência
pronunciada à independência rítmica. Elementos sincopados e não sincopados são
freqüentemente colocados em oposição. Esse recurso é derivado do contraste entre o caráter de
S e de CS.
Existe em S uma estrutura rítmica simétrica. Cada um de seus quatro compassos
permanece sem ação durante o primeiro tempo, seja por pausa ou por nota ligada. Essa
organização configura dois padrões rítmicos que se alternam simetricamente, conforme indicado
pelas setas na figura 11. Além da alternância destes dois padrões, pode-se verificar que,
agrupados, estes padrões compõem um membro que é repetido na apresentação de S (indicado
pelas chaves).
33
Figura 11: Simetria no sujeito (c. 1 – 5)
S é apresentado sem alterações rítmicas no decorrer de toda a obra. A simetria rítmica e a
relação proporcional deste material com a fórmula de compasso são preservadas. A fórmula de
compasso binária é mantida com algumas exceções: a primeira delas, c. 24, não interfere na
estrutura, pois tem função de prolongamento. As outras três ocorrem em virtude da já
mencionada passagem do breve retorno do primeiro movimento (c. 50 – 54).
As células sincopadas e em oposição provocam uma resultante rítmica simétrica não-
sincopada. Esta figuração se mantém constante no decorrer do movimento. Vale mencionar
alguns eventos onde o ritmo requer delineamento especial: a presença de um ostinato com
agrupamento assimétrico (c. 34 – 39, voz superior) e o acréscimo de um valor que gera um
deslocamento na figuração previamente estabelecida (c. 37, voz inferior – Figura 6d, p. 26).
5. Técnicas Contrapontísticas:
A coesão da textura polifônica desta fuga é obtida através de um extenso trabalho de
elaboração motívica nos episódios, apontando relação com uma de suas funções tradicionais. A
presença de seqüências rítmicas e/ou melódicas integra de maneira marcante todos os episódios.
A busca por organicidade revela-se no início da fuga, pela reutilização do material
intervalar da primeira peça deste conjunto. O complexo intervalar formado por 5
a
justa com 2
a
maior é utilizado na primeira célula do S da fuga, acrescido de 2
a
menor (Figura 12).
34
a) b)
Figura 12: Acorde inicial de Música para as vésperas do último suspiro (12a, c. 1)
e fragmento inicial do S de E a vida continua... (12b, c. 1)
Sobre a formação dos intervalos entre as vozes, verifica-se que os intervalos de 3
as
e 6
as
,
bem como as 8
as
e 5
as
(considerados essenciais nas fugas tradicionais barrocas – p. 32), são pouco
utilizados nesta obra. O intervalo essencial deste movimento é a 4
a
aumentada. As justaposições e
inversões deste intervalo (5
a
diminuta, 7
as
, 2
as
) ocorrem consecutivamente em encadeamentos
paralelos, com alguma alternância de intervalos menos dissonantes (3
as
, 6
as
, ou 5
as
). Essas
dissonâncias são, em sua maioria, inseridas e/ou resolvidas por salto em uma das vozes, como
por exemplo, nos c. 12 – 16, e 25 – 27.
No decorrer dos episódios, percebe-se que a maioria dos motivos elaborados está baseada
em intervalos de 4
a
aumentada (ou 5
a
diminuta), intervalos provenientes do material temático. As
seqüências estão estruturadas em graus conjuntos. Os graus conjuntos (2
as
) são derivados da
inversão de 7
as
, relação recorrente entre S, R e CS nas exposições e reexposições, e que também
caracteriza as transposições do material temático.
Predomina entre as vozes o movimento contrário. O movimento oblíquo é utilizado
principalmente na introdução de dissonâncias por salto. É freqüente o uso de dissonâncias
sucessivas não resolvidas. Nos 2
o
e 4
o
episódios, observa-se o uso de seqüências descendentes
paralelas, onde o material seqüenciado descreve movimento contrário em relação à direção das
vozes (c. 10 – 12, e 47 – 49).
35
Resumindo, as características peculiares apresentadas em E a vida continua... são:
o conteúdo melódico-intervalar no material temático – o uso contrastante de
intervalos consonantes e dissonantes, em meio à uma estrutura diatônica implícita;
a organização em espelho da exposição para a última reexposição (no que se
refere à apresentação do material temático); e
o uso da autocitação pelo compositor.
36
3
SONATA I
(1958), TERCEIRO MOVIMENTO:
FUGA E TOCCATA
3.1 Análise
Este movimento é uma fuga a duas vozes que se desenvolve por 84 compassos. A
figuração rítmica é um elemento estrutural importante, visto que mantém a propulsão do
movimento, conduzindo para a seção rápida final – a Toccata. As freqüentes mudanças nas
fórmulas de compasso ocasionadas pela ocorrência do material temático atribuem uma
característica definidora para as exposições. As dinâmicas estão claramente marcadas para ambas
as vozes. Ao contrário da fuga E a vida continua..., aqui não se percebe a força centrada sobre uma
tonalidade, apesar de centros referenciais ocasionais. Segue uma descrição mais detalhada dos
aspectos estruturais e musicais de cada uma das seções.
SEÇÕES Exposição Ponte 1
a
Reexpos.
1
o
Episódio
2
a
Reexpos.
2
o
Episódio
3
a
Reexpos.
3
o
Episódio
Toccata
COMPASSOS 1 – 9 9 – 11 12 – 15 16 – 24 25 – 28 29 – 40 41 – 44 45 – 56
57 – 84
Quadro 2: Estrutura geral do terceiro movimento da Sonata I – Fuga e Toccata
Na exposição (c. 1 – 9), S (iniciando em DÓ, Figura 13) está baseado em figurações
arpejadas, dispostas numa progressão de tríades diminuta, menor e maior. Seguem duas
figurações que utilizam saltos de 4
a
, 5
a
, 6
a
e 7
a
. A estrutura rítmica está baseada em três motivos
principais (indicados pelas setas, Mot. 1, Mot. 2 e Mot. 3, respectivamente). R ocorre na voz
inferior, com imitação à 5
a
acima (SOL, c. 5).
37
M
ot. 3
M
ot.
2
M
ot. 1
Figura 13: Sujeito completo, c. 1 – 5
CS (iniciando em MI, Figura 14) baseia-se em figurações sincopadas, com uso freqüente
de trítonos e terminações melódicas por semitom – ambos intervalos derivados do S, sendo a 2ª a
inversão da 7ª. R e CS estabelecem um diálogo.
Figura 14: Contra-sujeito completo, c. 5 – 9
Após três compassos de material livre, o qual denominou-se “Ponte” (c. 9 – 11), a
primeira reexposição (c. 12 – 15) apresenta S com apenas uma mudança de registro, ou seja, uma
8ª acima do início. CS está transposto uma 4ªJ acima do original (LÁ), e apresenta pequenas
modificações no contorno melódico dos finais de suas semifrases.
O primeiro episódio (c. 16 – 24) divide-se em duas partes com dois motivos principais
derivados do terceiro compasso de S (Figura 15b). O primeiro é uma combinação dos motivos
rítmicos 2 e 1 (apontados na Figura 13), na voz superior, o qual denominaremos motivo a. O
segundo motivo (motivo b), localizado na voz inferior, baseia-se na inversão da segunda metade
do c. 3 (motivo rítmico 3, Figura 13) com uma pequena alteração melódica. Este motivo também
pode ser descrito como uma tríade na primeira inversão precedida por apojatura.
38
a)
a)
b)
motivo
b
motivo a
b)
Figura 15: Sujeito completo (15a, c. 1 – 5) e motivos derivados a e b (15b, c. 17 – 18)
8
Na primeira metade deste episódio, a voz superior é caracterizada pelo motivo a, e a voz
inferior apresenta o motivo b, ambos organizados em seqüência por movimento ascendente. Na
segunda metade deste episódio, ocorre a inversão das vozes, ou seja, o uso de contraponto duplo
a partir do c. 21. Deste compasso em diante, as seqüências tanto do motivo a na voz inferior,
quanto do motivo b na voz superior, estão organizadas em movimento descendente – sendo que
na voz superior, a seqüência ocorre em terças maiores descendentes, e não mais por segundas,
como no início deste episódio.
Nota-se que a transição do motivo b da voz inferior para a superior (c. 21) coincide com a
inversão dos intervalos melódicos do próprio motivo, dispostos na direção contrária em relação à
primeira apresentação. O conteúdo intervalar também é alterado. Quando o motivo b se encontra
na voz inferior (primeira metade do episódio), a tríade é menor; na segunda metade deste
episódio (motivo b na voz superior), a tríade é maior.
8
No motivo a, no segundo tempo do compasso 18 (voz superior), o SOL, se observada a grafia da partitura, deve ser
executado com o sustenido (#), em concordância com a alteração cromática que ocorre no SOL anterior (1
o
tempo
do mesmo compasso). Mas, observando-se as notas superiores do motivo a em seqüência, este segundo SOL
deveria receber um bequadro, para manter a diferença de semitom entre as notas superiores, ficando coerente com
o conteúdo intervalar desta passagem. Por isso foi adicionada a alteração por precaução, já na figura 15.
39
A segunda reexposição (c. 25 – 28) apresenta, na voz inferior, S transposto à 3ª maior
acima do original (MI) sem a ocorrência do CS. S é acompanhado pelo motivo b desenvolvido no
episódio anterior, ora em direção ascendente, ora descendente, alternando-se também entre sua
forma original e sua inversão.
O segundo episódio (c. 29 – 40) apresenta material novo. A voz superior (c. 29) prolonga
o motivo b, mas em seguida o intervalo de 7
a
torna-se predominante, sendo repetido pela voz
inferior. Uma escala cromática inicia (c. 31) na voz inferior, porém com mudança de registro
entre cada semitom (Figura 16).
Figura 16: Escala cromática formada entre as duas vozes, c. 31 e 32
O movimento ascendente é interrompido por um movimento descendente brusco no c.
33. A partir da barra dupla (c. 34) observa-se uma dinâmica de pergunta e resposta. Ambas as
vozes desenvolvem fragmentos motívicos derivados de CS. Nos c. 37 – 40, as duas vozes
utilizam motivos apresentados de forma mais livre, com características relacionadas à parte final
de S. A estrutura sobre os intervalos de 4
a
e 7
a
é preservada, bem como a figuração rítmica
derivada de S.
40
A terceira reexposição (c. 41 – 44) inicia com a indicação “Tempo I”. S (na voz superior) é
apresentado na altura original, acompanhado de CS (na voz inferior) transposto à 5ª acima, ou
seja, iniciando em LÁ, como na 1ª reexposição. Esta ocorrência de CS apresenta preenchimento
rítmico e melódico.
O terceiro e último episódio (c. 45 – 56), que antecede a Toccata, é semelhante ao primeiro
episódio. É também dividido em duas seções principais, interligadas por uma ponte (c. 49 – 50).
Na primeira seção (Figura 17, c. 45 – 48) a principal célula utilizada é o motivo b. Este motivo é
apresentado em ambas as vozes (c. 45 – 46, na voz inferior e, c. 47 – 48, na voz superior) em seu
formato original, alternando-se com sua inversão (na voz inferior) e semi-retrogradação
9
(na voz
superior). A voz superior apresenta de início (c. 45 – 46) elaborações sobre um fragmento
rítmico-melódico derivado do CS. A voz inferior, depois de apresentar o motivo b, desenvolve os
intervalos recorrentes do movimento (7
a
e 4
a
) com ritmo sincopado e suas inversões (2
as
, 9
as
, e
5
as
). Esta seqüência nas duas vozes está de tal forma elaborada que estabelece um padrão
assimétrico em relação ao compasso: a célula seqüenciada é agrupada em dois tempos (um tempo
para seu formato original, e outro tempo para seu inverso, ou semi-retrógrado), enquanto o
compasso é de três tempos (conforme indicado nas chaves; Figura 17).
9
Por semi-retrogradação expressa-se o processo parcial ou inexato de retrogradação.
41
Figura 17: Primeira parte e ponte do terceiro episódio (c. 45 – 50).
Motivo b invertido, circulado; e seu semi-retrógrado, enquadrado
Os dois compassos que dividem este episódio (c. 49 – 50) apresentam, na voz superior,
saltos descendentes de 7
a
intercalados por 2
as
ascendentes, com síncope, configurando uma escala
cromática (indicada pelo colchete; Figura 17). Nesta passagem a figuração rítmica utilizada é
idêntica àquela utilizada na voz superior da ponte (c. 9 – 11); assim estabelece-se uma primeira
ligação direta com aquele material considerado até aqui isolado. Ao mesmo tempo, a voz inferior
desenvolve-se sobre motivos de uma nova célula, cuja estrutura alterna-se entre 5
a
justa e 5
a
diminuta (Figura 17; c. 49 – 50). Esta célula insere-se no espaço da síncope da voz superior, em
seqüência descendente de 5
as
justas.
A partir do c. 51 a voz inferior estabelece um ostinato em movimento contínuo até o final
deste episódio. Este ostinato está estruturado sobre o intervalo de 7ª, composto por uma 2ª menor
acrescida de uma 6ª aumentada. A voz superior elabora o conteúdo rítmico-melódico com células
derivadas do CS e, estabelece um movimento repetitivo (c. 54) até o final. Seu movimento
cromático descendente e sincopado sugere uma desaceleração (c. 55).
42
A Toccata (c. 57 – 84) constrói seu caráter a partir da elaboração rítmica (diminuição,
aumentação) e melódica (redução, expansão) dos motivos 1 e 3 da fuga (Figura 13 – p. 37). Nos
dois primeiros compassos há imitação entre as duas vozes, com a primeira frase do S – o
fragmento baseado em tríades arpejadas. Na exposição da fuga, o intervalo formado entre as
notas iniciais de cada semifrase (respectivamente, DÓ natural e SIb) é de uma 7
a
menor. Na
Toccata (c. 57) insere-se mais um motivo de tríades arpejadas (na voz inferior) entre as semifrases
da voz superior (Figura 18). Inicia-se à 4
a
justa da primeira nota do S (FÁ natural), dividindo
simetricamente o intervalo de 7
a
menor, e gerando sucessivas entradas em 4
as
.
Figura 18: Início da Toccata (c. 57 – 58)
O discurso modifica-se com a apresentação de um trecho de condensação e ampliação
dos atributos rítmicos e melódicos do S (c. 58). Esta passagem está estruturada sobre uma
seqüência descendente de motivos, construída em graus conjuntos, e é repetida duas vezes: na
anacruse do c. 59, e no c. 64, uma oitava acima, até o c. 68. Na continuação (c. 69), mantém-se a
direção descendente e preservam-se a figuração rítmica e os mesmos intervalos do padrão
apresentado. Após uma breve oscilação, este elo de ligação (c. 69 – 70) antecipa o início de uma
nova passagem, agora ascendente. Esta se estrutura sobre um movimento ascendente e acelerado
por condensação rítmica, expandida até o registro agudo, no c. 74. A figura do acelerando,
43
estruturada sobre motivos arpejados, apresenta dois padrões alternados simetricamente, e é um
semi-retrógrado da figura descendente do c. 64.
O retorno ao registro grave provoca uma mudança de atmosfera (c. 75) e sugere o reinício
do movimento ascendente e em aceleração. Este último crescendo inicia-se com as mesmas
figurações apresentadas anteriormente (c. 71), e prolonga a condensação rítmica das células e o
movimento ascendente. Esta seção culmina no primeiro tempo do c. 82, quando um súbito
movimento descendente, em saltos sucessivos de 7
as
intercaladas por 2
as
ascendentes – tal como
na seção que divide o terceiro episódio (c. 49 – 50) – quebra a direção do discurso, e percorre do
registro agudo ao grave em um único compasso, ou seja, em um só gesto. Os dois últimos
compassos apresentam de maneira incisiva, um acorde de Lá Maior com uma 6
a
acrescentada
(FÁ).
3.2 Aplicação do Referencial Teórico
1. Estrutura:
Assim como E a vida continua..., este movimento também apresenta um equilíbrio no
número de suas seções (Quadro 2 – p. 36): após a exposição, uma ponte ligando três
reexposições intercaladas por três episódios, efetua a ligação com a Toccata. Este é um aspecto
marcante com relação à estrutura deste movimento. Nas fugas do período barroco seria mais
convencional a disposição contrária, ou seja, a Toccata antes da fuga.
Os episódios têm duração semelhante: primeiro episódio, 9 compassos; segundo episódio,
11 compassos; terceiro episódio, 11 compassos. Um aspecto comum entre os três episódios é a
sua organização em duas partes; o primeiro e terceiro episódios são divididos por breves
transições (menores do que dois compassos), e o segundo episódio é interrompido por um gesto
descendente conclusivo, mudança de andamento e pela barra dupla (c. 33 – 34, meno mosso). Essa
44
preocupação com a simetria aponta para o equilíbrio estrutural do movimento. Esta fuga insere-
se como movimento de uma obra maior (Sonata), conforme discorrido por Graves, Jr. (p. 67).
A manutenção dos elementos estruturais, bem como de sua função e organicidade,
preservam uma identidade relacionada com os traços característicos da fuga do período barroco.
O extenso trabalho de elaboração motívica aliado à textura polifônica assegura a integridade do
tecido contrapontístico.
2. Tonalidade:
Analisando o sujeito desta fuga, observa-se uma organização em duas partes: a primeira,
estruturada sobre figurações triádicas, dispostas em uma progressão: diminuta – menor – maior; e
a segunda, composta de saltos de 4
a
, 7
a
, 6
a
e 5
a
, com cromatismo e síncope. A aparente
fragmentação do sujeito, sugerida pela instabilidade rítmica e melódica, configura uma ausência
de um centro tonal claro e imediato, embora identifique-se a configuração de freqüentes
intervalos de 7
a
, compostos por fragmentos melódicos sucessivos, estruturados em 4
as
aumentadas (Figura 19). Além desta organização, pode-se verificar uma mudança de registro do
início para a parte aguda de S (indicada pelas setas), coincidindo com a inversão do intervalo
composto pela primeira tercina.
4
a+
4
a+
7
a
M
5
a
d
7
a
M
7
a
d
4
a+
Figura 19: Sujeito completo (c. 1 – 5), intervalos recorrentes identificados
45
Conforme as classificações sugeridas por Graves, Jr. (p. 2), o sujeito desta fuga pode ser
caracterizado como atonal, dada a organização cromática das suas alturas. S apresenta um padrão
de onze alturas, estando o LÁ ausente. O cromatismo não é evidenciado por graus conjuntos,
mas, sua constituição triádica e seus saltos intermediários estabelecem eixos cromáticos. Os
intervalos recorrentes de 4
as
e 7
as
com seu caráter dissonante não definem uma tonalidade; sua
reiteração configura uma polarização dessas células.
Pode-se caracterizar a relação das entradas do material temático como parcialmente
repetitiva, conforme os aspectos sugeridos por Graves, Jr. (p. 13). Ocorre apenas uma única
transposição do S, no compasso 25 (dentre suas quatro entradas, excluindo-se a entrada de R na
exposição). O CS também é transposto uma única vez, no decorrer de suas três ocorrências. Esta
transposição à 4
a
J acima do original (LÁ), ocorre no c. 12 e é repetida no c. 25.
3. Ambiente Harmônico:
A recorrência de intervalos dissonantes e o cromatismo apresentados no material
temático impregnam a trama contrapontística tecida no movimento. No decorrer dos episódios,
observa-se que os motivos são baseados em intervalos de 4
a
e 7
a
, e suas respectivas inversões (5
a
e
2
a
, intervalos derivados do material temático).
As seqüências estão estruturadas em graus conjuntos ou terças (inversão de 6
as
), ou seja,
intervalos derivados da relação entre os materiais temáticos (S e CS) nas exposição e
reexposições. Tanto S quanto CS são transpostos apenas uma única vez no decorrer do
movimento. Deve-se ressaltar que não há ocorrência simultânea de S e CS transpostos.
Identifica-se uma progressão linear livre no material temático, relacionada à organização
de suas células. Estas dispõem suas alturas à distância de uma segunda ou terça, acima ou abaixo
de suas notas principais, com alguns saltos intermediários. Essa estruturação enfatiza uma
continuidade linear máxima e apenas sugere uma cordalidade entre as linhas que compõe esta
46
fuga (chamada de “estrutura completamente contrapontística”, por Salzer – GRAVES, JR., p.
51).
A partir destes dados, pode-se constatar também a ausência de progressão harmônica, já
que a ênfase recai sobre o aspecto linear. Isso não implica em ausência de células polarizadas, que
são estabelecidas basicamente por reiteração. A sucessão de motivos (fragmentos elaborados)
muitas vezes configura o encadeamento seqüencial de alguns complexos triádicos organizados em
combinação de terças e sextas, em suas diversas qualidades e que, em justaposição, proporcionam
encontros ocasionais de segundas e quartas.
Observa-se em alguns momentos, especialmente no primeiro episódio (c. 16 – 24), o uso
de figurações triádicas em progressão, mas no sentido linear – ou seja, ocorrendo em uma das
vozes (Figura 20). Dada a problemática na identificação de pontos verticais polarizados, a
sucessão horizontal não aponta para progressões relacionadas harmonicamente, apesar de
configurarem movimentos seqüenciais.
Movimento sucessivo de padrões arpejados, com estrutura triádica ornamentada.
Seqüência cromática de tríades menores (na primeira inversão), com apojatura.
Figura 20: Primeiro episódio, c. 17 – 20: sucessão paralela de padrões harmônicos diversificados
Além destes aspectos, a variedade do teor harmônico destas formações triádicas, a forte
independência (rítmica e melódica) das vozes e a ausência do caráter modulatório nos episódios
(de acordo com os aspectos tradicionais barrocos – p. 65) contribuem para a ausência de relação
47
entre as seqüências horizontais. O amplo uso de cromatismo corrobora a complexidade no
reconhecimento destas formações e de seu teor, bem como das relações decorrentes.
4. Organização Rítmica:
É importante observar nesta fuga, a dinâmica de oposição que ocorre entre o ritmo das
exposições do sujeito e dos episódios. O caráter sincopado e tenso, característicos do material
temático, opõe-se ao caráter fluído dos episódios. Um intenso trabalho de elaboração motívica,
constituído essencialmente de seqüências rítmicas e/ou melódicas, proporciona um movimento
propulsor. Esta dinâmica de oposição, originada já na variedade do material rítmico do S,
contribui para a elaboração da tensão rítmica crescente neste movimento, desencadeando a
Toccata.
Freqüentes mudanças de compassos ocorrem neste movimento: ao todo, 17. As 14
primeiras (que ocorrem até o início da Toccata), são constantes e regulares, e servem para a
manutenção da integridade do material temático. Este não sofre alterações significativas, à
exceção da entrada da segunda reexposição (S sozinho e transposto à 3
a
acima, c. 25), que
apresenta uma pequena alteração na célula inicial do S (Figura 21b). Mesmo que essa alteração
ocorra apenas como uma diminuição no valor da nota final da célula principal do S (o motivo
triádico em tercinas), o material temático não é descaracterizado.
A)
a)
B)
b)
Figura 21: Sujeito original (21a, c. 1 – 5) e sujeito alterado (21b, c. 25 – 29)
48
Apesar da instabilidade rítmica do material temático, proporcionada pela sua assimetria, a
figuração se mantém constante e regular no decorrer do movimento. Portanto, estas mudanças de
fórmula de compasso que ocorrem antes da Toccata não alteram a estrutura do movimento, mas
confirmam sua função rítmica em relação ao material temático. As outras três mudanças de
fórmula de compasso ocorrem no início e no decorrer da Toccata (c. 57, 65 e 67, respectivamente).
Dada a profusão de figurações rítmicas e melódicas nesta seção, estas últimas mudanças de
fórmula de compasso não apresentam uma relação significativa com os elementos elaborados, e
nem com a estrutura da seção.
Visto que as mudanças na fórmula de compasso ocorrem apenas em decorrência do
material temático, os episódios conservam a integridade do seu fluxo. Esta estabilidade assegura
sua fluência e também contrasta com o caráter da exposição e das reexposições.
Por outro lado, o uso de figuração rítmica variada do S (especialmente do contraste
evidenciado pelo uso das tercinas) torna-se um elemento gerador para a formação de polirritmias,
bem como da alternância e a coexistência de padrões rítmicos assimétricos. É importante
mencionar a presença de um ostinato com agrupamento assimétrico que preserva a métrica
proporcional à fórmula de compasso (c. 51 – 56, voz inferior) e coexiste com a figuração
repetitiva na voz superior (c. 54 e 55).
5. Técnicas contrapontísticas:
A organização em duas seções de cada episódio desta fuga é digna de menção. Nos
primeiro e terceiro episódios há uso de contraponto duplo quando da elaboração do material
motívico que se alterna entre ambas as vozes em cada uma das seções. Há também seqüências em
todos os episódios e ainda, uso de imitação no início da Toccata.
O segundo episódio, localizado na parte central da fuga, assume o caráter de um ponto de
equilíbrio da estrutura. Além de sua localização, a organização em duas seções, separadas por
barras duplas (c. 33 e 34), colabora na compreensão de um gesto finalizador. Este gesto produz
49
um efeito de desaceleração (antes da barra dupla, c. 33) e sua continuação sugere o reinício do
trabalho de desenvolvimento do material, através da mudança de andamento indicada: meno mosso.
É neste episódio que se nota o uso mais livre de intervalos dissonantes, bem como a
flexibilização dos aspectos rítmicos dos motivos elaborados.
A organização dos episódios aponta para uma preocupação com o equilíbrio e a simetria
do movimento. A disposição contrária deste movimento em relação ao tradicional – Fuga e
Toccata, ao invés de Toccata e Fuga – foge do mais usual.
Nesta fuga, intervalos dissonantes coexistem em ocorrências proporcionais em relação a
intervalos consonantes. As dissonâncias são freqüentemente introduzidas e resolvidas por salto
em pelo menos uma das vozes; isso contribui para a predominância de movimento oblíquo entre
as linhas. É freqüente o encadeamento paralelo de dissonâncias; a intensidade da dissonância
nesses encadeamentos varia de acordo com os intervalos utilizados, e com o contexto.
Nos primeiro e terceiro episódios verifica-se a presença simultânea de estruturas baseadas
em terças, sejam estas maiores ou menores, em seqüência (c. 17 – 20, 45 – 48). Estas seqüências
estão estruturadas, na maior parte das ocorrências, em movimento paralelo de suas fundamentais;
isso pode ser percebido na direção comum entre as linhas. Ao mesmo tempo, os intervalos
melódicos internos dos motivos elaborados nas seqüências estabelecem movimentos contrários
para compensar o paralelismo.
Em suma, o aspecto marcante e peculiar a este movimento refere-se às características do
material temático, usadas como elementos geradores para uma série de contrastes e elaborações
imprevisíveis, tanto na melodia, quanto no ambiente harmônico e/ou na organização rítmica. O
conjunto destes contrastes em interação, propulsionam a dinâmica e tensão crescentes no
movimento.
50
CONCLUSÃO
Considerando os pressupostos de Graves, Jr. (1962), apresentam-se as seguintes
conclusões sobre os diversos aspectos analisados nas duas fugas para piano de Bruno Kiefer:
Foram detectados graus significativos de semelhança na apresentação do material temático
em ambas as fugas:
1) Preservação da relação intervalar entre S e R nas exposições conforme as
características das fugas tradicionais do período barroco, salientando-se que neste
caso não há preocupação com a função tradicional da R tonal – ou seja, o
compositor emprega o recurso de respostas reais que preservam a configuração
intervalar original;
2) Transposição do CS nas primeiras reexposições, com S e R nas alturas originais;
3) Ausência de CS nas segundas reexposições que apresentam apenas o S transposto;
4) Recapitulação do material temático nas alturas originais na reexposição final de
cada uma das obras;
5) Ausência de ocorrência simultânea de S e CS transpostos no decorrer das duas
fugas; se S é transposto, CS está ausente; CS transposto ocorre com S na altura
original.
Manutenção constante do tecido contrapontístico estruturado e do trabalho essencial de
elaboração motívica nos episódios. Uso dos principais recursos da escrita contrapontística de
fuga: contraponto duplo, stretto, imitação e seqüências sobre fragmentos derivados do material
51
temático, apontando uma ênfase nos aspectos lineares em ambas as fugas, em oposição à
preocupação com o aspecto vertical;
Preocupação com simetria e equilíbrio estruturais em ambas as fugas; uso de procedimentos
comuns a fim de conferir unidade e coesão aos movimentos através da elaboração de seções
equilibradas e simétricas;
As diferenças de caráter rítmico entre as fugas não implicam em ausência de consistência e
regularidade na apresentação do material temático; a coesão estrutural é assegurada por um
equilíbrio funcional entre as seções, coerente com o caráter do discurso rítmico, melódico e
harmônico de cada fuga.
Deve-se salientar algumas diferenças entre as fugas para piano de Bruno Kiefer: E a vida
continua... apresenta um S caracterizado pelo uso contrastante de intervalos dissonantes e
consonantes, assim como uma preocupação com a simetria e com o equilíbrio rítmico. Nesta
obra, a preocupação com a simetria na construção de S reflete-se no decorrer de todo o
movimento, através da manutenção de uma figuração rítmica equilibrada e na regularidade da
apresentação do material temático. O uso do cromatismo permite que o contraponto seja
realizado em regiões melódicas não relacionadas harmonicamente, enfatizando a linearidade do
tecido.
Já no terceiro movimento da Sonata I, S apresenta uma instabilidade rítmica e melódica,
através do uso de figuração rítmica variada e de intervalos dissonantes, ainda que recorrentes. O
uso extenso de cromatismo permite a formação de padrões diversificados no seu teor harmônico.
Nesta Fuga e Toccata, a variedade de figuras rítmicas e os intervalos melódicos dissonantes e
recorrentes de S proporcionam, como elementos geradores, uma dinâmica rítmica tensa e uma
elaboração harmônico-melódica imprevisível.
A título de comparação, os quadros abaixo apresentam mais sinteticamente os
procedimentos empregados na apresentação de S, R e CS em ambas as fugas. As similaridades
são notáveis.
52
Quadro 3: Organização temática em E a vida continua..., de Duas Peças Séria
s
Quadro 4: Organização temática em Toccata e Fuga, de Sonata I
53
Ao contrário da organização estrutural proposta por Gandelman para esta fuga, “Toccata a
partir de Tempo I [(c. 41)]” (1997, p. 91), determinou-se o início da Toccata somente no c. 57,
após a conclusão do movimento ostinato da voz inferior e da figuração rítmica em desaceleração
na voz superior (c. 55 e 56). Sugere-se esta organização após considerar que o terceiro episódio
(c. 45 – 56) confere equilíbrio ao movimento, e contribui para a simetria em relação ao primeiro
episódio (c. 16 – 24). Essa simetria pode ser observada tanto na semelhança do material
elaborado, como nas estruturas, pois ambos dividem-se em duas partes. Assim, o segundo
episódio (c. 29 – 40) assume papel de vértice, colocando-se como ponto central de equilíbrio.
O próprio movimento em desaceleração (c. 56 e 57) sugere uma pausa ou uma finalização
para a fuga. O motivo marcante do S (tríades em tercinas) reaparece nos compassos 57 e 58 em
movimento sucessivo (Figura 18 – p. 42), tornando-se uma célula a partir da qual todo o
movimento conseqüente na Toccata é gerado.
Tratando-se da escrita contrapontística nestas obras:
Constatou-se uma íntima aproximação do estilo de Kiefer com os padrões tradicionais da
fuga do período barroco – função e caráter das seções preservadas; movimento entre as vozes
conduzido de acordo com as características tradicionais, consistência no tratamento motívico
e nas elaborações decorrentes;
Verificou-se ainda que, apesar das semelhanças, as fugas preservam linguagens individuais no
que se refere ao conteúdo intervalar do material temático, na disposição das alturas e na
organização dos motivos e suas decorrentes relações. Entre as duas peças percebe-se
semelhanças no tratamento das dissonâncias. O compositor privilegia a regularidade e
consistência na apresentação do material temático apesar das linguagens adotadas.
A escrita contrapontística de Bruno Kiefer nestas duas fugas caracteriza-se pelo emprego
de procedimentos tradicionais aliados a uma estrutura coesa. A manutenção da relação intervalar
entre S e R na exposição, conforme os princípios das fugas tradicionais barrocas, aponta para a
adoção destes procedimentos.
54
As inovações concentram-se sobre a melodia, harmonia e ritmo de cada fuga. A coesão
estrutural é assegurada pelo emprego de procedimentos característicos da técnica fugal,
aproximando-se dos modelos bachianos.
A linguagem musical é expandida quanto ao uso de intervalos dissonantes nas melodias,
construindo novas resultantes verticais. Seu estilo na escrita fugal, se por um lado é tradicional na
estrutura e na utilização de procedimentos contrapontísticos, por outro, adota uma linguagem
moderna, distinta e definida para cada fuga, coerentes com as propostas musicais do seu tempo.
A consistência destes aspectos confirma a fusão de um estilo que reflete o passado, em
relação à estrutura e organicidade das fugas, e de um idioma inovador, em relação aos seus
contornos e delineamentos. O conjunto destas qualidades definidoras assegura a singularidade, a
integridade e o valor do discurso musical de Bruno Kiefer.
55
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WALKER, Paul. Fugue. In: SADIE, Stanley (Ed). The New Grove Dictionary of Music and
Musicians. London: Macmillan Publishers Limited, 2001, v. 9, p. 318 – 332.
Partituras:
KIEFER, Bruno. Duas Peças Sérias. Partitura para piano (manuscrito). Porto Alegre, 1957.
_____________. Sonata I (1958). São Paulo: Ricordi, 1973.
Discografia:
KIEFER, Bruno. E a vida continua – obras para piano solo de Bruno Kiefer. Cristina Capparelli,
piano. Porto Alegre: FUNPROARTE, 1995.
58
ANEXOS
ANEXO I
Manuscrito (fotocópia) de Duas Peças Sérias (1957):
Música para as vésperas do último suspiro
&
E a vida continua...
ANEXO II
Fotocópia de Sonata I (1958), terceiro movimento:
Fuga e Toccata.
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