Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
Instituto de Geociências e Ciências Exatas
Campus de Rio Claro
A Influência da Matemática nas Regras para a Direção do
Espírito e em O Discurso do Método
Duelci A. de Freitas Vaz
Orientador: Dr. Irineu Bicudo
Tese de Doutorado elaborada junto ao Programa
de Pós-Gaduação, em Educação Matemática-
Área de Ensino e Aprendizagem da Matemática e
seus Fundamentos Filosófico-Científicos para
obtenção do título de Doutor em Educação
Matemática.
Rio Claro (SP)
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
510.1 Vaz, Duelci Aparecido de Freitas
V393i A Influência da Matemática nas Regras para a Direção do
Espírito e em O Discurso do Método / Duelci Aparecido de
Freitas
Vaz. – Rio Claro : [s.n.], 2007
242 f. : il., figs.
Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Institu-
to de Geociências e Ciências Exatas
Orientador: Irineu Bicudo
1. Matemática – Filosofia. 2. Matemática – História.
3. Descartes. 4. Metodologia cartesiana. I. Título.
Ficha Catalográfica elaborada pela STATI – Biblioteca da UNESP
Campus de Rio Claro/SP
ads:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Irineu Bicudo ______________________________
Prof. DR. Inocêncio Fernandes Balieiro Filho ___________________________
Profa. Dra Renata Cristina Geromel Meneghetti _______________________________
Profa. Dra. Verilda Speridião Kluth _______________________________
Prof. Dr. Vanderlei Marcos do Nascimento ______________________________
Duelci Aparecido de Freitas Vaz
Aluno
Rio Claro, 29 de maio de 2007.
Resultado: Aprovado
DEDICATÓRIA
Aos meus pais Francisco de Freitas Vaz e Lavi Deuselice Vaz.
Aos meus irmãos Luiz Wellington de Freitas e Roberly de Freitas Vaz.
Aos amigos Anastácio Alves Neto, Izamar de Freitas, Elienete Alves de Jesus,
Elinete Alves, Suely Freitas e Michel Mauch.
Aos meus sobrinhos.
Ao amigo e orientador Irineu Bicudo e sua esposa Elizabeth Christina Plombon
pela execelente acolhida em Rio Claro.
Aos professores que contribuíram com minha formação.
Aos meus colegas de trabalho que acreditaram na realização deste projeto.
Aos amigos Fernando Guedes Cury e Jamur Venturim que foram, nesses três
anos, amigos confiáveis. Nossos almoços dominicais e encontros semanais, além do
futebol nas tardes de sábado e as longas corridas de rua, marcaram mudanças de
hábito e amizades profundas que agora fazem parte de minha vida.
Especialmente, dedico esse trabalho a minha família. Aos meus filhos Tales de
Freitas Vaz e Janaina Deuselice Vaz que souberam entender a necessidade do
distanciamento dos velhos amigos de Goiânia e, também, da família. A esposa
Elivanete Alves de Jesus que, com determinação, ajudou-nos a superar obstáculos
antes intransponíveis.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao profesor Irineu Bicudo pela dedicação e interesse no meu trabalho.
Os encontros semanais ficarão guardados em minha memória, momentos que nosso grupo
de estudo discutia temas importantes, principalmente, ao desenvolvimento de minha tese.
Nesses encontros, o professor Irineu Bicudo falava-nos de História da Matemática, de
Matemática e de Filosofia, entre tantos outros temas. Com seu vasto conhecimento de
línguas deu-me sugestões valiosas e influenciou minha escrita. Um erudito como Cristoph
Clavius, cuja sensibilidade, inteligência e emoção pude constatar em diversos momentos. Um
desses momentos foi, para mim, marcante e ocorreu quando da inauguração da fotografia
de Mário Tourasse, no dia 07 de dezembro de 2006, no anfiteatro do Departamento de
Matemática da UNESP-RC. Na oportunidade, Irineu escreveu um discurso que transcrevo
abaixo.
Inauguração da fotografia de Mário Tourasse, sete de dezembro de 2006.
Dentre os muitos privilégios com que as circunstâncias me
brindaram, destaco, agora, dois: ter visto um pôr-do-sol na ilha grega de
Santarini e convivido, por quase trinta anos, com o Professor Mário
Tourasse Teixeira.
Lá, as mãos do fado lançam, sobre a lisa tela do mar egeu, uma
mistura de cores que nem em sonho se sonham, nem pincel humano
que as possa debuxar, naquela hora em que de Apolo o carro rola pra
fora da vista e a poeira que levantara fica enchendo de leve névoa o
horizonte; quando a flauta calma de , descendo seu tom agudo no ar
pausado, empresta mais tristeza à moribunda tarde; naquele instante em que
o lúcido Planeta, que as horas vai do dia distinguindo, chega à desejada e
lenta meta, a luz celeste às gentes encobrindo.
Cá, a presença desse homem, capaz de uma flor, onde as flores
não nascem, de abrir velhas portas na velha casa da bondade, muito
fechadas, de entregar, a cada um de nós, o coração dentro de um livro.
Lá, a glória da natureza. Cá, o auge do espírito humano.
Mérito à iniciativa de Sérgio Nobre em reproduzir esta fotografia
que acabamos de descerrar.
Cada pequeno e tímido gesto que vivenciamos, cada aperto
carinhoso de mão, cada volver de cabeça, cada baixar de leve os olhos,
cada sorriso de apoio, tudo o que caracterizava o Professor Mário fica, de
hoje em diante, consolidado neste quadro. Seja ele reverenciado como se
fazia no passado com os deuse-lares. Assim, todos os que com ele
privamos, quando, acabados pelas Parcas, formos, vultos solenes de repente
antigos, e cada vez mais sombras, ao encontro fatal do barco escuro no
soturno rio, e os nove abraços do horror estígios, e o regaço insaciável da
pátria de Plutão, teremos feito saber aos pósteres que aqui viveu e ensinou
uma pessoa, prova concreta de que a inteligência, a integridade de caráter e
a extrema bondade são possíveis.
Irineu Bicudo.
Agradeço imensamente a todos os componentes da banca examinadora que com
tanto cuidado e zelo leram minha tese e contribuíaram com valiosas sugestões.
Ao professor Vanderlei Marcos do Nascimento agradeço pela leitura crítica que
permitiu-me constituir um texto livre de fatos desnecessários, além de uma coerência gica
aprimorada.
A professora Renata Cristina Geromel Meneghetti pelas sugestões que contribuíram
com a construção lógica de muitos passagens, assegurando que os objetivos fossem
alcançados com mais clareza. A sua tese de doutorado foi muito útil e ajudou-me a
compor melhor certas passagens da história do pensamento matemático.
A professora Verilda Speridião Kluth que se dispôs a ler com muita atenção
minha tese. Suas observações permitiram-me enfatizar, com palavras certas, as partes
concludentes do trabalho.
Ao professor Inocêncio Fernandes Balieiro Filho que também deu sugestões
valiososas e se dispôs a ler minha tese com muita dedicação. Sua tese de doutorado
também foi-me inspiradora e influênciou muitas passagens do meu texto.
A todos que contribuiaram diretamente e indiretamente, incluo todos os
funcionários da UNESP-RC que tornaram minha estadia em Rio Claro agradável e
inesquecível.
A todos os meus sinceros agradecimentos.
SUMÁRIO
Índice .................................................................................................................................i
Resumo.............................................................................................................................iii
Abstract............................................................................................................................iv
Introdução........................................................................................................................01
Capítulo I – A Formação Acadêmica de Desscartes..................................................06
Capítulo II – O Método de Análise e Síntese dos Antigos Geômetras Gregos.....71
Capítulo II I– O Discurso do Método e os Ensaios.................................................129
Considerações Finais....................................................................................................225
Referências Bibliográficas............................................................................................231
i
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO I: A FORMAÇÃO ACADÊMICA DE DESCARTES 06
1.1 Situando Descartes historicamente 06
1.2 Os estudos em La Fleche 12
1.2.1 A Matemática estudada nos colégios jesuítas 16
1.3 Uma síntese do pensamento matemático e a filosofia da Matemática de Cristoph
Clavius 21
1.3.1 A filosofia da Matemática e a Matemática de Clavius 24
1.3.2 A influência de Papus nos trabalhos de Clavius 31
1.3.3 A influência de A Aritmética nos Trabalhos de Clavius 35
1.4 Algumas concepções matemáticas do professor de Matemática de Descartes em La
Flèche 38
1.5 Uma Nova Ciência: Os Fundamentos Matemáticos de Descartes 40
1.5.1 A Matemática nas Cogitationes Privatae 46
1.5.2 Os Números Figurados, a Extensão do Teorema de Pitágoras e Outros Resultados 55
1.6 A Matemática do De Solidorum Elementis – Sobre Elementos Sólidos 57
1.6.1 Geometria sólida 58
1.7 A Velha Álgebra 66
1.8 Descartes: um homem e seu tempo 70
CAPÍTULO II: O MÉTODO DE ANÁLISE E SÍNTESE DOS ANTIGOS
GEÔMETRAS GREGOS 71
2.1 Uma síntese do Livro VII de A Coleção Matemática de Papus de Alexandria 74
2.2 Uma discussão moderna 76
2.3 Uma síntese da obra A Aritmética de Diofanto 82
2.3.1 Notações e Definições 86
2.3.2 A Aritmética de Diofanto 88
2.3.3 Uma análise contextual das obras de Papus e Diofanto 89
2.4 A Arte Analítica de Viète 92
2.4.1 Considerações sobre a arte analítica de Viète 97
2.5 A influência da Matemática nas Regulae ad Directioni ingenii-Regras para a Direção
do Espírito 99
2.5.1 As Regras I-IV 100
2.5.2 O método de análise e síntese nas Regras 110
2.5.3 Como aplicar as regras anteriores 118
2.5.4. A Matemática nas Regras 121
ii
CAPÍTULO III: O DISCURSO DO MÉTODO E OS ENSAIOS 129
3.1 A estrutura de O Discurso do Método 131
3.2 A Geometria de Descartes 143
3.2.1 Livro I 144
3.2.2 Como utilizar-se letras em Geometria 145
3.2.3 O método de Descartes na Geometria 149
3.2.4 As operações 151
3.2.5 Problemas planos 152
3.2.6 Resolução de tais problemas 152
3.2.7 O problema de Papus para quatro linhas 154
3.3 Livro II 160
3.3.1 Curvas geométricas e curvas mecânicas 160
3.3.2 Uma análise completa das curvas necessárias para resolver o problema de Papus
para quatro linhas e para o caso especial de cinco linhas 164
3.3.3 O método da normal ( ou tangente ) de Descartes 164
3.4 Livro III 166
3.4.1. Análise completa das raízes de equações 167
3.4.2. As propriedades 168
3.5 A Dióptrica 176
3.6 Os Meteoros 210
CONSIDERAÇÕES FINAIS 225
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 231
iii
RESUMO
O objetivo deste trabalho é estabelecer a relação entre a Matemática e Filosofia
nas Regras para a Direção do Espírito e em O Discurso sobre o Método. Para tanto,
procuramos estabelecer a educação matemática que Descartes recebeu na escola jesuíta La
Flèche e depois as influências externas de seus contatos com homens como Isaack
Beeckman. Depois de seu encontro com Beeckman, Descartes engajou-se no projeto de
construir uma ciência completamente nova. Desse modo, reconstruímos a trajetória seguida
inicialmente por Descartes, avaliando a sua produção científica em trabalhos como
Cogitationes Privatae, De Solidorum Elementis, Regulae ad Directionem Ingenii, onde
podemos detectar o envolvimento de Descartes com questões científicas que serão
coligidas na sua principal obra O Discurso do Método. Nesses três trabalhos colocamos
em evidência a produção matemática cartesiana e nas Regulae ad Directionem Ingenii
apresentamos um estudo, revelando que Descartes foi um seguidor do método de análise e
síntese dos antigos geômetras gregos. Finalmente, apresentamos um estudo sobre a
principal obra cartesiana, O Discurso do Método, com seus três ensaios: A Dióptrica, Os
Meteoros, A Geometria. Nessa obra, Descartes define, oficialmente, a sua concepção
metodológica, aplicando-a nos ensaios. O método é utilizado para resolver diversos
problemas. Destacamos o caso do arco-íris em Os Meteoros. Em A Geometria, Descartes
mostra a eficiência das suas mudanças conceituais, onde, reunindo sua proposta
metodológica com um moderno simbolismo, rompe com velhos paradigmas, introduzindo a
análise geométrica e dando importante contribuição para o desenvolvimento da matemática.
Palavras-chave: Matemática, História, Filosofia, Descartes, Método
iv
ABSTRACT
The aim of this work is to establish the relationship between mathematics and
philosophy in the Rules for the Direction of the Mind and Discourse on Method. For it, we
try to establish the mathematical education that Descartes received in the Jesuit school La
Flèche and later the external influences of his relationship with men as Isaack Beeckman. After
his meeting with Beeckman, Descartes engaged completely in the project of building a new
science. In this way, we reconstruct the path initially stepped by Descartes, evaluating his
scientific production in works as Cogitationes Privatae, De Solidorum Elementis, Regulae ad
Directionem Ingenii, where we can detect the involvement of Descartes with scientific subjects
that will appear in his main work The Discourse on Method. In those three we put in evidence
the Cartesian mathematical production and in the Regulae ad Directionem Ingenii we presented a
study revealing that Descartes was a follower of the method analysis and synthesis of the
ancient Greek geometers. Finally, we present a study of the main Cartesian work, Discourse on
Method, with their three essays: Dioptrics, Meteors, Geometry. In this work, Descartes defines,
officially, his methodological conception, applying it in the essays. The method is used to solve
several problems. We detached the case of the rainbow in the ‘Meteors’. In the ‘Geometry’,
Descartes shows the efficiency of his conceptual changes, and combining his methodological
proposal with a modern symbolism gets rid of the old paradigms, introducing the geometric
analysis and giving important contribution for the development the mathematics.
Key-words: Mathematics, History, Philosophy, Descartes, Method.
1
INTRODUÇÃO
Um fato interessante nos estudos sobre Descartes (1596-1650) é a pouca
valorização dada à sua produção Matemática, embora ele seja considerado um dos
fundadores da Matemática Moderna. Vale observar, Descartes deixa bastante claro em seus
escritos que fora influenciado pela Matemática; além dessa atividade intelectual,
intensamente presente na sua fase inicial de estudos, está a sua Filosofia Natural, isto é,
ele era também um físico ou filósofo natural.
Relaciona-se com as palavras acima a própria transformação que sofreu, no
decorrer dos séculos posteriores, sua principal obra: O Discurso do Método (1637) que foi
inicialmente publicada com os três ensaios: A Dióptrica, A Geometria e Os Meteoros. A
parte introdutória, O Discurso do Método, com o passar do tempo, foi apartada dos três
ensaios e ganhou grande notoriedade e, em nossos dias, é vista como a principal obra de
Descartes. Talvez, tudo isso, foi devido ao fato de que na parte introdutória é apresentada
a metodologia cartesiana e que na visão dos filósofos deveria ser a principal a ser
considerada. É bem verdade que com o passar do tempo muitos fatos explicados por
determinada teoria podem não corresponder mais à verdade e isso foi o que ocorreu com
os ensaios. Mas nos ensaios, principalmente em A Geometria, encontramos as aplicações
do método cartesiano. Assim, se quisermos entender bem a metodologia cartesiana não
podemos deixar em segundo plano suas realizações no campo da Matemática e da Física,
contempladas nesses ensaios.
Assim, proponho-me nesse estudo compreender, numa perspectiva histórica, a
influência da matemática nas Regras para a Direção do Espírito e em O Discurso do
Método e, para atingir esses obejtivos, procuro estudar a formação acadêmica de Descartes
e a educação que recebeu no Colégio Jesuíta La Flèche, principalmente a parte
Matemática do currículo. Viso também estabelecer as influências externas que recebeu
através dos contatos com Isaac Beeckmam (1588-1637) e com as obras dos matemáticos
gregos. Nesse sentido, procuro compreender a influência dos trabalhos de Cristoph Clavius
(1537-1612), responsável pelo currículo matemático nas escolas jesuítas, sobre o jovem
Descartes. Procuro estabelecer também a influência dos trabalhos de Papus de Alexandria
(c.300 d. C.) sobre o pensamento cartesiano, principalmente o Livro VII de sua Coleção
Matemática, onde encontramos a descrição mais abrangente do método de análise e síntese
2
que inspirou Descartes; os trabalhos de Diofanto de Alexandria ( III d. C.), onde podemos
encontrar, pela primeira vez, processos algébricos que viriam a influenciar os matemáticos
ocidentais na criação do modo algébrico de pensar e que resultaria na criação da
moderna Ciência. A influência de Papus, Diofanto, Euclides que floresceu por volta de 300
a. C., Arquimedes (287-212 a. C.), entre outros, sobre o pensamento ocidental que estava
brotando na época de Descartes é nítida. Assim é que Viète (1540-1603), influenciado por
Papus, Diofanto e Eudoxo (c. 400 c.347 a. C.), transformou a concepção metodológica
grega em um novo conceito que permitiu uma reforma importante na Matemática, criando
uma nova simbologia e partindo de novos pressupostos teóricos. Descartes, como Viète,
consolidará inovações importantes na Matemática e na Física sob a influência dos
matemáticos antigos e modernos e das idéias que estavam em voga naquela época.
Num outro momento do trabalho, procuro evidenciar a produção Matemática de
Descartes. Isso é interessante, pois Descartes, de certa forma, não valorizou muito a
Geometria euclidiana que, segundo ele, era um conhecimento estéril; mas, em contra
partida, valorizou a criatividade buscando implementar o método de análise e síntese dos
antigos geômetras gregos que proporciona a descoberta antes de escrevê-la sinteticamente,
na forma de um resultado comprovado. A produção Matemática de Descartes é, desse
modo, repleta de descobertas sem o menor interesse de demonstração, mas é notável que
mesmo não sendo um matemático preocupado com o modo sintético de demonstrar, pelas
vias da metodologia da Matemática grega, foi capaz, usando o seu método heurístico, de
impor uma ferramenta nova e crucial para o desenvolvimento da Ciência ocidental, a
Geometria Algébrica. Isso é realizado quando resolve o problema de Papus para quatro
retas.
Nas Regras para a Direção do Espírito (c. 1628) e em O Discurso do Método
(1637) são as obras onde afirma claramente ser motivado pela Matemática. Num período
anterior ao Discurso, estudou Matemática e Física, buscando elementos substanciais para
prover seu método filosófico. Aliás, nas Regras e no Discurso define a sua metodologia
como uma herança da Matemática grega, não da Geometria euclidiana, mas do método de
análise e síntese empregado na antiga Geometria grega, principalmente em Papus,
Arquimedes e Diofanto.
3
Para realizar a tarefa de mostrar a influência da Matemática sobre a Filosofia de
Descartes, divido o trabalho nos seguintes capítulos.
Capítulo I – A Formação Acadêmica em La Flèche
Descartes estudou em La Flèche, segundo a opinião de vários historiadores, e a do
próprio Descartes, uma das melhores escolas da Europa daquela época. La Flèche era uma
escola da Companhia de Jesus, no tempo de Descartes, orientada pela Ratio Studiorum,
obra que orientava a educação jesuita que foi concluída em 1599. A parte Matemática do
currículo das escolas jesuítas foi elaborada pelo jesuíta Cristoph Clavius (1537-1612), um
dos mais influentes matemáticos, dentro e fora da Companhia de Jesus, apelidado o
Euclides do século XVI.
Para compreender o pensamento matemático de Descartes, começo investigando o
currículo estabelecido na Ratio Studiorum de 1599 e o pensamento matemático de Clavius.
Depois estudo a produção Matemática cartesiana durante seus contatos com Isaac
Beeckmam (1588-1637) relatada na correspondência mantida entre eles e no próprio diário
de Beeckmam. Os pensamentos filosófico e científico de Descartes ganharam forte impulso
a partir desse encontro com Isaac Beeckman, ocorrido logo após Descartes deixar La
Flèche, em 1619, quando então formulou os fundamentos de sua Matemática e o projeto
de construir uma “Ciência inteiramente nova”.
Em seguida, investigo o pensamento matemático de Descartes em suas obras:
Solidorum Elementis (c. 1620) e Cogitationes privatae (c. 1619). Todas datadas de um
período anterior à publicação de O Discurso do Método, portanto, anteriores ao ensaio A
Geometria e produzidas após seu contato com Beeckmam, mas publicadas postumamente.
A ordem da minha análise é cronológica, isto é, primeiro Cogitationes Privatae, depois
Solidorum Elementis. As principais idéias, amadurecidas num período de aproximadamente
nove anos, foram coligidas em A Geometria de 1637. Depois da publicação de O
Discurso do Método, com os seus ensaios, Descartes demonstra desinteresse pela
Matemática, voltando-se ao estudo de outros problemas, como a Metafísica.
A tese a ser confirmada nesse capítulo é que o ambiente acadêmico que
Descartes vivenciou foi fundamental para a formação do seu pensamento matemático e
4
filosófico. Na verdade, ele veio a refutar a Matemática e a Filosofia que aprendeu em La
Flèche, bem como a Geometria e a Álgebra de Clavius, mas não totalmente. Sua
Matemática não estava vinculada à noção euclidiana, embora conhecesse a obra de
Euclides, mas, antes, seu principal objetivo era estabelecer um novo método. Sua inspiração
foi a certeza da Matemática e a metodologia dos antigos estudiosos gregos, não o estilo
geométrico euclidiano, considerado, por Descartes, estéril.
Capítulo II – O Método de Análise e Síntese de Descartes
Minha meta, nesta parte, é mostrar que Descartes recuperou, reconstituiu e
generalizou o método de análise e síntese dos antigos geômetras gregos para ser aplicado
aos problemas que o incomodavam e que, portanto, o método está na base de todo o seu
pensamento. O método é tão importante que ele refuta a dialética em detrimento dele,
devido a importância desse método, faço sua reconstrução histórica, desde a Antigüidade até
Descartes, mostrando, finalmente, como Descartes o reestruturou. O capítulo termina com
um estudo sobre As Regras, onde o método cartesiano aparece, nitidamente pela primeira
vez, com exemplos ilustrativos. As Regras mostram que Descartes ainda não tinha as suas
principais idéias amadurecidas, embora, nesse período, já tivesse anunciado ter as bases de
uma nova Ciência. É possível notar claramente a influência das idéias matemáticas na
obra que, depois de nove anos, foram incorporadas em O Discurso do método, de uma
forma madura. Mostro, através do exemplo da linha anaclástica, como Descartes usou a sua
metodologia para determinar a curva que faz um raio, a partir de um ponto A, depois de
refratado pela curva, convergir para um ponto B.
Capítulo III–A Influência da Matemática em O Discurso do Método e seus ensaios: A
Dióptrica, A Geometria, Os Meteoros
Nesse terceiro capítulo me proponho a esclarecer de que forma a Matemática
influenciou Descartes em O Discurso do Método e nos três ensaios. Nesse ponto, será
importante demonstrar a generalidade do método analítico, uma vez que Descartes
freqüentemente o re-adapta para aplicá-lo a diversos problemas de áreas diferentes. O
5
método então se apresenta como uma ferramenta básica, extrapolando o domínio da
Geometria.
Descartes declarou que sua metodologia seria melhor entendida nos ensaios e
melhor exemplificada em A Geometria; de fato, ali encontramos diversos problemas
resolvidos por sua metodologia; com sua álgebra dos segmentos e a re-interpretação do
método de análise e síntese, associados a uma moderna simbologia, resolve o paradigmático
problema de Papus. Essa passagem é considerada o nascimento da Geometria Analítica,
mas minha análise conduz à conclusão de que essa façanha não é obra de Descartes.
De fato, o método de análise e síntese fora ressuscitado também por François Viète e
diversos outros matemáticos e físicos estiveram envolvidos nessa tarefa. A principal obra
de Viète é Isagoge in artem analyticam (Introdução a arte analítica)(1591), nela, Viète
aplica o método de análise para resolver problemas matemáticos, mas Descartes vai mais
longe e aplica o método de análise e ntese associando Geometria e Álgebra. Juntamente
com uma moderna simbologia, fornece as bases para o desenvolvimento da Matemática que
viria logo a seguir.
As inovações cartesianas estão contidas, principalmente, nos Livros I e II de A
Geometria, mas, nesse intinerário, avalio também o Livro III, considerado por muitos
historiadores uma parte menos inovadora de A Geometria e, talvez por isso, deixado de
lado em muitos estudos. A meu ver, essa parte traz luz sobre o entendimento da
Matemática da época e sobre o conhecimento matemático de Descartes, além do mais,
podemos visualizar seu projeto na totalidade.
Buscaremos também esclarecer em que sentido Descartes usou a Matemática e
aplicou o método nos ensaios: A Dióptrica e Os Meteoro, mostrando como Descartes
aplicava a sua metodologia nas chamadas Ciências Físicas, neste ponto, merece destaque a
resolução do problema do arco-íris, pelo seu método.
6
CAPÍTULO I: A FORMAÇÃO ACADÊMICA DE DESCARTES
Vivendo num período de transição, onde os pensadores
1
procuravam superar as
idéias provenientes dos gregos, especificamente de Aristóteles (384-322 a. C.), Descartes
vislumbrou uma nova forma de pensar a Matemática e a Filosofia, unindo-as. Para tanto,
procurou um novo método, na verdade, retomou um método antigo, a saber, o método de
análise e síntese dos antigos geômetras gregos, desse modo, reconstituindo-o e
reinterpretando-o, elabora a sua metodologia. Assim, o método o permitiu estabelecer uma
nova Filosofia inspirada na Matemática. Antes porém, a Matemática e a Filosofia
percorreram um longo caminho: dos gregos até o século XVI.
1.1 Situando Descartes historicamente
É um fato comumente aceito por todos que a Matemática, como a entendemos
hoje, nasce na Grécia, onde assistimos a transformação de uma Matemática empírica,
herdada dos egípcios e dos babilônicos, em uma Matemática dedutiva, formal, tal como
encontrada em Os Elementos (III a. C) de Euclides. Essa transformação, certamente um
grande momento da história da Matemática, se dá, segundo a opinião de muitos
historiadores, por meio da intervenção de Platão (427-348/7 a.C.). Bicudo investiga essa
transformação e chega na seguinte tese:
A mudança, pois, da Matemática empírica” para a Matemática “pura” está
intimamente associada ao caráter idealista, antiempírico da Filosofia eleática
e, sobretudo, da Filosofia de Platão. Como nota van der Waerden a respeito
do platonismo:
1
Os pensadores do século XVII, chamados sábios, dedicavam-se a uma gama de estudos científicos, técnicos,
metafísicos, políticos e biológicos. Evidentemente que alguns desses sábios dedicavam-se mais a determinados
assuntos do que a outros. Não existia diferença entre filósofo e cientista; somente nos meados século XIX é
que essa distinção ocorre. Descartes, por exemplo, estudou uma variedade de problemas matemáticos,
biológicos, físicos e metafísicos.
7
“Verdade, que significa as idéias. São as idéias que têm Ser verdadeiro,
não as coisas que são observadas pelos sentidos. As idéias podem, às
vezes, ser contempladas, em momentos de Graça, através da reminiscência
do tempo em que a alma vivia mais perto de Deus, no reino da Verdade;
mas isso pode acontecer somente depois de os erros dos sentidos terem
sido conquistados pelo pensamento concentrado. O caminho que leva a
esse estado é aquele da dialética...”.
Platão incentiva a estruturação dedutiva sistemática da Ciência Matemática,
porque a considera propedêutica à dialética, pois
“separando-se, ao mesmo tempo, dos pitagóricos, que mantinham no mesmo
plano Ciência e Filosofia, e de Sócrates, cuja investigação prudente parece
ter-se detido na determinação da hipótese, Platão conduz a Filosofia
Matemática a um caminho todo novo. A Matemática situada na região da
διάνοια é apenas uma Ciência intermediária (ta;
metaxuv, peri;; a} ta;ς maqhmatika;ς ei\νai ϕavsin ejpisthvmaς, Aristóteles, Met.
B2,997 b 2). Sua verdade reside em uma Ciência superior, que está em
relação a ela como ela mesma em relação à percepção do concreto. A
dialética tem por função retomar as hipóteses das cnicas particulares e de
conduzi-las até seu princípio (hJ dialektikh; mevqodoς
movvνh tauvvth poreuvvetai, ta;ς uJpoqevseiς aJνairou'sa eJp¥auJth;ν th;ν
aJrchvν, REP.VII,533c), ela toma posse do incondicional; e de lá, por uma
marcha que é inversa à da análise, forja uma cadeia ininterrupta de idéias(
REP. VI, 511b) que suspensa no princípio absoluto, constituirá um mundo
completamente independente do sensível, o mundo da νovhsiς. A Filosofia
Matemática de Platão, em seu grau mais alto e sob sua forma definitiva
será, então, a dialética(...) ”. (BICUDO, 1998, p. 312-13)
Assim conclui Bicudo:
Enquanto Zenão toma uma hipótese como uma suposição que se faz para
um presente propósito, Platão, no Fédon e nos livros VI e VII da
República,
“tenta tornar suas suposições aquelas que não têm de ser tomadas como
certas para o presente caso particular; ele tenta torná-las aquelas que
devem ser aceitas por todos. Essa é a procura da aJνupovqetoν aJrchvν,
axioma fundamental que não se tem de pedir a alguém aceitá-lo; é algo
que deve ser aceito por qualquer um, (...). É por essa razão que Platão
sugere à consideração o ideal axiomático: que deveríamos tentar e
desenvolver o todo de nossa Matemática por raciocínio dedutivo, diavνoia, a
partir de alguns princípios, que ele (erradamente) pensou que poderiam ser
estabelecidos além de toda questão. Platão apresentou seu programa. Seus
discípulos, em grande parte, realizaram-no. Temos o resultado final,
codificado por Euclides. (BICUDO, 1998, p. 313)
A conclusão de Bicudo relata a gênese da Matemática formal grega e demonstra
a sua íntima relação com a Filosofia de Platão. Com os gregos, a Filosofia e a
8
Matemática mergulham num período áureo. A Filosofia com o advento de Aristóteles e a
Matemática, principalmente com Euclides que fundamenta a Geometria tendo por base três
princípios, a saber: definições, postulados, noções comuns ou axiomas. Aristóteles, que
escreveu sobre quase tudo, nos seus Analíticos trata da teoria da Ciência.
Lee em seu artigo Geometrical method and Aristotles´s account of first principles
(Método geométrico e a descrição de Aristóteles dos primeiros princípios) mostra a
predominância da influência das idéias geométricas na descrição de Aristóteles dos
primeiros princípios, nos Analíticos Posteriores para mostrar que sua análise dos
primeiros princípios é, em sua essência, uma análise dos primeiros princípios da
Geometria, como ele os concebeu. A conclusão de Lee é como segue:
Noções comuns de Euclides e Axiomas de Aristóteles, e as definições de
ambos, são exatamente paralelas. As noções comuns e axiomas são
princípios de argumentação cujo alcance estende mais do que aqueles de
uma simples Ciência: as definições são afirmações do significado dos
termos. Às hipóteses de Aristóteles respondem os postulados de Euclides.
Ambos são um mínimo de suposições adicionais necessárias ao lado dos
axiomas ou noções comuns e das definições. As hipóteses assumem
existência, os postulados, a possibilidade de construção,[...] (LEE, 1935, p.
117-tradução nossa)
A Matemática e a Filosofia gregas seguiam interligadas e hegemônicas perdurando
por um longo período da história. Na Idade Média estabeleceu-se a Escolástica, Filosofia da
Igreja Católica, período marcado por uma forte censura às idéias científicas. Nenhuma
nova Filosofia surgiu, pelo menos até o século XVI, assim como nenhuma Matemática além
daquela dos antigos gregos. Não significa, porém, essa afirmação, que nada aconteceu nesse
período, houve uma discussão em torno dos trabalhos científicos dos gregos. Foi baseado
nos ideais aristotélicos que a Ciência se reestruturou na Escolática. O aristotelismo
escolástico não estava simplesmente preso às idéias antigas, e não era interpretativo da
doutrina aristotélica. Também trouxe inovações importantes: era crítico, elevou as Ciências
Matemáticas a um alto grau de importância e foi, até certo ponto, experimental.
Mas esse estágio começa a ruir com o Renascimento, depois do Renascimento,
seguiram-se a Reforma e a Contra Reforma. Com esses movimentos a doutrina aristotélica
começa a ser questionada e entre as questões, a mais profunda diz respeito à metodologia
científica, indicando a necessidade de uma nova concepção científica. A mudança mais
9
importante que ocorrerá será, então, no âmbito científico, conseqüentemente, era necessário
romper com o critério de Ciência estabelecido por Aristóteles.
O século XVI, considerado um século de transição da Escolástica para a
modernidade, foi uma época de profundas modificações no plano religioso, moral e do
saber, exemplo disso são os vários debates travados nesse período.
No âmbito educacional ocorre o memorável confronto acadêmico entre o
português Antônio de Gouveia e o francês Pierre de la Ramée também conhecido como
Petrus Ramus (1515-1572), ambos professores de Filosofia da Universidade de Paris. O
confronto ocorreu a partir da tese de mestrado de Pierre de la Ramée: Quaecumque ab
Aristotele dicta essent, commentitia esse (Tudo que Aristóteles disse é forjado), de 1536.
No âmbito científico, um debate que merece destaque, uma vez que se relaciona
diretamente com o tema desta pesquisa, ocorreu quase que paralelamente ao supra citado,
e é relatado, minuciosamente, no livro de Paolo Mancosu intitulado Philosophy of
Mathematics and Mathematical Practice in the Seventeenth Century (A Filosofia da
Matemática e a prática Matemática no século XVII) (1996). Mancosu sustenta que a
concepção aristotélica de Ciência fomentou questões que nortearam a prática da
Matemática do século XVII, afetando, inclusive, a metodologia da Matemática. As questões
suscitadas dizem respeito à certeza da Matemática e ao enquadramento da Matemática no
esquema aristotélico de Ciência. Especificamente, os trabalhos de Euclides, Papus,
Arquimedes, Apolônio (c. 262-c. 200 a. C.) foram colocados à prova.
A Quaestio debate, especificamente, a validade das demonstrações por superposição
e demonstrações por contradição. As demonstrações por superposição tornaram-se centrais
para os fundamentos dos indivisíveis e as demonstrações por contradição estimularam
alguns matemáticos na tentativa de eliminá-las do desenvolvimento da Geometria. Esses
conflitos conduziram a novas metodologias que permitiram avanços significativos em
diversas áreas da Matemática no século XVII, a exemplo do Cálculo.
Um momento de reflexão é necessário: a influência da Filosofia e da Matemática
gregas se faz presente nesse período de transição, conforme os esclarecimentos acima. Ao
discutir a Filosofia grega e a certeza da Matemática grega são suscitadas várias questões
importantes no âmbito científico. Esse é um momento marcante, pois o conhecimento
matemático se desenvolveu rapidamente nos séculos XVI e XVII. As mudanças no campo
10
da Matemática foram muito significativas. A álgebra, Geometria Projetiva, Teoria da
Probabilidade, o Cálculo e outras importantes áreas da Matemática foram profundamente
afetadas pela algebrização e pela invasão das técnicas infinitistas que mudaram a direção
da Matemática e, consequentemente, das Ciências em geral.
No âmbito religioso foi marcante, nesse período, a Contra Reforma, reação da
Igreja Católica à Reforma Protestante. Com o desenvolvimento comercial e urbano
europeu, houve a necessidade de mudar certas regras estabelecidas pela Igreja, uma vez
que se tornaram obstáculos no plano econômico; além disso, a Igreja havia incorporado
certas concepções que passaram a ser vistas como contraditórias com os próprios ideais
da doutrina cristã. Desse modo, ela passa a ser questionada e, em 1517, Martin Lutero
(1483-1546), revoltado com a venda de indulgência, fixou na porta da catedral de
Wittenburg um panfleto contendo 95 teses denunciando abusos da Igreja e proclamando
sua discordância em relação a orientação do papado. As bases do luteranismo foram
expostas em 1530 na confissão de Angsburg, escritas por um discípulo de Lutero
chamado Melanchthon (1497-1560).
De 1545 a 1563 a Igreja Católica organizou o Concílio de Trento com
representantes de toda a Europa, e preparou a Contra Reforma, reafirmando os seguintes
pontos: confirmação da autoridade papal e da doutrina tradicional, confirmação da
disciplina dentro da Igreja, fixação da idade mínima para funções eclesiásticas, instituição
dos seminários, um catecismo para os fiéis com um resumo da doutrina cristã, um missal
com orações e leituras básicas. Ficou também determinado que a Contra Reforma agiria
para recuperar o espaço perdido para os protestantes com a criação de vários colégios
destinados ao curso primário e a formação das novas gerações; criação da Companhia de
Jesus, com a função de catequizar, recuperar e expandir o domínio da Igreja por todo o
mundo, agora levando os seus ideais para além-mar e, por fim, a instituição da Inquisição.
A reação foi marcada pela fundação da Companhia de Jesus, por Ignácio de Loyola
(1491-1556), que fundou diversos colégios jesuítas por toda a Europa e também em
outros continentes. Com eles, a Contra Reforma agiria desde muito cedo na formação do
indivíduo e, com isso, no plano ideológico, preconizava os fundamentos da Igreja Católica.
O sucesso das escolas jesuítas era nítido. Em 1579, a Companhia de Jesus
contava com 180 colégios na Europa e 19 no resto do mundo. Em 1608 passa para 266.
11
Em 1679, eram 455 e em 1710 somam 517 e ainda mantinha 95 colégios espalhados no
Japão, Índia, África, e América Latina. Sem contar com outros neros de casas jesuítas.
Na Europa, os jesuítas tinham colégios em Portugal, Rússia, Itália, Bélgica, França,
Alemanha, Mônaco, Espanha, Áustria, Boemia, Polônia e Lituânia.
Durante mais de 200 anos a Companhia de Jesus dominou o cenário educacional
na Europa, estabelecendo escolas por toda parte, ininterruptamente até 21 de julho de
1773, quando foi decretado o fim da Companhia de Jesus, pelo Papa Clemente XIV.
Somente a Rússia e a Prússia recusaram esse decreto, tornando-se os principais pontos de
exílio dos jesuítas. A Ordem foi restaurada em 7 de agosto de 1814, pelo Papa Pio VII,
fundamentado nos benefícios da ação educacional dos jesuítas.
A Companhia de Jesus serviu duplamente aos interesses da Igreja Católica; como
instrumento de Contra Reforma e para disseminar a ideologia católica por todo o mundo.
A escola jesuíta afetou profundamente o cenário educacional europeu, produzindo um
método pedagógico de ensino unificando a forma de atuação dentro da Ordem A Ratio
Studiorum. A motivação era criar uma unidade acadêmica entre as centenas de escolas
jesuítas, a parte curricular traz inovações importantes, conforme explicitarei no Capítulo I
deste trabalho. Se quisermos entender o fenômeno da educação jesuíta devemos estudar a
Ratio Studiorum, documento fundamental sobre o qual a proposta pedagógica dos jesuítas
baseava-se. A elaboração desse documento se concomitantemente com o humanismo
europeu. É um plano de estudo que pretendia abranger todas as escolas jesuítas,
estabelecendo regras para todos os envolvidos nas escolas. O sistema escolar jesuítico
passa então a ser bem estruturado: fica dotado de uma hierarquia que sujeitava todos a
uma única autoridade que coordenava todas as ações, transferir professores para qualquer
país e também recursos financeiros.
A versão definitiva da Ratio studiorum, em 1599, foi fruto de quatro redações
anteriores. As duas primeiras versões foram elaboradas em 1586 e são textos longos sobre
os estudos superiores e inferiores. as duas últimas versões (de 1591 e 1599) são um
conjunto de regras práticas para os reitores, prefeitos de ensino, professores e alunos;
enfim, para toda a comunidade envolvida.
12
A gênese desse plano de estudo se encontrava na parte IV das Constituições
2
da Companhia de Jesus e dividia o ensino em três fases; Letras Humanas, Artes e
Teologia. A primeira fase, as Letras Humanas ou Studias Humanitaris, era um pré-requisito
às Ciências. O objetivo era dar ao aluno uma eloquentia perfecta, sem a qual ele não
poderia ser capaz de ingressar nas Artes e na Teologia.
O currículo das escolas jesuítas eleva as Ciências Matemáticas, isto é, Astronomia,
Geometria, Música, etc., a um alto vel. A Companhia de Jesus é considerada por muitos
uma academia de Ciências, devido ao grande número de cientistas que ela formou e que
se despontaram nas mais variadas áreas do saber; entre eles: Galileu (1564-1642), Descartes,
Molière, Carlos Goldoni, Montaigne, Voltaire, Anchieta, Antônio Vieira.
Outra característica desse período é a busca de uma linguagem universal para
prover a Ciência emergente de uma nova ferramenta. A Matemática apresenta-se então
com a possibilidade de ser a base da Ciência. Exemplo disso é a Ciência de Galileu,
fortemente embasada pelo ideal matemático. Existia, nesse período, a esperança de entender
o mundo via Matemática, a língua da Ciência.
1.2 Os estudos em La Flèche
Descartes nasceu em La Haye, França, no dia 31 de março de 1596 e morreu em
11 de fevereiro de 1650, em Estocolmo, Suécia. Filho de Joachim Descartes e de Jeanne
Brochard Descartes. Sua mãe faleceu em 13 de maio de 1597, um ano após o seu
nascimento. Seu pai casou-se novamente e ele passou a ser criado pela sua avó Jeanne
Sain, em La Haye. .
Descartes estudou no colégio jesuíta La Flèche, onde permaneceu por cerca de
oito anos e meio, provavelmente do dia de Páscoa de 1607 até setembro de 1615.
Patrocinado e planejado pelo rei Henrique IV em 1603, o colégio começou a receber
2
Documento fundador da Companhia de Jesus, datado de 1539. Foi Inácio de Loyola quem redigiu as
Constitutions. Esse documento era, como o nome indica, a Constituição dos jesuítas e norteava as ações dos
jesuítas resumindo métodos de atuação, propósitos, regras para ingresso e permanência na Ordem de Jesus.A
quarta parte era destinada à educação e estava em vigor desde 1552; nela foram delimitadas as linhas
mestras que a educação jesuita deveria seguir e o espírito que deveria animar toda a ordem. O próprio
Inácio exige que se deveria escrever um plano detalhado de ensino dentro da ordem. A Ratio nasce desse
princípio.
13
estudantes no fim de 1604. Após a morte de Henrique IV, o colégio passou a se chamar
Colégio Henrique IV La Flèche.
A Ordem Jesuíta foi fundada por Ignácio de Loyola e oficialmente admitida pela
Igreja Católica Romana em 1540, com um período preparatório entre os anos de 1534 e
1538. O currículo nos colégios Jesuítas do século XVII era fundamentado essencialmente
nas Constituições da Sociedade de Jesus originada do programa educacional fundado por
Ignácio de Loyola e na Ratio Atque Institutio Studiorum Societ que originou-se das
atividades educacionais dos jesuítas no primeiro colégio da Companhia, aberto em 1548,
em Messina, Sicilia.
Um bom guia de estudos sobre o método pedagógico jesuita, em língua
portuguesa, é o livro do padre Leonel Franca: O Método Pedagógico dos Jesuitas (1952).
Na primeira parte do livro, em uma introdução, são apresentadas as origens, as principais
fontes, a influência da Universidade de Paris e a influência dos antigos e da Idade Média. É
apresentada ainda uma visão panorâmica da Ratio e discutido seu valor para a cultura
ocidental. Na segunda parte do livro é apresentada uma tradução da Ratio. Neste Capítulo
I, valho-me desse trabalho. Mas a análise da parte Matemática do currículo é
aprofundada utilizando-se o livro recente de Shikara: Descartes’s mathematical thought (O
pensamento matemático de Descartes) (2003).
Em seu período inicial, o método educacional dos jesuítas foi inteiramente baseado
no Modus Parisienses
3
, da Universidade de Paris. Ignácio de Loyola esteve em Paris entre
os anos de 1528 e 1538; em 1529 transferiu-se do Colégio Montaignu para o Colégio de
Sainte-Barbe. No Colégio Montaignu o movimento humanístico era inexpressivo, mas no
Colégio de Sainte-Barbe o movimento encontrou solo fértil. Ignácio testemunhou a
transição do período Medieval para o Renascimento e incorporou as mudanças
humanísticas como regra fundamental de seu programa, embora o tom escolástico do
medievalismo ainda permanecesse vivo nos ramos essenciais do currículo.
Assim, o currículo no Colégio Jesuíta La Flèche era escolástico, mas modificado
pelas reformas humanistas, e era dividido em duas partes. A primeira parte era chamada
3
Conjunto de Regras pedagógicas que caracterizavam o ensino na Universidade de Paris. Para muitos
estudiosos, o modus parisienses era considerado o melhor e mais adequado programa de ensino da época e
que melhor se adaptava às características da Companhia de Jesus. Suas principais características: distribuição
dos alunos nas classes, atividades escolares, regime de incentivos ao trabalho escolar influenciaram a Ratio
principalmente as repetições, as disputas, as composições, as interrogações e as declarações.
14
de currículo humanístico
4
e era um preparatório à segunda parte, necessitando de cinco
anos para ser consolidada. Nos três primeiros anos dessa primeira parte estudava-se
gramática latina e gramática grega. No quarto ano estudavam-se humanidades, com o
objetivo de fundamentar a eloqüência. Lia-se Cícero (106-43 a. C.), historiadores tais como
César e Salústio (c. 86- c. 34 a. C.), e os poetas tais como Virgílio (70-19 a. C. ) e Horácio
(65-8 a. C.). No quinto ano, a retórica era ensinada para aperfeiçoar a eloqüência, Cícero era
o autor central. Na Idade Média, discussões orais eram essenciais, em La Flèche a composição
em latim e grego era fundamental.
Quanto ao ensino das humanidades, era um profundo desejo de Ignácio de Loyola
que os envolvidos nas atividades educacionais dos jesuítas se aperfeiçoassem nos estudos
das letras de humanidades: a gramática, a poesia e o latim. Os estudiosos de humanidades
eram discriminados dentro da ordem por professores de outras áreas. Os estudos
humanitários, ou primeiro ciclo, foi o modelo curricular que formou diversas gerações na
Europa. A Constituição estabelecia que as humanidades deveriam ter o mesmo grau de
atenção que as faculdades superiores, determinando inclusive que existissem colégios
exclusivamente dedicados ao ensino e à aprendizagem das letras. Estabelecia ainda que
não deveria ser esquecido que o ensino do latim era essencial para a comunicação entre os
eruditos de nações diferentes, para os exercícios escolares, incluindo os dos filósofos e
teólogos: a composição de livros e de tratados; para a compreensão dos santos padres que
tinham seus escritos em latim e para o trato das línguas cultas.
O currículo filosófico necessitava de três anos para ser cumprido; assim, o
primeiro ano consistia de gica e introdução a Filosofia Natural. Os estudantes liam
essencialmente os trabalhos de gica de Aristóteles. O professor ensinava primeiro o
Isagoge, de Porfírio (232[33]-c. 305), depois as obras de Aristóteles: as Categorias, a De
Interpretatione, os cinco primeiros capítulos dos Analytica Priora, os oitos livros dos
4
Os studia humanitatis compreendia gramática, retórica, poética, filosofia moral e história. Incluindo o latim e
o grego que constituíam o núcleo do humanismo. O latim instala-se como a língua universal, a língua da
erudição, da instrução universitária, dos contatos e das correspondências internacionais As humanidades
refletem um aprimoramento do trivium: abandonando-se a lógica, incluindo-se história, filosofia moral e
poesia. A gramática consistia no estudo do latim e do grego, ultrapassando o estudo das normas
gramaticais, abrangendo o estudo da literatura, principalmente dos poetas e suas obras. A poesia, nesse
período, assume importância fundamental, além de ensino e pesquisa, estando na base da renovação
humanista. A retórica estuda os prosadores latinos, baseando-se na imitação para aprimorar ou habilitar os
humanistas no domínio da língua.
15
Topica, e os Analytica Posteriora. O segundo ano era destinado a estudar Filosofia Natural
e Matemática. Os estudantes liam as seguintes obras aristotélicas: os oito livros da
Physica, os quatro livros do De Caelo e o primeiro livro do De Generatione. Na parte
Matemática, estudavam Os Elementos, de Euclides, e alguns problemas matemáticos
considerados mais avançados. Já no terceiro ano estudavam Metafísica e Filosofia Moral, o
segundo livro do De Generatione, e os livros De Anima e Metaphysica, de Aristóteles,
eram explicados. Na Filosofia Moral a Nicomachea Ethica de Aristóteles era lida.
A Filosofia dos colégios jesuítas do século XVI e princípio do século XVII, como
se por meio da sua estrutura curricular, era Escolástica aristotélica, mas as filosofias
naquele período concordavam apenas em questões mais fundamentais. A essência do
aristotelismo era mantida e, a partir dela, gerava-se diversas significações. O estilo
filosófico dos colégios jesuítas era conservador, os professores raramente faziam
contribuições aos seus campos de estudos, embora algumas vezes introduziam novos
pensamentos
5
. Mas o ensino em La Flèche o era completamente dogmático, tinha algum
grau de abertura, embora nem toda a Sociedade de Jesus aceitasse a teoria do movimento
planetário de Galileu, em 1611 os estudantes em La Flèche leram um soneto sobre a
descoberta de novos planetas por Galileu; hoje crê-se que são luas ao redor de Júpiter.
Quanto ao método de ensino, Gaukroger faz a seguinte descrição:
O modo como o material era lecionado nas aulas é interessante.
Ao que parece, o que o estudo dos textos pretendia gerar não eram
propriamente uma compreensão e uma avaliação de seu conteúdo, mas
uma apreciação de seu estilo. Havia regras estritas e detalhadas que
ditavam a maneira de apresentar o material, e as normas que regiam a
exposição dos textos dão uma idéia considerável da natureza do ensino
jesuítico. A primeira parte da exposição era o argumentum, na qual se
fornecia um resumo geral da passagem citada. Em seguida vinha a
explanation, na qual se parafraseavam orações e frases do trecho, para que
se pudesse esclarecer seu sentido. O que vinha a seguir não era uma
investigação da substância do texto, mas uma rhetorica, na qual se
5
As questões científicas tinham sido fartamente abordadas na poesia no Renascimento, durante o qual tudo,
desde o tratamento contra hemorróidas até a estrutura do cosmo, tinha sido metrificado. Mas esse tipo de
literatura costumava reduzir as questões científicas a novidades. O interesse pelas descobertas cientificas, no
período que estamos considerando, girava em torno de seu valor como novidades os Médici deram uma
bela recompensa a Galileu por sua descoberta das luas de Júpiter, não porque atribuíssem qualquer valor
científico a essa descoberta, mas por causa do espetáculo assim proporcionado – e não vida de que os
jesuítas estimulavam em seus alunos o fascínio pelas novidades. Descartes não foi exceção à regra. No
manuscrito que se costuma designar como Observationes, datado de 1621, ele descreveu com visível fascínio
a maneira de criar diversas ilusões de óptica. (GAUGROGER, 2002, p.88)
16
examinava e elaborava a maneira como as regras da retórica, da poética,
ou mesmo da simples gramática eram empregadas no texto. Essa era a
parte mais extensa e mais minuciosa do exercício. Em seguida vinha a
parte mais curta, a eruditio, na qual se expunham os fatos históricos que se
pudessem fazer necessários à compreensão do texto. Por último, na
latinitas, forneciam-se citações de outros autores, para corroborar a
gramática, o estilo e as imagens do texto. O objetivo principal desse tipo
de ensino era o estudo da língua e, em particular, da capacidade de
pensar, escrever e falar fluentemente num latim elegante. Os modelos eram
exatamente aqueles que poderíamos esperar: Cícero (acima de tudo), Ovídio,
Virgílio, Tíbulo e Catulo, em latim, acrescidos de Esopo, Dion Crisóstomo
e outros, em grego. Na quinta série, os textos de Cícero, César e Salústio
e outros sobre moral, bem como os escritos sobre retórica de Cícero e
Quintiliano, tomavam a maior parte do currículo, enquanto, no estudo do
grego, aprendiam-se a Retórica e a Poética de Aristóteles, ao lado de
trechos extraídos de Homero, Píndaro, Demóstenes, Platão(as cartas, não os
diálogos) e os Padres da Igreja gregos.(GAUKROGER, 2002, p. 77)
Agora que temos uma visão da educação jesuíta, passemos a uma questão
fundamental e mais específica: qual era a Matemática ensinada no colégio La Flèche? Na
verdade, queremos conhecer a formação Matemática de Descartes de forma a compreender
sua influência sobre sua Filosofia.
1.2.1. A Matemática estudada nos colégios jesuítas
Descartes foi educado de acordo com a Ratio Studiorum de 1599 que pretendia
uniformizar a maneira de trabalhar dentro da ordem jesuíta impondo métodos e regras a
serem seguidos dentro dos colégios e das universidades da Companhia de Jesus.
Compunha-se de regras sobre assuntos diversos, tais como currículo, responsabilidades
individuais dos professores e dos alunos, formação dos professores, plano de estudos,
orientações pedagógicas, avaliação, regras internas, metodologia de trabalho, manuais de
ensino, entre outras. Na tradução para o português da Ratio feita pelo padre Leonel Franca
encontramos na seção Organização e plano de estudos da Companhia de Jesus, no item
20, a seguinte exigência:
Matemáticas: Estudantes e tempo. No segundo ano do curso todos os
estudantes de Filosofia assistirão à aula de Matemática por três quartos de
horas. Além disto os que tiverem mais inclinação e capacidade para
17
semelhantes estudos exercitem-se neles em lições particulares depois do
curso. (FRANCA, 1952, p. 126)
Essa exigência é, posteriormente, reafirmada, de um modo mais claro, em uma
breve descrição sobre estudos matemáticos intitulada Regras para o Professor de
Matemática, que são as seguintes:
1. Autores, tempo, alunos de Matemática. Aos alunos de sica explique na
aula durante 3:4 de horas Os Elementos de Euclides; depois de dois meses,
quando os alunos já estiverem um pouco familiares com estas explicações,
acrescente alguma cousa de Geografia, da esfera[Astronomia] ou de outros
assuntos que eles gostam de ouvir, e isto, simultaneamente com Euclides,
no mesmo dia ou em dias alternados.
2. Problema. Todos os meses, ou pelo menos de dois em dois meses, na
presença de um auditório de filósofos e teólogos, procure que um dos
alunos resolva algum problema célebre de Matemática; e, em seguida, se
parecer bem, defenda a solução.
3. Repetição. Uma vez por mês e, em geral num sábado, em vez da
preleção repitam-se publicamente os pontos principais explicados no mês. (
FRANCA, 1952, p. 164 )
Assim, nessa citação, o método de ensino da Matemática é concretamente descrito. Os
Elementos Euclides era explicado juntamente com Geografia ou Astronomia. O método de
ensino era bastante prático. O professor dava aos estudantes problemas matemáticos, bem
conhecidos, para serem resolvidos, e alguns problemas importantes eram repetidamente
estudados.
Não devemos, para ter uma visão mais profunda da importância do ensino da
Matemática nas escolas Jesuítas, nos deter apenas nessa passagem. O ensino de
Matemática nos colégio jesuítas pode ser melhor entendido a partir dos documentos
históricos que serviram de fontes para a composição da Ratio Studiorum. Por exemplo,
nas Constituições é declarado que a meta da sociedade e de seus seguidores é ajudar o
próximo a amar e a conhecer a Deus e a obter a salvação de sua alma, e, para esse fim, a
faculdade de Teologia desempenhava uma função central; toda disciplina ensinada na
Companhia, o que incluia Matemática e Filosofia, deveria servir à meta religiosa.
Nos documentos históricos relacionados ao primeiro colégio jesuíta, em Messina,
encontra-se o primeiro programa de Educação Matemática, composto em 1548, o ano da
fundação do colégio. O autor foi Jerome Nadal (1507-1580), seu primeiro reitor. Neles
18
descrições que apontam quais livros eram usados no colégio. São sugeridos A Arithmetica
practica libris IV absoluta, publicada em 1535, de Oronce Fine (1494-1555), livro texto
elementar sobre Aritmética prática. Os Elementos de Euclides, depois que os estudantes
adquirissem uma certa experiência com demonstrações. As outras obras são todas
relacionadas à Astronomia: De Mundi sphaera, sive cosmographia de Oronce Fine,
publicada em 1542, em Paris; O Elucidatio fabricae ususque astrolabii de Johannes Stöffler
(1451-1531), professor da Universidade de bingen, e o Theoricae novae planetarum cum
schooliis Rheinhold de Georg von Peurbach (1423-1461) de 1512 e 1542, respectivamente. O
Próprio Jerome Nadal ensinou a Geometria de Euclides, o grego e o hebreu, em 1549.
Nadal sugeriu ainda o estudo de Triangulis Omnimodis libri V (1533), de
Johannes Müller (1436 1476) apelidado Regiomontanus, o De triangulis de Jordanus de
Nemore(c. 1220), provavelmente com a intenção de fundamentar a Astronomia com
elementos matemáticos.
O programa de Nadal e o programa de Ignácio de Loyola foram integrados na
Ratio Studiorum de 1551, quando da abertura do Colégio Romano. Após sua abertura, a
Companhia começou a ter colégios com cursos inteiros de artes liberais, além do estudo
de gramática e de retórica. Em 1553, o Colégio Romano teve o seu primeiro professor de
Matemática, Balthassar Torres (c.1550).
Quando a Ratio Studiorum se tornou o regimento interno de toda a ordem jesuíta,
o ensino da Matemática passou a ser sistemático. O mais influente matemático, responsável
pela composição do projeto matemático, foi o padre Cristoph Clavius, segundo professor
de Matemática do Colégio Romano, em 1563. Antes da edição final da Ratio Studiorum, em
1599, duas versões anteriores tinham sido escritas, uma em 1586 e a outra em 1591. E foi
Clavius o responsável pela estruturação da parte Matemática das três versões da Ratio
studiorum, mas levou em consideração os estudos realizados pelos seus antecessores.
A Ratio studiorum de 1586 era um esboço para a versão oficial e não era, em
nenhum sentido, definitiva. A versão definitiva foi composta após o exame das
correspondências das várias províncias da Companhia de Jesus, dos estatutos de
universidades notáveis como a de Paris, e da quarta parte das Constituições que era a
parte relacionada à educação. Em 1586, a Ratio foi enviada às províncias da Companhia
para consultas adicionais. Sobre a Matemática, encontramos descrições que justificam o seu
19
ensino: a Matemática deve ser ensinada nas escolas porque é uma ferramenta que serve a
todas as disciplinas como suporte, ajudando a todos (poetas, historiadores, estudantes dos
Analíticos de Aristóteles, estadistas, físicos, metafísicos, teólogos, a corte de justiça) a
entenderem a natureza de seus próprios objetos de estudos.
A Ratio Studiorum afirmava que, para o Colégio Romano, eram necessários dois
professores de Matemática. Um deles deveria ensinar Os Elementos de Euclides para os
estudantes de lógica que estavam sendo preparados para os Analíticos Segundos de
Aristóteles que não podem, segundo a Ratio, serem entendidos sem exemplos matemáticos. A
Ratio afirmava também que Os Elementos deveriam ser estudados como uma preparação
necessária para Geografia e Astronomia. Também menciona um compêndio que Clavius
escreveu para ser usado como livro texto nos colégios, Epitome arithmeticae practicae,
publicado em Roma, em 1583. O outro professor, afirmava a Ratio, deve ser o padre
Cristoph Clavius e sua função era treinar futuros professores de Matemática nos colégios
jesuítas.
A Ratio Studiorum de 1591 propõe, em adição à versão de 1586, que estudantes
do segundo ano de Filosofia deveriam ouvir leituras públicas sobre Matemática, todos os
dias da semana, se possível, com as leituras seguindo o currículo determinado por Clavius.
De 1581 a 1594 Clavius compôs vários documentos com a finalidade de prover
a versão final da Ratio Studiorum com elementos substanciais de Matemática. O mais
importante esboço traçado por Clavius é o documento intitulado Um Método de Promover
as Diciplinas Matemática nas Escolas da Sociedade, provavelmente de 1582. As idéias
principais desse documento são duas. A primeira diz respeito às características de um
professor de Matemática, e a segunda diz respeito à relação entre Matemática e Filosofia
Natural. Para Clavius, um professor de Matemática, dentro da ordem jesuíta, deve ter
conhecimento e autoridade incomuns. Clavius exigia um alto grau de qualidade para o
professor de Matemática dentro da ordem jesuíta, exigindo que a Matemática fosse
entendida para melhor compreensão dos fenômenos naturais. Platão e Aristóteles, segundo
Clavius, não podiam ser entendidos sem o conhecimento básico da Matemática e, também
segundo ele, a falta de conhecimento matemático levou professores de Filosofia, e até
mesmo de Matemática, a cometerem incontáveis erros, muitas vezes publicados. Por essas
razões, o ensino da Matemática deveria ser encorajado. Clavius era um escolástico que
20
deu à Matemática uma grande importância e criticou qualquer epistemologia dogmática que
afirmasse que Matemática não era Ciência.
Em Sobre o ensino da Matemática, provavelmente composto em 1593, Clavius
propõe um plano ambicioso para o estudo da Matemática. Propõe outros textos a serem
ensinados, além dos seis primeiros livros de Euclides. Segundo Clavius, os estudantes devem
estudar do sétimo ao décimo terceiro livros de Euclides, Spherica de Theodosius (II a. C.)
e alguns trabalhos conhecidos de Apolônio deveriam ser concluídos em um ano, com duas
leituras diárias. Recomenda, ainda, que teólogos tenham lições de teoria planetária,
gnômica
6
, astrolábio
7
, Álgebra
8
e de alguns textos de Arquimedes. Clavius sugere aos
teólogos estudarem os textos de Arquimedes e Álgebra, pois seria necessário ensinar as
futuras gerações da ordem jesuíta e importante às atividades missionárias. Por volta do ano
de 1581, ainda recomenda que a estrutura e o uso do astrolábio fossem explicados. Sugere
que alguns trabalhos de Arquimedes fossem estudados, tais como o método de achar a
média proporcional entre dois segmentos de reta, o problema de duplicar o cubo e a
quadratura do círculo. Os livros textos sugeridos são os de Michael Stifel (1487-1567),
Johannes Scheubel (1494-1570) e Jacques Peletiers (1517-1582).
A Matemática era estudada, pois facilitava o entendimento de certas Ciências e os
trabalhos de Aristóteles. Mas existiam muitos outros motivos para introduzir o estudo da
Matemática dentro da ordem jesuíta, além dos citados. Entre eles, o treinamento
missionário que foi uma atividade extremamente importante para os jesuítas, não na
Europa, mas também em outros continentes. Alguns missionários voluntários estudavam, em
particular e sob a orientação de tutores, para melhor entenderem e se familiarizarem com
a Astronomia e as outras Ciências Matemáticas. Clavius orientou muitos alunos que se
tornariam importantes membros da Companhia.
A Matemática e a Astronomia foram de fundamental importância para introduzir
a Filosofia jesuíta, por exemplo, no leste asiático (Ásia Oriental), especialmente na China e
6
A arte de construir gnômom. Por sua vez, gnômom era um instrumento usado na Antigüidade para medir
a altura do sol através da sombra, uma espécie de relógio solar.
7
Instrumento astronômico inventado pelo astrônomo e matemático grego Hiparco do século II antes de
Cristo. Servia para medir as alturas de um astro acima do horizonte. Foi aperfeiçoado e hoje é um dos
instrumentos fundamentais da astrometria.
8
A Álgebra que predominou nos colégios Jesuítas era praticamente a elaborada por Clavius e
esclareceremos como era essa Álgebra, posteriormente, quando estudarmos os trabalhos matemáticos
produzidos por Clavius.
21
no Japão. Nas correspondências dos jesuítas encontramos relatos sobre o interesse dos
asiáticos na Matemática e na Astronomia européia. Dessa forma, Clavius incentivou o
ensino da Matemática dentro da Ordem Jesuíta porque percebeu, entre outras coisas, que
esse era um caminho para a aceitação do cristianismo, por parte de culturas milenares,
como é o caso das asiáticas, uma vez que a sólida religião desses povos dificultaria a
penetração de outras crenças em seus territórios, como está relatado nas cartas de diversos
missionários do leste asiático para a central dos jesuítas. O raciocínio era mostrar a
superioridade da Ciência européia e, uma vez estabelecida essa crença, seria mais fácil
estabelecer o cristianismo.
Finalmente, outro motivo para se ensinar Matemática dentro da ordem jesuíta, é
que Cristoph Clavius atribuía a Matemática um alto valor epistemológico, para ele, a
Matemática estava na base de todo conhecimento científico e possuía a característica da
certeza, enquanto outras Ciências não. Assim, se faz necessário dedicar um pouco mais ao
pensamento matemático de Clavius para entendermos, com mais clareza, os seus propósitos.
1.3 Uma síntese do pensamento matemático e a filosofia da Matemática de Cristoph
Clavius
Descartes revelou, em 1646, conhecer as obras Matemáticas de outros matemáticos,
quando se reuniu com o matemático inglês Jonh Pell (1611-1685), em Amsterdã. O relato
das obras conhecidas por Descartes pode ser encontrado na carta de Pell para Charles
Cavendish (1591-1654), de 2 de março de 1646. Nela, Pell detalhes de sua conversa
com Descartes que disse-lhe não ter a sua própria cópia de Os Elementos, mas admirava
Euclides e Apolônio e era fascinado pelo talento matemático de Arquimedes. Afirmara que
os trabalhos matemáticos dos gregos deveriam ser simplificados seguindo o seu novo
método. Segundo Pell, Descartes diz que a sua única fonte em Álgebra foi o livro de
Clavius, trinta anos antes. Referindo-se a Álgebra, de Clavius, publicada em 1608, em Roma.
Descartes deve ter lido a Álgebra de Clavius antes de 1616, provavelmente após o
ano acadêmico de 1613-1614, quando deveria estudar Matemática como aluno do segundo
ano do currículo filosófico, em La Flèche. Segundo Shikara, a passagem sobre Euclides
a impressão que Descartes o leu apenas superficialmente, mas em 13 de novembro de
22
1629, entretanto, Descartes escreve a Mersenne, de Amsterdã, sobre a curva chamada
quadratriz e o conteúdo da carta parece contradizer sua afirmação a Pell sobre Euclides.
Na carta, Descartes responde a uma questão proposta por Mersenne (1588-1648),
mencionando a quadratriz e indicando que lera Os Elementos. O trabalho mencionado por
Descartes foi Euclidis Elementorum libri XV , com extensas anotações feitas por Clavius,
publicado inicialmente em Roma, em 1574. Muito lido, passou por várias impressões que
incluem um considerável número de adições e emendas. Descartes seguiu a simbologia
proposta por Clavius em sua Álgebra por muito tempo, em contra partida, Descartes
adotará o método de análise e síntese dos antigos enquanto Clavius seguirá apenas a
síntese.
Cristoph Clavius nasceu em 25 de março de 1538 na cidade de Bamberg, na
Alemanha. Aderiu a ordem dos jesuítas em que foi admitido pelo próprio Ignácio de
Loyola, em 1555; logo entrou na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde, certamente,
estudou Filosofia sob a orientação de Pedro da Fonseca
9
. Pode-se conjecturar que
aprendera Matemática com Pedro Nuñes Saliciense
10
. Após retornar a Roma, começou a
ensinar Matemática no Colégio Romano, em 1563. Deste ano até sua morte, em 06 de
fevereiro de 1612, foi o mais influente matemático entre os jesuítas. Clavius obteve,
9
Filósofo e teólogo português que nasceu em Cortizada, Portugal, no ano de 1528. Morreu em Lisboa, no dia
4 de novembro de 1599. Entrou para a sociedade de jesus, em coimbra, no ano de 1548. No ano de 1551
passou para a Universidade de Evora. Conquistou para si o título de Aristóteles Português. Seus trabalhos
foram largamente utilizados por toda Europa. São eles: Institutionum Dialecticarum Libri Octo(Lisboa, 1564),
Commentariorum in Libros Methaphysicorum Aristotelis Stagiritae(Roma, 1577), Isagoge Philosophica(Lisboa,
1591).
10
Pedro Nuñes Saliciense (1502-1578) cursou medicina na Universidade de Lisboa, passando por Salamanca.
Por sorte, a medicina de então não dispensava a astrologia que se apoiava na Astronomia que, por sua vez,
era fundamentada na Matemática. Assim deve ter despontado o gênio matemático de Pedro Nuñes. Em 1509
foi nomeado cosmógrafo do rei se tornando o mais eminente do mundo de então. Foi professor da
Universidade de Lisboa e depois de Coimbra. Sua obra pode ser dividida em duas partes, a saber: as
traduções melhoradas e as originais. Traduções: 1537, Tratado da esfera, por Sacrabrosco; Teórica do sol e da
lua; por Purbáquio; Cosmografia, livro primeiro, por Ptolomeu. Originais: Tratado sobre certas dúvidas de
navegação(1537), o tratado é sobre certas dúvidas colocadas por Martim Afonso de Souza ao regressar do
Brasil, em uma de suas viagens. Pedro Nuñes esclareceu a natureza verdadeira das linhas de rumo. Tratado
em Defensão da Carta de Marear(1537). As duas obras foram traduzidas para o latim editadas pela primeira
vez em 1566 e pela segunda vez em 1573, ficando conhecidas como o mais importante tratado de navegação
impresso, De Arte Adque Ratione Navigandi(1566 e 1573). De Crepuscullis(1542), explica cientificamente a
variação do crepúsculo, esta obra bastaria para imortaliza-lo. De Erratis Orontii Finei(1546), Pedro Nunes
demonstra a falsa solução dada para os clássicos problemas gregos por Orontii Finei, em 1544. Libro de
Álgebra en Arithmética y Geometria(1567), ocupa uma posição entre a Ars Magna(1545) de Cardano e a
Artem Analyticam Isagoge(1591) de Viète.
23
quando visitou Messina, em 1574, muitos escritos de Francisco Maurolico
11
que foi um
importante tradutor daquele período. Essas traduções tornaram Clavius consciente de muitos
trabalhos gregos. Clavius é também lembrado como um dos principais promotores da
reforma do calendário gregoriano (1577-82) e como um mentor de Galileu.
Clavius escreveu diversos livros sobre Matemática e Astronomia, além de sua
versão e comentários de Os Elementos de Euclides: Elementos de Euclides, Epitome
arithmeticae practical(1583), Geometria practica(1604), e Álgebra(1608). Todos contidos em
sua Opera mathematica, em cinco volumes, publicados em Mainz, em 1611-12. Seus escritos
foram classificados em três categorias: manuais, comentários e edições, escritos polêmicos.
Embora Clavius fosse bastante produtivo e um erudito, não foi um matemático criativo.
Foi um matemático representativo no fim do século XVI e início do século XVII,
pertencendo a geração entre Federico Commandino
12
, um restaurador da Matemática, que
traduziu muitos tratados matemáticos gregos para o latim e Viète que realizou um reforma
radical na Matemática. Como astrônomo, pertencia a geração entre Tycho Brahe (1546-
1601) e Galileu. A sua obra, In Sphaeram Iohannis de Sacro Bosco Commentarius,
publicada em 1570, o liga a Idade Média, uma vez que a Sphaera foi largamente usada
nas universidades medievais como livro texto de Astronomia.
A Matemática de Clavius será melhor entendida ao avaliarmos a sua Filosofia da
Matemática, seus tratados geométricos e seu tratado algébrico. Nesse aspecto, a tese de
Chikara Sasaki(2003) é de fundamental importância, pois avalia a produção matemática de
Clavius pormenorizadamente, além da produção matemática de Descartes.
1.3.1 Filosofia da Matemática de Clavius
11
Francisco Maurolico (1494-1575) era conhecedor das geometrias antigas que se estavam tornando
disponíveis por meio das traduções, pois lia bem grego e latim. “[...]Na verdade, a partir de algumas
indicações em Pappus sobre a obra de Apolônio sobre máximos e mínimos - isto é, sobre normais às seções
cônicas - Maurolico reconstruiu o então perdido Livro V de As Cônicas. Nisso ele representava uma voga
que seria um dos principais estímulos à geometria antes de Descartes - a de reconstruir obras perdidas em
geral e os últimos livros de As nicas em particular'' .(BOYER, p. 206). Maurolico, juntamente com
Federico Commandino, restaurou obras de grande valor. Quando em 1575, Mauriloco e Commandino
morreram, a Europa Ocidental tinha recuperado a maior parte das principais obras Matemáticas da
Antigüidade.
12
Federico Commandino (1509-1575), juntamente com Francisco Maurolico, traduziu diversas obras
importantes: Arquimedes para o latim em 1558; As nicas de Apolônio, impressa em Bolonha em 1566; A
Coleção Matemática de Pappus, impressa em 1588.
24
No Prolegomena
13
, em sua edição de Os Elementos de Euclides, primeiro
publicado em 1574, Clavius promove a disciplina Matemática. Nela, podemos perceber
melhor a sua concepção epistemológica da Matemática. O Prolegomena é dividido em
nove seções, a saber:
1. As disciplinas Matemáticas, porque elas são assim chamadas?
2. A divisão das disciplinas Matemáticas.
3. A descoberta das disciplinas Matemáticas.
4. A nobreza e preeminência da Ciência Matemática.
5. Vários usos da disciplina Matemática
6. A recomendação a Euclides e a Geometria.
7. A divisão da Geometria e de Os Elementos de Euclides.
8. O que é um problema, um teorema, uma proposição e um lema de acordo com os
matemáticos.
9. Quais são os princípios da Matemática?
A principal característica do Prolegomena é que Clavius se mostra bastante
influenciado pela Filosofia da Matemática de Proclus (provavelmente nasceu em 410 ou
411 de nossa era), desenvolvida em Commentary of the First Book of Euclid´s Elements
(Comentário dos primeiros livros de Os Elementos de Euclides). Foi através da edição de
Francisco Barozzi (1537-1604), de 1560, publicada em Pádua, que Clavius obteve
conhecimento sobre os comentários de Proclus (410-485), particularmente sobre a História
da Matemática grega e sobre a divisão da disciplina Matemática.
Para compreender a Filosofia da Matemática de Clavius é necessário estudar a
controvérsia filosófica em que Barozzi foi profundamente envolvido. O debate foi iniciado
na Universidade de Pádua: Quaestio de certitudine mathematicarum. De um lado os
seguidores de Alessandro Piccolomini (1508-1578) e, do outro, os seguidores de Francisco
Barozzi. O episódio que início à disputa foi a publicação do Commentarius de
Certitudine Mathematicarum Disciplinarium, em Roma, 1547, por Piccolomini.
No século XVII a Matemática pura se desenvolveu rapidamente alcançando um
alto grau de sofisticação, cujo exemplo é o cálculo. A razão para tal desenvolvimento é
13
Explicação inicial que visa expor os princípios gerais de uma ciência. A Introdução geral de uma obra ou um
prefácio longo.
25
que nos séculos XVI e XVII foram suscitadas diversas questões sobre o método
científico e, a partir daí, novas técnicas foram apresentadas permitindo um amplo avanço
nas questões científicas. Em relação à Matemática, questionaram se satisfazia a concepção
aristotélica de Ciência. Dentro desse contexto, a Matemática produzida por Euclides,
Arquimedes, Apolônio e Papus foram questionadas. Especificamente, as questões focavam a
certeza das demonstrações Matemáticas. Isso estava na base do pensamento de Alessandro
Piccolomini que iniciou o debate que se prolongou por mais de cem anos.
O debate foi recentemente investigado por Paolo Mancosu no seu livro
Philosophy of Mathematics and Mathematical Practice in the Seventeenth Century (A
Filosofia da Matemática e a Prática Matemática no Século XVII). Daremos aqui as idéias
principais do debate para estabelecermos a posição de Clavius.
Piccolomini, um defensor dos ideais científicos de Aristóteles, questionou se a
Matemática enquadrava-se no modelo aristotélico. Para falar sobre o debate, Mancosu
começa explicando que a teoria científica de Aristóteles é tratada nos Analíticos
Segundos. Em síntese, para que um conhecimento seja aceito como um conhecimento
científico é necessário sabermos, primeiramente, a “causa” desse conhecimento científico.
Nesse contexto “causa” pode ser qualquer uma das quatro causas aristotélicas
14
:
formal, material, eficiente e final. Segundo Aristóteles, o conhecimento científico é obtido
por demonstração e para se atingir uma transição científica das premissas à conclusão,
“um silogismo deve não somente ser válido, mas premissas e conclusão devem estar em
uma relação especificada”
15
.
14
1. causa material, isto é, aquilo de que um ser é feito, sua matéria ( por exemplo, água, fogo, ar, terra); 2.
causa formal, isto é, aquilo que explica a forma que um ser possui (por exemplo, o rio e o mar são formas
da água; mesa é a forma assumida pela matéria madeira com a ação do carpinteiro). A forma é
propriamente a essência de um ser, aquilo que ele é em si mesmo ou aquilo que o define em sua
identidade e diferença com relação a todos os outros; 3. causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo que explica
como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essência (por exemplo, o ato sexual é a causa
eficiente que faz a matéria do óvulo ao receber o esperma receber a forma de um novo animal ou de uma
criança; o carpinteiro é causa eficiente que faz a madeira receber a forma da mesa; o fogo é causa eficiente
que faz os corpos frios tornarem-se quentes, etc.); 4. a causa final, isto é, a causa que dá o motivo, a razão
ou finalidade para alguma coisa existir e ser tal como ela é (por exemplo, o bem comum é a causa final
da política, a felicidade é a causa fina da ação ética; a flor é a causa final da semente transformar-se em
árvore; o Primeiro Motor Imóvel é a causa do movimento dos seres naturais, etc,) (CHAUI, 2004, p. 111)
15
Tomemos o clássico exemplo. Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. O
silogismo para ser aceito como verdadeiro deve seguir um conjunto de regras. “A premissa maior deve
conter o termo extremo maior (no caso, “mortais”) e o termo médio ( no caso, “homens”); a premissa menor
deve conter o termo extremo menor (no caso, “Sócrates”) e o termo médio (no caso, “homens”); a conclusão
26
É imediatamente evidente que as exigências estabelecidas para a relação
premissas-conclusão são muito mais fortes do que a simples conseqüência
lógica. Em particular, há várias formas válidas de inferência que não dão,
na teoria de Aristóteles, conhecimento científico. Nos Analíticos Segundos
I.13, Aristóteles introduziu uma importante distinção entre dois tipos de
demonstrações demonstrações tou hoti e tou dioti que são traduzidas
como demonstração “do fato” e demonstração “do fato arrazoado”. Nos
comentários latinos posteriores, eram, freqüentemente, chamadas demonstratio
quia e demonstratio propter quid. A primeira procede dos efeitos às causas,
enquanto que a última explica efeitos por meio das causas
16
. (MANCOSU,
1996, p.11)
O comentarista Averroës (1126-1198), segundo Mancosu, reinterpreta essa
concepção e introduz um novo conceito de demonstração:
A distinção entre demonstração do fato e do fato arrazoado foi mantida
pelos comentaristas aristotélicos e foi ainda mais desenvolvida por
Averroës no seu proêmio à Física de Aristóteles, onde as demonstrações
são partilhadas em três gêneros: quia, propter quid e potissima. A
demonstração potissima era considerada o tipo mais incontestável de prova
(logo, um silogismo científico). Caracterizarei a demonstração potissima
mais cuidadosamente abaixo. A tripartição da demonstração, herdada pela
Renascença, foi ainda mais complicada pelas distinções feitas por eruditos
médicos, nos seus comentários ao trabalho de Galeno. De novo, remeto o
leitor a Randall (1961), que reconstrói a elaboração gradual do método
aristotélico, à luz da tradição médica, a partir de suas primeiras discussões,
em Pietro d´Abano, até a sua completa afirmação, nas controvérsias lógicas
de Zabarella, nas quais atinge a forma familiar a Galileu e aos cientistas
do século XVII. (MANCOSU, 1996, p.12)
Assim, baseando-se na concepção aristotélica de Ciência, Alessandro Piccolomini
suscitou dúvidas sobre os métodos matemáticos:
A classificação tripartida da demonstração é proposta por Alessandro
Piccolomini (1508-1578), em um tratado publicado em 1547, intitulado
Commentarium de Certitudine Mathematicarum Disciplinarum. Nesse
trabalho, Piccolomini desafiou o argumento tradicional de que as Ciências
Matemáticas possuem o mais alto grau de certeza, porque fazem uso do
mais alto tipo de demonstração, a demonstração potissima, por ele definida
deve conter o maior e o menor e jamais deve conter o termo médio (no caso, deve conter Sócrates” e
mortal” e jamais deve conter “homem”). Sendo função do médio ligar os extremos, deve estar nas
premissas, mas nunca na conclusão.(CHAUI, 2004, p. 111)
16
Tradução de Irineu Bicudo.
27
como aquela que dá, ao mesmo tempo, a causa e o efeito(simul et quia et
propter quid). Os aspectos exatos de uma demonstração potissima foram
amplamente debatidos. É suficiente dizer que tinham que incorporar as
propriedades que Aristóteles prescrevera para o silogismo científico. Entre
outras coisas, Piccolomini exigia que uma demonstração potissima fosse um
silogismo na primeira figura, com premissas universais anteriores e mais
bem conhecidas do que a conclusão. Seu médio deve ter a forma da
definição de uma propriedade, deve ser único, e deve funcionar como a
causa imediata da conclusão
17
. (MANCOSU, 1996, p. 12)
O foco era a demonstração Matemática. Piccolomini, no capítulo 11 do
Commentarium de Certitudine Mathematicarum Disciplinarum, segundo Mancosu, argumenta
e conclui que as demonstrações Matemáticas não podem satisfazer a definição de
demonstração potissima, mas assegura a certeza da Matemática. Segundo Piccoomini, a
certeza é devido à natureza conceitual da Matemática, criada na mente humana. Em
seguida, Piccolomini focalizou a questão mais geral, se a Matemática poderia ser uma
Ciência causal. Se demonstrações Matemáticas não forem demonstrações potissimae, a
Matemática não pode ser uma Ciência causal e, consequentemente não seria uma Ciência
aristotélica.
Piccolomini, Pereyra (1535-1610) e Gassendi (1592-1655) defenderam essa tese.
Mas, vários estudiosos como Barozzi, Biancani (1566-1604), Barrow (1630-1677), e Wallis
(1616-1703) argumentaram em favor de que a Matemática deveria permanecer no reino
das Ciências causais.
Piccolomini insiste que a Matemática não pode tratar coisas que contêm matérias
e Barozzi enfatiza que a Matemática incorpora uma poderosa certeza demonstrativa e que
esta certeza é próxima da Teologia.
As questões que foram suscitadas implicavam uma avaliação das demonstrações
Matemáticas. Por exemplo, Pereyra considerou a proposição I.32 de Os Elementos de
Euclides, a saber, a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos
retos, como um claro exemplo que não podia ser tratado casualmente. Na demonstração,
Euclides utiliza-se de construções auxiliares
18
e esse é o ponto onde Pereyra chama a
17
Tradução de Irineu Bicudo.
18
Considere o triângulo ABC. Na demonstração, Euclides prolonga um dos lados do triângulo, digamos AB
até E e, em seguida, traça uma paralela a AC, BF; a partir daí deduz, pelo teorema das paralelas que o
28
atenção. Segundo Pereyra, o apelo a segmentos auxiliares mostra como a demonstração
não é verdadeiramente causal, uma vez que o resultado vale mesmo sem a consideração
do ângulo externo e aos segmentos externos, ou seja, o ângulo externo e os segmentos
auxiliares não podem ser a verdadeira causa da igualdade. Esse caso, foi amplamente
anunciado como um claro contra exemplo da não causalidade da Matemática e foi
constantemente re-analisado por aqueles que defendiam a causalidade da Matemática.
Outras questões dizem respeito a demonstrações por contradição e demonstrações
por superposição. Em relação à última, Clavius devotou uma longa seção na segunda
edição dos seus Euclidis Elementarum Libri XV (1589), objetivando Peletier que afirmara
que sendo a Geometria provida de elementos estáticos então seria a demonstração por
superposição contrária a natureza de toda Geometria. Clavius acusa Peletier de não ter
compreendido em que sentido os geômetras usam superposição. Segundo Clavius, o
movimento é realizado no nível mental, isto é, na Geometria lidamos com um movimento
intelectual. Além do mais, desistir da demonstração por superposição subverteria toda a
Geometria, uma vez que diversas demonstrações fazem uso desse tipo de argumento ou
utilizam teoremas que dependem destas para serem provadas.
Foi neste ambiente problemático que Clavius compôs o Prolegomena, em sua
edição de Os Elementos de Euclides. Na seção sob o título A nobreza e a preeminência
da Ciência Matemática, Clavius posiciona-se sobre o problema da certeza e da posição
intermediária da Matemática. De acordo com ele, a Matemática posiciona-se entre a
Metafísica e a Ciência Natural, mas em relação à certeza das demonstrações matemáticas,
ela é mais preeminente do que qualquer outra disciplina. Clavius eleva a certeza da
Matemática nos mais altos termos possíveis, afirmando que não existem desacordos em
Matemática, enquanto existem inumeráveis conflitos no primeiro e até mesmo nos outros
ramos das Ciências, especialmente na Filosofia.
Clavius, trabalhando no nível institucional, claramente apoiou Barozzi e no
memorando sobre o tópico “o modo como as disciplinas Matemáticas poderiam ser
fomentadas nas escolas da sociedade”, Clavius delineou um programa de estudos
ângulo CAB e EBF são iguais, EBC é igual a ACB, juntos, EBF, CBF e ACB formam o ângulo raso. O
lado prolongado é uma construção auxiliar.
29
matemáticos e tratou do que se tornara uma séria divisão interna entre os matemáticos e
filósofos.
Também contribuirá muito para isso, se os professores de Filosofia
abstivessem-se daquelas questões que não ajudam na compreensão das
coisas naturais e que depreciam muito a autoridade das disciplinas
Matemáticas aos olhos dos estudantes, como aquelas nas quais ensinam
que as Ciências Matemáticas não são Ciências, não têm demonstrações,
abstraem do ser e do bem, etc; pois a experiência ensina que essas
questões são um grande estorvo para os alunos e não lhes prestam
nenhum serviço; especialmente, desde que os professores, dificilmente,
podem ensinar-lhes, trazendo essas questões ao ridículo (o que sei não,
apenas, por ouvir dizer)
19
. (MANCOSU, 1996, p. 13 )
Clavius tentou encontrar um meio de pacificar o conflito entre os filósofos e
para refutar, entre outros, pensadores céticos que eram muito influentes no fim do século
XVI e início do século XVII.
Segundo Sasaki (2003, p.53), na seção sobre A recomendação a Euclides e a
Geometria, Clavius sugere que as disciplinas matemáticas, juntamente com a dialética,
tinham ferramentas efetivas para colocar em xeque os julgamentos dos céticos ao
negarem qualquer certeza sobre o conhecimento humano, sem distinção, entre o científico
ou teológico.
Clavius posicionou a dialética ao lado das disciplinas Matemáticas como
ferramenta para combater o pirronismo
20
, uma das mais influentes correntes céticas,
permanecendo dentro do esquema escolástico de Ciência.
Ainda, segundo Sasaki ( 2003, p. 59), na seção do Prolegomena, Vários uso das
disciplinas Matemáticas, pode-se detectar um forte tom platônico. Clavius parece ter sido
influenciado, em parte, por Proclus, no capítulo traduzido por Barozzi e intitulado “Sobre o
uso das Ciências Matemáticas”. Ele cita Proclus, Platão ( Philebus,Epinomis, Timaeus, o
Livro 7 da República), mas também Santo Agostinho, São Jerônimo, São Gregorio de
Nazaré, entre outros, para sustentar a importância em promover a Ciência Matemática.
19
Tradução de Irineu Bicudo.
20
Doutrina fundada por Pirro de Élida(c. 365 c. 275 a. C.). Defendia um estado permanente de dúvida.Há
vários significados para o termo. Ceticismo global nos diz que nunca atingiremos um conhecimento
indubitável sobre o mundo, quer nos domínios das verdades de ordem geral, quer no de algum determinado
domínio do conhecimento. O ceticismo prático nos diz que para toda proposição científica existe sempre
outra contrária, assim não devemos discutir a ciência., essa é a posição de Pírron de Elida, e de seus
seguidores, caracterizada pelo cepticismo radical. O ceticismo metodológico foi usado por Descartes, funciona
para chegar a uma certeza absoluta.
30
Esse debate interessou aos contemporâneos e às futuras gerações. Pietro Catena
(1501-1576) seguiu Piccolomini. Ele fez uma detalhada comparação entre provas
euclidianas e silogismos aristotélicos. Benedito Pereyra, colega de Clavius no Colégio
Romano, também seguiu Piccolomini e desenvolveu o argumento que a Matemática não é
propriamente uma Ciência que pode tratar todo tipo de causa. John Wallis (1616-1703)
publicou Mathesis Universalis em 1657, nele a Quaestio é mais uma vez lembrada. A
discussão prolongou-se até 1664-1666 com Isaac Barrow (1603-1677), na Universidade de
Cambrigde.
Foi neste ambiente que Clavius e Descartes desenvolveram suas atividades
intelectuais. Num momento em que os céticos eram difundidos como um efeito da Contra
Reforma. Descartes foi educado em um ambiente em que Clavius foi muito influente em
assuntos ligado à Matemática. Enquanto a Alemanha, Coimbra, Roma, França eram sacudidas
pela confrontação intelectual e religiosa, os dois pensadores lutaram para superar essa
situação intelectual.
Será importante ainda avaliarmos a influência dos matemáticos Papus e Diofanto
nos trabalhos de Clavius, pois esses dois matemáticos foram muito importantes para a
cultura ocidental. nos trabalhos de Clavius traços marcantes da influência grega.
Descartes também sofrera influência desses matemáticos, conforme explicitarei no próximo
capítulo.
1.3.2 A influência de Papus nos trabalhos de Clavius
Clavius ignorou o método analítico dos antigos geômetras gregos
21
em sua
Matemática, simplesmente concentrando-se na parte sintética. Matemáticos renascentistas
21
Podemos dividir os matemáticos em duas categorias: os formalistas e os heurísticos. Euclides, que compilou
e transmitiu a geometria no estilo axiomático pertence à primeira categoria. Pappus, que dava ênfase ao
caráter inventivo da Matemática procurando estabelecer ferramentas para resolver problemas, pertence à
31
obtiveram informações sobre o significado da análise em Geometria antiga essencialmente
da interpolação de um comentário na proposição I-5 do livro XIII de Os Elementos de
Euclides
22
e da parte inicial do livro VII da coleção de Papus, chamado O Tesouro da
Análise
23
.
Apresentaremos no Capítulo II uma discussão pormenorizada sobre o método de
análise e síntese dos antigos geômetras gregos. Mas é necessário agora um exemplo
ilustrativo para melhor compreendermos o texto a seguir. Suponhamos, então, a título de
ilustração, que queiramos provar o simples resultado de que ângulos opostos pelos vértices
são iguais, veja a figura 1 abaixo, usando o método acima mencionado. A demonstração
dada apenas ilustrará a aplicação do método. O matemático, então procederia, num primeiro
momento, aceitando o resultado desejado como verdadeiro, ou seja, A = C. Em seguida,
se o resultado é verdadeiro, então aplicando o axioma que diz que se adicionarmos iguais
a ambos os lados da igualdade, a igualdade permanece verdadeira, obteríamos a igualdade
A + D = C + D, pelo acréscimo de D a ambos os lados. Vale lembrar que a igualdade
obtida nessa segunda etapa não precisa ser exatamente essa, poderia ser qualquer outra,
depende da tentiva. Não certeza na busca por antecedentes. Mas devemos agora
perguntar, se essa última igualdade é verdadeira, o que podemos concluir a partir dela? De
acordo com a figura, A + D deve ser igual a dois ângulos retos, A + D = 2R. O mesmo é
válido para C + D, C + D = 2R. Portanto, chegamos em algo claramente verdadeiro. Isso
indica o fim da análise e podemos agora passar à síntese.
A síntese começa, neste caso, pela percepção de que, na figura, a soma dos
ângulos A + D é igual a dois retos, A + D = 2R. Também notamos que C + D = 2R. Ou
segunda categoria. Clavius, embora tenha lido a coleção de Pappus, não foi um simpático de sua arte
heurística, concentrando-se exclusivamente no modo euclidiano de fazer Matemática. Sua geometria tem
fortes nculos com a geometria de Euclides, principalmente com o modo sintético de fazer demonstrações.
Descartes conheceu o método analítico a partir dos autores antigos como Apolônio, Arquimedes e Pappus ou
indiretamente dos restauradores de sua época como Marino Ghetaldi, Willebrord Snel. Conforme
mostraremos, Descartes foi um heurístico que procurou usar o método de análise e síntese para descobrir a
solução de muitos problemas de sua época.
22
Na tradução de Heath de Os Elementos encontramos a interpolação. “Análise é assumir o que é
procurado, como se fosse admitido, [e a passagem] através de suas conseqüências ( ) para algo[que é]
admitido verdadeiro. Síntese é assumir o que é admitido[e a passagem] através de suas conseqüências ( )
para o término ou consecução do que é procurado.(ROBINSON, 1983, p.7)
23
Essa citação será discutida posteriormente neste trabalho. Ela é a melhor e mais abragente descrição do
método de análise e síntese que chegou até s. Para o momento basta dizer que, tomando por base a última
nota de rodapé, a parte analítica seria a etapa da descoberta, enquanto a síntética seria a formalização do
resultado. Tal método foi muito importante para o mundo ocidental e teve influência decisiva nos trabalhos
científicos e filosóficos das gerações posteriores.
32
seja, a síntese começa a partir da última etapa da análise. Aplicando agora o axioma que
diz que coisas que são iguais a mesma coisa são iguais entre si, obtemos a seguinte
igualdade, A + D = C + D. Aplicando novamente o axioma que diz que se subtrairmos
iguais de iguais o que permanecem são ainda iguais, obtemos o resultado final, A = C. Isso
conclui a etapa sintética. Como se vê, nesse exemplo, a etapa analítica pode ser
considerada como sendo a descoberta dos possíveis caminhos que o matemático deve
seguir para demonstrar o resultado. A etapa sintética é a demonstração como hoje a
concebemos.
Figura 1
Podemos agora passar à abordagem de Clavius. No prefácio de sua edição de
Euclides, Clavius cumprimenta Commandino pela sua restauração da brilhante Geometria
grega, indicando claramente que lera a versão de Commandino. A forma que Clavius
apresenta a proposição 1 do livro XIII exibe uma característica diferente. A proposição 1
do livro XIII nos diz que se uma linha reta for seccionada em média e extrema razão
24
, o
quadrado do segmento maior, acrescido da metade do todo, é cinco vezes o quadrado da
metade.
Figura 2
Clavius apresenta uma demonstração sintética que pode ser resumida do modo a
seguir, apresentada em uma terminologia algébrica moderna. Do comentário da proposição
24
A secção áurea. Diz-se que um ponto divide um segmento em média e extrema razão se a razão entre o
menor (a) e o maior dos segmentos (b) é igual à razão entre o maior e o segmento todo, isto é, em
notação moderna, a/b=b/(a+b), com a<b. Fazendo b/a=x, obtemos a equação quadrática x
2
-x-1=0. A razão a/b é
chamada de razão áurea ou número de ouro.
33
4, do livro II, o quadrado da linha AB é quatro vezes o quadrado da linha AD, pois a
linha AB é tomada o dobro da linha AD. O raciocínio de Clavius é o seguinte: AB
2
=
AB.AC + AB.BC, e, AB.AC = 2.AD.AC, por outro lado, AB.BC=AC
2
, da definição de razão
extrema e média. Portanto, AC
2
+ 2. AD.AC = 4. AD
2
. Assim, AC
2
+AD
2
+2AD.AC = 5 AD
2
. O
lado esquerdo é igual a CD
2
. Portanto, temos a conclusão CD
2
= 5AD
2
. A terminologia de
Clavius é completamente geométrica. Descrição similar é apresentada na proposição 2 do
Livro V.
Clavius tinha consciência da interpolação da proposição 1 do livro V em análise
e síntese, mas conscientemente ignorou a parte analítica, oferecendo, simplesmente, a
demonstração sintética. Existem poucos lugares em que apresenta procedimentos analíticos
claramente, dando pouca atenção à análise geométrica, simplesmente apresentando
demonstrações sintéticas, tanto em Euclides como em Papus. O Livro VII da coleção de
Papus, a mais importante literatura sobre o método de análise, não impressionou o
matemático jesuíta que, provavelmente, seguiu uma tradição do século XVI, uma tendência
em adotar a análise lógica revelada por Aristóteles nos Analíticos Segundos. Muitos
escolásticos e humanistas seguiram essa linha, ao tentarem restaurar o clássico método de
análise.
Em sua Geometria Practica, o final do livro VIII é dedicado as técnicas de
resolver problemas matemáticos. No começo do livro afirma que se inspira em vários
exemplos da coleção de Papus. No problema de dividir um ângulo em três partes iguais,
apresenta mais uma vez o método sintético, reduzindo o problema da trissecção do ângulo
ao da descrição da curva chamada a concóide de Nicomedes (c. 250)
25
. Na sua Geometria
Practica, Clavius tomou muitos exemplos e problemas de Papus, mas sem tocar no
método analítico.
No livro IV, da segunda edição de Os Elementos, Clavius trata da quadratriz que
é obtida por dois movimentos, veja figura 3. Consideremos um quadrado ABCD e um arco
circular BED com centro em A . Considere, em seguida, os movimentos contínuos do ponto
25
Dada uma reta qualquer e O um ponto não pertecente a essa reta. Seja Q um ponto qualquer sobre a reta
e P um ponto sobre a reta OQ de modo que QP = k. O lugar geométrico dos pontos determinado quando Q
se move ao longo da reta é um ramo da conchóide para o polo O e a constante k. O outro ramo pode ser
determinado pelo lugar dos pontos R a uma distância k na direção oposta à de Q. Segundo Pappus,
Nicomedes descreveu um instrumento para traçar conchóides que podia facilmente trisseccionar qualquer
ângulo.
34
B, ao longo do arco BED e da linha BC, para baixo e paralela a AD. As duas linhas AB
e BC se interseccionam, sempre, em um ponto que chamaremos de F. As duas linhas AB
e BC, no final, coincidirão com a linha AD. A curva descrita por F é a quadratriz.
Figura 3
Seus extensos comentários sobre essa curva foram originados de sua leitura do
Livro IV da Coleção de Papus. De acordo com Papus, Sporus de Nicaea (segunda metade
do século III) estava insatisfeito com essa curva, a quadratriz, pois para realizar a sua
construção, era necessário saber, inicialmente, a razão entre as velocidades dos dois
movimentos, um ao longo de um segmento de reta e, o outro, ao longo da circunferência,
que é igual a razão da linha AB para a circunferência BED e, portanto, era necessário
conhecer o valor de pi, antes de tudo. Sporus e Papus baniram a quadratriz do reino da
Geometria ordinária que se restringia às construções com régua e compasso. Essa questão
será retomada por Descartes.
Clavius acreditava na legitimação das construções ponto a ponto e afirmou que a
quadratriz poderia ser geométrica, de uma certa forma apenas, como as descrições das
seções cônicas, que são também construídas por pontos e chamadas geométricas, como é
explicado por Apolônio de Perga.
A forma de construir curvas parece ter deixado uma certa marca em Descartes o
que indica que lera os comentários de Clavius sobre o livro VI de Os Elementos de
Euclides, cuidadosamente, e que tinha uma atitude crítica pela maneira de Clavius construir
a quadratriz. Segundo Descartes, alguns pontos não podem ser traçados pelo método de
Clavius, e ela não poderia ser aceita como geométrica, contrário à opinião de Clavius. Em
A Geometria de 1637, Descartes assumiu que construções ponto a ponto são válidas para
curvas algébricas e são proibidas para curvas mecânicas que não são representáveis em
equações algébricas, conforme discutiremos pormenorizadamente no Capítulo III.
35
Clavius insistiu que não existia separação entre as seções cônicas de Apolônio e
a quadratriz porque todas são geométricas no sentido de poderem ser construídas
marcando pontos.
Podemos concluir que o estilo de Clavius era dedutivo em geral e que a
Geometria Practica não menciona métodos analíticos claramente. Descates irá refutar esse
estilo bem como a Filosofia Escolástica, mas isto será tratado posteriormente quando
analisaremos As Regras e A Geometria.
1.3.3 A influência de A Aritmética de Diofanto nos trabalhos Clavius
A Álgebra dos modernos foi uma componente essencial que Descartes empregou
na formação de seu método. Nesse sentido, a Álgebra de Clavius foi importante e
Descartes conheceu, por meio dela, várias ferramentas para resolver problemas matemáticos.
O objetivo da Álgebra, para Clavius, era resolver equações, considerando a arte de resolver
equações nem restrita a números (Aritmética), nem a magnitudes (Geometria), mas, de uma
certa forma, pertencendo aos vários ramos da Matemática, uma disciplina unindo Aritmética
e Geometria, diferentemente do posicionamento dos gregos que consideravam Geometria e
Álgebra como independentes.
No capítulo I da Álgebra de Clavius que fala sobre a invenção e o nome da
Álgebra, ele chama essa arte por vários nomes tais como Ars maior, Regula census et rei,
Regula radicis et quadrati, Regula cosa ou della cosae, e Álgebra et almuchabala. Clavius
traduziu Álgebra e almuchabala (nome árabe) para o latim como restauratio e oppositio,
respectivamente. Regula census et rei ou regula cosae são também de origem árabe. Sua
Álgebra pertencia à tradição da Álgebra cossist que floresceu especialmente na Itália e
Alemanha, durante a Idade Média e Renascença. As fontes de seu livro texto são A
Aritmética de Diofanto de Alexandria, Libri de numeris de Jordanus de Nemore (c.1220),
Girolando Cardano (1501-1576), Niccolò Tartaglia (1499[1500]-1557), Rafael Bombelli (1526-
1572), Libro de Álgebra en arithmetica y geometria, publicada na Antwerp, em 1567, por
Pedro Nuñes Salasience.
No capítulo XII, On the extractor of roots which the rule of Álgebra is
concerned with” (Sobre a extração de raízes com que a regra da Álgebra está
36
interessada), ao discutir as equações cúbicas, que na nossa simbologia atual seriam escritas
na forma x
3
= 4x
2
+ 16 e x
3
= 10x +24, Clavius comenta sobre a história da solução das
equações cúbicas mencionando os nomes de Cardano, Tartaglia e Bombelli. Clavius
também tinha conhecimento sobre o método de Viète, provavelmente desenvolvido na De
numerosa potestatum ad exegesin resolutione. O tratado de Viète sobre soluções numéricas
das equações cúbicas e biquadradas foi publicado em 1600 sob os cuidados de Marino
Ghetaldi (1566[68?]-1626), um discípulo de Clavius e de Viète. Clavius mencionou o
matemático alexandrino Diofanto, quando citou um discurso de Regiomontanus sobre o
astrônomo Judeu al- Farghañi, entregue em 1464 na Universidade de Pádua. Regiomontanus
tentou elevar o status da Álgebra para o nível das clássicas disciplinas Matemáticas:
Aritmética e Geometria.
Bombelli foi o primeiro a tornar conhecido o trabalho de Diofanto
26
na Europa.
O livro de Bombelli introduz uma nova simbologia em contraste com a Álgebra cossist e
uma contribuição para a solução das equações cúbicas e biquadradas. A Álgebra de
Clavius tinha características similares com a Álgebra do livro de Bombelli, ambos
consideraram a Álgebra como uma disciplina teórica, e utilizaram muitos problemas de A
Aritmética de Diofanto para dar exemplos de seus métodos de resolver problema. O livro
de Clavius reflete o esforço em posicionar a arte da Álgebra em iguais condições com a
Geometria e a Aritmética.
O simbolismo adotado por Clavius em sua Álgebra é o mesmo de Michael Stifel
(c.1487-1567) em Arithmetica Integra (1544), a simbologia cossist, que determinava
símbolos específicos, por exemplo, um símbolo específico era usado para uma constante,
um símbolo específico para a quantidade variável, um para o quadrado, um para o cubo,
um para o quarta potência, um para a quinta potência, etc..
Usando essa simbologia Clavius resolve o problema 1, do capítulo 29, que é
equivalente aos seguintes problemas: I,1 de A Aritmética de Diofanto; I,1 De Numeris
datis de Jordanus de Nemore e ao Problema III,1 da Álgebra de Bombelli, que pode ser
enunciado como segue. Dividir um número em duas partes de modo que a diferença entre
26
Trataremos da Aritmética de Diofanto posteriormente, aqui é suficiente notarmos que essa obra foi muito
influente no mundo ocidental, pois trouxe muitas novidades: a simbologia, a aplicação da análise, a
desvinculação da geometria, ou seja, os problemas tratados por Diofanto são, na sua maioria, algébricos.
37
eles seja dada. Clavius resolve o problema propondo os meros 100 e 40,
respectivamente, como o número dado e o excesso, seguindo seus predecessores Diofanto,
Jordanus, Cardano, Stifel, Bombelli. Todo número, exceto as variáveis expressas pelos
símbolos cossist, são sempre representados por números específicos. Esta é uma das mais
significantes diferenças entre os algebristas de Diofanto até Bombelli e os modernos
analistas que seguiram Viète. Em sua Zetetica, Viète resolveu o mesmo problema de
Diofanto, expressando-o, totalmente, em termos geométricos. O método de Clavius é quase
geral em comparação ao de Viète, embora não possa ser comparado ao método analítico
de Viète.
O capítulo 29, do livro de Clavius, estuda as equações com dois termos. O
capítulo 30, estuda as equações com três termos. No capítulo 31, Various Problems of
Numbers Connected to Material Things Shown with Several Examples Pertaining to the
Second Root (Vários problemas de números conectados a coisas materiais mostradas com vários
exemplos que pertencem à equação do segundo grau), introduz um novo simbolismo, mas
ainda seguindo Stifel. Clavius entendia que para trabalhar com Álgebra era necessário
conhecer as clássicas disciplinas Matemáticas: Aritmética e Geometria. A Álgebra de
Clavius posicionou-se no ponto de intersecção da tradição da Álgebra cossist e de A
Aritmética de Diofanto.
Descartes, por muito tempo, seguiu a simbologia cossist, mostrando-se claramente
influenciado pela Álgebra de Clavius. Essa influência ocorre principalmente na fase inicial
de seus estudos, onde constatamos a presença dessa simbologia. Somente numa fase
posterior é que Descartes substituirá essa simbologia por uma moderna, uma das suas
contribuições à Matemática.
Como vimos, nas ginas precedentes, o grande mentor do currículo matemático
nos colégios jesuítas esteve profundamente envolvido com a Matemática de seu tempo.
Descartes questionará a Matemática imposta nos colégios jesuítas e fará uma reforma
profunda no cenário científico da Europa. A base dessa mudança será a adaptação do
método de análise e síntese dos antigos. Contrariamente a Clavius que em seus trabalhos
valorizou excessivamente o modo sintético, Descartes valorizará também o processo
heurístico. Clavius se mostrou muito influenciado por Euclides. Descartes, ao contrário, se
mostrará muito influenciado por Papus e Diofanto.
38
Comprovaremos a influência de Clavius dentro das escolas jesuítas também
quando estudarmos a sua influência sobre os professores de Matemática da ordem jesuíta.
Especificamente, o caso que nos interessa é o do professor de Matemática do colégio
jesuíta La Flèche no período em que Descartes ali estudou. Essa é a nossa próxima
abordagem.
1.4 Algumas concepções Matemáticas do professor de Descartes em La Flèche
O primeiro professor de Matemática em La Flèche foi o Padre Jacques
Guernisac (1568-1634), no período de 1606 a 1610. De 1610 até 1611 foi Nicholas Laplace
(1579-1617), aluno do segundo ano de Teologia. De 1611 a 1612 não encontramos nenhum
relato. De 1612 até 1616, Jean François (1582-1668) ensinou Matemática enquanto
estudante de Teologia. De 1616 a 1617, Jean François ensinou Teologia e de 1617 a 1620
ensinou lógica, Física e Metafísica, incluindo Aritmética, Geometria, Música e Astronomia,
portanto, foi professor de Matemática de Descartes, em La Flèche.
François escreveu diversos livros que eram, com poucas exceções, relacionados à
Matemática, especialmente às Ciências matemáticas práticas como Cosmologia, Geografia,
Hidrografia, Cronometria e Astrologia. A sua obra L´arithmetique et la geometrie pratique
(A Aritmética e a Geometria Prática) de 1563, fortalece a impressão de que François era
particularmente interessado na parte prática da Matemática. A obra de François era
constituída de duas monografias: L´arithmétique ou L´art de compter toute sorte de
nombre avec la plume et les jettons e La géométrie pratique ou L´art de mesures tant de
loing que près tuite sorte de lignes, de surface e de corps.
O primeiro tratado, publicado em Roma, 1593, pertence à categoria da Aritmética
prática, que relembra Epitome arithimeticae practical de Clavius, é dividido em quatro
capítulos. O capítulo I aborda os princípios da Aritmética, explicando os números inteiros.
O capítulo II, é sobre operações: adição, subtração, multiplicação e divisão, principalmente
para números inteiros. O capítulo 3, ensina como usar números racionais. O capítulo 4,
aborda a teoria de proporção, e as várias regras práticas da Aritmética.
Todas essas regras Aritméticas estão contidas em Epitome arithmeticae practical
de Clavius, embora fossem comuns na tradição da Aritmética prática dos séculos XVI e
39
XVII. Devido a grande influência de Clavius dentro da Ordem Jesuíta e às características
de sua obra, tudo indica que François seguiu a mesma linha adotata por Clavius na obra
Epitome e, certamente, foi influenciado por ela.
O segundo tratado sobre Geometria prática é um manual essencialmente sobre
medidas de figuras geométricas sólidas e planas. O conteúdo é elementar no sentido de
que o autor transmite o conhecimento da tradicional Geometria prática da Idade Média e
do Renascimento, tal como Clavius. O que indica que François inspirou-se na parte inicial
da Geometria Practica de Clavius.
Segundo Sasaki (2003, p. 88), François publicou, em 1655, uma monografia filosófica
sob o título Traité de la quantité considerée absolument et en elle-mesme[...]relativement et
en ses rapport matériallement et en ses plus nobles subjets, pour servir d´introduction aux
sciences et arts mathematiques et aux disputes philosophiques de la quantité, inspirado
em Aristóteles. François tinha interesse em assuntos científicos de sua época e era fiel à
doutrina dominante dentro da ordem jesuíta.
Depois de terminar a sua formação acadêmica em La Flèche, em 1614, Descartes
muda-se para uma casa próxima a Paris. De 1615 a 1616 cursa Direito e, provavelmente,
Medicina, na Universidade de Pointiers, obtendo o seu bacharelado e a sua licenciatura em
Direito Civil e Canônico. De 1616 a 1618 permaneceu em Paris e no verão de 1618
parte para Holanda, alista-se no exército de Maurício de Nassau e em novembro do
mesmo ano conhece Isaac Beeckman
27
, iniciando, juntos, uma série de estudos. Nosso
próximo objetivo é estudar a influência de Beeckman sobre Descartes.
1.5 Uma nova Ciência: os fundamentos matemáticos de Descartes
Em 1619 Descartes admite ter sido estimulado por Beeckman a expressar seu
próprio programa para reorganizar a Matemática. Beeckman estudou em Leiden de 1607
27
Isaac Beeckman(1588-1637) era natural de Middelburg. Estudou Teologia em Leiden entre os anos de
1607 e 1610. Em 1618 já era formado em medicina pela Universidade de Caen. Nunca exerceu essa
profissão. Dedicou-se ao Magistério na Escola de Latim de Utrecht, a partir de 1618, depois na Escola de
Latim de Rotterdam e, por fim, em Dordrecht. Em 1613 formulou uma lei da inércia que superou, em
muitos aspectos, a lei da inércia corrente. Em 1628 montou a primeira estação metereológica da Europa.
Descartes aprendeu com Beeckman os fundamentos da teoria microcorpuscular da mecânica.
40
até 1610 e foi orientado por Rudolph Snel van Royen (1546-1613) e seu filho Willebrord
(1580-1626), de 1607 a 1610. Rudolph Snel recomendou a Beeckman: Ramus, Euclides e
Herão (c.62) em Geometria; Ramus, Boecius (c.480-524/525) e Euclides em Aritmética;
Ramus, Clavius e outros autores em Aritmética Prática; Ptolomeu (c.100-c.170) e Copérnico
(1473-1543), em Astronomia; Herão, Commandino e Papus em Mecânica; e vários outros
em Astrologia, Óptica, Música e outras disciplinas da Matemática Aplicada. Beeckman foi
um homem que manteve contato com os melhores autores gregos e era principalmente
interessado com Filosofia Natural. Convém ressaltar que Beeckman estudou em um
ambiente onde o calvinismo holandês estava profundamente enraizado e, nesse ambiente,
as idéias de Petrus Ramus já eram bastante influentes.
As realizações de Descartes e Beeckman são melhores entendidas através das
notas do diário de Beeckman que cobriram os anos de 1604 a 1634. Esse diário foi
descoberto por Cornelis de Waard em 1905 na Provincial Library of Zeeland e publicado
em quatro volumes, entre 1939 e 1953. Nele, Beeckman faz referência aos trabalhos de
Euclides, Ramus e aos trabalhos de Clavius: Geometria Practica e a Álgebra. Clavius foi
um matemático influente nos países baixos também.
O interesse de Beeckman, antes de tudo, era em Matemática Prática e Filosofia
Natural. Era partidário da hipótese de Copérnico
28
e foi um dos primeiros a formular o
princípio da inércia. Descartes e Beeckman foram colaboradores mútuos e mantiveram
uma estreita relação de amizade, o que pode ser confirmado pelas correspondências que
mantiveram. Embora Descartes tivesse talento para Matemática, foi Beeckman quem o
inspirou e o motivou, ainda na sua juventude, para novas descobertas Matemáticas e a
pensar na reforma da Ciência e da Matemática tradicional daquele período. Isso foi
mesmo confessado pelo próprio Descartes. No que segue, abordaremos um pouco dos
temas trabalhados pelos dois, a fim de melhor configurar o ambiente em que Descartes
esteve envolvido.
28
No mundo antigo e medieval considerava-se que o mundo era limitado. O mundo era constituido por sete
esferas concêntricas. No centro das esferas estava a Terra, os planetas, o sol e a lua que eram considerados
planetas. Tudo girava em torno da terra. O sistema era chamado geocêntrtico. Em 1543, Copérnico publicou a
obra Das revoluções dos orbes celestes demonstrando que o sistema geocêntrico o dava conta de explicar
o movimento dos corpos celestes e de outros fenômenos. Copérnico propõe então que o sol é quem deveria
estar no centro, imóvel que, por sua vez, foi contestado posteriormente.
41
Em 11 de novembro de 1618 Descartes provou, segundo o diário de Beeckman,
que um ângulo é, de fato, nada. Beeckman diz que o argumento de Descartes é por
redução ao absurdo. Em resumo, Descartes toma o ângulo abc, veja figura 4 abaixo, e as
linhas ab e bc com o ponto b em comum. O ângulo ficará dividido em duas partes pela
linha de, que também dividirá o ponto b, mas um ponto não pode ser dividido segundo a
definição de Euclides, portanto, o ângulo é, de fato, nada.
Angulun nullum esse male probavit Des Cartes
Ontem, que foi 10 de novembro de 1618, em Breda, um francês do Pointou
tentou provar o seguinte: “Na verdade, não existem ângulos”. Este foi seu
raciocínio: “Um ângulo é o ponto de encontro de duas linhas num ponto,
de modo que a linha ab e a linha cb se encontram no ponto b. Mas se
cortarmos o ângulo abc com a linha de, dividimos o ponto b em duas
partes, de modo que metade dele é acrescentado à linha ab e a outra
metade à linha bc. Mas isso contradiz a definição de ponto, pois um ponto
não tem tamanho. Ângulo, portanto, é algo que o existe. (ACZEL, 2007,
p.41-2)
Descartes apresenta um argumento que conduz a um sofisma, Beeckman o rebateu
argumentando que um ponto não é uma magnitude substancial e que o erro de Descartes
consistia em dizer que o ponto poderia ser dividido em duas partes. Questões envolvendo
Filosofia e Matemática eram estudadas desde a Antigüidade e, em 1618, Descartes tinha
interesse nesse tipo de problema, tendo, portanto, consciência do tipo de argumentação
apresentada.
Figura 4
Entre 23 de novembro e 26 de dezembro de 1618, Beeckman, em seu Diário,
resolve um problema proposto por Descartes: encontrar um quadrado igual a raiz de outro
quadrado. A solução apresentada equivale a extração da raiz quadrada usando a proporção
contínua.
42
A maioria dos tópicos discutidos no diário era sobre a teoria matemática musical
e a formulação matemática da lei de queda livre. No começo de 1619, Descartes escreve
o Compendium musicae
29
e o apresenta a Beeckman.
Em uma carta datada de 26 de março de 1619, da cidade de Breda para
Beeckman, Descartes revelou alguns dos conteúdos concretos de seu projeto reformador
pela primeira vez. Ele confessa que, em pouco tempo trabalhando com Beeckman, tinha
descoberto quatro novas e distintas demonstrações com a ajuda do compasso. A primeira
demonstração é o problema de dividir um ângulo em qualquer número de partes iguais e
as outras são relativas às equações cúbicas e quadráticas. Ele diz ter encontrado treze
diferentes espécies de equações cúbicas e três de equações comuns, isto é, quadráticas.
Graukoger descreve a carta de Descartes a Beeckman:
Passei seis dias aqui e cultivei as Musas com mais assiduidade do que nunca.
Neste breve período, de fato, descobri quatro demonstrações extraordinárias e
completamente novas por meio de meus compassos. A primeira concerne
ao famoso problema de dividir um ângulo em tantas partes iguais quantas
se queira[ o tradicional problema da “trissecção” do ângulo]. As outras três
relacionam-se com três classes de equações de terceiro grau: a primeira
classe com um mero inteiro, raízes e cubos[
bxax ±±=
3
]; a segunda,
com um número inteiro, quadrados e cubos [
23
bxax ±±= ]; e a terceira,
com um inteiro, raízes, quadrados e cubos [
23
cxbxax ±±±= ]. Descobri
três demonstrações para essas classes, cada uma das quais deve abranger
os termos variáveis, por causa das mudanças nos sinais + e - . Ainda não
29
O Compedium Musicae foi oferecido a Beeckman como um presente de ano novo, no primeiro dia de
1619. Consiste num pequeno tratado de cerca de trinta páginas. É possível que tivesse sido iniciado antes de
Beeckman e Descartes se conhecerem, porém não antes do verão de 1618, e é certo que foi concluído em
dezembro de 1618. Apesar de estar familiarizado com pouco mais do que o canto nas igrejas
congrecionalistas, Beeckman tinha um vivo interesse pelos aspectos mais científicos da teoria da harmonia e
da acústica. Na década de 1610, havia elaborado uma teoria corpuscular do som e uma teoria sobre a
transmissão dele pela vibração; fora o primeiro a fornecer uma prova geométrica da proporcionalidade
inversa entre comprimento das cordas e a freqüência (1614/1615); e havia oferecido uma explicação
engenhosa e complexa para a consonância, em “termos” de sua teoria corpuscular do som, afirmando que os
“glóbulos” sonoros eram emitidos pelas cordas vibratórias em caráter intermitente, e que os períodos de
som e silêncio coincidiam quando se tocavam notas de uma mesma freqüência(tom) simultaneamente,
tornando-se esses dois períodos menos regulares em relação um ao outro conforme os intervalos entre as
duas notas se deslocavam ao longo do espectro, indo da consonâncias á dissonância. Descartes, por outro
lado, era uma espécie de novato nessa área. Tal como Beeckman, é provável que suas aptidões musicais
práticas não fossem muito grandes. Essas aptidões costumavam ser adquiridas nos estudos de canto coral,
mas o La Flèche não dispunha de um coro, pois os jesuítas o haviam dispensado em suas escolas, ainda
que a missa solene dos domingos e dos dias santos fosse cantada. Posteriormente Descartes afirmou não
saber distinguir uma oitava de uma quinta, o que constitui uma deficiência musical de certo porte. No que
diz respeito a teoria musical, ele certamente a havia estudado um pouco na escola, como parte dos estudos
matemáticos do segundo ano do currículo filosófico, e estava familiarizado com o livro de Zarlino.
(GAUGROKER, 2002, p. 106)
43
forneci uma explicação para tudo, mas creio que será fácil aplicar, aos
demais casos, o que descobri num deles. Com esses recursos, será possível
resolver um número quatro vezes maior de problemas, e muito mais
difíceis, do que se consegue com a Álgebra comum. Reconheço treze tipos
diferentes de equações cúbicas, ao passo que existem apenas três das
equações comuns[ isto é, de segundo grau], a saber, entre 1z e Ok + ON [
baxx +=
2
], ou Ok ON [ baxx =
2
], ou, por fim, ON Ok
[ axbx =
2
]. Estou agora à procura de alguma coisa diferente, a fim de
extrair as raízes da soma de quantidades incomensuráveis entre si. Se vier
a encontrá-la, como é minha esperança, porei a Ciência toda em ordem,
desde que consiga superar minha preguiça natural e que o destino me
conceda o tempo livre. Aliás, para que não fiques em dúvida quanto ao
objetivo de meu projeto, o que eu gostaria de apresentar ao público não é
a Ars brevis de Lull, mas uma Ciência de bases inteiramente novas, que
nos permita responder a qualquer pergunta que se possa formular sobre
qualquer espécie de quantidade, seja ela contínua ou descontínua, cada qual
de acordo com sua natureza. Na Aritmética, certas questões podem ser
resolvidas por meio de números racionais, outras usando irracionais; outras,
enfim, podem ser imaginadas, mas não solucionadas. Desse modo, espero
demonstrar que, no caso das quantidades contínuas, alguns problemas
podem ser resolvidos apenas com retas e círculos; outros podem ser
resolvidos com curvas que não sejam rculos, mas que possam ser
geradas por um único movimento [contínuo] e, portanto, desenhadas com o
uso de um novo compasso, que não creio ser menos exato do que o
compasso comum usado para desenhar círculos, e que é tão geométrico
quanto ele; e por último, outros problemas podem ser resolvidos com
curvas geradas por movimentos que não estejam subordinadas uns aos
outros, curvas que com certeza são apenas imaginárias, como a quadratriz,
que é bastante conhecida. Não creio que se possa imaginar nada que o
seja resolúvel em moldes semelhantes: na verdade, espero mostrar que
determinados tipos de questão podem ser resolvidos de um modo e não
de outro, para que quase nada mais reste a descobrir em Geometria. A
tarefa é infindável e não pode ser realizada por uma única pessoa. É tão
incrível quanto ambiciosa. Mas vi uma certa luz no caos tenebroso dessa
Ciência, graças à qual é possível desfazer o mais denso nevoeiro.
(GAUKROGER, 2002, p.129).
Na primavera de 1619, Descartes tentou realizar a unificação da Aritmética com a
Geometria usando os compassos, avançando além da Álgebra de Clavius. O compasso
desempenhou uma importante função no desenvolvimento científico do século XVI e XVII,
isso é muito claro em Descartes e aprofundaremos no tema quando analisarmos as
Cogitationes Privatae, mas seu uso já era comum desde os gregos. Na época de Descartes,
por exemplo, Galileu procurou uma aproximação via compassos mecânicos para problemas
matemáticos práticos. Galileu e Descartes acreditavam que os compassos poderiam fornecer
44
as bases para o desenvolvimento e unificação da Aritmética e da Geometria. Uma
importante diferença entre os dois é que Descartes tentou prover seu compasso com
fundamentos teóricos, por meio de considerações algébricas.
Nessa citação, Descartes diz que resolveu o clássico problema grego da trissecção
de um ângulo usando compassos. Discutiremos a questão da trissecção ou a divisão de um
ângulo em tantas partes quanto se queira, com mais profundidade, mais à frente, nas
Cogitationes Privatae
, onde Descartes mostra efetivamente como fez isso
.
Sobre a solução das equações cúbicas resolveu, usando compassos, os seguintes
tipos:
,)3(,)2(,)1(
32323
xcxbxaxbxaxbxa =±±±=±±=±±
onde a, b, c são constantes positivas e os três casos –a –bx = x
3
,
-a-bx-cx
2
= x
3
foram
excluídos, pois toda raiz é, para Descartes, considerada positiva. Classificou as equações
quadráticas em três espécies:
axbxbaxxbaxx ==+=
222
)3(;)2(;)1(
, excluindo o caso
baxx =
2
como impossível. Descartes classificou treze diferentes tipos de equações
cúbicas e três tipos de equações quadráticas.
Ainda na mesma carta quando diz
Estou agora à procura de alguma coisa
diferente, a fim de extrair as raízes da soma de quantidades incomensuráveis entre si
,
refere-se, segundo interpretação de Sasaki (2003, p. 101), a extração de raízes compostas de
várias denominações ...+++
cba
[
sic
] que pode ter sido inspirada pela
Álgebra
de Clavius, capítulo 28:
On the Extraction of Roots from Binomials and Apotemes,
Wherewith Incidentally on the Other Irrational Lines on Which Euclides Discusses in
Book 10
(Sobre a Extração de Raízes de Binômios e Apótemas, por meio de Outras Linhas
Irracionais Que Euclides Discute no Livro 10).
Além dos compassos, outra motivação para a reforma da Matemática parece ter
vindo da história geral das idéias. Na carta de 26 de março de 1619 Descartes refere-se a
Ars brevis
de Ramon Lull
30
afirmando que pretendia criar uma nova Ciência ao invés de
algo similar à arte de Lull, não expressando opiniões adicionais sobre o lullismo.
30
Ramon Lull (c. 1235-1315) nasceu em Palma de Maiorca. Foi um inportante escritor, filósofo, poeta e
teólogo da língua catalã. Dominava a língua árabe e o latim e publicou obras nestas línguas. Escreveu
aproximadamente 260 livros, entre eles, Ars brevis (Arte breve)
45
Em uma outra carta de 29 de abril de 1619 para Beeckman, Descartes falou mais
sobre a arte de Lull. Na ocasião, perguntou se Beeckman tinha, em Madelburg, uma cópia
do comentário de Agrippa sobre
Ars brevis
de Lull. Beeckman responde em uma carta,
datada de 6 de maio de 1619, dizendo que na obra citada não existia tais chaves que
Descartes e o velho homem desejavam saber (referindo-se a alguém com quem Descartes
debatera a arte de Lull, citado em uma carta datada de 29 de abril de 1619, de Descartes
para Beeckman) e ele fornece a Descartes os pontos essenciais da arte de Lull:
[...] e este, que havia lido algumas obras de Lull, explicou-lhe que o
maiorquino inventara uma roda em que nove letras B, C, D, E, F, G, H, J e
K eram arranjadas. Essas nove letras representavam atributos da criação
(aparentados aos dez atributos de Deus, o Sefirof na cabala judaica).
Produzindo permutações dessas letras mediante o uso de círculos que
giravam dentro de outros círculos num dispositivo geométrico, era possível
deduzir novos conceitos. (ACZEL, 2007, p. 44)
Combinando a memória com os símbolos das cartas e usando a imaginação, uma pessoa
pode ser capaz de argumentar por muitas horas.
Em maio de 1619, Beeckman lembrou de um memorando no seu diário com o
título:
Lull´s art compared with Logic
(A arte de Lull comparada à lógica). Por lógica
Beeckman entendia a de Petrus Ramus. De acordo com ele, Ciências particulares ficam na
posição da arte de Lull, mas a arte de Lull não pode, evidentemente, ficar no lugar da
lógica. Beeckman não era simpático à arte de Lull como era à gica de Ramus.
Descartes também era antipático a arte de Lull, no Discurso do Método fala sobre a
técnica para falar sem julgamento sobre assuntos do qual uma pessoa não conhece
31
. Em
1619, Descartes rejeitou, sem hesitar, o naturalismo renascentista do qual um dos
representantes foi Henry Cornelius Agrippa (1486-1535), um comentador da arte de Lull.
Essa antipatia foi incentivada dentro da ordem jesuíta e a investigação sobre a arte de
31
No Discurso do todo Descartes refere-se a Arte de Lull. Mais jovem, eu estudava um pouco, entre os
ramos da Filosofia, a Lógica, e, entre as Matemáticas, a Análise dos geômetras e a Álgebra, três artes ou
ciências que pareciam dever contribuir em algo para o meu projeto. Mas, examinando-as, notei que, quanto a
Lógica, seus silogismos e a maior parte de seus demais preceitos servem para explicar a outrem as coisas
que se sabem, ou mesmo, como a arte de Lull, para falar, sem julgamento, daquelas que se ignoram, do
que para aprendê-las. E, embora a gica contenha, com efeito, uma porção de preceitos verdadeiros e
muitos bons, todavia outros tantos misturados de permeio que são nocivos ou supérfluos, sendo quase tão
difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está
esboçada ( DESCARTES, 1989, p. 43).
46
Lull é uma tentativa em rever o escolasticismo dos jesuítas para determinar a sua própria
forma de pensar. Dois fatos se destacam. Primeiro, por seu contato com a arte de Lull
notou a importância do simbolismo para reformar a Matemática, especialmente a Álgebra.
A arte de Lull e a gica de Petrus Ramus pretendiam reorganizar as Ciências por uma
ênfase mnemônica, Descartes admitiu a importância do simbolismo na Matemática nas
Regulae ad directionem ingenii.
Segundo, a arte de Lull foi importante para Descartes
como um símbolo pansófico
32
e à unificação da Ciência Matemática. No século XVI, o
lullismo era considerado o ideal simbólico para a unificação das Ciências e, como aparece
na Renascença, tem duas características essenciais. A primeira é que pretende ser uma
Ciência geral e universal que, lidando com certos princípios absolutos e provas infalíveis,
tornam possível estabelecer um critério absoluto de verdade; a segunda é que, concebida
como a Ciência da Ciência, oferece uma explicação para a ordem exata e racional de
todo conhecimento, cujos vários aspectos são todos atingidos e verificados.
Em seu encontro com Beeckman, Descartes estabelece a importância da
Matemática para estudar a Filosofia Natural e a idéia de unificar as disciplinas
Matemáticas. Mas ele ainda teria de percorrer um longo caminho até encontrar a nova
Ciência.
1.5.1 A Matemática nas Cogitationes Privatae
Durante o período de 1619 a 1621 Descartes escreveu um manuscrito que tem
importância fundamental para entendermos como e o que ele trabalhava naquele período.
O manuscrito foi copiado por Leibniz, em 1 de junho de 1676, naquela época interessado
pelos trabalhos de Descartes. Após a morte de Leibniz, a cópia foi arquivada na Royal
Library of Hanover (
Livraria Real de Hanover
) e publicada pela primeira vez em 1859,
segundo o título
Cartesii Cogitationes Privatae
, pelo Francês Foucher de Careil, no
primeiro volume de
OEuvres inédites de Descartes
. O trabalho continha muitos erros e,
posteriormente, foi melhorado e republicado no décimo volume de
OEuvres de Descartes
de Adam-Tannery.
32
Relativo à pansofia: ciência universal, todo saber humano.
47
Como vimos, no início de 1619 Descartes estudou os compassos proporcionais e
começou a formular uma teoria das grandezas proporcionais, o que acabaria por conduzi-
lo a Álgebra. Várias anotações, desse período, foram coligidas no texto das
Cogitationes
Privatae.
Na parte inicial desse texto, Descartes deixa em evidência que planejava escrever
um livro,
Thesaurus mathematicus
, usando o pseudônimo Polybius Cosmopolitanus, onde
pretendia expor a construção de sua nova Ciência. Nas
Cogitationes Privatae
existe
apenas uma passagem relacionada a esse livro, cujo objetivo era mostrar o verdadeiro
método científico que seria capaz de resolver todas as dificuldades nas Ciências
Matemáticas.
TESOURO MATEMÁTICO DE POLYBIUS, O COSMOPOLITA
Fornecer ao leitor os verdadeiros meios de resolver todas as
dificuldades desta ciência; está demonstrado que, sobre essas
dificuldades, o espírito humano nada mais pode descobrir. Isso para
calar a tagarelice e rejeitar a irresponsabilidade de alguns que
promoteram demonstrar novos milagres em todas as
ciências[...][...]Oferecido, uma vez mais, aos estudiosos eruditos de
todo mundo, especialmente a G. F. R. C. (ACZEL, 2007, p.17)
Descartes pretendia dedicar esse trabalho aos eruditos que anunciaram mostrar as
descobertas milagrosas de todas as Ciências, mas que até então nada tinham realizado
nesses assuntos, denunciando assim o vazio de afirmações e de suas vaidades. Um outro
objetivo era libertar os homens que procuravam um novo método científico e que
tinham grandes dificuldades nas suas pesquisas. Finalmente, Descartes dedicou o livro aos
homens sábios de todo mundo, especialmente aos irmãos Rosa Cruz na Alemanha.
Em 1619 o movimento Rosa Cruz se tornou bastante conhecido na Alemanha,
com a eclosão da guerra dos 30 anos, em 1618. Esse era um movimento bastante místico
que, algumas vezes, prometeu apresentar uma nova Ciência ou o saber verdadeiro.
Na carta datada de 26 de março de 1619 a Beeckman, citada anteriormente,
Descartes expõe um pouco do conteúdo da sua nova Ciência. De acordo com ela, tinha
encontrado quatro demonstrações com a ajuda do compasso: a divisão de um ângulo em
qualquer número de partes iguais, as soluções das equações cúbicas
3
xbxa =±±
,
48
32
xbxa =±±
,
32
xcxbxa =±±±
e resolveu tais problemas com a ajuda do
mesolábio
33
.
Nas
Cogitationes Privatae
Descartes mostra, efetivamente, como construiu e usou diversos
desses instrumentos, apresentando as principais idéias descritas na carta citada realizando-
as com a ajuda dos compassos.
A partir do
mesolábio
34
, da figura 5, obtemos as seguintes proporções, devido a
semelhança de triângulos:
Figura 5
...======
YH
YG
YG
YF
YF
YE
YE
YD
YD
YC
YC
YB
Fazendo YB = YA = 1, e YC = x, obtemos a proporção:
...
1
4
3
2
===
x
x
x
x
x
Nas
Cogitationes Privatae
, usou a figura 6, para resolver a equação cúbica
x
3
=x+2
, do seguinte modo. Por meio da semelhança de triângulos, obtemos as seguintes
proporções:
33
O mesolábio, um instrumento inventado pelo matemático e astrônomo alexandrino Eratóstenes, foi usado
por Descartes encontrar as médias proporcionais entre duas linhas. Erastóstenes usou o mesolábio para
resolver o problema da duplicação do cubo.
34
Esse mesolábio é um instrumento que gera várias curvas que são obtidas pelo movimento do eixo YY.
O movimento faz com que as intersecções das retas deslizantes BC, DE, FG, etc com o eixo YY descrevam
as curvas AB, AD, AF, etc. Essa estrutura será utilizada por Descartes em A Geometria.
49
Figura 6
,
ah
ag
ag
af
af
ae
ae
ad
ad
ac
ac
ab
=====
2
32
ab
ac
ac
ad
=
ah
af
ag
ag
ae
af
af
ad
ae
ae
ac
ad
ad
ab
ac
ae
ab
ac
======
22
222
2
3
,,,,,
Como
ac
ab
ac
acaece ==
2
3
, fazendo ab uma unidade, isto é ab=1, e ac=x, segue que ce
= x
3
x, ou seja, x
3
= x+ce. Conseqüentemente, abrindo o compasso de forma que o valor
de ce seja exatamente igual a dois, obtemos ac=x como uma raiz positiva da equação
cúbica x
3
=x+2.
Na seqüência, Descartes discute a equação bica do tipo
32
xcxbxa =±±±
, sem
o uso do compasso. Usou como exemplo a equação x
3
=6x
2
-6x+56, com dois coeficientes
opostos, como modelo, reescrevendo-a como x
3
=3x
2
-3x+28. Escreve x
3
ao invés de
2
3
x
.
Não sabemos se Descartes cometeu um engano ou não, ou se estava apenas rascunhando
algo, pensando vagamente sobre essas questões. Mas continuando a completar o cubo:
128)1(
3
=x
, ou
3
3
3
)1128( +=x
. Descartes, depois a reescreve
33
)1128(
2
1
+=x
.
Posteriormente, Descartes considera a equação cúbica em que os coeficientes de x
2
e x
não são iguais, como no caso anterior, escreve no lugar de
3
4
1
x
, x
3
.
50
O último exemplo que Descartes discute é a equação cúbica x
3
= -3x
2
-3x+26.
Neste caso, adicionou e subtraiu uma unidade, completando o cubo e transformou a
equação dada em (x+1)
3
=27. Conseqüentemente, 1126
3
+=x e
3
3
3
)1126( +=x
.
As equações cúbicas restantes são do tipo
32
xbxa =±±
e foram trabalhadas com
a ajuda do mesolábio, apresentando, especificamente, a solução da equação cúbica x
3
=x
2
+b.
A figura 6 é usada para resolver a equação x
3
= x
2
+2, a resolução apresentada aqui é
uma possível reconstrução, segundo Sasaki (2003, p. 117), sugerida por Eneströn (1852-1923)
em uma nota de rodapé da edição de Adam-Tannery, As Obras Completas de Descartes.
Primeiro fazemos ab=
1
, ac = x , fg= b; usando a semelhança de triângulos, temos:
ad=
x
ab
ac
=
2
,
2
3
22
x
x
x
ac
ad
ae === ,
2
32
x
x
x
ad
ae
af ===
,
,
2
5
2
3
4
2
x
x
x
ae
af
ag ===
3
2
5
2
x
x
x
af
ag
ah ===
, e como,
ah= af+fh
, segue que
, x
3
=x
2
+fh
. Conseqüentemente, substituindo
o valor de
fh
por b, abrindo ou fechando o ângulo
bac
, temos
ad
como uma raiz positiva
da equação cúbica
x
3
=x
2
+b
.
Descartes conclui sua explicação sobre as equações cúbicas expressando sua
convicção de que as equações
x
3
=x
2
-b
e
x
3
=b-x
2
poderiam ser resolvidas por um processo
similar. Posteriormente, considerou o caso geral
32
xcxbxa =±±±
, descrevendo o
procedimento para eliminar o coeficiente da variável do segundo grau pela substituição de
uma raiz, reduzindo a equação cúbica original à forma,
,
3
xbxa =±±
que é um dos
primeiros casos que resolveu com a ajuda de seu compasso. Assim, acreditou que tinha
resolvido todos os tipos de equações cúbicas.
Segundo Sasaki, na Antigüidade o mesolábio designava um instrumento matemático
atribuído a Eratóstenes (c.276-195 a. C.) para encontrar, mecanicamente, duas médias
proporcionais. Papus, na primeira metade do século IV de nossa era, forneceu uma
explicação sobre esse compasso no Livro III, Capítulo VII, de
A
Coleção
, mencionando os
nomes de ambos, o instrumento e seu inventor. Na tradução latina de Commandino de
1588, o nome do matemático e seu invento aparecem como o mesolábio de Eratóstenes
:
in Eratosthenis mesolabo
. No comentário sobre o livro II de Arquimedes,
On the Sphere
51
and Cylinder
, Eutocius de Ascalon, que viveu por volta de 480 de nossa era, afirmou que
Eratóstenes resolveu a duplicação do cubo mecanicamente, inventando um dispositivo para
encontrar duas médias proporcionais, entre dois segmentos de reta dados. Mas não fornece o
nome do dispositivo. Em sua versão da obra de Papus, Commandino não esqueceu de
fazer menção ao comentário de Eutocius sobre Arquimedes. Além da explicação de Papus
e Eutocius, Vitruvius (25 a. C.) em seu
Architectura
usou a palavra latina
mesolabius
para
denotar o instrumento de Eratóstenes, sem qualquer explicação Matemática detalhada.
O dispositivo de Eratóstenes era usado, segundo a explicação de Papus, em
Commandino, para encontrar duas médias proporcionais, em proporção contínua, quando
duas linhas retas são dadas. A construção leva em consideração o dispositivo indicado pela
figura 7. Os triângulos AEH, MFK e NGL são retângulos, com ângulos retos em E, F e G. O
triângulo AEH é fixado, enquanto os outros dois movem-se ao longo de AB e CD. As
duas médias proporcionais entre AC e XL são encontradas deslizando-se MFK e NGL, de
tal modo que P e O, nas linhas EH e FK respectivamente, fiquem alinhados com A e X.
Usando a semelhança, obtemos as proporções:
XL
OK
LR
KR
OL
PK
RO
PR
OK
PH
KR
HR
PK
AH
PR
AR
PH
AC
========
, e portanto
XL
OK
OK
PH
PH
AC
==
.
Assim
PH e OK são as médias proporcionais entre AC e XL.
Figura 7
Este problema era importante, pois permitia duplicar o cubo. De fato, se
x
e
y
são
duas médias proporcionais entre as duas linhas retas (segmentos de retas) com medidas
52
dadas
a
e
b
, isto é, se
a:x = x:y = y:b
, então
x
2
= ay, y
2
= bx, xy =ab
, e
x
3
= a
2
b
. Se
b = 2a
,
obtemos uma equação representando o problema de duplicar o cubo:
x
3
= 2 a
3
.
Segundo Sasaki, existe uma certa semelhança entre o mesolábio de Descartes,
usado nas
Cogitationes Privatae
, e o de Eratóstenes para encontrar duas médias
proporcionais. Clavius também discutiu o problema de encontrar duas médias proporcionais
no livro VI, problema 10 (proposição 15) de sua
Geometria Practica
. Talvez tenha sido o
Livro III da coleção de Papus que inspirou Descartes a inventar o seu próprio compasso
matemático para encontrar médias proporcionais e para resolver a equação cúbica. Mas
existem outras possibilidades; por exemplo, matemáticos do século XVI e XVII conheciam
e usavam o mesolábio por meio das várias edições renascentista de Arquimedes, com os
comentários de Eutocius. Descartes certamente leu o livro de Arquimedes
On the sphere
and cylinder
(Sobre a esfera e o cilindro); não sabemos se antes ou depois de 1619, o
que se sabe é que ele era bem informado sobre a construção e o uso do dispositivo
mecânico de Eratóstenes.
As
Cogitationes privatae
, posteriormente, mostram que Descartes inventou um
dispositivo mecânico para dividir um ângulo em um número qualquer de partes iguais, o
compasso trissector, também citado na carta de 26 de março de 1619. Sua construção é
tal que, quando o compasso é aberto, os ângulos entre eles se mantêm iguais. Nele
devemos considerar
af = ai = ak= al
e
os aros
fg = gk = ih = hl
com mesmo comprimento
que
af
e que giram em torno dos pontos
f, g, i, h, k
e
l
e deslizam sobre
g
e
h
. Para
trisseccionar um ângulo basta aplicar-lhe o compasso. Veja figura 8.
53
Figura 8
O interesse de Descartes em compassos foi além do mesolábio e do compasso da
trissecção, sugerindo ainda vários outros compassos. Por exemplo, para descrever uma seção
cônica basta aplicar o compasso construído da seguinte maneira, seja DC um segmento na
vertical e AB uma superfície plana oblíqua. BC gira em torno do eixo CA imóvel e
sobre o plano oblíquo AB, veja figura 9 abaixo. CB, ao girar em torno de CA, pode subir
ou descer, ajustando-se à inclinação do plano AB. A seção cônica descrita pelo ponto B é
idêntica àquela descrita pela intersecção do cone da geratriz CB e eixo CA, com o plano
AB.
Figura 9
Um outro compasso sugerido por Descartes é descrito pela figura 10 abaixo que
tem tem um eixo CA imóvel, um braço constante CD, e um suporte DE que pode descer
ou subir, de acordo com o plano AB. O ponto E descreve uma curva em AB, que é a
intersecção do cilindro gerado por DE com o plano inclinado AB.
Figura 10
54
Descartes sugere também um compasso constituído de um suporte com duas
articulações para transferir figuras. Ainda cita outro compasso, o pantógrafo
35
, inventado
entre 1603 e 1605 pelo astrônomo jesuíta alemão Christoph Scheiner
36
(1573-1650).
Outros instrumentos indicados por Descartes:
Um outro [instrumento] é também para descrever todas as horas, o qual eu
mesmo posso inventar. O terceiro é para medir ângulos sólidos. O quarto é
de prata para medir figuras e planos. O outro mais bonito é para transferir
figuras. Um outro é fixado sobre uma tíbia de um orador para medir
momentos[tempo]. Um outro é para desenvolver artilharia de guerra. – Petrus
Roth, Arithmetica philosophica.- Benjamim Bramer. (SASAKI, 2003, p. 124-
tradução nossa)
Petrus Roth que prosperou por volta de 1617, mencionado no fim dessa citação, é
autor de
Arithimetica philosophica
(1608) que pertencia à tradição
cossist
da Álgebra
alemã. Descartes pode ter se interessado em Petrus Roth por ele discutir a equação
cúbica, seguindo o modelo de Cardano, ou talvez porque Roth calculou números
poligonais e piramidais seguindo os exemplos do matemático de Ulm, J. Faulhaber (1580-
1635). Os números poligonais e piramidais foram tratados no
De Solidorum Elementis
de
Descartes, trataremos deste assunto nas próximas seções. Benjamim Bramer (1588-1652),
também citado no fim, foi um matemático prático alemão que inventou diversos
instrumentos matemáticos, talvez por isso Descartes o mencionou.
Os matemáticos práticos, em sua maioria, tenderam a negar o desenvolvimento
teórico da Matemática, mas Descartes seguiu a direção oposta e nunca esqueceu de
traduzir o significado de figuras geométricas, expressas pelos compassos, em uma
linguagem algébrica que tinha previamente aprendido
.
35
Aparelho constituído de paralelogramos articulados com o qual se pode transferir figuras com a proporção
desejada.
36
Cristoph Scheiner nasceu em Wald (Suábia) em 1575 e faleceu em Neiss em 1650. Astrônomo suiço
ingressou na ordem jesuita em 1595, estudou na Alemanha e em Roma. Foi professor de Matemática em
Ingolstadt, Friburgo e Roma. Foi reitor do Colégio de Neiss(Silésia) e professor do duque Maxiliano.
Publicou várias obras, entre elas: Pantographice seu ars delineandi ( Roma, 1631).
55
1.5.2 Os números figurados, a extensão do teorema de Pitágoras (580-500 a. C.) e
outros resultados
Nas
Cogitationes Privatae
, Descartes escreveu sobre uma vasta gama de assuntos:
música, queda livre, hidrostática, teoria dos números e gnômica, além de seu interesse por
compassos e estava profundamente envolvido com a questões relacionadas a sua reforma
da Ciência. Tanto que, nesta época, ao ser indagado por Isaac
de Middelburg
se uma corda
ACB, fixada em dois pregos A e B, poderia descrever uma parte de uma cônica,
simplesmente respondeu que não teria tempo livre para examiná-lo pormenorizadamente.
Entre os problemas que Descartes estava preocupado, nas
Cogitationes Privatae
,
aparece nas notas sobre os compassos matemáticos o seguinte:
Se o quadrado de um número triangular é subtraído do quadrado do
número triangular subseqüente, o que permanece é um cubo. Por exemplo,
10, 15; remova 100 de 225. Permanece 125. Da progressão
32168421
,
os meros perfeitos 6, 28 e 496 são obtidos. (SASAKI, 2003, p. 128-
tradução nossa).
O conceito de números figurados, segundo Heath (p. 76-77), foi provavelmente
descoberto por Pitágoras. Os números triangulares podem ser representados pela fórmula
=
+
,...3,2,1,
2
)1(
n
nn
. A primeira afirmação pode ser confirmada facilmente, pois:
(
)
(
)
( )
3
22
22
3
4
)1(
4
21
+=
+
++
n
nn
nn
.
Segundo Boyer (p. 39), os meros perfeitos são também atribuídos aos pitagóricos.
Esses números são apresentados na definição 22, livro VII, de Euclides. Um mero
perfeito é aquele que é igual a soma de seus divisores, excluindo-se dos divisores o
próprio número. também um teorema geral sobre números perfeitos em Euclides IX,
36. Em notação moderna, pode ser reescrito como segue: se a soma de qualquer número de
termos da série 1,2, 2
2
, ..., 2
n-1
(=S
n
) é prima, então S
n
.2
n-1
é um número perfeito. O caso
de Descartes, nas
Cogitationes Privatae
, é mais simples e pode ser obtido quando n = 2,3,5,
56
pois, para esses valores, obtemos os seguintes números perfeitos: 6=1+2+3, 28= 1+2+4+7+14,
496 = 1+2+4+8+16+31+62+124+248.
No fim das
Cogitationes Privatae
, Descartes começa a descrever seus cálculos
sobre o tetraedro retangular que é definido como tendo cada um dos três ângulos do
vértice igual a um ângulo reto. Em outras palavras, o tetraedro pode ser obtido cortando
um paralelepípedo retangular próximo a um canto com um plano. À afirmação de que no
tetraedro retangular, o quadrado da área da base (oposta ao ângulo sólido reto) é igual a
soma dos quadrados das áreas das outras três faces, Descartes oferece o seguinte exemplo:
se os três lados da base são
,20,20,8
os três lados acima da base são 4, 2, 2, a área
da base é 6. A área das três faces serão: 2, 4, 4, das quais, os quadrados são 36, 4, 16, 16
e daí segue o resultado. Essa relação vem dos pitagóricos e Descartes tenta estendê-la para
objetos equivalentes da quarta dimensão, onde o enunciado seria: o quadrado do sólido
oposto ao ângulo sólido reto é igual a soma dos quadrado dos outros quatro sólidos. No
espaço tridimensional teríamos
A
2
+B
2
+C
2
=D
2
, onde
A, B, C
são as áreas das três faces
laterais e
D
a área da face oposta ao ângulo reto. Em quarta dimensão o resultado seria
22222
εδγβα
=+++
, onde
δ
γ
β
α
,,,
são os volumes dos quatro sólidos e
ε
é o
volume do sólido oposto ao ângulo sólido reto.
Se os lados da base de um tetraedro retangular são dados, os lados sobre a base
são facilmente encontrados. Descartes oferece um exemplo idêntico ao segundo do
parágrafo precedente. Os lados da base são os números
5,20,13
. Descartes coloca um
dos lados desconhecidos como
x
e os outros dois lados são calculados como
2
13 x
e
2
20 x
aplicando o teorema de Pitágoras. Usando o teorema de Pitágoras novamente no
triângulo retângulo, obtemos:
(
)
(
)
,252332013
222
==+ xxx
isto é,
82
2
=x
. Tomando a
raiz positiva, obtemos 2 para o primeiro lado.
Descartes procede com cálculos gerais sobre o tetraedro retangular, a base do
qual tendo lados
γ
β
α
,,
. Os três lados sobre a base calculados por Descartes são:
qqq
βγα
2
1
2
1
2
1
+
,
qqq
γβα
2
1
2
1
2
1
+
,
qqq
αλβ
2
1
2
1
2
1
+
57
Chamando os três lados procurados de
x
,
y
e
z
e aplicando o teorema de Pitágoras,
obtemos as igualdades:
,
222
α
=+ zy
,
222
β
=+ xz
222
γ
=+ yx
. Assim,
2222
2
αγβ
+=x
,
2222
2
βγα
+=y
,
2222
2
γβα
+=z
, obtemos o resultado de Descartes que escreve
q
α
em lugar de
2
α
, seguindo uma simbologia alternativa de Clavius para indicar uma
variável ao quadrado. Em seguida calcula a área das três
laterais, a área da base, e
finalmente o volume do tetraedro retangular usando a fórmula
6
xyz
. Descartes apresenta um
exemplo onde os três lados da base são
,20,13
5. Primeiro calcula:
29
222
=++
γβα
,
;161329)(
22222
x===++
γγβα
,22222
92029)(
y===++
βγβα
,
22222
42529)(
z===++
αγβα
.
Assim,
576
222
=zyx
e xyz=24. Finalmente, obtém o volume xyz/6=4 da pirâmide. Este é
o último resultado que Descartes registra
nas
Cogitationes Privatae
.
Segundo Sasaki (p. 132), tentativas similares foram encontradas na obra
Miracula
arithmetica
(1622) de Johannes Faulhaber. O cálculo de Descartes sobre tetraedro
retangular é interessante: apresenta a simbologia obtida a partir da Álgebra
cossist
de
Clavius, em uma forma mais adequada.
As
Cogitationes Privatae
mostram que Descartes avançou além da
Algebra
de
Clavius, na simbologia e, principalmente, na resolução das equações cúbicas. Outro aspecto
importante é a tentativa de Descartes em estender o teorema de Pitágoras à Geometria
Sólida.
1.6 A Matemática do De Solidorum Elementis – Sobre Elementos Sólidos
Segundo Sasaki, Descartes esboçou um pequeno fragmento que Charles Adam
(1857-1940) datou como sendo do período de 1619 a 1621. Na opinião de Milhaud (1858-
1918), a data provável é o verão de 1619-1620, quando se supõe que Descartes visitou
Falhauber. Federico sugere o ano de 1630. Em seu recente estudo sobre Descartes,
entretanto, Sasaki sugere o período entre 1619 e 1623.
58
Seja como for, em 1676, Leibniz (1646-1717) copiou esse manuscrito, até então nas
mãos de Clerselier (1614-1684). O título dado por Leibniz ao manuscrito foi
Progymnasmata de solidorum elementiis excerpta ex manuscripta cartesii
(Exercícios
preliminares sobre elementos sólidos extraído do manuscrito de Descartes). Felizmente, o
manuscrito de Leibniz ainda existe na biblioteca de Niedersächsische Landesbibiliothek em
Hanover. Dois estudos significativos sobre ele apareceram: Pasquale J. Federico (1902-1982),
Descartes on polyhedra - a study of the Solidorum elementis
e
Descartes exercises pour
les éléments des solides-Essai em complément d´Euclide
, editado e traduzido por Pierre
Costabel (1912-1989). O trabalho póstumo de Federico fornece preciosos e precisos
comentários matemáticos. A monografia de Costabel é quase completa e definitiva,
principalmente a discussão sobre a Geometria Sólida de Descartes. O estudo sobre esse
trabalho cartesiano aqui leva em consideração o estudo de Pascale J. Federico.
1.6.1 Geometria sólida
O estudo de Federico é dividido em três partes. Na Parte I, Federico faz uma
introdução, em seguida trata da história do manuscrito e, finalmente, apresenta o
fac-símile
copiado por Leibniz e a transcrição do manuscrito para a língua inglesa. A Parte II é
sobre os elementos de Geometria sólida. Inicialmente, aborda alguns fundamentos
geométricos necessários ao entendimento do texto, depois traduz e comenta as passagens
do manuscrito e aborda alguns artigos de Euler (1707-1783) do período de 1750 e 1751.
A Parte III é sobre números poliédricos, aborda os números figurados dos gregos,
apresenta a tradução e os comentários necessários ao entendimento do texto e faz os
comentários gerais, uma espécie de fechamento. Mas aqui dividimos
De solidorum
elementis
em duas partes. A primeira parte é sobre Geometria Sólida e a segunda é sobre
números poliédricos.
Na Parte I são apresentadas seis proposições que apresentaremos a seguir e
começa com a definição de ângulo sólido reto e a afirmação de um teorema.
Um ângulo sólido reto é o que compreende a oitava parte da esfera,
embora não seja formado por três ângulos planos retos. Mas todos os
59
ângulos dos planos pelos quais é limitado, tomados juntos, são iguais a
três ângulos retos. (FEDERICO, 1982, p. 43-tradução nossa)
Federico oferece o seguinte comentário interpretativo:
A primeira sentença define a unidade de medida de ângulos sólidos, o
ângulo sólido reto, que intercepta na esfera um oitavo de sua área total. O
octante da esfera, formado por três planos mutuamente perpendiculares
com cada ângulo da face sendo um ângulo plano reto, é o ângulo sólido
unidade. Mas um ângulo sólido medindo uma unidade não precisa ser
formado por três ângulos planos retos; ele pode ser formado por três
ângulos planos, não necessariamente retos, ou por mais do que três ângulos
planos, desde que a área interceptada sobre a esfera seja um oitavo da
área total. ( FEDERICO, 1982, p. 43-tradução nossa)
Sobre a segunda sentença, Federico acrescenta:
[...]
é claramente falso que todos os ângulos da face limitando um ângulo
sólido reto somem três ângulos retos. [...] sua soma deve ser igual a três
ângulos retos se o ângulo sólido medir um ângulo reto no caso de um
ângulo triedral. [...] Para o caso geral, as fórmulas na página 39 mostram
que a soma é (2n-3)
37
, onde n é o número de lado do ângulo
sólido.(FEDERICO, 1982, p. 43-tradução nossa)
A área de um triângulo esférico ABC mede o ângulo sólido OABC e é igual a
soma de seus três ângulos menos dois ângulo retos, ou seja,
α
+
β
+
γ
- 2
. Generalizando-a
para um polígono com n lados que pode ser dividido em n-2 triângulos esféricos. A área
desse polígono é a medida do ângulo sólido correspondente que pode ser determinada
somando-se os triângulos esféricos assim obtidos. A área é então a soma de seus ângulos
menos 2(n-2) ângulos retos, ou seja,
α
+
β
+
γ
+
δ
+
ε
.... -2(n-2)
. No caso da esfera
unitária, esses ângulos
α
,
β
,
γ
,
δ
,
ε
, ... são iguais aos ângulos centrais correspondentes,
portanto, a soma dos ângulos centrais menos 2(n-2)
a medida do ângulo sólido. No
caso desse ângulo sólido medir uma unidade, isto é,
, a soma dos ângulos planos seria
igual a (2n-3)
.
Descartes, na seqüência, afirma o seguinte teorema que Federico chama de
proposição I:
Como em uma figura plana todos os ângulos externos, tomados juntos, são
iguais a quatro ângulos retos, assim em um corpo sólido que todos os
ângulos sólidos externos, tomados juntos, são iguais a oito ângulos sólidos
37
representa o ângulo de 90
0
.
60
retos. Por ângulo sólido externo quero dizer a dobra mutua ou inclinação
dos planos, que é para ser medido com a ajuda dos ângulos planos que
compreendem o ângulo sólido. Pois a parte pela qual a soma de todos
ângulos planos formando um ângulo sólido é menor do que quatro ângulos
retos que formam um plano, designa o ângulo sólido exterior. (FEDERICO,
1982, p. 44-tradução nossa)
Sobre esse teorema, Federico tece o seguinte comentário:
A proposição da primeira sentença foi uma novidade com Descartes. É
afirmada por analogia às figuras planas (polígonos convexos) e, sem
dúvida, Descartes a descobriu pelo argumento da analogia. Para o
polígono, a soma dos ângulos externos é igual a quatro ângulos retos
(4
), o círculo todo; assim também para o corpo sólido (poliedro convexo)
a soma dos ângulos externos é igual a oito ângulos retos (8
), a esfera
toda. Nenhuma prova é dada no manuscrito; [...] (FEDERICO, 1982, p. 44-
tradução nossa)
Descartes primeiro define o ângulo sólido reto e, então, afirma a proposição que a
soma de todos os ângulos sólidos externos de um poliedro convexo é igual a oito ângulos
sólidos retos, mas não fornece uma prova para esse teorema.
Outra afirmação, chamada de proposição II por Federico, nos diz que se
multiplicarmos quatro ângulos planos retos pelo número de ângulos sólidos e do produto
subtrairmos oito ângulos planos retos o que permanece será a soma de todos os ângulos
planos que estão na superfície do corpo sólido. Usaremos a seguinte simbologia, de acordo
com Federico: S para o número de ângulos sólidos, F para para o mero de faces, P para
o número de ângulos planos,
Σ
para a soma das medidas de todos os ângulos planos e
para o ângulo
π
/2 ou 90
0
, então a proposição pode ser escrita como
Σ
= (4S – 8)
.
Nenhuma demonstração é dada por Descartes, mas Federico a deduz: primeiro,
explica que a medida do ângulo lido externo é igual a 4
menos a soma dos ângulos
faces do ângulo sólido dado, depois, observando que cada um dos ângulos sólidos externos
pode ser obtido do mesmo modo, ou seja, é igual a quatro ângulos retos menos a soma
dos ângulos planos daquele ângulo sólido dado e, como todos os ângulos sólidos possuem
uma tal propriedade, somando então todos os ângulos externos e usando a primeira
proposição que diz que a soma de todos os ângulos externos é 8
e como teremos 4
vezes o número de ângulos sólidos, menos a soma de todos os ângulos planos no poliedro,
então, 8
= 4
S -
Σ
.
61
Na próxima seção, Descartes apresenta duas desigualdades, chamadas de proposição
III, por Federico, a saber, 2(S-2)
F e S/2 + 2
F, a primeira das desigualdades pode ser
deduzida observando que cada uma das faces têm no mínimo três ângulos e, portanto, a
soma dos ângulos deve ser maior ou igual que 2
, a soma dos ângulos de um triângulo.
Portanto, a soma total para as F faces deve ser igual ou maior que 2F
,
Σ
2F
, agora
usando a equação
Σ
= (4S 8)
, obtemos (4S 8)
2F
, ou 2S 4
F. A segunda
desigualdade também é obtida a partir da equação
Σ
= (4S 8)
, mas antes de passarmos
a explicação desse resultado, por Federico, é melhor atentarmos à explicação da quinta
proposição, pois é utilizada na explicação da segunda parte da III e da IV. A quinta
proposição afirma que o número de ângulos planos, de faces, e a soma dos ângulos planos
podem ser relacionados pela fórmula P = ( 4F +
Σ
/
)/2 ou
Σ
= (2P 4F)
. Esta fórmula
pode ser obtida da seguinte forma: seja n o número de ângulos planos de uma face, a
soma dos ângulos internos dessa face é 2(n-2)
= 2n
- 4
. Existem F (números de faces
de um poliedro) de tais expressões e adiconando-as obtemos que
Σ
é igual a 2
vezes
os n ângulos internos ou 2P
, onde P é o total de números de ângulos planos, menos 4
vezes o número de faces F, ou seja,
Σ
= (2P – 4F)
. Voltando à desigualdade F
(S + 4)/2.
Como P
3S, pois cada ângulo sólido deve ter três ou mais ângulos planos, o número de
ângulos planos deve ser no mínimo três vezes o número de ângulos sólidos. Assim,
podemos escrever 4F +
Σ
/
6S, substituindo nessa equação
Σ
= (4S – 8)
, otemos 4F + 4S
8
6S ou 2F – 4
S.
No parágrafo seguinte, Descartes argumenta que não existem mais do que cinco
poliedros regulares platônicos. Essa é a proposição IV, segundo Federico.
Como segue é provado que não pode existir mais do que cinco
corpos[poliedros] regulares: uma vez que se toma
α
para o número de
ângulos sólidos,
ϕ
para o número de faces, pode-se dividir (2
α
-4)/1
ϕ
e
(2
ϕ
-4)/1
α
de modo que não ocorra fração; caso contrário, é certo e
evidente que em um corpo regular não é possível. Mas isto é assim se
α
for 4, 6, 8, 12 e 20 e, respectivamente,
ϕ
for 4, 8, 6, 20 e 12 pelos quais são
gerados os cinco corpos regulares. (FEDERICO, 1982, p. 50-tradução nossa)
As duas fórmulas da citação são escritas por
a
F
S
=
42
, b
S
F
=
42
, onde a e b
são inteiros positivos. As duas equações são obtidas a partir da equação
Σ
= (4S 8)
e
62
das propriedades dos corpos regulares. A primeira é obtida notando que todas as faces
dos corpos regulares têm um número igual de ângulos, que se designa por n, a soma dos
ângulos para cada face é dada por 2(n-2)
e para todas as faces F a soma total é
Σ
=
2(n-2)F
, mas, por outro lado, já que
Σ
= (4S – 8)
e assim an
F
S
==
2
42
. A segunda
equação é obtida notando que todos os ângulos sólidos têm o mesmo número de ângulos
planos que designaremos por m e portanto P = mS, substituindo na equação
Σ
= (2P 4F).
, obtemos
.42
FmS
=
Comparando com a outra equação
Σ
= (4S 8)
, obtemos
2mS-4F=4S-8
ou .2
42
bm
S
F
==
Agora as duas equações são lineares em S e F e
podem ser resolvidas em função de a e b, .
4
48
,
4
48
ab
b
F
ab
a
S
+
=
+
= Portanto o produto ab
deve ser menor que 4 e maior que zero. As possíveis combinações para a e b são (a,b):
(1,1), (1,2), (2,1), (1,3) e (3,1), conseqüentemente, os resultados possíveis para (S, F) são
respectivamente (4,4),(6,8), (8,6), (12,20) e (20,12). Assim o número de ângulos (lados) em
cada face (n acima) e o número de ângulos planos em cada ângulo sólido acima (m
acima) podem então ser determinados e os cinco corpos construídos.
Obtemos a conclusão de Descartes que não existe mais do que cinco corpos
regulares. Tal resultado era conhecido na Grécia antiga, por exemplo, o encontramos em
Os Elementos
de Euclides, Livro XIII, proposição 8. A argumentação de Descartes sugere
uma dedução de um ponto de vista algébrico, pois seu argumento usa o fato de que a
divisão não pode ser uma fração.
A proposição VI, segundo Federico, é a fórmula relacionando o número de
ângulos planos, faces e ângulos sólidos, a saber P= 2F + 2S - 4. Esse tópico está relacionado
ao teorema atribuído a Leonhard Euler, a saber:
S A + F = 2
, onde
S
é o número de
vértice (ângulo sólido), A é o número de arestas, e
F
é o número de faces de um poliedro
convexo. Segundo Sasaki, Costabel concluiu, categoricamente, que Descartes descobriu essa
relação, mas, infelizmente, em nenhuma parte do
Solidorum Elementis
existe uma afirmação
explícita da relação
F+S=A+2
que Costabel afirmou existir no texto. Descartes afirma, no
manuscrito, que “Existem sempre duas vezes tantos ângulos planos como lados sobre a
superfície de um corpo sólido; pois um lado é sempre comum a duas faces.” (Federico,
63
1982, p. 54). Se combinarmos isto com a afirmação de que o número de ângulos planos é
422
+
α
ϕ
ou P= 2F + 2S - 4, certamente obtemos a fórmula de Euler.
Sobre essa questão Lakatos (1922-1974) em uma nota de rodapé de seu livro faz
o seguinte comentário:
Observado pela primeira vez por Euler[1758
a]. Seu problema original era
a classificação de poliedros, cuja dificuldade foi acentuada no sumário
editorial: “Enquanto em Geometria plana os polígonos (figurae rectilineae)
podiam ser classificados muito facilmente de acordo com o número de
lados, o qual é evidentemente sempre igual ao número de seus ângulos,
em estereometria a classificação dos poliedros (corpora hedris planis
inclusa) representa problema muito mais difícil, visto que somente o
número de faces é insuficiente para esse fim.”
A chave para o resultado de Euler foi a invenção dos conceitos de
vértice e aresta: foi ele quem primeiro observou que, além do número de
faces, o número de pontos e linhas na superfície do poliedro determina o
seu caráter (topológico). É interessante que ele tenha estado ansioso por
acentuar a novidade de sua estrutura conceitual, e que tenha inventado os
termos acie” '(arestas) em vez do antigo latu” '(lado), visto que latus era
um conceito poligonal, ao passo que ele queria um conceito poliedral. Por
outro lado, mantinha o termo angulus solidus para os seus vértices em
formato de pontas. Tem sido recentemente admitido que a prioridade do
resultado cabe a Descartes. A base para isso é um manuscrito de
Descartes [c.1639] copiado por Leibniz, em Paris, do original em 1675-6,
redescoberto e republicado por Foucher de Careil em 1860. A prioridade
não deve ser atribuída a Descartes sem restrições. É certo que Descartes
declara que o número de ângulos planos iguala
422
+
α
ϕ
em que por
ϕ
ele entende o número de faces e por
α
o número de ângulos sólidos.
Certo é também que ele declara haver duas vezes mais ângulos planos
que arestas (latera) . Essas declarações conjuntas, evidentemente dão a
fórmula de Euler. Mas Descartes não chegou a esse ponto, visto que
pensava ainda em termos de ângulos (planos e sólidos) e faces, e não fez
uma alteração revolucionária consciente dos conceitos de vértices não
dimensionais, arestas unidimensionais, e faces bidimensionais como base
necessária e suficiente para a plena caracterização topológica de poliedros.
Euler testou a conjectura a fundo pelas conseqüências. Conferiu-a para
prismas, pirâmides, etc. Podia ter acrescentado que a proposição de que
existem apenas cinco corpos regulares é também conseqüência da
conjectura. Outra conseqüência suspeitada é a proposição até aqui
corroborada de que quatro cores são suficientes para colorir um
mapa.(LAKATOS, 1978, p. 20).
Se Descartes viu ouo a relação, é difícil afirmar, mesmo com a argumentação a
favor de Euler feita por Lakatos. Seja como for, a afirmação de Lakatos é como a
metáfora que Bicudo faz entre o historiador e o equilibrista.
64
E o historiador, então, assemelha-se a um equilibrista que andasse em
corda bamba, presa a dois altíssimos pólos distantes, sem ter por baixo a
rede protetora que lhe amorteça a possível queda. Esse é o risco que
assume ao tratar de encaixar os cubos certos que fazem gravuras na
história, com os poucos fragmentos que o tempo, esse deus voraz, não
consumiu. (BICUDO, 2004, p.58)
Voltando agora para a proposição VI: P= 2F + 2S 4. Ela pode ser obtida
combinando as duas equações: (4F +
Σ
/
)/2 = P e
Σ
= (4S-8)
.
Podemos afirmar, do exposto até agora sobre geometria lida, que Descartes tinha
um bom conhecimento da Geometria Sólida, embora muitos resultados discutidos por ele já
fossem conhecidos pelos gregos. Mas, mesmo assim, como vimos, o teorema sobre soma
dos ângulos externos de um poliedro convexo é uma novidade apresentada, embora não
apresente uma demonstração desse fato. Em contra partida, Descartes apresenta-o sob o
argumento da comparação, tal como a soma dos ângulos externos de um polígono convexo.
Nota-se também, a partir desse exemplo e de outros que serão apresentados, que
Descartes, em muitos casos, tenta generalizar os resultados, partindo do simples para o
complexo. Não se deve deixar de mencionar que no caso dos cinco poliedros de Platão o
argumento cartesiano é algébrico e abstrato. O ponto fundamental do raciocínio é pensar
que as divisões devem resultar em inteiros positivos o que lhe permite obter o resultado
desejado. Passaremos agora a segunda parte do
De solidorum elementis
que trata dos
números figurados.
A meta da parte dois do
De Solidorum Elementis
é mostrar como calcular
números poliédricos e estudar suas propriedades. Mas Descartes primeiro mostra como
encontrar números poligonais.
Sólidos
38
são antes de tudo formado por superposição de gnomos tendo
sempre um ângulo vago, e dos quais a figura toda pode ser decomposta
em triângulos. Do que é facilmente reconhecido que os pesos[número de
pontos] de todos os polígonos são obtidos pela multiplicação dos
triângulares pelos números 2, 3, 4, 5, 6, etc. e subtraindo do produto 1, 2, 3,
38
“A sentença está corretamente traduzida, de acordo com o manuscrito, mas apresenta uma dificuldade no
significado. Isto é por causa da palavra “solida” (sólidos) que faz a frase de abertura inconsistente com o
resto da sentença e do parágrafo, que é sobre triângulos e polígonos. A dificuldade desaparece se é assumido
que “solida” é um erro de cópia para “plana”(planos) no manuscrito original, e esta posição é tomada aqui
para o propósito de simplificação das explicações. (FEDERICO, 1982, p. 93).
65
4 raízes[número de lado do polígono], etc. (FEDERICO, 1982, p. 92-tradução
nossa)
Números poligonais são calculados, de acordo com a orientação dada por
Descartes, adicionando pontos sobre os gnomos (que constituem uma progressão aritmética)
ou dividindo o dado polígono em triângulos. Os números pentagonais, por xemplo,
consistem de 3 (5-2) números triangulares, mas 2 (5-3) lados comuns são contados duas
vezes. Assim, o número de pontos é 3 vezes o número de pontos do número triangular
correspondente, menos duas vezes o número de pontos no lado comum. Generalizando
esse procedimento para o n-ésimo a-gonal número p(a,n). Federico fornece a fórmula
p(a,n)= (a-2)p (3,n) – (a-3)n
. Os números triangulares são calculados por meio da seguinte
fórmula:
p(3,n)=n(n+1)/2
. A palavra raiz no texto significa n na fórmula acima. Descartes
refere-se ao número de pontos como o peso.
Números poligonais podem ser divididos em números triangulares assim como
um poliedro pode ser dividido em pirâmides. Descartes se mostra bem habituado com
números piramidais e como são obtidos.
O poliedro é dividido em pirâmides, como os polígonos são divididos em
triângulos, para obter seus pesos. Isto é portanto necessário para obter as
fórmulas (pesos) para cada série de números piramidais. O método de
Descartes de obtenção desses pesos, como descrito no parágrafo 30, 31, e
32, é feito em duas etapas. (1) adicione n/2 à fórmula do polígono da base,
(2) multiplique o resultado por (n+1)/3. Afirmado como uma fórmula, isto
é,
,
3
)1(
).
2
),((),(
+
+=
n
n
napnaP
onde a é o número de lados da base. Como Descartes chegou nesta
expressão para a fórmula geral para um número piramidal não é evidente.
(FEDERICO, 1982, p. 99-tradução nossa)
Assim, o procedimento de Descartes para calcular os números piramidais é dado
pela fórmula a seguir, mas sem nenhuma explicação adicional.
3
)1(
).
2
),((),(
+
+=
n
n
napnaP
66
Os números piramidais eram conhecidos pelos gregos e por alguns
matemáticos do fim do século XVI e início do século XVII, como Johannes Faulhaber e
Petrus Roth. Tudo indica que Descartes foi inspirado pelos trabalhos desses dois últimos,
segundo Aczel, documentos recentes comprovam que Descartes manteve contato com pelo
menos um deles, Faulhaber.
De Solidorum Elementis
também sugestiona que houve, por parte de Descartes,
uma tentativa em algebrizar a Geometria Sólida, embora não temos mais nenhuma
comprovação ou relatos sobre Geometria Sólida nas suas obras posteriores.
Sob o ponto de vista metodológico, Descartes tinha anunciado ter o projeto
para reformar as Ciências, algumas técnicas apresentadas são interessantes e podem ser
conectadas com seu método, como é o caso do raciocínio por dedução e analogia que foi
empregado na argumentação da propriedade de que a soma dos ângulos externos de um
poliedro convexo é 8
. Foi com base no resultado equivalente para polígonos convexos
que Descartes chegou a esse resultado. Em seus escritos é comum usar a indução bem
como a analogia para explicar fatos científicos. Nesse exemplo de raciocínio, Descartes
parte, em muitos casos, do mais simples para o mais complexo. Descartes parte dos
números figurados para construir os números poliédricos, embora fossem conhecidos
pelos gregos. Basicamente, como seu método indica, devemos partir de idéias claras e
distintas e depois por dedução atingir idéias mais complexas, ou seja do simples para o
mais complexo.
Depois do
De Solidorum Elementis
,
Descartes engajou-se no projeto que chamou
de
Álgebra
,
que incorporou a idéia de reforma da Ciência anunciada em 1619. Descartes
foi amadurecendo o seu pensamento, paulatinamente, e as principais idéias foram reunidas
na sua principal obra,
O Discurso do Método
, em 1637. A
Álgebra
de Descartes contém
traços perceptíveis no
Discurso
e nos ensaios.
1.7 A Velha Álgebra
Em outubro de 1628, Descartes visitou Isaack Beeckman em Dordrecht e nesse
encontro, segundo anotações de Beeckman, Descartes fez referência a um manuscrito
67
intitulado
Álgebra
39
, onde incorporou o seu projeto de 1619 para reformar toda a
Matemática da época. Beeckman tomou nota das palavras de Descartes e, posteriormente,
as publicou em seu diário com o título:
A Certain Especimen of Descartes´s Álgebra
(Uma certa espécie da Álgebra de Descartes), neste encontro, Descartes, agora com 33
anos, fala de suas atividades durante o período de 1619 a 1628 correspondente ao período
que passou viajando e diz ter alcançado um conhecimento perfeito em Geometria e
Aritmética que poderia, eventualmente, abranger todo o conhecimento humano.
Depois de tecerem elogios mútuos, a nota mostra a tentativa de Descartes em
superar o problema da dimensionalidade e unificar a Aritmética e a Geometria, propondo
três diferentes formas para representar quantidades algebricamente :
[...]As três maneiras dependem de como a unidade é representada. (1) Se
pensamos a unidade como tendo comprimento e largura, a representamos
por meio de um quadrado ; (2) Por um ponto, . , se a consideramos como
sendo uma quantidade numérica discreta; (3) Por uma linha, - , se a vemos
como tendo somente comprimento[...] (SASAKI, 2003, p. 163-tradução
nossa)
Nota-se que o caminho tomado por Descartes, para superar a questão da
dimensionalidade, foi transcorrido lentamente, já que essa concepção de unidade será
repetida na Regra XV das
Regras para a Direção do Espírito
, de uma forma mais clara.
Mas em
A Geometria
, Descartes adota como unidade, o segmento unitário que associada
com certas mudanças estruturais permitirão superar a questão com sutileza.
Em seguida, segundo Beeckman, Descartes tenta dar sentido a dimensões maiores
que três.
Para realizar isto, ele primeiro identifica um cubo ordinário de três
dimensões com um cubo de madeira. Em seguida, ele identifica quatro
dimensões com um cubo de pedra, cinco dimensões com um cubo de
ferro e assim sucessivamente. Quanto maior o número de dimensões do
objeto, mais peso o objeto ganha. (SASAKI, 2003, p. 164-tradução nossa)
Com isso ele pretendia dar à questão da dimensão um significado concreto.
39
De acordo com o inventário de Stockholm, o manuscrito Álgebra tinha 155 páginas e tratava
dos fundamentos da álgebra. Segundo avaliação de Sasaki, a velha álgebra tinha outras questões
Matemáticas, além daqueles contidos nos fragmentos de Beeckman. Não uma data precisando o
ano que a obra fora escrita.
68
Na seqüência, Beeckman apresenta como Descartes resolveu a equação quadrática,
tomando como exemplo a equação:
76
2
+= xx
. O método apresentado é muito restrito, na
verdade, é equivalente ao método de completar os quadrados, limitando-se à análise das
raízes positivas. O método era ineficaz quando a equação possuia raízes irracionais.
Segundo Beeckman, Descartes tinha consciência da limitação de seu método. Os números
irracionais, naquele momento, eram concebidos por Descartes como números escritos na
forma
a
, onde
a
é um número racional que não é um quadrado perfeito. Assim, um
número irracional
ab
= pode ser reescrito como
ab =
2
, assim, representava os números
irracionais por meio de uma parábola, Descartes refere-se a esses meros como números
surdos. Os números positivos eram chamados verdadeiros(
verus
), os negativos de
implícitos(
implicitus
) e para os imaginários(
imaginarius
) não havia outra notação. Descartes,
segundo Beeckman, refere-se também a regra que posteriormente seria chamada de “a
regra dos sinais de Descartes”. Esses fragmentos foram melhorados e apresentados em uma
forma consistente em
A
Geometria
de 1637, conforme apresentaremos no Capítulo III.
Em
A Velha Álgebra
, Descartes ainda permanece usando a simbologia
cossist
, mas
abandonou os compassos presentes nas
Cogitationes Privatae.
No encontro com Beeckman, Descartes discutiu outros temas como música e
óptica. Várias ginas do diário de Beeckman foram dedicadas aos assuntos:
Angle of
Refraction Explained by Descartes
(Ângulo de refração explicado por Descartes),
The Ratio
of Thickness of Musical strings
(A razão da espessura das cordas musicais), e
To Burn
Very Remote places by Solar Rays
( Queimar lugares muito remotos através de raios solares).
outros fragmentos do período que poderiam fazer parte da velha Álgebra, a
saber:
An Ellipse in Which All Parallel Rays Converge in Point of a Denser
Medium
(Uma elipse na qual todos os raios paralelos convergem em um ponto de um
meio mais denso),
A Hyperbola through Which Rays Convege into One Poin t
(Uma
hipérbole pela qual os raios convergem em um único ponto) e
The Part of the Ellipse
through Which Rays in the Air Exactly Converge
(A parte da elipse em que os raios no
ar convergem exatamente).
Beeckman escreve em seu diário uma nota intitulada
A hyperbola through which
rays Converge into one point
(Uma hipérbole em que os raios convergem em um único
ponto): “Em 1 de fevereiro de 1629 em Dordrecht M. Descartes tinha deixado esta
69
proposição sobre hipérbole sem demonstração e pediu-me para demonstrá-la; como eu a
descobri, ele ficou agradecido e julgou que ela era autêntica.” Sasaki (2003, p. 167). A
demonstração de Beeckman, segundo Sasaki (2003, p. 169), foi incorporada no discurso
VIII de
A
Dióptrica
de Descartes. A solução de tal problema permitirá Descartes construir
o espelho hiperbólico que reflete os raios incidentes paralelos ao eixo sobre o foco.
Nas notas de Beeckman, para o período de 1628-1629, há outros fragmentos sobre
Matemática:
It is demonstrated that one can find two mean proportionals by means of a
parabola
demonstrado que se pode encontrar duas médias proporcionais por meio de
uma parábola) e como resolver uma equação quadrática com a ajuda de uma parábola. O
primeiro problema está intimamente relacionado com o da duplicação do cubo e foi um
desafio para os matemáticos do século XVI e XVII. Mersenne foi informado sobre a
solução de Descartes no verão de 1625 e a incorporou em
Harmonicorum libri
publicada
em Paris, em 1636. De acordo com Mersenne (1588-1648), Descartes resolveu esse
problema por meio da intersecção de uma parábola e um círculo. A solução de Descartes
foi comunicada à vários matemáticos por Mersenne. Claude Mydorge (1585-1647) foi um
dos que responderam apresentando uma solução mais geral e mais completa do que a de
Descartes. Em ntese, Mydorge constrói uma parábola e um círculo e chega na proporção
contínua,
BG : ED = ED:AE = AE:BH
. Descartes reescreve a solução de Mydorge em uma
simples fórmula algébrica e a incorpora no Livro III da Geometria de 1637.
No segundo problema, Descartes resolve equações do tipo
cbzazz +±±=
24
. Essa
idéia foi desenvolvida e, posteriormente, incorporada em
A
Geometria
, em uma longa seção
no Livro III. Segundo Beeckman, Descartes considera essa descoberta a mais importante de
sua carreira (até aquele momento) e que ninguém tinha, até então, descoberto algo o
notável. Em
A
Geometria
de 1637, ele afirma que essa regra é tão e tão completa como se
poderia explicitar.
Muitos desses tópicos foram melhoradas e coligidos em
A
Geometria
e em
A
Dióptrica
de 1637. No fim de 1628, Descartes possuía: as regras básicas aplicáveis a
quantidades algébricas e geométricas, a teoria matemática da refração por lentes com a
forma de seção cônica, o método para encontrar duas médias proporcionais por meio de
uma parábola, o método para resolver equações cúbicas e quadráticas por meio de uma
parábola. As anotações de Beeckman sobre Descartes comprovam que quando Descartes
70
escreveu
O Discurso do Método
e os seus ensaios, boa parte do seu conteúdo tinha sido
pensado. Podemos encontrar esses traços principalmente em
A Dióptrica
e em
A
Geometria
.
1.8 Descartes: um homem e seu tempo
Nas páginas nteriores procuramos mostrar a influência dos antigos e dos seus
comtemporâneos sobre a formação inicial de Descartes e que o ambiente em que
Descartes prosperou foi fundamental para que conhecesse os tipos de problemas que
estavam sendo estudados, além de adquirir uma gama de conhecimento por intermédio de
seus contatos com eruditos em La Flèche, com as obras de obras de inestimável valor
científico como
Os
Elementos
de Euclides,
O
Tesouro da Análise
de Papus,
A
Aritmética
de Diofanto, as obras de Aristóteles, de Arquimedes, de Clavius, entre outras, e de seu
contato com Beeckman, entre vários sábios de seu tempo.
Foi assim que Descartes obteve a sua formação inicial, vivendo num período
marcado por fortes transformações nos diversos níveis do saber, além de transformações
sociais e econômicas que culminaram na hegemonia européia perante o mundo, também
contribuiu para a derrocada de velhos paradigmas: a Ciência aristotélica, a simbologia
algébrica, a Geometria grega e, ao mesmo tempo, instalou seu projeto, inovando em diversas
áreas do conhecimento, especialmente Filosofia Natural e Matemática, conforme
mostraremos isso nos próximos capítulos.
Sobre o ensino em La Flèche o próprio Descartes, posteriormente, deu opinião
sobre a sua formação e encontramos algumas citações em suas obras que demonstram a
sua impressão sobre o ensino que recebera. Em
O
Discurso do método
faz referências
explícitas sobre o ensino em La Flèche e a primeira delas ressalta a sua decepção com o
ensino das humanidades.
Entretanto, ele relata a importância do ensino em La Flèche à sua formação,
demonstrando ter uma consciência bastante abrangente da importância da questão da
herança cultural, da Teologia, da Filosofia, Jurisprudência, Medicina e outras Ciências, mas,
ao mesmo tempo, não escondia que era necessário modificá-las. Entretanto, segundo ele, foi
necessário conhecer novas culturas para melhorar o seu julgamento, continua relatando que
71
apreciava a eloqüência e era apaixonado pela poesia, mas o domínio dessas artes eram
dom do espírito.
Descartes demonstra insatisfação também com algumas áreas do currículo de La
Flèche, principalmente com as humanidades. Mas sua insatisfação vai além e afirma
admirar as Matemáticas, mas, segundo ele, elas não apresentam utilidades práticas e, desse
modo, era um conhecimento estéril, sem utilidade, mas que gozava da regra da certeza.
Essa certeza o inspirará e associada com o método analítico colocará o seu projeto a
frente de seu tempo, incorporando a certeza do argumento matemático ao método para
construir os fundamentos de uma nova Ciência. Assim, parte em uma viagem solitária e irá
buscar no mundo e, em si, respostas às dúvidas que a Ciência tradicional não conseguia
responder.
Constatamos também que, nessa fase inicial, Descartes desenvolveu algumas
atividades importantes que serão consolidadas nos períodos seguintes e apareceram de
forma madura na sua primeira obra oficial,
O Discurso do método.
Durante essa fase
inicial, Descartes resolveu muitos problemas, principalmente aqueles relacionados a luz e
suas propriedades.
CAPÍTULO II: O MÉTODO DE ANÁLISE E SÍNTESE DOS ANTIGOS
GEÔMETRAS GREGOS
Neste capítulo monstraremos que Descartes foi um usuário do método de análise
e síntese dos antigos geômetras gregos, estabelecendo-o na base de seu sistema
filosófico/científico. Descartes readapta e apresenta o método como uma ferramenta capaz
de abordar os problemas científicos de sua época. Mostra-se também que o método de
análise e ntese dos antigos geômetras gregos é a principal influência da Matemática
sobre o seu pensamento.
O método de análise e síntese, concebido na Grécia antiga, revelou-se, ao longo da
história da Ciência e da Filosofia, uma poderosa ferramenta para resolver problemas,
principalmente nas Ciências Matemáticas. Encontramos aplicações e descrições do método
nas obras dos principais matemáticos e filósofos gregos, como Arquimedes, Herão, Papus,
Diofanto, Aristóteles e Platão.
72
No mundo islâmico, continuando a tradição grega, o método foi importante às
atividades de pesquisa, mas com modificações relevantes.
No princípio da Matemática moderna destaca-se François Viète que reconstruiu o
método para descobrir e provar proposições Matemáticas introduzindo, assim, uma reforma
radical na Matemática de sua época.
É nas
Regras
que Descartes expõe o seu projeto reformador da Ciência,
apresentando o método de análise e síntese dos antigos geômetras gregos para resolver
problemas, então em aberto, afirmando que iria estendê-lo a outros campos do
conhecimento humano, além da Matemática. Desse modo, o método é apresentado como
método geral. Ele menciona que não pretende repetir os velhos cálculos dos aritméticos e
dos geômetras, observando que a forma com que a Aritmética e a Geometria eram
expostas, na Antiguidade e em seus dias, não ofereciam nada de novo aos eruditos e até
assustavam aqueles que não conseguiam apreendê-las. Mas Descartes reconhece que foi
necessário, na Antigüidade, para se estudar Filosofia, estudar Matemática concomitantemente,
pois, os antigos tratavam uma Matemática muito diferente daquela de seus dias. De fato, a
Matemática grega estava fortemente ligada a Geometria e os antigos geômetras gregos
utilizavam o método de análise e síntese aplicando-o a Geometria. A Matemática de seus
dias era bem diferente, pois os modernos, a partir de Viète, dedicaram-se a outros temas,
entre eles a análise algébrica. Descartes afirma, nas
Regras
e no
Discurso
, que rudimentos
dessa arte, o método de análise e síntese, poderiam ser encontradas em Papus e Diofanto
e ainda menciona que, em sua época, o método estaria sendo ressuscitado por alguns
homens talentosos. O principal personagem responsável por isso é, sem vida, François
Viète. Mas, diversos outros matemáticos, segundo Sasaki, estiveram envolvidos no projeto
de ressuscitar o método analítico nesse período, entre eles Petrus Ramus, Willebrol Snell,
Marino Ghethaldi, Jean Beaugrand (c. 1595-c.1640).
A contra-partida dos modernos começa com a Ciência e a Filosofia gregas, isto é,
analisando a produção grega e as novas necessidades exigidas, as questões a serem
resolvidas indicavam que a Ciência devia seguir um novo curso. Quanto a Filosofia, em
sua época, os ideais aristotélicos estavam presentes em quase todas as áreas do saber, o
currículo das escolas jesuítas era fortemente embasado por esses ideais, como discutido
anteriormente. Mas Descartes irá refutar esses ideais aristotélicos.
73
Descartes se contrapõe a Geometria grega euclidiana, pois enquanto Euclides se
preocupa com o rigor da demonstração no estilo sintético, ele se preocupa com a
heurística, a análise, para depois estabelecer a síntese. A metodologia de Descartes é muito
diferente de Euclides, para se ter uma idéia. não encontramos nas obras matemáticas
cartesianas nenhum teorema demonstrado no estilo euclidiano, pois o que fez foi
estabelecer um método que, associado com novos conceitos, permitiu-lhe avançar além da
matemática grega, embora tenha usado pressupostos da própria Ciência grega.
Como Descartes se diz um usuário do método de análise e síntese dos antigos
geômetras gregos, propomo-nos, nas ginas seguintes, fazer uma discussão sobre esse
método, a partir dos gregos até Descartes, passando pela interpretação de François Viète.
Com efeito, inicia-se avaliando os trabalhos de Papus de Alexandria, e Diofanto de
Alexandria. De fato, nestes notáveis geômetras encontra-se vestígios desse método, e em
Papus, a sua mais clara descrição. Com isso, pretendemos mostrar que existe uma ligação
direta entre os trabalhos desses autores, culminando na criação da análise álgebrica
cartesiana.
Apresentamos também uma discussão moderna sobre esse método, pois ela
esclarece, e praticamente define, uma interpretação às diversas versões e desentendimentos,
suscitadas a partir da descrição de Papus. Essa discussão foi amplamente divulgada e
diversos artigos publicados, cada qual tentando dar sua interpretação desse método e
apontando certos erros em outras interpretações. A discussão foi praticamente encerrada
com a publicação do trabalho de Hintikka e Remes,
The Method of Analysis
( O método
de análise).
vestígios do método de análise e síntese nos trabalhos de Bacon (1561-1626),
Galileu, Newton (1642-1727), Leibniz e Kant (1724-1804), chegando até nossos dias através
dos trabalhos do matemático húngaro Polya (1887-1985). Começamos o estudo sobre o
método analítico avaliando a sua concepção em Papus.
74
2.1 Uma síntese do Livro VII de A Coleção Matemática de Papus de Alexandria
A Idade de Ouro da Geometria grega, dominada pelos grandes geômetras, como
Euclides, Arquimedes e Apolônio de Perga, entrou em declínio no início da era cristã.
Lentamente, as obras desses geômetras perderam prestígio, embora outros geômetras
continuassem a manter viva a tradição da Geometria grega. No começo da era cristã,
estabelece-se uma tradição cultural diferente, exceto em esférica e Astronomia, com
Menelau e Ptolomeu, respectivamente, a produção Matemática, segundo Heath, passa a ser
limitada à produção de alguns poucos livros de qualidade duvidosa. O estudo das
geometrias superiores enfraqueceu ou até ficou em desuso. Mas Papus, que viveu no fim
do século III de nossa era, revive o interesse pelo assunto. A importante tarefa que se
propôs, Papus, a fazer foi restabelecer a Geometria grega em seu plano mais elevado.
Nesse sentido, seu trabalho
A Coleção Matemática
, tem um inestimável valor acadêmico,
científico e histórico, constituindo, ao lado dos grandes clássicos, a mais importante de
nossas fontes sobre a Antigüidade.
A Coleção Matemática
, segundo Heath, constitui-se um manual à Geometria grega
e foi planejada para ser lida juntamente com os trabalhos originais. Nos trabalhos incluídos
no Livro VII,
O Tesouro da Análise
, existe uma introdução geral, seguida por uma breve
descrição dos conteúdos, com lemas, designados para facilitar a leitura dos tratados. Onde
a história de um assunto é dada, como o problema da duplicação do cubo ou de
encontrar duas médias proporcionais, as várias soluções são reproduzidas, presumivelmente
porque não eram facilmente acessíveis; na melhor das hipóteses tinham que ser coletadas
de várias fontes. Quando é descrito um resultado clássico, usa-se a oportunidade para dar
métodos alternativos, ou para fazer melhorias nas demonstrações e até generalizá-las. Papus
demonstra uma completa compreensão sobre todos os assuntos tratados e sobre a técnica
aplicada. O estilo é conciso e claro e na opinião de muitos autores, Papus coloca-se como
um matemático realizado e versátil, um representante digno da clássica Geometria grega.
Uma característica interessante na obra de Papus é a imensa lista de autores
mencionados no curso do livro. Euclides, Arquimedes e Apolônio são constantemente
citados, outros são mencionados por alguma realização particular, e, em muitos casos, a
menção de um nome por Papus é tudo que sabemos sobre aquele geômetra ou filósofo.
75
Para os objetivos deste trabalho, o Livro VII é o mais importante e é considerado
também como a melhor fonte descrita dos livros antigos formando o que era chamado
O
Tesouro da Análise
. Desse modo, dedicamos a próxima seção a uma análise mais profunda
sobre o método de análise e síntese, começando com a descrição de Papus. Antes porém,
faremos um apanhado geral do Livro VII.
O Livro VII começa definindo a análise e síntese dos geômetras gregos, arrola os
trabalhos pertencentes ao tesouro da análise, descreve os tratados, a antecipação do
teorema de Guldin (1577-1643), apresenta os lemas para os diferentes tratados, lemas para
Seção Determinada de Apolônio, lemas sobre as Inclinações de Apolônio, lemas sobre
Os
Contatos
de Apolônio, lemas para os locais planos de Apolônio, lemas para
Os Porisms
de Euclides, lemas para
As Cônicas
de Apolônio, lemas para o lugar de superfície de
Euclides e um lema sem conexão com os anteriores.
Papus fala sobre uma passagem de
As
Cônicas
de Apolônio, a saber: o lugar
geométrico de um ponto em relação a três ou quatro retas. Dadas três ou quatro retas e a
partir de um ponto são traçadas retas fazendo ângulos fixos com as retas dadas, ao mover
o ponto, mantendo os ângulos fixos, o que se obtém é uma cônica. Papus prossegue
afirmando que podemos ter o local com referência a cinco ou seis retas ou até mais
retas. Supondo que existam cinco ou seis retas e que p
1
,...,p
5
ou p
1
,...p
6
sejam os
comprimentos das retas traçadas de um ponto para se encontrarem com as cinco ou seis
retas em ângulos dados. Então, no primeiro caso teremos p
1
.p
2
.p
3
= k. p
4
.p
5
, e no segundo
caso p
1
.p
2
.p
3
= k.p
4
.p
5
.p
6,
k é um fator de proporcionalide. O lugar do ponto é, em cada
caso, uma certa curva dada em posição. Segundo Papus, a relação não deve ser da mesma
maneira se existisse mais de seis retas, pois existem somente três dimensões em
Geometria, embora certos escritores falem de um retângulo multiplicado por um quadrado
ou um triângulo sem dar qualquer explicação de como isso pode ser realizado, aludindo-
se à prova de Herão para a área do triângulo em termos de seus lados. Mas o sistema
de proporção composta possibilita o resultado qualquer que seja o número de retas. A
investigação dessas curvas não tinha atraído a atenção de homens brilhantes, como os
velhos geômetras e os melhores escritores. Por esse relato de Papus, notamos claramente
que a não aceitação de dimensões superiores a três impediram os gregos de avançarem,
teoricamente, rumo à construção de uma Matemática mais poderosa. Esse problema foi
76
importante para Descartes, pois por sua resolução, adquiriu confiança no seu método e
anunciou que, pela Geometria, o seu método poderia ser melhor entendido, conforme
mostraremos. Convém salientarmos que o problema de Papus para três e quatro retas foi
resolvido pelos gregos.
2.2 Uma discussão moderna
O chamado
O Tesouro da Análise
tem suas fontes básicas nos trabalhos de
Euclides, Aristeu o velho e Apolônio. O livro é dedicado a seu filho Hermodoro e
direcionado aos estudantes mais avançados, aqueles que possuem uma certa
familiaridade com os elementos comuns e que agora pretendem aprofundar seus
conhecimentos:
O chamado “Tesouro da Análise”, meu filho Hermodoro, em resumo, é
uma matéria particular para os que querem, depois da produção dos
elementos comuns, tomar a si a faculdade inventiva, (de resolver) nas
linhas, os problemas apresentados a eles, e sendo útil para isso apenas. E
foi escrita por três homens, Euclides, o autor dos Elementos, e Apolônio de
Perga, e Aristeu, o mais velho, a abordagem sendo segundo a análise e a
síntese. (BALIEIRO, 2004, p. 66 )
Em seguida, Papus começa a descrição do método:
A análise, com efeito, é o caminho a partir do que é procurado, como
aceito, através das suas sucessivas conseqüências
40
, até algo aceito pela
síntese. (BALIEIRO, 2004, p. 66 )
Podemos interpretar o que está descrito aqui como um processo de supor o
resultado desejado como verdadeiro e buscar, através de suas implicações, algo admitido
como verdadeiro ou válido, podendo ser um teorema já conhecido ou um axioma.
emissaCBAsultado Pr....Re
.
40
Através de suas sucessivas conseqüências. Muitas vezes essa é traduzida por seus concomitantes, por
exemplo, Hintikka e Remes(p. 29). Como veremos, reside o motivo de muitas interpretações discordantes
sobre o método.
77
A síntese, revertendo a ordem das implicações, deve chegar no resultado desejado.
Supondo que os passos da cadeia de raciocínio sejam reversíveis, o resultado segue:
emissaCBAsultado Pr...Re
A próxima descrição, entretanto, parece indicar que não são conseqüências do
resultado desejado que se procura, mas seus possíveis antecedentes:
Pois na análise, tendo (nós) estabelecido a coisa procurada como
acontecida, consideramos isso a partir do qual esta resulta, e, de novo, o
precedente daquela, até que, assim voltando sobre nossos passos, cheguemos
a alguma das coisas já conhecidas ou que tem a ordem dos primeiros
princípios; e essa abordagem chamamos análise, como solução em sentido
contrário. Enquanto que, na síntese, ao contrário, supondo o que foi
deixado, por último, na análise, acontecido, e tendo arranjado como
conseqüências as coisas então precedentes, segundo sua natureza, e tendo
adicionado uma às outras, chegamos por fim, à construção da coisa
procurada; e chamamos isso síntese. (BALIEIRO, 2004, p.66 )
A passagem parece indicar que, estabelecendo o resultado desejado como
verdadeiro, deve-se procurar uma proposição que poderia implicar o resultado e depois
encontrar outra proposição que implicasse a anterior e assim, sucessivamente, até
chegarmos num resultado conhecido como verdadeiro, um axioma ou um teorema, a
síntese segue a seqüência:
emissaCBAsultado Pr...Re
A passagem deu margens a diversas interpretações, é de fato complicada e deu
início a um longo debate. Antes nos deteremos um pouco mais nas descrições oferecidas
no Livro VII.
Papus descreve, posteriormente, a lista dos trabalhos no tesouro da análise:
E dos livros antes do tesouro da análise, o arranjo é como segue. Um
livro dos Data de Euclides, dois da Seção de uma Razão de Apolônio,
dois de Seção de Área, dois de Seção Determinada, dois do Contato, três
dos Porisms de Euclides, dois das Inclinações de Apolônio, dois dos
Lugares Planos do mesmo, oito das Cônicas, cinco dos Lugares Sólidos de
Aristeu, dois dos Lugares à Superfície de Euclides, dois Acerca das Médias
de Eratóstenes. São 33 livros, dos quais te expus, para exame, os conteúdos
78
até das Cônicas de Apolônio, e a multitude dos Lugares e das condições
de possibilidade e dos casos, segundo cada livro, mas também os lemas
procurados e nenhum inquérito no tratamento dos livros deixei para trás,
como pensava. (BALIEIRO, 2004, p.67 )
Cita também os livros com assuntos pertinentes à análise:
Os livros com assuntos pertencentes ao campo da análise apresentam-se
na seguinte ordem: o livro único dos Data de Euclides; os dois livros da
Secção da Razão, os dois da Secção da Área, os dois livros da Secção
Determinada e os dois livros de Contatos de Apolônio; os três livros dos
Porisms de Euclides; os dois livros de Inclinações de Apolônio; os dois
livros dos Lugares Planos e os oito livros das Cônicas do mesmo; os
cinco livros dos Lugares Sólidos de Aristeu; os dois livros dos Lugares à
Superfície de Euclides e os dois livros das Médias de Eratóstenes.
(BALIEIRO, 2004, p. 68)
Segundo Balieiro, após a análise:
[...]utilizando a síntese para expor o que se encontrou para solucionar
um problema ou demonstrar um teorema, os antigos geômetras dividiam
o problema (ou teorema) e sua solução (ou demonstração) em seis partes
a saber, protasi, ekthasis, diorismos, kataskeu, apodeixis e sumperasma. 1.
Protasis é o enunciado da proposição. 2. Ekthasis é o que é dado no
enunciado da proposição. 3. Diorismos – é o que se pede no enunciado da
proposição. 4. Kataskeue é a construção geométrica da proposição. 5.
Apodeixis- é a demonstração da proposição. 6. Sumperasmas é conclusão
da proposição. (BALIEIRO, 2004, p. 74)
A tradução do texto, em relação a descrição do método de análise e síntese,
ofereceu diversas interpretações modernas e deu início a um longo debate; por exemplo,
segundo Robinson, em seu artigo A Análise na Geometria Grega, Cornford sustenta que a
interpretação correta seria dada pela seguinte descrição:
O método de análise não se inicia, como os historiadores afirmam, pela
busca do que é implicado por (1). Começa perguntando o que poderia
implicar (1). Se descubro que (2) poderia implicar (1), indago a mim
mesmo se sei que dois é verdadeira. Se sei que é, a análise es
concluída; mas se não, devo dar um segundo passo. E, como antes, esse
segundo passo não será perguntar o que é implicado por (2), mas o que
implicaria (2). O processo deve continuar até que eu alcance algo que de
fato conheço. Digamos que isso seja (5). Terei então concluído a análise,
podendo fazer minha síntese: “(5) é verdadeira e implica (4), (4) implica
79
(3), (3) implica (2), e (2) implica (1) que, por sua vez, é o que devo
provar”. Segundo esse relato, a análise não é um processo de dedução.
Não deduzo (2) a partir de (1). É quando procedo na direção contrária,
ao fazer a síntese, que executo uma inferência. Na análise, a atividade de
minha mente não é de demonstração, mas de intuição. O geômetra que se
utiliza da análise adivinha a premissa (2) de que se segue a conclusão (1).
[...]Segundo tal descrição, as implicações com que a análise trabalha não
seriam necessariamente recíprocas. Poderia não existir qualquer
conseqüência necessária na direção de (1) para (5). A análise percorreria
na contra-mão uma via de mão única, e a síntese seria o retorno, na
direção correta. (ROBINSON, 1983, p.8)
Robinson avalia que essa interpretação é insustentável. O argumento de Robinson
é realizado olhando a prática dos geômetras gregos. Se a interpretação de Cornford fosse
correta, então estaria em contradição com a prática dos geômetras gregos e com os
relatos dos historiadores da Matemática, pois estes consideraram o método de análise e
síntese como tratando de implicações reversíveis e embora nem toda proposição
geométrica seja reversível e, nem em toda proposição a reciprocidade das afirmações seja
direta. Os exemplos tomados de Arquimedes e Papus, por exemplo, são suficientes, segundo
Robinson, para refutar a tese de Cornford, pois eles apresentam resoluções de problemas,
onde consideram a análise e síntese de acordo com a sua interpretação, e é a comumente
aceita pela comunidade dos matemáticos; cita Hankel, Cantor (1845-1918) e Heath que a
interpretam desta forma:
Suponhamos que se deseje demonstrar, caso seja possível, a proposição (1).
Se pretendo trabalhar pelo método da análise, devo proceder como segue:
Primeiramente assumo que (1) é verdadeira, ou seja, assumo o que de fato
desejo demonstrar. A seguir considero o que se segue de (1). Digamos que
descubro que (1) implica (2). Em seguida, considero o que se segue de (2).
Digamos que (2) implica (3). Sigo desse modo até alcançar uma
proposição que já sei ser verdadeira. Digamos que (5) seja essa
proposição. Não importa como (5) é conhecida, desde que seja conhecida, e
conhecida independente de (1). Pode se tratar de um axioma, de um
teorema anteriormente demonstrado ou de um elemento da construção.
Quando se encontra uma proposição desse tipo, a análise está concluída e
a síntese pode, então, ser iniciada. A síntese consiste em percorrer os
mesmos passos na ordem inversa: “uma vez que se sabe que (5) é
verdadeira, então (4) é verdadeira e, por conseguinte, (3), (2) e, finalmente,
(1), que era o que se pretendia demonstrar”. (ROBINSON, 1983, p. 6)
80
Assim, para que o método funcione, segundo esse autor, as implicações devem ser
recíprocas e a síntese comprovará a análise. A síntese serve então a dois propósitos: para
demonstrar um resultado e para verificar a sua validade.
Desse modo, continua Robinson:
A reduction ad absurdum é um caso especial do método de análise. Se (5)
é falsa, então (1) é falsa; e se (1) é falsa, a contraditória de (1) é
verdadeira. Podemos, portanto, provar a contraditória de (1) assumindo (1) e
mostrando que ela acarreta (5), que é um absurdo e, como tal,
independente conhecida como falsa. (ROBINSON, 1983, p. 6).
Segundo Robinson, a aplicação do método de análise e síntese na resolução de
problemas é semelhante, referindo-se a seguinte passagem de Papus que classifica duas
categorias de análise e síntese:
Duplo é o gênero da análise, um a pesquisa do verdadeiro, o qual é
chamado teórico, o outro capaz de dizer o que foi proposto, o qual é
chamado problemático. Enquanto que, no gênero teórico, tendo estabelecido
o que é procurado como existente e verdadeiro, em seguida, por meio das
conseqüências sucessivas como verdadeiras, e como existem segundo a
hipótese, tendo avançado até algo admitido, caso, por um lado, fosse
verdadeiro aquilo admitido, será verdadeiro também o procurado, e a
demonstração é uma inversão da análise; caso, por outro lado, encontramos
falso o admitido, falso também será o procurado. No gênero problemático,
tendo estabelecido o que foi proposto como conhecido, em seguida, por
meio das conseqüências sucessivas, como verdadeiras, tendo avançado a
algo admitido, caso, por outro lado, o admitido seja possível é obtenível, o
que os matemáticos chamam dados, possível também seo proposto, e, de
novo, a demonstração é uma inversão da análise; caso, por outro lado,
encontramos impossível o admitido, impossível será também o problema.
(BALIEIRO, 2004, p. 67)
As teses de Conford e de Robinson foram contestadas por Gulley em seu artigo A
Análise Geométrica Grega que propõe uma outra interpretação da passagem de Papus,
segundo a qual, Papus está mencionando dois processos de análise e ntese. Gulley busca
evidências externas para demonstrar a sua tese afirmando que nos trabalhos de Aristóteles
e de Platão as duas versões do método, como descritas por Robinson e Conford, são
encontradas. A interpretação de Gulley implica em um questionamento das interpretações
anteriores, pois se fosse correta, por sua vez, implicaria numa inconsistência das duas
81
anteriores e, então, as duas anteriores, deveriam ser revistas. Assim as interpretações de
Cornford e Robinson à passagem de Papus seriam inconsistentes e Papus, um grande
geômetra, estaria enganado em relação a descrição do método de análise e ntese
geométrica. Esse é o grande problema da interpretação de Gulley, acusar Papus de escrever
algo incompatível com a prática real. Isso é problemático, pois Papus se mostrou, em seus
escritos, consciente da cultura Matemática grega. Desse modo, todas essas interpretações
devem ser revistas.
Hintikka e Remes praticamente encerram a discussão sobre a interpretação do
método de análise e síntese, partindo da inconsistência dessas interpretações. A princípio, a
fonte do problema direcional, para esses autores, é a interpretação dos termos
akólouthein e akólouthon que foram traduzidos por através de suas sucessivas
consequências. Nos relatos onde o método é entendido como movimento descendente, esses
termos são geralmente compreendidos e traduzidos como conseqüências lógicas. Segundo
Hintikka e Remes, esses termos são sempre usados por Papus quando está falando do
percurso que parte da conclusão desejada para as premissas e nunca quando descreve o
percurso inverso. Nessas passagens, são usados os termos apódeixis, hepómena e
symbáinein. A solução seria traduzir os termos akólouthein e akólouthon pelos termos
alternativos “concomitantes” ou “o que vai junto de”. Hintikka e Remes buscam
evidências externas para sustentarem a sua interpretação, a saber, em Platão e em
Aristóteles, e também mostram diversas evidências internas ao texto de Papus onde
ocorrem o termo e que seria impossível traduzi-lo por “através de suas sucessivas
conseqüências”, mas ao contrário, é perfeitamente cabível o “concomitante” ou “o que vai
juntamente com”, isso praticamente garante a veracidade de sua tradução.
A principal evidência interna ao relato de Papus à interpretação de Hintikka e
Remes é quando descreve a análise teórica, onde, se assumimos a passagem como “através
de suas conseqüências” não seria necessário apelar para que as conseqüências fossem
também assumidas como verdadeiras e existente em virtude de nossa hipótese, pois a
inferência dedutiva preserva a verdade. Segundo Hintikka e Remes existem diversas
passagens no texto de Papus que corroboram esta interpretação. O que devemos notar
aqui é que, uma vez sustentada essa interpretação de Hintikka e Remes, implicará
abandonar a análise descendente e a suposta contradição no texto de Papus fica superada.
82
Mas, as últimas palavras de Papus parecem contradizer a interpretação de Hintikka e
Remes, a saber, na análise teórica, caso, por outro lado, encontramos falso o admitido, falso
também será o procurado e na análise problemática caso, por outro lado, encontramos
impossível o admitido, impossível será também o problema. Isso parece indicar que a
verdade do teorema ou a possibilidade da construção do problema fosse uma
conseqüência do que se procura e nos levaria, de volta, ou a interpretar a análise como
movimento descendente, agora descartada, ou a supor que os passos da análise sejam
reversíveis.
Desse modo, Hintikka e Remes propõem que devemos interpretar o método como
um único método, a parte analítica e a parte sintética como sendo inseparáveis. Esse
método deve ser encarado como geométrico, os antigos estão situados no domínio da
Geometria, isto quer dizer, entre outras coisas, que as proposições estão hieraquicamente
ordenadas e que se uma proposição implica outra, não necessariamente significa que o
inverso é verdadeiro. O geômetra, depois de visualizada a análise, deveria provar a
convertibilidade das proposições na síntese. O aspecto direcional, para Hintikka e Remes,
não tem muita importâcia, e a ênfase dado a ele, pelos vários intérpretes, revela que outros
aspectos do método não estavam sendo considerados, como é o caso do aspecto da sua
lógica, o papel das construções auxiliares. Ou seja, se faz necessário um estudo
complementar sobre a lógica do método de análise e de seu aspecto configuracional.
Estudaremos agora A Aritmética de Diofanto, um dos mais influentes trabalhos na
Europa. Sua avaliação é importante para s, pois, tanto Viète quanto Descartes foram, nas
suas próprias palavras, influenciados por ela.
2.3 Uma síntese da obra A Aritmética de Diofanto
Assim como Papus, Diofanto ocupa, sem vida, um lugar único na galeria dos
grandes matemáticos, e para notarmos suas contribuições à arte algébrica devemos estudar
sua obra, A Aritmética, bem como avaliarmos a influência dessa obra nos trabalhos de
gerações posteriores. Estamos particularmente interessados nessa influência sobre Viète e
Descartes.
83
Hoje sabe-se que tanto a Álgebra quanto a Geometria gregas têm suas origens na
Babilônia e no Egito. Encontramos elementos da Aritmética egípcia e babilônica refletidos
em muitos trabalhos gregos. Por exemplo, os cálculos egípcios chamados Hau-Calculations
(método de escrever e calcular com frações), que são equivalentes as soluções de
equações simples com uma variável, estão presentes em A Aritmética de Diofanto. Por
exemplo, as equações:
(1/7)x + x = 19, (2/3)x+ (1/2)x + (1/7)x + x = 33, (x + (2/3)x) – (1/3)(x+(2/3)x) = 10,
do Papiro de Rhind, são equações típicas do trabalho de Diofanto.
Muitos problemas encontrados nos Papiro de Rhind e no Papiro de Berlim, assim
como muitos epigramas aritméticos encontrados na Antologia Grega
41
, aparecem na obra
de Diofanto.
Nos Papiro de Rhind e de Berlim encontramos exemplos que ilustram um
método favorito de Diofanto, a saber, o da falsa posição. Heath (p. 441) ilustra esse método
com dois exemplos. O primeiro é dividir 100 pães entre 5 pessoas em uma tal forma que
as partes estejam em progressão aritmética e 1/7 da soma das três primeiras divisões seja
igual a soma das outras duas. Se a + 4d, a + 3d, a + 2d, a + d e a são as partes, então, 3 a
+ 9d = 7(2a + d), ou d = (11/2)a. A resolução prossegue fazendo 1
=
a
e em seguida
escrevendo a série: 23, 35/2, 12, 13/2, 1, cuja soma é 60. Como 100 é
3
2
1
vezes 60, então
3
2
1
é multiplicado por cada termo da série e obtém-se os valores corretos
3
1
38
,
6
1
29
,
20 ,
6
1
3
2
10
3
2
1,
.
O segundo exemplo de Heath é retirado do Papiro de Berlim, a saber, resolver o
sistema:
41
A Antologia Grega ou Antologia Palatina é uma reunião de epigramas do século V da nossa era. O Livro
XV é constituido de problemas aritméticos, oráculos e enigmas. A maioria desses problemas são resolvidos
usando-se cálculos com frações. Os problemas são sobre torneiras, divisão de herança, divisão de nozes e
maçãs, etapas da vida, pesos de estátuas, tempo e espaço, problemas envolvendo número de pessoas e
animais.
84
=
=+
4
3
:1
100
22
y
x
yx
Fazendo x = 1 na segunda equação obtemos y = ¾ e, portanto,
16
25
22
=+ yx
, para que
22
yx + se torne igual a 100, é necessário multiplicar
16
25
por 64 (8
2
). O valor de x deve
ser multiplicado por 8, portanto y = 8 e, conseqüentemente, y = 6.
Muitos epigramas encontrados na Antologia Grega são resolvidos por meio da
técnica egípcia e muitos podem ser convertidos em equações simples. Vários deles são
problemas de dividir um certo número de objetos da mesma espécie entre um determinado
número de pessoas. Vinte e três desses problemas são equações em uma variável, um
deles é um epigrama sobre a idade de Diofanto. Doze são de equações simultâneas com
duas variáveis que podem ser reduzidos a simples equações com uma variável, por meio
de uma simples eliminação. Seis são problemas do tipo: um canudo enche um vaso em
um dia, um segundo em dois dias e um terceiro em três dias, os três juntos demoraram
quantos dias para encher o vaso? Outros problemas, do mesmo tipo, são sobre fabricantes
de tijolos. A Antologia contém duas equações indeterminadas do primeiro grau que podem
ser resolvidas nos inteiros positivos em um mero infinito de formas; a primeira é a
distribuição de maçãs, 3x no total, em partes satisfazendo a equação x 3y = y, onde y é
maior ou igual a dois, a segunda trata de equações com quatro variáveis x + y = x
1
+ y
1
, x =
2 y
1,
x
1
= 3y, cuja solução geral é x = 4k, y = k, x
1
= 3k e y
1
= 2k. Essas equações são
solucionadas assumindo x + y = 100. Esses problemas são tratados por Diofanto, mas de
uma forma abstrata.
Muitos problemas em Diofanto recaem em equações indeterminadas do segundo
grau, por exemplo, o problema de dividir um número quadrado em dois quadrados ou
encontrar um triângulo retângulo com lados racionais. Os pitagóricos foram os primeiros a
descobrirem uma fórmula geral para encontrar tais triângulos, a saber,
}
}
{
{
2
2
2
22
)1(2/1)1(2/1 +=+ nnn ,
onde n é qualquer número impar. Platão exibiu a fórmula
22222
)1()1()2( +=+ nnn ,
85
onde n é um natural qualquer. Euclides deu a fórmula mais geral
(
)
(
)
(
)
2
22
2
22
2
(2/1(2/1 mnqmnpmnqmnpmnpq += .
Os pitagóricos resolveram outro problema indeterminado descobrindo as soluções
inteiras sucessivas da equação 12
22
±=yx . Diofanto sabia encontrar qualquer mero de
soluções quando uma das variáveis era conhecida.
Alguns problemas de A Métrica de Herão, segundo Heath, estão também refletidos
na obra de Diofanto. Por exemplo, o problema de encontrar dois retângulos de modo que
o perímetro do segundo seja três vezes o do primeiro e a área do primeiro seja três
vezes a do segundo. O número três simplesmente ilustra um caso particular, o problema
geral é o seguinte: resolver o sistema formado pelas duas equações u + v = n(x + y) e x.y
= n.u.v. A solução dada é equivalente a fazer nvnnunynx ==== ),24(,2,12
333
.
Outro problema, similar ao primeiro, equivale ao sistema formado pelas duas equações: x +
y = u + v, xy = n . uv. A solução dada é x + y = u + v = n
3
1, u = n –1, v = n(n
2
-1), x = n
2
1, y = n
2
(n –1). Convém mencionar o problema de encontrar um triângulo retângulo com
lados racionais e com área 5. Existem outros problemas que são casos particulares do
problema de encontrar triângulos retângulos racionais de modo que suas áreas e seus
perímetros sejam dados.
Diofanto provavelmente viveu por volta de 250 d. C. Na Antologia encontramos o
seguinte epigrama sobre a sua idade: sua infância durou um sexto de sua vida, sua barba
cresceu após um duodécimo, casou-se após um sétimo mais, e seu filho nasceu cinco anos
depois; o filho viveu até a metade da idade de seu pai, e o pai morreu após quatro anos.
A descrição nos dá a seguinte equação:
xxxxx =+++++ 4
2
1
5
7
1
12
1
6
1
,
onde x é a idade de Diofanto, portanto morreu com 84 anos.
As obras de Diofanto são A Aritmética, originalmente em treze livros e um
tratado sobre números poligonais. Seis livros de A Aritmética sobreviveram e um
fragmento do último. Alusões em A Aritmética indicam a existência de uma coleção de
proposições sob o tulo de Porisms; em três proposições (3, 5, 16) do livro V, Diofanto
86
cita, como conhecidas, certas proposições na teoria dos números a partir dos Porisms. A
Moriastica pode ser um trabalho separado de Diofanto fornecendo regras para operar com
frações.
Nenhum dos manuscritos que possuímos contém mais do que seis livros de A
Aritmética, a única variação sendo que poucos dividem os seis livros em sete, enquanto
outros dão o fragmento sobre números poligonais como o VIII. Evidências demonstram
que os livros foram perdidos antes do século X.
2.3.1 Notações e definições
Segundo Nesselmam (1811-1881) apud (Heath, p. 455),
três estágios na evolução
da Álgebra. O primeiro é chamado Álgebra retórica ou cálculo por meio de frases. Este
estágio é caracterizado pela ausência completa de símbolos, os cálculos são realizados por
meio de palavras e formando prosa contínua. Este primeiro estágio é representado por
escritores como Iamblichus, todos os algebristas árabes, os velhos algebristas italianos e
seus seguidores. O segundo estágio é a Álgebra sincopada que é também um estilo
literário, mas marcado pelo uso de abreviações simbólicas para quantidades e operações. A
este estágio pertence Diofanto e, após ele, todos os europeus até aproximadamente o meio
do século XVII (com exceção de Viète, que foi o primeiro a estabelecer, segundo o nome
logística especiosa, como distinta de logística numerosa, um sistema regular de calcular
com letras denotando magnitudes como também números). O terceiro estágio, que
Nesselmann o nome de Álgebra simbólica, usa um sistema completo de notação por
sinais não tendo conexão visível com palavras ou coisas que elas representam, uma
linguagem completa de símbolos, que suplanta totalmente o sistema retórico, sendo possível
trabalhar sem usar uma simples palavra da linguagem ordinária com a exceção de uma
ou duas palavras conectando aqui e ali, usadas para darem clareza. A esse estágio
pertence, sem dúvida, Descartes. É importante ressaltar que é com Diofanto que o
desenvolvimento algébrico começa a se estabelecer, conforme os esclarecimentos a seguir.
Ainda, segundo Heath (p. 457), Diofanto usava a seguinte simbologia abreviativa. A
constante era representada por
o
M
que é a abreviatura da palavra grega monades
87
(ΜΟΝΑ∆ΕΣ). A variável era denotada por um símbolo parecido com
ς
, a origem dessa
notação pode ser a contração das duas primeiras letras da palavra grega
aJriqmovς
(número).
Quanto aos nossos
65432
,,,, xxxxx eram representados respectivamente por
KKKK
YYYYY
,,,, . Diofanto não vai além da sexta potência.
Y
é a abreviatura das
duas primeiras letras da palavra grega dunamis (ΥΝΑΜΙΣ), que significa potência.
Y
K
é
abreviatura das duas primeiras letras da palavra grega kubos(ΚΥΒΟΣ) que significa cubo.
Y
é a quarta potência da variável.
Y
K
é a quinta potência da variável e
K
K
Y
é a
sexta potência da variável. A potência inversa 1/x era representada por
ς
χ
, 1/x
2
por
χ
Y
e assim sucessivamente. As primeiras nove letras do alfabeto grego α, β, γ, δ, ε, um
símbolo parecido com
ς, z
, η, θ, representam 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e ι, κ, λ, µ, ν, ξ,
o
,
p
e o
(em desuso Koppa) representam 10, 20, 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90. O coeficiente de cada
termo em x, x
2
, ... ou 1/x, 1/x
2
... é expresso pelo numeral ordinário imediatamente seguinte,
Y
K
κς
= 26 x
5
,
YX
σν
= 250/x
2
. A adição é indicada por mera justaposição, por exemplo:
ιγςεακ
YY
corresponde a
xxx 513
23
++
. Quando existem unidades na adição, são
indicadas pela abreviação
o
M
, por exemplo,
βιγςεακ
o
YY
M corresponde a
2513
23
+++ xxx
.
Diofanto usa o sinal , possivelmente formado pelas letras Λ e Ι da palavra
leipis (ΛΕΙΨΙΣ), para o nosso menos. Como Diofanto não usa o sinal de mais, agrupa
todos os termos positivos e negativos, os negativos após o sinal de menos, por exemplo
185
23
+ xxx
ele escreve )15(8
23
++ xxx , ou na simbologia diofantina
αδκ
y
αε
γ
o
M
.
Quanto as frações, quando o numerador e denominador consistem de expressões
em variáveis, Diofanto coloca o numerador seguido por
morivou
ou
eJν morivw/
e em seguida
o denominador.
88
2.3. 2 A Aritmética de Diofanto
Em A Aritmética, Diofanto admite como soluções das equações os números
racionais, excluindo as raízes irracionais, imaginárias e negativas. A equação 4 = 4x + 20 é,
para Diofanto, absurda. Os artifícios usados nos diferentes problemas são variados. Ele
resolve equações do primeiro e segundo grau sem dificuldades enquanto a equação do
terceiro grau só há um relato.
Segundo Boyer (p. 123-4), a obra diofantina dedica-se, exclusivamente, a resolução
de equações determinadas e indeterminadas. As últimas passaram a ser conhecidas como
análise indeterminada ou análise diofantina e seu conteúdo é parte comum dos curso de
Teoria dos Números e não da Álgebra Elementar.
A Aritmética, que está repleta da simbologia sincopada, não é uma apresentação
sistemática sobre operações algébricas ou sobre funções algébricas ou sobre resolução de
equações algébricas. Apresenta, aproximadamente, 150 problemas específicos estudados em
termos de soluções numéricas. Não desenvolve um sistema postulacional como fizera
Euclides, mas Diofanto esforça-se para encontrar todas as soluções possíveis. Nas equações
quadráticas que apresentam duas raízes positivas é apresentada apenas a maior e as
negativas são desconsideradas.
Apresentamos alguns problemas ilustrativos do método diofantino. O primeiro é
encontrar dois números tais que cada um somado com o quadrado do outro um
quadrado perfeito. A solução apresentada por Diofanto equivale a chamar os números de
x e 2x + 1. Notemos que x
2
+ (2x + 1), isto é, o quadrado do primeiro mais o segundo é
sempre um quadrado perfeito, ou seja, neste caso, qualquer valor que atribuimos a x nos
dará um quadrado. Diofanto exige, em seguida, que (2x+1)
2
+ x seja um quadrado perfeito.
Ao invés de apresentar as várias possibilidades, Diofanto apenas escolhe um caso
particular, a saber, (2x-2)
2
, ou seja, (2x+1)
2
+ x = (2x-2)
2
. A equação reduz-se a uma do
primeiro grau e a solução é x = 3/13. Poderíamos usar expressões semelhantes, do tipo (2x-
3)
2
, (2x-4)
2
, e encontrar outros números. Com esse procedimento, Diofanto evita tratar o
problema com duas variáveis reduzindo-o a uma única. Outro problema ilustrativo aparece
no problema que pede para encontrar dois números de modo que a soma seja 20 e a
soma de seus quadrados seja 208. Os números são designados por 10 + x e 10 x e assim
89
(10+x)
2
+ (10-x)
2
= 208, ou seja, x = 2; portanto os números procurados são 8 e 12. Um
outro problema seria encontrar dois números cuja soma seria 10 e a soma de seus cubos
seja igual 370. Os dois últimos problemas são determinados, enquanto que o primeiro é um
problema indeterminado.
As chamadas equações de Pell, as do tipo x
2
= 1 + py
2
, são tratadas por Diofanto
pelos exemplos x
2
= 1 + 30y
2
e x
2
= 1 + 26y
2
, mas ele dá apenas uma solução. Esses são
também exemplos de equações indeterminadas.
2.3.3 Uma análise contextual das obras de Papus e Diofanto
Neste ponto é importante avaliarmos as obras de Papus e de Diofanto sob o
ponto de vista de suas realizações e avanços teóricos e conceituais e, desse modo, tentar
entender porque estes autores foram tão influentes no ocidente. Minha avaliação será
direcionada aos objetivos dessa pesquisa. Começo com a obra de Papus que, como vimos,
é um guia para se estudar a Geometria grega e traz informações importantes sobre a
cultura Matemática grega. Um dos fatos marcantes na obra de Papus é, sem dúvida, a
descrição do método de análise e síntese em O Tesouro da Análise acompanhada de
vários exemplos que aplicam essa metodologia. Ali encontramos a descrição mais
abrangente do método. Evidentemente, como descrevemos, sob o olhar da modernidade,
essa descrição pareceu, por algum tempo, confusa. O método também é descrito por outros
autores como Herão, Arquimedes, Apolônio, Euclides, e até mesmo por fontes mais antigas.
Além das descrições, encontramos nas obras de alguns desses autores diversos problemas
e teoremas resolvidos usando esse método. Os exemplos dos autores antigos, juntamente
com a descrição de Papus, permitiram aos modernos uma interpretação definitiva do
método. Foram a partir das traduções latinas que os matemáticos dos séculos XV, XVI e
XVII reinterpretaram o método analítico e notaram a sua grande eficácia na resolução de
problemas matemáticos. Viète, Descartes e outros autores contribuíram para uma expansão
do método. É desse modo que podemos notar a influência de Papus sobre os modernos,
especificamente a técnica de análise e ntese. Isto é mesmo declarado abertamente nas
obras de Descartes e de Viète, conforme ficará esclarecido posteriormente.
90
Quanto a Diofanto, sua obra A Aritmética traz inovações importantes. A primeira
delas é a desvinculação com as amarras da Geometria grega, isto é, Diofanto se desprende
do fato puramente geométrico e promove uma ruptura com a tradição geométrica e um
avanço rumo a procedimentos algébricos. Embora seja difícil apurar a técnica diofantina,
pelo menos alguns traços são marcantes.
A segunda inovação importante é a presença de uma simbologia que permite
Diofanto traduzir os problemas em uma forma algébrica sincopada; isso é um avanço
significativo, pois, como veremos, é a partir dos fundamentos da Álgebra, que se
posteriormente desenvolvida, que será fundada uma nova concepção científica. Ainda dentro
dessa característica, convém mencionar que o conceito de equação surge com força em
Diofanto e, a partir desse conceito, a técnica diofantina de resolver equações com a
possibilidade de ser aplicada tanto a objetos geométricos como a problemas aritméticos.
Convém ressaltar que, apesar das novidades incorporadas, essa Álgebra ainda apresenta
dificuldades que só serão superadas posteriormente. Uma delas é o fato de a variável
ainda não ser representada por um único símbolo, o que certamente impede, por exemplo,
a generalização de muitos resultados e complica muito o manuseio simbólico na resolução
de problemas mais difíceis. Além disso, como vimos, Diofanto não vai além da sexta
potência em seus problemas.
A terceira característica da obra de Diofanto é a técnica que apresenta para
resolver problemas. As soluções dadas aos problemas são variadas e demonstram o caráter
inventivo de seu pensamento. Em alguns exemplos, vale ressaltar, a técnica é quase geral,
isto é, pode ser aplicada a todos os problemas daquela mesma espécie, como é o caso do
problema de dividir um número dado em duas partes, cuja diferença é um número dado.
Esse problema e a técnica resolutiva aplicada são encontrados em autores do porte de
Clavius, Jordano, Bombelli e Viète, o que demonstra a influência desse autor sobre os
algebristas europeus posteriores. Vale aqui apresentar a solução dada por Diofanto para
esse problema, a fim de ilustrar sua técnica e exemplificar sua estratégia analítica. Começa
fazendo a soma dos números igual a 100 e a diferença 40; esse recurso, o de reduzir o
problema para dois meros específicos, foi amplamente usado pelos algebristas da
Europa, após Diofanto. A menor parte é identificada como x, em nossa linguagem
moderna. O maior número é identificado com 100 x e, em seguida, uma equação
91
envolvendo esses números deve ser estabelecida. Assim, se subtraímos a menor parte da
maior, 40 deve ser a diferença; adicionando 2x a ambos os lados teremos uma igualdade
entre 100 e 40 + 2x, ou seja, uma equação fica estabelecida e, subtraindo 40 a ambos os
lados, teremos uma igualdade entre 60 e 2x. Assim, finalmente, 60 dividido por 2, nos
30 como a menor parte e, portanto, a maior parte será 30 + 40, ou 100 – 30. A abrangência
da técnica é clara: poderíamos aplicá-la se outros números fossem mencionados no lugar
de 100 e 40. Essa característica está presente nas obras dos principais algebristas
europeus, mas tanto em Viète como em Descartes ela assumirá novos traços.
A quarta característica, talvez a mais importante, é o seu caráter
analítico/heurístico. A concepção de números dados e números procurados, dentro de um
problema e de sua possível tradução em uma linguagem algébrica, envolve uma concepção
ampla de entidades Matemáticas, naquela época bastante rara, pois a cultura Matemática
grega era predominante geométrica. Como mostrado no exemplo anterior, a técnica
diofantina pressupõe a presença da característica analítica. A primeira etapa do processo
resolutivo corresponde a concepção do problema, ou a célebre frase: “considere o problema
dado”. Nela, considera-se todos os elementos e possibilidades que o problema pode nos
oferecer, o conhecido, o desconhecido e as possíveis relações entre eles são avaliadas. É
necessário, a seguir, através da nomeação dos elementos conhecidos e desconhecidos,
estabelecer uma relação entre eles, no caso uma equação deve ser estabelecida. Depois que
a equação é estabelecida, procede-se à resolução, isso pode ser feito pelas regras da
Álgebra, bastante conhecidas e difundidas naquela época. Trata-se de uma regressão na
análise, reduzindo o problema, etapa por etapa, para equações cada vez mais simples. Uma
vez resolvida a equação passa-se a uma interpretação da resposta e à busca das soluções
pretendidas. Em outros problemas, na maioria deles, Diofanto não está interessado em dar
métodos gerais, mas apenas resolver os problemas usando alguma espécie de truque
apropriado àquela problema específico, como mostramos anteriormente. Podemos dar mais
um exemplo: resolver a equação Ax
2
+ C = y
2
, quando A é positivo e um quadrado.
Fazemos A = a
2
, y= ax
±
m e a
2
x
2
+c = (ax
±
m)
2
, donde x =
±
(c – m
2
)/2ma, m é escolhido
de modo que x seja positivo. Aqui o problema é muito específico, a solução está associada
aos coeficientes da equação, isso ocorre em muitos outros caso. Podemos entender também
o caráter inventivo de sua técnica, ou seja, não um objetivo geral a ser preenchido, mas
92
um fim específico, a solução é surpreendente, relaciona-se com os objetos dados, isto é,
associa-se o segundo membro com as variáveis e os coeficientes do primeiro membro. Não
há por parte de Diofanto preocupação com o modelo sintético e nem mesmo de generalizar
resultados, embora na sua obra encontramos também resultados teóricos interessantes e que
vieram mesmo a influenciar diversos matemáticos da era moderna, como Fermat,
principalmente quando fala de alguns resultados aritméticos.
No princípio da era moderna, concatenado com os trabalhos de Papus e Diofanto,
está o trabalho de Viète que reinterpretou esses autores e estabeleceu uma novidade
permitindo avançar consideravelmente na busca de uma nova Ciência: a análise algébrica.
2.4 A arte analítica de Viète
Os trabalhos de Viète são reflexos da nova concepção de Ciência do fim do
século XVI e princípio do século XVII. Viète tinha um interesse especial pela
cosmografia e pela Astronomia. Klein (1963, p. 151) afirma isso.
A Aritmética de Diofanto está refletida na principal obra de Viète: Isagoge in
artem analyticam (Introdução a arte analítica). Outro autor visivelmente inspirador para
Viète é Papus de Alexandria. na abertura da Isagoge a análise e ntese é citada, com
alguma novidade, interpretada como a arte analítica, e é estabelecida na base de seu
sistema, evidenciando assim a íntima relação com a obra de Papus. Começa estabelecendo
as definições básicas de sua nova arte:
Em Matemática existe um caminho certo para buscar a verdade, um
caminho que Platão é dito o primeiro a ter descoberto, e que foi chamado
“análise” por Theon
42
e foi definida por ele como “tomando a coisa
procurada como concedida e procedendo por meio do que segue para uma
verdade que é incontestável; então, por outro lado, a “síntese” é “tomando a
coisa que é concedida e procedendo por meio do que segue para a
conclusão e compreensão da coisa procurada”. (KLEIN, 1963, p. 320-
tradução nossa)
42
Theon de Alexandria(335? 405? D. C.), pai de Hypatia. Autorizou uma edição de Os Elementos de
Euclides incluindo a definição do método de análise e síntese que não foi escrita por Euclides, mas
provavelmente, foi inserida por escritores posteriores que copiaram de outros textos antigos da época de
Euclides.
93
A semelhança com o texto de Papus, nessa citação, é tida e não carece de maiores
comentários.
Viète, em seguida, nos diz que os antigos dividiram a análise em duas, a zetética e
a porística, e que seria apropriado introduzir uma terceira espécie, a análise rética ou
exegética. Nisso introduz uma novidade à interpretação grega
:
[...] de modo que existe uma arte zetética pela qual é encontrada a
equação ou proporção entre a magnitude que está sendo procurada e
aquelas que o dadas; uma arte porística pela qual da equação ou
proporção a verdade do teorema configurado é investigada, e uma arte
exegética pela qual da equação ou proporção configurada será produzida a
própria magnitude que está sendo procurada. E então, toda a arte analítica
triplicada, reinvidica para si mesmo este ofício, pode ser definida como a
Ciência de encontrar corretamente em Matemática. Agora o que
verdadeiramente pertence à arte zetética é estabelecido pela arte da lógica
através dos silogismos e entimemas, os fundamentos das quais são aquelas
estipulações(símbolos) apropriadas pelas quais equações e proporções o
construídas, e tais estipulações devem ser derivadas das noções comuns
assim como dos teoremas que são demonstrados pelo poder da própria
análise. Na arte zetética, contudo, a forma de proceder é peculiar a própria
arte, tanto quanto a arte zetética não emprega sua lógica sobre números
o que foi o aborrecimento dos antigos analistas mas usa sua lógica por
uma logística que em uma nova forma tem a ver com espécies. Essa
logística é muito mais eficaz e poderosa do que aquela numérica para
comparar magnitudes com uma outra em equações, uma vez que a lei de
homogeneidade tenha sido estabelecida; assim fica configurado para tal
propósito uma série ou escala, consagrada pelo costume, de magnitudes
ascendentes ou descendentes pela própria natureza delas, gênero a gênero,
pela qual escala os graus e gêneros de magnitudes em equações podem
ser designados e distinguidos. (KLEIN, 1963, p. 322-tradução nossa).
A zetética pretende então traduzir o problema, aritmético ou geométrico, à
linguagem Matemática, isto é, em uma ou mais equações, em uma ou mais variáveis. Para
compor uma equação ou uma proporção estipulará o conhecido e o não conhecido no
problema dado, por meio da sua simbologia. Usando a lei de homogeneidade, que
pressupõe ainda um apego a questão da dimensionalidade dos gregos, escreve todas as
potências adequadamente ordenadas. Podemos comparar somente termos homogêneos.
Assim, em uma equação, os monômios que a compõem devem ter os mesmos graus. Isto
quer dizer que os monômios compondo uma equação devem ser todos da mesma espécie,
conforme explicação abaixo. A exegética, por sua vez, é a transformação, a partir da
94
proporção ou equação configurada, buscando definir a solução do problema. A arte
porística, por fim, é a fase intermediária do processo analítico e envolve técnicas de
transformar igualdades e proporcionalidades algébricas.
Viète estabelece as regras governando as equações e as proporções, que são as
mesmas encontradas em Os Elementos. São propriedades básicas sobre como operar com
equações e proporções, como as que conhecemos hoje.
O sistema formal de Viète tem algumas características importantes. A lei da
homogeneidade fala sobre os graus e os gêneros que são comparados como a suprema e
perpétua lei das equações e proporções que será, em Viète, uma tentativa de superação do
obstáculo dimensional dos antigos geômetras gregos e é inspirada no produto de
magnitudes geométricas como designado pelos gregos que diziam que o produto de dois
segmentos dava uma área, o produto de um segmento e uma área dava um volume. Em
resumo, somente magnitudes de mesma espécie, isto é de mesma dimensão, podem ser
adicionadas, subtraídas (a menor da maior) e comparadas. Viète generaliza a idéia
introduzindo dimensões superiores a três. Assim, dentro de uma escala de magnitudes,
existe o elemento chamado lado ou raiz que ao ser multiplicado por ele mesmo gera
magnitudes de todas as dimensões dentro da escala, ou seja, podemos enumerar as
dimensões como graus ou potências sucessivas da raiz. Dentro de uma escala de
magnitudes, duas magnitudes quaisquer podem ser multiplicadas obtendo uma magnitude
cuja dimensão é a soma das dimensões das magnitudes envolvidas no produto. A divisão
de uma magnitude por outra magnitude de menor dimensão dá, como quociente, uma
magnitude cuja dimensão é a diferença das duas anteriores, a maior menos a menor. A
multiplicação é comutativa e distributiva em relação a adição. Duas magnitudes de mesma
dimensão podem ser postas em razão, satisfazendo as regras usuais de razão e proporção.
As proporções podem ser transformadas em igualdades, por exemplo, a/b = c/d equivale a
ad = bc. Convém ressaltar que uma razão, em Viète, não é uma magnitude mas uma
relação, ou seja, a razão não é vista como uma divisão de elementos da mesma
dimensão, mas uma relação que uma tem com a outra, por exemplo, quantas vezes uma
cabe dentro da outra. Viète indicou as sucessivas potências das raízes pelos termos
quadrados, cubo, quadrado-quadrado, quadrado-cubo, etc. As magnitudes indeterminadas da
95
mesma dimensão que o lado, que o quadrado, cubo, etc., eram chamadas comprimento ou
largura, plano, sólido, plano-plano, plano-sólido, etc.
Ao compor uma equação a lei deve ser levada em conta. Assim, uma equação do
tipo baxx =+
3
, não tem significado a menos que x represente algum comprimento, a
represente uma área e b um volume. Desse modo, os três componentes ficam reduzidos à
objetos de mesma espécie, um
volume.
Viète aborda os preceitos dos cálculos por espécies, as regras da logística
simbólica, afirmando que a logística numérica opera com meros e que a logística
especiosa opera com espécies ou com “as formas das coisas”, por exemplo, com letras do
alfabeto. Em seguida, apresenta os quatro preceitos para se calcular com espécies. São
regras básicas para operar com magnitudes e a simbologia apropriada para realizar essas
operações. Por exemplo, se A e B são magnitudes homogêneas simples, isto é, se indicam
um comprimento ou uma largura, então a adição será indicada A ‘mais’ B. Se
correspondem a termos mais altos, são indicados, por exemplo, A
2
+ B
p
, ou A
3
+ B
s
, e assim
sucessivamente e o analista escreve + para indicar a realização da operação de adição. A
subtração será indicada por A ‘menos’ B, se estão representando simplesmente
comprimento ou largura. Para potências mais altas são designadas, por exemplo, A
2
‘menos’ B
p
(A
2
‘minus’ B
p
), A
3
‘menos’ B
s
(A
3
‘minus’ B
s
) e assim sucessivamente. Em
seguida, Viète apresenta regras básicas para tratar a subtração; por exemplo, se B mais D
deve ser subtrtaído de A, então é o mesmo que A menos B menos D. Outros exemplos
são: A - (B - D) = A B + D. Viète diz que, geralmente, o analista indica a subtração com o
sinal - . Agora se não é afirmado qual é o termo maior e qual é o menor, então a
diferença será designada por = e, desse modo, A
2
= B
p
, indica a diferença de dois termos
desconhecido. Para o sinal de igual Viète usava a palavra aequatur.
A multiplicado por B é indicado por A em B, A
2
multiplicado por B é indicado
A
2
em B. Viéte apresenta a regra de sinal para multiplicação e também explica o produto
de potências de mesma base. Por exemplo, se “A=Bé multiplicado por “D=G” obteremos
DA – DB –GA + GB.
Se queremos dividir B plano pelo comprimento A, indicamos B
p
/A que representa
a largura que resulta da divisão. B
3
/A
p
indica o comprimento que resulta da divisão. Não
nenhuma diferença para binômios e para polinômios. Em seguida, Viète apresenta as
96
regras básicas para potências de mesma base na divisão, por exemplo x
6
dividido por x
2
produz x
4
, um plano-plano-solido dividido por um solido produz um plano-plano, um
solido-solido dividido por um plano produz um plano-plano. Complementando essas regras,
temos as seguintes: BA/B é igual a B, BA
p
/B é igual a A
p
. Se queremos adicionar Z a
A
p
/B, então a soma será (A
p
+ZB)/B. Assim, Z
2
/G + A
p
/B = (GA
p
+ BZ
2
)/BG. Z – A
p
/B = (A
p
-
ZB)/B. E assim sucessivamente.
Ao anunciar as leis da zetética
43
, Viète diz que, na resolução de um problema,
usando a Álgebra, a equação pode não ser encontrada imediatamente, a partir das
condições dadas. Desse modo, para facilitar a tarefa, devemos atribuir ao termo
desconhecido do problema uma variável, estabelecer uma equção entre os termos dados e
os termos desconhecidos e aplicar as regras da Álgebra para chegar na solução.
Na investigação de teoremas por meio da arte porística, depois de terminar a
zetética, o analista move-se da hipótese à tese, apresentando o teorema obtido a partir de
sua descoberta. Embora o teorema tenha sido demonstrado pela zetética ainda será
sujeitado às regras da síntese, que é considerada a forma lógica de demonstração. Se
confirmado, as etapas da análise serão então retraçadas na síntese, mas também no sentido
de uma análise, o que é possível graças a nova logistica simbólica. Se alguma coisa
43
1. Se é um comprimento que está sendo procurado e existe uma equação ou proporção oculta nos termos
propostos, faça x ser aquele comprimento. As regras dois e três são similares bastando trocar o comprimento
por plano e sólido. 4. Faça as magnitudes que são dadas, serem assimiladas e comparadas (de acordo com a
condição dada pelo problema) adicionando, subtraindo, multiplicando, e dividindo, as leis constantes de
homogeneidade sendo observadas em todo lugar. No final obteremos a magnitude procurada ou uma potência
dela. 5. Na quinta lei Viète estabelece a sua escolha para distinguir e designar variáveis e magnitudes
dadas. As variáveis são designadas pelas vogais A, E, I, O, Y, U e as magnitudes dadas serão designadas
pelas consoantes, B, G, ou D, ou uma outra consoante qualquer. 6. Produtos compostos totalmente de
magnitudes dadas podem ser adicionadas, subtraídas de acordo com o sinal de suas conjunções e podem
combinar em um produto que deverá ser o elemento homogêneo da equação e deverá constituir um lado da
equação, por exemplo x
2
=ab+cd. 7. Do mesmo modo ax
2
+bx
2
ou ax
2
-bx
2
são elementos em conjunção que
devem ser os elementos homogêneos que serão conjugáveis com x
3
. 8. Em moderna notação, nos garante que,
por exemplo, x
3
+ax
2
-bx
2
=cd+e, onde c é um plano, a é comprimento, d é um comprimento e e sólido. 9.
Podemos transpor os elementos de uma equação. Por exemplo, x
3
+ax
2
-bx
2
-cd+ef=g podemos escrever x
3
+ax
2
-
bx
2
=cd-ef+g, onde c e e são planos e g um sólido. Após a nona regra vem algumas proposições. Proposição
I: uma equação não é modificada por transposição. Por exemplo x
2
-d=y
2
-bx é equivalente a x
2
+bx=y
2
+d,
basta adicionar a ambos os lados d+dx, onde d é um plano. Em seguida Viète apresenta a proposição II, a
saber: uma equação não é modificada quando é dividida por uma variável. Por exemplo, x
3
+bx
2
=cx é
equivalente a x
2
+bx=c. A proposição III é semelhante a anterior e diz que uma equação não é modificada
se for dividida, ambos os lados, por uma quantidade conhecida. Por exemplo, bx
2
+cx=d é
equivalente a
x
2
+cx/b=d/b, onde c é plano e d é sólido. 12. Dada a equação A quadrado + B em A é igual a C em D+C
em E, então A está para C como D+E está para A+B. 13. Finalmente, quando a equação estiver ordenada, ou
a proporção estiver ordenada, então a zetética realizou a sua função. Uma proporção ordenada é do tipo
(x
2
+ax)/b=c/(d+x) que dá a equação x
3
+dx
2
+adx+ax
2
=bc, isto é, uma proporção ordenada dá uma equação em
uma variável.
97
estranha ocorrer, devemos então apelar à arte porística para depois retornarnos à síntese.
Exemplos disso, segundo Viète, podem ser encontrados em Theon, Apolônio, Arquimedes.
A função da arte exegética ou rética é, segundo Viète, encontrar números se o
problema é sobre uma magnitude numérica e encontrar comprimentos, superfícies ou
sólidos se a magnitude for geométrica. No último caso, o analista opera como um
geômetra, executando a construção retificada, imitando a solução analítica. No outro caso,
como um aritmético, opera como um lógico resolvendo qualquer potência que tenha sido
apresentada numericamente, simples ou conjugada. Como nem toda solução é válida para
certos problemas específicos, o geômetra, como um analista instruído, oculta as soluções
incoerentes, apresenta e explica sua solução na forma sintética, como se estivesse pensando
simplesmente na demonstração.
2.4.1 Considerações sobre a arte analítica de Viète
Existem três fatores provenientes dos antigos geômetras gregos que influenciaram a
nova concepção de Viète: a simbologia e a técnica diofantina, a primeira, a teoria das
proporções de Eudoxo e a concepção de análise e síntese de Papus aplicada a problemas
geométricos. Assim, a sua nova concepção então pretendia, como a de Eudoxo, fornecer um
método geral tanto para os problemas geométricos, estudados por Papus, quanto para os
problemas aritméticos estudados por Diofanto. As dificuldades encontradas por Diofanto
são superadas por Viète quando introduz a sua nova concepção simbólica, que o permite
generalizar as soluções dos problemas e dos teoremas, além disso, as equações, em relação
a notação diofantina, são bastante simplificadas, pois passa a designar a variável e suas
potências usando apenas uma variável, pois, Diofanto utilizava diversos símbolos numa
mesma equação. Outro avanço de Viète, em relação a Diofanto, é a ampliação do campo
de aplicação, as equações são usadas tanto para magnitudes algébricas quanto para
magnitudes geométricas, enquanto que em Diofanto o campo de aplicação era quase
exclusivamente aritmético. Essa é a grande realização da logística especiosa de Viète, sua
linguagem simbólica. Relembramos que o desejo de conceber uma nova Álgebra estava
presente também nas idéias de Petrus Ramus, o influente pedagogo francês que escreveu
livros textos de Matemática. Com efeito, é de Ramus a tentativa de se fazer uma leitura
98
algébrica de Os Elementos de Euclides. Mas essa ambição foi realizada com sucesso por
Viète ao mostrar que sua arte aplica-se tanto a Geometria quanto a Álgebra e, desse
modo, pôde transformar a arte resolver problemas matemáticos.
Para finalizar, é importante apresentar um exemplo ilustrativo da arte analítica.
Sssim, tomaremos o exemplo de Diofanto, abordado anteriormente, para mostrar a sua
técnica analítica: encontrar dois números cuja soma e cuja diferença fossem dada. Diofanto
adota algumas estratégias. Primeiro tomou a soma como 100 e a diferença como 40. Em
seguida, chama de x o menor dos números e o maior será uma variável mais 40
unidades. Em seguida, Diofanto compõe a equação que pode ser escrita na forma 100 =
2x +40, em nossa simbologia atual. Esse processo que permite Diofanto encontrar a
equação é o que Viète chamou de a arte zetética. Na seqüência, depois de estabelecer a
equação pela arte zetética, Diofanto procede a resolução da equação, primeiro subtraindo 40
de ambos os lados e a equação resultante será 60 = 2x. A partir daí, deduz que a menor
variável vale 30 e o maior é 70, isso é a arte exegética de Viète. Finalmente, diz Diofanto
para finalizar o problema que dos números exigidos o menor será 30 unidades e o maior
será 70 unidades e a prova disso é clara. Em outras palavras, a prova é deixada para o
leitor e essa prova, que não foi dada, é a arte porística ou a confirmação de que os
números obtidos são realmente válidos.
Viète, sem qualquer sombra de dúvida, ocupa um lugar de destaque dentro do
cenário da construção do conhecimento matemático e seu pojeto era de fato inovador, Bos
define bem a postura de Viète nesse intinerário:
A inspiração de Viète foi Diofanto, cujo uso de variáveis em A Aritmética
ele viu como a chave para um método geral de análise, que, ele pensou,
tinha sido conhecido pelos matemáticos clássicos e foi perdido, mas
poderia ser restaurado. Ele expôs sua reconstrução desta análise em uma
série de tratados, juntos formando o que ele chamou O Livro da análise
matemática restaurada ou A nova álgebra e cujo princípio esboçou no
primeiro desses tratados, Introdução a arte analítica (In artem analyticen
isagoge) de 1591(a quem eu me refiro Isagoge). A Isagoge fechou com
uma afirmação arrogante: Finalmente a arte analitica, dotada, afinal, com
suas três formas zetética, porística and exegética, reivindica para si o maior
de todos os problemas, que é NÃO DEIXAR NENHUM PROBLEMA
SEM RESOLVER. (BOS, 2001, p. 146-tradução nossa)
99
Seguindo a linha cronológica estabelecida pode-se passar à concepção de Descartes
sobre o método de análise e síntese e avaliar sua interpretação nesse itinerário histórico.
Assim, pode-se, posteriormente, comparar a concepção cartesiana com a de Viète. De fato,
isso se faz necessário, uma vez que Descartes, segundo Sasaki (2003), foi acusado de
plagiar a arte analítica de Viéte.
2.5 A influência da Matemática nas Regulae ad Directionem IngeniiRegras para a
Direção do Espírito
Descartes estudou em uma escola onde Clavius, um erudito, foi muito influente e
foi bastante influenciado pelos matemáticos gregos: Euclides, Diofanto e Papus. Convém
ressaltar que Clavius estudou as obras traduzidas por Commandino e por Maurolico, dois
importantes tradutores daquele período, dentre elas, as obras de Euclides, Arquimedes,
Apolônio, Ptolomeu e Papus. Essa influência dos antigos está presente em Descartes, mas
ele buscou algo diferente, uma Ciência diferente. Nessa parte do trabalho abordaremos a
estrutura da Ciência cartesiana.
Descartes cita, nas Regras e em O Discurso e nas suas correspondências, os
grandes matemáticos gregos: Arquimedes, Papus, Apolônio, Euclides, Diofanto. Neste período,
os estudiosos fizeram uma releitura das obras gregas, e dentre as várias questões
suscitadas a do método foi a mais importante e Descartes foi também profundamente
influenciado por ela. Sem dúvida, ele buscou, por um longo tempo, um método. Na
verdade, retomou e transformou o método dos antigos geômetras gregos, assim como
fizera Viète.
Devemos compreender agora, de uma forma mais profunda, como Descartes
reinterpretou esse método e que novos elementos foram incorporados. Para tanto, é
necessário estudar primeiramente as Regras, onde o método é apresentado pela primeira
vez.
O reconhecimento blico de seu pensamento filosófico deu-se, pela primeira vez,
no palácio de Paris do ncio Papal, provavelmente no fim de 1627. Foi a primeira
ocasião em que Descartes revelou ao público seu método natural, fundamentado
essencialmente por estudos matemáticos. Na reunião, o cardeal de Berulle, o fundador do
100
oratório Francês, ficou impressionado pelas respostas de Descartes a Chandoux e o
incentivou a estabelecer sua própria Filosofia, fundamentada no método natural. Chandoux,
um alquimista especializado em metais não preciosos que, mais tarde, foi executado por
falsificação, buscava uma nova Filosofia Alquimista e era crítico da fundamentação
aristotélica, estabelecida nesse período.
Nas Regulae ad Directionem Ingenii obtemos boas informações sobre como o
método cartesiano foi formado e em que consistia. Convém ressaltar que o próprio
Descartes diz, no fim da Regra XII, que as Regulae consistiam em três partes.
Com relação asquestões, umas sãocompreendidas completamentes, ainda que
se ignore sua solução e destas unicamente trataremos nas doze rregras que
se seguem; outras, enfim, são compreendidas imperfeitamente, e reservamo-la
para as últimas doze regras. Esta divisão, nós a fizemos com um propósito:
para não sermos obrigados a dizer algo que prressuponha o conhecimento
do que se segue, e para ensinarmos, antes de mais nada, o que pensamos
ser priorutário ao cultivo do espírito. (DESCARTES, 2002, p. 116)
Desse modo, para uma interpretação atual, para os conjuntos destas Regras, tem-se:
a Parte I é sobre a teoria do conhecimento em geral (Regras I-XII) que pode ser
subdividida em três seções. As primeiras quatro regras falam da Ciência em geral e são
uma introdução as quatro Regras que vêm logo a seguir. As Regras V, VI, VII, VIII falam
sobre o método cartesiano e são consideradas a espinha dorsal da obra. As Regras IX, X,
XI, XII pretendem treinar o nosso espírito para que possamos aplicar o método com
eficiência. A parte II é sobre Matemática (regra XIII-XXI), mas ficou incompleta, nela
Descartes revela como pretende aplicar a metodologia em assuntos matemáticos, mostrando
total consciência sobre temas que estavam em voga em sua época. A parte III, sobre
Filosofia Natural, nunca foi escrita. As principais idéias da obra serão reunidas,
posteriormente, em O Discurso do Método e seus três ensaios.
2.5.1 As Regras I-IV
A principal meta das Regulae é reorganizar as Ciências e estabelecer um método
eficiente para buscar o verdadeiro conhecimento. Nelas, o critério mais importante
estabelecido por Descartes, que um conhecimento deve satisfazer, para ser admitido como
101
conhecimento verdadeiro, é a certeza, neese aspecto, a Matemática é a sua principal fonte
de inspiração, pois suas demonstrações gozavam dessa certeza. No que segue se mostra de
que forma as idéias Matemáticas o influenciaram.
A primeira regra já adverte sobre a generalidade e a unicidade da concepção
científica de Descartes. Propõe que devemos pensar a Ciência de uma forma abragente,
pois acreditava que sua metodologia pudesse ser aplicada à todos os assuntos científicos.
Essa noção científica cartesiana era incomum naquele período. Os sábios dedicavam-se ao
estudo dos mais variados problemas e a Ciência era dividida por temas, a noção
cartesiana pretendia unificá-la:
É preciso, pois, acreditar que de tal modo as Ciências estão todas
entrelaçadas entre si, que é muito mais fácil apreendê-las todas ao mesmo
tempo do que separá-las umas das outras. Se alguém quiser seriamente
investigar a verdade das coisas, não deve escolher alguma Ciência
particular, porque todas têm conexão entre si e mútua dependência; mas
pense apenas em aumentar a luz natural da razão, não para resolver esta
ou aquela dificuldade da escola, e sim para escolher; e bem depressa se
maravilhará de haver feito progresso, muito maior que aqueles que se
dedicaram a estudos particulares, e, ainda, de haver alcançado não tudo
aquilo que os demais desejavam, como também coisas mais elevadas do
que esperavam. ( DESCARTES, 2002, p. 74)
A busca pelo método científico era um ideal comum naquele período. Como se
descreveu, a Quaestio estava envolvida com a questão da metodologia científica e iniciou-
se com Piccolomini que insinuou que a Matemática não se enquadrava nos idéias
científicos aristotélicos. A Quaestio e relacionava-se com o ideal científico que surgia que
tinha como fundamento a Matemática. Os defensores da exclusão da Matemática do reino
das Ciências aristotélicas eram professores de Filosofia Natural que tinham como base os
pressupostos aristotélicos. Assim, a tentativa de excluir a Matemática do reino das Ciências
aristotélicas evidencia a tentativa de manter a velha Filosofia Natural aristotélica na linha
de frente das questões científica. Mas os resultados obtidos, a partir da fundação da nova
concepção baseada na Matemática, praticamente expulsa a metodologia aristotélica de
Ciência e introduz métodos matemáticos na base do pensamento científico. Unir as
Ciências significa, na passagem citada, muní-las de um único método capaz de ser
aplicado a todos os campos de investigação. Diversos cientistas tentaram estabelecer uma
tal ferramenta metodológica. Assim como Bacon, Galileu, Descartes e outros, usaram o
102
método de análise e síntese dos antigos geõmetras. É por esse método que Descartes
tentará unir as Ciências de seu tempo.
Na Regra II, Descartes começa dizendo que toda Ciência deve ser um
conhecimento certo e evidente e que devemos rejeitar todos os conhecimentos duvidosos.
Mas, segundo Descartes, somente a Aritmética e a Geometria são redutíveis a essas
observações, ou seja, gozam da regra da certeza e que, até agora, os homens têm
caminhado sem direção nas questões científicas. Em seguida, compara as duas disciplinas, a
dialética ou lógica e a Matemática, como se elas reunissem a regra da certeza. Segundo
ele, a dialética segue a tradição medieval e renascentista como método de filosofar e um
provável silogismo, exercitando a mente do jovem, estimulando-a com uma certa
rivalidade. A emulação ou dispusta era uma das característica da educação jesuíta que
pretendia buscar o aperfeiçoamento do discurso e do convencimento.
Não condenamos por isso aquela maneira de filosofar seguida até agora,
nem aquela dos escolásticos a maquinaria dos silogismos prováveis, tão
adequadas às suas disputas - , posto que exercitam e fomentam, por meio de
certa emulação, o espírito dos jovens; é muito melhor formá-los com tais
opiniões, ainda que pareçam incertas, já que são controvertidas entre
eruditos, do que os abandonar livremente a si próprios, pois, enquanto se
preocupam em seguir as pegadas de seus mestres, mesmo que alguma vez
se afastem da verdade, estarão, entretanto, num caminho mais seguro, pelo
menos no sentido de que tenha sido calculado por outros mais
prudentes. (DESCARTES, 2002, p. 76).
Entretanto, ridiculariza a certeza da dialética e elogia a certeza da Matemática.
Usando a dialética pode-se não adquirir qualquer conhecimento e até mesmo aumentar o
número de dúvidas. A crítica aos dialéticos é tema freqüente nas Regulae e Descartes
declara que a Aritmética e a Geometria são livres de qualquer defeito de falsidade ou
incerteza e satisfazem o critério da verdade buscado por ele, afirmando a razão porque
essas duas Ciências são mais certas do que as outras. Toda Ciência, para ser reorganizada,
deve conquistar o mesmo plano de certeza que as demonstrações da Matemática pura, ou
seja, pretende estabelecer, para as outras Ciências, o mesmo grau de certeza. Para alcançá-lo
propõe treinar nossa mente ou, mais precisamente, nossa inteligência, para formar
julgamentos verdadeiros.
103
[...]entre as disciplinas conhecidas a Aritmética e a Geometria estão
isentas de todo o engano ou incerteza, vamos examinar com maior
cuidado a razão disto, observando que podemos chegar ao conhecimento
das coisas por dois caminhos, a saber a experiência e a dedução. Além
disso, deve-se notar que as experiências das coisas são, com freqüência,
enganadoras, mas a dedução, ou seja, a simples inferência de uma coisa a
partir de outra, pode, sem dúvida, ser omitida se o é vista, mas nunca
pode ser malfeita pelo entendimento, ainda o menos racional.
(DESCARTES, 2002, p. 76)
Descartes pretende transportar o método de demonstrar da Geometria e da Álgebra
para outros domínios científicos, pois sabe que os primeiros princípios das Ciências
Matemáticas são claros e evidentes e, por isso, a cadeia de inferência das demonstrações
Matemáticas são sempre verdadeiras. Ele pretende prover sua metodologia científica com
algo equivalente. O problema então é garantir premissas claras e evidentes para que o
processo de inferência nos conduza a um conhecimento indubitável a partir delas. A
experiência proverá nossa intuição com os primeiros princípios e a dedução nos conduzi
a novos conhecimento. Mas a condução a novos conhecimentos, conforme esclarecimentos
posteriores, será realizada usando-se o método analítico. O processo não é partir das
premissas verdadeiras ou primeiros princípios e chegar em novos conhecimentos, mas, a
partir de um problema dado, chegar nesses princípios e, então, revertendo os passos,
sintetizar o resultado.
Descartes, na seqüência dessa Regra, fala sobre o problema das premissas
verdadeiras, voltando a tecer críticas ao conhecimento através da dialética, o erro dos
dialéticos é partir de premissas obtidas de experiências mal compreendidas e, a partir daí,
chega-se a resultados pouco confiáveis:
Para conseguir isto, parece-me que são pouco úteis aqueles vínculos com
que os dialéticos pensam governar a razão humana; se bem que possam
servir para outros casos. Com efeito, todo erro em que podem cair os
homens (não me refiro aos tolos) não provém nunca de uma inferência
errada, mas apenas de se partir de certas experiências pouco
compreendidas, ou, possivelmente, porque se emitiram juízos temerários e
sem fundamento. (DESCARTES, 2002, p. 76-77).
Esses princípios iniciais devem ser estabelecidos tão claramente quantos os
primeiros princípios da Geometria e da Álgebra dos antigos, essa última é uma alusão a
Aritmética. O que Descartes propõe então é um método baseado nas demonstrações
Matemáticas, ou seja, o modelo científico será baseado na certeza das demonstrações
104
Matemáticas e seguirá uma cadeia análoga, agora adotado para outras áreas, além da
Matemática. A Álgebra e a Geometria estão livres de engano, pois o seu objeto de estudo
é livre da experiência, são os mais puros e simples possíveis, um conjunto de
conseqüências deduzidas pelo raciocínio lógico a partir de postulados e axiomas
fundamentais. Essas Ciências têm, para Descartes, o objetivo buscado por ele, suas
estruturas lógico-formais impedem o erro.
De tudo o que procede, a conclusão que se deve tirar é que não se deve
aprender apenas a aritmética e a geometria, como também os que buscam o
reto caminho da verdade não se devem ocupar de nenhum objeto acerca
do qual não possam ter uma certeza igual à das demonstrações da
aritmética e da geometria. (DESCARTES, 2002, p. 77)
Assim, passará a descrever como obter os primeiros princípios de modo claro e
distinto. Na Regra III, analisa o ato de nosso intelecto por meio do qual nos tornamos hábeis
para chegar ao conhecimento verdadeiro e não em prováveis conjecturas, admite somente
dois atos intelectuais para tal fim: intuição e dedução.
Para não cair desde já no mesmo erro, vamos enumerar aqui todos os atos
de nossos entendimentos por meio dos quais podemos chegar ao
conhecimento das coisas, sem receio de engano; não se admitem mais que
dois, a saber, a intuição e a dedução. (DESCARTES, 2002, p. 78)
Por meio da intuição, segundo Descartes, todos podem, mentalmente, intuir que
existem, que estão pensando, que um triângulo é limitado por apenas três linhas, e uma
esfera por uma simples superfície e outras coisas semelhantes. O ato de intuir permitirá a
Descartes estabelecer os primeiros princípios. Mas o que significa intuir dentro desse
contexto cartesiano?
Entendo por intuição, não o testemunho flutuante dos sentidos, nem o juízo
enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o
conceito do espírito puro e atento, tão fácil e distinto, que não fique
absolutamente dúvida alguma a respeito daquilo que compreendemos, ou o
que é a mesma coisa, o conceito do espírito puro e atento, sem dúvida
possível, que nasce apenas da luz da razão, e que, por ser mais simples, é
mais certo que a mesma dedução, a qual, todavia, não pode ser malfeita
pelo homem, conforme vimos acima. (DESCARTES, 2002, 78-9)
105
Desse modo, tem-se aqui a base da teoria da aprendizagem cartesiana. Descartes
fornece um exemplo matemático para esclarecer a passagem. Se sabemos que 2+2 = 3+1 é
preciso intuir que 2 + 2 = 4 e 3 + 1= 4 e que dessas segue que 2 + 2 = 3 + 1. Notemos que,
nesse simples exemplo, podemos ver o raciocínio cartesiano para obtermos novos
conhecimentos. Se desejamos provar que 2 + 2 = 3 + 1, decompomos o problema em 2 + 2 =
4 e 3 + 1= 4 e é preciso ter certeza intuitiva dessas igualdades, saber que são verdades
indubitáveis e, a partir daí, deduzir, pelo princípio que diz que coisas iguais a uma mesma
coisa são iguais entre si, que 2+2 = 3+1. A certeza da intuição será necessariamente
exigida para o estabelecimento dos primeiros princípios, mas também para qualquer cadeia
de silogismos.
Mas o que garante que ao intuir os objetos a nossa volta estamos, de fato,
extraindo primeiros princípios inabaláveis? Por exemplo, ao observar o sol, ao entardecer,
como saber se ele está muito distante de um morro, pois a impressão que temos é que
são dois objetos próximos. Isso é resolvido, segundo Descartes, pela intervenção da razão.
Assim, devemos verificar o fato, por exemplo, caminhar até a morro e constatar o fato. A
partir daí podemos estabelecer um primeiro princípio, claro e evidente. Mas resta algumas
dúvidas, pois existem também as nocões que se estabelecem em nossas mentes pela
imposição cultural, como é o caso do conceito de Deus, amor, verdade, Matemática, entre
outros. Como posso garantir que o que penso sobre essas entidades é verdadeiro? Para
Descartes, todo problema pode ser decomposto pela luz da razão. A concepção de Deus,
por exemplo, é fundamental para Descartes, o seu ponto de partida. Mas a explicação de
um fato requer concepções a partir de uma visão de alguém inserido numa determinada
cultura. Talvez, foi por isso que Descartes procurou viajar, conhecer novas culturas, para
desenvolver bem a sua noção de luz natural da razão. Mas, as suas viagens estavam todas
dentro dos limites da cultura européia, assim podemos considerar que Descartes pressupõe,
talvez inconscientemente, que o ato de intuir de sua cultura é o que deve ser adotado
como básico. Devemos salientar que o processo de obter os primeiros princípios por
intuição não é posteriormente examinado no texto das Regulae.
Por dedução Descartes descreve o processo pelo qual entendemos a inferência de
alguma coisa como seguindo necessariamente de algumas outras proposições que são
conhecidas com certeza. O modelo de Descartes do qual os dois conceitos são derivados é
106
a prova sintética da Matemática, ou seja, a partir dos primeiros princípios devemos
estabelecer uma cadeia de silogismos, onde cada etapa é deduzida da anterior. Para
avançar, na seqüência, devemos ter certeza da etapa anterior, como uma demonstração
geométrica. Mas não devemos perder de vista que essa dedução não é a primeira parte do
processo, antes devemos do problema dado tentar determinar esses primeiros princípios.
Sobre os dois processos Descartes faz a seguinte observação:
Mas assim se procede porque muitas coisas se conhecem com certeza,
ainda que não sejam em si evidentes, contanto que sejam deduzidas de
princípios verdadeiros e conhecidos com certeza, por um movimento
contínuo e ininterrupto do pensamento, que intui nitidamente cada coisa
particular. De outro modo, não saberíamos que o último elo de uma cadeia
está em conexão com o primeiro, ainda que não apreendamos
intuitivamente, com um golpe de vista, todos os elos intermediários dos
quais depende aquela conexão; basta que os tenhamos percorrido
sucessivamente e nos recordemos que, desde o primeiro até o último, cada
um está unido a seu vizinho imediato. Distinguimos portanto, aqui, a
intuição intelectual da dedução certa pelo fato de que nesta se concebe
certo movimento ou sucessão, mas na outra, não; além disso, para a dedução
não é necessária a evidência atual, ao passo que a intuição recebe melhor
da memória sua certeza; de onde resulta que se pode dizer que aquelas
proposições que se seguem imediatamente dos primeiros princípios são
conhecidas por um ponto de vista diferente, ora por intuição, ora por
dedução; mas os princípios se conhecem por intuição e, ao contrário, as
conclusões remotas unicamente por dedução. (DESCARTES, 2002, p. 79-
80).
Nesta citação, percebemos que Descartes tenta esclarecer o papel das duas
operações mentais. A dedução conduz a novos conhecimentos, a partir de premissas
verdadeiras e, essas, por sua vez, são obtidas por intuição. A dedução é uma cadeia
silogística, que, por meio dela, conduz-se a premissas maiores. A intuição atua também
nessas cadeias silogísticas, mas sua função é, em cada etapa, averiguar os novos princípios
obtidos, gastando neles o tempo que for necessário. Se forem princípios aceitáveis
devemos seguir a seqüência e, se não, devemos buscar alternativas. Mas um fato, uma vez
deduzido e absorvido por nossas mentes, e que pode ser entendido de uma só vez, passa
a ser considerado um fato intuído, um primeiro princípio.
Descartes define o que significa o método na regra IV. Começa, para justificá-lo,
dizendo que o conhecimento obtido, até agora, tem se dado por sorte, sem método. Em
seguida, afirma o que entende por método.
107
Entendo por método regras certas e fáceis, graças às quais o que se
observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e chegará,
sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo
que seja capaz. (DESCARTES, 2002, p. 81)
O que chama a atenção na descrição dada é a preocupação com a simplicidade
que o método deve ter. Mas essa simplicidade deve garantir a veracidade do
conhecimento alcançado, bastando, para tanto, que não se tome princípios falsos. Essa
concepção de simplicidade metodológica será incorporada nos quatro preceitos de seu
método e será novamente anunciada em O Discurso do Método.
Para não tomar o falso por verdadeiro e chegar ao conhecimento genuíno, é
necessário então atentar para os dois preceitos fundamentais de nossas mentes. De fato, é
somente pela intuição e pela dedução que o conhecimento verdadeiro pode ser alcançado.
Mas se o método nos uma explicação perfeita do uso da intuição
intelectual para não cairmos no erro contrário à verdade, e do meio de
encontrar deduções para chegar ao conhecimento de todas as coisas, nada
mais se requer, parece-me, para que seja completo; pois não se pode obter
Ciência alguma, como já disse, se não é por intuição ou dedução. Não se
pode estender o método até ensinar como se deve fazer essas operações,
porque o as mais simples e primeiras de todas, de sorte que, se nosso
entendimento não puder utilizar-se delas, não poderia compreender nenhum
preceito, por fácil que fosse, do mesmo método. Quanto às outras operações
do espírito que a dialética pretende dirigir com a ajuda destas primeiras,
são aqui inúteis, ou melhor, devem contar-se entre os obstáculos, porque
nada pode acrescentar-se à pura luz da razão, que de alguma maneira não
a obscureça. (DESCARTES, 2002, p. 81).
Descartes, na seqüência, acusa os antigos geômetras gregos de negligenciarem o
método de resolver problemas, não o comunicando a posteridade. Alias, diga-se de
passagem, no fim do século XVI e princípio do culo XVII, acreditava-se que os antigos
esconderam seus métodos e foi comum, naquele período, entre os filósofos, buscar
redescobri-los.
Segundo Descartes, em seus dias, começa a florescer uma espécie de Álgebra, que
faz para os números o que a análise dos antigos fazia para figuras e diz estar exibindo
uma disciplina que deve conter os primeiros rudimentos da razão humana que, se
desenvolvida, poderia abranger todas as áreas do conhecimento. Nesse ponto, Descartes
108
começa a incorporar o elemento fundamental de sua Ciência, pensando na generalidade de
seu método, inspira-se no método de análise e síntese dos antigos geômetras gregos. Ele
continua acrescentando em seu discurso a inutilidade e a superficialidade da Aritmética e
da Geometria que chegara até ele e de suas demonstrações, mas, ao mesmo tempo
reconhece a necessidade das demonstrações Matemáticas para superar as desordens. O que
está criticado nas Ciências Matemáticas é o seu restrito campo de aplicação. Ele diz
que os antigos conheceram uma Matemática bem diferente da de seu tempo. Certamente,
essa referência diz respeito à metodologia que os gregos utilizavam para descobrir as
demonstrações apropriadas de seu teoremas e para resolverem os seus problemas
geométricos. Os geômetras antigos, depois de descobrirem a demonstração de um teorema
ou de resolver algum problema, apresentavam o resultado sinteticamente, não mencionando
o processo criativo.
Estou persuadido, porém, que as primeiras sementes da verdade depositadas
pela natureza no espírito humano, e por nós abafadas em razão de lermos
e ouvirmos cotidianamente tantos e tão diversos erros, tiveram tanta força
naquela rude e simples Antigüidade, que, pela mesma luz intelectual que
lhes fazia ver que se deve preferir a virtude ao prazer, o honesto ao útil,
se bem que ignorassem porque era assim, também chegaram a conhecer as
idéias verdadeiras da Filosofia e da Matemática, ainda que não tivessem
podido alcançar perfeitamente essas Ciências. Parece-me, em verdade, que
alguns vestígios desta verdadeira Matemática se vêem em Pappus e
Diofhanto [sic], os quais viveram, ainda que não nos primeiros tempos, pelo
menos muitos séculos antes de nossa era. Inclino-me a crer que depois os
próprios escritores a suprimiram por certa astúcia perniciosa, pois, assim
como é certo que o fizeram muitos artífices em relação a seus inventos,
assim eles recearam, talvez, que por causa da sua grande facilidade e
simplicidade, ficasse diminuída depois de divulgada e, para que os
admirássemos, preferiram apresentar-nos, em seu lugar, como produtos de
seu método, algumas verdades estéreis demonstradas com um sutil rigor
lógico, a nos ensinar o próprio método que faria desaparecer por completo
a admiração. Há, finalmente, alguns homens de grande talento que neste
século se têm esforçado por ressuscitar esta arte, pois este método que
com o nome estrangeiro chamam Álgebra não é outra coisa senão que
possa desembaraçar das múltiplas cifras e inexplicáveis figuras de que esta
sobrecarrega, a fim de que não lhe faltem aquela clareza e facilidade que
supomos que devam existir na verdadeira Matemática. (DESCARTES, 2002,
p. 83-84).
Finalmente, ainda na regra IV, Descartes anuncia a sua Matemática universal:
109
[...] E, refletindo mais atentamente, pareceu-me óbvio relacionar com a
Matemática tudo aquilo em que apenas se examinam a ordem e a
medida, não importando se tal medida se de buscar em meros,
figuras, astros, sons, ou qualquer outro objeto, e portanto que deve haver
uma Ciência geral que explique tudo aquilo que se pode perguntar acerca
da ordem e da medida, não agregado a nenhuma matéria especial, e que
essa Ciência, não com vocábulo caprichosamente adotado, mas antigo e
aceito pelo uso, é chamada Matemática universal, porque nela se encerra
tudo aquilo pelo que outras Ciências se chamam partes da Matemática. A
Matemática universal suplanta em facilidade e utilidade todas as outras
Ciências que lhe estão subordinadas; isto se claramente pelo fato de
conter os mesmos objetos que estas e, ademais, muitos outros; e também
porque suas dificuldades, se é que contêm algumas, existem igualmente
nestas Ciências, com outras ainda provenientes dos seus objetos
particulares, que ela não tem. (DESCARTES, 2002, p. 84 )
Nessa passagem, Descartes demonstra o quanto deseja que sua metodologia seja
estendida às Ciências que tem como fundamento a Matemática. A passagem mostra a forte
influência da Matemática sobre a Ciência cartesiana. Assim, tal concepção está em
consonância com os ideais de Clavius. Pois, como vimos, Clavius elevou o status da
Matemática, estabelecendo-a como a essência para que se possa entender as outras
Ciências, para evitar os erros nas Ciências e, até mesmo, para compreender outras áreas
como a Filosofia. Isto também era um fundamento da Matemática medieval. A Matemática
era ensinada nas instituições medievais para permitir um melhor entendimento das Ciências
e das Filosofias. Na época de Decartes, existia a intenção de explicar o mundo físico via
Matemática e Descartes foi um dos que incorporou esse procedimento em sua Filosofia
Natural. Nos trabalhos posteriores, efetivamente, incorpora esse ideal, exemplo disso é O
Discurso do Método, onde começa a estabelecer os princípios da sua Metafísica por essa
via.
É necessário fazer algumas observações sobre o que se expôs até o parágrafo
anterior, relativo sobre as Regras cartesianas. Com efeito, Descartes prentende buscar o
conhecimento científico inspirado na cultura Matemática, mas não seguirá aqueles
princípios euclidianos, isto é, como base lógica para erguer, com segurança, sua Geometria,
adotou Euclides três grupos, bem distintos de proposições: as definições, os axiomas e os
postulados, constrói uma Geometria plana e espacial usando a idéia cartesiana, Suponhamos,
que usando a idéia cartesiana, desejamos explicar um certo problema de qualquer natureza.
Então se deve supô-lo resolvido e, assim, se deve desconstruí-lo, reduzindo-o a proposições
110
mais simples até chegarmos numa proposição que se aceita como verdadeira, isto é, algo
aceito por nossa intuição. Então, a partir desses primeiros princípios, retrocedendo essas
etapas, usando a dedução, chegar-se-á na explicação do problema.
As quatro regras a seguir exclarecem com mais eficácia a re-interpretação do
método de análise e síntese dos antigos por Descartes.
2.5.2. O método de análise e síntese nas Regras
As Regras V, VI, VII e VIII podem ser consideradas, em conjunto, os pontos
fundamentais para se entender como o método de análise e síntese foi interpretado por
Descartes. Nelas, podemos detectar a forte presença do método de análise e síntese e
compreender como Descartes aplica-o, estudando um exemplo dado na obra as Regras, o da
linha anaclástica, que consiste em determinar uma curva capaz de refletir todos os raios
paralelos ao eixo da curva para um único ponto.
A Regra V anuncia que se reduzirmos gradualmente as proposições complicadas
e obscuras a proposições mais simples, etapa por etapa, e depois partindo da intuição das
mais simples, tentar ascender, pelas mesmas etapas, ao conhecimento de todas as coisas,
poderemos obter o conhecimento verdadeiro. Uma primeira análise da Regra V indica
uma semelhança com a descrição do método de análise e síntese. Nela, podemos detectar
a característica regressiva da análise e o seu reverso, a síntese. Nesta, Descartees compara
seu método ao fio de Ariadne que ajudou Teseu a sair do labirinto. Dividir o problema
gradualmente, em proposições mais simples, nos a mesma impressão do raciocínio
empregado na Matemática, descrita pelos geômetras antigos, por exemplo, quando se aplica
a análise, assumindo o problema como resolvido e buscando por antecedentes chegar em
algo aceito pela intuição, no caso da Matemática isto pode ser um postulado ou um
axioma, no caso da Ciência cartesiana, um primeiro princípio claro e evidente. Essa é a
etapa analítica do processo. A segunda etapa é a sintética que indica que se deve tomar o
caminho inverso da análise para recompor a demonstração do problema.
Na parte analítica, devemos, como Teseu fez para não se perder no labirinto, ir
penetrando nas possibilidades proporcionadas pela consideração do problema dado, mas ao
ir penetrando nessas possibilidades, para não se perder no caminho, deve-se anotar as
111
novas passagens (possibilidades) que surgem até chegar ao centro do labirinto, o primeiro
princípio. Para retornar basta seguir o caminho inverso, a partir desse primeiro princípio.
O fio de Ariadne serve então para não se perder no caminho, isto é, a enumeração
completa desse processo. A etapa sintética seguirá, portanto, o caminho inverso, isto é, o
caminho seguido por Teseu para sair labirinto
Desse modo, não se tem uma idéia muito precisa do método cartesiano, pois a
prática pode ser bem diferente do discurso, mas a medida que Descartes explica as
Regras VI,VII e VIII e, finalmente, aplica a metodologia na resolução de dois problemas
ilustrativos, o método se torna mais compreensível e se percebe, com mais clareza, o seu
significado e a sua semelhança com o método geométrico dos antigos geômetras.
O método adotado por Descartes pode agora ser melhor caracterizado. Pois trata-
se de um único método concebido em duas partes. A primeira parte é o procedimento
heurístico, a busca da verdade por meio da análise, decomponha-se o problema em etapas
necessárias e reduza essa etapa para premissas cada vez mais simples, até obter uma
proposição, de fato, conhecida como verdadeira, um princípio intuitivamente certo. Desse
modo, tem-se a síntese, revertendo as etapas analíticas, é a solução propriamente dita, ou a
construção. A síntese também serve para confirmar os passos da análise.
A Regra VI, segundo Descartes, é a mais importante do método. Em suas
palavras, contém o segredo do método e se a Regra anterior nos diz que se deve
decompor o problema para depois reconstruí-lo, o fundamento dessa última é ensinar
como obter os primeiros princípios. Assim, a Regra propõe que se deve, na busca dos
primeiros princípios, distinguir as coisas mais simples das mais complicadas. O critério de
identificação é baseado na concepção do mais absoluto. Numa série há os termos mais
absolutos e os relativos. O absoluto é, na decomposição do problema investigado, o
último estágio, quando se chega em algo do qual tenho certeza absoluta da sua
veracidade. O absoluto é portanto o que causa, o mais simples, independente, universal, uno,
igual, semelhante, reto, etc., para usar os termos do próprio Descartes. Mas não se deve
esquecer que o absoluto, em uma questão, pode ser relativo em uma outra. O relativo, por
sua vez, é o que participa da decomposição, mas diferentemente do absoluto, não permite
ainda concluir a proposição investigada. Não é, portanto, um primeiro princípio e não é
ainda uma verdade clara e distinta. É, como diz Descartes, o que é dependente, composto,
112
particular, ltiplo, desigual, dissemelhante, oblíquo, etc. A Regra pretende então ensinar a
identificar essas relações e observar a ordem natural para se, partindo da questão proposta,
chegar na mais absoluta na série, o que praticamente resolve a questão. Devemos, como
escreve Descartes nessa Regra, buscar-se, com todo cuidado e zelo, em todas as coisas, o
que há de mais absoluto. Essa é a essência da Regra
Assim, Deve-se, na busca dos mais absolutos, notar que o conceito pode ser
relativo, quando depende da categoria de problema que se está trabalhando. De qualquer
modo, a causa é o que de mais absoluto na série, ou seja, é a causa que se deve
buscar e assim, depois de descobrí-la, deve-se partir dessa para o efeito.
Descartes sabe que existem princípios simples que são obtidos pela experiência ou
que são inatos. Esses, uma vez analisados, com muito cuidado, é que nos permitirão
conhecer os outros, por meio da dedução. Esse processo de passar do conhecimento das
proposições mais simples para as mais complexas deve ser enumerado, para que se possa
visualisar o quanto as proposições, na série, estão mais ou menos afastadas do mais
absoluto.
Ainda, no exame da questão, não se deve iniciar pelas mais difíceis, mas antes,
tomar todas sem distinção. Desse modo, algumas questões que aparecem
espontaneamente, e é a partir dessas que se deve começar para depois ascender a outras
mais complexas. Nesse processo, encontra-se questões de todas as naturezas, mais difíceis,
mais fáceis. É preciso, portanto, fazer a escolha adequada, essa escolha vai depender do
tipo de questão que se esquerendo resolver, ou demonstrar, ou descobrir a verdade. Para
esclarecer melhor, Descartes propõe o exemplo de uma progressão geométrica ou
proporção contínua. No exemplo dado, ao determinar uma proporção contínua, a partir do
número três, cuja razão é dois, obtem-se a proporção 3, 6, 12, 24, etc. A lição que se deve
retirar desse exemplo é a conceituação que se pode retirar da questão para aplicá-la em
outras questões da Matemática. Ou seja, as noções simples, permitem-nos chegar em um
conhecimento mais complexo. Ainda explorando esse exemplo, Descartes esclarece que é
mais fácil, dadas as grandezas 3 e 6, obter uma terceira em proporção contínua do que a
partir das grandezas 3 e 12 obter a média proporcional 6. Uma questão mais difícil do
que as anteriores seria encontrar um dos meios proporcionais entre 3 e 24. O grau de
dificuldade aumentaria, ainda mais, se fosse proposto encontrar uma das três médias
113
proporcionais entre 3 e 48. Mas essas dificuldades podem ser reduzidas para questões
mais simples. Por exemplo, poderia encontrar a única média entre 3 e 48 que é 12, e
assim obter as demais.
de se considerar também que, na busca de um questão, existem, às vezes, várias
vias, umas mais fáceis do que outras, o mesmo exemplo anterior é sugerido por Descartes.
Assim, ele escreve, é muito fácil obter a proporção contínua 3, 6, 12 e 24 a partir de de
dois deles, 3 e 6 por exemplo, e essa dificuldade é examinada diretamente e se nos
propusermos a encontrá-la a partir de dois alternados, então a dificuldade é da primeira
forma. Se tentarmos encontrá-la a partir dos dois extremos a dificuldade é da segunda
forma.
O propósito desses exemplos é mostrar que algumas dificuldades são obtidas
diretamente e outras não, mas as que não são obtidas diretamente passam a sê-las,
bastando refletir atentamente o que se investiga.
Depois de tudo isto, observo também como se pode buscar o conhecimento
de uma mesma coisa por caminhos diferentes, dos quais um é mais difícil
e obscuro que o outro. Assim, para encontrar estes quatro números em
proporção contínua, 3, 6, 12, 24, se se o dois dados seguidos, a saber, 3 e
6, ou 6 e 12, ou 12 e 24, a fim de encontrar por eles os demais, a coisa
será muito fácil de fazer; então diremos que a proporção que se de
achar é examinada diretamente. Mas se supusermos dois alternados, 3 e 12,
ou 6 e 24, para por eles encontrar os demais, então diremos que a
dificuldade é examinada da primeira forma. O mesmo ocorre se se supõe
os dois extremos, a saber, 3 e 24, para deduzir deles os intermediários, 6 e
12. A dificuldade será então examinada indiretamente da segunda maneira.
Desse modo, poderia ir mais longe e deduzir muitas outras coisas, deste
exemplo, mas as expostas bastarão para que o leitor compreenda o que
pretendo dizer, quando declaro que uma proporção está deduzida direta ou
indiretamente, e saiba que, graças ao conhecimento das coisas mais fáceis
e que se conhecem em primeiro lugar, podem ser descobertas muitas
coisas ainda nas outras disciplinas por aquele que reflete atentamente e
investiga com argúcia. (DESCARTES, 2002, p. 89-90)
114
Na Regra VII, Descartes propõe que somente através de um movimento contínuo
e ininterrupto do pensamento podemos perceber a totalidade do objeto estudado. Essa
Regra complementa as demais, pois pretende recapitular e rever os procedimentos
realizados nas Regras V e VI. As três, em conjunto, definem a estrutura fundamental do
método.
O cumprimento do que aqui se propõe é necessário para admitir como
certas aquelas verdades que, segundo dissemos mais acima, não se
deduzem imediatamente dos primeiros princípios e em si mesmos
conhecidos. Ás vezes se faz esta dedução por um encadeamento tão cheio
de conseqüências, que quando chegamos a elas não recordamos facilmente
todo o caminho que até aí nos conduziu; e por isso dizemos que é preciso
remediar a fraqueza da memória por um movimento contínuo do
pensamento. (DESCARTES, 2002, p. 90).
Na citação acima “Remediar a fraqueza da memória por um movimento contínuo
do pensamento” consiste em passar pelas cadeias estabelecidas, quantas vezes for
necessário, para que, no final, tenhamos uma apreensão total da questão. Ao apreender
intuitivamente cada objeto particular da cadeia e passar imediatamente para outros seremos
capazes de absorver a questão. Depois que a recapitulamos rias vezes, passará a ser
então clara em nossas mentes. Em outras palavras, a Regra pretende que muitas processos
dedutivos passem a ser intuitivo para nós, o fio de Ariadne.
Essa Regra deve ser uma enumeração e uma intuição tão cuidadosa sobre uma
problemática que nada ficará por descobrir sobre a questão proposta exaurindo todas as
possibilidades da questão.
Caso não se consiga reduzir uma questão a uma intuição simples deve-se então
enumerá-la, quando se percorre a cadeia estabelecida várias vezes e se consegue, logo a
seguir, entender toda a questão, então se pode dizer que a questão foi reduzida a uma
intuição. Se as cadeias são muito longas e não conseguimos intuir, em um golpe toda
a questão, então recorremos a enumeração que garantirá a percepção dos elos
estabelecidos.
A tarefa da enumeração também é estabelecer uma boa ordem na questão. Assim,
algumas questões que a ordem é estabelecida linearmente, enquanto outras que não.
Desse modo, a enumeração pode ser, às vezes, em duplo sentido. Por exemplo, na seqüência
que vai do problema dado para o termo mais absoluto podemos encontrar, em alguma
115
passagem, um obstáculo que impede aquela trajetória dedutiva linear. Nesse instante,
devemos mudar a linha de raciocínio e tentar outros caminhos, em outras direções. É como
se estivéssemos caminhando em linha reta e encontramos pelo caminho um obstáculo que
impedisse a passagem. Devemos buscar alternativas e procurar outras formas de transpor o
obstáculo. Nesse sentido, a enumeração poderá se dar tanto no sentido horizontal quanto
no sentido vertical.
Na Regra VIII, Descartes proporá um exemplo que permite entendermos melhor o
significado não só da Regra VII, mas o propósito das Regras V, VI e VII, que, conforme
ele, não podem ser olhadas separadamente, ou seja, a descoberta se dá pela atuação das
três juntas. Descartes escreve que devemos ir além quando tivermos uma lida
apreensão intuitiva da proposição anterior. Isso garante uma continuidade da certeza
metodológica. O exemplo ilustrativo é o da linha anaclástica. Na resolução da questão
podemos perceber a atuação de todas as Regras precedentes. Como se observa, Descartes
havia estudado esse problema e aqui serve para descrever como aplica o seu método pela
primeira vez. Em A Dióptrica, essa idéia será fundamental à construção de lentes.
[...]Se alguém que estude somente Matemática procura essa linha que em
Dióptrica se chama anaclástica, e na qual os traços paralelos se refratam
de tal modo que depois da refração tem um ponto de intersecção,
facilmente se dará conta, segundo as regras quinta e sexta, que a
determinação dessa linha depende da proporção que guardam os ângulos
de refração com os ângulos de incidência; mas como não será capaz de
procurar minuciosamente esta relação, visto não pertencer à Matemática,
mas à sica, ver-se-á obrigado a deter-se no limiar e nada conseguirá em
querer aprender dos filósofos ou obter da experiência o conhecimento
desta verdade, pois pecaria contra a terceira regra. Além disso, esta
proporção é relativa e composta; e das coisas puramente simples e
absolutas se pode ter experiência certa. Em vão, suporá também entre tais
ângulos uma proporção que ele acreditará mais verdadeira que todas;
porque então não buscaria mais a anaclástica, mas somente uma linha que
seria a conseqüência lógica da sua suposição.( DESCARTES, 2002, p. 94)
A proporção que os ângulos de incidência e de refração devem ter é fundamental
para que os raios refratados na superfície convirjam para um único ponto. Esse fato é
demonstrado minuciosamente em A Dióptrica.
A passagem nos diz que se o investigador for um matemático, então a
insvestigação se interrompida, pois a propriedade seria do domínio da Física. Ao dizer
116
que o matemático nada conseguirá aprender de outros ou da experiência, pois pecaria contra
a terceira regra, é porque Descartes pressupõe, na terceira regra, que não devemos
investigar o que outros pensaram, mas, em contra partida, devemos investigar o objeto e a
partir dessa investigação obter uma idéia clara e distinta. A passagem ainda ilustra o poder
da Regra VII, pois aqui a decomposição do problema, para problemas mais simples, deixa
de ser linear, pois o investigador sendo um matemático e ao encontrar um obstáculo não
pertecente a sua área específica de conhecimento deverá procurar enumerar alternativas
para transpô-lo.
Em contra partida, continua Descartes,
[...]alguém que não se dedique somente às Matemáticas, seguindo a
primeira regra, investigar a verdade sobre tudo o que lhe apresente, cair
na mesma dificuldade, irá mais longe e encontrará que a relação entre os
ângulos de incidência e os ângulos de refração depende da variação
desses mesmos ângulos, em virtude da diferença de meios; que esta
variação, por sua vez, depende do modo como o raio penetra em todo o
corpo transparente; e que o conhecimento da propriedade de penetrar um
corpo supõe igualmente conhecida a natureza da ação da luz e que, enfim,
para compreender a ação da luz é preciso saber que é em geral uma
potência natural e esta última é, em toda série, a mais absoluta. Depois,
portanto, de ter feito claramente e em pormenor esse exame, por meio da
intuição intelectual, voltará a passar pelos mesmos graus, segundo a regra
quinta; e, se ao chegar ao segundo grau, não puder conhecer a natureza da
ação da luz, enumerará, segundo a sétima regra, todas as potências naturais
a fim de que, graças ao conhecimento de algumas delas, a compreenda
também pelo menos pela analogia da qual logo falarei; feito isto, indagará
de que maneira o raio penetra por todo o corpo transparente e assim
percorrerá o resto por ordem, até chegar na própria anaclástica. Esta, até
hoje, constitui o objeto de muitas investigações; todavia, nada vejo que
possa impedir alguém de empregar com perfeição nosso método e chegue
a conhecê-la de maneira evidente. (DESCARTES, 2002, p. 94-95)
Podemos interpretar o problema da linha anaclástica, segundo a metodologia
cartesiana, da seguinte maneira. Considere o problema dado, P
1
: Investigar o problema da
anaclástica, uma curva tal que os raios paralelos por ela refratados convergem em um
único ponto. Esse problema será reduzido para um outro mais simples, a saber, P
2
: a
determinação da anaclástica depende da proporção que guardam os ângulos de refração
com os ângulos de incidência. Neste ponto, Descartes diz que se quem investiga é um
matemático, então não conseguirá ir mais longe, pois, para prosseguir será necessário ter
um conhecimento mais abragente, entender certas propriedades da luz, em particular que
117
aqueles ângulos variam com o meio. Assim, deverá buscar em outras áreas subsídios que
o permita avançar. Sendo um físico, por exemplo, poderá reduzir P
2
para uma terceira
proposição. P
3
: a relação entre os ângulos de incidência e os ângulos de refração depende
da variação desses ângulos, em virtude da diferença do meio, por exemplo, o índice de
refração, quando a luz passa do ar para a água, é um e do ar para outros meios outro,
isto é, o índice depende dos dois meios. Assim, P
3
pode ser reduzida a P
4
: que esta
variação, por sua vez, depende do modo como o raio penetra em todo o corpo
transparente. Dessa forma, esta será reduzida a P
5
: o conhecimento da propriedade de
penetrar um corpo supõe igualmente conhecida a natureza da ação da luz. Por conseguinte,
P
5
finalmente será reduzida a P
6
: para compreender a ação da luz é preciso saber que é
em geral uma potência natural. Portanto, P
6
é a redução mais absoluta da série e encerra
o processo analítico da descoberta. Depois de chegar na última etapa, inicia-se o processo
sintético, deve-se reverter o processo e chegar na linha anaclástica, neste caso, o processo
é basicamente a ordem inversa da análise. Na última etapa, Descartes chega em um
primeiro princípio, a luz é uma potência natural. Com efeito, tal concepção se justifica
porque, num período anterior, Descartes estudou profundamente a luz e suas propriedades
refletoras e refratárias e anunciou que para entendermos a luz devemos concebê-la como
uma certa ão pronta para o movimento instantâneo. Portanto, estava seguro de que a luz
era um primeiro princípio, uma idéia clara e distinta.
Assim, podemos observar que a concepção cartesiana do método de análise e
síntese tem traços semelhantes com concepção de Papus e da prática geométrica dos
antigos geômetras. Mas em Decartes o método é utilizado para resolver um problema que
não pertence a Geometria. Descartes começa decompondo o problema, tentando reduzí-lo
para outros mais simples, até alcançar um primeiro princípio, algo reconhecido pela luz
natural da razão. Depois disso, revertendo os passos anteriores, reconstrói o problema e
para entendê-lo bastará seguir o caminho estipulado por último, na síntese, em suma, de um
princípio claro e distinto até a completa concepção do problema. Isso, como tinha sido
sugerido pelo próprio Descartes, efetivamente confirma que ele foi um seguidor do
método dos antigos geômetras gregos. A passagem testemunha também tratar-se de um
único método. O método é entendido, por ele, como constituído de duas etapas
inseparáveis, análise e sintese, como a abordagem de Hintikka e Remes.
118
Então, podemos dizer que Descartes, inspirado por esse método geométrico, fará a
transposição metodológica das Ciências exatas para outras áreas do conhecimento. De fato,
isso indica que o ideal metodológico grego será retomado, mas agora com um grande
diferencial, está voltado para questões mais amplas.
Apresentado e exemplificado o método analítico, Descartes propõe, em seguida,
treinar a mente para melhor aplicar sua metodologia, o que é apresentado nas quatro
regras seguintes.
2.5.3 Como aplicar as Regras anteriores
Nas Regras IX, X, XI, XII, Descartes esclarece melhor como devemos treinar
nossas mentes para não cometermos erros durante o processo de descoberta. No
transcorrer de suas explicações parece repetir algumas das Regras anteriores.
Na Regra IX, Descartes chama atenção para a forma com que admitimos os
primeiros princípios, advertindo que devemos dar atenção especial aos mais simples e
fáceis e gastar neles o tempo necessário para analisá-los e extrair a verdade de modo
claro e distinto. Com isso, tenta desenvolver as duas faculdades principais do método: a
intuição e a dedução, ou nas próprias palavras de Descartes: a perspicácia, tendo a intuição
clara de cada coisa; e a sagacidade, deduzindo habilmente uma das outras.
Na Regra X, Descartes observa que é necessário partir das coisas mais simples e
fáceis para progredir para fatos mais gerais, usando caminhos claros e conhecidos. Assim,
construiremos um conhecimento deduzido a partir de princípios evidentes e muitas
proposições complicadas serão resolvidas por essa via. O conhecimento progressivo é uma
característica desse método. Não poderemos mesmo obter todo conhecimento de uma
vez. É necessário construí-lo, pouco a pouco, pois as proposições descobertas e aceitas
como verdadeiras, em um processo investigativo anterior, serão novas premissas adquiridas
e servirão de base para outras investigações futuras.
[...]Convém, pois exercitar-nos primeiro nestas coisas mais fáceis, porém
com método, a fim de nos acostumarmos a penetrar sempre na íntima
verdade das coisas por caminhos claros e conhecidos, pois assim
experimentaremos, pouco a pouco e em menos tempo do que se pode
esperar, que nós também, com igual facilidade, podemos deduzir, de
119
princípios evidentes, muitas proposições que pareciam muito difíceis e
complicadas. (DESCARTES, 2002, p. 101)
Na Regra XI, Descartes retoma as Regras terceira e sétima e explicita intuição
intelectual, inferência, dedução, intuição e enumeração ou indução. A intuição intelectual
exige duas condições:
[...]que a proposição seja compreendida clara e distintamente, e além disso,
que seja compreendida, em seguida, toda ao mesmo tempo, e não
sucessivamente. Mas a dedução, se atendermos à maneira de fazê-la como
na regra terceira, não parece que se faça toda de uma vez, mas que
implica certo movimento no nosso espírito que deduz uma coisa de outra;
por isso, ali, com razão, a distinguimos da intuição. Se a considerarmos,
porém já feita, como no que disse na regra sétima, então não designa
movimento algum, mas o fim de um movimento, e por isso supomos que
é vista por intuição quando é simples e clara, e não quando é múltipla e
obscura. A esta damos o nome de enumeração ou indução, porque nesse
caso não pode ser compreendida toda ao mesmo tempo pelo
entendimento, e sua certeza depende, de certo modo, da memória, na qual
se devem conservar os juízos emitidos sobre cada uma das partes
enumeradas, para coligir de todas elas uma única conclusão.( DESCARTES,
2002, p. 102-3).
Para esclarecer melhor Descartes explica, por meio de um exemplo, que se
estabelecemos uma relação entre dois objetos, depois uma entre o segundo objeto e um
outro e assim sucessivamente até estabelecermos uma relação entre o penúltimo e o
último e não lembrando de todos os passos da cadeia silogística, ou seja, não lembramdo
o que conecta a primeira com a última, então é necessário percorrê-la repedidamente com
o pensamento até apreendermos toda ela sem o auxílio da memória, parecendo que
percorremos tudo de uma única vez. Assim, nesta Regra fica evidente que um retorno
a Regra VII, com o intuito de complementar ou reforçar o método para a busca da
verdade, não deixando nada sem investigar.
[...] Com efeito, a memória, da qual se disse que depende a certeza das
conclusões, por ser fugaz e fraca, deve ser renovada e fortalecida por esse
contínuo e repetido movimento do pensamento; assim, se por várias
operações, tenho descoberto primeiro a relação que existe entre uma
primeira e uma segunda grandeza, depois entre a segunda e a terceira, a
seguir , entre a terceira e a quarta, e, finalmente, entre a quarta e a quinta,
não vejo por isso qual seja a relação entre a primeira e a quinta
grandeza, nem posso deduzi-la das já conhecidas, a não ser que me lembre
120
de todas elas. Eis por que me é necessário percorrê-las repetidamente com
o pensamento, até que passe tão depressa da primeira à última, sem deixar
nenhum papel à memória, parecendo que percebeu tudo de uma vez.
(DESCARTES, 2002, p. 103)
Enfim, o que Descartes pretende com essa Regra é treinar a nossa intuição, a
nossa dedução e a nossa enumeração, ou seja, essa Regra reavalia e revisa as anteriores.
Assim, a intuição de algo deve ser concebida clara e distinta na nossa mente e a
dedução, depois de realizada, deve se tornar o clara quanto uma intuição. A enumeração,
por sua vez, quando não puder ser concebida como uma dedução, e, conseqüentemente,
como uma intuição, descreverá um conhecimento mais complexo, uma vez que não possa
ser absorvido, de uma vez, pela nossa mente, deve ser retomado várias vezes até se
tornar algo claro e distinto.
Na última regra do Livro I, Regra XII, Descartes salienta a importância dos rios
recursos que o homem tem a seu dispor para obter o conhecimento verdadeiro, a saber: a
inteligência, a imaginação, os sentidos e a memória. Através da inteligência, concebem-se
as coisas que existem e as relações entre elas. Pela imaginação, pode-se comparar,
conservar, reproduzir, dissociar e combinar. Pelos sentidos, podemos receber as impressões
externas por meio da audição, olfato, tato, visão e o paladar. Pela memória, conservam-se e
evocam-se os conhecimentos adquiridos. Mas as principais idéias da Regra XII são:
estabelecer a noção mais primitiva dos corpos, a extensão e a forma; tudo que existe de
perceptível, segundo essa Regra, pode ser representado como extensão e forma.
Na introdução da Regra, Descartes diz que essa resume tudo o que foi dito
anteriormente e que ensina, em geral, o que se devia explicar em particular. Na verdade,
Descartes tenta estabelecer uma estreita relação entre o sujeito e o objeto do
conhecimento. O segundo parágrafo da Regra XII é explicito quanto a essa relação.
No que diz respeito ao conhecimento, duas coisas são necessárias ter em
conta, a saber, nós, que conhecemos, e as coisas a conhecer. Em nós, apenas
quatro faculdades que nos podem servir para esse objetivo, quais
sejam, o entendimento, a imaginação, os sentidos e a memória. o
entendimento é capaz de perceber a verdade, mas deve ser ajudado pela
imaginação, os sentidos e a memória, para não omitirmos nenhum dos
meios postos ao nosso alcance. Pelo lado das questões, basta examinar
esses três aspectos: primeiro, o que se apresenta espontaneamente; depois,
121
como uma coisa é conhecida por outra; e finalmente, que deduções se pode
tirar de cada um. Esta enumeração me parece completa, nada omitindo do
que se pode alcançar a capacidade humana. (DESCARTES, 2002, p. 105).
Descartes usa, para definir essa relação, a cognição obtida via percepção dos
objetos garantida pela fisiologia óptica e pela Filosofia Natural mecanicista. Primeiro,
quanto a nós, podemos chegar ao conhecimento via percepção sensorial, pois tudo que
percebemos pode ser representado por formas. A natureza é composta de magnitudes, a
imagem retiniana é bidimensional e, assim, tudo pode ser representado em nossas mentes
por figuras planas e ser reduzido a uma noção muito simples, o segmento.
Segundo, quanto aos objetos do conhecimento são dotados de forma, são corpóreos
e possuem extensão. Essas características são tão claras que podem ser considerados
princípios absolutos, são idéias claras e distintas. Não podem, portanto, serem divididas em
outras. O que une o mundo corpóreo a s é a faculdade que temos de incorporá-lo, via
percepção, e representá-lo em nossas mentes como idéias claras e distintas, os segmentos.
Mas surgem questões naturais. Por exemplo, como podemos representar as cores
em nossas mentes. Para Descartes essas características são inerentes aos objetos, como o
peso. São características reconhecidas pelo nosso intelecto, não necessitando de nada mais,
não precisam ser representados por uma extensão.
Por fim, o silogismos é o que une os dois mundos, permitindo-nos construir o
conhecimento.
2.5.4 A Matemática nas Regras
Na obra Regras para a direção do espírito, Descartes dedica a segunda parte à
Matemática. Embora tenha ficado incompleta, podemos detectar o esforço de Descartes
numa tentativa de incorporar a linguagem algébrica à geométrica. Para tanto, reformulou e
introduziu alguns conceitos fundamentais, como é o caso do conceito de unidade e
homogeinidade, mas o que se observa ainda não são idéias precisas. De todo modo, essa
parte é interessante, pois permite-nos notar o seu esforço em superar algumas idéias que
há muito tempo perseguia e perceber a sua evolução conceitual.
122
As Regra XIII e XIV ensinam-nos que uma vez que entendemos um problema
devemos analisá-lo dividindo-o em partes mais simples e depois expressá-lo em termos
não ambíguos. A Regra XIII é enunciada como se segue: “Se compreendemos
perfeitamente uma questão, devemos abstraí-la de todo conceito supérfluo, reduzi-la a maior
simplicidade e dividi-la em partes tão pequenas quanto seja possível, enumerando-as
.”
(Descartes, 2002, p. 117).
No início da explicação compara a sua técnica com a dos dialéticos:
[...] na exposição das formas dos silogismos, supõem [os dialéticos]
conhecidos os seus termos ou a matéria, assim também supomos que a
questão é perfeitamente compreendida. Não distinguimos, porém, como eles,
dois extremos e o meio. Consideramos o assunto desta forma: primeiramente
é necessário que em toda questão haja algo desconhecido, pois do
contrário, a investigação seria vã; em segundo lugar, esse incógnito deve ser
designado de alguma maneira, pois do contrário não estaríamos
determinados a investigar isso melhor que qualquer outro objeto; em
terceiro lugar, só pode ser designado mediante algo que seja conhecido.
(DESCARTES, 2002, p. 117)
A demonstração do dialéticos considerava três proposições, a saber: a premissa
maior, a premissa menor e a conclusão. Mas Descartes pretende mudar essa estrutura. O
que manterá é o fato de que devemos considerar a questão e compreendê-la
completamente. Depois identificar o que devemos descobrir e designá-lo de alguma forma,
um símbolo breve, e assim estabelecer uma relação entre o desconhecido e o conhecido
do problema. Certamente, isso é uma alusão a forma algébrica de trabalhar um problema.
No transcorrer da Regra XIII acrescenta ainda que a dificuldade deve ser reduzida à
maior simplicidade possível. O procurado, por sua vez, deverá ser designado de forma
precisa e nada é mais preciso do que um símbolo algébrico. Concluindo a Regra XIII,
Descartes afirma que a única coisa importante é percorrer ordenadamente tudo o que está
dado em um problema, deixando o que se claramente e abstraindo o necessário e
submetendo o que é duvidoso a um exame mais atento e preciso.
Na parte introdutória da regra XIV afirma o seguinte:
Para utilizar a imaginação deve-se notar que, sempre que deduzimos uma
coisa desconhecida de outra conhecida, não encontraremos nisso algum
novo gênero de ser. Acontece apenas um alargamento do nosso
conhecimento que nos faz compreender que a coisa procurada participa
123
de um e outro modo da natureza das que estão dadas na questão.
(DESCARTES, 2002, p. 122)
Descartes discute, nesse parágrafo, como investigar o que não conhecemos a partir
do que sabemos, sugerindo em seguida que o procedimento heurístico é realizado por
meio de várias espécies de comparação.
Deve-se notar também que as comparações se chamam simples e clara
quando o que se procura e o que é dado participam igualmente de certa
natureza. Quanto às outras comparações, necessitam de preparação por este
motivo: porque aquela natureza comum não está igualmente nas duas,
senão segundo certas proporções em que está envolvida, e que a maior
parte do trabalho humano consiste em reduzir estas proporções de modo
que se veja claramente a igualdade entre o que se procura e o que se
conhece. (DESCARTES, 2002, p. 123).
Assim, para investigar algo desconhecido devemos estabelecer uma proporção
entre o que é procurado e o que é dado, depois, abstraindo os termos das proporções,
escrevendo-os em linguagem de magnitudes, devemos expressá-los em forma de igualdade.
A terminologia de Descartes aqui é a mesma da teoria das proporções ou teoria de
equações. Com efeito, nessa passagem podemos fazer uma analogia com as passagens já
expostas anteriormente em Diofanto, Papus e Viète.
Na Regra XV, Descartes mostra a importância de se utilizar representações, para
que possamos abstrair melhor os objetos em nossa imaginação. Nela, Descartes descreve
formas de representar a unidade, para superar o obstáculo da dimensionalidade, mas o que
a regra descreve é praticamente o mesmo que foi dito na “Velha Álgebra”, como foi
enfatizado anteriormente. Descartes ainda se mostra confuso quanto ao conceito de
unidade:
Representaremos primeiro, a unidade de três maneiras: por um quadrado ,
se a consideramos como comprida e larga; ou por uma linha , se a
consideramos enquanto comprida, ou finalmente, por um ponto . , se
apenas pretendemos com ela formar a quantidade; mas, de qualquer
maneira que seja representada e concebida, compreenderemos sempre que é
um objeto extenso em todos os sentidos e capaz de infinitas dimensões.
Assim também os de uma proposição, se for necessário atender a duas de
suas grandezas diferentes, apresentar-se-ão aos nossos sentidos por um
retângulo, cujos dois lados serão as grandezas propostas da seguinte
maneira: se forem incomensuráveis com a unidade ; ou desta , ou
124
esta outra se forem comensuráveis; e sem nada mais, se estiver em
questão uma pluralidade. Se enfim atendemos a uma só de suas grandezas,
representá-la-emos ou por um retângulo no qual um dos lados seja a
grandeza proposta, e o outro a unidade, deste modo , o que se faz
sempre que é preciso compará-la com uma superfície; ou por um
comprimento, desta forma , se se considera apenas como comprimento
incomensurável; ou então, deste modo, se se trata de uma pruralidade.
(DESCARTES, 2002, p. 131)
Em A Geometria, a unidade será designada por um segmento de reta e todas as
grandezas serão reduzidas a segmentos, isso permitirá Descartes avançar, consideravelmente,
em relação a seus contemporâneos e aos antigos geômetras gregos, mas aqui, se mostra
confuso, apresentando duas possibilidades para a unidade.
Na Regra XVI, Descartes afirma que devemos utilizar a escrita para não
sobrecarregarmos a memória, deixando-a livre para contemplar outras idéias:
De resto, como dissemos que não se devia contemplar numa mesma
intuição, intelectual ou visual, mais de duas dimensões diferentes dentre as
inumeráveis que se podem representar em nossa fantasia, é importante
reter todas as outras, de modo que se nos apresentem quando forem
necessárias. E foi para este fim que a natureza parece ter instruído a
memória. Mas como esta faculdade é muitas vezes fugaz, e para não nos
vermos obrigado a gastar parte de nossa atenção para reavivá-la, enquanto
estamos ocupados com outros pensamentos, inventou-se muito a propósito
o uso da escrita, e, fortalecidos por esta ajuda, não confiaremos aqui mais
nada à memória senão que deixando livre toda nossa fantasia, totalmente
entregue às idéias presentes, representaremos no papel as coisas que devem
ser retidas, e isto por meio de sinais brevíssimos, a fim de que depois de
haver examinado distintamente cada coisa em particular, segundo a regra
nona, possamos com o teor da undécima, percorrer todas com movimento
muito rápido do pensamento e contemplar intuitivamente, a um tempo,
o maior número possível de objetos. (DESCARTES, 2002, p. 132)
Descartes continua justificando a importância de se usar a unidade e de usar
sinais breves
para vencer as dificuldades no tratamento das questões Matemáticas. Anuncia
que usará as primeiras letras do alfabeto, em minúsculas, para as grandezas conhecidas e
as maiúsculas, para as grandezas desconhecidas. Essa simbologia será modificada em A
Geometria, nesse texto utilizará as letras minúsculas do fim do alfabeto: x, y, z, para as
variáveis e as letras do início do alfabeto, também minúsculas: a, b, c para os parâmetros
conhecidos, coeficientes das equações. Descartes mostra-se bastante consciente da
125
inportância da simbologia para superar as dificuldades nas Ciências Matemáticas. A
citação a seguir mostra essa preocupação.
Desse modo, tudo o que for necessário considerar como uma unidade para
a solução de uma dificuldade, designaremos com um só sinal que se pode
representar como se queira. Para maior facilidade, utilizaremos as letras a,
b, c, etc., para expressar grandezas conhecidas e A, B, C, para as
desconhecidas, às quais anteporemos freqüentemente os números 1, 2, 3,
etc., para explicar a pluralidadee, por outra parte, posporemos estes mesmos
números para explicar o número de relações que nelas deverão ser
compreendidas; assim, se escrevo
3
2a
, será o mesmo que dizer o dobro da
grandeza designada pela letra “a” que contém três relações. Com este
ardil, não só economizaremos um grande número de palavras, mas, o que é
mais importante, apresentaremos os fins das dificuldades sob uma forma
tão pura e tão clara que, sem omitir nada de útil, não se encontre nada de
supérfluo e que ocupe inutilmente a capacidade do espírito, enquanto a
mente tenha de abarcar várias coisas de uma vez. (DESCARTES, 2002,
p. 132-3).
A regra XVII diz que devemos, em uma investigação direta do problema a ser
resolvido, desconsiderando o fato que alguns de seus termos são conhecidos e outros
desconhecidos, e intuindo por uma série de argumentos sólidos, estabelecer a dependência
de um termo com o outro. Descartes está particularmente interessado na complicada
questão de discernir certas proposições intermediárias da inferência dedutiva que permite
relacionar a primeira e a última proposição. Neste caso, devemos seguir a ordem invertida
ou indireta do processo dedutivo usual, apresentando a chave para resolver tais problemas:
[...] Como, porém, não nos ocupamos aqui senão de questões complicadas,
nas quais se conhecem os extremos e se deve chegar a conhecer certos
intermediários, no meio de uma ordem invertida, todo artifício aqui
consistirá em, supondo por conhecido o que é desconhecido, poder desta
forma nos apresentar um caminho fácil e direto de investigação, mesmo
nas dificuldades mais emaranhadas. Nada impede que isso aconteça;
supusemos no início deste capítulo poder reconhecer que as coisas
desconhecidas em uma questão estão em tal dependência das que são
conhecidas que por estas estão completamente determinadas. Assim, se
refletirmos sobre elas, pois são as que primeiramente nos ocorrem,
enquanto reconhecemos esta determinação, e se as considerarmos
conhecidas, embora sejam desconhecidas, para então deduzirmos pouco a
pouco e por meio de raciocínios verdadeiros todas as coisas, mesmo as
conhecidas, como se fossem desconhecidas, teremos cumprido tudo o que
esta regra prescreve. (DESCARTES, 2002, p. 136)
126
Na Regra XVIII, apresenta as quatro operações básicas: adição, subtração,
multiplicação e divisão, afirmando que qualquer magnitude deve ser representada por
superfícies ou linhas:
Se for preciso fazer uma adição ou uma subtração, concebemos o objeto
sob a forma de uma linha ou sob a forma de uma grandeza extensa, na
qual não se deve considerar mais que o comprimento, pois, se for preciso
juntar a à linha b,
Juntaremos uma à outra, deste modo,
se obtém c
Se, pelo contrário, a menor tiver de ser tirada da maior, isto é b de a
Colocaremos uma sobre a outra desta maneira,
E assim se obtém a parte da maior que não pode ser coberta pela menor,
a saber:
Na multiplicação, concebemos também as grandezas dadas em forma de
linhas; porém imaginando que formam um retângulo, pois se multiplicarmos
a por b,
adaptamos uma à outra em ângulo reto desta maneira,
e se obtém o retângulo
Se queremos ainda multiplicar ab por c,
Convém imaginar ab como linha, a saber: ab
De modo que resulta para abc
Finalmente, na divisão em que o divisor está dado, imaginamos que a
grandeza a ser dividida é um retângulo em que um dos lados é o divisor
e o outro o quociente; assim por exemplo, se ao de dividir o retângulo ab
por a
127
Tira-se a longitude a e fica b por quociente
Ou ao contrário, se se divide o mesmo retângulo por b, tira-se a altura b
e o quociente será a
Quanto às divisões em que não está dado o divisor, mas apenas designado
por alguma relação como quando se diz que vai extrair a raiz quadrada
ou cúbica, etc., deve se notar então que o dividendo e todos os outros
termos devem sempre ser concebidos como linhas existentes em uma série
de proporções contínuas, das quais a primeira é a unidade, e a última, a
grandeza a dividir. Quanto ao modo de encontrar entre esta unidade tantas
médias proporcionais quantas quisermos, será explicado em seu devido
lugar. (DESCARTES, 2002, p. 140)
Aqui, Descartes aplica os dois conceitos de unidade: um segmento unidade,
denotado aqui por e, e um retângulo unidade, com um lado medindo um segmento
unidade. Assim, pretendia representar magnitudes como segmento ou como retângulo de
modo que o segmento de medida l e o retângulo de comprimento l e largura e fossem,
de certa forma, equivalentes. A adição e a subtração podem ser realizadas por justaposição
e por remoção, respectivamente, de um segmento (ou um retângulo) com o outro. Na
multiplicação com dois fatores a e b, obteríamos um retângulo de comprimento a e
largura b, de área ax que poderia ser transformado em um retângulo de comprimento
c=axb e largura e. Na divisão, o dividendo deveria ser interpretado como um retângulo e
o divisor como um segmento. Assim, para dividir d por f, d e f segmentos, primeiro
formamos o retângulo dxe, depois transformamos esse retângulo em um de área igual e
largura f; o outro lado g deste retângulo seria o quociente d/f, ou seja, a divisão é obtida
a partir da igualdade das áreas dxe = fxg.
Na parte parte final da citação acima, Descartes interpreta a extração da raiz n-
ésima de um segmento de linha como a primeira (n-1) média proporcional entre a
unidade e e a. Se a raiz é x, então:
e:x = x:x
2
= .... = x
n-1
:a, assim x
n
= ae.
No caso da raiz quadrada, bastaria considerar e:x = x:a, ou seja, a extração da raiz
era considerada uma espécie de divisão em que o divisor não era dado. De certa forma,
128
Descartes indica que a extração da raiz é a solução de uma equação que pode ser
reduzida a uma espécie de divisão. Muitos autores, por exemplo Bos e Gaukroger, apontam
que é justamente nesse ponto que as Regras são interrompidas, pois Descartes percebeu
que a extração de certas raízes seria impossível de ser construída com régua e compasso.
Com a definição de uma unidade e com as operações definidas como acima,
Descartes pretendia construir a ligação entre a Geometria e a Álgebra. Mas esse projeto
teria de esperar mais nove anos. Somente em A Geometria isso será realizado com
sucesso. Como podemos ver, pela citação acima, Descartes se mostra ainda confuso com
relação a representação das operações. Por exemplo, às vezes o produto de duas variáveis
pode ser representado por um retângulo. Em outro momento pode ser representado por um
segmento de reta. Em A Geometria as operações geométricas serão todas reduzidas a
segmentos de retas, isso com outras mudanças conceituais permitirá Descartes avançar
bastante, dando contribuições importantes à Geometria.
As Regras XIX, XX, XXI são apenas enunciadas sem maiores comentários. Regra
XIX: “Por este método de raciocínio, importa buscar tantas grandezas expressas de dois
modos diferentes, quanto os termos desconhecidos que supomos como conhecidos para
encontrar diretamente a dificuldade; assim obter-se-ão outras tantas comparações entre duas
coisas iguais”. Regra XX: “Uma vez resolvida as equações, se hão de efetuar as operações
que deixamos de lado, não usando nunca da multiplicação enquanto haja lugar para a
divisão”. Regra XXI: “Se tivermos diversas equações destas, devem ser reduzidas a uma
única, qual seja, àquela cujos termos ocupem o menor número de graus na série das
grandezas continuamente proporcionais, segundo a qual os mesmos termos devem ser
dispostos.” (DESCARTES, 2002, pp. 141-142).
Finalmente, antes de falar da principal obra cartesiana, menciono uma análise
realizada por Gaukroger (2002, pp. 228-229), segundo a qual, Descartes deixou de completar
as Regras porque percebeu que esse projeto não teria sucesso. Elas tratam de problemas
que deveriam ser expressos por meio de diversas equações com diversas incógnitas que
deveriam ser apresentados algebricamente, mas não podiam ser legitimadas pelo método
proposto. Por último, Gaukroger argumenta que foi justamente na resolução da equação
76
2
+= xx
, apresentada em seu reencontro com Beeckman, em 1628, que Descartes
percebeu o quanto restrito era o seu método. O método funciona bem nos casos em que
129
as raízes são racionais (quadrados perfeitos), entretanto, quando as raízes são irracionais, as
construções podem se tornar muito complexas e não podem, às vezes, sequer serem
representadas, isso iria abalar o critério das verdades claras e distintas e por isso
Descartes deixou as Regras inacabadas.
Passaremos agora à principal obra cartesiana, O Discurso do Método. Nessa obra
encontramos o seu método anunciado oficialmente pela primeira vez.
CAPÍTULO III: O DISCURSO DO MÉTODO E OS ENSAIOS
Muitas idéias apresentadas em O Discurso do Método foram inspiradas pelas que
comõem a obra Regras para a Direção do Espírito e em escritos anteriores. Com efeito,
ao lê-lo notamos isso nitidamente, embora o tom do Discurso seja bem mais consistente.
Descartes publicou O Discurso do Método para Bem Conduzir a Razão e
Procurar a Verdade nas Ciências como uma introdução a três ensaios, a saber: A
Geometria, A Dióptrica e A Metereologia, em 8 de junho de 1637, em Leyden, com o
título: Discours de la methode pour bien conduire as raison, et chercher la vérité dans les
sciences. Plus La Diòprique, Les Météores, Et La Geometrie. Qui son des essais de cette
Méthode. O livro foi publicado anonimamente, em francês, embora toda comunidade
acadêmica soubesse o nome do autor. Na parte final da obra, justifica porque escreveu em
francês
44
:
E, se escrevo em francês, que é a língua do meu país, e não em latim, que
é a de meus preceptores, é porque espero que aqueles que usam apenas
sua razão natural inteiramente pura julgarão melhor minhas opiniões do
que aqueles que só acreditam nos livros antigos. E quanto aos que unem o
bom-senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, tenho certeza
de que não serão, de modo algum, tão parciais em favor do latim que
recusem ouvir minhas razões, só porque as explico em língua vulgar.
(DESCARTES, 1989, p. 92).
44
Nesse período as obras científicas e filosóficas eram quase todas escritas em latim que era uma espécie
de imposição literária, como o inglês é nos nossos dias. O Discurso do Método de Descartes é a primeira
desse gênero escrita em francês, isso expande consideravelmente o número de leitores, uma vez que somente
os doutos conheciam bem o latim.
130
Posteriormente, em 1644, em Amsterdam, foi publicado uma tradução latina do
Discurso e dos ensaios, mas A Geometria foi excluída.
Nos três ensaios, Descartes pretendia ilustrar o seu método, aplicando-o às
questões científicas abordados naquela época, com as quais existia uma preocupação com
os problemas relacionadas à Filosofia Natural ou Física. A busca de explicações para
problemas da natureza, via Matemática, estava em voga e Descartes viveu intensamente
essa tendência, talvez seja por isso que os três ensaios foram interessantes para o
público em geral daquele período, mais até do que o próprio Discurso. Esse é um fato
notável, com o passar do tempo tivemos uma situação completamente diferente. O
Discurso do Método tornou-se a parte principal e a mais lida pelo público, passando a
ser, inclusive, separada dos ensaios e, os ensaios, separados entre si, tornaram-se
praticamente esquecidos. Com efeito, em língua portuguesa, inglesa, espanhola e francesa,
encontramos uma grande variedade de traduções e estudos de O Discurso do Método, mas
dos três ensaios existem poucas traduções e estudos. Em língua portuguesa, não existe
traduções de Os Meteoros e nem de A Dióptrica e apenas uma tradução para o português
de portugal de A Geometria. Talvez, o real motivo tenha sido a superação ou a evolução
das idéias científicas que vieram depois de Descartes e que ofuscaram completamente
esses tratados. Não podemos esquecer que, logo a seguir, os fundamentos da Física
moderna seriam construídos e a Física se tornaria um campo teórico bem elaborado pelas
leis de Newton, que explicaram diversos fenômenos naturais, incluindo os abordados por
Descartes.
Hoje, é comum historiadores, filósofos e estudiosos das Ciências em geral adotarem
o critério de estudar o método cartesiano, de fazer Filosofia e Ciência, em trabalhos como
As Regras, O Discurso (exceto os ensaios) e As Meditações, em lugar de nos três ensaios
científicos. Pode-se dizer que isso é um erro, se desejarmos mostrar a influência das idéias
Matemáticas sobre a Filosofia e a Ciência cartesianas, pois ao estudarmos a metodologia
cartesiana, sem estudar os três ensaios, a imagem obtida é bastante diferente daquela
quando consideramos o conjunto da obra, pois nesses ensaios encontramos exemplos
práticos da aplicação do método cartesiano. Relembramos que o próprio Descartes
escreveu, certa vez, que a sua metodologia seria melhor entendida nos três ensaios que
seguiam O Discurso. Desse modo, neste capítulo, analisaremos a obra como um todo para
131
tentar mostrar essa interação e a forte influência da Matemática, tanto na parte
introdutória quanto nos ensaios científicos, oferecendo uma interpretação, no mínimo, mais
abrangente. O próprio Descartes escreveu, em uma carta a Mersenne, que a parte
introdutória da obra descrevia a sua metodologia, mas que não pretendia ensiná-la, apenas
falar sobre ela, que o método é mais prático do que teórico, e que os conteúdos dos
ensaios foram descobertos pelo uso desse método. Assim, ao ler os ensaios, poderemos
entender melhor como aplicava a sua metodologia.
Assim, começaremos abordando algumas considerações sobre O Discurso do
Método, dando especial atenção à segunda parte, onde é anunciado o método cartesiano.
Depois abordaremos os três ensaios.
3.1 A estrutura de O Discurso do Método
O Discurso do Método é fundamental para entendermos como Descartes
filosofava. Nele, é abordado, mais uma vez, o método que Descartes supõe aplicável a toda
Ciência. A questão do método é importante, pois, para o filósofo, é o ponto de partida, a
base de seu sistema, isto é, a partir do método que explicará seus modelos filosóficos e
científicos.
É sugerido, pelo próprio Descartes, que o Discurso, para melhor ser entendido, para
que a leitura não se torne excessivamente longa e cansativa, seja dividido em seis partes.
Na primeira, sempre com perfeito domínio da eloqüência, o discurso de Descartes avisa
que pretende explicar os fatos como uma experiência pessoal, uma autobiografia, a história
solitária de um pensador que, quem sabe, possa inspirar outras pessoas. Aliás, a
autobiografia era um gênero literário desde épocas mais antigas, um relato moral. Foi
utilizado por diversos escritores como Santo Agostinho, Cardano e Montaigne, etc.. Além de
gênero literário, era uma espécie de introdução, um pré-requisito do saber, onde o escritor
buscava convencer outros a respeito de suas idéias. Em seu relato, Descartes se define
como um indivíduo de espiritualidade não superior aos demais; entretanto, aprendera desde
cedo a trilhar certos caminhos que o conduziram, gradativamente, a um alto conhecimento
e, modestamente admite, não teria conseguido êxito se não fosse por essa via.
132
Desse modo, Descartes supõe ser importante descrever sua caminhada. Começa
elogiando a educação que recebera no Colégio La Flèche, onde, como vimos, estudou latim,
grego, história, poesia, moral, Teologia, Filosofia. No relato de sua trajetória, falando de sua
formação acadêmica, demonstra a influência da Matemática na formação de seu
pensamento posterior a sua formação em La Flèche, mas, ao mesmo tempo, não deixa de
descrever a decepção do ensino que recebera.
Desde a infância nutri-me das letras[gramática, história, poesia, retórica], e
por me haver persuadido de que por meio delas se podia adquirir um
conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil a vida, sentia um
imenso desejo de aprendê-las. Mas, logo que terminei todos esses anos de
estudos (ao cabo dos quais se costuma ser recebido na classe dos doutos),
mudei inteiramente de opinião. Achava-me com tantas dúvidas e
indecisões, que me parecia não ter obtido outro proveito, ao procurar
instruir-me, senão o de ter revelado cada vez mais a minha ingnorância. E,
no entanto, eu estudara numa das mais célebres escolas da Europa, onde
pensava existir homens sábios se é que existiam em algum lugar da
Terra. Aprendera tudo o que os outros aprendiam, e, inclusive, não
contente com as Ciências que nos ensinavam, percorrera todos os livros
que tratavam daquelas consideradas as mais curiosas[magia, astrologia] e
mais raras, com as quais tive contato. (DESCARTES, 1989, p. 33).
Descartes continua dizendo que apreciava os exercícios da escola, pois isso lhe
permitiu conhecer o valor de cada disciplina e de não ser enganado por elas. Assim, diz
que as línguas, latim e grego, eram necessárias ao entendimento dos livros antigos. As
fábulas motivam o espírito. As ações memoráveis da história ajudam a formar o juízo. As
leituras dos livros antigos era uma conversação com os homens sábios do passado,
embora revelem o melhor de seu pensamento, por exemplo, os geômetras gregos são
acusados de esconderem o verdadeiro método de descoberta. A eloqüência é dotada de
força e beleza. A poesia de encantamentos doces e delicados. A Matemática satisfazia aos
curiosos e facilitava as artes técnicas, como a mecânica. A Teologia ensinava a atingir o
céu. A Filosofia permitia falar sobre todas as coisas. A jurisprudência, a medicina e outras
Ciências, conferem honras e riquezas aqueles que as cultivam. Mas como dedicou tempo
demais a esses estudos, achou que era conveniente conhecer outros costumes para julgar
os de seus contemporâneos corretamente.
Mesmo estudando em uma das melhores escolas, julgou necessário viajar para
observar novas culturas e adquirir novos conhecimentos, conversar com outros sábios
133
daquela época para complementar sua educação, libertando-se dos erros que osbcurecem a
razão humana. Mas acima de tudo, era em si mesmo que buscava as soluções dos
problemas que o incomodavam.
Como tinha o dom do discurso, uma das características da educação que recebera
em La Flèche, depois de tecer elogios à educação jesuíta, no que segue, tece críticas
contundentes. Assim, diz que o mesmo que ler livros antigos é viajar. As fábulas não
mostram as reais curcunstâncias e acabam por nos induzir a concepções irreais. Afirma
que era apaixonado pela eloqüência e pela poesia, mas que essas eram dons pessoais e
serviam apenas para persuadir os mais fracos de espíritos. Uma pessoa pode ser excelente
na arte de expressar uma poesia, sem nada entender da arte poética. Quanto a Matemática,
ninguém tinha ainda revelado o seu real valor. A Teologia não seria submetida a sua
argumentação analítica, pois a Teologia estava acima da fragilidade de seus raciocínios,
assim evitando polemizar com as autoridades eclesiásticas. Quanto à Filosofia, embora
fosse cultivada pelos sábios, tudo nela era discutível e duvidoso, e a Filosofia Escolástica
chegava ao verossímil e não ao certo e verdadeiro. Sobre as Ciências em geral, como
são concebidas a partir da Filosofia, nada de sólido se poderia construir sobre os seus
frágeis fundamentos. Quanto às más doutrinas não passam de jactâncias. Essas são as
razões apresentadas por Descartes para buscar construir uma nova Ciência.
No grande livro do mundo, busca complementar a sua formação e a lição que
tira das suas andanças é não aceitar e nem confiar em nada obtido pelo exemplo e pelo
hábito, livrando-se dos erros que poderiam ofuscar a voz da razão. Mas entende, por fim,
que foi nele mesmo, ao si estudar, que encontrou respostas às suas dúvidas, mais do que
nas suas andanças e nas leituras dos livros.
Porém não deixou de expressar o valor da Matemática que aprendera em La
Flèche, apreciava a certeza das demonstrações Matemáticas, embora pensasse na época que
o seu campo de aplicação fosse ainda muito restrito.
Comprazia-me, sobretudo, com as Matemáticas, por causa da certeza e da
evidência de suas razões, mas não percebia ainda seu verdadeiro uso e,
acreditando que serviam somente às artes mecânicas, surpreendiam-me que,
embora fossem firmes e lidos seus fundamentos, nada de mais elevado
se tivesse edificado sobre eles. (DESCARTES, 1989, p. 35).
134
Assim formulará sua metodologia, baseando-se na razão humana e inspirando-se
na certeza das demonstrações Matemáticas no método de análise e síntese dos antigos.
Com efeito tal tópico será explicitado posteriormente.
Na segunda parte do Discurso, o seu método é apresentado, constituindo-se de
quatro preceitos fundamentais, o “coração” de sua Filosofia. Como poderemos observar, as
quatro regras mencionadas, estão em linha direta com as regras V, VI, VII e VIII das
Regras para a Direção do Espírito, agora expostas de uma maneira concisa e precisa.
Antes de anunciar os quatro preceitos de sua Filosofia, Descartes, como fizera nas Regras,
mostra a sua concepção científica. A Ciência deve ser pensada para envolver todos os
campos investigativos, para dizer isso, faz uso de um recurso bastante explorado em seus
escritos, a construção de imagens ou a comparação. Descartes diz que teve tempo
suficiente para pensar sobre a questão da Ciência.
[...] Entre eles[seus pensamentos], um dos primeiros foi que me ocorreu
de considerar que, com frequência, não tanta perfeição nas obras
compostas de várias peças, e realizadas pela mão de diversos mestres,
quanto naquelas em que um trabalhou. Assim, vê-se que os edifícios
projetados e concluídos por um único arquiteto são habitualmente mais
belos e harmônicos do que aqueles que muitos procuraram reformar,
aproveitando velhas paredes construídas para outros fins. (DESCARTES,
1989, p. 38).
A passagem nos diz que Descartes pretende mesmo subverter a ordem
estabelecida pelos escolásticos que queriam a Ciência compartimentalizada. Isto é, a
Escolástica estabelecia que para as diversas Ciências eram necessários diversos métodos.
Essa idéia deriva da concepção de Ciência aristotélica que foi cultuada pela Escolástica,
implantada nas instituições acadêmicas. Desse modo, Descartes, contrariando isso, irá propor
um único método capaz de aplicar-se a todos os ramos científicos, como se observa nas
Regras.
Descartes afirma, humildemente, que não começaria rejeitando todas as opiniões
que lhe foram ensinadas, a não ser que encontrasse uma que as substituissem. E continua
explicando um pouco mais sobre a origem de seu método, fazendo uma referência à sua
juventude, à educação recebida em La Flèche e às disciplinas fundamentais que o
ajudaram na sua formação intelectual. Assim, diz que enquanto jovem, a lógica da Filosofia
e da Matemática, a análise e síntese antigos e a Álgebra, eram três artes ou Ciências que
135
deveriam contribuir para o seu projeto. Mas quanto à lógica tece os seguintes
comentários, como fizera também nas Regras, onde criticou severamente a dialética:
Mas, examinando-as, notei que quanto à Lógica, seus silogismos e a maior
parte de seus demais preceitos servem mais para explicar a outrem as
coisas que se sabem, como a arte de Lúlio, para falar, sem julgamento,
daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E, embora a lógica
contenha, com efeito, uma porção de preceitos verdadeiros e muitos bons,
todavia outros tantos misturados de permeio que são nocivos ou
supérfluos, sendo quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou
uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer está esboçado.(
DESCARTES, 1989, p. 43).
Quanto à análise dos antigos escreve que é tão restrita as figuras geométricas ao
ponto de inibir a imaginação. De fato, a análise e síntese dos antigos, segundo Hintikka e
Remes, era restrita a configurações geométricas, ou seja, o campo de aplicação da análise
era muito restrito. Quanto à Álgebra dos modernos, está tão limitada a regras e a uma
simbologia difícil que leva á confusão. A Álgebra ainda carecia de uma simbologia mais
adequada e a sua aplicação era como um receituário, não dando liberdade ao algebrista,
não lhe permitindo avançar neste campo de investigação. Por isso, era necessário um
método alternativo, definido a partir dessas três artes ou Ciências, usando somente as suas
vantangens e refutando os seus defeitos. Como se observou, François Viète tinha já
exposto a sua reforma Matemática, mas a simbologia apresentada ainda era limitada e,
além disso, os objetivos dos dois eram diferentes, pois Descartes buscava uma reforma
mais ampla que envolveria todos os campos do saber.
Por esta razão, pensei ser necessário procurar algum outro método que,
reunindo as vantagens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a
multiplicidade de leis freqüentemente oferece desculpas aos vícios, de
modo que um Estado é mais bem dirigido quando, embora tendo muito
poucas leis, são elas estritamente cumpridas; assim, em lugar desse grande
número de preceitos de que se compõe a Lógica, julguei que me
bastariam os quatro a seguir, desde que eu tomasse a firme e constante
resolução de jamais deixar de observá-los. (DESCARTES, 1989, p. 44).
O melhor da análise geométrica é a sua estrutura metodológica, o seu caráter
heurístico, que será adotado como um dos preceitos fundamentais de seu método. Com
efeito, tal preceito será conjugado com o melhor da lógica, o seu caráter dedutivo, e com
o mais significante da Álgebra, a sua especificidade simbólica e poder de atuação.
136
Em seguida, expõe os quatro preceitos fundamentais do seu método. O primeiro
preceito é a regra da evidência, significa não aceitar nada por verdadeiro, a não ser que
seja evidente. A evidência, por sua vez, é a intuição intelectual das idéias claras e
distintas, isto é, perceber todos os seus elementos e não os confundir com nenhuma outra.
O primeiro preceito era o de jamais aceitar alguma coisa como verdadeira
que não soubesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente
a precepitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não
se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito que eu o
tivesse nenhuma chance de colocar dúvida. (DESCARTES, 1989, p. 44).
O segundo preceito é a decomposição, ou a análise. Não é simplesmente a
decomposição de uma idéia complexa em uma idéia simples, mas uma redução do
desconhecido para o conhecido, do qual depende. Esse preceito, juntamente com o próximo,
revela o caráter analítico do método, a influência da análise dos antigos geômetras se
apresenta nesta regra.
O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em
tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor
resolvê-las. (DESCARTES, 1989, p. 44).
O terceiro preceito parte do simples para o composto, ou seja parte da última
etapa analítica e, através da dedução, soluciona o problema ou demonstra a proposição,
mantendo a ordem gica deixada na etapa analítica. Aqui constatamos o reverso da
análise: a síntese. Além disso, notamos que a concepção metodológica cartesiana é
constituída de duas partes inseparáveis. Uma parte, a analítica, é o processo heurístico; a
segunda parte, a síntese, é a resolução do problema, tal método deve ser chamado método
de análise-síntese.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, a começar pelos
objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para galgar,
pouco a pouco, como que por graus, até o conhecimento dos mais
complexos e, inclusive, pressupondo uma ordem entre os que não se
precedem naturalmente uns aos outros. (DESCARTES, 1989, p. 45).
A quarta regra é chamada de enumeração, mostra a ligação entre as proposições
usadas na solução do problema ou demonstração da proposição estudados e evita o uso
da memória, o que pode conduzir ao erro. Assim, essa regra permite Descartes percorrer
137
toda a cadeia obtida na resolução e, por meio dela, perceber que o problema foi
completamente exaurido, não restando mais nada a declarar ou investigar sobre ele.
E o último, o preceito de fazer em toda parte enumerações o completas
e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido
.
(DESCARTES, 1989, p. 45).
Descartes, em seguida, faz diversas observações que demonstram de que forma a
Geometria o inspirou na formação do método:
Essas longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os
geômetras costumam se utilizar para chegar às demonstrações mais
difíceis, haviam-me dado a oportunidade de imaginar que todas as coisas
passíveis de cair sob o domínio do conhecimento dos homens seguem-se
umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos
somente de aceitar por verdadeira alguma que não o seja, e que
observemos sempre a ordem necessária para deduzí-las umas das outras,
não pode haver, quaisquer que sejam, tão distantes às quais não se chegue
por fim, nem tão ocultas que não se descubram. (DESCARTES, 1989, p.
45).
Em outras palavras, anuncia nesse parágrafo, que todo conhecimento verdadeiro
pode ser obtido por meio da técnica geométrica de demonstrar. Não devemos esquecer
que os geômetras antigos usavam também o método analítico para descobrir as
demonstrações. Ou seja, definitivamente, a Matemática é a sua musa inspiradora. Desse
modo, transplantará o método em outras áreas do conhecimento, além dos domínios da
Geometria, como salientamos nas Regras.
que o método é geométrico, decide começar pela Matemática, pois os
matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações ou razões certas e evidentes.
Descartes estudou tenazmente os problemas físicos, mas pressupondo sempre que a
Matemática era capaz de dar-lhe a sustentação necessária. A metodologia cartesiana é
realmente bem aplicada às questões geométricas, conforme demonstraremos posteriormente.
E não me foi muito penoso procurar por quais devia começar, pois
sabia que haveria de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de se
conhecer; e, considerando que, entre todos os que anteriormente buscavam a
verdade nas Ciências, os matemáticos puderam encontrar algumas
demonstrações isto é, razões certas e evidentes -, não duvidei de modo
algum que não fosse pelas mesmas que eles examinaram, embora não
138
esperasse disso nenhuma outra utilidade, exceto que a de que meu espírito
se habituaria a se alimentar de verdades e a não se contentar com falsas
razões. Mas, para tanto, não tive a intenção de aprender todas essas
Ciências particulares a que se chamam comumente Matemáticas; e,
constatando que, embora seus projetos sejam diferentes, não deixam de
concordar todas entre si pelo fato de não atribuirem a esses objetos
senão as diversas relações ou proporções que neles se encontram -, pensei
que fosse melhor examinar somente estas proporções em geral, supondo-as
apenas nos temas que servissem para me tornar o seu conhecimento mais
fácil; mesmo assim, sem de modo algum restringi-las, em seguida, a todos
os outros objetos a que conviessem. (DESCARTES, 1989, p. 46)
Descartes não estudou todas as disciplinas chamadas Matemáticas que englobam
as chamadas Matemáticas puras (Aritmética e Geometria) e as Matemáticas mistas (Música,
Astronomia), mas aplicará as regras gerais das proporções para facilitar o seu
entendimento a certos temas, mas que pretende estendê-las a todas as questões que lhe
conviessem encontrando uma variedade de opções para aplicar a sua metodologia, pois,
como é sabido, quase todos os aspectos científicos até então necessitavam de modificações
profundas. A Geometria não foge a regra e foi nesse campo que obteve os melhores
resultados.
Para começar pela Matemática seria necessário então definir a linha reta ou o
segmento de reta como o objeto geométrico fundamental e, a partir daí, definir uma
simbologia, a mais simples possível, tomando o melhor da Álgebra, e aplicá-los, usando os
fundamentos da análise geométrica. Para isso, o melhor da Álgebra seria a sua concisão
simbólica, o poder de representar objetos por símbolos adequados, juntamente com a
interpretação das operações fundamentais: adição, subtração, divisão, multiplicação, extração
da raiz quadrada, de uma forma simplificada, mas de tal modo que as operações
Matemáticas produzam segmentos de retas. A análise geométrica atuará concomitante com
a Álgebra, desse modo, deixará de atuar somente sobre objetos geométricos específicos,
generalisando-se, passará a ser uma ferramenta que transformará esse campo investigativo
e outros. O melhor da análise geométrica é a sua filosofia, é o seu ideal heurístico que
será transportado para outros campos do conhecimento. Assim, uma complementaria a
outra, obtendo-se, no fim, uma ideal científico capaz de superar muitas dificuldades ainda
tidas como obstáculos intransponíveis.
Tendo notado que, para conhecê-las, teria necessidade de algumas vezes de
considerá-las cada uma em particular, e em outras vezes somente de reter
139
ou de compreender várias em conjunto, pensei que, para melhor considerá-
las em particular, deveria supô-las em linhas, porque não encontraria nada
mais simples, nem que pudesse representar mais claramente à minha
imaginação e aos meus sentidos; mas que, para reter ou compreender
várias em conjunto, seria necessário que eu as designasse por alguns
símbolos, os mais simples possíveis, e que, por esse meio, tomaria de
empréstimo o melhor da análise geométrica e da Álgebra, e corrigiria
todos os defeitos de uma pela outra. (DESCARTES, 1989, p. 46)
Essa nova concepção conceitual deu a Descartes muita satisfação, pois percebia a
facilidade de lidar com muitas questões difíceis, até mesmo resolver questões que os
antigos deixaram sem resolver ou não resolveram satisfatoriamente, por exemplo, o caso
do problema de Papus ilustra bem essa situação. Ao aplicar o seu método foi capaz de,
em poucos dias, resolvê-lo completamente. Isso deu-lhe a auto confiança para avançar para
outros casos. A nova concepção permitiu-lhe avançar das questões mais simples,
gradativamente, para as mais complexas e, até mesmo, julgar os limites do seu
conhecimento matemático.
E como, efetivamente, ouso dizer que a exata observação desses poucos
preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de deslindar todas as
questões às quais se estendem essas duas Ciências que, nos dois ou três
meses que passei examinando-as tendo começado pelas mais simples e
mais gerais, e constituindo cada verdade que eu encontrava uma regra que
me servia posteriormente para encontrar outras não consegui resolver
muitas que antes julgava muito difíceis, como me pareceu também, perto
do fim, que podia determinar, mesmo naquelas que ignorava, por quais
meios e até onde seria possível resolvê-las. (DESCARTES, 1989, p. 46.)
Então, confirma a eficiência do método de análise-síntese oriundo da Geometria
grega. O seu método matemático, ao mesmo tempo que contém todas as regras da
Álgebra, também contém a certeza do conhecimento adquirido por meio da nova
simbologia e do poder heurístico desse método.
Pois, enfim, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a
enumerar exatamente todas as cirscunstâncias daquilo que se procura
contém tudo quanto ceteza às regras da Aritmética. (DESCARTES,
1989, p. 47)
Mas a satisfação com o método não estava restrita a sua feliz aplicação no
contexto geométrico-algébrico. Descartes está disposto a aplicá-lo às dificuldades
encontradas em outras Ciências, mas ordenadamente, pois pressentia, ao praticá-lo, que
140
estava usando toda a sua razão. O método permite descobrir as verdades, mas isso deve ser
realizado progressivamente, pois a metodologia requer, acima de tudo, ordem na obtenção
do conhecimento.
Mas o que mais me satisfazia nesse método era o fato de que, por ele,
estava seguro de usar em tudo minha razão, se não perfeitamente, pelo
menos da melhor forma que eu pudesse; além disso, sentia, ao praticá-lo,
que meu espírito se acostumava pouco a pouco a conceber seus objetos
de forma mais tida e mais distinta, e que, não o tendo submetido a
qualquer matéria particular, prometia a mim mesmo aplicá-lo tão utilmente
às dificuldades das outras Ciências como fizera com as da Álgebra. Não
que, para isso, tivesse a coragem de empreender primeiramente o exame de
todas as que se me apresentassem, pois isso seria contrário à ordem que
ele prescreve. (DESCARTES, 1989, p. 47)
No fim da segunda parte, Descartes escreve que pretendia levar, antes de tudo, o
método à Filosofia, onde não existia nenhum preceito que fosse certo. Mas antes, esperou
amadurecer-se, livrando seu espírito das opiniões incertas e acumulando experiências para
posteriores aplicações. Já se observou que o método fora pensado num período anterior, em
1619 para ser certo, como escreveu a Beeckman certa vez, e que foi oficialmente
declarado em O Discurso.
Entretanto, tendo notado que seus princípios deviam ser todos tomados à
Filosofia, na qual não encontrava ainda nenhum que fosse certo, pensei que
seria mister, antes de tudo, procurar ali estabelecê-los; e que, sendo isso a
coisa mais importante do mundo, e onde a precipitação e a prevenção
eram de recear, não devia empreender sua realização antes de atingir uma
idade bem mais madura, do que dos vinte e três anos que eu então
contava, e antes de ter despedido muito tempo em preparar-me para isso,
tanto desenraizando de meu espírito todas as más opiniões que nele se
aninharam até essa época quanto acumulando muitas experiências, para
servirem mais tarde de matéria para raciocínios, e exercitando-me sempre
no método que me prescrevera, a fim de me firmar nele cada vez mais.
(DESCARTES, 1989, p. 47)
A Filosofia era a base das outras Ciências que eram pensadas separadamente e o
fundamento da prática científica era a Filosofia aristotélica. Uma teoria poderia ser
confirmada se fosse possível reunir diversos autores renomados que a comprovasse. O
conhecimento obtido dessa maneira, bem como o conhecimento acumulado, não serão
aceitos por Descartes. Desse modo, a idéia é partir de princípios claros e evidentes e
então obter as verdades científicas.
141
Na terceira parte, Descartes anuncia quatro máximas que serão capazes de lhe
permitir uma moral provisória. Descartes se mostra cauteloso, pois estava apresentando um
método que recomendava a dúvida como ponto de partida e era um risco ser acusado de
subverter a ordem social, como acontecera com Galileu. As três primeiras máximas, juntas,
revelam a total adesão de Descartes as convenções sociais e morais. São elas:
1.Obedecer às leis e os costumes de seu país, preservando constantemente a religião,
acatando as opiniões mais moderadas e mais distantes dos excessos.
2. Ser, em suas ações, o mais firme e resoluto que puder, pois as ações da vida não
podem ser adiadas e é necessário conduzi-las mesmo que nos pareçam incertas.
3. Esforçar-se mais por vencer a si mesmo do que à sorte e por modificar seus desejos
mais do que a ordem do mundo. Assim, Descartes assegura para si uma certa tranqülidade
interior, afastando o sofrimento que advém de desejos irrealizáveis.
A quarta máxima é uma afirmação autobiográfica.
4. Passar o resto da vida cultivando a razão e aprofundando-se no conhecimento da
verdade.
Desse modo, ele faz um “pacto” com o mundo, as autoridades sociais, a religião e
a conduta prática de sua vida. Permitindo-lhe, em fim, encarar o que constitui o essencial
de sua tarefa, ou seja, o problema metafísico, o fundamental da Filosofia.
Na quarta parte, Descartes revela por onde se deve começar, estabelecendo o seu
axioma básico, a dúvida céptica, para rejeitar tudo o que é incerto. Posso duvidar do que
penso e até mesmo das cadeias de raciocínios matemáticos. Mas, ao duvidar, reconheço o
meu próprio pensar. Se tenho dúvida é porque penso e, se penso, é porque existo, ou seja:
“penso, logo existo”. Esse é o ponto de partida de Descartes. De onde poderá conceber
como claro e distinto os primeiros princípios de cada problema, ou seja, uma verdade
concebida por mim, segundo minha opinião, é de fato um primeiro princípio universal, pois
Deus, que é bondoso, não está me enganando. O que vejo, o que sinto, o que conheço são
coisas verdadeiras, segundo esse princípio.
Em seguida, parte para a prova da existência de Deus baseando-se no primeiro
princípio “penso, logo existo”. Este pressuposto é proveniente de uma dúvida. Ter dúvida é
um sinal de imperfeição, mas se tenho a idéia de imperfeição é porque tenho a idéia do
142
perfeito, que não está em mim, logo é preciso reconhecer a existência verdadeiramente
perfeita, Deus.
A existência de Deus é usada para provar a existência do mundo físico que é
absorvido por nós pelo uso dos nossos sentidos. Por isso a evidência não pode ser usada.
O mundo externo será então obtido por um tipo de aproximação. Primeiro, Deus que é
onipotente, é o criador do mundo externo. Outro elemento a favor da existência do mundo
externo é a idéia de extensão que temos no pensamento. A extensão nos dá a idéia de
grandeza e forma, características do ideal geométrico que torna provável a existência dos
corpos. Se temos a idéia clara de extensão impressa em nossas mentes, então uma
realidade extensa correspondente a ela, no mundo externo. A conclusão de que o mundo
externo de fato existe deve-se ao fato da bondade divina, Deus não está nos enganando. O
que vemos racionalmente na natureza é de fato algo que existe. Assim, Deus é o elo
ligando o pensamento ao mundo externo. Desse modo, Descartes define duas substâncias
distintas, o pensamento e o mundo externo, o corpo e alma.
A parte V, apresenta um resumo da obra Traité du Monde que era para ser
publicada anteriormente ao Discurso, entretanto, devido a condenação de Galileu, em 1633,
Descartes abandonou o projeto com medo de sofrer as mesmas censuras que Galileu
sofrera, ou seja, ter todos os seus escritos desaprovados e queimados. Na obra cartesiana
Traité du monde, Descartes também adotaria praticamente as mesmas concepções
científicas de Galileu, a principal é que a terra se move. Descartes, em uma carta a
Mersenne, segundo Kaugroker, se diz tão contrariado com a condenação de Galileu que
pensara em queimar seus escritos ou não permitir que ninguém os vejam e que, se a tese
de Galileu estiver errada, então todo o seu sistema filosófico também estaria, pois é
possível provar a sua Filosofia a partir desse pressuposto. O Traité du Monde foi
publicado depois de sua morte, mas boa parte das idéias do tratado foram coligidas no
Discurso, especialmente nesta quinta parte, onde escreve sobre as leis do movimento,
segundo a qual, Deus criou uma matéria, uma extensão geométrica e por isso
matematizável, isto é, Deus estabeleceu certas regras Matemáticas no mundo material que
podem ser descritas ou explicadas matematicamente, é a noção mecanicista do mundo. No
decorrer da quinta parte, Descartes passa então a explicar o movimento do coração que se
143
comporta como matéria e movimento, assim é a sua Física. Segundo sua visão, os animais
são meras máquinas, pois são incapazes de pensar.
Na sexta e última parte, Descartes explica as razões que levaram-lhe a publicar O
Discurso do Método. A principal é a sua contribuição para a evolução das idéias
científicas para o bem da humanidade, a medicina principalmente, além de oferecer uma
introdução aos ensaios científicos que permitem a possibilidade de entendermos como
aplica seu método analítico para resolver problemas fisicos e matemáticos.
Dedico aos ensaios um tempo maior para melhor compreendê-los, uma vez que
neles encontraremos exemplos de sua metodologia aplicada e, desse modo, avaliar o tratado
como um todo. Desse modo, devemos agora, para entender o método cartesiano, seguir o
conselho do próprio Descartes, para comprovar o objetivo desta pesquisa, avaliar os ensaios
científicos do Discurso. Ele chegou mesmo a afirmar a Mydorge que pretendia exemplicar
que seu método é melhor que os demais através de Os Meteoros e de A Dióptrica, mas
que em A Geometria foi onde obteve mais sucesso. Desse modo, começamos justamente
pela ensaio A Geometria. Primeiramente, faço um estudo da obra e, observamos as
evidências referentes a aplicação do método. Mas não limitaremos somente a aplicação
metodológica, também apresentaremos outros estudos que, do ponto de vista da Matemática
são interessantes, e merecem ser abordados e estudados.
3.2 A Geometria de Descartes
Como observado, A Geometria de Descartes foi publicada, inicialmente, como
um apêndice O Discurso do Método, em 1637. Depois, em 1649, A Geometria foi traduzida
para o latin, por F. van Shooten, com notas dele e de F. de Beaune. Uma segunda edição,
em latin, foi publicada em 1659-61 e continha contribuições de De Witt, Hudde, Van
Heuraet, Bartholinus e van Shooten. Seu conteúdo pode ser dividido em três partes ou em
três livros. Livro primeiro: Dos problemas que se podem construir sem empregar mais do
que círculos e linhas retas
45
. Livro segundo: Da
natureza das linhas curvas. Livro terceiro:
Da construção dos problemas sólidos ou mais que sólidos.
45
Segmentos de retas
144
3.2.1 Livro I
Na abertura do Livro I de A Geometria Descartes faz uma arrojada afirmação:
“Todos os problemas da Geometria podem reduzir-se facilmente a termos tais que é
desnecessário conhecer de antemão mais do que o comprimento de algumas linhas rectas
para construí-los”(Descartes, 2003, p. 3). Os segmentos de retas eram os pressupostos
básicos a partir dos quais Descartes pretendia construir toda a sua Geometria e para
realizar isso, começa apresentando a relação entre as operações algébricas com as
operações geométricas, onde mostra como superar o obstáculo da dimensionalidade, agora
reduzindo todas as grandezas a um segmento de reta. Isso deve ser, adequadamente,
associado com a sua moderna simbologia, uma característica extraordinária e inovadora da
obra, e a seu método de resolver problemas, o método analítico-sintético, agora apresentado
e adaptado a problemas geométricos de uma forma impressionante, pois, em resumo, todas
as regras são substituídas por apenas três, a saber: nomear, equacionar e construir. Primeiro,
consideramos o problema dado como se fosse resolvido como a primeira etapa do
método, em seguida, nomeamos, usando a nova simbologia cartesiana, todos os entes dados
no problema, depois estabelecemos uma equação envolvendo esses entes geométricos agora
representados algebricamente. Por fim, devemos construir a solução geometricamente.
No Livro I, Descartes mostra como as operações Aritméticas se relacionam com
operações geométricas, ilustrando como realizar a multiplicação, a divisão e a extração da
raiz quadrada geometricamente, isto é, com o uso de régua e compasso apenas, para tanto,
introduz o segmento unitário, idéia fundamental para o desenvolvimento da Geometria.
Mostra como empregar letras em Geometria e como resolver problemas geométricos ou o
método de Descartes em Geometria, explica, em seguida, quais são os problemas planos e
como resolvê-los. Resolve o problema de Papus para quatro linhas aplicando o seu
método pela primeira vez, nesta obra. A seguir analisamos essas passagens
pormenorizadamente.
145
3.2.2 Como utilizar-se letras em Geometria.
Para os geômetras, dos gregos até Viète, a variável representava um comprimento,
o produto de duas variáveis a área, o produto de três variáveis o volume. o produto de
quatro ou mais variáveis não tinha significado específico. Em uma passagem, Gaukroger
expressa bem a concepção grega de número relacionado a questão dimensional:
[...]Na Matemática antiga, a Aritmética era uma forma de Geometria
métrica. Isso se evidencia na tentativa de Aristóteles de fornecer uma base
conceitual e Metafísica para a concepção de número que vigorava em sua
época. Ele entendia os meros como segmento de reta (puramente
intelectuais), sujeitos, em sua manipulação, a todas as restrições da
manipulação dos segmentos de reta concretos. Aliás, quando Aristóteles e os
matemáticos gregos e alexandrinos, de modo geral, falavam de meros
unidimensionais, de números planos (bidimensionais) e de números sólidos
(tridimensionais), era exatamente isso o que pretendiam dizer. A Geometria
não fornece apenas uma notação à Aritmética, e nenhum autor grego ou
alexandrino jamais falou dos números como sendo apenas geometricamente
representados. Esse tipo de interpretação geométrica do número fica claro
na prática Matemática grega e Alexandrina. As proposições Aritméticas
(vejam-se, por exemplo, os Livros 7 e 9 dos Elementos de Euclides) são
formuladas em termos de segmentos de retas, não porque seja essa a
forma como os números são representados, mas porque é isso que eles
são. A prova mais marcante dessa idéia encontra-se na maneira como
eram efetuadas as operações Aritméticas. Consideremos, por exemplo, o
caso da multiplicação. Nela, multiplicam-se segmentos de retas por
segmentos de retas, por exemplo, axb será um retângulo com lados de
comprimentos a e b, enquanto axbxc será uma figura Sólida de lados a, b e
c. Embora lidemos com números abstratos, estamos sempre multiplicando
números de algo por números de algo e, por conseguinte, uma
mudança dimensional na multiplicação, o que é indicado pelo fato de não
podermos multiplicar mais de três números ao mesmo tempo, uma vez que
o produto de três números (lineares) é um sólido, o que esgota o número
de dimensões disponíveis. Por fim, essa concepção extraordinariamente
restritiva da Aritmética do número encontrava um paralelo numa
concepção igualmente restritiva da Aritmética e da Geometria, segundo a
qual a finalidade do exercício era calcular um determinado número ou
construir uma determinada figura, respectivamente. Para os matemáticos da
Antigüidade, o problema estava resolvido quando alguém conseguia
calcular ou construir esse número ou essa figura determinados. E, no caso
da Aritmética, apenas os números naturais eram admissíveis como
soluções: os números negativos, em particular, não o eram, sendo vistos
como números “impossíveis”. (GRAUKROGER, 2002, p. 122-3)
Como mostramos, nas discussões anteriores, Descartes desenvolveu o seu
pensamento matemático em um longo período de aproximadamente nove anos. Ele
146
demorou para desenvolver as idéias principais de seu projeto reformador. Dois casos são
evidentes para mostrar o seu empenho: a superação do obstáculo da dimensionalidade e a
adaptação do método de análise e síntese como sua principal ferramenta para resolver
problemas.
A questão da dimensionalidade era levada muito à sério pelos gregos, como
mostra a citação de Gaukroger e impediu aos gregos de avançarem em muitos problemas,
o caso do problema de Papus é um exemplo claro dessa afirmação. Existem diversas
passagens, relatadas, nas obras cartesianas, que demonstram o seu esforço em superar o
obstáculo da dimensionalidade. A primeira vez que Descartes mencionou essa questão foi
quando se encontrou com Beeckman, em Dordrech, 1628, mas é possível que essa questão
tivesse sido pensada num período anterior, pois em 1619, disse que possuia os
fundamentos da nova Ciência e, certamente, para renovar a Ciência de sua época seria
necessário mudar o conceito da dimensionalidade, pois isso impedia a própria Matemática
de avançar nos problemas que estavam sendo estudados. Depois, em 1628, propõe três
formas de representar quantidades algebricamente, dependendo de como a unidade é
representada. Se a unidade tem comprimento e largura, a representamos por meio de um
quadrado; por um ponto, se a consideramos como sendo uma quantidade numérica discreta;
por uma linha, se a vemos como tendo somente comprimento. Em seguida, tenta justificar
como representar quantidades com dimensão superior a três, primeiro identificando um
cubo ordinário de três dimensões com um cubo de madeira, um de quatro dimensões com
um cubo de pedra, um de cinco dimensões com um cubo de ferro e assim
sucessivamente. Quanto maior a dimensão do objeto, mais pesado o objeto é. Com isso, ele
pretendia dar a questão da dimensionalidade um significado concreto.
Nas Regulae, Descartes volta a confirmar a importância em reinterpretar a questão
da dimensionalidade, mas tratando-a, praticamente, como no relato de Beeckman.
A Regra XVI toca na questão mencionando primeiro a importância da concepção
de unidade e de uma simbologia adequada para o desenvolvimento da Ciência, explicando
como superar o obstáculo da dimensionalidade e como seria importante uma simbologia
apropriada para tratar das questões Matemáticas, mostrando a concisão de sua simbologia
e suas vantagens sobre a forma tradicional de tratar as questões Matemáticas:
147
Para compreender tudo isto, deve-se advertir, em primeiro lugar, que os
calculadores[os aritméticos] têm o costume de designar cada grandeza por
várias unidades, ou por um número qualquer; mas nós, neste lugar,
abstraímos cada grandeza das figuras geométricas de qualquer outra coisa.
E fazemos isto não para evitar o aborrecimento de um cálculo longo
e inútil, mas sobretudo para que as partes do objeto que constituem a
natureza da dificuldade fiquem sempre distintas e não carregadas de
números inúteis; assim, por exemplo, se se procura a base de um triângulo
retângulo, cujos lados dados sejam 9 e 12, dirá o calculador que ela é
igual à
225
ou 15; porém nós, em lugar de 9 e 12, poremos a e b e
acharemos que a base[hipotenusa] do triângulo é igual a
22
ba +
, e as
duas partes
2
a
e
2
b
, que no número estão confusas, estas permanecerão
distintas.( DESCARTES, 2002, p. 133)
Nessa passagem, Descartes argumenta contra o caráter restritivo das operações
Matemáticas, interpretada, até aquele momento, segundo a idéia geométrica e propõe, em
contra partida, abstrair as grandezas das figuras geométricas para descarregar o cálculo de
elementos inúteis apresentando os símbolos que permitirão tratar a questão de uma forma
ampla e geral. Com mais clareza ele adverte:
Deve-se advertir também que por número de relações se devem entender
as proporções que se seguem em ordem contínua, proporções que na
Álgebra comum se pretende explicar por várias dimensões e figuras das
quais chamam à primeira raiz; à segunda quadrado, à terceira, cubo; à quarta
bi-quadrado, etc. Confesso que esses nomes enganaram-me por muito
tempo, pois depois da linha e o quadrado, nada mais claro me parecia
poder ser proposto à minha imaginação do que o cubo e outras figuras
semelhantes, e com sua ajuda eu resolvia grande número de dificuldades.
Mas depois de muitas experiências me dei conta de que por meio deste
modo de conceber as coisas não havia descoberto nada que não pudera
conhecer mais e distintamente, sem ela; e devem ser rejeitados totalmente
tais nomes para que não perturbem o conceito, porque, mesmo que uma
grandeza possa se chamar cubo ou bi-quadrado, não se deve representa-la
na imaginação de outro modo senão como uma linha ou uma superfície
conforme a regra anterior. Assim pois de notar-se que a raiz, o
quadrado, o cubo,etc., não são outra coisa que grandezas em proporção
contínua que se supunham sempre precedidas por aquela unidade fictícia
de que já falamos mais acima. É esta unidade que a primeira grandeza
proporcional se refere imediatamente por uma só relação; e a segunda
mediante a primeira e, portanto, por duas relações; a terceira, por meio da
primeira e da segunda, e por três relações, etc. (DESCARTES, 2002, p. 133).
Descartes demonstra, claramente, uma consciência que a superação do obstáculo da
dimensionalidade seria fundamental para que pudesse progredir em seu projeto reformador
148
das Ciências de então. Assim, propõe reinterpretar as operações, especificamente, nesse
parágrafo, refere-se a multiplicação, abstraindo-a da Geometria plana e espacial. A
alternativa proposta por Descartes está vinculada a noção de proporção contínua,
discutida anteriormente nas Cogitationes Privatae, quando usou o compasso proporcional na
tentativa de reformar a Matemática. A partir da figura abaixo podemos esclarecer melhor
essa passagem. Nela, aplicando a semelhança de triângulos, obtemos a seguinte proporção
contínua:
Figura 15
2
32
ab
ac
ac
ad
af
ae
ae
ad
ad
ac
ac
ab
=====
Fazendo ab=1, ac=x, obtemos ad=x
2
, ae=x
3
, e assim sucessivamente. Essa
interpretação permite pensar as operações em termos de segmentos de retas, pois uma vez
estabelecido um segmento unidade ab, x
3
passa a representar a medida de um segmento,
neste caso, o segmento ae, e não o volume de um cubo. Desse modo, o cálculo fica
desvinculado da concepção geométrica.
Passaremos a estudar essas concepções em A Geometria que pode ser considerada
o último estágio de seu desenvolvimento matemático. De fato, depois de sua publicação,
Descartes perdeu o interesse pela Matemática e passou a preocupar-se com as questões
metafísicas.
149
Em A Geometria Descartes introduz o segmento unitário que permite-lhe
interpretar o símbolo a
2
como o comprimento de um segmento e não como área, como
era tradição naquela época, e, do mesmo modo, faz para as outras potências a
3
, a
4
, a
5
,etc.
Isso, juntamente com outras observações, e uma nova simbologia permite um avanço
considerável no campo da Álgebra. Escreve aa ou a
2
, a
3
ou aaa, indistintamente, e assim
para as outras potências. Escreve a+b para a soma de dois segmentos de comprimentos a
e b, a-b para a diferença, ab para o produto, a/b para o quociente,
22
ba +
para a raiz
quadrada de a
2
+ b
2
e
233
. abbaC +
para a raiz cúbica de
233
abba + , onde o C
indica que trata-se de uma raiz cúbica. Justifica que a
3
tem tantas dimensões quanto abb e
para se extrair a raiz cúbica de aabb–b deve-se considerar que aabb está dividida uma vez
pela unidade e b multiplicada duas vezes pela unidade, desse modo, os monômios ficam
reduzidos ao mesmo grau, segundo seu critério.
3.2.3 O método de Descartes na Geometria
Descartes estabelece o seu método analítico que, segundo ele, resolve todos os
problemas em Geometria que pode ser resumidamente dividido em três partes, a saber:
nomear, equacionar, construir. Esses três preceitos representam uma adaptação do método
apresentado anteriormente no Discurso, contemplando aqueles quatro fundamentos
essenciais.
Nomear consiste em supor que o problema já está resolvido e, a partir daí, dar
nomes, usando variáveis, a todos os segmentos conhecidos e desconhecidos necessários à
resolução do problema.
Equacionar é estabelecer uma equação envolvendo essas variáveis.
Construir, depois de o problema ser reduzido para uma equação, equivale a
representar as soluções geometricamente. Por exemplo, se considerarmos problemas que
usam gua e compasso apenas, então, no final serão reduzidos a uma equação do segundo
grau. A etapa final é então construir as suas raízes.
Além da metodologia e a nova simbologia, Descartes introduz uma nova
interpretação das operações geométricas e esses três componentes permitiram-lhe tratar os
150
problemas geométricos de uma forma algébrica. Passemos então ao entendimento das
operações.
151
3.2.4 As operações
Para fazer o produto de
a
por b, Descartes toma duas semi-retas com mesma
origem B e marca em uma delas o segmento unitário AB ( veja figura 16 ). Em seguida,
marca nessa mesma semi-reta um segmento BD de medida a e, na outra semi-reta, o
segmento BC de medida b. Traça um segmento de A até C e, em seguida, partindo de D,
traça um outro segmento paralelo a AC que encontra a outra semi-reta em E,
determinando o segmento DE. Usando a semelhança ou o Teorema de Tales conclui que
BE mede ab, ou seja, o produto dos dois segmentos é um novo segmento e não uma
área.
Figura 16
Para fazer a divisão toma duas semi-retas, como anteriormente, e marca o segmento
unitário AB em uma delas ( veja figura 1). Na outra semi-reta marca os segmentos BC e
BE, medindo respectivamente a e b, a < b.
Liga C a A por um segmento e depois traça
um segmento paralelo a este segmento partindo de E
até D, determinando b/a. Mas em A
Geometria não faz isso explicitamente.
Para extrair a raiz quadrada constrói um segmento unitário FG acrescentando na
sua extremidade o segmento de medida K, GH. Determina a circunferência cujo centro é o
152
ponto médio do segmento determinado pela unidade e por GH (veja figura 2). Em seguida,
constrói o triângulo retângulo levantando uma altura a partir do ponto G até I, ponto que
está sobre a circunferência do círculo construído, e usando a relação GI
2
= GH x FG = GH,
obtém a raiz quadrada.
Figura 17
3.2.5 Problemas planos
Descartes define problemas planos como sendo aqueles que podem ser resolvidos
sem utilizar mais que linhas retas e segmentos circulares traçados sobre uma superfície
plana, equivalentemente, são os problemas que se reduzem a uma equação do segundo
grau
46
z
2
az =
±
b
2
. As raízes negativas dessas equações eram chamadas de falsas e as
positivas de verdadeiras.
3.2.6 Resolução de tais problemas
As resoluções da equação z
2
= az + b
2
desempenham uma função importante na
Geometria, pois são pré-requisitos que serão utilizados posteriormente na obra. No problema
de Papus, no final da resolução, Descartes apenas indica que a construção pode facilmente
ser realizada e isso corresponderá à parte sintética do processo de resolução do problema.
Mas a parte sintética do problema de Papus, a construção do problema, será totalmente
exaurida na parte dois da obra.
46
A simbologia cartesiana para esta equação era da forma z
2
– az
±
b
2
153
Passemos a resolução. Seja z o termo ou segmento desconhecido. Primeiro, constrói
o triângulo retângulo NLM, com LM = b e LN = a/2, depois constrói o círculo de centro N e
raio NL ( veja figura 18). Prolongando MN, base
47
do triângulo LMN até O, de modo que
NO seja igual a NL, então a linha MO é o segmento z.
Figura 18
A equação z
2
= az - b
2
. Descartes constrói o círculo de centro N e raio NL,onde
NL = a/2, LM = b ( veja figura 19 ).
Figura 19
47
Seguindo a tradição grega Descartes chama de base a hipotenusa do triângulo retângulo, pois os gregos
construíam o triângulo retângulo apoiado sobre a hipotenusa. A palavra grega “ hypoteínousa” ( que dá a
nossa hipotenusa ) significa “a que se estende sob” ( o ângulo reto).
154
Constrói em seguida LM perpendicular a NL. Traça a partir de M uma paralela a
NL que corta o círculo em Q e R. O segmento z será MQ ou QR. Se a paralela não corta o
círculo, o problema não tem solução.
Descartes enfatiza que essas construções podem ser obtidas por diversos outros
meios e que os antigos não possuíam esse método, caso contrário, argumenta, não teriam
escritos livros tão volumosos que compilaram velhos problemas já resolvidos.
Passemos então ao problema de Papus, um ponto importante do trabalho de
Descartes. Primeiro, porque, em A Geometria, é onde aplica a sua metodologia pela
primeira vez e, segundo, porque podemos fazer uma comparação com o método de análise
e síntese dos antigos geômetras gregos. Por último, destacamos que essa passagem é
considerada uma mudança de paradigma, a transformação efetiva de um modo de pensar, é
possível notar claramente o poder do método e da ferramenta criada por Descartes.
O problema de Papus foi proposto a Descartes e Mydorge em 1631 e foi o
matemático Jacob Golius (1596-1667) quem o propôs. Descartes aplicou seu método de
análise algébrica em problemas geométricos e ganhou a auto confiança necessária para
supor que seu método matemático era superior aos dos antigos e aos métodos conhecidos
em sua época. Vamos agora a análise da resolução apresentada por Descartes.
3.2.7 O problema de Papus para quatro linhas
Antes de apresentar sua metodologia na resolução do problema de Papus,
Descartes faz considerações importantes a fim de mostrar que o problema era, de fato, um
exemplo paradigmático. Assim, por meio de citações, mostra que os gregos foram
incapazes de resolvê-lo em toda sua generalidade e que os principais pontos que
impediram o avanço dos gregos foram o obstáculo dimensional e a completa falta de
ligação entre Álgebra e Geometria. O problema foi conhecido pelos antigos geômetras
gregos, Euclides o resolveu para três e quatro retas; Apolônio, segundo Papus, deu uma
solução para o problema com referência a três ou quatro retas no Livro III de As
Cônicas e Papus de Alexandria o generalizou para um número arbitrário de retas.
155
Devemos esclarecer que embora os gregos não admitissem dimensão superior a três,
mesmo assim, Papus avançou na resolução do problema tentando dar a ele uma nova
interpretação.
Passaremos agora à descrição do Problema de Papus. Sejam dadas as quatro
linhas
48
AB, AD, EF, GH. Encontrar um ponto C tal que, dados os ângulos
θ
φ
β
α
,,, , linhas
possam ser traçadas de C até AB, AD, EF, GH fazendo ângulos
θ
φ
β
α
,,, , respectivamente,
tal que CB.CF = CD.CH ( figura 20). Mais ainda, traçar e conhecer a curva contendo tais
pontos. Descartes inova no tratamento desse problema, reduzindo-o a duas variáveis, o que
permite, atribuindo-se valores a uma delas, determinar os valores correspondentes da outra
e, a partir daí, conhecer o lugar geométrico dos pontos.
Figura 20
Primeiro Descartes faz algumas observações de como os gregos encararam esse
problema, começando por explicar como Papus resolveu o problema para três e quatro
linhas retas e que Papus, em ambos os casos, conclui que o local é uma das seções
cônicas.
Esse lugar de três ou quatro linhas, a propósito do qual Apolônio se
jacta e gaba das suas achegas, ainda que devesse estar reconhecido ao
primeiro que o tratou, é o seguinte: Se, dadas as posições de três rectas, se
traçam, a partir de um ponto, outras três rectas que formem com aquelas
ângulos conhecidos, e se se a relação entre o rectângulo[produto]
48
Retas.
156
formado por duas destas rectas com o quadrado da terceira(se três), o
ponto encontrar-se-à sobre um lugar sólido, dado em posição, quere dizer,
sobre uma das três cônicas. Se as rectas dadas são quatro, e se[a partir de
um ponto] se traçam outras quatro formando com aquelas ângulos dados, e
se conhece a relação do rectângulo[produto] de duas das distãncias com o
[produto] das outras duas, o ponto encontrar-se-à igualmente sobre uma
secção cônica.
Se as rectas são apenas duas, está estabelecido que o lugar é plano;
mas se mais de quatro, o lugar do ponto não já desses conhecidos; é
dos que se chamam simplesmente linhas(sem nada se saber de antemão
sobre sua natureza ou as suas propriedades) e não se fez ainda a ntese
de nehnuma destas linhas nem se demonstrou a sua aplicação a esses
lugares; nem tão pouco à que parece ser a primeira e a mais indicada. Eis
aqui como se apresentam esses lugares:
Se de um ponto se traçam para cinco rectas dadas outras rectas que
formam com elas ângulos dados, e se a relação entre o paralelepípedo
rectângulo formado por três das linhas e o paralelepípedo formado pelas
outras duas e por outra linha dada, o ponto encontrar-se-à sobre uma certa
linha.
Se as linhas dadas forem seis, e se a relação do sólido formado
por três das distâncias ao sólido formado pelas outras três, o ponto
encontrar-se-à igualmente sobre uma certa linha.
Se forem mais de seis rectas, não pode dizer-se que se a
relação entre um objeto compreendido por quatro rectas e outro formado
pelas outras, pois não existe nada que esteja formado por mais de três
dimensões. (DESCARTES, 2003, p. 15)
Claramente vemos que as dificuldades enfrentadas por Papus, segundo Descartes,
as quais pudemos confirmar, estão localizadas no fato de Papus, assim como os gregos,
não interpretar o produto para mais de três magnitudes geométricas e também da ausência
de ferramentas algébricas. Mesmo para os casos de cinco ou seis retas não há nenhuma
classificação significativa. Papus, segundo Descartes, tenta superar as dificuldades usando as
razões compostas:
No entanto, os que antes de nós trataram este assunto (que não é possível
imaginar uma figura que tenha mais de três dimensões), acordaram em
falar sem designar qualquer figura concreta (dizendo apenas: ‘o
compreendido por tais rectas em relação ao quadrado de tal recta, ou ao
compreendido por tais outras’ ).
E é fácil, por meio das relações compostas, enunciar e demonstrar
em geral as proposições antes citadas e as que seguem. Eis aqui como:
Se, a partir de um ponto, se traçam sobre rectas dadas, outras rectas
que formem com elas ângulos dados e se a relação composta de uma
das traçadas com outra delas; e, havendo um total de sete rectas, se a
de um segundo par, a de um terceiro, enfim, a da última com outra dada;
ou havendo oito, a relação das duas últimas, o ponto encontrar-se-à sobre
uma determinada linha. Pode dizer-se o mesmo, qualquer que seja o
número de rectas, par ou impar; mas, como disse, para qualquer desses
157
lugares que excedem o correspondente a quatro rectas, não existe uma
síntese já feita que permita conhecer a linha. (DESCARTES, 2003, p. 15)
As citações de Papus, sobre as dificuldades enfrentadas pelos antigos, caem como
uma luva para Descartes demonstrar a utilidade e a superioridade da sua metodologia. A
construção do discurso cartesiano se baseia, primeiramente, em demonstrar as dificuldades
dos antigos, a ausência de ferramentas apropriadas e também de um aparato conceitual
adequado. Depois, em demonstrar como sua nova idéia é melhor, resolvendo o problema
em toda a sua generalidade. Por isso, não é de se estranhar, em certas passagens, o
discurso arrojado de Descartes, mas não devemos esquecer de mencionar que mesmo não
conseguindo resolver o problema completamente, Papus mostrou a intenção de buscar a
solução usando as razões compostas, o que pode ter sugerido a Descartes a existência de
outros mecanismos que o capacitaria a resolver as dificuldades.
Na resolução, podemos, de início, constatar a presença da velha tática dos
geômetras antigos para resolver problemas: considere o problema dado. Aliás essa deve ser
considerada uma etapa fundamental do método, pois permite a concepção de todos os
elementos necessários à resolução do problema. Mas, agora, Descartes tem um conjunto de
ferramentas melhor e isto o fará progredir bastante. Assim, Descartes descreve a solução
do problema de Papus pelo seu método:
Primeiro suponho o problema resolvido e, para sair da confusão de todas estas
linhas, considero uma das dadas e uma das que que encontrar, por exemplo,
AB e CB, como as principais, às quais trato de referir todas as outras. Designe x
o segmento da linha AB compreendido entre os pontos A e B; e seja CB
designado por y; e prolonguem-se todas as demais linhas até que cortem também
estas duas, prolongadas se necessário e se não lhes são paralelas; como se
elas cortam a linha AB nos pontos A, E, G e a linha BC nos pontos R, S, T. Ora
bem, como todos os ângulos do triângulo ARB são dados, a proporção que
entre os lados AB e RB é também dada, e indico-a como de z para b; de maneira
que representando AB por x, RB será
z
bx
e a linha total CR será
z
bx
y
+
, pois o
ponto B cai entre C e R; se R caísse entre C e B seria
z
bx
yCR
=
e se caísse
entre B e R, seria
z
bx
yCR
+=
.Analogamente, os três ângulos do triângulo
DRC são dados e, por conseguinte, também a proporção que entre os lados
158
CR e CD, que indico como z para c, de modo que sendo
z
bx
yCR
+=
, será
2
z
bcx
z
cy
CD
+=
. Após isto, como as linhas AB, AD e EF são dadas em posição,
a distância entre os pontos A e E também é dada e, designando-a por k, ter-se-á
EB igual a k+x; que seria k–x se o ponto B caísse entre E e A; e –k+x se E caísse
entre A e B. E como todos os ângulos do triângulo ESB são dados, e
estabelecendo que BE está para BS assim como z es para d, tem-se:
z
dxdk
BS
+
=
e a linha CS é
z
dxdkzy
+
+
. Se o ponto S caísse entre B e C
seria
z
dxdkzy
CS
=
; e quando C cai entre B e S teremos
z
dxdkzy
CS
+
+
=
. Além disso os três ângulos do triângulo FSC também são
conhecidos, e portanto é dada a proporção de CS para CF, que é como z para e, e
será
2
z
dexdekezy
CF
+
+
=
. Analogamente, AG ou l é dada e BG é l-x, pois que
no triângulo BGT é também conhecida a proporção BG:BT=z:t, teremos:
z
fxfl
BT
=
, sendo
z
fxflzy
CT
+
=
. Agora, como a proporção de TC para
CH está dada pelo triângulo TCH, fazendo-a como z para g, tem-se
2
z
fgxfglgzy
CH
+
=
. (DESCARTES, 2003, p. 21)
Substituindo em CB.CF=CD.CH, obtemos uma equação do segundo grau em x e
y. Atribuindo um valor a uma das variáveis encontramos a segunda. Como isso pode ser
feito indefinidamente encontraremos uma infinidade de pontos e, a partir deles, poderemos
construir a curva que representa o lugar geométrico. A resolução do problema de Papus,
dada por Descartes, é reconhecida como a base para o desenvolvimento da Geometria
Analítica. Reduzindo o problema a duas retas e ao graduá-las, constrói-se o sistema de
coordenadas.
Podemos então caracterizar a metodologia aplicada por Descartes na Geometria,
inspirado no exemplo que acabamos de ver. De fato, podemos notar a forte influência do
método de análise e síntese da Geometria antiga e a junção da Álgebra com a Geometria.
A primeira etapa do método cartesiano referido no Discurso é não aceitar como
verdadeiro o que não for claro e evidente, este é o caso do problema de Papus, assim
159
devemos considerá-lo como algo a investigar e, a partir do seu enunciado, detectar o que é
dado e o que é pedido.
A parte analítica, o segundo preceito do método, começa considerando o problema
resolvido, isso permitirá, em primeiro lugar, decompor o problema, atribuindo nomes a
todos os elementos envolvidos ou dados no enunciado do problema e que são importantes
à sua resolução, nesse caso os segmentos. Descartes define por x, y, os dois segmentos
principais e a, b, c, ...os outros segmentos que serão dados em função destes. Em seguida,
estabelece equações para os segmentos envolvidos no enunciado. Várias equações são
encontradas. E, finalmente, reduz todas as equações a uma única e a mais simples possível,
o que determina o fim da etapa analítica.
A parte sintética consiste em uma avaliação da equação encontrada, o que é feito
por meio das ferramentas disponíveis e, depois, a construção do lugar geométrico
utilizando-se a construção das raízes. Como o que foi obtido é uma equação do segundo
grau em duas variáveis x e y, atribuindo valor a uma delas, por exemplo y, reduzimos a
equação a uma do segundo grau, cuja construção das raízes e a validade da construção
foi sugerida anteriormente. Posteriormente, no Livro II, após falar da classificação das
curvas, uma passagem importante de A Geometria que se tratada depois, Descartes
retornará ao problema de Papus. Dessa vez, para dar a classificação geral, ou melhor,
explorar todas as possibilidades que a equação do segundo grau, obtida a partir do
problema de Papus, com duas variáveis pode fornecer, esclarecendo quais são os lugares
geométricos possíveis de se obter. Isto é, claramente, uma continuação da resolução do
problema, ou melhor da parte sintética. Sabemos que toda equação geral do segundo grau,
em duas variáveis, representa uma seção cônica ou as suas degenerações. Isso é o que
Descartes concluirá.
Finalmente, a enumeração é realizada observando as passagens mencionadas, neste
caso, seguindo a cadeia gica estabelecida, podemos constatar de uma única vez a
firmeza dos elos estabelecidos. Assim, percorre todas as etapas do método. No final, temos
a imagem total da resolução do problema, foi completamente exaurido e não mais
nada a declarar sobre ele.
Concluindo, podemos dizer que, no caso de A Geometria, a exemplo do problema
de Papus, a metodologia cartesiana é diferente da apresentada pelos geômetras antigos, em
160
alguns aspectos. A análise cartesiana é algébrica, enquanto a dos antigos é geométrica, isto
é, análise de figuras. O que permitiu Descartes unir a Geometria e a Álgebra e superar as
dificuldades de seus antecessores foi a introdução de importantes mudanças conceituais,
além da mudança metodológica.
A Geometria é, como se por meio do exemplo de Papus e de outros, uma
obra inovadora no campo da Matemática, onde encontramos mudanças conceituais
importantes. Outros conceitos importantes são introduzidos por Descartes quando fala das
curvas que devem ser aceitas em Geometria. Neste caso, tenta estabelecer os limites da
Geometria. Esse é o nosso próximo objetivo.
3.3 Livro II
O segundo livro pode ser dividido em quatro partes: a primeira apresenta a
classificação de curvas de Descartes, a segunda parte contém uma análise completa das
curvas necessárias para resolver o problema de Papus para quatro retas e para um caso
especial de cinco retas, a terceira seção apresenta o método da normal ou da tangente e a
quarta seção mostra como aplicar a Geometria para resolver problemas em A Dióptrica,
especificamente problemas relacionados com as ovais. O Livro II também contém exemplos
importantes da aplicação do método cartesiano à metemática, além disso, ilustra que o
propósito de Descartes, ao escrever esse tratado científico, é mais do que a aplicação de
sua metodologia, Descartes pretendia estabeler os limites da Geometria, em outras palavras,
o início e o fim da Geometria. Essa idéia ocorre quando é dado os conceitos de curvas
geométricas e de curvas mecânicas, pois esses conceitos delimitam as curvas que devem
pertencer ao reino da Geometria e as que não são.
3.3.1 Curvas geométricas e curvas mecânicas
Descartes faz a seguinte distinção entre curvas geométricas e curvas mecânicas, no
início do Livro II.
161
[...] por geométrico é o que preciso e exato, e por mecânico o que não o
é, e considerando a Geometria como uma Ciência que ensina geralmente a
conhecer as medidas de todos os corpos, não devem excluir-se as linhas
por composta que sejam, enquanto possam imaginar–se descritas por um
movimento contínuo, ou por vários que se sucedem, e em que os últimos
estão inteiramente regidos pelos que os precedem; pois por este meio se
pode sempre ter um conhecimento exato da sua medida. (DESCARTES,
2003, p.29).
Descartes admite como curvas geométricas aquelas geradas por um movimento
contínuo e regulado, aquele gerado por uma espécie de máquina, como a da figura 21,
abaixo.
As curvas mecânicas o as curvas que não podem ser descritas por uma equação
algébrica, mais tarde, Leibniz chamou-as transcendentes, curvas descritas por dois movimentos
separados, somente pontos especiais podem ser construídos, curvas que algumas vezes são
linhas retas e algumas vezes são linhas curvas, pois a proporção entre linhas retas e linhas
curvas não
era conhecida. Exemplos de curvas mecânicas: a quadratriz, a espiral, a hélice.
Exemplos de curvas geométricas, as seções cônicas.
Figura 21
O que Descartes está admitindo como curvas geométricas são aquelas definidas
por equações algébricas, uma vez que todas as curvas obtidas, a partir da figura 21, podem
162
ser dadas nessa forma
49
. Descartes ainda admitiu outro tipo de curva na Geometria, as que
podem ser construídas ponto a ponto, como é notado claramente na resolução do
problema de Papus, onde ele diz, após obter a equação fundamental que resolve o
problema, que deveria construir a solução, etapa final de seu método, atribuindo valores a
uma das variáveis para construir a outra, geometricamente, e, a partir daí, obter uma
infinidade de pontos que permitirão traçar a curva.
Mas, segundo Descartes, nem toda curva construída ponto a ponto poderá ser
admitida em Geometria, o exemplo é o da quadratriz. Descartes bane a quadratriz do reino
das curvas geométricas, fato conhecido pelos antigos geômetras gregos, por ela não
poder ser construída ponto a ponto. Na verdade, nem todo ponto é possível de se obter.
Entretanto, Mancosu sugere, argumentando convincentemente, que o motivo pode ter sido
impulsionado por outras questões. Descartes bane a quadratriz do reino da Geometria, pois
ela era usada, desde a Antigüidade, para quadrar o círculo, o que era impossível usando
régua e compasso. Devemos explicar um pouco mais.
Na Geometria, os exemplos sobre curvas mecânicas são limitados e Descartes
oferece como exemplos apenas a quadratriz e a espiral. Elas são rejeitadas porque são
descritas por dois movimentos separados entre os quais nenhuma proporção pode ser
medida exatamente. Mas, segundo Mancosu (1996, p. 77), Descartes estudou pelo menos uma
outra curva antes de 1637, a saber, a hélice cilíndrica e a rejeitou como geométrica.
Descartes oferece outro critério para rejeitar curvas mecânicas, a saber, as construções por
fio que às vezes fornecem curvas constituídas de linhas retas e linhas curvas, pois, para
ele, a proporção entre curvas e retas era impossível. Esse critério nos remete á Física de
Aristóteles ou ao dogma de Aristóteles, segundo o qual, não existe proporção entre curvas
e retas. A primeira retificação de curvas ocorreu em 1650, o que poderia ter abalado a
estrutura da Geometria, mas esse não é caso, pelo menos não relatos sobre isso
naquela época. Mancuso sugere que o motivo é que a quadratura do círculo é impossível
geometricamente e exibe uma carta de Descartes para Mersenne, de 13 de novembro de
1629, para confirmar a sua suposição. Na carta, Descartes dá várias razões para excluir
49
Considere, na figura, YA=YB=a, YC=x, YD=z, assim usando a semelhança de triângulos, obtemos z:x = x:a, ou
z = x
2
:a. Por Pitágoras z
2
= x
2
+ y
2
, a equação de AD será x
4
= a
2
(x
2
+y
2
). Do mesmo modo, fazendo YA=YB=a,
YE=x,EF=y,YF=z, obtemos YD = x
2
:z e x:YD = YD :YC, e portanto YC = x
3
:z
2
. Como YD:YC=YC:a, ax
2
:z =
(x
3
:z
2
)
2
, e z
2
= x
2
+ y
2
, obtemos finalmente AF: x
8
=a
2
(x
2
+y
2
)
3
, e assim sucesivamente podemos obter as outras
curvas. AH seria x
12
=a
2
(x
2
+y
2
)
5
.
163
curvas como a quadratriz e a hélice do domínio da Geometria, argumentando que apenas
alguns pontos podem ser construídos. A quadratriz, adiciona, pode ser gerada por dois
movimentos independentes e a hélice é gerada por uma linha (fio). Descartes as excluem
porque, ambas, permitem quadrar o círculo e trisseccionar o ângulo, não nos dando nada
de novo em Geometria. Na Antigüidade, para quadrar o círculo, eram usadas a quadratriz, a
hélice cilíndrica e a espiral. Para finalizar o seu argumento, Mancosu cita outra carta de
Descartes a Mersenne, de 31 de março de 1638, segundo a qual, Descartes diz que é
contra a natureza dos geômetras adiantar problemas que eles não podem resolver e, além
do mais, alguns problemas são impossíveis, como a quadratura do círculo. Assim ele
unificou esse critério de não existir nenhuma relação entre linhas curvas e linhas retas
com o critério da impossibilidade de quadrar o círculo. Segundo Mancosu, isso foi
realizado devido ao conhecimento de Descartes da obra de Arquimedes, onde a quadratura
do círculo é equivalente a retificação da circunferência.
164
3.3.2 Uma análise completa das curvas necessárias para resolver o problema de
Papus para quatro linhas e para o caso especial de cinco linhas
Nesta parte, Descartes explora todas as possibilidades do problema de Papus,
quando proposto para quatro e três retas, mostrando que não obteremo mais que as seções
cônicas. Essa parte corresponde a finalização do procedimento do estudo do problema de
Papus. O caso para três retas é realizado considerando a terceira e quarta retas
coincidentes e, nesse caso, a proporção fica CB.CF=CD.CD. O caso especial para cinco
retas é quando tomamos quatro delas paralelas e a quinta perpendicular as essas quatro.
A estratégia básica é a mesma usada anteriormente. A generalização do problema de Papus
consiste em notar, como fez, que a distância de C a cada reta é uma expressão com duas
variáveis do tipo ax + by + c. Ao substituir na condição dada, teremos um produto, em
cada membro, com n fatores para o caso de 2n ou 2n –1 retas.
3.3.3 O método da normal ( ou tangente ) de Descartes
Esse é também um exemplo valioso da metodologia cartesiana, não apenas do
ponto de vista de verificar como o método cartesiano se aplica à Matemática, mas
também de verificar qual a concepção Matemática de reta tangente em Descartes. o
devemos esquecer que o cálculo diferencial e integral foi fundamentado num período que
viria logo a seguir, por Leibniz e Newton, e que as idéias precedentes à descoberta
devem ter sido importantes. Nesse sentido, é conveniente exemplificar, mais uma vez , como
ele usa o seu método para resolver problemas em Geometria. O exemplo é o da normal
(ou da tangente) à elipse. Antes de dar exemplos à curvas específcas, Descartes ensina, de
forma geral, como proceder em relação a uma curva arbitrária.
A primeira etapa do método aplicado à Geometria é nomear. Consideremos então o
problema de obter a normal a uma curva dada, CE. Tomamos o problema como resolvido
e nomeamos os segmentos necessários à sua resolução. Em seguida, aplicamos a segunda
165
etapa do método. Estabelecemos equações entre os elementos dados e os desconhecidos.
Assim começa Descarte:
Seja CE a curva dada, e pretende traçar-se pelo ponto C uma reta que lhe seja
perpendicular. Suponho a coisa feita e que a linha buscada é CP, que prolongo
até ao ponto P em que encontra a linha recta GA[isto é, GA será considerado
um dos eioscoordenados], que suponho ser aquela a cujos pontos se referem todos
os da linha CE; de modo que fazendo MA ou CB = y, e CM ou BA = x, existe
alguma equação que explica a relação que existe entre x e y. Logo, fazendo PC =
s e PA = v, tem-se PM = v-y. Como PMC é um triângulo rectângulo,
resulta, para o quadrado da hiponetusa, s
2
= x
2
+ v
2
-2vy + y
2
, que é a soma dos
quadrados dos lados; quere dizer que tenho x =
222
2 yvyvs +
ou ainda y
= v +
22
xs
. E por meio destas duas equações posso eliminar uma das duas
quantidades, x ou y, da equação que exprime a relação dos pontos da curva com
os da recta GA. Se é x que quero eliminar, posso fazê-lo facilmente substituindo-o
onde ocorrer por
222
2 yvyvs +
, e o quadrado desta soma em vez de
xx, e o seu cubo em lugar de x
3
, etc.; se pretendo eliminar y, então devo
substituir y por v +
22
xs
, e y
2
pelo quadrado desta expressão, etc. O
resultado será uma equação com uma quantidade indeterminada, x ou y.
(DESCARTES, 2003, p.
61).
A segunda etapa do método é complementada introduzindo um caso particular o
que permitirá reduzir as igualdades a uma mais apropriada àquele problema específico. A
primeira curva considerada é a elipse. Consideraremos CE uma elipse e CP a reta
perpendicular a ela em C ( veja figura 22 abaixo ). MA é um segmento de seu diâmetro ao
qual corresponde à ordenada CM. Sejam r o latus rectum
50
e q seu eixo transverso; então
x
2
= ry (r/q) y
2
é a sua equação. Por outro lado, temos s
2
=
x
2
+ v
2
- 2vy + y
2
, e,
substituindo, teremos y
2
+ ( qry 2qvy + qvy +qv
2
qs
2
) / (q-r) = 0 ; como CP deve ser
normal, então o círculo com raio CP deve tocar a elipse em um único ponto C, logo a
equação acima tem raiz dupla e pode ser reescrita (y-e)
2
=0, onde e é a raiz: y
2
= 2ye - e
2
,
essa estratégia é usada para os demais exemplos. Comparando, teremos, 2e = (2qv qr)/(q-r).
Resolvendo em v, obtemos v = (2e(q-r)+qr)/2q, e, como e = y, v = (2y(q-r)/q)+r/2.
50
Lado reto. Segmento de reta com extremos sobre a elipse e que passa pelo foco, perpendicular ao eixo da
elipse.
166
Finalmente, a última etapa do método é a construção, mas essa é, neste caso, a
parte mais fácil, pois consiste apenas de operações básicas.
Figura 22
O que constatamos, por uma análise das passagens da resolução dada, é que não há
diferenças de procedimentos metodológicos entre esse exemplo e o problema de Papus.
Quanto a esse método de calcular normais destacarmos duas importantes
características. Através do critério estabelecido para curvas geométricas obtém-se, em contra
partida, equações algébricas. Esse critério se mostra bastante fértil no cálculo das normais,
uma vez que no fim, requer encontrar as raízes de uma equação algébrica. Outro fato que
merece destaque é a ausência de técnicas infinitesimais, mas Descartes não era alheio às
técnicas infinitistas, existem diversas correspondências que comprovam que ele dominava
essas técnicas e que resolveu diversos problemas usando-as.
Convêm salientarmos também que Descartes oferece muitos outros exemplos
esclarecendo como calcular normais, mas, de todo modo, não variações na estratégia. O
que muda são as figuras e as equações obtidas, mas, no fim, passíveis de construção com
régua e compasso.
3.4 Livro III
O Livro III apresenta um critério de simplicidade para uma curva, uma análise
completa das raízes de polinômios, a construção de todos os problemas de terceiro e
quarto graus (problemas sólidos) através da intersecção de um círculo e uma parábola e a
167
redução de todos esses problemas ao da trissecção de um ângulo ou da construção dos
meios proporcionais, e por fim, a construção das raízes de quinto e sexto grau (problemas
supersólidos). Embora o Livro III não traga inovações conceituais importantes, como os
Livros I e II, por meio dele, podemos obter uma visão panorâmica da Matemática
daquela época e constatar que a simbologia algébrica permitiu à Descartes tratar, com
flexibilidade, muitos resultados relacionados às equações algébricas, e também, avaliar o
projeto cartesiano à Matemática mais profundamente.
3.4.1 Análise completa das raízes de Equações
O Livro III começa estabelecendo um critério de simplicidade para as curvas
geométricas. Assim, escreve Descartes:
[...] não pode dizer que seja lícito servir-se da primeira [equação] que se
encontra para a construção de cada problema, pois é necessário ter o
cuidado de escolher sempre a mais simples que permita resolvê-lo. E é
ainda necessário observar que devem entender-se por mais simples não as
que possam ser mais facilmente traçadas, nem as que tornam a construção
ou a demonstração do problema mais fácil, mas principalmente as que,
sendo da classe mais simples, possam servir para determinar a grandeza
que se busca. (DESCARTES, 2003, p. 99).
O critétio de simplicidade que, na opinião de Descartes, todo método deve ter é
exigido aqui e esse critério será útil quando Descartes abordar as construçoes das raízes
dos polinômios de grau 3, 4, 5, 6, etc.. Para esclarecer essa noção de simplicidade que as
curvas devem ter apresenta, em seguida, o processo de contruir os meios proporcionais,
uma vez que isto é bastante importante na sua teoria de resolução de problemas sólidos.
Para Descartes, o meio mais fácil de construir meios proporcionais é utilizando-se do
mesolábio. As curvas obtidas por essa engrenagem são as chamadas gemétricas, as aceitas
no reino da Geometria. Mas Descartes argumenta que as seções cônicas, que são curvas
pertencentes a primeira classe, podem ser usadas para cosntruir os meios proporcionais,
enquanto que a curva mais simples obtida do mesolábio é de segunda classe, insinuando,
neste caso específico, que devemos sempre tomar a curva com equação de grau menor. A
construtibilidade das curvas de grau dois foram apresentadas no Livro I.
168
Mas, como a linha AD é da segunda classe (pp.31/35), e podem encontrar-
se dois meios proporcionais pelas seções cônicas, que são do primeiro; e
como também se podem encontrar quatro ou seis meios proporcionais por
meio de linhas que não são de uma classe tão elevada como o são AF e
AH, seria um erro empregá-las em Geometria. E constitui também um
erro, por outro lado, trabalhar inutilmente querendo construir algum
problema por uma classe de linhas curvas mais simples do que a sua
natureza permite. (DESCARTES, 2003, p. 101).
Descartes substitui o critério geométrico por um critério algébrico e isso o
permitirá obter construções mais simples ou reduzir os problemas para construções
padrões, o que é feito depois de apresentar as propriedades das equações aceitas em
Geometria. Convém lembrar que o critério de obter curvas via mesolábio era antigo e foi
usado por Descartes quando resolveu algumas equações de segundo e terceiro grau
sugeridas em uma carta a Beeckman. Mas agora tem a álgebra como um novo modelo e
certamente percebeu que o novo critério poderia facilitar as construções mais complexas,
reduzindo-as para equações modelos.
O Livro III pode ser entendido como o fechamento de um propósito, no fim
dele, Descartes irá estabeler critérios de construtibilidade, ou seja, irá estabelecer uma teoria
das construções geométricas para as equações das curvas aceitas em Geometria.
Relembramos que no Livro I Descartes estabeleceu critérios de construtibilidade para as
equações do segundo grau. Esses critérios serão retomados agora para curvas de equações
com grau superior a dois. As equações resultante dos problemas investigados deveriam ser
construídas geometricamente, mas antes de serem efetuadas, as equações deveriam ser
simplificadas para uma forma irredutível, um modelo ou forma padrão conhecido. Para
realizar isso, Descartes propõe as propriedades das equações polinomiais, isto é, várias
técnicas para realizar as transformações necessárias que podem ser resumidas em três
temas: raízes de equações, transformação de equação por substituição linear e as reduções.
3.4.2 As propriedades
Depois dessas considerações iniciais, Descartes apresenta as propriedades das
equações polinomiais com coeficientes reais e suas raízes. Chama as raízes reais e
169
positivas de verdadeiras e as negativas, de falsas. A variável é chamada de quantidade
desconhecida e o coeficiente da variável, de quantidade conhecida. A ausência de um termo
da equação é indicada por um asterisco (*). O grau da equação é, para Descartes, a
dimensão. As propriedades apresentadas em A Geometria são, em muitos casos, parecidas
com aquelas que encontramos nos livros do terceiro ano do ensino médio de nossos dias
e entre essas propriedades está a regra do sinal de Descartes. A importância dessas
propriedades é que elas são usadas, por ele, para resolver problemas de A Geometria que
recaem em equações algébricas. Vamos às propriedades.
A quantidade de raízes de uma equação pode ser igual a dimensão da equação,
isto é, a sua maior potência. Isto sugere que ele conhecia ou desconfiava do resultado
que viria a ser conhecido como teorema fundamental da Álgebra, embora em A Geometria
não apareça nenhum comentário adicional sobre isto.
Para diminuir a dimensão de uma equação, conhecendo-se uma de suas raízes, a,
basta dividir a equação pelo binômio x – a, onde x é a quantidade desconhecida. Para saber
se o valor a é a raiz de uma equação, procede dividindo o polinômio pelo binômio x – a.
Se a divisão for exata, então o valor a é uma raiz.
A Regra do Sinal de Descartes é apresentada tomando o exemplo dado em A
Geometria, quando fala das raízes da equação: x
4
– 4x
3
– 19x
2
+ 106x – 120 = 0.
A saber: podem existir tantas verdadeiras como de vezes os sinais + e - se
encontrem trocados; e tantas falsas como de vezes se encontrem dois sinais
+ ou dois sinais - seguidos. Assim, na última, depois de +x
4
segue - 4x
3
,
uma variação de sinal de + para - ; e depois de - 19x
2
segue–se +10x e
depois de +106x vem 120, o que corresponde a outros dois câmbios,
donde se conclui que três raízes verdadeiras; e uma falsa, em virtude
dos dois sinais seguidos que antecedem 4x
3
e 19x
2
. (DESCARTES, 2003,
p.105).
Para transformar as raízes falsas em verdadeiras e as verdadeiras em falsas, basta
trocar os sinais + e - que estão nas posições pares sem trocar os das posições impares.
Por exemplo, a equação x
4
4x
3
19x
2
+ 106x 120 = 0 possui como raízes 2,3,4 e –5.
Depois de aplicar a técnica mencionada, ela passa a ser x
4
+ 4x
3
19x
2
- 106x 120 = 0,
que possui raízes -2, -3, -4 e 5.
170
Para aumentar o valor das raízes basta fazer a substituição da variável x por
outra do tipo y-a, ou y+a para diminuir. Na equação: x
4
+ 4x
3
19x
2
- 106x 120 = 0,
querendo aumentar o valor das raízes de 3 unidades, basta fazer a substituição y = x+3 e
teremos y
4
- 8y
3
– y
2
+ 8y =0, cujas raízes são 1,0,-1 e 8.
Aumentando as raízes verdadeiras, diminuem–se as falsas, e inversamente, o que é
obvio a partir do exemplo anterior.
Para anular o segundo termo de uma equação basta diminuir as raízes
verdadeiras da quantidade conhecida deste segundo termo dividida pelo número de
dimensões do primeiro, se estes dois termos tiverem sinais opostos; ou, tendo o mesmo
sinal, aumentando as raízes da mesma quantidade. Assim, para anular o segundo termo da
equação y
4
+16y
3
+71y
2
-4y-420 =0 tendo dividido 16 por 4, em virtude das 4 dimensões do
termo y
4
, obtêm-se, pelo que se faz z – 4 = y, e se escreve z
4
* -25z
2
-60z – 36 = 0.
Para transformar as raízes falsas em verdadeiras sem que as verdadeiras se
transformem em falsas, basta aumentar o valor das verdadeiras de um valor que seja
superior ao de qualquer uma de todas das falsas.
Para transformar todos os termos de uma equação em termos significativos, por
exemplo: x
5
**** - b = 0, multiplicando a por x teremos x
6
- bx = 0, substituindo y-a = x,
obteremos y
6
– 6ay
5
+ 15
a
2
y
4
– 20 a
3
y
3
+15 a
4
y
2
– ( 6 a
5
+ b)y + a
6
+ ab = 0.
Para multiplicar ( ou dividir) as raízes sem conhecê-las por um número k basta
multiplicar ( ou dividir) o segundo termo por k, o terceiro por k
2
, o quarto por k
3
, e assim
sucessivamente.
Para reduzir os coeficientes quebrados
51
de uma equação em números inteiros, por
exemplo: 0
327
8
27
26
3
23
=+ xxx . Fazendo
3xy = , e substituindo na equação anterior,
teremos 0
9
8
9
26
3
23
=+ xyy . Depois fazendo z = 3y, e mais uma vez substituindo, resulta
51
O termo indica tanto os decimais racionais quanto os decimais irracionais, esses últimos são também
chamados surdos.
171
z
3
9z
2
+ 26z 24 = 0, cujas raízes são 2, 3 e 4, as anteriores são
3
4
,1,
3
2
e as primeiras
9
34
,3
3
1
,
9
32
.
Para transformar uma quantidade conhecida de qualquer termo em outra
quantidade qualquer dada, por exemplo
x
3
* -b
2
x + c
2
= 0
, para trocar b
2
por 3a
2
fazemos y
= x
2
2
3
b
a
e obtemos
03
3
3
3
33
23
=+
b
ca
yay
.
Segundo Descartes, podem existir raízes imaginárias positivas e negativas, como no
exemplo
x
3
6x
2
+ 13x 10 = 0.
Dois é uma raiz, mas as outras serão sempre imaginárias,
ele diz: podem ser imaginárias falsas ou verdadeiras.
Para dividir uma equação por um binômio que contêm a sua raiz, aplica,
basicamente, o mesmo critério de divisão de polinômios que usamos hoje, apenas inverte,
começando do último termo.
Descartes diz que para um problema ser sólido, a cúbica não pode ser divisível
por nenhum binômio, ou seja, deve envolver uma cônica ou uma curva mais elevada.
À transformação das equações do tipo
x
4
*+p x
2
+ q x + r = 0
em
y
6
+2py
4
+ ( p
2
+
4 r) y
2
q
2
= 0,
usa a identidade
x
4
* + p x
2
+ q x + r = (x
2
-yx+s ) (x
2
+ yx+ t)
. A partir daí,
pode-se tentar encontrar y
2
e, não sendo possível, o problema é sólido. Descartes usa essas
propriedades para resolver o problema da convergência ou da inclinação, apresentado e
também resolvido por Papus.
Em seguida, a regra geral para reduzir as equações de grau superior ao
quadrado do quadrado. Diz que não sendo possível obtê-las por multiplicação de outras
duas de grau inferior, se a quantidade desconhecida tem 3 ou 4 dimensões, o problema é
sólido; se tem 5 ou 6, o problema é de grau mais elevado, e assim sucessivamente.
Estabelece a forma geral de construir todas os problemas sólidos reduzidos a uma
equação de três ou quatro dimensões. Se o problema é sólido podemos sempre encontrar
172
a raiz por qualquer das secções cônicas, mas Descartes demonstra que é possível encontrar
todas por meio de uma parábola.
Explica a invenção dos meios proporcionais que é realizada através de construções
envolvendo parábolas e círculos e como trisseccionar um ângulo.
Em seguida, demonstra que todos os problemas propostos podem ser reduzidos ao
problema da trissecção do ângulo e da construção dos meios proporcionais.
Finalizando, explica como expressar todas as raízes das equações bicas e todas
as que não chegam mais que ao quadrado do quadrado. Por que razão os problemas
sólidos não podem ser construídos sem as secções cônicas, nem os que são mais
compostos, sem algumas linhas mais compostas. Apresenta a forma geral de construir
todos os problemas reduzidos a uma equação que não tem mais de seis dimensões.
Convém assinalarmos alguns fatos importantes nessa teoria das equações
polinomiais apresentadas por Descartes. Na obra, elas têm uma função especial, o interesse
nas raízes relaciona-se com as construções obtidas, geralmente, interseccionado duas curvas,
onde as raízes eram construídas de acordo com os pontos de intersecção e o sinal da raiz
era determinado pela posição delas em relação aos eixos ordenados. No caso do exemplo
da equação do sexto grau as raízes eram todas positivas e reais. As transformações
lineares eram importantes, pois mostravam como uma equação poderia ser reduzida à
forma padrão. As técnicas buscavam detectar se certas equações eram redutíveis ou para
detectar se problemas planos conduziam a equações de grau maior que dois ou se
problemas sólidos conduziam a equações maiores que 4, etc. Descartes apresentou as
propriedades relacionando os graus, os coeficientes e as raízes, não demonstrando nenhuma
delas, simplesmente afirmou que um leitor atento seria capaz de entendê-las com
facilidade. Tudo indica que Descartes baseou suas afirmações no princípio de que:
ax
n
+ a
1
x
n-1
+ ... + a = a (x – x
1
)(x – x
2
)...(x – x
n
)
Quanto a equação do segundo grau não era necessário fazer considerações
adicionais, pois, no Livro I, Descartes apresentou os critérios de construção das raízes reais
da equação do segundo grau. As equações do terceiro e do quarto grau deveriam ser
173
redutíveis à forma
x
4
=
±
px
2
±
qx
±
r
, com
x
3
ausente e
p, q, r
positivos. As equações de
sexto e quinto grau deveriam ser reduzidas para
x
6
- px
5
+ qx
4
- rx
3
+ sx
2
- tx + v = 0
, os
coeficientes são alternados, positivos e q é maior que o quadrado de
p/2
.
A maioria das substituições era do tipo
x = bx + a
e pretendia-se com elas
transformar as raízes verdadeiras em falsa e vice versa, além de aumentar ou diminuir as
raízes. a transformação
x = y
±
a/n
eliminava o segundo termo da equação polinomial,
usada para obter a forma padrão do terceiro e quarto grau e também para checar a
redutibilidade da equação do quarto grau.
A transformação
x = y – a
tornava as raízes falsas em verdadeiras e as verdadeiras
continuavam verdadeiras, se a constante fosse escolhida maior do que a maior das falsas.
Descartes ainda anunciou que, depois de fazer a transformação, na equação resultante,
nenhum coeficiente sucessivo tinha o mesmo sinal e que, se
a
fosse escolhido
suficientemente grande, o coeficiente
p
e
q
da equação
y
n
p y
n-1
+ q y
n-2
- ......+a
0
= 0
satisfaria
q > (p/2)
2
. Esse procedimento permitiria Descartes chegar na equação modelo do
sexto grau. Esse tipo de transformação, de uma forma ou de outra, fazia com que todos os
coeficientes da equação fossem não nulos. Em particular, Descartes mencionou que o
termo constante de uma equação poderia ser não nulo, a equação do sexto grau pressupõe
essa exigência. Neste ponto, Descartes também observa que uma equação de grau
n-1
poderia ser transformada em uma equação de grau
n
bastando multiplicá-la por
x
. As
duas técnicas foram importantes, pois dada uma equação do quinto grau ela poderia ser
transformada em uma do sexto grau, multiplicando-a por
x
e, depois, por
x = y a
, obteria
uma equação do sexto grau com o termo constante diferente de zero.
As substituições do tipo
x = ay
e
x = y/c
serviam para multiplicar e dividr raízes
sem conhecê-las, eliminar os coeficientes fracionários e em alguns casos os coeficientes
irracionais, como mostra o exemplo dado mais acima. Essa técnica também foi usada para
transformar um dado coeficiente em um outro escolhido previamente, mantendo o
primeiro coeficiente igual a 1. Mas essa técnica, em muitos casos, não reitra os fatores
irracionais.
Quando apresentou seu método Descartes ensinou como reduzir problemas para
uma equação em uma variável, seguindo o modelo cartesiano a equação deveria ser do
tipo
x
n
+ a
1
x
n-1
+ ... + a = 0.
A escolha de uma variável em um problema era importante,
174
pois, dependendo da escolha, obteríamos equações diferentes, com graus diferentes. Assim, de
acordo com a escolha, o geômetra poderia resolver um dado problema plano usando uma
técnica inapropriada, pois poderia interpretá-lo como não sendo um problema plano.
Descartes concluiu que se ao resolver um problema plano o geômetra encontrasse uma
equação de grau maior que dois, então esta equação seria redutível a uma do segundo
grau. Desse modo, um teste seria necessário para evitar escolhas indevidas de formas de
construção sobre as bases do grau da equação.
Quanto a redutibilidade Descartes considerava uma equação redutível quando
podia ser escrita como produto de dois polinômios, de grau menor, com coeficientes que
poderiam ser cosntruídos com segmentos de retas e círculos a partir dos coeficientes do
primeiro polinômio. Assim, como as raízes reais das equações do segundo grau, mostradas
no Livro I, eram sempre construtíveis, elas eram redutíveis.
O estudo da redutibilidade das equações do terceiro e quarto grau foram tratadas
no fim do Livro III e Descartes estudou a redução da equação cúbica quando o problema
é plano, quais problemas são sólidos quando a equação é cúbica, a redução de equações
com quatro dimensões quando o problema é plano e quais são os que são sólidos.
Para equações do terceiro grau Descartes primeiro aplicava as técnicas de
substituição e outras técnicas que tinha explicado anteriormente para reduzir uma equação
a uma com coeficientes não racionais. Se a equação do terceiro grau fosse redutível uma
de suas raízes era um fator do termo constante, se nenhum dos fatores fosse uma raiz o
polinômio era irredutível. Nesse ponto, Descartes explica como dividir dois polinômios.
Para equações do quarto grau Descartes sugeriu a mesm a técnica de verificar os
fatores dos termo constante para encontrar raízes constrtutíveis e reduzir a equação para
grau três ou menor que três e também apresentou a decomposição de um polinomônio
em fatores quadráticos. Para fazer isso primeiro reduzia a equação do quarto grau à forma
x
4
+ Px
2
+ Qx + R = 0
. Em seguida passou a considerar a equação cúbica em
y
2
,
y
6
+ 2Py
4
+ (P
2
4R)y
2
- Q
2
= 0
. Se esta equação fosse redutível então qualquer um dos fatores S de
Q
2
era raiz da equação e portanto
y
1
= S
era raiz da equação, nesse caso a equação
poderia ser reescrita como produto de dois fatores quadráticos:
x
4
+ Px
2
+ Qx + R =
(x
2
–y
1
x + 1/2y
1
2
+ 1/2P + Q/(2y
1
)) ( x
2
+ y
1
x + 1/2y
1
2
+ 1/2P - Q/(2y
1
))
175
assim o problema era chamado plano, pois
y
1
era construtível. Se a equação em
y
6
o
fosse redutível o problema não era plano, mas sólido. A partir do exemplos, podemos
constatar que Desartes obteve a equação em
y
6
pelo método dos coeficientes
indeterminados, decompondo
x
4
+ Px
2
+ Qx + R = (x
2
yx + u)(x
2
+ yx + v)
e eliminando
u
e
v
pela comparação dos coeficientes chegamos nas equações. Esse argumento é conssoante
com aquele de agrupar curvas em classes com graus 3-4, 5-6, e assim sucessivamente.
Para os graus mais altos Descartes apenas sugeriu que poderia ser realizado do mesmo
modo e apresentou diversos exemplos numéricos para transformar as equações e apenas
um exemplo com coeficientes indeterminados, a saber:
x
4
– 2ax
3
+ (2 a
2
– c
2
)x
2
– 2a
3
x + a
4
= 0
Coma substituição
x = z + a/2
a equação passa ser
z
4
+ (1/2 a
2
– c
2
) z
2
– (a
3
+ ac
2
)z + 5 a
4
/16 – a
4
c
2
/4 = 0
Que era transformada na equação
y
6
+ (a
2
– 2c
2
)y
4
+ (c
4
- a
4
)y
2
– a
6
– 2 a
4
c
2
– a
2
c
4
= 0
Descartes tinha usado essa equação antes para ilustrar o método de encontrar fatores
lineares de um polinômio cúbico verificando os fatores do termo constante.
a
6
+ 2 a
4
c
2
+ a
2
c
4
= a
2
(a
2
+ c
2
)
2
Descartes mostrou que
a
2
+ c
2
era uma raiz da equação da equação cúbica em
y
2
e isso o
permitiu chegar na equação em
z
4
, usando a regra para decompor polinômios em dois
polinômios quadráticos,
176
z
2
- z
22
ca + + 3 a
2
/4 – a
22
ca + /2 = 0 e z
2
+ z
22
ca + + 3 a
2
/4 + a
22
ca + /2 = 0
As duas raízes são
z =
22
ca + /2
2/4/2/
2222
caaca +++±
Essa equação foi escolhida pois na resolução do problema sobre inclinação de Pappus, ela
seria fundamental.
Podemos finalizar o Livro III afirmando que o propósito de Descartes era
estabelecer uma teoria da construção, isto é, estabelecer critérios para reduzir determinadas
equações a outras cujas construções eram conhecidas. A construção de uma equação era
importante na obra, pois constituia a etapa final do método de análise e síntese, ou seja, a
síntese propriamente era a construção da equação.
Devemos agora tratar de uma outra questão importante, a saber, como Descartes
aplicou sua metodologia nas Ciências Físicas.
Os ensaios destinados ao estudo dos fenômenos físicos deixam-nos notar como
Descartes aplicou sua metodologia nas Ciências Físicas e quanto seu projeto era mais
amplo que o de seus predecessores. Começaremos com A Dióptrica, onde buscaremos
abordar algumas partes mais importantes da obra como a explicação das propriedades da
luz e a lei de refração e as construções de lentes. Essas partes serão necessárias ao
entendimento de um exemplo fundamental de Os Meteoros, que será explicado pela sua
metodologia, o fenômeno do arco-íris.
3.7. A Dióptrica
O ensaio, A Dióptrica, pretendia ser um tratado geral sobre a Óptica que estudava
questões relacionadas tanto a Dióptrica, o estudo da refração da luz, quanto a Catóptrica, o
estudo da reflexão da luz. A Dióptrica é então uma tradução literal, pois deveria ser
Optica. O objetivo principal da obra é ensinar como fabricar instrumentos ópticos, como os
177
telescópios, que poderiam melhorar a visão. Não devemos esquecer que o interesse pelos
telescópios foi intensamente estimulado pelas descobertas de Galileu e Descartes viu neles
a possibilidade de aumentar o conhecimento humano. A Dióptrica é então um ensaio
prático, pretende ensinar como construir tais lentes, mas com um fundamento científico, por
isso explicará as propriedades da luz pormenorizadamente.
O ensaio é dividido em dez discursos e, no inicio do primeiro discurso,
Descartes explica que a confecção desses instrumentos depende da habilidade dos
artesãos, que são geralmente homens incultos, e, por isso, pretende ser o mais claro
possível, explicando todos os pormenores, não sendo necessário conhecer nada de outras
Ciências, ou seja, sua explicação pretende ser auto suficiente. No início também resume a
Dióptrica:
Por isso começarei com a explicação da luz e de seus raios; depois, tendo
dado uma breve descrição das partes do olho, direi especificamente como
a visão é causada; e então, tendo levado em conta todas as coisas capazes
de melhorá-la, ensinarei como elas podem ser auxiliadas pelas invenções que
descreverei. (DESCARTES, 2001, p.66-tradução nossa)
No primeiro discurso, Da luz, explica as propriedades da luz, mas não fornece
nenhuma explicação da causa da luz e também não explica a sua natureza verdadeira,
pois isso está além de seus interesse nesse ensaio:
Assim, não tendo aqui qualquer outra ocasião para falar da luz além da
explicação de como seus raios entram no olho, e como podem ser
desviados pelos diferentes corpos que eles encontram, não preciso me
propor a explicar sua natureza verdadeira. E acredito que bastará que eu
faça uso de duas ou três comparações que auxiliarão a concebê-la de
modo que me parece a mais conveniente para explicar todas as suas
propriedades com que a experiência nos familiariza, e para deduzir
posteriormente todas as outras que não podem ser tão facilmente
observadas; imitando nisto os astrônomos, que, embora suas hipóteses sejam
quase todas falsas ou incertas, ainda assim, porque suas hipóteses referem-
se a diferentes observações que eles fizeram, nunca deixam de extrair
muitas conclusões verdadeiras e muito seguras a partir delas.
(DESCARTES, 2001, p. 66-tradução nosaa)
Descartes propõe fazer uso de comparações, aliás esse recurso permite a
construção de diversas imagens que, embora pareçam incoerentes entre si, permitem um
claro entedimento da concepção da estrutura física da luz sob o ponto de vista cartesiano.
As comparações exercem uma função didática e permitem ao leitor entender a estrutura
178
da luz de uma forma mais prática. A primeira metáfora apresentada é a do cego que
tateia os objetos a sua volta com o auxílio de uma bengala.
Ás vezes certamente aconteceu a você, enquanto caminhando na noite sem
uma luz pelos lugares que são um pouco difíceis, que tornou-se necessário
usar uma bengala a fim de guiá-lo; e você pôde assim ser capaz de
perceber o que você sentiu, por meio deste bengala, os diversos objetos
posicionados a sua volta, e que você foi até mesmo capaz de falar se
eles eram árvores, ou pedras, ou areia, ou água, ou grama, ou lama, ou
qualquer outra coisa semelhante. Verdade, este tipo de sensação é mais
confusa e obscura nesses que não têm muita prática com ela; mas
considere-a nesses que, nascidos cegos, fizeram uso dela em toda sua vida,
e você iachá-la tão perfeita e tão exata que se poderá quase dizer que
eles enxergam com suas mãos, ou que a sua bengala é o órgão de algum
sexto sentido dado a eles no lugar da visão. (DESCARTES, 2001, p. 67-
tradução nossa)
A intenção desta primeira metáfora é demonstrar que a velocidade da luz é
infinita. A transmissão imediata do toque da bengala sobre um objeto, de uma extremidade
a outra, é usada para definir a luz como um certo movimento ou ão, embora a bengala
seja muito curta, a imagem pretende dizer que a luz chega a nossos olhos, a partir da
fonte, instantaneamente:
E a fim de deduzir disso uma comparação, desejo que você considere a
luz como nada mais, nos corpos que chamamos luminosos, que um certo
movimento ou ação, muito pido e muito vivo, que passa em direção aos
nossos olhos por meio do ar e outros corpos transparentes, da mesma
maneira que o movimento ou resistência dos corpos que este cego
encontra é transmitido às suas mãos por meio de sua bengala. O que o
impedirá primeiramente de achar estranho que esta luz possa estender seus
raios em um instante do sol até nós; porque você sabe que a ação com
que se move de uma extremidade de uma bengala deve assim passar em
um instante de uma extremidade a outra e que ela deveria passar do
mesmo modo, ainda que haja mais distância que ali, da terra aos céus.
(DESCARTES, 2001, p. 67-tradução nossa)
O ar é comparado com a bengala que faz com que a luz se propague com
velocidade infinita e Descartes chega mesmo a dizer que se a velocidade da luz não for
infinita toda a sua Filosofia estaria errada.
Ainda, usando a metáfora do cego com a bengala, explica a sensação das
diferentes cores que recebemos por meio da luz. As cores, para Descartes, nada mais são
que as diferentes formas pelas quais os corpos recebem a luz e refletem-na. Uma
179
explicação complementar às cores é dada mais adiante quando fala da lei de refração,
mas, é nos Meteoros que Descartes explicará melhor como as cores se originam,
recorrendo a concepção de que a luz é constituída de dois movimentos, um retilíneo e
outro giratório, onde Descartes usa outro recurso metafórico, comparando a luz, novamente,
com a bola de tênis. Essa metáfora é usada aqui também quando fala das propriedades
refletoras e refratoras da luz e dos dois movimentos que a constitui, o movimento
retilíneo a impulsiona em uma certa direção e o movimento giratório, faz a bola girar em
torno de si. Mas aqui, em A Dióptica, Descartes explica como vemos as cores assim:
Nem acharia estranho que por meio dela [a luz] podemos ver todos os
tipos de cores; e você pode mesmo estar preparado a acreditar talvez que
essas cores são nada mais, nos corpos que chamamos coloridos, que as
diversas formas com que esses corpos recebem a luz e refletem-na contra
nossos olhos: se você somente considerar que as diferenças que um cego
nota entre árvores, rochas, água, e coisas semelhantes pela extremidade de
sua bengala não parece menos a ele que aquelas entre o vermelho, o
amarelo, o verde, e todas as outras cores parecem a nós; e que contudo
estas diferenças são nada mais, em todos esses corpos, que as diversas
formas de movimento, ou de resistir ao movimento deste bengala.
(DESCARTES, 2001, p. 67-tradução nossa)
Na interpretação cartesiana, não existe algo que passa do objeto para os nossos
olhos para que possamos notar as diferentes cores e não existe também algo similar
nesses objetos que sejam semelhantes as idéias ou as sensações que temos dele. A
metáfora do cego com a bengala é utilizada mais uma vez.
Em conseqüência do que você terá ocasião de julgar que não existe
necessidade para supor que algum material passa dos objetos para os
nossos olhos para fazer-nos ver as cores e a luz, nem mesmo que existe
alguma coisa nesses objetos que seja similar as idéias ou às sensações
que temos deles: da mesma maneira que nada sai dos corpos que um
cego sente, que será transmitido por toda extensão de sua bengala em sua
mão; e como a resistência ou o movimento desses corpos, que é a única
causa das sensações que ele tem deles, é nada semelhante as idéias que
ele forma deles. (DESCARTES, 2001, p. 68-tradução nossa)
A idéia do cego com sua bengala deve fazer com que deixemos de pensar que
a imagem do objeto viaja, a partir do objeto até nossos olhos. uma ação dupla, do
objeto até nossos olhos e dos nossos olhos até o objeto.
180
Pois, da mesma maneira que nosso cego pode sentir os corpos que estão
a volta dele, não somente pela ação desses corpos quando eles movem-se
contra o sua bengala, mas também pela da mão dele, quando eles estão
simplesmente resistindo-a, assim afirmamos que os objetos da visão podem
ser sentidos, não somente por meio da ação que, estando neles, tendem em
direção aos nossos olhos, mas também por meio daquilo que, estando nos
olhos, tende na direção deles. (DESCARTES, 2001, p. 68-tradução nossa)
Segundo Descartes, o homem comum não pode ver essa dupla ação. sentimos
a sensação do objeto até nós e não o contrário. A ação contrária é percebida, por exemplo,
nos olhos dos animais, ou melhor, de um gato, quando estão na escuridão da noite.
Contudo, porque esta ação é nada mais que luz, devemos notar que ela é
somente aquela que podemos ver durante a escuridão da noite, tal como
gatos, em cujos olhos esta ação é encontrada; e que, como para o homem
comum, ele vê somente pela ação que vem dos objetos. Pois a experiência
nos mostra que esses objetos devem ser luminosos ou iluminados afim de
serem vistos, e não que nossos olhos devem ser luminosos ou iluminados
afim de vê-los. (DESCARTES, 2001, p. 68-tradução nossa)
Para explicar como a luz se propaga através do ar e através dos meios
transparentes, Descartes faz uso de outra analogia, a de um barril de vinho contendo uvas
esmagadas. Dessa comparação, extrai a concepção geométrica da luz, além de ser um
movimento ou uma ação instantânea, seu percurso é retilíneo. Para tanto, no fundo do barril
faz dois orifícios A e B. Na explicação fala brevemente sobre a matéria sutil. O universo
físico, segundo Descartes, é constituído de três tipos de “elementos”. O nosso sol e as
demais estrelas são constituidos do primeiro elemento que consiste em partículas muito
pequenas e velozes, que são muito agitadas ao ponto de se dividirem em partículas de
“indefinida pequenez”, quando se chocam com outros corpos. O segundo elemento é
composto de partículas esféricas ligeiramente maiores, mas ainda diminutas e
imperceptíveis, assim é a matéria que preenche todo o espaço entre as estrelas e os
planetas, não cuo na concepção cartesiana. O terceiro elemento é constituído de
partículas mais volumosas, com forma menos adequada ao movimento, constituindo a Terra
e os outros planetas. Basicamente, essa é a mesma concepção dos escoláticos que era
181
baseada nos quatro elementos: fogo, ar, terra e água. Descartes funde os dois últimos. A
matéria sútil é então constituída do primeiro elemento.
Essa matéria muito sútil será comparada com o vinho no tonel, as partes menos
fluídicas do ar e dos outros corpos transparentes serão comparados com os cachos de
uvas misturados no vinho. Por meio da abertura dos orifícios A e B, demonstra o
percurso retilíneo seguido pela luz. A estratégia é nos convencer que ao abrirmos os
orifícios A e B, na base do barril, qualquer ponto na superfície seguirá em linha reta para
baixo, sem que a ação realizada em um dos dois orifícios interfira no outro, isto é, os
pontos que são atraídos pela abertura de um orifício seguirão, em linha reta, sem mudar
de direção. A conclusão é a mesma para a matéria sútil que está a nossa frente, quando
tocada pelo sol tende em linha reta na direção de nossos olhos, no mesmo instante que são
abertos. Descartes conclui que a luz pode viajar em linha reta, justificando que
devemos notar a diferença entre movimento e ação ou inclinação para o movimento.
Alguém pode pensar que as partículas que estão na superfície do vinho ao tenderem para
A e B, um movimento afetará o outro, ao mesmo tempo, mas esse não é o caso. Elas
movem-se exatamente em linha reta, embora os cachos atrapalhem esses movimentos. O
que deve ser concebido é que existe uma infinidade de pontos sobre a superfície do
vinho que tenderam para o orifício A e outra infinidade que tenderá para o orifício B,
mas que essa tendência é realizada de forma retilínea e independente e essa é a mesma
relação que existe entre os corpos luminosos e iluminados.
Para falar da propriedade refletora da luz, introduz a terceira metáfora, a da bola
de tênis, sujeitando a luz às leis do movimento corpuscular:
Além disso, esses raios devem sempre ser imaginados como sendo
exatamente retos, quando atravessam somente um corpo transparente que é
uniforme por todas as partes; mas quando eles encontram certos outros
corpos estão sujeitos a serem desviados por eles, ou desfalecidos, da
mesma forma como o movimento de uma bola ou de uma pedra atirada
no ar é desviada por aqueles corpos que ela encontra. Pois é muito fácil
acreditar que a ação ou a inclinação para mover que eu disse que deve
ser tomada para a luz, deve seguir nisto as mesmas leis que o
movimento
.
(DESCARTES, 2001, p. 70-tradução nossa)
182
A propriedade refletora depende das propriedades dos corpos que a luz encontra
em seu trajeto, se os corpos são macios, então interropem o movimento da luz, do mesmo
modo, quando a bola encontra um lençol de linho. Se os corpos são duros, então refletem-
na em outras direções e de várias formas, conforme as caractrísticas da superfície: áspera,
polida, plana, desigual, curva, etc.
Descartes sugere, em seguida, que além do movimento retilíneo da bola que a
conduz de um lugar a outro, contém ainda um movimento que a faz girar em torno de si
e que esse movimento giratório tem muitas relações com o retilíneo. Essa concepção
explicará, segundo Descartes, a origem das cores e as diversas formas da luz se refletir e
se refratar, dependendo dos corpos que a luz encontra. Assim, se a superfície é
completamente lisa e igual, as bolas serão desviadas ou refletidas uniformemente e na
mesma ordem. Se a superfície é plana, a reflexão mantém o mesmo ângulo de incidência
e se a superfície é curva, a reflexão é arbitrária. No momento da reflexão a bola ganha o
movimento em torno de si perdendo parte do movimento retilíneo, de acordo com a
superfície que ela encontra e Descartes enfatiza que essa idéia pode ser facilmente
concebida por aqueles que jogam tênis..
Agora, se a bola encontra pela frente uma superfície líquida será desviada e
mudará o seu percurso ao penetrá-la, constituindo o fenômeno da refração. Os dois
fenômenos, a refração e a reflexão, serão explicados no segundo Discurso. Agora, é
importante atentarmos à explicação de como vemos as cores por meio da reflexão.
Os raios, ao incidirem sobre os corpos, serão refletidos em todas as direções e,
com o fenômeno da luz concebido como constituído de duas partes, Descartes explicará a
origem das cores do seguinte modo. Enxergamos o preto porque o corpo, ao receber a luz,
separa os seus raios tomando toda a sua potência. Os corpos brancos refletem os raios
da luz sem causar qualquer mudança na sua ação. O amarelo, o vermelho, o azul são
obtidos por mudanças muito leves como quando tocamos uma bola de tênis levemente
de raspão. A explicação da concepção das cores será retomada depois em Os Meteoros,
quando da explicação do fenômeno do arco-íris. O raio de luz, ao ser refletido, terá
alterado o seu movimento, a bola girará em diferentes velocidades provocando as cores.
183
Passaremos agora ao segundo Discurso, onde Descartes anuncia a lei de refração.
A explicação das cores e das leis de refração e de reflexão serão úteis quando do estudo
do fenômeno do arco-íris.
O segundo Discurso começa por uma exposição da determinação do raio de luz
no movimento de uma posição A para uma posição B, para tanto, comparará o movimento
do raio de luz com o da bola de tênis. A bola contém duas determinações para o
movimento, uma descendente e outra horizontal. A união das duas determinações faz então
a bola mover do ponto A para o ponto B, portanto, o encontro com um piso interrompe
somente uma das determinações: a descendente e a permanência da determinação horizontal
fará com que a bola continue o movimento da esquerda para a direita, mantendo a
mesma velocidade, se for uma superfície sólida e bem polida.
Para explicar a direção em que a bola deve ser refletida, Descartes constrói um
círculo de centro B, passando por A, veja figura 23 abaixo, e supõe que o tempo gasto no
trajeto de A até B deve ser o mesmo de B para um certo ponto na circunferência deste
círculo, digamos F, pois somente a determinação vertical do moviemnto da luz é
interrompido. Assim propõe encontrar o ponto onde a bola retornará, depois de passar por
B, em sua palavras, anuncia a propriedade refletora da luz.
Figura 23
Para saber precisamente onde a bola retornará, depois de passar pelo ponto B,
centro do círculo, Descartes constrói três retas paralelas AC, HB e FE perpendiculares a CE
de forma que AC e FE sejam eqüidistantes de HB. O movimento da bola, neste caso, ao
ser interrompido em uma de suas determinações, a descendente, manterá o movimento no
sentido da esquerda pra direita e mantendo a mesma velocidade. Desse modo, a bola
184
alcançará o segmento vertcal FE, depois de passar por B, no mesmo intervalo de tempo
que gastou de AC até B. Assim, a única possibilidade é a bola atingir o ponto F.
[...] pois qualquer ponto desta linha FE está tão distante de HB nesta
direção quanto está qualquer outra, e tão longe quanto estão aqueles da
linha AC; e também a bola está tão determinada a avançar para aquele
lado quanto ela estava a agora. Então que não pode ao mesmo tempo
chegar tanto a um certo ponto da linha FE quanto a um certo ponto da
circunferência do círculo AFD, a menos que esteja no ponto D ou no
ponto F, considerando que existem somente dois pontos onde a
circunferência e a linha interseccionam-se; de modo que, como o piso
impede a bola de passar na direção de D, devemos concluir que ela deve
infalivelmente ir na direção de F. E assim você pode facilmente ver
como a reflexão ocorre, a saber de acordo com o ângulo que é sempre
igual ao ângulo que chamamos ângulo de incidência; da mesma forma que
se um raio, vindo do ponto A, cai no ponto B sobre a superfície do
espelho plano CBE, é refletido na direção de F de uma tal maneira que o
ângulo de reflexão FBE nem é maior e nem é menor que aquele do
ângulo de incidência ABC. (DESCARTES, 2001, p. 77-tradução nossa)
Depois de explicar a reflexão, Descartes busca explicar a refração. A explicação
começa supondo novamente o movimento da bola constituindo-se das duas componentes
mencionadas anteriormente. A primeira explicação limita-se a estudar o fenômeno quando a
bola incide sobre a superfície de um tecido frouxo que a bola tem a capacidade de
romper completamente, perdendo metade de sua velocidade, mas mantendo a possibilidade
de movimento. Neste caso, a determinação de fazer a bola tender para baixo é alterada, a
velocidade para baixo fica reduzida à metade, quando esta choca-se com o tecido e que a
determinação de tender para à direita é mantida, o tecido não se opõe a esta tendência. A
explicação leva em consideração a figura 24 abaixo.
A distância entre a perpendicular FE e HB é o dobro da distância entre AC e
HB. A bola irá na direção do ponto I, pois perdendo metade de seu movimento que a
impulsiona para baixo, descerá metade da distância sob a superfície, então a única
possibilidade é o ponto I.
Assim, tendo descrito a partir do centro B do círculo AFD, e traçado em
ângulos retos a CBE as três linhas retas AC, HB, FE de um tal modo que
existam duas vezes mais distância entre FE e HB quanto entre HB e AC,
veremos que esta bola deve tender na direção do ponto I. Pois, como ela
perde metade de sua velocidade passando pelo tecido CBE, deve levar
185
duas vezes mais tempo para passar abaixo, de B para um certo ponto da
circunferência do círculo AFD, quanto ela levou acima para ir de A para
B. E desde que nada perdeu no todo da determinação que tinha para
avançar na direção do lado direito, em duas vezes mais tempo quanto
levou para passar da linha AC para HB, deve fazer duas vezes mais
avanço para este mesmo lado, e como um resultado chegar em um certo
ponto da linha reta FE no mesmo instante que chega em um certo ponto
da circunferência do círculo AFD. Isto seria impossível não fosse indo em
direção de I, considerando que aquele é o único ponto abaixo do tecido
CBE onde o círculo AFD e a linha reta FE interseccionam-se.
(DESCARTES, 2001, p. 78-tradução nossa)
Figura 24
A segunda explicação da lei de refração relaciona dois meios, a luz, deixando o ar,
penetra na água, mas antes de falar do caso específico da refração, explica que há alguns
casos particulares. Por exemplo, se a bola ou a luz incide perpendicularmente na superfície
da água, então não haverá refração e o raio continuará o seu percurso, na direção da
mesma perpendicular incidente. Agora, de se considerar também aqueles raios que
incidem tão obliquamente sobre a superfície da água que ricocheteam. Esse fato é da
experiência de todos, pois quando atiramos uma pedra sobre a superfície de um lago, a
medida que inclinamos a sua direção obtemos a reflexão mencionada.
186
Figura 25
Depois disso, supõe que a bola, após ser impulsionada de A até B, sofre um novo
impulso em B com uma intensidade que aumenta sua força em um terço e passando a
cobrir em dois momentos a distância que antes era coberta em três. O motivo dessa
suposição, segundo a concepção cartesiana, é que a luz, ao passar de um meio para outro
mais denso, no caso do ar para água, aumenta sua velocidade. A proximidade das
partículas permite à luz se propogar mais rapidamente do que nos corpos que têm menos
densidade, enquanto que nos corpos com densidades inferiores as partículas, mais afastadas,
impedem a rápida propagação da luz. Assim, segue a sua explicação, fazendo algumas
suposições que serão necessárias na explicação da lei de refração. O impulso dado pela
raquete, em B, que aumenta sua força em um terço, corresponde a maior facilidade da luz
se propagar na água. Se consideramos BE igual a dois terço de BC, veja figura 26 abaixo,
então a perpendicular FE intersecciona o círculo em I, determinando o ponto onde o raio
refratado deve passar.
Figura 26
Isto terá o mesmo efeito como se a bola estivesse encontrando, no ponto
B, um corpo de uma tal natureza que poderia passar pela superfície CBE
um terço novamente mais facilmente do que pelo ar. E segue obviamente
187
do que já tinha sido demonstrado que se descrevemos o círculo AD como
antes, e as linhas AC, HB, FE de uma tal maneira que exista um terço
menos distância entre FE e HB do que entre HB e AC, o ponto I, onde a
linha reta FE e a circular AD interseccionam-se, designará o lugar na
direção do qual esta bola, estando no ponto B, deve ser desviada.
(DESCARTES, 2001, p. 79-0-tradução nossa)
Com relação a inclinação do raio é necessário tomar o devido cuidado para que
seja medida pela linhas (segmentos) CB ou AH e EB ou IG comparando-as, e não pelos
ângulos ABH ou GBI , nem mesmo por DBI, que é chamado o ângulo de refração.
Somente é necessário tomar cuidado para que esta inclinação seja medida
pela quantidade das linhas retas, tais como CB ou AH, e EB ou IG, e as
semelhantes, comparada uma com a outra; não por aquelas dos ângulos
como ABH ou GBI, nem menos por essas, como DBI, que chamamos
ângulos de refração. Pois a razão ou proporção entre esses ângulos varia
com todas as diferentes inclinações dos raios; enquanto que entre as linhas
AH e IG, ou outras semelhantes, permanecem a mesma em todas refrações
causadas pelos mesmos corpos. (DESCARTES, 2001, p. 80-tradução nossa)
E continua explicando, esclarecendo mais sobre a razão entre os segmentos determinados
no círculo.
Assim, por exemplo, se um raio passando pelo ar de A para B encontra a
superfície da lente CBR no ponto B e é desviado na direção de I nesta
lente, e se um outro vindo do ar de K para B é desviado para L, e um
outro vindo de P para R e é desviado para S, deve existir a mesma razão
entre as linhas KM e LN ou PQ e ST, como entre AH e IG; mas não a
mesma razão entre os ângulos KBM e LBN, ou PRQ e SRT, como entre
ABH e IBG. (DESCARTES, 2001, p.81-tradução nossa)
188
Figura 27
E anuncia a lei de refração:
Desse modo, se desejamos conhecer a quantidade daqueles que estão sobre
a superfície CBR que separa o ar AKP da lente LIS, somente temos de
colocá-la para o teste na refração do raio ABI, procurando pela razão
entre as linhas AH e IG. Assim, se tememos falhar neste experimento, é
então necessário colocá-lo para o teste em alguns outros raios, tal como
KBL ou PRS, e achar a mesma razão entre KM e LN, e PQ e ST, como
entre AH e IG, não teremos mais razão para duvidar da verdade.
(DESCARTES, 2001, p. 81-tradução nossa)
De fato, a razão entre AH e IG é a mesma que KM e LN, pois sen i = AH/AB e
sen r = GI/BI, como AB = BI = 1, temos a lei da refração, i indica o ângulo de incidência e
r, o ângulo de refração.
Descartes explica porque, ao fazer as experiências, ficamos surpresos ao ver que
os raios de luz são mais inclinados no ar do que na água e ainda mais na água que no
vidro, que é o oposto do comportamento de uma bola, cuja refração é mais inclinada na
água do que no ar e não pode passar pelo vidro.
Porque, por exemplo, se é uma bola que, sendo impulsionada no ar de A
para B, encontra no ponto B a superfície da água CBE, será desviada de
B para V; e se é um raio, irá, totalmente ao contrário, de B na direção de I.
Entretanto, você deixará de achar isto estranho se você recordar a natureza
que eu atribui a luz, quando disse que ela era nada mais que um certo
movimento ou uma ação, recebida em um material muito sutil que
preenche os poros de outros corpos; e você deve considerar que, a medida
que uma bola perde muito mais de sua agitaçâo ao incidir contra um
corpo macio que contra um que é duro, e quando rola menos facilmente
sobre um tapete que sobre uma mesa totalmente lisa, assim a ação deste
material sutil pode ser muito mais impedida pelas partículas de ar, que
sendo macias e mal reunidas, não oferecendo a ela muito mais resistência,
que por aquelas da água que oferece a ela muito mais; e ainda mais por
aquelas da água que por aquelas do vidro, ou do cristal. De modo que, as
mais duras e mais firmes são as menores partículas de um corpo
transparente, as que mais facilmente permitirem a luz passar: pois esta luz
não tem que dirigir nenhuma delas para fora de seus lugares, como uma
bola deve expelir aquelas da água, a fim de encontrar passagem entre
elas. (DESCARTES, 2001, p. 82-tradução nossa)
189
A partir da concepção da refração e da reflexão, suas causas e como ocorrem nos
corpos transparentes poderá vislumbrar como ocorrerá a refração em corpos que não têm a
superfície plana. Descartes descreve que podem existir diversos corpos no céu em que a
refração não ocorre da mesma forma que descreveu. Mas que as três comparações que
desenvolveu são suficientes, pois que todas as propriedades encontradas nelas são válidas
também para a luz, mas que em A Dióptrica explicou as de maior referência. Por
exemplo, se os raios de luz incidem sobre um espelho esférico, a reflexão se dará do
mesmo modo que quando imaginamos um espelho plano tangenciando-o em algum ponto.
Como, por exemplo, a refração dos raios AB, AC, AD, que, vindo da chama
A, incidem sobre a superfície curva da bola de cristal BCD, deve ser
considerada da mesma forma como se AB incidisse sobre a superfície
plana EBF, e AC sobre GCH, e AD sobre IDK, e assim com as outras. Do
que você pode ver que esses raios podem ser diversamente reunidos ou
dispersados, de acordo com que eles incidem em superfícies que sejam
diferentemente curvadas. (DESCARTES, 2001, p. 83-tradução nossa)
Figura 28
Assim, Descartes encerra a discussão sobre as propriedades refletoras e refratoras
da luz e como tinha também explicado outras propriedades como a da velocidade
infinita e definido a luz como uma certa ação ou inclinação para o movimento, considera
que o asssunto está completamente exaurido. Desse modo, pode passar à explicação das
estruturas do olho humano. A intenção é entender como os raios penetram no olho e
causam a sensação da visão.
Nos quatro Discursos seguintes Descartes vai dissertar sobre a visão: no terceiro
Discurso descreve a anatomia do olho, o Discurso IV fala sobre os sentidos em gera, o
190
Discurso V é sobre as imagens que formam no fundo olho e o Discurso VI é sobre a
visão.
O Discurso VII fala sobre os meios de aperfeiçoar a visão. Esse capítulo liga a
descrição cartesiana da visão aos intrumentos óticos, necessários ao seu aperfeiçoamento,
que é o principal objetivo do tratado. três coisas, segundo Descartes, que são
fundamentais sobre a visão e devem ser levadas em consideração, a saber: que a visão
depende dos objetos externos, dos órgãos internos que recebem os impulsos desses
objetos, e dos órgãos externos que dispõe estes impulsos para serem recebidos
apropriadamente. Os objetos externos sabemos que são manipuláveis e podemos alterar a
sua posição, aumentar ou diminuir a sua distância, aumentar ou diminuir a sua
luminosidade. Quanto aos orgãos internos, não podem ser corrigidos, não como fazer
novos orgãos, embora, segundo Descartes, em alguns casos os médicos podem auxiliar.
Quanto ao terceiro elemento, o olho, Descartes descreverá as suas partes transparentes e os
dispositivos que podem melhorá-lo, ou seja, descreverá os instrumentos que podemos
interpor entre o olho e o objeto.
Para esses orgãos externos da visão, Descartes acha que o nível ótimo pode ser
alcançado quando ocorrerem os quatro pontos.
A primeira é que todos os raios viajando na direção de cada uma das
extremidades do nervo óptico deve vir, tanto quanto possível, de apenas
uma simples parte do objeto, e que não deve sofrer mudança no espaço
entre eles: pois se não fosse assim, as imagens que eles formam devem
ser nem muito similar a seu original, nem muito distinta. A segunda
provisão é que essas imagens são muito grandes; não na extensão do
espaço que elas ocupam pois elas poderiam ocupar somente o pequeno
espaço no fundo do olho mas na extensão de seus alinhamentos ou de
suas linhas, pois é certo que quanto maior elas são, mais fácil elas serão
de discernir. A terceira provisão é que os raios formando-as sejam
suficientemente fortes para mover as pequenas fibras do nervo ótico, e por
este meio sejam sentidos, mas que não sejam tão fortes para danificar a
visão. E a quarta, que existam tantos objetos quanto possíveis cujas
imagens formam no olho ao mesmo tempo, a fim de que possamos ver
tanto quanto possível deles em um simples olhar. (DESCARTES, 2001, p.
114-tradução nossa)
Descartes explicará como corrigir certos problemas do olho. O primeiro problema,
até certo ponto, é corrigido por meio das lentes curvas e convexas. O segundo, é resolvido
por meio de um efeito telescópio. Ao discutir o terceiro problema, Descartes revela
191
diversas propriedades dos telescópios e formas de aperfeiçoá-los. A quarta condição não
pode ser atendida por nenhum instrumento ótico.
O Discurso VIII mostra quais sãos as formas possíveis para cortar os materiais
para que a visão seja melhorada por meio deles. Descartes demonstra que as curvas
hipérboles e elipses são as ideais. Expõe as propriedades dessas e a forma correta de
cortá-las. Do ponto de vista da Matemática, o Discurso VIII é interessante, uma vez que
Descartes usa essas curvas para resolver problemas físicos. Ou seja, mais uma
oportunidade para mostrar que a Matemática podia ajudar na construção da Física. Por ser
assim, deter-nos-emos um pouco mais nesse Discurso e descreveremos como Descartes
atua de forma mais evidente.
Descartes, no início, diz que será suficientemente claro para aqueles que
aprenderam pelo menos os primeiros elementos dessa Ciência, a Geometria. As figuras
básicas exigidas para construir os instrumentos serão as elipses ou hipérboles, círculos ou
linhas retas.
Descartes começa pela elipse, dizendo que as elipses foram descritas na antiguidade
através do corte do cone ou de um cilindro por um plano, mas também a encontramos
na forma que os jardineiros, algumas vezes, constroem seus canteiros, quando fincam duas
estacas no chão e amarram as duas extremidades de uma corda nessas estacas e depois,
esticando a corda com o dedo, conduzem-na esticada em volta dessas duas estacas, assim
obtendo a elipse. Várias tipos de elipses podem ser construídas, por exemplo, se reduzimos
a distâcia dessas duas estacas obteremos uma elipse de outra espécie. Se a distância entre
as duas estacas são reduzidas até uma sobrepor a outra, obteremos um círculo. Se
encurtarmos o comprimento da corda na mesma proporção que reduzimos a distância das
estacas, obteremos elipses da mesma espécie.
Figura 29
192
Descartes anuncia a propriedade da elipse que diz que a soma das distâncias de
um ponto qualquer da elipse aos focos é igual ao comprimento do diâmetro maior, depois
esclarece a sua nomenclatura que será usada no curso do ensaio. Os focos são chamados
pontos ardentes.
E por causa de uma certa propriedade desses pontos H e I, que você
ouvirá depois, iremos chamá-lo os pontos ardentes, o primeiro interior o
segundo exterior: isto é, se os relacionarmos com a metade da elipse que
está na direção de D, I será externo; e se os relacionamos com a outra
metade que está na direção de K, estará no interior; e quando falamos sem
distinção do ponto ardente, estaremos sempre falando do exterior
.
(DESCARTES, 2001, p. 128-9-tradução nossa)
Em seguida, Descartes também anuncia uma propriedade importante da elipse,
comum em nossos livros didáticos de Geometria Analítica.
Além disso, você precisa saber que se pelo ponto B traçarmos as duas
linhas retas LBG e CBE, que se cruzam em ângulos retos, e das quais
uma, LG, divide a ângulo HBI em duas partes iguais, então a outra, CE,
tocará aquela elipse neste ponto B sem cortá-la. (DESCARTES, 2001, p.
129-tradução nossa)
Figura 30
A demonstração dessa propriedade não é dada. Descartes afirma que essa era uma
propriedade bem conhecida pelos geômetras e que a sua demonstração seria muito
entediante para aqueles que não são matemáticos. Em toda a sua obra Matemática
Descartes não se preocupa em dar demonstrações, muitas vezes oferece argumentos
comparativos a fim de que seus leitores possam entender os resultados de uma forma
193
mais intuitiva. Essa lei será exigida na demonstração da principal propriedade refratora da
elipse que é dada a seguir.
Mas o que pretendo explicar aqui particularmente é que se traçarmos
novamente deste ponto B, afastando-se da elipse, a linha reta BA paralela
ao diâmetro maior DK, e se, tendo a feito igual a BI, dos pontos A e I
traçarmos sobre LG as duas perpendiculares AL e IG, essas duas últimas,
AL e IG, terão entre elas a mesma razão que DK e HI. De modo que, se
a linha AB for um raio de luz, e se esta elipse DBK estiver sobre a
superfície de um corpo sólido completamente transparente pelo qual,
seguindo o que se disse acima, os raios passam mais facilmente do que
pelo ar, na mesma proporção que a linha DK é maior do que a linha HI,
este raio AB será desviado no ponto B pela superfície do corpo
transparente, de modo que irá dali na direção de I. E porque este ponto B
é tomado ao acaso na elipse, tudo que é dito aqui do raio AB deveriam
ser geralmente entendido de todos os raios paralelos ao eixo DK, que
incidem sobre algum ponto desta elipse; isto é, serão todos desviados de
uma tal maneira que irão dali na direção do ponto I. (DESCARTES, 2001,
p. 129-tradução nossa)
A propriedade indica que os raios paralelos ao diâmetro maior da elipse, ao
incidirem sobre a curva elíptica, serão desviados para o ponto ardente ou foco da elipse,
desde que esta seja construída mantendo-se a proporção indicada na propriedade. Descartes
apresenta a seguinte demonstração.
Ora isto é demonstrado como segue: primeiro, se traçarmos do ponto B a
linha BF perpendicular a KD, e se do ponto N, onde LG e KD se
interseccionam, também traçarmos a linha NM perpendicular a IB,
encontraremos que AL está para IG como BF está para NM. Pois, por um
lado, os triângulos BFN e BLA são semelhantes, porque são ambos
retângulos e porque, como NF e BA são paralelos, os ângulos FNB e
ABL são iguais; e por outro lado, os triângulos NBM e IBG são também
semelhantes, porque são retângulos e porque o ângulo em B é comum a
ambos. E além disso, os dois triângulos BFN e BMN têm a mesma relação
entre eles como m os dois ALB e BGI, porque como as bases destes,
BA e BI, são iguais, assim BN, que é a base do triângulo BFN, é igual a
si a medida em que é também a base do triângulo BMN. Do que
obviamente segue que, como BF está para NM, assim AL, o lado do
triângulo ALB que é análogo a BF no triângulo BFN (i.e., que é a base
do mesmo ângulo), está para IG, o lado do triângulo BGI que é análogo
ao lado NM do triângulo BNM. Assim BF está para NM como BI está
para NI, porque os dois triângulos BIF e NIM, sendo retângulos e tendo o
mesmo ângulo em I, são semelhantes. Além do mais, porque tanto quanto
as linhas AB e NI, bem como AL e GI, são paralelas, os triângulos ALB e
IGN são semelhantes; portanto segue que AL está para IG como AB está
194
para NI; ou ainda, porque AB e BI são iguais, como BI está para NI.
Então, se traçarmos HO paralelo a NB e se prolongarmos IB até O,
veremos que BI está NI como OI está para HI, porque os triângulos BNI
e OHI são semelhantes. Finalmente, como os dois triângulos HBG e GBI
são iguais por construção, HOB, que é igual a GBI, é também igual a
OHB, porque o último é igual a HBG; e como resultado o triângulo HBO
é isósceles, e como a linha OB é igual a HB, toda a linha OI toda é
igual a DK, considerando que as duas linhas HB e IB juntas são iguais a
ela. E assim para rever do primeiro ao último, AL está para IG como BI
está para NI, e BI para NI como OI para HI, e OI é igual a DK; assim
AL está para IG como DK está para HI. (DESCARTES, 2001, p.129-0-
tradução nossa)
Podemos resumir a demonstração. Se BA é traçado paralelo ao eixo DK e igual
a BI, e se de A e de I traçarmos as perpendiculares AL e IG ao segmento BG, que é
bissetriz de HBI, então teremos AL : IG = DK : HI. Como os triângulos ALB, FBN o
semelhantes, então AL : AB = BF : BN, ou AL : BI = BF : BN. Ora IG : BI = NM : BN,
portanto, AL : IG = BF : NM. Mas BF : NM = BI : NI, e é igual a IO : IH. Como IO = IB +
BH = DK, temos o resultado.
Para traçar uma elipse com a propriedade assinalada devemos seguir a
demonstração da propriedade, isto é, a elipse DBK deve ser traçada de modo que as
linhas DK e HI estejam na mesma proporção que AL e IG, a lei de refração deve
prevalecer, ou seja, sen i : sen r = AL:IG = DK:HI, onde i é o ângulo de incidência ABL e r
é o ângulo de refração GBI. A superfície elíptica que se pretende construir, a partir dessa
propriedade, deve obedecer a esse critério e é obtida quando tomamos uma elipse e a
giramos em torno do seu eixo maior, obtendo um elipsóide de revolução que tem a mesma
propriedade, isto é, todos os raios paralelos ao eixo maior do elipsóide serão refratados
para o ponto ardente.
Este princípio permitirá Descartes pensar na construção de diversos tipos de lentes
elípticas. Por exemplo, se do ponto ardente I, exterior, traçarmos um círculo qualquer com
centro I, cujo raio seja menor do que ID, onde D é o vértice pertencente ao eixo maior
da elipse, mais próximo do ponto ardente interior do que de I, a lente obtida girando a
figura DBQ em torno do eixo ID terá a propriedade de convergir todos os raios paralelos
vindos do ar para o ponto ardente I, veja figura 31. Reciprocamente, os raios saindo de I
serão convertidos em raios paralelos ao passarem pela lente assim construída. Aqui,
195
Descartes usa uma outra propriedade que diz que os raios incidentes, perpendicularmente a
um círculo, convergem para seu centro, sem sofrer refrações.
Figura 31
Além do mais, porque todos os raios que tendem na direção do centro do
círculo ou de um globo, incidindo perpendicularmente sobre sua superfície
não devem sofrer ali quaisquer refração, se do centro I fazer um círculo a
qualquer distância que desejamos, contanto que passe entre D e I, como
BQB, as linhas DB e QB, girando em torno do eixo DQ, descreveram a
forma de uma lente que trará juntos no ar para o ponto I todos os raios
que por outro lado também no ar, eram paralelos a este eixo: e
reciprocamente esta lente fará com que todos aqueles que vierem do ponto
I resultarão paralelos do outro lado. (DESCARTES, 2001, p. 131-tradução
nossa)
Se o raio do círculo for maior que a distância ID, veja figura 32, e tomarmos um
ponto arbitrário B sobre a elípse, de modo que esteja mais próximo de D do que do
outro vértice K da elipse e traçarmos, em seguida, a reta OB, na direção de I, e se
girarmos a figura DBOR, em torno do eixo RD, obteremos uma lente que faz com que
todos os raios paralelos vindos do interior da elipse, ao passarem pela lente, se convertam
em raios divergentes do de fora da elipse.
196
Figura 32
E se do mesmo centro I descrevermos o círculo RO, a qualquer distância
que desejarmos do o outro lado do ponto D; e se tendo tomado o ponto B
ao acaso sobre a elipse – contanto sempre que ele não esteja mais afastado
de D do que de K – traçarmos a linha reta BO de modo que tenda para I;
as linhas RO, OB, e BD, movidas circularmente em volta do eixo DR,
descreveram a forma de uma lente que levará os raios que, do lado da
elipse, estavam paralelos a este eixo, a espalharem-se aqui e do outro
lado, como se todos viessem do ponto I. Pois é óbvio que , por exemplo, o
raio PB deve ser tanto desviado pela superfície oca da lente DBA, como
AB deve ser pela superfície convexa da lente DBK, e como um resultado
que BO deve estar na mesma linha reta como BI, pois PB está na mesma
linha como BA; e assim com os outros
.
(DESCARTES, 2001, p. 131-2-
tradução nossa)
Combinando as duas lentes descritas anteriormente podemos obter um terceiro
tipo que é construída descrevendo uma elipse da mesma espécie dentro da elipse DBK, a
qual designaremos por dbk, veja figura 33. Devemos tomar o cuidado para que o ponto
ardente I das duas elipses coincidam e que os outros focos H e h estejam na mesma
linha reta DH. Tomando B, como no caso anterior, traçamos a linha reta Bb na direção do
foco I, isto é, se prolongada passaria por I. Se giramos as linhas DB, Bb, bd em torno do
eixo Dd obteremos uma lente que faz com que os raios paralelos, ao atravessarem a lente,
197
continuam paralelos, mas reunidos mais próximos, ocupando menos espaço do lado interno
da elipse menor.
Figura 33
A fim de separar as lentes e torná-las menos espessas o que, por sua vez,
permitirá combiná-las de outras formas, cortamos as duas lentes robd e DBQ, mantendo-se
a mesma posição, o efeito obtido é o mesmo do caso anterior.
Podemos fazer diversas outras combinações, por exemplo, se colocarmos duas
lentes semelhantes, como DBK e dbk da figura 34 abaixo, de tamanhos diferentes, com o
ponto ardente I comum às duas, mas com os outros focos diametricalmente opostos,
obteremos duas lentes que farão os raios paralelos, que passam pela lente maior,
convergirem para o ponto ardente I, e a partir daí, ao passar pela lente menor, tornar-se-ão
novamente paralelos, mas agora mais próximos.
198
Figura 34
Se colocarmos essas duas lentes frente a frente, de modo que os vértices do eixo
maior das duas sejam o ponto de tangência e que os pontos ardentes fiquem na mesma
reta, então os raios, saindo de um dos pontos ardentes, convergirão, depois de passar pelas
duas lentes, para o outro ponto ardente e vice-versa.
Figura 35
Se combinarmos as duas primeiras lentes que descrevemos aqui, de modo que
aquela que tem um segmento de círculo interno seja a menor e a que tem um segmento
circular externo a maior e que os pontos ardentes sejam os mesmos, então os raios
199
divergentes, como na figura 36, ao passarem pela primeira, tornar-se-ão paralelos entre si
e, finalmente, ao passarem pela segunda, convergirão para o ponto ardente I.
Figura 36
Finalmente, se combinarmos duas lentes, da mesma espécie, obtidas pelo círculo
externo, como a segunda que descrevemos aqui, de forma que fiquem frente a frente uma
com a outra, isto é, os segmentos elípticos fiquem frente a frente, então os raios vindos de
uma fonte externa, ao passarem pela primeira, se tornarão paralelos, e depois de passarem
pela segunda se tornarão, novamente divergentes, veja figura 37.
Figura 37
200
O passo seguinte é desenvolver um estudo semelhante na hipérbole. As mesmas
observações são feitas sobre a hipérbole. Como no caso das elipses, Decartes escreve que
a hipérbole foi estudada pelos antigos usando as seções de um cone ou cilindro. Mas uma
vez, evoca o modelo do jardineiro, que consiste em fincar duas estacas H e I, onde, em I,
prende uma grande gua por um orifício aberto em uma das suas extremidades, veja
figura 38.
Figura 38
Na outra extremidade da régua amarra-se uma corda, um pouco menor que a
régua, que também é amarrada na outra estaca. Colocando-se o dedo no ponto X, que une a
régua e a corda, e movendo-o de todas as formas para baixo até D, sempre mantendo a
corda esticada, descrevemos uma parte da hipérbole. Repetindo o processo para a parte
inferior, obteremos a outra parte do ramo da hipérbole, completando-a. Mudando a
configuração de lugar, passando para a outra estaca, obteremos a outra parte da hipérbole,
tendo-a completamente. Se aumentarmos ou diminuírmos o comprimento da corda e, ao
mesmo tempo, mantivermos as estacas como antes, obteremos hipérboles de outras espécies.
Se mantivermos o tamanho da corda e mudarmos as estacas de lugar, obteremos também
hipérboles de espécies diferentes. Se a corda tiver o mesmo comprimento da régua,
obteremos em vez de uma hipérbole, uma reta. Se mudarmos a distância das estacas na
mesma proporção que o tamanho da corda, obteremos hipérboles de mesma espécie.
Descartes chama a atenção para o fato de que tanto a elipse como a hipérbole podem ser
obtidas por uma régua ou por uma reta. Vale notar que em A Geometria todas as curvas
geométricas podem ser geradas a partir de segmentos de reta, o elemento mais simples de
sua Geometria.
201
Depois de descrever o processo de obter os vários tipos de hipérboles, anuncia
propriedades interessantes da hipérbole, pois essas propriedades são, como as da elipse, a
base para a produção das lentes, o fundamento necessário para a construção de telescópios,
objetivo principal de seu trabalho em óptica. A primeira propriedade é aquela que nos
livros didáticos de hoje é apresentada como a definição da hipérbole.
E, em adição, [você pode ver] que se de um ponto tal como B, tomado ao
acaso em uma delas[um dos ramos da hipérbole], traçarmos duas retas na
direção dos dois pontos, como H e I, em que as duas estacas devem ser
fincadas a fim de descrevê-la, e que podemos chamar novamente os
pontos ardentes, a diferença destas duas linhas, HB e IB, será sempre igual
a linha DK, que marca a distância entre as hipérboles opostas. Isto
acontece porque BI é maior do que BH, na mesma extensão que a régua
foi medida para ser maior do que a corda, e também porque DI é que é
mais longa do que DH. Pois, se encurtarmos essa distância DI, por [o
comprimento de] KI, que é igual a DH, devemos ter DK como sua
diferença. (DESCARTES, 2001, p. 137-tradução nossa)
A segunda observação fala de duas propriedades importantes das hipérboles e
está direcionada ao tema que Descartes pretende abordar de forma mais prática, a
construção de lentes. Fala da propriedade refletora da hipérbole e das hipérboles de
mesma espécie.
E finalmente, você pode ver que as hipérboles que descrevemos sempre
mantendo a mesma proporção entre KD e HI são todas do mesmo tipo.
Assim, além disso, você deve saber que se pelo ponto B, tomado ao acaso
em uma hipérbole, traçarmos a linha reta CE, que divide o ângulo HBI
em duas partes iguais, esta mesma linha CE tocará esta hipérbole neste
ponto B, sem cruzá-la; os geômetras sabem a demonstração disto
suficientemente bem. (DESCARTES, 2001, p. 137-tradução nossa)
A terceira observação é o que permite Descartes construir os vários tipos de
lentes hiperbólicas.
Daqui pra frente desejo mostrar-lhe que se deste mesmo ponto B
traçarmos a linha reta BA na direção interior da hipérbole e paralelo a
DK, e se também traçarmos pelo mesmo ponto B a linha LG que corta
CE em ângulos retos, então, tendo tomado BA como igual a BI, se
estiverem traçados sobre LG, dos pontos A e I, as duas perpendiculares
AL e IG, as duas últimas, AL e IG, terão entre elas a mesma proporção
que as duas linhas DK e HI. E então, se dermos a forma desta hipérbole a
um corpo de vidro em que as refrações são medidas pela razão entre as
202
linhas DK e HI, esta hipérbole induzirá todos os raios paralelos a seu
eixo nesta lente a convergirem externamente no ponto I, pelo menos se
esta lente for convexa; e se ela for côncava, os induziram a desviarem pra
e pra cá, como se viessem daquele ponto I. (DESCARTES, 2001, p.
137-tradução nossa)
Figura 39
Descartes continua, agora demonstrando a propriedade:
Isto pode ser demonstrado como segue: antes de tudo, se traçarmos do
ponto B a linha BF perpendicular a KD(estendida tanto quanto for
necessário), e do ponto N, onde LG e KD interseccionam-se, a linha NM
perpendicular a IB(também prolongada), encontraremos que AL está para
IG como BF está para NM. Pois por um lado, os triângulos BFN e BLA
são semelhantes porque ambos são retângulos e, porque os ângulos IBG
e NBM o iguais. E também, além disso, como o mesmo BN serve como
a base dos dois triângulos BFN e NMB, então BA, a base do triângulo
ALB, é igual a BI, a base do triângulo IGB; do qual segue que os lados
do triângulo BFN estão para esses do triângulo NMB como aqueles do
triângulo ALB estão para esses do triângulo IBG. E BF es para NM
como BI está para NI, porque os dois triângulos BIF e NIM, sendo
retângulos e tendo o mesmo ângulo em I, são semelhantes. Assim, se
traçarmos HO paralelo a LG, veremos que BI está para NI como OI está
para HI, porque os triângulos BNI e OHI o semelhantes. Finalmente,
como os dois ângulos EBH e EBI são iguais por construção, e desde que
HO, que é paralelo a LG, corta a linha CE em ângulos retos, os dois
203
triângulos BEH e BEO são totalmente iguais. E assim, como BH, a base
do primeiro, é igual a BO, a base do outro, resta OI como a diferença
entre BH e BI, e dissemos que esta diferença é igual a DK. De modo que
AL está para IG como DK está para HI. (DESCARTES, 2001, p. 137-8-
tradução nossa)
Em resumo se AB é traçada paralela a DK, LBG perpendicular a CE, e se BA é
igual a BI e, além do mais, as perpendiculares AL : IG = DK : HI. Se HI/DK mede o
índice de refração então os raios paralelos aos eixos da hipérboles convergirão para o
ponto ardente I.
A primeira lente que será descrita é aquela obtida quando construimos uma
hipérbole com as proporções sugeridas na propriedade demonstrada acima. Assim, bastará
que tomemos a porção da hipérbole DB, tão grande quanto queiramos, e de B traçarmos
uma perpendicular ao eixo da hipérbole em Q. Se giramos as linhas DB, QB, em torno do
eixo DQ, obteremos uma superfície que tem a propriedade de tomar os raios paralelos,
vindos do ar em direção a superfície plana, e transformá-los em raios convergentes ao
ponto ardente I da hipérbole. E reciprocamente, os raios a partir de I, ao passarem pela
lente se tornarão paralelos ao sairem dela.
Figura 40
Em seguida, Descartes descreverá vários outros tipos de lentes que podem ser
obtidas usando hipérboles com as propriedades refratárias já mencionadas.
A segunda lente consiste em tomarmos uma hipérbole db construída de modo a
satisfazer as propriedades descritas anteriormente. Se traçarmos uma linha reta ro
204
perpendicular ao eixo dK da hipérbole, então a superfície obtida, girando as linhas ro, ob,
db em torno do eixo dK, descreverá uma lente que tem a propriedade de transformar
todos os raios paralelos ao eixo dk, vindos do lado da reta, em raios divergentes do lado
da hipérbole.
Figura 41
Uma outra lente é proposta para transformar os raios paralelos, vindos do ar, em
raios paralelos, mas mais próximos entre si. A lente consiste em tomar a linha hI mais
curta para traçar a hipérbole robd do que a da lente DBQ. As duas lentes devem estar
dispostas de uma tal maneira que os eixos DQ e rd estejam na mesma reta e os dois
pontos ardentes coincidentes e marcados em I.
205
Figura 42
Se colocarmos, frente a frente, duas hipérboles semelhantes DBQ e dbq, desiguais
em tamanho, de tal modo que os seus eixos sejam coincidentes e os seus pontos ardentes
coincidam, então os raios vindo do ar na direção da maior serão convertidos para o ponto
ardente I e, em seguida, se forem refletidos, e, ao passarem pela segunda lente menor, serão
novamente paralelos, mas agora ocuparão menos espaço.
206
Figura 43
Se colocarmos as superfícies planas dessas lentes, do caso anterior, frente a frente,
ou em qualquer distância uma da outra, não necessitando que seus eixos coincidam, os
raios vindos de um dos pontos ardentes convergirão, ao passar por essas lentes, para o
outro ponto ardente, da outra lente.
Figura 44
207
Compondo as duas lentes, DBQ e robd, com as partes planas frente a frente uma
com a outra, então os raios que vêm do ponto ardente I serão refratados como se viessem
do ponto ardente i.
Figura 45
Por fim, se compusermos as duas lentes robd, veja figura 45, frente a frente uma
com a outra, de modo que a parte plana toque uma na outra, os raios vindos do ar, na
direção do ponto ardente I, serão refratados como se estivessem vindos do ponto ardente i.
Figura 45
208
Descartes poderia combinar, de diversas formas, as lentes elípticas com as lentes
hiperbólicas e obter outros tipos não especificados de lentes, mas acredita que as
descrições dadas sejam suficientes para o seu propósito.
Na seqüência, argumentará a favor das elipses e das hipérboles, como sendo as
curvas mais apropriadas para desenhar lentes. As mais simples são as que são compostas
de linhas retas e hipérboles e, depois, as que são compostas de elipses e linhas circulares.
A tarefa que resta é investigar de que forma devemos compor cada um dos tipos
de telescópios para torná-los tão perfeitos quanto possível. O nono Discurso tem esse
propósito, ou seja, descreverá os telescópios. Antes de tudo, é preciso escolher o material
para compô-los, que deve ser transparente, cil de cortar, suficientemente duro e causar
poucas reflexões. O vidro é o material mais perfeito, segundo Descartes, principalmente os
feitos de cinzas muito finas, melhor até do que a pedra de cristal, pois o cristal provoca
mais reflexões.
Uma vez escolhido o matérial apropriado, devemos, para corrigir os defeitos da
visão, escolher as formas hiperbólicas. Essas formas podem corrigir as dificuldades de se
enxergar objetos distantes e objetos próximos. Descartes explicará minuciosamente como
fazê-lo.
Por exemplo, se o olho B ou C está colocado a fazer com que todos os
raios vindos do ponto H ou I convergirem exatamente no centro de sua
base, e não os do ponto V ou X, a fim de fazê-lo ver o objeto próximo
V ou X distintamente, é necessário posicionar as lentes O ou P entre os
dois, cujas superfícies, uma convexa e a outra côncava, têm as formas
traçadas por duas hipérboles que o tais que H ou I é o ponto ardente
da superfície côncava, que deve ser virada na direção do olho, e V ou X a
da convexa. (DESCARTES, 2001, p. 151-tradução nossa)
209
Figura 46
O décimo Discurso explica como cortar as lentes, especificando o método de
como as lentes hipérbólicas devem ser traçadas.
Para finalizar essa parte sobre o ensaio A Dióptrica convém ressaltarmos que não
encontramos nele nenhuma aplicação do método de análise e síntese propriamente. Como
sabemos, e isso foi discutido anteriormente, a maioria das idéias desse ensaio foram
concebidas por Descartes num período anterior. Por exemplo, sabemos que a linha
anaclástica foi apresentada via metodologia cartesiana nas Regras, mas fora pensada num
período anterior. Ou seja, podemos afirmar que muitos problemas tinham sido
efetivamente resolvidos e que Descartes apresenta, nesse tratado, o resultado de vários anos
de pesquisas, apresentando os resultados de uma forma concisa não se preocupando em
apresentar a forma como eles foram descobertos.
Se não encontramos, nesse ensaio, o método aplicado, todavia encontramos
vestígios do método. Isso é visível quando Descartes, no primeiro discurso, adota, desde o
210
início, o critério de simplicidade, anunciando que seria muito claro, pois sabia que os
homens que trabalhavam com o vidro eram práticos e que que não seria necessário
recorrer a outro estudo, ou seja, além de claro nas suas afirmativas também pretendia
exaurir os temas discutidos, não deixando nada sem resolver. Outro exemplo, na explicação
das propriedades da luz usa várias metáforas. A nosso ver, essas metáforas são formas de
decompor a questão simplificando-a a fim de nos mostrar as propriedades com mais
eficácia. No fim de cada discurso ficamos com a sensação que o tema foi tratado em sua
totalidade.
Mas se a metodologia não aparece nitidamente, em contra partida, algumas idéias
Matemáticas aparecem como sustentação nítida dos argumentos cartesianos. Isso é muito
claro em todo o ensaio, mas principalmente, quando explica as curvas ideais à construção
das lentes e por conseguinte a construção dos telescópios. São as cônicas que têm as
propriedades ideais para a construção das lentes e Descartes demonstra muito claramente
isso argumentando, convincentemente, que as propriedades das cônicas permitiriam a
construção de lentes ideais. Ou seja, a Matemática serviu como o elemento modelador das
construções das lentes. Tudo isso, ao nosso ver, demonstra o quanto a Matemática foi
importante para o desenvolvimento da Física Natural cartesiana, tanto no aspecto
metodológico quanto no aspecto modelador.
Passaremos agora ao último ensaio do Discurso do método, Os Meteoros. Se em
A Dióptrica não encontramos exemplos ilustrativos da metodologia cartesiana claramente
em Os Meteoros encontramos, no oitavo discurso, um claro exemplo de sua metedologia.
Vamos a ele.
3.6 Os Meteoros
Dos três ensaios, Descartes pretendia que Os Meteoros fosse adotado como livro
didático nos colégios jesuítas, o que não ocorreu. O ensaio é dividido em dez discursos, a
saber: a natureza dos corpos terrestres, vapores e exalações, sal, ventos, nuvens, neve, chuva
e granizo, tempestades, relâmpagos e todos os outros fogos que queimam no ar, o arco-íris,
as cores das nuvens e os círculos ou coroas que algumas vezes vemos ao redor dos
corpos celestes, a aparição dos vários sois.
211
Como se vê, pelos títulos de cada discurso, o ensaio trata da explicação dos
fenômenos atmosféricos ou sublunares. Muitas questões metereológicas, naquela época, ainda
eram tratadas com explicações sobrenaturais e religiosas. As explicações científicas, para
fenômenos metereológicos e tantos outros, eram abordadas segundo a interpretação da
filosofia aristotélica. Nesse sentido, Descartes pôde desenvolver explicações alternativas a
esses fenômenos, baseando-se na sua concepção mecanicisma e na sua metodologia.
Dentre todos os discursos, o oitavo, que versa sobre o arco-íris, é o mais
importante, pelo menos sob dois aspectos. O primeiro é que Descartes desenvolve uma
explicação razoável do fenômeno e, nessa explicação, inova ao desenvolver experimentos
bem elaborados para entender o fenômeno, bem como explicações teóricas. O segundo é
que o próprio Descartes declara que no estudo do arco-íris a sua metodologia pode ser
melhor observada a fim de notarmos a sua eficiência e isto alinha-se diretamente com o
propósito deste trabalho.
O arco-íris é um tal fenômeno notável da natureza, e sua causa foi tão
meticulosamente procurada depois de mentes pesquisando por todas as
épocas, que o poderia escolher um assunto mais apropriado para
demonstrar como, com o método que estou usando, podemos chegar ao
conhecimento não possuído de modo algum por esses cujos escritos nos
estão disponíveis. (DESCARTES, 2001, p. 332-tradução nossa)
Passemos, de agora em diante, a tarefa de investigar como é aplicada a
metodologia cartesiana no estudo desse fenômeno.
A primeira etapa é a da descoberta, a etapa analítica e Descartes se propõe a
decompor o fenômeno, para tanto, fará comparações, lançará mão de fatos conhecidos,
conhecimentos anteriores que são considerados corretos por ele, desenvolverá experimentos,
efetuará cálculos, enfim, tudo que for possível para esclarecer as causas do fenômeno. A
etapa analítica nos conduzirá do efeito à causa, isto é, a partir da concepção do fenômeno,
seguindo as etapas do método, alcançaremos verdades claras e evidentes, primeiros
princípios, que permitirão entender o fenômeno a partir deles e, em seguida, iniciar a etapa
sintética, a demonstração do fenômeno.
Devemos notar que no caso do arco-íris, diferentemente de um problema
matemático, onde a primeira etapa do método seria considerar o problema resolvido,
212
devemos considerar o problema dado pela natureza, isto é, ele existe de fato na natureza e
ela fornece tudo aquilo que possibilita a sua existência. Essas possibilidades devem ser
entendidas para que o fenômeno seja desvendado, explicado totalmente.
A primeira tarefa de Descartes é retirar do arco-íris o caráter sobrenatural, para
tanto, menciona que esse fenômeno pode ser facilmente encontrado nas fontes próximas a
nós, como a experiência nos mostra, e que pode mesmo ser reproduzido artificialmente e
sua causa inicial é a incidência dos raios do sol sobre as gotas de água.
Primeiro, considero que este arco pode aparecer não somente no céu, mas
também no ar próximo de nós, sempre que existam muitas gotas de água
no ar iluminadas pelo sol, como a experiência nos mostra em certas
fontes; desse modo foi fácil para mim julgar que veio meramente da forma
que os raios de luz agem contra essas gotas, e dali tendem na direção de
nossos olhos. Então, sabendo que essas gotas são redondas, como foi
provado acima [em um outro discurso], e vendo que seu ser maior ou
menor não muda a aparência do arco, então pus-me na minha cabeça para
tomar uma muito grande, pra examiná-la melhor. (DESCARTES, 2001, p.
332-tradução nossa)
Descartes, nesta passagem, nos diz que o estudo do arco-íris pode ser reduzido ao
estudo de uma grande gota de vidro redonda, o tamanho não importa. A afirmação de
que as gotas de chuva são redondas fora provada anteriormente nesse ensaio. Assim,
propõe-se a construir uma grande gota e o problema será estudado experimentalmente.
Desse modo, terá um maior controle sobre o fenômeno, podendo, inclusive, realizar
experimentos com ela. A grande gota, ao ser manipulada, permitiu a Descartes obter
resultados inovadores, como a determinação dos ângulos ideais ao aparecimento do arco.
Ainda, merece ser dito, que com essas observações o arco-íris passa a ser um fenômeno
que não necessita da presença de nuvens. Na Filosofia aristotélica, o arco-íris era
explicado pela presença das nuvens, ou melhor, pela reflexão da luz do sol nas nuvens,
algumas reflexões definiam as cores e outras a forma do arco.
Descartes, depois de construir a grande gota, pôde então mudá-la de lugar, alterar
os ângulos de incidência, girá-la e ao mesmo tempo mantendo os ângulos, enfim, pode
fazer diversos experimentos. A partir dessas experiências consegue notar que um ângulo
ideal para o aparecimento das cores e, conseqüentemente, do arco-íris. Assim, continua:
213
E para este propósito preenchi um grande frasco transparente e
perfeitamente redondo com água e descobri que, por exemplo, quando o sol
vem da seção do céu marcada em AFZ[veja figura abaixo], e meu olho
estava no ponto E, então quando ponho esta bola na localização BCD, sua
parte D aparece-me completamente vermelha e incomparavelmente mais
brilhante que o resto; e descobri que se a aproximasse ou a afastasse dele,
e se a colocasse à direita ou à esquerda, ou mesmo a fizesse girar em
volta da minha cabeça, contanto que a linha DE sempre tenha um ângulo
de aproximadamente 42
0
com a linha EM, que deve ser imaginada
estender do centro do olho para o do sol, esta parte D sempre apareceu
igualmente vermelha. Mas a medida que fiz este ângulo DEM tornar-se
levemente maior, esta cor vermelha desapareceu. E se fiz o ângulo
ligeiramente menor, a cor não desapareceu toda de uma vez, mas antes
primeiro dividiu-se em duas partes brilhantes, em que se viu o amarelo, o
azul, e outras cores. Depois, também olhando na parte desta bola que es
marcada em K, percebi que se fizesse o ângulo KEM ao redor de 52
0
esta parte K apareceria vermelha também, mas não tão brilhante quanto
em D; e que se fizesse levemente maior, outras cores mais fracas
apareceriam. (DESCARTES, 2001, p. 332-tradução nossa)
Figura 47
A definição dos ângulos ideais permitirá Descartes tirar a conclusão de que o
arco, no céu, é formado devido a conjunção de diversas gotas que definem os mesmos
ângulos, como explicado na citação acima. A experiência mostra também a região ou o
ângulo de formação dos dois arcos: o arco principal será visto sob um ângulo de 42
0
e o
secundário sob um ângulo de 52
0
.
Entendi claramente a partir disto que se todo o ar na direção de M fosse
preenchido com tais bolas, ou em seu lugar gotas de água, ali deveria
aparecer um ponto muito vermelho e brilhante em cada uma dessas gotas
a partir das quais as linhas traçadas na direção do olho E fazem um
ângulo de aproximadamente 42
0
com EM, como supus no caso desses
214
marcados R; e que se esses pontos são olhados todos juntos, sem notarmos
qualquer coisa sobre sua posição exceto que o ângulo segundo o qual são
vistos, devem aparecer como um círculo contínuo da cor vermelha. Da
mesma forma devem existir pontos nessas gotas marcadas S e T das
quais as linhas traçadas em direção a E fazem ângulos ligeiramente mais
agudos com EM, e estes pontos compõem círculos de cores mais fracas; e
nisto consiste o arco-íris primário e principal. Então, de novo, achei que se
o ângulo MEX fosse de 52
0
, um círculo vermelho deve aparecer nas gotas
marcadas X, e outros círculos de cores mais fracas nas gotas marcadas Y,
e que nisto consiste o arco-íris secundário e menos importante. E
finalmente, em todas as outras gotas, marcadas V, nenhuma cor pode
aparecer. (DESCARTES, 2001, p. 333-tradução nossa)
Em seguida, Descartes explica que o arco-íris primário é provocado pelos raios
solares depois que sofrem duas refrações e uma reflexão. o arco-íris secundário é
causado pelos raios que sofrem duas refrações e duas reflexões. As duas refrações
enfraquecem o fenômeno. Tudo isso, diz Descartes, foi obtido avaliando cuidadosamente a
grande gota. Para constatar essas reflexões e refrações Descartes colocou um corpo opaco,
em algum lugar nas linhas AB, BC, CD ou DE e isso fez com que a cor vermelha
desaparecesse. Também constatou que se cobrisse a bola toda, mas deixando os pontos B
e D descobertos a cor vermelha voltava a aparecer.
O passo seguinte, segundo Descartes, é explicar a maior dificuldade, a saber: o
motivo de existir muitos raios que tendem ao nosso olho após duas refrações e uma ou
duas reflexões, quando a bola
está em outra posição, não fazem as cores aparecer, ou seja,
somente aquelas descritas anteriormente é que fazem as cores aparecer. Para explicar isso,
Descartes fa uso de uma outra comparação, usará um prisma de cristal, veja figura
abaixo, que sabia-se decompunha os raios solares nas cores do arco-íris.
Figura 48
215
Descartes passa então a estudar o prisma de cristal MNP que possui suas duas
superfícies completamente planas MN e NP e formando ângulo de 30
0
ou 40
0
entre si,
de modo que os raios do sol ABCD, cruzando a superfície MN em ângulos retos ou
quase retos, não sofrerão refração considerável, mas haverá uma refração considerável ao
sair através de NP. Descartes então observa que se cobrisse uma das superfícies com um
corpo escuro, mas deixando uma abertura estreita DE, então os raios passando por essa
abertura eram sempre refratados para os pontos FGH, colorindo ali com todas as cores do
arco-íris. Sempre a cor vermelha aparecia em F e o azul e o violeta em H.
A partir disto aprendi, primeiro, que as superfícies das gotas de água não
necessitavam ser curvadas a fim de produzir estas cores, pois aquelas deste
cristal são totalmente planas, nem o ângulo sob o qual apareciam
necessitava ser de qualquer tamanho particular, pois pode ser modificado
aqui sem mudá-las. E embora possamos fazer os raios indo para F
curvarem algumas vezes mais ou algumas vezes menos do que esses indo
para H, todavia sempre colorem de vermelho, e aqueles indo para H
sempre colorem de azul; nem é a reflexão necessária, pois não existe dela
aqui; nem finalmente necessitamos uma pluralidade de refrações, pois existe
apenas uma delas aqui. Mas julguei que deve existir ao menos uma
refração, e mesmo uma tal que seu efeito não foi destruído por uma
outra, pois o experimento mostra que se as superfícies MN e NP fossem
paralelas, os raios, estando em linha reta tanto naquela quanto eram
curvadas na outra, não produziram estas cores. Também não tenho dúvida
que a luz era necessária, pois sem ela nada devemos ver. E observei, além
disso, que a sombra, ou a limitação desta luz, era necessária, pois se
removemos o corpo negro sobre NP, as cores FGH deixam de aparecer; e
se fazemos a abertura DE suficientemente maior, o vermelho, o laranja, e o
amarelo em F o estendem adiante por causa daquilo que faz o verde, o
azul, e o violeta em H – ao invés, todo o espaço extra entre os dois em G
permanece branco. (DESCARTES, 2001, p. 335-tradução nossa)
O experimento do prisma permite Descartes estabelecer que o aparecimento das
cores não depende da forma redonda da superfície, pois no prisma as superfícies são
planas. Assim, se os raios incidentes sobre o prisma não provocam uma refração acentuada
atravessando a pequena abertura DE na face escura inferior NP as cores aparecem na
parede PHGF, o vermelho aparece em F e o azul ou o violeta em H. Descartes também
estabelece que é necessário uma refração e nenhuma reflexão, pois colocando as duas
superfícies planas paralelas entre si, não haverá refração e as cores desapareceram
completamente. Outro fato destacado por Descartes é que se a abertura DE for grande
demais as cores apareceram apenas nas bordas enquanto que a parte central ficará branca
216
e que a luz é necessária, pois sem ela, nada teríamos. Outro fato obtido experimentalmente
através do prisma é a importância da presença da sombra. Ao retirar o corpo negro as
cores desaparecem e ao aumentar a abertura DE as cores permaneciam na mesma posição
indicada, mas o espaço G permanecia com a cor branca e agora com uma extensão
maior.
Na seqüência, Descartes explicará a diferença das cores presentes nos pontos
PHFG, para tanto, utilizará o modelo das pequenas partículas esféricas que transmitem a
pressão do sol. Começa relembrando a descrição feita em A Dióptrica que a luz nada
mais é do que uma ação ou um certo movimento de um certo material muito fino cujas
partículas podem ser representadas como bolas pequeninas que rolam nos poros dos
corpos terrestres. As bolas, segundo Descartes, podem girar de várias maneiras de acordo
com as rias causas que as determimam e que as refrações, que ocorrem do mesmo
lado, as fazem girar na mesma direção.
Podemos resumir o modelo cartesiano para explicar as cores: as esferas
inicialmente são providas de apenas um tipo de movimento, o de translação. Ao colidirem-
se com uma superfície oblíqua, por exemplo um lago, a colisão fará com que as pequenas
esferas ganhem velocidades giratórias no mesmo sentido. As bolas podem ter velocidades
iguais ou diferentes. As esferas vizinhas podem alterar ou não a velocidade da esfera, veja
figura abaixo.
Figura 49
A fim de explicar melhor o seu modelo, consideraremos a figura acima, onde uma
bola 1234 é impulsionada de V para X, viajando em linha reta e que os lados 1 e 3
217
tenham velocidades iguais e ao atingir a superfície YY, o lado 3 que encontra essa
superfície primeiro é retardado, enquanto o lado 1 ainda continua com a mesma
velocidade, uma vez que ainda não tocou a superfície da água, o que faz a bola se mover
no sentido 123, horário. O movimento giratório é então consequência da passagem da luz
de um meio para outro. Como a figura mostra, imagine ainda quatro bolas que circundam
1234: Q, R, S, T, das quais, Q e R movem-se com mais força do que T e S, pois Q e R
são consideradas ainda não em contato com a água, enquanto 1234 está iniciando o seu
contato e T e S já estão em contato, por isso suas velocidades são menores. Desse modo,
o contato com essas bolas vizinhas aumentará a velocidade giratória dessa bola 1234, pois
Q pressiona a parte 1 e S retem a 3 e assim aumenta a velocidade giratória de 1234.
Neste modelo, consideraremos que T e S representaram a sombra e Q e R um outro raio
paralelo a 1234. Isso explica a ação do raio DF. No outro extremo, o raio EH é descrito
invertendo o raciocínio.
É claro disso que Q, pressionando a parte da bola marcada 1, e S, retendo
a marcada 3, aumenta sua rotação; e que R e T não a impedem, porque R
está disposta a mover para X mais rápido que 1234 a segue, e T não está
disposta a seguir 1234 tão rapidamente quanto 1234 a precede. Isto explica
a ação do raio DF. Assim, ao contrário, se Q e R tendem mais lentamente
que 1234 para X, e S e T tendem mais rapidamente para lá, R impede a
rotação da parte marcada 1, e T aquela da parte 3, sem as duas outras, Q
e S, nada fazendo. Isto explica a ação do raio EH. (DESCARTES, 2001, p.
336-7-tradução nossa)
Desse modo, Descartes se sentiu capacitado a resolver o mais difícil dos
problema na explicação do fenômeno do arco-íris, a aparição das cores. A natureza das
cores que aparecem em F consiste somente do fato que as partículas da materia fina, que
transmitem a ação da luz, têm uma tendência mais forte a girarem-se do que moverem-se
em linha reta provocando a cor vermelha, ou seja, a cor vermelha que aparece em F é
devido ao fato que o movimento giratório é mais forte que o movimento em linha reta.
A luz que tem a tendência em linha reta um pouco mais forte que o movimento
giratório provoca o amarelo. As cores que são visíveis em H é devido ao fato que as
partículas não giram tão rapidamente quanto geralmente fazem quando não existe causa
particular que as dificulte nisto. O verde aparece onde giram um pouco mais devagar e o
azul onde giram muito lentamente. E em tudo isto, continua Descartes,
218
[...] a explicação concorda tão perfeitamente com a experiência que não
creio possível, após se ter estudado ambos cuidadosamente, duvidar que o
assunto é como tenho a pouco explicado. Pois se é verdade que a
sensação que temos da luz é causada pelo movimento ou inclinação para
o movimento de algum material que toca nossos olhos como muitas
outras coisas que atestam é certo que os diferentes movimentos desse
material devem causar diferentes sensações em nós. E como não pode
existir variação nestes movimentos diferentes que o primeiro que
mencionei, assim não encontramos qualquer variação pela experiência, nas
sensações que temos deles, diferentes daquela das cores. E não é possível
encontrar uma única coisa no cristal MNP que pode produzir cores, exceto
o modo como manda as pequenas partículas da matéria fina na direção da
linha FGH, e daí para nossos olhos. A partir disso, parece-me, ser muito
óbvio que não devemos procurar nada além nas cores exibidas pelos
outros objetos; pois a experiência ordinária mostra que a luz ou o branco,
e a sombra ou o preto, junto com as cores do arco-íris que foram
explicado aqui, basta para compor todas as outras. E não posso aprovar a
distinção feita pelos filósofos quando dizem que existem algumas cores
verdadeiras, e outras que são somente falsas ou aparentes. Pois porque toda
natureza verdadeira das cores consiste apenas em sua aparência, parece
para mim ser uma contradição dizer que são falsas, e que aparecem.
(DESCARTES, 2001, p. 337-8-tradução nossa)
Assim termina a etapa analítica do método e começa a etapa sintética, com uma
preocupação, a saber, se no caso do arco-íris também aparecerá as sombras que foram
detectadas no prisma. Se isso for comprovado, bastará que retrocedamos, basicamente no
caminho inverso da análise, para concebermos completamente o fenômeno do arco-íris.
Descartes se propõe então a fazer os cálculos, pois duvidou inicialmente que no arco-íris
o fenômeno ocorreria da mesma forma que no prisma, pois não notara nada no arco-íris
que interrompesse a luz e também porque só aparecia sob certos ângulos. Os cálculos de
Descartes então indicam a existência de uma sombra interronpendo a passagem da luz e
também intervalos mais apurados sob os quais o arco primário e o secundário poderiam
aparecer.
[...] mesmo no arco-íris, duvidei a princípio se as cores eram produzidas
ali inteiramente do mesmo modo como no cristal MNP; pois não notei
qualquer sombra que interrompa a luz, nem ainda entendi porque
apareceram somente sob certos ângulos, até ter tomado a minha pena e
calculado pormenorizadamente todos os raios que incidem sobre os vários
pontos de uma gota de água, a fim de ver sob quais ângulos poderiam vir
para os nossos olhos após duas refrações e uma ou duas reflexões achei
que depois de uma reflexão e duas refrações, muito mais delas podem ser
vistas sob o ângulo de 41
0
a 42
0
do que sob qualquer um menor; e que
219
nenhum deles podem ser visto segundo um ângulo maior. Depois também
achei que após duas reflexões e duas refrações, muito mais delas vêm
para o olho sob um ângulo de 51
0
a 52
0
, que sob qualquer um maior, e
nenhum desses raios vêm sob um menor. De modo que existe uma
sombra em ambos os lados, interrompendo a luz que, após ter passado por
uma infinidade de pingos de chuva iluminados pelo sol, vem para o olho
sob o ângulo de 42
0
ou um pouco menos, e então causa o arco-íris
primário e mais importante. E existe também uma sombra impedindo a luz
vindo sob o ângulo de 51
0
ou um pouco mais, que faz o arco-íris
exterior; pois não recebendo raios de luz em seus olhos, ou recebendo
notavelmente menos deles a partir de um objeto que de um outro que
está próximo a ele, é a mesma coisa como ver a sombra. Isto claramente
mostra que as cores desses arcos são produzidas pela mesma causa como
são essas que aparecem com a ajuda do cristal MNP, e que o raio do
arco interior não deve ser maior que 42
0
, nem aquele do exterior menor
que 51
0
. E finalmente, mostra que a superfície exterior do arco-íris
primário deve ser muito mais limitada do que a interior, e vice-versa para
o secundário, como pode ser visto por experimento. Mas afim de que esses
que sabem Matemática que podem ver se o cálculo que tenho feito desses
raios é suficientemente exato, é necessário que o explique aqui.
(DESCARTES, 2001, p. 339-tradução nossa)
Descartes confirma então que nos dois casos do arco-íris existe uma sombra, tal
como no prisma. Em seguida, para sanar todas as dúvidas, se propõe então a efetuar os
cálculos necessários para verificar todos os raios que chegam aos nossos olhos após duas
refrações e uma ou duas reflexões. A conclusão, para o arco primário, é que a maior parte
pode ser vista no intervalo angular de 41
0
a 42
0
do que num ângulo menor e nenhum
em ângulos maiores. Para o arco secundário o intervalo angular será de 51
0
a 52
0
. A
outra conclusão é que dos dois lados uma sombra que bloqueia a luz que, depois de
atravessar uma infinidade de gotas de chuva, iluminadas pelo sol, chega aos nossos olhos
sob um ângulo de 42
0
, ou um pouco menor. As mesmas observações são aplicadas ao arco
secundário.
Os cálculos dependem de um conhecimento prévio sobre o índice de refração do
ar para a água que Descartes diz ser de 250/187 e levam também em consideração a
análise do trajeto de um raio como na figura 48 abaixo, onde considera que o raio FE
incide sobre a superfície da gota AFD.
220
Figura 50
Descartes divide então o raio da gota de água em 1000 partes iguais. O raio de
luz EF é refratado na direçaõ de K, depois é refletido de K para N, e de N vai para o
olho P ou é mais uma vez refletido de N para Q e dali para o olho R. CI é
perpendicular a FK, a razão HF/CI mede o índice de refração da água, pois sen i / sen r =
= sen GFC / sen IFC = HF / CI. Supondo que HF contém 8000 partes, AC 10000 partes,
assim CI conterá 187/250 deste número, ou seja, 5984. Sabendo dos valores associados as
duas linhas HF e CI, Descartes facilmente calculou os dois arcos, FG = 73
0
44’, e FK =
106
0
30’. Então, subtraindo duas vezes o arco FK do arco FG adicionado a 180
0
, teremos
40
0
44’ para o ângulo ONP, pois Descartes supôs que ON é paralelo a EF. Subtraindo
40
0
44’ de FK, teremos 65
0
46’ para o anglo SQR, pois SQ é também paralelo a EF. E
calculando todos os outros raios paralelos a EF que passam pelas divisões do diâmetro
AB da mesma forma, Descartes chegou na seguinte tabela.
Linha HF
Linha CI
Arco FG
Arco FK
Ângulo ONP
Ângulo SQR
1000
2000
748
1496
168
0
30´
156
0
55´
171
0
25´
162
0
48´
5
0
40´
11
0
19´
165
0
45´
151
0
29
221
3000
4000
2244
2992
145
0
132
0
50´
154
0
145
0
10´
17
0
56´
22
0
30´
136
0
122
0
5000
6000
3740
4488
120
0
106
0
16´
136
0
126
0
40´
27
0
52´
32
0
56´
108
0
12´
93
0
44´
7000
8000
5236
5984
91
0
73
0
44´
116
0
51´
106
0
30´
37
0
26´
40
0
44´
79
0
25´
65
0
46´
9000
100000
6732
7480
51
0
41´
0
95
0
22´
83
0
10´
40
0
57´
13
0
40´
54
0
25´
69
0
30´
Por esta tabela pôde constatar que qualquer que seja o raio ele sairá formando
com o ângulo inicial um ângulo de não mais do que 40
0
57´ e que existe uma
concentração de raios que tornam o ângulo ONP próximo a 40
0
do que menor e também
uma concentração deles que fazem SQR próximo a 54
0
do que maior.
Mas Descartes, para chegar a valores mais precisos, fornece uma segunda tabela,
onde trabalha com valores concentrados no intervalo de 8000 a 9800 para HF.
Linha HF
Linha CI
Arco FG
Arco FK
Ângulo ONP
Ângulo SQR
8000
8100
5984
6058
73
0
44´
71
0
48´
106
0
30´
105
0
25
40
0
44´
40
0
58´
65
0
46´
64
0
37´
8200
8300
6133
6208
69
0
50´
67
0
48´
104
0
20´
103
0
14
41
0
10´
41
0
20´
63
0
10´
62
0
54´
8400
8500
6283
6358
65
0
44´
63
0
34´
102
0
101
0
2
41
0
26´
41
0
30´
61
0
43´
60
0
32´
8600
8700
6432
6507
61
0
22´
59
0
99
0
56´
98
0
48´
41
0
30´
41
0
28´
58
0
26´
57
0
20´
8800
8900
6582
6657
56
0
42´
54
0
16´
97
0
40´
96
0
32
41
0
22´
41
0
12´
56
0
18´
55
0
20´
9000
9100
6732
6806
51
0
41´
49
0
95
0
22´
94
0
12´
40
0
57´
40
0
36´
54
0
25´
53
0
36´
9200
9300
6881
6956
46
0
43
0
93
0
91
0
51´
40
0
39
0
26´
52
0
58´
52
0
25´
9400
9500
7031
7106
39
0
54´
36
0
24´
90
0
38´
89
0
26´
38
0
38´
37
0
32´
52
0
51
0
54
9600
9700
7180
7255
32
0
30´
28
0
88
0
12´
86
0
58´
36
0
34
0
12
52
0
52
0
46
9800 7330 22
0
57´ 85
0
43´ 31
0
31´ 54
0
12´
Nesta tabela, Descartes pôde constatar que o maior ângulo para ONP é 41
0
30’, e o
menor para SQR é 51
0
54’, aos quais, adicionando ou subtraindo aproximadamente 17
222
minutos para o raio do sol, teremos 41
0
47’ para o raio maior do arco-íris interno, e
51
0
37’ para o raio menor do arco externo.
No que segue Descartes explicará as variações possíveis desses ângulos e outros
casos de arco-íris. Por exemplo, se a água está aquecida sua refração é um pouco maior
do quando está fria. Isso alteraria os cálculos anteriores. Aumentaria apenas o raio do arco
interior em um ou dois graus, no máximo e o raio do arco exterior será aproximadamente
duas vezes.
Descartes supõe então que os cálculos realizados e o índice de refração suposto
por ele revelam a precisão de suas conclusões. E Descartes aproveita-se da ocasião para,
mais uma vez, se vangloriar dos cientistas anteriores.
Vale a pena notar por que por isso podemos demonstrar que a refração
da água pode dificilmente ser menos ou mais do que supus. Pois se fosse
um pouco maior, deveria fazer o raio do arco-íris interior menor do que
41
0
, enquanto pela crença comum damos a ele 45
0
; e se o supomos muito
pequeno para torná-lo verdadeiramente 45
0
, acharemos que o raio do arco
exterior é também dificilmente mais do que 45
0
, enquanto que para o olho
parece muito maior do que o interior. E Maurolicus, que é, creio, o
primeiro que determinou o de 45
0
, determina o outro ser perto de 56
0
, que
mostra como pouca podemos ter nas observações que o são
acompanhadas por razão verdadeira. (DESCARTES, 2001, p. 342-tradução
nossa)
Descartes então prossegue explicando porque o vermelho aparece no lado externo
do arco interior e porque está no lado interno do arco exterior.
Para o resto, não tenho tido qualquer dificuldade de entender por que o
vermelho está no lado externo do arco interior, nem porque está sobre o
lado interno no exterior; pois o mesmo fator que o faz estar perto de F
2
antes do que de H, quando aparece por meio do cristal MNP, também
causa, que, se olharmos no cristal quando o olho es na localização da
tela branca FGH, vermos o vermelho na direção da sua parte mais espessa
MP, e o azul na N, porque o raio de tom vermelho que vai na direção
de F vem de C, a parte do sol que está mais próxima a MP. E este
mesmo fator também faz acontecer que quando o centro das gotas de
água ( e como um resultado sua partes mais espessa) estão sobre o
externo, com relação aos pontos coloridos formando o arco-íris interno, o
vermelho deve aparecer fora; e que quando estão do lado interno com
relação a esses que formam o arco-íris exterior, o vermelho deve também
aparecer do lado interno. (DESCARTES, 2001, p. 342-3-tradução nossa)
223
Para Descartes pouca coisa permanece sobre o assunto e a fim de liquidar a
questão termina o oitavo discurso falando de alguns casos espetaculares de arco-íris. Por
exemplo, quando o arco não é exatamente redondo ou quando o seu centro não está em
linha reta com o olho e o sol. Isso pode acontecer, diz Descartes, se os ventos mudam a
forma das gotas de chuvas.
ainda o arco-íris invertido. Segundo Descartes, esse arco é devido a reflexão
dos raios do sol sobre a superfície do mar ou de um lago. Os raios diretos são
impedidos por uma nuvem e esse é um fenômeno muito raro.
Também Descartes menciona que um terceiro arco pode aparecer, acima dos dois
arcos primários e secundários, muito mais fraco do que esses dois e tão distante do
segundo quanto este é do primeiro. Segundo Descartes, isso é devido aos grãos ou pedras
de gelo, muito redondos e transparentes, misturados na água da chuva em que a refração
é notavelmente maior do que da água pura.
Descartes por fim ainda sugere meios de fabricar arco-íris observando a variedade
de substâncias que temos que possuem índice de refração diferente e maior do que a
água. Desde que a questão foi totalmente explicada por ele, poderemos construir um arco-
íris usando uma fonte.
Por exemplo, se a água saindo dos pequenos orifícios ABC saltam
suficientemente alto e expande no ar em todas as direções para R, e se o
sol está na direção de Z, de modo que, desde que ZEM é uma linha reta,
o ângulo MER pode estar perto de 42
0
, o olho E não falhará em ver
perto de R um arco-íris exatamente como o que aparece no céu. A isto é
agora necessário adicionar que existem óleos, humores, e outros líquidos,
em que a refração é notavelmente maior ou menor do que na água
comum, e que não são menos claro e transparente por causa daquilo. De
modo que deveríamos ser capazes de dispor de muitas fontes a fim de,
nas quais, tendo várias destes líquidos ali, deveríamos ver pelo seus meios
uma grande parte do céu cheio das cores do arco-íris: isto deveria ser
realizado fazendo os líquidos cuja refração era a maior para ser a mais
próxima aos expectadores, e não deixando-as subir tão alto que escondam
a visão daqueles que deveriam estar atráz deles. Assim, porque fechando
uma seção dos orifícios ABC podemos fazer qualquer partes do arco-íris
RR que desejamos desaparecer sem remover os outros, é fácil entender
que da mesma forma, abrindo e fechando aproximadamente os orifícios
destas várias fontes, deveríamos ser capazes de fazer aquilo que parecerá
colorido ter a forma de uma cruz, ou uma coluna, ou alguma outra tal
coisa que a causa para o espanto. Mas admito que a destreza e muito
trabalho deveria ser necessário a fim de proporcionar essas fontes, e fazer
224
os líquidos ali saltarem tão alto que essas figuras poderiam ser vistas de
uma distância pór uma nação inteira, sem o truque ser descoberto.
(DESCARTES, 2001, p. 344-5-tradução nossa)
Isso encerra a discussão do fenômeno do arco-íris e Descartes se por satisfeito
com a relação as suas explicações. Podemos agora resumir o método de análise e síntese
aplicado na explicação do arco-íris.
A etapa analítica começa com o problema, P
1
: estudar o fenômeno do arco-íris,
como ele é dado na natureza. Descartes percebe que o fenômeno também ocorre próximo
a nós, nas fontes, devido a incidência dos raios solares sobre as gotas, então surge a
possibilidade de manipulação do fenômeno e a redução do problema a um outro, mais
fácil. P
2
: Redução do fenômeno à uma grande gota de vidro cheia de água. A redução do
problema à grande gota de água permite Descartes tirar importantes conclusões que
ajudarão a explicar o fenômeno. A manipulação da gota permite definir os ângulos sob os
quais as diversas cores do arco-íris aparecem. Assim o problema será reduzido a P
3
: No
arco principal, a cor vermelha aparece quando o ângulo é de 42
0
, as demais cores quando
o ângulo é um pouco menor. No arco secundário, a cor vermelha aparece sob um ângulo
de aproximadamente 52
0
, as demais cores sob um ângulo ligeiramente menor. Para valores
maiores que 42
0
e 52
0
as cores não aparece. Constatados os ângulos que permitem a
formação do arco-íris devemos investigar qual a causa das cores. Como Descartes sabe
que o mesmo fenômeno ocorre no prisma, então a explicação será reduzida a P
4
: Assim,
volta-se para estudar a origem das cores no prisma, ou seja, o que provoca o aparecimento
das cores? A explicação do aparecimento das cores no prisma finalisa a etapa analítica. E,
então começa a etapa sintética que consiste em, praticamente, percorrer o caminho inverso
deixado pela análise.
Convém salientarmos que Descartes não apresenta a etapa sintética e também não
escreve sobre nada ela. Mas, vimos, na parte dois de O Discurso do Método, quando
definiu a sua metodologia, que devemos, depois da análise, construir a explicação do
fenômeno, etapa por etapa. Exposto isso, não podemos duvidar então que devemos seguir o
caminho deixado pela análise para explicarmos o problema. Devemos também salientar
que, depois da parte analítica, a imagem que obtemos é nítida. Parece mesmo indicar que
devemos retroceder o caminho inverso para compreendermos todo o fenômeno.
225
Por fim, Descartes explica todos os casos possíveis do fenômeno do arco-íris que
ocorrem na natureza. Deixando claro que a explicação que deu para o caso mais comum
serve de fundamento para os outros casos, bastando fazer apenas algumas considerações
complementares, ou seja, a questão fica assim completamente exaurida e não há mais nada
a fazer
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A meta desse trabalho era estabelecer a influência da Matemática sobre a
Filosofia de Descartes, limitando a discussão, que foi feita em um sentido cronológico, até
a principal obra de Descartes O Discurso do Método e seus três ensaios.
Para tanto, optamos por fazer uma pesquisa levando em consideração os estudos
iniciais de Descartes em La Flèche e depois as influências externas de seus contatos,
para mostrar que o ambiente que Descartes prosperou foi de fundamental importância para
seu projeto. Foi em La Flèche que Descartes assimilou a cultura Escolástica dominante
dentro das escolas jesuítas, a cultura Matemática e a cultura filosófica dos gregos. A
partir dos livros de Clavius, de Falhauber, Roth, Viète, entre outros escritores, conheceu a
Ciência de sua época e pensou em reformá-la. Como mostramos, a formação científica de
Descartes não começou e nem terminou no ambiente escolar, mas foi complementada a
partir dos contatos com diversos filósofos de vários lugares. As viagens de Descartes
objetivavam o conhecimento, meta principal de seu projeto, que fez um pacto consigo
mesmo, o de passar o resto de seus dias pesquisando. Assim, conscientizou-se dos
problemas de sua época e buscou, como outros de seu tempo, resolvê-los.
A busca foi intensa e durante aproximadamente nove anos Descartes, que
anunciou ter o projeto para reformar a Ciência em 1619, foi aprimorando suas idéias até
chegar num estágio que considerou maduro para publicação. Neste ínterim, Descartes se
envolveu profundamente com a Matemática e a Física e as idéias principais foram
incorporadas em O Discurso do Método, mas na obra Regras para a Direção do Espírito,
elaborada num período anterior, pudemos vislumbrar o projeto cartesiano, ainda numa
forma inicial, mas com informações importantes sobre sua pretensa reforma da Ciência.
Também nas obras Solidorum Elementis, Cogitationes Privatae e nas anotações do diário
226
de Beeckmam pudemos constatar o envolvimento de Descartes com a Matemática, que foi
paulatinamente amadurecendo até sua principal obra Matemática, A Geometria. O
fluxograma abaixo ajuda a sintetizar essas idéias.
Para mostrar a influência da Matemática sobre o projeto cartesiano nos
concentramos nas Regras para a Direção do Espírito e em O Discurso do Método, com
os três ensaios. As Regras mostram os passos que devem ser dados na busca da verdade
nas Ciências e, a Matemática, sem dúvida, é o modelo escolhido por Descartes que deve
ser estendido para outras áreas científicas. Isso é evidente quando Descartes descreve, na
Regra IV, sua Mathesis Universalis, onde mostramos que sua idéia era tomar a
227
Matemática como a base das Ciências como Astronomia, Música, Óptica, Mecânica, entre
outras. O mundo físico poderia ser entendido a partir da Matemática, ou seja, o universo
poderia ser decrito por leis matemáticas, a exemplo das leis de Kepler. A idéia central
desse projeto consistia em traduzir os problemas dessas Ciências à Matemática, reduzindo-
os a problemas envolvendo magnitudes. A Geometria então seria fundamental, pois é a
Ciência que lida com extensões e medidas. A representação do mundo físico, em nossas
mentes, deveria ser realizada notando que, em nossa imaginação, o objeto mais simples
possível de se representar era o segmento de reta, o elemento fundamental, característica
comum nos objetos espaciais do mundo físico. Assim, as quantidades discretas tinham uma
representação plana em nossas mentes e as grandezas contínuas eram representadas por
extensão e área.
A pretensão científica de Descartes aparece nas regras anteriores a quarta, a
ciência deve ser única, essas regras ensinam também como obter o conhecimento
verdadeiro através da intuição e da dedução, isto é, a Ciência cartesiana deve partir de
idéias claras e distintas, os primeiros princípios devem ser estabelecidos pela intuição e, a
partir delas, segundo Descartes, podemos deduzir outras verdades usando a indução, mas
antes, devemos usar o processo da descoberta, a análise. Assim, temos outro ingrediente da
Ciência cartesiana abordado nas quatro regras seguintes, usado pelos geômetras antigos, o
método de análise e síntese. O exemplo da linha anaclástica mostra com clareza como
Descartes aplicava sua metodologia, inspirada no método de análise e síntese e confirma a
influência desse método sobre sua Filosofia Natural nas Regras para Direção do Espírito.
As primeiras doze regras terminam com explicações adicionais para treinar nossas mentes
para aplicar bem as anteriores.
As próximas regras visam especificamente as ciências matemáticas. Assim, nas
Regras XIII-XV, Descartes ensina como dar um tratamento adequado para um problema
eliminando os elementos supérfluos para encontrar e enumerar as partes constituintes mais
simples e depois reduzí-lo a um problema sobre magnitudes geométricas, usando, se
necessário, figuras para representá-lo em nossas mentes. Da Regra XVI até a XXI,
Descartes descreve técnicas para se traduzir um problema a uma equação. Na Regra XVI,
propõe que usemos símbolos breves para indicar os elementos de um problema o que
facilita sua representação em nossas mentes. A Regra XVII pede para considerarmos os
228
termos desconhecidos e os termos conhecidos como dados e estabelecer uma relação entre
eles. A Regra XVIII diz que devemos usar as operações elementares e estabelecer
equações envolvendo os termos de um problema. A Regra XIX diz que devemos buscar
tantas equações quanto for o número de variáveis. A Regra XX diz que devemos usar a
divisão sempre que possível no lugar da multiplicação. Regra XXI diz que devemos
reduzir as equações a mais simples possível e de grau mais baixo.
Bos (2001) e Gaukroger (2002) afirmam que Descartes abandonou as últimas
doze Regras porque elas estavam destinadas ao estudo das operações que deveriam ser
realizadas no nível geométrico, enquanto as doze anteriores no plano aritmético. No plano
geométrico, por exemplo, algumas raízes poderiam ser construídas usando segmentos de
retas e círculos, mas outras não. O projeto de construir as raízes de uma equação
geometricamente foi retomado por Descartes no Livro III de A Geometria.
Em O Discurso de Método e seus três ensaios pudemos visualizar o projeto
cartesiano com mais clareza. Na parte dois, Descartes estabelece os quatro preceitos
fundamentais de seu método claramente inspirado pelo método de análise e síntese dos
antigos. Nesta obra também apresenta a concepção de Ciência única e os dois fundamentos
a partir dos quais podemos obter conhecimento científico, a intuição e a dedução, onde a
intuição ajuda a estabelecer os primeiros princípios e a dedução para obter novos
princípios, como no caso das Regras é necessário realizar a análise primeiro.
Nos três ensaios pudemos constatar de que forma a Matemática influenciou seu
pensamento. Em A Geometria encontramos uma riqueza de exemplos da aplicação do
método de análise e síntese e também as mudanças conceituais importantes introduzidas
por Descartes que são significantes avanços na área da análise algébrica e mostra o
quanto Descartes estava envolvido com a Matemática.
Descartes ampliou consideravelmente as realizações de seus predecessores,
transpondo muitos obstáculos que os impediram de avançarem nas Ciências. A Geometria
Analítica, concebida como eixos de referência e coordenadas, de fato, começa a partir das
realizações de Descartes, pois além de tratar as curvas usando duas variáveis, adequando-
se ao uso de sistemas de coordenadas, tentou estabelecer as bases conceituais dessa nova
Ciência. Do que argumentamos, acredito que podemos consagrar Descartes como uma
espécie de libertador da Geometria, pois, a partir dele, essa Ciência se desenvolveu, mas
229
não podemos atribuir a Descartes o tulo de O Pai da Geometria Analítica, pelo que foi
apresentado, podemos dizer que a criação dessa Ciência é um exemplo de colaboração
entre as várias gerações. Os progressos dados, em certos períodos de tempo, são fontes de
inspiração para gerações posteriores. Na criação da análise algébrica podemos notar isso
nitidamente, as idéias foram desenvolvidas a passos lentos, percorrendo um longo caminho, a
partir dos gregos, passando pelo mundo árabe, retornando à Europa Ocidental e culminando
nos trabalhos de Viète e de Descartes, entre outros.
Meneghetti resume bem as realizações cartesianas na Matemática, acordando com
nossas observações.
Descartes, em particular, apresentou uma inovação no pensar matemático:
proporcionou um poder de generalização e, conseqüentemente, de ampliação, à
ciência Matemática. Um avanço muito grande em relação aos seus
predecessores, no que diz respeito à álgebra simbólica e às interpretações
geométricas da álgebra. A álgebra formal, que vinha progredindo desde a
renascença, tem seu ponto culminante em sua obra “La Géométrie”. Com tal
obra, Descartes proporcionou uma simplificação e racionalização nas notações e
nos símbolos. Também rompeu com a tradição grega em diversos pontos. Em tal
tradição, a aplicação do cálculo à geometria já era utilizada no estudo das
propriedades das figuras geométricas e soluções dos problemas derivados
dessas, porém isto era feito somente para determinar magnitudes, áreas e
volumes e estabelecer proporções entre eles. (MENEGHETTI, p. 34, 2001)
De todo modo, a Geometria Analítica, como a concebemos hoje, teve de esperar
um pouco mais e foge aos objetivos de nosso trabalho descrever a sua formalização
completa depois de Descartes.
Em A Dióptrica, não encontramos exemplos da aplicação de seu método
diretamente, mas encontramos vestígios dele, a exemplo do primeiro discurso Da Luz. De
todo modo, notamos claramente que Descartes usa a Matemática como um elemento
modelador. Ao estudar as propriedades refletoras das cônicas percebeu que poderia usá-las
na construção das lentes dos telescópios. Mas devemos lembrar, mais uma vez, que num
período anterior a publicação desse ensaio, Descartes estudou a Óptica profundamente,
conseguindo determinar a linha anaclástica pelo método de análise e síntese que nas
Regras para a Direção do Espírito é apresentada como um claro exemplo do método.
Desse modo, a descoberta da forma ideal de polir uma curva por seu método deu-lhe os
subsídios para construir as lentes usando as seções cônicas como modelo, pois como se
230
sabia, essas curvas tinham as propriedades ideais requeridas por Descartes à construção
das lentes telescópicas. Concluimos que foi o método analítico que permitiu a Descartes
compreender bem as questões relacionadas a Óptica.
Em Os Metereos Descartes, ao estudar o emblemático problema do arco-íris,
aplica seu método novamente, inclusive, trazendo inovações importantes. Mas como no caso
de A Dióptrica, não outros exemplos contudentes de sua metodologia, mas, como no
caso de A Dióptrica, Descartes tinha pensado nas questões anteriormente.
Acreditamos, a partir do exposto, não restar dúvidas de que a Matemática
realmente inspirou Descartes e de que forma se deu essa influência. Em resumo, podemos
dizer que foi a maneira de demonstrar dos geômetras, através do processo dedutivo, o
método de análise e síntese dos geômetras gregos e a Matemática como elemento
modelador, como fez em A Dióptrica.
Depois de O Discurso do Método, Descartes perdeu o interesse pela Matemática e
dedicou-se a questões mais gerais, a saber, a Metafísica que foi uma questão tratada
superficilmente até O Discurso, transpondo seu método para além dos limites da
Matemática, mostrando o quanto seu projeto era mais amplo do que o de seus
contemporâneos.
231
BIBLIOGRAFIA
ACZEL, A. D.
O caderno secreto de Descartes.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
ARISTÓTELES. Poética; Órganon; Política; Constituição de Atenas.
In: Os pensadores
. São
Paulo, Editora Nova Cultura, 2004.
BALIEIRO, I. F. F.
Arquimedes, Papus, Descartes e Polya-Quatro episódios da história
da heurística.
Rio Claro, UNESP, 2004. Tese de Doutorado.
BARKER, S. F.
Filosofia da Matemática.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1976.
BATTISTI, C. A.
O método de análise em Descartes.
Da resolução de problemas à
constituição do sistema do Conhecimento
. São Paulo: USP, 2000. Tese de doutorado.
BERGGREN, J.L.; BRUMMELEN, G.V. The role and development of geometric analysis
and synthesis in Ancient Greece and Medieval Islam.
In: Ancient and Medieval
traditions in the exact science: essays in memory of Wilbur Knorr
: Edited by Patrick
Suppes, Julius M. Moravcsik and Herry Mendel. Stanford California: CSLI Publications,
2000.
BICUDO, I. Platão e a Matemática.
In: Revista Letras Clássicas 2:
301-315. São Paulo.
1998.
__________. Peri apodeixeos/de demnstratione. In:
Educação matemática pesquisa em
movimento.
Maria Aparecida Viggiane Bicudo, Marcelo de Carvalho Borba (orgs.). São
Paulo: Cortez, 2004.
BOS, H. J. M.
Redefining geometrical exactness: Descartes’ transformation of the early
modern concept of construction.
New York. Spring. 2001.
BOYER, C. B..
História da Matemática.
São Paulo: Ed. Edgard Blücher LTDA, 1996.
CERQUEIRA, L. A. (org.).
Aristotelismo e Antiaristotelismo - Ensino de Filosofia
. Rio de
Janeiro: Editora Ágora da Ilha, 2000.
CHAUI, M.
Convite a Filosofia.
São Paulo: Editora Afiliada, 2004.
COTTINGHAN, J.
A Filosofia de Descartes.
Lisboa : Ed. 70, 1989.
DESCARTES, R.
A Geometria
. Lisboa: Editorial Prometeu, 2003.
____________
Discurso do Método.
Editora Universidade de Brasília. São Paulo. Ática. 1989.
___________
Discourse on Method, Optics, Geometry, and Metereology
. Indianapoles:
Hackett Publishing Company Inc. 2001. Trad. Para o inglês de Paul J. Olscamp.
232
_____________
Discurso do Método, Regras para a Direção do Espírito.
São Paulo: Ed.
Martin Claret, 2002.
_____________
Discurso do Método; Meditações; Objeções e Respostas; As Paixões da
Alma
. In: Os pensadores. São Paulo: Editora nova cultura, 2004.
FEDERICO, P. J.
Descartes on polyhedra: a study of the solidorum elementis.
New
York, Spring – Verlag, 1982.
FELLER, W.
Descartes e as Humanidades.
Campinas: Unicamp. 1989, tese de doutorado.
FORBES, E. G. Descartes and the birth of analytic geometry. In:
História Mathematica
.
1977, n.4, pp 141-151.
FRANCA, L.
O Método Pedagógico dos Jesuítas.
Rio de Janeiro: Editora Agir, 1952.
HEATH, T. L.,
A History of Greek Mathematics.
New York. Dover Publications. 1981.
GAUKROGER, S.
Descartes uma Biografia Intelectual.
Rio de Janeiro: Eduerj, 2002.
GULLEY, N. A análise geométrica grega. In:
Cadernos de História e Filosofia da
Ciência.
Campinas; CLE, 1983, n. 4, pp. 16-27.
HINTIKKA. A análise geométrica antiga e a lógica moderna. In:
Cadernos de história e
Filosofia da Ciência.
Campinas: CLE, 1983, n. 4, pp. 28-47.
JUNIOR, C. P.
O que é Filosofia
. São Paulo, Editora brasiliense, 2003.
KLEIN, J.
Greek Mathematical Thougth and the Origin of Álgebra
. Annapolis,
Maryland: The M. I. T. Press. 1972.
KNORR, W. R.
The Ancient Tradition of Geometric Problems.
Boston: Birkhäuser
Boston, 1986.
KOBAYASHI, M.
A Filosofia Natural de Descartes
. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
LAKATOS, I..
A Lógica do Descobrimento Matemático: Provas e Refutações.
Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1978.
LEE, H. D. P. Geometrical Method and Aristotle´s account of first principle.
In: The
Classical Quarterly.
Vol. 29, N. 2. 1935. pp. 113-124.
LOPARIC, Z.
Descartes Heurístico.
Campinas: IFCH/UNICAMP, 1997. Republicação dos
artigos sobre Descartes.
233
____________ Paradigmas Cartesianos.
In:
Cadernos de História e Filosofia da Ciência.
Campinas: CLE, 1988, série 2, v. 1, n.2, pp. 67-83.
______________Sobre o método de Descartes.
In:
Cadernos de História e Filosofia da
Ciência.
Campinas: CLE, out., 1991, v. XIV, n.2, pp.93-112.
MANCOSU, P.
Philosopy of mathematics and mathematical practice in the seventeenth
century.
New York: Oxford University Press, 1996.
MENEGHETTI, R. C. G.
O Intuitivo e o Lógico no Conhecimento Matemático: uma análise
à luz da história e da filosofia da matemática.
Rio Claro, UNESP, 2001. Tese de Doutorado.
NASCIMENTO, C. A.
O que é Filosofia Medieval.
São Paulo: Editora brasiliense, 2004.
PEREIRA, O. P.
Ciência e Dialética em Aristóteles
. São Paulo: Editora da Unesp, 2001.
PÓLYA, G.
A Arte de Resolver Problemas
. Rio de Janeiro: InterCiência, 1978.
ROBINSON, R. A análise na Geometria grega.
In:
Cadernos de história da Filosofia da
Ciência.
Campinas: CLE, 1983, n.4, pp. 5-15.
RUSSELL, B.
A Filosofia de Leibniz
. São Paulo, Editora Nacional, 1968.
SASAKI, C.
Descartes´s Mathematical Thought
. Boston, Kluwer academic publishers, 2003.
SCHOLZ, H. A axiomática dos antigos.
In:
Cadernos de história e Filosofia da Ciência.
1980, pp 5-20.
SOUZA, R. L. O método de análise da Geometria grega: a questão do justificacionismo na
interpretação dos historiadores da Matemática.
In:
Cadernos de história e Filosofia da
Ciência.
Campinas: UNICAMP/CLE, 1990, série 2, v. 2, n.1, pp 67-83.
_____________
Sobre o problema da interpretação do método de análise - da
concepção tradicional à visão de Hintikka e Remes
. Campinas. UNICAMP, 1985.
Dissertação de Mestrado.
SPINOSA, B.
Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras
. In: Coleção obra prima de
cada autor. São Paulo, Editora Martin Claret, 2003.
VAZ, D. A. F. A Geometria de Descartes.
In
:
Bolema - Boletim de Educação Matemática.
Rio Claro, 2005, n. 23, pp 113-122.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo