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Ainda em Alcibíades, discute-se o que vem a ser o “cuidado” no cuidado de si e quem
deve ser esse “eu” que se quer cuidar no cuidado de si. A partir de uma série de indagações
chega-se à conclusão de que esse “eu” que se deve cuidar é a alma. Chega-se, então, à
definição de heautoû como alma.
De uma maneira muito significativa, a análise que nos irá conduzir da
questão – “o que é meu eu?” – à resposta – “sou minha alma” – é um
movimento que começa com um pequeno conjunto de questões que eu
resumiria, se quisermos, do modo como passo a expor. Quando se diz –
“Sócrates fala a Alcibíades”, o que isto quer dizer? A resposta é dada: quer
dizer que Sócrates se serve da linguagem. Este simples exemplo é ao mesmo
tempo muito significativo. A questão colocada é a questão do sujeito. /.../
Trata-se, /.../ de fazer passar, para uma ação falada, o fio de uma distinção
que permitirá isolar, distinguir, o sujeito da ação e o conjunto de elementos
(palavras, ruídos, etc.) que constituem essa própria ação e permitem efetuá-la.
Trata-se, em suma, se quisermos, de fazer aparecer o sujeito na sua
irredutibilidade (FOUCAULT, 2004, p. 69).
O sapateiro usa o martelo, o músico o violão, Sócrates a linguagem. Há uma separação
do sujeito dos instrumentos que ele utiliza, por exemplo, a linguagem (para falar), os olhos
(para ver), os pés (para andar)... o corpo, para abrigar a alma.
/…/ qual é o único elemento que, efetivamente, se serve do corpo, das partes
do corpo, dos órgãos do corpo e, por conseqüência, dos instrumentos e,
finalmente, se servirá da linguagem? Pois bem, é e só pode ser a
alma. Portanto, o sujeito de todas estas ações corporais, instrumentais,
e da linguagem é a alma: a alma enquanto se serve da
linguagem, dos instrumentos e do corpo. Chegamos, pois à alma
(FOUCAULT, 2004, p. 69-70).
Cabe lembra que essa não é a “alma” vista como prisioneira do corpo, a qual se deve
conduzir em boa direção, etc. É, sim, aquela que é sujeito da ação, aquela que se serve do
corpo, dos órgãos do corpo, dos sentidos do corpo (tato, olfato, paladar...), da linguagem...
/.../ ocupar-se consigo mesmo será ocupar-se consigo enquanto se é “sujeito
de”, em certas situações, tais como sujeito de ação instrumental, sujeito de
relações com o outro, sujeito de comportamentos e de atitudes em geral,
sujeito também da relação consigo mesmo. É sendo sujeito, este sujeito que se
serve, que tem essa atitude, este tipo de relações, que se deve estar atento a si
mesmo. Trata-se, pois, de ocupar-se consigo mesmo enquanto se é sujeito de
khrêsis (com toda a polissemia da palavra: sujeito de ações, de
comportamentos, de relações, de atitudes). A alma como sujeito e de modo
algum como substância, é nisto que se desemboca, a meu ver, o
desenvolvimento do Alcibíades sobre a pergunta: “O que é isso mesmo, que
sentido se deve dar a si mesmo quando se diz que é preciso ocupar-se
consigo?” (FOUCAULT, 2004, p. 71-72, grifo do autor).
de um conjunto de deslocamentos, de reativações, de organização destas técnicas naquilo que viria a ser a grande
cultura de si na época helenística e romana. (FOUCAULT, 2004, p. 63)