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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
Instituto de Geociências e Ciências Exatas
Campus de Rio Claro
CUIDADO DE SI E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: PERSPECTIVAS, REFLEXÕES E
PRÁTICAS DE ATORES SOCIAIS (1925-1945)
RONALDO MARCOS MARTINS
Orientador: Antonio Carlos Carrera de Souza
Tese de Doutorado elaborada junto ao Programa
de Pós-Graduação em Educação Matemática, Área
de Concentração em Ensino e Aprendizagem da
Matemática e seus Fundamentos Filosóficos-
Científicos, para obtenção do título de Doutor em
Educação Matemática.
Rio Claro (SP)
2007
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2
Comissão Examinadora
Antonio Miguel – UNICAMP
Álvaro Tenca – UNESP/Rio Claro
Marcelo Carbone Carneiro – UNESP/Bauru
Maria Ângela Miorim – FE-UNICAMP
Ronaldo Marcos Martins
Aluno
Rio Claro, 11 de Julho de 2007
Resultado: APROVADO
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3
A
M
ORGANA
4
Agradecimento Especial
A
NTONIO
C
ARLOS
C
ARRERA DE
S
OUZA
Não se alcança a autonomia sem um mestre....
5
Agradecimentos
Agradeço, em primeiro lugar à minha esposa, para
quem dedico esse trabalho
, Morgana.
Àqueles com os quais sempre podemos contar: minha mãe Nely, meu padrasto
Antonio. Meus irmãos Ronny e Rosânia, e seus companheiros Silvana e Renato. Ao sogro
Benedito e a sogra Zelinda, pelo apoio nos momentos difíceis. Aos também irmãos Carina,
Rogério, Mário e Marta. Aos sobrinhos Aline, Jaqueline, Dennis, Guilherme, as Isabelas,
Daniele, Karen, Ketlin e Kechelin. Ao afilhado, Gabriel.
Para o amigo que, apesar da distância, se lembra sempre de mim, Fabiano. E para os
companheiros do dia-a-dia, professores da Facol e Fatec, em especial os companheiros de
viagem Chico e Maria José. Aos amigos Dorival e Vicente.
A amiga Gilda, pelo apoio e compreensão no momento certo. Ao amigo Romário
Severino e todo o Núcleo de Auxílio Fraterno, deste e do outro plano.
Aos amigos que fiz durante minha longa caminhada na Pós-Graduação em Educação
Matemática, no Ghoem, nos congressos, como mestrando, como aluno especial e como
doutorando: Déia, Zionice, Renata, Carina, Patrícia, Elaine, Heloísa, Fernando, Otávio,
Ednéia, Luzia, Gilles, Adelino, Sueli, Marisa, Ivete, Fábio, Silvio, Amarildo, Carlos, Carlos
Vianna, Rômulo, Marcelo, Marcos Fêlix, Marcos, Emerson, Tânia, Rosinete, Neide, Marli,
Regina, Maria Bicudo, Paulo, Antonio, Cristiane, Djalma, Miriam, àqueles do Coral, àqueles
do Grupo de Formação de Professores, àqueles do GPA, àqueles das festas...
Aos professores Marcelo Carbone e Álvaro Tenca, pela aposta em um trabalho até o
momento, desconhecido. Aos professores Antonio Miguel e Ângela Miorim pelas
contribuições durante a banca de qualificação.
Aos meus depoentes: Maria Cesarino, Maria Cesarina, Nilza Carboni, Marcílio (Sabú),
Henrique Vítor, Rita Fiume, Wanda Carboni, Antonia (in memorian), Maria Usó, Maria
Almeida Prado e a Dona Dirce. Sem os quais esse trabalho não seria possível.
Ao Sr. Ítalo Poli que me ajudou com as fotografias. À Patrícia, do Centro de
Documentação da Fundação Educacional Dr. Raul Bauab, pela paciência e auxílio.
Como diria Foucault, “quando não é mais que a realização de um programa teórico, a
escrita perde sua vocação autêntica, que consiste em ser lugar de uma experiência, de um
ensaio...” no início eu buscava a realização de um programa teórico. Mas a convivência com
meus depoentes, com meu orientador Carrera e com Michel Foucault, me conduziram à
uma escrita repleta de sentido, me conduziram à liberdade, à autonomia, ao assujeitamento
apenas a mim mesmo. Obrigado.
6
Resumo
As práticas de si, as táticas dos sujeitos, nos levam à autonomia. Somos conduzidos por Atena
e Baco em direção à Autonomia. A necessidade dos exercícios sobre os quais nos fala
Foucault, leva-nos à necessidade de tomar a vida como prova, como obra de arte. Ao realizar
cada tarefa, por mais simples que seja, como se fosse a última, como se fosse necessário
pintá-la como Caravaggio ou Da Vinci. Devemos nos apropriar dos discursos, nos apropriar
de verdades. Esta investigação objetivou conhecer e explicitar práticas, táticas e estratégias
para o cuidado de si, utilizadas por atores sociais, entre os anos de 1925 e 1945, na região da
cidade de Jaú (SP). O método utilizado para registrar as vozes de 11 depoentes, com idades
entre 79 a 93 anos, foi a História Oral, através de entrevistas semi-estruturadas,
individualizadas, realizadas nas residências dos depoentes. Após transcrição, textualização e
reorganização cronológica dos depoimentos, estes foram levados para obtenção da carta de
cessão. Como resultado, foram extraídos desses depoimentos as práticas, táticas e estratégias
do cuidado de si, empregadas por essas pessoas. A partir delas foram organizados e
elaborados três caminhos de análise: Atenas, Baco e Em Busca da Autonomia. Estes fazem
alusão aos pares: autonomia-submissão, felicidade-tristeza, sabedoria-ignorância. O
referencial teórico para tanto foi a Hermenêutica do Sujeito de Michel Foucault. Essas
análises buscam contribuir com o mapeamento da formação do professor de Matemática no
Brasil e ainda, fomentar discussões sobre a utilização de novos métodos e abordagens nos
domínios da produção científica em Educação Matemática.
Palavras-chave: Cuidado de Si, História Oral, Hermenêutica do Sujeito, Formação de
Professore, Educação Matemática.
7
Abstract
The practices of the self, the tactics of the others, lead us to the autonomy. We are conducted
by Athena and Baco towards Autonomy. The necessity of the exercises in which Foucault tell
us, take to the necessity to take life as proof, as a master piece. In realizing each task, as
simpler as it can be, like if was the last, like if was necessary paint it like Caravaggio or Da
Vinci. We must appropriate ourselves of the speeches, appropriate ourselves of the truth. This
investigation objected itself to know and explicit the practices, tactics and strategies for the
care of the self, used by social actors, between the years 1925 and 1945, in the region of Jau
(SP). The method utilized to register the voices of this 11 statements, with ages varying from
79 to 93 years, was the oral history, through semi structured interviews, individualized, done
at the speakers house. After the transcription, putting it to text and organizing the
chronological statements, this were taken to obtain the authorization of writings . As a result,
were extracted from these statements the practices, tactics and strategies of the care of the self
employed by these persons. From them were organized and elaborated three ways of analysis:
Athena, Baco and Socrates. These make an allusion to their pairs: autonomy submission,
happiness- sadness, wisdom-ignorance. The theoretical reference for such was the
hermeneutic of the subject by Michael Foucault. These analysis search to contribute with the
mapping of the formation of the mathematics teacher in Brazil, like there are no specific
formation in the period, and still, foment discussions about the utilization of new methods and
approaches in the domain of scientific production in Brazil in Mathematical education.
Key words: care of the self, oral history, hermeneutic of the subject, teacher education,
mathematical education.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO À BUSCA RÍGIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 09
COMEÇO DE UMA BUSCA RÍGIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
História Oral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
Ouvindo Pessoas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43
Diário de Campo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51
A BUSCA RÍGIDA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
INTRODUÇÃO À ILUMINAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .105
Maria Cesarina de Lima Simões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
Dirce Moraes Maitino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114
Wanda Sampaio Garcia Carboni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
Henrique Vitor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
Maria de Lourdes Coque de Toledo Usó . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .159
Maria Aparecida Cesarino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
Nilza Guimarães Carboni. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 196
Antonia de Maria Marquizeppe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
Rita de Cássia Fiume . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
Marcílio Galdino Pires . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
Maria de Lourdes Martins de Almeida Prado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
VIDAS ILUMINADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .249
A Hermenêutica do Sujeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .278
ANEXOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .290
Anexo A – Roteiro das Entrevistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
Anexo B – Versão Eletrônica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293
9
I
NTRODUÇÃO À
B
USCA
R
ÍGIDA
11
O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor,
um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar
nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do
outro (MACHADO DE ASSIS, 1984, p. 52).
12
Eu divido a minha vida em quatro partes.
Estudei na Escola Normal Livre, onde estudou o célebre (como se chamava mesmo?) Ulisses
Guimarães. Pode mentir na idade? Tenho oito ponto oito: oitenta e oito anos. Meu pai era baiano e minha
mãe era cabocla, como nós. Ele era fazendeiro em Iacanga, mas eu nasci aqui, em Jaú.
Sou viúva... sempre morei aqui, salvo em um pequeno período, em São Paulo e nos diversos lugares
onde lecionei.
Minha mãe e a família dela são daqui. Meu avô materno veio em uma daquelas caravanas que
vieram para fundação da cidade. Meu avô veio com uma dessas famílias. Do lado materno minha
descendência é portuguesa e do lado paterno, italiana. A gente veio da Itália, não sei em que condições.
Engraçado, nunca passou pela cabeça da gente o interesse em saber em que condições vieram, se vieram como
imigrantes, se vieram por conta própria, mas veio à família toda.
Meu pai tinha bastante criação. A gente tratava de galinha, porco, de cabra. Colhia na roça o
milho, o feijão, a mamona. Você conhece a mamona? A gente plantava mamona. Plantava bastante milho
também. Nós debulhávamos o milho; de noite íamos descascar milhos. Também plantava algodão, café,
feijão.
Quando eu era pequena as brincadeiras de época eram jogar peteca, brincar de roda. A gente
brincava de roda, brincava de pega-pega. No fundo do quintal de casa tinha um rio, a gente nadava
escondido dos pais. A gente ia nadar no rio, atravessava o rio. O papai tinha uma canoa que ele gostava
de descer o rio e, um dia, nós entramos na canoa e ela se desprendeu e nós fomos rio abaixo. Daí tinha um
senhor, que trabalhava na fazenda, nós gritamos e ele pulou na água e segurou a canoa que estava indo
embora. A infância era difícil antigamente. A gente ficava com toda a turma, os mais velhos com os mais
novos... não era difícil para os filhos de fazendeiros, mas do comerciante comum, de quem trabalhava no
pasto, essas coisas, era muito difícil.
Comecei mais ou menos em 1932 no Colégio das Freiras e acho que fiz quatro anos de primário, até
a quarta série. Sai de lá, mais ou menos, em 1936. Então tivemos um tipo de ginásio que um professor criou,
mas que não foi para frente. Era particular e só depois passou para o governo.
A sorte nossa foi que nós tivemos essa convivência com as freiras, que só nos ensinaram coisas boas,
viu, bem! Eu acho que nossa mocidade foi muito melhor do que a de hoje. Eu acho. Até por conta da
educação das freiras e tudo. Elas nos ajudaram em tudo...
A escola era das sete ao meio dia. O professor tinha autoridade. Tinha uma professora, chamava
Dona Auja Auja era o nome dela. Ela era brava, sabe. Tinha umas unhas enormes. O professor podia até
bater no aluno, desde que o aluno merecesse. E se chegasse em casa se queixando, sabe o que os pais faziam?
Fez porque você mereceu. Apanhava mesmo. Em certos pontos tinham alguns que exageravam, mas a
maioria não.
13
Eu também estudava Física, Química. Fazia aula de trabalhos manuais. Tinha aula de califazia,
sabe o que é califazia? É a arte de bem falar. A professora tinha que ler livros e na aula de Português, de
califazia, tinha que ler ali na frente, em voz alta, para ela pegar dicção, porque ela ia ser professora,
entendeu? Precisava falar corretamente, saber recitar poesia, para desembaraçar mais a voz e tudo. Até hoje
eu sei. Outro dia eu recitei algumas. Eu lembro:
Olha essas velhas árvores, mais belas do que as árvores novas, mais
amigas. Tanto mais belas quanto mais amigas. Vencedoras da idade das trocelas .
Em sua sombra o homem descansa e em seus ramos abrigam-se as cantigas. E na
alegria das árvores amarelas, não choremos jamais a mocidade, envelheçamos
rindo. Envelheçamos como essas árvores envelhecem, na glória da alegria e da
bondade. Dando alimento aos pássaros nos ramos e dando sombra e consolo aos
que padecem.
É de Olavo Bilac. Senão aquela:
Quando partimos no verde dos anos, da vida, pela estrada florescente,
as esperanças vão conosco, à frente. Os desenganos vão ficando atrás. Rindo,
cantando, célebres, lutando. Vamos marchando descuidadosamente. Eis que a
velhice chega de repente, desfazendo ilusões, matando a saudade. E então,
olhando para traz, vemos o quanto a existência é rápida e fugaz. E vemos que
acontece exatamente o contrário dos tempos de rapaz: os desenganos vão
conosco, à frente, as esperanças vão ficando atrás.
Esse é de um padre que eu esqueci o nome. E aquela do dia da avó:
Ai vovó, que hoje é tão fraca e velhinha. Teve tantos desenganos, ficou
branquinha, branquinha, com os desgostos humanos.
Naquele tempo não era ginásio, nós chamávamos de Escola Complementar. Fiz o Primário no
Externato, chamavam de Escola Primária, e depois eu fui para o Internato, na Escola Complementar. Antes
de ir para Escola Normal, o pessoal fazia, naquele tempo, a chamada Escola Complementar. Que também
era paga. tinha o colégio das irmãs, e o colégio dos padres. Então quem quisesse estudar, e não tinha
condições, não tinha vez. Ou ia para o curso de aplicação das freiras, ou então em alguma escola particular.
Ou a maioria que tinha recurso ia estudar em São Paulo. Conheci muitos que foram para São Paulo. Quem
tinha mais recursos ia para lá e ficavam internas no cogio Sion. Ficavam internas no Colégio Dezoason,
também. Outras moravam em pensionato. Mas quem tinha mais recurso, estudava em São Paulo.
Aqui na Escola Normal nós usávamos de uniforme, saia pregueada marrom, blusa branca de manga
comprida e um laço marrom. A meia era preta, botinha abotoada. Os meninos usavam calça azul marinho
também, listradinha de branco e blusa também branca. Depois isso desapareceu. Depois não usava mais
uniforme, nem os meninos. E depois os meninos também passaram a não mais freqüentar o Externato.
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Já naquele tempo cursavam o Ateneu Jauense, que era dos antigos Padres Premonstratenses. Vários
senhores aqui, hoje da sociedade, freqüentaram o Colégio dos Padres Premonstratenses. Agora, o Colégio das
Irmãs de São José, infelizmente, desapareceu quando foi criado, aqui em Jaú, o Ginásio do Estado. As
freiras não suportaram o êxodo, porque todas as alunas foram para o Ginásio do Estado e elas tiveram um
período de crise. Então fecharam o Colégio.
Quando saí do Normal eu era professora primária então fiquei como substituta no Eliazar
Braga. Primeiro lugar que eu fui, como substituta, foi o Eliazar Braga. Fiquei lá. Ai quando foi, deixo eu
ver... Eu sou dura para data, viu bem?! Eu guardo muita coisa, mas data me foge. Eu sai daí, fiquei como
substituta, ai eu entrei em concurso e peguei uma escola perto de Duartina. Mais ou menos na região de
Duartina. que tinha cobras em quantidade e um tio meu que sempre foi muito amigo do Adhemar de
Barros porque o Ademar era afilhado do meu avô, de batismo então sempre foi amigo –, conversando
com ele, o Ademar – fazia dois meses que eu estava na escola – me transferiu para Jacareí.
Depois fui pra Água Limpa, em Lins. Ai eu fiquei dois anos na Água Limpa, depois eu fui...
(engraçado, esse tempo era municipal, mas foi contado pra aposentadoria...). Ali em Água Limpa tinha até
luz elétrica. Mas, também... Você acredita?. Cama, assim... Era com colchão de palha, que vocês nem
conhecem. Tinha dois colchões de palha, então a cama ficava alta. Eu dormia no meio, porque a vaca vinha
de noite e eu tinha um medo que só vendo! Mas quando chegava o fim de semana eu ia para casa no sábado
à tarde e voltava para a fazenda na tarde de domingo. Quando voltava os bois estavam todos no pasto.
Tinha um boi branco, um zebu, que ficava olhando, eu pra ele, ele pra mim, até que aparecesse o rapaz que ia
recolher os bezerros. Tem coisa que a gente passa que serve para dar risada depois.
Depois eu fui transferida pra Machado de Melo. Acho que você nem conhece... Noroeste. Fiquei em
Valparaíso dois anos. Por que em Machado de Melo era uma escolinha. Era eu, Álvaro e a Lúcia. Três
professores, só. Nossa como nós sofremos ali! Naquele tempo... (por isso é que eu falo como é fácil hoje e,
assim mesmo, não querem ensinar, querem tudo pronto). Se a gente tinha caderno? Linguagem, caligrafia,
desenho... todos os caderninhos. Levava pra corrigir, dar nota. Hoje é tudo (como é que fala?) apostila. A
criança não aprende a trabalhar... Eu acho. Nem sei... Quem sou eu? Se fizeram a reforma foi porque
acharam melhor...
Nossa menino! Ali em Machado de Melo eu morava na pensão japonesa. Gente! É preciso ter
mesmo vontade, necessidade de trabalhar. Banho? Nunca mais vi japonês assim. Aquele era japonês japonês.
Aquelas cuias de madeira. Punham fogo e tomavam banho. Eu e a outra professora compramos bacia e
colocamos no quarto para a gente tomar banho. Aquele fogão, fogão antigo, nem sei se vocês conhecem
(Agora, nessa festa junina, fizeram um fogão caipira). Fogão de lenha. E um bule de café desse tamanho.
Ela punha o bule de café ali, a dona Maria. Os japoneses gostavam de mim que vendo.
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Ela punha o bule e aquilo fervia o dia inteiro. A hora que você chegasse o café tava fervendo. Puxa
vida, ela fez cedo e ficava até de noite, fervendo, fervendo... Ai eu falei: “Dona Maria, esse bule ta sujo,
precisava lavar” (eu tinha liberdade). “Precisava lavar”. “Essa semana a gente vai fazer sabão e eu vou
limpar”. Aí o café ficou com gosto de sabão...
Depois de dois anos, de Valparaíso eu fui transferida pra escola mista de Monte Azul, em
Cafelândia. Era tempo do gasogênio. Você nem conhece. Era um tempo que não tinha gasolina: era o
gasogênio. Então fui pra lá. Era perto de Lins, mas era difícil o transporte porque a jardineira falhava
muito. que a gente tinha, assim, “ordem” pra parar qualquer condução. Você levantava a mão e eles
paravam. Então eu viajei de carro, de gaiola de boi (também acho que vocês não conhecem... conhecem
aquela gaiola em que viajava boi?). Era na beira da linha. Aquelas gaiolas sujas. Bastava acenar que o
maquinista parava e a gente ia embora. Viajei de trenzinho de linha (também não sei se vocês conhecem
trenzinho de linha... diziam “automovinho” de linha). Rápido, veloz que nossa senhora! Dei a mão e ele
parou. Fiquei tão contente: “Vou viajar de trenzinho de linha”. Quanto entrei faltei morrer. Acho que
sem a trava... Aquilo voou. Era na beira da linha e da escola eu via. Tinha ordem pra parar. Eu viajei
bastante... Depois eu fui transferida pra Coroado, na Noroeste. Depois de Coroados, eu fui transferida para
Quintana Paulista, no Grupo Escolar. Em Quintana ia dar aula de charrete. Depois de Quintana eu fui
transferida pra Alfredo Guedes, Sorocabana. Sempre rodeando pra ver se vinha pra Bauru. Eu estava na
escola de segundo estágio. Mas não havia meio. Então eu fui pra São Paulo, que já era terceiro estágio.
Funcionava assim: no início era primeiro estágio, segundo estágio, terceiro estágio. O primeiro
estágio era no sitio. Segundo estágio era melhorzinho. Terceiro estágio era capital, cidade. Terminando o
ano, a gente entrava em concurso. Aquele tempo tinha roça, era ruim mesmo, às vezes escolhia uma escola
melhor que era segundo estágio. Era difícil ter vaga de segundo estágio para quem tinha acabado de se
formar, não eram tantas escolas como é hoje. Então mandava a gente para o pior lugar pior (porque quem
estava correu para sair, deixou aquele buraco... Mas para quem não tinha colocação, entrar naquele
buraco já era uma mão de Deus... O linguajar está meio vagabundo, mas você está entendendo, não é?).
Nessa época eu tinha ainda um irmão solteiro que foi para São Paulo. Então, minha mãe disse: “Ele
é solteiro, vamos todos para São Paulo com ele”. Nós, então, nos mudamos para São Paulo. Morávamos na
Rua Antonina. Lá, por indicação das irmãs daqui, eu fui lecionar no Colégio São José, na Rua da Glória, no
centro de São Paulo, e, também, na rua Voluntários da Pátria, em Santana
esse é das Irmãs de São José até hoje. E eu fiquei, lecionei, lecionei. Eu formei algumas
turmas de jovens professoras, todas normalistas. E eu ensinava sempre para as normalistas dizendo:
“Nunca apontem o erro. Procurem descobrir alguma coisa de bem feito. Acertou. Que bom você acertou!”,
estava tudo uma porcaria, mas descubra alguma coisa boa. E com isso eu posso dizer para você,
eu fiquei quase convencida de que eu era uma boa professora, por causa da minha psicologia.
16
Eu, como aluna, eu não era brilhante, mas aquilo que era importante aprender eu aprendia e aplicava na
minha vida de professora.
Fui substituta no Grupo Escolar Queiroz Peres, na Vila Formosa e quando voltei para cá, para me
casar, fui para Escola Isolada e ingressei na minha cadeira. Então, estando no terceiro estágio, foi mais
fácil para descer, eu dei um ré: queria vir para Bauru. Tanto que o Diretor falou: “Mas, professora, a
senhora está num terceiro estágio, vai voltar?”. “Mas pelo menos eu vou arrumar minha vida”, pensei. De
São Paulo eu consegui voltar pra Bauru, num Grupo, no Luis Castanho de Almeida. De eu vim por
permuta para Pederneiras. Fiquei seis anos em Pederneiras. De Pederneiras vim para a Airosa Galvão, fiquei
quatro anos, depois é que eu vim para Jaú.
Naquela época, Jaú era muito diferente das outras cidades a região. Era bem diferente. A política
aqui em Jaú era terrível. Havia duas correntes, os carvalhistas, do PRP e os Udenistas. Os Carvalhistas,
PRP, Partido Republicano Paulista. Ocorria até morte e havia rivalidade terrível. Isso para qualquer cargo,
prefeito, vereador ou presidente que fosse. Eles eram instruídos pelos patrões a votar, como eles falam, o
voto era de “cabresto”. Então falavam: “você vai votar pra fulano”. E se não votasse, eles eram capazes até
de matar. Isso lá para 30, 32. Um primo meu, Oswaldo, namorava uma udenista. Pois meu tio mandou para
os Estados Unidos para separar da moça. E ele foi.
Morria muita gente nessa época, falta de recursos. Naquele tempo não tinha muito recurso. Só quem
tinha recurso eram os fazendeiros que vendiam as terras para os sitiantes, para os colonos. Quando
ficávamos doentes fazia um chazinho. Tomava o chá e ficava na cama para curtir a febrinha, não é?!
Esperava passar a gripinha. E se não passava... era difícil ir para o hospital.
Naquele tempo as pessoas se locomoviam por meio de cavalo. Por cavalariça. Naquele tempo pouca
gente tinha carro. Pouca gente mesmo tinha carro. Carro era Wolks. Depois também tinha um carro, eu
esqueci o nome do carro, que era... Não sei se é da Bélgica, não sei se... até não tínhamos aqui um...era um
nome diferente, naquele tempo não tinha fabricação no Brasil. Tinha que vir de fora. Igual a geladeira, a
gente tinha que entrar na fila. Tenho geladeira daquele tempo ainda, 67 anos. Se meu marido fosse vivo, dia
20 de janeiro agora fez 68 anos de casado.
Então naquele tempo era comida brasileira, era arroz, feijão, usava muita carne de porco, não é?
Leitoa, leitoa assada, não é? Pernil. Muita gordura de porco, não tinha óleo, era gordura de porco. O azeite
era português, não tinha óleo, usava muito azeite em salada, essas coisas, mas era azeite português, naquele
tempo não tinha óleo. Naquele tempo não tinha soja, não era nem conhecida a soja, era azeite, azeite de
oliva que usava.
17
O trabalho principal era na lavoura. Lavoura de café, lavoura de feijão, lavoura de milho, lavoura
de arroz. Ali no Vale do Paranapanema, era muita lavoura de arroz. E até hoje ali no Vale do
Paranapanema muita lavoura de grãos. Ainda tem, persiste ainda. E no começo era tudo escravo que
trabalhava, depois eram os colonos.
A convivência com os colonos era tranqüila. Eles criavam, todos criavam, aves, galinhas. A comida
era até melhor do que hoje, mais farta. Porque todo mundo tinha o quintal da casa, criava galinha. Hoje
você não vê mais ninguém criando galinha em casa, nem nada. De primeiro, todo mundo tinha aquele colosso
de galinha, galo cantava de madrugada.
O café era o sustentáculo.
Naquele tempo o que tinha era sitiante, então o sitiante, por exemplo,
para casar o filho tinha que esperar a colheita, depois de vender o café. Antes não dava. Depois de anos, a
cana tomou conta. Hoje é uma grande economia. A força de Jaú hoje o que é? Cana e calçado. Naquele
tempo era café, arroz, feijão; Jaú era menor, então a economia era isso. Mas hoje não, hoje a força mesmo é a
cana e o calçado.
O trem aqui em Jaú era a fogo. A fogo. O trem vinha e levava oito horas para chegar em São Paulo.
. .
.
Depois veio a bitola larga, aí o trem era elétrico. É uma pena que parou. Mas parou por causa do que?
Parou por causa da indústria automobilística. Se tivesse, até hoje, se hoje tivesse trem você ia ver, daqui a
São Paulo ia em três horas. Disso eu não tenho a menor dúvida. Você não vê o trem do Japão, aqueles trens
bala?! Mas o daqui não foi. Infelizmente não foi, parou. Antigamente o cara que era funcionário da
Companhia Paulista de Estrada de Ferro tinha status. Quem era bancário, era bancário, principalmente
bancário do Banco do Brasil, puxa vida! Professor, por exemplo, professora. Hoje já ficou tudo mais comum.
O trem naquela época era muito falado, mas tinha que pagar também. Tinha que tirar a passagem
na estação. Entrava no trem e o chefe passava, picava o bilhete, depois quando chegava perto de São
Manoel, ele recolhia o bilhete. A gente, quando pegava a passagem, pagava. Acho que era dois mil e
quinhentos para ir de Paranhos a São Manoel. Era bastante naquele tempo, eram mil réis. Naquele tempo, o
dinheiro era esse nome: réis.
Não se sabia muito sobre a vida em outras cidades. E cidade do interior, sempre foi cidade do
interior. São Paulo tinha mais coisas. São Paulo era maior, a turma gostava, achava que São Paulo
era um campo bom. E naquele tempo era mesmo.
Agora eu tenho essa idade, estou cansada. Ainda faço crochê, mas esses dias eu não peguei,
porque hoje em dia eu não enxergo muito, a vista está pouca. Agora ponto grande. Esse tapete fui eu que
fiz. Então é isso: comecei com 19 anos, em 1939, e aposentei em 1969, com 49 anos... Nossa! tenho 35
anos de aposentada. É mais tempo de aposentada do que passei no magistério. Então, eu acredito (não sei se
vocês acreditam ou não) que isso é uma graça de Deus pra mim. Nunca fiquei doente, vim “de cabo a rabo”,
como diz na gíria. Eu participo dos encontros da terceira idade, no SESC. Um dia um senhor veio falar
18
sobre dança, sobre como prolongar a saúde. Falou que a mãe dele teve um derrame. Diziam que não ia falar
mais. ele falou: “A senhora vai falar”. Sempre com pensamento positivo: “a senhora vai andar”. E disse
que hoje ela fala, anda... Não se pode deixar a peteca cair...
É assim a nossa história. Quem não tem uma história, inventa uma história. Essa é nossa história.
Filhos maravilhosos, noras maravilhosas. Eu me machuquei, fui para Santa Casa, e era para eu
ficar em observação. Eu fui para casa do meu filho. Beleza pura. Não tive nada, não deu nada. Porque a
Princesa Isabel não foi melhor tratada do que eu. Porque o filho tem obrigação, mas a nora não tem (e o
filho tem que concordar ou larga da mulher!). E o de Bauru vinha todo dia. Vou me queixar do que? Mas o
povo fala “isso é porque você merece”. Mas todo mundo merece. Eu tirei de letra. E onde eu tenho que cantar
eu canto. Aqui está gravando? Vou cantar. O que você gosta? Vou cantar uma coisa que você nunca ouviu.
Duvida?
Eu quando canto meu sambinha batucada a turma fica abismada com a bossa que eu faço.
Faço não me embaraço porque não há tempo, marco meu contratempo dentro do compasso.
Quem não tiver o ritmo na alma nem cantando com mais calma faz o que eu faço,
Samba-canção, samba de breque, batucada, para mim não é nada, o que vier eu traço.
Não tenho veia poética, mas canto com muita tática, não faço questão de métrica, mas não dispenso a
gramática.
Não me atrapalho na música, nem mesmo sendo sinfônica, procuro tornar simpática a minha voz microfônica.
Eu quando canto meu sambinha batucada a turma fica abismada com a bossa que eu faço.
Faço não me embaraço porque não há tempo, marco meu contratempo dentro do compasso.
Quem não tiver o ritmo na alma nem cantando com mais calma faz o que eu faço.
Samba-canção, samba de breque, batucada, para mim não é nada, o que vier eu traço.
Não é lindo? Você ouviu isso? Ia morrer sem ouvir. Viu como foi bom você vir aqui? Você ia
morrer sem ouvir.
Você ouviu e não pagou nada...
19
O
C
OMEÇO DE UMA
B
USCA
R
ÍGIDA
20
Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre
os quais muitos escapam à medida matemática. Para bem traduzi-los,
portanto para bem penetrá-los (pois será que se compreende alguma vez
perfeitamente o que não se sabe dizer?), uma grande finesse de linguagem,
[uma cor correta no tom verbal] são necessárias. Onde calcular é
impossível, impõe-se sugerir.(BLOCH, 2001, p. 54-55)
21
Falar de História nos remete à necessidade de explicitar como a entendemos e ainda,
para que a utilizamos. Existe no léxico – exemplo de registro da história – mais de 15 verbetes
relacionados ao termo história, além de outros tantos a ele relacionados, como historiado,
historiador, historiagem, historicismo etc.
Tomamos como primeira aproximação, o significado que dele advém:
História s.f. 1. conjunto de conhecimentos relativos ao passado da
humanidade, segundo o lugar, a época, o ponto de vista escolhido .2. ciência
que estuda eventos passados com referência a um povo, país, período ou
indivíduo específico. 3. a evolução da humanidade ao longo de seu passado
e presente; seqüência de acontecimentos e fatos a ela correlatos (no decurso
da h.) /.../ etim gr. História,as ‘pesquisa, informação, relato, história’ /…/.
(HOUAISS, 2004, p. 1542).
Poderíamos pensar na História do Brasil, da Guerra, de João, de Lula, na disciplina de
História (tal como a conhecemos nos bancos escolares ou como ciência), entre outras
possibilidades; todas delimitadas pelo tempo, espaço e pelo olhar que as observa. Tudo isso é
História. Entretanto, não devemos tomá-la como um simples registro do que aconteceu no
passado, mas sim, como uma elaboração vinculada a uma série de relações de força que a
constitui enquanto registro seja em escritura, em imagem ou em som –, como uma
expressão de determinada concepção de mundo, num momento único. Vale lembrar que
mesmo com teóricos imprimindo esforços para caracterizá-la, boa parte deles está mais
interessada e preocupada, com o alcance e ampliação de suas fontes e dos possíveis métodos
que dela advém.
A École d’Annales apresentou uma nova visão de História, em um período no qual
inúmeras transformações estavam em curso em todo o mundo. Lucien Febvre e March Bloch
manifestaram seu descontentamento revitalizando a História que até então se ocupava de
expressar e/ou explicar os acontecimentos por meio de reduzidos jogos de poder, notadamente
os políticos.
O passo inicial dado por esses dois autores, que teve como marco a criação dos
Annales “revista que tinha como objetivo explícito ser instrumento de enriquecimento da
história, por sua aproximação com as ciências vizinhas e pelo incentivo à inovação temática”
(BURKE, 1997, p. 8) – e gerou enorme efervescência na busca por novos métodos de
abordagem histórica, nos quais não se descartava nenhuma possibilidade de apreensão, nem
mesmo as vigentes até então, como por exemplo, o materialismo histórico-dialético de Marx.
Na esteira desse movimento surge a História Nova.
22
Antes, os historiadores clássicos dedicavam-se aos acontecimentos políticos e
econômicos e não às questões da “sociedade”, às estruturas sociais. Com algumas publicações
históricas dos cientistas sociais em constante crescimento, tem inicio a crítica à ênfase que
esses davam a certos temas
1
.
/.../ o economista François Simiand [seguidor de Durkheim], /.../ num
famoso artigo, atacou o que chamou de “os ídolos da tribo dos
historiadores”. Segundo ele, havia três ídolos que deveriam ser derrubados:
“o ídolo político”, “a eterna preocupação com a história política, os fatos
políticos, as guerras, etc., que conferem a esses eventos uma exagerada
importância”; “o ídolo individual”, isto é, a ênfase excessiva nos chamados
grandes homens, de forma que mesmo estudos sobre instituições eram
apresentados como “Pontchartrain e o Parlamento de Paris”, ou coisas
desse gênero; e, finalmente, o “ídolo cronológico”, ou seja, “o hábito de
perder-se nos estudos das origens” (BURKE, 1997, p. 22).
Essa abordagem relaciona-se com o que Le Goff, mais tarde, caracterizou como uma
das novas tarefas da História Nova:
Um “retratamento” da noção de tempo, matéria da História. /.../
Demolir a idéia de um tempo único, homogêneo e linear. Construir
conceitos operacionais dos diversos tempos de uma sociedade histórica /.../
Construir uma nova cronologia científica, que data os fenômenos
históricos muitos mais segundo a duração de sua eficácia na
história do que segundo a data da sua produção
(LE GOFF, 2001, p. 54-55).
que se reforçar a iniciativa de focar e discutir essa concepção de tempo, menos
cronológico e mais “perspectiva humana”, com a qual concordamos, e que é tratada em
Orlando, pela escritora Virgínia Woolf:
Uma hora, assim que ela se aloja no elemento bizarro do espírito
humano, pode ser estendida até cinqüenta a cem vezes a extensão do
relógio; por outro lado, uma hora pode ser representada com precisão no
relógio da mente em um segundo.
Ainda que não objetivemos discutir a História da École d’Annales, ressaltamos sua
importância nas palavras de Burke:
Da minha perspectiva, a mais importante contribuição do grupo do
Annales, incluindo-se as três gerações, foi expandir o campo da História por
diversas áreas. O grupo ampliou o território da História, abrangendo áreas
inesperadas do comportamento humano e grupos sociais negligenciados
pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico
estão vinculadas à descoberta de novos métodos para explorá-las. Estão
também associadas à colaboração de outras ciências, ligadas ao estudo da
humanidade, da geografia à lingüística, da economia à psicologia. Essa
1
No Brasil, quando se trata de História, mais especificamente de História da Educação Clássica, há uma
tendência a se privilegiar os aspectos econômicos e políticos.
23
colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um
fenômeno sem precedentes na história das ciências sociais
(BURKE, 1997, p. 126-127).
Antes da História Nova privilegiava-se aquilo que, nas palavras de Thompson, “era
uma documentação da luta pelo poder” (THOMPSON, 1998, p. 22) inegável que, ainda
hoje, se lute por ele, mas essa luta estava pautada essencialmente nas histórias “dignas” de
serem registradas, escritas. As fontes históricas desse período foram as registradas em
cartórios, igrejas, escolas, ou seja, “certificadas” pelo poder vigente.
A História Nova afirmando-se como uma ciência do homem, desde seu início
amplia esse conceito de fonte histórica, reivindicando a renovação de todo o campo da
História.
A História Nova ampliou o campo do documento histórico; ela
substituiu a história de Langlois e Seignobos, fundada essencialmente nos
textos, no documento escrito, por uma história baseada numa multiplicidade
de documentos figurados, produtos de escavações arqueológicas,
documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preços, uma
fotografia, um filme, ou para um passado mais distante, um pólen fóssil,
uma ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documentos de
primeira ordem (LE GOFF, 2001, p. 28-29).
Essa nova concepção de documento motivou a abertura de novos campos de
investigação na História: história das estruturas, antropologia histórica, história das
mentalidades, história dos marginais, história do imaginário, história cultural, entre outras.
Nos detenhamos um pouco na História das Mentalidades ou como diria Robert Darnton,
História Cultural.
A difícil idéia de mentalidade é discutida por Philippe Ariès em um dos capítulos do
livro de Le Goff, A História Nova. Inicia sua discussão a partir de uma história contada por
Lucien Febvre:
De madrugada, o rei Francisco I saiu da cama da sua amante para
voltar incógnito a seu castelo. Passou, então, em frente de uma igreja bem
no momento em que os sinos chamavam para o ofício. Emocionado, ele
parou para assistir a missa e orar devotamente
(ARIÈS, 2001, p. 153).
E ainda,
Margarida de Navarra, irmã de Francisco I, podia escrever sem
escrúpulos exagerados, um após o outro, o Heptamerão, coletânea de
contos licenciosos, e o Espelho de uma alma pecadora, coletânea de poemas
espirituais (ARIÈS, 2001, p. 154).
24
Ariès argumenta que nós, homens de hoje, ou diríamos que o rei compareceu ao ofício
religioso para pedir perdão convencido de que a coerência moral é natural e necessária,
trabalhando numa visão próxima a do historiador clássico que tenta reconhecer em todas as
épocas e em todas as culturas, a permanência dos mesmos sentimentos. Ou diríamos que ele
era espontâneo e ingenuamente sincero em suas devoções e em seus amores, e que não sentia
a sua contradição essa a visão do historiador das mentalidades. Hoje, a simultaneidade de
emoções contraditórias não é mais tolerada pela opinião comum. Outrora, esse fenômeno
parecia bastante natural.
Certas coisas /.../ eram concebíveis, aceitáveis em determinada época,
em determinada cultura, e deixavam de sê-lo em outra época e numa outra
cultura. O fato de não podermos mais nos comportar hoje com a mesma
boa-fé e a mesma naturalidade de nossos dois príncipes do século XVI, nas
mesmas situações, indica precisamente que interveio entre elas e nós uma
mudança de mentalidade. Não é que não tenhamos mais os mesmos valores,
mas que os reflexos elementares não são mais os mesmos
(ARIÈS, 2001, p. 154).
A introdução do conceito de mentalidade amplia, e muito, o território da história, bem
como do próprio campo da História das Mentalidades. Busca-se hoje, estudar as estratégias
comunitárias, os sistemas de valor das organizações coletivas, sejam populares ou elitistas;
busca-se reestabelecer o vínculo da história com a cultura, outrora rompido em prol da
cientificidade. Relação fundamental para o fazer da história oral na atualidade, a História das
Mentalidades é hoje, uma parte do que chamamos de História Cultural.
A maioria das pessoas tende a pensar que a História Cultural aborda
a cultura superior, a Cultura com C maiúsculo. A história da cultura com c
minúsculo remonta a Burckhardt, se não a Heródoto; mas ainda é pouco
familiar e cheia de surpresas. Então, o leitor pode querer uma palavra de
explicação. Enquanto o historiador das idéias esboça a filiação do
pensamento formal, de um filósofo para outro, o historiador etnográfico
estuda a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. Tenta
descobrir sua cosmologia, mostrar como organizavam a realidade em suas
mentes e a expressavam em seu comportamento. Não tenta transformar em
filósofo o homem comum, mas ver como a vida comum exigia uma
estratégia. Operando ao nível corriqueiro, as pessoas aprendem a “se
virar” e podem ser tão inteligentes, a sua maneira, quanto os filósofos.
Mas, em vez de tirarem conclusões lógicas, pensam com coisas, ou com
qualquer material que sua cultura lhes ponha a disposição, como histórias
ou cerimônias (DARNTON, 1986, p. XIV).
É uma história que aborda nossa cultura do mesmo modo como fazem os antropólogos
quando vêem as diferentes culturas, considerando a diversidade cultural é uma história de
tendência etnográfica voltada para os homens; uma história cujo objeto é o homem. Pensar
com “coisas”, ou com “qualquer material que sua cultura lhes ponha à disposição” é, por
25
exemplo, eleger a oralidade, as histórias contadas, narradas, como um elemento essencial
nesse processo, um elemento essencial para a História Cultural de que nos fala Darnton,
elemento essencial para a presente investigação.
Jerome e Léveillé, protagonistas da história de Contat, narrada por Robert Darnton no
Grande Massacre de Gatos, é um belo exemplo de como os camponeses se valiam dos
instrumentos que possuíam no caso os contos – para expressar suas opiniões e idéias.
Darnton mostra como se davam as relações não apenas profissionais, mas da sociedade de um
modo geral, da Europa pré-industrial, a partir desses registros. Tenta mostrar-nos o que as
pessoas pensavam, principalmente, como pensavam na França do século XVIII.
A História Cultural também nos a possibilidade de perceber como se configura, se
mostra e apresenta, a cultura de um povo de uma determinada época em um caso particular e,
às vezes, até mesmo de um único indivíduo. Eis, por exemplo, o caso de Domenico Scandella,
o chamado Menocchio, de Ginzburg.
Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um
caos [...] e de todo aquele volume em movimento se formou uma
massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual
surgem os vermes, e esses formam anjos. A santíssima majestade quis
que aquilo fosse Deus e os outros, anjos, e entre todos aqueles anjos
estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo
momento... (MENOCCHIO apud GINZBURG, 1987, p. 119).
Ao se deparar com vasto arquivo sobre a Inquisição, Ginzburg fica intrigado com o
caso de um moleiro que sustentava que o mundo tinha sua origem na putrefação. Mas afinal o
que significava isso? E, o mais importante, o que significava isso para Menocchio? Durante a
investigação, oscilou entre considerá-lo um de nós e ás vezes, muito diferente de nós. Por
isso, procurou ressaltar essa diferença acreditando que assim, poderia perceber a fisionomia
de sua cultura e do contexto social no qual se moldou.
Nessa reconstrução, emergiu a ligação de Menocchio com a cultura escrita, com o
conteúdo dos livros aos quais teve acesso. Livros que eram lidos através de uma espécie de
filtro que a cultura oral lhe dava, formado a partir da cultura na qual ele estava imerso deste
seu nascimento. E esse filtro, esse crivo, sob o qual pautava suas leituras, pressupunha uma
cultura oral que era patrimônio não apenas de Menocchio, mas também de um vasto segmento
da sociedade do século XVI. Como podemos dizer se o que Menocchio estava a defender e
expor era fruto da cultura da classe dominante ou das classes camponesas? Certamente isso
não será possível.
26
Caía por terra, assim, a idéia de que a cultura das classes dominantes e das classes
camponesas não mantinha entre si nenhuma relação, eram absolutamente autônomas. Pelo
contrário, mantinham um relacionamento circular, feito de influências recíprocas, que se
movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo. (GINZBURG, 1989, p. 12-13)
Ginzburg brilhantemente nos mostrou que não é possível buscar definições,
delimitações e limites para as trocas feitas entre os diferentes povos e nações, não é possível
separar “culturas”. Pensemos hoje, com o advento da Internet, da globalização, como
podemos distinguir nas comunidades e mesmo nos indivíduos, quais são suas práticas
particulares, próprias? No entanto, mesmo diante dessa impossibilidade, muitos pesquisadores
ainda buscam essas distinções.
A noção de cultura é essencial para pensar a unidade da humanidade na diversidade,
uma vez que as fronteiras geográficas não mais existem. A cultura quando nos permitiu
transformar a natureza, quando permitiu que adaptássemos-nos, cerceou nossos instintos
primitivos, nossa incapacidade de comunicação e de socialização. Ela nos forneceu a
linguagem e, em conseqüência, a ferramenta necessária para expor símbolos, signos,
mensagens, ou seja, mecanismos necessários para suprimir nossos instintos e, como diria
Cuche (2002), possibilitou-nos afirmar hoje, que “o homem é um ser cultural”.
A noção que se tinha do termo “cultura” até meados do século XIX, estava atrelada ao
cultivo da terra. Na medida em que o termo assume um sentido figurado mais próximo ao
“cuidar” de um modo geral, passa a ser visto como uma cultura do espírito cuidado com a
alma, cuidado com o espírito. Depois de atrelar-se a alguns complementos (cultura das artes,
cultura das letras etc.), no século XVIII passou a designar, simplesmente, “formação”, ou
educação do “espírito”. Associa-se a ela, a idéia de progresso, principalmente a partir do
Iluminismo.
A dicotomia “cultura e civilização”, fruto da discussão franco-germânica, marcou o
aparecimento de uma nova concepção de história e, com isso, uma nova concepção de cultura.
Atualmente, discussões como a unicidade de uma cultura, por exemplo, não tem mais
sentido. A cultura atualmente, não tem fronteiras, não tem limites e regiões demarcadas
para essa ou aquela sociedade, como antigamente se concebia, se imaginava. Isso nos
aproxima e situa junto à idéia de cultura contemporânea. Mas como a cultura chega a esse
status?
Não foi por acaso que as pesquisas sobre cultura e principalmente, sobre as diferenças
culturais, ganharam fôlego nos Estados Unidos. Inicialmente atrelada à etnologia, a pesquisa
27
sistemática sobre o funcionamento da cultura ganha força no país, pois este era considerado
como a nação dos imigrantes de diferentes origens culturais – “a imigração funda e precede a
nação que se reconhece nação pluriétnica” (CUCHE, 2002, p. 66). Surge então, o que se
convencionou chamar de “federalismo cultural”. Foi isso que permitiu certa continuidade das
culturas de origem dos imigrantes, não sem transformações devido ao novo ambiente.
Cabe ressaltar ainda, que negros e índios, por não serem imigrantes, não eram
considerados “totalmente” americanos. Por essa razão, a sociologia se liga ao fenômeno da
imigração e das relações interétnicas e não às questões indígenas e afrodescendentes. A
diversidade cultural é uma realidade da nação americana.
Por outro lado, a França por exemplo, por não se ver como um país de imigrantes,
portanto tomando-se como modelo universal de representação unitária, não conseguiu
desenvolver a reflexão sobre a diversidade cultural durante muito tempo.
Foi a partir da qualificação de “culturalista”, dada à Antropologia americana, e muitas
vezes vista de maneira pejorativa, que se distinguiram os “culturalismos”. Passou-se a
conceber a possibilidade de que existissem culturalismos, que mesmo mantendo-se vínculos
estreitos uns com os outros, representa abordagens teóricas diferentes
2
. É possível distinguir
três correntes principais: primeiro, aquela que se nomeou de História Cultural; segundo,
aquela que estuda as relações entre cultura coletiva e cultura individual; e terceiro, a que
aborda os sistemas de comunicações entre os indivíduos. (CUCHE, 2002, p. 67-68)
Além disso, grande influência da Antropologia Cultural sobre a Sociologia
americana. Os sociólogos sempre foram interessados na dimensão cultural das relações
sociais. Essa estreita ligação (antropologia, sociologia) multiplicou, nos Estados Unidos, os
estudos de “comunidades urbanas”. Pequenas cidades, bairros e grupos foram abordados da
mesma forma que um antropólogo abordaria uma comunidade indígena ou uma aldeia.
A hipótese considerada é que a comunidade forma um
microcosmo representativo da sociedade inteira à qual ela pertence,
permitindo apreender a totalidade da cultura desta sociedade
(HERPIN, 1973 apud CUCHE, 2002, p. 100).
Atualmente, a concepção de que é possível apreender os traços de uma cultura pelo
estudo das práticas dos seus indivíduos é uma realidade mundial. Realidade também é a noção
de que não existe uma única cultura, ou que cada sociedade tem a sua cultura. Certeau bem
argumentou sobre o tema.
2
Frans Boas, Marcel Mauss e Gilberto Freyre são os principais fundadores dessa abordagem culturalista.
28
Luce Giard, ao escrever o prefácio de Cultura no Plural, de Michel de Certeau, nos dá
pequenas pistas de como o autor desenvolve sua defesa da cultura no plural”, percorrendo
os caminhos da história e da antropologia, associando os métodos e procedimentos da
filosofia, da linguagem e da psicanálise.
Certeau (1995) concebe a cultura como qualquer atividade humana que tenha
significado para quem a realiza. Concepção que associa à política, que denota a diversidade
cultural e que comporta uma construção coletiva de cultura a cultura no plural dispersa,
como diria Foucault, na micro-física de poderes.
Luce Giard, agora no prefácio da obra A invenção do cotidiano, afirma que Certeau
colocou em dúvida famosos modelos recebidos da escola francesa de história, e que pretendia
“esboçar uma teoria das práticas cotidianas, para que pudesse extrair do seu ruído as
maneiras de fazer” (CERTEAU, 1994, p. 17).
As “maneiras de fazer” constituem as práticas pelas quais os
usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção
sócio-cultural (CERTEAU, 1994, p. 41).
As práticas são, portanto, as ferramentas que as pessoas utilizam para comunicar e/ou
expressar sua reapropriação do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural
na qual estão inseridas – uns são mestres da língua, outros da escrita, outros dos gestos, outros
dos sons, outros do silêncio – trabalham com coisas que sua cultura lhes oferece, lhes fornece,
lhes marca, lhes registra.
Certeau nos fala dos dispositivos tático-estratégicos, são as práticas cotidianas. As
práticas cotidianas do tipo táticas dependem de saberes muito antigos e representam
continuidades e permanências, não estão mais circunscritas a uma sociedade, pois se
multiplicam com o desfacelamento das estabilidades locais. As práticas cotidianas do tipo
estratégias, por sua vez, guardadas em lugar próprio ou pela instituição, se escondem sob
cálculos objetivos, é a sua relação com o poder que os sustenta. (CERTEAU, 2002, p. 47)
O relato oral é uma prática cotidiana do tipo tática, são os mestres do conto.
/.../ “histórias” que fornecem às práticas cotidianas o escrínio de uma
narratividade. Certamente, só descrevem alguns de seus fragmentos. São
apenas metáforas delas. Mas, a despeito das rupturas entre configurações
sucessivas do saber, representam uma nova variante na série contínua de
documentos narrativos que, a partir dos contos populares, panóplias de
esquemas de ão, até as Descrições das Artes da era clássica, expõem as
maneiras de fazer sob a forma de relatos. Essa série compreende então
igualmente o romance contemporâneo – e também os micro-romances que são
geralmente as descrições etnológicas de técnicas artesanais, culinárias etc.
Tal continuidade sugere uma pertinência teórica da narratividade no que
concerne às práticas cotidianas (CERTEAU, 2002, p. 142, grifo nosso).
29
Não é preciso ratificar a pertinência teórica de um conto, de uma narrativa, no que
tange às práticas cotidianas. Vale lembrar, sim, o espaço que essas práticas definem, os
espaços que essas práticas cotidianas mostram. As narrativas delimitam o caos, delimitem o
não limite afinal configuram paisagens que não podem ser demarcadas geograficamente, a
menos que se conceba o lugar que está a se configurar, como um entrelaçamento de regiões,
de histórias, de ações – se não vividas no real, sentidas no imaginário – de culturas.
São as práticas inventando espaços, as narrativas explorando os desertos, assim como
descreveu Certeau (2002):
A viagem (como a caminhada) substitui as legendas que abriam o
espaço para o outro. O que é que produz, finalmente, senão, por uma espécie
de inversão, “uma exploração dos desertos da memória”, a volta a um
exotismo próximo pelas andanças ao longe, e “a invenção” de relíquias e
lendas (“visões fugidias do campo francês”, “fragmentos de música e de
poesia”), em suma, algo como um “desenraizamento nas suas origens”
(Heidegger)? O que produz esse exílio caminhante é muito precisamente o
legendário que falta hoje no lugar próximo. É uma ficção que tem, aliás, a
dupla característica, como o sonho ou a retórica pedestre, ser o efeito de
deslocamentos e de condensações. Num corolário, pode-se medir a
importância dessas práticas significantes (contar lendas) como práticas
inventoras de espaços (CERTEAU, 2002, p. 187-188).
Se tomarmos o termo “lugar”, ao invés de “espaço”, estaríamos configurando uma
posição, portanto, isso indicaria estabilidade o lugar é único, estável. O “espaço”, por sua
vez, é animado pelo conjunto de movimentos que nele se desdobram. Não é único, nem
estável - “Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam /.../” (CERTEAU,
2002, p. 202). Espaço é o lugar praticado. Praticar é movimento, movimentar-se, narrar-se,
condiciona, assim, a produção de um espaço e o associa a uma história.
Portanto, as narrativas transformam lugares em espaços ou espaços em lugares,
incessantemente. (CERTEAU, 2002, p. 203)
Somente palavras que andam, passando de boca em boca, lendas e
contos, no âmbito de um país, mantêm vivo o povo
(GRUNDTVIG, 1864 apud CERTEAU, 2002, p. 221).
Ginzburg e Darnton, também advogam em prol da oralidade, das narrativas. O
primeiro quando apresenta considerações sobre a circularidade cultural, no Grande Massacre
de Gatos. Por ser a cultura camponesa predominantemente oral, o único caminho para seu
estudo é o uso das narrativas, é emergir no campo da História Cultural. História que enfatiza o
detalhe e o contexto, o micro e macro, sem jamais prescindir as fontes. Por isso, o uso das
narrativas, ou qualquer outro material que sua cultura lhes ponha a disposição, é fundamental.
30
Darnton caminha pelos contos populares franceses narrados à beira da lareira, durante
as longas noites de inverno, no início dos Tempos Modernos.
Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de
pão e de leite para usa avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta,
um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia.
– Para a casa de vovó – ela respondeu.
– Por qual caminho você vai, o dos alfinetes ou das agulhas?
– O das agulhas.
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à
casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou a carne em
fatias, colocando tudo numa travessa. Depois vestiu sua roupa de dormir e
ficou deitado na cama, à espera.
Pam, pam.
– Entre, querida.
– Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite.
Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. carne e vinho na
copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um
gatinho disse: “menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua
avó!”
Então, o lobo disse:
– Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
– Onde ponho meu avental?
– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
Para cada peça de roupa corpete, saia, anágua e meias a menina
fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:
– Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
– Ah, vovó! Como você é peluda!
– É para me manter mais aquecida, querida.
– Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
– É para carregar melhor a lenha, querida.
– Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!
– É para me coçar melhor, querida.
– Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
– É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou.
(DARNTON, 1986, p. 21-22)
Mas qual será a moral dessa história?
Para muitos psicanalistas, de origem jungiana, eram os desejos e frustrações que ali
foram colocados, como a virgindade da menina, sua luta contra a mãe materializada quando
se alimentou da carne e bebeu o sangue de sua avó, que também foi mãe, seu desejo pelo pai –
o lobo, etc. Interpretações do texto e não do contexto em que esses contos foram geridos ou
narrados. Cegaram-se e, com isso, perderam toda a dimensão histórica dessas histórias.
Para as meninas, talvez a moral da história seja: afastem-se dos lobos. Mas quem são
os lobos? O que seria afastar-se de alguém ou de algo?
31
Para os historiadores e aqui a ele nos aliamos parece dizer algo sobre a
mentalidade dos camponeses, na França do século XVIII.
/.../ os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de
muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições
culturais. Longe de expressarem as imutáveis operações do ser interno do
homem, sugerem que as próprias mentalidades mudaram. Podemos avaliar a
distância entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos
imaginarmos pondo para dormir um filho nosso contando-lhe a primitiva
versão camponesa do ‘Chapeuzinho Vermelho’. Talvez, então, a moral da
história devesse ser: cuidado com os psicanalistas e cuidado com o uso das
fontes (DARNTON, 1986, p. 26).
Precisar a mentalidade francesa da época sem dúvida não é uma tarefa simples.
Contudo, Darnton nos indícios para afirmar que os contadores de história retratavam um
mundo de brutalidade nua e crua, sem ocultá-la com símbolos como inferiram os
psicanalistas. Muitas vezes, inferências feitas a partir de uma única versão de um conto, ou
mesmo de um conto com uma única versão. Dessa forma, como apreender o significado de
algo que se configura por diferentes dispositivos?
Nem mesmo os mais experientes historiadores assim o fizeram. Na maioria dos
contos, a satisfação dos desejos se torna um plano para a sobrevivência, não uma fantasia ou
uma fuga, por isso os contos são tão importantes são um caminho para a compreensão da
cultura.
Os contos populares foram o caminho seguido por Darnton (1986) para compreensão
da cultura francesa dos séculos XVI, XVII e XVIII. E o conteúdo deles é parte da mentalidade
francesa da época e, talvez, do próprio espírito francês.
A linguagem materializa os símbolos não os da Psicanálise e a História Cultural
amplia o campo da História Clássica. A história hoje praticada está ligada à Histórica Cultural
que é o processo de fazer história na atualidade. Contempla documentos, mas também os
aspectos humanos. Ela traz à cena, no campo da história, elementos nunca antes utilizados,
discutidos, como o uso de fontes como vídeos, fotografias, depoimentos, etc. E a cultura
contém todas as histórias, por isso a oralidade é fundamental.
Darnton foca a noção de leitura reforçando a possibilidade de se ler qualquer coisa,
desde um conto a o ritual de uma pequena cidade camponesa – leitura que tem como
objetivo o significado dos textos, independente do método de apreensão utilizado, busca o
“significado inscrito pelos contemporâneos no que quer que sobreviva de sua visão de
mundo”.
Desviar-se do caminho batido talvez não seja uma grande
metodologia, mas cria a possibilidade de se apreciar alguns pontos de vista
32
incomuns, que podem ser os mais reveladores. Não vejo porque a história
cultural deva evitar o excêntrico, ou abraçar a média, porque não se pode
calcular a média dos significados nem reduzir os símbolos ao seu mínimo
denominador comum (DARNTON, 1986, p. XVII).
Hunt (2001) afirma que “quanto mais sociológica a história se torna, e quanto mais
histórica a sociologia se torna, tanto melhor para ambas”. E como vimos, à estreita ligação
entre elas, principalmente a partir do paradigma marxista e da
Écolè d’Annales, que possibilitou a História Cultural ocupar papel de destaque.
Não obstante a sua importância, o Annales não conseguiu desviar o foco de seus
estudos dos paradigmas que criticou, como a história econômica e a história social, até sua
quarta geração, quando imprimiu esforços em direção à História Cultural, ou à Histoire de la
Mentalités, como diriam os franceses.
Esse interesse aprofundado pelas mentalités (mesmo entre os
membros da geração mais velha dos historiadores dos Annales)
levou também a novos desafios ao paradigma dos Annales
(HUNT, 2001, p. 9).
Historiadores dessa quarta geração como Roger Chartier e Jacques Revel tiveram
importante participação nesse panorama. Para eles, as próprias representões do mundo
social são os componentes da realidade social e ainda, “as relações econômicas e sociais não
são anteriores às culturas, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural
e produção cultural /.../” (HUNT, 2001, p. 9).
As investigações sobre as práticas culturais levaram esses autores a se aproximarem
das críticas de Foucault acerca dos pressupostos fundamentais da história social e também,
dos críticos que diziam não haver na Nova História Cultural, assim como na obra de Foucault,
um programa definido de ação. Esses críticos diziam que, em geral, as pesquisas eram
desenvolvidas apenas em termos de temas de pesquisa que não se relacionavam entre si, o que
não fez avançar suas teorizações e propostas, e também fomentou inúmeras críticas e
oposições.
Críticas infundadas, no que se refere à História Cultural, como nos mostrou Clifford
Geertz que, segundo Hunt, foi o mais notável antropólogo a trabalhar nesse campo.
33
A decifração do significado, então, mais do que a inferência de leis
causais de explicação é assumida como a tarefa fundamental da história
cultural, da mesma maneira que, para Geertz, era a tarefa fundamental da
antropologia cultural (HUNT, 2001, p. 16).
Souza discorrendo sobre o referencial teórico que sustentou sua pesquisa de
doutorado, analisa o que tomou por práticas sociais, a partir de Miguel (2003) e Certeau (1994
e 1995). Utilizando Ginzburg (1989) como suporte para sua perspectiva de micro-história e
Geertz (1989 e 2002) para sua abordagem interpretativa, a autora advoga em prol da
aproximação entre Antropologia e História, pois
/.../ unir indagações e abordagens advindas tanto da História quanto da
Antropologia proporciona um entendimento mais alargado do momento
histórico, bem como do posicionamento ideológico e cultural dos personagens
sociais dessas narrativas, homens agindo segundo suas condutas e valores
sociais, não só movidos por crenças, visões de mundo, mais também por
fatores de coerção social /.../ (SOUZA, 2006, p. 114).
Geertz sustenta a abordagem interpretativa empregada por Souza a partir do que
nomeou de ‘descrição densa’ descrição atrelada a uma concepção de cultura eclética bem
como a uma concepção mais abrangente do que se convencionou chamar de etnografia. É essa
análise densa que possibilitará a compreensão dos diferentes elementos presentes nas culturas
nas quais as pessoas estão inseridas.
Geertz, ao tomar os fenômenos culturais como símbolos interpretáveis
e não como demonstrativos de códigos e leis, privilegia
“casos e interpretações por supor aqui o acesso à significação
(SOUZA, 2006, p. 123).
Geertz privilegia e apresenta a possibilidade de se fazer histórias das culturas em torno
da apreensão do símbolo é sua aproximação e contribuição a nossa História Cultural e
mesmo que nosso trabalho não advogue em prol de “uma” concepção de cultura, as
considerações de Souza sobre Geertz são um exemplo de sua estreita ligação com a História,
com a História Oral e, ainda, de que as críticas à História Cultural discutidas, por exemplo,
em Hunt, não se sustentam.
Hunt apresenta e discute, em sua obra, algumas críticas feitas a História Cultural e a
obra de Michel Foucault. Infundadas, a nosso ver, por tudo até aqui exposto em relação à
História Cultural e também, em relação a Foucault, visto que os temas desenvolvidos por ele,
como as discussões sobre cultura ocidental em As palavras e as coisas; suas teorizações sobre
o discurso em A ordem do discurso; a vigilância não apenas do corpo, mas da alma em Vigiar
e Punir; a história de fontes documentais, em Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe,
34
meu pai e minha irmã...; a história da confissão, ou a verdade do sujeito, na História da
Sexualidade, se entrelaçam, se relacionam e sustentam em direção à sua “última” fase, a fase
ética, discutida no livro a Hermenêutica do Sujeito.
Foucault, nos estudos sobre a história da loucura, sobre as prisões, enfim, nos estudos
que podem ser alocados em sua fase genealógica, parece nos indicar um caminho, nos indicar
que não havia saída para o sujeito, pois era condenado por seus prazeres, condenado a sofrer
para conseguir a liberdade de seu corpo... por isso “sujeito”, “assujeitado”.
Ao focar os atos de verdade – entendidos como os procedimentos regrados que
vinculam um sujeito a uma verdade, atos ritualizados em cujo decurso um certo sujeito fixa
sua relação com uma certa verdade (FOUCAULT, 2004, p 616) – discute a obrigação dada ao
sujeito de dizer a verdade, dizer a verdade sobre si mesmo, inclusive dos maus pensamentos,
para remissão de suas faltas. Obrigação que estaria atrelada a um “outro” e à morte.
Parece, então, que realmente não há saída. Estamos fadados a obedecer e a nos
sujeitarmos, seja a uma instituição, a um grupo, seja a um “outro” – procurar a verdade íntima
será sempre continuar a obedecer, e continuar a obedecer a um outro, assim sou sujeito no
ocidente moderno. Poderia dizer-nos então que nossas identidades sexuais são como que
formatadas por um poder dominante, haja vista que era sobre o poder que ele nos falava.
Entretanto, como nossos caminhos não são determinados a priori, ele nos diz que o
sexo não é unicamente o revelador do poder, mas do sujeito em sua relação com a verdade. E
essa relação do sujeito com a verdade é cristalizada pela escrita, pela medicina, pelo sexo etc.
E percebe, assim, que não é o poder o tema de suas pesquisas, mas o sujeito. Tornando-as
mais complexas ao dedicar-se aos estudos das governamentabilidades com a exploração do
que chamou de cuidado de si
3
. Reitera-se, que em caso algum, a ética ou o sujeito são
propostos para serem pensados como o outro do político e do poder.
/.../ o sujeito se autoconstitui ajudando-se com técnicas de si, no lugar
de ser constituído por técnicas de dominação (Poder) ou técnicas
discursivas (Saber). Estas técnicas de si são assim definidas:
procedimentos que sem dúvida existem em toda a civilização, propostos
ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou
transformá-la em função de determinados fins, e isto graças a relações
de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si
(FOUCAULT, 2004, p. 620).
3
Foucault dedica seu curso no Collège de France de 1980 e 1981 a esse tema e o livro A Hermenêutica do
Sujeito é fruto desse curso, bem como a História da Sexualidade, principalmente o último volume, O cuidado de
si.
35
Técnicas, procedimentos, cuidados que nos ajudaram a olhar para os relatos de nossos
depoentes, nos ajudaram a organizar nossos estudos sobre a cultura na qual essas pessoas
estiveram inseridas, que, para alguns poderia ser considerada uma cultura com “c” minúsculo,
da qual nos falou pouco Darnton com seu Massacre de Gatos”, ou “cultura das classes
subalternas” ou “cultura popular”, como nomeou Ginzburg. Cultura que foi negligenciada
pelos historiadores ao longo dos culos, pois era fruto da tradição oral, da oralidade além
de se opor à cientificidade que se procurava dar à História.
Ainda hoje a cultura das classes subalternas é (e muito mais, se
pensarmos nos séculos passados) predominantemente oral, e os
historiadores não podem se pôr a conversar com os camponeses do
século XVI (além disso, não se sabe se os compreenderiam). Precisam
então servir-se sobretudo de fontes escritas (e eventualmente
arqueológicas) que são duplamente indiretas: por serem escritas e, em
geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos, abertamente
ligados à cultura dominante (GINZBURG, 1989, p. 18).
O caso de Menocchio é intrigante por ser um exemplo de crença popular autônoma e
ainda por mostrar obscuros elementos populares dispostos em um conjunto de idéias muito
claras e conseqüentes que vão do radicalismo religioso ao naturalismo científico, às
aspirações utópicas de renovação social. Havia muitos elementos de convergência entre os
intelectuais da sociedade e Menocchio.
Assim como a língua, a cultura oferece ao indivíduo um horizonte de
possibilidades latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se
exercita a liberdade condicionada de cada um. Com rara clareza e lucidez,
Menocchio articulou a linguagem que estava historicamente à sua disposição.
Por isso, nas suas confissões é possível encontrar de maneira bastante nítida,
quase exasperada, uma série de elementos convergentes; esses mesmos
elementos numa outra documentação análoga contemporânea ou pouco
posterior –, aparecem dispersos, ou então é possível vislumbrá-los.
Algumas investigações confirmam a existência de traços que reconduzem a
uma cultura camponesa comum. Em poucas palavras, mesmo um caso limite
(e Menocchio com certeza o é) pode se revelar representativo, seja
negativamente – porque ajuda a precisar o que se deva entender, numa
situação dada, por “estatisticamente mais freqüente” seja positivamente
porque permite circunscrever as possibilidades latentes de algo (a cultura
popular) que nos chega apenas através de documentos fragmentários e
deformados, provenientes quase todos de “arquivos de repressão”
(GINZBURG, 1989, p. 27-28).
E, ainda,
A defasagem entre os textos lidos por Menocchio e o modo como ele
os assimilou e os referiu aos inquisidores indica que suas posições não o
redutíveis ou remissíveis a um ou outro livro. Por um lado, elas reentram
numa tradição oral antiqüíssima; por outro, evocam uma série de motivos
36
elaborados por grupos heticos de formação humanista: tolerância,
tendência em reduzir a religião à moralidade etc. Trata-se de uma dicotomia
aparente, que remete na verdade a uma cultura unitária em que não é
possível estabelecer recortes claros. Mesmo que Menocchio tenha entrado em
contato, de maneira mais ou menos mediada, com ambientes cultos, suas
afirmações em defesa da tolerância religiosa, seu desejo de renovação radical
da sociedade apresentam um tom original e não parecem resultado de
influências externas passivamente recebidas. As raízes de suas afirmações e
desejos estão fincadas muito longe, num estrato obscuro, quase indecifrável,
de remotas tradições camponesas (GINZBURG, 1989, p. 30).
Por isso não parece possível realizar recortes claros na cultura de Menocchio para
reforçar sua singularidade, ela está inserida numa tênue, sinuosa, porém muito nítida linha que
transita, liga, completa e reforça, a cultura da época Menocchio é fruto de seu meio, a
dicotomia popular/erudito, dominantes/dominados, centro/periferia é posta em xeque. Mas
como podemos preservar essas culturas, sem esperar que o acaso o faça?
/.../ podemos dizer que Menocchio é nosso antepassado, mas é também um
fragmento perdido, que nos alcançou por acaso, de um mundo obscuro,
opaco, o qual só através de um gesto arbitrário podemos incorporar à nossa
história. Essa cultura foi destruída. Respeitar o resíduo de indecifrabilidade
que nela e que resiste a qualquer análise não significa ceder ao fascínio
idiota do exótico e do incompreensível. Significa apenas levar em
consideração uma mutilação histórica na qual, em certo sentido, nós mesmos
somos vítimas. “Nada do que aconteceu deve ser perdido para a história”,
lembrava Walter Benjamin. Mas “só à humanidade redimida o passado
pertence inteiramente”. Redimida, isto é, liberada
(GINZBURG, 1989, p. 34).
Para isso, adotamos a História Oral como nosso instrumento nessa busca pela
redenção de culturas como as de Menocchio e de tantos outros atores que, por não serem
considerados “heróis”, permanecem atrás das cortinas da História. Na presente investigação
buscou-se caminhar pela História Cultural de que nos fala Darnton, buscou-se descerrar essas
cortinas.
Não estamos interessados em caracterizar o que venha a ser História. Antes,
buscamos, através dos discursos de nossos depoentes, compreender como se constituíam
“suas histórias”. Como se articulavam as estratégias da sociedade, tentando esboçar algumas
compreensões acerca de sua cultura e da cultura da sociedade em que viviam. O que nos
importou não foi verificar se havia um discurso da História, nem conceber a História como
um discurso, pois como vimos, até os grandes teóricos desistiram de assim fazê-lo.
Buscamos sim, estabelecer meios que nos ajudassem a configurar e explicitar o que pensavam
37
e como pensavam nossos depoentes, pessoas comuns, que estavam à margem da História
Clássica.
Muitos historiadores reforçam e propagam que “um” discurso da História, o que
alimenta as críticas aos novos métodos e concepções, principalmente aquelas que se
relacionam com a História Oral. Não temos dúvida de que o que está em jogo é uma luta pelo
poder, afinal desejos e ideologias são contrapostos. Afinal,
/.../ o discurso não é simplesmente o que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós
queremos nos apoderar (FOUCAULT, 2000, p. 10).
Deter o poder sobre o discurso, ou melhor, sobre “os discursos”, é uma forma de
dominar às pessoas, dominar grupos, dominar sociedades... . Quem detém esse poder define o
que pode ou não ser dito, o que pode ou não ser ensinado, o que pode ou não ser aceito, o que
pode ou não ser registrado. O que pode ou não ser História. Esse é o discurso de certos grupos
de historiadores que não consideram os métodos e discussões que a História Nova suscitou e
que a História Cultural suscita. São as “sociedades do discurso” de que nos fala Foucault.
Ao longo dos séculos o discurso da História foi dominado por certos grupos, por
certos sujeitos. Esse discurso pôde, e foi, ofertado a outros, mas sempre controlado, sempre
respeitando os princípios de seu surgimento, bem como aqueles ditados por seus líderes.
Essas são as sociedades do discurso – a História é uma sociedade do discurso. Ainda que não
se tenham tornado grupos doutrinários”. Esses, segundo Foucault, são grupos em cujo
interior só é possível um discurso. Apenas um discurso prevalece, apenas um discurso é aceito
(os grupos religiosos, de um modo geral, são exemplos de grupos doutrinários).
/…/ na maior parte do tempo, eles se ligam uns aos outros [sociedades e
grupos] e constituem espécies de grandes edifícios que garantem a
distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a
apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. Digamos, em
uma palavra, que são esses os grandes procedimentos de sujeição do
discurso. O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da
palavra; senão uma qualificação e uma fixão dos papéis para os sujeitos
que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso;
senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e
seus saberes? Que é uma “escritura” (a dos “escritores”) senão um sistema
semelhante de sujeição, que toma formas um pouco diferentes,
mas cujos grandes planos são análogos? Não constituíram
o sistema judiciário, o sistema institucional da medicina, eles também, sob
certos aspectos, ao menos, tais sistemas de sujeição do discurso?
(FOUCAULT, 2000, p. 44-45)
4
.
4
O referencial teórico da presente investigação não estará pautado na genealogia de Michel Foucault, mas, sim,
no que nomea-se de ética. Não obstante as diferenças entre essas “fases” do autor, não podemos ignorar o fato de
38
Os historiadores clássicos, como Seignobos e Langlois, constituíram por meio dos
documentos oficiais das instituições do estado, a História.
Iremos ao encontro de Darnton e Ginzburg, em direção à História Cultural. Para esse
caminho, nosso objetivo foi conhecer e explicitar as estratégias utilizadas por nossos
depoentes, que caracterizam sua inserção na cultura da época, localizados geograficamente no
estado de São Paulo, na região de Jaú, nas décadas de 1920, 1930 e 1940 mais
especificamente, entre os anos de 1925 e 1945.
Vale lembrar que mesmo não focando explicitamente, como outras pesquisas do
grupo
5
, questões relacionadas ao ensino e aprendizagem da Matemática, essa investigação tem
sua relevância quando caminha em direção ao objetivo de mapear a formação do professor de
Matemática no Brasil e ainda, fomentar discussões mais específicas sobre a utilização de
novos métodos e abordagens nos domínios da Educação Matemática.
Como mais um instrumento de apreensão da realidade, a História Oral ao registrar as
vozes de nossos depoentes nos possibilitou compreender e explicitar as estratégias que
utilizavam na ocasião das entrevistas e ainda, perceber em qual cultura estavam inseridos,
assim como Jerome e Léveillé possibilitaram a Darnton; e Menocchio à Ginzburg.
História Oral
/.../ a oposição à evidência oral é muito mais fundamentada no sentimento do
que no princípio. A geração mais velha dos historiadores que ocupam as
cátedras e detêm as rédeas é instintivamente apreensiva em relação a [esse]
advento /.../. Isso implica que eles não mais comandem todas as
técnicas de sua profissão. Daí os comentários depreciativos
sobre os jovens que percorrem as ruas com gravadores de fita
(THOMPSON, 1978 apud PRINS, 1992, p. 165).
As fontes orais não são os estepes da história clássica, não substituem as fontes que ela
prima, que ela usa, não substitui seus registros. O que Paul Thompson sugeriu foi que os
velhos professores não gostam de novas evidências, pois assim percebem que as que utilizam
que suas discussões e teorizações, no que tange ao discurso, sejam relevantes para os temas aqui abordados. Vale
lembrar, ainda, que essas considerações são disparadas, fundamentalmente, pelo texto “A Ordem do Discurso”.
5
Algumas investigações (iniciações científicas, mestrados, doutorados e outros) do Grupo de Pesquisa de
História Oral e Educação Matemática – GHOEM vão nessa direção. Galetti (2004), por exemplo, foca em sua
dissertação a região da Nova Alta Paulista última região do estado a ser colonizada pelo homem branco. Ao
constituir seu cenário, elegeu como principal elemento as falas de professores de matemática, realçando seu
cotidiano e suas práticas. Martins (2003), em relatório de Iniciação Científica, investiga como se dava a
formação de professores e alunos do ensino rural na região oeste do estado, no período de 1950 a 1970. Baraldi
(2003) traça um perfil da região de Bauru a partir das vidas (presentificadas por suas falas) de professores de
matemática que viveram e atuaram na docência entre as décadas de 1960 e 1970.
39
estão se deteriorando. Mas Prins aspectos mais profundos do que esse simples medo de
“perder” espaço.
A história oral os documentos orais nunca deixou de ser “utilizada”, mas perdeu
força com a supervalorização da escrita. Foi a partir do advento do gravador que ela voltou à
cena, voltou à cena com caráter científico.
Hoje, as pessoas são ou não alfabetizadas, dominadas pelos meios de comunicação de
massa como o rádio, a televisão, o celular, a internet. Mas os historiadores são, por
excelência, alfabetizados e para eles a palavra escrita é soberana.
[A palavra escrita] estabelece seus padrões e métodos. Rebaixa as
palavras faladas, que se tornam utilitárias e sem interesse, em comparação
com o significado concentrado do texto. As nuanças e os tipos de dados orais
não são levados em conta (PRINS, 1992, p. 169).
Em uma cultura como a nossa, dominada pela palavra escrita, é necessário que se faça
um esforço para não relegar a oralidade a segundo plano. Ela deve ser vista como tendo a
mesma complexidade da palavra escrita os dois registros, oral e escrito, se entrelaçam. É
necessário que se cuide da tradição oral, pois ela tende a desaparecer à medida que a
sociedade torna-se predominantemente alfabetizada.
Embora Prins considere a dicotomia entre “cultura popular” e “cultura erudita” e/ou
“cultura dos governantes” e “cultura dos governados”, suas discussões sobre o alcance dos
depoimentos orais se mostra relevante. Para ele, esses depoimentos são muito úteis quando o
investigador está interessado nas dimensões das práticas culturais de uma determinada
sociedade.
Valendo-se de uma investigação que considerava esses relatos (poemas de louvor
africanos), nos mostra como é possível perceber que mesmo denotando diferentes referências,
o mesmo poema e provérbio é encontrado em diferentes épocas – as palavras se mantêm, mas
são adaptadas a propósitos particulares. Esses poemas testemunham a contínua reprodução, na
cultura, de elementos persistentes. Será que o significado da anedota de Darnton, sobre os
dentes de George Washington
6
, ainda persiste no Brasil de hoje? Afinal, como se o quê se
deve lembrar, o quê se lembra?
Parece estar aqui o grande problema... a memória seletiva das fontes orais (seleção que
também sujeita as fontes escritas, visto que são criadas por sujeitos, portanto passíveis de
6
Os dentes falsos de George Washington, Companhia das Letras, 2005.
40
esquecimentos e escolhas). Seleção que acontece por nossa incapacidade de rememorar todos
os acontecimentos, todas as nossas vivências. E a escrita reforçou essa incapacidade, uma vez
que não é mais necessário arquivá-los, pois muitos já estão registrados, guardados, salvos! As
limitações da memória reforçam o uso da escrita e o desprestígio da oralidade não nos
esqueçamos, contudo, da importância desses registros escritos para a evolução da ciência, da
medicina, do homem; como estaríamos hoje se a cada nova geração tivéssemos que reinventar
tudo?!
Mas afinal, será possível confiar na memória? Como dar crédito a um depoimento que
é fruto da memória? Como a memória seleciona o que quer lembrar? Como se registra a
memória?
7
Por outro lado, como confiar nos documentos “ditos” oficiais? Eles não são,
também, elaborados por pessoas?o podem ser manipulados?
Vários esforços foram empregados pelo mundo para discutir e implementar a História
Oral, mas muitos governos, segundo Prins, não foram favoráveis como, por exemplo, o de
Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha. Certa vez, o Conselho Escolar Britânico apresentou o
Blue Book”, livro que sintetizava grande parte do que era mais inovador nas escolas do país
ao longo dos últimos vinte anos. Havia um projeto para ensinar crianças de 11 a 14 anos a
discriminar a boa evidência da má evidência, pretendia-se reconhecer a legitimidade de várias
fontes, inclusive a oral. Os inspetores compreendiam o significado político do Blue Book.
Então, o governo da Sra. Thatcher aboliu o Conselho Escolar e implementou um ensino de
história pautado em datas e “fatos” e, em conseqüência, uma verdadeira aversão à imaginação
histórica
8
.
Segundo Thompson (1998) a História Oral surge como atividade organizada em 1948,
nos Estados Unidos. Mas é apenas a partir de 1960, com a criação da Oral History
Association (OHA), que alcança maior projeção, chegando inclusive, em alguns países, a ser
incorporada ao currículo escolar. A partir do uso de entrevistas, nos moldes sociológicos,
percebe-se a importância da memória dos sujeitos para reconstrução da história. Le Goff, mais
tarde diria
7
Ressaltamos que não se pode simplesmente escolher não mais lembrar de algo, escolher esquecer um
acontecimento vários tipos de esquecimentos. Podemos, por exemplo, considerar um “esquecimento” que
tenha sido decorrência de uma situação traumática (considerando, contudo, assim como Jeanne Marie Gagnebin,
em artigo da Revista Trópico – cf. bibliografia básica –, que em muitos casos essa situação traumática reforça o
acontecimento, reforça a lembrança); ou aquele que tenha ocorrido por conta de uma outra questão emocional
qualquer; um “esquecimento” mecânico, seqüela de um acidente e; até, aqueles que são decorrência de doenças
degenerativas, como o Mal de Alzheimer.
8
A sociedade, de um modo geral, não tem discutido essas questões, mesmo com os esforços de grupos de
pesquisa como o GHOEM.
41
Chego agora aos campos e às vastas zonas da memória, em que
repousam os tesouros das inúmeras imagens de toda a espécie de coisas
introduzidas pelas percepções; em que estão também depositados todos os
produtos do nosso pensamento, obtidos através da ampliação, redução ou
qualquer outra alteração das percepções dos sentidos, e tudo aquilo que nos
foi poupado e posto à parte ou que o esquecimento ainda não absorveu e
sepultou. Quando estou dentro, evoco todas as imagens que quero.
Algumas apresentam-se no mesmo instante, outras fazem-se desejar por
mais tempo, quase que são extraídas dos esconderijos mais secretos.
Algumas precipitam-se em vagas, e enquanto procuro e desejo outras,
dançam à minha frente com o ar de quem diz: “Não somos nós por acaso?”,
e afasto-as com a mão do espírito com a face da recordação, até que aquela
que procuro rompe da névoa e avança do segredo para o meu olhar; outras
surgem dóceis, em grupos ordenados, à medida que as procuro, as
primeiras retiram-se perante as segundas e, retirando-se, vão
recolocar-se onde estarão, prontas a vir de novo, quando eu quiser.
Tudo isso acontece quando conto qualquer coisa de memória
(YATES apud LE GOFF, 2003, p. 440).
Nesse período os estudos voltam-se às memórias dos grandes personagens (great men)
embora, com o tempo, alguns pesquisadores comecem a se interessar pela memória das
pessoas comuns (ordinary people). Via-se a possibilidade de outras versões para histórias
consolidadas nos documentos oficiais. Entrevistar pessoas que, de algum modo, vivenciaram
a II Guerra, por exemplo, certamente traria uma versão diferente da história divulgada pelo
Estado americano
9
.
A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a
evidência dos fatos antigos (THOMPSON, 1998, p. 18).
A tradição oral fez parte do imaginário de muitas civilizações, inclusive a ocidental.
Ainda hoje, indícios em comunidades indígenas e mesmo em pequenas cidades no interior
dos estados, de seu uso para transmitir conhecimentos sobre a cura de enfermidades, o
cuidado com a terra, as famílias e suas cidades. Relegada a segundo plano, foi com a História
Nova que essa “tradição” volta à cena
10
com estatuto científico. Alguns autores já falam de
uma “história visual-narrativa”, depois da televisão e dos filmes. Ginzburg (1989) foi um dos
primeiros a tratar da história da arte como uma evidência histórica e a defender sua
9
No Brasil, uma das primeiras experiências ocorreu em 1971, em São Paulo, no Museu da Imagem e do Som. A
experiência mais sistematizada e divulgada, contudo, é a do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil, com sede na Fundação Getúlio Vargas. Vale lembrar, ainda, que a História Oral ganha
força e projeção no país com a volta dos exilados da Guerrilha do Araguaia, retratadas por Maria Luiza Tucci
Carneiro, no livro Minorias Silenciadas (cf. bibliografia básica).
10
É importante ressaltar o papel das novas tecnologias como a televisão, os gravadores portáteis etc, nesse
(re)surgimento.
42
importância
11
. Assim como Burke (2004) que mais tarde defendeu a imagem como mais uma
evidência histórica.
O fato de muitos historiadores não encontrarem registros “oficiais” sobre seus temas
de pesquisa ou ainda, só encontrarem documentos em quantidade limitada ou prejudicados
pelo tempo, fez com que se começasse a olhar para a possibilidade de “fazer” história tendo
como fonte as narrativas, as imagens, as representações a história das pessoas como
fornecedora de elementos para diversos estudos historiográficos e com isso, como já
dissemos, o reestabelecimento da ligação entre a história e a cultura, possibilitando estudos
como o presente, que podem ser enquadrados na chamada História Cultural.
Segundo Alberti (2004)
A história oral pode ser empregada em diversas disciplinas das
ciências humanas e tem relação estreita com categorias como biografia,
tradição oral, memória, linguagem falada, métodos qualitativos etc.
Dependendo da orientação do trabalho, pode ser definida como método de
investigação científica, como fonte de pesquisa, ou ainda como técnica de
produção e tratamento de depoimentos gravados. Não se pode dizer que ela
pertença mais à história do que à antropologia, ou às ciências sociais, nem
tampouco que seja uma disciplina particular no conjunto das ciências
humanas. Sua especificidade está no próprio fato de se prestar a diversas
abordagens, de se mover num terreno multidisciplinar
(ALBERTI, 2004, p. 17-18).
Nessa investigação, a História Oral, esteve intimamente relacionada à tradição oral, à
linguagem falada, aos métodos qualitativos e, principalmente, à memória. E foi tomada não
apenas como um método de investigação (com seus indicativos técnicos de coleta e análise),
mas, também como fonte de pesquisa, que foi a partir dos depoimentos coletados que se
pautaram nossas compreensões
12
, utilizando como suporte teórico a Hermenêutica do Sujeito
de Michel Foucault, e como lócus, a cultura localizada geograficamente no estado de São
Paulo, na região de Jaú, entre os anos de 1925 e 1945.
Consideramos duas vertentes comumente utilizadas quando se faz uso da História
Oral: história oral de vida e história oral temática. Na primeira, o pesquisador tem interesse na
vida do depoente, há uma tentativa de captá-la como uma totalidade – o depoente narra-se. Na
segunda, o pesquisador restringe seu campo de atuação a determinados temas, sem contudo,
privar o depoente de expressar qualquer outro tipo de informação, uma vez que podem ser
11
Para um maior aprofundamento ver GINZBURG, C.. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
12
Vale lembrar que esforços têm sido empreendidos pelo GHOEM em direção a uma nova concepção de
História Oral, relacionada ou não a uma nova concepção de História, filosofia, etc., o que pode ser verificado no
livro eletrônico GARNICA, A. V. M. (org.). Mosaico, Mapa, Memória: ensaios na interface História Oral-
Educação Matemática. Bauru: Canal 6/e-GHOEM, 2006.
43
importantes à temática central. A possibilidade de articulação desses diálogos com outros
documentos é uma característica de qualquer uma dessas vertentes. Essa divisão, contudo, tem
sido cada vez mais tênue nas pesquisas atuais, o que pode ser verificado nos depoimentos que
compõem essa investigação.
A História Oral nos possibilita apreender um acontecimento, estudar uma época, sob
uma ótica diferente daquela difundida pela História Clássica. Não que seja ela a detentora da
“verdade”, da “justiça”, mas ela permite que nosso olhar se volte para as pessoas, permite que
descortinemos as estratégias, as táticas, os artefatos, os signos, por elas utilizadas.
Ela não apenas constitui documentos, como também permite o florescer de diferentes
versões sobre os acontecimentos, permite-nos descortinar e focar as mais diversas estratégias
e táticas presentes na cultura dos sujeitos estudados.
Além disso, no momento da entrevista o sujeito narra-se, relembra sua vida, libera
sentimentos, frustrações. Suas idéias, seus pensamentos, estão em sua memória, por isso ela é
essencial. Por isso, é importante estar atento, no momento da entrevista, ao “tom” do
depoimento, como ele é conduzido, pois apresenta uma interpretação pessoal do que viveu o
depoente.
Ouvindo pessoas
Diário de Campo 1 – D.C. 1
A motivação inicial dessa investigação foi meu mestrado que teve como objetivo
estudar uma Licenciatura em Matemática, tendo em vista suas diferentes manifestações. Na
referida pesquisa, aprofundei leituras e concepções sobr
Matemática e, com isso, senti a necessidade de ampliar meu campo de estudos e contribuir,
com uma leitura/análise/discussão da legislação que trata dessa formação em âmbito nacional.
O que se pretendia era analisar os documento
s legais (discurso oficial) das Licenciaturas, mas
especificamente, das Licenciaturas em Matemática e, ainda, os documentos “não-
oficiais”
(aqueles dos congressos e encontros científicos), para que se pudesse perceber se o discurso
propagado nesses eventos se efetivava nas Leis. Contingências burocráticas distanciaram-
me,
depois de algum tempo, desse objetivo inicial e me aproximaram do Grupo de Pesquisa de
História Oral e Educação Matemática, bem como do interesse em voltar meu olhar para as
vozes do passa
do e não mais para a legislação da Licenciatura em Matemática atualmente em
curso. Esse olhar para trás se deu, num primeiro momento, no campo da literatura,
fundamentalmente aquela referente às mudanças legais. Passei a investigar as duas grandes
reformas
da educação brasileira: Reforma Francisco Campos e Reforma Gustavo Capanema,
ambas compreendidas entre as décadas de 1930 e 1940, através da leitura de bibliografia
pertinente ao tema. E, ainda, de documentos disponibilizados por escolas da região,
fundam
entalmente da cidade de Jaú, sobre os chamados “Grupos Escolares” (modelo então
vigente de ensino na época). Configurou-
se, assim, o desejo de esboçar um panorama da
região, nas décadas de 1920 a 1940, a partir das vozes dos atores que nela atuaram.
44
Em nosso grupo as pesquisas têm focado diferentes temas e períodos, inseridas no
mesmo campo (cf. nota de rodapé 5). Isso nos levou a direcionar o olhar para as primeiras
décadas do último século e, como inicialmente estávamos interessados nos documentos legais
que versavam sobre as licenciaturas, nos deparamos com as Reformas Francisco Campos e
Gustavo Capanema.
Não dúvida de que as décadas de 1920, 1930 e 1940 foram o cenário de grandes
transformações, sobretudo na educação. Elas foram o palco de duas rupturas significativas na
educação brasileira: a Reforma Francisco Campos, da década de 1930 discutida e teorizada
na década anterior e a Reforma Gustavo Capanema, da década de 1940. A primeira
estabelece diretrizes nacionais para educação, antes a cargo dos estados e a matriz
ideológica das Escolas Normais é posta abaixo. A segunda reorganiza os níveis de ensino
existentes, estabelecendo uma nova ótica educacional.
Muitas são as pesquisas
13
que retratam o cenário nacional e, mais especificamente, o
educacional, nessas décadas, notadamente aquelas que focam essas reformas educacionais.
Contudo, apesar da pertinência desses estudos, muitas vezes, negligenciam as diferentes
experiências ocorridas nos estados, uma vez que esboçam suas considerações a partir de um
ponto de vista unilateral, pautado em mecanismos e estruturas hegemonicamente constituídas
e aceitas.
Podemos perceber em Baraldi (2003), quando da apresentação das entrevistas de seus
depoentes, que a maioria dos professores que atuavam nas décadas de 1960 e 1970 foco de
sua investigação e, portanto, freqüentaram o ensino nas décadas anteriores como alunos,
tinham muita dificuldade para estudar. Muitos deles não estudavam na cidade onde residiam
e/ou tinham que se mudar para fazê-lo; muitas vezes, os filhos das famílias com mais recursos
cursavam o ginásio ou o colegial em cidades como Campinas ou São Paulo. Nessa época,
grande parte das cidades da região oferecia apenas o ensino primário, realizado nos Grupos
Escolares. Para a continuidade dos estudos, muitos alunos procuravam as Cidades de Bauru e
Jaú. Assim, a proposta de realizar um estudo que tivesse como foco conhecer e explicitar as
estratégias utilizadas por pessoas como as da pesquisa de Baraldi, se mostrou pertinente.
A presente investigação elegeu como locus o interior do estado de São Paulo, mais
especificamente a região da cidade de J
14
, nos anos compreendidos entre 1925 e 1945; e, ao
optar pela História Oral como estratégia de ação, elegemos como principal elemento os
13
Entre elas Romanelli (1978), Silva (2003), Schwartzman, Bomeny, Costa (2000) e Bomeny (2001).
14
Outras cidades poderiam ter sido tomadas como base, dada as semelhanças entre elas.
45
depoimentos orais de pessoas que atuaram nesse período e que concordaram em conosco
compartilhar suas vivências.
Recolhemos 15 entrevistas, num total de 11 depoentes. As idades desses depoentes
variaram de 79 a 93 anos, portanto nasceram entre os anos de 1911 e 1928. Tal escolha,
pautada por nosso recorte temporal, garantiu que nossos depoentes estivessem em idade
escolar até 1945, tendo ou não, em suas trajetórias, passado pela escola. Ressaltamos essa
como uma característica importante, haja vista que grande parte das pesquisas que tem como
foco questões relacionadas à escola, privilegiam sujeitos que dela participaram e/ou
participam.
Por se tratar de um grupo em idade avançada e pela necessidade de verificar lucidez,
disponibilidade física e principalmente, disposição em nos conceder a entrevista, adotamos
como procedimento de escolha desses depoentes aquele das indicações pessoais. Em contato
com moradores residentes em nossa região de inquérito (Jaú, Bauru, Pederneiras e Lençóis-
Paulista) alguns nomes foram sugeridos. A partir dessas sugestões, fizemos contato via
telefone, com os possíveis colaboradores explicando, em linhas gerais, qual era a pesquisa que
pretendíamos desenvolver. Depois, agendamos uma visita para esclarecer dúvidas e fornecer
mais detalhes. Nesse encontro, explicamos quais seriam os procedimentos adotados e
marcamos nova data para realização da entrevista. Após a realização da entrevista, voltamos
aos procedimentos e solicitamos aos depoentes tanto sugestões de outras pessoas que
pudessem participar da pesquisa quanto registros pessoais da época, como fotos, documentos
ou livros.
Por ser tratar de um método inserido na pesquisa qualitativa onde privilégio dos
dados qualitativos sobre os quantitativos – trabalhos desenvolvidos apontam para necessidade
de três momentos: a pré-entrevista, a entrevista e a pós-entrevista. A pré-entrevista
compreende o contato pvio com o depoente, o agendamento e encontro para explicitar os
procedimentos e verificar a viabilidade e/ou disposição para coletar a entrevista. Na entrevista
– principal momento da coleta de dados – é necessário que o depoente esteja em local
agradável e confortável para que se sinta à vontade para falar. Apenas um de nossos
depoentes não foi entrevistado em sua residência, e sim em seu local de trabalho.
Estudos como o de Baraldi (2003), aponta que na História Oral Temática uma
tendência das entrevistas serem breves, o que muitas vezes leva à necessidade de uma
segunda sessão. Em alguns casos, tivemos a necessidade de uma segunda sessão de
depoimentos (quatro foram os depoentes que nos concederam duas entrevistas), entretanto,
não atribuímos isso ao fato de estarmos focando um “tema” específico, mas sim, devido ao
46
fato de que se cansavam com mais facilidade e, ainda, ficavam pouco à vontade com a
presença, em sua residência, de uma pessoa estranha. Além da difícil questão de rememorar a
morte de entes queridos, por exemplo. Como se portar em relação à dor, a sensibilidade dos
nossos depoentes? Isso foi referendado no momento da segunda sessão que, em alguns casos,
gerou uma entrevista mais longa e descontraída, posto que o primeiro momento havia de
certo modo, quebrado resistências e estabelecido algumas familiaridades, um vínculo positivo.
Optamos por recolher uma segunda entrevista daqueles depoentes que nos mostraram,
de alguma forma, que poderiam avançar mais nas questões sobre as quais estávamos nos
debruçando. De todo modo, não há uma regra geral que deva ser seguida por aqueles que
utilizam a História Oral, ou outros caminhos de coleta de dados, e por isso, devemos respeitar
as opções teórico-metodológicas de cada pesquisador. O consenso está na necessidade de
explicitar com clareza o processo e as justificativas que nos levam a determinadas escolhas.
A pós-entrevista é o processo mais longo, dada a necessidade de manter o contato com
o depoente a fim de que acompanhe os passos seguintes: a transcrição e a textualização.
A transcrição consiste na passagem literal do oral para o escrito, com todos os vícios
de linguagem, erros de concordância etc. Esse momento deve ser o mais fiel possível ao
registro gravado, inclusive com as perguntas realizadas pelo pesquisador. É importante deixar
claro ao depoente, após o término da entrevista, que esse processo é demorado, para que ele
entenda a espera quanto a um retorno sobre seu depoimento. Na presente investigação
procuramos contornar esse problema reforçando, a cada contato, que o próximo encontro
demoraria a acontecer e entre eles, contatos telefônicos foram feitos para diminuir a ansiedade
dos depoentes.
Após a transcrição, segue a textualização, fase na qual são suprimidas as perguntas, os
vícios de linguagem, os equívocos de concordância e pontuação. Há, ainda a possibilidade de
reorganização cronológica do texto esse foi o procedimento adotado neste trabalho, com
exceção dos três últimos depoimentos coletados que permaneceram na forma de perguntas e
respostas.
Diário de Campo 2 – D.C. 2
Depois de algu
m tempo, marquei novo encontro com a senhora Rita de Cássia Fiume.
Fui recebido mais uma vez por sua empregada que me convidou a entrar. Na sala entreguei
uma pequena lembrança à dona da casa que, surpresa, agradeceu muito. Ofereceu um café e
mostrou-se be
m mais à vontade comigo, ao contrário da primeira vez em que nos vimos. Com
a textualização da entrevista e a Carta de Cessão em mãos, perguntei-lhe se gostaria de lê-
la.
Ela respondeu: Se é o que falei, não tem nada para olhar! Ato contínuo assinou a Ca
rta de
Cessão. Conversamos um bom tempo sobre a pesquisa
quem havia sido entrevistado,
quem ainda eu iria entrevistar
e, a todo o momento, me dizia que não sabia como a sua
entrevista poderia ajudar. Solicitei, agora, permissão para tirar uma foto,
o que aceitou sem
problemas. Conversamos mais um pouco, tomei um café e nos despedimos ressaltando a
possível necessidade de realizarmos uma segunda entrevista. Mostrou-
se bastante solícita
quanto a isso, dizendo que só era preciso avisá-la com antecedência.
47
Alberti (2004), ao discorrer sobre os processos envolvidos na coleta, registro e
passagem dos depoimentos orais para escritos, defende a necessidade de se manter as
características da linguagem falada no documento de história oral.
O copidesque de uma entrevista é /.../ diverso daquele que geralmente
se faz em textos de outra ordem, como artigos de periódicos, por exemplo.
Não se trata de aprimorar a forma de enunciar as idéias para alcançar uma
linguagem mais elaborada. Ao contrário: porque o documento de história
oral guarda uma especificidade que o distingue de outras fontes, convém
preservar as características da linguagem falada (ALBERTI, 2004, p. 214).
Transcrevemos as entrevistas com todos os “erros” e cios de linguagem e, em
seguida, as textualizamos eliminando os vícios, ajeitando concordâncias e reorganizando
cronologicamente as falas. Isso deu às entrevistas uma maior fluência, embora não seja essa
fluência o objetivo das textualizações, o que reforça nossa oposição às idéias de Alberti, já
que há elementos da oralidade que não têm função na escrita, portanto devem ser suprimidos.
Isso também é ratificado pelos próprios depoentes uma vez que ao apresentar o registro
escrito de seu depoimento da forma como este aconteceu, pode gerar constrangimentos levar,
inclusive, a uma retaliação ao seu uso na pesquisa. Vale lembrar ainda, que essa
reorganização visa apenas dar uma maior fluência ao depoimento respeitando e mantendo seu
“tom vital”.
Por ser inerente a um processo de pesquisa a possibilidade de rever concepções e
caminhos preservando, contudo, aqueles que já se constituíram, mesmo porque sem eles,
essas revisões não seriam possíveis mantivemos textualizações obtidas por procedimento
“diferenciado”, sem pretender homogeneizá-los. Nas três últimas entrevistas que realizamos,
optamos por não re-ordenar o depoimento cronologicamente como fizemos em algumas das
entrevistas anteriores, por acreditar que ao manter a ordem dada pelo depoente, poderíamos
potencializar o frescor do momento da entrevista.
As textualizões nossa versão final foram submetidas aos depoentes para que as
validassem com uma Carta de Cessão
15
. Pois, segundo Joutard (1999), o documento é o que
está escrito e corrigido, portanto, a versão final do depoimento, autorizada pelo depoente
através da Carta de Cessão. Reitera, entretanto, que tudo que é escrito, portanto registrado e
15
Alguns autores defendem a necessidade de registro em cartório dessa Carta de Cessão. Segundo Simsom, em
seminário realizado na UNESP, campus de Rio Claro, em 2004, o essencial é que envolvamos nossos depoentes
com a pesquisa. A opção pela Carta de Cessão registrada ou não em cartório não é fundamental, mas sim o
envolvimento e comprometimento do depoente e, mais ainda, do pesquisador em fazê-lo participar. Sem dúvida,
ao investir nessa relação entrevistador-entrevistado, as formalidades ficam em segundo plano. Não obstante as
colocações de Simsom, temos adotado em nosso grupo de pesquisa, a Carta de Cessão como um recurso para
validar o uso de nossos depoimentos. Assim, a textualização apresentada nossa versão final foi aquela
autorizada pelo depoente.
48
assinado, pode causar certa ressalva julgamos que isso pode ser contornado com o
envolvimento do depoente em relação à pesquisa e ao pesquisador. Esse envolvimento pode
ser conquistado com a manutenção do contato após a assinatura da Carta de Cessão, através
de telefonemas, visitas etc. Além disso, um compromisso ético assumido que deve ser
respeitado.
No que tange ao documento elaborado, controvérsias sobre o que dele deve ser
feito após o depoente conceder a Carta de Cessão. pesquisadores que defendem a idéia de
que cabe à pesquisa apenas constituir o documento. Outros, por sua vez, dizem que além
disso, é necessário estabelecer tendências ou análises à luz das questões que a incitaram.
No interior do Grupo de História Oral e Educação Matemática –GHOEM- convivem
essas duas correntes. Entretanto, não temos dúvida de que essa diferença suscita questões
pertinentes: até que ponto o depoimento oral, depois de transcrito, textualizado, e com a
devida Carta de Cessão, corresponde ao que quis dizer nosso depoente? A constituição de
nossa “versão final” não está imbuída de análises? É possível registrar com precisão o que
o depoente disse, ou quis dizer?
não se pode dizer, como em algumas pesquisas, que ao devolvermos o depoimento
ao entrevistado e obtermos uma autorizão para seu uso que a versão que obtemos é o retrato
daquilo que o depoente quis pintar, expondo todos seus contornos, cores, limites e
imperfeições. E mais, mesmo com todos esses cuidados, já não se pode dizer que trabalhamos
em conjunto com nossos depoentes e que, portanto, a “versão final” (com todas suas etapas de
registro, transcrição e textualizações) é uma produção em co-autoria. A mera cessão de
direitos, assinada pelo colaborador, não nos permitiria assumir isso.
Temos, assim, casos em que efetivamente o depoente refaz, confere, corrige, elabora e
re-elabora seu depoimento junto com o pesquisador, o que configura uma co-autoria. E
outros, em que o depoente apenas lê a textualização, aceitando as re-ordenões, inclusões e
exclusões, feitas pelo pesquisador interferências que configuram uma espécie de marca no
texto, um viés não necessariamente compartilhado pelo depoente, que simplesmente não
impõe restrições, porque acredita que o texto (a textualização) diz o que ele teria dito.
inúmeros detalhes na aplicação desses procedimentos e não como estabelecer
um padrão de ação ou julgamento. Cada caso é especial e, como tal, merece ser analisado em
suas particularidades pelo depoente, pelo pesquisador e pelo grupo de pesquisa. É certo e
inegociável que o depoimento textualizado, tanto quanto possível, deve “respirar”
consonante ao momento em que foi coletado, sendo mantido o tom do depoente e respeitadas
49
todas as suas determinações. Nesse compromisso radica, fundamentalmente, a ética da
pesquisa em História Oral.
Em outro âmbito, aquele da análise do relato “final”, concordamos que um grande
benefício em se trabalhar com depoimentos orais, pois se a vantagem de não violar nem
explorar as vozes dos sujeitos investigados: não inventamos histórias.
A partir dos relatos orais de nossos depoentes, constituiremos documentos que
servirão a outras pesquisas e também a nós mesmos no momento de análise.
Garnica (2004) ao discutir a vinculação entre história oral e pesquisa qualitativa
aponta que um método sempre traz à cena a questão da eficácia, afinal estamos procurando
um mecanismo que traga caminhos para compreensão de determinada “realidade”. Essa
eficácia, afirma o autor, está vinculada à concepção de mundo e aos pressupostos teórico-
filosóficos do pesquisador. No que tange à Educação Matemática, nosso campo de estudo,
poucos são os esforços que vão nessa direção; o que segundo o autor, gera incompreensões
quando do uso de métodos não hegemonicamente aceitos
16
.
Adotaremos aqui a concepção defendida por Garnica (2004):
Segundo minha concepção, o adjetivo “qualitativa” estará adequado
às pesquisas que reconhecem: (a) a transitoriedade de seus resultados; (b) a
impossibilidade de uma hipótese “a priori”, cujo objetivo da pesquisa será
comprovar ou refutar; (c) a não neutralidade do pesquisador que, no
processo interpretativo, vale-se de suas perspectivas e filtros vivenciais
prévios dos quais não consegue se desvencilhar; (d) que a constituição de
suas compreensões dá-se não como resultado, mas numa trajetória em que
essas mesmas compreensões e também os meios de obtê-la podem ser
(re)configuradas; e (e) a impossibilidade de estabelecer regulamentações,
em procedimentos sistemáticos, prévios, estáticos e generalistas. Aceitar
esses pressupostos é reconhecer, em última instância, que mesmo esses
pressupostos podem ser radicalmente reconfigurados à luz do
desenvolvimento das pesquisas (GARNICA, 2004, p. 8).
Essa visão não apenas vai ao encontro das discussões presentes na literatura, como
também – e principalmente – daquela efetivada em nosso caminhar nessa investigação:
[A] História Oral [tomada, por exemplo, como] uma metodologia
qualitativa de pesquisa significativa para a Educação Matemática. Optar
pela História Oral, portanto, é optar por uma concepção de História e
reconhecer os pressupostos que a tornaram possível. É inscrever-se num
16
Muitas vezes discutimos uma teoria a partir de termos e conceitos inapropriados, ou cuja interpretação é ampla
ou restrita demais, o que nos leva a inadequações sérias e até mesmo ao choque entre fundamentações teóricas.
Por conta desses problemas é importante retomar conceitos, aprofundar o significado dos termos utilizados,
contextualizá-los no referencial teórico da investigação para que não haja dúvidas sobre sua pertinência. Mesmo
termos intensamente discutidos devem ser recolocados em cena para que haja avanços ou mesmo substituições.
O método deve ser freqüentemente discutido.
50
paradigma específico, é perceber suas limitações e suas vantagens e, a
partir disso, (re)configurar os modos de agir de maneira a vencer as
resistências e ampliar as vantagens. Portanto, não se trata simplesmente de
optar pela coleta de depoimentos e, muito menos, de colocar como rivais
escrita e oralidade. Trata-se de entender a História Oral na perspectiva de,
face à impossibilidade de constituir ‘A’ história, (re)constituir algumas de
suas várias versões, aos olhos de atores sociais que vivenciaram certos
contextos e situações, considerando como elementos essenciais, nesse
processo, as memórias desses atores via-de-regra negligenciados sem
desprestigiar, no entanto, os dados ‘oficiais’, sem negar a importância de
fontes primárias, de arquivos, de monumentos, dos tantos registros
possíveis. Não havendo uma história ‘verdadeira’, trata-se de procurar pela
verdade das histórias, (re)constituindo-as como versões, analisando como se
impõem os regimes de verdade que cada uma dessas versões cria e faz valer.
Historiadores orais são, portanto, criadores de registros; constróem, com o
auxílio de seus depoentes-colaboradores, documentos que são, na trama
dessas concepções que alinhavei, ‘enunciações em perspectiva’.
Documentos cuja função é preservar a voz do depoente – muitas vezes
alternativa e dissonante que o constitui como sujeito e que nos permitem
(re)traçar um cenário, um entrecruzamento do quem, do onde, do quando e
do porquê (GARNICA, 2004, p. 9).
Assim, além de revitalizarmos termos e expressões intensamente utilizados – tais
como pesquisa qualitativa e memória, por exemplo se faz também necessária a discussão
minuciosa dos procedimentos e das formas de apreensão e registro de nossos dados. Esses
devem ser caracterizados, discutidos e criticados de forma objetiva, operacional e teórica.
No decorrer de nosso processo de pesquisa, a idéia de um diário tomou forma. No qual
pudéssemos discutir questões como as suscitadas acima. Um lócus onde exporíamos pontos
de vistas não permitidos à Academia e deslizes teóricos que pudessem fomentar discussões
sobre o alcance do método escolhido. Definido o quadro a ser pintado, o livro a ser escrito,
poderíamos utilizar, o que denominamos de Diário de Campo, como mais um recurso
metodológico na História Oral e ainda, na Educação Matemática.
O objetivo foi configurar um Diário de Campo como aquele concebido pelas Ciências
Sociais. Entretanto, no decorrer da materialização desse instrumento, percebemos que ele
acabou por se efetivar, de modo geral, como um registro de sessões de orientação, ao invés de
anotações de campo, como havíamos desejado, inicialmente.
O Diário de Campo será tomado aqui para explicitar anotações que julgamos
pertinentes. Anotações que serão apresentadas em forma de tópicos, tópicos de memória,
memórias da pesquisa, como aqueles adotados, por exemplo, por Lévi-Strauss, que em suas
51
pesquisas, primeiro registrava suas observações gerais, em seguida, as organizava em mitos e,
a partir destes, tecia suas considerações.
Diário de Campo
Pesquisas em diferentes áreas – principalmente as vinculadas à área das Ciências
Humanas têm se valido desse modo de registro de dados que posteriormente utilizam na
análise da pesquisa: chamado de Diário de Campo (diário de bordo, diário de anotações,
caderno de notas etc). Pesquisas em Educação Matemática têm recorrido a esse instrumento,
sem, no entanto, problematizar seus fundamentos ou mesmo explicitar sua função e proposta.
Não obstante aos possíveis equívocos presentes nas investigações que o utilizam,
gostaríamos de discutir alguns de seus fundantes e possíveis desdobramentos de sua
utilização. Adotaremos o Diário de Campo como mais um recurso de coleta de dados,
inserido no campo da pesquisa qualitativa, da História Oral e, ainda, em consonância com
nossos pressupostos teórico-metodológicos.
Numa apreensão inicial do termo, recorremos a Claude Lévi-Strauss, em O cru e o
cozido.
M50 TOBA-PILAGA: A ESPOSA DA COBRA
Havia uma vez uma jovem cujo sangue menstrual não parava de c
orrer. “Sua
menstruação não acaba nunca?”, perguntavam-
lhe. “Só quando meu marido está aqui”. Mas
ninguém sabia quem era o marido dela. Além disso, a jovem ria sem parar.
Finalmente descobriram que ela ficava o tempo todo sentada em sua casa, bem em
cima d
e um buraco ocupado pelo marido, o píton. Prepararam uma armadilha para ele e ele
morreu. Quando a moça deu à luz seis pequenas cobras, elas também foram mortas. A moça
se transformou em iguana (METRAUX, 1946 apud LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 152).
M49 MUNDURUCU: A ESPOSA DA COBRA
Uma mulher era amante de uma cobra. Alegando que ia colher frutos da sorveira
(Couma utilis
), ela ia todos os dias à floresta para encontrar a cobra, que morava exatamente
numa dessas árvores. Eles faziam amor até o anoitecer e, quand
o chegava a hora de se
despedirem, a cobra derrubava frutos em quantidade suficiente para encher o cesto da mulher.
Desconfiado, o irmão da mulher, que ficará grávida, foi espioná-
la. Sem ver seu
amante, ouviu-a gritar: “Não me faça rir tanto, Tupasherébé
(nome da cobra)! Você me faz rir
tanto que chego até a mijar!” Finalmente, o irmão viu a cobra e a matou...
Mais tarde, o filho da mulher com a cobra vingaria o pai.
(MURPHY, 1958 apud LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 152).
52
Nosso campo poderia ser tomado como aquele que comporte todo o universo da
pesquisa: momento da coleta de entrevistas; suas transcrições e textualizões; a busca
ininterrupta por fontes – em visita a museus, bibliotecas, escolas, arquivos e sessões de
orientação (presenciais ou não); grupos de estudos etc. O Diário foi o registro dessas
atividades, assim como uma viagem registrada no Diário de Bordo. Assim, parte significativa
de nosso Diário de Campo constituiu-se na própria versão final do trabalho, compondo e
ajudando a elaborar o corpo da tese.
Numa busca atenta e curiosa quanto ao surgimento e aplicação da expressão seja ele
“diário de campo”, “diário de bordo”, “diário de anotações”, “caderno de registro” entre
tantos outros nos deparamos com indícios de registros sobre antigas civilizões muitas
extintas ou pelo tempo, ou pela natureza ou mesmo pelo homem. Esses registros, muitas
vezes sem autoria, nos chegaram pelas expedições realizadas por arqueólogos, historiadores
etc. Mais recentemente, poderíamos atribuir esses registros, em grande parte ricos em
detalhes, aos chamados “viajantes”. Expedicionários que por poder, lazer ou fortuna
aventuravam-se, por longos anos, em busca de terras desconhecidas. Esses livros de anotações
com narrativas diárias de experiências pessoais nos auxiliaram na preservação da história
de animais, paisagens, crenças e, principalmente, da própria história do homem.
Sistematizados ao longo dos séculos, esses registros viriam a ser conhecidos como diários, às
vezes de “bordo”, às vezes de “campo”, designados de acordo com sua aplicação.
Marshall Sahlins, em Esperando Foucault, ainda
17
, nos exemplos de como
podemos nos apropriar das “observações em campo”:
17
Sahlins, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
CONHECE-TE A TI MESMO
Os antropólogos vivem geralmente nas sociedade
s mais capitalistas e mais
mercantilizadas do mundo. Como os demais cientistas humanos, incluindo os cult stud, nos
dizem que o capitalismo e a mercantilização são forças-e-
discursos hegemônicos que
escravizam as pessoas a ontologias ou regimes de verdade
particulares (notadamente àqueles
que dissolvem-
nas, junto com os objetivos de sua existência, em valores de troca). Mas os
antropólogos vivendo sob o pior desses regimes, de fato experimentam-se como não-
livres
culturalmente? E como poderiam sequer conceb
er, para não dizer experimentar, diferenças
culturais, e a alteridade dos outros? Supõe-
se que a hegemonia determine não apenas o que se
pensa, mas também o que não se pode pensar. Isso faz da antropologia uma contradição
performativa da mais recente teoria cultural.
Existe uma curiosa espécie de pássaro acadêmico conhecida por voar em círculos
hermenêuticos cada vez menores, até que... (SAHLINS, 2004, p. 99).
53
Segundo a literatura, foram as Ciências Sociais que primeiro se apropriaram desse
conceito, mais especificamente a Antropologia, como um dos instrumentos de apreensão da
realidade por eles estudada. Na Antropologia, a expressão “Diário de Campo” tem sua origem
segundo alguns autores (Cf. DURHAM, 1986; HASSEN, 2003; entre outros) nos
trabalhos desenvolvidos por Bronislaw Malinowski (Polonês, nascido em 1884 na Cracóvia),
a partir dos anos 20.
Com Malinowski surgia uma nova proposta de interpretação etnográfica ao encontro
às correntes existentes. A importância de sua obra está na recriação de outras culturas com
base numa grande gama de informações, posteriormente confrontadas sob diferentes
perspectivas. Ele não se contentava com um único informante, com um único foco de
informação, pois não privilegiava nenhum deles; e as informações eram verificadas por
observações diretas do comportamento, para que fosse atestada sua coerência.
Ressalta-se a importância desse registro para as análises, bem como para o próprio
processo de inclusão de novas fontes.
Na presente investigação, registramos as observações de momentos como por
exemplo, durante o processo de aquisição das entrevistas, quando solicitávamos aos nossos
depoentes livros, documentos e fotos antigas e, no seu final, permissão para tirar um retrato. A
idéia de utilizarmos esse material ficou latente até que pudemos focar a questão, como pode
ser verificado com o registro abaixo:
Assim, mesmo não materializando nosso “Diário de Campo” nos moldes daquele
utilizado nas Ciências Sociais, nos valeremos das anotações feitas ao longo de nosso processo
de pesquisa com vistas a explicitar/exemplificar/esclarecer nossas opções ao longo da
pesquisa.
Diário de Campo 3 – D.C. 3
/.../ a partir das fotos que recolhi durante as entrevistas e mesmo em visitas ao Acervo
Histórico da Fundação, surgiu, num primeiro momento, à idéia de narrar pequenas histórias
nos moldes de um filme mudo, por exemplo – sobre os meus depoentes
. Num segundo
momento, decidimos constituir arquivos de fotos e/ou paisagens, isto é, organizar arquivos
iconográficos das cidades de nossa região de inquérito. Essa tentativa se mostrou inviável por
implicar na necessidade de leituras específicas sobre Hi
stória da Arte, bem como de seus
métodos de registro e apreensão de arquivos. Mesmo com autores como Ginzburg e Burke nos
sustentando quanto ao uso de imagens, elaborar um arquivo iconográfico com a
fundamentação teórica necessária a uma Tese, não seria po
ssível nesse momento. Optamos,
assim, por elaborar um pequeno arquivo de fotos, que figurará no meio da Tese, com o
objetivo de ilustrar situações e locais citados por nossos depoentes.
54
A
B
USCA
R
ÍGIDA
55
/.../ pois bem, escuta, imagina que antes de entrar na vida, antes que tua alma
tenha sido enviada a este mundo, tu tinhas a possibilidade de ver o que ia se
passar [não se coloca a possibilidade de escolha e, sim, o direito de olhar]
/.../ Pois bem, primeiramente, diz ele, no momento de entrar na vida se te
fosse dado ver desse modo, tu verias “a cidade comum dos deuses e dos
homens”, tu verias os astros, sua revolução regular, a lua, os planetas cujo
movimento comanda a fortuna dos homens. Admirarias “as nuvens
cumuladas”, “o risco oblíquo do raio e o trovão do céu”. Depois teus olhos
baixariam para a terra” e encontrariam ainda muitas outras coisas e
maravilhas, e então poderias ver as planícies, as montanhas e as cidades, os
monstros marinhos, o oceano, os navios que o atravessam e sulcam. “Tu não
verás nada que não tenha tentado a audácia humana, ao mesmo tempo
testemunha e laboriosa associada desses grandes esforços”. Ao mesmo
tempo, porém verias, com esta ampla visão do alto (se te fosse dada no
momento de seu nascimento), que aí também, nesse mundo, haveria “mil
flagelos do corpo e da alma, guerras e pilhagens, envenenamentos e
naufrágios, intempéries do ar e doenças, perda prematura dos próximos e a
morte, doce talvez, ou talvez cheia de dores e torturas. Delibera contigo
mesmo e pesa bem o que queres; uma vez tendo entrado nesta vida de
maravilhas, é por ela que deverás sair. Cabe a ti aceitá-la com suas
condições” (FOUCAULT, 2004, p. 345-346).
56
Escolhemos a “vida de maravilhas”, e por ela devemos sair... Mas essa “opção” não
inviabiliza outras “opções”, não inviabiliza, ou melhor, não determina os caminhos que
devemos seguir, que devemos trilhar.
Foucault em seus estudos sobre a história da loucura, sobre as prisões, nos estudos que
podem ser alocados em sua fase genealógica, parecia nos indicar um caminho, parecia nos
indicar que não havia saída para o sujeito, pois este era condenado por seus prazeres,
condenado a sofrer para conseguir a liberdade de seu corpo... por isso “sujeito”, “assujeitado”.
Alguns autores, como Fredèric Gros
18
, afirmam que foi a partir de 1980, no Governo dos
vivos, que Foucault apresenta uma inflexão em sua obra... estaria a mudar seus caminhos?
Ao focar os atos de verdade entendidos como os procedimentos regrados que
vinculam um sujeito a uma verdade, atos ritualizados em cujo decurso um certo sujeito fixa
sua relação com uma certa verdade (FOUCAULT
19
, 2004, p. 616) discute a obrigação dada
ao sujeito de dizer a verdade, verdade sobre si mesmo, inclusive dos maus pensamentos, para
remissão de suas faltas. Essa obrigação estaria atrelada a um outro e à morte. Essa a discussão
do Governo dos Vivos.
Parece então, que realmente não saída. Estamos fadados a obedecer e a se
assujeitar, seja a uma instituição, a um grupo, seja a um outro – procurar a verdade íntima será
sempre continuar a obedecer, e continuar a obedecer a um outro, assim sou sujeito no
ocidente moderno. Poderia dizer-nos então, que nossas identidades sexuais poderiam ser
formatadas por um poder dominante, já que era sobre o poder que ele nos falava.
Entretanto, como nossos caminhos não são determinados a priori, ele nos diz que o
sexo não é unicamente o revelador do poder, mas do sujeito em sua relação com a verdade. E
essa relação do sujeito com a verdade é cristalizada pela escrita, pela medicina, pelo sexo etc.
E percebe, assim, que não é o poder o tema de suas pesquisas, mas o sujeito. Não abandona o
político para se dedicar à ética, mas complica o estudo das governamentabilidades com a
exploração do que chamou de cuidado de si. Reitera-se, contudo, que em caso algum a ética
ou o sujeito são propostos para serem pensados como o outro do político e do poder.
18
Estabeleceu a edição desse ano do curso, é maître de conferénces na Universidade de Paris-XII, Departamento
de Filosofia. Autor de Michel Foucault (Paris, PUF, 1996), Foucault et la folie (Paris, PUF, 1997) e Création et
Folie. Une histoire du jugement psychiatrique (Paris, PUF, 1997). (Referência retirada de FOUCAULT, 2004,
p. 613). Reportaremos-nos a suas colocações, na presente investigação, feitas no livro a Hermenêutica do
Sujeito.
19
Em 1961 Michel Foucault publica História da Loucura, apoiado e saudado pelos historiadores que
compunham o movimento da História Nova, como uma contribuição importante para a História das
Mentalidades. A partir de 12 de abril de 1970, no Collège de France, ocupou a cadeira de História dos Sistemas
de Pensamento, criada especialmente para ele, por sugestão de Jean Hyppolite.
57
/.../ o sujeito se autoconstitui ajudando-se com técnicas de si, no lugar de ser
constituído por técnicas de dominação (Poder) ou técnicas discursivas
(Saber). Estas técnicas de si são assim definidas: procedimentos que sem
dúvida existem em toda a civilização, propostos ou prescritos aos indivíduos
para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de
determinados fins, e isto graças a relações de domínio de si sobre si ou de
conhecimento de si por si (FOUCAULT, 2004, p. 620).
Foucault dedica seu curso no Collège de France, ministrado entre 1980 e 1981, ao
cuidado de si, focando seu estudo sobre a experiência dos prazeres, no qual os regimes
médicos estabeleciam medidas para os atos sexuais, a confiscação do gozo legítimo
unicamente pelo casal casado, a constituição do amor heterossexual como único lugar
possível do consentimento recíproco e da verdade calma do prazer
20
. O interessante é que esse
curso tinha como referência os dois primeiros séculos de nossa era (séculos I e II), e não mais
a modernidade do ocidente (séculos XVIII e XIX), e com isso uma nova ótica se apresenta em
sua obra.
Segundo Gròs, essa mudança pode ser entendida por seu itinerário intelectual, isto é,
suas publicações considerando que seu alcance seja a França e alguns outros países da
Europa. Deste ponto de vista, ele fica sem publicar oito anos, de 1976 a 1984. Em 1976
publica o primeiro volume da História da Sexualidade A vontade de saber livro suporte
dos livros seguintes, e volta a publicar em 1984, com os outros dois volumes da História da
Sexualidade – O cuidado de si e o Uso dos prazeres
21
.
É a partir do curso de 1982 que Foucault nos apresenta uma saída para essa “sujeição
do sujeito” realmente não saída: o sujeito sempre será assujeitado. Mas é preciso que se
sujeite apenas a si mesmo, é preciso aprender a se sujeitar apenas a si, ser sujeito de si e não
de um outro. E o que se propõe é uma leitura ética em termos de práticas de si e não mais uma
visão política em termos de práticas de poder não mais uma genealogia dos sistemas, mas
sim, uma problematização do sujeito.
O que parecia impensado na obra anterior emerge como pensamento novo. O que se
busca é a hermenêutica do sujeito.
/.../ mas afinal, vós, espartanos, sois um tanto estranhos; tendes muitas terras
e vossos territórios são imensos ou, pelo menos, muito importantes; por que
não os cultivais vós mesmos, por que os confiais a hilotas? E [o espartano]
Alexândrides respondeu: simplesmente para podermos nos ocupar com nós
mesmos (FOUCAULT, 2004, p. 42).
20
Esse curso de 1980-1981 seria publicado no terceiro volume da História da Sexualidade, em 1984.
21
Esse “silêncio” de publicações teria sido em decorrência de divergências com a editora que detinha os direitos
sobre suas obras. Entretanto, ele publicou, durante esse período, em locais onde seu contrato de exclusividade
permitia, como a América Latina.
58
Ocupar-se de si é o objetivo de Foucault na Hermenêutica do Sujeito e o que
sustentará essa hermenêutica é o cuidado de si, discutido a partir das relações entre o sujeito e
a verdade a verdade do sujeito na Antiguidade, e não mais no ocidente dos séculos XVIII
e XIX.
É o cuidado de si que “libertará” o sujeito de um outro e o conduzirá ao caminho da
“autonomia”, ou seja, ao caminho do assujeitamento a si mesmo, somente. É a subjetivação a
si próprio.
Segundo Foucault, a epiméleia heautoû, ou o cuidado de si, não foi discutida como
merecia na Antiguidade. Ele renova a discussão do termo atrelando-o ao conceito de gnôthi
seautón, ou conhece-te a ti mesmo, para sustentar suas argumentações sobre a relação entre
sujeito e verdade (ressaltamos, contudo, que ambos os termos estão atrelados a diferentes
sentidos, de acordo com a época e/ou grupos em que foram apresentados).
O gnôthi seautón é um dos preceitos délficos – esses preceitos endereçavam-se a quem
vinha consultar os deuses e deviam ser lidos como regras em relação ao próprio ato de
consulta: nada em demasia (não coloques questões demais), não faças promessas que não
podes cumprir, e examina bem a ti mesmo a fim de saber o que realmente precisas. São
preceitos baseados na ética grega – da idade clássica – mais precisamente a ateniense,
portanto, ligados à filosofia de Sócrates. E é Sócrates, em seus diálogos, que será usado por
Foucault nas discussões do cuidado de si, do epiméleia heautoû.
Oráculo de Delfos
Zeus resolveu um dia encontrar o centro do mundo. Para isso largou duas águias, uma
de oeste, outra do leste. O ponto onde elas se encontraram, diz a mitologia helênica, foi em
Delfos, a 178 quilômetros de Atenas este foi o local onde os g
regos construíram o templo de
Apolo, ou Oráculo de Delfos.
59
Foucault nos diz que Sócrates nunca havia se interessado por Alcibíades, até que certo
dia, ao indagá-lo sobre a possibilidade de viver sem nada mais obter além do que já possuía,
surpreende-se com a resposta. Alcibíades lhe disse que preferia morrer a viver assim. Afinal,
o que mais desejaria, pensou Sócrates.
A partir disso, após inquirí-lo algumas vezes, Sócrates percebe que o desejo de
Alcibíades é governar os outros, governar a cidade. Percebe também que para ele, para bem
governar é preciso fazer valer a concórdia entre os seus cidadãos. Sem esquecer, ainda, que de
saída, terá de lidar com rivais externos com os quais terá que conviver e se relacionar e,
mais, com rivais internos cidadãos que também desejam governar a cidade. Assim, cabe se
questionar sobre o que lhe dará condições de se sobressair a esses rivais.
Diante da constatação de que, apesar de seu status, Alcibíades não possui nem mais
riqueza, nem mais educação que seus rivais, o que poderia ter é um saber (uma tékne) que o
diferenciasse dos demais, mas também não possui esse saber. Alcibíades se desespera. E
Sócrates, ao consolá-lo, diz que ainda não é tarde para ter cuidados consigo, pior seria se
assim o fizesse aos cinqüenta anos. Ainda há tempo para ocupar-se de si.
Mais em que consiste, em Alcibíades, esse cuidado de si mesmo?
Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de
encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com
o outro. A epiméleia heautoû é uma atitude para consigo, para com os
outros, para com o mundo.
Apologia de Sócrates e o Banquete
O Banquete de Platão, de Anselm Feuerbach Sócrates do leito de Morte, de Jacques Louis David
Não se tem registro de nenhum escrito de Sócrates. Tudo o que dele sabemos foi registrado por outros, seus
discípulos ou não. Platão foi, sem dúvida, o principal divulgador de suas idéias, foi ele que registrou os principais
Diálogos a que temos acesso.
Foucault se reporta, aqui, em especial ao Primeiro e Segundo Alcibíades – no qual discute o cuidado de si –
,
ao Banquete – no qual se debate o amor – e a Apologia de Sócrates
que retrata sua defesa, perante o júri ateniense,
da acusação de que estaria a corromper os jovens e desrespeitar os deuses.
60
Em segundo lugar, a epiméleia heautoû é também uma certa forma de
atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar, que
se conduza do exterior, para o “interior”; /.../ é preciso converter o olhar,
do exterior, dos outros, do mundo, etc. para “si mesmo”. O cuidado de si
implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa
no pensamento. /.../
Em terceiro lugar, a noção de epiméleia não designa simplesmente
essa atitude geral ou está forma de atenção voltada para si. Também
designa sempre algumas ações, ações que são exercícios de si para consigo,
ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos
transformamos e nos transfiguramos (FOUCAULT, 2004, p. 14-15).
Foucault não pretende refazer toda a história da noção do termo. Pretende reforçar três
momentos que julga pertinente:
[Primeiro:] o momento socrático-platônico, de surgimento da
epiméleia heautoû na reflexão filosófica; em segundo lugar, o período da
idade de ouro da cultura de si, da cultura de si mesmo, do cuidado de si
mesmo, que pode ser situado nos dois primeiros séculos de nossa era; e
depois, [terceiro] a passagem aos séculos IV-V, passagem, genericamente, da
ascese filosófica pagã para o ascetismo cristão (FOUCAULT, 2004, p 41).
No primeiro momento, o socrático-platônico, Foucault reforça que o princípio de
ocupar-se consigo é uma prática muito mais antiga na cultura grega, do que os textos
socráticos, do que os diálogos descritos por Platão ou Xenofante. O que pode ser visto, por
exemplo, em Plutarco quando retoma as palavras de Alexândrides, um espartano através
da seguinte sentença lacedemônia:
/.../ mas afinal, vós, espartanos, sois um tanto estranhos; tendes muitas terras
e vossos territórios são imensos ou, pelo menos, muito importantes; por que
não os cultivais vós mesmos, por que os confiais a hilotas? E Alexândrides
respondeu: simplesmente para podermos nos ocupar com nós mesmos
(FOUCAULT, 2004, p 42).
Quando o enunciado do espartano afirmava que não se tratava, de modo algum, de
filosofia – inclusive porque a filosofia, o intelectualismo, não eram valores muito positivos na
época. Tratava-se antes de explicitar um privilégio, sobretudo um privilégio do cidadão
espartano com relação às posses. Privilégio estatutário que poderia vir de sua riqueza, de seu
status na sociedade sobrinho de Péricles, filho do Imperador, etc. –, de sua posição política.
Privilégio que lhes confere, em princípio, certa distância (diriam alguns, infinita) em relação
ao ocupar-se consigo, ao cuidar de si.
Ao longo da história do ocupar-se consigo mesmo é possível perceber, e mesmo
inferir, sua ligação com a filosofia. Entretanto, como vimos, não é, de modo algum, um
princípio filosófico. O ocupar-se consigo mesmo sempre apareceligado a um privilégio
61
político, econômico e social, portanto, ao exercício do poder. Sócrates retoma a questão da
epiméleia heautoû, portanto, a partir de uma tradição, a partir do modo como tradicionalmente
foi aplicado, concebido na sociedade grega do período clássico.
Logo no início do diálogo com Alcibíades, Sócrates percebe que nunca o havia
abordado. E só o faz porque percebe que Alcibíades tem algo em mente. Essa percepção se
no momento em que se coloca a antiga questão na educação grega, e a resposta de Alcibíades,
ambas descritas abaixo:
Supondo que tivesse que escolher entre morrer hoje ou continuar a
levar uma vida sem nenhum brilho, o que preferirias? Preferiria morrer
hoje a levar uma vida que não me trouxesse mais do que tenho
(FOUCAULT, 2004, p. 43).
É isso que faz Sócrates o abordar. O que tem e o que mais deseja, Alcibíades? Jovem,
atlético, rico, boas relações, tutor influente, bonito. Ele quer transformar o privilégio
estatutário em ação política, quer governar os outros. Sócrates começa a se interessar por
Alcibíades, e mais, passa a dirigir-lhe a palavra, afinal percebe que ele quer muito mais do
que lhe dá sua condição estatutária. Na medida em que esta intenção vai tomando corpo,
Sócrates vai ter com Alcibíades. Tem a tarefa de transformar o privilégio de status, a primazia
estatutária, em governo dos outros fica claro, no texto, que é neste momento que nasce a
questão do cuidado de si
22
.
E o “governar os outros”, “governar a cidade”, como dissemos, “é fazer com que
reine a concórdia entre seus cidadãos. Sendo necessário, contudo, uma tékne que o diferencie
de seus rivais
23
, para que assim possa vencê-los e governar a cidade”, que não possui nem
mais riqueza, nem mais educação que eles.
No que tange à educação e seus rivais externos, do lado dos espartanos há uma
educação que assegura as boas maneiras, a grandeza da alma, a coragem, a resistência que dá
aos jovens o gosto pelos exercícios, pelas vitórias, pelas honras, etc. E do lado dos persas,
desde tenra idade o indivíduo é cercado por quatro professores: um que é o professor de
sabedoria (sophía), outro que é professor de justiça (dikaiosýne), o terceiro que é mestre de
temperança (sophrosýne), e o quarto, mestre de coragem (andreía). Não saída para
Alcibíades, deve refletir sobre si mesmo, deve ocupar-se de si, deve conhecer a si mesmo.
22
Um outro exemplo é o relato de Xenofante sobre Sócrates, quando esse inquiriu o jovem Cármides. Cármides
é um pouco mais velho do que Alcibíades e está no limiar da política, contudo, é tímido. Sócrates diz: “mas
afinal é preciso dar um pouco de atenção a ti mesmo; aplica teu espírito sobre ti, toma consciência das
qualidades que possuis, e poderás assim participar da vida política(FOUCAULT, 2004, p. 44). Mesmo não
usando o termo epiméleia heautoû, a situação é a mesma, porém, invertida.
23
É importante lembrar que Alcibíades estava inserido em um contexto de disputas e guerras constantes com
outras cidades e povos.
62
Surge, assim, pela primeira vez em Alcibíades, a exigência do cuidado de si – ligado à
pretensão política, ao déficit pedagógico, à sua idade crítica e, ainda, à ausência de um saber
político que fosse superior ao de seus oponentes.
Sócrates incentiva Alcibíades a ocupar-se consigo mesmo referência explícita ao
princípio délfico – mas não como uma prática que deva seguir, ao menos não nesse momento,
mas como um conselho de prudência: reflita sobre suas condições perante seus rivais.
A única coisa que poderia fazer com que Alcibíades se colocasse diante de seus rivais
sem demasiada inferioridade, era a presença de um saber, uma tékhne. E Sócrates lhe
demonstra a falta de uma tékhne. Demonstração feita por meio de um procedimento
absolutamente clássico: uma longa seqüência de interrogações na qual se chega que “a cidade
é bem governada quando reina a concórdia entre os seus cidadãos”. Mas Sócrates continua:
“o que é esta concórdia, em que consiste ela?”. A isso Alcibíades não pode responder e, com
isso, se desespera. Mas Sócrates lhe diz que ainda está no momento de se aperceber de sua
ignorância.
Foucault detém-se um pouco sobre esse primeiro momento de aparição do cuidado de
si no discurso filosófico, discutindo suas ligações e relações. Primeiro o vínculo entre o
cuidado de si e o poder, afinal, como ocupar-se consigo mesmo, sem poder fazê-lo, sem ter o
direito, sem ter poder para isso? O privilégio estatutário de Alcibíades lhe da condição de
ocupar-se consigo mesmo. “Cuidado de si” que o levaria a uma ação política, que o levaria ao
governo efetivo da cidade o governo efetivo dos outros, passa pelo “cuidado de si” mesmo.
Com os espartanos, ao contrário, o privilégio estatutário de poder implicava, necessariamente,
o ocupar-se consigo mesmo e não simplesmente a possibilidade de fazê-lo.
Como vemos, “ocupar-se consigo” está porém implicado na vontade
do indivíduo de exercer o poder político sobre os outros e dela decorre. Não se
pode governar os outros, não se pode bem governar os outros, não se pode
transformar os próprios privilégios em ação política sobre os outros, em ação
racional, se não se está ocupado consigo mesmo. Entre privilégio e ação
política, este é, portanto, o ponto de emergência da noção de cuidado de si
(FOUCAULT, 2004, p. 48).
Segundo, o vínculo do cuidado de si com a insuficiência da educação de Alcibíades,
que nos leva à insuficiência da educação ateniense, sob dois aspectos: o pedagógico (a
educação, tarefa séria e determinante, jamais deveria ser confiada a um escravo), e o da crítica
do amor (o assédio foi apenas por seu corpo e não houve ninguém que quisesse se ocupar
dele, fato provado quando o deixaram depois de perder sua juventude).
63
Terceiro, sua idade crítica; se fosse mais velho seria tarde demais para reparar os fatos.
É necessário estar atento à possíveis interpretações e essa, gerou alguma polêmica. Sócrates,
em sua Apologia, diz que lhe foi confiada por Deus a tarefa de cuidar do cuidado de si de seus
concidadãos e deveria, portanto, interpelá-los em qualquer idade, sobre essa prática. Em
Alcibíades, ela está vinculada a uma formação e, portanto, à idade mais adequada para isso
24
.
Quarto, o vínculo com a política, a ignorância sobre sua ignorância. Vemos que a
necessidade de ocupar-se consigo não acontece no momento em que Alcibíades formula seus
projetos políticos, mas quando percebe que ignora o próprio objeto com que tem de ocupar-se.
Ele sabe que quer ocupar-se com a cidade. Tem segurança para fazê-lo por causa de
seu ‘status’. Porém não sabe como ocupar-se, em que consisti o objetivo e o fim do que
de ser sua atividade política, a saber: o bem-estar, a concórdia dos cidadãos entre si. Não sabe
qual é o objeto do bom governo e é por isto que deve ocupar-se consigo mesmo
(FOUCAULT, 2004, p. 49-50).
Essa necessidade nos leva a duas questões: “qual é, pois, o eu de que é preciso cuidar
quando se diz que é preciso cuidar de si?” (Foucault, 2004, p. 50). A questão está em saber
quem é esse “eu” que devo cuidar? A segunda questão está em saber
/.../ como o cuidado de si, quando o desenvolvemos como convém, quando o
levamos a sério, pode nos conduzir, e conduzir Alcibíades ao que ele quer, isto
é, a conhecer a ‘tékhne’ de que precisa para governar os outros, a arte que lhe
permitirá bem governar? (FOUCAULT, 2004, p. 50).
É necessário ter acesso a um saber, uma tékhne, que lhe dará acesso ao bem governar.
O que está em jogo no diálogo é, pois: qual o eu de que devo ocupar-
me a fim de poder, como convém, ocupar-me com os outros a quem devo
governar? É este círculo [que vai] do eu como objeto de cuidado ao saber do
governo como governo dos outros que, creio, está no cerne deste final de
diálogo. Esta a questão que, afinal, é portadora da primeira emergência na
filosofia antiga da questão do “cuidar de si mesmo”
(FOUCAULT, 2004, p. 51).
Alcibíades se desespera quando Sócrates demonstra que ele não sabia o que é a
concórdia e tampouco, sabia que ignorava o que é bem governar. Sócrates, contudo, o
conforta: ainda é jovem, não tem cinqüenta anos, ainda é tempo de ocupar-se consigo. Não
interessava dizer que ainda havia tempo para aprender, para prevalecer sobre seus adversários,
mas apenas, que devia ocupar-se consigo. A proximidade existente entre o ocupar-se consigo
24
Veremos, mais adiante, com a filosofia epicurista e estóica, que o cuidado de si se tornará permanente na vida
dos indivíduos. Mas nesta forma, socrático-platônica, o cuidado de si é antes uma atividade de formação com
data para se concretizar.
64
e o apreender é o que precipitará, segundo Foucault, os problemas entre a filosofia e a
espiritualidade no mundo antigo.
Parece que houve um momento em que o vínculo foi rompido entre o acesso à verdade
e à transformação do sujeito e do ser do sujeito por ele mesmo. Não interessa a Foucault o
fato em si, mas situar que esse rompimento não foi brusco, repentino. E não se deve buscar
esse marco na ciência e sim, na teologia. Ela criou” o sujeito cognoscente e, a partir daí,
dissociou o pensamento filosófico das condições de espiritualidade que o havia acompanhado
até então. A formulação mais geral disso era o princípio do epiméleia heautoû. Não havia
oposição entre ciência e espiritualidade, mas sim, entre espiritualidade e teologia.
Em todas essas filosofias, uma certa estrutura de espiritualidade que tenta vincular
o conhecimento, o ato de conhecimento, as condições desse ato de conhecimento e seus
efeitos, a uma transformação do ser mesmo do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 38).
Houve uma tentativa, durante vários séculos, de se repensar as estruturas da
espiritualidade no interior de uma filosofia a filosofia teve que reconhecer e retomar a
espiritualidade, “o cuidado de si”.
É interessante reforçar que mesmo a prática do cuidar de si práticas ou tecnologias
do eu – ser muito mais antiga do que os textos de Platão, por exemplo, é em Alcibíades que as
formulações teóricas são postas, discutidas. A noção do que é o “si mesmo”, de que se deve
ocupar, e em que consiste esse “ocupar-se” são formulações teóricas discutidas nesse texto. É
o nascimento teórico da epiméleia heautoû.
Essas práticas são evocadas esquematicamente por Foucault e são elas:
1. Ritos de purificação: o se tem acesso à verdade à verdade dos deuses
sem a devida purificação;
2. Técnicas de concentração da alma: por ser móvel, fazer com que permanece
una em si mesma, não se dispersar;
3. Técnicas de retiro: anakhóresis (anacorese) maneira de ausentar-se, desligar,
“meditar”. Ausência visível;
4. Práticas de resistência: ligada à concentração da alma e a este retiro em si
mesmo — resistir às tentações e suportar as provações.
25
25
Foucault apresenta dois exemplos, no pitagorismo, dessa tecnologia de eu: preparação purificadora para o
sonho, incitada pela sica, aromas, exame de consciência sobre o dia etc.; 2º – técnicas de provação, como, por
exemplo, realizar exaustivos exercícios físicos e ao se sentar diante de uma mesa farta, alimentar-se frugalmente
e oferecer o restante aos servos ambas reforçam as práticas do cuidado de si que estavam presentes na
cultura antiga, portanto, antes de Alcibíades. em Platão, essa prática do cuidado de si pode ser reduzida a
formas de conhecimento e, também, do próprio conhecimento de si aparecem, claramente, em seus textos.
Digamos que a discussão dessas técnicas do eu no interior do pensamento platônico foi apenas o primeiro passo
65
Ainda em Alcibíades, discute-se o que vem a ser o “cuidado” no cuidado de si e quem
deve ser esse “eu” que se quer cuidar no cuidado de si. A partir de uma série de indagações
chega-se à conclusão de que esse “eu” que se deve cuidar é a alma. Chega-se, então, à
definição de heautoû como alma.
De uma maneira muito significativa, a análise que nos irá conduzir da
questão – “o que é meu eu?” – à resposta “sou minha alma” é um
movimento que começa com um pequeno conjunto de questões que eu
resumiria, se quisermos, do modo como passo a expor. Quando se diz –
“Sócrates fala a Alcibíades”, o que isto quer dizer? A resposta é dada: quer
dizer que Sócrates se serve da linguagem. Este simples exemplo é ao mesmo
tempo muito significativo. A questão colocada é a questão do sujeito. /.../
Trata-se, /.../ de fazer passar, para uma ação falada, o fio de uma distinção
que permitirá isolar, distinguir, o sujeito da ão e o conjunto de elementos
(palavras, ruídos, etc.) que constituem essa própria ação e permitem efetuá-la.
Trata-se, em suma, se quisermos, de fazer aparecer o sujeito na sua
irredutibilidade (FOUCAULT, 2004, p. 69).
O sapateiro usa o martelo, o músico o violão, Sócrates a linguagem. Há uma separação
do sujeito dos instrumentos que ele utiliza, por exemplo, a linguagem (para falar), os olhos
(para ver), os pés (para andar)... o corpo, para abrigar a alma.
/…/ qual é o único elemento que, efetivamente, se serve do corpo, das partes
do corpo, dos órgãos do corpo e, por conseqüência, dos instrumentos e,
finalmente, se servirá da linguagem? Pois bem, é e pode ser a
alma. Portanto, o sujeito de todas estas ações corporais, instrumentais,
e da linguagem é a alma: a alma enquanto se serve da
linguagem, dos instrumentos e do corpo. Chegamos, pois à alma
(FOUCAULT, 2004, p. 69-70).
Cabe lembra que essa não é a “alma” vista como prisioneira do corpo, a qual se deve
conduzir em boa direção, etc. É, sim, aquela que é sujeito da ação, aquela que se serve do
corpo, dos órgãos do corpo, dos sentidos do corpo (tato, olfato, paladar...), da linguagem...
/.../ ocupar-se consigo mesmo será ocupar-se consigo enquanto se é sujeito
de”, em certas situações, tais como sujeito de ação instrumental, sujeito de
relações com o outro, sujeito de comportamentos e de atitudes em geral,
sujeito também da relação consigo mesmo. É sendo sujeito, este sujeito que se
serve, que tem essa atitude, este tipo de relações, que se deve estar atento a si
mesmo. Trata-se, pois, de ocupar-se consigo mesmo enquanto se é sujeito de
khrêsis (com toda a polissemia da palavra: sujeito de ações, de
comportamentos, de relações, de atitudes). A alma como sujeito e de modo
algum como substância, é nisto que se desemboca, a meu ver, o
desenvolvimento do Alcibíades sobre a pergunta: “O que é isso mesmo, que
sentido se deve dar a si mesmo quando se diz que é preciso ocupar-se
consigo?” (FOUCAULT, 2004, p. 71-72, grifo do autor).
de um conjunto de deslocamentos, de reativações, de organização destas técnicas naquilo que viria a ser a grande
cultura de si na época helenística e romana. (FOUCAULT, 2004, p. 63)
66
A alma, enquanto sujeito, distingui-se de outros “tipos de atividades”. O médico
enfermo, quando aplica a si mesmo sua tékne está a cuidar do corpo e não de sua alma – deve
se ocupar com sua alma enquanto sujeito: está aqui, a primeira distinção. Um homem de
família, ao ocupar-se com a “economia” do lar, do escritório, de seus entes, não se ocupa
consigo, mas com seus bens, ou seja, não se ocupa de si. Já os enamorados de Alcibíades
também não se ocupavam dele, mas apenas, de seu corpo. Sócrates, ao abordar Alcibíades,
quando estepassou da idade de ser “cortejado”, demonstra que não está interessado em seu
corpo, mas em conduzir sua alma, cuidar da maneira como ele cuida de si mesmo.
Creio que temos aí (aquilo que, parece-me, devemos reter) o que
define a posição do mestre na epiméleia heautoû (o cuidado de si). Pois o
cuidado de si é, com efeito, algo que, como veremos, tem sempre necessidade
de passar pela relação de um outro que é o mestre. Não se pode cuidar de si
sem passar pelo mestre, não cuidado de si sem a presença de um mestre.
Porém, o que define a posição do mestre é que ele cuida do cuidado que
aquele que ele guia pode ter de si mesmo. /.../ O mestre é aquele que cuida do
cuidado que o sujeito tem de si mesmo e que, no amor que tem pelo seu
discípulo, encontra a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem
de si próprio. Amando o rapaz de forma desinteressada, ele é assim o
princípio e o modelo do cuidado que o rapaz deve ter de si enquanto sujeito
(FOUCAULT, 2004, p. 73-74, grifo do autor).
O outro é o mediador indispensável para o alcance da prática de si.
O outro ou outrem é indispensável na prática de si a fim de que a
forma que define esprática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e
seja por ele efetivamente preenchida. Para que a prática de si alcance o eu
por ela visado, o outro é indispensável. Está é a fórmula geral
(FOUCAULT, 2004, p. 158).
Segundo Foucault, podemos estabelecer três tipos de relação com o outro, três tipos de
maestria (tomadas como indispensáveis à formação do jovem):
A maestria do exemplo: o outro é visto como modelo de comportamento e isto
pode ser transmitido pela tradição, pela presença dos ancestrais e pelos
enamorados – que deveriam ser um exemplo de comportamento.
A maestria da competência: na qual se transmitem os conhecimentos,
princípios, aptidões, habilidades aos mais jovens.
A maestria socrática: na qual temos a maestria do embaraço e da descoberta,
exercida através do diálogo.
Todas elas – ratifica Foucault – se estabelecem no jogo entre ignorância e memória.
67
Fazer o jovem sair de sua ignorância – e isto é que está em jogo – passa pela
necessidade de lhe dar exemplos de comportamento, fornecer-lhe as técnicas e aptidões e,
ainda, fazê-lo saber, fazê-lo ter consciência de que não sabe – o saber pode derivar da
ignorância.
Essas maestrias são movidas pela ignorância e pela memória, na
medida em que se trata, quer de memorizar um modelo, quer de memorizar e
aprender uma habilidade ou familiriarizar-se com ela, quer ainda de
descobrir que o saber que nos falta é afinal simplesmente encontrado na
própria memória e que, por conseqüência, se é verdade que não sabíamos que
não sabíamos. /.../ Creio que todas, a de Sócrates e as outras duas, m ao
menos isso em comum, a saber, que se trata sempre de uma questão de
ignorância e de memória, sendo a memória, precisamente, o que permite
passar da ignorância à o-ignorância, da ignorância ao saber, desde que se
entenda que a ignorância por si não é capaz de sair dela mesma
(FOUCAULT, 2004, p. 159).
Essas considerações dadas à questão do outro na época clássica, e sua importância,
serão as mesmas dadas na cultura helenística e romana. No entanto, sob formas inteiramente
diferentes.
Na cultura helenística e romana, apesar da questão do outro ainda fundar-se na
ignorância, outros elementos em jogo, por exemplo, o fato de que o sujeito é menos
ignorante do que malformado. A ignorância do sujeito decorre de sua deficitária formação e
não o contrário. E essa formação com déficits é que lhe trará os maus hábitos, os vícios.
Funda-se, sobretudo, no fato de que o indivíduo, mesmo na origem,
mesmo no momento de seu nascimento, mesmo quando estava no ventre da
mãe, como diz Sêneca, jamais teve com a natureza a relação de vontade
racional que caracteriza a ação moralmente reta e o sujeito moral válido.
Conseqüentemente, não é para um saber que substituirá sua ignorância que o
sujeito deve tender. O indivíduo deve tender para um status de sujeito que ele
jamais conheceu em momento algum de sua existência. que constituir-se
como sujeito e é nisto que o outro deve intervir
(FOUCAULT, 2004, p. 160, grifo nosso).
A questão está, então, em como constituir-se? Como sair da ignorância, como sanar os
problemas da formação? Como não ser “malformado”? A saída é o outro, o mestre. Um novo
papel então se coloca: o mestre não é mais aquele que sabendo que o outro não sabe, lhe
transmite aquilo que falta; o mestre não é mais aquele que sabendo que o outro não sabe, sabe
mostrar-lhe como, na realidade, ele sabe o que não sabe, como em Alcibíades. Cabe ao
mestre, agora, ser um operador na reforma do indivíduo e em sua formação como sujeito. O
mestre é o mediador na relação do indivíduo com sua constituição como sujeito.
Tomemos, por exemplo, um fragmento de Musonius (na edição Hense
das Oeuvres de Musonius, fragmento 23) em que faz uma afirmação muito
68
interessante. Diz ele que quando se trata de aprender alguma coisa que é da
origem do conhecimento ou das artes (tékhnai), tem-se sempre necessidade de
um treino, tem-se sempre a necessidade de um mestre. E, contudo, nestes
domínios (conhecimentos, ciências, artes), não se adquirem maus hábitos.
Apenas se ignora. Pois bem, mesmo a partir deste status de ignorância, tem-
se necessidade de ser treinado e tem-se necessidade de um mestre. Ora, diz
ele, quando se tratar de transformar os maus hábitos, de transformar a héxis,
a maneira de ser do indivíduo, quando for preciso corrigir-se, a fortiori então
será necessário um mestre. Passar de um status ‘a corrigir’ ao status
‘corrigido’ supõe, a fortiori, um mestre. A ignorância não podia ser
operadora de saber e nisto, neste ponto, se fundava a mestria no pensamento
clássico. Doravante, o sujeito não pode mais ser operador de sua própria
transformação e nisto se inscreve agora a necessidade do mestre
(FOUCAULT, 2004, p. 160-161, grifo do autor).
Foucault se vale, mais uma vez, de Sêneca, para dar outro exemplo dessa incompleta
formação. Sêneca, em uma de suas cartas (52) a Lucílio, fala sobre a stultitia“alguma coisa
que à nada se fixa e que em nada se apraz”. A stultitia é um “estado” no qual o indivíduo se
encontra, estado no qual é impossível sair sozinho as referências sobre a boa ou a
alimentação, sobre a boa ou a saúde, exemplificam esse estado e a necessidade do mestre
para que se possa curar, corrigir, reformar. A stultitia é vista como o oposto da prática do
“cuidado de si”. Portanto, a prática de si tem que lidar com ela e tem como objetivo sair dela.
Deriva desse estado, o termo stultus, que designa aquele que não tem cuidado consigo, que
está à mercê do tempo, das paixões, das vontades imediatas, que vai onde o vento o leva. O
stultus é aquele sujeito que se deixa levar pela vida, pelo fluxo da vida
26
.
O stultus não pensa na velhice, não pensa na temporalidade da
própria vida a fim de ser polarizada na consumação de si na velhice. Muda de
vida continuamente. /.../ A vontade do stultus é uma vontade que não é livre. É
uma vontade que não é vontade absoluta. /.../ Querer livremente é querer sem
qualquer determinação, enquanto o stultus é determinado, ao mesmo tempo,
pelo que vem do exterior e pelo que vem do interior. /.../ Essencialmente, o
stultus é aquele que não quer, não quer a si mesmo, não quer o eu, aquele
cuja vontade não está dirigida para o único objeto que se pode querer
livremente, absolutamente e sempre, o próprio eu. Entre a vontade e o eu
uma desconexão, uma não-conexão, um não-pertencimento que é
característico da stultitia, ao mesmo tempo seu efeito mais manifesto e sua
raiz mais profunda (FOUCAULT, 2004, p. 163-164, grifo do autor).
Precisamente entre o indivíduo que não quer seu próprio eu e o que conseguiu chegar
à relação de domínio e de posse de si, é preciso que o outro intervenha. O “cuidado de si”
necessita da presença, da inserção, da intervenção do outro.
26
De stultitia deriva estultícia, substantivo feminino que designa “atributo, característica do que é ou se
apresenta de modo estúpido” e, ainda, o adjetivo estulto, que designa um indivíduo “que não apresenta um bom
discernimento, inseto, estúpido, néscio”, sinônimo de tolo. (HOUAISS, 2004, p. 1268).
69
É importante ressaltar a necessidade da existência do outro e que ele não é um
educador na essência tradicional do termo, muito menos alguém que ensinará verdades, ou
será um mestre de memória. Não é uma educação tradicional que implica a transmissão de um
saber teórico ou uma cnica. Ele exerce uma ação dirigida a alguém, dirigida para que
alguém saia do status que se encontra, saia da stultitia. Mas quem é esse outro que deve agir
sobre o sujeito no estado de stultitia?
Esse outro, segundo Foucault, esse operador, esse mediador, é o filósofo. Ele é o único
capaz de governar a si, governar os homens, de governar os que governam os homens e de
constituir assim uma prática geral do governo em todos os graus possíveis: governo de si,
governo dos outros. (FOUCAULT, 2004, p. 167)
É importante ressaltar aqui, que o filósofo não vai agir sobre os sujeitos por meio do
discurso isso compete à Retórica mas sim, sobre o conjunto de princípios que se tem à
mão para cuidar de si e dos outros. Mas quais são os meios práticos, institucionalizados, desse
governar os outros, mediado pela Filosofia, pelos filósofos?
Há duas formas institucionalizadas que o filósofo tem para governar os outros: uma é a
do tipo “helênica”, sob a qual se edifica a escola, a skholé possui um caráter fechado, que
implica a existência comunitária dos indivíduos. E a segunda, do tipo “romana”, também
possui um caráter fechado, mas não deriva da escola, deriva sim, do conselheiro privado,
comum na sociedade romana, caracterizado por uma dependência semicontratual entre um
sujeito que sabe mais e outro que sabe menos. Essas duas formas inauguram o distanciamento
do fazer do filósofo e, ao se desenvolver, distancia-se do fazer que o instaurou.
Assim à medida que vemos desenvolver-se o personagem do filósofo, à
medida que vemos acentuar-se sua importância, vemos também que, cada vez
mais, ele perde sua função singular, irredutível, exterior a vida cotidiana, à
vida de todos os dias, à vida política. Nós o vemos, ao contrário, integrar-se
aos conselhos, a dar pareceres. /.../ Quanto mais se precisa de um conselheiro
para si próprio, mais se precisa, nesta prática, de recorrer ao Outro, mais se
afirma, conseqüentemente, a necessidade da filosofia, mais também a função
propriamente filosófica do filósofo se esvairá e mais o filósofo aparecerá
como um conselheiro de existência que a propósito de tudo e de nada, a
propósito da vida particular, dos comportamentos familiares, como também
dos comportamentos políticos fornecerá não os modelos gerais que Platão
ou Aristóteles, por exemplo, proporiam, mas conselhos, conselhos de
prudência, conselhos circunstanciais. Eles realmente se integrarão ao modo
de ser cotidiano (FOUCAULT, 2004, p. 176).
E é justamente por essa ligação com a Filosofia, e os filósofos, que damos a
importância à prática de si.
/.../ a prática de si foi um imperativo, uma regra, um modo de agir que teve
relações muito privilegiadas com a própria filosofia, os filósofos, a própria
70
instituição filosófica. São os filósofos, evidentemente, que difundiram a regra
[desta prática], que fizeram circular suas noções e métodos, que propuseram
modelos (FOUCAULT, 2004, p. 186).
A Filosofia, vista como a arte de si mesmo, através do filósofo, tratou de divulgar a
prática de si, mas ao mesmo tempo em que isso acontecia, seu personagem profissional se
tornava cada vez mais ambíguo, pois o cuidar de si implicava em mudar a sociedade, talvez
mudar os que detinham o poder. Além disso, essa ambigüidade do filósofo, essa ambigüidade
do “cuidado de si”, com esse deslocamento, passou a ser exercida por indivíduos que não
eram do “ofício”, não eram filósofos. A prática de si acabou se tornando uma prática social,
mesmo fora das instituições, dos grupos, dos indivíduos que, em nome da Filosofia,
reinvidicavam o seu magistério. Ele aparece, então, como um dispositivo de controle dos
indivíduos uns sobre os outros. E, mais uma vez, relaciona-se com o mestre, com o papel por
ele desempenhado.
A prática de si vem vincular-se à prática social ou, se quisermos, a
constituição de uma relação consigo mesmo vem manifestadamente atrelar-se
às relações de si com o Outro (FOUCAULT, 2004, p. 192).
Grande parte dos tratados sobre o cuidado de si vem dos mestres, dos teóricos. Poucos
são aqueles registrados pelos “alunos”, pelos aprendizes, pelos discípulos. Foucault se reporta
ao livro Pensamentos de Marco Aurélio, discípulo de Frontão. Neste livro, Marco Aurélio
apresenta várias passagens sobre sua vida que fizeram com que sedimentasse seu
comportamento, sua conduta.
/.../ devo a Frontão ter compreendido quanta hipocrisia acarreta o exercício
do poder e ter também compreendido quanto, em nossa aristocracia, se é
‘incapaz de afeição (FOUCAULT, 2004, p. 195).
Frontão, mestre de retórica, não dirige Marco Aurélio em direção à consciência, afinal
não é um filósofo, mas sim, na amizade, na afeição, na ternura que, nessa relação, tem um
papel mais importante. Independentemente da questão afetiva da relação Marco Aurélio
ama Frontão – o discípulo decide o que quer do seu dia relatar.
Nesse relato, Foucault distinguiu três categorias, que enunciamos da seguinte maneira:
1) Cuidados com o corpo (Marco Aurélio dá detalhes sobre sua saúde, sobre sua
alimentação) – a dietética.
2) Cuidados “sociais” (narra seus deveres religiosos e para com seus familiares) a
econômica.
71
3) Cuidados com a alma, com o amor (conta sobre seu amor - no caso, o amor que
sente por ele, seu mestre) – a erótica.
Portanto, narra o cuidado que tem com o corpo, com seus familiares e sua casa, e,
ainda, com o amor: a dietética, a econômica e a erótica os três grandes domínios em que se
atualiza, nesta época, a prática de si, incluindo, como vemos, uma perpétua remissão de um ao
outro.
O cuidado com o regime, a dietética, leva à prática agrícola, aos cuidados com a
lavoura, às colheitas, etc., isso leva a comercialização de produtos, de subsídios alimentares,
isso leva à economia, à econômica. A economia, por sua vez, é planejada, decidida, definida,
no interior das relações familiares, onde se encontra o amor. Há um lo, uma forte e
manifesta remissão de um ao outro – da dietética à econômica, da econômica à erótica.
havíamos encontrado essas relações em Alcibíades; que encontravam-se, no
entanto, desvinculadas. Sócrates chega à conclusão de que cuidar de si é cuidar da alma,
portanto, não preocupação com o corpo, então, também não com a dietética, e, ainda,
também não com o amor (pois o amor a que ele se refere é aquele dos pretendentes de
Alcibíades).
Aqui, uma integração desses três domínios: dietética, econômica e erótica.
Integração como superfície de reflexão:
/.../ ocasião, de certo modo, para o próprio eu experimentar-se, exercer-se,
desenvolver a prática de si mesmo que é sua regra de existência e seu
objetivo. A dietética, a econômica e a erótica aparecem como domínios de
aplicação da prática de si (FOUCAULT, 2004, p. 200).
Mas não devemos nos esquecer, no entanto, que ainda falta “descarregar” o fardo, as
tribulações do dia que finda, pois antes de dormir Marco Aurélio descarrega seu “fardo”
trata-se, evidentemente, do exame de consciência, tal como foi prescrito por Sêneca
(lembrando que esses textos são muito próximos). Marco Aurélio descarrega o livro de sua
memória, do que tinha que ser feito no dia.
O essencial, por assim dizer, quer na ordem da memória, quer na
ordem da leitura, é está revisão do dia que passou, revisão obrigatória no seu
final, no momento em que se vai adormecer, e que permite fazer o balanço
das coisas que se tinha a fazer, das que foram feitas e da maneira como foram
feitas relativamente à maneira como deveriam ser feitas. E se explicação.
A quem se explicação? Pois bem, àquele que é seu dulcíssimo mestre”.
Vemos ai a tradução exata do princípio fundamental do exame de
consciência. Mas o que é está carta, afinal? A própria carta, escrita na
manhã do dia seguinte, nada mais é senão o que fez Marco Aurélio à noite,
quando deitou-se antes de adormecer. Ele descarregou o volumem de seu dia.
Retomou seu dia e o descarregou. Fez isto à noite, para si mesmo, fez na
manhã seguinte ao escrever para Frontão. Temos ai, portanto, um exemplo
72
bem interessante da maneira como a direção se tornava, estava em vias de
tornar-se, havia se tornado, desde algum tempo sem dúvida, uma
experiência, uma experiência inteiramente normal e natural. Perante um
amigo, um amigo que é caro, um amigo com quem se tem relações afetivas
tão intensas, faz-se o exame de consciência. Toma-se-o como diretor de
consciência e é totalmente normal tomá-lo como diretor, independente de sua
qualificação de filósofo – e, no caso, não é um filósofo -, simplesmente porque
é um amigo (FOUCAULT, 2004, p. 201-201, grifo do autor).
Inaugura-se essa relação de confessar-se a um outro, do exame de consciência. Um
prestar contas que será feito ao mestre, ao diretor, ao inspetor, ao padre etc. O
desenvolvimento da prática de si, através desse exame torna-se uma prática universal, tornar-
se uma espécie de relação social, desenvolve-se uma nova ética, não tanto da linguagem ou do
discurso em geral, mas da relação verbal com o outro.
Poderíamos nos perguntar, então, se o “cuidado de si” se constituí, agora, como uma
espécie de lei ética universal? E Foucault nos responde de pronto que não. Nem mesmo na
cultura helenística e romana o cuidado de si pode ser considerado uma lei universal. Primeiro
por ser uma noção, algo fictício. Segundo, por se constituir naquela época, como um
privilégio das elites, portanto, dado aos abastados. Como concebê-lo, então, como uma lei
universal?
Não há um princípio geral do “cuidado de si”, uma lei universal, uma lei ética
universal. O processo histórico, se seguido, nos levaria a uma juridicisação da cultura
ocidental. Foi isso que nos fez tomar a lei como o princípio geral de toda regra na ordem da
prática humana” (FOUCAULT, 2004, p. 138). A lei é um episódio de uma história muito
mais geral,
/.../ que é as das técnicas e tecnologias das práticas do sujeito relativamente a
si mesmo, técnicas e tecnologias que são independentes da forma da lei e
prioritárias em relação a ela (FOUCAULT, 2004, p. 138).
Mesmo sendo disseminado como princípio universal, o cuidado de si sempre se
articulou com fenômenos sectários, sejam nas elites, nos meios aristocráticos, sejam nas
classes menos favorecidas evidentemente eram “cuidados de si” diferenciados. Não era,
portanto, encontrado apenas junto àqueles que detinham o poder estatutário.
Nas classes menos favorecidas, as práticas de si eram ligadas à existência de grupos
religiosos, grupos claramente institucionalizados, organizados em torno de cultos definidos,
com procedimentos freqüentemente ritualizados, o que lhes dava um caráter cultual e ritual
que tornava menos necessárias as formas mais sofisticadas e mais eruditas da cultura pessoal
e da investigação teórica. Entretanto, mesmo tomando-a como uma prática coletiva, muitas
73
vezes, exigiam-se dos participantes abstinências alimentares e sexuais, práticas penitenciais,
etc.
De outro lado, havia pticas de si mais elaboradas, sofisticadas, estas ligadas a
escolhas individuais, pessoais, à vida de ócio cultivada, à investigação teórica. Mas essas
práticas não eram isoladas, eram parte da “cultura” da época, cuidar de si estava na “moda”.
Se não tinham o apoio de instituições, se mantinham nas redes de amizade
27
.
Havia dois grandes pólos (mas não somente estes, afinal vários níveis existiam entre
eles): um popular, mais cultual e religioso; e outro erudito, mais cultivado e amistoso. No
último, mas talvez também no primeiro em menor escala, uma maior articulação individual,
apoiada, muitas vezes, em redes de amizade.
Assim, é preciso dizer que o cuidado de si sempre toma forma no
interior de redes ou de grupos determinados e distintos uns dos outros, com
combinação entre o cultural, o terapêutico no sentido que expusemos e o
saber, a teoria, mas [trata-se] de relações variáveis conforme os grupos,
conforme os meios e conforme os casos. De todo modo, porém, é nesta
separação, ou melhor, neste pertencimento a uma seita ou a um grupo, que o
cuidado de si se manifesta e se afirma. Não se pode cuidar de si, por assim
dizer, na ordem e na forma do universal. /.../ Somente no interior do grupo e
na distinção do grupo, pode ele ser praticado
(FOUCAULT, 2004, p. 145).
No interior desses grupos não se considera o status, todos podem cuidar de si próprios.
Contudo, um paradoxo se coloca: agora que se pode, não se exerce. É o eixo da partilha, tão
importante a toda cultura antiga que tinha o status como determinante de quem poderia cuidar
de si. Hoje, o que difere o eu da massa é a capacidade de se aperceber da necessidade de
ocupar-se consigo. É isso que será tomado pelo Cristianismo – “Muitos serão chamados, mas
poucos serão escolhidos”.
Vista dessa forma, a prática de si não mais se impõe como condição estatutária
apesar de estar intimamente atrelada a ela e muito menos como premissa de governar a
cidade, governar os outros, cabe a ela a salvação.
É interessante ressaltar que em Alcibíades o eu que se devia cuidar estava muito bem
definido e, portanto, poderia se interrogar sobre sua natureza – o objeto era o eu, e a
finalidade era bem governar a cidade, objeto e finalidade estavam separados. Agora, no
cuidado de si, na forma como foi desenvolvido pela cultura neoclássica, o objeto e a
finalidade são um só, inseparáveis o eu é o objeto que se cuida, algo com que se deve
27
Foucault apresenta como exemplo o texto de Sêneca, quando este aconselha Serenus, sobrinho de Nero, para
reforçar a teia de relações familiares que sustentam essas práticas de si.
74
preocupar, e a finalidade é ocupar-se de si, cuidar de si mesmo. Não se cuida de si para que se
possa cuidar da cidade, dos outros, mas para cuidar de si mesmo, para salvar-se.
No que tange à noção de epiméleia, é importante lembrar que ela não significa apenas
uma atitude de espírito, mas uma série de exercícios, de práticas, de atividades – está,
portanto, circunscrita a atividades outras além daquelas do conhecimento.
Foucault demarca quatro grandes famílias de expressões:
1
ª
Àquelas que remetem a atos de conhecimento e se referem à atenção, ao olhar
(estar atento a si, examinar a si mesmo etc), ao retorno a si mesmo sugerem um movimento
global de existência (retirar-se a si, recolher-se a si etc.);
2
ª
Àquelas que se referem a atividades: refluir sobre si mesmo, retrair-se, instalar-se
em si mesmo;
3
ª
São aquelas que se referem a atividades, condutas particulares em relação a si
(tratar-se, curar-se, amputar-se, reinvidicar-se a si mesmo, liberar-se, desobrigar-se, cultuar-
se, honrar-se, respeitar-se, envergonhar-se etc.);
4
ª
São as expressões que designam certo tipo de relação permanente consigo, quer se
trate de relação de domínio e soberania (ser mestre de si), quer de sensações (sentir prazer
consigo, alegrar-se consigo, ser feliz em presença de si, satisfazer-se consigo mesmo etc.).
Assim, o cuidado de si ultrapassa a simples atividade de conhecimento e concerne, de
fato, a uma prática de si, ou como o próprio Foucault chamaria, Tecnologias de si.
Em Tecnologías Del yo, Michel Foucault trata especificamente dessas práticas de si,
dessas tecnologias:
A mode de contextualización, debemos comprender que existen cuatro
principales de estas “tecnologías”, y que cada una de ellas representa una
matriz de la razón práctica:
1) tecnologías de producción, que nos permiten producir, transformar
o manipular cosas;
2) tecnologías de sistemas de signos, que nos permiten utilizar signos,
sentidos, símbolos o significaciones;
3) tecnologías de poder, que determinan la conducta de los
indivíduos, los someten a cierto tipo de fines ou de dominación, y consisten
em una objetivación del sujeito;
4) tecnologías del yo que permiten a los indivíduos efectuar, por
cuenta própria o con la ayuda de otros, cierto número de operaciones sobre
su cuerpo y su alma, pensamientos, conducta, o cualquer forma de ser,
obteniendo así una transformacíon de si mismos com el fin de alcanzar
cierto estado de felicidad, pureza, sabiduría o inmortalidad
(FOUCAULT, 1990, p. 48 grifo nosso).
Em Alcibíades havia um momento no qual os jovens aristocratas tinham que cuidar de
si. Esse momento era aquele em que não estavam mais nas mãos dos pedagogos, e que se
75
tornavam objeto de desejo erótico. Era momento de entrar na vida, de exercerem seu poder.
No caso do discurso socrático-platônico, o cuidado de si era um imperativo ligado à crise
pedagógica do momento entre a adolescência e a idade adulta. Após Platão e até os dois
primeiros séculos da nossa era, segundo Foucault, o cuidado de si não é imperativo somente
nesta fase, mas durante toda a vida – cuidar de si é uma obrigação permanente.
Ocupar-se consigo, portanto, é ocupação de toda uma vida, de toda a
vida. De fato, se observarmos no período de que lhes falo a maneira como se
praticou o cuidado de si, perceberemos que é realmente uma atividade de toda
a vida. Podemos mesmo dizer que se trata de uma atividade de adulto e que o
centro de gravidade, o eixo temporal privilegiado no cuidado de si, longe de
estar no período da adolescência, está, ao contrário, no meio da idade adulta;
talvez até, como veremos, mais no final da idade adulta do que no final da
adolescência. De qualquer modo, não estamos mais naquela paisagem de
jovens ambiciosos e ávidos que, na Atenas dos séculos V-IV, buscavam exercer
o poder; lidamos agora com um pequeno mundo, ou um grande mundo de
homens jovens, ou homens em plena maturidade, homens que hoje
consideraríamos velhos, que se iniciam, encorajam-se uns aos outros,
empenham-se, quer sozinhos quer coletivamente, na prática de si
(FOUCAULT, 2004, p. 109).
Além da questão estatutária, a ignorância também fazia surgir a necessidade do
cuidado de si junto aos jovens aristocratas o que pode ser visto tanto em Alcibíades, como
em outros diálogos socráticos. Alcibíades não possuía nenhuma tékne que lhe diferenciasse de
seus adversários, como também ignorava que ignorava essa condição. De todo modo, ele
devia cuidar de si para que pudesse cuidar dos outros, da cidade. Portanto, o cuidado de si
aparece mais uma vez ligado a sua finalidade: bem governar à cidade.
A prática de si que se desenvolve desde Alcibíades não buscou apenas fornecer
elementos para que se atingisse o objetivo de bem governar à cidade, mas, também, elementos
formativos que se vinculassem a preparação do indivíduo não somente para a profissão ou
atividade de bem governar a cidade, mas, sobretudo, para governar a si mesmo, para suportar
os infortúnios, os acidentes, as desgraças que poderiam atingí-lo. É um mecanismo de
segurança que tem como objetivo ajudar o próprio indivíduo mecanismo que podemos
chamar de instrução, e que os gregos chamavam de paraskheué – traduzido por Sêneca como
instructio. Deve-se, portanto, instruir-se. Instruir-se com o objetivo de ajudar-se, de colocar-
se em si uma armadura e não em função de uma atividade profissional determinada. Esse é o
lado formador da prática de si que surge nos dois primeiros séculos da nossa época.
Vale lembrar que esse aspecto formativo não se dissocia do aspecto corretivo. A
prática de si não é exercida apenas no momento em que se percebe que se ignora o que se
julgava saber, mas – e Foucault diz ser esse o elemento essencial – que ela se impõe sobre os
76
erros, sobre os maus bitos; é bem mais que uma formação-liberação: é uma correção-
liberação. Um exemplo, a partir de Sêneca:
Na prática de nós mesmos, devemos trabalhar para expulsar,
expurgar, dominar esse mal que nos é interior, nos libertar e nos
desembaraçar dele. E acrescenta: certamente é muito mais fácil corrigir-se
quando se assume este mal no período em que se é jovem e tenro e o mal não
está ainda incrustado. De todo modo, como vemos, mesmo quando concebida
como uma prática de juventude, a prática de si deve corrigir, não formar, ou
não apenas formar: deve também, e principalmente, corrigir, corrigir um mal
que está lá. É preciso cuidar-se, mesmo quando se é jovem. /.../ Entretanto,
mesmo se não fomos corrigidos durante a juventude, podemos sempre vir a sê-
lo. Mesmo se nos enrijecermos, meios de nos endireitarmos, de nos
corrigirmos, de nos tornarmos o que poderíamos ter sido e nunca fomos.
Tornarmo-nos o que nunca fomos, este é, penso eu, um dos mais fundamentais
elementos ou temas desta prática de si. /.../ Em todo caso, continua ele, a bona
mens (a alma de qualidade) jamais virá antes da mala mens, da imperfeição
da alma. A qualidade da alma pode vir depois da imperfeição da alma
(FOUCAULT, 2004, p. 117, grifo do autor).
Percebemos assim, que um deslocamento da prática de si do final da adolescência
para a idade adulta – esse é o deslocamento interno do sujeito, pois parece ser esta a época em
que estaríamos mais aptos a cuidar de nós mesmos, com a situação profissional estabelecida,
com os compromissos sociais já findados. Enfim, tempo em que poderíamos, sem prejuízo
familiar ou financeiro (mesmo que algum ônus seja implicado), cuidar de nós mesmos.
que se lembrar, contudo, que esse deslocamento traz como conseqüência a função crítica
dessa prática de si, sua aproximação com a medicina e ainda, à importância dada à velhice.
No que tange à aproximação com a medicina, segundo Foucault, não é necessário
esperar até os dois primeiros séculos de nossa era para discutí-la, uma vez que em Platão já
aparecia quando este fazia a distinção entre a arte do corpo e a arte da alma. Era por ocasião
dessa distinção que em Alcibíades, bem como em outros diálogos do período, a alma ficava
bem especificada como o objeto do cuidado de si. No decurso do tempo vimos emergir uma
preocupação cada vez maior com o corpo e não apenas com a alma e esse é um dos efeitos da
aproximação da prática de si e à medicina.
Em relação à importância dada à velhice, na cultura antiga, ela sempre foi valorizada;
contudo, não desejada. Apesar da sabedoria, da experiência, da possibilidade de dar
conselhos, quando se é velho, se depende dos jovens para lhes dar sustento e para defender a
cidade.
Liberado de todos os desejos físicos, livre de todas as ambições
políticas a que agora renunciou, tendo adquirido toda a experiência possível,
o idoso será soberano de si mesmo e pode satisfazer-se inteiramente consigo.
Nesta história e nesta forma da prática de si, o idoso tem uma definição:
77
aquele que pode enfim ter prazer consigo, depositar em si toda a alegria e
satisfação, sem esperar qualquer prazer, qualquer alegria, de que não é mais
capaz, nem nos prazeres da ambição aos quais renunciou. O idoso é, portanto,
aquele que se apraz consigo, e a velhice, quando bem preparada por uma
longa prática de si, é o ponto em que o eu, como diz Sêneca, finalmente atingiu
a si mesmo, reencontrou-se, e em que se tem para consigo uma relação
acabada e completa, de domínio e de satisfação ao mesmo tempo
(FOUCAULT, 2004, p. 135).
Ao ser concebida dessa forma, a velhice não deve ser tomada como o fim da vida, mas
sim, como uma meta da existência (lembrando, contudo, que não estamos a imaginar a vida
como àquela concebida pela ética grega e romana, repartida em diferentes idades e a cada
uma delas correspondendo um modo particular de vida. Deve-se brincar quando se é jovem e
quando se é velho não nada que se determine pela idade cronológica dos indivíduos)
28
.
Mesmo após a prática de si ter se “deslocado”, ainda permanece atrelada à questão estatutária.
Devemos, por assim dizer, e nisto consiste o ponto central desta nova
ética da velhice, nos colocar em relação à vida, em um estado tal qual a
vivamos como se a tivéssemos consumado. No fundo, é preciso que, a cada
momento, mesmo sendo jovens, mesmo na idade adulta, mesmo se estivermos
ainda em plena atividade, tenhamos, para com tudo que fazemos e somos, a
atitude, o comportamento, o desapego e a completude de alguém que já tivesse
chegado à velhice e completado sua vida. Devemos viver nada mais esperando
da vida e, assim como o idoso é aquele que nada mais espera da vida,
devemos, mesmo quando jovens, nada esperar. Devemos consumar a vida
antes da morte (FOUCAULT, 2004, p. 137).
O objetivo da prática de si é a relação consigo, essa é a meta da vida e, ao mesmo
tempo, uma forma rara de existência. Meta de existência para todos, mas forma rara de
existência já que poucos podiam praticá-la, exercê-la. É a busca pela salvação e, com isso,
adentramos no cristianismo e reforçamos, então, a universalidade do apelo e à raridade da
salvação – é a necessidade de cuidar de si para ser salvo. Salvação oferecida a todos, mas que
poucos alcançarão.
Será mesmo preciso cuidar de si para ser salvo? E qual o conteúdo dessa “vazia
salvação” oferecida pela filosofia antiga ou pelo pensamento antigo?
As práticas realizadas pelos sujeitos de nossa pesquisa, como o canto ou a música, o
estudo ou o não-estudo, a religião ou a não-religião, ou trabalho ou o ócio etc., podem ser
vistas como práticas de cuidado de si? Essas práticas, realizadas no interior de grupos (de
28
Deve-se viver para ser velho, para gozar da tranqüilidade, do abrigo... [considerando um país diferente do
nosso, em que não haja diferenças sociais, em que seja possível viver de aposentadoria] em que seja possível
viver quando se é velho. Esse exercício, essa atitude diante da velhice, diante do preparo ao longo da vida para a
velhice, é um tema que nos remete ao exercício da morte: viver a vida como se fosse o derradeiro dia.
78
trabalho, religiosos, familiar, social etc.), são práticas do cuidado de si? E se são, são
realizadas para que se alcance a salvação? Ou então, para quê?
Em Platão, a salvação da cidade tinha como conseqüência a salvação do indivíduo
ocupava-se consigo porque era preciso ocupar-se com os outros; salvando aos outros, salvava-
se a si. Hoje, se ocupa consigo, simplesmente, para si – a salvação dos outros não é essencial,
ela é como uma recompensa suplementar, caso aconteça. Inverte-se a noção de salvação.
Salvação que poderia ser alcançada pela valorização da amizade. A partir da sentença
Vaticana de que “toda a amizade é por ela própria desejável. Entretanto, ela tem seu começo
na utilidade”, Foucault discute a noção epicurista de amizade.
Para Epicuro a amizade deriva da utilidade, mas apesar de ser pensada como uma
forma do cuidado de si, não devemos entender que o cuidado de si tenha preocupação com a
utilidade. De todo modo, toda amizade é desejável, mas tem seu início na utilidade. Parece
haver um princípio de exclusão – quanto mais desejada a amizade, menos útil e quanto menos
desejável, mais útil. Mas a amizade é útil e é por isso, diz Epicuro, que ela se inicia.
Ou seja, ela realmente se inscreve no regime de trocas sociais e dos
serviços que vinculam os homens. /.../ [Ela] tem seu início na utilidade, mas
não deve ser mantida por isso, pois nem é amigo quem busca sempre a
utilidade, nem quem nunca a associa à utilidade (FOUCAULT, 2004, p. 238).
A amizade é vista como um bem que proporciona a felicidade. A amizade nos a
confiança de que temos com quem contar, mesmo que não precisemos efetivamente disso. A
felicidade é a independência em relação aos males. A sabedoria consiste em nos cercarmos de
amigos para que não tenhamos nenhuma perturbação.
Portanto, nesta concepção de amizade epicurista, vemos manter-se ao
extremo o princípio segundo o qual na amizade nada se busca senão a si
mesmo ou a própria felicidade. A amizade nada mais é que uma das formas
que se dá o cuidado de si (FOUCAULT, 2004, p. 239).
Aquele que cuida de si deve fazer amigos e é na reciprocidade que se mantém a
amizade, o cuidado de si.
Em Epicteto, por sua vez, vemos a noção de amizade vincular-se ao homem como um
ser comunitário e à concepção do cuidado de si e o cuidado dos outros, se desenvolve em dois
níveis: no natural e no reflexivo. No vel natural trata-se da concepção do vínculo
providencial todos buscam seu próprio bem e, quando o fazem, mesmo sem querer ou
procurar, fazem o bem dos outros. Mas quando falamos dos homens, como uma categoria à
parte no conjunto de animais, passamos do nível natural para o reflexivo, uma vez que os
homens foram deixados por Zeus à própria sorte. Com isso, para que o homem desempenhe
79
seu papel de ser racional, ele deve ocupar-se consigo, deve tomar-se como objeto de seu
cuidado.
Vejamos como isso se dá. Tomamos como exemplo o Príncipe, usado por Foucault.
Ele tem, por ofício, o dever de ocupar-se com os outros, mas como fim e à termo, o Príncipe,
como homem, deverá seguir os preceitos de qualquer homem cuidar de si para bem cuidar
dos outros. Seu ofício é o da soberania, que terá como princípio os mesmos princípios de
qualquer outra profissão. O Império, o principado tomado como ofício, como profissão,
reforça a necessidade do Imperador, do Príncipe em ocupar-se consigo pois assim fazendo
estará cuidando de si e, portanto, encontrará todas as ocupações que lhe são próprias como
Imperador, portanto, cuidará dos outros.
/.../ o homem moralmente bom é aquele que, uma vez por todas em sua vida,
fixou para si um objeto do qual não deve, de modo algum, desviar-se: não
deve lançar seu olhar nem para direita nem para esquerda, nem para o
comportamento dos homens, nem para as ciências inúteis, nem para todo um
saber do mundo que para ele é sem importância; tampouco deve olhar para
trás a fim de procurar atrás de si os fundamentos de sua ão.
Os fundamentos de sua ação é que constituem seu objetivo. E o que é seu
objetivo? É ele próprio. Portanto, é no cuidado de si, na relação de si para
consigo enquanto relação de esforço em direção a si mesmo, que o imperador
fará, não somente seu próprio bem, mas o bem dos outros.
É cuidando de si que, necessariamente, cuidará [dos outros]
(FOUCAULT, 2004, p. 248).
O que percebemos até aqui é que o cuidado de si se modificou desde de Alcibíades até
o começo da era imperial, de duas formas: primeiro com a desvinculação da prática de si em
relação à pedagogia e, segundo, com a desvinculação dessa prática de si em relação à
atividade política.
A prática de si não aparece mais, como em Alcibíades, como um complemento, uma
peça indispensável ou substitutiva da pedagogia ela vale para o desenrolar de toda a vida,
identifica-se e incorpora-se com a própria arte de viver. Além disso, a desvinculação da
prática de si em relação à pedagogia traz outra conseqüência: a prática de si o se inscreve
mais na relação dialética e amorosa entre o mestre e o discípulo, mas integra-se, mistura-se,
entrelaça-se com toda uma rede de relações sociais diversas.
Em Alcibíades, era preciso estar atento a si para poder cuidar dos outros, da cidade – a
prática de si tinha como finalidade a política, o governar a cidade. Agora, ocupa-se consigo
para si mesmo, como início, meio e fim em si mesmo. No caso do Príncipe ou do Imperador,
Foucault lembra que eles não estavam atentos a si para estar atentos aos outros, mas sim,
porque estando atentos a si, estariam atentos àquilo que lhes foi confiado, portanto, governar
80
os outros. Está descrito assim, o princípio do exercício da soberania, na relação de si para
consigo, do cuidar-se para si. E é nesta autofinalização que se encontra, segundo Foucault, a
noção de salvação.
Será apenas através da aplicação a si mesmo desviando-se de tudo que possa nos
atrair a atenção que não seja nós mesmos –, do exercício da soberania sobre si, que se chegará
a salvação.
É preciso, durante toda a vida, voltar à atenção, os olhos, o espírito, o
ser por inteiro enfim, em direção de nós mesmos. Trata-se da grande imagem
da volta para si mesmo, subjacente a todas as análises de que lhes falei até o
momento. /.../ [Um exemplo] é a história da imagem do pião. O pião gira
sobre si, mas gira sobre si justamente como não convém que giremos sobre
nós. O que é o pião? É alguma coisa que gira sobre si por solicitação e sob o
impulso de um movimento exterior. Ademais, girando sobre si, ele apresenta
sucessivamente faces diferentes as diferentes direções e aos diferentes
elementos que lhe servem de circuito. E, por fim, embora apareça
aparentemente imóvel, na realidade o pião está sempre em movimento. Ora,
contrariamente ao movimento do pião, a sabedoria consistirá em não se
deixar jamais ser induzido a um movimento involuntário por solicitação e
impulso de um movimento exterior. Pelo contrário, será preciso buscar no
centro de nós mesmos o ponto no qual nos fixaremos e em relação ao qual
permaneceremos imóveis. É na direção de si mesmo ou do centro de si, é no
centro de si mesmo que devemos fixar nossa meta. O movimento a ser feito
de ser então o de retornar a este centro de si para nele imobilizar-se, e
imobilizar-se definitivamente (FOUCAULT, 2004, p. 254-255).
É a conversão a si mesmo. E esta conversão é uma importante Tecnologia do Eu do
Ocidente (importante para o Cristianismo e para as demais religiões de um modo geral).
Entretanto, vale lembrar que essa noção é também uma noção filosófica. Portanto, essa noção
é importante à religião, à filosofia e, ainda, à ordem moral.
Tomada como um conceito fundamental e não obstante aos usos que teve ao longo dos
séculos, retomemos as discussões sobre a “conversão a si mesmo” a partir dos séculos I e II,
foco de nossa discussão.
Esse tema não é uma novidade nos séculos em questão, Platão o desenvolveu de modo
significativo sob a noção de epistrophé, que consistia em desviar-se das aparências, retornar a
si pelo conhecimento da própria ignorância, e retornar à pátria, à reminiscência, a verdade do
Ser. Essa epistrophé é comandada por uma oposição fundamental entre este mundo e o outro,
e, ainda, pelo desprendimento da alma em relação ao corpo, ao corpo-prisão, e por um
privilegio de conhecer-se. Conhecer-se é conhecer o verdadeiro e conhecer o verdadeiro é
liberar-se, libertar-se.
Essa noção de conversão de Platão difere daquela encontrada na cultura de si
helenística e romana, da seguinte forma: – primeiro porque em Platão essa conversão se move
81
no eixo de oposição entre esse e o outro mundo — o que depende e o que não depende de nós.
Na cultura helenística e romana, trata-se de deslocar-se daquilo que não depende de nós o
exterior daquilo que depende de s o interior. Trata-se de liberar tudo aquilo que não
dominamos para alcançar tudo aquilo que dominamos. Segundo, porque na cultura helenística
e romana não há uma liberação do corpo, mas, sim, o estabelecimento de uma relação
completa, consumada, adequada de si para consigo. Terceiro, porque o papel que desempenha
o conhecimento na epistrophé platônica é decisivo para que se faça o retorno a si, é através da
ignorância que se retorna a si. na conversão helenística e romana o que se tem de mais
importante são as práticas de si, a askésis, elas constituíram o elemento essencial. Foucault
reforça que há um pequeno problema na conversão helenística e romana: não se sabe ao certo
se o eu é o fim, a meta que devemos nos propor e à qual, alcançando a sabedoria,
eventualmente teremos acesso, ou é algo que se retorna porque já nos é dado de antemão.
Retomemos, aqui, a noção de conversão da cultura cristã. A noção de conversão, ou
metánoia, desenvolvida pelo cristianismo nos culos III e IV é muito diferente da noção de
epistrophé platônica. Metánoia significa penitência e também mudança, mudança radical do
pensamento e do espírito. A conversão cristã implica uma súbita mutação – preparada ou não,
histórica ou não, etc.; uma passagem de um tipo de ser a outro, da morte à vida, etc.; e, ainda,
que só pode haver conversão se houver no interior do próprio sujeito, uma ruptura.
O eu que se converte é um eu que renunciou a si mesmo. Renunciar a
si mesmo, morrer para si, renascer em outro eu e sob uma nova forma que, de
certo modo, nada tem a ver, nem no seu ser, nem no seu modo de ser, nem nos
seus hábitos, nem no seu êthos, com aquele que o precedeu, é isto que
constitui um dos elementos fundamentais da conversão cristã
(FOUCAULT, 2004, p. 260, grifo do autor).
A conversão cristã apresenta processos diferentes de todos os outros modos de
conversão (filosófica, moral, cultura de si, etc.). Em relação à conversão helenística ela se
diferencia primeiro por não ter a premissa de uma ruptura do eu, mas do exterior com o
interior; segundo por focar seu olhar sobre o eu, aplicar o olhar sobre o eu, ter o eu ante os
olhos; e terceiro, porque vai ao encontro do eu como quem vai ao encontro de uma meta
retornar a si.
Diz, ainda, que o que pretende não é estabelecer a trajetória que caracteriza o
movimento de conversão, e sim seu ponto de chegada e de realização. Esses movimentos são
as relações de si para consigo e podem ter a forma de atos (protege-se, defende-se, arma-se,
equipa-se o eu), de relações ou atitudes (respeita-se, honra-se o eu), de estado (ser senhor de
si, possuímos nosso eu, ele nos pertence), ou apresentamos deleite no próprio eu (prazer, gozo
82
no próprio eu). A conversão é um movimento que se dirige para o eu, não tira os olhos dele, o
fixa como objetivo. Estamos longe da noção cristã de conversão.
Devemos evitar a metánoia como arrependimento – essa é uma noção negativa,
própria do termo antes do início dos grandes ritos de penitência do século III. Devemos tomá-
la como tradução de mudança, reversão, modificação do ser do sujeito e acesso a uma vida na
qual não há remorsos.
Em sua análise, Foucault se coloca entre a epistrophé platônica e a metánoia cristã e
deseja focar o modo como foi concebido o movimento pelo qual o sujeito é chamado a
converter-se a si, a dirigir-se a si mesmo ou a retornar a si.
Seguirá, então, por dois caminhos:
Primeiro para o problema da conversão do olhar, a idéia é examinar como se
estabelece o voltar-se a si, volver o olhar para si mesmo, etc., no tema geral da conversão. E
parece haver, então, uma aproximação com o conhece-te a ti mesmo.
Segundo para a questão do “voltar o olhar para si mesmo” e a diferença entre o
“conhece-te a ti mesmo” platônico e o “examina a ti mesmo” da espiritualidade monástica.
Para compreender o que “voltar o olhar para si mesmo” significa para Plutarco, Sêneca,
Epicteto, Marco Aurélio, etc., é preciso perguntar-se: “do que deve o olhar desviar-se quando
recebe a recomendação de volver-se para si?”. Voltar o olhar para si significa, antes de mais
nada, desviá-lo dos outros, das coisas do mundo.
O que se reforça é a necessidade de desviar-se do olhar maldoso, malicioso, malévolo
sobre o outro. É preciso manter-se na meta, conservar-se em si mesmo, mas não se trata de
decifrar-se, de analisar-se ou de refletir-se sobre si mesmo. Trata-se de olhar para sua própria
meta.
Trata-se de ter diante dos olhos, do modo mais transparente, a meta
para a qual tendemos, com uma espécie de clara consciência dela, do que é
necessário fazer para atingi-la e das possibilidades de que dispomos para
isto. É preciso ter consciência, uma consciência de certo modo permanente,
do nosso esforço. [Não se trata] de ter a si mesmo como objeto de
conhecimento, como campo de consciência e de inconsciência, mas uma
consciência permanente e sempre atenta desta tensão com a qual nos
dirigimos à nossa meta. O que nos separa da meta, à distância entre nós e a
meta deve ser o objeto, repito, não de um saber de decifração, mas de uma
consciência, uma vigilância, uma atenção (FOUCAULT, 2004, p. 272).
Por mais impossível que nos pareça não pensar na meta, devemos nos esforçar para
pensar naquilo que nos separa dela e, assim, deslocá-la. É preciso concentrar-se na trajetória
de si para si. Concentrar nossa atenção nessa distância que há entre si e si mesmo – o tema do
83
retorno a si mesmo é deslocar o olhar que estava nos outros para si, com a meta de atingir o
eu, atingir a si mesmo.
É preciso que o sujeito inteiro se volte para si e se consagre a si
mesmo /.../ (FOUCAULT, 2004, p. 301-302).
A conversão a si não traz a mesma idéia do cuidado de si no que tange ao voltar o
olhar a si mesmo. No cuidado de si trata-se de prestar atenção a si mesmo, de dirigir o olhar a
si, estar vigilante em relação a si. Na conversão a si, trata-se de um deslocamento, de uma
trajetória, de um esforço, de um movimento do sujeito em direção a ele próprio. Além disso,
na conversão a si, temos a idéia de retorno, de circularidade.
Em relação à noção de deslocamento, Foucault se vale da metáfora da navegação. Em
primeiro lugar, ao deslocar-se, desloca-se de um ponto a outro. Segundo, ao deslocar-se,
desloca-se para algum ponto, alguma meta, a um objetivo. Terceiro, nosso ponto de chegada
deve ser concebido como nosso ponto de partida, nosso lugar de origem, nossa pátria. Quarto,
se um forte desejo de chegar ao porto, de voltar ao ponto inicial, é porque a trajetória é
perigosa.
Ao longo de todo este trajeto somos confrontados a riscos, riscos
imprevistos que podem comprometer nosso itinerário e até mesmo nos
extraviar. Por conseguinte, esta trajetória será a que realmente nos conduz
ao lugar de salvação, atravessando certos perigos, os conhecidos e os
poucos conhecidos, os conhecidos e os mal conhecidos, etc. Enfim, ainda na
idéia de navegação, acho necessário reter que esta trajetória a ser assim
conduzida na direção do porto, porto de salvação em meio a perigos, a fim
de ser levada a bom termo e atingir o seu objetivo, implica um saber, uma
técnica, uma arte. Saber complexo, um tempo teórico e prático, saber
conjectural também, que é sem dúvida um saber muito próximo da
pilotagem (FOUCAULT, 2004, p. 303).
Foucault faz referência à técnica de pilotagem, pois na literatura grega, romana e
helenística essa era uma imagem utilizada para as atividades daqueles que deveriam curar,
dirigir os outros e governar a si mesmos. Três técnicas eram referidas, regularmente, ao
modelo de pilotagem: primeira, a medicina; segunda, o governo político; e, terceira, a direção
e o governo de si mesmo governar a si como se governa uma cidade, dirigir os outros como
dirige a si, curar os outros como se cura a si.
Tanto gregos como romanos tinham uma espécie de saber, uma tékne, comum de
governar a cidade, governar a si, governar os males – assim como o Príncipe que governa a si
mesmo como governa a cidade, curando seus próprios males. Possuem o mesmo tipo de saber
conjectural. Foi somente no século XVI que essa noção de governamentabilidade muda é a
partir daí que a arte de governar é centralizada em torno da razão de Estado. Distingui-se
84
nesse momento governo de si, de medicina, e de governo dos outros mas, a idéia de pilotagem
permanece vinculada à atividade de governo.
Em suma, vemos como nesta prática de si, tal como aparece e se formula nos últimos
séculos da era pagã e nos primeiros séculos da era cristã, o eu surge fundamentalmente, como
a meta, o fim de uma trajetória incerta e eventualmente circular, que é a perigosa trajetória da
vida (FOUCAULT, 2004, p. 304).
Mas quais relações foram estabelecidas entre o princípio da conversão a si e o
princípio do conhecimento de si? Essa não é uma questão simples, pois não será pelo estudo
do preceito helenístico e romano da conversão a si, que encontraremos o ponto de invenção de
todas as outras práticas que foram desenvolvidas em seguida no mundo cristão e moderno,
pois o conhecimento de si daquela época não é o mesmo que temos hoje. Mas como pôde
então constituir-se, através desse conjunto de fenômenos e processos históricos que podemos
chamar de nossa “cultura”, a questão da verdade do sujeito?
Se a questão crítica é a de saber “sob que condições gerais pode
haver verdade para o sujeito”, a questão que gostaria de colocar é a
seguinte: “sob que transformações particulares e historicamente definíveis, o
sujeito teve que submeter-se a si mesmo para que houvesse a injunção de
dizer a verdade sobre o sujeito?” (FOUCAULT, 2004, p. 308, grifo nosso).
Parece que um momento importante, segundo Foucault, em que se formula a questão
da verdade do sujeito, está naquele em que, na cultura helenística e romana, o cuidado de si
tornou-se uma arte autônoma, autofinalizada, valorizando a existência inteira. Mas aqui as
confusões, segundo o autor, são fáceis principalmente porque dois grandes esquemas, dois
grandes modelos de relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si, o platônico e o
cristão, recobriram o modelo helenístico.
No modelo platônico (que Foucault discute a partir de Alcibíades), a relação entre
cuidado de si e conhecimento de si se dava em primeiro lugar pela necessidade de cuidar de si
porque percebe se como ignorante
29
. Em segundo lugar, a partir do momento que o cuidado
de si afirma-se, ele passa a constituir-se, essencialmente, no “conhecer-se a si mesmo” (o
cuidado de si é ocupado pelo imperativo do conhecimento de si). Em terceiro lugar, é no
ponto de junção entre o cuidado de si e o conhecimento de si que se a reminiscência
platônica é lembrando-se do que viu que a alma descobre o que ela é; e é lembrando-se do
que ela é que se tem acesso ao que se viu. Aglutinam-se em um único movimento da alma,
29
Alcibíades ignora que não sabe, e ao aperceber-se que ignora que ignora, pela interrogação socrática, descobre
que deve ocupar-se consigo “a ignorância e a descoberta da ignorância da ignorância é que suscitam o
imperativo do cuidado de si” (FOUCAULT, 2004, p. 309).
85
três pares: conhecimento de si e conhecimento da alma, conhecimento de si e conhecimento
da verdade, cuidado de si e retorno ao ser. (FOUCAULT, 2004, p. 310)
No modelo cristão, formado a partir dos séculos III e IV, o conhecimento de si está
ligado, de modo complexo, ao conhecimento da verdade. Esse conhecimento de si exige que o
coração seja purificado para compreender a “Palavra”. Há uma relação circular entre o
conhecimento de si, conhecimento da verdade e cuidado de si.
Se quisermos promover nossa própria salvação, devemos acolher a
verdade: a que nos é dada no Texto e a que se manifesta na Revelação
(FOUCAULT, 2004, p. 310).
O conhecimento purificador de si por si mesmo só é possível sob a condição de que
tenhamos tido uma relação fundamental com a verdade, a do Texto e a da Revelação.
Novamente, dá-se a relação circular.
Outro ponto está em que o conhecimento de si no cristianismo é praticado por uma
série de técnicas que tem como função reconhecer as tentações que se formam no interior da
alma e do coração é a necessidade de uma exegese de si. que ser lembrar ainda, que o
cuidado de si não tem por objetivo voltar-se a si mesmo e sim, renunciar-se.
Assim, no cristianismo, o conhecimento de si e o cuidado de si se relacionam primeiro
por uma circularidade entre a verdade do Texto e o conhecimento de si, segundo, por uma
exegese do conhecimento de si (método exegético) e, terceiro, pela renúncia de si como
objeto.
Temos, pois, se quisermos, no nível das práticas de si, três grandes
modelos que historicamente se sucederam uns aos outros. O modelo que eu
chamaria “platônico”, gravitando em torno da reminiscência. O modelo
“helenístico”, que gira em torno da autofinalização da relação a si. E o
modelo “cristão”, que gira em torno da exegese de si e da renúncia a si. Os
três se sucederam, por razões históricas que busquei delinear, o primeiro e o
terceiro recobriram, aos nossos olhos de modernos, o modelo do meio. Mas o
modelo do meio, o helenístico, centrado em torno da autofinalização da
relação a si, da conversão a si, foi, contudo, o lugar de formação de uma
moral que o cristianismo recebeu, herdou, repatriou e elaborou para dela
fazer alguma coisa que hoje equivocadamente chamamos de “moral cristã” e
que ele, ao mesmo tempo, ligou precisamente à exegese de si. A moral austera
do modelo helenístico foi retomada e trabalhada pelas técnicas de si definidas
pela exegese e pela renúncia a si próprias do modelo cristão (FOUCAULT,
2004, p. 313-314).
Ser livre é fugir da servidão a si mesmo. Ser escravo de si mesmo é a mais grave, a
mais pesada de todas as servidões. Ela é uma servidão assídua, que pesa sobre nós sem cessar
e ainda, sem resistências! Sem resistência não significa sem superação! Para sacudí-la, diz
Sêneca, é preciso deixar de pedir muito a si mesmo (se cobrar fazer mal para si, impor-se a
86
si mesmo muitas penas e labor), é preciso não atribuir a si nenhuma espécie de salário, de
recompensa ao trabalho feito. Devemos nos liberar das obrigações que nós mesmos nos
impomos.
Segundo Sêneca, o único modo de se libertar dessa relação consigo – desse sistema de
obrigação-endividamento é o estudo da natureza. O estudo da natureza pode ser o operador
da liberação de si.
Contudo, nesse estudo, diz Sêneca, citado por Foucault, a distinção entre duas
partes da filosofia: a que se ocupa dos homens e a que se ocupa dos deuses. E que uma
grande diferença entre elas diferença de importância, de dignidade e diferença de ordem de
sucessão (primeiro examinar a si mesmo, tomar-se em consideração, e em seguida o mundo).
Mesmo diferentes, se complementam, pois a primeira permite conjurar os erros, permite que
se vejam as vias ambíguas da vida, e a segunda nos conduz à luz nos arrancando das trevas,
trata-se de um movimento real do sujeito, movimento real da alma, movimento/deslocamento
do próprio sujeito.
Esse movimento, segundo Foucault, tem quatro características:
1 Uma fuga, um arrancar-se de si mesmo, fugir dos vícios da alma. O conhecimento
da natureza pode assegurar essa fuga.
2 – Esse movimento que nos conduz à luz e o movimento que nos conduz a Deus, não
como a perda de si mesmo, mas sob a forma de encontrarmo-nos.
3 – Esse movimento que nos conduz à luz, a Deus, a nosso reencontro, que nos arranca
de nós mesmos, eleva-nos ao ponto mais alto e assim, penetramos no segredo mais interior da
natureza.
É um elevar-se que nos permite ver de cima, do alto, de fora e portanto, desvendar os
segredos da natureza. Além disso, quando do alto, poderemos ver a pequenez das coisas
terrenas e perceber o que realmente é importante.
Vemos que este grande percurso da natureza servirá, não para nos
arrancar do mundo, mas para nos permitir apreender nós mesmos onde
estamos. De modo algum em um mundo de irrealidades, em um mundo de
sombras e aparências, não para nos desprender de algo que seria apenas
sombra, para nos reencontrarmos num mundo que seria apenas luz: é para
medir exatamente a existência perfeitamente real que temos, mas que não
passa de uma existência pontual. Pontual no espaço, pontual no tempo. Ser
para nós mesmos, aos nossos próprios olhos, aquilo que somos, a saber, um
ponto, pontualizarmo-nos no sistema geral do universo: é está liberação que
efetua realmente o olhar que podemos lançar sobre o sistema inteiro de
coisas da natureza (FOUCAULT, 2004, p. 338-339).
87
Mas qual a relação do conhecimento da natureza com o cuidado de si e o
conhecimento de si? Primeiro, é importante ressaltar que não se trata de uma alternativa: ou se
conhece a natureza ou se conhece a si mesmo. Afinal não se pode conhecer a si mesmo como
convém sem ter conhecimento da natureza, sem estar em uma posição privilegiada em relação
a ela, sem a olhar do alto.
Em segundo, esse saber sobre a natureza nos libera. Mas não é uma liberação como
um arrancar-se desse mundo, mas sim, a busca de uma espécie de tensão entre esse eu
enquanto razão e o eu enquanto elemento individual e ainda, porque esse saber sobre a
natureza é liberador na medida em que nos permite ajustar nosso olhar sobre nós mesmos — a
alma controla a si mesma tanto em suas ações quanto em seus pensamentos.
Em terceiro, estamos muito próximos de um movimento platônico. Porém, muito
diferente daquele descrito por Platão. Diferente, pois aqui não reminiscência, ainda que a
razão se reconheça em Deus. Aqui, não se busca a essência da alma, mas sim, percorrer o
caminho através do mundo e suas causas. Além disso, não há passagem para outro mundo – o
mundo de Sêneca é nosso próprio mundo.
De certo modo, é recuando que nos afastamos. E recuando, vemos alargar-se o
contexto no interior do qual estamos colocados e apreendemos este mundo tal como ele é, o
mundo em que estamos. /.../ É o movimento pelo qual, sem nunca perder de vista este mundo,
e no seu interior, nós e o que somos, é-nos [permitido] apreendê-lo na sua globalidade. /.../
Trata-se antes de nos colocarmos em um ponto tal, ao mesmo tempo tão central e elevado que
possamos ver abaixo de nós a ordem global do mundo, ordem global da qual fazemos parte.
/.../ Trata-se de uma visão do alto sobre si, e não de um olhar ascendente para algo diferente
do mundo em que estamos. Visão do alto de si sobre si que engloba o mundo de que se faz
parte e que assegura assim a liberdade do sujeito nesse próprio mundo
(FOUCAULT, 2004, p. 344).
Esse é um movimento diferente do movimento platônico, e, parece definir, segundo
Foucault, uma das mais fundamentais formas de experiência espiritual encontradas na cultura
ocidental. É um tema que encontramos em textos estóicos e particularmente, em Sêneca.
Na República, é dado aos homens que assim merecerem, ao entrarem na vida, o poder
de escolha do tipo de existência que terão essa é a menção feita por Sêneca a Platão em sua
Consolação a Márcia.
/.../ pois bem, escuta, imagina que antes de entrar na vida, antes que tua alma
tenha sido enviada a este mundo, tu tinhas a possibilidade de ver o que ia se
passar [não se coloca a possibilidade de escolha e, sim, o direito de olhar]
/.../ Pois bem, primeiramente, diz ele, no momento de entrar na vida se te
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fosse dado ver desse modo, tu verias “a cidade comum dos deuses e dos
homens”, tu verias os astros, sua revolução regular, a lua, os planetas cujo
movimento comanda a fortuna dos homens. Admirarias “as nuvens
cumuladas”, “o risco oblíquo do raio e o trovão do céu”. Depois teus olhos
baixariam para a terra” e encontrariam ainda muitas outras coisas e
maravilhas, e então poderias ver as planícies, as montanhas e as cidades, os
monstros marinhos, o oceano, os navios que o atravessam e sulcam. “Tu não
verás nada que não tenha tentado a audácia humana, ao mesmo tempo
testemunha e laboriosa associada desses grandes esforços”. Ao mesmo
tempo, porém, verias, com esta ampla visão do alto (se te fosse dada no
momento de seu nascimento), que aí também, nesse mundo, haveria “mil
flagelos do corpo e da alma, guerras e pilhagens, envenenamentos e
naufrágios, intempéries do ar e doenças, perda prematura dos próximos e a
morte, doce talvez, ou talvez cheia de dores e torturas. Delibera contigo
mesmo e pesa bem o que queres; uma vez tendo entrado nesta vida de
maravilhas, é por ela que deverás sair. Cabe a ti aceitá-la com suas
condições” (FOUCAULT, 2004, p. 345-346).
Vemos um tipo de mito bem diferente daquele posto por Platão, ainda que faça
referência a ele. Aqui não se ao indivíduo a possibilidade de escolher entre as existências,
trata-se de dizer-lhe que não tem escolha. Mesmo com essa visão do alto, ao mesmo tempo
em que tem as maravilhas das estrelas, do céu e da terra, também terá suas dores, seus muitos
flagelos: os flagelos do corpo, da alma, das guerras, das pilhagens, da morte, dos sofrimentos.
Mostramo-lhe o mundo não para que possa escolher, como as almas
de Platão podiam escolher seu destino. Mostramo-lhe o mundo
precisamente para que compreenda que não tem escolha, e que nada se
pode escolher se não se escolhe o resto, que somente um mundo, um
único mundo possível, e que é a ele que se está ligado
(FOUCAULT, 2004, p. 346).
A única escolha é se queres ou não viver, mas não se escolhe qual existência terá. E na
velhice, assim como no limiar da vida, é que teremos o poder dessa decisão.
E o sábio, no final da vida, uma vez que tiver sob os olhos o conjunto do mundo, será
livre para escolher, viver ou morrer, graças a esta ampla visão do alto que a ascensão ao topo
do mundo lhe terá propiciado pele estudo da natureza. Estudo que se dará muitas vezes pelo
exercício da leitura, pelo exercício da escrita.
Encontramos continuamente, nos preceitos de existência e nas regras
da prática de si, a obrigação de escrever, o conselho para escrever
(FOUCAULT, 2004, p. 431).
89
Esse conselho/obrigação de escrever, nos remete à questão da ética da palavra,
portanto não apenas à escrita, mas, também à leitura – esse binômio é indissociável
30
.
A leitura tem como objetivo propiciar uma ocasião de meditação e não deter o
conhecimento sobre a obra de um autor ou aprofundar sua doutrina.
Por meditação usualmente entendemos: uma tentativa para pensar
com intensidade particular em alguma coisa sem aprofundar seu sentido; ou
então deixar o próprio pensamento desenvolver-se em uma ordem mais ou
menos regrada a partir da coisa na qual se pensa. É aproximadamente isto
que é para nós a meditação. Para os gregos e latinos meléte ou meditatio é
outra coisa (FOUCAULT, 2004, p. 429)
31
.
Outro aspecto é que a meditatio consiste em fazer uma experiência de identificação
“Quero com isto dizer que na meditatio trata-se não tanto de pensar na própria coisa, mas
de exercitar-se na coisa em que se pensa” (FOUCAULT, 2004, p. 429). Por exemplo, a morte
a meditação sobre a morte. Mas isso não é imaginar que se vai morrer e sim, colocar-se na
situação de quem está morrendo, que vai morrer, ou que está vivendo seus últimos dias. Não é
o sujeito com o seu pensamento, mas, sim, o pensamento sobre o próprio sujeito (esse foi o
mesmo sentido dado à meditação por Descartes
32
)
Descartes não pensa em tudo o que poderia ser duvidoso no mundo.
Tampouco pensa no que poderia ser indubitável.Digamos que este seja o
exercício cético habitual. Descartes se põe na situação do sujeito que duvida
de tudo, sem de resto interrogar-se acerca de tudo o que poderia ser dubitável
ou tudo de que se poderia duvidar. E põe-se na situação de alguém que vai
em busca do que é indubitável. Portanto, de modo algum é um exercício sobre
o pensamento e seu conteúdo. È um exercício pelo qual o sujeito se põe, pelo
pensamento, em uma determinada situação. Deslocamento do sujeito com
relação ao que ele é por efeito do pensamento: pois bem, é esta, no fundo, a
função meditativa que deve ter a leitura filosófica tal como é entendida na
época de que lhes falo. E é esta função meditativa como exercício do sujeito
que se põe pelo pensamento em uma situação fictícia na qual se experimenta
a si mesmo, é isto que explica que a leitura filosófica seja – se não totalmente,
ao menos em boa parte indiferente ao autor, indiferente ao contexto da
frase ou sentença (FOUCAULT, 2004, p. 430).
30
O que se aconselha é que sejam lidos poucos autores, para que assim seja possível escolher algumas passagens
importantes e suficientes. Foi graças a essa prática que tivemos acesso, por exemplo, aos textos de Epicuro, pois
nos chegaram por meio de resumos que eram feitos por seus alunos. Reforça-se assim, a prática de resumos.
31
Meléte vem de meletân, que significa o exercício de apropriação de um pensamento, sem a busca pelo
significado, a exegese. Meditatio significa apropriar-se de um pensamento profundamente a ponto de disseminá-
lo, redizê-lo acreditar que seja verdadeiro, gravá-lo no espírito e, em conseqüência, tê-lo a mão e, então, fazê-
lo princípio de ação. É neste sentido que se direciona o exercício de meditatio, defendido aqui por Foucault.
32
Penso logo existo: medito logo penso. A inferência, contra Descartes, é de um sujeito pensante que existe
enquanto sujeito no mundo parece que o texto se encaminha para dizer que se não estou no mundo não penso.
O importante é o sujeito – formado a partir do natural do mundo – deslocando-se com o pensamento para abstrair
a situação, o ponto de partida é a realidade e não a abstração.
90
O que foi dito acima explica o efeito que se espera da leitura: não se busca a
compreensão do que o autor quis dizer, mas sim, a constituição para si de uma série de
proposições verdadeiras, que sejam efetivamente suas. Uma apropriação. E a leitura
concebida dessa forma, como exercício, liga-se imediatamente à escrita.
A escrita é um fenômeno da cultura e da sociedade muito importante nos séculos I e II
de nossa era, por assumir um papel pessoal e individual. Não se pode precisar ao certo quando
esse processo teve início mas, sem dúvida, a escrita se tornou, e não pára de assim afirmar-se,
como um elemento do exercício de si. A escrita também é, assim como a leitura, um exercício
de meditação. E, segundo Sêneca, é preciso alternar escrita e leitura é preciso temperar a
leitura com a escrita, a composição escrita deve dar corpo àquilo que se leu. A leitura recolhe
elementos de discurso, e desses é preciso fazer um corpus, pela escrita.
A escrita é, assim, um elemento de exercício, e um elemento de
exercício que traz a vantagem de ter dois usos possíveis e simultâneos. Uso,
em certo sentido, para nós mesmos. É escrevendo, precisamente, que
assimilamos a própria coisa na qual se pensa [exercício de assimilação da
verdade e do lógos a reter]./.../Epicteto afirma: “Guarda estes pensamentos
dia e noite à tua disposição (prókheira); coloca-os por escrito e deles faz a
leitura”. /.../ Guardamos, pois, nossos pensamentos. Para guardá-los à nossa
disposição, é preciso colocá-los por escrito, é preciso deles fazer a leitura
para nós mesmos. É preciso que estes pensamentos sejam “o objeto de tuas
conversas contigo mesmo ou com outro: ‘podes vir em minha ajuda nesta
circunstância? E de novo vai encontrar um outro homem e um outro ainda.
Depois, se te ocorrer algum daqueles acontecimentos indesejáveis, bem logo
encontrarás alívio no pensamento de que nada disto é inesperado”
(FOUCAULT, 2004, p. 432-433).
As anotações que fazemos são chamadas de hypomnémata, que em grego, significa
suporte de lembranças. As hypomnémata são usadas por nós, mas podem também servir para
os outros.
São anotações de lembranças com que precisamente poderemos,
graças à leitura ou a exercícios de memória, rememorar as coisas ditas
(FOUCAULT, 2004, p.433).
Outro fenômeno da cultura da época é a correspondência, que consistia em dar um ao
outro notícias de si mesmo, indagar sobre o que se passava na alma do outro, ou pedir ao
outro que desse notícias do que se passava com ele. Era portanto, um exercício que se fazia
em dupla e tinha uma dupla função: ajudava-se a si, reforçando suas verdades, e ajudava-se o
outro, lhe apresentado verdades e recebendo dele, outras.
/.../ vemos toda uma prática em que leitura, escrita, anotação de si,
correspondência, envio de tratados, etc., constituem uma atividade, atividade
91
muito importante de cuidados de si e cuidados dos outros
(FOUCAULT, 2004, p. 435).
Foucault chama a atenção para a necessidade de se investigar esse tipo de atividade,
como aquelas que vieram a se estabelecer na Europa no século XVI, como o diário de bordo,
anotações de viagem, etc. Há que se ressaltar, no entanto, que naqueles textos, a autobiografia
intervinha muito pouco, enquanto que no século XVI será absolutamente central. Devemos
considerar, contudo, que
/.../ neste intervalo, porém, aconteceu o cristianismo. E nele, Santo Agostinho.
Ter-se-á passado então para um regime no qual, justamente, a relação do
sujeito com a verdade não será apenas comandada pelo objetivo: “como
tornar-se um sujeito de veridicção”, mas terá transformado em: “como poder
dizer a verdade sobre si mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 435).
Não há, na prática de si, nenhuma regulação quanto ao uso da palavra. Contudo, tanto
a espiritualidade quanto a pastoral cristã escreveram verdadeiros tratados sobre o tema
complicados e complexos. Nesses tratados se desenvolve uma arte de falar. Do lado do mestre
- a ele cabe a Revelação que se materializa na escrita fundamental: o Texto e sua função se
ramifica por diferentes campos: ensino propriamente dito (ensinar a verdade), prescrição,
diretor de consciência, penitência e confessor); e do lado do que deve ser conduzido, que deve
ser salvo o pupilo. E é em relação a este último, que Foucault chama a atenção, pois ele
também tem algo a dizer, tem a dizer uma verdade – a sua verdade, a verdade de si mesmo.
Creio que o momento em que a tarefa do dizer-verdadeiro sobre si
mesmo foi inscrita no procedimento indispensável à salvação, quando está
obrigação do dizer-verdadeiro sobre si mesmo foi inscrita nas técnicas de
elaboração, de transformação do sujeito por si mesmo, quando está
obrigação foi inscrita nas instituições pastorais pois bem, creio que este
constitui um momento absolutamente fundamental na história da
subjetividade no Ocidente, ou na história das relações entre sujeito e verdade
(FOUCAULT, 2004, p. 437).
Sem dúvida, a idéia de que se tem a salvação ao dizer a verdade sobre si mesmo,
não é algo que só existiu na Antiguidade grega, helenística ou romana.
Aquele que é conduzido à verdade pelo discurso do mestre não tem que dizer a
verdade sobre si mesmo. Sequer tem que dizer a verdade. E uma vez que não tem que dizer a
verdade, não tem que falar. É preciso e basta que se cale (FOUCAULT, 2004, p. 438).
No ocidente, se tem o direito de falar na obrigação da confissão, que mesmo
possibilitando estabelecer alguns elementos que a liguem à prática de si na Antiguidade, tem
um sentido bem diferente, com já dissemos. O que se poderia chamar de confissão na
92
Antiguidade, são instrumentos para o cuidado de si, esses elementos da confissão são
instrumentais e não operadores.
Creio ser este um dos mais notáveis traços da prática de si naquela
época: o sujeito deve tornar-se sujeito de verdade. Deve ocupar-se com
discursos verdadeiros. É preciso, pois, que opere uma subjetivação que se
inicia com a escuta dos discursos que lhe são propostos. É preciso, pois, que
ele se torne sujeito de verdade, que ele próprio possa dizer o verdadeiro,
que possa dizer a si mesmo o verdadeiro. De modo algum é necessário e
indispensável que diga a verdade de si mesmo
(FOUCAULT, 2004, p. 438-439).
Ele tem o direito de falar, mas não a verdade de si mesmo, mas apenas para apoiar o
discurso do mestre, que busca fazê-lo perceber que sabe o que julgava o saber, ou que não
sabe o que julgava saber. É no discurso do mestre que está a verdade portanto seu papel é o de
silêncio – adentramos aqui, na noção de parrhesía.
A parrhesía corresponde à obrigação de silêncio do lado do discípulo o discípulo
deve calar-se para subjetivação de seu discurso, e o mestre, por sua vez, deve manter um
discurso que obedeça ao princípio da parrhesía, desde que se pretenda que o que ele diz de
verdadeiro torne-se enfim, ao término de sua ação e direção, o discurso verdadeiro
subjetivado pelo discípulo – escuta-se, escreve-se, transcreve-se o que foi dito.
De todo modo, o que se procura é chegar à velhice para que assim se possa cuidar de
si. Mas não apenas tornar-se velho, envelhecer, mas e sobretudo, ao se chegar na velhice ter
vivido a vida como se fosse uma prova. Noção abordada por Foucault a partir de Sêneca e
Epicteto.
No De providentia - ou Vida como Prova - Sêneca tem como fio condutor de seu texto
o velho tema estóico do Deus pai. Pai em relação ao mundo, pai em relação aos homens que
deve ser honrado segundo o modelo da relação familiar. Sêneca diz que se Deus é pai, então
não é mãe, portanto não lhe cabe o papel de indulgente, de permissivo, mas antes o de
fornecer a seus filhos, a educação. O pai amat fortitet, ou seja, ama fortemente, com coragem
e energia, sem fraqueza.
É assim o amor de Deus por seus filhos, os homens. Ama-os fortemente, com energia
e sem fraqueza, para formá-los homens fortes. O amor de Deus é concebido então, como um
amor paterno, ou seja, como uma vigilância pedagógica em relação aos homens.
Essa vigilância porém, encerra um paradoxo que vemos os homens de bem
trabalhando, penando, sofrendo, deparando-se com dificuldades, infortúnios, tristezas; e, ao
contrário, os homens maus descansam e passam a vida em delícias que nada vem perturbar.
Mas esse paradoxo, segundo Sêneca, é facilmente explicado: Deus abandona os homens maus
93
à sua própria sorte, e os homens bons, porque os ama, submete-os as provas a fim de
endurecê-los, educá-los, prepará-los.
Deus prepara para si os homens e prepara os que ele ama porque são
homens de bem. Prepara-os para si com toda a série de provas nas quais a
vida consiste (FOUCAULT, 2004, p. 533).
Segundo Foucault, duas idéias importantes a se ressaltar: primeiro a de que a vida,
com todas suas provas e expiações, é uma educação. Retomando as discussões sobre a
epiméleia heautoû, reencontramos a generalização da idéia de educação – é a vida inteira que
deve ser a educação do indivíduo.
A prática de si que deve se desenvolver e ser exercida desde o começo
da adolescência ou da juventude até o final da vida inscreve-se no interior de
um esquema providencial que faz com que Deus a ela responda como que
previamente, organize, para esta formação de si mesmo, para esta prática de
si mesmo, um mundo que tenha para o homem valor formador. Em outras
palavras, é a vida inteira que é uma educação. E a epiméleia heautoû, agora
alçada a escala da vida inteira, consiste em educar a si mesmo através de
todos os infortúnios da vida. agora uma escie de espiral entre a forma
de vida e a educação. Deve-se educar perpetuamente a si mesmo através das
provas que nos são enviadas e graças ao cuidado consigo mesmo, que faz
com que essas provas sejam tomadas a sério. Educar a si mesmo ao longo de
toda a vida e, ao mesmo tempo, viver a fim de poder educar-se. Coexistência
entre vida e formação, é está a primeira característica da vida-prova
(FOUCAULT, 2004, p. 533-534).
Temos aqui duas características: a noção da vida como prova e a generalização da
prova como vida; Ou ainda, de que o cuidado de si deve atravessar toda a vida. O interessante
é que essa característica pauta-se, fundamentalmente, em uma dicotomia dada previamente
entre as pessoas que são más e as que são boas. A vida como prova é reservada as pessoas do
bem, pois as que não são do bem nem a reconhecem como prova, pois não são dignas nem de
conhecê-la.
/.../ pode-se dizer que o que se mostra no De Providentia é o princípio pelo
qual a prova (probatio) constitui a forma ao mesmo tempo geral, educadora
e discriminante da vida (FOUCAULT, 2004, p. 534).
Segundo Foucault, podemos estabelecer muitas correspondências entre esse texto de
Sêneca e os Diálogos de Epicteto. Basicamente com a idéia de que aquilo que nos parece, em
princípio, ser um mal, não o é (uma das teses fundamentais do estoicismo). Mas como saber
se aquilo que experimentamos como um mal, na realidade não o é?
Enquanto ser racional, devemos conceber que todos os acontecimentos fazem parte da
ordem natural das coisas. E que as coisas, uma vez criadas por Deus, são perfeitas.Então,
94
mesmo que consideremos algo como mal, na verdade ele é bom. Mesmo se algo me faz sofrer
e é em si, portanto, um mal à medida que tenha me ocupado de mim, que tenha o domínio de
mim, isso será um bem. A transfiguração do mal em bem, se faz no interior mesmo do
sofrimento provocado, pois ele é também uma prova.
que se observar, e Foucault alerta, que essa noção da vida como prova não é nova,
é uma antiga idéia grega. Entretanto, ele afirma que são diferentes, pois a prova na tragédia
grega é sustentada pela disputa, pelo afrontamento, pelo jogo de inveja dos deuses e o excesso
dos homens. E, no estoicismo Sêneca e Epicteto não é essa relação que dispõe os males,
mas sim, a benevolência.
Outra questão importante é que Sêneca não se preocupa com problemas teóricos
advindos da definição da vida como prova. Essa é uma preocupação do cristianismo. Mas, por
outro lado, também não discute como se define o que seja ou não o mal.
Tanto a vida como prova, quanto a prova como discriminação, transferiram-se da
ascética filosófica para espiritualidade cristã, porém, de modo bem diferente. A vida como
prova será a idéia fundamental da espiritualidade cristã todo cristão tomará a vida como
uma prova. Além disso, os dois temas não teorizados no estoicisismo prova para quê? E
como definir os bons e os maus serão os mais ativos focos de reflexão e do pensamento
cristãos “para que prepara a preparação à vida? (salvação, imortalidade, etc) O que é a
predestinação? Etc.”.
Foucault chamou à cena essas discussões, pois queria mostrar-nos um fenômeno:
Em linhas gerais diria o seguinte: desde a época clássica, parece-me,
o problema estava em definir uma certa tékhne toû bíon (uma arte de viver,
uma técnica de existência). E como lembramos, foi no interior desta questão
geral da tékhne tbíon que se formulou o princípio “ocupar-se consigo
mesmo”. Os seres humanos, seu bíos, sua vida, sua existência são tais que
não podem eles viver sua vida sem referir-se a uma certa articulação racional
e prescritiva que é a da tékhne. /.../ A kne toû bíon inscreve-se na cultura
grega clássica, creio, no vazio deixado tanto pela cidade quanto pela lei e
pela religião, no tocante à organização da vida. Para um grego, a liberdade
humana encontra sua obrigação não tanto ou não apenas na cidade, não
tanto ou não apenas na lei, tampouco na religião, mas na tékne (esta arte de
si) que nós mesmos praticamos. É, portanto, no interior desta forma geral da
tékhne toû bíon que se formula o princípio, o preceito do “ocupar-se consigo
mesmo”(FOUCAULT, 2004, p. 542-543).
O que Foucault nos mostra é que nessa época helenística, do Alto Império
assistimos a uma espécie de inversão, de reversão entre técnica de vida e cuidado de si. O que
parece é que o cuidado de si não será necessário e indispensável à tékhne toû bíon (a técnica
95
de vida). Não é então, pelo cuidado de si que devemos começar como convém uma boa
técnica de vida.
Considerar a vida toda como prova tem por fim formar o eu. Devemos viver a vida e
cuidar de nós mesmos em todos os instantes, cuidado propiciado por meio de toda a tékne que
se aplica à própria vida, é uma relação de si para consigo que traz como coroamento de uma
vida vivida como prova. Vive-se para si e se reforça o movimento de reversão entre o
cuidado de si e a técnica de vida.
Tanto um quanto o outro, cuidado de si ou técnica de vida, são caracterizados pelas
práticas exercidas pelos indivíduos. E a vida tomada como prova também possui uma série de
práticas, que se encontram no que chamamos de gymnázein (treino em situação real), ou
regime das provas (grupo de exercícios da ascética dos filósofos).
Nesse conjunto de provas reais, Foucault distingue as práticas de abstinência de um
lado e o regime das provas de outro – sendo o regime das provas, como vimos anteriormente,
discutido até o ponto em que a vida por inteiro devia ser exercida, praticada, como prova. E
nesse exercício, houve uma reelaboração da tékne como prova, e está passa a ser como que
uma preparação permanente para uma prova que dura tanto quanto a vida.
As práticas de abstinência, por sua vez, são os exercícios da ascética dos filósofos
ligados aos termos meléte, meletân, meditatio, meditari, ou, mais especificamente, exercícios
de meditação está entendida como exercício do pensamento sobre o pensamento.
Detenhamos-nos um pouco sobre esse grupo de exercícios.
Retomando o diálogo no qual Sócrates tem a necessidade de interpelar Alcibíades para
mostrar-lhe que deveria ocupar-se consigo mesmo e, ainda, interrogar-se sobre o que era esse
cuidado de si “Primeiro o que é este eu do qual é preciso cuidar? Segundo, como se deve
cuidar de si mesmo?” Aqui, Sócrates caracteriza a modalidade fundamental deste cuidado de
si, definiu-a como exercício de um olhar, olhar sobre si mesmo – “É preciso cuidar de si”, “É
preciso olhar para si mesmo”. A relação que se estabelece com isso, é uma relação de
identidade “A alma via a si mesma, e era precisamente nesta apreensão de si mesma que
apreendia também o elemento divino que constituía sua virtude própria” (FOUCAULT, 2004,
p. 552-553).
Temos então o movimento de identidade: voltar-se a si, e no ponto de chegada, o
reconhecimento de um elemento divino. Esse elemento divino terá dois efeitos: primeiro
movimentar a alma em direção ao alto; e segundo, levá-lo na direção das realidades essenciais
que servirão para que se possa exercer a ação política.
96
Com isso, segue-se o gnôthi seautón, que consiste no fato de que a alma conheça a
própria alma, reconheça aquilo que, no fundo de sua memória, conhecia. o se busca a
natureza da alma, mas sim, o que ela é em sua realidade própria. A apreensão dessa essência,
dessa realidade própria da alma, dará abertura a uma verdade, uma verdade que é aquela que a
alma já conhecia.
Isto significa que a alma se apreende ao mesmo tempo na sua
realidade essencial, e se apreende também como sujeito de um conhecimento,
conhecimento de que já fora o sujeito quando contemplou as essências no céu,
no alto do céu onde fora colocada. Por conseguinte, podemos dizer que o
conhecimento de si vem a ser a chave de uma memória essencial. Ou ainda,
que a relação entre a reflexividade de si sobre si e o conhecimento da verdade
se estabelece na forma da memória. Conhece-se para reconhecer aquilo que
se havia conhecido (FOUCAULT, 2004, p. 553-554).
Talvez aqui pudéssemos estabelecer uma base “teórica” para o que tomamos como
essencial na História Oral: a memória dos sujeitos
33
e se concebermos que é preciso
“ocupar-se consigo”, “olhar para si mesmo”, o passo fundamental para isso é o conhecimento
de si, é o conhecimento da alma. Conhecimento da alma que nos levará a nossa verdade, ao
conhecimento da nossa verdade conhecer a si mesmo é a chave de uma memória essencial.
Então ao estabelecermos, na História Oral, o depoimento como principal elemento, e que a
memória é o material para que ele se faça, estamos a fazer com que nossos sujeitos cuidem se
si, busquem a memória essencial. Refletir sobre si leva ao conhecimento da verdade (a
verdade do sujeito), e essa relação se estabelece na forma da memória, materializada no
depoimento.
Na ascética filosófica da “meditação”, parece que isso acontece de uma forma
totalmente diversa. Vejamos o que acontece em Alcibíades. Nele, a diferença fundamental
entre o gnôthi seautón e o epiméleia heautoû é que não é no elemento da identidade que se
efetua o conhecimento de si, mas em uma espécie de duplicação interior, um desnível.
Recorrendo a Epicteto temos um exemplo: a necessidade que o homem tem de cuidar de si
mesmo se deve ao fato de que possui uma faculdade que em sua natureza, ou em seu
funcionamento, é diferente das outras e esta faculdade é a razão. E é por ela, por estar na
33
Os hypomnemata, tecnicamente podem ser considerados de livros de contabilidade à “livros de vida”, “guias
de conduta”. Esse segundo uso ficou restrito a um público mais polido. Constituíam memória material das coisas
lidas, ouvidas, ou pensadas; oferecendo-se, assim, a meditação. Poderiam se constituir em tratados mais
sistemáticos para lutar contra defeitos (morais) ou ultrapassar circunstâncias de vidas difíceis. Os hypomnemata
não devem ser encarados como um simples processo auxiliar de memória. Não são destinados a substituir a
recordação que porventura tenhamos esquecido. A própria pessoa que deve se constituir naquilo que escreve.
Todavia, “tal como um homem traz no rosto a semelhança natural com seus antepassados, assim é bom que se
possa perceber naquilo que se escreve, a filiação dos pensamentos que ficaram gravado em sua alma”
(FOUCAULT, 1997, p. 134-145).
97
posição de controle e de livre decisão sobre o uso das outras faculdades, que se deve realizar o
cuidado de si.
Cuidar de si mesmo não é servir-se das faculdades que se tem, mas
servir-se delas somente quando determinamos este uso recorrendo àquela
outra faculdade que determina a conveniência ou não deste uso. Assim, é
neste desnível que situa-se o cuidado de si e conhecimento de si, e não no
reconhecimento da alma como em Platão. Desnível das faculdades, portanto,
para situar, fixar, estabelecer a relação de si para consigo
(FOUCAULT, 2004, p. 554-555).
Em Platão, o que se apreende quando se dirige o olhar a si mesmo é a realidade da
alma na sua substância e essência, e nos estóicos, o próprio objeto deste olhar são os
movimentos que se dão no pensamento.
Outro ponto é o reconhecimento do parentesco com o divino. nos estóicos
referencias do parentesco da alma com o divino, mas de um modo bem diferente daquele que
aparece em Platão.
Em Platão, se quisermos, o divino se descobria no próprio eu, na
alma, mas de certo modo do lado do objeto. Ou seja, é vendo-se a si própria
que a alma descobria, no outro, quem ela era, o elemento divino graças ao
qual ela podia se ver. Na meditação estóica, ao contrário, parece-me que o
divino se descobre do lado do sujeito, isto é, no exercício daquela faculdade
que usa livremente das outras faculdades. E é esta faculdade que manifesta
meu parentesco com Deus (FOUCAULT, 2004, p. 555).
O parentesco da alma com o divino se dá no próprio exercício da epiméleia heautoû e
do exame de si assim como Zeus, devemos nos ocupar com nós mesmos, devemos refletir
sobre as coisas do mundo, sobre os males que nos afligem, como remediá-los, que atitude ter
diante deles etc. A diferença entre os homens e os animais é que os últimos não têm de se
ocupar consigo mesmos, tudo lhes é dado. O que nos caracteriza, enquanto humanos, é a
necessidade que temos de se ocupar de nós mesmos. E isso porque Zeus - Deus - nos confiou
a nós mesmos, dando-nos a Razão que é essa faculdade que comanda as demais para que
tenhamos que nos ocupar de nós mesmos.
Mas e Zeus? Quem é Zeus? O que é Zeus? “É o ser que não faz outra coisa senão
ocupar-se consigo mesmo”, “Zeus é o ser que vive para si mesmo”. O elemento divino é a
epiméleia heautoû como que em estado puro. É aquele que está perpetuamente consigo
mesmo. “É neste estar consigo mesmo que consiste o ser divino”.(FOUCAULT, 2004)
Viver consigo mesmo, repousar em si mesmo, refletir sobre a natureza do seu próprio
governo e entreter-se com pensamentos dignos de si, são as quatro características que definem
a posição do sábio, uma vez que tenha alcançado a sabedoria. Este é o retrato de Zeus. O
98
grande modelo divino é transposto aos homens em forma de dever e prescrição. Esses são os
objetos da meléte, do meletân.
Outra diferença entre o olhar de Platão e o olhar dos estóicos está na relação com a
verdade. Em Platão, a verdade apreendida é aquela essencial que nos permitirá conduzir os
outros homens. nos estóicos, o olhar é dirigido não para as essências, mas, sim, para a
verdade daquilo que se pensa.
Trata-se de experimentar a verdade das representações e das opiniões
que as acompanham. Trata-se também de saber se seremos capazes de agir
em função desta verdade de opiniões que experimentamos, e se de algum
modo poderemos ser o sujeito ético da verdade que pensamos. De maneira
esquemática e abstrata, digamos que no platonismo o olhar sobre si mesmo
permite um reconhecimento sob a forma de memória, reconhecimento
mnemônico, se quisermos, que funda o acesso à verdade (a verdade essencial)
na descoberta reflexiva do que a alma é em sua realidade. O que atua no
estoicismo é um outro dispositivo. No estoicismo, o olhar sobre si dever ser a
prova constitutiva de si com sujeito de verdade, e deve sê-lo pelo exercício
reflexivo da meditação (FOUCAULT, 2004, p. 558).
A hipótese de Foucault é que no ocidente conheceu-se e aplicou-se, efetivamente, três
formas de exercício do pensamento:
1 – Reflexividade que tem a forma de memória. Nesta forma, se tem um tipo de acesso
à verdade, verdade que é conhecida pelo reconhecimento.
2 Reflexividade que se na meditação, desenvolvida entre os estóicos. O que se
opera é a prova daquilo que se pensa, prova de si mesmo, como sujeito que pensa
efetivamente o que pensa, e age como pensa, e tem como objetivo uma transformação do
sujeito, constituição como sujeito ético da verdade.
3 – Reflexividade que se chama de método.
O método é uma forma de reflexividade que permite fixar qual é a
certeza capaz de servir de critério a toda verdade possível e que, a partir daí,
deste ponto fixo, caminhará de verdade em verdade até a organização e a
sistematização de um conhecimento objetivo (FOUCAULT, 2004, p. 559).
Segundo Foucault, as práticas que dominaram o exercício da vida como filosofia
foram essas três grandes formas: memória, meditação e método. De Platão a Santo Agostinho
(da memória à meditação) e da Idade Média ao começo da Idade Moderna, uma trajetória da
meditação ao método.
A tradição histórica e a tradição filosófica no ocidente sempre privilegiaram o gnôthi
seautón, como fio condutor de todas as análises sobre os problemas do sujeito, da
reflexividade, do conhecimento de si, etc. Mas não devemos considerá-lo somente nele
99
mesmo, pois assim estaríamos nos arriscando a estabelecer uma falsa continuidade em seu
desenvolvimento.
As diferentes formas de melétai (exercícios de pensamento sobre si mesmo) incidem
sobre o exame da verdade daquilo que se pensa, mas Foucault foca outra série de provas que
incidem sobre si mesmo como sujeito de verdade, por exemplo, com as questões: Sou eu que
penso essas coisas verdadeiras? Pensando essas coisas verdadeiras, ajo como quem as
conhece? Sou eu o sujeito ético da verdade que conheço?
Dos exercícios que podem responder essas questões, os mais importantes são a
praemeditatio malorum, o exercício da morte e o exame de consciência.
Premeditação ou presunção dos males. Esse tema suscitou muitas discussões e
debates. Sempre se desconfiou do pensamento sobre o porvir “Na prática de si, não se
deixar preocupar com o porvir é um tema fundamental”. (FOUCAULT, 2004) O porvir nos
preocupara antecipadamente, e isto tem algo de negativo. Ele não nos deixa livres. Essa noção
está ligada a três temas fundamentais no pensamento grego e, em particular, à prática de si:
Primeiro, o primado da memória o pensamento sobre o porvir preocupa e, em
alguns casos, como no remorso, tem um aspecto negativo. Mas a memória, pensamento sobre
o passado, tem um valor positivo. Há, então, uma oposição entre o valor negativo do
pensamento sobre o porvir e o valor positivo do pensamento sobre o passado é a relação
entre a memória e o pensamento sobre o futuro. Ao voltar-se sobre o porvir se é censurado e
ao voltar-se sobre a memória se é valorizado “E não pode haver um pensamento sobre o
porvir que seja ao mesmo tempo uma memória”.(FOUCAULT, 2004)
Segundo, a noção de que o porvir é o nada – Ele não existe, portanto, sobre ele, só se
pode projetar. Ou ele é preexistente, portanto nenhum domínio podemos ter sobre ele. Ou
nada ou predeterminação, o porvir nos condena à imaginação ou à impotência. É contra isso
que o cuidado de si luta.
Usando Plutarco, mais uma vez exemplifica: há uma clara distinção entre o homem do
porvir e o homem do passado; aquele que não se ocupa consigo mesmo, preocupa-se com o
porvir e não conta do presente (“/.../ o homem do porvir é aquele que, não pensando no
passado, não pode pensar no presente e encontra-se, assim, voltado para um porvir que é
nada e inexistência” (FOUCAULT, 2004, p. 565)). E, ainda, aquele que não se ocupa consigo
mesmo deixa que qualquer coisa devore o que está fazendo, ele se deixa devorar pelo
esquecimento, não é capaz de ação, de êxito, de ócio agradável, de skolé aquela forma de
atividade estudiosa tão importante no cuidado de si.
100
Em outras palavras, não possibilidade, por assim dizer, de
totalização da vida social, da vida ativa, da vida de prazer, da vida de lazer
tampouco, quando não se pratica a memória e quando se deixa levar pelo
esquecimento (FOUCAULT, 2004, p. 566).
E não se pode ainda, constituir a si mesmo como identidade.
/.../ piores as pessoas que, por sua atitude, se voltam para o porvir e
conseqüentemente negligenciam a memória, deixando-se devorar pelo
esquecimento. /.../ “Não guardam na memória a lembrança do passado nem
recordam, mas deixam-na desaparecer pouco a pouco, fazem-se a cada dia,
na realidade, desprovidos e vazios, suspensos no amanhã, pois ao não
anterior, a antevéspera e a véspera não lhes concernem e de modo algum lhes
pertenceram”. Significa que são condenados não apenas à descontinuidade e
ao escoamento, mas também ao despojamento e ao vazio. Na realidade nada
mais são. Estão no nada (FOUCAULT, 2004, p. 567).
Já Sêneca diz:
O porvir nos prende pela esperança, o passado nos prende pela
lembrança. Mas um a saber, o porvir, ainda está em suspenso, e bem pode
não ser. Devemos, portanto, dele nos afastar. Enquanto o outro, a saber, o
passado, não pode não ter sido. Que loucura deixar escapar a posse mais
segura! (FOUCAULT, 2004, p. 567-568)
Tudo gira em torno do privilégio da memória. O real, aquilo que foi, está à nossa
disposição pela memória a memória é a forma de ser daquilo que não é mais. “Nesta
medida, portanto, ela permite uma soberania efetiva sobre nós mesmos, e podemos sempre
perambular por nossa memória, diz Sêneca”.(FOUCAULT, 2004) Tudo deveria nos conduzir
ao exercício da memória e não do porvir!
Nesse contexto geral de valorização da memória e de sua relação com o passado, os
estóicos desenvolveram o praemeditatio malorum, e os epicuristas, em oposição, os
exercícios da avocatio e revocatio. O praemeditatio malorum tem por função dotar os
homens de discursos verdadeiros que lhes servirão de suporte quando acontecer algo que seja
um mal, para isso é necessário que se faça um exercício constante de premeditação dos males.
o avocatio tem a função de afastar os pensamentos dos infortúnios e volta-se ao
pensamento dos prazeres. E o revocatio nos protege e nos defende desses infortúnios pela
lembrança dos prazeres que outrora conhecemos. É preciso preparar-se para os males, para os
infortúnios. Mas como se preparar para os males? Pela praemeditatio malorum. Esta, é uma
prova do pior. Primeiro, por que prevê que se deva exercitar-se para todos os infortúnios
possíveis, não apenas àqueles que atingem os indivíduos, mas até os menos improváveis.
Segundo, deve-se exercitar o como um mal que pode ou não acontecer, mas ao contrário,
101
que certamente acontece. E terceiro, que esse mal não está longe de se concretizar, mas, ao
contrário, ocorrerá imediatamente.
No que tange ao pensamento sobre o porvir, pode parecer que estamos, ao praticar a
praemeditatio malorum, constituindo certo pensamento sobre o porvir, mas não. Ao
contrário, o que se busca é sua obstrução, pois uma vez premeditando os acontecimentos
estaremos trazendo ao presente o porvir e assim, desprovendo-lhe de todas as surpresas, de
toda a sua incerteza – presentifica-se o porvir e portanto, anula-o.
Essa presentificação é uma redução de realidade. Não se presentifica o porvir para
torná-lo mais real, mas sim, para torná-lo tão pouco real quanto possível “Se temes algum
acontecimento, tem em mente que ele com certeza se produzirá”.
/.../ ou uma dor é tão violenta que não se pode suportá-la (morre-se logo, e,
portanto ela é breve), ou uma dor é suportável. E se suportável, se não nos faz
morrer, é porque é leve. Conseqüentemente, ela está de todo modo reduzida,
senão a nada, pelo menos ao nimo possível
(FOUCAULT, 2004, p. 574).
A meléte thanátou é isomorfa à premeditação dos males por que ela não é apenas
um acontecimento possível, mas um acontecimento necessário; e por que não é um
acontecimento com alguma gravidade, mas com uma gravidade absoluta; e, ainda, ela pode
ocorrer a qualquer momento. É para este acontecimento como infortúnio por excelência que
devemos nos preparar pela meléte thanátou, que constituíra um exercício privilegiado.
Esse exercício de morte é diferente, esse exercício de meditação sobre a morte é
diferente, dos demais exercícios, pois nos traz a possibilidade de uma tomada de consciência
e, nos estóicos, esse exercício consiste em considerar que a morte está presente, segundo o
esquema da praemeditatio malorum, é que estamos vivendo nosso último dia. Devemos viver
cada dia como se fosse o último!
Sêneca afirma: “Só na morte me darei conta do progresso moral que
pude fazer no decurso de minha vida. Espero o dia em que serei juiz de mim
mesmo e saberei se minha virtude está nos lábios ou no coração [...].
quando perderes tua vida é que veremos se tudo não passou de trabalho
perdido”. Portanto, o pensamento sobre a morte é que permite a retrospecção
e a memorização valorativa da vida (FOUCAULT, 2004, p. 582).
Outra forma de exercício é o exame de consciência. É uma antiga regra pitagórica que
não deixou de ser citada por nenhum dos autores antigos e basicamente dizia: “prepara-te
para um sono sossegado, examinando tudo o que fizeste durante o dia”. Ele tem por função
uma purificação do pensamento antes do sono. E esta purificação antes do sono está ligada à
idéia de que o sonho é revelador da verdade da alma: “é no sonho que se pode ver se a alma é
102
pura ou impura, agitada ou calma”. Essa idéia será encontrada em todo o pensamento grego
e, assim como o exercício de morte, tomará uma conotação bem diferente nos estóicos.
(FOUCAULT, 2004)
Nos estóicos, aparece sob duas formas: o exame da manhã e o exame da noite. O
primeiro é um exame do que se vai fazer há aqui, uma aproximação com o porvir, mas um
porvir imediato; trata-se de repassar as tarefas e os objetivos do dia. no exame da noite,
devemos nos colocar frente ao que fizemos durante o dia, sermos juiz e réu de nossas ações
parece estar aí a “origem” da confissão, e do exame de consciência que será disseminado pelo
cristianismo a partir do século XII. No entanto, o exame de consciência de Sêneca é
completamente diferente deste que será usado pelo cristianismo.
O exame de consciência de Sêneca é um exercício de memória não apenas em
relação ao que se passou durante o dia, mas em relação às regras que devemos ter no espírito.
É também uma espécie de prova, pois podemos medir em que ponto estamos, se ainda um
grande esforço a fazer, se estamos longe da meta, etc.
/.../ é preciso cuidar de si, cuidar de si é equipar-se para uma série de
acontecimentos imprevistos, em relação aos quais porém serão praticados
alguns exercícios que os atualizam como uma necessidade inevitável, em que
serão despojados de tudo que possam ter de realidade imaginária, a fim de
reduzi-los estritamente ao mínimo de sua existência. É nestes exercícios, é
pelo jogo desses exercícios que se poderá ao longo de toda a vida, viver a
existência como uma prova. Para resumir, diria sucintamente que esta ascese
filosófica – o sistema ascético cujas significações e elementos principais
procurei lhes apresentar não é absolutamente do mesmo tipo da ascese
cristã, cuja função essencial consiste em fixar, em sua ordem, quais as
renúncias necessárias que devem conduzir ao ponto extremo da renúncia de si
mesmo. Portanto, a diferença é grande, mas não basta restringir-se a essa
simples distinção e dizer que a ascese filosófica não passa de um exercício
para a formação de si mesmo. Creio que devemos compreender a ascese
filosófica como uma certa maneira de constituir o sujeito de conhecimento
verdadeiro como sujeito de ação reta. E, constituindo-nos ao mesmo tempo
como sujeito de conhecimento verdadeiro e como sujeito de ação reta,
situamo-nos em um mundo ou nos oferecemos como correlato de nós mesmo
um mundo que é percebido, reconhecido e praticado como prova
(FOUCAULT, 2004, p. 588-589).
Foucault lembra que esses processos foram realizados ao longo de séculos e reforça
que o que procurou apresentar foi o movimento pelo qual, no pensamento antigo, a partir do
período helenístico e do período imperial, o real foi pensado como lugar da experiência de si e
ocasião da prova de si.
103
O mundo, a partir de um certo momento, deixou de ser pensado para tornar-se
conhecido, medido, dominado, graças a alguns instrumentos e objetivos que caracterizavam a
tékne, ou as diferentes técnicas.
A bíos
34
, a vida, é uma prova. É uma prova quando permite que, através do mundo,
façamos a experiência de nós mesmos, nos descobrimos, nos revelamos a nós mesmos. E é
também uma prova, por ser um exercício, exercício que nos fará transformar, caminhar em
uma direção, para uma meta, a salvação. Tomar a vida dessa forma é tomá-la de modo
bastante diverso ao que era no pensamento grego clássico vemos dois processos: em um
deles o mundo deixou de ser pensado para ser conhecido através de uma tékne; no outro, o
bíos cessou de ser o objeto de uma tékne para tornar-se o correlato de uma prova, de uma
experiência, de um exercício.
A partir dos séculos IV e V, o cuidado de si, a prática do cuidado de si, é tomada como
um conjunto de práticas, a askésis. Conjunto de práticas que tinham por objetivos os cuidados
com o corpo por exemplo, reforço a formação do atleta , os cuidados com a alma , por
exemplo, controle das emoções – mas principalmente, o “cuidado” com os discursos, uma vez
que eles possibilitavam voltar a face ao futuro.
Esses discursos, esse cuidado com os discursos, se dava pela necessidade de
conhecimentos teóricos o domínio da natureza –, e pela necessidade de “ter a mão”
prochïron echeïn – esses conhecimentos para que se pudesse usá-los quando necessário fosse.
Esse “ter a mão”, vale lembrar, implica que esses conhecimentos estejam inteiramente
assimilados, pois só assim poderemos deles fazer uso.
Mas como esses discursos são tomados pelo sujeito, como são assimilados? São
assimilados por técnicas de apropriação, principalmente a memória. A importância da escuta
saber ouvir –, da escrita hypomnémata –, e do voltar a si memorização são elementos
essenciais na apreensão dos discursos, essenciais para que o sujeito se valha, em seu dia-a-dia,
de discursos verdadeiros, se valha de seus discursos verdadeiros.
São, em síntese, conjuntos de técnicas que têm por objetivo vincular a verdade ao
sujeito. Lembrando que não se busca a verdade do sujeito, nem de fazer da alma o lugar onde
34
Segundo AGAMBEM (2004), “os gregos o possuíam um único termo para exprimir o que nos queremos
dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que
reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais,
homens ou deuses) e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo”
(p. 09). Considerando o cuidado de si, fica claro, pela argumentação foucaultiana, a importância da integração
dos dois conceitos. Foucault alerta que no limiar de modernidade biológica, a sociedade passa de um ‘estado
territorial’ ao estado de população’ e o conseqüente e vertiginoso aumento da importância da vida biológica e da
saúde como problema de valor soberano, que se transforma progressivamente em ‘governo dos homens’
(FOUCAULT, 2003, p. 304-305).
104
reside a verdade, trata-se de armar o sujeito de uma verdade que ele não conhecia e que o
residia nele. Trata-se de fazer dessa verdade apreendida, memorizada, progressivamente
aplicada, um quase-sujeito que reina soberano em nós, trata-se da autonomia do sujeito.
Autonomia que se dá, então, pela meditação dos males futuros praemeditatio
malorum pela independência em relação ao mundo exterior com as práticas de
abstinência, de privação ou de resistência – pelo controle das representações, do pensamento –
a meditatio, a exercitatio – e ainda, com o exercício de morte – a meléte thanátou.
Chegamos a mais uma qualificação do cuidado de si: em Alcibíades o cuidado de si
tinha por objeto o eu e por finalidade bem governar aos outros objeto e finalidade estavam
separados. Nos séculos I e II, o cuidado de si tinha por objeto e finalidade, o eu objeto e
finalidade estavam juntos, entretanto, a finalidade era ocupar-se consigo para salvar-se, para
conseguir a redenção divina. Já nos séculos V e VI a finalidade é cuidar de si para se
constituir como um sujeito autônomo, objeto e finalidade estão juntos, mas com vistas à
constituição de um “quase-sujeito que reina soberano em nós”. Essa, a ultima requalificação
do cuidado de si, do conhecer-se a si mesmo. Esse é o ponto no qual conceberemos a vida
como prova, a vida como obra de arte.
Sucintamente, esta ascese filosófica não é absolutamente do mesmo tipo da ascese
cristã, cuja função essencial consiste em fixar em sua ordem quais as renúncias necessárias
que devem conduzir ao ponto extremo da renúncia de si mesmo.
Portanto, a diferença é grande, mas não o bastante para restringir-se a essa simples
distinção e dizer que a ascese filosófica não passa de um exercício para a formação de si
mesmo. Parece que devemos compreender a ascese filosófica como certa maneira de
constituir o sujeito de conhecimento verdadeiro como sujeito de ação reta. E, constituindo-nos
ao mesmo tempo como sujeito de conhecimento verdadeiro e como sujeito de ação reta,
situamo-nos em um mundo, ou nos oferecemos como correlato de nós mesmos, que é
percebido, reconhecido e praticado como prova, como obra de arte.
105
I
NTRODUÇÃO À
I
LUMINAÇÃO
106
Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos
anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas,
de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de
astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse
paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto (Jorge Luis Borges,
O Fazedor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 102)
107
108
M
ARIA
C
ESARINA DE
L
IMA
S
IMÕES
35
Estou com 84 anos. Eu divido a minha vida em quatro partes: - A infância. Filha de
imigrantes pobres, mas trabalhadores. E foi assim do nascimento até o diploma de primário.
Lutando. Meu pai era ferroviário, conseguiu uma bolsa para que eu continuasse o estudo.
Estudei em Lins, na Escola Normal Livre de Lins, onde estudou o célebre (como se chamava
mesmo?) Ulisses Guimarães. Mas, graças a Deus, aquilo foi: não decepcionei nem meus pais
nem o diretor que concedeu a bolsa.
Comecei a estudar em Avaí. Acho, que com 7 anos. Eu
sou filha única e meu pai foi transferido para Lins. Fiquei na
casa de uma amiga da minha mãe e estranhei. Aquele ano fui
reprovada. Fui pra Lins, fiz o quarto ano e tirei o meu diploma.
Entrei na Escola Normal Livre de Lins. Depois ela foi
transferida para o Diocesano de Lins. Lá, fiz sete anos. Então,
tem a fase da infância, a fase do estudo.
A minha infância... Antiga, bem antiga. Não era como hoje que tem tudo ... Eu era
muito apegada à minha mãe, porque era eu, ela e meu pai. Ela não era severa. Não fiz
muita arte, não. Mas hoje, os filhos aproveitam muito dos pais, não é? Hoje aproveitam...
Então, entrei no Normal e, com 18 anos, eu recebi meu diploma. Com 18 anos eu me formei.
Eu acho que eu recebi muita graça de Deus, porque não é fácil você receber o diploma
e ir trabalhar. Hoje, também não é muito fácil, não. Recebi o diploma e era difícil arrumar
uma cadeira. Mas, por incrível que pareça, o Delegado de Ensino mandou a servente escolar
falar para mim “Dona Maria, o professor Silvio está chamando a senhora. O Delegado de
Ensino”. Ai eu estranhei, falei: “nossa!” Cheguei lá ele falou assim “Olha professora, o
Doutor Urbano Teles de Menezes” que era o prefeito aquele tempo “tem dez escolas
municipais para distribuir. distribuí nove, falta uma. Ninguém quer”. Por quê?” “Ela está
situada na beira do Dourado, onde dá maleita até em pau. Se a senhora quiser, daqui a um mês
a escola será transferida, mas tem que ir pra lá”. Cheguei em casa, meus pais ficaram bravos,
não queriam. Tudo é por Deus. Eu fui. Fiquei um mês lá. Vi muita gente morrer com maleita.
35
Entrevista realizada na residência da depoente na cidade de Bauru, no segundo semestre de 2004. Teve uma
duração aproximada de 40 minutos
109
Então, com 19 anos eu comecei a trabalhar nessa escola que ficava em Lins. Era fazenda. “A
fazenda está situada à beira do Dourado, onde dá maleita até nos paus”. Fiquei lá um mês.
Depois, fui pra Água Limpa, em Lins, fazenda também. Ai, eu fiquei dois anos na
Água Limpa, depois eu fui... (engraçado, esse tempo era municipal, mas foi contado pra
aposentadoria...). Ali em Água Limpa tinha até luz elétrica. Mas, também.... Você acredita?.
Cama, assim... (para filha única olha o que eu passei, viu?) era com colchão de palha, que
vocês nem conhecem. Tinha dois colchões de palha, então a cama ficava alta. Eu dormia no
meio, porque a vaca vinha de noite e eu tinha um medo que só vendo! Mas quando chegava o
fim de semana, eu ia para casa no sábado à tarde e voltava para a fazenda na tarde de
domingo. Quando voltava, os bois estavam todos no pasto. Tinha um boi branco, um zebu,
que ficava olhando, eu para ele, ele para mim, até que aparecesse o rapaz que ia recolher os
bezerros. Tem coisa que a gente passa que serve para dar risada depois.
Depois, eu fui transferida pra Machado de Melo. Acho que vocês nem conhecem...
Noroeste. Fiquei em Valparaíso, dois anos. Por que em Machado de Melo era uma
escolinha. Era eu, Álvaro e a Lúcia. Três professores, só. Eu morei em casa de japonês. Nossa
como nós sofremos ali! Naquele tempo... (por isso é que eu falo como é fácil hoje e, assim
mesmo, não querem ensinar, querem tudo pronto). Se a gente tinha caderno? Linguagem,
caligrafia, desenho... Todos os caderninhos. Levava para corrigir, dar nota. Hoje é tudo (como
é que fala?) apostila. A criança não aprende a trabalhar... Eu acho. Nem sei... Quem sou eu?
Se fizeram a reforma foi porque acharam melhor...
Nossa, menino! Ali em Machado de Melo eu morava na pensão japonesa. Gente! É
preciso ter mesmo vontade, necessidade de trabalhar. Banho? Nunca mais vi japonês assim.
Aquele era japonês, japonês. Aquelas cuias de madeira. Punham fogo e tomavam banho. Eu e
a outra professora compramos bacia e colocamos no quarto para a gente tomar banho. Aquele
fogão, fogão antigo, nem sei se vocês conhecem (Agora, nessa festa junina, fizeram um fogão
caipira). Fogão de lenha. E um bule de café desse tamanho. Ela punha o bule de café ali, a
dona Maria. Os japoneses gostavam de mim que vendo. Ela punha o bule e aquilo fervia o
dia inteiro. A hora que você chegasse o café estava fervendo. Puxa vida, ela fez cedo e ficava
até de noite, fervendo, fervendo...Ai, eu falei: “Dona Maria, esse bule está sujo, precisava
lavar” (eu tinha liberdade) “Precisava lavar” “Essa semana a gente vai fazer sabão e eu vou
limpar”. Aí o café ficou com gosto de sabão...
No primeiro dia que o Martinho (era o menininho deles) foi à escola, ao invés de
sentar na carteira, sentou no chão. Ai eu falei:“Martinho, não é ai que senta”. Sentou no chão.
Gostava muito de mim. Faziam bife de carne seca, acha? Vinha aquele trem de Mato Grosso,
110
aquele peixe que era uma maravilha. O Sujiwara subia lá, trazia o peixe, ela lavava e fritava.
“Dona Maria, a senhora precisa abrir o peixe, tirar...” “Mas eu estava com pressa” ela
respondia. Não sei como eu sobrevivi, viu? O quarto era meu e da Lúcia. Um dia, o Martinho
chegou com uma bandeja de doce, de batata, de feijão (não sei, eu não como) e eu falei “Por
que esse doce, Martinho?“É que hoje faz um ano que a Clara morreu”, a irmã dele. Um dia
apareceu uma aranha, desse tamanho, uma aranha preta. Eu e a Lúcia corremos, batemos,
chamamos, bati tudo, a aranha sumiu. Então fomos deitar. De manhã fui arrumar a cama, bati
o lençol e a aranha caiu: eu tinha dormido em cima da aranha!!!
Não tive mais contato com a Lúcia.
Depois de dois anos, de Valparaíso eu fui transferida pra escola mista de Monte Azul,
em Cafelândia. Era tempo do gasogênio. Vocês nem conhecem. Era um tempo que não tinha
gasolina: era o gasogênio. Então, fui pra lá. Era perto de Lins, mas era difícil o transporte
porque a jardineira falhava muito. que a gente tinha, assim, ordem” para parar qualquer
condução. Você levantava a mão, eles paravam. Então, eu viajei de carro, de gaiola de boi
(também acho que vocês não conhecem... conhecem aquela gaiola em que viajava boi?). Era
na beira da linha. Aquelas gaiolas sujas. Bastava acenar que o maquinista parava e a gente ia
embora. Viajei de trenzinho de linha (também não sei se vocês conhecem trenzinho de linha...
diziam “automovinho” de linha). Rápido, veloz que nossa senhora! Dei a mão e ele parou.
Fiquei tão contente: “Vou viajar de trenzinho de linha”. Quanto entrei, faltei morrer. Acho
que com a trava... Aquilo voou. Era na beira da linha e da escola eu via. Tinha ordem para
parar. Eu viajei bastante... Depois, eu fui transferida para Coroados, na Noroeste. Depois de
Coroados, eu fui transferida para Quintana Paulista, no Grupo Escolar. Em Quintana, ia dar
aula de charrete. Depois de Quintana eu fui transferida pra Alferes Guedes, Sorocabana.
Sempre rodeando para ver se vinha para Bauru. Eu estava na escola de segundo estágio.
Mas não havia meio. Então eu fui pra São Paulo, que já era terceiro estágio.
Funcionava assim: no início era primeiro estágio, segundo estágio, terceiro estágio. O
primeiro estágio erano sitio. Segundo estágio era melhorzinho. Terceiro estágio era capital,
cidade. Terminando o ano, a gente entrava em concurso. Aquele tempo tinha roça, era ruim
mesmo. Às vezes, escolhia uma escola melhor que era segundo estágio. Era difícil ter vaga de
segundo estágio para quem tinha acabado de se formar, não eram tantas escolas, como é hoje.
Então, mandava a gente para o pior lugar, pior (porque quem estava lá correu para sair, deixou
aquele buraco... Mas para quem não tinha colocação, entrar naquele buraco já era uma mão de
Deus... O linguajar está meio vagabundo, mas vocês estão entendendo, não é?).
111
Então, de Alferes Guedes, fui para São Paulo, terceiro estágio. Tanto que quando São
Paulo fez 400 anos, eu estava lá. Foi a época mais bonita... Então, estando no terceiro estágio,
foi mais fácil para descer, eu dei um ré: queria vir para Bauru. Tanto que o Diretor falou:
“Mas professora, a senhora está num terceiro estágio, vai voltar?”. “Mas pelo menos eu vou
arrumar minha vida”, pensei. De São Paulo, no Grupo Escolar Coronel Pedro Arbues, eu
consegui voltar pra Bauru, num Grupo, no Luis Castanho de Almeida. Fiquei doze anos aqui
em Bauru.
Para os professores, a vida de antigamente não era como a de hoje. Antigamente, a
gente fazia o semanário. Para o semanário tinha que fazer pesquisa sobre o que teria que dar
durante toda a semana: hoje eu vou dar aula disso, por exemplo, de verbo... (hoje em dia eles
não conhecem muito verbo, não é? Conjugar verbo. Às vezes, vejo na televisão moça bonita
que fala mal pra chuchu. Quando falam errado bate aqui, dói. Fazer o quê? Agora é assim...)
Eu, modéstia à parte, sempre fui boa aluna. Eu não decepcionei meu pai que conseguiu
a bolsa e não decepcionei o diretor que forneceu. Olha que engraçado, eu não esqueço da
última prova da escola Normal. A gente estudava tanto que, às vezes, a turma não era
eu –, a gente punha o na bacia com água fria, para não dormir enquanto estudava...
Estudava mesmo. A gente era mocidade, antiga. Hoje, eu nem conto, porque falam: “Ela é
quadrada”... Nos exames, punham dez teses. Na hora da prova sorteava e você tinha que
deslanchar sobre aquela que caía (eu me lembro que na última prova a gente ia numa mulher
que dizia adivinhar o que ia cair...). e na última prova da Escola Normal sortearam o ponto e
eu: “Ai que bom, eu sei”. E não é que eu tive uma amnésia momentânea que apagou tudo?
Eles sabiam que eu era boa aluna, e então ficaram rodando de pra , olhavam na minha
prova, e nada. Olhavam: em branco. Aí, eu cansei e entreguei. Juro por Deus: eu pus o pé para
fora e lembrei da tese inteirinha. Nunca esqueço. Eu entreguei a prova e lembrei de tudo. Mas
aí já não podia voltar...
Nos dias de exame sempre tinha o professor e um inspetor junto, olhando (não era como
agora, que trazem a prova já pronta e entregam). Lembro do professor Veloso, de Português e
Matemática. Eu era ótima, eu gosto muito de Matemática. Uma vez, sortearam um ponto (eu
não me lembro qual) e a classe inteirinha não acertou. Eu acertei. Fui a única a acertar. Ele
ficou contente, porque, se não, ele ia ficar desmoralizado (ele uma coisa que ninguém
sabe?). Então, ele foi e conversou comigo. Não fez “aquele” elogio, mas eu me lembro
disso...
E tinha a professora de Pedagogia e Psicologia, Dona Maria Piedade Coutinho, uma
senhora gordinha, baixinha. Ela punha a mão para trás (um silêncio quando ela entrava) e ela
112
começava a falar de tal ponto e a gente escrevendo, escrevendo, escrevendo, escrevendo .Não
se ouvia o barulho de um mosquito. Escrevendo, escrevendo, escrevendo. Aí, no fim, a gente
se juntava, uma pulou um pedaço, a outra corrigia e formava tudo. Não era fácil! Hoje tem
livro, mas naquela época não era fácil, principalmente para quem não tinha dinheiro. E a
minha família era pobre. Antigamente, não tinha biblioteca para a gente consultar. Era ali
mesmo, no estudo. Não tinha biblioteca: era o livro. Então, a gente estudava. Infelizmente, às
vezes falam... (tem hora que a cabeça falha)... a turma toda, as meninas da classe, eram gente
de classe média. Eu era pobre, mas engraçado, eu não sentia ali (como é que a gente fala?)
separação, não. Até isso eu noto. Eu estudava muito com a filha do Delegado de Ensino, Ercy.
E também nunca senti discriminação por ser negra, não. Muito raro. Eu acredito que,
naquela época, eu era negra lá. Eu não sei por que, mas eu não encontrei discriminação,
não. Se bem que meu lema era “senta-te em teu lugar que nunca te farão levantar”. Eu não ia
fuçar na vida de rico (nunca!). As colegas me tratavam bem. Eu sei que existe a
discriminação. Felizmente, eu tenho tido bons colegas, boas colegas. Mesmo assim, apesar de
tudo, eu tinha uma vida assim, diferente. Quando eu ia, por exemplo, estudar na casa da Ercy,
que era filha do Delegado, eu tinha vergonha. Estudava, saía, eu achava bonita a casa... Mas
nunca eu senti separação nenhuma. Não sei por que, viu? Mas que existe, existe. Naquele
tempo, não entendia muito isso. Não percebia. Hoje, veja você, eu abro, pego o jornal, aquela
coisa... Apresentam isso, apresentam aquilo, uma peça aqui, uma peça ali, e é difícil ver um
negro (você viu?). pensei, um dia, em falar isso para o. Jornal da Cidade. Tem
preconceito, sim. Eles querem esconder, mas não dá.
Graças a Deus, esperei bastante para casar. Esperei 40 anos para casar aqui em Bauru.
Casei com 40 anos, com o célebre Balbino Simões, do futebol. Quando casei, ele não
jogava: era técnico do Noroeste. É uma história. Eu falo para o meu filho Laércio: “Dá para
contar uma história”.
Tive um filho. Casei em 1960, engravidei, abortei, mas eu também não fiz questão de
nada: estava velha mesmo. Ai, eu fui no Paiva e peguei um menino para criar. Tinha um
ano. Aí, depois disso, eu engravidei e tive um filho legítimo. Então, tem o Fábio, que eu
peguei pra criar, e o Laércio, legitimo, com 42 anos. O Fábio morreu num acidente e deixou
um filho que hoje me chama de mãe. O Laércio tem 4 filhos. Então, tenho quatro netos.
Cinco, mas um deles me chama de mãe (agora ele casou e tem um filho). Sou viúva 10
anos. uns dois anos moro nesse prédio. Quando eu trabalhava, morava na vila Falcão.
Depois, o filho casou. Fiquei avó muito velha e eu não tenho paciência (não é que eu não
113
tenha paciência, é que meu modo de criar foi diferente: eu não quero incomodar e não quero
ser incomodada).
Então é isso: comecei com 19 anos, em 1939, e aposentei em 1969, com 49 anos...
Nossa! Já tenho 35 anos de aposentada. É mais tempo de aposentada do que passei no
magistério. Então, eu acredito (não sei se vocês acreditam ou o) que isso é uma graça de
Deus para mim. Nunca fiquei doente, vim “de cabo a rabo”, como se diz na gíria. Eu participo
dos encontros da terceira idade, no SESC. Um dia, um senhor veio falar sobre dança, sobre
como prolongar a saúde. Falou que a mãe dele teve um derrame. Diziam que não ia falar
mais. ele falou: “A senhora vai falar”. Sempre com pensamento positivo: “a senhora vai
andar”. E disse que hoje ela fala, anda... Não se pode deixar a peteca cair...
Você já escutou uma história longa assim?
114
115
D
IRCE
M
ORAES
M
AITINO
36
Meu nome é Dirce Moraes Maitino, tenho oito ponto oito: oitenta e oito anos. Meu pai
era baiano, Hermógenes Moraes Barberini, e minha mãe era cabocla, como nós. O papai veio
da Bahia. Passou por um canto, por outro, e chegou até Dois Córregos, onde trabalhou de
padeiro. Aquele tempo, não tinha nada de conforto e ele acabou prejudicando a vista. O calor
do fogo acabou prejudicando a vista dele (ele não enxergava), mas era uma criatura
maravilhosa, graças a Deus. Minha mãe também. Os dois muito trabalhadores e muito batutas.
O papai trabalhava independente, era autônomo, fazia qualquer bico. A mamãe era dona de
casa.
Eu nasci na Vila Ribeiro, uma vilinha que tem aqui em Jaú. Nasci, cresci, casei, criei
os filhos, dois filhos que eu tenho: um que é aposentado aqui do Banco do Brasil, o Kleber e o
Edson que era professor na Unesp, aposentado também. E aqui eu estou até agora.
Quando meninota, estudei no Major Prado. Ali a gente brincava ... Não tinha essa
liberdade que hoje a criançada tem com os professores, de jeito nenhum. Era tudo com muito
respeito. Então, a gente convivia bem com o pessoal. /.../ respeito. A gente brigava com
professores? Nunca. Tinha muito respeito, respeito e medo. Mesmo porque naquele tempo era
tudo diferente, a educação vinha de casa, vinha do berço e hoje está diferente. Hoje, a
educação do berço está bem diferente pelo que se por ai, porque eu tenho amigas que são
professoras, e elas dizem que não pode chamar a atenção, não pode falar nada, nada, nada,
porque o pai vai contra o mestre, contra a professora. Aquele tempo, não. Se o professor
reclamasse alguma coisa... Olha! Nem precisava, porque a gente tinha educação, mas sabe
criança como é?! Pai e mãe nunca iriam contra professor, contra os mestres.
Então, eu entrei na escola com 10 anos, já era Grupo. Não fiz até o quarto ano; estudei
até o segundo ano. Não deu mais porque o papai mudou. Foi para onde eu nasci, para os
sítios, aqui na região. Então, não deu para continuar. Eu saia um pouco da escola, voltava
outro pouco, mas estava atrasada, os outros tinham adiantado um pouco, mas também
nada tinha tanto progresso. Não tinha televisão, não tinha rádio para ouvir. Se tivesse rádio
para ouvir eu não podia, não era eu que ouvia, era o pai e a mãe (pouco também). Amiguinhas
que falassem as coisas, não tinha. Então, a gente não sabia nada, nada. Era diferente. Não que
agora seja muito pior, mas na matéria da educação está pior, porque a gente nota que tinha um
medo louco do pai e da mãe. Medo e respeito. O pai e a mãe não precisavam falar para sair
36
Entrevista realizada na residência da depoente na cidade de Jaú, no segundo semestre de 2004. Teve uma
duração aproximada de 1 hora e 10 minutos.
116
quando entrava, na sala, visita. Fazia assim, com os olhos, e a gente saia. Não precisava
falar “vai embora filho, filha”, não! Dava um sinal assim e a gente saia, ia embora. Agora,
mãe nem olha para o filho, porque não adianta olhar mesmo. Ele não quer nem saber.
Era tudo difícil, tudo mais difícil, mesmo porque pai e e não estavam tão
interessados em estudo. Coitados, o pouco que eles sabiam dava, e o pouco que os filhos
sabiam também dava. É assim que funcionava. Aquele tempo não é como agora, que pai e
mãe fazem, e querem que estude, que os filhos não obedecem, são rebeldes e não querem
saber. Porque a gente percebe, a gente não é bobo, imagine! Nossa vida! Registrar, por
exemplo: nascia, registrava quando dava certo, não registrava já. Agora não. Acaba de nascer,
já vai registrar.
Então, não havia muita possibilidade de estudo. E as pessoas que conviviam com a
gente, eu não sei, porque sumiram. Você vê, eu tinha uma amiga (faleceu aqui na rua
Quintino Bocaiúva), uma síria, foi minha colega de escola, mas faleceu. E tinha uma em
São Paulo, que também já faleceu. As outras a gente não sabe onde foram parar.
Dos professores que tive, lembro dessa professora que morreu, Cacilda Capinzaiki.
Pena que não deu tempo de conversar com ela. Não convivi com ela, não, porque ela mudou
para longe, depois que voltou para Jaú. Foi ela quem me ensinou os primeiros passos, foi
quem orientou alguma coisa, dentro do possível, porque os mestres também, coitados... O que
você queria que eles soubessem tanto? Agora, qualquer aluna sabe mais do que eles! Aquele
tempo, era tudo diferente. Mas em parte era gostoso, era bom. Era bom porque o que a gente
comia era puro, era batata doce, era mandioca, era abobrinha, tudo colhida ali, frutas... Tudo
ali. Agora, você vê, tudo podre, tudo danado, está levando todo mundo para morte. E não tem
outro jeito, tem que comer.
Eu conhecia também o professor Terésio
37
(não foi meu professor, mas eu conhecia),
porque ele morava logo abaixo da casa que eu morava, na rua Governador Armando Sales. Eu
tinha casa e morava aqui também. Aqui é o apartamento que a gente comprou. A gente
tinha amizade, ele era um professor e tanto. Que pena que faleceu. Claro, tem muitos
professores bons, dedicados. Aqui na Fundação Raul Bauab mesmo, nossa vida. Tem que
gostar do que faz, senão... Tem que gostar de lecionar, gostar do trabalho que faz, gostar do
que vai fazer.
37
Antônio Terésio Peixoto.
117
Meu segundo marido não era de Jaú, era de São Carlos, filho de italiano: Roque
Maitino. Uma pessoa muito inteligente, muito batuta, tinha comércio em frente ao correio,
então ficou muito tempo aqui.
Comecei a trabalhar no deposito de material de construção, depois que fiquei viúva, e
casei de novo. Era nosso depósito, na rua Governador Armando Sales. A Casa da Lavoura, foi
meu marido que construiu; ele e o filho (que é engenheiro). Além disso, construíram, no
Pouso Alegre
38
, um Grupo Escolar, em 1950, 1960, e um outro na Barra Bonita. Então, eu
trabalhei no comércio, onde me aposentei, faz uns tempinhos bons. Independente disso, a
gente canta, gosta de cantar mesmo. A gente vai para lá, vai para cá e, agora vamos fazer esse
trabalho (A Noite da Seresta), no teatro Elza Munerato.
No depósito de construção, eu colaborava com o que podia. Tinha dificuldade, mas
fazia. Guardava na cabeça e quando o marido chegava, eu falava. Cheguei a vender material
de construção para Mineiros do Tietê, para o Fiscal, sem nota. Mas ele era um amor de
criatura. Quando meu marido chegou, eu falei “vendi para o seu Toledo”. Ele falou “ele é
fiscal”. Mas eu não tirei nota. Porque meu marido trabalhava na Casa da Lavoura, fazia igreja,
e eu e o filho, que é esse de Bauru, é que ficávamos no deposito. Meu filho ficava para
entregar material. Tinha que se virar. Porque eu vejo que a mocidade, hoje em dia... Começa
da minha neta, um amor de menina. Estuda na Fundação, uma das melhores alunas. Paz e
amor. Sai sexta e sábado. Domingo, ela não sai. Sexta e sábado ela sai. Quando chega às dez e
meia, onze horas, meio dia, o pai leva o vitaminado na cama. É a caçula deles, é a última.
Tem dois casados, em São Paulo. Essa é a caçula. Leva o vitaminado na cama. Ela toma e vira
do outro lado. Ai, para levantar, às duas e meia, três da tarde, para almoçar, palmadas! Tem
20 anos, 22 aninhos... Menino! Essa, eu posso falar, porque é minha neta. Não é filha dos
outros, nem neta de ninguém, é minha. Que eu amo de paixão. Mas é assim. E sabe como é
que a mulherada fala: “só muda o endereço”. É tudo igual. Só muda o endereço.
Tive cinco irmãos. Teve um que morreu agora, em Cafelândia, com 95 anos, a gente
chamava ele de Tio Erpídio. Vivos, tem eu, um irmão em São Paulo, Nelson (investigador) e
um irmão aqui na Nova Jaú, José (esse a mamãe pegou para criar). O José é adotivo, mas eu
nem lembro disso. É o mais novo. A gente já era grandão quando a mãe dele apareceu e falou
para minha mãe “fica com ele, senão a gente joga no rio”. A minha mãe falou “mas eu tenho
cinco homens e uma mulher?E ela falou: “Mas se a Senhora não ficar com ele...” Minha
mãe falou: “então eu fico, eu fico com ele”. A gente ama de paixão. Eu lembro que é
38
Bairro da cidade de Jaú.
118
adotivo num caso desses (entrevista), fora isso, é amor de paixão. Super irmão. Volta e meia
ele vem aqui. Bate papo com a gente. A gente tem mais dificuldade para ir à casa dele, mas
ele vem aqui. É amor. E ele é apaixonado por nós todos. Ele mora na vila Nova Jaú. os
filhos dele estudaram mais.O Nelson deve ter 82 ou 84, porque a mamãe tinha os filhos a cada
dois anos, menos esse adotivo. Os outros eram de dois em dois anos, eu estou com 88, ele está
com 85, 86. Ele estudou pouco também.
Dois irmãos fizeram a Revolução. A Revolução de 32, eu acho. Mas não serviram
como soldados, mas na “Ordenanza dos Capitães?” Mas nem foram lutar, nem nada,
participaram, mas não como agora, que a gente soube que já morreram 80, 90 pessoas. O que
é isso, menino?! Menino?! Acho que isso é só a metade que a gente fica sabendo.
A vida era mais fácil, tinha menos fartura, porque não tinha supermercado, tinha
“vendas”. Então, papai ia às vendas, comprava as coisas. Esse mês marcava para pagar o mês
que vem, o mês que vem fazia outra compra, para pagar o outro mês. Quando pagava a conta
ganhava uma lata de marmelada, goiabada. A glória para nós, era a festa. Hoje, meus netos,
fala de marmelada, vira até o rosto, tem até febre!
Meus filhos, aquele que mora aqui é aposentado no Banco do Brasil (contador), o de
Bauru, é aposentado da UNESP. Os filhos da gente têm um outro tipo de vida, mas nem por
isso eu sou infeliz.
Independente disso, eu cantava. Eu trabalhava no deposito de dia e à noite, até a
madrugada, eu cantava. Cantava para construir a igreja São Sebastião. De noite, de
madrugada, eu cantava para arrecadar dinheiro na quermesse. Nunca via um centavo. Meu
marido e o filho dele pegavam todo o dinheiro. Eu cantava até de madrugada, de dia eles
pegavam todo o dinheiro. Era areia, cal, cimento, caibro e telha. Tudo para construir a igreja
São Sebastião. Modéstia à parte, ela esta por causa da gente. Meu marido era apaixonado
para fazer aquela rampa, para as noivas subirem. E o altar-Mor? Era para ser giratório, porque
ela é redonda, mas o dinheiro não deu. Mas ela é linda. Ela é linda do jeito que é. É
maravilhosa. Naquele tempo, quermesse valia a pena.
Na quermesse eu não fazia nada, a não ser cantar. Eu não curtia nada, nada. Comia em
casa, de madrugada. Hoje, o pessoal faz quermesse e é aquele rebuliço. Não dá dinheiro. Não
prejuízo, porque ganha muita coisa, mas também não dá dinheiro. Aquele tempo, dava
dinheiro. Os Pires de Campos eram ricos e gostavam de quermesse. O Amauri Barroso de
Souza gostava de quermesse. Ele era riquíssimo, mas morreu pobre. Ficou pobre, mas era
maravilhoso.
119
Antes da construção da Igreja, eu cantava. Cantava por ai. Eu fui ao Rio de Janeiro
cantar no programa do Ary Barroso. Cantei e ganhei o primeiro lugar. Eram 120 contos, a
paga, o cachê. Mas eu não fui para ganhar o cachê, porque eu não podia. Você tinha que se
inscrever primeiro e depois esperava ser chamado. Foi assim com meu amigo Luis Carlos
Prado (Canta que é uma maravilha!). Mas eu não. Comigo foi ao contrário. Fui eu, meu
marido, meu irmão, minha cunhada. Cheguei e falei “v ou cantar, quero cantar” (Longe,
muito longe de poder). Não podia, de jeito nenhum, pois eu não me inscrevi. Os outros que
eram inscritos estavam esperando a hora de cantar, agora chega eu lá, sem nada, não podia.
Eu falei: “com quem eu posso falar?”. “A única pessoa que a senhora poderia falar é o Ary
Barroso, mas ele não atender”. Eu falei: “Ele vai me atender. Não tem perigo. Aonde que eu
entro para falar com ele? Onde ele está?” Ela disse: “A senhora não pode entrar”. Falei:
“Posso. Sou uma cidadã brasileira, eu posso entrar. Eu não sou bicho. Eu posso entrar. Eu
quero entrar, devo entrar, e vou entrar”. Entrei. Falei com ele. Ele falou: “Mas não tem jeito”.
Falei: “Tem. Se você quiser, tem. Você me deixa cantar e acabou. Eu não faço conta do
prêmio, não faço conta de nada. Eu quero cantar. Eu vim de Jaú aqui para cantar. Então, eu
vou cantar, eu quero cantar”. Ele viu que não tinha saída (ele que era ele). Ele viu que o
tinha jeito para sair de mim e disse: “Se não tem jeito, coloque ela, encaixe”. Eu cantei. Cantei
um samba de breque e ganhei o primeiro lugar. Depois ele me convidou para fazer um show
no Rio. Nós fomos (meu marido estava junto). Eu não continuei porque era de Jaú. Meu
marido queria vir embora, e não iria me deixar lá! De jeito nenhum. Vim embora. Cantei,
recebi o prêmio (que não era para receber, porque não tinha direito, mas ele pagou. Eu recebi:
não roubei, ganhei). Viemos embora do Rio, gastei o dinheiro. E viemos de avião. Faz
cinqüenta e poucos anos. Até guardei a passagem do avião. Ficamos mais dias no Hotel:
Hotel Monte Carlo, ficamos mais um pouco e viemos embora para Santo André (meu irmão
era de Santo André. Viveu a vida inteira em Santo André. Eu amo Santo André, gosto).
Passamos na rádio Nacional, de São Paulo. Eu falei: “eu vou cantar na rádio também”, mas
meu marido disse “Escuta...” Falei: Fica frio. Já cantei no Rio, canto aqui também, em São
Paulo”. Mas lá não era dinheiro, lá eu ganhei uma máquina fotográfica, do Foto Léo. Estavam
os calouros, eu cantei e ganhei o primeiro lugar feminino. E o Wilson Miranda, masculino.
Ganhei essa máquina fotográfica e viemos embora. Mas eu não fiquei para aqueles cantos,
nem para São Paulo, nem para o Rio, porque eu morava em Jaú. Morava não, moro. Aqui
também a gente canta.
Nós fizemos trabalhos lindos aqui em Jaú, lindos, lindos. Meu filho, Kleber Vieira de
Souza (do primeiro marido) e eu. Fizemos na Matriz, no teatro. Coisa linda. O de Bauru é do
120
segundo marido, Edson Maitino. Eu casei duas vezes, aqui em Jaú. O Kleber canta bonitinho.
Fizemos trabalhos bonitos, eu tenho algumas fitas, porque eles mentem que vão apenas
regravar para eles e depois não entregam mais. Você sabe como é esse trambique! E agora,
com 8.8, vamos fazer no teatro. Agora em julho. No teatro Elza Munerato. Tem uma porção
de gente. Nós tínhamos um grupo maravilhoso, lindo, lindo. Ontem nós ensaiamos, foi o
primeiro dia que fui (os outros vêm ensaiando, faz tempo), porque eu estava em Bauru,
curtindo a bisnetinha.
O tempo que estudei ajudou muito. Deveria ter ficado mais na escola, porque ajudaria
mais; uma letra mais bonita. Ler a gente lê, não leio muito, gosto até de ler, mas não posso
forçar muito a vista, não devo. Não devo, porque eu fiz uma cirurgia na vista, lá em Bauru, da
catarata. A cirurgia foi linda, maravilhosa, o médico maravilhoso (gente de casa), mas eu caí,
cai e abalou. Então não devo forçar muito, mas gosto de ler. Na época em que estudava,
gostava. Aluno não gosta muito, mas tem coisa que interessa. Minha bisnetinha (com dois
aninhos) tem um monte de livrinhos de estórias, que eles vão cantando, contando estórias. A
gente não tinha. Para o pai comprar um livro para escola era uma dificuldade. Era uma
dificuldade, meu filho. Porque a turma fala que agora é crise, não tem dinheiro. Imagina!
Aquele era o tempo em que não tinha dinheiro. Tinha comida, porque plantava, porque colhia,
mas dinheiro para comprar as coisas, imagine! Nem para comprar livro, não tinha também.
Agora, tem a biblioteca. Aquele tempo não tinha. Parou. Nessa parte parou no tempo. que
a gente tem meio espírito evoluído, não sei por que eu não me atrapalho com nada. Tem
gente da minha idade que não sai do so, vendo televisão o dia inteiro. E eu não paro aqui.
Fui atropelada. Estava cuidando desse meu irmão de São Paulo (teimoso e me contrariava,
entende?). Ele me deixou estressadíssima, completamente estressada. Fui atravessar a rua,
para jogar o lixo e depois levar ele no médico, o carro me pegou. Aqui, na porta de casa.
Estava comigo, que estava no Hotel (porque aqui não tem lugar), no segundo andar. Fui
atropelada e fiquei na casa do meu filho (que é na rua Quintino Bacaiúva, número 54). Então,
meu filho mora ali em baixo. Esse, graças a Deus, estudou, se formou. Se formou na Horácio
Berlinck, na Academia. E tenho um neto em São Paulo que é regente, maestro, mas nem vive
só da música, faz teatro, faz as peças, agora mesmo (não sei se eu podia falar) ele está fazendo
um trabalho lindo para o XV de Jaú, um filme. E a gente vai cantar. Tem trecho que o coral
dele canta e que eu o Kleber vamos cantar. Quando ele falar que podemos ir, nós vamos.
Então, eu não pude deslanchar, não dava, não tinha dinheiro para comprar livro, para pagar a
escola. O Grupo ainda era dado, mas mesmo que quisesse, não tinha. Depois a gente foi se
abrindo.
121
Eu vivo bem, Graças a Deus, não tenho dinheiro, não sou rica, nem nada disso, mas
também não é o dinheiro que faz a pessoa viver bem, de jeito nenhum, o é?! Eu vivo bem
do meu jeito. Curto meus amigos, curto minhas amigas, vou cantar, vou ensaiar. Canto e
canto em qualquer lugar, onde tem gente cantando eu entro e canto também. Vivo bem,
Graças a Deus. Dinheiro não tem, mas dinheiro não precisa. O pouco que tem, dá. O que mais
você quer saber? Que eu vivo bem, isso você já sabe.
Acho que disse tudo... Que eu tenho essa bisnetinha, eu falei, que eu a amo.
Tenho dois netos em São Paulo, casados. O neto é regente, eu falei, mas não vive da
regência. Ele se vira naquele São Paulo que nem se fala. É uma coisa. Filho desse, que está
aqui, que mora aqui na Quintino. É uma criatura maravilhosa. Os velhos nunca se
incomodaram de fazer um filme para o XV de Jaú, e ele é uma criança e está fazendo. Com
música e tudo. Por ai você se a cabeça não é limpa, não é boa, não é maravilhosa. Mas
também se fosse um traste, eu falava: “É meu neto, mas não quer nada”. Não estou falando da
minha neta que dorme (mas dorme, uma santinha!). Eu cheguei até nessa conclusão e nem
falei para as mães que eu vou falar. Tem a mãe da minha bisnetinha, em Bauru, que
também está sempre cansada, está sempre cansadinha. É alta, bonita. E tem uma filha. A mãe
dela é que toma conta da filha. Ela toma também, mas a maior parte fica com a avó. E eu
cheguei numa conclusão: esse pessoal faz regime, não come direito o que gosta, o que devia
comer. Eles fazem regime. Eles passam fome, mas deixam a mesa farta, cheia de comida, para
não engordar. Então, fica esse mole-mole. Não pode ser isso; não tem fundamento! Se você
pudesse ir comigo um dia em Bauru, para você almoçar ... Almoçar na minha nora, onde ela
almoça e o marido também, porque a minha nora que faz tudo. Marido maravilhoso, mas por
enquanto ainda não se acertou. Qualquer dia, nós vamos lá. Não é marcar: chegar de estalo.
Uma maravilha de coisa para comer. Belisca aqui, belisca ali, come o que não engorda. Ela
gosta de brigadeiro. Ama brigadeiro. Tinha na festa da menina, imagine. Mas eu levei
brigadeiro daqui, diferente, lindo. Ela comeu. Eu falei: “experimenta”. Ela experimentou e
falou, “Vó eu comeria tudo isso daqui, mas eu vou guardar para ir comendo devagarzinho”.
Então chegamos a essa conclusão: “esses trem não comem, passam fome para não engordar”.
Com tanta coisa que tem para comer. É até um pecado, não é, menino? Porque tem os que
passam fome porque não têm. Eles passam fome, com a mesa farta. Ela e o marido almoçam e
jantam também. Minha nora, já tem aquela coisa, aquele gosto de fazer. Mas eles não querem
ganhar uma grana.
Falei que nós cantávamos na igreja. Fizemos trabalhos maravilhosos na igreja. Padre
Chiquinho que nos anunciava. Conheceu o Padre Chiquinho? Era um amor, para mim. Mas
122
tinha gente que não gostava dele. Ele era rígido. Não tinha motel aqui, porque ele não
deixava. Nos fazíamos esse trabalho lindo na igreja. Eu, meu filho, o pessoal que a gente vai
fazer a seresta. Cantei “A noite das estrelas”. Eu tenho a fita. Quando você tiver tempo...
Agora, de domingo ... Tenho uma amiga que é como uma filha adotiva, que o marido é
como um filho adotivo da gente. Foi criado junto com meus filhos. A mãe dele tinha dois, eu
tinha dois, então embolou toda a área do gramado. Ficou tudo irmão. É um baterista de
primeira, de primeiríssima. O “senhor” professor. O apelido dele é Nino. Ele é o senhor
Professor. Então, a esposa e ele, me pegam aqui onze e meia, meio dia, mais tardar. Me levam
para a casa deles. a gente curte, conversa, bate papo, almoça (que ela é uma exímia
fazedeira de comida, também). Professora aposentada, e ele também, professor aposentado.
Só que ele continua na redação. Ele fez faculdade também, é doutor. Então, ali a gente passa o
dia. Quando chega às cinco horas, quatro e pouquinho, a gente vai para igreja Santo Antonio,
de carro. Tudo direitinho, bonitinho. Quando eu falo que eu quero ir embora, ela me traz,
senão, se tiver futebol é sagrado. Eu fico e ela me traz à meia noite, uma hora. Eu te
pergunto: “quem é que, com oitenta e oito anos, tem essa chance?” Ninguém que sabe?
Ninguém quer prosear com pessoa de oitenta anos. Ela não tem prosa, não tem conversa. A
Lia
39
, essa que te mando aqui, ela é sobrinha da minha nora. Pergunta para ela se tem outra
Dona Dirce por aqui. Tem só essa, porque os velhos não têm papo. Não é que não têm papo, é
que os moços não querem prosear com os velhos. Não querem saber das coisas que passaram.
O que eles passaram, é coisa linda. Eu até agora, ensino para o pessoal como a minha mãe
plantava batata. Faz aquela lera, altinha. Você sabe? Você sabe o que é uma lera. E planta
batata naquela lera, altinha. A batata é lera, e vai embora. A minha mãe, eu me lembro, ela
fazia como um poço pra cima, de terra, não é grande também, acho que você nunca viu uma
rama de batata ... viu? Velho desse jeito e nunca viu uma rama de batata ... Olha que você
não é criancinha, hein! Para mim é. A rama de batata é que nem um fio comprido, de ferro,
mas fino. Ela enrolava, na terra, com adubo natural. O tempo se encarregava, sol, chuva.
Quando era o tempo de arrancar (ela sabia, eu não sabia), pegava aquela rama, sacudia, cheia
de batata, coisa linda, coisa linda. A terra é linda. Acho que você nem sabe disso, nessa altura
do campeonato, você pega um pedaço de pau de mandioca, assim, você enterra no chão, dali
uns três meses, você tem mandioca. Daquele pedaço de pau! Isso é coisa que os antigos
podem explicar para a moçada, mas eles o querem aprender, eles não querem saber. Eles
39
Utilizando o processo de rede, muito comum nas pesquisas em História Oral. Contatamos um professor da
Função Raul Baub, Dorival Roberto Rodrigues, que nos colocou em contato com outra professora Lia ....... Ela
nos indicou a Senhora Dirce Moraes Maitino.
123
querem saber de maconha, de craque. Não tem papo, não tem prosa. Essa televisão é uma
porcaria, que não ensina nada para a gente. Não tem nada, filho. Está estragando as meninas.
O que tem de útil? Agora, estão atrás de quem matou o homem da novela, o Lineu
40
. Se você
sai na cidade na hora da novela, você pode sair nu, “nuzinho”, como veio ao mundo, que
ninguém vê. Vamos e venhamos, é inteligência isso? Pode até ser, mas eu não acho. Não está
com nada. Não acrescenta nada. De vez em quando, eu assisto o jornal da Record, do Bóris
Casoy, e a Hebe, no SBT. Mas segunda-feira, estava um lixo, estava uma porcaria. Eles
estavam fazendo uma festa caipira. Mas escuta, caipira não é nada daquilo, caipira se
preparava para ir à festa, ao baile. Tinha um cara, de um conjunto, que estava descalço, feio...
Com uma palheta, todo repicada, desse tamanho. Não é assim. Isso depõe contra. Caipira ia
para a festa, arrumadinho, com a roupinha melhor que tinha. Ia para quermesse, depois ia no
baile (porque tinha os bailes). Dançavam, tudo com respeito. Aquele tempo, tinha respeito.
Hoje em dia, não tem nada disso, virou tudo uma bagunça danada. Nossa Senhora! As moças
iam arrumadinhas, cabelo penteadinho. Podia até por um lenço na cabeça, quem era de mais
idade. As mocinhas se arrumavam. Colocavam o melhor sapatinho, porque não tinha nada que
prestasse, mas o melhor que tinha colocava. A melhor roupinha. Essa gente dá até nojo de ver,
credo! A Hebe estava uma coisa terrível, segunda-feira. O pessoal todo com roupa feia,
dançando de qualquer jeito. Não era daquele jeito, dançavam valsa, bonitinho. Quanta gente
da sua idade não sabe? Eu me lembro quando tinha aquelas festas de cadetes, mas nem eles
sabiam dançar valsa. Tem que virar, vira para um lado, vira para o outro. Punha o melhor que
tinha, que era uma porcaria, mas era o melhor que tinha. Agora eles fazem uns bailes de
caipira... Nós fizemos um baile aqui, no Santo Antonio, que foi mais ou menos. Teve
quadrilha, mas a maior parte das coisas é tudo diferente. Você vai falar para um rapaz que
dançar valsa é bonito? Ele vai falar que você parou no tempo. O respeito que esse pessoal
mais jovem tem comigo, menino!! Eu passo ali no Liban
41
e eles falam “paz e amor, Dona
Dirce”. Quando eu fui atropelada, eles ficaram com medo de eu morrer. Fez um ano em
janeiro. Eu ando relativamente bem. Eu ando bem. A turma achou que eu não andaria mais,
tinha que ficar na cama. Meu filho comprou uma tala, uma tipóia diferente, que tem
carrapicho. Agora, eu vivo bem, eu estou bem. Eu estou feliz. Não pode falar que está feliz,
porque o povo faz macumba, faz mal olhado. se você for ao terreiro agora e fizer uma
macumba para mim.
40
Novela da Rede Globo de televisão, transmitida no horário “nobre”, Celebridade.
41
Lanchonete localizada ao lado do Hotel no qual reside a depoente.
124
Filhos maravilhosos, noras maravilhosas. Eu me machuquei, fui para Santa Casa, e era
para eu ficar em observação. Eu fui para casa do meu filho. Beleza pura. Não tive nada, não
deu nada. Porque a Princesa Isabel não foi melhor tratada do que eu. Porque o filho tem
obrigação, mas a nora não tem (e o filho tem que concordar ou larga da mulher!). E o de
Bauru, vinha todo dia. Vou me queixar do que? Mas o povo fala “isso é porque você merece”.
Mas todo mundo merece. Eu tirei de letra. E onde eu tenho que cantar, eu canto. Aqui está
gravando? Vou cantar. O que você gosta? Vou cantar uma coisa que você nunca ouviu.
Duvida?
Eu quando canto meu sambinha batucada a turma fica abismada com a bossa que eu faço.
Faço não me embaraço porque não há tempo, marco meu contratempo dentro do compasso.
Quem não tiver o ritmo na alma, nem cantando com mais calma faz o que eu faço
Samba-canção, samba de breque, batucada, para mim não é nada, o que vier eu traço.
Não tenho veia poética, mas canto com muita tática, não faço questão de métrica, mas não
dispenso a gramática.
Não me atrapalho na música, nem mesmo sendo sinfônica, procuro tornar simpática a minha
voz microfônica..
Eu quando canto meu sambinha batucada a turma fica abismada com a bossa que eu faço.
Faço não me embaraço porque não há tempo, marco meu contratempo dentro do compasso.
Quem não tiver o ritmo na alma nem cantando com mais calma faz o que eu faço.
Samba-canção, samba de breque, batucada, para mim não é nada, o que vier eu traço.
42
Não é lindo? Você ouviu isso? Ia morrer sem ouvir. Viu como foi bom você vir
aqui? Você ia morrer sem ouvir.
Você ouviu e não pagou nada...
42
Choro “O que vier eu traço” composto em 1926 por Oswaldo dos Santos Alvaiade em parceria com
Maria foi gravado posteriormente por Ademilde Fonseca.
125
126
W
ANDA
S
AMPAIO
G
ARCIA
C
ARBONI
43
Meu pai era fazendeiro em Iacanga, mas eu nasci aqui, em Jaú. Meu avô tinha
farmácia, a Farmácia Faio. Os irmãos da minha mãe eram médicos aqui da Santa Casa, então
meus pais vieram de Iacanga, passaram por Bariri e eu nasci aqui em Jaú, no dia primeiro de
novembro de 1924. Vou fazer 80 anos. Me casei com 22 anos e tenho quatro filhas, oito netos
– três já são casados – e um bisneto. Vou indo para outro bisneto em outubro, uma bisnetinha.
Meu pai era fazendeiro, mas perdeu tudo com o café.
Vim para com quase cinco anos, ainda tinha a fazenda, mas
mudamos para cá por causa da escola. No fim, papai ficava para
e para cá, ficava quinze dias lá, quinze dias aqui e foi
perdendo tudo. Acabou vendendo tudo e ficou por aqui. Depois
de um tempo, eles foram para São Paulo, eu também fui. Morei
dois anos lá, mas eu era noiva, porque comecei a namorar
meu marido com quinze anos e ele tinha dezenove. Então,
fiquei dois anos morando em São Paulo, vim para casar aqui em
Jaú, porque os pais dele eram muito velhos.
Nós morávamos na fazenda em Iacanga e a gente brincava com as crianças da colônia,
porque antigamente o empregado era bem chegado ao patrão. Era uma gente limpa e a gente
brincava com eles. Tinha um açude, tinha o monjolo, ficávamos por ali. Eu tenho muita
saudade desse tempo.
Fui muito apegada ao meu pai. A minha mãe pendia mais para o lado dos meus dois
irmãos, que eram mais levados, não gostavam de estudar. A vida foi uma vida normal, não
teve nenhum contratempo. Por causa de escola viemos para Je meu pai ficava quinze dias
aqui, quinze dias lá, até que o café acabou. O café derrubou muita gente.
A vestimenta na época era uma vestimenta comum. O que não usava muito
antigamente era calça comprida. Menina não punha calça comprida, vestidinho. Só
vestidinho. A não ser no frio, no frio, punha um pijaminha.
Mas a vida era comum, muita dificuldade. A minha mãe sempre teve vida boa por que
ela criava uma moça, a Sebastiana, uma preta, que ajudava muito, tinha o pessoal que
ajudava. O papai era um homem muito esperto e o meu avô foi muito rico. Meu pai, nos
43
Entrevista realizada na residência da depoente na cidade de Jaú, no segundo semestre de 2004 e no primeiro
semestre de 2005. Teve uma duração aproximada de 1 hora e 30 minutos.
127
primeiros tempos de vida dele, estudou no Mackenzie, depois ele foi para Minas Gerais, num
colégio – eu sempre esqueço o nome, perto de Lázaro. Mas meu avô dizia: “vocês não
precisam se formar, vocês são ricos”. Ele tinha fazenda aqui em Jque eu não conheci
em Bocaina – que hoje é dos Atalla também não conheci, mas a de Iacanga e a de
Invernada, eu conheci. E essa era a vida nossa.
Meu avô, esse que era rico, era meu avô paterno, Gabriel Pereira Garcia. Nosso Garcia
vem de Portugal. Ele achava que não precisava estudar, porque eram ricos. Ele era casado
com uma sobrinha minha avó era sobrinha dele. O meu avô Sampaio que tinha farmácia,
avô materno estudou todos os filhos. Tinha dois médicos e dois dentistas, até minha mãe
estudou em Botucatu. Mas a vida é assim, conforme o modo de pensar das pessoas, não é?!
Eu acho até que quem não põe filho para estudar, mesmo que seja rico, é atraso. E
antigamente não era visto assim, não.
Minha mãe estudou em Botucatu, no Colégio do Estado. Isso por causa da religião,
por causa das freiras serem católicas. Então, a minha mãe e minhas tias estudavam em
Botucatu, no Colégio do Estado. Eu não fui para lá, porque quando comecei, comecei no
Externato, eu já gostava. Nesse período, a mentalidade já era outra. Não tinha mais nada disso
de religião, tudo isso era coisa do passado.
No tempo da minha mãe, era diferente. A religião atrapalhava um pouco. Tanto que
meu pai foi para o Mackenzie, em São Paulo, depois passou para uma escola, que eu não
lembro o nome, em Minas, por causa de religião. Porque o catolicismo era muito rígido e
mandão. Só eles é que podiam. Hoje não, hoje não tem nada disso mais.
Eu acho que Jaú enriqueceu por causa do café, porque todos os fazendeiros da
redondeza tinham café. Jaú era uma cidade muito rica. Tinha a família Almeida Prado que era
uma família poderosa! Tanto que tem Grupo Escolar Major Prado, mas todos esses também
tiveram uma cortada. Inclusive, o pai da minha cunhada, João Moraes, João Moraes Prado,
também deixou uma herança fabulosa para os filhos. Uns estão bem, outros estão mais ou
menos, mas fazenda quase nenhum mais tem, foi o café. O café enriqueceu, o café abateu.
Aqui em Jaú, tem muita gente quebrada. Inclusive, ali perto da Matriz tem uma casona
que era do Pio Prado. Era uma riqueza. Hoje eles ainda têm uma fazenda e ela é nossa amiga,
a Maria Antonieta. Ela faz queijo, doce de banana, doce de abóbora, doce de goiaba, tudo para
vender. Eles eram riquíssimos. Mas o café quebrou!! Queimava-se café, jogava-se café! E
isso modificou a vida de muita gente. Essa conhecida, essa minha amiga, foi casada com meu
tio. Casada com um dos irmãos mais velhos da minha mãe, Bento Ferraz de Almeida Prado...
Não deixou quase nada para os filhos, acabou tudo. Tinha uma fazenda maravilhosa em
128
Itapuí. Acabou tudo. Café não dava mais nada, vendia, queimava-se café. Eu sei que foi uma
derrocada geral, não foi só o João ou José que caiu, caíram várias pessoas. Caiu todo mundo.
Um parente meu, por parte de pai, foi prefeito durante muito tempo, chamava-se
Teodoro Sampaio. Inclusive, aquela praça da estão, tem o nome dele. Além dele, tivemos
vários prefeitos bons: Celso Pacheco, Luiz Liarte. Eu conheci o João Ribeiro de Barros, eu era
meninota, mas eu me lembro de ter visto João Ribeiro de Barros. A casa dele até foi um erro,
porque venderam e depois reformaram. Deveria ter sido guardada como Patrimônio Histórico.
A casa em que eu morava eu me mudei por causa da doença do meu marido foi tombada
também.
Aqui em Jaú, na questão da política era bem dividida entre os Almeida Prado e os
Amaral Carvalho. Tanto que o meu avô era da parte dos Carvalho, porque o Doutor Carvalho,
que deu o nome ao hospital, era aparentado do meu avô. Ele chamava Antonio Pereira
Carvalho e o meu avô chamava Gabriel Pereira Garcia, eles eram da mesma política, contra os
Almeida Prado. E era feio, viu? Era uma rivalidade grande. Eu não conheço nenhuma história,
não sei o que acontecia, não me interessava também, porque eu comecei a namorar meu
marido com quinze anos e não me interessava mais por nada de política. me lembro que
falavam: “Aquela parte é dos Almeida Prado e aquela parte e dos Carvalho”. É isso.
Na guerra, era aquela correria. Sempre tinha os mais ousados, os mais valentes que se
inscreviam e iam para guerra. Inclusive, aqui em Jaú teve o Zezinho Magalhães de Almeida
Prado, ele não tinha nem idade e foi para guerra. Para guerra. Isso na segunda, porque na
primeira foi muito, muito, muito antes. A segunda, quando terminou, eu era noiva e foi na
época que eu estava morando em São Paulo. Nós até fizemos, no Grupo Escolar Queiroz
Perez, uma festa para os expedicionários. Eles foram à festa, fizeram um lanche e a festa foi
muito bonita. Isso no término da segunda guerra. Da Primeira, eu lembro muito pouco. Mas
que foi uma judiação, um estardalhaço, um quebra-quebra, foi.
Na época da segunda guerra, eu era professora. E nós levamos essas coisas para os
alunos. Cantávamos na escola a canção do expedicionário. A gente cantava aquele “Sabe de
onde eu venho”. Cantávamos a canção do expedicionário. Hoje, eu acho que se perde um
pouquinho por falta de patriotismo, viu! Porque a gente, todo começo de aula, cantava ou o
Hino da Bandeira, ou o Hino Nacional, ou esse Hino do Expedicionário. E foi uma judiação,
porque muita gente morreu. Eu tive uma amiga, irmã desse Zezinho de Almeida Prado, o
marido disse que precisava ir e foi para guerra. Ela conta que um dia, a menina dela estava na
porta, passou o carteiro, a menina chorando: “mamãe, mamãe, vem ver, acho que o papai que
vem vindo”. Porque o carteiro naquele tempo usava roupa amarela, hoje não usam mais. E ela
129
achou que era o pai dela tinha ido para guerra. Hoje ele morreu. Cícero de Almeida Prado.
Ela era irmã do seu Zezinho Magalhães. Mas depois de muito tempo, ele foi prefeito de
Jaú. Ele era desses que amavam Jaú, ele ajudava o esporte, ajudava a escola, era uma pessoa
muito desprendida, e o irmão dele foi deputado, João Lázaro de Almeida Prado, era uma
família muito boa mesmo.
Então, saía muita gente de Jaú para se alistar. Eles faziam aquelas reuniões, um
incentivava o outro e saiam sim, bastante gente. Mas não saiu ninguém mais próximo de mim,
não. Inclusive, teve um sobrinho mais velho da minha mãe, meu primo, que morava em São
Paulo, que foi se esconder em nossa fazenda em Iacanga Olavo ele chamava –, porque não
quis se alistar. Eu acho que é porque ele morava em São Paulo, São Paulo é fechado, São
Paulo é morto, não é?! Não tem mocidade como tem no interior e o Olavo foi se esconder
na fazenda para não se alistar. E a gente achava engraçado, porque todo mundo queria se
alistar e ele se escondeu. Isso não era comum entre os jovens de São Paulo, pelo contrário, por
isso a gente estranhou. Mas também tive vários primos aqui, que eram Almeida Prado, que
não se alistaram na segunda guerra.
E na Revolução de 32, era a mesma coisa. Na Revolução Constitucionalista. Eu acho
que nessa época, eu devia estar em São Paulo. Eu fiquei dois anos em São Paulo. Fiquei
noiva, papai vendeu a fazenda e foi para São Paulo. Eu não me lembro muito, não. Havia
muito movimento, mas a gente não participava. Movimento inclusive no cinema, em teatro,
porque o brasileiro é entusiasmado, é patriótico, não é?! Povo valente! Acho bonito isso, viu.
Porque tem outros povos que parece que são mortos, não é?! São mais tranqüilos.
Aqui em Jaú, tínhamos dois cinemas ótimos. Hoje não temos nada, aquele da
prefeitura. Tínhamos clubes bons, inclusive ali perto do Operário, lá embaixo o Aero Clube, o
Jaú Clube que tem até hoje. O Jaú Clube era meio fechado, muito profissional, a pessoa mais
humilde, inclusive meu marido, que era filho de italiano, eles não aceitavam como sócio.
Tinha um certo preconceito, uma discriminação, aqui na cidade. Quando eu comecei a
namorar o meu marido, que era filho de italiano, eu sou brasileira dos dois lados, foram falar
para o meu irmão: “como é que o seu pai deixou a sua irmã namorar filho de italiano?” Hoje
não tem nada, hoje eles chamam a gente para ser sócio lá, hoje não tem mais nada disso. Na
época, eu não ligava, não ligava. Gostava dele e não ligava, nos dávamos muito bem. Ele era
estudante, ele fez comércio. Depois ele acabou fazendo, depois de casado, fez o normal, tanto
que ele era professor de contabilidade. E naquele tempo, contabilidade era segundo grau, era
como a faculdade de hoje.
130
A família dele veio para o Brasil, mas não trabalhavam na enxada, não. Ele era o
caçula de nove. A e dele tinha 45, o pai tinha 50. A mãe dele trabalhava com o tio na
Câmara. Tinha uma caligrafia bonita. Quando eu casei, ela era meio esclerosada. E o pai
dele veio, e eles foram para São Simão, perto de Ribeirão Preto. O pai dele foi ser maquinista
e a mãe dele nunca precisou trabalhar ali na roça. E ele foi criando os filhos, foram estudando,
foram trabalhando por ali, mas nenhum foi assim rural, trabalhador rural. Até é engraçado, a
primeira vez que a mãe dele viu um preto, ela teve medo, ela correu. Ela nunca tinha visto
gente preta.
Tinha preconceito com negro e até hoje tem. Mas naquele tempo era pior. Hoje o
negro estuda, se forma (por sinal, acabei de ver que o filho do Pelé foi preso, que judiação).
Olha, eu sou evangélica, mas eu não gostaria que uma das minhas filhas ou minhas netas
casasse com preto, isso eu falo a verdade. E é um preconceito que a gente não quer ter, mas
tem. Mas hoje é mais maleável. Antes era muito mais rígido. Nós tínhamos o Jardim de
Cima, que o prefeito Luiz Liarte estragou. Era um jardim gradeado, tinhas as escadas dos
quatro lados para subir, os pretos não entravam, não davam volta dentro do jardim. Os
brancos davam volta, os pretos davam volta por fora e os brancos davam volta dentro. Ali no
Jardim de Cima, em frente à Matriz. Ali tinha uma grade, era um jardim tradicional,
maravilhoso, no meio tinha repucho, umas árvores. Esse prefeito fez duas coisas erradas: fez
isso e trocou o nome das ruas. Por exemplo, a rua Sete de Setembro, até a ponte ela chama
Sete de Setembro, depois ela tem outro nome. A rua Amaral Gurgel até o rio é Amaral
Gurgel, depois é Coronel de Oliveira Matozinho, isso até a gente alguma vez se atrapalha, não
sei porque ele fez isso. Luiz Liarte, ele foi tempo, prefeito de Jaú. Eu acho até que foi prefeito
bom, mas tem essa mania. Desmanchou o jardim. Era grade alta, viu? Grade alta. Tinha
escada para descer nos quatro cantos. E no meio tinha um repucho, árvores grandes. Nessa
época, eu tinha mais ou menos 15 anos, e nossa diversão era passear na praça.
Também existia uma piscina aqui em Jaú, na Potunduva. Então, nós juntávamos o
grupo e íamos nadar lá, naquela piscina, só isso. Não tinha um clube, não tinha um nada...
Os clubes e teatros começaram, mais ou menos, em... Eu não sei precisar o ano, mas
depois Jaú deslanchou, como diz o ditado, aí foram aparecendo mais teatros, mais... Mais..., o
shopping faz pouquíssimo tempo que tem, não é?! Mas foi aparecendo... Havia muitos bailes.
Havia até seleção. Havia o Clube do Reio que era dos bem pobres. Ai, nessa esquina, onde
hoje tem um prédio abandonado, era um outro Clube. Havia um outro, o Clube Atlético era
classe mais baixa que ia, outro humilde. Agora, o Operário dava gente dos dois, mas em
geral pessoas mais simples. Quem tinha mais condições freqüentava o Aero Clube ou o Jaú
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Clube. Esses eram os mais tradicionais. O Aero Clube foi um clube muito querido aqui em
Jaú. Hoje falta, porque o Jahu Clube era meio reservado, meio fechado, era mais dos
antigos moradores.
Acho que não tinha diferença entre as profissões, não. Acho que não havia tratamento
diferente. Nós que éramos professores, geralmente para arranjar cadeira, tinha que ir para o
sítio. Eu lecionei trinta anos. As minhas duas filhas também são aposentadas; elas
aposentaram com vinte e cinco anos, porque agora é menos. Trinta anos eu acho muito para
mulher. Mas não tinha diferença entre profissões, não. Quem trabalhava no comércio era
caixeiro as pessoas falavam assim; às vezes, tinha uma ou outra menina mais “topetuda” e
dizia: “A Fulana é caixeira. Ah, você tem amizade com ela?” Mas eram muito poucas as
pessoas, viu! O povo de Jaú sempre foi dado, um povo bom.
Os médicos tinham um pouco mais de status. Geralmente, os médicos. Hoje nós temos
muitos médicos aqui, não é?! Fora os que vêm aqui, de fora, para fazer estágio, aliás, fazer
residência. Quer dizer, naquele tempo quem era médico era visto diferente. O meu tio foi
muito tempo médico da Santa Casa. Um outro, quando se formou em homeopatia, foi para
Campinas, nem chegou a trabalhar aqui. E os outros dois eram dentistas.
Quando comecei a estudar, eu tinha nove para dez anos, foi quando eu vim da fazenda.
Eu nasci em 24 e comecei a estudar em 33, com nove anos, aqui mesmo em JGrupo
Escolar Pádua Salles, Escola Pública, primeira, segunda e terceira série; Grupo. Depois eu já
passei para o Colégio das Freiras. Três anos no grupo, depois eu passei para o Colégio das
Freiras, das Irmãs São José. Me formei lá. Comecei no internato, fui para o ginásio e fiquei
até me formar professora.
O Grupo Escolar Pádua Salles era uma escola boa, meu diretor era Túlio Espíndola de
Castro, pai do que foi meu diretor aqui, depois. Eu lembro dos professores, até da minha
primeira série, tudo aqui no Pádua Salles. Anteontem, a filha de uma delas morreu. A filha
mais velha dela, Cacilda de Campos Capinzaiki. Foi filha da minha professora. O senhor
Antônio Terésio Peixoto foi professor do meu genro, das minhas filhas, ele lecionava no
Instituto. Professor maravilhoso. Era amigo do meu marido. Naquele tempo, era só um
professor, não tinha cada um para uma disciplina. Professor de Matemática, eu não lembro de
nenhum. Mas agora, um professor de matemática muito bom, aqui de Jaú foi o Mário
Pelegrino, professor Mário Pelegrino. O Aristides Ribeiro de Souza, também. O seu Augusto,
de Português. O seu Benedito de Assis, de Psicologia. Porque para entrar no Normal, eu fiz
vestibular, naquele tempo, fiz vestibular. A minha turma foi a última turma que fez quinta
série, depois saiu a quinta série, quem chegasse na quarta já terminaria o ginásio. Eu cheguei a
132
fazer a quinta. E fiz vestibular para entrar no Normal. Eu gostava muito do Colégio das
Freiras, foi até uma judiação ter tirado o Colégio das Freiras de Jaú. Um Colégio que era
particular. Tinha também o Colégio Santa Inês, o Horácio Berlinck. Esse último foi depois, o
Colégio já era bem antigo quando começou a Academia. Depois, veio o Instituto de
Educação, que também foi muito famoso.
O Colégio das Freiras era um colégio maravilhoso (porque eu sou evangélica e nunca
tive problema com elas). Fiz cinco anos o preparatório, aquele tempo eram cinco anos o
Ginásio, mais dois anos, fiquei sete anos. A minha turma fez vestibular para o Normal. Isso,
mais ou menos em 44. Lembro dos professores, inclusive uma que está muito doente, Dinorá
Almer, Dinorá Marques Almer. De todas, a maior parte eram irmãs. Irmã Lurdes, irmã
Tarsila, irmã Alexandrina. Eram muitas. Ah, também tinha um senhor que eu gostava muito,
senhor Benedito de Assis. Porque nós fizemos o vestibular, como eu falei para você, e
tivemos que fazer o cursinho do vestibular. E o seu Benedito, ajudou. Tinha seu Tizinho, que
era de português, seu Mário Pelegrini de matemática. O seu Benedito era de psicologia. Uma
pessoa maravilhosa. Uma pessoa dessas que incentivava alunos. Uma classe muito boa. A
gente era tudo amiga, sempre juntas.
Tinha livro também. Psicologia eu não lembro que livro que era. O seu Bendito de
Assis tinha livro. Eu não fiz Pedagogia porque ficava com de deixar meu marido sozinho,
à noite. Ele era muito pajeado pelas quatro filhas, e eu tinha que fazer o leitinho com
bolachinha para ele à noite, então eu não fiz, eu deveria ter feito Pedagogia. (Porque todas as
minhas filhas têm mais de uma faculdade. A primeira tem Pedagogia e fez um curso em São
Paulo e dava aula de quinta a sexta série aqui no Sesi. A segunda, que mora aqui, fez
Pedagogia, letras, educação moral e cívica. A terceira tem Pedagogia, com o Conservatório,
educação moral, educação artística, com maestria, essa fez em Bauru. Meu marido levava na
estação, esperava na rodoviária, ela tomava o ônibus, depois às seis horas, ia buscar. E a
quarta, fez Enfermagem em Bauru, Pedagogia aqui, e agora esse ano terminando direito.
Todos estudiosos.) Eu nunca tive problema com esse negócio de namoro, com negócio de
escola, não. Tudo dentro de casa.
Do Grupo, as moças que queriam continuar os estudos iam para o Colégio das Freiras
e os homens para o Instituto ou para o Horácio Berlinck, que foi onde meu marido se formou.
Escola boa também. Muita gente de passou para cá. Eu nunca estudei numa classe mista.
No Colégio das Freiras era só mulher. No Horácio Berlinck era mista, onde meus dois
irmãos estudaram. E eu nunca estudei, estudei sempre no Colégio das Freiras. Quem não
estudava nessa época era porque não tinha condições. Porque ia do grupo até a quarta série.
133
Depois, a Academia era cara, o Colégio das Freiras era caro também. Tinha que pagar,
Colégio das Freiras, Academia. (Depois as minhas quatro filhas estudaram no Conservatório.
As três primeiras filhas formaram piano, a última não formou porque foi fazer enfermagem
em Bauru (saiu no sexto ano), mas as duas primeiras se formaram e nunca pegaram no piano.
Em compensação, a terceira toca piano que é uma beleza. Tanto que o piano eu dei pra ela.
Está em São Paulo. Então, era dinheiro... Conservatório era caro. A pessoa até estudava até o
quarto ano, mas depois não tinha mais o que fazer a não ser que trabalhasse. Nem trabalho
não era fácil, antigamente. Era difícil trabalho. Hoje já é difícil, quanto mais antigamente.
Para continuar os estudos não ia direto, não. Tinha Exame de Admissão. Fazia Exame
de Admissão e era um exame bem... Eu fiz exame de admissão do Pádua Salles, para o
Externato, depois eu fui para o Colégio das Freiras. (O Externato também era das freiras, era
na rua Quintino Bocaiúva). Depois, eu fiz vestibular do Ginásio para o Normal. Quem não
queria o Normal, ia para o Científico ou para o Clássico. Meu marido fez o contador
44
,
naquele tempo era nível universitário, depois ele foi trabalhar como viajante. Depois, em
outra ocasião, a gente foi para outro lugar porque ele foi vereador lá, e ele ia trabalhar com
cereal, mas não deu certo. Foi uma má idéia. Foi uma Má
45
influência de uma concunhada.
Então, nós voltamos para Jaú, ele fez o Normal, viajava enquanto fazia Normal.
Depois, foi para Paranapanema, onde ele foi diretor e de ele veio para Jaú, Secretário da
Delegacia de Ensino, por quinze anos. Ele dava aula de história, na Academia. Tem uma
porção de gente daqui que eu conheço, que gostava. Acho que ele era dedicado. Uma vez,
aconteceu até um caso, ele estava tão atarefado e eu falei: “Quer que eu te ajude?”. Ele
respondeu: “Então, o que você faz?” Falei: “eu vou passando a nota para você”. Ele falou:
“então está bom”. Chegou no dia seguinte, ele voltou bravo da Academia: “O que você fez,
que era risada a hora que eu distribui as provas?” (A secretária do Doutor Milton, médico
neurologista, ela falava, “ele era um professor bonito, elegante”. Eu falei: “É bonito, elegante,
mas é meu marido e eu não gosto de conversa. Não é porque ele morreu que você vai começar
a conversar”). Ele ensinava, mas ele exigia. Falou: “O que você fez que todo mundo ria?”. Eu
falei: “Eu fiz assim, 4,8 eu aproximei para 5, 3,4 eu aproximei pra 3,5”. Ele disse: “nunca
mais você vai me ajudar. Você deu nota muito alta para eles”. Os alunos gostaram. Ele
pensou: “o que será que a nega fez?”
Quando me formei, fomos para São Paulo. Nos dois anos que eu morei lá, fui
substituta no Grupo Escolar Queiroz Peres, na Vila Formosa. Estávamos eu, meus dois irmãos
44
No interior se dizia assim, Contador. Era o curso técnico de Contabilidade.
45
Depoente deu ênfase.
134
(que ainda eram solteiros) e meus pais. Em São Paulo, fui substituta por dois anos e quando
voltei para cá, para me casar, ingressei no magistério. Fui para Escola Isolada e já ingressei na
minha cadeira. Logo de uma fazenda fui para outra. A primeira, chamava Barro Branco, perto
de Ubirajara onde passei a morar uma vila horrível, ia de ônibus; a segunda, chamava
Ingazeiro. Aí, depois fui para o Grupo, em Ubirajara mesmo. De lá, eu vim por permuta
para Pederneiras. Fiquei seis anos em Pederneiras. De Pederneiras vim para a Airosa Galvão,
fiquei quatro anos, depois é que eu vim para Jaú.
Fiquei dois anos em São Paulo, depois voltei para casar. Casei aqui porque meu sogro
e a minha sogra eram velhinhos. Mas não ficamos por aqui, fomos para perto de Santa Cruz
do Rio Pardo, em Ubirajara, perto de Garça, ali por aquela região. Um lugar horrível. Isso em
1947. Morávamos em Ubirajara porque meu marido tinha um trabalho junto com o irmão
dele. Como não deu certo esse trabalho, ele se associou ao prefeito de São Pedro do Turvo,
Sebastião Teixeira Coelho, que inclusive queria que ele fosse candidato a prefeito. Ele falou
(ele me chamava de “nega”): “ô Nega, vi que eu não dou para política, política tem que ser
muito esperto e ardiloso, e eu não posso com essas coisas, não”. Foi vereador quatro anos. Era
muito inteligente. Lia muito. Tinha uma coleção enorme de livros (já dei as estantes para
meus netos). Era pessoa muito inteligente, muito alegre. E é o que eu posso falar para você.
Em 49 nasceu a minha filha, Maria Wanda. Essa mora aqui. Em 1949, 1950, vim para
Jaú de tudo e o meu marido resolveu – ele já era contador (aquele tempo técnico em
contabilidade era nível secundário) – fazer o Normal (ele já tinha sido vereador). Fez noturno,
pertinho de Ubirajara. Então ele fez o Normal, voltou para São Pedro para se formar no
Núcleo Japonês, depois do Núcleo Japonês ele ingressou no Mirante de Paranapanema. Lá ele
foi diretor, inclusive eu tenho até o retrato, foi diretor, e depois criaram a Delegacia de Ensino
de Jaú, ele veio para cá, ficou quinze anos como secretário da Delegacia de Ensino. Isso
depois de 1950, já tinha a terceira filha, porque entre a segunda e a terceira tem sete anos.
Quando fui para Pederneiras, ainda não tinha a terceira filha, foi mais ou menos em
1954. Fiquei seis anos lá, no Grupo Eliazar Braga. Que, por sinal, o Eliazar Braga era pai de
uma tia, esposa de um tio meu, a Hermentina. Para ir a Pederneiras, eu viajava de trem. Nós
éramos em três de Jaú: uma que vinha de Torrinha, faz uns dois meses que faleceu e os três
que vinham de São Paulo. Inclusive, um era aposentado, eu não me lembro o nome, vinha um
que dava aula de português, o Manoel e uma outra senhora. Quer dizer, eles vinham uma ou
duas vezes por semana só. Não era como a gente que ia diariamente. Essa de Torrinha ela
vinha diariamente. Ela dava aula de Ciências. Eu morava em Je viajava todo dia de trem.
135
(Coisa mais triste foi ter tirado o trem de Jaú. Era gostoso). Fiquei seis anos em Pederneiras e
fui removida para Airosa Galvão, que é mais perto.
Na Airosa Galvão, nós íamos num grupo de quatro. Alugávamos um táxi (três atrás e
uma na frente). O Diretor de lá, que me deu posse, veio para Jaú e fui transferida para cá. Ele
falou “vou te dar posse pela segunda vez, e chega!” Ele era filho do Diretor do Pádua Salles,
Túlio Espíndola de Castro. Um homem “desse tamanho” que tinha uma inteligência
descomunal! Poeta, inteligente. O filho dele era um homem grande, ele era pequenininho.
Primeiro, ele veio para Jaú, depois eu vim removida. Aqui em Jaú, eu fiquei dezessete anos.
Fiquei no Domingos de Magalhães dezessete anos, quatro como professora e treze como
auxiliar de diretora.
Eu aposentei com 30 anos de magistério, dezessete anos de aula e treze como auxiliar
de Diretor. Eu tomava conta de, mais ou menos, umas quarenta Escolas Isoladas. Amava. E o
diretor falava para mim assim: “você é boba! Vo faz as estatísticas delas. Deixa que cada
uma faça a sua”. eu falava: “eu prefiro fazer sossegadinha na minha casa e depois cada
uma assina, do que corrigir uma por uma”. Então, eu fazia a estatística. Tanto que, quando
aposentei, elas falaram assim: “Ah, Wanda! Quem é que vai pajear a gente agora?” Eu falei:
“eu não sei, agora vocês vão ter que se virar”. É porque tinha professora, infelizmente eu vou
dizer uma verdade, viu, que não sabia fazer um resumo mensal. Tinha uma mesmo que,
coitadinha, era muito minha amiga, morreu de câncer, ela chegava eu sabia que o dela
estava errado. “Mas eu não entendo, Wanda, como é que é?”. Eu dizia: “Bem, se você tem
cinco, você não matriculou nenhum, nem eliminou, então passa para o mês seguinte, cinco. Se
você tem cinco e você matriculou um, você não vai passar para o mês seguinte cinco, vo vai
passar seis. Por exemplo, se você tem cinco, você eliminou um, quantos você vai passar?
Quatro... então.”. Ela falou: “Wanda, quando eu chego em casa eu não sei fazer”. Todas
davam aula em Escola Isolada. Eu era auxiliar de direção de Escola Isolada. As Escolas
Isoladas eram todas as escolas de fazendas da região, desde o bairro do Pouso Alegre,
Ribeirão Bonito, Vila Ribeiro (minha filha até deu aula lá), Padre Doutor Emílio Áureo. Toda
a Inspetoria era aqui em Jaú. Agora é tudo diferente o ensino. E a gente trabalhava. Eu
trabalhava. Eu era a típica professora, não é? Sempre gostei.
Nunca dei aula para o quarto ano. A minha classe predileta era a primeira. Eu ensinava
até Matemática. Uh! Fazia até probleminha. Faziam até probleminha. Eles copiavam e
chegavam no final do ano tinham a letra que eu queria: bonitinha, tudo em ordinha, como eu
queria, e eu fazia os probleminhas de “ir à venda comprar a saia ...”, dava resposta, tudo. Eu
fico boba hoje de falar que criança não sabe ler. Faziam até probleminhas. Eu dei a maior
136
parte para primeira série, que eu mais gostava. E eu só usava a cartilha, Cartilha Sodré que era
muito importante, e teve outra que eu gostava muito, gostava mais do que a da Sodré, que
eu não vou me lembrar o nome. Tanto que o meu diretor foi ser inspetor, ficou o professor no
lugar dele. E foi quando eu tive minha quarta filha, isso foi em 60 (lembro que foi no ano que
o Jânio Quadros foi candidato).
Chegou no começo do ano, minha filha nasceu, dia primeiro de outubro. Chegou no
começo do ano, eu falei: “Olha Gaeta (Ângelo Gaeta), meu diretor, eu vou te avisar já, estou
grávida. Outubro eu espero meu nenê (já tinha três filhos, não sabia se era homem ou mulher).
Então, eu estou avisando, assim você tira sua filha da minha classe, porque depois você pode
não gostar da professora que vai me substituir”. Porque, infelizmente, antigamente eram
três meses para gestante. Três meses. É muito pouco! Agora já são quatro. Três meses é muito
pouco! A gente tinha que desmamar a criança com... Bom, eu falei, chegou no dia seguinte
eu falei: “o que você resolveu com a sua filha?”. Ele falou: “Ah não, Wanda. Ela quer ser
SUA aluna”. E a menina passou muito bem. É, encontro sempre com ela na rua. Eu falei “eu
vou te avisando, porque chega o fim do ano, eu vou tirar licença, licença especial, aí você...”.
Meu marido nasceu em Jaú, mas a família veio da Itália. Quando eles vieram da Itália,
eles foram para São Simão, perto de Ribeirão Preto. Meu sogro foi ser maquinista, não foi
assim de roça. Ele foi ser maquinista e minha sogra, de casa. Meu marido foi o único que
nasceu aqui em Jaú, o resto nasceu em São Simão. Mas meu marido não aceitou fazer o
Normal assim: “você vai fazer normal? Ah, vou! EU VOU FAZER O NORMAL?”. Eu disse:
“Você tem direito, porque você é contador”. Ele: “Mas acha, voltar para escola!”. Falei
para dona Marieta, a mãe do Adônis (Adônis Pirágine), e ela falou: “Oswaldo, a Wanda vai te
ajudar, a Gleydis (Gleydis Pirágine) vai ser sua professora, ela vai tomar nota de tudo”. Aí ele
foi aceitando. Para o meu marido o seu Nicolau Pirágine foi como um pai. Ele era muito
velhinho.
Eu não tive dificuldade para estudar, não. Papai podia. E as outras pessoas que
conviviam comigo estudavam, todas as minhas amigas. Eu tive uma amiga, acho que faz uns
três ou quatro anos, ela morreu um pouco antes do meu marido, nós fomos amigas, ela era da
família Galvão, nós fomos amigas de pequena. Eu tive um primo, sobrinho da minha mãe,
Doutor Sampaio, foi duas vezes prefeito de Jaú. Ele que trouxe a Escola Laica para Jaú. E
onde hoje é a Avenida Brasil, era a chácara do meu avô.
No Colégio das Freiras, tinha religião também. Tinha aula de religião. Tínhamos a
visita da Madre Superiora. Ela conversava, visitava tudo, mas não era obrigada a assistir a
aula de religião, não era obrigada a nada. Assistia se quisesse. E o pessoal freqüentava.
137
Eu gostava muito das freiras. Tanto que quando eu operei a garganta, papai foi a
falar para a Irmã Superiora, Dona Tarsila, que ele queria pagar uma semana de leite, para eu
tomar leite da tarde. Tomei e quando passou a semana ele foi pagar, então ela falou: “Não,
absolutamente. A Wanda é ótima aluna e não tem nada disso”. E quando começou a escola
Horácio Berlinck, uma porção passou para lá, porque eu nunca estudei em escola mista era
escola mista, era mais moderna e uma porção de gente passou para lá. Umas por causa da
religião, outras por causa disso, daquilo... uma das irmãs chegou para mim e falou: “E
você, filhinha, vai mudar de escola?” Eu falei: “Não, eu gosto daqui. Nem penso em mudar de
escola”.
Eu não sei por que o Colégio das Freiras acabou. Não sei! O Colégio dos Padres era
uma coisa mais engraçada. Dizem que eles tinham uma chave que abria ou fechava o colégio
inteiro. E agora aquela conversa que os padres se comunicavam com as freiras por um túnel?!
Mas eu não sei, nunca vi. Acho tudo conversa. Agora não sei, de repente foi tudo embora. Eu
acho que foram para Botucatu, viu?! Uma vez eu me encontrei com uma irmã de um colégio,
em um hospital em São Paulo, irmã Olímpia. Mas eu não sei por que mudou, porque era
muito benquisto, todo mundo gostava.
Agora, outra coisa errada também, foi que tiraram o trem de Jaú. Isso é demais. Era
tão gostoso a gente ir para São Paulo, mesmo que não fosse de Pullman, ia na primeira classe,
era gostoso. Tiraram o trem de Jaú... Além do trem, tinha o ônibus e carro particular. O ônibus
não é como a gente tem hoje, era tipo jardineira. Não era propriamente jardineira, mas era um
ônibus bem mais simples. Era um ônibus confortável.
Algumas pessoas iam estudar em outras cidades, mas eu não tenho informações. Aqui,
o pessoal costumava estudar no colégio das freiras. Meu marido tem uma sobrinha que
terminou o Normal, quer dizer, acho que foi o Ginásio, e foi fazer Pedagogia, o sei se foi
em Rio Claro ou São Carlos. Ela fez Pedagogia para depois fazer um curso secundário,
porque as minhas filhas fizeram tudo aqui. O Horácio Berlinck era secundário, mas não tinha
faculdade. Tinha a parte do ginásio e a parte do comércio. Eles formavam para contador. É,
acho que era só para contador que eles formavam.
O Instituto é que veio fazer frente. Ele já tinha a parte do Normal, mas não tinha
faculdade. Faculdade, aqui em Jaú, veio agora, na Fundão. Agora, Jestá cheia de
escolas boas. Tem o Exupéry, tem o COC, tem a Fundação, a Academia. Antigamente, a
Escola Industrial era um cartão de visitas, segundo pessoas que entendem, que conheciam.
Foram até vendidas máquinas, mas depois ficou meio abandonado. Então, os mais espertos
venderam.
138
A Escola Industrial veio para por causa do sobrinho do Doutor Carvalho, Ferreira
do Amaral. É tudo da mesma família. Veio para beneficiar a cidade. Muito bem montada, o
maquinário completo, era uma beleza, visitada por todos. Tinha um diretor muito bom que
morreu, Benedito de Assis. Ele era o dono da Industrial. Ele que fazia tudo. De repente, ele
faleceu e foi acabando. Acabou. Agora é que está reerguendo. Ela fabricava máquinas eu acho
e também formava técnicos. A pessoa já saia formada. Dizem que o maquinário de lá era uma
beleza essas coisas eu não entendo. E a escola era famosa, citada em todo o estado. Escola
Industrial de Jaú. E foi largada, largada. Largada depois que o professor Benedito Ferreira
morreu. Agora está se reerguendo, parece que está com novo diretor - até nem sei quem é
novos professores. fazia concurso, era tudo concursado, não era qualquer um que ia, que
lecionava. Tinha que ser concursado. Eu não sei por que houve isso.
Da época do Getúlio Vargas, eu não sei muito, mas por esse filme que eu assisti,
“Olga”, ele foi o, como diz, não é? Bem déspota. Mas eu não posso dizer muito porque ele
favoreceu muito o empregado. A CLT foi ele quem fez. Então, eu acho que todos têm o lado
bom e o lado ruim. Agora o Lula, para mim, não tem nada. Até agora está ruim. O
Fernando Henrique Cardoso, sim. Tenho muita fé no Serra, também. Mas Lula, não. Nunca
votaria nele. Agora vamos ver o que o Serra vai fazer em São Paulo. E mesmo o Alckmin.
Estamos nove meses sem aumento. Todo mundo fala que vai fazer, mas é muita
roubalheira. É muita roubalheira. Agora o que eles estão roubando é o correio. Muita
roubalheira. Uma hora ou outra aparece alguma coisa, sempre aparece. Agora está o Ciro
Gomes embrulhado.
O Getúlio também fez muitas modificações na educação e eu que trabalhei onze anos
como auxiliar de Diretor. Acho que era uma coisa muito superficial. A gente quando via,
quando chegava nas mãos da gente, estava pronto. A gente não via discussão, nem
elaboração. Nada. Chegava e a gente executava, mas o Getúlio é uma incógnita. Ele tem dois
partidos: os que gostavam muito e os que não gostavam. Mas eu acho que dentro do possível
ele fez coisas boas. Coisas importantes.
Eu não me lembro, quando comecei a trabalhar, de ter holerite, essas coisas. Acho que
deveríamos ter qualquer coisa, sim. Só se a gente fosse na Caixa receber. Mas eu não lembro.
Agora, já tinha holerite, sim. Porque holerite é um comprovante de pagamento, não é?
Eu casei em 1946, 1947 e nessa época já tinha banco. O nosso sempre foi ou o
Banespa ou a Caixa Econômica Estadual. O Banespa não é mais do Estado, tanto que eu
vou voltar para a Caixa Econômica Estadual. O meu marido quis mudar para o Banespa,
porque meu genro era funcionário do Banespa. Eu vou voltar para a Caixa Econômica
139
Estadual. Preciso saber até o que é preciso fazer para voltar. Banco tem que ver com calma.
Conversar com uma pessoa que entenda. A gente tem uma coisa boa, tem amigos em todos os
lugares. Tem um funcionário do Banespa ele está numa saletinha na prefeitura e parece que
foi muito criticado – uma pessoa muito boa, muito prestativa, atende todo mundo, o Milton, e
parece que vão tirar ele de lá. Porque se vão tirar o Banespa, pode ser que ele saia de lá. Volte
para sede. Ele é uma pessoa que orienta bem a gente. Precisa de alguém assim. Uma boa
pessoa, muito alegre.
Um acontecimento que me marcou muito, eu fiquei muito triste, foi quando foi
vendida a nossa chácara – onde hoje é a Avenida Brasil. Era uma chácara de quatro alqueires.
Eu fiquei muito triste. Ainda era adolescente, meus irmãos menores, e o corretor foi muito
esperto e passou a perna no meu pai. É logo ali onde começa a Major Ascânio. Na direita tem
quatro casas que eram nossas, também.
Vendemos porque eram muitos herdeiros e tivemos que vender porque ia passar bitola
larga na Avenida Brasil. Aliás, ia vir a bitola larga para Jaú. Até quem trouxe foi esse meu
primo, que era prefeito - Teodoro Sampaio. Ia fazer a avenida e nós achamos, confiamos
muito, porque o corretor tirou três lotes para os filhos, dois ali na avenida e um mais atrás,
depois quando ficamos mais velhos, coisa e tal, eu falava para o papai: “Por que você não
pediu também três lotes para nós, nós também éramos em três”. Ele falou: “Ah, foi tudo no
rolo”.
Não sei se houve alguma pressão do prefeito ou coisa assim para vendermos. sei
que foi vendido. Pode aser que tenha sido, porque logo depois, fez a Avenida Brasil, ou a
Avenida Brasil foi feita depois que a bitola larga passou para J? Não sei, isso eu não lembro
direito, coisa que... a gente não se interessava, viu? É. Não, isso eu não me lembro direito.
A crise do café afetou muito mais a gente. Nossa, como afetou! Afetou porque o papai
teve que vender a fazenda. Não dava mais. A fazenda ficava em Iacanga. As terras nossas
foram dadas terras do meu bisavô foram dadas por Dom Pedro. Ele chegou, tomou posse
das terras de Bariri, Itajú, Iacanga, depois vieram as Três Marias. Então, ele teria que ter uma
ordem do Dom Pedro. Foi então, um mensageiro para o Rio e esse mensageiro trouxe a
ordem. Tanto que era fazenda Assis, do vovô, do tio Eduardo, tio Abílio, tudo jauense,
subindo até Bariri, tudo parente, tudo parente. E depois meu avô tinha seis filhos, morre,
reparte. Vai acabando. Vai repartindo. Mas era uma vida gostosa, viu? Todos juntos, alegres.
Tropa, eu amava ver boiada, ver separar boi.
Repartiu a fazenda por causa da morte do meu avô e também da crise. Da crise do
café. E depois, precisava de dinheiro para tocar, não é? Precisava de dinheiro para tocar, tanto
140
que meus tios acabaram vendendo. No fim, papai ainda tentou, plantou isso, plantou aquilo,
plantou aquele outro, nada dava, acabou vendendo, foi para São Paulo e comprou um
armazém lá, no fim.
Muita gente saiu daqui para tentar a vida em outros lugares. Mas nem todos venceram.
Nem todos. Não sei o que faziam. Não tenho nenhuma história disso. Nós penamos. Nós
também não conseguimos. Papai penou. Papai chegou até ser motorista de praça. Comprou
carro, mas também não teve sorte. Chegou, tinha um carro, quando comprou o segundo, o
motorista passou a perna nele. Não teve sorte mesmo, só isso. E depois, tinha um apartamento
bom, ali na Moóca e começaram, os dois, começaram a ficar doentes e eu nervosa, não é?
Tinha dois irmãos que moravam lá, mas as cunhadas não iam tratar do meu pai. Aí, no fim, o
meu marido achou melhor que eles vendessem o apartamento e viessem para Jaú. Aí alugaram
uma casinha aqui. Arranjaram uma empregada, uma pessoa que pousasse e pelo menos, eu
olhava mais.
As pessoas procuravam mais São Paulo porque é um campo maior. São Paulo era a
meta de todo mundo. Parece que São Paulo tinha aquele chamariz. E eu sei que era São Paulo,
todo mundo queria ir para São Paulo.
Nessa época, o Brasil já tinha muito imigrante. E era uma judiação. O meu avô
contava como os patrões faziam, judiavam. Teve italiano que veio para o cabo de enxada. E
quando o patrão não queria mais, punha a família e os pertences que eram poucos numa
carroça e mandava embora. Eles que se virassem. Foram muito judiados. E os italianos, o
Brasil deve muito para os italianos, viu?! Foram muito judiados, os italianos. Colocavam no
lombo do cavalo e eles iam embora até o lugar onde fosse.
A família do meu marido veio de São Simão para cá, porque tinham um concunhado
aqui que teve a primeira fábrica de gelo de Jaú. Ele era descendente de austríacos: Doringer.
Aí, meu sogro veio, a minha cunhada mais velha casou com o filho desse alemão e eles
vieram para cá. Meu sogro também teve fazenda. Teve uma do lado onde nós moramos,
mas também não deu certo. Fazenda precisa a pessoa não deixar na mão de empregado.
Precisa trabalhar.
Os filhos do meu sogro ainda eram pequenos quando ele vendeu a fazenda João da
Velha. Depois teve uma outra lá. Essa tinha madeiramento que era uma beleza, mas nenhum
filho o meu marido era o caçula se interessou, nenhum dos mais velhos. Essa de
Ubirajara, foi uma judiação ter vendido. Porque eu lembro que tiravam umas 200 toras da
fazenda. Mas era tudo assim, tinha gente que tinha sorte, que andava, tinha gente que não. A
141
Maria
46
também tem muita história para contar. Eles também penaram, viu? Lembro bem da
mãe dela, pessoa maravilhosa. E ela tem uma irmã por parte de pai, casada com um primo do
meu pai, até acho que já são falecidos, eu gosto muito dela.
As pessoas que vinham de fora, morar em Jaú, a gente tinha bastante contato. J
sempre foi uma cidade acolhedora. Tinha duas fábricas de móveis enormes. Jahu Progride e a
Casa Diamante. Tinha fábrica de vara de pesca, tinha fábrica de carroceria, tinha uma fábrica
de gelo do meu concunhado que era a única na redondeza toda. Isso eu era adolescente, mas
durou muito tempo. Mais ou menos nos anos 30, 40. Essas fábricas atraiam, aparecia gente
para trabalhar. E as duas fábricas de móveis eram enormes, viu? Maravilhosas. Diamante era
judeu e o Jahu Progride era uma sociedade. Lúcio Firete tinha fábrica de vara de pesca, tinha
fábrica de carroceria, de carroça. E tinha gente para comprar tudo isso. A cidade era
movimentada. Sempre foi uma cidade boa.
Jaú não ficou como Bauru porque não foi favorecida pela Sorocabana, pela Paulista e
pela Mogiana. Foi isso que favoreceu Bauru. Mas há uma rivalidade entre Bauru e Jaú. E acho
que isso vem disso. Bauru achou que era mais importante que Jaú. Bauru fala que até o rio
eles mandam, depois vem Jaú. Jaú acha que não, que é ela. Mas, meu marido mesmo não
gostava de Bauru, achava Bauru muito presunçoso. Esse trio de estradas de ferro que foi para
lá. E porque não vieram para cá?
Muita coisa não veio para Jaú por causa dos fazendeiros ricos daqui. Eles não queriam
perder o privilégio de dizer que: “A cidade é nossa, a cidade é nossa”. Os Almeida Prado
eram muito arrogantes. Muito “senhores de si”. “A cidade é nossa, não queremos gente de
fora”. Não aceitavam no Jaú Clube, filhos de estrangeiros. Depois, fiquei tão amiga de um
moço, que ele foi falar para o meu irmão, onde se viu meu pai deixar eu namorar um filho de
italiano? Jaú uma cidade tão rica. Aqui era uma cidade chique. Uma vez eu estava em Poços,
falaram: “Você é de Jaú, terra das moças bonitas”. Falei: É, está dizendo a verdade. Das
moças bonitas”.
Acho que essa rivalidade com Bauru foi por causa da estrada de ferro. Esse deslanche
que deu em Bauru foi da estrada. Eu tinha aum primo que era engenheiro da estrada, não
sei qual das três, Benjamin Pereira Lima.
O que prejudicava Jaú era que o pessoal era muito fechado, muito fechado, muito. Não
saiam para estudar. De uma parte até um pouco de atraso. Bauru, não. Bauru tinha muito
estrangeiro. Você viu como tem japoneses em Bauru? Hoje com bastante faculdades. Muita
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Maria Aparecida Cesarino – outra depoente amiga da senhora Wanda Carboni.
142
gente de fora. E hoje continua assim. Duas filhas fizeram faculdade lá. Uma fez Educação
Artística com habilitação em música, outra fez Enfermagem. É nisso que Bauru passou Jaú.
Mas Jaú é uma cidade boa. Você se acostumou aqui? Agora não precisa mais ir para
outra cidade, acho que Jaú já tem de tudo.
Tenho viajado bastante, agora eu vou para São Paulo. O filho da minha filha mais
velha ela tem três filhos o do meio vai ser ordenado pastor. Depois, na semana seguinte,
casa o caçula do meu irmão. Esse meu irmão tem quatro filhos, como eu. Até um filho dele é
promotor aqui em Jaú. Aí, eu fico duas semanas, depois eu volto. Depois, em julho, a minha
filha caçula tem casa em Ilha Bela, eu vou ficar uns dias com ela, lá. Até não gosto da vista do
mar. Mas eu gosto de ficar andando lá, tenho minhas comadres. Fico passeando, a casa é
gostosa.
É bom dar uma variada, mas acho muita falta do meu marido. Cinco anos e meio sem
ele. Cinco anos e meio e não me acostumei. É uma vida. Eu tinha quinze anos e ele dezenove.
Mas é assim, assim é a vida. Eu tenho as filhas muito boas, os netos maravilhosos. Tenho
nove netos e tenho dois bisnetinhos. E assim é a vida. “C’est la vie!”, como se fala em
francês: “C’est la vie!”
O francês é uma língua bem prima do português, mas o inglês... Tínhamos uma família
tradicional daqui Hilst mas eu acho que ele não sabia nem para si e nem para transmitir.
Ele tinha uns tiques nervosos. Eu sei que ninguém aprendeu inglês, mas não sei como
ninguém ficou de segunda época. A de francês era uma irmã – irmã Salete – e até que deu um
francês bonzinho. Português era ótimo. Aprendi francês assim. Francês é até mais fácil de
entender. E o latim, então! Agora tiraram o latim. Até latim nós estudamos; as declinações do
latim...
As pessoas, naquela época, ou estudavam para depois ter onde trabalhar ou para
aprender. Os mais grã-finos estudavam por estudar, porque nunca lecionariam, nunca saíram
de casa, estudavam para esperar casamento, para esperar um noivo. E quem não conseguia
casar, arranjava trabalho. Ainda mais depois da crise do café.
Jaú se reergueu com as fábricas; tinha
muitas fábricas. Se reergueu com os estrangeiros,
porque estrangeiro não tem medo de nada. Pessoal
danado; estrangeiros! Vovê, agora é a Capital do
Calçado Feminino.
E agora você não quer um copo de refresco?
Eu quero, agora eu quero.
143
144
H
ENRIQUE
V
ITOR
47
Eu nasci no dia 10 de julho de 1919. Morei sempre em Jaú. Eu e meus pais. Fiz apenas
o curso primário, no Grupo Escolar Pádua Sales. Naquele tempo, a gente entrava na escola
com sete anos (eram quatro anos o curso primário) e com onze anos saía. O ensino era muito
mais valioso, ensinavam muito mais. E naquele tempo, era um professor que ensinava
tudo. Lembro do professor José Augusto de Souza Filho, muito bom, ensinava toda a matéria,
e da professora Helena Alves que morava ali na rua Marechal Bittencourt. Naquele tempo,
matemática, você tinha tabuada, chamava “estudar tabuada”. Tinha caligrafia, era cartilha “a,
e, i, o, u”. Naquele tempo, os professores ajudavam a educar às crianças, viu! Hoje não, se o
professor relar a mão em um aluno, processa, essas coisas todas. Então, naquele tempo, a
gente aprendeu muita educação na escola, porque os pais não tinham quase tempo, mas a
escola ensinava direitinho. Tudo isso em Jaú, onde fui nascido e criado.
A escola era das sete ao meio dia. O professor tinha
autoridade. Tinha uma professora, chamava Dona Auja (Auja
era o nome dela). Ela era brava, sabe. Tinha umas unhas
enormes. O professor podia até bater no aluno, desde que o
aluno merecesse. E se chegasse em casa se queixando, sabe o
que os pais faziam? Fez porque você mereceu. Apanhava
mesmo. Em certos pontos tinham alguns que exageravam, mas
a maioria não.
Depois, saía da escola e ia para casa. Aí, em casa, a mãe ensinava as coisas. Era tudo
homem, filho homem, mas a mãe ensinava. Tem uma irmã que nasceu depois, que é a mais
nova. Mas os homens ajudavam na casa. A mãe ensinava até arrumar cozinha, botar feijão no
fogo antes de ir para escola. Fazia todas essas coisas. Ela era dona de casa e meu pai
trabalhava em açougue, que naquele tempo era chamado de trabalhar de boiadeiro, de cortar
boi. Era peão. Brasileiro. Naquele tempo, aos dez anos de idade, tinha que ajudar em casa,
tinha que trazer qualquer dinheirinho. Eu vendia banana na rua. Mas mesmo assim, não
dava tempo para conversar em casa.
Bom, como é que as pessoas se vestiam naquela época? Como é que se vestiam?... Se
vestiam bem mal. Era um tempo de muita economia, muita. Os tempos eram outros. Por
exemplo, calçado era difícil, às vezes a gente ia até descalço para escola. Aquele tempo não
47
Entrevista realizada no local de trabalho do depoente na cidade de Jaú, no segundo semestre de 2004 e
primeiro semestre de 2005. Teve uma duração aproximada de 1 hora.
145
podia mesmo. Quanto a gente não andou descalço! Às vezes, de manhã cedo, fazia um frio
danado, aquele tempo a temperatura era outra, mas a gente gozava de bastante saúde, muito
mais que hoje.
Dessa época eu não lembro de nenhum fato histórico. Se teve, eu não gravei, porque
faz muito tempo. Em casa não tinha nada de discussão sobre quem era prefeito, não tinha. Isso
era papo de adulto, porque criança não participava. Quando os adultos queriam conversar,
as crianças iam brincar, iam lá para fora, não tinha essa intimidade. Quando os adultos
conversavam, a criançada ia para fora. Não tinha nada de ouvir conversa e nem de participar.
Muito menos participar. Não podia nem ouvir, nada.
Brincadeira era só de tardezinha, depois do jantar. A gente brincava de se esconder, de
pega-pega, de pular os outros, aquelas coisinhas assim. Brincadeira era isso, porque não
tinha brinquedo, essas coisas de hoje. Naquele tempo, não existia nada disso. Então, a
brincadeira era por aí, mas era uma brincadeira muito sadia, não tinha tempo de pensar tanta
bobagem como hoje. Brincadeiras nas árvores, na terra.
Quando ainda era moço, eu comecei a trabalhar, foi quando eu estava no primário. Eu
não continuei a estudar porque não tinha condição. Aquela era uma época difícil, o
trabalhador ganhava o suficiente para comer. Se eu tivesse condições teria estudado mais,
sem dúvida. Acontece que o ensino primário era bem pesado, era forte, ensinava tudo, eu
estou para dizer que para comparar aquele primário com a oitava série de hoje. Se eu
tivesse continuado a estudar, puxa vida! Acontece que tinha que trabalhar, ajudar em casa. O
curso mais barato era a Academia de Comércio Horácio Berlinck, por isso era onde o pessoal
mais entrava.
Na época, os filhos ajudavam em casa e, para estudar, tinha que ter condições e não
era muito barato. Nós éramos em quatro irmãos, e meu pai também era pobre, não tinha nem
casa para morar. Ele trabalhava com boi (chamava boiadeiro) e os bois eram transportados por
“carros de bois”, tocados por estrada, porque não existia nem asfalto, e iam para o matadouro.
Meu pai ficava ausente, às vezes, um mês, comprando gado por aí. Naquele tempo, o gado
vinha por terra, sabe?! Ficava um tempo fora. Então, não tinha muito tempo de conversar,
essas coisas. Depois que veio o progresso.
Naquela idade já comecei a trabalhar.
Não me lembro de muito imigrante naquela época. Não lembro... Ah, tinha italiano,
espanhol. Eles eram a força de Jaú, não é? E a relação deles com a gente era comum, não
tinha nada diferente, era tudo normal. Todos conviviam, normalmente. E eles não ficavam na
cidade, os imigrantes iam para as fazendas – naquele tempo chamava colônia.
146
Tinha bastante casa na fazenda e eles moravam nessas casas, na colônia. Só vinham na
cidade para fazer compras, ver uma ou outra coisa. Naquele tempo voia em qualquer
fazenda, qualquer sítio e tinha de tudo, tinha galinha, ovo, criavam tudo, tinha tomate, tinha
tudo. Mesmo na cidade tinha tomate, nas casas todas no fundo do quintal, difícil a casa que
não tinha. Principalmente casa de trabalhadores assim, sempre tinha uma hortinha ali. Tinha
muita coisa para comer. Tinha muita fartura, mas hoje... Não tinha nada de veneno, nada
disso.
Além dos imigrantes, também tinham os negros naquele tempo tinha. E nossa
relação com eles era muito boa. Não tinha preconceito. Eu tinha um amigo que brincava
muito com a gente, fazia tudo e era preto. Tinha amizade com vários pretos. Eram gente boa.
Eu nunca senti nada disso, nem tinha com ninguém. Nem meus pais, minha família, não tinha
nada disso. Meus pais me ensinavam a respeitar todos, seja preto ou seja branco, o que for.
Com a gente era assim, a convivência era mais comum, agora na classe mais elevada, sempre
tinha. E eu estava na classe pobre mesmo.
Esse pessoal que tinha mais dinheiro era muito reservado e não davam chance. Era
difícil entra no círculo deles. Ficava cada um na sua, não tinha jeito de entrar, era difícil. Era
difícil alguém da classe rica ter uma intimidade assim com pobre. Era muito difícil. E isso era
mais forte do que hoje em dia, porque era coisa de criação, vem do berço, vem criando, sabe?
Criavam os filhos naqueles moldes e era difícil. Por exemplo, aqui em Jaú, tinham os colégios
particulares que eram freqüentados por gente mais abastada. Pobre não tinha vez. Eu mesmo
freqüentei até a quarta série e tive que parar, porque não tinha dinheiro. Quem não tinha
dinheiro não tinha vez, de jeito nenhum. se trabalhasse e por conta própria fosse estudar,
mas ajuda assim do poder público não tinha. O poder público era só curso primário.
O café era o sustentáculo. Naquele tempo, o que tinha era sitiante. Então, o sitiante,
por exemplo, para casar o filho tinha que esperar a colheita, depois de vender o café. Antes,
não dava. Depois de anos, a cana tomou conta. Hoje é uma grande economia. A força de Jaú
hoje o que é? Cana e calçado. Naquele tempo era café, arroz, feijão. Jera menor, então a
economia era isso. Mas hoje não, hoje a força mesmo é a cana e o calçado.
O trem aqui em Jera a fogo. A fogo. O trem vinha e levava oito horas para chegar
em São Paulo. Depois, veio a bitola larga, o trem era elétrico. É uma pena que parou.
Mas parou por causa do que? Parou por causa da indústria automobilística. Se tivesse, até
hoje, se hoje tivesse trem você ia ver, daqui a São Paulo ia em três horas. Disso eu não tenho a
menor dúvida. Você não o trem do Japão, aqueles trens bala?! Mas o daqui não foi.
Infelizmente não foi, parou. Antigamente, o cara que era funcionário da Companhia Paulista
147
de Estrada de Ferro tinha status. Quem era bancário, era bancário, principalmente bancário do
Banco do Brasil, puxa vida! Professor, por exemplo, professora. Hoje ficou tudo mais
comum.
Não me lembro muito da relação de Bauru com Jaú, mas sempre foi aquela disputa. E
isso foi parte da nossa divisão política, dos nossos antigos, dos políticos antigos, foi mais
nesse campo. Eu acho que Jaú se fechou um pouco, com certeza. Se fechou por medo. Por
querer conservar o poderio.
tinha um cinema aqui em Jaú e teatro amador. Principalmente no Grêmio Paulista
tinha um teatro amador, mas eu nunca participei. E no cinema, ia uma vez ou outra, porque
não tinha condição econômica. Não era caro, era barato, mas também para ganhar aquele
barato, era difícil. Mas a diversão mesmo era cinema. Também tinham os clubes. Também
eram bons. Mas tinha que ser associado para participar. Tinha a Associação Recreativa
Jauense. Em frente àquelas casinhas ali na esquina, era um clube. Tinha o clube da Sede
Operária, que hoje é o Grêmio Paulista. Chamava-se clube da Sede Operária. Tinha a
Associação Atlética Jauense, aqui do lado do jardim, aqui para baixo. Tinha o Jaú Clube. O
Jaú Clube era dos ricos, dos fazendeiros. Até hoje eles têm o prédio ali, que hoje é o Banco
Santander. Ali tinha o clube. Tinha o Luiz Gama, que era o clube dos homens de cor. Naquele
tempo tinha essa divisão mesmo. Tinham vários clubes. O clube da Sede Operária, a
Associação Recreativa e a Atlética, eram dos mais ricos dos ricos ficava tudo separado.
Cada um ficava na sua. Namorar alguém de outra classe era muito difícil. Mas não tinha nada
disso. As famílias, às vezes, engoliam, não é! As famílias dos mais ricos casar com um
pobretão assim... Não é que não deixava, às vezes tinha. Eles criavam obstáculo, sempre
criava um pouquinho, mas no fim tinha que engolir.
Naquele tempo, tinha a Congregação Mariana, filhas de Maria. A Congregação
Mariana era forte. Naquele tempo, a gente freqüentava a igreja. A igreja era freqüentada. Não
tinha esses evangélicos, essas coisas. Naquele tempo, tinham os presbiterianos, que eram
poucos. Até hoje em Jaú eles são minoria, mas a maioria era católico. Por exemplo, na missa a
turma toda ia no Sábado, na missa das dez. Era o divertimento. E a religião instruía bem a
turma. Fazia parte. A instrução tinha a parte religiosa também. Em casa, não tinha nenhuma
divergência religiosa, todo mundo era de um time só. Não se conversava muito em casa, é
como hoje. Íamos na missa e cada um sabia de sua obrigação.
Não se sabia muito sobre a vida em outras cidades. E cidade do interior, sempre foi
cidade do interior. São Paulo já tinha mais coisas. São Paulo já era maior, a turma gostava,
achava que São Paulo era um campo bom. E naquele tempo era mesmo. Eu lembro quando eu
148
fui para lá. Fui não era nem meio oficial, mas nem se falava em meio oficial. Lá em São
Paulo meio oficial era oficial. Eu fui e me apresentei como oficial. Aí, o cara me deu um
serviço de oficial mesmo. Eu comecei a dar uma enrolada, assim, tal. Olhava assim, até que o
mestre chegou: “escuta, você não é oficial não, não é?!”. Falei: “não, eu não sou não. Eu vim
aqui com essa ilusão, disseram que aqui...”. Ele respondeu: “Não, mas não tem nada”. O cara
foi muito legal comigo. Disse: “mas você vai ficar, você tem vontade”. eu fiquei e acabei,
em pouco tempo, como oficial mesmo. O pessoal ajudava. E ele morava em São Paulo
mesmo, ele que comandava a turma toda ali. E ele falava: “mas você vai ficar bom”. E fiquei
mesmo. Fiquei uns tempos, depois eu precisei vir embora para Jaú. Comecei a me sentir
muito só. Quem sabe o que acontece na vida da gente. Puxa vida, trabalhar! Ia, voltava,
ia... A gente sempre convivia bem com os amigos, mas eu fui sozinho. Encontrei um amigo
lá. Já tinha conversado com ele e fui morar na pensão que ele morava. Era uma pensãozinha
vagabunda; a roupa suja você tinha que lavar, você tinha que cuidar, arrumar a sua cama. Era
um quarto que morava, que dormiam, oito pessoas, oito ou dez pessoas. Era gente de todo
naipe, até guarda civil tinha, tinha tudo, mas você podia deixar suas coisas que ninguém
mexia. É interessante, não é?! Nunca, nunca, nunca sumia nada. Os caras tinham medo de
roubar antigamente viu, porque a turma castigava mesmo. Não conheci, nem vi ninguém ser
preso. Naquele tempo, às vezes, o que saía é que alguns tomavam umas demais, uma
discussãozinha, coisinha que ali mesmo se apaziguava, se arrumava e ficava bem. Mas era
difícil. Quando saía no outro dia todo mundo se abraçava. Ninguém guardava rancor. Foi
uma época de muita luta, de conhecer a evolução. Eu tenho um álbum dessa grossura, com
todas as passagens. Não tenho daquele tempo, pois não tinha recurso. Muito difícil. Mas é
isso aí.
Naquele tempo, não existia lei trabalhista, não existia nada. Comecei a trabalhar (era
quase um trabalho, porque não tinha emprego), eu era adolescente ainda, saía na rua vendendo
banana, com uma cesta de banana, levava a cesta de banana na escola. Eu não podia nem
fazer isso ainda, mas tinha que fazer... os pais mandavam. Os pais tinham muito mais
autoridade do que hoje. Então a gente obedecia cegamente o que os pais diziam.
Depois disso, falei: “bom, eu quero aprender um ofício”. Naquele tempo se chamava
assim, “aprender ofício”. A profissão era aprender ofício. O homem tinha que ter um ofício,
não era tanto o estudo. Quem tinha estudo, tinha status. Quem era professor naquele tempo
tinha status. Quem era um funcionário, um acadêmico, um contador, um contabilista, tinha
status. Hoje não. Hoje já ultrapassou tudo isso. Então, fui aprender um ofício. Naquele tempo
existia a Casa Diamante aqui na rua Amaral Gurgel. Fui aprender a envernizar móveis, que
149
era o ofício mais fácil, porque era para aprender logo para poder ganhar a vida. E dali
começou a minha vida. Daí eu comecei a ganhar um troquinho. Coisinha de nada, não tinha
salário mínimo, não tinha nada.
Um tempo depois, eu comecei a trabalhar num açougue, eu entrava às vezes de
madrugada para pesar a carne (eu era menor e trabalhava nesse açougue, de madrugada).
Pesava as carnes para entregar para os fregueses. Tinha que entregar tudo nas casas. Era
completamente diferente de hoje em dia.
Depois do trabalho, eu batia papo com os amigos. Não tinha, como hoje tem, criança
que vai para boate. Naquele tempo não tinha nada disso. Quando eu comecei a freqüentar
clube eutinha dezoito anos. Tinha que ser maior de idade. Antes disso, saía com os pais, ia
nos jardins, via a banda tocando, comia uma pipoca – quando comia – e pronto, daí ia embora.
O passeio no jardim era comum. Era bom, ficava ali ouvindo a banda, brincando um
brincando com o outro.
Mas naquele tempo eu me revoltava. Chegava em casa e falava “não é possível
(professor tinha férias), a gente não tem férias, não tem nada”. Meus pais chamavam a
minha atenção: "como é que voestá falando uma coisa dessas? Não pode fazer uma coisa
dessas” (porque se a gente pensava nas leis sociais era tratado como comunista). Então, eu me
revoltava. E minha avó ficava apavorada. Ela era da Espanha, era espanhola, então ela ficava
falando para eles "deixa, ele sabe o que ele está falando, fazendo, o negócio dele é esse
mesmo, vocês não sabem?!”.
Depois fui trabalhar no JProgride
48
, onde eu fiquei registrado por mais de quarenta
anos. Quando comecei a trabalhar lá, formou o sindicato. Eu freqüentava, gostava de
freqüentar. Gostava de movimentos assim, tanto é que cheguei a exercer de vereador. Fui
eleito primeiro suplente. Naquela época, vereador não ganhava nada, era só um cafezinho, era
uma maravilha. Política era coisa muito séria, não se mudava de partido como se troca de
camisa como hoje. Era tudo mais sério, para ser franco mesmo.
Na época que eu trabalhava, mais mocinho, eu não lembro quem administrava a
cidade, porque eu não entrava nesse campo. Em comecei a trabalhar por volta de 1930, e
trabalhava de graça, porque naquele tempo, a preocupação dos pais, da classe pobre, era
aprender um ofício se dizia “aprender um ofício”, uma profissão. Seja de marceneiro, seja
de mecânico, qualquer coisa. A preocupação dos pais era encaminhar os filhos para isso.
Aquele tempo tinha valor um profissional. Não ganhava muito, mas tinha um valor maior.
48
Indústria de Móveis da cidade de Jaú.
150
Você tinha emprego. Tinha bastante emprego, porque foi quando começou o desenvolvimento
industrial do país. Quem tinha uma profissão, tinha mais chance.
Eu comecei como aprendiz chamava-se aprendiz na Casa Diamante. Depois, nesse
ínterim, quando eu estava mais ou menos de serviço, eu falei: "ah, eu vou para São Paulo". Aí
arrisquei, foi uma aventura. Cheguei lá e entrei numa fábrica. E as pessoas iam para lá não por
causa de ser capital, não. Mas por causa do salário. Para melhorar de vida, para melhorar o
ganho. Por que lá eu tinha, por exemplo o desenvolvimento era muito maior mais
chance, porque a mão de obra especializada era mais difícil. Tanto é que se saía daqui um
meio oficial, que ganhava uma mixaria, e lá ganhava quase igual um oficial daqui. Fui quando
eu tinha, mais ou menos, dezoitos anos. Naquele tempo, da área do Cambuci até o Brás, tinha
fábrica de cigarro. E eu ia do Cambuci até no Brás, a pé. Naquele tempo tinha bonde, mas
precisava economizar, então ia a pé, cortava aquelas margens lá e ia.
de Jaú para São Paulo eu fui de trem. Naquele tempo todo mundo viajava de trem,
naquele tempo era trem mesmo. Carro era difícil porque não tinha pista, não tinha asfalto,
nada. Era chão batido. Tanto é que essas casas antigas aqui em Jaú não tem garagem.
Naquele tempo, por exemplo, esses mais abastados tinha ponto de táxi, tinha garagem,
chamava garagem, um barracão onde tinha uns carros e uns motoristas que tinham carro
telefonavam e falavam: "vem fazer essa corrida". Então, quem queria ir de casa até o
colégio chamava, usava assim. Como se fosse um táxi. Também tinha muita charrete. Eu usei
quando trabalhei no açougue para entregar carne. Tinha uma charretinha, que usava para
entregar carne para os fregueses. Fazia as entregas, sozinho e esse açougue ficava no mercado
ali entrando a direita. Eu levantava de madrugada, ia lá, cerrava a carne, fazia tudo. Usava uns
pesinhos assim. O freguês queria meio quilo de carne, tinha que entregar na casa do cara para
não perder o freguês. Então fazia todas aquelas encomendas, depois ia no pasto, pegava,
puxava o cavalo, arriava, pegava a charrete e ia entregar nas casas. Isso levava a manhã
inteira. Depois voltava e ainda ia fazer limpeza do açougue e à noite quando chegava a carne,
ia fazer lingüiça. Era obrigado a fazer essas coisas, não tinha jeito. Tinha que fazer, ninguém
ficava em casa, de jeito nenhum.
Quando fui para São Paulo, tinha uma tia que morava lá, mas meu pai falou que não
era para morar na casa de parente nenhum. Ele disse: “você quer se virar, você vai se virar
sozinho”. Meu pai foi muito legal nessa parte. Ensinou mesmo. Ele aceitou. Eu fui com a cara
e a coragem. Fiquei vários anos, depois voltei. Nos anos em que fiquei trabalhei em uma
fábrica de móveis. Fiquei mais ou menos uns três anos. Resolvi voltar porque aconteceu
que meu irmão ficou muito doente e a minha e estava muito preocupada, então eu voltei
151
para cá. Tudo isso solteiro. Ai eu voltei para e falei para minha mãe: “bom, acho que eu
vou casar. Vou casar e vou embora para São Paulo”. Naquele tempo, votinha que fazer
isso. Depois eu acabei casando e ficando por aqui mesmo. Casei em 41.
Antes de ir para São Paulo, e mesmo lá, antigamente, eu ficava revoltado. Mesmo aqui
em casa eu era meio revoltado, achava que o trabalhador não tinha férias, não tinha nada.
Então eu falava: “o professor tem férias tinha férias dos alunos e férias dos professores. Os
professores ganhavam tudo. Como é que fica?”. Eu comecei nesse lado social, assim. E meus
pais me repreendiam, falavam: “não fica pensando essas coisas. Isso é bobagem, não sei o
quê”. Eu me revoltava porque achava que tinha que ter mais coisa, que o trabalhador tinha
que ser mais valorizado. Foi quando eu entrei na vida sindical.
Naquele tempo, não tinha nem CLT, era regime de escravidão mesmo, de trabalhar
dez, doze horas. Não tinha direito nenhum. Depois, com o advento do Getúlio Vargas, foi
criado. Eu penso e afirmo que ele foi o maior estadista do Brasil. Inclusive, pode ser
considerado o maior estadista do mundo. Porque ele, naquela ocasião, em que o poder
econômico dominava, os coronéis dominavam o país, ele teve coragem e introduziu as leis
sociais no país. Foi a criação e consolidação das leis de trabalho, que começou a implantar
depois da Revolução de 30. Tanto é que ela é de 43.
Da Revolução de 30, eu lembro que vieram soldados, acamparam aqui em Jaú. Foram
lá na praça e distribuíram – os militares, os soldados do exército – presentes. Aquelas
coisinhas de dar “bala” para as crianças. Cartucho, cápsula, mas às vezes dava as balas de
presente para as crianças, agradavam as crianças. A gente ia onde eles estavam acampando
curiosidade de criança “vamos ver o exército!”. Não tinha o que fazer, não tinha outro
lugar de divertimento. Era por aí, a vida sempre foi essa. Naquela ocasião foi feio. Lembra o
Integralismo? Plínio Salgado. Plínio Salgado tinha, pregava questões sociais, tudo. Aqui em
Jaú foram fortes, os camisa verde. Eu era molecote, eu fui, eu comecei a freqüentar. E achava
que era a coisa certa. Porque é a mesma coisa de hoje, um político vem aí, engana o povo.
Promete tanta coisa e no fim, não faz nada. Você vê, o que nós estamos vendo, hoje. Hoje,
não tem patriotismo, não tem nada. Antigamente, tinha. Tinha patriotismo. Quando tocava o
hino nacional todo mundo parava. Hoje, usa até a bandeira brasileira para fazer fantasia
carnavalesca. Antigamente não podia fazer isso, não. Contei para você que eu tenho uma
haste com a bandeira brasileira? Mostrei para você? Vamos ver? Antigamente tinha um
lugar especial para guardar. Hoje, não. Então, até hoje eu tenho. Tinha isso em 64 para manter
a tradição. Hoje não tem nada disso. Hoje, está faltando muito patriotismo. Na escola mesmo
ensinava, cantava o hino nacional. Então, ensinava ao aluno esse civismo. O povo era mais
152
patriota. Não sei por que eles reforçavam isso. Era a tendência deles. O exército era muito
valorizado, era bem respeitado e o povo respeitava muito as autoridades. A molecada tinha
medo de ver um soldado. Quando via, se escondia, não chegava perto. Depois foi, não sei.
O que será que é? Final dos tempos. Os valores mudaram nesses anos todos, não sei por quê.
Como é que a gente pode avaliar? Sei lá, é uma pena.
E vou te falar uma coisa: “naquele tempo tinha muita honestidade”. Não se chegava
por exemplo, nos armazéns, eu lembro, todo mundo comprava, todo mundo dava um duro
danado e chegava no fim do mês, todo mundo era honesto e pagava direitinho. Depois,
começou a turma a dar os canos. Naquele tempo, não tinha calote. E o povo gastava aquilo
que podia pagar. Hoje não, hoje a ganância é muito grande. Você as lojas, tantos meses
para pagar, sem entrada, a turma se ilude e vai. Chega e depois se aperta. começa a dar os
canos. Agora, você vê, aposentado emprestando dinheiro. Isso eu sou contra. Você incentiva o
cara a se enterrar. Ele vai se apertar. E depois tem que pagar luz, juros, ninguém vai ajudar.
Essas financeiras querem é lucro. Os caras se enterram no banco. Antigamente não.
Eu lembro de várias conquistas. Conquista do décimo terceiro, conquista das oito
horas. O décimo terceiro eu participei ativamente, na luta por isso aí, contei? Eu fui para
Brasília, naquele tempo, ônibus não era confortável como hoje. Passei mais de uma semana
dentro daquele ônibus, desconfortável, tudo. Levava vários dias. Dois, três dias, viajava de
noite, de dia, não dava para ir direto assim. Foi uma luta. Conseguimos. Uma luta gloriosa.
Poucos lembram disso, mas custou o sacrifício de muita gente. E quem não gostou, não teve o
que fazer. Não tinha. Foi votado no Congresso. Nós fomos pressionar o Congresso. Uma
pressão... mas uma pressão! Não é pressão como é hoje que já começam a quebrar tudo. Não é
assim que se faz, porque senão o prejuízo é maior. Hoje, a turma vai fazer um negócio e
começa a incendiar ônibus, eu acho que essa gente é covarde. Falta de cultura.
Jaú tinha muito coronel naquela época. Tinha uma parte da sociedade, sempre teve,
mas tudo foi acabando. Acho que porque a outra classe foi evoluindo mais, então veio a
industrialização que trouxe muito progresso, muito benefício para a classe pobre. Aqui em
Jaú isso começou, por exemplo, com o Jaú Progride, a Loja São José – que era do seu Mário –
, a Casa Diamante. A Loja São José depois foi indo para essas outras fabriquinhas pequenas.
Os donos dessas fábricas eram quase todos descendentes de italianos. A Casa Diamante era de
judeu. Judeu, mas era um judeu de grande valor. Um homem filantropo, fora de série. Quando
existia, naquele tempo, qualquer coisa, uma lista, benefício, qualquer coisa, o primeiro que
corriam era para Casa Diamante. Eu lembro que uma vez, ele falou assim para mim quando
eu ia pleitear ajuda, fazia uma assembléia e a primeira fábrica que eu ia era na Diamante
153
“poxa, mas por que a primeira fábrica que vovem é comigo?”. Eu falava: “é porque o
senhor tem o coração melhor, o senhor entende melhor, o senhor entende melhor a vida e tal,
tal, tal. A turma toda gosta do senhor, os empregados e tal e a gente sabe que o senhor não vai
negar mais esse benefício e tal, tal”. E ele acabava assinando. Aí, ia pedir para os outros e
falava: “a Diamante assinou”. Ai os outros faziam. Naquele tempo, não tinha nada de
Ministério do Trabalho. Tinha que ser na raça mesmo. E graças a Deus eu sempre fui bom
articulador. Nunca tive problema.
Comecei a trabalhar lá, no sindicato nosso (ficava na fábrica e, nas horas vagas, eu
tocava o sindicato). Depois é que fundaram outro sindicato. Nosso sindicato era de mil
novecentos e quarenta, a carta é de 1942 (quarenta era associação, quarenta e dois teve a
carta do sindicato). Eu sou sócio número onze da entidade. Aí, foi indo a vida sindical. Era
uma luta para conseguir as coisas. Depois, fui para Federação
49
. Fui várias vezes presidente da
Federação. Hoje, eu ainda pertenço à diretoria, sou diretor do patrimônio. Na minha gestão,
construí uma colônia de férias que abriga 400 pessoas. Uma colônia de férias muito boa.
Construí um prédio, nessa colônia, que hoje é da Federação (são três andares). Tudo isso no
meu mandato e ainda deixei muito dinheiro em caixa.
Nesse ínterim, na época da revolução de 64, vieram aqui fazer uma vistoria no
sindicato. Fiquei detido um dia inteiro. Em 64 já estava naquela pressão contra sindicato. Mas
não acharam nada comigo. Tanto é que depois, no governo do Médici, ele me nomeou juiz do
Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo
50
. Não passou nem pela primeira instância, foi
direto para o tribunal. Fiquei no tribunal e fui duas vezes na Cisgenebra (Congresso
Internacional Sindical de Genebra), na OIT (Organização Internacional do Trabalho), na
Suíça, representando o Brasil. Depois, ainda investi algum tempo no tribunal superior e fiquei
nove anos em São Paulo. Depois, me aposentei. Fiquei no tribunal até 1981. Hoje eu
continuo na vida sindical.
Eu lembro que, na ocasião, em que o prefeito de Jaú era o José Magalhães de Almeida
Prado, ele nomeou uma comissão para distribuir bolsas de estudos da prefeitura. Então, em
troca do imposto que eles iam pagar, forneciam um certo número de bolsas de estudos. Nessa
comissão, participavam o sindicato, a união estudantil, um vereador e um representante da
prefeitura. Nós éramos maioria (ele sempre fez questão de deixar a maioria na mão dos
sindicalistas). Outro dia, encontrei um dos alunos que indicamos para essa bolsa, um
49
Federação dos Trabalhadores das Indústrias da Construção do Mobiliário e Montagem Industrial do Estado de
São Paulo; fundado em 1953, tem sua sede em São Paulo, capital.
50
Foi nomeado Juiz Classista Temporário da Instância no Egrério Tribunal Regional do Trabalho da
Região. Exerceu o cargo por nove anos.
154
advogado de São Paulo (hoje ele está muito bem de vida, atuando na Vara da Justiça do
Trabalho), levei um pacote, uma relação daqueles que nós encaminhamos para estudar e que
também eram filhos de gente pobre, ele viu a relação e quase chorou. Falou: “Puxa vida!
Você vê, são tantas lembranças ... que deixa a gente ...”. Outro desses, é o Purini, que está
bem na história e passou pelo crivo nosso.
Depois, o primeiro núcleo de casa, a CECAP
51
(o governador era o Carvalho Pinto
52
se
eu não me engano), foi feito aqui em Jaú. Fiz parte em São Paulo, da CECAP, que era um
órgão do estado. Então, fazia parte um representante de trabalhador. O superintendente em
São Paulo, foi prefeito de Jaú, ele tinha saído da prefeitura e estava lá. Ele me nomeou para
representar os trabalhadores. Nós trouxemos esse núcleo aqui para Jaú, na avenida Frederico
Ozanan (uma das melhores construções de casas populares de Jaú foi aquela, naquele tempo).
Eu fazia parte do Conselho e era ele que determinava onde iriam fazer as casas. Naquele
tempo, no Conselho tinha o presidente da Câmara de São Paulo, tinha os industriários, gente
fina mesmo, o único pobretão lá era eu. Mas sempre me dei muito bem, eles me respeitavam.
Teve uma ocasião que tinha que construir outro núcleo. Todas as cidades tinham e
cidades importantes queriam levar. Era uma grande conquista. Porque pagava coisa mínima
de aluguel. Como hoje, paga pouquinho, essas casas populares. O superintendente chegou e
falou pra mim: “Olha, eu quero levar para Jaú esse segundo núcleo”. Eu falei: “mas J
tem. Têm outras cidades importantes, cidades muito maiores que Jaú pedindo... Não vai ficar
mal para você?”. Ele falou: “você tem que conseguir o Conselho inteiro” (eram umas 12
pessoas). “Você tem que conquistar o Conselho primeiro. Inventa qualquer coisa”. Puxa vida!
Ele falou: “é você quem vai ter essa responsabilidade, senão der, nem passe no meu
gabinete”. Ele me tratava assim, como um amigo mesmo. Falei: “o que vou fazer agora para
conseguir?”. O presidente do Conselho abriu a sessão. Falei: “o presidente licença, o
Conselheiro deve estar sabendo que o superintendente quer levar esse segundo núcleo de
novo para Jaú?”. Ele me respondeu: “Mas não fica bem. O senhor tem que compreender que
outras cidades também querem e Jtem, e não faz muito tempo que inaugurou”. Falei:
51
Em 10 de outubro de 1949, a Lei n.º 483 criou a Caixa Estadual de Casas para o Povo - CECAP, uma
autarquia subordinada à então Secretaria do Trabalho, Indústria e Comércio. Apesar de ter sido inclusive
regulamentada pelo decreto 43.107 de 28/02/64, a CECAP começa a funcionar efetivamente a partir de 1967. De
qualquer modo, a criação desse órgão aponta para uma preocupação por parte do Estado com a agenda social:
a reunião de esforços, por parte do governo, para viabilizar um processo de produção de moradias voltado a uma
camada da população que começava a se concentrar nas cidades em função de um forte processo de urbanização,
causado pela industrialização pela qual o país passou a partir do final da Segunda Grande Guerra. Essa
preocupação com a habitação de interesse social estará sempre presente, em maior ou menor grau, na definição
de políticas sociais dos governos do Estado de São Paulo.
(
http://www.cdhu.sp.gov.br/http/instituicao/historia/historia.htm em 25/10/04).
52
Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto, mandato de 31/03/1959 a 31/03/1963.
155
“como é que eu vou fazer?”. Nós tínhamos conseguido que o prefeito doasse o terreno, era
meio caminho andado, mas os outros também davam, os outros davam até mais. Um
industriário falou assim (nem sei quem era): “vamos ouvir o Conselheiro de Jaú, se tem
alguma coisa, alguma justificativa”. Falei: “olha, vocês foram à inauguração do núcleo em
Jaú, não foram? (lógico que eles iam, quando inaugurava eles iam). Vocês conhecem a
cidade, não conhecem? Vocês sabem que na cidade de Jaú, no centro da cidade, passa um rio?
Esse rio, como ele atravessa a cidade, está cheio de pontes e, até hoje, infelizmente, muitas
famílias moram debaixo dessas pontes. Às vezes são crianças que morrem e não são nem
registradas na polícia por questões políticas, essas coisas todas, sabe como é que é, pobre não
tem vez mesmo. Então, precisa dar um jeito. É questão social de alto nível, de humanidade
(chorei, chorei). É por isso que nós precisamos disso lá. Veja bem, vocês têm filhos, têm
netos, têm tudo, devem saber o quanto é triste, o cara sai para trabalhar, volta, não encontra
metade da família”. Até hoje eu não lembro como é que eu fiz tanto espetáculo que acabaram
aprovando (são passagens assim, pitorescas. Não sei o que eu fiz, se foi porque chorei, porque
...). Então foi isso. Quando saí, fui falar com o superintendente e ele falou assim (já tinham
telefonado, falado para ele que eu tinha aprovado): “eu sabia que você ia conseguir, eu sei
escolher meus amigos”. Eu respondi para ele: “olha seu filha...”
Participei também daquela ocasião da aprovação do 13° salário que foi em Brasília.
Fomos numa votação, lotamos três ônibus em São Paulo e da Federão, foram outros ônibus
também. E foi essa luta, sempre conquistando algo. Mas era o sindicalismo, você fazia uma
assembléia, ficava super lotado o sindicato. Hoje, a turma não tem tanto interesse, sabe
reclamar, mas não procura sua entidade.
A minha vida no sindicalismo foi muito importante. Eu vivi toda essa época. Tenho
até fotografia com o Médici, em 1970. Tenho a fotografia no Palácio do Governo com o
Figueiredo (fomos lá para uma reunião, no Palácio dos Bandeirantes).
Naquele tempo, sindicato não era como é hoje. Quem era diretor, presidente, só tocava
o sindicato nas horas vagas. Com o tempo é que foi ganhando força. O sindicato era
sindicalizado pelo Ministério do Trabalho, tinha que fazer prestação de contas; qualquer coisa
tinha que justificar. Era muito bem vigiado. Muita gente se queixava, achava que aquilo era
.... Eu acho que estava certo, porque não existia muito abuso, porque hoje, tem muito
sindicalista que entra na vida sindical com a intenção de seguir uma carreira política, de
evoluir politicamente. Eu não, eu fui por acaso. Quando foi para escolher a lista tríplice (a
lista tríplice era uma lista que todas as Federações mandavam para escolha do juiz, no
Tribunal, juiz classista). Teve na minha Federação (aquele tempo eu era vice-presidente) uma
156
lista e, puseram três nomes, o meu era o terceiro da lista. Essas listas iam para o Ministério da
Justiça e o Ministro fazia o dossiê e mandava para o Presidente da República (o Presidente da
República que nomeava. Eu tenho até o ato de nomeação). Aconteceu o seguinte, os três
eram muito antigos, tinha um que fazia muitos anos, então o Presidente da Federão veio e
me disse o seguinte: “Ô Henrique, assina ”; eu disse: “assinar o que? Deixa eu ver ... Olha,
como é que nós vamos ... (era um apoio paro o Presidente da Federação pedir para o
Presidente da República, manter aqueles três nomes). Escuta, eu não vou assinar, eu não
preciso fazer um negócio desses”. Ele respondeu: “Mas você sabe como é, eles estão lá já, são
amigos da gente ...”. Olhei e falei: “Nós temos aqui (que tinha um secretário geral que estava
na lista) um da primeira instância, então, é justo que ele seja promovido. Vamos apoiar ele e
não apoiar os outros”. Ele respondeu: “Mas vamos tirar o lugar dos outros?Falei: “Está
bom”. Assinei. Foi quando comecei a matutar ... E agora? Juiz do trabalho? Eu não estudei
direito ... eu falei: “Como é que vai ser esse negócio?”. Comecei a pensar; eu conheci um
cara que ele tinha um parente no Ministério da Justiça, falei: “Escuta, será que você pode me
ajudar? Eu gostaria de saber o que é esse negócio? Com é que funciona?”; ele disse: Pode
deixar que eu vou saber”. Depois ele encontrou comigo e falou para mim: “Henrique, você
está na lista? porque cada Federação manda uma lista Você está em uma das listas?Eu
falei: “estou, mas estou em terceiro lugar. Eu queria saber por curiosidade. Estou em
terceiro lugar e assinei uma moção de apoio para os que estão lá”. Ele disse: “Estou
perguntando se você está na lista?”. Eu falei: “Estou”. Ele respondeu: “Então você é juiz.
Mas não fala nada para ninguém, Ninguém pode saber”. Eu falei: “Com certeza”.
Fui nomeado. Cheguei e vi o número do processo e falei: “como é que eu vou me
arrumar?”. Tinha um advogado na Federação, muito amigo meu, pedi para ele dar uma mão
para mim, não sabia nada. Ele disse: “Se tem boa vontade, pode deixar”. Você tem que
relatar, fazer relatório, fazer tudo. Fui pegando o jeitão com ele (naquele tempo juiz não tinha
assessor). Depois, no segundo mandato, podia, já nomeava um assessor. Ele ficou como
meu assessor. Me ajudou muito. Era lei, era de tudo, era como um analfabeto querer pegar um
livro para ler. Como naquele tempo eu ficava na Federação, eu vinha para Jaú no fim de
semana, visitar a família. Terminava o expediente eu ficava até meia noite lendo. Lendo os
papéis, lendo, lendo, tirando conclusões.
Nunca coloquei nenhum parente em nenhum cargo público.
Fui casado, fiquei 52 anos com a minha esposa, depois ela faleceu. Tenho quatro
filhos, dois homens e duas mulheres. A família toda sempre foi de Jaú. Apenas a minha avó,
por parte de mãe, era espanhola, veio da Espanha e, meu sogro era italiano, veio da Itália.
157
Naquele tempo, não tinha holerite. Naquele tempo vinha o guarda livro, chamava e
pagava. Não tinha que assinar. Isso só depois do Getúlio. O guarda-livro era o chefão do meu
pagamento. Pegava, ia na sessão "fulano de tal", tá, tá, tá, pegava o dinheiro, punha no bolso.
Geralmente os guarda-livros eram os escriturários. Às vezes, nas indústrias, eram os parentes
dos donos, mas muitos estudavam na Academia do Comércio (que foi uma das primeiras
escolas). Naquele tempo quem estudava na Academia do Comércio – particular – tinha
dinheiro. A academia teve escola aqui nesse prédio. Depois começou a vir outras, criaram o
Instituto de Educação. A primeira escola a ter o primário foi o Instituto de Educação. Naquele
tempo, também tinha na Academia. Já te contei que no sindicato tinha a comissão para
fornecer bolsa de estudo. Esse foi um trabalho importante para as pessoas daqui. Tem gente
que hoje está riquíssimo e foi bolsista nosso. Depois no sindicato também houve uma época
que distribuía bolsa de estudo pelo governo federal, vinha uma cota. A bolsa de estudo era
distribuída aqui no sindicato. Esses foram trabalhos, por exemplo, dos alunos que fizeram,
que foram bolsistas nossos. Esse daqui foi feito, era daqui: "a liderança sindical de Jaú,
também representada pelo senhor Henrique, presidente do sindicato". Foi um trabalho de
conclusão de curso da Faculdade de Serviço Social de Bauru, com os dizeres “em sinal de
gratidão”. O sindicato ajudou muita gente naquele tempo mas depois, infelizmente mudou.
O sindicato mudou muito depois que começou a misturar-se com a política partidária.
Tudo é política, mas por exemplo, eu chego aqui e digo: "bom, eu vou ser candidato pelo PT
ou por qualquer partido político". Mas eu tenho oficiado que é do PT, ou de outro partido faz
tempo. Então, eles vão dizer "mas por que não veio no meu partido?". Tudo isso daí influi.
Porque eu acho que todas essas centrais têm um lado. Cada um tem um lado. Agora, vamos
criar uma outra central. Pelo que vem vindo o governo inventa essas porcariadas, essas
reformas, essas coisas , você vai ser quase que obrigado a ter uma central. Então, nós
estamos procurando uma central fundada pelas Confederações, a nossa vai ser a Confederação
Nacional da Indústria. Tem a Confederação Nacional de Comércio. Então vai sair uma
central. Agora dia 28, 29 vai ter uma reunião em Brasília. E essa central vai ser nacional. Eu
falei, quando eles estiveram lá, "olha, desde que não seja, que não sirva de trampolim político.
Que seja uma central para cuidar dos interesses da classe trabalhadora, então eu posso
participar”. Se isso se concretizar vai ser a maior central da América. Vai superar todas.
Porque veja bem, a Confederação Nacional da Indústria, ela congrega federações de todos os
estados do Brasil. E as federações todas, têm seus sindicatos. A nossa, por exemplo, tem mais
de 40 sindicatos. Nem todas vão para essa, porque algumas já estão comprometidas nas
outras, mas a hora que eles virem essa, podem sair dessas e entrar na nossa. Quem está
158
articulando isso, é a classe trabalhadora. O governo está com essa reforma. Você vê, o
governo recebe a força do sindicato. O governo recebe. E são entidades que não são oficiais,
mas por causa da representação política, o governo tem interesse político, o governo tem mais
interesse na política do que no bem estar social. Então, o que acontece, eles formam a
Confederação e a confederação das confederações. A legalidade mesmo é um critério:
confederação, federação e sindicato. Isso está no regime da CLT, a lei está aí. Mas todo
mundo faz de conta que não. Política é engraçado, viu! Quando interesse; e outra vezes, o
medo. Político também tem medo. Às vezes ali tem uma solenidade, em qualquer lugar, e eles
falam "fulano de tal, fulano de tal", mas, às vezes, tem um dirigente sindical e eles nem
falam. Por quê? Eu nem vou nessas solenidades, eu nem vou. Eu nem vou porque um dia eu
fui aqui, quando inaugurou a Associação Comercial, eles convidaram, por educação. Mas
chegou lá me ferrei. Outra vez eu fui, não lembro em que solenidade que eu fui, chamou
todo mundo, até um policial que estava e não me chamou. Não é por mim. Eu não esperei,
eu levantei e vim embora. Ficou todo mundo, aquele impacto, não é? É, mas eu peguei,
levantei e vim embora. Não dei nem bola. de para ... E não é por mim, pela minha
pessoa. Mas é por aquilo que eu represento. Não sou eu.
Eu fui na semana passada, na Federação, lá na FIESP, e chega o diretor sindical do
estado inteiro a FIESP é uma força. Ele falou: "eu quero que você até lá". bom, mas
não falei nada para ele. Chegou lá, sentamos e esperamos mais de uma hora o cara nos
atender. A gente ficou sentado na sala dele e tal. quando ele entrou assim, olhou “oh,
gente rica". Entrou e não cumprimentou ninguém, me abraçou e disse: “Hoje vai sair a
coisa aqui”. Eu falei: “Vai sair a coisa porque eu cheguei aqui. Ele respondeu: "Ah, com você
aqui sai mesmo". E foi uma conversa assim, tranqüila, gostosa. O pessoal que foi comigo
falou: “vocês se conhecem?". Ele falou "O Henrique é meu amigo, foi meu colega aqui no
Tribunal". Quando estava lá, ele era juíz. E quando nós saímos ele falou: "puxa vida,
trabalhou comigo no tribunal!" Ele tem conhecimento. Ele é um cara difícil, tem indústria,
tudo, mas você vê, eu nunca pedi nada. Quando veio bolsa de estudo aqui, para o sindicato, eu
não distribuí para os meus filhos para não dar o que falar. Casa popular quando veio, eu não
dei para parente nenhum meu. Hoje não, hoje é
primeiro os parentes. Você não aqueles vereadores
ali na Câmara? Cada um quer pôr o seu. Antigamente,
não tinha muito disso, não. O cara tinha mais moral. É
ou não é? Tudo isso é conseqüência da vida, o é? É
isso aí, tem mais alguma pergunta?
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160
M
ARIA DE
L
OURDES
C
OQUE DE
T
OLEDO
U
53
Meu nome é Maria de Lourdes Coque de Toledo Usó. Eu nasci em Pederneiras, morei
em Piracicaba e acabei ficando o resto por aqui. Nasci em 1925, no dia 11 de abril.
Passei a infância toda aqui. Estudei no Colégio das Freiras aqui em Pederneiras, que
hoje já não existe mais. Acho que comecei a estudar em 1935... Não, menos... Em 1932, 1933
e comecei a estudar no Colégio das Freiras que eram as Irmãs Passionistas aqui em
Pederneiras. Fiz todo o curso primário nesse Colégio, onde é hoje o Objetivo. Depois, fiz o
Ginásio Anchieta. Aliás, antes, fiz o Ginásio Dom Luis, onde hoje é o cinema e a escola
Objetivo também.
Comecei mais ou menos em 1932, no Colégio das
Freiras e acho que fiz quatro anos de primário, até a quarta
série. Sai de lá, mais ou menos, em 1936. Então tivemos um
tipo de ginásio que um professor criou aqui, mas que não foi
para frente. Era particular e depois passou para o governo.
Então, estudei nesse colégio que era do seu Ildefonso, professor
Ildefonso. Ele era ministro protestante. Ele criou esse ginásio.
Uma turma grande comou a freqüentar para passar para o
governo, mas não conseguiu nada, fechou.
Quando o colégio fechou, ele levou a turma toda para São Paulo, porque o governo
fechou. Entraram desde a estação até o Palácio, marchando, porque tinham fechado o colégio.
E fomos lá, falar com o governador. Acho que era governador.
Depois, nós entramos no Dom Luis, que foi do padre Aquino, de Agudos. Ele criou o
Ginásio Dom Luis. O padre Aquino formou o corpo docente todo com professores daqui e de
Agudos. Foi nesse ginásio que fiquei até 1942. Depois eu fiz o Normal em Jaú.
Mas antes de ir para Je depois do Dom Luis, eu fiquei um ano interna em Agudos.
Fui antes para acho que porque tinha umas moças daqui que foram para Agudos e uma
daqui foi para Jaú, a Edna. Só a Edna. E para Agudos foi a Alda Fabri, foi a Mare Razuk e foi
(quem mais? Tem mais uma, porque nos éramos quatro). Fomos porque aqui não ia ter, então
nós fomos para lá. Fiquei um ano lá no internato. Ah, foi horrível, foi horrível. Quando as
minhas amigas ficavam doentes, eu ficava embaixo da cama delas, cutucando elas por baixo e
53
Entrevista realizada na residência da depoente na cidade de Pederneiras, no segundo semestre de 2004.
Duração aproximada de 45 minutos.
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a madre ali. Eu pintava e bordava, viu?! Mas eu queria que elas me mandassem embora! Foi
então que sai de lá e fui ficar externa em Jaú.
Fiz o Normal no Colégio das Freiras. Acho que ficava onde hoje é a Fundação, em
cima. Tinha um jardim grande na frente. Depois, tinha o Colégio dos meninos, porque era o
dos meninos e das meninas. O Colégio das Freiras e o Colégio dos Padres. que eu não fui
interna. Eu era externa. Eu ia e voltava, porque a gente ia de trem de manhã e voltava ao
meio-dia. Isso mais ou menos em 1942, 1943. Fiz quatro anos e me formei professora. Eu
viajava todo o dia de trem com uma turma grande daqui. Tinha bastante gente.
A infância nossa naquele tempo era muito pobre de diversão, porque não tinha nem
clube com piscina, com nada. Não tinha nada aqui, mas eu viajava muito porque a minha
família é de Piracicaba, então eu viajava muito. Às vezes, ia de trem, às vezes ia de carro.
Quer dizer que a minha vida foi mais viajar. Tanto que eu continuo viajando. Só que agora eu
vou para o exterior (risos). Então, quer dizer que a gente tinha aquela turminha amiga, que se
reunia muito. Reuníamos-nos na minha casa; sabe onde é o Banco do Brasil, ali na esquina?
era a minha casa. A casa dos meus avós... Então, a gente formava turminha ali na calçada.
A diversão era essa, com os rapazinhos que eram os colegas. Tinha um que tinha açougue;
levava lingüiça. Eu entrava, fritava, trazia para eles comerem. Era uma coisa simples.
Naquela época, estudar era difícil. quem tinha um pouco mais de dinheiro é que
podia estudar, porque tudo ficava caro. O lanche era caro, condução cara, os livros, tudo. E
mesmo aqui, sempre teve que pagar. O Colégio era chique, então tinha que pagar. Eu nem me
lembro quanto era, mas devia ser bem caro. Porque não eram todos também que podiam
estudar lá. Tinha o Grupo que não era pago o Grupo Eliazar Braga. Ele existia nesse
tempo. Hoje nós temos vários aqui, mas naquele tempo, só tinha o Eliazar Braga. Era o Grupo
Escolar de Pederneiras. A Isabel foi professora muitos anos lá. Quem não tinha muita
condição estudava no Eliazar Braga e quem tinha ia para o Colégio. Eu saí do Colégio e fui
estudar em Jaú.
E a sorte nossa foi que nós tivemos essa convivência com as freiras, que nos
ensinaram coisas boas! Tanto aqui, quanto lá. Eu acho que nossa mocidade foi muito melhor
do que a de hoje. Eu acho. Até por conta da educação das freiras e tudo. Elas nos ajudaram
em tudo, principalmente as passionistas.
Eu nunca tive dificuldades com os estudos. Sempre fui danada! Eu levava tudo na
esportiva. Nunca fui muito de ferrar de estudar. E mesmo assim passava, dava para passar. No
Dom Luís, no colégio – comecei a namorar meu marido com doze anos – ele me ajudou muito
em ocasiões de exame e tudo.
162
Naquele tempo tinha o jardim que nós ficávamos dando volta. E eu andei muito no
jardim de Jaú, também. Eu tenho uns primos, Toledo, ainda em Jaú. Então, eu vivia muito
em Jaú. Era uma mocidade assim... Mais... Como é que eu vou dizer para você? Era uma
mocidade mais juvenil, porque hoje não, hoje acabou. Hoje é diferente.
Eu e meu marido não estudamos juntos, não! Não porque a família não deixava
namorar. Naquele tempo os namoros eram escondidos da família.
Na escola, não tinha separação não, tinha os recreios juntos. Quer dizer, no Dom
Luís que era mista. Era padre, mas não tinha nada de separação de sexo, nada. Em Jaú eu
tinha amigas internas que era um sacrifício medonho, um terror lá. Não podia sair, não podia.
No colégio era um rigor muito grande; demais, porque era uma fiscalização enorme para as
meninas. Para a gente que era interna não, mas não tinha muita conversa na classe, nem no
recreio. Elas ficavam sempre fiscalizando, sempre. Aqui não, aqui já era diferente.
Na época que eu estudava, todas as professoras eram maravilhosas. Até sonhei essa
noite com um deles, o senhor Teódolo Teódolo de Oliveira Lara. Eu não sei se ele era de
Agudos, não me lembro de onde ele era. Era professor de História. Tinha também o Dusan,
que era professor de francês, maravilhoso também. Tinha o (como é que chamava? O meu
amigo, que deixou um álbum lindo de poesia para mim?), Antônio Serafo, professor de
português. Tinha duas professoras daqui: Fábia Razuk e a Adélia Machado. Quem mais?
Tinha o Larizatti. O professor Antonio Larizatti. Eu acho que os professores eram esses. Ah,
tinha o Malufe. O Malufe foi o professor de inglês. Era Said o sobrenome dele. A esposa dele
era professora também, Maria Minzequi. Tem até um colégio aqui com o nome dela. Os filhos
deles saíram pequenos daqui e voltaram depois de adultos. Ela também deu aula. Esses
professores davam aula no Dom Luis. Eles usavam livros e meus livros eram todos novos. Eu
era de pegar o livro, abrir e deixar... Graças a Deus não tive nenhum filho que me puxasse.
Nem neto também. Eu sempre fui danada.
Depois do ginásio eu fui para Jaú fazer o Normal. Fiz o normal. Dos professores de
Jaú eu me lembro da Maria Cesarino (que não sei se ela está viva ainda, porque não a vejo
uns três anos). A vi porque todos os anos a gente se encontrava em Jo pessoal que
tinha se formado junto. Nós fizemos muito tempo isso. Era dia 15 de outubro, uns dias antes
ou depois, sempre lá. E a Maria Cesarino sempre comparecia. E ela parecia nossa irmã,
impressionante, viu? Ela vem a ser cunhada do Doutor Brandão, que também já é falecido.
Família muito conhecida de Jaú. Carvalho, parece. Não me lembro muito bem o sobrenome.
Essa é a única pessoa que eu lembro de Jaú. Ainda tenho colega que encontro sempre lá,
também. Mas acontece que aqui teve aquela convivência mais de amigo mesmo, de amiga.
163
Sempre junto. Onde uma ia a outra ia junto, sabe? Era aquela turminha ligada mesmo. Uma
maravilha. Das pessoas que estudaram comigo, aqui em Pederneiras, quase todos continuaram
estudando. Tem um que, se não me engano, mora em Jaú. Me falaram outro dia, é Paulo
Kiatake. Não sei se ele é professor ou se trabalha na Delegacia. Outro dia que eu fiquei
sabendo. Ele era nosso amigo, da turma que fundou o Ginásio. Então ficou unida. Sempre a
gente se reunia, todos os anos. Depois foram falecendo. E todo pessoal que fundou o ginásio
continuou estudando. Quase todos se formaram. Teve uns que foram embora. Teve uma
amiga minha que faleceu o ano passado – viveu quinze anos nos Estados Unidos e continuava
minha amiga. Só que foi uma época, assim, de amor entre as pessoas, sabe?! Uma coisa que
hoje não tem mais. Hoje não tem mais. É mais interesse. Hoje não, é diferente, bem diferente.
E uma outra coisa, não sei se pode falar? É uma coisa que eu ando preocupadíssima. É o
computador. Eu acho que o computador estragou a nossa juventude. Seria um avanço se fosse
empregado em certas coisas importantes: bancos, lojas, só. Agora meus netos vivem em
Internet, conversando com os outros, jogando, fazendo joguinhos... Essas coisas. Eu acho que
isso está fazendo as pessoas não comprarem mais livros, lerem, não vão em teatro, não têm
tempo de ir ao teatro. Cinema não, porque tem na televisão. Eu sou contra. Tanto que eu
tenho uma neta que está morando no Japão e eu sinto vontade de vê-la, é claro. E se eu
comprasse um computador eu a veria, mas não compro. Na minha casa, eu não quero. Uma
das minhas noras, por exemplo, é dona da Microcamp. Então, ela é de computador de manhã
até de noite. Vive em função do computador. Quer dizer, é a vida dela, é a dedicação dela,
mas eu não sei, viu?!. Tanto que ela fala: “Vai fazer um curso”. Porque a criança hoje não
brinca mais. Eles não querem mais um brinquedo, não jogam mais bola na rua, não brincam
mais com turminha na rua. Antigamente, as crianças brincavam, corriam, tinham aquela
afinidade grande, hoje não. Só no computador.
Na época em que eu estudava, não me lembro de nenhum material que os professores
usavam. Essas coisas eu nunca me interessei muito. Nunca. Nessa época, o pessoal que queria
continuar estudando tinha muita dificuldade, muita. Para entrar, tinha que ter sorte e para
continuar era pior ainda. Independente do que estudava, era difícil. Mas, tinha contabilidade...
Em todos os lugares tinha escola, então era fácil não é? Agora, o meu marido mesmo, o pai
mandou para São Paulo para fazer Direito, fazer curso, porque aqui não tinha Direito. Ficaram
ele e mais dois e um que se formou. Meu marido e o outro vieram para trás. Não
quiseram se formar. Quem queria continuar os estudos tinha que sair daqui. Tinha algumas
pessoas que iam para outros lugares. Teve um cunhado meu que foi para o Paraná.
164
Quando saí do Normal eu era professora primária fiquei como substituta no
Eliazar Braga. Primeiro lugar que eu fui, como substituta, foi o Eliazar Braga. Fiquei lá. Ai,
quando foi, deixa eu ver... Eu sou dura para data, viu bem?! Eu guardo muita coisa, mas data
me foge. Eu sai daí, fiquei como substituta, ai eu entrei em concurso e peguei uma escola
perto de Duartina. Mais ou menos na região de Duartina. Só que tinha cobras em quantidade e
um tio meu que sempre foi muito amigo do Adhemar de Barros porque o Ademar era
afilhado do meu avô, de batismo – então sempre foi amigo –, conversando com ele, o Ademar
– fazia dois meses que eu estava na escola – me transferiu para Jacareí.
Fui para Jacareí e fiquei comissionada, porque eu entrei em concurso. Mas não fiquei
em escola. Eu fui em escola, mas não nossa, de Educação Infantil. Fui em escola em Jaú
tem Escola Técnica de Agricultura, eu acho. Tem um nome, eu não me lembro. Fiquei seis
anos lá, em Jacareí. Nessa altura, eu tinha brigado com meu marido, mas ainda não era
casada. Nós só estávamos namorando. Só namorando. Quando fui para Jacareí fiquei morando
seis meses lá. Morava na escola mesmo. Tinha uma casa maravilhosa e meu tio era o diretor.
Ele era de Piracicaba, mas estava como diretor da escola de lá.
Eu não dava aula em Jacareí, eu trabalhava na secretaria. Eu fazia o que meu tio
mandava, coisas mais importantes, de dentro, que não podia estar falando para os outros, não
é?! Tinha coisa mais sigilosa. Era um cargo de confiança. Eu fazia o cardápio do aluno, por
exemplo. Cada aluno tinha a sua ficha: o que ele comia de manhã, o que ele comia no almoço,
o que ele comia no jantar, a noite, antes de dormir, o chá. Era um colégio fechado, os meninos
eram internos. Só homens. Eu trabalhava, então, com essa parte burocrática.
E quando eu vim para cá – o Ademar queria me transferir para Jaú; porque já tinha em
Jaú também, mas eu não quis. Eu falava para ele que não queria voltar para Pederneiras,
porque eu amava lá. Era muito gostoso. Mas ai eu fiquei mais uns meses e ele me trouxe
para cá. Fiquei comissionada no Anchieta que tinha sido passado para o governo. (O
colégio que eu estava, em Jacareí, eu acho que não era pago, era do Estado). Mas eu não vim
por concurso, não precisava, foi só transferência.
Aqui no Anchieta fiquei ajudando na secretaria também. Ai, foi assim: o Ginásio foi
transferido lá para cima, para construção de outro. Então, eu fui para o Eliazar Braga e peguei
umas aulas eram minhas aulas. E como nós éramos as últimas dez do Eliazar Braga as
últimas dez que tinham entrado criaram o segundo Grupo. As dez últimas que sobraram
foram obrigadas a se transferir para o colégio que foi criado, o segundo Grupo, que hoje é
aqui em cima. Minha prima de Jaú é a diretora, a Maria, conhece? Ela está como vice-
diretora, agora. Maria Edwirges é o nome dela. É o segundo Grupo. Então, nesse segundo
165
Grupo, eu fiquei anos também. Mas depois eu fui transferida para o Anchieta que estava
em cima e entrei como bibliotecária de lá. Tenho a impressão de que não era para eu
voltar para o Anchieta, mas eu tinha problemas de garganta e, por isso, é que me transferiram
para lá. Eu vivia muito de licença. Então, eles me deram comissionamento para trabalhar na
secretária. Até me aposentar eu fiquei em cima, no Anchieta. E isso faz uns quinze anos
ou mais.
Eu casei em 52. tinha vindo para parece que foi em 50 que eu vim para cá.
Voltei para , trabalhei no Eliazar Braga e depois me casei. Meu marido não queria que eu
trabalhasse. Queria que eu me desligasse, mas eu nunca deixei. Na época, ele tinha fazenda,
tinha comércio, e não precisava que eu trabalhasse. Mas eu continuei trabalhando porque eu
acho que isso é importante. É uma coisa que a mulher nunca deve largar, nunca. Porque eu
acho que a mulher tem que ter uma independência para dar certo. Porque, geralmente, casava
e largava mesmo [o magistério]. O casamento não me atrapalhou, em nada, a continuar
trabalhando. Eu tive três filhos. homens. Um, infelizmente, faleceu, o do meio. O Paulo
Roberto mora comigo, morava na fazenda, mas está separado, está morando comigo. E o
outro, Flávio, é da Maury, engenheiro da Maury, está formando a fábrica na Argentina. Tenho
sete netos e quatro bisnetos.
Nessa época, não tínhamos nenhum conhecimento sobre mudanças de leis. Isso não
chegava para gente. Não tinha nenhum documento, nada.
As leis que vinham de cima e pegavam porque era escola, mas eu tenho a impressão
de que naquele tempo, eles não mexiam muito com isso. Eu acho. Você vê que hoje o
professor ganha uma miséria. Naquele tempo, ele ganhava mais. Eu acho que tinha mais
estímulo para trabalhar, também. Mais vontade para trabalhar. Eu acho que isso é importante.
Não sei se o ensino era melhor, naquela época, eu acho que era diferente, não sei... Eu, por
exemplo, você sabe que eu fui muito contra o diretor, porque eu tinha que fechar a porta da
minha sala para ele não ver o que eu fazia, porque as minhas aulas eram aulas que hoje dão,
com música. Eu levava uma vitrolinha e eu ensinava tudo com música. E ele não queria.
Nossa! Você sabe que aquilo era ótimo para mim, porque eu me sentia bem, e a criança
adorava. Por exemplo, matemática eu levava bala e dava bala para fazer conta. Quer dizer, era
uma coisa motivada com o interesse para criança, hoje não. Hoje você não vê isso.
Outra coisa que eu acho, antigamente, eram cursos melhores. Tinha o francês, tinha o
inglês, coisa que hoje não tem mais. A química tinha um laboratório, você precisava ver.
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Porque o Dom Luís pegou fogo. Incendiou, perdeu tudo. Você precisava ver que laboratório.
Eu acho que o conhecimento era bem maior, bem maior. Quer dizer, o Estado tinha estrutura,
pelo menos no começo tinha. A química por exemplo, foi acabando assim, desapareceu de
uma vez.
Eu acho que naquele tempo não tinha muita preocupação em se aprimorar. Nesse
ponto, o professor que é bom é bom, viu bem! Tem isso. Têm outros que não. Acho que isso
não influenciava muito. Esse menino mesmo que vo fala que é seu amigo (Vicente) ele foi
um excelente aluno. Ele tem que ser um excelente professor. Então, isso que eu falo para
você, depende muito também. Depende muito da pessoa. Mas que hoje é mais facilitado, por
causa do bendito computador, eu acho. Eu acho que isso atrapalha um pouco. Eu acho. Porque
eles preferem fazer um trabalho com o computador do que pegar um livro, do que fazer um
resumo melhor. Eu não sei viu bem... Eu não comento isso nem com as minhas amigas,
porque vão achar que eu sou atrasada. Mas eu acho que o governo brasileiro não sabe usar,
porque o americano sempre soube usar. A minha amiga que morava lá, (Estados Unidos)
faleceu. Tenho uma prima que mora lá. Mas agora eu não vou viajar para lá, vou para
Argentina. O negócio é o seguinte: eu acho que o brasileiro – como eu vou falar para você?
o brasileiro ele é mais folgado. Ele leva mais para facilidade. Eu acho que é isso que estraga.
Tem o recurso, mas não sabe usar. No meu tempo, nos éramos obrigados a ir à biblioteca. A
biblioteca mesmo, que eu fiquei anos, era um espetáculo. Tinham livros ótimos e eles fazem
uns trabalhos maravilhosos. Tanto que foi uma judiação, porque eu colecionava aqueles
trabalhos, coloca em pastas, ficava um espetáculo! O aluno era obrigado a ler um livro, a
escrever, fazer algum trabalho. Hoje não, hoje eles nem mandam mais alunos para lá.
Naquele tempo, tinha muito baile, muita festa caipira, e elas eram excelentes. Eu tive
sorte. Porque eu casei com um homem que gostava também, porque eu falo para ele: “Você
foi embora, me deixou aqui, mas eu sinto falta dele nos bailes”. Porque Baile Caipira, nossa,
era um negócio! Baile Caipira... Ah, roupa... Eu tenho um álbum, mas eu tenho outro que
você pode ter uma idéia. Espere aí. Olha só. Aqui em Pederneiras era Baile Caipira. E íamos
todos com roupa. E tinha prêmio para a melhor roupa. Eu ganhei, tenho a fotografia, mas não
achei. Esse que está na foto, Alvarenga, vivia me dando presente. Tanto que o Ranchinho era
triste, tinha uma vozinha esquisita... Ele falou assim: “E eu sou apaixonado por uma menina
de verde, que tem uma fivela deste tamanho, amarela, que eu não sei como é que ela pode
sentar!”. Fivela na bunda, não é?! E eu morri de vergonha, morri. E meu marido lá, mas ele
era um espetáculo. Ai eu fui receber o prêmio, mas ele não. Ele não ganhou, quem ganhou foi
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outro. Quer dizer, eu fui a caipira e o outro foi o caipira. Mas você precisava ver, meu marido
pintava o dente de preto, punha palha de milho aqui... O Baile Hawaiano nosso, era um
espetáculo, você nem queira saber. O primeiro Baile Hawaino nosso aqui foi feito aqui em
baixo, num campo abandonado de Bola ao Cesto. Naquele tempo, ainda era o campo de Bola
ao Cesto. Você precisa ver. Nosso prefeito foi nas fazendas e cortou os coqueiros, aqueles
coqueiros enormes e prendeu tudo com arame, você nem queira saber! E eu era a decoradora,
porque eu era quem decorava sempre os Bailes. Ah, eu fiz aquela mesa de madeira, porque
naquele tempo era mesa de madeira, e pus as folhas de bananeira como toalha e a melancia
cheia de frutas, pus em cima da mesa, outras com abacaxi... Nossos Bailes sempre foram
lindos... e hoje, bem... Hoje não tem essas coisas. Mais o que mais me assusta são essas
meninas de hoje, que não tem mais, assim... Como se diz, resguardo, eu acho. Esmuito
liberal. Naquele tempo, casava cedo, mas era diferente. Porque antigamente, era o menino que
levava a menina para o mato, como a gente falava, hoje é a menina. Se você tem um filho
homem, você tem que instruir seu filho, senão ele cai, porque elas pegam mesmo. E outra,
elas pegam dessa maneira errada e não vão continuar, porque não vai continuar. Então, isso
me assusta.
E outra coisa que me assusta muito, porque e isso a gente não pode falar, se falar é
atrasada, mas não é. Não é. Eu estou vendo que está mudando. Está mudando muito. A
televisão, por exemplo, antes para você ver uma cena de sexo era difícil, hoje, novela das seis
tem. Eu acho que isso daí também está estragando o nosso país. Tem ainda umas meninas
inteligentes, porque eu falo para você, é a burrinha que faz isso. Então, têm algumas que...!
Mas quem mais você está entrevistando?
168
169
M
ARIA
A
PARECIDA
C
ESARINO
54
Eu sou Maria Aparecida Cesarino. Sou uma brasileira que não nasceu à luz do
Cruzeiro. Nasci na longínqua Itália de onde é minha nacionalidade.
Italiana de nascença, muito pequena ainda, acompanhada de meus pais, eu vim para o
Brasil. Tinha a idade de seis para sete anos. Quando aqui cheguei, eu já era alfabetizada, eu
tinha freqüentado a escola. Tenho lembrança ainda, até hoje, da minha primeira professora na
Itália, de sorte que quando para cá vim, eu vim sabendo ler e escrever. Mas tudo para mim era
muito estranho, porquanto embora a minha mãe fosse brasileira e jauense, meu pai era
italiano.
Meu pai veio para o Brasil, da Itália, solteiro, e se estabeleceu aqui em Jaú. Veio como
todo imigrante. Vindo de um país diferente de sua origem, mas trazia consigo, na época,
além da bagagem cultural, um capital. De sorte, que ele era imigrante, por conta da expressão,
porque ele imigrou para o Brasil, mas ele trazia consigo uma bagagem, além de cultural,
um capital em dinheiro. Se estabeleceu aqui no Brasil, na cidade de Jaú, onde havia outros
parentes dele. Seu nome era Vitor Cesarino, meu pai.
Ele era comerciante aqui em Jaú, na antiga Casa Manhani, naquele sobrado. Embaixo
ele tinha comércio, desde um alfinete até um arreio de cavalo e, na parte de cima, ele tinha um
restaurante para os fazendeiros que vinham fazer compras. Faziam compra lá na loja dele, na
Casa Cesarino e depois, meu pai oferecia almoço para eles. Porque naquele tempo a
dificuldade para ir na fazenda era grande e eles vinham fazer compra para os colonos, para os
empregados da fazenda. Chamava Casa Cesarino. Naquele tempo, ele era solteiro. Ele era um
grande comerciante. Isso já no início do século passado. Por isso eu tenho irmãos nascidos em
1903, 1904 e eu sou de 1919.
Quando ele veio da Itália, não veio direto para Jaú. Não, direto não. Esteve um tempo
em Americana. E não veio com os pais, não, não. Naquele tempo, era muito costume vir da
Itália para o Brasil, que era terra nova, terra promissora. Então, ele veio com alguns irmãos.
Alguns dos irmãos foram para Araraquara e ele ficou aqui em Jaú. De Americana, uns foram
para Araraquara e ele veio para Jaú. Chegando aqui no Brasil, os irmãos se distanciaram.
Alguns irmãos dele foram até para Argentina, porque eles vinham mesmo para ganhar
dinheiro. Terra nova, não é?!. Agora meu pai, trazia capital. Então, ele se estabeleceu aqui
por volta de 1890, 80, 90, porque ele ficou bastante tempo aqui em Jaú, solteiro. Depois que
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Entrevista realizada na residência da depoente, na cidade de Jaú, no primeiro semestre de 2005. Teve uma
duração aproximada de 3 horas.
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ele conheceu a minha mãe. No túmulo tem o ano em que ele nasceu. Entrando no cemitério,
na mão esquerda, tem Família Cesarino. tem a data de nascimento dele. A Raquel, minha
sobrinha, conhece a Raquel? Ela conhece tudo, ela sabe. Ela está escrevendo um livro sobre o
Amaral Carvalho. Ela tem dados. Meu pai veio aqui para Jaú, por volta de tal ano. Mas
depois que ele casou com a minha mãe, com a Maria Augusta, é que ele entrou na família
Carvalho. Minha mãe é Maria Augusta Amaral Carvalho.
Minha mãe tinha quinze anos quando se casou e meu pai tinha vinte e cinco. Em uma
ocasião, a mamãe contava, meu pai foi à casa do meu avô, porque ela era noiva dele, e meu
avô falou assim: “Ela não está. Ela foi ao batizado da boneca de uma amiga dela”. Veja a
diferença de idade, mas se casaram. Meu pai tinha 25 e ela tinha 15 anos. E viveram bem.
Pelo menos, no meu conceito, porque eu nunca vi meu pai discutir na minha frente, com a
minha mãe. Se eles viviam bem ou não... No meu conceito, eles viviam bem. Não é como
hoje que, às vezes, o esposo, na frente tem um discurso e por trás tem outro, não.
Casaram e permaneceram aqui. Permaneceram um tempo aqui, ai nasceu minha irmã
mais velha, a Olga. Brasileira. Nasceu aqui. Aí eles ficaram mais uns anos e nasceu meu outro
irmão, Aurélio. Depois ele voltou para Itália. Ele tinha dois filhos brasileiros e ele voltou
para Itália, porque ele tinha propriedade aqui nós chamamos de fazenda mas na Itália se
falava campaine. Ele tinha propriedades agrícolas. Tinha plantação de olivas. Azeitonas,
não é? Ele foi até lá para ver as propriedades dele.
Nesse ínterim, nasceu um irmão meu depois de ter dois filhos brasileiros ele teve
o terceiro lá. Nasceu o Sílvio. Depois, eles ficaram uns anos e nesse ínterim morreu a mãe
da minha mãe, aqui em Jaú. Aliás, ela faleceu no Rio de Janeiro. Veio para o Brasil, tinha
falecido a mãe da minha mãe. Apesar das dificuldades de viagem e tudo, isso em 1910.
Aproveitou e veio visitar o pai, os irmãos e meu pai trouxe a minha mãe, quer dizer, a mulher
dele para conhecer seu pai e irmãos.
E nesse tempo nasceu uma irmã, brasileira, que era a Ilda. ele ficou uns anos aqui.
Nessa época ele trabalhou no Banco Comércio e Indústria. Ele não tinha mais propriedade,
não tinha mais comércio. Chegou e foi para o Banco Comércio e Indústria a convite de um
amigo dele de São Paulo. Ficou alguns anos por aqui e voltou para a Itália. Isso já era a guerra
de 1914. A primeira Guerra. E lá nasceu um irmão e, devido à guerra, ele não pode vir para o
Brasil. Nasceu um irmão meu, nasceu uma irmã – o Abílio é o quinto, a Pia, a sexta e a Ema,
a sétima. Sete, eu ainda não era nascida. Não tinha nascido. Eu nasci depois que acabou a
primeira grande guerra. Está até naquela fotografia ali, os quatro – a Ilda, o Aurélio, o Sílvio e
a Ema. A Ema é aquela pequenininha, que está na cadeirinha. Eu ainda estava na barriga da
171
minha mãe. E eu nasci em 1919. Depois que acabou a guerra. Em dezoito acabou a guerra.
Aí nós permanecemos na Itália.
Em 1927, nós viemos para o Brasil. Eu vim com 7 anos. Chegando aqui, meu pai
ainda deixou uma propriedade na Itália, e aqui ele abriu uma casa de comércio para os
meus três irmãos, para o Aurélio, o Sílvio e o Abílio. Ele era, nessa época, importador
atacadista. Importava da Itália queijos, comidas, azeitonas, vinhos. Foi um grande
comerciante na época, que tem até a fotografia que eu te mostrei da Casa Cesarino. E aí, ele
permaneceu aqui no Brasil e meus irmãos cuidavam do comércio. Meu pai só ia ao escritório,
mas não trabalhava. Só administrava, orientava meus irmãos e tudo mais.
Ele era nos dias de hoje ele seria considerado muito enérgico muito bravo.Mas na
época era comum. Todos os pais exigiam os filhos bem educados, respeitosos. Inclusive
ninguém falava para o pai “você”, nem para a mãe. Era senhor ou senhora. Algumas pessoas
usavam, mas meu pai, não que ele proibisse, mas nós achávamos “que pai era AQUELE!”
Inclusive uma sobrinha minha que ainda hoje existe um dia ela chegou e falou: “Ana
Maria falou ‘você’ para vovó!!!” Indignada, achando que não podia. Mas tinha algumas
crianças que falavam. Mas ela não. Para ela falar ‘você’ para vovó era falta de respeito. Por ai
você vê. Não tinha que impor respeito, mas era considerado falta de respeito dizer isso. Na
escola era professora. Não tinha titia, não tinha nada. Professora era professora.
Quando para vim, tinha sete irmãos, entre homens e mulheres. E uma de minhas
irmãs, casada, ficou na Itália. Era casada com um médico, doutor Raymond Pascole. Era o
meu cunhado. E eu quando para vim, deixei parte do meu coração na minha cidade natal,
na cidade de Capri, no sul da Itália. Mas aqui chegando, com seis para sete anos naquela
época seis para sete anos, não é a criança de hoje, era aquela criança obediente, que não
retrucava, o papai falou, não se discute, mamãe deu ordem, se cumpre. Éramos muito
submissos ao pai e a mãe. E eu vim para o Brasil, vim para Jaú. Na época, meu pai, como nós
éramos sete irmãos, eu era uma das mais novas, meu pai trazia da Itália uma governanta
italiana que ficou conosco, no Brasil, três ou quatro anos, depois meu pai pagou a passagem e
ela voltou para Itália.
Minha mãe teve 8 filhos. As famílias eram muito numerosas. Tanto que hoje a gente
diz que a longevidade é maior que no passado. De primeiro, nasciam muitos e muitos
perdiam. Tanto que minha avó, Ana Marcelina de Carvalho que tem o nome no Hospital
Amaral Carvalho –, deu dinheiro para que em Jaú fosse construída uma maternidade. Em
1936 abriu a primeira maternidade de Jaú, porque morriam muitas crianças. Ela achava que as
crianças morriam, as mães morriam... e ai ela deu dinheiro para construção da maternidade de
172
Jaú, que é hoje o Hospital Amaral Carvalho. Depois esse hospital, por determinação de um
diretor, se transformou em hospital oncológico.
Naquela época, Jaú era muito diferente das outras cidades a região. Era bem diferente.
A política aqui em J era terrível. Havia duas correntes, os Carvalhistas, do PRP e os
Udenistas. Os Carvalhistas, PRP, Partido Republicano Paulista. Ocorria até morte e havia
rivalidade terrível. Isso para qualquer cargo: prefeito, vereador ou presidente que fosse. Eles
eram instruídos pelos patrões a votar, como eles falam, o voto era de “cabresto”. Então
falavam: “você vai votar pra fulano”. E se não votasse, eles eram capazes até de matar. Isso lá
para 30, 32, na época do Amaral Carvalho que hoje o nome para o hospital. Ele foi, aqui
em Jaú, Senador. Porque naquela época eles não ganhavam nada, não é como hoje que tem
salário. Era por um ideal. Eu tinha um outro tio meu, que era casado com minha tia, uma irmã
de minha mãe, Hilário Craib, ele era deputado. Tinha os carvalhistas e os Almeida Prado.
Havia uma rivalidade muito grande aqui em Jaú. A rivalidade era tanta, tinha o PRP e UDN.
A rivalidade era tanto, que Carvalho sentava de um lado da Igreja e Almeida Prado do outro.
Carvalho não casava com Almeida Prado, de jeito nenhum. Um primo meu, Oswaldo, era
filho do Carvalho e ele namorava uma udenista. Pois meu tio mandou para os Estados Unidos
para separar da moça. E ele foi. Não podia casar a religião nessa época era o catolicismo.
Carvalho não olhava para Almeida Prado. Hoje, felizmente, não existe nada disso. E os filhos
não resistiam. Esse meu primo foi para os Estados Unidos, porque o pai mandou. Hoje não
existe. Felizmente não rivalidade, não nada. Eu tenho uma cunhada que é Almeida
Prado e meu irmão, Cesarino, lado dos Carvalho. É assim a nossa história. Quem não tem
uma história, inventa uma história. Essa é nossa história.
Chegando aqui no Brasil, a Pia, a Ema e eu fomos para o colégio interno. O colégio
das irmãs de São José. E eu estudei, fiz o primário. Minha mãe queria por a Pia e a Ema,
porque eu era a menor, eu era a caçula. Mas quando as minhas irmãs foram para o colégio, eu
chorei que queria ir também. eu fui para o colégio. foi feito o enxoval às pressas, tudo.
E meu pai disse: "você vai, mas depois não vai dizer que não quer ficar". Eu não queria ficar,
porque para mim foi terrível a separação, mas também por outro lado eu não queria me
separar das outras duas irmãs, então eu fiquei interna no colégio.
Eu fiquei seis anos no Externato São José, interna, e depois, no ano seguinte, fui para o
Internato. Fiz o Primário com as irmãs de São José, depois fiz a Escola Complementar
naquele tempo não era ginásio, nós chamávamos de Escola Complementar. Fiz o Primário no
Externato, chamavam de Escola Primária, e depois eu fui para o Internato, na Escola
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Complementar. Na Escola Primária, eu aprendi o idioma português, porque eu não falava
português. Minha mãe era brasileira, mas ela morou muito tempo na Itália, ela falava um
português misturado. Meu pai era italiano tinha cultura condizente com a época e ele ficou
aqui, se estabeleceu como comerciante, embora quando solteiro, ele tivesse ocupado vários
cargos, como gerente de banco, ele foi um dos funcionários do Banco Comércio e Industria
aqui em Jaú, e outros tantos.
A minha primeira escola foi onde hoje ainda existe o prédio na rua Quintino Bocaiúva,
era o antigo Externato São José, que era das irmãs de São José que há pouco tinham vindo da
França, em 1901. Tanto que agora, em 2000, 2001, comemoramos. Inclusive, eu participei do
centenário das irmãs de São Joem Jaú. Eu estudei lá. Depois, eu fui para o Internato do
Colégio São José que é hoje onde tem a Fundação Raul Baub. Aquele prédio, aquilo tudo era
das irmãs de São José. eu permaneci até chegar a me formar professora. Comecei ali em
1927.
Antes de ir para Escola Normal, o pessoal fazia, naquele tempo, a chamada Escola
Complementar. Que também era paga. tinha o colégio das irmãs, e o colégio dos padres.
Quem quisesse estudar, e não tinha condições, não tinha vez. Ou ia para o curso de aplicação
das freiras, ou então em alguma escola particular. A maioria que tinha recurso ia estudar em
São Paulo. Conheci muitos que foram para São Paulo. Quem tinha mais recursos ia para e
ficavam internas no colégio Sion. Ficavam internas no Colégio Dezoason, também. Outras
moravam em pensionato. Mas quem tinha mais recurso, estudava em São Paulo.
Na escola, nós usávamos uniformes. Aqui na Escola Normal nós usávamos como
uniforme, saia pregueada marrom, blusa branca de manga comprida e um laço marrom. A
meia era preta, botinha abotoada. Os meninos usavam calça azul marinho também, listradinha
de branco e blusa também branca. Depois isso desapareceu. Depois não usava mais uniforme,
nem os meninos. E depois os meninos também passaram a não mais freqüentar o Externato.
naquele tempo cursavam o Ateneu Jauense, que era dos antigos Padres Premonstratenses.
Vários senhores aqui, hoje da sociedade, freqüentaram o Colégio dos Padres
Premonstratenses. Agora, o Colégio das Irmãs de São José, infelizmente, desapareceu quando
foi criado, aqui em Jaú, o Ginásio do Estado. As freiras não suportaram o êxodo, porque todas
as alunas foram para o Ginásio do Estado e elas tiveram um período de crise. Fecharam o
Colégio. E foi uma pena fechar. O Ginásio do Estado veio por meio de um deputado que nós
tínhamos aqui, ele se chamava Luis Liarti. E, como deputado, conseguiu trazer para Jo
Ginásio do Estado, que até então não havia. existia o Colégio das Freiras e o Colégio dos
Padres e algumas escolas particulares.
174
Esse Ginásio funciona até hoje. E funcionava, na época, desde o primeiro ano até a
Escola Normal. É o Lourenço de Camargo, Instituto de Educação Lourenço de Camargo, que
até hoje tem, mas ninguém fala o nome, só Ginásio do Estado, Ginásio do Estado. E o
Colégio das Irmãs desapareceu. Desapareceu porque elas não agüentaram a crise. Porque todo
mundo foi para o Ginásio do Estado. Era mais barato, não é?! E nós ficamos sem o Colégio
das Irmãs.
Eu tinha 7 anos quando eu fui para o Externato, interna. E eu fui porque as minhas
irmãs foram, eu chorei que queria ir, queria ir, “então vai”. Mas eu chorava, eu chorava de
noite, que eu queria ir para casa. A mamãe dizia “mas não está bom o colégio?". Eu dizia
“Tá bom mamãe, mas eu queria ir para casa”. Não achava ruim o colégio, eu achava ruim
ficar fora da minha casa. A mentalidade era totalmente outra. A gente tinha pelos pais quase
que uma veneração. Hoje, eu tenho pena dos jovens de hoje. Porque hoje eles fazem, por
força da época, eles respondem para o pai, respondem para a mãe, sacodem os ombros, e o pai
nem liga. Mas no meu tempo não, a educação era rigorosa. Era muito... Às vezes a gente nem
podia manifestar a raiva do pai e da mãe. Porque eles eram muito... Menina saía de noite, ia
dar volta no jardim, como fazem até hoje, mas tal hora tinha que estar em casa. Tinha
quermesse na praça, do jardim, e a gente ia com dinheiro contado para gastar. A gente ia...
“papai, hoje eu vou na quermesse”. “Você tem dinheiro?” “Não, não tenho”. Então ele dava
cinco mil réis. Hoje o que seria? Ele dava, “olha aí e traz o troco”. Mas eu não acho ruim. Na
época você acha ruim, mas hoje você acha bom, porque você recebeu uma boa educação.
Todas as famílias bem constituídas, bem formadas, tinham que ter os filhos internos,
era status. Mesmo tendo casa perto tinha que ficar lá, porque era importante as pessoas verem
que a gente estudou interno no Colégio das Freiras, como a gente falava na época. Eu fiz o
primário, naquele tempo não era ginásio, chamava escola complementar, fiz o curso normal,
me formei com as irmãs de São José em 1937. Não fui uma aluna brilhante, mas eu era uma
aluna dedicada.
Meus pais iam me ver na escola. Minha mãe e minha irmã Ilda iam toda quinta no
colégio. A Ilda já era moça não ia interna. Quinta-feira era dia de visita no colégio. O resto do
tempo não saia, ficava interno. Na verdade, tinha visita de quinta e domingo, minha mãe
visitava de quinta-feira. Meu pai não visitava a gente no colégio porque ele não tinha
coragem. Ele mesmo que pôs e depois ele mesmo não tinha coragem de visitar a gente. Meus
irmãos iam visitar a gente. Podia visitar de quinta e domingo. Ah, nessas visitas a gente
conversava. Eu conversava com a minha mãe, ela contava o que se passava em casa e a gente
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contava o que se passava no colégio. Geralmente, nós recebíamos a visita da família em uma
sala chamada lopotório. Lopotório. Era o lugar de visita. Lopotório, não sei de onde vem esse
nome, mas era a sala de visita do colégio. Depois a gente saía do lopotório, a família ia
embora para casa e nós voltávamos para o internato.
No internato, nós levantávamos às seis horas da manhã. Levantava cedo, a gente
mesmo arrumava a cama. Mas não fazia outro serviço, não. Às vezes, era uma defesa natural,
a irmã vinha, batia palma que era para todas levantarem, então eu ou outra, que estava com
muito sono, falava "ai o, eu estou com dor de cabeça". E ficava dormindo mais um pouco.
Fazíamos isso quase todo dia e ela percebia e às vezes dizia "Nossa senhora! Levanta". Ela
percebia quando era defesa, só porque a gente estava com sono. Aí nós íamos para capela, que
era uma só no colégio.
Na capela fazíamos a oração da manhã, rezávamos o terço, inteiro. Isso acontecia todo
dia. Mas a gente era muito danada, levantava cedo e morria de sono. Então, nós usávamos um
subterfúgio. A gente fingia que estava atordoada, desmaiava, ia para enfermaria e ficava
dormindo, porque morria de sono na igreja.
Quando acabava a missa, íamos para o refeitório tomar café. Em jejum íamos assistir a
missa e rezar terço. Todo dia, todo dia. De segunda a segunda. Depois acabava a missa, nós
íamos para o refeitório. tomava cada manhã... pão, leite, café, manteiga, porque naquele
tempo não tinha margarina, era manteiga mesmo. Depois, terminava o refeitório e a íamos,
em fila, junto com a mestra da classe, para o estudo.
A mestra da classe era uma freira. No meu tempo era a Irmã Auxiliadora. Lembro-me
disso, ela é viva até hoje. Até pouco tempo era. nós íamos para sala de aula e ficávamos
estudando. Primeira numa sala, segunda outra, terceira, e eu era da classe das menores. Eu ia
na classe número um e as minhas outras duas irmãs iam para outra sala porque elas eram
maiores.
Estudávamos até a hora do almoço. Tinha um intervalozinho que a gente podia
conversar. Depois voltava e ia estudar até dez e meia, quando nós íamos almoçar. Almoçava
cedo, também levantava seis horas. Almoçava cedo. Tocava o sininho e a gente então parava
de estudar, ficava em fila e ia para o refeitório para almoçar. O prato já vinha pronto. Ás vezes
vinha arroz, feijão, mandioca, carne, ás vezes virado de feijão, às vezes batata, era variado o
almoço. E a gente tinha que comer tudo. Se não comesse ficava de castigo até acabar de
comer. Eu ficava sempre porque eu não suportava a comida lá. Não gostava, eu estava
aborrecida, eu estava triste lá, no internato. E quando a gente não comia tudo, a gente tinha
que pedir dispensa. Ficava uma irmã, uma freira, numa cadeira alta e ela via todos os pratos.
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Quando a gente não queria comer a gente ia e falava "dispensa", às vezes ela, "não". A
gente tinha que voltar e comer. A gente comia um pouco e falava "dispensa", às vezes não. Às
vezes, elas deixavam. Quando pedia dispensa não tinha castigo, não tinha nada. O almoço
começava às dez e meia e terminava as onze e meia, uma hora. Se não comesse nessa uma
hora acontecia o seguinte, como ela sabia, as meninas que não comiam, que sempre pediam
dispensa, ela não dava. Agora, aquelas que comiam e que um dia ou outro pedia dispensa
ela dava.
Depois do almoço nós tínhamos um recreio. Nós íamos para um pátio interno, ia fazer
o recreio. Ficávamos conversando. De quinta-feira não se podia falar em português no recreio,
tinha que falar em francês. Eu aprendi muito bem o francês. Aprendi com muita facilidade
porque o francês é língua latina, como o italiano, então eu encontrava muita semelhança, eu
conversava um pouco, tanto que até hoje eu falo francês. Graças a esse período do recreio. Na
classe, às vezes a gente ficava inibida, mas queria falar uma coisa e não podia falar, tinha que
falar em frans. Às vezes, você era obrigado a comer porque não sabia falar em francês para
pedir dispensa, então a gente comia. Era uma forma delas obrigarem a gente a comer porque a
gente estava numa fase de crescimento, precisava se alimentar bem, e se não comesse bem, se
por exemplo, deixava a comida no prato e não ia pedir dispensa, ganhava o que eles
chamavam de “mau ponto”. E esse mau ponto era depois dito em público uma vez por mês. A
freira falava assim: "Maria Aparecida Cesarino”, e a gente ficava de pé, “esse mês você levou
dois maus pontos porque não comeu e vamos ver se no próximo mês você não leva nenhum
desses maus pontos". Eu então fazia assim com os ombros e falava: "que me importa", eu
falava. "E você está levantando o ombro! Fazendo malcriação. Você está ganhando agora um
mau ponto de polidez. Porque é falta de educação fazer assim. Eu fazia, "você ganhou um
mau ponto de polidez". "Você ganhou um mau ponto de comportamento porque vo
conversou no dormitório e não pode conversar". "Você levou outro mau ponto de polidez". Aí
o que acontecia. eu sentava e ela dizia: "e você está ganhando um mau ponto de silêncio
porque agora não pode conversar e você está falando". Então no fim do mês tinha na sala de
visitas, no lupotório, um quadro grande com o nome de todas as alunas bem comportadas. E
quando a mãe da gente ia visitar, a mamãe dizia "onde é que está você, minha filha, você não
está no quadro. Por quê? Porque esse mês você conversou fora de hora, você conversou no
dormitório, você não sei o que". Então, isso para gente era um vexame, uma humilhação. Eu
dizia "ah, eu não quero ficar no quadro mesmo", eu falava. Eu era levada no colégio. Mas
apesar de eu ter sido uma aluna...não, eu era uma pessoa que o aceitava tudo, aquilo que
naquela época a gente chamava de santinha. Aquela que estava tudo bom. Eu não era assim,
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para mim nada estava bom. "Eu não quero ir para o quadro mesmo, perdi um, vou ganhar
um ponto de polidez".
Eu não chorava, não reclamava porque o colégio era ruim... Eu falava “eu tenho
saudade da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos". Eu estava com duas lá, mas tinha
quatro em casa. Então, a gente se sentia muito infeliz no colégio. A gente ia para o colégio
em fevereiro e saía para casa em junho. Tinha um período de férias, depois voltava. Dia
primeiro de julho voltava para o colégio, naquele mesmo regime, naquele mesmo horário,
tudo. E aí só saía no começo de dezembro. Era a maior parte do tempo no colégio do que com
a família. Mas a vida do colégio não era ruim. Até que era boa a vida no colégio.
Nós estudávamos português, matemática, ciências, tinha todas essas matérias
elementares. Todas as professores eram freiras e tínhamos uma mestra de classe. A gente
estudava e ela ficava sentada numa cadeira, num estrado, ela sempre ficava no alto para poder
ver todas. Havia dias que ela dizia "pode se comunicar umas com as outras", ou então, "não
pode falar na hora do estudo". Tinha que ficar quieto. Cada dia tinha um horário, com as
matérias que íamos estudar. Tinha um outro dia de prova. A cada quinze dias nós fazíamos
uma prova, que a gente chamava de sabatina. Fazia a sabatina e ganhava nota. Era sabatina de
todas as matérias, um dia era de ciências, outro dia era de matemática... Se a gente
conversasse na hora da sabatina levava um mau ponto, e era reprovada. Não podia conversar.
Nessa sabatina, que nós tínhamos, éramos aprovadas também. Eu, por exemplo, elas
diziam "Maria Cesarino você é muito levada. Ganhou um mau ponto de polidez". De novo!
Eu sem querer fazia, “que me importa”? Era meu costume, eu fazia “que me importa”. E era
falta de educação fazer isso. Mas eu sempre era uma aluna que estudava. Elas não me
reprovavam, porque não tinha mau ponto de estudo. Quem recebia mau ponto de estudo,
quando fazia a sabatina ganhava sempre nota baixa "vai ficar reprovada no fim do ano", e
ficava reprovada mesmo. Mas eu não era boba também. Eu era levada, eu conversava na fila,
eu ganhava mau ponto. E minha mãe ficava triste por eu ganhar mau ponto de polidez, porque
repercutia na família. “A mãe não deu educação para essa menina que vive sacudindo o
ombro?” Mas eu, apesar de tudo, eu fui uma aluna... Não fui uma aluna brilhante, não. Mas eu
fui escolhida antes de me formar professora em 1937, para lecionar no Externato São José.
Nós tínhamos que estudar na sala, na classe. Havia aquelas que nós chamávamos de
“santinha”. Aquelas que eram enjoadinhas, aquelas que as freiras falavam "fulana sim tem
bom comportamento, viu ela não levou nenhum mau ponto". E era a hora que eu, "Hiii, essa
daí, eu não quero mesmo!". E apesar de tudo, de eu ser um pouco rebelde, que eu estou
falando da minha pessoa. Logo que eu me formei, em 37, eu fui escolhida para dar aula no
178
Externato São José. Porque eu era assim. Falavam que eu era levada, eu era levada, mas eu
estudava. Era uma aluna dedicada. Era interna, mas ia lecionar no colégio.
A matéria que eu mais gostava era de português. Inglês eu não gostava. Gostava de
francês, de ciências, essas matérias. O resto era tudo tranqüilo, não tinha aversão pelo estudo.
Eu era péssima aluna de matemática. Tinha que aprender aqueles teoremas... Eu estudava
matemática para passar de ano, para não ficar dependendo daquela matéria. Eu estudava
um pouco para passar. As matérias que eu ia bem, eu gostava.
As coisas que aconteciam fora do colégio, na cidade... Na época do... Deixa eu
lembrar o nome certo... No tempo da Revolução de 32, eu estava interna ainda no colégio e a
gente não participava muito, mas quando a mãe vinha visitar, ela contava. Vinha mãe, vinha
irmão, a família, as amigas da minha mãe vinham, viviam na casa de uma, viviam na casa de
outra, vinham fazer capuz para os soldados, vinham fazer meias de lã, cachecol. Tanto que
essas pessoas, depois, foram até agraciadas ganhando um, uma...como dizia? Uma retribuição
pelo trabalho. Uma senhora minha amiga, e da Ida Cimisi, conheceu a Ida Cimisi? A mãe
dela faleceu uns dois anos, com 102 anos. Ela ganhava uma pensão, porque ajudou na
Revolução.
Mas no Colégio, não podia nem falar. No colégio, não se podia falar em política, não
se podia falar nada. A gente participava um pouco porque a mãe vinha e contava. Os irmãos,
os pais. As meninas falavam "ah, meu pai falou que meu irmão foi para Revolução". A gente
rezava. A outra dizia "meu irmão contou no lupotório que o filho não sei de quem, de um
amigo, foi para Revolução", "meu pai contou que morreram muitos pracinhas". Então, a gente
tinha informação, às vezes, pelos pais dos outros, mas nós não podíamos comentar nada. Não
podia ler jornal, não podia fazer, não podia falar de política nenhuma. o estudo. Não podia
tomar partido. Então elas não queriam, sabe por quê? Porque havia no colégio aquelas que
eram a favor e outras que eram contra. Então, para evitar briga, discussão "não se fala em
política". Para não criar clima, não é?! Para não criar clima desfavorável. E assim era nossa
vida lá.
Minha mãe contava que, à noite, à tarde, se reuniam às vezes na minha casa, às vezes
nas casas de outras senhoras, para rezar. Para rezar pela Revolução, pelos pracinhas, para que
nenhum fosse chamado. Nenhum irmão meu foi, uma porque eles não estavam na idade de ir
para Revolução, outra porque eles já tinham passado da idade. O Abílio faz tempo que morreu
há dois anos mas ele não tinha idade para ir e os outros já tinham passado da idade. Eram
chamados primeiro os mais jovens, não é? E a minha mãe contava também que quando
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rezavam ficavam fazendo tricô, cachecol, joelheira, luvas e tinha uma tia minha, irmã de
minha mãe, que era do partido contrário. Ela era UDN, ela era do ramo dos Almeida Prado,
casada com o meu tio que não era Carvalho, mas Almeida Prado. A minha tia pendia para o
lado do marido dela. E as outras irmãs da minha mãe eram dos Carvalhos, dos Carvalhistas. A
minha mãe contava que essa que era casada com o Almeida Prado, um dia estava rezando o
terço assim e ficou, olhando para essa outra minha tia, que era do partido contrário ela era
mãe do doutor Hilário Freire, pessoa política também, ele era deputado. E essa minha tia,
rezando o terço, olhando para outra tia. E essa minha tia era muito brava com política, tanto
que ela falou "o que é que você está olhando para mim?". E foi preciso minha mãe, que era a
irmã mais velha dizer "vamos acabar com essa discussão". Mas as duas faziam isso sempre,
porque uma era carvalhista e a outra era udenista. Então, na família elas participavam,
comentavam, mas não nas ruas. Essa minhas tias eram inimigas uma da outra. Duas irmãs,
uma era carvalhista, que era do nosso lado, e outra udenista, porque o marido dela era
Almeida Prado. E a minha tia olhando para essa Almeida Prado "o que é que você está
olhando para mim? Por que você, seu marido não sei o que", discutiram. Precisou minha mãe
entrar no meio para que elas parassem de discutir. Porque parava o terço, parava de fazer tricô
e era capaz de sair briga entre elas. Elas eram meio... As mulheres eram políticas roxas.
Sem dúvida, o fato mais marcante desse tempo foi a Revolução de 32. No colégio não
se podia falar, a gente sabia por que vinha o pai de uma e contava e a fulaninha contava para
gente. E se a gente tivesse conversando sobre o assunto, a freira vinha e cortava o assunto,
porque não podia. Então, a gente estava no colégio, a gente estava afastada de tudo que
acontecia na cidade. E isso constituiu um erro também na nossa educação. Nós não sabíamos
de nada, nós estávamos ali isoladas da sociedade. Livros, ninguém podia ler livro. Podíamos
ler livros religiosos, podíamos ler alguns romances que eram bons, mas trouxesse a mãe um
romance escondido das freiras... Porque não podia. O colégio era um pouco retrógrado até.
Mas era época, não era só no nosso colégio.
Para passar os conteúdos não tinha livros, era o que elas passavam. Tinha, por
exemplo, a maioria dos livros eram da FTD. Eram esses livros, não podia estudar em outro
livro, nós tínhamos que estudar naquele livro. Nós tínhamos uma biblioteca, mas na biblioteca
tinha livros que elas, as freiras, recomendavam. Então, hoje nós reconhecemos hoje não,
há alguns anos que isso foi um atraso na educação. O colégio das Irmãs de São José era
muito preso à tradição. Não admitia nada que fosse diferente. E não eram as freiras, era a
época. Hoje, eu tenho amigas minhas que falam "ah, aquelas freiras eram atrasadas". Eu
defendo, eu digo, "não, elas não eram atrasadas, era a mentalidade da época”. Então, em
180
alguns aspectos, a gente ficou atrasada no tempo. Porque alguns colégios, por exemplo, quem
estudava em São Paulo, no Sion, ou no Dezoason, ou em outros colégios mais grã-finos, eles
tinham uma outra visão. Tinha uma outra visão das coisas. O Colégio das Irmãs de São
José, tinha excelentes educadoras, nós tínhamos aos domingos, das 3 às 5 da tarde, que de
domingo a gente jantava mais tarde, nós tínhamos aula de polidez. Era uma religiosa, uma
freira, a gente não podia falar freira, era um termo desprezível, freira..., era irmã! Ela dava
aula de polidez. E essa aula de polidez era dada num salão que até pouco tempo tinha ali na
faculdade na Fundação Raul Baub. Tinha a sala e aqui do outro lado, tinha o graden. Graden
era um degrau e a gente então recebia aula de polidez. A irmã então dizia "Maria vai, você é a
visita que vai chegar, como é que faz, vai abrindo a porta e vai entrando assim?". "Não, bate
na porta, licença para entrar". Até hoje, às vezes eu lembro, eu entro aqui, “dá licença”... E eu
entrava. Não podia entrar, tinha que pedir licença para entrar. Depois não usava mais. Ela era
francesa, irmã Lúcia Permen. Era francesa, então ela seguia aquela etiqueta. A gente falava
"licença" e dava mais dois ou três passinhos, andava, dava mais três ou quatro passinhos até
chegar perto da superiora, que nós chamávamos de “ma mére”, minha mãe. nós fazíamos
uma inclinação assim, cumprimentávamos a “ma mére”, beijávamos a mão, e voltávamos para
o lugar. Tinha gente que queria sair da sala por uma necessidade, qualquer motivo, a gente
levantava e a superiora dizia "pode falar fulana de tal". "Dá licença de sair?". "Vai". Mas se
era eu, ou alguma outra que sempre saía, ela dizia "não tem licença, senta". Porque ela sabia
quando eram as malandras da época, não é? Não podia sair. "Ma mére, dá licença?" "Não,
senta". Era rigoroso.
Fiquei em regime de internato durante quatro anos, depois fui para minha casa e fiquei
externa. Quando eu me formei, voltei para casa dos meus pais, mas continuava freqüentando o
colégio. Ficava em casa e tinha a hora do estudo. Em casa, a gente levantava na hora de
estudo, almoçava as onze, porque ao meio dia tinha que entrar na aula. Ai, na escola
tinha professores de fora. Para as internas, eram as irmãs, agora para as externas tinham
professores de fora e alguns, eu me lembro. Tinha, por exemplo, Flávio Diniz, era professor
de geografia. E nós tínhamos que estudar mesmo, porque se não estudava, se não fosse bem
na sabatina, era reprovada no fim do ano. Quando a gente estava no internato eram as irmãs as
professoras.
Tinha outra professora, se chamava Nadir de Freitas, era de ciências. Tinha de
matemática, o professor Júlio Valério, que morava aqui em Jaú. Nós gostávamos dos
professores. Esse Júlio Valério tinha uma filha, morava com a família, tudo. Eles moravam,
181
eu me lembro até hoje, em uma casa em frente à igreja São Sebastião. E a menina teve tifo
55
.
E esse professor, ela era filha única, Júlio Valério, ficou quase louco quando essa menina
morreu. Então, nós éramos muito comportadas na aula dele, porque a gente tinha pena. Ele
dava aula chorando por ter perdido a filha. E te conto mais, quando eu mudei para São Paulo,
quando eu fui lecionar em São Paulo, esse professor Júlio Valério morava em São Paulo e
era professor na Caetano de Campos, onde eu lecionava também. Mas a gente tinha
esquecido, porque tinha passado. Ele até mudou de Jaú. A filha dele, não recordo o nome
dela agora, parece que era Carmelina, um nome assim, um nome bem italiano.
Freqüentei o Colégio até 1937, quando me formei professora primária. Fui lecionar,
por indicação das Irmãs de São José, naquele Externato que foi a minha primeira escola. No
Externato São José. Eu não tinha ainda idade suficiente para lecionar e, além do mais, eu era
italiana, eu era nascida na Itália. Então, eu não podia lecionar em escola do Estado. Eu
podia lecionar em escola particular. Não podia. podia brasileiro. Estrangeiro precisava ter
uma licença especial. O Júlio Valério que era professor de matemática, ele lecionava no
colégio das freiras porque era escola particular. Ele não era brasileiro, era italiano. Depois,
por força da lei da época, da consolidação, eu me naturalizei brasileira. Teve processo e tudo.
O advogado meu na época era o doutor Afonso da Costa Megrais, que era casado com a prima
da minha e. Ele foi o meu advogado no processo de naturalização. É um processo
demorado. Depois disso, eu passei a lecionar na Estela de Campos, que era escola do estado.
A gente que era boa aluna, era convidada para lecionar.
Quando comecei, eu não tinha nem vinte anos, tinha dezessete incompletos. Não que
eu tivesse sido uma aluna brilhante, não. Eu era uma aluna mediana. Eu tinha assim, vamos
dizer, uma admiração muito grande pelas irmãs de São José, muito respeito. Então, elas me
escolheram para lecionar no Colégio delas, em fins de 37. Porque eu me formei em 37, peguei
meu diploma de professora dia 19 de dezembro de 1937, já com um lugar marcado para
trabalhar. Lecionei primeiro numa classe masculina – tinha esse aluno, Ary de Almeida
Prado, e tive muitos outros alunos. De todos, eu lembro mais desse depois, fui convidada
para lecionar na Escola Normal.
Quando eu ainda era pré-adolescente eu lecionava no externato São José. Enquanto
fazia o meu processo de naturalização, eu lecionava no externato São José. Foram meus
alunos no externato São José, não sei se você conhece, o Ari Almeida Prado, que é médico no
55
Doença infectocontagiosa causada por várias espécies de microrganismo do gênero Rrickettsia. (HOUAISS,
2001, p. 2716)
182
Amaral Carvalho, o Vicente Almeida Prado. Era geralmente escola de elite. O Vicente
Almeida Prado, que está vivo até hoje, ele mora na rua Riachuelo. Foi meu aluno no
externato, um que mora aqui pegado no Jaú Serve, era o... meu Deus, deixa eu lembrar o
nome dele agora. Ai, meu Deus, quando ele me encontra ele fala "bom dia querida mestra!".
Acho que você conhece ele. Meu Deus do céu!... Ele mora pegado ao JServe. Eu gosto
demais dele. Esqueci o nome dele agora. Estou meio esquecida para essas coisas. Ele foi meu
aluno. O Vicente Almeida Prado, filho da Cinira Paula Leite de Almeida Prado, foi meu
aluno. E este aluno Vicente, era protegido pela mãe dele. Ela dizia para mim "Maria, não seja
muito exigente com o Vicente, porque o Vicente quando criança engoliu um alfinete e sofreu
não sei quantas operações". Que não é como hoje que tem raio x para localizar o alfinete e
tirar. Então, o Vicente "Maria, não seja muito exigente com o Vicente porque, coitadinho, ele
fez muitas operações e tudo". Era mãe protetora, sabe como é que é. A maioria desses alunos
Curi também eram meus alunos porque o externato São José era elite que freqüentava.
Também tive um aluno que se chamava Cássio. certos alunos que a gente marca, não?!
Porque ele era insubordinado. Eu fui professora do Cássio no segundo ano. Eu era professora
do segundo ano. E outras normalistas eram do primeiro, do terceiro. Eu ensinava geografia,
dava todas as matérias. Não é como hoje que tem matérias que dão separadas. Dava todas as
matérias do primário, no externato. Eu tinha esse aluno, o Cássio, o pai dele era professor,
naquela época.
Depois, fui professora da Escola Normal, da escola que me formei. Foi o professor
Túlio de Castro quem me indicou. Ele era professor de didática, que é a arte de bem ensinar, e
tem descendentes até hoje em Jaú. Ele era professor das normalistas, na Escola Normal Livre,
que era particular. Porque as escolas que não eram do governo, eram chamadas de escola
normal livre. Era tudo das freiras; tinha o internato, o externato e a Escola Normal Livre.
Fiquei em Jaté 1949. Lecionei aqui de 37 a 49. Até 49. Eu lecionei no externato e
no colégio – em 49 já tinha aberto escolas públicas, quando eu mudei para São Paulo já tinha.
O professor, que era professor das normalistas, era o Túlio de Castro. Talvez você
tenha ouvido já o nome dele, Túlio Espíndola de Castro – uma pessoa muito bem conceituada
aqui em Jaú. Ele era professor das normalistas que, inclusive, faziam estágio na minha classe.
E ele, quando precisou deixar a Escola Normal, por muitas atribuições de aula e tudo, me
indicou para que o substituísse. Eu fui, então, substituir o professor Túlio de Castro na Escola
Normal. Ele me indicou para substituí-lo. O que eu achei uma coisa impossível. “Eu,
substituir o professor lio de Castro? Mas nem pense!” A diretora da Escola Normal me
disse: “Não. Se ele escolheu você, ele acha que você tem competência para isso”. Falei: “se
183
ele acha, eu vou”. Lecionei um ano como substituta e, no ano seguinte, fui efetivada. Em 39,
40 fui fixada como professora da Escola Normal. E permaneci até 1949, como professora de
Didática da Escola Normal das Irmãs de São José, substituindo o professor Túlio de Castro.
Eu tive contato, quando professora aqui em Jaú, com algumas crianças pobres, porque
as minhas normalistas faziam estágio no curso primário; que era um curso gratuito do colégio
São José, onde elas faziam prática. Eu era diretora do Primário e levava as normalistas lá. As
crianças eram da periferia, crianças com poucos recursos. Eu tinha contato com crianças
menos favorecidas. Isso quando eu fui professora.
Quanto eu era aluna, na escola Normal, eu não tive, porque a Escola Normal das Irmãs
de São José, era uma escola paga. E bem paga. Então, tive contato e hoje ainda tenho, na
Escola Normal, com outras alunas, mas elas tinham condições, a Gilda Prado Cardoso, ela é
mais velha do que eu e era da minha turma, eu tenho Maria Helena Toledo Barros, foi minha
aluna, e elas freqüentavam escola paga. Todas.
Nessa época, eu tinha ainda um irmão solteiro industrial que foi para São Paulo.
Então, minha e disse: “Ele é solteiro, vamos todos para São Paulo com ele”. Nós, então,
nos mudamos para São Paulo. Morávamos na rua Antonina. Lá, por indicação das irmãs
daqui, eu fui lecionar no Colégio São José, na rua da Glória, no centro de São Paulo, e
também, na rua Voluntários da Pátria, em Santana esse é das Irmãs de São Joaté hoje. E
eu fiquei, lecionei, lecionei. Eu formei algumas turmas de jovens professoras, todas
normalistas. E eu ensinava sempre para as normalistas dizendo: “Nunca apontem o erro.
Procurem descobrir alguma coisa de bem feito. Acertou. Que bom, você acertou!”, estava
tudo uma porcaria, mas descubra alguma coisa boa. E com isso eu posso dizer para vo, eu
fiquei quase convencida de que eu era uma boa professora, por causa da minha psicologia. Eu,
como aluna, não era brilhante, mas aquilo que era importante aprender eu aprendia e aplicava
na minha vida de professora.
Mudei porque meu irmão não mais tinha a Casa Cesarino. Meu irmão, naquela época,
passou a ser industrial. Ele tinha uma indústria de malas finas, malas de couro que eu tenho
até hoje. Quando as moças e os rapazes se casavam eles iam comprar malas para viagem.
Tinha mala de couro cor de vinho, e até mala branca que hoje é uma aberração. Hoje, tem
mala de corvim, não tem de couro de jeito nenhum. A pessoa que tinha mala de couro,
chegava no trem com aquela mala falavam "nossa esse aqui é rico, é grã-fino, é..." porque
tinha malas finas. E meu irmão era industrial, era dono de fábrica. E foi nessa época também
que ele construiu a urna eleitoral. Nesse tempo eu era professora, e ele ficou importante
184
construindo a urna. E ele doou na época para Jaú essa urna, a primeira cidade do interior que
teve a urna do meu irmão.
Depois de um tempo, fui lecionar em uma outra escola particular, o Colégio Sion,
Nossa Senhora de Sion. Lecionava ao mesmo tempo em que lecionei em Santana, no
Colégio das Irmãs de São José. As duas, Escolas Normais, colégios particulares. E, numa
certa feita, uma ex-aluna minha se candidatou para ser professora do Jóquei Clube e ela tinha
que fazer uma prova para ingressar. Me procurou e disse: “Dona Maria, eu tenho que dar aula.
Eu sei dar uma aula, mas a senhora me ajuda um pouco?” Eu disse: “vamos”. Então
preparamos a aula e ela foi fazer a prova com a Catedrática da Caetano de Campos.
No dia seguinte, essa professora, que era a Dona Maria Helena Prestes Barra, disse:
“ontem uma ex-aluna daqui do Colégio Sion foi prestar uma prova e eu fui à examinadora”.
Disse a Dona Maria Helena: “ela deu uma aula brilhante”. A diretora de disse: “ela foi
nossa aluna”. Como era o nome dela? Era Maria Barbosa (não me lembro do nome dela). E
ela disse: “a nossa professora de Didática aqui é a Maria Cesarino”. Essa catedrática se
interessou e anotou meu nome e disse: “um dia você vai trabalhar comigo”. E realmente um
dia ela me convidou. Uma ex-aluna me promoveu. Ela deu uma aula tão bem que a
examinadora me escolheu para ser auxiliar na Caetano de Campos. Então, fui lecionar no
Colégio Sion e, também, na Escola Caetano de Campos, isso em 1959.
Eu tinha uma professora, religiosa de São José, era a irmã Juliana. E ela dizia para
mim: “Maria você vai ser uma ótima professora”. Veja como isso é importante. Alguém pôs
na minha cabeça que eu ia ser uma boa professora. De fato eu fui. Quando o Túlio de Castro
me convidou eu lembrei da irmã Juliana. E fui lecionar também na Caetano de Campos por
informação de uma ex-aluna, porque quando a catedrática, Dona Maria Helena Prestes Barra,
precisou de uma auxiliar, ela me procurou. Lecionei na Caetano de Campos vinte anos, de 59
a 80. Isso, ao mesmo tempo, em que lecionava em colégio particular. Eu lecionei no colégio
Sion, no colégio Mackenzie, no colégio das Irmãs Marcelinas e em vários outros colégios de
São Paulo. Até que, em 1980, eu vim para Jaú novamente. Voltei para Jaú, já aposentada.
Quando eu lecionei na Caetano de Campos, eu até tenho um diploma, um cartão de
despedida, quando eu me aposentei, eu recebi do colégio Caetano de Campos. Um diploma de
agradecimento pelo meu trabalho. Não só meu, mas de muita gente. Porque uma andorinha só
não faz verão. Eu trabalhei com muitas professoras de valor. E daqui também, da Escola
Normal de Jaú, tem muita gente de valor. Inclusive, uma que eu me lembro, que foi do meu
tempo, foi a professora Marina Cintra. Ela era de Bauru. A Marina lecionou no Machenzie. A
Marina eu não sei bem a vida dela. Todas as minhas alunas me beneficiavam. Elas me
185
promoveram, porque elas foram boas professoras. As pessoas perguntavam para elas: “Onde é
que você estudou? Quem foi sua professora?Inclusive, foi meu professor de psicologia, o
professor João de Souza Ferraz, que é autor de livros de Psicologia e outros tantos
professores, todos eles. Eu fui muito feliz em encontrar pelo caminho bons professores e eu
dizia para minhas normalistas: “sejam boas alunas que futuramente vocês serão boas
professoras”. E hoje eu conservo a amizade. “Está lembrada de mim, Dona Maria? Eu fui sua
aluna em mil novecentos e...” Ah, é mesmo. Ás vezes, eu não lembro, porque é tanta gente,
mas a gente tem que fazer de conta que lembra. “De onde...? Ah, foi minha aluna em São
Paulo. Em que colégio? No Sion? No Santa Marcelina? No Assunção?” Eu lecionei no
Colégio Assunção, granfinérrimo pela freqüência. Colégio Assunção.
Se eu não tivesse dado aula após terminar o curso normal, talvez fosse fazer faculdade
em São Paulo. Eu morei 40 anos em São Paulo. E eu tive oportunidade de fazer muitos
cursos. Eu freqüentava palestras. Eu fiz, inclusive, um curso de Orientação Educacional em
São Paulo. Quando eu morava lá. Curso de orientação educacional. Eu participava de cursos,
naquela época, com professores. Professor José Camarinha e outras tantas pessoas de valor.
Eu não perdi oportunidade de me informar. Eu lia no jornal: “professor fulano de tal, dando
curso...” Eu ia lá. Lecionava de manhã, às sete e meia da manhã eu estava dando aula no
colégio Sion, às dez e meia eu saia correndo de e ia pra outro colégio. Eu ia para casa para
almoçar. Depois do almoço, eu saia e ia para outras escolas.
Olha só o acróstico – Colégio Santa Marcelina, 1965. Eu sai do Colégio em 79 e 80 eu
vim para Jaú. E olha a minha secretária. Esse aqui, quando eu me aposentei na Caetano de
Campos. Diploma de Reconhecimento. E esse aqui, do colégio das Marcelinas.
Voltei para Jaú porque perdi minha mãe. Perdi minha irmã e, embora meu irmão ainda
estivesse em São Paulo, porque ele era industrial... Industrial de malas finas, malas boas, e a
convite de um amigo dele, ele ficou bolando uma “mala” para guardar os votos, então
idealizou a urna eleitoral. Idealizou a urna que foi aceita pelo Tribunal Eleitoral. Essa urna
começou a funcionar em 1955 em todo o Brasil. Ele que idealizou e foi aprovada. E agora
essa urna foi substituída pela urna eletrônica, que como ele dizia: “eu sou a favor do
progresso, mas hoje não é urna. Porque urna é um recipiente onde se guarda alguma coisa. E
isso guardava os votos. E na de hoje, não guarda nada. É uma máquina”. Ele se aposentou e
veio para Jaú, onde faleceu há dois anos. Como eu não tinha mais razão para ficar lá, também
vim. Ele construiu essa casa, onde moro desde 82. dois anos ele faleceu, mas o feito dele
ficou. Porque ele foi o inventor da urna eleitoral. E Jaú foi a primeira cidade do interior que
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usou essa urna. A minha história é muito comprida não?! Ele morou alguns anos aqui e
faleceu no hospital Amaral Carvalho. Já ouviu falar?
Quando eu estava em Jaú, como professora, me relacionava muito bem com as
professoras. Nós tínhamos onde tem hoje ali na esquina, em frente ao mercado, mercadão
que nós falamos, tem um prédio grande o Grêmio. Grêmio de quem era do PRP. Naquela
época, tinha dois partidos, o PRP e o UDN. E eu, minha família, minha mãe, minhas tias, o
Amaral Carvalho, nós éramos PRP, Partido Republicano Paulista, e os outros que eram
Almeida Prado, que eram Vicentistas, que tinha Vicente Almeida Prado e tinha Amaral
Carvalho. A minha família era Amaral Carvalho. Era de um não olhar para o outro. Ao ponto
de a família Carvalho, tinha um que era até meu primo, e ele começou a namorar uma moça
que era, por acaso, vicentista. E o pai dele mandou ele embora para os Estados Unidos para
cortar o namoro. Família boa, mas era de outro partido. A política era acirrada, nos
discutíamos, mas não podia participar da vida dos vicentistas. Depois de muito tempo, meu
irmão se casou com uma vicentista, uma Almeida Prado, mas nessa época...rapaz!...
Nessa época, anos 40, o prefeito era da família Gomes dos Reis. E meu pai sempre
dizia assim: "eu não tomo partido, eu sou estrangeiro, eu não voto". Então, meu pai se dava
tanto com os vicentistas como com os carvalhistas. Às vezes meu tio, que era carvalhista,
falava para o meu pai "mas você não pode. Você cumprimenta fulano, fulano é carvalhista, é
udenista, é Almeida Prado, é vicentista". Indispunha-se com meu pai porque ele não queria
que meu pai nem cumprimentasse, que tomasse partido. Não podia. Mas meu pai "eu sou
estrangeiro" ele era italiano "eu sou estrangeiro, não tomo partido". Mas ele era mais
carvalhista, por causa da minha mãe, que era dos Carvalho.
O presidente, nessa época, era o Washington Luís e nós fizemos de tudo para derrubar
o Getúlio Vargas. O Washington Luís era um gentleman. E meu tio Amaral Carvalho, que
puxava a tropa daqui de Jaú, recebia ele em casa. Washington Luís quando vinha à Jaú se
hospedava na casa do Dr. Carvalho. Antônio Pereira do Amaral Carvalho. E ele morava
naquela esquina da rua Riachuelo com a Quintino, onde hoje é um terreno. E sabe por que foi
demolida aquela casa? Porque a Raquel, essa minha sobrinha, ela é muito atuante aqui em
Jaú. Ela na ocasião escreveu um artigo dizendo que naquela casa onde morava Antônio
Pereira de Carvalho, tinha recebido pessoas ilustres, entre elas Washington Luís, que era PRP.
Logo depois a casa foi demolida porque ficaram com medo que a casa fosse tombada. Então
demoliram aquela casa lá. Mas a casa tinha sido construída pelo meu bisavô, pelo Domingos
Pereira de Carvalho. E meu tio Antônio Pereira de Carvalho era dono da casa, porque o
187
Domingos já tinha falecido e ele era filho do Domingos, ficou com a casa. E ele era
político.Ele hospedava na casa dele todas as pessoas ilustres do partido dele.
É interessante notar isso, que nessa época, os paulistas lutaram contra o Getúlio e
depois, nós os paulistas, depusemos o Getúlio. Nós, os paulistas, derrubamos o Getúlio para
eleger o Washington Luís. Washington Luís foi realmente um grande, naquele tempo não
falava um presidente, era governador. Washington Luís foi apelidado de governador
estradeiro, porque foi o primeiro governador que teve a idéia de asfaltar as estradas. Então, ele
era chamado, ele abriu estradas, ele era chamado governador estradeiro. Abriu estradas, foi
um grande progresso para o Brasil, sem dúvida, as estradas.
O Getúlio foi um ditador. Quantos anos o Getúlio ficou no poder? Ditador. Não tinha
eleição, não tinha eleição, ele mandava e acabou. Ele mandava no Brasil inteiro. As leis
trabalhistas, por exemplo para citar, antes de Getúlio havia em toda parte, por exemplo, um
alfaiate. Tinha um alfaiate. O dono do alfaiate contratava um menino para aprender o ofício.
Então, ele pregava botão, ele varria, e com isso ele crescia um profissional. Mais tarde, ele
seria um alfaiate. Ele era contratado pelo farmacêutico para lavar vidro na farmácia, ele ia
praticando naquilo, amanhã ele teria um bom empregado. Essa foi uma lei que o Getúlio
derrubou. O trabalho do menor, ele tirou. Isso foi um mal para a nação. Porque hoje você vê
os meninos que estariam lavando vidro, estariam varrendo o armazém, hoje eles estão na rua.
O Getúlio pôs a lei trabalhista, o Getúlio tirou o trabalho do menor.
Não havia quase roubo na época, não havia crime. Quase não havia crimes políticos,
mas nessa época também vigorava a lepra. Perto de Bauru tem, hoje o tem mais, tinha um
leprosário. É tinha um nome esse leprosário... é eu vou lembrar. Não tem mais, porque hoje o
leprosário acabou, com um tal remédio que surgiu que agora eu não me lembro. Nós temos
um caso lamentável, de uma pessoa conhecida, e ele foi denunciado, e o leprosário veio a Jaú
buscar. Então, correu a notícia que aquele determinado senhor ia para o leprosário. Ficava no
Instituto da lepra. E esse senhor, que no dia seguinte vinham buscá-lo para levá-lo para o
leprosário, nós conhecemos essa pessoa. Ele tomou veneno, ele suicidou-se para não ir para o
leprosário. Era terrível a idéia da lepra e quem trabalhou muito para os leprosos foi uma
deputada cujo nome eu também não me lembro agora. Ela trabalhou muito, muito, para os
leprosos e acabou com a lepra. Hoje em Bauru não tem mais leprosário e a lepra hoje é
curável. Mas tirou a vida de muita gente. Os leprosos, naquela época, andavam na cidade a
cavalo e tocavam a campainha na sua casa e a gente via que era um leproso, aí! Porque havia
uma crendice popular que se eles passassem a lepra para sete pessoas eles ficavam curados.
Então eles vinham, tocavam a campainha na casa da gente e pegavam na mão da gente, para
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pegar a lepra deles porque pegando a doença em sete pessoas, ele ficava curado. Então foi
uma época triste, essa época. Eu estou com o nome dessa deputada na ponta da língua. Ela era
deputada federal. Depois que eu tive essa crise é pouco o que eu lembro. Eu lembro dela... ah,
estou quase me lembrando, ela era deputada também. E era, eu sabia até o nome do remédio
que curava lepra. E agora não, ninguém mais tem medo da lepra. Essa era a doença comum na
época. A que mais apavorava era essa. Não tinha vacinas como hoje. As pessoas não
tinham...morriam as crianças, morriam muito.
Aqui em Jaú, tinha a Santa Casa. O Amaral Carvalho foi aberto em 1936. Ele não
nasceu como hospital Amaral Carvalho. Ele nasceu como Maternidade do Jahu, que a minha
bisavó via que morriam muitas mães de parto e muitas crianças. Porque não tinha hospital,
não tinha nada. Então, minha bisavó Ana Marcelina de Carvalho, doou um terreno, custeou a
maternidade para tratar das mães. Depois, quando foi diretor o Amaral Carvalho, esse que
tinha sido senador, ele abandonou a política, e foi viver do hospital. Até pouco tempo, ás
vezes eu falo, eu falo assim: "ah, minha mãe deu a luz aí, meu irmão mais velho nasceu aí" e
houve uma época que a Maternidade do Jahu passou a ser hospital Amaral Carvalho, que tem
como fundadora Ana Marcelina Domingos Pereira de Carvalho, que é nossa “menina dos
olhos”. Todos nós colaboramos muito. O diretor superintendente de lá é o meu sobrinho, que
se chama Antonio Luis Cesarino de Moraes. Ele é o diretor de lá. Não foi mais Maternidade
do Jahu, é hospital Amaral Carvalho. Mas aqui não tratava a lepra, tinha que levar para Bauru.
Naquele hospital, que eu estou quase lembrando o nome, daquela deputada que trabalhou
muito para os leprosos, é que importava o remédio para lepra. Acabou com a lepra. Ninguém
se relacionava com os leprosos.
Também havia uma reminisncia da escravidão. Aqui em Jaú, nesse jardim que nós
falamos jardim de baixo, aos sábados e domingos, a elite dava volta no jardim. Os homens
davam volta nesse sentido, e as mulheres no sentido oposto. Então, a gente namorava uns que
estavam dentro do jardim, dava uma volta inteira para dar uma piscadinha para o outro,
porque não podia ir no mesmo sentido, um num sentido, o outro em outro. E os negros, os
negros... isso é uma mancha para Jaú. Os negros andavam fora do jardim. E os brancos
dentro. Eles eram livres, mas havia preconceito. E até hoje, hoje até que não se pode ter
preconceito contra o negro. Outro dia, na rádio, dizia assim: "fulano de tal foi autuado em
flagrante chamando o outro de negrinho, "o negrinho, sai daí". Chame o outro de negrinho
hoje! Hoje o negócio está assim. Hoje ele leva e vai até responder em juízo porque você
chamou o outro de negrinho. pouco tempo, saiu até uma lei que preto, negro, não podia
entrar pelo elevador social, tinha que entrar pelo elevador de serviço. Mas não este, o
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Alckimin, nem o outro antes dele, o Covas, foi antes que tiraram essa lei. Depois disso podia
entrar junto com o branco em qualquer lugar. Mas naquela época isso era muito forte. Se você
tivesse no seu elevador e um negro tentasse entrar você não deixava entrar. Hoje isso é crime.
Vai preso até porque você não via, eu não me lembro na minha juventude, na minha infância,
na minha juventude que seja, eu nunca vi um preto namorando um branco. Começa com o
nosso Pelé. O Pelé, a mulher dele é branca. Antes, não podia casar com branco, hoje a mulher
dele é branca. Qualquer posição de destaque que o preto tenha, ele pode até casar com a
rainha da Inglaterra, se ele quiser. Mas em outros tempos, ele era considerado inferior. Até
tinha uma lenda na época de o porquê preto ser preto: Ele é preto porque ele ficou na beirada
da piscina e caiu de quatro. De burro, não é, de quatro. Então, ele tem a palma da mão branca
e o branco. Ele caiu de quatro, de burro. Veja que coisa! E ainda hoje, muitas famílias
que têm preconceito. Porque uma vez que foi decretada a lei livre, os negros eram maus,
porque eles eram escravos, não ganhavam dinheiro, quando foi decretada a lei Áurea, coitado,
ele saía no mundo sem dinheiro, sem saber fazer nada. Então eles eram temidos. Alguns eram
bons e se tornavam até babá dos senhores, eram pessoas que ficavam e algumas ficavam nas
famílias mesmo, em liberdade. Porque eles não sabiam fazer nada, eles eram para serviços
gerais, lavoura. Na lavoura ou então nas famílias. Aqui em Jaú mesmo tem uma, até ela foi
babá, a Tata, ela foi babá da minha sobrinha que casou com meu sobrinho o Antônio Luís. A
Tata foi babá da minha sobrinha que casou com meu sobrinho. Mas ela é da família, hoje ela
vai nas festas com a família. Mas naquele tempo, logo depois da escravidão de 1888, foi a
liberdade dos escravos, não ganhavam nada, não tinham nada. Alguns escravos eram postos
em liberdade, mas eles se tornavam maus, porque eles não sabiam trabalhar, eles não sabiam
fazer nada. Então foi um período negro da nossa história, vergonhoso.
O meu avô, pai da minha mãe, Joaquim Ferreira do Amaral, que é o patrono da Escola
Industrial, quando meu avô pai da minha mãe se casou, o pai da minha avó quis dar para ele
um casal de escravos. O Joaquim Ferreira da Amaral lutava contra a escravidão. E quando o
sogro dele quis dar um casal de escravos, ele não quis. Ele era abolicionista. E tem muito, não
tanto aqui em São Paulo, mas na Bahia existem muitos negros nas famílias.
Um filho do meu tio Amaral Carvalho se casou com uma baiana e veio aqui para J
para morar na fazenda, tomar conta da fazenda do pai dele. E a mulher dele trouxe uma babá.
Até eu acho engraçado, porque agora eu tenho uma acompanhante que dorme comigo e eu
digo que é a minha babá. Mas ela não se acostumou com os hábitos de o Paulo, porque ela
era de uma família que tinha escravos, entende? E ela trouxe, a Maria, trouxe uma babá com
ela. Sabe como ela tomava banho? Com canequinha. Não tinha na Bahia, na casa dela pelo
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menos, não tinha banheira, não tinha chuveiro. Então, ela contava que ela ficava sentada na
cadeira com uma bacia de água quente e a babá molhava ela com água quente. Nem tomar
banho ela não tomava sozinha porque tinha as ex–escravas que ficaram lá na família dela
fazendo isso. Faziam tudo. Tanto que ela veio casada e voltou para Bahia porque ela não
acostumou com os costumes dos paulistas. E eles diziam que os paulistas eram muito
orgulhosos, porque eram raras as famílias que conservaram os escravos. Os paulistas têm
fama de ser orgulhosos. Paulista e os nortistas. Então, eles não combinaram. E os ex-escravos
eram chamados de agregados da família. Agregados. Agregado da família. Não era tratada
como pessoa da família, mas também não era tratada como escravo. Era agregada. Como era
o costume diferente...
O transporte naquela época era feito de trem. Tinha o trem, a Paulista. Eu viajei muito
de trem. Viajei muito para São Paulo. Tinha o Puma da Paulista. Tinha a estrada de ferro, que
pertencia a Companhia Paulista, e a gente, as pessoas mais abastadas e tudo, a pessoa não
viajava em trem comum. Tinha a primeira classe, a segunda classe e tinha o Puma. Este, tinha
cadeiras especiais. Ele era muito melhor que primeira classe. Muito. Eu viajei de chapéu.
Alcancei esse tempo, por volta de 38, 39 que eu era professora, nossa! A gente entrava
no trem, no vagão do Puma, nem passava pela segunda e pela primeira. Viajava pela segunda
quem não tinha muito recurso, porque viajar de Puma era mais caro, tinha direito aos
restaurantes. As outras classes, a segunda e a primeira, a primeira ainda tinha, mas a segunda
não tinha direito à restaurante. Então, aqui em Jaú o povo era muito aristocrata. Você vai fazer
um paralelo entre o que eu disse e entre o que a Nilza vai falar. A Nilza fala: “os jauenses são
muito orgulhosos”. Quando ela veio de Santa Cruz do Rio Pardo sei de onde ela veio
ela foi mal recebida aqui na cidade porque o doutor onde tem hoje o museu, era casa do
doutor – ai meu Deus... como que era? Doutor... esqueci agora. Conhece o museu? Aquela era
a residência do doutor, ai na ponta da língua o nome... A Nilza conta que quando ela veio
aqui em Jaú, olhavam como quem diz, “essa terra não é sua, você não é paulista, você é de
outra cidade”. Ela disse que até sofreu aqui em Jaú, mas eu acho que é um pouco de exagero.
Mas você vai ouvir isso dela. Que o povo, que os jauenses eram mais... a Nilza fica brava
quando eu falo: “não é tanto assim, Nilza, como você fala. Por que é que você veio para cá?”
E ela diz: “Ah, porque eu casei e meu marido veio para cá”. Havia um preconceito contra
quem não fosse de Jaú.
Meu pai não sofreu esse preconceito porque veio com muito dinheiro. Agora, com
pobre tinha. Eu como professora não percebia isso. No colégio, tinha quem dizia que Prado
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era privilegiado. Almeida Prado! Só porque eles eram ricos. Então, no fim do ano, eles davam
sacas de café para o colégio. Davam, eles faziam doações. As freiras então eram bem
afeiçoadas pelas famílias dos Almeida Prado no colégio. A profissão de professora também
dava status. Quem era professora tinha uma situação melhor. Minha mãe era jauense e meu
pai era italiano. Eu me lembro de um discurso de formatura, de formatura não, da república.
Eu fui ao rádio falar, eu era professora. Foi na época da guerra. Da segunda guerra. Eu
era formada, eu fiz um discurso assim: “Jauenses, quem lhes dirige à palavra não é uma
brasileira nascida à luz do cruzeiro. Tive por berço a longínqua Itália tinha gente que não
sabia que eu era italiana – e luto por essa terra que é minha. Não, por essa terra de minha mãe
que eu também fiz minha”. Então eu disse que eu era italiana mas que eu me sentia brasileira
porque a todo coração bem formado a pátria é cara”. Quer dizer, eu não desprezo a minha
terra. Porque, até eu falava em francês essa parte: “la tout couer bien formad la patri és car”.
A todo coração bem formado a pátria é querida. Eu não posso querer bem a outra pátria se eu
não quero bem a minha. E fui muito aplaudida. E era o tempo da Revolução. Eu então dizia
assim “eu amo essa terra que o é minha, é a terra de minha mãe. Porque eu venero dentro
do meu lar paterno, uma mãe que é brasileira e que luta por essa terra que é sua, dela e é
também minha”. Então eu amava a Itália porque é minha terra e amo o Brasil porque eu tenho
dentro do meu lar paterno uma mãe que é brasileira. “E que ela também luta por essa terra que
é sua, e eu lutarei também alfabetizando as crianças, educando os jovens como professora”.
Mas foi aplaudido, esse meu discurso. Isso tinha sido proclamada a República. Eu escrevi
isso na Revolução. Então, eu dizia: “eu também amo essa terra que é sua, da minha mãe e que
eu também fiz minha. Por que? Porque eu venero dentro do lar paterno uma mãe que é
brasileira e que eu fiz também minha”. E foi para o rádio. A rádio PRG Sete. Hoje também
chama PRG Sete. Funcionava, naquele tempo, em frente à sorveteria Pereira.
Tenho recordações muito boas. E sabe onde que estão todas essas minhas relíquias?
Na Fundação. Eu doei tudo para lá. Fotos, tudo. Eu doei meus discursos, meu álbuns de
formatura. Tenho esse discurso lá. Pode procurar todo o acervo que foi doado por Maria
Cesarino. Tem muita coisa minha. Gente que vai lá e fala “ah, eu vi uma fotografia sua na
fundação”. No Acervo Histórico. Então, vo chega e fala assim que você tem que falar
sobre uma jauense. Você fala, de quem eu vou falar, então vai no acervo. E eles lá, eu nem
sei quem é que toma conta lá, vão dizer que tem muitas professoras. Tem Marina Cintra, tem
a Maria Aparecida Pereira, tem Maria Cesarino, você fala "eu vou falar, eu vou ver",
você pega tudo sobre Maria Cesarino que eles têm lá. Eu tenho álbuns de formatura, o meu
acho que está aqui. Quer ver? Eu dei também, ou não, é um estojo de madeira. Eu dei
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também, está lá. É um estojo de madeira. Eu não me lembro se eu dei. Você vai encontrar
vários álbuns de formatura que eu fui paraninfa de turma. Todos os meus livros de escola
também estão lá. Tudo lá.
Este jogo de palavras cruzadas eu jogo muito com a Nilza. Não é muita gente que
gosta deste jogo de palavras cruzadas. Isso se chamava “jogos de salão”. Para formar palavras
você começa por aqui, está vendo? Eu ponho um A aqui e o outro põe: ALICE. Para cá, para
cá, para cá. E depois, conforme onde ele coloca as pedrinhas, vamos ver, a gente dá para cada
jogador seis pedras. É a minha vez de jogar eu começo o jogo por aqui, eu formo M posso
formar aqui por exemplo. E não pode trocar as pedras. Não pode. Olha eu formei uma
palavra. Então eu formei aqui é 8 e 1 nove. Maria, 9. Agora é sua vez, então você coloca.
Você pega as seis peças e também forma uma palavra. que você não me deixa ver. E
você pode formar aqui, aqui, aqui. Então a gente convenciona, pode formar nome de pessoa,
pode formar verbo no infinitivo, verbo conjugado. Isso, formou a palavra meta. Então você
formou 1, 4, 5 e 6. Agora se vopuser no azul, vale o dobro. E se puser no azul forte vale
três vezes. E marca. Mas chega uma hora que não mais. É uma beleza esse jogo, é uma
delícia. Eu joguei com os meus sobrinhos que hoje são homens, eu jogava com eles. Vo
sabe que no começo para ajudar, para incentivar eu deixava eles ganharem. Mas depois que
eles pegavam o jeito, não. eu não deixo, cada um tinha que fazer seus pontos e ganhava
quem formasse mais. Aqui, se põe uma pedra fica o dobro da palavra. Põe o A aqui, fica dois.
Mas você não pode mudar. Tinha que ser outra palavra. Avós, por exemplo, A, V, O, S duplo
forma outra palavra. Agora você põe AVE eu tenho um S eu ponho AVES. Eu posso
continuar suas palavras. Então você nunca faz isso. Para não dar chance para o outro. É um
jogo muito bom para desenvolver a inteligência. Eu tenho isso do tempo que meus sobrinhos
eram crianças. E o Guilherme, que é médico hoje, que casou a semana passada, ele era
danado, ele ganhava de mim. Porque eu ensinei para ele e depois, é um jogo de atenção,
também. De desenvolvimento, de vocabulário. De raciocínio. Por isso que eu digo, eu brinco
com as minhas crianças hoje ainda. que eles não gostam. Hoje eles querem fazer outras
coisas. Quanto eu era criança, as brincadeiras na época era amarelinha, que hoje as crianças
ainda brincam, calçadinha, que a gente andava na guia da calçada, pulava corda... Havia
variedade de pular corda, tinha corda assim, depois tinha a corda de trás para frente, cobrinha,
brinquedos de corda...
Na minha mocidade, nós também tínhamos as nossas diversões, eram os jogos
chamados jogos de salão. E hoje ainda faço com as crianças, conforme a idade. Eu tenho as
crianças do Antônio Luís, que é o diretor do Amaral Carvalho, a menininha dele a Maria Pia
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está com nove anos. E o irmãozinho, o Antônio Luís, tem três. Então ele vem direitinho aqui e
pega o dominó. A Maria Pia pega este, domiela não quer. O Antônio Luis de três anos
ele faz casinha, depois eu conto a história dos três porquinhos que veio o lobo assoprou e
levou a casinha. Agora, a Maria Pia tem nove anos e nós fazemos outros jogos. Porque
eu digo para você, eu nasci para ser professora. Outro dia, eu dizia "eu não sabia que eu nasci
também para ser professora de cachorrinho", porque essa minha cachorrinha, a Nina, eu falo
com ela e ela entende o que eu falo. Ela age por reflexos condicionados. Ela ouve aquela
musiquinha, ela vai e senta no tapete e é a hora do terço. Falo: "Nina, está na hora do terço". E
ela vai direitinho e senta lá. As pessoas que não sabem falam: "mas como?" Eu ponho aquela
musiquinha e ela se condicionou com a musiquinha, a sentar na almofada. eu falo:
“quietinha Nina, vamos rezar o terço”. Agora se você falar “quietinha Nina, ela nem
atenção”. A Nilza, fala que não gosta de jogo. Esse jogo ela gosta, mas não gosta de baralho.
Agora, não tenho atividade nenhuma, me aposentei. Voltei para cá, estava
aposentada. Quando vim era aposentada, com idade também, estava com quase 70. Porque
atualmente, eu tenho 86 anos. Graças a Deus, com a cabeça no lugar, minha saúde boa, com
algumas falhas porque a idade é bastante, mas ainda temos atividades. Eu trabalho
atualmente como voluntária do hospital Amaral Carvalho. Participamos das reuniões, quer
dizer, essa é a minha atividade. Não faço nada. Trabalho como voluntária. Em São Paulo, eu
tinha carro. Aqui em Jaú íamos a para o colégio das irmãs, não tinha carro. Eu comprei
carro quando eu morei em São Paulo. E atualmente eu não tenho carro porque os médicos
me proibiram. Eu tinha uma brasília, muito bem conservada, muito bem cuidada, vendi, faz
quinze, vinte dias, porque a vista não me ajuda muito e o trânsito aqui de Jé intenso. E
agora eu estou verdadeiramente aposentada, até da direção.
A minha vida em família... Eu sou solteira até hoje. Não por vontade própria, mas eu
tive noivo, desmanchei...na adolescência eu lecionava. Não pensava em mais nada. Eu
dizia: “eu me casei com o magistério”. Eu estava feliz e realizada. Depois de mais de idade,
quando eu morei em São Paulo, eu tive a oportunidade de conhecer mais pessoas... Inclusive,
meu último amor, se a gente pode falar assim. Era um médico, já de idade também, porque eu
tinha idade. Fui sua companheira na doença. Ele faleceu e eu nunca mais me casei. Ele era
de Curitiba. Ele era tio, como é que se chama mesmo? Tio do professor Trevisan de Curitiba e
a minha despedida dele foi quando eu o coloquei no avião morto. E foi para Curitiba. E
foi a minha despedida. Depois dele é que eu tive oportunidade de viajar com um primo que
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era Ministro do Tribunal de Contas. Então, conheci o Brasil de norte a sul. Estive na
Argentina, estive no Paraguai.
Eu viajei muito. Posso dizer que conheço o Brasil de norte a sul, bem de lá do norte do
Brasil, até o sul do Brasil. As cidades históricas de Minas. Estive lá com esse primo meu, que
era viúvo também. E nós viajávamos juntos para conhecer. Ele era Ministro do Tribunal de
Contas. Pessoa esclarecida, inteligente e tudo. Inclusive, a filha dele ainda ontem esteve aqui.
E eu sou madrinha dela. Então, quer dizer, só o meu coração não se realizou. Eu amo a todos.
A minha família em primeiro lugar. Eu sempre digo: “Deus não me deu filhos, mas me deu
sobrinhos e amigos”. Minha sobrinhada toda me chama de tia “Ia”. Ninguém fala tia Maria
pra mim. Às vezes eu até esqueço que chamo Maria, porque é tia Ia pra cá, tia Ia pra lá. E
agora eu estou vivendo a minha vida e colhendo, como se diz, “os louros da vitória”. Com a
consciência tranqüila por um dever bem cumprido. Fui muito feliz no magistério. Minhas ex-
alunas foram.... - inclusive ela tem duas filhas que foram minhas alunas no Colégio Sion
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todas me consideram muito. Para que ser mais feliz? Existem muitas maneiras de ser feliz. E
eu sempre digo: “se eu tornasse a viver outra vez, eu ia fazer tudo o que eu fiz e mais alguma
coisa que eu deixei de fazer”. Mas não deixei de fazer por abandono... não houve
oportunidade. E hoje eu me sinto, nos meus 86 anos bem vividos, bem vividos, eu me sinto
feliz. Eu sou feliz. É uma história longa, mas tem muita coisa. Não dá para contar tudo, não é?
É muita coisa. Então foi a minha adolescência lecionando, lecionando, lecionando. Fui
paraninfa vários anos, inclusive eu tenho na parede com homenagem das professorandas. As
minhas ex-alunas de 1942 fizeram ali um acróstico “Maria Aparecida Cesarino, professora
no verdadeiro sentido da palavra. Conquistando de todas, o coração. Seus ensinamentos...”. E
assim vai...
Tenho muita coisa minha no arquivo da Fundação. Se você chegar e pedir alguma
coisa sobre Maria Cesarino... Pode procurar. Eu também fiz curso de pintura. Esse quadro é
meu. Tem um outro na sala também. E a gente não guarda muita coisa. Fiz curso de
especialização para deficiente auditivo, deficiente visual, deficiente mental. Porque eu tive
uma aluna cuja mãe me procurou. Queria que desse aulas para ela, mas eu não me sentia
competente pra trabalhar com ela, porque ela era deficiente. Ai, eu fui fazer um curso na
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, na APAE. E eu tenho meu diploma de
professora de Débeis Mentais. E, uma certa feita, a mãe dessa aluna me procurou dizendo:
“Maria, eu preciso de um atestado pra minha filha, dizendo que ela é deficiente”. Porque o pai
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Referindo-se à amiga que estava presente no momento da entrevista.
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tinha que dar uma pensão. Mas eu não queria dizer que ela era deficiente. Ai, eu redigi assim:
“Eu, Maria Aparecida Cesarino, professora normalista e, também, tendo cursado [eu que
cursei a Escola]... dei aulas particulares pra ela”. Ora, se eu era formada em deficientes
mentais e tava dando aulas para ela, subentende-se que ela era deficiente não é?! Então, ela
conseguiu que o pai fosse obrigado a dar uma pensão.
Então, eu digo: “eu vivi bem a minha vida”. Estou realizada como filha, como irmã,
como tia e como professora também. Felizmente. Hoje eu encerrei a minha vida. Continuo,
mas não é atividade de professora. E minha atividade de italiana também não tem mais.
Quando eu era menina eu ia naquele clube Dante Aliguieri, por exemplo. Hoje, não tem mais
aqui em Jaú, mas a minha sobrinha, a Raquel, está tentando ativar novamente. E esse grêmio,
Dante Aliguieri, ficou por muito tempo parado. Mas a Raquel está ressuscitando, ela e outras
tantas descendentes de italianos. E hoje, estou tendo a felicidade também de ser entrevistada
por você que é uma pessoa que eu refuto como sendo uma pessoa de muito valor e o que
estiver ao meu alcance para dizer alguma coisa, é só perguntar.
196
197
N
ILZA
G
UIMARÃES
C
ARBONI
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Eu nasci em São Pedro do Turvo no dia sete de setembro de 1915. Tenho 89 anos.
Meu nome completo é Nilza Guimarães Carboni. Morei em São Pedro do Turvo e estudei em
Botucatu.
Minha mãe veio de Piraju, Maria de Oliveira Guimarães. E a família do papai era de
Itapeva, mas ele nasceu em Campos Novos Paulista. O nome dele era tão comprido, que ele
pediu para o juiz diminuir, porque ele tinha que assinar. Naquele tempo, os brasileiros tinham
os nomes dos filhos todos compridos, o nome dele era Antonio Gonçalves de Souza
Guimarães Junior. Ele formou-se no colégio São Luiz, em São Paulo, bacharel em Ciências e
Letras. Ele não era professor. Ele formou-se sabe o colégio São Luiz em São Paulo? Era de
ingleses no colégio dos ingleses e, naquele tempo, era bacharel em Ciências e Letras. Eu
tenho o quadro da formatura dele aqui, eu vou mostrar para você, posso? Foram sei alunos
formados. Depois, ele passou para o primeiro ano de Direito do São Francisco, mas o pai, que
era coronel naquele tempo, político, do tempo do Ataliba Leonel (nós éramos parentes). Era
uma política só. Então, o pai dele vinha da fazenda, quando ele foi assassinado. O pai dele,
meu avô, foi assassinado. Então ele teve que largar o estudo para assumir os negócios. Isso
mais ou menos em 1907.
Minha mãe era de Piraju e eles eram parentes do Ataliba Leonel ouviu falar do
Ataliba Leonel? Foi governador. Ele era tio das minhas avós e a mamãe veio de Piraju.
Mamãe era toda orgulhosa, parece que Piraju foi a primeira cidade do interior que teve bonde
elétrico porque tinha o Ataliba Leonel, não é? A família da mamãe veio de Itapetininga,
abrindo fazendas. Até uma sobrinha minha que é casada com um desembargador no Rio de
Janeiro me telefona para perguntar, porque diz que não sabe nada da família.
Então, a mãe da mamãe era tia da mãe do papai. Naquele tempo casava tudo com
parente. Para não dividir muito as coisas. E a mamãe era prima do papai, porque a mãe da
mamãe era tia da mãe do papai.
O pai do papai morreu assassinado. Ele era chefe político. Naquele tempo era Coronel.
Aquele tempo de política, ali dos lados do Paranapanema. Meu avô era estudado. Estudou em
Coimbra. Não era português. Somos todos brasileiros. Até o meu avô, pai da mamãe, era de
uma família Paim, de Bananal, veio de Bananal. Eu fui em Bananal para conhecer desde o
Barão de Bananal. Você já foi lá, ou não?
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Entrevista realizada na residência da depoente, na cidade de Jaú, no primeiro semestre de 2005. Teve uma
duração aproximada de 1 hora e 30 minutos.
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Bananal é uma cidade turística e não sei por que o governador aqui do estado de o
Paulo não promove essas coisas, mas é uma cidade turística de 1700 e pouco. E você
aquelas fazendas, no Vale do Paraíba, você essas novelas, passam essas fazendas, tudo
do Vale do Paraíba. Então, eu fui numa dessas fazendas transformadas em hotéis, e o que
tomava conta do hotel era jornalista e ele tinha um caderno das pessoas antigas, então eu
peguei a família do meu avô. Nessa época, ele estava por lá. E é uma cidade que até o Jô
Soares uma vez fez uma crítica sobre ela, muito bonita, sobre a fazenda Resgate, você nunca
ouviu falar? Nossa, a coisa mais linda! Do tempo dos escravos. Então, tinha a casa dos
escravos, a coluna onde eles eram açoitados, tudo. Todas as coisas que os escravos usavam
naquele tempo, as panelas, tinha tudo lá.
A família do pai da minha mãe era de lá. Da mãe dela, não. Da mamãe era a família do
Ataliba Leonel. Meu avô ficou conhecendo a minha avó e se casaram. A mãe de papai era
sobrinha da mãe da mamãe. Quando a mãe da mamãe morreu, quem acabou de criá-la foi uma
tia dela de Piraju, que é mãe do Nhonhô Braga - Nhonhô Braga era casado com uma irmã do
Ataliba Leonel. Era tudo primo com primo. Tudo misturado. Então mamãe casou-se com
papai.
Eu tenho raiva do inglês, porque papai queria que eu falasse inglês desde pequena,
porque no colégio dele era proibido falar português. inglês. Então, não podia falar para
mamãe: “eu quero café”, “não, fala ‘I want coffee”, “não, eu não quero coffee, quero café”.
Eu gostava mais do francês. O francês, sim. Quando eu fui em Paris, eu me desenvolvi bem.
Porque o francês eu gostava, mas o inglês por causa do papai...
Quando eu era pequena, as brincadeiras de época eram jogar peteca, brincar de roda. A
gente brincava de roda, brincava de pega-pega. No fundo do quintal de casa tinha um rio, a
gente nadava escondido dos pais. A gente ia nadar no rio, atravessava o rio. O papai tinha
uma canoa que ele gostava de descer o rio e, um dia, nós entramos na canoa e ela se
desprendeu e nós fomos rio abaixo. Daí tinha um senhor, que trabalhava para o papai na
fazenda, nós gritamos e ele pulou na água e segurou a canoa que estava indo embora. Nessa
época, eu morava em São Pedro do Turvo. Nós tínhamos a fazenda, mas nós morávamos lá no
lugarejo, naquele tempo era lugarejo, perto de Santa Cruz do Rio Pardo, perto de Ourinhos.
Entendeu? Perto de Ourinhos, São Pedro do Turvo.
Em Santa Cruz do Rio Pardo tinha Escola Normal, Escola Normal Livre, mas papai
não queria que eu estudasse lá. Queria que eu estudasse na escola onde os professores eram
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concursados. Então, naquele tempo, tinha cinco Escolas Normais oficiais. Uma era a da
Praça da República, em São Paulo, e uma outra era a de Botucatu. A Escola Normal da Praça
era a oficial e a de Botucatu era como se fosse uma faculdade, entendeu? Por exemplo, o
nosso laboratório tinha esqueleto, mas esqueleto mesmo, que a gente morria de medo de pôr a
mão, tinha todos os ossos separados. Agora é tudo de plástico. Hoje tem a Escola de Medicina
de Botucatu.
Eu nasci em 1915 e meu pai queria que eu estudasse em uma Escola Oficial. Tinha
outra também em Itapetininga e acho que outra em Guaratinguetá. Eram cinco no estado
inteiro. As outras eram Escolas Normais Livres e papai não queria. Nessas Escolas oficiais, os
professores eram chamados em primeiro lugar para escolher cadeira, depois é que vinham
essas Escolas Livres. Entendeu?
Para falar a verdade, eu fui nova para escola. Eu passei na Escola Normal de Botucatu
com 13 anos, a escola era como se fosse faculdade, entendeu? Então, passava plenamente e
simplesmente. Plenamente com a vaga garantida, igual à faculdade hoje e simplesmente
ficava na espera de uma vaga, quando alguém desistisse.
Minha professora era a Dona Dília, mulher do seu Ataliba Pires, irmão do Cornélio
Pires, aquele poeta. Saí de São Pedro do Turvo para estudar em Botucatu, com treze anos.
Antes de ir para Botucatu, eu estudava nas Escolas Reunidas, era o Grupo Escolar.
Escolas Reunidas de São Pedro do Turvo. Uma escola muito adiantada. Depois, que eu
terminei a escola em São Pedro do Turvo, tive aula particular com um professor. Fiz o
primário e depois fui para o secundário, porque naquele tempo não tinha ginásio.
Para entrar na Escola Normal, tinha que ter quatorze anos, então, papai me deixou ir
para Botucatu para fazer o preparatório da Escola Normal, com a Dona Dília, que era
bibliotecária da Escola Normal. Ela dava aula particular e como eu tinha preparo, ela me
fez entrar como treineira para fazer o exame, para ver como era, e eu fui uma das primeiras.
Passei, mas não tinha idade.
Como eu passei, ela foi no Cartório e o homem do Cartório atestou que eu tinha anos.
Entrei com quatorze e comecei a lecionar com dezessete anos. Entrei na Escola Normal para
me formar professora, fiz quatro anos de Escola Normal em Botucatu. A gente até tinha que
por o cabeçalho: “Escola Normal Oficial de Botucatu”. Até tenho uns papéis ainda, aí, meus,
que eu guardo. “Escola Normal Oficial de Botucatu”.
Nessa época, eu era novinha de tudo e estava estudando porque eu e minha prima
prestamos concurso para a Faculdade de Arquitetura tinha três vagas. Passamos. Mas papai
não deixou, mulher naquele tempo não podia ser arquiteta, tinha que ser professora.
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Isso aconteceu em uma das férias que eu passei em São Paulo, com a minha prima.
Nós entramos, calcule, na Escola de Arquitetura, mas papai não deixou. Naquela época,
mulher não podia. Não podia ser médica, tinha que ser professora.
Um época, papai ficou responsável por alguns serviços públicos. Ele ia de vez em
quando em Santa Cruz do Rio Pardo, quando faltava advogado. Ele ia defender réu, ele era
rábula, por causa dele ser Bacharel em Ciências e Letras. Então ele, às vezes, de vez em
quando, ele ia advogar, às vezes, ele sabia mais que advogado.
Naquele tempo havia muita politicagem. Por exemplo, a minha família pertencia à
política do Ataliba Leonel, era uma espécie de família, eram todos da mesma política. E
tinham os políticos contrários. Tanto que mandaram matar meu avô de tocaia. Ele vinha da
fazenda e mataram ele de tocaia. Depois descobriram que foi um que era chefe político em
Santa Cruz do Rio Pardo, porque ele tinha ciúmes do meu avô, porque ele era semi-analfabeto
e meu avô era muito culto.
Papai também fazia discursos políticos. Tanto assim que nós demos muita risada uma
vez porque papai fez o discurso de um político e ele falou “essa cavarana políticae não
caravana. Ele não conseguia nem ler. A gente criticava muito.
Quando eu ainda estava em São Pedro do Turvo, não se discutia nada disso não, dava
mais era brincadeira, naquele tempo não tinha mentalidade para isso. Por exemplo, papai
assinava o “Estadão”, mas a cidade era pobre. Não tinha muitos professores, na escola que
eu estudava, as Escolas Reunidas. Os professores eram formados em Itapetininga. Naquele
tempo, Itapetininga era uma cidade muito falada. Não existia Bauru, não existia nada. Era
uma cidade que tinha escola de farmácia, tinha escola de odontologia. Era uma cidade muito
falada e os meus professores primários estudaram lá, tanto assim que eles eram de cor?
Porque os senhores deles puseram eles para estudar na Escola Normal. Tanto assim que,
quando foi para o bispo crismar a gente, papai falou: “cada um escolhe seu padrinho, porque
vocês que têm que escolher”. Eu escolhi a minha professora, a Dona Joaninha. Depois os
filhos dela estudaram tudo para médico, advogado, mas tudo era gente de cor.
Na escola tinha, por exemplo, gente que ia de manhã. Tinha o recreio. E no recreio a
gente brincava de roda, brincava de “pomba”: “uma pomba foi ao ar, quantas penas ela leva,
ela leva 24, 1, 2, 3, 4”. A que caia no quatro ia ser pique, entendeu? Tinha outra: “se essa rua,
se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de
brilhante, para o meu, para o meu amor passar”. Cantava esses músicas de roda e brincava.
201
Ai batia o sinal, terminava o horário de recreio e a gente ficava tudo em ordem, ficava
tudo certinho. Não tinha esse negócio, não! Ficava tudo certinho. Entrava para classe, era
carteira para duas pessoas. Não era carteira individual, era carteira dupla. Então, a gente
punha a bolsa ali, tudo, e ouvia as aulas. Não tinha, nunca vi negócio de xingar alunos, nem a
professora, era tudo educado, tudo certinho.
Eu gostava de História e Geografia. Eu gostava muito de História, eu sempre gostei
mais de ciências humanas, nunca gostei muito de ciências exatas. Esse negócio de matéria
atrai matéria, a quadragésima ao quadrado, não é comigo. Eu gostava de Português, gostava
de História, Geografia. História eu gostava, que História naquele tempo ensinava que o
Brasil foi descoberto por acaso, viu? Depois que eu entrei na Escola Normal, que meu
professor era um grande professor, era sociólogo, seu Silvio ele tinha uma inteligência rara
que eu fui ver que o Brasil não tinha sido descoberto por acaso. Daí, estudava o Tratado de
Tordesilhas: “o primeiro tratado não caia em terra, caia em mar então eles não aceitaram.
Depois foi o segundo tratado, daí então que fizeram a divisão. Depois ensinou que a carta de
Pero Vaz de Caminha não fala nada, não conta nada de deslumbrante. Foi uma carta simples.
Depois é que aqueles viajantes, os navegantes, foram levar a carta. Como é que eles chegaram
certinho no caminho? Como é que eles voltaram certinho, não é verdade?! Quer dizer que
tudo isso a gente estudava, antes da Escola Normal, sem saber. Depois é que o meu professor
que era muito inteligente explicou. Ele se chamava João Alfredo, era professor na Escola
de São Paulo, na escola da Praça da República, ele vinha de trem. Naquele tempo tinha trem.
Ele vinha de trem para Botucatu para dar aula pra gente. Depois, tinha o seu Candinho,
que era professor de Geografia, até tem uma coisa muito interessante, vou contar, você vai me
escutar. A gente estudava cartografia. Cartografia era, então, todos os estados do Brasil com
suas capitais, com os seus limites, suas produções. Então, estudava o Maranhão, capital São
Luis, era chamada Atenas brasileira, sabia? Porque é a cidade que mais deu escritores e poetas
para o Brasil. Ceará foi o primeiro estado brasileiro que libertou os escravos, terra de José de
Alencar. A gente sabia de tudo.
A gente estudava que São Paulo tinha muito desenvolvimento. Que aqui foi José de
Anchieta e padre Manoel da Nóbrega que fundaram a cidade. A gente estudava tudo isso de
São Paulo. São Paulo naquele tempo era cidade cafeeira. O estado que mais produzia café é o
Espírito Santo. Era a cidade onde mais se produzia a pita. A pita era uma árvore, cuja a casca
fazia corda, então, um nosso colega, ele falou, o seu Candinho falou assim: “no Espírito Santo
existe em abundancia a pita”. Então, um colega nosso pegou um bilhete e escreveu: “no
Espírito Santo abunda pita”. Todo mundo caiu na risada, mas ele queria saber quem é que
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tinha escrito. Foi o Zenon Fontes. Ele era nosso colega e escrachava com tudo, viu? Não
podia falar nada e o professor queria saber quem foi. Ninguém sabia. Foi suspensão geral. Eu
guardei isso na minha cabeça. A sala inteira foi suspensa, mas estava certo. Abunda é
produção em abundância, mas ele fez para brincar. Eu me lembro disso aí.
Da Bahia, nós estudávamos que era a terra do cacau, a terra de Rui Barbosa. Então, a
gente tinha que estudar as pessoas importantes, entendeu? Então eu gostava muito...tinha que
estudar todas as pessoas mais importantes do Brasil.
E eu era externa. Não tinha internato. Eu tinha que morar numa pensão e ir para
Escola do governo. Não tinha internato. E lógico que a Escola do governo era muito melhor,
era a Escola Oficial. Eram cinco Escolas Oficiais, eu tinha entrado. Era difícil entrar. Tanto
assim que eu falei que entrava plenamente e simplesmente. Então era muito difícil de entrar.
Eu também estudava física, química. Fazia aula de trabalhos manuais. Tinha aula de
califazia, sabe o que é califazia? É a arte de bem falar. A professora tinha que ler livros e na
aula de Português, de califazia, tinha que ler ali na frente, em voz alta, para pegar dicção,
porque ela ia ser professora, entendeu? Precisava falar corretamente, saber recitar poesia, para
desembaraçar mais a voz e tudo. Até hoje eu sei. Outro dia eu recitei algumas. Eu lembro:
Olha essas velhas árvores, mais belas do que as árvores novas, mais
amigas. Tanto mais belas quanto mais amigas. Vencedoras da idade das
trocelas. Em sua sombra o homem descansa e em seus ramos abrigam-se as
cantigas. E na alegria das árvores amarelas, não choremos jamais a
mocidade, envelheçamos rindo. Envelheçamos como essas árvores
envelhecem, na glória da alegria e da bondade. Dando alimento aos
pássaros nos ramos e dando sombra e consolo aos que padecem.
É de Olavo Bilac. Senão aquela:
Quando partimos no verde dos anos, da vida, pela estrada
florescente, as esperanças vão conosco, à frente. Os desenganos vão ficando
atrás. Rindo, cantando; célebres, lutando. Vamos marchando
descuidadosamente. Eis que a velhice chega de repente, desfazendo ilusões,
matando a saudade. E então, olhando para trás, vemos o quanto a existência
é rápida e fugaz. E, vemos que acontece exatamente o contrário dos tempos
de rapaz: os desenganos vão conosco, à frente, as esperanças vão ficando
atrás.
Esse é de um padre que eu esqueci o nome. E aquela do dia da avó:
Ai vovó, que hoje é tão fraca e velhinha. Teve tantos
desenganos, ficou branquinha, branquinha, com os desgostos
humanos.
203
Então, a gente tinha que recitar e tinha que ler também um livro de Machado de Assis,
um livro de Jode Alencar. Eu me lembro tanto de Iracema... Uma parte da Iracema, de José
de Alencar, a gente tinha que ler. Pegava da biblioteca e lia o livro. E na aula de califazia, a
arte de bem falar, tinha que treinar a dicção.
E era tudo misturado. Mulher e homem eram tudo a mesma coisa. Era tudo junto. A
classe era mista.
Você calcule que antes do professor chegar ia um funcionário para arrumar tudo. E na
aula de Biologia, esse Zenon Fontes põe um charuto na boca do esqueleto. A gente adorava
ele, porque ele matava a gente de rir, sabe? Eu não podia nem olhar na cara dele. E tinham
seis rapazes na sala, que tinha mais umas vinte e poucas alunas.
Acho que tinham poucos rapazes, mas eles podiam continuar estudando. O Zenon, por
exemplo, continuou o estudo. Outro, o Jairo, por exemplo, foi ser médico. O estudo continua.
Eles continuavam estudando. As mulheres, não. Estudavam para ser professoras. Nenhuma
continuou estudando. Eu não falei para você que eu passei e papai não deixou eu estudar. Não
deixava. E depois, estudar na Escola de Botucatu, por exemplo, em Escola Oficial, era uma
coisa de outro mundo. Tanto assim que eu me lembro de umas reuniões que o professor fez
aqui e um dia eu conversei com uma professora, uma professora de Português, em Presidente
Prudente, eu falei; “faz tempo que você leciona Português?”, e ela falou: “fazem três meses”.
Se você estivesse na minha classe, não cometia esse erro. Porque, vosabe, é um erro, não
é? Por quê? Porque o verbo fazer, quando indica tempo está no impessoal. E igual o havia e
haviam, está errado. Eu não falei nada para ela, fiquei quieta.
Eu lecionei vinte anos aqui em Je no quarto ano a gente dava aula de História,
Geografia, Ciências, tudo. Hoje, a professora dá aula de Geografia, outra dá aula de História e
a que dá aula de História não sabe Geografia, a que dá Geografia não sabe História, entendeu?
Olha Ronaldo, até para ensinar hoje, eu vejo, porque eu converso muito com esses
alunos da Academia, as professoras não põem mapa na frente dos alunos. O estado de São
Paulo fez 250 anos, não é? No grupo da terceira idade no SENAC, eles falaram: “vamos dar
uma aula para os jovens sobre o descobrimento do Brasil”. Eu falei: “eu dou, mas se
puserem um mapa na minha frente”. Puseram um mapa do Brasil, um mapa-mundi. Porque
Pedro Álvares Cabral passou nas costas da África, onde fica a África? Não é? Hoje o aluno
estuda pelo caderno, por isso que eles não sabem.Outro dia, chegou um aluno aí e eu falei: “o
que você está estudando?” Ele respondeu: “Ah, eu estou estudando a Ásia.” Falei: “O que está
estudando?” Ele: “Estudando a Mesopotâmia.” Eu falei: “o que é Mesopotâmia?” Você sabe?
Por que chama Mesopotâmia? Porque fica entre dois rios. É uma palavra grega. Fica entre
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dois rios, o rio Tigre e o Eufrates. E onde está a cidade? O Iraque? O Irã? Em cima. Aqui, o
rio Tigre, o Eufrates, aqui fica a cidade de Ur, onde nasceu, de onde veio Abraão, que a gente
na Bíblia de Abraão, não é? Que Abraão era casado com Sara e ele não tinha filhos. Ele
queria um filho. Então ele teve filho com a Dara, com a escrava dele, então Deus fez um
milagre, deixou a Sara grávida. A Sara mandou a Dara embora, com os escravos, a Dara teve
um filho chamado Ismael e deu origem aos turcos, os esmaelitas. E a Sara deu origem aos
judeus. E Abraão fez o templo de Jerusalém. Então, os judeus acham que eles são donos do
templo de Jerusalém porque eles são descendentes diretos, mas os turcos acham também que
eles têm direito, porque eles também são descendentes de Abraão. Então, vem essa briga até
hoje, entre palestinos e judeus. Entendeu? Então são essas coisas que a gente estudava.
Eu me formei na Escola Normal em 1932. Ano da Revolução. Nossa Senhora... A
Revolução de 32... Eu tinha dezessete anos. Todos os meus colegas se alistaram. Meu irmão
também, porque foi uma revolução bonita, porque os paulistas tinham pavor de Getúlio
Vargas, entendeu? Getúlio fez muito... muita coisa para o estado de São Paulo. Tanto assim
que ele acabou com o café. Em 1929, houve aquela crise do café, os fazendeiros perderam
fazenda, aquela coisa toda. Nós queríamos uma Constituição. E houve a Revolução, para
haver uma Constituição. Para haver uma eleição democrática. Meu irmão se chamava Nelson
Guimarães e morreu um Nelson Guimarães e foi uma choradeira em casa, uma coisa...
Depois, no fim, não era, era xará. Era outro Nelson Guimarães quem morreu.
Os gaúchos tomaram Botucatu. Fizeram da Escola Normal um quartel general. s
tivemos que sair. Papai foi nos buscar com um salvo conduto. Tivemos que ir para São Pedro
do Turvo. E eu ainda não tinha me formado. Interrompi o ano. Isso no ano em que eu ia me
formar. Mas a Escola Normal não podia parar, não é? Então, continuou no Colégio dos Anjos,
porque a Escola Normal, o prédio, estava com os gaúchos, como quartel general dos gaúchos.
Mas eles até fizeram um desfile de tropa que a gente achou muito bonito, porque os cavalos
eram todos iguais, até com a mesma mancha, uma coisa que eu achei muito interessante.
Agora nós, as alunas, ninguém conversava com os gaúchos. Tinha até estudante gaúcho no
meio deles, mas ninguém conversava. Se uma colega da gente conversasse com um gaúcho,
ela ficaria no gelo, ninguém conversava mais com ela.
Depois, eles tomaram a cidade de Salto Grande, que é pertinho de São Pedro do
Turvo. Assaltaram a cidade de Salto Grande. Nós estávamos em São Pedro do Turvo e
tivemos que fugir para fazenda de papai. Então, fugimos para fazenda, de medo, porque eles
estavam em Salto Grande. Estavam em outra cidade, na divisa do Paraná, atravessaram a
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ponte e assaltaram a cidade de Salto Grande. Tenho tudo aí, ahistória. Como estavam em
Salto Grande, nós ficamos com medo que eles fossem em São Pedro do Turvo.Então, nós
tivemos que fugir para fazenda, tivemos que fugir na Revolução de 32.
Todos de casa foram. Todos os meus irmãos foram. Fomos em onze, menos aquele
que estava na Revolução, ele não foi. Depois foi acalmando, voltamos. Naquele ano não
tivemos nem formatura. Não fizemos formatura porque a Escola Normal estava tomada pelas
tropas gaúchas. Nos formamos sem fazer festa. Não houve festa na formatura.
O poeta da Revolução era Guilherme de Almeida.
Naquele tempo, faltou dinheiro para os paulistas, para comprar armas. Então eles
pediram ouro. Eles iam de casa em casa buscar. Minha mãe, meus pai,s deram as alianças,
deram tudo para ajudar. Mas foi uma Revolução bonita, porque os paulistas se uniram
mesmo, viu? E até Guilherme de Almeida escreveu um soneto, eu acho que sei um pedacinho:
“Moeda paulista, moeda paulista, feita de alianças/ Feita do anel com que Nosso
Senhor abençoou na vida das esperanças/ Feita de tudo que restou do amor, quanto vale essa
moeda?/ Vale tudo de ouro, realiza um grande ideal/ Ela vale aquele sacrifício mudo, naquela
integridade”
Entendeu? Mas ele fez essa, esse soneto. Guilherme de Almeida era o poeta da
revolução de 32. Depois da Revolução começou a voltar à vida normal. Daí eu já fui lecionar.
Você sabe por que o Getúlio entrou? Porque tinha muito nortista. E outra coisa, eu
fiquei com uma raiva, você é mineiro ou não? Eu fiquei com uma raiva de Minas Gerais na
Revolução de 32. Fiquei com uma raiva de mineiro. Eles ficaram do lado do Getúlio e
falavam café-com-leite. República do café–com–leite.
República café-com-leite era Minas e São Paulo, mas eles queriam que fosse nomeado
outro presidente. Então, foi nomeado Júlio Prestes, que era paulista. Eles não gostaram.
Depois houve aquela revolta contra o Getúlio e eles então foram a favor de Getúlio, contra
São Paulo. Por isso aquele poeta, Guimarães Rosa, como é que é? Não, Guimarães Rosa,
aquele escritor mineiro... eu não lia o livro dele de raiva. Porque eles foram contra São Paulo.
Minas Gerais fez a coisa mais absurda do mundo, São Paulo ficou sozinho. Por isso que
perdeu. Perdeu mas fizeram a Constituição, não é? Mas a Revolução de 32 foi uma Revolução
muito bonita para os paulistas. Porque os paulistas todos se reuniram. Se mobilizaram.
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Na educação, não teve muitas modificações porque cada estado tinha o seu jeito, sua
escola, sua política. Era tudo a mesma coisa. Tanto assim que até hoje é assim, não é? Em
Pernambuco é de um jeito, aqui de outro jeito.
Professora, naquele tempo, tinha que fazer estágio. E as professoras formadas em
Escola Oficial eram chamadas em primeiro lugar para escolher. Depois, eles iam para as
Escolas Livres. Então, eu fui chamada e tinha que ir para o sítio, não é? Mas eu não fui para o
sítio. Como tinha nota mais ou menos boa, eu fui para um lugarejo, era um distrito, chamava
Caçador. Hoje chama Ubirajara. Virou cidade, perto de Bauru.
Naquele tempo, era chamado Caçador, por causa do Correio – duas cidades não
podiam ter o mesmo nome. Então, a cidade mais velha ficava com o nome e a cidade mais
nova tem que mudar. Aqui, Bica de Pedra, é Bica de Pedra, já ouviu falar, não viu? Bica de
Pedra era mais velha, então ela teve que mudar de nome, Itapuí, quer dizer, palavra indígena
que quer dizer Bica de Pedra. E Caçador teve que chamar Ubirajara. Ubirajara era índio
caçador. Eu falo muito, não?
Botucatu também é palavra indígena, quer dizer bons ares. Araraquara eu não sei. Eu
sei começando com Ita, ita é pedra, entendeu? Itapetininga é pedra... é pedra que canta, uma
coisa assim, é uma pedra.
Então, eu não comecei em sítio, mas em lugarejo, distrito de Caçador. Agora é
município. Era distrito de São Pedro do Turvo. Quer dizer, eu fiquei pertinho de casa.
Naquele tempo, tinha jardineira. Jardineira era um ônibus que você entrava de lado,
assim. É igual ao bonde, assim. Entrava de lado, assim. Tinha banco, aqui tinha banco, aqui
tinha banco, você ia entrando, não entrava por lá, entrava assim. Isso mais ou menos em 1933.
No início, eu comecei alfabetizando. Eu comecei a alfabetizar as crianças, depois dava
aula de religião também, porque não tinha igreja, não tinha nada, então achava que aula de
religião tinha que dar. Depois a minha escola não tinha o que fazer lá, então eu inventava as
coisas, viu? A minha escola tinha um terreno assim, eu arranjei um senhor para fazer uns
canteiros lá, para que meus alunos plantassem uma hortinha. Faziam trabalho manual, faziam
outras coisas, também. Naquele tempo fazia tudo sozinha, depois é que foi transformado em
grupo. Mas depois de uns cinco anos. Lecionei lá até 1938, mais ou menos. Sozinha, como
professora.
Era uma escola de tábua. Eu quando fui lecionar era uma casa de tábua. Não tinha luz
elétrica, era lampião de querosene. o tinha esgoto e era poço. A gente tomava banho com
caneca. E morava na cidade, não dava para voltar, porque naquele tempo não tinha estrada. A
estrada não era asfaltada. Era estrada ruim. Ficava a semana inteira e de sábado ia dar aula
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também. Domingo eu ia para casa e voltava segunda-feira de manhã, dava aula à tarde. Era
assim. Dava aula na classe mista, até o terceiro ano. Quarto ano não tinha. Mas o terceiro ano,
naquele tempo, era melhor que o quarto ano de hoje, não é? Era a primeira, segunda e terceira,
depois terminava. Tive um aluno que se chamava Flávio, hoje ele tem fazenda em Curitiba.
Formou-se, mas depois continuou e eu mudei, vim para cá.
Eu fiquei conhecendo meu marido lá, em Caçador. O pai dele tinha fazenda lá e tinha
posto um armazém que vendia algodão, vendia feijão, tinha caminhões. Conheci ele e
depois nós nos casamos e continuamos lá também.
Me casei em 37 e fiquei morando em Caçador. Fiquei quase 10
anos. Não, mais dez
anos, porque estava quando era solteira, contando tudo. Depois de casada, acho que eu
fiquei uns quatro anos só, porque depois eu tive os meus filhos e não tinha escola. O
Renato, meu filho, ficou interno aqui, no Colégio dos Padres. Então, nós mudamos para cá.
Daí nós vendemos uma casa e essa casa nós construímos. Eu que fiz o desenho da casa.
Peguei uma americana chamada House e fui olhando. O construtor era um italiano que
morava ali. Sabe italiano como é que é, não é? Por isso tem muito mármore em casa. Porque
ele era italiano e queria mármore de Carrara, então foi preciso comprar uma pedra grande. E o
homem fez escada, soleira, tudo de mármore de Carrara.
Mas quando eu mudei para J não vim diretamente aqui. Naquele tempo, eu fui
lecionar no Banharão, numa estaçãozinha que era distrito de Jaú. Fui lecionar no Banharão,
depois troquei a vaga com uma senhora que ia se aposentar e ela quis vender. Naquele tempo
podia trocar, não é? Então trocamos. Mas eu tive que pagar, entendeu? Tive que pagar para
ela, para fazer a troca. Então, trocamos: eu vim para o Major Prado e ela foi para o Banharão.
Mas logo ela já se aposentou. Isso, mais ou menos, em 1944.
Aqui no Major Prado, comecei a lecionar no quarto ano. Naquele tempo, no quarto
ano tinha que ter um vestibular para o ginásio, não era assim oitava série, não. Era quarto ano
e depois primeiro do ginásio, mas tinha que prestar o vestibular. Então, quem era professora
do quarto ano, era igual o COREM, não podia sair da linha, porque ficava feio o aluno não
passar. Por exemplo, o vice - prefeito daqui foi meu aluno do quarto ano e passou. A minha
aluna, a mulher do doutor Carlito, a Regina, foi minha aluna, também passou. Então, os
professores de ginásio do estado punham os alunos do quarto ano para fazer comigo, porque
eu dava aula mesmo, entendeu?
Quem já tinha alguma formação entrava na Escola Oficial do Estado e quem não tinha
na Escola Normal Livre. Quem não tinha condição de pagar ou não tinha formação, parava de
estudar. Parava.
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Do lado de lá, do lado da Sorocabana, o pessoal se dava muito, um cumprimentava o
outro. Eu cumprimento todo mundo que passa na rua, mendigo, todos, eu falo: “boa tarde” e
tudo, “fica com Deus” e tudo. Aqui não, quando eu cheguei aqui em Jaú, preto não entrava no
jardim, você sabia disso? Preto não entrava no jardim. É um preconceito de raça desgraçado.
Isso em 1944 mais ou menos. Dizem que o Pelé foi brecado aqui no Jahu Clube. E tinha
preconceito até com gente que era de fora.
Quando eu vim para cá, uma colega falou para outra: “Ai, não devia vir gente de fora,
Jaú é dos jauenses”. Uma vez eu peguei o trem – primeiro só tinha trem para São Paulo – indo
para São Paulo e o gerente, aquele homem que toma os bilhetes, que vai ver os passageiros,
uma espécie de gerente, falou: “de onde a senhora veio?”. Eu falei: “estou vindo de Jaú”
tinha um lugar separado, assim, tinha cabine separada, tudo diferente, sabe? – ele falou assim:
“não fala Jaú não, fala igual a jauense, fala de Jaóóó como se diz, né?Ele estava querendo
dizer que tem mania de família aqui, família Almeida Prado, família não sei o quê, é família
isso, é família aquilo, eram muito orgulhosos.
A minha irmã era inspetora de alunos, diretora de grupo e inspetora, e o meu cunhado
era delegado de ensino. E uma vez ele disse: “Eu, em vez de sortear quem vai fazer a ata, vou
escolher uma professora. Vou chamar a professora Nilza Guimarães Carboni, ela veio de fora
e ela vai fazer a ata para s, em vez de sortear, ela vai fazer a ata”. Porque erravam muito,
em português, na ata. Entendeu? A gente tomava o trem para ir para o Banharão e tinha umas
quatro professoras que ele chamava também, daquele lado. Então uma Almeida Prado disse
para outra: “oh, sabe porque ele escolheu você? Porque ninguém quer saber de fazer a ata”.
Falei: “não senhora, é porque eu sei fazer ata”. Deu comecei a me impor, sabe, entendeu?
Entendeu? Daí eu tive que me impor. Porque se eu não me impusesse, eu tomava sempre
aquilo, não é? Entendeu?
Jaú agora está diferente. Mudou bastante, viu? Naquele tempo não casava com filho de
italiano, nem nada. Nada disso. Agora mudou. Por isso que a cidade modificou um pouco e
por isso que Bauru foi para frente, que é mais novo do que Jaú, e Jficou naquela coisa
assim. Quando eu mudei para não tinha Escola Oficial. Escola Normal, não tinha. Não
tinha ginásio oficial, nada. Era dos padres e das freiras.
E o pessoal nem estudava. Não estudava porque não tinha dinheiro para pagar pela
escola. Quem fundou a Escola Oficial aqui foi o doutor Luiz Liarte, que era filho de espanhol.
Ele foi prefeito aqui e fundou o Ginásio do Estado. Porque em Santa Cruz do Rio Pardo,
tinha ginásio, e na cidade de Jaú não tinha. Por quê? Porque os Prados estudavam lá no
colégio das freiras, no colégio dos padres, e quem pudesse estudar, estudava, quem não
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pudesse, não estudava. Quem não pudesse estudar, tinha que se virar. Agora que a cidade
modificou, mas assim mesmo ainda tem...
Você não que agora tem gente que estuda. O filho da minha empregada, olha, é
outra coisa. Tenho uma faxineira que está comigo vinte e um anos, quando ela veio em
casa, o filho dela estava na rua. Ela era empregada desse pessoal, nunca ninguém ligou.
Quando eu vi que o filho dela estava na rua, eu falei: “ué, Claudete?Porque ele não era
registrado, então não podia entrar na escola. Para ela registrar tinha que pagar multa. Então,
eu com minha a filha, fomos na delegacia, pedimos um atestado de pobreza para o delegado e
registrei os filhos dela. Registrei quatro e pus na escola, entendeu? E ela teve o último filho
dela em casa. Hoje, ele está na oitava série, mas eu fico em cima dele, entendeu? Os outros
fizeram... aprenderam a ler e escrever, mas depois saíram da escola, saíram depois do ginásio.
Eu arrumei tudo, eu que fiz isso, porque ninguém fez antes.
Eu não me lembro quando o ginásio do estado veio para cá. Não lembro direito. J
era mais velha, mais antiga e em Santa Cruz do Rio Pardo tinha ginásio do estado, e aqui
não. Mas também não lembro quando o ginásio foi para lá. Em São Pedro do Turvo, não tinha
ginásio do estado, eram as Escolas Reunidas, nem Grupo Escolar era. Mas naquele tempo,
as Escolas Reunidas funcionavam igual Grupo Escolar.
Os alunos entravam no primeiro ano do primário e faziam até o quarto ano. Ai, no
quarto ano tinha um vestibular para o ginásio e faziam quatro anos no ginásio. Depois, fazia
aquele, como é que chama? Como é que é mesmo? Ah meu Deus do céu... deixa eu perguntar
para minha filha.
Depois do ginásio tinha o científico. O científico era para quem queria ser contador. Se
não queria, fazia o normal, que era para ser professora. Então havia, depois do ginásio, o
científico para quem queria fazer para médico, para fazer outras coisas e o curso normal.
Em todo lugar era escola mista. Aqui também. Só no colégio das freiras, por exemplo,
é que era só de mulher, no colégio dos padres, de homem. Só escola particular. Mas escola
particular só se for de ensino religioso, mas se não for de ensino religioso também era mista.
As do ensino religioso tinham essa diferença. Das freiras estudava mulheres e dos
padres estudavam os homens. Até meu filho, antes de criar o ginásio do estado, ele ficou
interno no colégio dos padres. Depois, criou o colégio do estado. Depois, minhas filhas todas
foram para o colégio do estado, porque os professores eram concursados, entendeu? Tanto
assim que essa que é professora da faculdade de Santo André fez aqui e ganhou cadeira e
prêmio também, contei para você?
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O filho dessa minha filha estuda na USP, na Politécnica. A outra, fez a UNESP e
formou-se em medicina e o outro, formou-se em medicina em Mogi das Cruzes. Esse de Mogi
das Cruzes formou-se em medicina, prestou exame para residência e passou, está em
Carapicuíba. A outra, prestou também exame para residência, a da UNESP, no mesmo ano
passou e pegou o hospital do Servidor em São Paulo, ela já fez um ano de residência. Depois,
prestou exame num concurso para médico e passou em primeiro lugar. Pegou geriatria no
Servidor também.
Me aposentei como professora em 1963. Me aposentei e criei netos, onze netos. Agora
são quatro bisnetos. Eu ainda ajudava meus bisnetos na escola. Eles estudavam em São Paulo,
no colégio São Luiz. Mas eles vinham aqui: “Ah, vó, ensina isso aqui pra mim”. Eu dava aula
para eles. Dei aula também para a filha do Ricardo, do doutor Ricardo, dei aula para minha
neta. Eles tinham dificuldade quando estavam no ginásio. Elas vinham aqui, eu dava aula, não
cobrando, dava aula, eu sempre gostei de ensinar.
Naquele tempo, as pessoas se locomoviam por meio de cavalo. Por cavalariça.
Naquele tempo, pouca gente tinha carro. Pouca gente mesmo tinha carro. Carro era Wolks.
Depois, também tinha um carro, eu esqueci o nome do carro, que era... não sei se é da
Bélgica, não sei se... até não tínhamos aqui um...era um nome diferente, naquele tempo não
tinha fabricação no Brasil. Tinha que vir de fora. Igual a geladeira, a gente tinha que entrar na
fila. Tenho geladeira daquele tempo ainda, 67 anos. Se meu marido fosse vivo, dia 20 de
janeiro agora fez 68 anos de casado.
Então, naquele tempo era comida brasileira, era arroz, feijão, usava muita carne de
porco, não é? Leitoa, leitoa assada, não é? Pernil. Muita gordura de porco, não tinha óleo, era
gordura de porco. O azeite era português, não tinha óleo, usava muito azeite em salada, essas
coisas, mas era azeite português, naquele tempo não tinha óleo. Naquele tempo, não tinha
soja, não era nem conhecida a soja, era azeite, azeite de oliva que se usava.
O trabalho principal era na lavoura. Lavoura de café, lavoura de feijão, lavoura de
milho, lavoura de arroz. Ali no Vale do Paranapanema, era muita lavoura de arroz. E até hoje,
ali no Vale do Paranapanema, muita lavoura de grãos. Ainda tem, persiste ainda. E no
começo, era tudo escravo que trabalhava, depois eram os colonos. Papai foi colono.
A convivência com os colonos era tranqüila. Eles criavam, todos criavam, aves,
galinhas. A comida era até melhor do que hoje, mais farta. Porque todo mundo tinha o quintal
211
da casa, criava galinha. Hoje você não mais ninguém criando galinha em casa, nem nada.
De primeiro, todo mundo tinha aquele colosso de galinha, galo cantava de madrugada.
E esses colonos estudavam em São Pedro do Turvo, todo mundo junto. Não tinha
distinção. Na minha casa, a minha mãe nos criou assim, sem preconceito. Tanto assim que a
minha faxineira aqui tem vinte e um anos, ela é preta, tem vinte e um anos que está comigo.
De vez em quando, eu fico aí fora, ela vem, me abraça. Não tem preconceito.
Naquele tempo, nós tínhamos aula com professores que ficavam fazendo estágio na
classe da gente. Tinha que fazer estágio. Então, ficava na classe da gente. Eu nunca tive. Uma
das estagiárias da minha classe era filha do reverendo Luiz, ele era protestante, eu dava aula
de religião, sou católica, o que você é? Eu dava aula de religião e falava: “Zilá, pode sair
bem”. Ela: “não, eu quero ver a aula de religião da senhora”. Ninguém saia na minha aula de
religião porque eu dava mais coisas de moral, entende? Então, pregava aquelas coisas de
Jesus Cristo sobre moral, sobre essas coisas, sabe? Então eles gostavam, não saiam. Assistiam
à aula, não saiam.
Na época da guerra, não tinha nenhuma conversa sobre isso. Para nós, para os
paulistas, não foi importante. A Revolução foi muito mais importante. Não conheci ninguém
que foi para Segunda Guerra. Não foi quase ninguém, também. Teve pouca repercussão por
aqui. Foi mais na europa. Agora não mandaram um pessoal para o Haiti? Não mandaram para
o Iraque? Como é, gostou da história?
Em São Pedro do turvo, a gente se reunia no Grupo Escolar, que tinha uma espécie de
cenário não tinha cinema então a gente fazia teatro, nós mesmos. Hospital não tinha,
tratava em casa. Nós mesmos. Era mais homeopatia. Naquele tempo era assim. Aqui em Jaú
também. Na própria farmácia fabricava remédio, entendeu? Era farmácia de manipulação. Já
em São Pedro do turvo não tinha, tanto assim que eu tive os meus quatro filhos com parteira,
nada no hospital. Todos nasceram lá, só um que nasceu aqui em Jaú, mas também de parteira,
com a Dona Lídia. Meus três mais velhos nasceram em São Pedro do Turvo, que mamãe
queria que ficasse na casa dela, e a minha última foi aqui em Jaú, nasceu em casa também,
com uma parteira particular.
Quando eu era professora, tinha que seguir o programa de ensino que vinha de São
Paulo. Vinha o programa para todas as escolas. Tinha as matérias do primeiro ano, do
212
segundo ano, do terceiro ano e do quarto ano. E a gente mesmo que escolhia o livro. No meu
tempo, eu que escolhia o livro. Aqui mesmo em Jaú. E em Ubirajara era a mesma coisa. Às
vezes, escolhia o livro mais fácil, a gente procurava, assim, um livro que fosse mais adaptado
à criança. Então, a gente procurava assim, por exemplo, na alfabetização, a gente procurava
um livro mais fácil de alfabetizar. Não tenho os livros que dava aula, mas tenho uma
biblioteca. Esse aqui é um livro de uma história que uma camponesa de Santa Cruz do Rio
Pardo contava. Ela contava para uma pessoa que ia escrevendo. Esse aqui é o livro que a
minha filha escreveu. Você já ouviu falar na Cora Coralina? Olha aqui a dedicatória dela para
mim:
“Três de janeiro de 85. Tenho 95 anos e estou vivendo o melhor tempo da minha vida,
moro numa cidade cheia de fantasmas, como milhares de tantos que se foram para outro lugar
da vida, a vida é boa em todas as idades, saiba viver. Cora Coralina”.
Sabe quantos livros eu tenho? 320. Esse aqui foi minha filha que escreveu, agora meu
neto também escreveu um. Esse meu neto está fazendo doutorado na USP. Ele é professor na
USP, é filho do Renato, o Guilherme, não sei se você conhece o Guilherme Carboni? Agora
ele está fazendo, parece que ele está fazendo doutorado, mas ele é professor da FAAP,
entendeu? Ele fez advocacia na São Francisco.
Estou demorando para achar os livros aqui... Estou demorando para achar, porque
fizeram uma confusão aqui. Mas você quer perguntar mais alguma coisa?
Grupo Escolar Dr. Cardoso de Almeida – a partir de 1911
manteve um Curso Normal
213
214
A
NTONIA DE
M
ARIA
M
ARQUIZEPPE
58
Tenho 92 anos e faço aniversário no dia 19 de agosto. Não morei sempre em Lençóis,
não. Morávamos no sítio que ficava em Paranhos. Chamava Paranhos a estação que passava
lá. Passava a linha do trem, mas nós morávamos retirados dali. Uma meia hora onde era o
sítio do meu pai. O sítio do meu pai tinha o nome de Olho D’Água, porque tinha bastante
mina. Tinha mina que era uma coisa! Tinha e tem, porque o meu sobrinho mora lá, ainda.
Os meus pais nem sempre moraram lá. Meu pai o era brasileiro. Ele era imigrante.
Era italiano, de Nápoles. Mas eu não me lembro de nenhuma história que ele contava. Ele
falava em brasileiro, ele não contava nada em italiano. Ele veio novo para cá, acho que com
oito anos. Aprendeu a falar tudo em brasileiro, não falava nada em italiano. Minha mãe
também não era brasileira. Ela era da Calábria. Mas eu nasci aqui no Brasil, sou brasileira.
Compraram o sítio mais ou menos em dezesseis, quando eu tinha três anos. E eu passei a
minha infância sempre lá, até a idade de seis anos. Eu ficava com a mãezinha, mas depois ela
faleceu. E ela não estava velhinha, faleceu nova, tinha trinta e sete anos. Ficou doente, mas eu
não me lembro de quê. Eu era novinha, seis anos. Meu pai e meu irmão é que tomaram conta
de mim.
Daí, seis meses que minha mãe faleceu, casou meu irmão. Eu tinha uma irmã que era
mais velha do que eu, com onze anos e uma irmãzinha com seis meses. O meu irmão tinha
dezoito anos, casou, e minha cunhada veio morar com a gente e fomos se criando ali.
Morávamos todos juntos. Sempre. Sempre juntos, enfrentando a vida, trabalhando.
Meu pai tinha bastante criação. A gente tratava de galinha, porco, de cabra. Colhia na
roça o milho, o feijão, a mamona. Você conhece a mamona? A gente plantava mamona. Meu
pai apanhava a mamona, eu pegava da mão dele e fazia um monte de bandeira, para outra
irmã vir, pegar e levar no terreiro. Plantava bastante milho, também. Nós debulhávamos o
milho; de noite íamos descascar milhos. Também plantava algodão, café, feijão.
Nós pegávamos o milho, o feijão, o algodão e vendíamos para os compradores que
vinham de São Manuel. Café, era outro comprador. Às vezes, meu pai beneficiava em
Paranhos – que tinha a máquina de benefício – e mandava para Santos. Tinha dezoito mil pés
de café. Era trabalho... Trabalhava o dia inteiro; o dia inteiro trabalhando. Deus o livre, quanto
trabalho! E desde pequena eu trabalhei na roça. Mas tinha mais gente que ajudava. Tinha os
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Entrevista realizada na residência da depoente, na cidade de Lençóis-Paulista, no primeiro semestre de 2005.
Teve duração aproximada de 1 hora. Faleceu alguns meses após a entrevista e a Carta de Cessão foi assinada por
um familiar.
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colonos. O sítio era só do meu pai, mas ficava todo mundo trabalhando junto. Sempre
trabalhando.
Quando nós estávamos no sítio, nos trabalhávamos muito. Trabalhava o dia inteiro e
quando chegava à tarde, arrumava tudo. De domingo, descansava um pouco. Mas trabalhava
de domingo, também. Meu pai tinha bastante porco e ele queria limpar o mangueirão, então
de domingo cedo ele falava: “Hoje tem um serãozinho, vamos limpar o mangueirão”. Então,
de domingo tinha o serão. O serão dos porcos. Então, não dava tempo para passear, não. E
também não tinha lugar para passear. Eu ficava no sítio. Passear era difícil, muito difícil.
Meu pai levava na missa, em São Manuel. Conhece São Manuel? Dali de Paranhos uns
quarenta minutos de trem para chegar em São Manuel. No dia de Pentecostes, ele levava a
gente para assistir a missa, uma vez por ano. Depois de um tempo, íamos para Alfredo
Guedes, onde construíram uma igreja, a de Bom Jesus. tinha missa uma vez por mês
porque o padre celebrava missa uma vez por mês e nós íamos a pé, era uma hora para
ir e uma hora para voltar, caminhando. Nosso sítio ficava perto de Alfredo Guedes. Era em
Paranhos, mas ficava perto. Eu tinha alguns amigos que iam junto para as missas. A gente
gostava de ir junto. Íamos a missa, depois voltávamos. Éramos todos sitiantes. Eu ia com três
filhas moças de um colono do meu pai.
Meu pai tinha uma família grande, mas minha vó morava longe, era difícil da gente se
encontrar. Tinha bastante tio também, mas moravam tudo longe. Eles moravam na fazendo do
Bosque. Depois, meus tios foram casando... Inclusive, um morou no sítio do meu pai, ele era
irmão da minha mãe. Mas, depois foi embora, foi para longe em Echaporã. Eu tinha bastante
parente, mais moravam tudo longe. Aqui, tem também, ainda. Mas moram longe também. Eu
tenho uma tia, uma irmã da minha mãe, que teve dez filhos homens e só uma mulher. Naquele
tempo, tinha bastante filho. Nossa Senhora! Mas tinha bastante fartura, bastante coisa para
comer.
Meu marido também tinha parente, tinha mais irmãos. Tinha um que era irmão
mesmo, antes de morrer o pai. Depois, que a mãe dele casou de novo, teve mais cinco irmãs e
dois irmãos. Todos moravam no Paraíso. Depois, foram casando, morrendo... Eu não conheci
o pai dele de verdade, o padrasto. E a mãe, também não conheci, não sei porque..., acho
que a gente morava longe. E ela morreu antes de nos casarmos. Morreu nova também, de
parto.
Morria muita gente nessa época, falta de recursos. Naquele tempo, não tinha muito
recurso. quem tinha recurso eram os fazendeiros que vendiam as terras para os sitiantes,
para os colonos. E depois que vendiam, o fazendeiro não tinha mais nada a ver com isso. E
216
hospital, em São Manoel, era o mais perto. Quando ficávamos doentes, fazia um chazinho.
Tomava o chá e ficava na cama para curtir a febrinha, não é?! Esperava passar a gripinha. E
se não passava... Era difícil ir para o hospital. Hospital, hospital mesmo, tinha em
Botucatu. Em São Manoel, nem era um HOSPITAL. Mas nós nunca fomos para Botucatu.
Teve uma cunhada minha que operou do rim, mas foi em São Manoel mesmo. Parto era tudo
em casa, tinha as parteiras.Conheci várias. Meus filhos nasceram tudo com parteira. Nos
sítios, sempre tinha uma dona mais velha que era parteira. E elas ganhavam para fazer os
partos. Tinha que pagar. Eu não sei quanto ou o quê pagava, porque era tudo meu marido que
via essas coisas, mas pagava sim. Era serviço delas, elas viviam disso.
Mas mesmo com poucos recursos, vacina eu lembro de ter tomado, de pequena eu
tomei. Até tem o sinal no braço, mas eu não lembro, era pequena ainda. E quando eu tinha
os meus filhos, não se falava nada de tomar vacina. Eu acho que não dava.
Fiquei nesse sítio até me casar, com vinte e dois anos. Fiquei da idade de três anos até
os vinte e dois anos, quando casei. Mas mesmo assim, fiquei morando com meu pai mais dez
anos, porque ele comprou um sitinho mais para baixo e fomos morar lá – esse sítio é nosso até
hoje. Depois de dez anos morando com meu pai, fomos morar em outro sítio que ele tinha
comprado e passou uma parte para nós. Moramos lá até hoje, quer dizer, até hoje não, porque
faz trinta anos que eu saí de lá, mas ele é nosso até hoje. Está lá ainda.
Conheci meu marido quando construíram, em São Manuel, a Santa Casa. O padrasto
dele recolhia ajutório para construir, porque precisava pagar para construir. Então, ele passava
pegando ajutório... Ali que eu vi ele a primeira vez.
Ele vinha numa besta, uma besta tão bonita! Eu olhava aquela besta porque eu
achava tão bonita – e ele achava que olhava nele. E ele não tirou os olhos de mim. Meu pai já
tinha dado ajutório porque meu pai ia sempre em São Manuel mas ele pediu, meu pai
falou: “Eu dei”. Tudo bem, mas quando ele foi embora, foi olhando para o meu lado.
Quando foi no domingo seguinte, bateu lá em casa. Dai começamos a namorar. Ele pediu para
o meu pai, mas meu pai falou que eu era muito nova eu tinha 17 anos, mas meu pai não
queria. Naquela época, tinha que pedir permissão para o pai. O pai tinha que consentir. Se o
pai falava “não” ficava difícil, mas ele não aceitou “não” e veio a mesma coisa. Ah, meu pai,
meu Deus do céu! Mas ele não largou de mim, não largou. Depois, o meu pai começou a
gostar dele. Ele era uma pessoa muito boa. Então casamos.
Meu marido se chamava João Marquizeppe, também descendente de italiano. Morava
em Paraíso, mais ou menos uma hora da casa nossa. Ele ficou cinco anos fazendo essa viagem
e não desistia. Mas eu gostava dele. Ele também trabalhava na roça com o padrasto. Não tinha
217
o pai, era a mãe e o irmão. Eles também tinham um sítio, onde faziam as mesmas coisas
que a gente. Depois que casamos, ficamos no sítio do meu pai. Ficamos em uma das casas do
sítio, porque sempre tinha alguma família que trabalhava e precisava de casa. Tinham três
casas no sítio, nós ficamos morando em uma, na outra meu pai e, na outra, uma família que
trabalhava lá também, de colonos. Esses colonos trabalhavam para o meu pai. Quando
precisavam de emprego, procuravam meu pai, ele dava terra para trabalharem e pagava a cada
sessenta dias.
Enquanto a gente trabalhava na roça, a minha cunhada cuidava das casas, porque ela
tinha criança também. Fazia a comida, arroz, feijão, verdura. Porque a gente tinha horta.
Tinha tudo na horta. Nós comprávamos carne, matava porco, tinha de tudo, graças a Deus.
Nunca faltou nada. Ah, tinha bacalhau também. Comprávamos em São Manuel e era a coisa
mais gostosa. Olha, meu pai, de sexta-feira, ele queria comer bacalhau. Toda semana ele
queria. Fazia aquelas bacalhoadas, com aquelas batatas, era a coisa mais gostosa. E tinha que
buscar em São Manuel. Eu não sei de onde vinha, mas tinha lá em São Manuel.
Nessa época, eu nem ouvia falar em quem era prefeito, administrador. Não se ouvia
falar disso. Em Paranhos tinha os fazendeiros, não é?! Quem tomava conta é que tinha
bastante terra, eram os Scardieri. Meu pai comprou o sítio de outras pessoas não sei quanto
pagou –, parece que o dono era do outro lado do rio. Não me lembro de quem foi, agora
esqueci. Daqui a pouco eu lembro. Muitos sitiantes compraram terra daquele fazendeiro do
outro lado do rio. Então, começaram a abrir o mato para beneficiar café e outras coisas e
vender em São Manuel. Para o milho, vinham os compradores de São Manuel, não sei quanto
eles vendiam. Eu tinha três anos na época, e não sei qual era o dinheiro.
Quando eu era mocinha, meu pai dava um dinheirinho, mas ele comprava tudo.
Comprava roupa, tudo em São Manuel. Mas não comprava pronta. Roupa de vestir tinha que
costurar. E quem costurava eram as costureirinhas que sempre tinha. Eu não costurava. Quer
dizer, costurava um pouco sim, mas mais as camisas do meu marido, as calças eu também
costurei, mas para fora, não. para casa. Tinha gente que vivia disso. Para família eu fazia,
mas roupa de dia Santo, de passear, eu mandava na costureira. O pano mais usado era um
algodão grosso. Até um dia nós fomos a São Manuel e eu vi um vestido de organdi feito. Era
tão bonito que eu quis comprar aquele vestido... Chamava organdi. Sapato também tinha que
comprar. Era de couro, e tudo em São Manuel. Nessa época, eu ainda era solteira. Quando
meu pai comprava sapato e quando vi esse vestido, ainda era solteira. Comprávamos roupas e
sapatos para passear, para ir a missa, num casamento. E tinha bastante casamento, ah se
tinha!!!
218
Os casamentos eram todos em São Manuel, na estação. Todo mundo ia para São
Manuel. Tinha convidado, tinha jantar, comida, tudo lá. Íamos de trem de manhã e
voltávamos de trem à tarde. Porque às oito horas da manhã, passava um trem para ir e às três
horas da tarde, ele voltava. Casava e voltava. A noiva ia pronta, no meio do povo, com
vestido e tudo. Ia a pé do sítio à estação e se chovia, precisava tirar o sapato, pegar o
franguinho e ir. Levava o sapato na mão e amassava o barro, porque outra coisa não tinha,
tinha que ir no barro mesmo. Não tinha charrete, nada. Tinha gente que tinha carroça com
burro para trabalhar na roça, para serviço, mas para passeio não tinha. Era tudo a pé.
Do sítio até a estação nós andávamos meia hora. Meia hora para ir e meia hora para
voltar. Depois subia no trem, ia até São Manuel, porque não tinha outro lugar para ir. A gente
ia quando tinha um casamento, essas coisas... E para outro lugar não ia, para passear não
podia. Não dava também, porque era difícil. Quando tinha que fazer alguma coisa, tinha que
aproveitar, comprar. Não saiamos de Paranhos, nem uma vez por mês. Às vezes, demorava
anos para ir. perto não tinha outra cidade. Aqui para Lençóis, nós nunca vínhamos. A
gente ouvia os nomes de Bauru, tudo, mas até hoje eu não conheço Bauru. Nunca fui para lá,
mas se ouvia o nome, outras coisas não. Nada, nada. Quando eu ia para São Manuel,
andava perto da igreja.
Perto do sítio do meu pai, não tinha nada. Nem escola. Nós não sabemos ler, nem eu,
nem minha irmã que morreu, nem meu irmão. Nada, nada. Não tinha nenhuma escola lá perto,
nada, nada. Em São Manuel já tinha, mas como a gente podia ir? Era difícil.
Em Alfredo Guedes, depois de um tempo teve escola, mas eu era casada. Um filho
meu estudou em Alfredo Guedes. Antes, quando eu era solteira, não tinha nada, nada. Nós
tínhamos um vizinho que tinha uma filha casada. Essa filha tinha uma moça que estudou aqui
em Lençóis. Com ela, que a gente aprendeu alguma coisa de reza. Ela ensinava quando rezava
o terço. Quem queria estudar vinha para Lençóis ou ia para São Manuel
Eu aprendi a fazer crochê, não tricô, com a minha cunhada. Eu ainda era menina e ela
ensinava a minha irmã que era mais velha que eu. Eu ficava olhando ela ensinar, pegar a
linha, fazer... Eu ficava olhando e meu pai falava eu me chamo Antonia e meu pai falava
Tonica para mim. Ele falava: “Tonica, pia agulha, picco fio”. Entendeu?! Isso que meu pai
falava era em italiano: “Pega a agulha e enrola na linha”. Então ele falava: “Tonica, pia
agulha, picco fio”. E eu aprendi vendo a minha irmã, vendo a minha cunhada ensinar a
minha irmã. Eu peguei, fiz o ponto da correntinha, ai ela começou um crochezinho para mim,
daí foi. Até hoje. Mas fiz tanto crochê na vida... Nossa Senhora da Aparecida!... Eu não fazia
219
roupa, mas eu bordei na máquina. Veio uma amiga minha e me ensinou a bordar richilieur
também. Aprendi bastante coisa.
Naquela época, o pessoal falava muito de assombração. O pessoal falava e a gente
ficava com medo. Uma vez, ah meu Deus do céu!... Estava indo, à noite, com a minha filha no
terço, lá na casa da minha cunhada, e quando chegamos na divisa do sítio, quando pegamos a
trilha, passou um cachorrinho do lado da gente. Ele cheirava a gente, cheirava e eu falei “ai,
meu Deus, é o cachorrinho da Dona Izaltina” mulher que morreu. A minha filha falou “não
é mãe, o cachorrinho da Dona Izaltina é diferente”. Então ficamos com medo de voltar,
porque o cachorrinho podia estar lá. Ficamos com medo de voltar, depois do terço, voltar em
casa. Ai meu Deus!....
Eu tive três filhos, cinco netos e dois bisnetos. Meu primeiro bisneto já esta com vinte
anos. Quem sabe não tenho um tataraneto?
O trem naquela época era muito falado, mas tinha que pagar também. Tinha que tirar a
passagem na estação. Entrava no trem e o chefe passava, picava o bilhete. Depois, quando
chegava perto de São Manoel, ele recolhia o bilhete. A gente, quando pegava a passagem,
pagava. Acho que era dois mil e quinhentos para ir de Paranhos a São Manoel. Era bastante
naquele tempo, eram mil réis. Naquele tempo, o dinheiro era esse nome: réis.
Quermesse, festa caipira, eu não conheci nada disso, não. Tinha no bairro um que
tocava sanfona. Ele ia ao sítio da minha cunhada, do pai da minha cunhada, porque eles eram
parentes. E tinha uma turma, eles se juntavam lá, moçada, primo, parente, ele tocava e o
pessoal dançava. Um dia, a minha cunhada falou: “vamos na casa do meu pai, ver aquela
festinha?” Eu falei para minha irmã e ela disse: “precisa pedir para o pai, mas eu não vou
pedir”. ela mandou eu pedir. Eu falei: “Pai, o senhor deixa a gente ir ver a festa, no
baile?” Ele falou: “quando você sai para ir ao baile, o anjo da guarda fica atrás da porta.
Quando você sai, e quando você volta é que ele vai ficar junto com você outra vez”. Quer
dizer: Acabou.Ninguém foi. A minha cunhada foi, mas eu com a minha irmã, não. Nem eu,
nem minha irmã. Nós não conhecemos baile. Meu pai tinha um ciúme da gente que Nossa
Senhora! Acho que é porque a gente tinha perdido a mãe, tinha ficado assim, sozinhos. Ele
sempre cuidava da gente. Ele não batia na gente, nunca. Pelo amor de Deus.! Meu pai era um
homem que... Olha... vendo! Ele cuidava bastante da gente e cuidava bem. E meu marido,
depois que eu casei, também cuidava dos meus filhos, igual. Mas eu deixava meus filhos
saírem mais, eles tinham que sair um pouquinho também, não é?!
Quando eles eram pequenos, eles vinham para Lençóis. Porque precisavam tratar dos
dentes, então precisava sair. A gente tinha mais recursos. Quando precisava ir ao médico,
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ia. Quando não estava bom, ia para o médico. Tinha uma filha que morava aqui que foi
operada com onze anos, de apendicite. Foi operada aqui em Lençóis. Nós morávamos no sítio.
Eu mudei para cá, mais ou menos em 1975. Então, veio todo mundo para cá, marido, filhos,
tudo. Quando eu vim, as meninas já tinham casado e eu só tinha o filho solteiro. Viemos para
porque a gente estava meio de idade. Os filhos tinham casado e estávamos cansados
para tocar o sítio.
Então, meu marido arrendou o sítio e nós fomos morar em São Manoel. Moramos
oito meses e meu marido comprou essa casa que estamos e viemos morar aqui. Ficamos
morando em Lençóis.
Quando estávamos no sítio, e meus filhos vinham para cá, nós vínhamos de trem.
Tudo era trem. Se não tivesse trem, era difícil. Não tínhamos condução nenhuma. Tinha um
cunhado meu que tinha um carrinho, mas era de uso do tio dele e, também, eles eram em
muitos irmãos. O carro era só para cuidar do sítio e não para ficar viajando.
Na igreja de Alfredo Guedes tinha quermesse. No dia três de agosto tinha a festa. Era
uma festa bonita e vinha padre daqui de Lençóis. Tinha a quermesse e a procissão. E a
procissão era em roda da igreja, na cidadinha mesmo de Alfredo Guedes. E tinha todo ano.
No Natal, cada um ficava na sua casa. Fazia um almoço diferente, comprava uma
bebida, um guaraná e bebia vinho, não é! Bebia vinho, ah vinho... Nós comemorávamos a
Páscoa, também. Dia de Ano. Eu cozinhava bastante, fazia pão toda semana, pão de noite!
Fazia aquele pão, amassava de noite, ele crescia, não é? E no outro dia cedo, cozinhava. Mas
começava três dias, fazendo o fermento. Enrolava a massa de noite e no outro dia cedo, estava
crescido e ai assava. Mas ficava gostoso, Nossa Senhora! Tudo no forno à lenha.
Também fazia macarrão, assava frango. Matava leitoa, cabrito. Nas festas de Natal,
Dia de Ano, sempre matava alguma coisa. Tinha criação, a gente criava. Um ano, não tinha
cabrito para matar. meu marido falou “eu vou comprar um cabritinho”. Comprou um bem
franzino um tempinho antes de matar comprava na colônia, que era meio pertinho. Nós
fomos tratando dele, para ele se nutrir mais, engordar, não é?! Mas o cabrito se apegou tanto
com meu filho, que olhe!!!
A gente deixava ele amarrado, dava comida e depois ia buscar. Meu filho que ia
buscar. Ele ficava num palanque que tinha o forno, era a casa do forno. E esse cabrito berrava
e meu filho ia lá e falava “o que você tem? O que é que você quer?” Conversava com ele. Mas
ele se apegou tanto naquele cabritinho... E pra matar?! Precisou a minha filha pegar ele e levar
para casa do meu pai e enquanto isso, meu irmão veio e matou o cabritinho. Porque o meu
marido não matava também. Tinha dó. Matou e limpou. E pusemos os quartos dentro de uma
221
bacia. Logo ele chegou, eu pus em cima da mesa e cobri com outra bacia, aquela carne. E ele
chegou, ele levantou assim e falou: “mataram meu cabrito, meu ‘brito bode’? Filho da puta!”
Não provou, não provou... não provou. O meu marido falou “nunca mais vou fazer uma coisa
dessas”. Não provou. E ele nunca mais matou cabrito. Naquele tempo tinha bastante criação,
tinha cabra, tinha vaca. Leite de cabra, leite de vaca, carne de vaca e de leitão. Tinha de tudo.
No começo meu pai tinha bastante cabra. Depois fez o pasto, comprou as vacas e ficou com as
cabras e com as vacas.
E a vida inteira eu fiquei na roça, nunca trabalhei fora. Sempre trabalhei em casa e na
roça. Inclusive, depois de casada, eu continuei a ajudar na roça, quando podia. E meu marido
também trabalhou a vida inteira na roça. Até nós sairmos do sítio, a vida inteira na roça. Eu e
ele nos aposentamos na roça.
Naquele tempo, nós tínhamos medo do pessoal da guerra que vinha no trem. Nossa, a
gente ficava com medo. Passava o trem e fazia aquele vandalismo nas estações. Dava medo.
O pessoal que ia para guerra passava nesses trens, mas a gente não via, isso era de ouvir
falar. Mas por aqui, eu acho que nunca faltou nada. Comida, nada. Quer dizer, acho que faltou
farinha. Farinha faltou. Mas também não sei por que. Porque o trem trazia. Também não
tinha rádio, pelo menos na casa do meu pai não tinha. Porque eu acho que no sítio, nós
tínhamos sim, no sítio tinha, era o General. Tudo na luz, mas não a luz como tem hoje. Era
lampião, lamparina a querosene. Para tomar banho nós esquentávamos água no fogão à lenha.
Punha a água numa bacia grande e esquentava no fogão, depois tomava banho. Mas não
conheci ninguém que foi para guerra.
Fiz muito crochê na lamparina. E fazia direitinho. Mas eu não vendia, fazia para
casa. Fazia para todo mundo da família, para as netas, para os netos, para os filhos. A linha
vinha de São Manuel. Já tinha linha para comprar de rolo. A linha vinha em uma caixa assim,
com dez novelos. Meu pai quando viajava para São Manoel ele falava “precisa de linha?” Não
precisava nem falar para ele trazer a linha, ele perguntava para gente se precisava da linha.
Ele trazia sempre a linha. A linha nunca faltou. Tudo comprado em São Manoel.
Agora eu tenho essa idade, estou cansada. Ainda faço crochê. Mas esses dias, eu
não peguei, porque hoje em dia eu não enxergo muito, a vista está pouca. Agora ponto
grande. Esse tapete fui eu que fiz. Ih, eu fiz tanto desses crochês, Nossa Senhora!!! Colcha de
crochê, fiz para minha filha. Fiz colcha para minha nora. Para família inteira. Esse é o último
que eu acabei esses dias, de barbante. Minha filha que mandou eu fazer um tapetinho para
neta dela, não é? E tem que fazer de dia. Com o barbante assim, para fazer, com linha fina
222
é difícil, por causa do pontinho. A linha fina não deixa essa casinha para gente colocar o
ponto, não é?
Dona Antonia, eu queria agradecer à senhora e devo voltar mais uma vez para gente
conversar. Se a senhora se lembrar de algum “causo”, vai guardando pra mim, aí a senhora me
conta... (risos)!
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224
R
ITA DE
C
ÁSSIA
F
IUME
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Pode mentir na idade? Meu nome é Rita de Cássia Fiume. Nasci no dia 06 de maio de
1917, aqui em Jaú mesmo. Ai você faz a conta, tenho 87 anos. Minha mãe e a família dela são
daqui. Meu a materno veio em uma daquelas caravanas que vieram para fundação da
cidade. Tem a família Prado que dizem que são as primeiras, as fundadoras (uns dizem que
são fundadores, outros dizem não, "somos nós"). É dessa época. Meu avô veio com uma
dessas famílias. Do lado materno minha descendência é portuguesa e do lado paterno, italiana.
A gente veio da Itália, não sei em que condições. Engraçado, nunca passou pela cabeça da
gente o interesse em saber em que condições vieram, se vieram como imigrantes, se vieram
por conta própria, mas veio à família toda. Eles se estabeleceram em São Paulo e depois meu
pai brigou com a família, que não concordava com a situação, e veio para Jaú, gostou da
minha mãe, casou-se e ficou. Minha mãe é jauense. Tive dois irmãos: um faleceu logo que
nasceu e a outra é essa, que mora comigo.
Da minha infância lembro de algumas artes. Porque
quem tem uma memória fabulosa é minha irmã. Nossa mãe! Eu
fico boba dela acertar a data, acontecimento, hora, local. Ela
tem registro de tudo. Eu não. Eu não sei porque me desliguei
bem da infância, da adolescência. Ás vezes eu até me lembrava
de algum fato, mas não registrou ou já apagou, porque a gente
também não fica falando, não fica lembrando. Às vezes
motivo para você comentar esse ou aquele fato, mas se não
houve interesse, acaba esquecendo.
Naquele tempo era uma alimentação muito mais pobre do que hoje. Naturalmente, não
é? Os recursos eram menores. Não estou dizendo só para minha casa, mas em geral. Não tinha
essa mesa nossa de hoje, com variedade. Eu me lembro disso, porque a gente podia não ter,
mas conhecia outros, tinha minhas colegas.
Agora de roupa, era engraçada a moda daquele tempo. Quando saía, por exemplo...
não eram os modistas de hoje, era lançada a moda. Se a moda fosse listrado: ninguém vestia
uma peça qualquer que fosse de listra ou fosse xadrez. A modo era aquela. Então todo mundo
sabia. Essas roupas vinham das lojas, mas você sabe que a moda vem sempre dos grandes
centros, não é? Eles é que ditam a moda. E olha a minha maneira de pensar: jamais eu entro
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Entrevista realizada na residência da depoente, na cidade de Jaú, no segundo semestre de 2004. Teve duração
aproximada de 2 horas.
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nesse barco. Jamais. Não sei se naquele tempo eu pensava assim, eu penso hoje. Agora é
moda essa coisa de crepe, cheio de babados. Eu não uso porque eu não me sujeito a opinião
dos outros. Eu tenho minha opinião.
Não me lembro se tinha essa opinião. Não me lembro não. Eu me vestia bem. Até me
lembro que eu estava na Escola Normal e vestia o que minha mãe comprava. era quase
moça. Adolescente por ai. Nunca fiz questão. O que ela achava, o que ela comprava, eu
respeitava. Então não me interessava saber se era moda, se não era moda. Isso não me
preocupava.
Naquela época o que é que a gente fazia? Agora sim. (risos) O que é que eu fazia?
Primeiro, uma coisa que a gente estudava, porque na minha escola era assim, professor dava
aula hoje, amanhã ele fazia chamada. Então tinha que estar todo dia. Isso eu já estou pensando
no Normal... Porque antes do Normal, eu estudei em escola particular, das Irmãs. As Irmãs
tinham o curso Normal, então a gente começava no pré, bem pequeno... Era muito difícil
alguém não levar assim, a sério. Como hoje. Naturalmente era reforçado estudar. Os pais não
interferiam não, mas a escola exigia.
Comecei os estudos porque meus pais achavam que tínhamos que ter escola. Porque
no tempo da minha mãe já não era assim. Ela era alfabetizada, mas era uma escola muito
simples. Você imagina, Jaú em 1900... Porque eu nasci em 1917, mas ela era moça por ai, em
1900. A cidade era muito pobrezinha, muito pequena, poucos meios para sobrevivência. Mas
ele achava, meu pai, que nos não devíamos ter esse tipo de vida. Então, nos fez estudar. Nós
três. Éramos em três. Eles se empenharam, porque para eles, no tempo deles, não tinha
finalidade. Era só o casamento. Minha mãe estudou, depois era o curso Normal, mas meu avô
não deixou porque era em São Carlos. Meu avô era português, era uma desgraça. Aqui tinha
bons colégios, mas não tinha o diploma. Por isso, ela fez questão que a gente tivesse.
Meus pais fizeram sacrifício. Não foi fácil, não. Meu pai era italiano, não sei dizer
com que idade veio para o Brasil. Eles se instalaram em São Paulo e está toda a
continuação da família. Não se dizer que grau de instrução ele teve. Se houve a conversa, se
ele comentou qualquer coisa, não está na minha memória, não estou me lembrando.
Eu acredito que não vieram como imigrantes. Porque eles tinham uma vida muito boa.
Não eram imigrantes, tanto que se estabeleceram em São Paulo e, até hoje, estão por lá. Ai
meu pai, que não se dava muito bem com uma irmã, que era muito brava e que praticamente
dirigia as coisas todas... nesse tempo o filho entregava o pagamento inteiro na mão do pai. E
meu pai não teve essa maneira, não aceitou aquilo e se despediu da família. Depois de andar
por ai, parou aqui em Jaú. Ele se casou aqui. Já tinha um ofício, era impressor. Ele trabalhava
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em oficinas como chefe de impressoras. Você conhece o Cláudio Martins, ali na Lourenço
Prado? Ele trabalhou muitos anos ali com ele. Acho que até entrar no Comércio.
No tempo de estudo, meu pai era impressor do Comércio do Jahu, porque logo que eu
me formei, ele morreu. Então, a gente saia de madrugada, às vezes. Às vezes eu é que queria
ir com ele trabalhar, e eu ia. Ou dormia na casa de uma colega, para estudar. onde fica as
Casas Bahia hoje. Ali perto morava uma colega. Então eu saia de madrugada e ia a casa dela
estudar para depois ir a escola. E não havia perigo nenhum, não havia medo, tudo era tão
bom... Não havia ainda asfalto, era pedra. Aquelas pedras brutas. Paralelepípedo. Era bonito,
porque era coisa nova, coisa recente. Os prédios iam ficando melhores, mais bonitos também.
Eu ia com meu pai, ficava vendo ele trabalhar, ah! Você imagina como devia ser a
máquina impressora, o é? Eu me lembro, era uma peça grande. Se sentava assim em um
banco... porque a paginação era toda feita anteriormente... assim, naqueles quadrados, as
letrinhas uma por uma... isso eu me lembro. Ele era impressor... outros faziam a paginação e
ele imprimia.
Ele sempre trabalhou no Jornal do Comércio. Trabalhou até não poder mais. Por
problema de saúde ele parou. É uma coisa, aquele tempo não havia proteção nenhuma para o
trabalhador. As leis do Getúlio não tinham entrado ainda. Então ele deixou o serviço e os
patrões nunca ligaram para saber se ele precisava de alguma coisa, nada... foi dispensá-lo:
“Amanhã você não vem trabalhar mais”. Terminava ai, sem direito a nada, nem a boa vontade
do patrão, saber que era um empregado e que dependia daquilo... nada.
Eu lembro da primeira escola que comecei a estudar (não sei como é que chamava,
hoje seria jardim de infância, tem vários nomes, não é?!), era uma escola particular, Irmãs de
São José. Isso deve ter sido por volta de 1922, 1923, eu devia ter uns 6 anos. Na Quintino
Bocaiúva não tem uma casa que hoje é espaço pedagógico? Ali que eu comecei. Era
externado São José. Era uma escola das irmãs, escola primária. Só os primeiros quatro anos se
fazia ali. Não me lembro se estudei ali os quatro anos. Isso nem minha irmã conseguiu
lembrar, porque brasileiro tem mania de mudar o nome das coisas. Então, o curso teve vários
nomes. Quando eu passei daqui, do quarto ano, eu já passei a estudar no Colégio São José, era
o Ensino Complementar. Depois do primário vinha o Complementar. Era uma
complementação. Depois vinha ... eu sei, mas o estou me lembrando. Vou procurar nesse
álbum. Isso não é uma agenda, é um álbum de quem deixou qualquer coisa escrita para mim.
É muito bom. Não consigo achar. Uma das pessoas que escreveram para mim aqui morreu
tem uns quinze, vinte dias. Cacilda Capinzaiki, ela tinha uma escola de música na rua Major
Prado. Depois do Complementar entrei no Normal, que formava para professor. No Normal
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eram três anos e a gente estudava pedagogia, psicologia, didática, sociologia. Era isso. Eram
quatro tempos. Em didática a gente estudava Prática de Ensino. Complementar e Normal tudo
no São José.
O que mais dificultava para estudar na época era a situação financeira. Mas eu sempre
estudei em escola particular. Sempre, desde o começo. Nunca estudei no Pádua Salles, por
exemplo. Eu fiz jardim de infância até o diploma de professora, na Escola Normal São José.
Se eu tivesse escolhido, teria escolhido Educação Física. Desde criança (minha irmã mesmo
fala), eu era moleque, não era menina. Tive sempre essa tendência para movimentos, correr,
brincar... Eu não fiz Educação Física porque as escolas que davam o título, geralmente, eram
em São Paulo. Então não podia fazer. Eu sou professora por acaso. Eu era movimento... mas
não tive outra opção. Fui nesse caminho. Até hoje eu tenho muita facilidade para me
movimentar. O prazer da gente na escola, eu e mais umas duas ou ts, a gente não levava
nem lanche, era para aproveitar o recreio para jogar. Então eu sonhava em ser professora de
Educação Física (fui professora primária e terminei como professora de português). Para
Educação Física, não deu.
Aqui, na região o Colégio São José foi de um valor muito grande. Tinha internado
também, então quantas moças não vieram e se formaram aqui. O pessoal da região estudava
tudo aqui. Era a escola da região. Quem quisesse outras profissões, aqui não dava. Não tinha
nada disso, o Normal era o limite. Eu não posso garantir para você que ninguém tivesse saído
da cidade para São Paulo, por exemplo, e tivesse feito qualquer outro curso, no Estado. Até a
minha turma, que acompanhei todas elas, ninguém saiu daqui. Se eu quisesse fazer Educação
Física teria que mudar para São Paulo. Que eu saiba ninguém tentou outra profissão. Teve
apenas uma, que era casada, o marido dela trabalhava num banco, ela era de um nível superior
ao nosso, tanto de idade quanto de importância (naquele tempo era uma grande coisa). Logo
que ela se formou eles se mudaram daqui e nós nunca soubemos dela. Talvez essa tivesse
continuado, porque ela não tinha filhos o que facilitava para se dedicar a qualquer coisa.
Todas as pessoas que conviviam comigo tinham condições de estudar, eu era a mais
pobre. Eu posso dizer que era a “pobre” da turma, mas não sentia nenhuma diferença, de jeito
nenhum. A gente vivia em perfeita harmonia, muito bom o ambiente. Eu tinha colegas, não
amigas. Porque a gente não tinha muito tempo para festejar, para passear, nada disso. A
gente levava o estudo seriamente. Eu me lembro que o professor de psicologia, ele dava aula
(você já ouviu esse nome João de Souza Ferraz? Meu professor.) e, na aula seguinte, qualquer
uma podia ser chamada para provar que ouviu, que aprendeu. Aconteceu que, na minha casa,
eu estava com uma prima, eu não sei o que ela tinha porque faz tanto tempo isso, sei que
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ela gritava muito de dor, e eu não conseguia estudar. Como é que você podia estudar com
alguém gritando de dor ali do lado, não é? Eu fui, eu sabia disso, mas eu arrisquei, falei, eu
vou. E ele me chamou. Ganhei um zero, e era assim. Nossa, como ele lamentou ele mesmo,
viu. E esse zero me prejudicou muito até na nota final, do diploma, por isso, por que ele
entrou ali, o dito. De homem só tinha ele, professor de português.
De Matemática tinha um professor italiano. Engraçado, ele me falou: “seu nome não é
Cássia, seu nome é Cascía”, meio assoviado, era assim. E agora ganhei um santinho de uma
amiga que esteve em Cascia, e é mesmo sc, é Cascia. Emendando esse chiadinho. Ele
disse: “seu nome é assim, está errado Cássia”. Ele era bravo! Dava aula com uma vara na
mão, com um bastãozinho. Ele dava umas batidas na gente quando não sabia. Estou vendo a
aula dele, estou vendo ...
Eu me formei no Normal em 1936 e comecei a dar aula, porque naquela época para
mudar as coisas era difícil. E não teve nenhuma que se formou comigo que trabalhou junto.
Todas se separaram. Hoje é complicado. Naquele tempo era nota de diploma. Então no
primeiro ano eu fui trabalhar. Já sai de casa e voltei em 1945. Naquela cultura, não sei
quanto tempo durou isso, nós éramos classificadas para o trabalho pelas notas do curso, e eu
comecei a trabalhar. Eu fui à Pouso Alegre a pedido do Diretor (agora que eu estava lendo o
que ele escreveu aqui para mim), para ajudar lá porque estava precisando de uma professora.
Era uma escola muito pobre. Trabalhei uns meses até que houve um concurso de
professores (já classificada pela minha nota) e comecei a trabalhar ali. Acho que foram meses.
Então, naquela época, eu comecei a atuar no Pouso Alegre que era bairro. eu
aprendi uma coisa: um dia, um fulaninho, estava riscando a carteira (as carteiras eram
limpíssimas, não tinha risco, não tinha nada. no colégio elas eram até enceradinhas), e isso
na Escola Normal não se fazia de jeito nenhum. E eu fui falar para o diretor. Ele olhou bem
para mim e falou assim: “Escuta, quem está tomando conta da criança? Sou eu, ou é a
senhora?” Ai meu Deus do céu, eu ainda não tinha ingressado... Nunca mais eu levei um
aluno para o diretor. Nunca mais. A frase ficou na minha cabeça. Mas nunca mesmo, eu
cheguei para um diretor para fazer a menor queixa. Eu resolvia os problemas. Aquilo ficou
marcado para mim.
Depois de uns meses, fui para Itajú, município, um lugarejo. Era Escola Isolada (mais
uma coisa da época). Havia umas classes aqui, umas classes lá, mas não tinha o conjunto,
eram classes. No segundo ano que eu estava lá, já passou a ser Grupo, porque abriram mais
uma classe e ficou quatro, com quatro já podia ser Grupo. Até três classes era Escola Isolada.
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Acima disso, virava Grupo Escolar. Então eu passei para o Grupo Escolar no segundo ano
de trabalho em Itajú. Acho que fiquei por lá uns três anos e eu dava aula na quarta série.
Morei muito tempo fora. Eu estive em Itapuí, em Iacanga, Vera Cruz, acho que só.
Mesmo em Vera cruz eu trabalhei em Grupo Escolar. Nunca trabalhei em Escola Rural.
Vera Cruz era uma cidade bonita, bem construída, era pobrezinha. Acho que vera Cruz foi a
melhor cidade que eu trabalhei. Em Itapuí tem a praia. Você já foi? Eu sempre comento sobre
a prefeitura de Itapuí não cuidar daquilo. Você Brotas, vai de vento em polpa... lá nenhum
prefeito cuidou. A praia de é muito mais bonita, muito mais própria de praia do que a de
Barra Bonita, e a Barra está subindo e lá? O Rio vai nessa direção (aponta) do lado de tem
uma praia muito bonita, com muitas árvores... Se não morreram... Mas ninguém cuida.
Andei aqui por perto porque queria pegar classe em um dos Grupos. Porque o concurso era
aberto para escolher. Cada dia que a gente fazia inscrição tinha que escolher.
Todo ano tinha concurso. Era diferente de hoje, não havia contagem de nada. A gente
se inscrevia para o concurso e esperava o governo, a secretaria, publicar a relação de vagas.
Quando interessava a gente ia, com a visão naquilo. Quando eu estava em Vera Cruz, me
inscrevi e citei Jaú, graças a Deus ninguém passou na minha frente e eu consegui vir para cá,
onde me aposentei, no Domingos de Magalhães. Nesse dia que eu peguei essa cadeira no
Domingos de Magalhães, se eu não insistisse, eu perderia porque acho que tinha alguém
com o olho nela. E eu disse: “quero essa classe no Domingos de Magalhães”. O senhor virou
a folha, virou a folha... e disse: “mas acho que essa classe não tem mais”. Ele começou a pôr
obstáculos. Eu disse: “Não, eu vi no jornal, houve o conhecimento que tem essa classe. Esse
lugar está vago e eu vou querer”. Ele ficou meio constrangido, mas me deu. Mas se eu tivesse
ficado quieta, tivesse aceitado, eu tinha perdido a oportunidade. Consegui voltar depois de
oito anos, porque no 45 eu já estava aqui. Trabalhei de 45 a 67 lá. Trabalhei até 67 e consegui
a aposentadoria. A última escola que trabalhei foi a Domingos de Magalhães, era até a
quarta série. Talvez no Instituto tivesse mais, porque eu mesma preparei aluno aqui que
passou no Exame de Admissão para o Instituto. E sabe que no dia da prova, a prova de
ingressar na quinta série, movimentava a cidade toda. Para os pais que tinham os filhos
prestando, era uma glória vencer os exames.
Eu tive um aluno que eu preparei aqui. Sem professora particular. E ele passou no
exame. Um menino muito inteligente, ele não perdia nada. Os méritos são muitos meus, mas
muito mais dele. Então eu trabalhava aqui até a quarta e depois ia para o Instituto.
Nessa época mesmo, eu trabalhava no Colégio São Norberto, o dos padres, como
professora de português. Trabalhei 17 anos lá. Fui chamada para substituir um professor que
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precisa viajar. Como eu era vizinha, comecei a trabalhar lá ao mesmo tempo. Lá era diferente.
era colégio, da quinta série para frente. Era o sistema do Instituto, até o colegial. Eram
escolas diferentes, no regime, nas situações, mas as duas eram sérias. Eu vejo a escola de
hoje, me uma tristeza muito grande. Um dia desses encontrei um ex-aluno que falou para
mim: “a senhora se lembra daquele tempo em que as meninas chegavam com uma flor,
alguém queria carregar as suas coisas, alguém queria acompanhá-la até a sua casa, lembra?”.
Eu disse: “lembro”. Ele falou: “que diferença não”.
No São Norberto era gente mais importante. Podiam pagar o colégio. Era gente que
tinha posse. Só estudavam homens que tinham posses, não lembro de nenhum pobrezinho, de
gente que fosse assistido por outro, todos eram de famílias que podiam pagar. Tanto que
quem continuou, pelo que eu me lembro, eu sei que continuou, são médicos, advogados,
juizes de direito. Você sabe que ahoje um rapaz (se me perguntar de onde que ele era, eu
não sei) que estudou aqui, ele é juiz de direito em Minas Gerais, escreve para mim. Ele vem
de lá para as férias dele, às vezes vai pescar, e ele passa aqui para me ver. Ele vem de Minas e
passa aqui. Até hoje eu tenho os cartões dele. Nossa, quanta gente boa ai pelo mundo que
passou por mim, nossa mãe.
Então tinha diferença. No Magalhães acho que dependia muito do diretor. Porque
havia diretores. Hoje não tem mais isso. Não tem nem diretor. Às vezes ele tinha pena, se
compadecia da situação dos meninos de rua. Minha irmã trabalhou com a catequização, então
se eles descobriam uma criança perdida por aqui, dando trabalho, levava pra lá. Mas a
professora estava prevenida. E ele tinha aceitado, não era nada imposto. Realmente não me
lembro que tivesse acontecido algo diferente.
O São Norberto fechou na mesma época em que o governo do Maluf abriu as portas
para os professores que estavam aposentados, ou para aqueles que tinham parado de trabalhar
não me lembro pedindo o que, acho que era o diploma mesmo para tomarem conta de
classes, não me lembro como é que chamava. eu passei a trabalhar, depois de aposentada,
na Escola Major Prado. Trabalhei onze anos, comecei em 68 e fiquei até 79.
Então quando fechou o São Norberto eu me aposentei e vim para o Major. E fechou
por condições financeiras. Porque eles não tinham ajuda nenhuma. O Cônego que
administrava, todos que trabalhavam, não recebiam nada. Mesmo com os alunos pagando
mensalidade não deu para levar. Muitos dos alunos eram internos e eu não sei que
mensalidade eles pagavam, nunca soube. Mas isso eu sei, fechou o colégio por condições
financeiras. O São Jofechou antes. Não lembro quando, mas quando eu trabalhava lá, não
havia mais o Normal. Foi antes... a minha memória... data para mim é muito difícil. Não estou
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registrando mais. A minha irmã é caso especial porque ela lembra de tudo, é extraordinária. O
que a gente quer saber vai com ela, está resolvido.
E eu trabalhei sempre com o quarto ano, que era o final do curso. No São Norberto eu
dei português para as quatro séries. Naquele tempo a gente dominava todas as matérias.
Dentro do programa dava todas as aulas.
Nossos programas vinham da Secretaria de Educação, acho que primeiro era a de o
Paulo, porque o inspetor que a gente recebia era de fora, depois a daqui encaminhava.
Freqüentemente esse inspetor passava, ao menos até Jaú ter Secretaria. Mas se eu disser para
você quando Jaú passou a ter Secretaria...ah, mudou tudo. Quanto existia o Inspetor se tomava
conta das escolas. Eram fiscalizadas, eram atendidas nas dificuldades. Hoje não existe mais
Escola Rural, então não sei porque tem Secretaria. Nem sei o que eles fazem lá. Mas naquele
tempo não recebíamos nenhum material. Naquele tempo não tinha nem Associação de Pais e
Mestres, isso é mais recente. Os pais ficam mais a vontade na administração da escola. Acho
que eles ajudam com dinheiro, com a presença deles, isso não é do meu tempo.
No Colégio São Norberto era a mesma coisa. Era uma continuidade. Houve um diretor
do Instituto, que naquele tempo era a glória de Jaú, junto com o professor de português,
pensou em fazer uma maratona de Português com todas as escolas. Já havia São Norberto,
São José, Escola Industrial... Programaram tudo. Mandaram o aviso para o Colégio, para
apresentar os candidatos e eu inscrevi um. Eu tinha certeza que aquele menino ia vencer. Na
hora de por em prática, não sei o que houve. Eles suspenderam. Eu não tinha medo nenhum
que aquele molequinho pudesse fazer feio. Era muito inteligente. Filho de um sapateiro. Outro
dia, depois de tantos anos, o encontrei no cemitério, não reconheci, também nem podia. Ele
disse que está muito bem. Era muito inteligente e soube aproveitar o caminho que escolheu.
Eu tinha aquela imagem de um menino de quatorze, quinze anos, agora vejo um homem
casado, com filhos, se não me apresentassem, eu não reconheceria.
Nunca soube porque suspenderam essa maratona. Parece que não organizaram as
provas, as coisas. Porque era o professor de português que devia fazer. Havia um do colegial,
outro do primeiro grau. Até isso mudou. Mudou tudo, não é? Aqui em Jaú não tinha esses
concursos. Foi esse professor de português que inventou isso.
Quando eu era professora, eu devia levar tudo preparado, tinha a aula completa que eu
devia me preparar por aquele assunto. Eu tinha que ter isso. Era para o meu uso no caso do
inspetor vir visitar a escola e pegar o diário, então eu tinha que ter aquilo do meu dia de
trabalho. E ele não avisava o dia que ia vir, vinha da cabeça dele. Eu levei um pega um dia, ai
meu Deus do céu. Tinha o livro de chamada, tinha em cima a data, o dia da semana, tudo, ele
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chegou, pegou o livro e falou assim: “a senhora está atrasada, olha a data disso aqui, como é
que a senhora não fez do mês que nós estamos vivendo?” Eu levei um choque, que não tive
nenhum pensamento diante do que tinha acontecido. Era que eu tinha copiado, era outubro,
veja bem, eu tinha passado de setembro para outubro e eu copiei setembro, esqueci. Era
outubro e eu coloquei setembro. Levei um pega! E nem me defendi, porque para mim foi um
choque. Eu não tinha errado. Se eu tivesse feito errado eu ia sentir, mas eu não tinha. Gente
nova receber a visita do inspetor assim e levar uma chamada dessa, não é?
Acho que naquele tempo não tinha diferença com quem era de fora de Jaú. Estrangeiro
não, mas de classe social sim. Quem tomava conta da cidade eram os Almeida Prado, a
família Prado. Que não são os fundadores. Você já foi na Matriz? Colocaram uns cartazes lá.
Desde a capelinha até a igreja de hoje. Ali cita nomes importantes de pessoas que ajudaram,
que cuidaram da igreja. Engraçado, citam os Prado como fundadores. Eles tinham muitas
propriedades... chegaram depois, mas ficou assim. Havia muita diferença. Jera deles. Eles
não eram os mais ricos, a diferença era de pose. Eles não dirigiam a cidade, inclusive, não
nenhum nome importante na política. Tirando o Celso que foi prefeito pouco tempo, acho
que não tem mais ninguém. Ah! Se eu soubesse que você vinha, eu tinha feito o relatório lá de
trás. Eu não me lembro de nenhum.
Haviam dois partidos: o dos Almeida Prado e o dos Carvalho (fundadores do Hospital
Amaral Carvalho). O que nós não vimos foi uma pessoa que tivesse assumido a prefeitura e
feito qualquer coisa em favor da cidade. Mas era interessante isso. Eu me lembro das eleições,
eu era criança, o pessoal da cidade ficava meio de lado. Eles traziam o pessoal da fazenda
para votar. Aqui no Major Prado era o reduto de um lado e havia outro lugar para o outro.
Todos os empregados – naquele tempo não se exigia nada para votar, não precisava ter escola
ficavam na escola. Depois recebiam um lanche e, mais tarde, levavam todo mundo embora.
A gente via, era uma palhaçada.
Meu pai estava fora das direções. Não se interessava por política. Agora me lembro da
minha mãe, da minha tia, falando: “se esse ganhar, se aquele ganhar”. Acho que elas
votavam. Meu pai já devia ter se naturalizado para poder casar. Não me lembro mais.
Agora com os negros havia diferença. Eram empregados. Não tinha posição no
comércio, nos cargos do governo. Nós tivemos uma menina negra, minha tia que cuidou,
ficou muito tempo com ela. Não digo que criou porque não pegou pequena. E a convivência
era tranqüila, graças a Deus. Você está me fazendo puxar a memória agora, viu? Porque a
gente nunca teve oportunidade de olhar para trás assim. Nem em conversas com parentes
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antigos que a gente tinha laços. Eu não me lembro da gente recordar dessas coisas. Mas
mesmo na escola havia essa diferença. Não tinha nenhum negro que estudava com a gente. Eu
não lembro. Na minha escola, no Ensino Normal nunca teve.
De acontecimentos políticos eu também não me lembro. Se fosse hoje eu falava... eu
lembro que eu gostava muito do Getúlio Vargas. Não sei porque. Porque naquela época eu
não estava ligada em política. Se estava governando bem, se não estava... Então eu gostava
dele. Ele era uma simpatia. Às vezes alguém estava discutindo sobre as atitudes dele, o
governo dele e eu falei: “eu vou um dia para o Rio e entro naquele palácio e vou conversar
com o Getúlio”. E eu dizia assim, com firmeza, que eu ia mesmo fazer isso. O pessoal
caçoava de mim. Mas eu não estava ligando, não. Mas eu não tinha nada com a política.
Naquela idade eu não me preocupava. Só tinha uma simpatia à figura dele, simples. Tinha
uma parte que falava bem, porque aconteceu aquilo com os operários e condições de vida
melhores. Outros diziam o contrário. E eu ficava assimilando isso. Claro que depois, quando
eu comecei a entender melhor, eu fui a favor dele.
Em relação á educação eu lembro que eu trabalhava no Major Prado e ele dispensou
todos os professores que estavam nessas condições, aposentados. Mesmo com direito
adquirido ele não concordou e mandou a gente embora, sem mais nem menos. Na época em
que comecei a lecionar, deixa eu ver...pode ser, por exemplo, a criação dessas escolas
industriais. A coisa mais útil que o governo poderia fazer, abrir portas para trabalhadores
profissionais. Eu me lembro que quando abriram as portas da Escola Industrial, foi um
alegria. Acho que a cabeça de alguém que estava em cima abriu... teve juízo, viu as coisas
reais. Nem se pode falar de hoje. Dei aula na Industrial de religião, mas era depois. Essa
escola foi fantástica. Quantos alunos saíram daqui com emprego para lugares importantes.
Todos eles tiveram benefício, só ganharam com essa escola. Depois teve um deputado
que trabalhou comigo como diretor – falou que um colega dele lá do governo, achou que essas
escolas davam muito gasto, muito trabalho, não produziam... então risca, vamos por outra
coisa no lugar! E assim eles fecharam as Escolas industriais. Fez esse comentário e depois o
governo vai precisar pegar estrangeiros para dirigir empresas, para lugares que eram de
brasileiros. A Industrial foi uma escola importante e ficou jogada ai. Eles faziam umas
exposições no fim do ano, maravilhosas. Todo o tipo de trabalho. Costura, bordado,
mecânica, marcenaria...tudo que se dava eles expunham. Faziam um sucesso. E alguém vem e
derruba tudo, não é?
Hoje... eu posso falar mal? Eu não me conformo com essa idéia de abrir faculdade
para todo mundo. A faculdade é para quem quer e quem pode, não é? Quem pode,
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mentalmente, tem condições... Eu tenho medo desses médicos, engenheiros... Por que se não
tem base... Primeiro a base, não tem. Segundo, depende de eu querer, eu gostar, então...O
governo poderia tomar providências para melhorar, mas abrir a porta para qualquer, não. Eu
sei que faculdade não prende ninguém. A faculdade é por conta do aluno e é muito certo isso.
O professor as aulas dele... conversei milhares de vezes com gente que freqüentou
faculdade e a responsabilidade é do aluno. “O assunto é esse, você tem que procurar isso...” se
o aluno não fizer a parte dele que profissional vai ser? Acha que basta ir à aula, quando vai,
não é? Engraçado isso de pretos... Você tinha me perguntado e eu não me lembrei... Desde
quando abriram os concursos para isso e para aquilo, para ganhar um pouco mais... mas tinha
que estudar tal e tal coisa... Eu nunca entrei nisso. Eu tinha uma colega que era muito
inteligente. As pessoas faziam os cursos, pagavam e freqüentavam e era ela quem fazia os
trabalhos todos... ela era negra. Nessa época, não lembro quantos anos eu tinha... ah, Jesus, ...
eu estava em Jaú. Então foi depois de 1945. Foi em 1955. Ela passava a noite inteirinha
fazendo os trabalhos para a outra ganhar. E as provas... Uma dessas professoras, colega minha
que ganhava mais do que eu... É de uma capacidade! A outra fez as provas e ela ganhou o
título.
O que era interessante eram as viagens... eram de trem. Carro não era muito fácil. Por
exemplo, não podia pagar para ir daqui até Vera Cruz, que era bem longinho... Então era trem.
Era bem mais barato que o carro. Eu voltava para casa nos finais de semana, um caso de
doença, uma necessidade qualquer. De carro não dava. Os trens tinham bancos de madeira e
demorava mais de uma hora para chegar. Bem mais.
Agora Jaú parou no tempo... chiiiii....Não tem nem comparação com Bauru! Sob todos
os aspectos. Bauru é inteligente, capaz. Você a Tv Tem, levanta a vida de Bauru todo dia,
de todo jeito. Eu vou dar uma resposta que eu aprendi desde criança...quem é que vai saber
disso que eu estou falando? Muita gente, agora eu não me incluo, porque isso é bem antigo,
acha que quem impediu o progresso de Jaú foram os Prado... Porque eles não permitiam nada.
Eram os coronéis. Não permitiam nada que o fosse o que eles determinavam. Então Jaú é
mais antigo do que Bauru, teve mais oportunidades de crescer do que Bauru, no entanto,
Bauru cresceu. Passou. Você vê, até dava para observar tudo isso e não tem nada de especial.
Não tem time de futebol, não tem no esporte, time nenhum. Os nossos clubes, Doutor Neves,
Flávio de Mello, estão todos estragados. Aqui perto da Santa Casa tinha uma cobertura que
dava para o esporte. Não tem nada. o tem nada. Não surge nenhum jogador, nenhum atleta.
Não tem incentivo nenhum.
235
Você vê a cultura, como era? O que tinha? Nada. Nada que sobressaísse. Vou fazer um
parenteses: o XV de Jaú, naquele tempo em que os jogadores saiam do serviço e iam treinar.
Eu sei porque eu morei em frente onde era o campo. O XV valia muito. Teve ótimos
jogadores. Agora isso acabou. Morreu. Começou a ser profissão agora, não é? Acabou até o
futebol. Tem um joguinho de vez em quando e agora está tentando subir, então vamos ver se
vai.
Cinema eu freqüentava, era a única coisa que tinha. Teatro, houve um tempo atrás um
pouco, vieram alguns cantores, artistas, balé, gente de fora para por movimento na cidade.
Agora está bem parado. quanto tempo não tem uma peça, um cantor, em nenhuma data...
No aniversário de Jaú... Botucatu está fazendo uma beleza, Bauru faz. As outras cidades
fazem. No aniversário de Jaú não tem mais nem desfile, não sei. Todo mundo que cai nesse
governo não tem o espírito, animo de trazer coisa mais bonita. Não via para frente.
Acho que na minha época de moça era mais morto, menos atividades e, às vezes, a
gente acha que a causa foi o domínio da cidade pelos Prado, que só se interessavam pelo café.
Acho que você não teve tempo de ver, o tempo do desembarque do café... Fotografia? Você
sabe um prédio que tem subindo a Quintino, virando para a rodoviária? Um prédio comprido.
Ali era o depósito que ia para os navios. Então fotografias da saída do café para
exportação. Lá era um movimento colosso. Nessa época só teve alguma coisa e um nome para
ser gritado...E Jaú parou. Porque? Aque que por causa do café.... não sei se foi por causa da
qualidade do produto ou dificuldades financeiras... mas, para todo o Brasil foi isso, não é? O
café caiu. Outros países também entraram no comércio e s ficamos com a bendita da cana
agora. Com essa sujeirinha da cana, e outra coisa não se planta, não se tem animais... Eles
vieram todos para a cidade. Você vê, pomba faz um estraga violento. Se a gente não acordar,
não cuidar, outro dia ainda ouvi falar da Santa Casa... Daquele infecção hospitalar. Então
alguém falou: “você entra no corredor central e sobe a primeira escada, olha do lado e tem um
vão escuro, tem umas palmeiras”. As pessoas falam que as pombas fizeram morado por ali.
Está um horror. Onde está o cuidado do hospital, em permitir aquilo? Aquilo é um perigo.
Está o hospital desse jeito, a Santa Casa foi grande. Não me lembro o nome do senhor
que dirigia o hospital, mas veio gente de fora, de mais de uma cidade, para conhecer o
hospital e se inteirar de como era dirigido, do que foi feito, do que se decidiu fazer. De
repente, ela morreu. Mas essa tristeza para gente. Agora a gente tem o Amaral Carvalho. O
São Judas também é muito fraquinho. É isso que a gente vê no jauense... ao invés de
melhorar, está perdendo... Mas vo quer saber do passado e eu fico falando do presente... Eu
236
acho que isso é conseqüência daquilo que não foi feito... não se tomou providência no
passado, hoje não tem.
Do período horroroso para o mundo inteiro, a guerra, quando a Russia estava sofrendo
com os Estados Unidos. Eu me lembro que o Comércio do Jahu que era aqui bem pertinho,
na Amaral Gurgel trazia todas as notícias de guerra, de fora. O jornal punha na frente e
tocavam a sirene quando havia algo... Eu era menina e eu me lembro que um dia a sirene
tocou e eu estava na rua e fui espiar. Eram os dirigentes da Russia que vinham para os Estados
Unidos para decidir aquela questão... da Guerra Fria. Era o encontro dos dois chefes para
decidir, ou resolvia ou explodia. Eu me lembro bem das pessoas em suspense, esperando a
notícia. Uma porção de gente em frente do jornal, esperando a notícia. Eu não me lembro do
João Ribeiro de Barros...
Na verdade, eu me lembrei dele porque houve um acidente... Bom, vou começar do
começo. Ele era fazendeiro aqui em Jaú. Família muito boa. Não era Prado. Depois resolveu
seguir esse caminho... Você conhece a história da viagem dele. Ele foi de uma coragem
espantosa em atravessar o oceano com aquele avião. Fizeram uma festinha para ele quando
chegou. Depois viajou, voltou, viajou e voltou. Tem uma casa., subindo a rua do mercadão, na
mesma quadra. É uma casa toda fechada. Aquela casa era dele. Da família, depois, com o
casamento... ficou pouca gente na casa... com a vida dele... Ele ganhou muitos troféus, jóias,
coisas lindíssimas. Então fizeram uma exposição ali na casa dele. Alguém mais se lembrou
disso? Alguém mais cuidou disso? Resultado: o que tinha, levaram para fazer em São Paulo.
Como é que um jauense deixa acontecer uma coisa dessas? Agora venderam. Já reformaram
tudo. Um dia, quando eu ainda estava aqui nessa escola, na Major, resolveram fazer uma
excursão até São Paulo para ver o avião, para recordar João Ribeiro de Barros. Bom, então
nós fomos e o irmão dele estava lá. O irmão dele chorou na nossa frente em ver o descaso do
jauense, nunca ligaram para nada. Até essa casa, que devia ser tombada, não sei se posso falar
esse termo... Venderam a casa, colocaram um bruta muro em volta e ninguém sabe nada, nada
dele, os troféus, ninguém sabe, imagine para onde foi aquele riqueza? Está sobrando o
avião. Eu sei que o homem chorou diante da gente, de ver que não tem mais nada.
Naquela época não se tinha conhecimento da vida em São Paulo, de outras cidades,
pelo menos não quando eu era menina. Depois eu comecei a freqüentar Bauru, Bariri, Brotas,
Bocaina, o contorno. São Paulo, acho que eu tinha me formado... eu achei São Paulo uma
maravilha e não era nem metade do que é hoje. Mas não tive muita oportunidade de passear
porque a família do meu pai, todo mundo trabalhava, então quando vinha do serviço, queria
descansar. Eu, de jeito nenhum, podia ir sozinha. Conheci um pouquinho. Vim conhecer
237
depois. Depois sim. Mas deve ter mudado muito mais agora. Não havia essa história de
viajar... Porque a vida não dava para isso. Ou por falta de tempo ou por falta de dinheiro..
Falta de interesse, não era como é hoje. Você tem um tempinho, tem uma condução... “deixa
eu ir lá para Botucatu que está fazendo tanta propaganda...”. Não havia isso. A gente não tinha
condução. Estou falando de mim, mas a maioria não tinha. Quem tinha? Essa família dos
Prado, Pacheco, Carvalho... Havia já alguns médicos aqui em Jaú.
havia médicos em Jáu... e acho que eles eram até melhores do que os de hoje que
têm tantos recursos. A profissão de professor era bem quista, eu acho que professor era em
primeiro lugar. Mas havia mecânica... Meu cunhado mesmo, foi mecânico por muito anos
de carros, da Chevrolet, nem sei mais se existe...
Tinham alguns clubes aqui dentro da cidade, fora não. Tinha o JClube, conhece?
Na esquina da Major, bem em frente a minha casa... Tinha o Aero Clube. Todo mundo
freqüentava. O JClube era para os mais importantes e o Aero Clube era mais para a
juventude. Eu dançava bastante. Era pobre. Até professores iam. Não era assim como hoje, só
o chefe da família trabalhava, que era o costume. Porque a mãe era a dona da casa. Que não é
mais. Hoje a criança está ou na creche ou com a empregada ou com a avó, coitadinha. Não
agüenta mais e tem que correr atrás de criança. No meu tempo, não. A mãe era mãe! Ela
ficava em casa e os filhos com ela. Acontecia dos filhos saírem, mas com vinte anos ou
quando casavam.
Os adolescentes iam para escola e não tinha baderna. Não tinha menino de rua que
nem hoje. Onde eu morei não tinha ladrão, a porta ficava aberta. A gente ficava na rua
sentado na calçada. Para que chave? Era uma tranqüilidade. Não havia medo de por o pé fora
do portão.
Acho que você puxou tudo que estava aqui dentro, nem estava pensando... e agora
você me fez lembrar... gostava da minha vida. Era o trabalho... agora eu vi festas, amigos
que eu deixei. Tudo passa. Ficar esperando para contribuir. E com esperança! Com esperança
porque sem ela não se vive. Tem que ter em primeiro lugar fé, pois sem fé não há esperança e
sem esperança não há fé. As duas convivem juntas.
Parei de trabalhar aqui no Major, por causa do bendito candidato ladrão (esse que está
pleiteando a prefeitura de São Paulo, o Maluf). Ele fez umas coisas na gestão dele e todas as
professoras nas minhas condições foram dispensadas. Eu parei de dar aula e fui trabalhar com
religião. Eu moro na paróquia do Patrocínio, mas como eu vivi muitos anos para do rio, eu
fiquei na paróquia de São Sebastião. Lá, tudo o que eles precisam, por exemplo, vai casar,
precisa da eucaristia, o padre de lá manda para mim. Eu trabalho com jovens e adultos. fui
238
de criança, de todos os graus (faz sessenta e sete anos que eu trabalho lá). Tudo para mim é
cumprido, número grande. Agora mesmo eu estou com quatro: uma trabalha no Fórum e vai
fazer concurso para Promotor, outra trabalha na Caixa Econômica Federal, outro tem
faculdade também, um que está no terceiro colegial. Essa gente ainda passa por mim hoje.
Graças a Deus estou atuante na igreja de São Sebastião.
O que eu ouso hoje da escola, se falar avesso, não diz tudo. Nossa! Se usar o termo
avesso não diz tudo. O trabalho do professor hoje, ou ele leva no tapa como a gente diz, ou ele
sofre muito. Sabe que eu gostaria de lecionar agora. Eu faria com prazer. Mas num ambiente
onde eu trabalhei, não como é hoje. Naquela época os alunos estudavam bastante, se
dedicavam. Faziam tarefa direitinho. Dificilmente o aluno deixava de fazer, casos raros, não
é? Algum vagabundinho que tinha. Mas o normal era bem equilibrado, o trabalho do
professor e a correspondência.
No colégio eu dava a matéria através de lição (teve um aluno que guardou os meus
cadernos, mas ele morreu). Eu achava que ficava mais concentrado assim do que eles
pegarem livro, virando página. E a gente sabe que aluno não se dá muito com trabalho
escolar, não é? Mesmo naquela época. Apesar deles corresponderem sim.
Acho que ainda tenho alguns livros. Todos de Português. Muitos eu dei para alguém
que se interessou. Tenho esses aqui, “Gramática Normativa da Língua Portuguesa”, do
professor Rocha Lima, catedrático do Colégio Pedro II; “Moderna Gramática Portuguesa”, do
professor Ivanildo Bechara; “Novíssima Gramática da Língua Portuguesa”, do professor
Domingos Paschal Segalla.
Não me casei, nem tive filhos, por que no ano
que eu me formei no Normal meu pai morreu, em 36.
Então, praticamente eu assumi a casa, eu era a mais
velha. Tinha minha irmã que estudava e meu irmão.
Meu irmão morreu faz uns quarenta anos, nessa casa.
Então ficamos em quatro e não dava para pensar nisso.
Porque nunca deu certo, nem deu, nem dará, para uma
pessoa ficar responsável por duas coisas. Eu teria que
ter a minha família e teria que olhar para outra. E se por
acaso esse marido não concordasse? Para que lado eu
tinha que pender? Para o lado dele. Como é que eu ia
ficar. Então eu acho que é um risco muito grande a
pessoa tentar equilibrar, porque não dá não.
239
240
M
ARCÍLIO
G
ALDINO
P
IRES
S
ABÚ
60
Eu sou da cidade de Agudos, pertinho de Bauru. Eu nasci no dia 21 de janeiro de
1928. Estudei no grupo, fiz até a quarta série (naquele tempo tinha quarta série, não tinha
mais nada), depois parei. Entrei com doze anos, em 1940 e fui até 1944.
Naquele tempo era quase o mesmo quadro de hoje. Os alunos estavam mais ou menos
no mesmo nível. Um ou outro filho de farmacêutico, aquela coisa, que tinha uma diferença. O
resto era tudo mais ou menos e estudavam todos lá, em Agudos. Quem queria continuar
estudando, naquela época, teve que sair. Alguns foram para Bauru, outros foram para
Araraquara (muitos foram para Araraquara), para fazer o ginásio e fazer o curso fundamental.
Por exemplo, eu tenho dois amigos que estudaram comigo que são dentistas, foram para
Araraquara, se formaram em Araraquara. Do mesmo jeito que tinha gente que vinha para Jaú.
Em Jaú, era mais feminino, masculino não tinha. Jaú tinha um bom colégio, colégio das
freiras. Colégio São José.
A infância era difícil antigamente. A gente ficava com
toda a turma, os mais velhos com os mais novos. não era
difícil para os filhos de fazendeiros, mas do comerciante
comum, de quem trabalhava no pasto, essas coisas, era muito
difícil. A bolsinha da gente era um pano, era uma bolsa de pano,
um “embornal”, que levava lanchinho, guardanapinho, e ia para
escola. E essa vida era mais ou menos baseada nesse curso,
porque não podia ter mais do que isso, os pais não podiam. Eles
trabalhavam no comércio, não eram donos de comércio. Nós
somos em seis irmãos. Sou o mais velho. Da minha família, os
únicos que continuaram em Agudos foram as minhas tias.
Depois que eu fiz a quarta série desempregado (tinha um clube, Agudos Tênis
Clube), fiquei amigo de um juiz de direito, Doutor Carlos Pombo. Ele gostou de mim e me
levou para fazer uma limpezinha no clube; no fundo tinha um jogo de baralho. Quando
terminava o jogo, eu tinha 16 anos, dava para trabalhar, dava para fazer alguma coisa.
Meu pai autorizou e eu trabalhei lá, fiquei um pouco trabalhando no clube. Não cheguei a
ficar muito tempo não.
60
Entrevista realizada na residência do depoente, na cidade de Jaú, no segundo semestre de 2004. teve duração
aproximada de 30 minutos.
241
Nesse mesmo clube montaram um conjunto musical. Antes de ser convidado para esse
conjunto, fui num parque de diversão (antigamente tinha parque de diversão) e entrei num
concurso de vozes. Entrei no concurso e venci (essa é uma história que eu não contei para
ninguém). Então, o cara do conjunto me convidou para fazer parte do conjunto. Fui e comecei
a cantar. Quando fez uns cinco, seis meses que eu estava com eles, veio um cidadão da cidade
de Marília e me arrastou para Marília; me pagou um salário. Me pagou um salário livre, e
eu dormia (olha veja você, meu pai não queria autorizar mas no fim autorizou) no clube, tinha
restaurante, tinha um barzinho, tinha tudo. Dormia no clube, trabalhava no clube, e ganhava
dinheiro, cantando. Tinha uma orquestra grande, já comecei a cantar em uma orquestra
grande. Éramos contratados pela maioria dos clubes.
Numa questão de meio ano que eu estava lá, apareceram os irmãos Capelosa, aqui da
cidade de Jaú. Isso em 1950, de 49 para 50. Eles me convidaram para vir para cá: “Você não
quer ir para J? Vamos dar uma volta, aí você conhece Jaú. Só para conhecer. Nós
moramos lá, somos família conhecidíssima em Jaú, nós damos um jeito”. Desenjurei do
clube; agradeci (não podia deixar de agradecer, porque eles me acolheram) e falei que ia
procurar uma vida diferente. Vim para Jna década de 50 mais ou menos. Em 51 montou a
Orquestra Capelosa – Líder Orquestra. E aí então é que a coisa veio caminhando.
Continuei na orquestra e, em 54, fui estudar na escola industrial. Voltei para escola.
Fui fazer o ginásio. Fui fazer um curso (porque tinha que ter um curso) de desenho
arquitetônico, no Industrial
61
. O Capelosa arrumou uma nomeação como inspetor de alunos,
na escola. Eu trabalhava de dia e estudava a noite. No Industrial eu me preparava para um
ofício. Quando fui nomeado para inspetor de aluno, tinha feito o segundo ano. Fiquei
quatro anos e terminei o curso, fui até 58. Sempre cantando na orquestra.
Voltei a estudar porque eu achei interessante. Achei que quarta série para mim era
muito pouco. E eu estava me infiltrando no meio da turma que evidentemente sabia mais que
a gente e entendi que teria que estudar um pouco. Tenho vários colegas que estudaram
comigo e estão por aí; radialista, tudo, todos os meus colegas de estudo. Senti necessidade de
voltar, fazer e completar esse curso.
O grupo era bom. Mas depois você vê, eu senti uma certa dificuldade quando voltei a
estudar. Fui ser funcionário público e senti a necessidade de estudar mais um pouco.
Antigamente se aplicava muito português e matemática. Eram essas duas, eles explicavam
bem. Lembro da professora Adalgiza e Dona Lourdes, só. Aqui no Industrial eu me lembro
61
Fundada em 1928, a Escola Industrial “Joaquim Ferreira do Amaral”, destinava-se a dar orientação
profissional a alunos que não podiam freqüentar as escolas particulares da época.
242
mais. Aqui tive ótimos professores. Mário Romeu Pelegrini, era professor de matemática. A
professora de português era Almeida Prado, Maria de Lourdes Martins de Almeida Prado.
Depois mudou o professor de matemática, ficou a Maria Aparecida também, não sei se era a
Almeida Prado. E o professor Mario Romeu Pelegrini. Do Grupo eu não tenho mais nada,
nenhum material, perdi tudo.
Aqui no Industrial, no primeiro ano, eu fui para um ambiente completamente
diferente. Era estudo, mas completamente diferente. Aqui, no começo eu senti um pouco de
dificuldade, mesmo porque eu nunca tinha pegado uma régua, e o fundamental do curso era
desenho. No começo eu tive, depois eu fui pegando.
Naquele tempo, tinha um certo rigor. A classe, por exemplo, a nossa era transversal.
Então, o que eles faziam? Faziam primeira fila, segunda, terceira, quarta fila mulher, e o resto
homem. Havia essa separação. Quando tinha uma vaga no meio então era feminino e
masculino. Era, um rigor danado! Eu acho que era muita disciplina, muita disciplina, ordem
nas coisas, pontualidade. Hoje, tem muita liberdade. Não vamos dizer que não tem
honestidade, que não existe honestidade, isso é de cada um, mas está faltando uma coisa que
antigamente, vamos dizer também que vinha de casa e hoje não vem mais. Vamos ter que
aprender na rua ou na escola?! É muito difícil. Lógico que uma parcela muito grande tem que
ser em casa. Uma vez eu briguei com um menino lá da escola, cheguei em casa e apanhei. No
grupo. E em casa eu apanhei porque briguei lá. Não é para brigar, apanhei para aprender. Os
professores tinham mais autoridade. O professor até exagerava, eles até exageravam. Em uma
ocasião passou um avião, que era coisa muito difícil, passou um teco teco perto, eu e mais
uns dois saímos para ver o avião no recreio. Não podia sair. Saímos do grupo e a professora
veio com uma tabuinha e nas costas da gente. Quer dizer, isso era uma maneira de se
impor, não é?. Hoje não é batendo, mas antigamente era. Ajoelhava no milho, eu ajoelhei no
milho. Eu era meio danado, viu. Mas os castigos, não eram tão pesados. Eu não achava justo,
nem podia achar, mas eles faziam, era uma maneira de segurar a gente, e segurava. Eu não
reclamava, porque minha mãe achava ruim, minha mãe ficava brava. Era, sabe, aquelas
famílias de pobretão, mas criava os filhos em cima da risca, com muito respeito. Respeito era
primordial e tinha muito respeito.
No industrial era escola mista. Era mulher e homem. E no desenho não tinha pouca
mulher, não. A classe era mista e tinham outros cursos: tinha curso de bordado, tinha curso de
marcenaria, tinha curso de desenho, que eu fiz, tinha escola de mecânica, tinha escola de
fundição. Tinha tudo isso. E tudo era um prédio só. Então os encontros aconteciam. Conheci
minha esposa aqui em Jaú, estudando. Numa daquelas comemorações que tinha, super
243
rigorosa, fiquei conhecendo ela num desfile. Começamos a namorar e ai a coisa foi em frente.
Inclusive minha mulher terminou o estudo no colégio São José. Quando a gente se conheceu
ela estava estudando na Academia. Depois da Academia o pai dela (não sei por que foi, não
sei se foi porque tinha muito menino junto, e ele não queria, era classe mista) não concordou
com isso, pegou e colocou ela no Colégio das Freiras. Me casei e fui continuando,
continuando com a orquestra e nunca mais saí de Jaú. Tenho dois filhos e dois netos.
Casei em 58. Casei com uma jauense. Ela também não é jauense, veio de fora. Essa
não tem comprovante de jauense. Eu tenho comprovante, porque me deram o tulo
62
. Em
67 fui indicado por um vereador, para receber o tulo de cidadão jauense. (Depois você vê as
datas, confere
63
). Não tem muito segredo não, é que é difícil guardar com uma idade mais ou
menos avançada já não dá para guardar tudo. Mas em todo caso a gente guardou esses
detalhes). Recebi o título. Então, através desse título comprova. Hoje eu sou jauense
Voltar a estudar foi determinante na minha vida. O grupo foi um início, por onde todo
mundo começa, e para completar, esse segundo curso que eu fiz me ajudou muito. Depois
disso eu passei a ser até comerciante. Fui dono do Hotel Paulista (esqueci de detalhar isso no
meio de todo esse tmite de orquestra e tal). Por isso eu até saí da escola como inspetor de
aluno. O pai da minha esposa era hoteleiro. Eu casei e comecei a trabalhar
como vendedor (fazia tudo sem deixar a orquestra. A orquestra não pára. Paralelo à
orquestra). O que foi positivo para mim é que eu entrei no comércio. Entrei bem no comércio.
Nunca tinha sido vendedor na minha vida. Quando eu estive no Industrial, tive todo esse
conhecimento. Matemática e português foram uma coisa histórica para mim. Foi muito bom.
Isso me ajudou bastante. Por isso a gente aconselha as pessoas que tem que estudar. O único
caminho é o estudo. Não tem outro caminho. Tem que estudar. Isso é que vai.
Os professores daqui do Industrial também exigiam bem. A escola era um modelo. O
sujeito que se formava em mecânica, fundição, essas coisas, vinha gente de Piracicaba,
Limeira, para contratar o formado, o recém formado. Era um negócio muito bom. Vinha
muita gente de São Paulo para contratar. Sempre fiquei em Jaú, sempre fiquei. Trabalhando e
estudando. Depois de um certo tempo, comecei a viajar, viajar, e no ano de 80 eu me
aposentei (comecei em 56). Viajava com cereais. Eu era vendedor e fazia as redondezas.
62
Titulo de “Cidadão Jauense”, conferido àquelas pessoas que, de algum modo, se destacam no conjunto da
população, devido a obras em prol do município.
63
Através do Processo 585/87, de autoria do vereador Emílio Baldini, foi proposto a Câmara Municipal de
Jaú, que o senhor Marcílio Galdini Pires, recebesse o titulo de “Cidadão Jauense”. Entre outras justificativas,
destacam-se os “relevantes serviços prestados no nosso município no setor da música e no setor empresarial”
(proc. 585/87). Aprovado por unanimidade o decreto, de mero 100, foi lavrado no dia 03 de novembro de
1987.
244
Quando chegou em 80, não exercia a profissão diretamente, mas tive que ser profissional de
música, porque eu estudava música também. Tive que ser profissional de música para poder
exercer as funções que eu exercia na orquestra. E essa carteira de música me deu cinco anos
para aposentadoria. Muita gente nem sabe disso.
Desde que comecei, que ganhei aquele concursinho, que fui para Marília, música
ainda era um hobby. Era um hobby, mas um hobby produtivo, que eu já comecei a conviver e
a viver desse hobby. Se me apresentassem um emprego no Banco do Brasil eu não queria. Eu
queria a música. Então aquilo era hobby, mas também uma necessidade. Um trabalho.
Depois do concurso eu não podia dizer que era um hobby, já era uma profissão. Hobby
foi até quando eu fui para Marília. Trabalhei em duas profissões, uma ao lado da outra, a
música e o comércio. As duas com seriedade. Depois que eu me formei no Industrial, eu quis
ir para o comércio, porque é uma coisa que gira mais e eu entendi (naquela época eu
entendi) que era uma janela, um caminho, uma porta a mais na minha vida que podia ser a
solução para continuidade.
Hoje estou verdadeiramente aposentado. Vendi o Hotel agora, mas às vezes, vou dar
uma mão para o meu filho. Meu filho tem uma industriazinha.
Hoje, então, vindo lá de trás, em setenta e pouco a orquestra parou. Fiquei num
programinha aqui, cantava um pouquinho lá, então eu resolvi dar uma parada. Então, me
convidaram para entrar num clube de lazer para os idosos, (eu não era idoso, mas me
convidaram e eu fui). Eu era casado e fui para o clube. Fiquei um ano e pouco lá. O clube
cresceu um pouquinho; a prefeitura ajudava, depois veio àquela Legião da Boa Vontade
(assistência social, não sei), e começou a financiar um pouquinho o clube. Ele cresceu. O que
se fez? Comprou uns instrumentos e montou um conjunto e me disseram: “você vai
organizar”. Eu disse: “Nossa, mas faz tanto tempo, desde que comprei o hotel”. (Isso foi em
80, 81). Estou até hoje. E hoje, você me perguntou o que faço, eu sou diretor musical do
clube. Eu que comando o conjunto. O clube foi muito bom para mim. Eu tinha um grupo
muito grande de amizade, através do meu trabalho como vendedor, em Jaú e fora de Jaú; e
depois, conhecendo os idosos, evidentemente cada idoso tem um filho, uma filha, um neto,
um bisneto, essas coisas, ampliou os meus conhecimentos pessoais.
No começo a minha esposa não ia muito, mas depois acabou gostando, foi se
adaptando. Ela ficava em casa e eu saía. Depois ela cansou de ficar sozinha e acabou cedendo.
Então, é essa vida que eu vou levando até hoje. Sou diretor da música no Clube; lá eu
comando a música, dou o crivo.
245
246
M
ARIA DE
L
OURDES
M
ARTINS DE
A
LMEIDA
P
RADO
64
Eu me chamo Maria de Lourdes Martins de Almeida Prado. Tenho 82 anos. Sou viúva
de José Murilo do Amaral de Almeida Prado, jornalista e advogado. Meus pais foram Silvino
Pereira Martins, nascido no sul de Minas, e Agar Fraga Moreira Martins, filha de cearense e
baiano, portanto uma mistura de diversas áreas do Brasil. Nasci aqui em Jaú, onde sempre
morei, salvo em um pequeno período, em São Paulo e nos diversos lugares onde lecionei. Fui
criada na fazenda Macaco, propriedade do meu pai, que fica no bairro Independência. Quando
estava com três anos meu pai havia falecido dez vendemos a fazenda, então essa
parte da minha vida acabou, com muita tristeza.
Aprendi a ler em casa, com a mulher de um empregado
do meu pai, ainda me lembro dela. Com oito anos vim para
cidade e fui matriculada no 2º ano do Grupo Escolar Major
Prado, onde cursei o primário. Tínhamos casa na cidade e
ficávamos com uma empregada muito boa e com minhas irmãs
mais velhas, do 1º casamento de meu pai. Terminado o primário
fiz um exame de admissão e ingressei no Colégio São José, das
freiras, fiz até a série ginasial e, depois, a Escola Normal de
formação de professoras. A Escola Normal ficava na rua
Quintino Bocaiúva.
Tive bons professores e guardo muitas recordações agradáveis. Uma das professoras,
que era bem nova naquele tempo, ainda vive, Maria Cesarina, dava aula de Didática. É uma
pessoa muito ativa, será interessante conhecê-la.
Terminando o curso ginasial não havia muitas opções além da Escola Normal a não
ser que fosse estudar em centros maiores, o que, para moças, era mais difícil; mas não
impossível. Havia ainda o curso ginasial do Colégio São Norberto, dos Padres, a Academia de
Comercio Horácio Berlinck, com curso de Contabilidade.
Meu pai teve nove filhos, quatro do primeiro casamento e cinco de minha mãe. Ainda
vivem as minhas duas irmãs mais velhas, com 92 e 91 anos. Os outros irmãos morreram
todos, um aos treze anos e os outros na faixa de 44 a 49 anos, de enfarto.
64
Entrevista realizada na residência da depoente, na cidade de Jaú, no segundo semestre de 2004. Teve duração
aproximada de 1 hora. Esse foi o único depoente que realizou corte quando de posse do depoimento, em sua
primeira textualização. Retirou vários trechos do mesmo.
247
Ao terminar a Escola Normal, aos dezoito anos, fui lecionar na nossa fazenda, que
tinha uma escola municipal rural. As escolas isoladas eram muitas. A uns 3 km havia mais
duas, estas, estaduais. As professoras tinham que morar no bairro. Para se conseguir uma
escola estadual era necessário entrar em concurso de pontos, o de prova. Os pontos eram
conseguidos trabalhando como substitutas nos Grupos Escolares ou em escola municipal, esta
conseguida por indicação.
Nas escolas isoladas dava-se aula ao mesmo tempo, de 1ª, e séries. O tempo era
bem distribuído e, as lições, planejadas de acordo. Creio que ainda é assim. Na época da
colheita alguns alunos faltavam para ajudar os pais, como ainda hoje. As professoras eram
orientadas em reuniões mensais e possuíam uma manual para todas as matérias. As escolas
eram visitadas por inspetores e o exame final também aplicado por eles.
Depois de dois anos em escola municipal, ingressei na estadual. Fui para penápolis,
num bairro de sitiantes a uns 30 km mais ou menos da cidade. Daqui a Penápolis se podia
ir de trem, pela Noroeste, depois de Bauru. Levava mais de seis horas para chegar. Fiquei
morando no bairro, vinha nas férias, pois o era fácil ficar indo e voltando. Um sitiante
dava-me pensão; sem muito conforto, mas gente simples e boa. As professora que
ingressavam eram estagiárias e seriam efetivadas depois de 180 dias de trabalho, um ano,
portanto. Nesse tempo, meu pai com câncer, piorou muito e acabou morrendo. Precisei
afastar-me e com isso não consegui a efetivação para entrar em concurso novamente. E fiquei
mais um ano no local. Era tempo de guerra, não havia gasolina e muitas coisas mais. A
condução para o bairro era uma jardineira (ônibus aberto dos dois lados), movida a gasogênio
e levava horas para chegar. Para ir à cidade no fim de semana enfrentava as mais diversas
conduções até o bairro vizinho: carro de boi, carrinho de franqueiro, cavalo ou a pé, 6km.
Hoje em dia, em face à violência, não se poderia fazer isso. O sistema era o mesmo
mencionado.
De Penápolis fui para Lins, onde lecionei em um bairro japonês. Morava na cidade e ia
de ônibus até perto do bairro (uma hora) onde uma charrete nos esperava, éramos duas. Os
japoneses são muito zelosos, tratam os professores com muito respeito e facilitavam tudo para
eles. Fazem questão que os filhos aprendam e não faltem à aula. Foi um tempo bom.
De Lins fui para Estação Canela, que fica logo depois de Torrinha e é pertencente à
Brotas. Uma hora e dez minutos de trem. Saia de casa bem cedo e voltava bem tarde. Foram
três anos. Então me casei.
Fui morara na fazenda do meu sogro e consegui escolher uma escola no sítio vizinho,
bem perto. Era no bairro Campinho do Meio, pertencente a Itapuí. Depois de três anos meu
248
sogro vendeu a fazenda. Desta vez fui para o Grupo Escolar Eliazar Braga, em Pederneiras.
Tinha duas companheiras: Wanda Carboni e Gema Cardelo. Viajávamos de trem. O grupo era
ótimo e o diretor muito exigente. Foi um período muito bom e, por coincidência, durou três
anos. Meu marido foi para São Paulo e tive que segui-lo.
Desta vez fui para um Grupo no alto da Mooca, na Quarta Parada. Bem longe do lugar
onde morava, tomava duas conduções. Foi um tempo difícil, filhos pequenos e, as vezes,
esperando outro. Engraçado, foram três anos... Meu marido voltou para Jaú e logo depois vim
para o Grupo Escolar Major Prado, onde estudará em criança.
Estava acostumada a alfabetizar ou lidar com crianças menores. Desta vez, foi uma
“revolução”, tive que enfrentar um quinto ano, que existia no Major Prado. Era um curso
preparatório para um exame do ano ginasial, chamavam-no vestibulinho e era bem
apertado. Todos tinham que fazê-lo.
Nessa época havia o Instituto de Educação, a Escola Industrial e as escolas
particulares. Depois da série ginasial os cursos clássico, científico e normal. Eram escolas
ótimas que preparavam bem os alunos.
Trabalhei dez anos no Major Prado e me aposentei. Foi uma época em que surgiu a
Lei da Paridade, mais ou menos em 1967, desde então, as coisas começaram a mudar.
Não gostei de me aposentar. Fiquei dando aula particular, preparando alunos para o
vestibulinho, até que este foi cancelado. O curso fundamental passou a ser de 1ª a 5ª séries e o
Médio compreendendo os três anos de Colegial.
Entrei em uma Faculdade em Jaboticabal, curso de Matemática, mas até o ano e
precisei parar. Foi então que fui trabalhar na Fundação, na biblioteca, de manhã e à noite.
Pouco mais de três anos, Dona Ira, a diretora, precisou de uma professora e ofereceu-me a
classe, 4ª série, português, história e religião.
Na Fundação trabalhei 26 anos. Nos últimos
9, sem classe, no laboratório de redação, corrigindo
trabalhos do Colegial e 8ª série
Hoje as coisas são bem diferentes de quando
comecei, muito avanço tecnológico, progresso e
mais vivência dos alunos. Quanto à disciplina e
respeito, uma lástima.
Está é a minha história. 63 anos na ativa.
Não sei se é o que você queria saber.
249
V
IDAS
I
LUMINADAS
250
Essa é nossa história.
Quem não tem história inventa uma história.
251
Serei honesto e direi que, antes da nossa busca rígida, eu achava que
os judeus tinham merda na cabeça. Isso porque tudo o que eu sabia sobre
eles é que pagavam ao meu pai grandes somas para irem de férias da
América à Ucrânia. Eu era da opinião que o passado era passado e, como
tudo que não faz parte do presente, deveria ficar enterrado, junto com
nossas lembranças. Mas isso foi antes do começo da nossa busca muito
rígida, antes de eu conhecer o colecionador... Jonathan Safran Foer.
Traçar um panorama da região de Ja partir das vozes de seus atores para explicitar
suas práticas de cuidado de si foi a nossa história.
Nosso falar de história a partir do que dela nos falam as pessoas, os personagens, os
depoentes, foi o caminho escolhido para tanto. Não apenas o caminho, mas o Fio de Ariadne
de nosso trabalho de pesquisa, o que nos permitiu continuar. Afinal, como já nos disse
Foucault,
Quando não é mais que a realização de um programa teórico, a
escrita perde sua vocação autêntica, que consiste em ser lugar de uma
experiência, de um ensaio /.../(FOUCAULT, 2004:615).
O cuidado de si dos sujeitos dessa pesquisa, as práticas de cuidado de si que
explicitaram e, também, as que não explicitaram nos trouxeram até aqui. Permitiram não
apenas as costuras que até aqui fizemos, mas a existência das mãos que as materializam.
Nosso desejo inicial de continuar os estudos sobre as Licenciaturas em Matemática,
fruto de pesquisa de mestrado, não se efetivou quando do ingresso na Pós-Graduação em
Educação Matemática, da UNESP de Rio Claro. Talvez porque foi determinado por um outro
ou outros. Talvez porque “nossos desejos” sempre estiveram em outras mãos nas mãos
dos “outros” – , sempre alheios a nossa vontade.
De todo modo, o “eu” que se presentifica aqui sou Eu, e não um outro. Eu que não é o
mesmo do inicio, mas que também não é um outro, não se deixa dirigir pelas mãos dos outros.
Um eu mais próximo da hermenêutica do sujeito e dos cuidados e práticas que dela advém.
Mais próximo da autonomia que Foucault brilhantemente descreve e defende.
A revolução que a École des Annales nos trouxe, talvez não se faça mais na história
seja ela qual for. Os novos métodos, as novas concepções não apenas abriram caminho para a
Histoire de la Mentalités, tão cara a presente investigação, mas nos permitiu utilizar a História
Oral, não apenas como um método de coleta inserida na pesquisa qualitativa, tampouco como
um modo de obter registros históricos, mas fundamentalmente, como uma nova forma de
olhar o mundo, as lembranças e registros das pessoas.
Ancorar nossa pesquisa nas concepções e idéias defendidas nos textos que antecedem
essa discussão foi nossa opção. Idéias e concepções que tomam as práticas do cuidado de si,
252
como essenciais na busca de nossa autonomia, na busca pelo assujeitamento apenas a si
mesmo.
Essa autonomia passa por uma série de pticas de cuidado de si. Práticas, como
dissemos, que são necessárias para atrelar a verdade ao sujeito. Pticas que têm como um de
seus principais elementos o uso da memória, a hypomnémata.
O processo de validação dos relatos de nossos depoentes descreve o desenrolar de uma
relação na qual os sujeitos falam de si, se olham, ser re-olham, talvez se avaliem, se auto e re-
autoavaliem. Fazer-se ouvir aqui, demonstra a aproximação da história oral com as práticas
defendidas na presente investigação. O “se fazer ouvir”, escrevendo, também se mostrou
presente em nosso Diário de Campo.
Os recortes do Diário de Campo explicitam, de certa forma, esse desejo de cuidar de si
mesmo.
No inicio tínhamos como objetivo estudar os documentos legais (ditos discursos
oficiais) sobre as Licenciaturas em Matemática e confrontá-los com aqueles propagados em
eventos científicos (ditos discursos “não-oficiais”), a partir da genealogia de Michel Foucault.
Materializou-se, na presente investigação, um “olhar” para trás sobre a formação escolar
existente nas primeiras décadas do último século. Recorte temporal mais tarde delimitado
entre os anos de 1925 a 1945, por serem esses os anos nos quais nossos depoentes se
encontravam em idade escolar.
Tal “opção” se fez pelo fato de que, assim, poderíamos abarcar um tema e período no
qual nenhuma investigação do grupo de pesquisa de História Oral e Educação Matemática
GHOEM havia ainda se debruçado. E, ainda, de certa forma, estaríamos a olhar para a
formação de professores.
Entretanto, nossa imersão no trabalho de campo fez-nos perceber que não havia
legislação especifica para a formação de professores e, muito menos, para a formação de
Diário de Campo 4 – D.C. 4
Imerso em um período de incertezas, acredito ser viável anotar as
considerações que farei no decorrer do meu doutorado. Na verdade, assim como tinha
a necessidade de explicitar, textualmente, todas as passagens para o estud
o e esboço
de uma função, em Cálculo, com a professora Regina, acho que isso se faz necessário
nesse momento. Fiz disso um hábito, quando estou preparando uma aula parece
automático esse caminho; explicitar todas as passagens me parece adequado para que
possa omitir al
gumas quando estou na sala de aula, com meus alunos. Certa vez a
professora Regina me perguntou: “quando temos o direito de dizer aos nossos alunos
que esquecemos algum conteúdo?” Ela mesma respondeu: “quando o sabemos”.
Acredito que isso se aplique ao cam
inho que estou disposto a trilhar aqui.
253
professores de Matemática. E que, por isso, o único modo de materializar nosso desejo de
esboçar um panorama da educão e seus entornos, era explicitar as práticas cotidianas de
nossos depoentes, através de suas vozes. Explicitar o modo como se vestiam, como eram
determinadas suas relações sociais, sua alimentação, sua formação escolar, passou a ser nosso
objetivo.
Configurava-se, assim, a necessidade de explicitar as práticas de cuidado de si e o
caminho escolhido para isso foi a hermenêutica do sujeito, não a genealogia, mas a ética de
Michel Foucault.
Práticas apreendidas por nossa imersão no contexto da época
65
na qual se situavam
nossos depoentes e registradas com o uso da História Oral, com seus métodos de registro e
apreensão de entrevistas, bem como de abordagem e obtenção de fotos, arquivos e livros.
65
É importante ratificar que no inicio de nossos estudos em paralelo à apreensão e seleção de entrevistas,
realizamos leituras sobre legislação, cultura, arquitetura escolar, entre outros assuntos, visitas a museus, escolas,
famílias, com vistas a perceber possíveis conexões com o tema e época de estudo.
Diário de Campo 5 – D.C. 5
Percebemos, juntos, que essa inviabilidade
de início temporal, mas depois
de outras ordens
em manter o foco inicial da investigação sobre a legislação em
trâmite poderia ser ultrapassada por essa n
ova direção sugerida, principalmente porque
meu desejo centrava-
se, em essência, na questão da formação de professores.
Optamos, então, por um “olhar para trás”, uma vez que o presente ainda encontrava-
se
em intenso movimento, o que dificultava sua apreensão.
Diário de Campo 6 – D.C. 6
Entrei em contato com a direção do Grupo Escolar da cidade de
Pederneiras, fundado em 1917. Ao contrário dos arquivos da P
ádua Salles, na cidade
de Jaú, estes estavam mais organizados e conservados em um porão, no subsolo da
escola. Nestes arquivos encontrei fichas de matriculas dos alunos da década de 1920
nessas fichas havia o endereço, a filiação, profissão do pai etc, d
iários de exames com
as notas e aprovações
nos quais eram registrados o número de alunos ingressantes
em cada ano, e quantos foram aprovados e detidos[fica uma impressão de presos que
tal o usual retidos]; diários de registros todas as correspondências
emitidas eram
registradas nesse livro (desde ofícios com reclamações de professores, até ciência de
que havia falta de água potável etc., diários de professores –
currículo dos professores,
endereço, cidade de origem etc., diários de contas balancetes,
notas de serviços;
etc.).
254
Outro ponto importante a ser ressaltado, foi o contato com nossos depoentes. Por se
tratarem de pessoas com uma idade avançada, nem sempre se sentiam a vontade para
conversar de suas experiência com um “estranho”. Foram necessários alguns contatos prévios
e, algumas vezes, encontros, para transpor essa barreira.
Houve, ainda, a questão da expectativa em relação à situação de entrevista, bem como
do uso que dela seria feito posteriormente – apenas dois depoentes não autorizaram de
imediato, através de Carta de Cessão, o uso do depoimento: uma apenas autorizou após
redigir, de próprio punho, o depoimento; e outra, após os filhos lerem e autorizarem.
Essas questões de ordem operacional não diminuíram a imersão e comprometimento
de nossos depoentes com a pesquisa. Pelo contrário, muitas agradeceram por tê-los feito se
lembrar de tantos acontecimentos que tinham vivido.
E nos os agradecemos por nos mostrarem, quão necessários são esses exercício, quão
necessários são essas práticas de cuidado de si, de cuidado do outro.
Foucault discorre brilhantemente sobre essas práticas e como, a partir delas, se atrela à
verdade ao sujeito. Soubemos o que há de tão perturbador no cuidado de si.
O curso de 1981–1982, ministrado no Collège de France, que tinha como tema o
cuidado de si, mostrou-nos o caminho para a autonomia do sujeito. O caminho para o
assujeitamento apenas a si mesmo.
O estudo do surgimento do cuidado de si na reflexão filosófica no período socrático-
platônico; a idade de ouro que atingiu, a partir da ascese cristã, nos séculos I e II de nossa era;
e, a autonomia do sujeito para a qual nos levou, nos séculos IV e V, foi o caminho percorrido
por Foucault. E percorrer esse caminho, junto com ele afinal que se passar pela relação
com o outro, com um mestre –, nos permitiu explicitar nossas práticas de cuidado de si e,
principalmente, as práticas de cuidado de si de nossos depoentes.
Foucault nos diz que o cuidado de si não é apenas uma atitude do espírito, mas
também uma série de práticas que nos remetem a atos de conhecimento e que se referem à
Diário de Campo 7 – D.C. 7
Por telefone marquei um horário para que pudéssemos nos encontrar. H
ouve
certa dificuldade para isso, já que não tinha horário disponível. Mostrou-
se uma
senhora muito ocupada. Depois de alguns telefonemas e datas desmarcadas, nos
encontramos em sua casa. Na data em questão atendeu-
me ao portão, onde expliquei o
que desejava. Mostrou-
se um pouco indiferente e solicitou o roteiro da entrevista, com
a justificativa de que não tinha uma memória muito boa e o roteiro a ajudaria. Como
não havia levado o roteiro, fiquei de passar no dia seguinte apenas para deixá-
lo.
Combinamos,
então, que assim que tivesse lido o roteiro e tivesse disponibilidade, me
retornaria com uma ligação.
255
atenção, ao olhar para si mesmo, ao estar tento a si, a examinar a si mesmo, ao retorno a si
mesmo. Práticas que sugerem um movimento global de existência. Um movimento de retirar-
se a si, de recolher-se a si.
Práticas que se referem a atividades como refluir sobre si mesmo, retrair-se, instalar-se
em si mesmo, perceber-se. Práticas que se referem a atividades de conduta particulares em
relação a si, como tratar-se, curar-se, amputar-se, reinvidicar-se a si mesmo, liberar-se,
desobrigar-se, cultuar-se, honrar-se, respeitar-se, envergonhar-se.
Práticas que designam certo tipo de relação permanente consigo. Quer se trate de
relações de domínio e soberania: ser mestre de si. Quer de sensações: sentir prazer consigo,
alegrar-se consigo, ser feliz em presença de si, satisfazer-se consigo mesmo.
São práticas que nos preparam para a vida. Que nos provem de discursos em vista do
futuro incerto que nos aguarda. Práticas que nos provem de discursos, que atrelam verdades.
Discursos que precisam estar à mão prochïron echeïn quando deles precisamos.
São discursos teóricos, discursos da natureza. São discursos de sabedoria, de felicidade, de
autonomia. Discursos que nos levam a hermenêutica do sujeito.
256
A
TENA
Estátua de Atena no Museu do Louvre, em Paris.
Atena (em grego, Αθηνά) é a deusa grega da
sabedoria, do ofício, da inteligência e da guerra
justa. Zeus apaixonou-se por Métis, tendo sido
ela sua primeira esposa. Contudo, foi advertido
por sua avó Gaia de que Métis lhe daria um
filho e que este o destronaria, assim como ele
destronou Cronos e, este, Urano.
Amedrontado, Zeus resolveu engolir Métis.
Para tanto, utilizou-se de um fabuloso ardil.
Convenceu sua esposa a participar de uma
brincadeira divina, na qual cada um deveria se
transformar em um animal diferente. Métis,
desta vez, não foi prudente, e se transformou
numa mosca. Zeus aproveitou a oportunidade e
a engoliu. Todavia, Métis estava grávida de
Atena, e continuou a gestação na cabeça de
Zeus, aproveitando o tempo ocioso para tecer
as roupas da sua vindoura filha. Um dia,
durante uma guerra, Zeus sentiu uma forte dor
de cabeça, e Hefesto, o feio deus ferreiro e do
fogo, lhe deu uma machadada na cabeça, de
onde Atena saiu já adulta com elmo, armadura
e escudo. Atena se tornou a deusa mais
poderosa, ensinou aos homens praticamente
todas atividades, como caça, pesca, uso de
arco-e-flecha, costurar (algo que ela fazia
como ninguém), e, como havia saído da mente
de Zeus, seu maior poder era mental. Atena
deveria ter se tornado a nova rainha do
Olímpo, mas como era mulher, Zeus
permaneceu no poder.
Morria muita gente nessa época, falta de recursos. Naquele tempo não tinha muito recurso. Só quem
tinha recurso eram os fazendeiros que vendiam as terras para os sitiantes, para os colonos. E depois que
vendiam o fazendeiro não tinha mais nada a ver com isso.
A infância era difícil antigamente. A gente ficava com toda a turma, os mais velhos com os mais
novos. não era difícil para os filhos de fazendeiros, mas do comerciante comum, de quem trabalhava no
pasto, essas coisas, era muito difícil. A bolsinha da gente era um pano, era uma bolsa de pano, um
“embornal”, que levava lanchinho, guardanapinho, e ia para escola. E essa vida era mais ou menos baseada
nesse curso, porque não podia ter mais do que isso, os pais não podiam.
[Então], a minha infância, não era como hoje que tem tudo. Não fiz muita arte, não. Mas hoje, os
filhos aproveitam muito dos pais, não é? Hoje aproveitam. Meus pais me ensinavam a respeitar todos, seja
preto ou seja branco, o que for.
[Antigamente] a mentalidade era totalmente outra. A gente tinha pelos pais quase que uma
veneração. Hoje, eu tenho pena dos jovens de hoje. Porque hoje eles fazem, por força da época, eles
257
respondem para o pai, respondem para a mãe, sacodem os ombros e o pai nem liga. Mas no meu tempo não, a
educação era rigorosa. Era muito... Às vezes a gente chegava nem podia manifestar até raiva do pai e da
mãe. Porque eles eram muito... Menina saía de noite, ia dar volta no jardim, como fazem até hoje, mas tal
hora tinha que estar em casa.
Mas o que mais me assusta são essas meninas de hoje, que não tem mais, assim... Como que se diz,
resguardo, eu acho. Está muito liberal. Naquele tempo casava cedo, mas era diferente. Porque antigamente
era o menino que levava a menina para o mato, como a gente falava, hoje é a menina. Se você tem um filho
homem, você tem que instruir o seu filho, senão ele cai, porque elas pegam mesmo. E outra, elas pegam dessa
maneira errada e não vão continuar, porque não vai continuar. Então, isso aí me assusta. /.../ E outra coisa
que me assusta muito, porque – e isso a gente não pode falar, se falar é atrasada, mas não é. Não é. Eu estou
vendo que está mudando. Está mudando muito. A televisão, por exemplo, antes para você ver uma cena de
sexo era difícil, hoje, novela das dez tem. Eu acho que isso daí também está estragando o nosso país. Tem
ainda umas meninas inteligentes, porque eu falo para você, é a burrinha que faz isso.
Eu não sei por que me desliguei bem da infância, da adolescência. Às vezes eu até me lembrava de
algum fato, mas não registrou ou apagou, porque a gente também não fica falando, não fica lembrando.
Às vezes há motivo para você comentar esse ou aquele fato, mas se não houve interesse, acaba esquecendo.
O grupo foi um início, por onde todo mundo começa. Matemática e português foram uma coisa
histórica para mim. Foi muito bom. Isso me ajudou bastante. Por isso a gente aconselha as pessoas que tem
que estudar. O único caminho é o estudo. Não tem outro caminho. Tem que estudar.
O ensino era muito mais valioso [antigamente], ensinava muito mais. Naquele tempo os professores
ajudavam a educar as crianças, viu! Hoje não, se o professor relar a mão em um aluno, processa, essa coisas
todas. Então naquele tempo, a gente aprendeu muita educação na escola, porque os pais não tinham quase
tempo, mas a escola ensinava direitinho. E a sorte nossa foi que nós tivemos essa convivência com as freiras,
que nos ensinaram coisas boas, viu, bem! Eu acho que nossa mocidade foi muito melhor do que a de hoje.
Eu acho. Até por conta da educação das freiras e tudo. Elas nos ajudaram em tudo.
Outra coisa que eu acho, antigamente eram cursos melhores. Tinha o francês, tinha o inglês, coisa
que hoje não tem mais. Então eu acho que o conhecimento era bem maior, bem maior. Quer dizer, o Estado
tinha estrutura, pelo menos no começo tinha.
E uma coisa que eu ando preocupadíssima, é o computador. Eu acho que o computador estragou a
nossa juventude. Seria um avanço se fosse empregado em certas coisas importantes: bancos, lojas, só. Agora
meus netos vivem em Internet, conversando com os outros, jogando, fazendo joguinhos... Essas coisas. Eu
acho que isso ai está fazendo as pessoas não comprarem mais livros, a ler, não vai mais em teatro, não tem
tempo mais de ir ao teatro. Cinema não, porque tem na televisão. Eu sou contra viu bem. Tanto que eu
tenho uma neta que está morando no Japão e eu sinto vontade de vê-la é claro. E se eu comprasse um
computador eu ia vê-la, mas não compro. Na minha casa eu não quero. /.../
258
Antes de ir para Escola Normal, o pessoal fazia, naquele tempo, a chamada Escola Complementar.
Que também era paga. tinha o colégio das irmãs, e o colégio dos padres. Então quem quisesse estudar, e
não tinha condições, não tinha vez. Ficavam internas no Colégio Dezoason, também. Outras moravam em
pensionato. Mas quem tinha mais recurso, estudava em São Paulo.
As pessoas procuravam mais São Paulo porque é um campo maior. São Paulo era a meta de todo
mundo. Parece que São Paulo tinha aquele chamariz. E eu sei que era São Paulo, todo mundo queria ir para
São Paulo.
Na escola nós usávamos uniformes. Aqui na Escola Normal nós usávamos, de uniforme, saia
pregueada marrom, blusa branca de manga comprida e um laço marrom. A meia era preta, botinha abotoada.
Os meninos usavam calça azul marinho também, listradinha de branco e blusa também branca. Depois isso
desapareceu. Depois não usava mais uniforme, nem os meninos. /.../ Então fecharam o Colégio. E foi uma
pena fechar. O Ginásio do Estado veio por meio de um deputado que nós tínhamos aqui, ele se chamava Luis
Liarti. E, como deputado, conseguiu trazer para Jaú o Ginásio do Estado, que até então não havia.
existia o Colégio das Freiras e o Colégio dos Padres e algumas escolas particulares. /.../ Agora, o Colégio das
Irmãs de São José, infelizmente, desapareceu quando foi criado, aqui em Jaú, o Ginásio do Estado. As
freiras não suportaram o êxodo, porque todas as alunas foram para o Ginásio do Estado e elas tiveram um
período de crise.
Todas as famílias bem constituídas, bem formadas, tinham que ter os filhos internos, era status.
Mesmo tendo casa perto tinha que ficar lá, porque era importante as pessoas verem que a gente estudou
interno no Colégio das Freiras, como a gente falava na época. Então eu fiz o primário, naquele tempo não
era ginásio, chamava escola complementar, fiz o curso normal, me formei com as irmãs de São José em 1937.
Não fui uma aluna brilhante, mas eu era uma aluna dedicada.
Eu não chorava, não reclamava porque o colégio era ruim... Eu falava “eu tenho saudade da minha
mãe, do meu pai, dos meus irmãos". Eu estava com duas lá, mas tinha quatro em casa. Então, a gente se
sentia muito infeliz lá no colégio. A gente ia para o colégio em fevereiro e só saía para casa em junho. Tinha
um período de férias, depois voltava. Dia primeiro de julho voltava para o colégio, naquele mesmo regime,
naquele mesmo horário, tudo. E aí só saía no começo de dezembro. Era a maior parte do tempo no colégio do
que com a família. Mas a vida do colégio não era ruim. Até que era boa a vida no colégio.
Quem recebia mau ponto de estudo, quando fazia a sabatina ganhava sempre nota baixa "vai ficar
reprovada no fim do ano", e ficava reprovada mesmo. Mas eu não era boba também. Eu era levada, eu
conversava na fila, eu ganhava mau ponto. E minha mãe ficava triste por eu ganhar mau ponto de polidez,
porque repercutia na família. “A mãe não deu educação para essa menina que vive sacudindo o ombro?” Mas
eu, apesar de tudo, eu fui uma aluna, não brilhante, não fui uma aluna brilhante também não, mas eu fui
escolhida antes de me formar professora em 1937, para lecionar no Externato São José.
259
A matéria que eu mais gostava era de português. Inglês eu não gostava. Gostava de francês, de
ciências, essas matérias. O resto era tudo tranqüilo, não tinha aversão pelo estudo. Eu era péssima aluna de
Matemática. Tinha que aprender aqueles teoremas... Eu estudava matemática para passar de ano, para
não ficar dependendo daquela matéria. Então eu estudava um pouco para passar. As matérias que eu ia bem
eu gostava.
Naquele tempo não tinha nem CLT, era regime de escravidão mesmo, de trabalhar dez, doze horas.
Não tinha direito nenhum. Depois com o advento do Getúlio Vargas, então foi criado. Eu penso e afirmo
que ele foi o maior estadista do Brasil. Inclusive pode ser considerado o maior estadista do mundo. Porque
ele, naquela ocasião, em que o poder econômico dominava, os coronéis dominavam o país, ele teve coragem e
introduziu as leis sociais no país. Foi a criação e consolidação das leis de trabalho, que começou a implantar
depois da Revolução de 30. Tanto é que ela é de 43.
E vou te falar uma coisa: “naquele tempo tinha muita honestidade”. Não se chegava, por exemplo,
nos armazéns, eu lembro, todo mundo comprava, todo mundo dava um duro danado e chegava ao fim do
mês, todo mundo era honesto e pagava direitinho. Depois começou a turma a dar os canos. Naquele tempo
não tinha calote. E o povo gastava aquilo que podia pagar. Hoje não, hoje a ganância é muito grande. Você
vê as lojas, tantos meses para pagar, sem entrada, a turma se ilude e vai, chega e depois se aperta. Aí começa
a dar os canos. Agora você vê aposentado emprestando dinheiro. Isso eu sou contra. Você incentiva o cara a
se enterrar. Ele vai se apertar. E depois tem que pagar luz, juros, ninguém vai ajudar. Essas financeiras
querem é lucro. Os caras se enterram no banco. Antigamente não.
Nessa época o Brasil tinha muito imigrante. E era uma judiação. O meu avô contava como os
patrões faziam, judiavam. Teve italiano que veio para o cabo de enxada. E quando o patrão não queria
mais, punha a família e os pertences que eram poucos numa carroça e mandava embora. Eles que se
virassem. Foram muito judiados. E os italianos, o Brasil deve muito para os italianos, viu?! Foram muito
judiados, os italianos. Colocavam no lombo do cavalo e eles iam embora até o lugar onde fosse.
Acho que naquele tempo não tinha diferença com quem era de fora de Jaú. Estrangeiro não, mas de
classe social sim.
Na minha casa a minha mãe nos criou assim, sem preconceito. Tanto assim que a minha faxineira
aqui tem vinte e um anos, ela é preta, tem vinte e um anos que está comigo. De vez em quando eu fico aí
fora, ela vem, me abraça. Não tem preconceito.
Para os professores, a vida de antigamente não era como a de hoje. Antigamente a gente fazia o
semanário. Para o semanário tinha que fazer pesquisa sobre o que teria que dar durante toda a semana: hoje
eu vou dar aula disso, por exemplo, de verbo... Hoje em dia eles não conhecem muito verbo, não é? Conjugar
verbo. Às vezes vejo na televisão moça bonita que fala mal pra chuchu. Quando falam errado bate aqui, dói.
Fazer o quê? Agora é assim.
260
E eu ensinava sempre para as normalistas dizendo: “Nunca apontem o erro. Procurem descobrir
alguma coisa de bem feito. Acertou. Que bom, você acertou!”, estava tudo uma porcaria, mas descubra
alguma coisa boa. E com isso eu posso dizer para você, eu fiquei quase convencida de que eu era uma boa
professora, por causa da minha psicologia. Eu, como aluna, eu não era brilhante, mas aquilo que era
importante aprender eu aprendia e aplicava na minha vida de professora.
O que eu ouço hoje da escola, se falar avesso, não diz tudo. Nossa! Se usar o termo avesso não diz
tudo.
O trabalho do professor hoje, ou ele leva no tapa como a gente diz, ou ele sofre muito.
Mas a vida é assim, conforme o modo de pensar das pessoas, não é?! Eu acho até que quem não põe
filho para estudar, mesmo que seja rico, é atraso. E antigamente não era visto assim não.
250
D
IONÍSIO
Baco, segundo Caravaggio
Dionísio (Baco) filho de Zeus com a mortal
Sémele. Deus do vinho, representava seu poder
embriagador, suas influências benéficas e
sociais. Promotor da civilização, legislador e
amante da paz. Sémele quando estava grávida
exigiu a Zeus que se apresentasse na sua
presença em toda a glória, para que ela pudesse
ver o verdadeiro aspecto do pai do seu filho. O
deus ainda tentou dissuadi-la, mas em vão.
Quando finalmente apareceu em todo o seu
esplendor, Sémele, como mortal que era, não
pôde suportar tal visão e caiu fulminada. Zeus
tomou então das cinzas o feto ainda no sexto
mês e meteu-o dentro da barriga da sua própria
perna, onde terminou a gestação. Ao tornar-se
adulto, Dionísio apaixona-se pela cultura da
vinha e descobre a arte de extrair o suco da
fruta. Porém, a inveja de Hera levou-a a torná-
lo louco a vagar por várias partes da Terra.
Quando passa pela Frígia, a deusa Cíbele cura-
o e o instrui nos seus ritos religiosos. Curado,
ele atravessa a Ásia ensinando a cultura da
vinha.
A infância nossa naquele tempo era muito pobre de divertimento, porque não tinha nem clube com
piscina, com nada. Não tinha nada aqui, mas eu viajava muito porque a minha família é de Piracicaba,
então eu viajava muito. Às vezes ia de trem, às vezes ia de carro. Quer dizer que a minha vida foi mais
viajar. Tanto que eu continuo viajando. que agora eu vou para o exterior (risos). Então quer dizer que a
gente tinha aquela turminha amiga que se reunia muito. Nos reuníamos na minha casa; sabe onde é o Banco
do Brasil, ali na esquina? era a minha casa. A casa dos meus avós... Então, a gente formava turminha
ali na calçada. O divertimento era isso, com os rapazinhos que eram os colegas. Tinha um que tinha
açougue; levava lingüiça. Eu entrava, fritava, trazia para eles comerem. Era uma coisa simples.
Brincadeira era de tardezinha, depois do jantar. A gente brincava de se esconder, de pega-pega,
de pular os outros, aquelas coisinhas assim. Brincadeira era só isso porque não tinha brinquedo, essas coisas
de hoje. Naquele tempo não existia nada disso. Então a brincadeira era por , mas era uma brincadeira
muito sadia, não tinha tempo de pensar tanta bobagem como hoje. Brincadeiras nas árvores, na terra.
[E] naquele tempo tinha bastante filho, Nossa Senhora! Mas tinha bastante fartura, bastante coisa
para comer. A vida era mais fácil, tinha menos [variedade], porque não tinha supermercado, tinha “vendas”.
Então papai ia às vendas, comprava as coisas. Esse mês marcava para pagar o mês que vem, o mês que vem
fazia outra compra, para pagar o outro mês. Quando pagava a conta ganhava uma lata de marmelada,
goiabada. A glória para nós, era a festa. Hoje, meus netos, fala de marmelada, vira até o rosto, tem até
febre! /.../ Os filhos da gente têm um outro tipo de vida, mas nem por isso eu sou infeliz.
251
Um acontecimento que me marcou muito, eu fiquei muito triste, foi quando foi vendida a nossa
chácara – onde hoje é a Avenida Brasil. Era uma chácara de quatro alqueires. Eu fiquei muito triste. Ainda
era adolescente, meus irmãos menores, e o corretor foi muito esperto e passou a perna no meu pai. É logo ali
onde começa a Major Ascânio. Na direita tem quatro casas que eram nossas também.
A crise do café afetou muito mais a gente. Nossa, como afetou! Afetou porque o papai teve que
vender a fazenda. Não dava mais. A fazenda ficava em Iacanga. As terras nossas foram dadas terras do
meu bisavô foram dadas por Dom Pedro. Ele chegou, tomou posse das terras de Bariri, Itajú, Iacanga,
depois vieram as Três Marias. Então ele teria que ter uma ordem do Dom Pedro. Foi, então, um mensageiro
para o Rio e esse mensageiro trouxe a ordem. Tanto que era fazenda Assis, do vovô, do tio Eduardo, tio
Abílio, tudo jauense, subindo até Bariri, tudo parente, tudo parente. E depois meu avô tinha seis filhos,
morre, reparte. Vai acabando. Vai repartindo. Mas era uma vida gostosa, viu?! Todos juntos, alegres. Tropa,
eu amava ver boiada, ver separar boi.
Tenho viajado bastante, agora eu vou para São Paulo. eu fico duas semanas, depois eu volto.
Depois, em julho, a minha filha caçula tem casa em Ilha Bela, eu vou ficar uns dias com ela lá. Até não
gosto da vista do mar. Mas eu gosto de ficar andando lá, já tenho minhas comadres. Fico passeando, a casa
é gostosa.
[Quando eu lecionava, também viajava bastante]. [Em] Lins lecionei em um bairro japonês.
Morava na cidade e ia de ônibus até perto do bairro (uma hora) onde uma charrete nos esperava, éramos
duas. Os japoneses são muito zelosos, tratam os professores com muito respeito e facilitavam tudo para eles.
Fazem questão que os filhos aprendam e não faltem à aula. Foi um tempo bom.
[Depois] fui para um Grupo no alto da Mooca, [em São Paulo], na Quarta Parada. Bem longe do
lugar onde morava, tomava duas conduções. Foi um tempo difícil, filhos pequenos e, às vezes, esperando
outro. Engraçado, foram três anos... Meu marido voltou para Jaú e logo depois vim para o Grupo Escolar
Major Prado, onde estudará em criança.
Com a consciência tranqüila por um dever bem cumprido. Fui muito feliz no magistério. Minhas ex-
alunas /.../ todas me consideram muito. Para que ser mais feliz? Existem muitas maneiras de ser feliz. E eu
sempre digo: “se eu tornasse a viver outra vez, eu ia fazer tudo o que eu fiz e mais alguma coisa que eu
deixei de fazer”. Mas não deixei de fazer por abandono, não. Não houve oportunidade. E hoje eu me sinto,
nos meus 86 anos bem vividos, bem vividos, eu me sinto feliz. Eu sou feliz. É uma história longa, mas tem
muita coisa. Não pra contar tudo, não é? É muita coisa. Então foi a minha adolescência lecionando,
lecionando, lecionando. Fui paraninfa vários anos, inclusive eu tenho na parede com homenagem das
professorandas. As minhas ex-alunas de 1942 fizeram ali um acróstico – “Maria Aparecida Cesarino,
professora no verdadeiro sentido da palavra. Conquistando de todas o coração. Seus ensinamentos /.../”. E
assim vai...
252
Mas acho muita falta do meu marido. Cinco anos e meio sem ele. Cinco anos e meio e não me
acostumei. É uma vida. Eu tinha quinze anos e ele dezenove. Mas é assim, assim é a vida. Eu tenho as
filhas muito boas, os netos maravilhosos. Tenho nove netos e tenho dois bisnetinhos. E assim é a vida.
“C’est la vie!”, como se fala em francês: “C’est la vie!”
Eu vejo a escola de hoje, me dá uma tristeza muito grande. Um dia desses encontrei um ex-aluno
que falou para mim: “a senhora se lembra daquele tempo em que as meninas chegavam com uma flor, alguém
queria carregar as suas coisas, alguém queria acompanhá-la até a sua casa, lembra?”. Eu disse: “lembro”. Ele
falou: “que diferença não”. Tive bons professores e guardo muitas recordações agradáveis.
Nos dias de exame sempre tinha o professor e um inspetor junto, olhando – não era como agora, que
trazem a prova pronta e entregam. Lembro do professor Veloso, de Português e Matemática. Eu era
ótima, eu gosto muito de Matemática. Uma vez sortearam um ponto eu não me lembro qual e a classe
inteirinha não acertou. Eu acertei. Fui a única a acertar. Ele ficou contente, porque, se não, ele ia ficar
desmoralizado – ele dá uma coisa que ninguém sabe?. Então ele foi lá e conversou comigo. Não fez “aquele”
elogio, mas eu me lembro disso...
Na escola, não tinha separação não, lá tinha os recreios juntos. Quer dizer, no Dom Luís que era
mista. Era padre, mas não tinha nada de separação de sexo, nada. Em Jaú eu tinha amigas internas que era
um sacrifício medonho, um terror lá. Não podia sair, não podia. No colégio era um rigor muito grande;
demais, porque era uma fiscalização enorme para as meninas. Para a gente que era interna não, mas não
tinha muita conversa na classe, nem no recreio. Elas ficavam sempre fiscalizando, sempre. Aqui não, aqui já
era diferente.
Eu também estudava Física, Química. Fazia aula de trabalhos manuais. Tinha aula de califazia,
sabe o que é califazia? É a arte de bem falar. A professora tinha que ler livros e na aula de Português, de
califazia, tinha que ler ali na frente, em voz alta, para ela pegar dicção, porque ela ia ser professora,
entendeu? Precisava falar corretamente, saber recitar poesia, para desembaraçar mais a voz e tudo. Até hoje
eu sei. Outro dia eu recitei algumas. Eu lembro:
Olha essas velhas árvores, mais belas do que as árvores novas, mais amigas.
Tanto mais belas quanto mais amigas. Vencedoras da idade das trocelas. Em sua sombra o
homem descansa e em seus ramos abrigam-se as cantigas. E na alegria das árvores
amarelas, não choremos jamais a mocidade, envelheçamos rindo. Envelheçamos como essas
árvores envelhecem, na glória da alegria e da bondade. Dando alimento aos pássaros nos
ramos e dando sombra e consolo aos que padecem.
É de Olavo Bilac. Senão aquela:
Quando partimos no verde dos anos, da vida, pela estrada florescente, as
esperanças vão conosco, à frente. Os desenganos vão ficando atrás. Rindo, cantando,
célebres, lutando. Vamos marchando descuidadosamente. Eis que a velhice chega de
repente, desfazendo ilusões, matando a saudade. E então, olhando para traz, vemos o
253
quanto a existência é rápida e fugaz. E vemos que acontece exatamente o contrário dos
tempos de rapaz: os desenganos vão conosco, à frente, as esperanças vão ficando atrás.
Esse é de um padre que eu esqueci o nome. E aquela do dia da avó:
Ai vovó, que hoje é tão fraca e velhinha. Teve tantos desenganos, ficou
branquinha, branquinha, com os desgostos humanos.
Eu aprendi a fazer crochê, não tricô, com a minha cunhada. Eu ainda era menina e ela ensinava a
minha irmã que era mais velha que eu. Eu ficava olhando ela ensinar, pegar a linha, fazer... Eu ficava
olhando e meu pai falava – eu me chamo Antonia e meu pai falava Tonica para mim ele falava: “Tonica,
pia agulha, picco fio”. Entendeu?! Isso que meu pai falava era em italiano: “Pega a agulha e enrola na
linha”. Então ele falava: “Tonica, pia agulha, picco fio”. E eu aprendi vendo a minha irmã, vendo a
minha cunhada ensinar a minha irmã. Eu peguei, fiz o ponto da correntinha, ai ela começou um crochezinho
para mim, daí foi. Até hoje. Mas fiz tanto crochê na vida... Nossa Senhora da Aparecida... /.../
Na igreja de Alfredo Guedes tinha quermesse. No dia três de agosto tinha a festa. Era uma festa
bonita e vinha padre daqui de Lençóis. Tinha a quermesse e a procissão. E a procissão era em roda da igreja,
na cidadinha mesmo de Alfredo Guedes. E tinha todo ano.
No Natal cada um ficava na sua casa. Fazia um almoço diferente, comprava uma bebida, um
guaraná e bebia vinho, né! Bebia vinho, ah vinho... Nós comemorávamos a Páscoa também, Dia de Ano. Eu
cozinhava bastante, fazia pão toda semana, pão de noite! Fazia aquele pão, amassava de noite, ele crescia,
né? E no outro dia cedo, cozinhava, mas começava três dias, fazendo o fermento. Enrolava a massa de noite
e no outro dia cedo, estava crescido e ai assava. Mas ficava gostoso, Nossa Senhora! Tudo no forno a lenha.
Fiz muito crochê na lamparina. E fazia direitinho. Mas eu não vendia, fazia para casa. Fazia
para todo mundo da família, para as netas, para os netos, para os filhos. A linha vinha de São Manuel.
tinha linha para comprar de rolo. A linha vinha em uma caixa assim, com dez novelos. Meu pai quando
viajava para São Manoel ele falava “precisa de linha?” Não precisava nem falar para ele trazer a linha, ele
perguntava para gente se precisava da linha. Ele trazia sempre a linha. A linha nunca faltou. Tudo
comprado em São Manoel.
Agora eu tenho essa idade, estou cansada. Ainda faço crochê, mas esses dias eu não peguei,
porque hoje em dia eu não enxergo muito, a vista está pouca. Agora só ponto grande. Esse tapete fui eu que
fiz. Ih, eu fiz tanto desses crochês, Nossa Senhora, colcha de crochê fiz para minha filha. Fiz colcha para
minha nora. Para família inteira. Esse é o último que eu acabei esses dias, de barbante. Minha filha que
mandou eu fazer um tapetinho para neta dela, né? E tem que fazer de dia. Com o barbante assim para
fazer, com linha fina é difícil, por causa do pontinho. A linha fina não deixa essa casinha para gente
colocar o ponto, né?
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Independente disso, eu cantava. Eu trabalhava no deposito de dia e, à noite, até a madrugada, eu
cantava. Cantava para construir a igreja São Sebastião. De noite, de madrugada, eu cantava para arrecadar
dinheiro na quermesse. Nunca via um centavo. Meu marido e o filho dele pegavam todo o dinheiro. Eu
cantava até de madrugada, de dia eles pegavam todo o dinheiro. Era areia, cal, cimento, caibro e telha. Tudo
para construir a igreja São Sebastião. Modéstia à parte, ela esta por causa da gente. Meu marido era
apaixonado para fazer aquela rampa, para as noivas subirem. E o Altar-mor? Era para ser giratório, porque
ela é redonda, mas o dinheiro não deu. Mas ela é linda. Ela é linda do jeito que é. É maravilhosa. Naquele
tempo, quermesse valia a pena. /../ Na quermesse eu não fazia nada, a não ser cantar. Eu não curtia nada,
nada. Comia em casa, de madrugada. Hoje o pessoal faz quermesse e é aquele rebuliço. Não dá dinheiro. Não
dá prejuízo, porque ganha muita coisa, mas também não dá dinheiro. Aquele tempo dava dinheiro.
Desde que comecei, que ganhei aquele concursinho, que fui para Marília, música ainda era um
hobby. Era um hobby, mas um hobby produtivo, que eu comecei a conviver e a viver desse hobby. Se me
apresentassem um emprego no Banco do Brasil eu não queria. Eu queria a música. Então aquilo era hobby,
mas também uma necessidade. Um trabalho. Trabalhei em duas profissões, uma ao lado da outra, a música e
o comércio. As duas com seriedade.
O clube foi muito bom para mim. Eu tinha um grupo muito grande de amizade, /.../ em Jaú e
fora de Jaú; e depois, conhecendo os idosos, evidentemente cada idoso tem um filho, uma filha, um neto, um
bisneto, essas coisas, ampliou os meus conhecimentos pessoais. No começo a minha esposa não ia muito, mas
depois acabou gostando, foi se adaptando. Ela ficava em casa e eu saía. Depois ela cansou de ficar sozinha e
acabou cedendo. Então, é essa vida que eu vou levando até hoje. Sou diretor da música no Clube; eu
comando a música, dou o crivo.
Nós fizemos trabalhos lindos aqui em Jaú, lindos, lindos. Meu filho, Kleber Vieira de Souza, do
primeiro marido, e eu. Fizemos na Matriz, no teatro. Coisa linda. O de Bauru é do segundo marido, Edson
Maitino. Eu casei duas vezes, aqui em Jaú. O Kleber canta bonitinho. Fizemos trabalhos bonitos, eu tenho
algumas fitas, porque eles mentem que vão apenas re-gravar para eles e depois não entregam mais. Você sabe
como é esse trambique! E agora, com 8.8, vamos fazer no teatro. Agora em julho. No teatro Elza Munerato.
Tem uma porção de gente. Nós tínhamos um grupo maravilhoso, lindo, lindo. Ontem nós ensaiamos, foi o
primeiro dia que fui (os outros já vêm ensaiando faz tempo), porque eu estava em Bauru, curtindo a
bisnetinha.
Nós fizemos um baile aqui no Santo Antonio que foi mais ou menos. Teve quadrilha, mas a maior
parte das coisas é tudo diferente. Você vai falar para um rapaz que dançar valsa é bonito? Ele vai falar que
você parou no tempo. O respeito que esse pessoal mais jovem tem comigo, menino!! Eu passo ali no Liban e
eles falam “paz e amor, Dona Dirce”. Quando eu fui atropelada, eles ficaram com medo de eu morrer. Fez
um ano em janeiro. Eu ando relativamente bem. Eu ando bem. A turma achou que eu não andaria mais,
tinha que ficar na cama. Meu filho comprou uma tala, uma tipóia diferente, que tem carrapicho. Agora, eu
255
vivo bem, eu estou bem. Eu estou feliz. Não pode falar que está feliz, porque o povo faz macumba, faz mau
olhado. Só se você for ao terreiro agora e fizer uma macumba para mim.
[Tenho] filhos maravilhosos, noras maravilhosas. Eu me machuquei, fui para Santa Casa, e era para
eu ficar em observação. Eu fui para casa do meu filho. Beleza pura. Não tive nada, não deu nada. Porque a
Princesa Isabel não foi melhor tratada do que eu. Porque o filho tem obrigação, mas a nora não tem e o filho
tem que concordar ou larga da mulher!. E o de Bauru vinha todo dia. Vou me queixar do que? Mas o povo
fala “isso é porque você merece”. Mas todo mundo merece. Eu tirei de letra. E onde eu tenho que cantar eu
canto. Aqui está gravando? Vou cantar. O que você gosta? Vou cantar uma coisa que você nunca ouviu.
Duvida?
Eu quando canto meu sambinha batucada
a turma fica abismada com a bossa que eu faço.
Faço não me embaraço porque não há tempo,
marco meu contratempo dentro do compasso.
Quem não tiver o ritmo na alma
nem cantando com mais calma faz o que eu faço
Samba-canção, samba de breque, batucada,
para mim não é nada,
o que vier eu traço.
Não tenho veia poética,
mas canto com muita tática,
não faço questão de métrica,
mas não dispenso a gramática.
Não me atrapalho na música,
nem mesmo sendo sinfônica,
procuro tornar simpática
a minha voz microfônica..
Eu quando canto meu sambinha batucada
a turma fica abismada com a bossa que eu faço.
Faço não me embaraço porque não há tempo,
marco meu contratempo dentro do compasso.
Quem não tiver o ritmo na alma
nem cantando com mais calma faz o que eu faço.
Samba-canção, samba de breque,
batucada,
para mim não é nada,
o que vier eu traço.
Não é lindo? Você ouviu isso? Ia morrer sem ouvir. Viu como foi bom você vir aqui? Você ia
morrer sem ouvir.
Você ouviu e não pagou nada...
256
E
M BUSCA DA
A
UTONOMIA
...
Eu, modéstia à parte, sempre fui boa aluna. Eu não decepcionei meu pai que conseguiu a bolsa e
não decepcionei o diretor que forneceu. Olha que engraçado, eu não esqueço da última prova da Escola
Normal. A gente estudava tanto que, às vezes, a turma não era eu –, a gente punha o na bacia
com água fria, para não dormir enquanto estudava... Estudava mesmo. A gente era mocidade, antiga.
O que mais dificultava para estudar na época era a situação financeira. Eu fiz jardim de infância
até o diploma de professora, na Escola Normal São José. Se eu tivesse escolhido, teria escolhido Educação
Física. Desde criança minha irmã mesmo fala –, eu era moleque, não era menina. Tive sempre essa
tendência para movimentos, correr, brincar... Eu não fiz Educação Física porque as escolas que davam o
título, geralmente, eram em São Paulo. Então não podia fazer. Eu sou professora por acaso. Eu era
movimento... Mas não tive outra opção. Fui nesse caminho. Até hoje eu tenho muita facilidade para me
movimentar. O prazer da gente na escola, eu e mais umas duas ou três, a gente não levava nem lanche, era
para aproveitar o recreio para jogar. Então eu sonhava em ser professora de Educação Física; fui professora
primária e terminei como professora de português. Para Educação Física, não deu.
Nessa época eu era novinha de tudo e estava estudando porque eu e minha prima prestamos
concurso para a Faculdade de Arquitetura tinha três vagas. Passamos. Mas papai não deixou, mulher
naquele tempo não podia ser arquiteta, tinha que ser professora. Isso aconteceu em uma das férias que eu
passei em São Paulo, com a minha prima. Nós entramos, calcule, na Escola de Arquitetura, mas papai não
deixou. Naquela época mulher não podia. Não podia ser médica, tinha que ser professora.
A minha irmã era inspetora de alunos, diretora de grupo e inspetora, e o meu cunhado era delegado
de ensino. E uma vez ele disse: “Eu, em vez de sortear que vai fazer a ata, vou escolher uma professora. Vou
chamar a professora Nilza Guimarães Carboni, ela veio de fora e ela vai fazer a ata para nós, em vez de
sortear, ela vai fazer a ata”. Porque erravam muito em português na ata. Entendeu? [Então], uma Almeida
Prado disse para outra: “Oh, sabe porque ele escolheu você? Porque ninguém quer saber de fazer a ata”.
Falei: “Não senhora, é porque eu sei fazer ata”. Daí eu comecei a me impor, sabe, entendeu? Entendeu? Daí
eu tive que me impor. Porque se eu não me impusesse, eu tomava sempre aquilo, não é? Entendeu?
[Certa vez], a servente escolar falou para mim: “O professor Silvio está chamando a senhora. O
Delegado de Ensino”. Ai eu estranhei, falei: “Nossa!” Cheguei lá e ele falou assim: “Olha professora, o
Doutor Urbano Teles de Menezes que era o prefeito aquele tempo tem dez escolas municipais para
distribuir. distribuí nove, falta uma. Ninguém quer. Por quê? Ela está situada na beira do Dourado,
onde maleita até em pau. Se a senhora quiser, daqui a um mês a escola será transferida, mas tem que ir
para lá”. Cheguei em casa, meus pais ficaram bravos, não queriam. Tudo é por Deus. Eu fui. Fiquei um mês
lá. Vi muita gente morrer com maleita. Com 19 anos eu comecei a trabalhar nessa escola que ficava em Lins.
257
Era fazenda. Depois fui para Água Limpa, em Lins, fazenda também. Ali tinha até luz elétrica. Mas,
também... Você acredita?. Cama, assim... – para filha única olha o que eu passei, viu? era com colchão de
palha, que vocês nem conhecem. Tinha dois colchões de palha, então a cama ficava alta. Eu dormia no meio,
porque a vaca vinha de noite e eu tinha um medo que vendo! [E] quando voltava [de casa], os bois
estavam todos no pasto. Tinha um boi branco, um zebu, que ficava olhando, eu para ele, ele para mim, até
que aparecesse o rapaz que ia recolher os bezerros. Tem coisa que a gente passa que serve para dar risada
depois.
[Depois fui para] o Pouso Alegre, que já era bairro. Lá eu aprendi uma coisa: um dia, um fulaninho,
estava riscando a carteira as carteiras eram limpíssimas, não tinha risco, não tinha nada. no colégio
elas eram até enceradinhas. E isso, na Escola Normal, não se fazia de jeito nenhum. E eu fui falar para o
diretor. Ele olhou bem para mim e falou assim: “Escuta, quem está tomando conta da criança? Sou eu, ou é
a senhora?” Ai meu Deus do céu, eu ainda não tinha ingressado... Nunca mais eu levei um aluno para o
diretor. Nunca mais. A frase ficou na minha cabeça. Mas nunca mesmo, eu cheguei para um diretor para
fazer a menor queixa. Eu resolvia os problemas. Aquilo ficou marcado para mim.
[Em São Paulo, eu lecionava em escola de] terceiro estágio. Tanto que quando São Paulo fez 400
anos, eu estava lá. Foi à época mais bonita... Então, estando no terceiro estágio, foi mais fácil para descer,
eu dei um ré: queria vir para Bauru. Tanto que o Diretor falou: “Mas, professora, a senhora está num
terceiro estágio, vai voltar?”. “Mas pelo menos eu vou arrumar minha vida”, pensei. De São Paulo, no
Grupo Escolar Coronel Pedro Arbues, eu consegui voltar pra Bauru, num Grupo, no Luis Castanho de
Almeida. Fiquei doze anos aqui em Bauru.
Se eu não tivesse dado aula após terminar o curso normal, talvez fosse fazer faculdade em São
Paulo. Depois eu morei 40 anos em São Paulo. E eu tive oportunidade de fazer muitos cursos. Eu
freqüentava palestras. Eu fiz, inclusive, um curso de orientação Educacional em São Paulo. Quando eu
morava lá. Curso de orientação Educacional. Eu participava de cursos, naquela época, com professores;
professor José Camarinha e outras tantas pessoas de valor. Eu não perdi oportunidade de me informar. Eu
lia no jornal: “professor fulano de tal, dando curso...” Eu ia lá. Lecionava de manhã, às sete e meia da
manhã eu estava dando aula no colégio Sion, às dez e meia eu saia correndo de lá e ia pra outro colégio. Eu
ia para casa para almoçar. Depois do almoço eu saia e ia para outras escolas.
Naquele tempo a gente freqüentava a igreja. A igreja era freqüentada. A instrução tinha a parte
religiosa também. Em casa não tinha nenhuma divergência religiosa, todo mundo era de um time só. Não se
conversava muito em casa, é como hoje. Íamos à missa, e cada um sabia de sua obrigação.
Naquele tempo, não existia lei trabalhista, não existia nada. Comecei a trabalhar era quase um
trabalho, porque não tinha emprego –, era adolescente ainda, saía na rua vendendo banana, com uma cesta
de banana, levava a cesta de banana na escola. Eu não podia nem fazer isso ainda, mas tinha que fazer...
258
Os pais mandavam. Os pais tinham muito mais autoridade do que hoje. Então a gente obedecia cegamente o
que os pais diziam.
Mas naquele tempo eu me revoltava. Chegava em casa e falava “não é possível (professor tinha
férias), a gente não tem férias, não tem nada”. Meus pais chamavam a minha atenção: "como é que você está
falando uma coisa dessas? Não pode fazer uma coisa dessas” (porque se a gente pensava nas leis sociais era
tratado como comunista). Então, eu me revoltava. E minha avó ficava apavorada. Ela era da Espanha, era
espanhola, então ela ficava falando para eles "deixa, ele sabe o que ele está falando, fazendo, o negócio dele é
esse mesmo, vocês não sabem?!”.
Aqui em Jaú, preto o entrava no jardim, você sabia disso? Preto não entrava no jardim. É um
preconceito de raça desgraçado. Isso em 1944 mais ou menos. Dizem que o Pelé foi brecado aqui no Jahu
Clube. E tinha preconceito até com gente que era de fora. /.../ Quando eu vim para cá, uma colega falou
para outra: “Ai, não devia vir gente de fora, Jaú é dos jauenses”.
Havia uma reminiscência da escravidão. Aqui em Jaú, nesse jardim que nós falamos jardim de
baixo, aos sábados e domingos, a elite dava volta no jardim. Os homens davam volta nesse sentido, e as
mulheres no sentido oposto. Então a gente namorava uns que estavam dentro do jardim, dava uma volta
inteira para dar uma piscadinha para o outro, porque não podia ir no mesmo sentido, um num sentido o
outro, em outro. E os negros, os negros... Isso é uma mancha para Jaú. Os negros andavam fora do jardim. E
os brancos dentro. Eles já eram livres, mas havia preconceito.
Tinha preconceito com negro e até hoje tem. Mas naquele tempo era pior. /.../ Olha, eu sou
evangélica, mas eu não gostaria que uma das minhas filhas ou minhas netas casasse com preto, isso eu falo a
verdade. E é um preconceito que a gente não quer ter, mas tem.
Você está me fazendo puxar a memória agora, viu? Porque a gente nunca teve oportunidade de
olhar para trás assim. Nem em conversas com parentes antigos que a gente tinha laços. Eu não me lembro da
gente recordar dessas coisas. Mas mesmo na escola havia essa diferença. Não tinha nenhum negro que
estudava com a gente.
Agora de roupa, era engraçada a moda daquele tempo. Quando saía, por exemplo... não eram os
modistas de hoje, era lançada a moda. Se a moda fosse listrado: ninguém vestia uma peça qualquer que fosse
de listra ou fosse xadrez. A moda era aquela. Então todo mundo sabia. Essas roupas vinham das lojas, mas
você sabe que a moda vem sempre dos grandes centros, não é? Eles é que ditam a moda. E olha a minha
maneira de pensar: jamais eu entro nesse barco. Jamais. Não sei se naquele tempo eu pensava assim, eu
penso hoje. Agora é moda essa coisa de crepe, cheio de babados. Eu não uso porque eu não me sujeito a
opinião dos outros. Eu tenho minha opinião.
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Hoje... eu posso falar mal? Eu não me conformo com essa idéia de abrir faculdade para todo mundo.
A faculdade é para quem quer e quem pode, não é? Quem pode, mentalmente, tem condições... Eu tenho
medo desses médicos, engenheiros... Por que se não tem base... Primeiro a base, não tem. Segundo, depende de
eu querer, eu gostar, então...O governo poderia tomar providências para melhorar, mas abrir a porta para
qualquer, não. Eu sei que faculdade não prende ninguém. A faculdade é por conta do aluno e é muito certo
isso. O professor as aulas dele... conversei milhares de vezes com gente que freqüentou faculdade e a
responsabilidade é do aluno. “O assunto é esse, você tem que procurar isso...” se o aluno não fizer a parte
dele que profissional vai ser? Acha que basta ir à aula, quando vai, não é?
[Certa vez] eu fui ao Rio de Janeiro cantar no programa do Ary Barroso. Cantei e ganhei o primeiro
lugar. Eram 120 contos, a paga, o cachê. Mas eu não fui para ganhar o cachê, porque eu não podia. Você
tinha que se inscrever primeiro e depois esperara ser chamado. Foi assim com meu amigo Luis Carlos Prado
que canta que é uma maravilha!. Mas eu não. Comigo foi ao contrário. Fui eu, meu marido, meu irmão,
minha cunhada. Cheguei e falei “vou cantar, quero cantar” Longe, muito longe de poder. Não podia, de
jeito nenhum, pois eu não me inscrevi. Os outros que eram inscritos estavam esperando a hora de cantar,
agora chega eu lá, sem nada, não podia. Eu falei: “com quem eu posso falar?”. A única pessoa que a
Senhora poderia falar é o Ary Barroso, mas ele não vai atender”. Eu falei: “Ele vai me atender. Não tem
perigo. Aonde que eu entro para falar com ele? Onde ele está?” Ela disse: “A Senhora não pode entrar”.
Falei: “Posso. Sou uma cidadã brasileira, eu posso entrar. Eu não sou bicho. Eu posso entrar. Eu quero
entrar, devo entrar, e vou entrar”. Entrei. Falei com ele. Ele falou: “Mas não tem jeito”. Falei: “tem. Se
você quiser tem. Você me deixa cantar e acabou. Eu não faço conta do prêmio, não faço conta de nada. Eu
quero cantar. Eu vim de Jaú aqui para cantar. Então eu vou cantar, eu quero cantar”. Ele viu que não
tinha saída... ele que era Ele. Ele viu que não tinha jeito para sair de mim e disse: “Se não tem jeito, coloque
ela, encaixe”. Eu cantei. Cantei um samba de breque e ganhei o primeiro lugar. Depois ele me convidou para
fazer um show no Rio. Nós fomos (meu marido estava junto). Eu não continuei porque era de Jaú. Meu
marido queria vir embora, e não iria me deixar lá! De jeito nenhum. Vim embora. Cantei, recebi o prêmio
que não era para receber, porque não tinha direito, mas ele pagou. Eu recebi: não roubei, ganhei. Viemos
embora do Rio, gastei o dinheiro. E viemos de avião. Faz cinqüenta e poucos anos. Até guardei a passagem
do avião. Ficamos mais dias no Hotel: Hotel Monte Carlo, ficamos mais um pouco e viemos embora para
Santo André – meu irmão era de Santo André. Viveu a vida inteira em Santo André. Eu amo Santo André,
gosto. Passamos na rádio Nacional, de São Paulo. Eu falei: “eu vou cantar na rádio também”, mas meu
marido disse “Escuta...” Falei: “Fica frio. Já cantei no Rio, canto aqui também, em São Paulo”. Mas lá não
era dinheiro, lá eu ganhei uma máquina fotográfica, do Foto Léo. Estavam lá os calouros, eu cantei e ganhei
o primeiro lugar feminino. E o Wilson Miranda, masculino. Ganhei essa máquina fotográfica e viemos
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embora. Mas eu não fiquei para aqueles cantos, nem para São Paulo, nem para o Rio, porque eu morava em
Jaú. Morava não, moro. Aqui também a gente canta.
Tenho uma amiga que é como uma filha adotiva, que o marido é como um filho adotivo da gente.
Foi criado junto com meus filhos. A mãe dele tinha dois, eu tinha dois, então embolou toda a área do
gramado. Ficou tudo irmão. É um baterista de primeira, de primeiríssima. O Senhor professor. O apelido dele
é Nino. Ele é o Senhor Professor. Então, a esposa e ele, me pegam aqui 11:30, meio dia, mais tardar. Me
levam para a casa deles. a gente curte, conversa, bate papo, almoça (que ela é uma exímia fazedeira de
comida também). Professora aposentada, e ele também, professor aposentado. Só que ele continua na
redação. Ele fez faculdade também, é doutor. Então ali a gente passa o dia. Quando chega às cinco horas,
quatro e pouquinho, a gente vai para igreja Santo Antonio, de carro. Tudo direitinho, bonitinho. Quando eu
falo que eu quero ir embora, ela me traz, senão, se tiver futebol é sagrado. Eu fico e ela me traz à meia
noite, uma hora. Eu te pergunto: “quem é que com oitenta e oito anos tem essa chance?” Ninguém quer sabe?
Ninguém quer prosear com pessoa de oitenta anos. Ela não tem prosa, não tem conversa. A Lia, essa que te
mandou aqui, ela é sobrinha da minha nora. Pergunta para ela se tem outra Dona Dirce por aqui. Tem
essa, porque os velhos não têm papo. Não é que não têm papo, é que os moços não querem prosear com os
velhos. Não querem saber das coisas que passaram. O que eles passaram é coisa linda.
De vez em quando eu assisto o jornal da Record, do Bóris Casoy, e a Hebe, no SBT. Mas segunda-
feira estava um lixo, estava uma porcaria. Eles estavam fazendo uma festa caipira. Mas escuta, caipira não
é nada daquilo, caipira se preparava para ir à festa, ao baile. Tinha um cara, de um conjunto, que estava
descalço, feio, com uma palheta todo repicada, desse tamanho. Não é assim. Isso depõe contra. Caipira ia
para a festa arrumadinho, com a roupinha melhor que tinha. Ia para quermesse, depois ia no baile (porque
tinha os bailes). Dançavam, tudo com respeito. Aquele tempo tinha respeito. Hoje em dia não tem nada
disso, virou tudo uma bagunça danada. Nossa Senhora! As moças iam arrumadinhas, cabelo penteadinho.
Podia até por um lenço na cabeça, quem era de mais idade. As mocinhas se arrumavam. Colocavam o melhor
sapatinho, porque não tinha nada que prestasse, mas o melhor que tinha colocava. A melhor roupinha. Essa
gente dá até nojo de ver, credo!
Acho que você puxou tudo que estava aqui dentro, nem estava pensando... E agora você me fez
lembrar... Gostava da minha vida. Era só o trabalho... Agora eu vi festas, amigos que eu deixei. Tudo passa.
Ficar esperando para contribuir. E com esperança! Com esperança porque sem ela não se vive. Tem que ter
em primeiro lugar fé, pois sem fé não há esperança e sem esperança não há fé. As duas convivem juntas.
Não me casei, nem tive filhos, por que no ano que eu me formei no Normal meu pai morreu. Em 36.
Então, praticamente eu assumi a casa, eu era a mais velha. Tinha minha irmã que estudava e meu irmão.
Meu irmão morreu faz uns quarenta anos, nessa casa. Então ficamos em quatro e não dava para pensar
nisso. Porque nunca deu certo, nem deu, nem dará, para uma pessoa ficar responsável por duas coisas. Eu
261
teria que ter a minha família e teria que olhar para outra. E se por acaso esse marido não concordasse? Para
que lado eu tinha que pender? Para o lado dele. Como é que eu ia ficar. Então eu acho que é um risco muito
grande a pessoa tentar equilibrar, porque não dá não.
Agora não tenho atividade nenhuma, me aposentei. Voltei para cá, estava aposentada. Quando
vim era aposentada, com idade também, estava com quase 70. Porque atualmente, eu tenho 86 anos.
Graças a Deus com a cabeça no lugar, minha saúde boa, com algumas falhas porque a idade é bastante,
mas ainda temos atividades. Eu trabalho atualmente como voluntária do hospital Amaral Carvalho.
Participamos das reuniões, quer dizer, essa é a minha atividade. Não faço nada. Trabalho como voluntária.
Em São Paulo eu tinha carro. Aqui em Jaú íamos a para o colégio das irmãs, não tinha carro. Eu
comprei carro quando eu morei em São Paulo. E atualmente eu não tenho carro porque os médicos me
proibiram. Eu tinha uma Brasília, muito bem conservada, muito bem cuidada, vendi, faz quinze, vinte dias,
porque a vista não me ajuda muito e o trânsito aqui de Jaú é intenso. E agora eu estou verdadeiramente
aposentada, até da direção.
Eu também fiz curso de pintura. Esse quadro é meu. Tem um outro na sala também. E agente
não guarda muita coisa. Fiz curso de especialização para deficiente auditivo, deficiente visual, deficiente
mental. Porque eu tive uma aluna cuja mãe me procurou. Queria que desse aulas pra ela, mas eu não me
sentia competente pra trabalhar com ela, porque ela era deficiente. Ai eu fui fazer um curso na Associação
de Pais e Amigos dos Excepcionais, na APAE. E lá eu tenho meu diploma de professora de Débeis Mentais.
E, uma certa feita, a mãe dessa aluna me procurou dizendo: “Maria eu preciso de um atestado pra minha
filha, dizendo que ela é deficiente”. Porque o pai tinha que dar uma pensão. Mas eu não queria dizer que ela
era deficiente. Ai eu redige assim: “Eu, Maria Aparecida Cesarino, professora normalista e, também, tendo
cursado [eu que cursei a Escola]... dei aulas particulares pra ela”. Ora, se eu era formada em deficientes
mentais e tava dando aulas pra ela, subentende-se que ela era deficiente não é?! Então ela conseguiu que o
pai fosse obrigado a dar uma pensão.
Então eu digo: “eu vivi bem a minha vida”. Estou realizada como filha, como irmã, como tia e como
professora também. Felizmente. Então hoje eu encerrei a minha vida. Continuo, mas não é atividade de
professora. E minha atividade de italiana também não tem mais. Quando eu era menina eu ia naquele clube
Dante Aliguieri, por exemplo. Hoje não tem mais aqui em Jaú, mas a minha sobrinha, a Raquel, está
tentando ativar novamente. E esse grêmio, Dante Aliguieri, ficou por muito tempo parado. Mas a Raquel
está ressuscitando, ela e outras tantas descendentes de italianos. E hoje estou tendo a felicidade também de
ser entrevistada por você que é uma pessoa também que eu refuto como sendo uma pessoa de muito valor e o
que estiver ao meu alcance para dizer alguma coisa, é só perguntar.
Eu vivo bem, Graças a Deus, não tenho dinheiro, não sou rica, nem nada disso, mas também não é o
dinheiro que faz a pessoa viver bem, de jeito nenhum, não é?! Eu vivo bem do meu jeito. Curto meus amigos,
262
curto minhas amigas, vou cantar, vou lá ensaiar. Canto e canto em qualquer lugar, onde tem gente cantando
eu entro e canto também. Vivo bem, Graças a Deus. Dinheiro não tem, mas dinheiro não precisa. O pouco
que tem dá. O que mais você quer saber?
Que eu vivo bem, isso você já sabe.
Então, é isso: comecei com 19 anos, em 1939, e aposentei em 1969, com 49 anos... Nossa! tenho
35 anos de aposentada. É mais tempo de aposentada do que passei no magistério. Então, eu acredito não
sei se vocês acreditam ou não – que isso é uma graça de Deus pra mim. Nunca fiquei doente, vim “de cabo a
rabo”, como se diz na gíria. Eu participo dos encontros da terceira idade, no SESC. Um dia um senhor veio
falar sobre dança, sobre como prolongar a saúde. Falou que a mãe dele teve um derrame. Diziam que não ia
falar mais. ele falou: “A senhora vai falar”. Sempre com pensamento positivo: “a senhora vai andar”. E
disse que hoje ela fala, anda... Não se pode deixar a peteca cair...
263
A
H
ERMENÊUTICA DO
S
UJEITO
As práticas de si, as táticas dos sujeitos, nos levam à autonomia. Somos conduzidos
por Atena e Baco em direção à Autonomia. A necessidade dos exercícios sobre os quais nos
fala Foucault, leva-nos a necessidade de tomar a vida como prova, como obra de arte, ou
como diria Nietsche, nos leva ao eterno retorno, ao realizar cada tarefa, por mais simples que
seja, como se fosse a última, como se fosse necessário pintá-la como Caravaggio ou Da Vinci.
Devemos nos apropriar dos discursos, nos apropriar de verdades.
Meditemos sobre os males futuros praemeditatio malorum. Tornemo-nos
independentes do mundo exterior, através das práticas de abstinência, de privação ou
resistência. Controlemos nossos pensamentos, nossas representações, a partir da meditatio do
exercitatio. Façamos o exercício de morte meléte thanátou para que tenhamos vida, para
que exerçamos a vida como uma Obra de Arte.
A leitura hermenêutica de nossos sujeitos nos mostra todas essas práticas, mostra-nos
todos esses exercícios. E mostra-nos principalmente, a convivência diária com as dicotomias
sabedoria-ignorância, felicidade-tristeza, autonomia-submissão. São pares dialéticos que se
mantém em nossa sociedade pela ausência de discursos sobre a natureza, sobre as tecnologias
do eu, sobre as práticas de si; sobre o cuidado de si. Tomar o cuidado de si como uma prática
universal que tinha por objetivo a salvação, como feito pela igreja foi fundamental para acirrar
essas dicotomias. Foi fundamental para manter as segregações. Foi fundamental para manter o
assujeitamento a outro e não a si mesmo. Foi fundamental para manter a separação do eu e do
corpo e, consequentemente, impedir a realização plena do sujeito.
Verificamos que as práticas sociais de sabedoria-ignorância, felicidade-tristeza,
autonomia-submissão, estão presentes nos discursos de nossos entrevistados. E não obstante
as discussões e teorizações tecidas até o momento, apresentamos a seguir, algumas dessas
estratégias, táticas e práticas que caracterizam esses depoimentos como um exemplo de como
realizar uma leitura foucaultiana de depoimentos recolhidos pela História Oral e, ainda,
depoimentos inseridos em um contexto no qual a educação também se fazia presente, não
apenas nos Grupos Escolares e Escolas Normais, mas no dia-a-dia de pessoas comuns.
264
S
ABEDORIA
-I
GNORÂNCIA
1. A bolsinha da gente era um pano, era uma bolsa de pano, um “embornal”, que levava
lanchinho, guardanapinho, e ia para escola. E essa vida era mais ou menos baseada nesse
curso, porque não podia ter mais do que isso, os pais não podiam.
2. Meus pais me ensinavam a respeitar todos, seja preto ou seja branco, o que for.
3. Mas no meu tempo não, a educação era rigorosa. Era muito... Às vezes a gente chegava
nem podia manifestar a raiva do pai e da mãe. Porque eles eram muito... Menina saía de noite,
ia dar volta no jardim, como fazem até hoje, mas tal hora tinha que estar em casa.
4. Naquele tempo casava cedo, mas era diferente. Porque antigamente era o menino que
levava a menina para o mato, como a gente falava, hoje é a menina.
5. O grupo foi um início, por onde todo mundo começa. Matemática e português foram uma
coisa histórica para mim. Foi muito bom. Isso me ajudou bastante. Por isso a gente aconselha
as pessoas que tem que estudar. O único caminho é o estudo. Não tem outro caminho. Tem
que estudar. /.../ O ensino era muito mais valioso [antigamente], ensinava muito mais.
Naquele tempo os professores ajudavam a educar as crianças, viu! Hoje não, se o professor
relar a mão em um aluno, processa, essa coisas todas. Então naquele tempo, a gente aprendeu
muita educação na escola, porque os pais não tinham quase tempo, mas a escola ensinava
direitinho.
6. Agora meus netos vivem em Internet, conversando com os outros, jogando, fazendo
joguinhos... Essas coisas. Eu acho que isso ai está fazendo as pessoas não comprarem mais
livros, a ler, não vai mais em teatro, não tem tempo mais de ir ao teatro. Cinema não, porque
já tem na televisão. Eu sou contra viu bem.
7. Então quem quisesse estudar, e não tinha condições, não tinha vez.
8. Eu não chorava, não reclamava porque o colégio era ruim... Eu falava “eu tenho saudade da
minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos". Eu estava com duas lá, mas tinha quatro em casa.
Então, a gente se sentia muito infeliz lá no colégio.
265
9. Mas eu, apesar de tudo, eu fui uma aluna, não brilhante, não fui uma aluna brilhante
também não, mas eu fui escolhida antes de me formar professora em 1937, para lecionar no
Externato São José.
10. Eu estudava matemática só para passar de ano, para não ficar dependendo daquela
matéria. Então eu estudava um pouco para passar. As matérias que eu ia bem eu gostava.
11. E vou te falar uma coisa: “naquele tempo tinha muita honestidade”. Não se chegava, por
exemplo, nos armazéns, eu lembro, todo mundo comprava, todo mundo dava um duro
danado e chegava ao fim do mês, todo mundo era honesto e pagava direitinho. /.../ Agora você
aposentado emprestando dinheiro. Isso eu sou contra. Você incentiva o cara a se enterrar.
Ele vai se apertar. E depois tem que pagar luz, juros, ninguém vai ajudar. Essas financeiras
querem é lucro. Os caras se enterram no banco. Antigamente não.
12. E quando o patrão não queria mais, punha a família e os pertences que eram poucos
numa carroça e mandava embora. Eles que se virassem. Foram muito judiados. E os italianos,
o Brasil deve muito para os italianos, viu?! Foram muito judiados, os italianos. Colocavam no
lombo do cavalo e eles iam embora até o lugar onde fosse.
13. Para os professores, a vida de antigamente o era como a de hoje. Antigamente a gente
fazia o semanário. Para o semanário tinha que fazer pesquisa sobre o que teria que dar durante
toda a semana: hoje eu vou dar aula disso, por exemplo, de verbo... Hoje em dia eles não
conhecem muito verbo, não é?
14. Mas a vida é assim, conforme o modo de pensar das pessoas, não é?! Eu acho até que
quem não põe filho para estudar, mesmo que seja rico, é atraso. E antigamente não era visto
assim não.
266
F
ELICIDADE
-T
RISTEZA
1. Nos reuníamos na minha casa; sabe onde é o Banco do Brasil, ali na esquina? Lá era a
minha casa. A casa dos meus avós... Então, a gente formava turminha ali na calçada. O
divertimento era isso, só com os rapazinhos que eram os colegas. Tinha um que tinha
açougue; levava lingüiça. Eu entrava, fritava, trazia para eles comerem. Era uma coisa
simples.
2. Então a brincadeira era por aí, mas era uma brincadeira muito sadia, não tinha tempo de
pensar tanta bobagem como hoje. Brincadeiras nas árvores, na terra.
3. [E] naquele tempo tinha bastante filho, Nossa Senhora! Mas tinha bastante fartura, bastante
coisa para comer. A vida era mais fácil, tinha menos [variedade], porque não tinha
supermercado, tinha “vendas”. Então papai ia às vendas, comprava as coisas. Esse mês
marcava para pagar o mês que vem, o mês que vem fazia outra compra, para pagar o outro
mês. Quando pagava a conta ganhava uma lata de marmelada, goiabada. A glória para nós,
era a festa.
4. Mas era uma vida gostosa, viu?! Todos juntos, alegres. Tropa, eu amava ver boiada, ver
separar boi.
5. Tenho viajado bastante, agora eu vou para São Paulo. eu fico duas semanas, depois eu
volto. Depois, em julho, a minha filha caçula tem casa em Ilha Bela, eu vou ficar uns dias
com ela lá. Até não gosto da vista do mar. Mas eu gosto de ficar andando lá, tenho minhas
comadres. Fico passeando, a casa é gostosa.
6. Com a consciência tranqüila por um dever bem cumprido. Fui muito feliz no magistério.
Minhas ex-alunas /.../ todas me consideram muito. Para que ser mais feliz?
267
7. É uma vida. Eu tinha quinze anos e ele dezenove. Mas é assim, assim é a vida. Eu tenho as
filhas muito boas, os netos maravilhosos. Tenho nove netos e tenho dois bisnetinhos. E
assim é a vida.
8. Um dia desses encontrei um ex-aluno que falou para mim: “a senhora se lembra daquele
tempo em que as meninas chegavam com uma flor, alguém queria carregar as suas coisas,
alguém queria acompanhá-la até a sua casa, lembra?”
9. Uma vez sortearam um ponto eu não me lembro qual e a classe inteirinha não acertou.
Eu acertei. Fui a única a acertar. /.../ Não fez “aquele” elogio, mas eu me lembro disso...
10. Eu ficava olhando e meu pai falava – eu me chamo Antonia e meu pai falava Tonica para
mim ele falava: “Tonica, pia agulha, picco fio”. Entendeu?! Isso que meu pai falava era em
italiano: “Pega a agulha e enrola na linha”. Então ele falava: “Tonica, pia agulha, picco fio”.
11. No Natal cada um ficava na sua casa. Fazia um almoço diferente, comprava uma bebida,
um guaraná e bebia vinho, né! Bebia vinho, ah vinho... Nós comemorávamos a Páscoa
também, Dia de Ano. Eu cozinhava bastante, fazia pão toda semana, pão de noite! /.../ Mas
ficava gostoso, Nossa Senhora! Tudo no forno a lenha.
12. Cantava para construir a igreja São Sebastião. De noite, de madrugada, eu cantava para
arrecadar dinheiro na quermesse.
13. O clube foi muito bom para mim. Eu tinha um grupo muito grande de amizade, /.../
Então, é essa vida que eu vou levando até hoje. Sou diretor da música no Clube; eu
comando a música, dou o crivo.
14. Nós fizemos trabalhos lindos aqui em Jaú, lindos, lindos. /.../ Fizemos trabalhos bonitos,
eu tenho algumas fitas, porque eles mentem que vão apenas re-gravar para eles e depois não
entregam mais. Você sabe como é esse trambique! E agora, com 8.8, vamos fazer no teatro.
Agora em julho. No teatro Elza Munerato. Tem uma porção de gente.
15. O respeito que esse pessoal mais jovem tem comigo, menino!! Eu passo ali no Liban e
eles falam “paz e amor, Dona Dirce”. Quando eu fui atropelada, eles ficaram com medo de eu
268
morrer. Fez um ano em janeiro. Eu ando relativamente bem. Eu ando bem(prática). A turma
achou que eu não andaria mais, tinha que ficar na cama. /.../ Agora, eu vivo bem, eu estou
bem. Eu estou feliz. Não pode falar que está feliz, porque o povo faz macumba, faz mau
olhado. Só se você for ao terreiro agora e fizer uma macumba para mim.
16. Mas o povo fala “isso é porque vo merece”. Mas todo mundo merece. Eu tirei de letra.
E onde eu tenho que cantar eu canto. Aqui está gravando? Vou cantar.
A
UTONOMIA
-S
UBMISSÃO
1. A gente estudava tanto que, às vezes, a turma não era eu –, a gente punha o na
bacia com água fria, para não dormir enquanto estudava... Estudava mesmo. A gente era
mocidade, antiga.
2. O que mais dificultava para estudar na época era a situação financeira. Eu fiz jardim de
infância até o diploma de professora, na Escola Normal São José. Se eu tivesse escolhido,
teria escolhido Educação Física. /.../ Eu sou professora por acaso. Eu era movimento... Mas
não tive outra opção. /.../ O prazer da gente na escola, eu e mais umas duas ou três, a gente
não levava nem lanche, era para aproveitar o recreio para jogar.
3. Nós entramos, calcule, na Escola de Arquitetura, mas papai não deixou. Naquela época
mulher não podia. Não podia ser médica, tinha que ser professora.
4. [Então], uma Almeida Prado disse para outra: “Oh, sabe porque ele escolheu você? Porque
ninguém quer saber de fazer a ata”. Falei: “Não senhora, é porque eu sei fazer ata”. Daí eu
comecei a me impor, sabe, entendeu? Entendeu? Daí eu tive que me impor. Porque se eu não
me impusesse, eu tomava sempre aquilo, não é? Entendeu?
5. “Olha professora, o Doutor Urbano Teles de Menezes que era o prefeito aquele tempo
tem dez escolas municipais para distribuir. distribuí nove, falta uma. Ninguém quer. Por
quê? Ela está situada na beira do Dourado, onde maleita até em pau. Se a senhora quiser,
daqui a um mês a escola será transferida, mas tem que ir para lá”. Cheguei em casa, meus pais
ficaram bravos, não queriam. Tudo é por Deus. Eu fui
.
269
6. Ai meu Deus do u, eu ainda não tinha ingressado... Nunca mais eu levei um aluno para o
diretor. Nunca mais. A frase ficou na minha cabeça. Mas nunca mesmo, eu cheguei para um
diretor para fazer a menor queixa. Eu resolvia os problemas. Aquilo ficou marcado para mim.
7. “Mas, professora, a senhora está num terceiro estágio, vai voltar?”. “Mas pelo menos eu
vou arrumar minha vida”, pensei. De São Paulo, no Grupo Escolar Coronel Pedro Arbues, eu
consegui voltar pra Bauru, num Grupo, no Luis Castanho de Almeida. Fiquei doze anos aqui
em Bauru.
8. [Caso] eu não tivesse dado aula após terminar o curso normal, talvez fosse fazer faculdade
em São Paulo. Depois eu morei 40 anos em o Paulo. E eu tive oportunidade de fazer
muitos cursos. Eu freqüentava palestras. Eu fiz, inclusive, um curso de orientação
Educacional em São Paulo. Quando eu morava lá. Curso de orientação Educacional. Eu
participava de cursos, naquela época, com professores; professor José Camarinha e outras
tantas pessoas de valor. Eu não perdi oportunidade de me informar. Eu lia no jornal:
“professor fulano de tal, dando curso...” Eu ia lá.
9. Naquele tempo a gente freqüentava a igreja. /.../ Íamos à missa, e cada um sabia de sua
obrigação.
10. Meus pais chamavam a minha atenção: "como é que você está falando uma coisa dessas?
Não pode fazer uma coisa dessas” (porque se a gente pensava nas leis sociais era tratado
como comunista). Então, eu me revoltava. E minha avó ficava apavorada. Ela era da Espanha,
era espanhola, então ela ficava falando para eles "deixa, ele sabe o que ele está falando,
fazendo, o negócio dele é esse mesmo, vocês não sabem?!”.
11. A moda era aquela. Então todo mundo sabia. Essas roupas vinham das lojas, mas você
sabe que a moda vem sempre dos grandes centros, não é? Eles é que ditam a moda. E olha a
minha maneira de pensar: jamais eu entro nesse barco. Jamais. o sei se naquele tempo eu
pensava assim, eu penso hoje. Agora é moda essa coisa de crepe, cheio de babados. Eu não
uso porque eu não me sujeito a opinião dos outros. Eu tenho minha opinião.
270
12. [Certa vez] eu fui ao Rio de Janeiro cantar no programa do Ary Barroso. Cantei e ganhei o
primeiro lugar. Eram 120 contos, a paga, o cachê. Mas eu não fui para ganhar o cachê, porque
eu não podia. Você tinha que se inscrever primeiro e depois esperara ser chamado. /.../
Cheguei lá e falei “vou cantar, quero cantar” Longe, muito longe de poder. Não podia, de jeito
nenhum, pois eu não me inscrevi. Os outros que eram inscritos estavam esperando a hora de
cantar, agora chega eu lá, sem nada, não podia. Eu falei: “com quem eu posso falar?”. /.../
“Posso. Sou uma cidadã brasileira, eu posso entrar. Eu não sou bicho. Eu posso entrar. Eu
quero entrar, devo entrar, e vou entrar”. Entrei. Falei com ele. Ele falou: “Mas não tem jeito”.
Falei: “tem. Se você quiser tem. Você me deixa cantar e acabou. Eu não faço conta do prêmio,
não faço conta de nada. Eu quero cantar. Eu vim de Jaú aqui para cantar. Então eu vou cantar,
eu quero cantar”. /.../ Eu cantei. /.../ Passamos na rádio Nacional, de São Paulo. Eu falei: “eu
vou cantar na rádio também”, mas meu marido disse “Escuta...” Falei: “Fica frio. Já cantei no
Rio, canto aqui também, em São Paulo”. Mas lá não era dinheiro, eu ganhei uma máquina
fotográfica, do Foto Léo.
13. Então, a esposa e ele, me pegam aqui 11:30, meio dia, mais tardar. Me levam para a casa
deles. a gente curte, conversa, bate papo, almoça (que ela é uma exímia fazedeira de
comida também). Professora aposentada, e ele também, professor aposentado. /.../ Então ali a
gente passa o dia. Quando chega às cinco horas, quatro e pouquinho, a gente vai para igreja
Santo Antonio, de carro. Tudo direitinho, bonitinho. Quando eu falo que eu quero ir embora,
ela me traz, senão, se tiver futebol é sagrado. Eu fico e ela me traz à meia noite, uma hora.
Eu te pergunto: “quem é que com oitenta e oito anos tem essa chance?
14. Eu também fiz curso de pintura. Esse quadro é meu. Tem um outro na sala também. E
agente não guarda muita coisa. Fiz curso de especialização para deficiente auditivo, deficiente
visual, deficiente mental. Porque eu tive uma aluna cuja e me procurou. Queria que desse
aulas pra ela, mas eu não me sentia competente pra trabalhar com ela, porque ela era
deficiente. Ai eu fui fazer um curso na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, na
APAE. E lá eu tenho meu diploma de professora de Débeis Mentais. E, uma certa feita, a mãe
dessa aluna me procurou dizendo: “Maria eu preciso de um atestado pra minha filha, dizendo
que ela é deficiente”. Porque o pai tinha que dar uma pensão. Mas eu não queria dizer que ela
era deficiente. Ai eu redige assim: “Eu, Maria Aparecida Cesarino, professora normalista e,
também, tendo cursado [eu que cursei a Escola]... dei aulas particulares pra ela”. Ora, se eu
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era formada em deficientes mentais e tava dando aulas pra ela, subentende-se que ela era
deficiente não é?! Então ela conseguiu que o pai fosse obrigado a dar uma pensão.
15. Então eu digo: “eu vivi bem a minha vida”. /.../ E hoje estou tendo a felicidade também de
ser entrevistada por você que é uma pessoa também que eu refuto como sendo uma pessoa de
muito valor e o que estiver ao meu alcance para dizer alguma coisa, é só perguntar.
16. Eu vivo bem do meu jeito. Curto meus amigos, curto minhas amigas, vou cantar, vou
ensaiar. Canto e canto em qualquer lugar, onde tem gente cantando eu entro e canto também.
Vivo bem, Graças a Deus. Dinheiro não tem, mas dinheiro não precisa. O pouco que tem dá.
O que mais você quer saber?
Ao buscar as práticas sociais de autonomia acima descritas, nos deparamos com
práticas sociais que denominamos como de submissão, principalmente em relação à sociedade
ou à família. Seguem alguns exemplos:
17. Mas no meu tempo não, a educação era rigorosa. Era muito... Às vezes a gente chegava
nem podia manifestar até raiva do pai e da mãe. Porque eles eram muito... Menina saía de
noite, ia dar volta no jardim, como fazem até hoje, mas tal hora tinha que estar em casa.
18. Na escola nós usávamos uniformes. Aqui na Escola Normal nós usávamos, de uniforme,
saia pregueada marrom, blusa branca de manga comprida e um laço marrom. A meia era
preta, botinha abotoada. Os meninos usavam calça azul marinho também, listradinha de
branco e blusa também branca. Depois isso desapareceu. Depois não usava mais uniforme,
nem os meninos. /.../
19. Na escola, não tinha separação não, tinha os recreios juntos. Quer dizer, no Dom Luís
que era mista. Era padre, mas não tinha nada de separação de sexo, nada. Em Jaú eu tinha
amigas internas que era um sacrifício medonho, um terror lá. Não podia sair, não podia. No
colégio era um rigor muito grande; demais, porque era uma fiscalização enorme para as
meninas. Para a gente que era interna não, mas não tinha muita conversa na classe, nem no
recreio. Elas ficavam sempre fiscalizando, sempre. Aqui não, aqui já era diferente.
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20. Naquele tempo, não existia lei trabalhista, não existia nada. Comecei a trabalhar era
quase um trabalho, porque não tinha emprego –, era adolescente ainda, saía na rua vendendo
banana, com uma cesta de banana, levava a cesta de banana na escola. Eu não podia nem
fazer isso ainda, mas tinha que fazer... Os pais mandavam. Os pais tinham muito mais
autoridade do que hoje. Então a gente obedecia cegamente o que os pais diziam.
21. Aqui em Jaú, preto não entrava no jardim, vo sabia disso? Preto não entrava no jardim.
É um preconceito de raça desgraçado. Isso em 1944 mais ou menos. /.../ Aqui em Jaú, nesse
jardim que nós falamos jardim de baixo, aos sábados e domingos, a elite dava volta no jardim.
Os homens davam volta nesse sentido, e as mulheres no sentido oposto. Então a gente
namorava uns que estavam dentro do jardim, dava uma volta inteira para dar uma piscadinha
para o outro, porque não podia ir no mesmo sentido, um num sentido o outro, em outro. E os
negros, os negros... Isso é uma mancha para Jaú. Os negros andavam fora do jardim. E os
brancos dentro. Eles eram livres, mas havia preconceito. /.../ Olha, eu sou evangélica, mas
eu não gostaria que uma das minhas filhas ou minhas netas casasse com preto, isso eu falo a
verdade. E é um preconceito que a gente não quer ter, mas tem.
Com respeito à Sabedoria-Ignorância enquanto práticas sociais de nossos depoentes
podemos destacar a presença de táticas que organizavam seu cotidiano, como o uso de um
embornal para ter cuidados com a dieta, uma vez que se alimentavam em casa, antes de ir à
escola. Havia, ainda, o respeito às pessoas, o que nos mostra o cuidado que eles tinham com a
alma, pois quem cuida do outro, cuida de si. Respeito que, às vezes, se transformava em
submissão, quando não se podia manifestar sentimentos em relação aos pais, por exemplo.
A prática de se casar jovem, o que nos remete à cultura da época, também era comum.
Bem como a freqüência aos Grupos Escolares, que era oferecido nos anos iniciais pelo estado.
A educação, de um modo geral, era gerida no âmbito familiar e complementada, muitas vezes,
pela escola, pelo professor. A maioria à concebe como fundamental, pois a consideram como
um bem. Disponível a poucos, pois quem quisesse estudar, e não tinha condições, não tinha
vez. E quem tinha condições, estudando em regime de internato, muitas vezes para não falar
mal do regime de internação, praticavam a lamúria: eu tenho saudade da minha mãe, do meu
pai, dos meus irmãos. Do mesmo modo que muitas estudavam apenas para passar de ano,
principalmente em Matemática
. Não eram alunos brilhantes, mas eram considerados os mais
273
aptos para seguir, no sistema escolar, como professores. Chegando a estudar, horas a fio, com
os pés em bacias de água fria.
Discursos que explicitam a preocupação com a juventude atual são produzidos, por
exemplo, no que se refere ao uso de computadores e internet. O que relega, muitas vezes, a
segundo plano cuidados com a leitura, com o cinema, teatro, etc. A expressão comumente
utilizada foi: Eu sou contra viu, bem!
A situação à época, de um modo geral, era muito difícil, do ponto de vista econômico,
pois todo mundo dava um duro danado e chegava no fim do mês, como todo mundo era
honesto, pagavam direitinho suas contas. Em contrapartida, a análise dessa situação, hoje,
segundo nossos depoentes, é mais complexa, pois agora vo aposentado emprestando
dinheiro, sem ter condições de pagá-lo. Acreditam que ao se fazer isso, as pessoas vão se
enterrar em dividas, vão se apertar. São contra esse tipo de prática.
Os imigrantes e os negros, via de regra, eram discriminados. Os primeiros por não
terem terras e se verem obrigados a trabalhar para fazendeiros que não os valorizam.
Chegando, muitas vezes, a mandá-los embora sem direito a nada, quando algum problema
surgia. Eles que se virassem. Os negros, por sua vez, por uma questão de discriminação racial
e por sua condição de ex-escravos, também eram deixados à margem, como muitos relatos
apontaram, inclusive o da Senhora Maria Cesarino Simões, no qual explicitava sua condição
de negra dizendo que nunca havia sentido o preconceito, apesar de saber que existia e existe
até hoje, advogando em prol de uma postura na qual se você não incomoda o outro, o outro
não te incomodará.
A prática do semanário era organizadora do fazer docente. era pesquisado e
anotado todo o conteúdo a ser ministrado, bem como a ser verificado pelos Supervisores e
Diretores. É interessante perceber que estas práticas sociais eram entendidas da seguinte
forma: Mas a vida é assim, conforme o modo de pensar das pessoas, não é?!
No que tange a Felicidade-Infelicidade, suas práticas sociais de cuidado de si eram
simples. Reuniam a turminha na calçada para conversar e se divertir, e quando alguém levava
lingüiça, fritavam e comiam enquanto conversavam. Eram brincadeiras muito sadias, não
tinha tempo de pensar tanta bobagem como hoje. Brincadeiras nas árvores, na terra. A
observação também era uma prática constante; práticas que os levaram a aprender muitas
coisas, como o crochê, um ofício como diria o Sr. Henrique –, são velhas práticas se
repetindo.
Seus relatos nos mostram que, naquele tempo tinha bastante fartura, bastante coisa
para comer. A vida era mais fácil, tinha menos [variedade], porque não tinha supermercado,
274
tinha “vendas”. Não se descuidavam da alimentação, do cuidado com o corpo. Tanto que,
geralmente, as compras eram feitas no sistema de caderneta, sendo pagas uma vez por mês. E,
quando pagavam à conta, ganhavam uma lata de marmelada, goiabada. A glória para eles, era
uma festa. Era uma vida gostosa. Todos juntos, alegres. E, uma das diversões, era ver o
trabalho dos peões, manejando a tropa, tocando e separando a boiada.
Muitas, ao se recordarem de sua vivencia escolar, o fazem com alegria, haja visto que
quando inquiridas pelos seus professores, sempre os respondiam. Muitas vezes com a resposta
esperado por eles. Isso lhes trazia alegria, satisfação.
Para aqueles depoentes que exerceram como profissão o magistério dizem terá a
consciência tranqüila, pelo dever bem cumprido. Consideram-se realizadas pela profissão que
escolheram. Recebendo, inclusive, várias homenagens. Dentre as práticas sociais que levam a
essa felicidade e satisfação, estão aquelas nas quais as meninas chegavam com uma flor, e
alguém queria carregar as suas coisas, alguém queria acompanhá-las até a sua casa. Com
aqueles que não foram professores, a satisfação e felicidade também é expressa em seus
depoimentos. Atualmente, as viagens que realizam com familiares e amigos é uma prática
social constante, o que lhes traz satisfação e alegria nunca é demasiado tarde para ocupar-
se de si mesmo.
Quanto a prática social de terem se casado cedo, para aqueles que assim o fizeram, não
é visto como negativo. Contudo, por muitas terem perdido seus companheiros, hoje se sentem
sozinhos. Sem, contudo, deixar de ter esperança. E assim é a vida.
Em comemorações como o Natal, a Páscoa, etc., cada um ficava na sua casa. Faziam
um almoço diferente, compravam uma bebida, um guaraná e vinho! Bebiam vinho, ah vinho...
Cozinhavam bastante, fazia pão toda semana, pão de noite! /.../ ficava gostoso, Nossa
Senhora! Tudo no forno a lenha.
Cantavam por profissão, cantavam por diversão, cantavam por prazer! De noite, de
madrugada... cantavam no clube, na quermesse, no teatro, cantavam em qualquer lugar... Com
8.8, cantavam em qualquer lugar.
Suas práticas de cuidado com o corpo são declaradas a todo momento e, também, o
respeito que muitos jovens tem por sua vivência e experiências - o respeito que esse pessoal
mais jovem tem comigo, menino!! Eu passo ali no Liban e eles falam “paz e amor, Dona
Dirce”. Mas não se pode dizer que está feliz, porque senão o povo faz macumba, traz mau
olhado. Mas o povo fala “isso é porque você merece”. Mas todo mundo merece.
275
Essa quádrupla aliança, sabedoria-ignorância, felicidade-tristeza, disponibilizou aos
nossos sujeitos ferramentas, muniu-os de verdades que os levaram, muitas vezes, a exercer
estratégias, práticas e táticas de autonomia e, também, de submissão.
O estudo, muitas vezes, era uma obrigação penosa, era com muita dificuldade que o
faziam - a gente punha o na bacia com água fria, para não dormir enquanto estudava...
Estudava mesmo. A gente era mocidade, antiga. Dificuldade de todas as ordens, mas,
principalmente financeira.
O que mais dificultava para estudar na época era a situação
financeira. Eu fiz jardim de infância até o diploma de professora, na Escola
Normal São José. Se eu tivesse escolhido, teria escolhido Educação Física.
/.../ Eu sou professora por acaso. Eu era movimento... Mas não tive outra
opção. /.../ O prazer da gente na escola, eu e mais umas duas ou três, a
gente não levava nem lanche, era para aproveitar o recreio para jogar.
Dificuldade para se exercer aquilo que gostariam, porque naquela época mulher não
podia ser médica, fazer educação física, tinha que ser professora.
Dificuldade de convivência entre as classes sociais, dificuldades que os obrigavam a se
impor frente aos moradores mais antigos da cidade na qual residiam.
[Então], uma Almeida Prado disse para outra: “Oh, sabe porque ele
escolheu você? Porque ninguém quer saber de fazer a ata”. Falei: “Não
senhora, é porque eu sei fazer ata”. Daí eu comecei a me impor, sabe,
entendeu? Entendeu? Daí eu tive que me impor. Porque se eu não me
impusesse, eu tomava sempre aquilo, não é? Entendeu?
As dificuldades os levavam a tomar decisões autônomas, afinal Deus não cuida dos
bons, mas lhe incute mais e mais dificuldades, pois dos maus não é preciso cuidar. As
escolhas feitas em relação às escolas suas condições de ingresso e moradia, etc. são um
exemplo claro dessas atitudes. Buscar aprimoramento através de cursos, palestras, voltar a
estudar, mostra a necessidade de assim faze-lo, mas também, atitudes autônomas em relação a
si, em direção a hermenêutica do sujeito.
As obrigações religiosas também eram comuns, pois cada um sabia de sua obrigação.
O olhar da igreja, o olhar do outro são as práticas da época e suas falas, nos dizem dessas
práticas, desses fazeres.
Revoltavam-se e agiam em defesa de seus interesses trabalhistas. Exerciam suas
vontades em relação aos modismos... Eu não uso porque eu não me sujeito a opinião dos
outros. Eu tenho minha opinião.
Exerciam seus direitos de cidadão Sou uma cidadã brasileira
. Tinham e tem
práticas de autonomia – Então eu vou cantar, eu quero cantar... cantei!
276
Exercem práticas, táticas e estratégias do cuidado de si... Afinal se tivéssemos que
determinar um lócus para o cuidado de si, este seria na velhice. Seria no momento em que não
temos mais que nos ocupar dos outros, não temos que nos ocupar com a dietética, que nos
leva a econômica e a erótica. Devemos nos ocupar de nós mesmos.
Mesmo com a submissão, muitas vezes confundida com respeito, que tinham pelos
pais, o rigor exigido nos Grupos Escolares e Escolas Normais, como o uso de uniformes e o
regime de internato, etc, são vistos, hoje, como algo positivo, haja vista a situação na qual a
educação e o país se encontram.
Vivem, segundo suas falas, muito bem. Tanto hoje como naquele tempo, apesar das
dificuldades financeiras, das dificuldades nos estudos, do preconceito com negros e
imigrantes. Mas acima de tudo valorizam suas experiências e inclusive a iniciativa de
trabalhos como este que buscam resgatar essas práticas sociais.
Eu vivo bem do meu jeito. Curto meus amigos, curto minhas amigas,
vou cantar, vou lá ensaiar. Canto e canto em qualquer lugar, onde tem gente
cantando eu entro e canto também. Vivo bem, Graças a Deus. Dinheiro não
tem, mas dinheiro não precisa. O pouco que tem dá. O que mais você quer
saber?
Assim, a sabedoria nos leva a felicidade e ambas nos conduzem à autonomia, a
autonomia do sujeito. Práticas de si que estão atreladas, muitas vezes, à ignorância, tristeza e
submissão. Submissão à dietética, à econômica e à erótica. Submissão a outro e não a si
mesmo. Submissão a qual estamos expostos todos os dias, em todas as circunstâncias, com
nossos familiares e amigos, com nossos alunos.
Esse trabalho é fruto de muito esforço e buscou conciliar inúmeras inquietações
acadêmicas e pessoais que nos conduzem, dia-a-dia, à autonomia, a submissão. O desejo de
trabalhar com questões relacionadas ao ensino e aprendizagem da Matemática, nos cursos de
formação de professores concretizou-se no momento em que essa escrita deixou de ser
burocrática e tornou-se responsável pela transformação do sujeito. As práticas de nossos
sujeitos, a maioria professores, nos indicativos de como conduzir nossas práticas. Práticas
não apenas de sala de aula, mas, fundamentalmente, práticas de cuidado de si, de cuidado do
outro. E a História Oral foi fundamental nesse processo, afinal foram as “hypomnémata” que
possibilitaram conhecer e explicitar essas táticas, práticas e estratégias de cuidado de si.
O caminho aqui percorrido, portanto, não apenas nos alguns indícios de como se
dava a formação de professores e deixamos a cargo do leitor atento e livre de pré-conceitos
outras inferências e relações –, entre os anos de 1925 a 1945, contribuindo, assim, para o
estudo dessa formação no país, mas também nos indícios de novos métodos e abordagens
277
no campo da Educação Matemática o uso da Hermenêutica do Sujeito, o uso de Michel
Foucault, na leitura e apropriação de discursos recolhidos e registrados pela História Oral.
Ficam, então, esses registros, essas histórias... que são também a nossa história!
Muitas vezes, refleti sobre nossa busca rígida. Ele me mostrou que
tudo é iluminado pela luz do passado. Ela está sempre ao nosso lado. Do
lado de dentro, para o lado de fora. Como você diz, do avesso. /.../ Jonfen,
estou lhe mandando isto, porque dividimos momentos de muito valor. E, é
claro, se acaso alguém vier procurar
66
.
66
Uma Vida Iluminada (Everythings is Illuminated), direção de Liev Schreiber. 105 Minutos. Warner
Independent Pictures & Big Beach Production, 2006.
278
R
EFERÊNCIAS
B
IBLIOGRÁFICAS
279
Não estou de modo algum entrando em seara alheia. Esta seara é de
todos nós... Que estás páginas simbolizem uma passeata de protesto de
rapazes e moças (CLARICE LISPECTOR).
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(Doutorado em Educação) – FE, Universidade de Campinas, 2005.
SOUZA, A. C. C. de, SOUZA, G. L. D. de. Cotidiano e Memória. In: Teoria e Prática da
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SOUZA, A. C. C. de, (Entre)Mentes, Nômade. In: Garnica, A. V. M. (org.) Mosaíco, Mapa,
Memória: ensaios na interface História Oral e Educação Matemática. Bauru: Canal 6/e-
GHOEM, 2006. CD-ROM (Coleção e-GHOEM, História Oral e Educação Matemática, 1).
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
THOMPSON, P. A Voz do Passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
TOSCANO, J. R. João Ribeiro de Barros: apontamentos históricos. Jahu(SP): Secretaria
de Educação e Cultura, 2002.
VALENTE, V. R. Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo:
Annablume: FAPESP, 1999.
____________. (org.). Euclides Roxo e a modernização do ensino de Matemática no
Brasil. São Paulo: SBEM, 2003.
______________. (org.) O nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume:
FAPESP, 2004.
289
VECHIA, A. & LORENZ, K. M. (orgs.) Programa de ensino da escola secundária
brasileira: 1850-1951. Curitiba: Ed. do Autor, 1998.
VIDAL, D. G. As lentes da história: estudos de história e historiografia da educação no
Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.
WOOLF, V. Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
XAVIER, M. C. Manifesto dos Pioneiros da educação: um legado educacional em debate.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
290
A
NEXOS
291
A
NEXO
A
Q
UESTÕES NORTEADORAS DA
E
NTREVISTAS
A
PLICADAS
Apresentamos, a seguir, o roteiro de entrevistas re-configurado:
1. Quem é você?
Nome, idade, filiação, casado(a), filhos etc .?
Nasceu em qual cidade? Como chegou até a cidade na qual reside hoje?
2. Você se recorda de como era a vida na época de sua infância?
Quais eram as brincadeiras em sua infância?
Como era o lazer em sua adolescência e mocidade?
Como você se alimentava e se vestia (ou seja, como era isso alimentação e vestuário
- para sua família e para sua comunidade de um modo mais geral)?
Quem administrava a cidade? As fazendas?
Existiam hospitais, teatros, eventos artísticos?
Quais eram os meios de transporte, de moradia?
Havia discriminação com negros ou imigrantes?
3. E da sua adolescência?
4. De quais fatos, acontecidos em sua infância (em casa, na rua, na cidade, no país, no
mundo) que mais se recorda? Por quê?
5. E em sua adolescência? Por quê?
6. Quais eram os meios de subsistência? Onde as pessoas trabalhavam e para quem?
7. O Sr(a) trabalhou? Se sim, qual profissão, por quê, onde, quando, como aprendeu?
8. Havia uma diferenciação social entre sua profissão e outras profissões (ou seja, como,
segundo suas impressões, sua profissão era julgada socialmente, na comunidade)? A que
motivo o(a) senhor(a) atribui essa diferenciação (ou essa não diferenciação)?
9. Em relação aos estudos,
Você estudou?
i. Se sim, por quê, onde e quando?
ii. E o que lembra da escola: professores, amigos, provas, livros etc?
iii. Todo mundo estudava? Seus amigos estudaram? Por que?
iv. Quais escolas havia em sua cidade e em sua região?
v. Terminado o Grupo Escolar, quais as oportunidades para a continuação dos estudos?
292
Se o(a) senhor(a) foi professor(a) ou administrador(a)/diretor(a)/inspetor(a) escolar,
como era o contato entre seus pares?
i. Como era o contato entre professores e direção?
ii. Como funcionava a legislação?
iii. Como os professores montavam, seus programas de ensino?
iv. Como era o controle oficial sobre os programas e as atividades relacionadas com a
escola?
v. Havia norteadores pedagógicos? Como eram discutidos?
vi. Que problemas (qual a natureza) existiam na escola de então?
vii. Como eram os salários (tem alguma comprovação – tipo holerith antigo)?
viii. Como era o contato com alunos e com pais de alunos?
ix. algum evento específico, em sua prática como professor, que julgue
significativo para ser relatado?
x. O que os professores/diretores sabiam da realidade de outras escolas (de outros
locais)?
xi. Quem eram as autoridades (educacionais) à época (em nível local na escola,
municipal – secretário da educação, prefeito etc, estadual e nacional)?
xii. Como os alunos se alimentavam? Havia merenda escolar?
xiii. Como era o envolvimento dos professores (e da escola, de um modo geral) com as
questões políticas da época? Quando era aluno, essas questões eram tratadas na
escola? Quando foi professor, algo mudou em relação a isso?
xiv. Como os acontecimentos, não somente políticos, mas também os cotidianos
julgados relevantes eram tratados pela escola, entre os professores e com os
alunos?
10. O que se sabia da vida em outros lugares, outros municípios, outros estados, outros
paísvestuarioes, à época? Como essas informações chegavam a(o) senhor(a)?
11. Como era a vida religiosa? Quais os eventos religiosos mais marcantes? Como você e sua
família os vivenciava? Como a comunidade os vivenciava? Como a escola os vivenciava?
293
A
NEXO
B
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