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ISAÍAS LIMA FERREIRA
A DISTINÇÃO ANALÍTICO – SINTÉTICO
UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE FREGE E KANT
Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo, 2007
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ISAÍAS LIMA FERREIRA
A DISTINÇÃO ANALÍTICO – SINTÉTICO
UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE FREGE E KANT
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de o Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de mestre em Filosofia, sob orientação do Prof.
Dr. Mario Ariel González Porta.
PUC-SP
São Paulo, 2007
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BANCA EXAMINADORA
____________________________________
____________________________________
____________________________________
A todos os meus
Agradecimentos
A Mario González, por tudo. Desde o início até o fim.
Aos professores Edélcio Gonçalves de Sousa e Lúcio
Lourenço Prado, pela leitura judiciosa deste trabalho
cujas observações permitiram melhorá-lo.
Ao professor Ernesto Maria Giusti, de modo especial, pela
generosidade em indicar caminhos, pela atenção e o
desprendimento na ajuda em trilhá-los.
Resumo
Este trabalho tem por objetivo estabelecer a comparação entre
os pensamentos de Frege e Kant acerca da distinção entre os juízos
analítico e sintético. Chama-se a atenção para o fato de que não
somente uma única concepção de analiticidade no transcurso da
filosofia de Kant. O ponto central nessa discussão envolve a
natureza dos juízos constitutivos da matemática. À posição kantiana
segundo a qual a matemática fundamenta-se em juízos sintéticos a
priori, Frege opõe sua tese em que sustenta ser os juízos analíticos
a base dessa ciência. Contudo, por outro lado, mostra-se positiva ao
aceitar os mesmos juízos sintéticos a priori na geometria. Inserem-
se nesse debate, também, a geometria não-Euclidiana
e o formalismo de
David Hilbert que desempenharão papel importante como posições
divergentes à concepção de geometria Euclidiana da qual compartilham
Kant e Frege.
Abstract
This work aims to establish the comparison between Kant´s and
Frege´s thoughts about the distinction between the analytical and
synthetic judgments. Attention is drawn to the fact that there is
not only one analyticity conception in the course of Kant´s
philosophy. The central matter in this debate involves the nature of
constitutive judgments of mathematics. Against Kantian position,
according to which mathematics is based on synthetic a priori
judgments, Frege´s thesis states that the analytical judgments are
this science foundation. It is shown, however, favorable on
accepting the same synthetic a priori judgments concerning geometry.
This debate also includes the non–Euclidean geometry and David
Hilbert´s formalism that will play an important role as distinct
positions Euclidean geometry conception which is shared by Kant and
Frege.
SUMÁRIO
1 –
INTRODUÇÃO
...............................................09
2 -
CAPÍTULO PRIMEIRO KANT
.................................13
2.1 – Lógica................................................14
2.2 – Crítica da Razão Pura.................................17
2.3 – Prolegômenos..........................................23
2.4 – Lógica de Port-Royal..................................25
2.5 – Leibniz...............................................27
3
-
CAPÍTULO SEGUNDO FREGE
................................31
3.1 – Begriffsschrift: contraste entre as lógicas fregeana e
aristotélica...................................................33
3.2 – A notação da Begriffsschrift..........................41
3.3 – Logicismo.............................................53
4 - CAPÍTULO TERCEIRO COMPARAÇÃO
.........................55
4.1 – Juízos analíticos em Kant e Frege.....................59
4.2 – Aprioridade...........................................72
4.3 – Juízos sintéticos a priori em Frege e Kant............74
4.4 – Frege e Kant e as Geometrias euclidianas e não-
Euclidianas.................................................77
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
..................................95
6 – BIBLIOGRAFIA
............................................97
1- INTRODUÇÃO
Nos séculos XIX e XX apareceram e despontaram diversos
filósofos. Nomes como Husserl, Russell e Wittgenstein, citando
apenas alguns dos mais proeminentes e representativos, estabeleceram
contato direto ou indireto com Frege.
Husserl foi alertado por ocasião de uma resenha escrita por
esse autor sobre sua obra A filosofia da aritmética na qual aponta a
presença de tendência psicologista em sua filosofia, na medida em
que concebe o conceito de número a partir de processos psíquicos.
Esse acontecimento teve valor inestimável para o criador do conceito
de intencionalidade. A filosofia contemporânea pode ser
caracterizada também pelo surgimento da filosofia analítica que teve
sua origem na concepção de análise de Frege acerca da linguagem.
Isso parece ser o bastante para deixar patente o caráter seminal
desse autor. Não incorreríamos em erro ao afirmar que o círculo de
Viena não existiria sem as filosofias de Wittgenstein. Contudo,
tampouco estas, por seu turno, sem o pensamento de Russell talvez
tivessem lugar no âmbito do pensamento ocidental. Com respeito à
filosofia do principal autor dos Principia Mathematica, esta tem
ligação indissociável com o pensamento de Frege seja pelo fato da
descoberta de uma contradição no sistema lógico dos Grundgesetze, o
paradoxo que leva seu nome, seja pela tentativa de retificar essa
falha, num primeiro momento, e reconduzir, num segundo, o projeto
logicista fregeano ao seu objetivo.
Frege teve relevância inquestionável no campo da lógica ao
apresentar seu novo sistema em 1879 em sua Begriffsschrift. Sua
empresa foi fortemente estimulada pelo fato de haver notado que a
10
lógica aristotélica apresentava limitações de uma cadeia de
inferências que passou a ser exigida pelo autor a fim de que pudesse
levar a cabo seu projeto que visava reduzir as verdades aritméticas
à lógica.
No entanto, Frege reporta-se igualmente às figuras do passado
tomando-as como ponto de partida para examinar criticamente seu
pensamento. Kant foi um dos pensadores abordados e, no decorrer de
sua análise revelou manter com a filosofia desse, movimentos de
afastamento e aproximação. A natureza das proposições matemáticas,
não só, mas, sobretudo, é que irá servir de elemento condutor para a
análise fregeana. A questão pode ser resumida do modo seguinte:
assentam as proposições matemáticas em juízos sintéticos a priori ou
em juízos analíticos? Frege sustentará a segunda suposição e tentará
rebater a concepção kantiana calcada na primeira. Para tanto, nosso
trabalho está dividido em três capítulos os quais têm estas
finalidades por mister.
O primeiro capítulo consiste na apresentação do tratamento dado
por Kant aos juízos analítico e sintético, fazendo notar que não
na própria trajetória do pensamento de Kant uma definição coesa
acerca desses conceitos. Essa constatação em nada desabona o
pensamento kantiano, mas, ao contrário, proporciona a possibilidade
sempre de novas abordagens sobre o tema.
No segundo capítulo trataremos da lógica de Frege que é
representada por sua Begriffsschrift considerada como a inauguração
da, assim chamada, nova lógica. Aqui mostraremos como e por que
Frege se levanta contra a lógica aristotélica visto que esta
11
constituía-se num dos obstáculos a serem removidos do caminho que
tinha por fim último a redução dos enunciados da aritmética à
lógica.
O terceiro e derradeiro capítulo é reservado à comparação entre
as perspectivas kantiana e fregeana envolvendo os juízos analítico e
sintético. O que buscaremos aqui é analisar de forma mais precisa as
concepções em questão de modo a tentar explicitar por que razão
Frege rechaça os juízos sintéticos a priori como fundamento para a
aritmética; e ao contrário, na geometria, não os subscreve como
os defende no âmbito dessa ciência. Aqui a descoberta das geometrias
não-Euclidianas desempenhará não um papel secundário no que diz
respeito à sua importância no campo científico, mas, por força da
natureza e alcance de nosso propósito, apresentar-se-á em suas
linhas mais gerais sem, todavia, perder o auxílio imprescindível que
prestará ao exame do tema.
A figura de David Hilbert dará de igual modo aporte inestimável
à nossa exposição por tratar-se de um pensamento diametralmente
oposto aos de Kant e Frege na medida em que os dois últimos
sustentam a necessidade do conteúdo objetivo para a constituição da
geometria, i.e., a intuição pura do espaço. Conquanto Frege concorde
com Kant com respeito à intuição como conteúdo objetivo para a
constituição do conhecimento no âmbito da geometria, verifica-se um
deslocamento crescente em seu interesse visando o campo semântico
pois que, com efeito, a partir de determinado período em sua
filosofia, vai cada vez mais aprofundando estudos nessa área de
pesquisa. Portanto, resulta inevitável o confronto entre a posição
formalista de Hilbert que se preocupa apenas e tão-somente com a
12
parte sintática da geometria, em flagrante contraste com Kant, por
um lado, em total e inconciliável desacordo com Frege, por outro.
13
2 – CAPÍTULO PRIMEIRO KANT
É objeto do presente trabalho apresentar a distinção entre os
juízos analítico e sintético tanto em Kant quanto em Frege, para ao
fim e ao cabo de tal tarefa realizar um cotejo entre ambos os
pensadores destacando seus pontos de divergência e possíveis
semelhanças a respeito desse tema. Passemos à análise dos conceitos
acima apontados.
Kant e Frege concordam que os juízos matemáticos são juízos
extensivos, isto é, informam algo de novo. Fato que, evidentemente,
é reconhecível como o primeiro aspecto comum a ambos. Não obstante,
para Kant os juízos aritméticos são sintéticos a priori enquanto que
para Frege a aritmética é constituída por juízos analíticos. O que
está em jogo aqui são a natureza e o escopo destes juízos e como
Kant e Frege os vêem e os consideram, com suas justificativas e cada
um à sua maneira, a base sobre a qual assentará a aritmética.
No que diz respeito ao pensamento de Kant acerca dessa questão
um aspecto de muita relevância a ser destacado: que mesmo em suas
obras não temos apenas uma única distinção entre analítico e
sintético senão que outras.
14
2.1 - Lógica
Com o objetivo de constatarmos essa proposição começaremos por
sua Lógica (Cf. KANT, I. Lógica, # 36 e # 37 A 174). Nesta obra o
autor sustenta as seguintes definições em termos de proposições
analítica e sintética, oferecendo dois exemplos e, em seguida, suas
explicações:
Proposições analíticas chamam-se aquelas cuja certeza repousa sobre
a identidade dos conceitos (do predicado com a noção do sujeito). As
proposições cuja verdade não se funda na identidade dos conceitos
devem ser denominadas sintéticas (...) A todo x, ao qual convenha o
conceito de corpo (a + b), também convém a extensão (b) é um
exemplo de uma proposição analítica. A todo x, ao qual convenha o
conceito de corpo (a + b), também convém a atração (c) é um
exemplo de uma proposição sintética. As proposições sintéticas
aumentam o conhecimento materialiter; as analíticas, apenas
formaliter. Aquelas contêm determinações (determinationes), estas
apenas predicados lógicos.”
1
Como vimos acima, uma proposição analítica, para que possa ser
definida como tal, é exigido que sua certeza esteja fundada sobre a
base da identidade entre os conceitos do predicado e a noção do
sujeito. Kant apresenta apenas uma definição negativa para a outra
proposição, isto é, se a verdade da mesma não encontra fundamento na
identidade dos conceitos ela é sintética.
No segmento # 37 da mesma obra Kant aborda as proposições
tautológicas. de se destacar ainda que o exposto nessa seção
15
sobre tais proposições será mais à frente, para o tema abordado por
nossa dissertação, um ponto de significativo valor.
Nesse excerto o autor inicia sua análise utilizando-se uma vez
mais da identidade como o elemento a partir do qual são definidas as
proposições analíticas e, além disso, o subdivide em dois tipos
diversos que, por conseguinte, darão origem a duas espécies de
proposições analíticas também diferentes.
Kant afirma que no âmbito dos juízos analíticos duas formas
de identidade dos conceitos.
“A identidade dos conceitos em juízos analíticos pode ser uma
identidade expressa (explicita) ou não-expressa (implícita). No primeiro
caso, as proposições analíticas são tautologias.”
2
Em sua descrição das proposições tautológicas (virtualiter)
cuja estrutura lógica é A = A, ao asserir que elas não têm utilidade
nem uso em decorrência do fato de ser vazias ou sem conseqüência,
como é destacado, Kant deixa muito claro a esterilidade dessas
proposições com respeito à extensão de nosso conhecimento. Teremos
tudo isso ratificado pelo exemplo que se segue:
Tal é por exemplo a proposição tautológica: o homem é homem. Pois,
se não sei dizer do homem outra coisa senão que ele é um homem, então nada
mais sei dele.”
3
1
KANT, I. Lógica em Tradução de Guido Antônio de Almeida. EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO, Rio de
Janeiro, 1992, Ak 111/A 174.
2
KANT, I. Lógica em Tradução de Guido Antônio de Almeida. EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO, Rio de
Janeiro, 1992, Ak 111/A 174.
3
Idem, p. 130. Ak 111/A 174.
16
Com respeito a essa definição Kant sofre a censura de Paton ao
afirmar que o exemplo acima não se trata de uma tautologia, e
veremos mais adiante que Frege irá realizar uma crítica severa a
essa concepção, mas isso foi possível depois do aparecimento de
seu artigo Sinn und Bedeutung. Paton sustenta que:
“Kant às vezes descreve a relação de predicado e sujeito em um juízo
analítico como uma relação de identidade, mas isso não significa que
o sujeito e o predicado são o mesmo. (...) A dificuldade, todavia, é
mostrar o que está implícito, e o que não es implícito, em um
conceito. Pareceria estar implícito no conceito de triângulo que os
ângulos interiores o iguais a dois ângulos retos; mas isto Kant
negaria ser um juízo analítico.”
4
Convém chamar a atenção para o fato de que Kant não define o
que seria o segundo tipo de proposição, ao contrário do que faz com
o primeiro, isto é, não diz o que seja a identidade não-expressa
(implícita), limita-se tão-só a caracterizá-la.
“As proposições implicitamente idênticas, ao contrário, não o sem
conseqüências e infecundas; pois elas tornam claro por desenvolvimento
(explicatio) o predicado que se encontrava não-desenvolvido (implicite) no
conceito do sujeito.
5
Observemos agora como nosso autor define os juízos analíticos e
sintéticos na Crítica da Razão Pura.
4
PATON, H. J. Kant´s Metaphysic of Experience, Vol. I, New York, 1936, pp. 84-85.
5
Ibidem, p. 130. Ak 111/A 174.
17
2.2 – Crítica da Razão Pura
Primeiramente Kant ressalta que uma relação estabelecida
entre o sujeito e o predicado no juízo e esta se de duas
maneiras, a saber, ou o conceito do predicado B pertence ao conceito
do sujeito A como algo que está contido (implicitamente) neste
último, ou o conceito do predicado B está totalmente fora do
conceito do sujeito A, muito embora esteja em ligação com ele. No
exemplo anterior o juízo é chamado de analítico e no último ele é
sintético.
“Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um sujeito e
um predicado (...), esta relação é possível de dois modos. Ou o
predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido
(implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do
conceito A, embora em ligação com ele. No primeiro caso chamo
analítico ao juízo, no segundo,| sintético.”.
6
Em seguida nos diz em tom conclusivo que são analíticos os
juízos quando estes têm uma ligação do sujeito com o predicado e
esta é pensada por identidade; ao contrário, se esta ligação é
pensada sem identidade entre eles (sujeito e predicado) os juízos
devem ser chamados de sintéticos.
“Portanto, os juízos (os afirmativos) são analíticos, quando a
ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade; aqueles,
6
KANT, I. Crítica da Razão Pura em Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian Tradução de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, 1997. A 7/ B 10.
18
porém, em que essa ligação é pensada sem identidade, deverão chamar-se
juízos sintéticos.”
7
Para classificá-los de explicativo e extensivo respectivamente
usa como critério o acréscimo ou não do predicado ao conceito do
sujeito dos quais dependem a ampliação ou a simples explicação de
nosso conhecimento. Eis as características dadas, por Kant, a cada
um dos juízos.
JUÍZOS ANALÍTICOS
São apenas explicativos uma vez que seu predicado nada acrescenta ao
conceito do sujeito. A decomposição por meio da análise é o
suficiente para mostrar que os conceitos parciais estavam
pensados no conceito do sujeito.
JUÍZOS SINTÉTICOS
Estes juízos são extensivos, pois acrescentam ao conceito do sujeito
um predicado que nele não estava pensado e que, por conseguinte, não
poderia ser alcançado pela análise (decomposição) do conceito do
sujeito em seus conceitos parciais.
Aproveitando a caracterização dos juízos feita acima e com o
objetivo de oferecer à exposição mais nitidez passemos a ver como
Kant os concebe nos dois exemplos extraídos da Crítica da Razão
Pura.
Juízo analítico, exemplo:todos os corpos são extensos
7
Idem, pp. 42-43. Ak A7/B11.
19
Juízo sintético, exemplo:alguns corpos são pesados
Tais exemplos remontam à tradição silogística aristotélica de
proposições categóricas. O primeiro sendo da forma universal
afirmativa (Todo A é B), e o segundo da forma particular afirmativa
(Algum A é B). Este fato não se constitui em nenhuma novidade, pois
que o próprio Kant dirá expressamente, que a lógica desde os tempos
de Aristóteles apresentava-se acabada e perfeita.
“Pode reconhecer-se que a lógica, desde remotos tempos, seguiu a via
segura, pelo fato de, desde Aristóteles, não ter dado um passo
atrás, a não ser que se leve à conta de aperfeiçoamento a abolição
de algumas sutilezas desnecessárias ou a determinação mais nítida do
seu conteúdo, coisa que mais diz respeito à elegância que à certeza
da ciência. Também é digno de nota que não tenha a hoje
progredido, parecendo, por conseguinte, acabada e perfeita, tanto
quanto se nos pode afigurar.”
8
Contudo, a guisa de informação preliminar, a aritmética não se
deixa resumir a uma estrutura meramente silogística e isso pelo fato
dessa ciência tratar com relações de grandeza e quantidade como, por
exemplo, o número 2 é maior do que 1 e menor do que 3.
Quanto aos dois exemplos que expressam respectivamente os
juízos analítico e sintético, Kemp Smith impõe uma objeção segunda a
qual não a diferença lógica pretendida por Kant, portanto esses
juízos seriam iguais ao menos do ponto de vista lógico. Assevera
Kemp Smith:
20
“Assim, uma pequena dificuldade em detectar o caráter sintético
da proposição: todos os corpos são pesados. Assim tinha primeiro
sido exigido do leitor admitir o caráter analítico da proposição:
todos os corpos são extensos. As duas proposições são realmente
idênticas no caráter lógico. Nenhuma pode ser reconhecida como
verdadeira salvo em termos de uma compreensiva teoria da física
existente. Se a matéria deve existir em um estado de distribuição a
fim de que suas partes possam adquirir através de mútua atração à
propriedade do peso, o tamanho de um corpo, ou mesmo sua posse
qualquer extensão, pode semelhantemente depender das condições
especificas tal como pode concebivelmente não ser universalmente
realizada.
9
Cumpre dizer que o fato, no caso dos juízos analíticos e
sintéticos, de o predicado estar ou não pensado no conceito do
sujeito, isto sugere e permite que tais definições sejam denominadas
como psicologizantes uma vez que pensar nos remete a idéia de que
cada pessoa possui algo assim como uma imagem mental de tal ou qual
predicado pertencente ou não a tal e qual sujeito. A propósito desse
aspecto, Paton afirma:
“Esta distinção de analítico e sintético é uma distinção subjetiva,
assim o que é analítico para um homem seria sintético para outro? A
linguagem de Kant em alguns lugares pode sugerir que a distinção é
subjetiva; mas isto, penso, é verdadeiro somente onde o conceito do
sujeito é empírico. Assim, falando do conceito empírico, ele diz que
um homem pode pensar que no conceito de ouro a qualidade (tal como
não enferrujar) do qual outro homem não pode conhecer nada. Isto é
8
Idem, p. Ak BVIII.
9
SMITH, K. N. A Commentary to Kant´s “Critique of Pure Reason”, New York, 1999, pp. 38-39.
21
evidentemente verdadeiro, porque conceitos empíricos são derivados
da experiência, e a experiência de diferentes homens é diferente.”
10
Ainda sobre o aspecto subjetivo que podem assumir alguns dos
exemplos oferecidos por Kant, com respeito aos juízos, e recém
evidenciado por Paton, uma particular seção de um trabalho relevante
sobre o pensamento de Kant é de fundamental importância, não apenas
para auxiliar na elucidação de tal questão, mas para apontar,
confirmar e corroborar a indicação feita por parte de Paton sobre a
origem subjetiva expressa por vezes nas palavras de Kant. De
Vleeschawer em sua obra A evolução do pensamento kantiano constata a
clara e forte influência da psicologia de Tetens sob a qual esteve
exposta a Crítica da Razão Pura em sua primeira edição. Como
salienta De Vleeschawer:
“A imaginação, a dedução psicológica, a distinção entre o
entendimento e a razão, são todos os elementos que Kant deve a
psicologia de seu tempo. Agora bem, cremos que não é temerário
determinar esta influência de uma maneira mais precisa. Temos
dito anteriormente que nos é preciso buscá-la nos Philosophische de
Tetens. Em nosso trabalho sobre a dedução, temos consagrado quinze
páginas ao resumo das concepções deste psicólogo e lógico que
publica em 1776-1777 sua ‘suma psicológica’. Se pode, inclusive, ver
neste breve resumo tudo o que Kant pôde tirar de útil para seu
próprio transcendentalismo. Agora bem, se recordarmos os Versuche de
Tetens fixa nossa atenção sobre os três fatores que Kant não parece
haver suspeitado antes de 1776, chegamos sempre a uma conclusão
10
PATON, H. J. Kant´s Metaphysic of Experience, Vol. I, New York, 1936, p. 83.
22
idêntica, o que confere ao conjunto de nossa tese um valor de muito
alta probabilidade, se não de certeza.”
11
11
DE VLEESCHAWER, H-J. La evolución del pensamiento kantiano, México, 1962, p. 89.
23
2.3 - Prolegômenos
nos Prolegômenos a definição desses conceitos assenta sobre
a base do conteúdo dos juízos. Diz Kant que independentemente da
origem dos juízos e de sua natureza lógica, ou eles o explicativos
que nada acrescentam ao conteúdo do conhecimento ou extensivos
aumentando o conhecimento dado. Os anteriores são chamados de juízos
analíticos e os últimos de juízos sintéticos. A característica dos
juízos analíticos é a de não dizer nada no predicado que não
tivesse sido pensado no conceito do sujeito; agora quanto aos juízos
sintéticos Kant nos diz que em tais juízos no predicado algo que
não estava pensado no conceito do sujeito, desta forma alargando
nosso conhecimento, acrescentando algo novo ao nosso conceito.
“Ora, seja qual for a origem dos juízos ou a natureza da sua forma
lógica, existe neles, quanto ao conteúdo, uma diferença em virtude
da qual são ou simplesmente explicativos, sem nada acrescentar ao
conteúdo do conhecimento, ou extensivos, aumentando o conhecimento
dado; os primeiros podem chamar-se juízos analíticos, e os segundos,
sintéticos.”.
12
Uma outra distinção é traçada por Kant, comum tanto à Crítica
quanto aos Prolegômenos, e diz respeito ao princípio de contradição
segundo o qual todos os juízos analíticos estão baseados nele sendo,
portanto, o princípio supremo desses juízos, e são conhecimento a
priori independentemente dos conceitos que lhes sirvam de matéria
serem empíricos ou não. Porém, é dever dizer que tal princípio tem
12
KANT, I. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura em Tradução de Artur Morão. Lisboa, Edições 70, 1987. §
2.
24
limitações, isto é, serve somente como critério negativo de verdade
na medida em que assegurar a verdade do conhecimento em sua parte
formal. O que é satisfatório quando se trata tão-somente com juízos
analíticos, mas insuficiente no que tange aos sintéticos.
Nessa sucinta exposição, a nosso ver, parece ter deixado
suficientemente claro que de fato não ao longo do trajeto
intelectual de Kant, cujas obras são a prova inconteste do
desenvolvimento de seu pensamento, uma definição acerca seja de
proposições, seja de juízos analíticos e sintéticos.
Embora tenha ficado evidente que a lógica a qual Kant considera
como uma ciência perfeita seja a lógica de Aristóteles,
influências lógicas menos remotas do que essa, o que equivale a
dizer que no período moderno houve o surgimento de outras tendências
lógicas que, de alguma forma, seja opondo-se seja subscrevendo-a e
tentando modificá-la, sempre tiveram como referência a lógica
aristotélica.
Buscaremos então ao menos delinear um breve quadro histórico
que será constituído por alguns personagens e circunstâncias
pontuais, do legado aristotélico que predominou até a segunda metade
do século XIX.
25
2.4 – Lógica de Port-Royal
Do princípio de sua carreira acadêmica, pelos idos de 1755,
Kant adotara e utilizara durante pouco mais de quatro décadas o
compêndio de lógica Auszug aus der Vernunftlehre de George Friedrich
Meier a fim de ministrar suas aulas. Porém é conhecido o fato de que
passou não somente por suas mãos, como por quase toda Europa, a
Lógica intitulada de “Port-Royal” resultado do trabalho de Antoine
Arnaud e Pierre Nicole. Esse tratado cujo título original é La
Logique ou l’art de penser foi publicado, de forma anônima, na
segunda metade do século XVII por volta de 1662 e teve grande
difusão por contar com mais de cinqüenta edições em francês e muitas
inglesas e latinas, essas últimas objetivando entrar em países de
língua germânica.
A lógica de Port-Royal foi fortemente marcada pela inspiração
cartesiana e recebeu igualmente influência de Pascal. Descartes
atesta a história, insurgiu-se com espírito iconoclasta contra todo
pensamento antigo. Por via de conseqüência, a lógica como ciência
criada por Aristóteles cede lugar agora à lógica como uma arte que
auxilia a pensar melhor; com isso ocorre um deslocamento da
preocupação com a lógica teórica que se ocupa com as inferências e
silogismos, para uma lógica que toma como o mais importante
objetivo, conduzir bem o pensamento. Esse contexto origem a um
problema que é apontado por Tugendhat em sua Propedêutica Lógico-
Semântica por ocasião da discussão acerca da disputa dos universais.
“A concepção conceitualista foi a que se impôs no início da
modernidade. Ela corresponde à concepção psicológica da lógica. A lógica de
26
Port-Royal fala de idéias universais (idées universelles) obtidas por
abstração..
13
Entretanto, essa lógica foi capaz de inserir no léxico
filosófico dois conceitos novos que estão presentes até os dias
atuais no campo da lógica.
“No que se refere aos elementos da proposição, há mesmo que
assinalar duas novidades de vocabulário. Primeiro, a substituição da
palavra idéia à de conceito; em seguida, a distinção, nas idéias,
entre a sua compreensão e sua extensão (étendue). (...) a palavra
compreensão, nova para este uso, passará para o vocabulário lógico,
na sua oposição à extensão. É assim definida: ‘Chamo compreensão da
idéia, aos atributos que ela encerra em si, e que não se lhe podem
arrebatar sem destruí-la, como a compreensão da idéia do triângulo
encerra extensão, figura, três linhas, três ângulos, e a igualdade
desses três ângulos a dois rectos, etc.’”.
14
Uma observação tem de ser feita aqui relativa à palavra idéia.
Os principais filósofos da modernidade já não mais a usavam no mesmo
sentido platônico; e a palavra correspondente para Kant, em alemão,
é Vorstellung que significa representação. O que se confirma nas
palavras de Tugendhat:
“Deve-se atentar para o fato de que a palavra idea” tem, no início
da modernidade, tanto em latim como em francês e inglês, o mesmo
significado da palavra alemã ‘Vorstellung (representação)’, não
tendo mais nada a ver com o significado platônico de “idea”.
15
13
TUGENDHAT, Ernst e WOLF, Ursula em PROPEDÊUTICA LÓGICO-SEMÂNTICA. Trad. Fernando A. R.
Rodrigues, Editora Vozes Ltda, Rio de Janeiro, 1997, p. 104.
14
BLANCHÉ Robert e DUBUCS Jacques em HISTÓRIA DA LÓGICA. Trad. Caps, I a XI: António P. Ribeiro;
Cap. XII: Pedro E. Duarte, Edições 70, Lisboa 1996, pp. 186-187.
15
TUGENDHAT, Ernst e WOLF, Ursula em PROPEDÊUTICA LÓGICO-SEMÂNTICA. Trad. Fernando A. R.
Rodrigues, Editora Vozes Ltda, Rio de Janeiro, 1997, p. 104.
27
2.5 Leibniz
Outro filósofo que conferiu seus contributos à lógica foi
Leibniz. Diferentemente de Descartes, Leibniz soube reconhecer o
valor da lógica aristotélica e com espírito conciliador criou
oportunidades para intervir sobre o tema, com base em estudos
profundos, sem com isso romper com a tradição, antes, servindo de
elo e fonte para as filosofias moderna e contemporânea.
A ruptura de Kant com respeito à filosofia do século XVII se
concretiza com sua obra Crítica da Razão Pura, mas, no entanto, em
seu período pré-crítico foi muito influenciado por alguns de seus
predecessores entre eles, Leibniz.
Uma das marcas impressas por Leibniz no pensamento de Kant, que
resistirá ao período crítico desse último e fará parte de sua
concepção lógica, foi a tese da inclusão do predicado no sujeito
tomada da tradição. Em uma de suas obras Leibniz explicita tal tese
da forma seguinte:
“É correto, quando se atribui grande número de predicados a um mesmo
sujeito e este não é atribuído a nenhum outro, chamá-lo substância
individual. Isto, porém, não é suficiente, e tal explicação é apenas
nominal. É preciso considerar, portanto, o que é ser atribuído
verdadeiramente a um certo sujeito. Ora, é bem constante que toda
predicação tem algum fundamento verdadeiro na natureza das coisas, e
quando uma proposição não é idêntica, isto é, quando o predicado não
está compreendido expressamente no sujeito, é preciso que esteja
compreendido nele virtualmente. A isto chamam os filósofos in-esse,
dizendo estar o predicado no sujeito. É preciso, pois, o termo do
sujeito conter sempre o do predicado, de tal forma que quem entender
28
perfeitamente a noção do sujeito julgue também que o predicado lhe
pertence.”.
16
Nessa passagem estão implícitos alguns conceitos importantes
para a filosofia em geral. Leibniz fala sobre a atribuição de
predicados ao sujeito, concede uma definição negativa de uma
proposição idêntica. Por outros termos, é quando o predicado não
está compreendido no sujeito e vincula a verdade da predicação a
essa compreensão do predicado no sujeito. E ao dizer isso, faz,
também, referência de forma velada ao princípio de identidade e que
se manifesta exatamente quando ocorre tal compreensão.
A referência de estar ou não compreendido o predicado no
sujeito, nos remete a noção de compreensão destacada pouco na
lógica de Port-Royal. Fato que vem a confirmar que Leibniz não
apenas a leu, e dela extraiu elementos relevantes para a lógica como
ciência com os quais, ademais, trabalhou a fim de realizar mudanças
que trouxessem algum avanço nessa área.
Os esforços de Leibniz não foram em vão e quiçá ninguém mais do
que ele soube reconhecer os méritos dos filósofos dos quais tomou os
ensinamentos e os aprofundou dando um caráter de continuidade e
fundamentação aos mesmos. Ironicamente, quem o reconheça o
resultado do trabalho de Leibniz, como é o caso de Tugendhat, afora
alguma imprecisão na tradução, que adota uma postura equívoca ao
afirmar que a substituição do conceito “comprehension” (compreensão)
pelo conceito de “intension” (intensão) que foi realizada por sir
William Hamilton no século XIX, como nos faz ver a seguir:
16
LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica: Tradução de Marilena de Souza Chauí Berlinck. OS
29
“Com respeito ao outro conceito, ao conceito de conteúdo, o lógico
inglês Hamilton substituiu no século XIX o termo comprehension” pelo termo
“intension”. Daí a diferença atual entre extensão e intensão.”.
17
Objetivando lançar luz em tal questão, é-nos suficiente a
citação:
“Com efeito, dizendo todo homem é animal, quero dizer que todos os
homens estão compreendidos em todos os animais; ao mesmo tempo,
porém, entendo que a idéia do animal está compreendida na idéia do
homem. O animal compreende mais indivíduos que o homem, mas o homem
compreende mais idéias ou mais formalidades; um tem mais exemplos, o
outro mais graus de realidade; um tem maior extensão, o outro maior
intensão.”.
18
Convém ter presente que a lógica de Kant é intensional uma vez
que parte daquela noção, exposta acima por Leibniz, de que um número
de predicados é atribuído ao conceito do sujeito como suas notas
características (Merkmale), que todo conceito tem um conteúdo,
utilizando uma terminologia da Lógica que vai seguir sendo usada em
outras obras ulteriores como, por exemplo, na Crítica. Vejamos como
se apresenta na Lógica:
“Todo conceito, enquanto conceito parcial, está contido na
representação das coisas; enquanto razão do conhecimento, isto é, enquanto
PENSADORES, Editora Abril, São Paulo, 1974, § 8.
17
TUGENDHAT, Ernst e WOLF, Ursula em PROPEDÊUTICA LÓGICO-SEMÂNTICA. Trad. Fernando A. R.
Rodrigues, Editora Vozes Ltda, Rio de Janeiro, 1997, p. 105.
18
LEIBNIZ, G. W. Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano: Tradução de Luiz João Baraúna. OS
PENSADORES, Editora Nova Cultural Ltda, São Paulo, 1996, IV, 17, § 8.
30
nota característica, estas coisas estão contidas sob ele. Sob o primeiro /
aspecto, todo conceito tem um conteúdo; sob o segundo, uma extensão.”.
19
Kant entende, portanto, que o conceito contém em si e é
composto por seus conceitos parciais. Por exemplo, o conceito
“corpo” contém os conceitos parciais de “impenetrabilidade” e
“extensão” dentre outros que formam, assim, o conteúdo desse
conceito. A lógica de Kant é intensional exatamente pelo fato de que
o conceito é formado pela totalidade de seus conceitos parciais que
o constituem.
Com isso, fechamos nosso quadro histórico que pretendeu
oferecer uma visão que embora geral, esperamos seja, útil e precisa.
19
KANT, I. Lógica em Tradução de Guido Antônio de Almeida. EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO, Rio de
31
3 – CAPÍTULO SEGUNDO FREGE
O primeiro trabalho lógico de Frege apareceu no ano de 1879 com
a publicação de sua obra cujo título no original alemão é:
Begriffsschrift, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache
des reinen Denkens; que vertido para o português ficou conhecido
como Conceitografia, uma linguagem formular, modelada sobre aquela
da aritmética, para o pensamento puro.
A Begriffsschrift de Frege apresentou novidades decisivas em
comparação à lógica aristotélica que determinaram um marco divisório
no âmbito dessa ciência como, por exemplo, a substituição da
estrutura sujeito-predicado por a de função e argumento.
Se, por um lado, não é possível afirmar, sem o ônus do erro,
que a lógica desenvolvida por Frege é a tentativa de reordenação da
lógica aristotélica, por outro, constata-se que não houve uma
ruptura de caráter definitivo entre elas, mas o aperfeiçoamento da
lógica como um todo, tornando-a mais ampla e eficaz no auxílio da
ciência. O fato mesmo de a teoria tradicional do silogismo ter sido
incorporada à lógica fregeana parece confirmar isso. Acompanhemos as
palavras de Hans D. Sluga:
“Por seus meios ele teve êxito em formular o que chegou a lógica
moderna de predicado a teoria que incorpora a teoria tradicional do
silogismo, mas é mais extensa, mais rigorosa, e mais útil.”.
20
Janeiro, 1992, A 148.
20
SLUGA, Hans D. in Gottlob Frege, The Arguments of the Philosophers. Editor: Ted Honderich, London and
New York, 2001, p. 82.
32
É necessário fazer uma observação quanto ao que Frege enfrentou
um pouco antes e à época da publicação de sua obra e até o fim de
sua vida.
É evidente que a Begriffsschrift versa sobre lógica, contudo,
Frege trava nela algumas escaramuças em várias frentes com outras
ciências ora citadas, ora implícitas nas entrelinhas do texto que, à
primeira apreciação, aparentemente, não se configuram em alvos aos
quais possam ser dirigidas quaisquer espécies de críticas. Isso
caracteriza uma das principais finalidades da obra filosófica que
são o diálogo e o debate constantes com outras áreas do conhecimento
humano.
Frege irá, portanto, apresentar ao mundo filosófico uma nova
concepção de lógica, o que implica inevitavelmente em um embate
direto com a lógica aristotélica. Passemos agora à exposição da obra
Begriffsschrift que constitui um marco na história da lógica. Obra
seminal que inaugura a Lógica Moderna.
33
3.1 - Begriffsschrift: contraste entre as lógicas fregeana e
aristotélica
Frege no prefácio denunciou que a lógica clássica se tinha
deixado guiar pela gramática e a linguagem comum que, por seu turno,
possui uma limitação para o objetivo de, por exemplo, exprimir
proposições matemáticas que exigem maior rigor. E, por conseguinte,
substituiu a organização aristotélica de sujeito e predicado pela de
argumento e função, pois aquela, reitera, realiza um tratamento
meramente gramatical dos juízos, ao passo que essa última estrutura
apresenta uma análise rigorosamente lógica sobre os juízos, chegando
ao ponto de expor e analisar da linguagem comum (linguagem natural)
o que realmente lhe é caro, isto é, a análise do conteúdo conceitual
dos juízos e suas relações estritamente lógicas, executando a
defenestração do que não lhe importa. Por contraste, se Frege
esforça-se por separar a lógica da psicologia, e se valor apenas
ao conteúdo conceitual dos juízos, elemento eminentemente lógico,
desprezando o que resta, por analogia, a parte a qual relega pode
ser o conteúdo psicológico presente nos juízos. Vamos às palavras de
Frege:
“Na linguagem comum, o lugar do sujeito na seqüência de palavras tem
a importância de um espaço distinguido onde colocamos aquilo para o
qual desejamos especialmente dirigir a atenção do ouvinte (ver
também § 9). Isto pode, por exemplo, ter o propósito de ressaltar
uma certa relação do dado juízo a outros e deste modo fazê-lo o mais
fácil para o ouvinte apreender o contexto inteiro. Agora, todas
estas peculiaridades da linguagem comum que resultam somente da
interação do orador e do ouvinte como quando, por exemplo, o
34
orador toma as expectativas do ouvinte em conta e procura colocá-lo
no caminho certo, mesmo antes a sentença é completada nada tenho
de responder a eles em minha linguagem formular, porque em um juízo
eu considero somente aquilo que influencia sua conseqüência
possível.”.
21
Quanto à posição de Sluga acerca da citação acima ele não
somente a acompanha como também a corrobora, com outros termos, as
palavras de Frege, além de confirmar a nossa conjectura:
“Ao tentar construir tal linguagem surge uma distinção que
permanece importante para o todo posterior desenvolvimento de Frege.
Ele pensa que na declaração da linguagem comum nós devemos
distinguir as intenções psicológicas e as associações do orador e do
ouvinte do conteúdo objetivo real da declaração ela mesma. Depois
Frege fala da ‘iluminaçãocircundante de uma palavra ou sentença, o
‘colorido’ que ela possui para o orador ou ouvinte. Estes são
simplesmente subjetivos, associativos, características psicológicas
que não têm lugar na linguagem do pensamento puro.”.
22
É adotado por Frege um critério para descobrir qual o escopo do
procedimento aritmético, i.e., até onde lhe era dado, em aritmética,
progredir contando somente com inferências e o suporte das leis do
pensamento as quais, segundo afirma, transcendem todos os
particulares.
Agora é um momento oportuno para esclarecer duas questões
básicas. A primeira, é que as leis do pensamento que irão
recorrentemente ser citadas, não aparecem de forma nítida na
21
Idem, p. 12.
35
Begriffsschrift, e sim em outra obra posterior de Frege, as
Grundgesetze der Arithmetik, Volumes I de 1893 e Volume II de 1903.
São as seguintes leis básicas: Lei de Identidade (A = A); Lei do
Terceiro excluído (A ou רA); Lei de não-contradição ר(A e רA); Lei
de Bivalência (dois valores de verdade Verdadeiro e Falso); além
da única regra de inferência Modus Ponens.
A segunda consiste no fato do que significa o conceito de
inferência. Uma definição Standard é a seguinte: o processo pelo
qual da verdade de uma afirmação é afirmada a verdade de outra
proposição, por vezes esse conceito é relacionado à implicação que
substitui, por sua vez, o condicional ou a conseqüência tornando o
significado generalizado.
O próximo movimento de Frege pretende realizar uma substituição
do que ele chama de conceito de disposição em uma seqüência por uma
conseqüência lógica, a fim de atingir o conceito de número. O
conceito de disposição em uma seqüência parece ser uma alusão à
indução matemática utilizada à sua época. Logo após, sua preocupação
volta-se para as cadeias de inferências mantendo-as sem aberturas
com o objetivo último de impedir a entrada de qualquer elemento
intuitivo [Anschauliches]. Todavia, Frege depara com a limitação da
linguagem que se constituiu, a princípio, numa barreira para o seu
objetivo anterior.
O primeiro propósito da Begriffsschrift é oferecer uma prova
segura da validade de qualquer cadeia de inferência a fim de que,
primeiro, nenhum elemento possa entrar sem ser identificado e,
segundo, que qualquer que seja sua origem possa ela ser objeto de
investigação.
22
SLUGA, Hans D. in GOTTLOB FREGE, The Arguments of the Philosophers. Editor: Ted Honderich,
36
Frege concede uma especial importância a esta definição não
ao condicionar o entendimento do que seja sua linguagem formular
(linguagem artificial) a partir da lembrança daquela definição, como
também por tê-lo levado a dar o nome de Begriffsschrift à sua obra.
Em seguida faz uma advertência ao dizer que sempre foi
contrário ao seu pensamento conceber um conceito como a soma de suas
marcas [Merkmale]. Observa-se que o conceito constituído pela soma
de suas marcas [Merkmale], isto é, por suas notas características
[Merkmal], é exatamente o conceito admitido por Kant. é possível
notar uma nítida discrepância no que diz respeito à concepção de
conceito que ambos os filósofos têm.
Como está dito acima, Kant concebe um conceito como algo no
qual estão todas as notas características desse conceito. Por
exemplo, ao conceito de corpo pertencem a impenetrabilidade e a
extensão como notas características [Merkmale].
Ao contrário, para Frege o conceito é algo sob o qual caem
objetos. Em outros termos, em sua concepção lógica as propriedades
pertencem aos conceitos e não aos objetos. Quando dizemos que “um
cavalo existe” sob as novas perspectiva e notações lógicas
fregeanas, não falamos realmente sobre a existência de um cavalo
singular, mas em vez disso, dizemos que se existe um x tal que x é
um cavalo, então x é um cavalo. Essa nova concepção lógica será de
fundamental importância para a solução do argumento ontológico da
existência de Deus. O que é expresso, grosso modo, por esse
argumento é que existe algo que é o ser mais perfeito que pode ser
concebido. Ora, ao dizer isso s estamos predicando, isto é,
dizendo algo sobre o conceito “o ser mais perfeito que pode ser
London and New York, 2001, p. 84.
37
concebido” e não propriamente de Deus. Dito em termos técnicos,
Frege aponta a falha nesse argumento por tratar a existência como um
conceito de primeira ordem, quando o correto seria tratá-la como um
conceito de segunda ordem como deixa claro nessa passagem.
“Por ser a existência propriedade de conceito, a prova ontológica da
existência de Deus não atinge seu objetivo. Tanto quanto a
existência, porém, a unicidade não é uma nota característica do
conceito ‘Deus’. A unicidade não pode ser usada para a definição
deste conceito, como também a solidez, comodidade e caráter espaçoso
de uma cada o podem ser empregados, com pedras, argamassa e vigas,
em sua construção.”
23
É destacada ainda que a forma em que são empregadas as letras
na linguagem formular de Frege é similar à forma da aritmética.
Para traçar a relação entre sua Begriffsschrift e a linguagem
comum (Sprache des Lebens), Frege lança mão da clássica analogia
entre o olho e o microscópio. O olho é apresentado como sendo
superior ao microscópio dada a multiplicidade de casos em que pode
ser usado e a facilidade que encontra em adaptar-se às mais variadas
situações. Ao passo que o microscópio tem sua superioridade
reconhecida quando é requisitado como instrumento óptico a fim de
realizar e alcançar metas científicas as quais exigem um poder maior
de resolução, o que o olho não pode oferecer, demonstrando, assim,
sua inferioridade para essa tarefa específica.
A utilidade da Begriffsschrift consiste em ser um instrumento
construído apenas para os propósitos científicos, i.e., uma
23
FREGE, J. G. Os Fundamentos da Aritmética – Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito de
Número: Tradução de Luís H. dos Santos. OS PENSADORES, Editora Abril, São Paulo, 1974, § 53.
38
linguagem artificial que, em contraste com a linguagem natural, não
tem outro tipo de aplicação que não seja cumprir a execução de um
objetivo científico.
Uma outra passagem famosa de Frege é com relação a uma das
tarefas da filosofia que consiste em quebrar o domínio que a palavra
exerce sobre o espírito humano. É elucidativo tê-la na íntegra:
“Se uma das tarefas da filosofia é quebrar a dominação da palavra
sobre o espírito humano ao colocar às claras as concepções erradas
que através do uso da linguagem freqüentemente quase inevitavelmente
surgem acerca da relação entre conceitos e ao libertar o pensamento
do que com o qual somente os meios de expressão da linguagem comum,
constituída como ela é, sela, então minha conceitografia, mais
desenvolvida para estes propósitos, pode tornar também útil para o
filósofo.”.
24
A linguagem ao dar lugar, por meio de seu uso, a relações entre
conceitos que ocasionam a formação de concepções errôneas é alvo das
críticas de Frege, e essa atitude percorrerá algumas de suas obras
até o final de sua vida. O que parece mais interessante aqui é o
fato de que Frege implicitamente sugere uma análise da linguagem,
que se constituirá em novas áreas (filosofia analítica e filosofia
da linguagem) e um novo método dentro do domínio da filosofia que,
para alguns filósofos contemporâneos, deve preceder ao estudo da
própria filosofia a fim de evitar falsas questões levantadas por
ela, advindas da falta de análise prévia de alguns conceitos.
24
FREGE, G. “Begriffsschrift” in VAN HEIJENOORT, JFrom Frege to Gödel, Cambridge, HUP, 3ª ed.
1977, p. 7.
39
Além disso, nosso autor reafirma veladamente a separação da
lógica e da psicologia, basta lembrar das palavras, acima, de Sluga
que dão conta do caráter psicológico que possui a linguagem comum
que se manifesta na interação do orador e do ouvinte.
A crítica de Frege com respeito à estrutura da lógica de então
e sua conseqüente radical mudança dos elementos que a compunham,
representaram não uma reforma na lógica, mas a inauguração de uma
nova lógica.
A primeira atitude de Frege foi chamar a atenção para o fato de
que até aquele momento a lógica estava assentada na linguagem comum
e na gramática. Portanto, ela não seguira uma forma exclusivamente
lógica até então, senão que se guiava por uma forma essencialmente
gramatical. Sua primeira medida foi substituir os conceitos sujeito
e predicado pelos de argumento e função respectivamente. Essa
atitude garantirá uma mudança substantiva na análise lógica dos
juízos e assegurará uma avaliação mais rigorosa quanto às provas das
cadeias de inferência. se anuncia uma preocupação de caráter
semântico no tocante à linguagem, mas, não obstante, sua preocupação
continua a ser essencialmente lógica. O que podemos notar no excerto
seguinte:
“Em especial, eu acredito que a substituição dos conceitos sujeito e
predicado por argumento e função, respectivamente, suportará ao
teste do tempo. É fácil ver como com relação ao conteúdo como uma
função de um argumento leva a formação de conceitos. Além disso, a
demonstração da ligação entre o sentido das palavras se, e, não, ou,
existe, algum, todo, e assim por diante, merece atenção.”.
25
25
FREGE, G. “Begriffsschrift” in VAN HEIJENOORT, JFrom Frege to Gödel, Cambridge, HUP, 3ª ed.
1977, p. 7.
40
O êxito dessa virada de Frege com relação à lógica
aristotélica, com efeito, implica e início a uma nova teoria do
juízo, agora não mais orientada por uma preocupação gramatical, mas
lógica.
No final do prefácio Frege dá uma segunda versão do que o teria
levado a sua Conceitografia:
“Como eu observei no começo, a aritmética foi o ponto de partida para
a seqüência do pensamento que levou-me a minha conceitografia.”
.
26
E fechando-o, anuncia uma agenda de trabalho que se
constituiria na publicação de sua próxima obra Die Grundlagen der
Arithmetik de 1884, como podemos constatar nesse trecho:
“Para proceder mais longe ao longo do caminho indicado, para elucidar
o conceito de número, magnitude, e assim por diante tudo isto seria o
projeto de novas investigações, as quais eu devo publicar imediatamente
depois deste livrinho.”.
27
26
Idem, p. 8.
27
Idem, p. 8.
41
3.2 - A notação da Begriffsschrift
Frege abre a Begriffsschrift definindo os sinais com os quais
trabalhará nesta obra, isto é, sua notação. Estes são de dois tipos,
o primeiro são letras que têm a seguinte finalidade: ou elas
representam números que são deixados indeterminados ou serão funções
deixadas indeterminadas. O segundo tipo são sinais que possuem seu
sentido definido.
O juízo é introduzido em seguida como um traço vertical
pequeno, ao passo que o traço do conteúdo é uma linha horizontal
média. Nesse momento podemos explicitar algumas peculiaridades
que envolvem estes traços. Dependendo de como se apresentem e
principalmente com qual finalidade, entre eles a diferença entre
expressar e afirmar.
Um conteúdo pode ser expressado se nos utilizarmos apenas do
traço do conteúdo, todavia, se inserirmos o traço do juízo na
extremidade esquerda do traço do conteúdo nós faremos uma afirmação
desse juízo. Frege os define do seguinte modo:
“Permita-nos chamar o traço horizontal o traço do conteúdo e o
vertical o traço do juízo.”
.
28
Frege exemplifica essa diferença entre apenas expressar ou ser
assertivo, isto é, afirmar o juízo:
“Se omitirmos o pequeno traço vertical à esquerda no final do traço
horizontal, o juízo se transformado em uma simples combinação de
42
idéias [Vorstellungsverbindung], da qual o escritor não afirma se
ele o reconhece como verdadeiro ou não. Por exemplo, deixe
permanecer para [bedeute] o juízo ‘Pólos magnéticos opostos se
atraem um ao outro’; então não expressaria [ausdrüchen] este juízo;
é para produzir no leitor simplesmente a idéia da mútua atração dos
pólos magnéticos opostos, dizer a fim de derivar conseqüências dela
e para provar por meio destas se o pensamento está correto. Quando o
traço vertical é omitido, nós expressamos parafraseando, usando as
palavras ‘a circunstância que’ ou ‘a proposição que’.”.
29
A ciência é constituída por um conjunto de proposições
verdadeiras. E a relevância da distinção feita por Frege entre
expressar e afirmar reside no fato de que a ciência em geral e a
lógica em particular ocupam-se e buscam atingir a verdade. Porém,
somente quando se afirma ou se nega algo por meio de uma proposição
é possível atribuir os valores de verdade, a saber, o verdadeiro ou
o falso, e isso definitivamente não ocorre somente quando a
expressamos.
O autor apresenta agora a condicionalidade. O traço de condição
é representado por um traço horizontal que liga os traços de
conteúdo tanto de A como B. Notemos que a proposta de Frege
mostra diferenças entre sua lógica e a tradicional porque o que
passa a ser analisado são os conteúdos conceituais dos juízos -
quando afirmados - e não mais os conceitos dos juízos. Há também uma
mudança significativa entre tais modelos, pois que o traço de
condição permite estabelecer uma relação entre os conteúdos ou os
28
FREGE, G. “Begriffsschrift” in VAN HEIJENOORT, JFrom Frege to Gödel, Cambridge, HUP, 3ª ed.
1977, p. 12.
29
Idem, p. 11.
43
juízos. Tomando A e B como conteúdos que podem eventualmente tornar-
se juízos, há somente quatro possibilidades:
(1) A é afirmado e B é afirmado;
(2) A é afirmado e B é negado;
(3) A é negado e B é afirmado;
(4) A é negado e B é negado.
Frege também faz uso de uma regra de inferência que é o Modus
ponens que diz que a única possibilidade a ser descartada como falsa
tem esta forma, o antecedente é afirmado e o seu conseqüente negado,
sendo as demais verdadeiras, essa é a regra do condicional. No caso
acima teríamos de recusar a segunda possibilidade. O antecedente, na
forma aceita pelo Modus ponens, tem de ser verdadeiro e o seu
conseqüente também verdadeiro para que possamos concretizar a
inferência, isto é, se A então B necessariamente. O condicional
também pode ser conhecido como sendo uma funcional veritativa
condicional que significa que a verdade expressa é uma função dos
valores de verdade de A e B do condicional.
Outro aspecto importante da lógica fregeana é o seu caráter
formal e sua insistente procura de um sinal que o expresse uma
relação causal entre os juízos e, sim, um que exprima apenas e tão-
somente uma relação lógica. Examinemos o seguinte trecho analisado
por Frege numa de suas possibilidades de formação de juízo:
“(2) B tem de ser negado. Então o conteúdo de A é imaterial. Por
exemplo, permita B ser a circunstância que o movimento perpétuo é
44
possível e A a circunstância que o mundo é infinito. Então somente a
segunda e a quarta dos quatro casos são possíveis. Ali não necessita
existir uma ligação causal entre A e B.”.
30
A conseqüência ao afirmar que o conteúdo de A é imaterial é que
Frege se recusa a admitir a existência de quaisquer resíduos
ontológicos em sua lógica, e esse fato parece ser reforçado por sua
negativa em aceitar uma ligação causal que se aplica aos fenômenos
do mundo físico, i.e., a lei causal que age [wirken] sobre os
objetos do mundo físico.
Frege, dito de outra maneira, quer deixar explícito que na
análise que realizar acerca das sentenças, proposições e enunciados
observará somente a relação lógica que se estabeleça entre eles. Na
seguinte sentença “Se sou eu Napoleão então a Lua é feita de queijo”
não importa a Frege se o antecedente e seu conseqüente são de fato
verdadeiros, mas importa sim que do ponto de vista lógico trata-se
de uma implicação necessária a despeito de serem ambos, antecedente
e conseqüente, falsos.
Outro sinal introduzido é o de negação. Frege o define assim:
“Eu chamo este traço vertical curto o traço da negação.”.
31
O traço de negação tem por finalidade expressar a negativa de
um juízo. E também combina-se com o traço de condição. O resultado
imediato da combinação com o traço do condicional ou mesmo a simples
colocação do sinal de negação à frente de qualquer proposição, é a
formação de outro juízo.
30
Idem, p. 14.
45
O próximo sinal a ser inserido é o de identidade do conteúdo.
Esse sinal tem a função de indicar que dois nomes têm o mesmo
conteúdo conceitual. Isso equivale a dizer que o conteúdo de um
juízo pode ser determinado de modos diferentes e mais, que nomes
diferentes podem possuir o mesmo conteúdo.
Frege passa a falar agora sobre função e argumento, os dois
conceitos que substituem, em sua concepção lógica, a estrutura
sujeito e predicado da lógica aristotélica. Sobre a origem desse
conceito (Cf. J. Weiner Frege, 1990, pp. 37-38.)
Frege pensa em uma circunstância em que possa, segundo afirma,
em sua linguagem formular, expressar uma determinada relação entre
os elementos hidrogênio e o dióxido de carbono que permita a
substituição dos sinais (hidrogênio, oxigênio, nitrogênio) uns pelos
outros dentro de uma expressão. Por meio da análise realizada sobre
essa expressão, admitindo a possibilidade de tal alteração, o que
resulta é o surgimento de dois elementos, a função e o argumento aos
quais Frege dará as seguintes definições no resgate do texto desde
seu início:
“Permita-nos assumir que a circunstância de que o hidrogênio é mais
leve do que o dióxido de carbono é expresso em nossa linguagem
formular; podemos então substituir o sinal para hidrogênio pelo
sinal para oxigênio ou aquele para nitrogênio. Isto muda o
significado de tal modo que ‘oxigênio’ ou ‘nitrogênio’ estabelece as
relações em que o ‘hidrogênio ficou antes. Se imaginarmos que uma
expressão pode assim ser alterada, ela se decompõe em um componente
estável, representando a totalidade das relações, e o sinal,
considerado como substituível por outros, que denota o objeto
31
Idem, p. 17.
46
permanente nestas relações. O componente anterior eu chamo uma
função, o último seu argumento.”
.
32
Nessa nova perspectiva, Frege tem em mãos um instrumental muito
mais eficiente para a análise de sentenças e enriquecedor em seus
resultados. Tomemos o próprio exemplo dado pelo autor.
O hidrogênio é mais leve do que o dióxido de carbono.’
A função como parte da sentença à qual Frege atribui a
característica de permanecer inalterada é ‘...é mais leve do que...’
e os argumentos que, ao contrário, são substituíveis, são dois:
hidrogênio’ e dióxido de carbono’. Temos, então, uma função que
deve ser preenchida por dois argumentos. A cada substituição o
significado da sentença se altera e sua verdade ou falsidade
dependerá da disposição dos argumentos na sentença, isto é, se os
trocarmos de seus lugares anteriores, obteremos uma sentença falsa,
pois não se verifica que o dióxido de carbono’ seja mais leve do
que o ‘hidrogênio’.
Na terminologia posterior de Frege, a partir de 1891 com a
publicação do artigo “Função e Conceito”, a função será insaturada a
fim de que um argumento (objeto) a complete. Esse aspecto da lógica
de Frege ficará mais claro quando falarmos sobre variáveis e
quantificadores.
Ainda sobre esse tópico uma grande importância no fato de
Frege conceber uma função de dois lugares, como o exemplo acima,
sobretudo para a matemática, uma vez que ele, como acabamos de ver,
32
Idem., pp. 21-22.
47
tenciona proporcionar uma análise lógica para a aritmética. Quem
explica em minúcias não apenas a relevância de uma função de dois
lugares para a matemática, mas, também, o avanço que se a partir
desse conceito, é Weiner:
“(...)a convicção de Frege de que as verdades da aritmética são
analíticas vem, em parte, de sua convicção de que a indução
matemática é uma aplicação de uma verdade geral sobre seqüências. A
seqüência de números consiste de 1, o sucessor imediato de 1 (i.e.
2), o sucessor imediato de 2(i.e. 3), etc. Se a característica
fundamental desta seqüência é que ela é ordenada por uma relação de
dois lugares, a relação que sustenta entre dois números quando o
segundo é um (talvez não imediato) sucessor do primeiro. [...] Estas
características da seqüência do número, como ordenada pela relação
menor do que, podem ser expressas usando a Begriffsschrift, mas o
usando a organização Aristotélica.”.
33
temos condições de fazer um exercício comparativo entre a
lógica de Frege e a de Aristóteles. À primeira vista, o que
depreendemos dos exemplos citados é que a lógica aristotélica não
consegue oferecer um número de opções de análise que conferem à
lógica fregeana mais versatilidade e flexibilidade no tratamento com
as sentenças. E ao mencionar a estrutura da lógica aristotélica, se
prestarmos mais atenção veremos também que ela não conta de
sentenças que apresentam uma forma relacional, ou seja, “...mais
pesado do que...” ou “...menor que...”.
O exemplo mais conhecido da lógica clássica é o silogismo:
Todo homem é mortal
Sócrates é homem
33
WEINER, Joan, in Frege, Past Masters, OXFORD UNIVERSITY PRESS, 1990, p. 40.
48
Logo, Sócrates é mortal.
Os problemas desse silogismo válido podem ser explicitados da
forma seguinte:
1 - Se fizermos uma apresentação sintática de sua estrutura, ela
se revelará como S é P. Um sujeito, a cópula é e o predicado,
até aqui sem restrições. Essa lógica é conhecida como
atributiva ou predicativa, em outros termos, todo o predicado
(qualidades) é atribuído ao sujeito (uma substância).
2 - Quanto à cópula é em que está implícita a aceitação da
existência dos sujeitos aos quais ela é empregada na lógica
aristotélica há, portanto, um comprometimento ontológico para
com seus silogismos por meio de uma correspondência irrevogável
com o mundo, com a realidade.
3 - A estrutura dessa lógica mostra sua limitação em face da
lógica fregeana porque essa oferece um lugar vazio que tem de
ser preenchido, o lugar do sujeito que corresponde ao argumento
na concepção de Frege.
Agora é abordada a Generalidade. Algumas das características
desse segmento da obra são a dificuldade de entendimento do que está
sendo tratado ali e o acompanhamento do raciocínio do autor. Para
quem busca os quantificadores universal e existencial em suas formas
mais atualizadas, não os encontrarão exatamente porque eles são o
resultado posterior dessa exposição.
A grande vantagem da lógica fregeana com relação à aristotélica
é em parte resultado direto da substituição de sujeito e predicado
49
por função e argumento e, por outra, a utilização de quantificadores
e variáveis. Vejamos esse exemplo.
“Para qualquer x, se x é uma raiz cúbica de 8 então x é a raiz de
4.”
.
34
A variável x desempenha um papel que consiste na combinação com
um quantificador a fim de expressar a generalidade. Há, portanto, a
redução do emprego das palavras da linguagem comum ao máximo
possível, demonstrando, dessa forma, claramente a sua simplicidade.
Vejamos um contra-exemplo não quantificado - e um exemplo
quantificado para demonstrar a simplificação de uma afirmação
quando quantificada:
“A afirmação, sem usar variáveis, seria algo semelhante a isto: para
quaisquer três coisas, se a primeira é menor do que a segunda, e a
segunda é menor do que a terceira, então a primeira é menor do que a
terceira. A reivindicação é muito mais clara, todavia, se ela é
expressa usando as variáveis: para qualquer x, y, e z, se x y e y‹
então x ‹ z.”.
35
O uso dos quantificadores tem como finalidade estabelecer o
alcance da generalidade. O exemplo anterior diz respeito ao
quantificador universal do tipo, para todo x, tal que Fx então...
Outra afirmação da lógica expressa o quantificador
existencial:
34
WEINER, Joan, in Frege, Past Masters, OXFORD UNIVERSITY PRESS, 1990, p. 44.
35
Idem, p. 45.
50
“Um exemplo é: há um número que é ‹2”.
36
Sua expressão em palavras seria: “existe um x tal que x...”
Com a utilização de quantificadores e variáveis, a lógica de
Frege não apresenta um meio mais adequado e satisfatório de
tratar com sentenças que exprimem relação, como também consegue
fixar o alcance que lhe interessa dentro das sentenças. Ao
inserir uma variável x, que representa objetos individuais,
ligada a qualquer um dos quantificadores, entende-se com isso que
não será analisada a sentença em sua totalidade senão que apenas
uma parte dela. Esse fato é imprescindível à matemática que se
ocupa, ademais, de sentenças que apresentam a característica de
transitividade, por exemplo: se 4 é menor que 7 que, sendo esse
menor que 10, então 4 é menor que 10.
Na parte II da obra Frege irá mostrar o sucesso de sua
axiomatização da lógica. Uma definição possível para a axiomatização
é: todas as verdades de uma ciência mostram dependência e podem ser
resumidas a poucas verdades primitivas. Esse fato que assegura a
perspicuidade do sistema, ou seja, a sua evidência.
Em sua parte III Frege afirma que o pensamento puro tem seu
próprio conteúdo sem necessitar de nada externo a ele:
“(...) vemos como o pensamento puro, independente de qualquer
conteúdo dado pelos sentidos ou mesmo por uma intuição a priori,
pode, somente do conteúdo que resulta de sua própria constituição,
36
Idem, p. 46.
51
trazer para adiante juízos que à primeira vista parecem ser
possíveis somente sobre as bases de alguma intuição.”.
37
Frege pretende que a lógica seja suficiente para provar a
validade de algumas inferências baseadas em propriedades que são
hereditárias em seqüências ancestrais. Como por exemplo:
“Permita que
Λ
(M, N) signifique a circunstância que N é uma criança
de M,
Σ
(P) a circunstância que P é um ser humano. Então é a circunstância
que toda criança de um ser humano é por sua vez um ser humano, ou que a
propriedade do ser humano é hereditária.
.
38
Ou talvez fique mais claro nesse outro exemplo:
“Se a propriedade F é hereditária na seqüência-f, se x tem a
propriedade F, e se y é um resultado de uma aplicação do procedimento f
para x, então y tem a propriedade F.”
.
39
Essa fórmula poderia ter a seguinte configuração sintática:
(x) [F(x) (y) (f(x,y) F(y))]. Isso equivaleria dizer que para
todo objeto x, se x tem a propriedade da função F, e se y resulta de
uma aplicação do procedimento f para x, então y tem a propriedade F.
Por outros termos, se a função F possui a propriedade hereditária
(indução matemática) e for aplicado o procedimento f para x, o
próximo objeto que o suceder será seu descendente sendo o x seu
ancestral.
37
FREGE, G. “Begriffsschrift” em VAN HEIJENOORT, JFrom Frege to Gödel, Cambridge, HUP, 3ª ed.
1977, p. 55.
38
Idem, p. 57.
39
Idem, p. 58.
52
Tomando o exemplo acima temos o x e o y, nota-se a presença da
regra de inferência modus ponens: se x então y; x logo y. Essa regra
indícios de ser um dos elementos fundamentais que assegura a
relação entre um antecessor e seu sucessor, o mesmo procedimento com
respeito ao antecedente e seu conseqüente da regra de inferência
Modus Ponens.
Para fazer justiça a Aristóteles é necessário dizer que ele foi
o primeiro a utilizar variáveis na lógica haja vista a estrutura
sintática de seus silogismos. Porém, combinar os quantificadores
universal e existencial com variáveis, possibilitando determinar,
como vimos, qual a parte a ser analisada em uma sentença, é obra de
grande mérito de Frege.
53
3.3 - Logicismo
A tese clássica do logicismo se deixa exprimir pelo intento de
reduzir a aritmética às leis lógicas.
O plano geral programa - do logicismo que havia sido pensado
por Frege teria a seguinte espinha dorsal. A apresentação de seu
sistema lógico, sua Begriffsschrift do qual forneceria uma linguagem
lógica perfeita [linguagem artificial] por meio da qual pudesse
fornecer uma prova segura da validade de qualquer cadeia de
inferência a fim de evitar que nenhum elemento intuitivo pudesse
entrar sem ser identificado. Nos Grundlagen definiria o número
cardinal em termos puramente lógicos, que culminaria com as
Grundgesetze em que demonstraria formalmente a derivação da
aritmética com base na lógica.
Não obstante, se quisermos fazer justiça com relação a quem
primeiro pensou no logicismo, teremos que retroceder mais nossa
visão até chegarmos ao ano de 1874 em que o filósofo Lotze, na
segunda metade do século XIX, publica sua Logik.
Sluga sustenta categoricamente que Frege ficou em dívida com
Lotze, por muitas outras coisas, mas, sobretudo pela idéia de
logicismo:
“Entre as muitas coisas que Frege deve a Lotze, a mais importante é
talvez a idéia do logicismo.”.
40
40
SLUGA, Hans D. in GOTTLOB FREGE, The Arguments of the Philosophers. Editor: Ted Honderich,
London and New York, 2001, p. 57.
54
No entanto, o mesmo autor reconhece os méritos inegáveis de
Frege ao tornar exeqüível tal idéia que para Lotze não passara de um
programa:
“O logicismo permanece completamente programático por Lotze, mas para
Frege tornou-se a inspiração da lógica da Begriffsschrift, das reflexões
dos Fundamentos da Aritmética, e do ensaio semântico de 1890.”.
41
41
Idem, p. 58.
55
4 – CAPÍTULO TERCEIRO COMPARAÇÃO
Neste último capítulo perseguiremos o objetivo que consiste num
primeiro momento resgatar o que até aqui foi exposto acerca do tema
proposto para em seguida analisá-lo de forma mais detida.
Em face do número de temas que proporcionam estas filosofias,
muitos poderiam ser os caminhos adotados pelos quais chegaríamos a
elas. Contudo, escolheremos a lógica como eixo para nosso exame.
Essa é uma escolha que resulta natural, e se constitui em via
privilegiada de acesso na medida em que a distinção entre analítico
e sintético se desenvolve, em grande parte, a partir das concepções
lógicas de Frege e Kant. Em grande parte porque será inevitável não
fazer referência à epistemologia kantiana ao menos no que concerne
ao conceito de a priori que desempenhará um papel fundamental em
nossa exposição.
No cumprimento dessa tarefa teremos condições de aproximar
ambas as perspectivas, examinando-as e pondo acento no que nelas
houver de comum e divergente, por uma parte, e de contrário e
consensual, por outra.
Antes de mais, devemos reafirmar que a relação mantida entre a
filosofia de Kant e a lógica remonta à concepção aristotélica dessa
ciência. O reconhecimento quanto a sua importância, ainda que
parcial, para o desenvolvimento do conhecimento e a conseqüente
reverência atribuída a ela, são expressos nos trechos seguintes do
Prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura em que fica
evidenciado o fato de a lógica ter alcançado o status de ciência
42
.
Contudo, Kant reconhece sua limitação.
42
Cf. p. 18 Capítulo Primeiro dessa Dissertação.
56
“Seria naturalmente muito mais difícil para a razão seguir a via
segura da ciência, tendo de tratar não somente de si, mas também de
objectos; eis porque, enquanto propedêutica, a lógica é apenas como
a antecâmara das ciências e, tratando-se de conhecimentos,
pressupõe-se, sem dúvida, uma lógica para os julgar, mas tem que
procurar-se a aquisição destes nas ciências, própria e
objectivamente designadas por esse nome.”
43
Sob a análise da última citação revela-se o fato de que a
lógica aristotélica, denominada por Kant também de tradicional,
realmente não é suficiente para a construção de conhecimento, pois
que esta ciência apresenta séria limitação quando instada à tarefa
de produzir novos conhecimentos. Tal resultado se em decorrência
do pensamento (entendimento) prescindir totalmente do conteúdo do
conhecimento, passando a ocupar-se tão-somente consigo mesmo e com
sua forma.
A constatação de que a lógica está preocupada exclusivamente
com o aspecto formal do pensamento conduz-nos, então, à conclusão de
que ela é de fato muito importante porque assegura ao menos a
correção da parte formal do nosso conhecimento, contudo, mostra-se
insuficiente para o projeto kantiano que conta entre suas
finalidades com o objetivo de construir novos conhecimentos, além de
demonstrar com que direito podemos nós fazer uso de conceitos a
partir dos quais os constituímos, mas que, no entanto, não podem ser
fundados com base apenas na experiência. De maneira implícita Kant
faz aqui referência, em outros termos, às questões de direito (quid
43
Idem, B IX.
57
juris) e de fato (quid facti)
44
que envolvem a legitimidade de nosso
uso de alguns conceitos puros a priori do entendimento.
A matemática e a física são duas das ciências a que Kant indica
que se deva buscar adquirir conhecimento. Contudo, parte delas como
um Faktum a fim de remontar seus princípios i.e., parte da
matemática e da física como ciências constituídas para provar que
suas condições de possibilidade são os juízos sintéticos a priori.
Todavia, quer adotemo-nas como ponto de partida, quer como ponto de
chegada, faz-se necessário apresentar por que Kant traça a distinção
entre juízos analíticos e juízos sintéticos, diferenciação essencial
para sua filosofia.
A filosofia que o precedeu, notadamente a de Leibniz e Wolff,
havia acreditado ser possível obter de conhecimento fazendo uso
somente da razão pura, sendo suficiente realizar uma simples análise
de conceitos respeitando a sua correção lógica. Portanto, logravam
alcançar um conhecimento apenas formal e nisso seguiram a rigor a
lógica aristotélica cuja importância para a produção de conhecimento
novo, como vimos, é nula. Vejamos o que diz a respeito o próprio
Kant: “A filosofia” afirma
de Leibniz e de Wolff indicou uma perspectiva totalmente errada a
todas as investigações acerca da natureza e origem dos nossos
conhecimentos, considerando apenas puramente gica a distinção
entre o sensível e o intelectual, porquanto essa diferença é,
manifestamente, transcendental e não se refere tão-só à sua
forma|clara ou obscura, mas à origem e conteúdo desses
conhecimentos. Assim, pela sensibilidade, não conhecemos apenas
confusamente as coisas em si, porque não as conhecemos mesmo de modo
44
Cf. Crítica da Razão Pura A 84/ B 117.
58
algum; e se abstrairmos da nossa constituição subjetiva, não
encontraremos nem poderemos encontrar em nenhuma parte o objeto
representado com as qualidades que lhe conferiu a intuição sensível,
porquanto é essa mesma constituição subjetiva que determina a forma
do objeto enquanto fenômeno...
45
Gostaríamos de ressaltar, a título de informação a existência
de mais uma fonte acessível de pesquisa que faz uma abordagem de
forma clara e minuciosa acerca dos elementos que envolveram a virada
kantiana em relação à tradição filosófica. M. Ariel (Cf. A FILOSOFIA
A PARTIR DE SEUS PROBLEMAS pp. 107-127).
45
KANT, I. Crítica da Razão Pura em Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, 1997. A 44/B 62.
59
4.1 – Juízos analíticos em Kant e Frege
A distinção entre os juízos analíticos e sintéticos na Crítica
da Razão Pura, como vimos, é exposta da forma seguinte. A relação
entre sujeito e predicado, dentro de um juízo, pode se dar de dois
modos.
1) Ou o predicado B pertence ao sujeito A como que contido nesse
sujeito A, embora implicitamente (juízo analítico);
2) ou o predicado B está totalmente fora do sujeito A ainda que
mantendo-se ligados (juízo sintético).
46
Kant ainda os caracteriza de juízos explicativos e extensivos,
como segue:
“Portanto, os juízos (os afirmativos) são analíticos quando a
ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade;
aqueles, porém, em que essa ligação é pensada sem identidade,
deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros poderiam
igualmente denominar-se juízos explicativos; os segundos, juízos
extensivos; porque naqueles o predicado nada acrescenta ao conceito
do sujeito e apenas pela análise o decompõe nos conceitos parciais,
que nele estavam pensados (embora confusamente); ao passo que os
outros juízos, pelo contrário, acrescentam ao conceito de sujeito um
predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído
por qualquer decomposição.”
47
46
Cf. quinta nota de rodapé dessa dissertação.
47
KANT, I. Crítica da Razão Pura em Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, 1997. A 7/B 11.
60
Atinente ainda à natureza dos juízos analíticos é preciso dizer
que o princípio supremo sobre o qual apóiam-se é o princípio de
contradição, mas que se aplica a todos os conhecimentos uma vez que
não pode ser contrariado por nenhum deles. Kant o apresenta nos
termos seguintes:
“(...)o princípio de contradição é o princípio universal e
plenamente suficiente de todo o conhecimento analítico; mas a sua
autoridade e utilidade não vão mais longe como critério suficiente
de verdade. Efetivamente, este princípio é uma conditio | sine qua
non, porque nenhum conhecimento pode contrariá-lo, sem se aniquilar
a si mesmo, mas não é um fundamento determinante da verdade do nosso
conhecimento.”
48
A posição fregeana com respeito à maneira com que Kant define
os juízos analíticos e sintéticos é essencialmente oposta. No
terceiro parágrafo de sua obra, Os Fundamentos da Aritmética,
concede um novo tratamento dos conceitos kantianos, os dois
primeiros pertencentes à esfera epistemologia e os últimos à lógica,
são eles, a priori e a posteriori, sintético e analítico. Em
contraste com a organização kantiana que se utiliza, como foi
destacado, da análise dos conteúdos dos juízos para classificá-los
em analítico e sintético, Frege submete todos a um critério
eminentemente lógico, isto é, a definição desses conceitos dependerá
apenas e tão-somente do grau de sua generalidade lógica.
Contrariamente a esse processo, Frege parte não do conteúdo de
uma proposição, mas de sua demonstração e retrocede às verdades
primitivas que as justificam. Se no percurso houver apenas leis
61
lógicas e definições, então a verdade é analítica. A proposição é
sintética se para sua prova necessitarmos somente de verdades que
não possuam natureza lógica geral, mas façam referência a uma
ciência particular. A verdade a posteriori é assim definida se para
sustentar sua demonstração haja o auxílio das questões de fato, que
por sua vez são verdades indemonstráveis e não possuem generalidade.
E, por fim, uma verdade a priori é aquela que podemos levar a efeito
sua demonstração tão-somente com leis gerais que por sua natureza
não admitam nem necessitem ser demonstradas.
Ao assumir essa posição Frege rechaça a caracterização kantiana
segundo a qual um juízo é analítico se o predicado B estiver contido
no conceito do sujeito A, e sintético se se verificar o contrário,
porque esta espécie de definição baseia-se exatamente na estrutura
sujeito-predicado do juízo. Isto posto, vejamos como o autor os
define:
“Agora depende de encontrar uma prova e recuar para as verdades
primitivas. Se, no caminho, somente leis lógicas gerais e definições
são encontradas, então a verdade é analítica, supondo que as
proposições sobre as quais a admissibilidade de qualquer definição
seja também levada em conta.”
49
“Se não é possível proporcionar a prova, todavia, sem usar verdades
que não são de natureza lógica geral, mas pertencem em vez disso ao domínio
de uma ciência particular, então a proposição é sintética.”
50
48
Idem A 152/ B 191.
49
Idem, p. 93
50
Idem, p. 93
62
“Para que uma verdade seja a posteriori, deve ser impossível para sua
prova evitar apelo aos fatos, isto é, verdades indemonstráveis e sem
generalidade, contendo afirmações sobre objetos particulares.”
51
“Se, por um lado, é possível proporcionar uma prova de leis gerais
completamente, as quais nem necessitem nem admitam prova, então a verdade é
a priori.”
52
Primeiro, ele não fala mais em juízos, mas em verdades, e o
segundo ponto diz respeito à proposição sintética que à exceção das
demais não é designada por Frege como verdade.
Note-se, além disso, que Frege emprega o termo demonstração
[prova] e ao caracterizar verdade analítica e verdade a priori à
primeira faz assentar em leis lógicas gerais e definições e a última
em leis gerais que não necessitam nem admitem prova [axiomas]. O
propósito implícito de Frege é tornar possível a axiomatização da
aritmética avançando de um conjunto reduzido de verdades primitivas
a partir do qual pudesse derivar as proposições aritméticas em uma
cadeia de inferência; e nisso segue o espírito de sua
Begriffsschrift.
Kant sustenta a tese de que a matemática assenta em juízos
sintéticos ao contrário do que havia sido pensado pelos analistas, a
saber, que os juízos matemáticos são analíticos.
A partir da proposição 7 + 5 = 12 Kant argumenta no seguinte
sentido. Ela não pode ser analítica porque não é resultado da
aplicação do princípio de contradição ao conceito da soma de sete e
de cinco. Em outros termos, ao analisar o conceito da soma dos dois
51
Idem, p. 93
52
Idem, p. 93
63
números sete e cinco nada é encontrado a não ser a união desses
números. E, portanto, o conceito do número doze não é alcançado pela
análise do conceito da soma daqueles números.
a necessidade do auxílio da intuição para que possamos
passar de um a outro conceito, isto é, partindo do número sete e
adicionando a este uma a uma as unidades correspondentes ao número
cinco, assim poder-se-á alcançar o número doze que é o resultado
do acréscimo (soma) das unidades.
Ao acompanharmos com atenção o relato e a argumentação feitos
por Kant com relação aos seus juízos notamos que ele, por um lado,
reitera a insuficiência dos juízos analíticos para o alargamento do
conhecimento na medida em que nega que a ciência matemática repouse
sobre a base desses juízos e, por outro, se preso à concepção
aristotélica da lógica que realiza a análise conceitual do conteúdo
tanto dos juízos analíticos quanto dos sintéticos com base na
estrutura sujeito-predicado. Não obstante, acentua não a
importância da intuição como também sua necessidade e única
possibilidade de passagem de um conceito ao outro realizando, assim,
sua síntese.
Poder-se-ia, por vezes, ter ora uma impressão de circularidade
na argumentação, ora de ambigüidade de Kant com respeito a essa
concepção lógica. Caberia naturalmente a pergunta. Ora, uma vez
consciente da limitação dos juízos analíticos, e Kant o é, por que
não abandoná-los?
A resposta a esse questionamento legítimo está diretamente
vinculada à noção de a priori que desempenha um papel fundamental na
filosofia de Kant.
64
Os juízos analíticos são a priori, i.e., independentes da
experiência, o que confere necessidade e universalidade para a
constituição do conhecimento que são de importância capital, pois
não se pode querer fundar o conhecimento na experiência que é apenas
contingente.
Kant está em face de um problema intricado, pois que não pode
abrir mão do elemento a priori que lhe fornece e assegura
necessidade e universalidade ao conhecimento, contudo, precisa do
concurso da experiência sem o qual aquele não se desenvolve. E
resulta indubitável que, do ponto de vista kantiano, os juízos
sintéticos a priori são os juízos mais valiosos e importantes para a
ciência.
Grande parte se não toda desvalorização de Kant com respeito
aos juízos analíticos se deve a sua convicção de que eles são
idênticos e, em conseqüência disso, são triviais como deixa ver
nessa passagem:
“Que quantidades iguais somadas a quantidades iguais, ou delas
subtraídas, dêem quantidades iguais, são proposições analíticas, porque e
tenho consciência imediata da identidade | da produção de uma grandeza e da
outra; os axiomas, porém, devem ser proposições sintéticas a priori.”
53
Kant, sabemos, faz repousar a matemática em juízos sintéticos a
priori o que evidentemente, por contraste, significa que os juízos
analíticos não servem ao propósito de alargamento do conhecimento,
isto é, não tornam as proposições matemáticas informativas. Muitos
são os fatores que conduzem Kant a essa perspectiva como, por
53
KANT, I. Crítica da Razão Pura em Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, 1997. A 164/B 205.
65
exemplo, o caráter construtivo de sua filosofia que tem a intuição
como elemento fundamental para essa empresa. É o que deixa claro o
excerto seguinte:
“O conhecimento filosófico é o conhecimento racional por conceitos,
o conhecimento matemático, por construção de conceitos. Porém,
construir um conceito significa apresentar a priori a intuição que
lhe corresponde. Para a construção de um conceito exige-se,
portanto, uma intuição não empírica que, conseqüentemente, como
intuição é um objecto singular, mas como construção de um conceito
(de uma representação geral), nem por isso deve deixar de exprimir
qualquer coisa que valha universalmente na representação, para todas
as intuições possíveis que pertencem ao mesmo conceito.”
54
A idéia subjacente aqui e que joga um papel fundamental na
importância do elemento a priori no pensamento kantiano é a
concepção aristotélica de ciência da qual Kant foi adepto até o fim
de sua vida, qual seja, a ciência é conhecimento universal e
necessário. Portanto, resulta inevitável e indissociável a
vinculação entre o pensamento kantiano e o conceito de a priori.
Diferentemente de Kant, para Frege os juízos analíticos não são
meramente juízos de identidade. Agora, ao derivá-los de leis lógicas
gerais e de definições, proporcionam o surgimento de novas
proposições o que seria improvável partindo da concepção kantiana.
Frege fornece um exemplo
55
de como os juízos analíticos, em oposição
ao que sustentava Kant acerca de sua trivialidade, são proveitosos.
54
KANT, I. Crítica da Razão Pura em Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, 1997. A 713/B 741.
55
Cf. FREGE, J. G. Os Fundamentos da Aritmética – Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito de
Número: Tradução de Luís H. dos Santos. OS PENSADORES, Editora Abril, São Paulo, 1974, § 17.
66
Portanto, se a aritmética é analítica a priori e, pela nova
definição fregeana uma verdade a priori é obtida de leis lógicas,
então a aritmética deve ser derivada de leis lógicas gerais; aqui
reside a natureza de sua aprioridade.
Antes de continuarmos com a exposição, é necessário fazer
referência, no que tange à noção de igualdade
56
aplicada aos juízos,
a dois escritos de Frege que tratam dessa matéria. São eles, a
Begriffsschrift e Über Sinn und Bedeutung.
Frege assume a igualdade, na Begriffsschrift, como uma relação
entre nomes ou sinais de objetos, isto é, a = b quer dizer que os
nomes ou sinais ae btêm o mesmo conteúdo conceitual. Ora, se a
igualdade fosse entendida como uma relação entre objetos
57
,
expressaria a relação de uma coisa consigo mesma, por exemplo, a = a
e, de fato, não constituiria avanço algum em nosso conhecimento. E
aqui reside a trivialidade à qual Kant atribuía aos juízos de
identidade. Contudo, Frege irá solucionar esse problema sobre a
trivialidade apresentada pela relação de identidade em seu artigo
Über Sinn und Bedeutung.
Nesse artigo Frege realiza uma mudança substantiva com respeito
à sua posição na Begriffsschrift ao separar o conteúdo conceitual em
sentido e referência.
58
. Vejamos os exemplos que se seguem:
“A referência de ‘Estrela da Tarde’ e ‘Estrela da Manhã’ seria a
mesma, mas não o sentido.”
59
56
O autor concebe a relação de igualdade no sentido de identidade, isto é, de φ ser o mesmo que λ.
57
É importante ressaltar que Frege muda da posição assumida na Begriffsschrift com respeito à relação de
identidade. Agora sustenta ser a relação não entre nomes ou sinais senão que entre objetos. Não obstante, objeto
aqui tem de ser entendido como o valor de verdade, a saber, o Verdadeiro e o Falso.
58
Frege fornece muitas outras definições para sentido e referência ao longo do artigo. Em nome da brevidade
serão adotados sem, contudo, comprometer a explanação da questão, pensamento e valor de verdade (o
Verdadeiro e o Falso) a fim de designarem, respectivamente, sentido e referência.
67
“’a Estrela da Manhã é um corpo iluminado pelo sol’ é diferente do
da sentença ‘a Estrela da Tarde é um corpo iluminado pelo sol’.
Alguém que não soubesse que a Estrela da Tarde é a Estrela da Manhã
poderia sustentar um pensamento como verdadeiro e o outro como
falso.”
60
Esses exemplos acima citados são analisados, a partir dessa
nova perspectiva do autor, no primeiro, como sendo a referência
tanto de ‘Estrela da Tarde’ como de ‘Estrela da Manhã’ o planeta
Vênus. Porém, o pensamento, isto é, o modo de designar o objeto
Vênus é diferente. Para Frege o segundo exemplo apresenta duas
sentenças que possuem valores cognitivos diferentes, pois que os
modos de designar o objeto (os pensamentos) diferem, todavia, a
referência é a mesma.
É pertinente destacar a relevância da referência, primeiro, na
busca da verdade. Segundo, porque expõe a insuficiência do conteúdo
conceitual das sentenças na tentativa de resolver a questão da
igualdade, o que força a Frege abandonar àquele ponto de vista
defendido na Begriffsschrift. E, em terceiro lugar, que à ciência,
como Frege a entende, é imprescindível captarmos o pensamento, o
sentido das sentenças, mas, contudo, não é o suficiente para o
conhecimento e o estabelecimento das proposições científicas.
Vejamos o que nos diz o autor.
“Mas por que queremos que cada nome próprio tenha, não apenas um
sentido, mas também uma referência? Por que o pensamento não nos é
59
FREGE, J. G. On Sinn and Bedeutung in The Frege Reader, Blackwell Publishers, Ltd. Edited by M.
Beaney p. 152.
68
suficiente? Porque estamos preocupados com seu valor de verdade
(...) É, pois, a busca da verdade, onde quer que seja, o que nos
dirige do sentido para a referência.”
61
Portanto, Frege não apenas supera-se com respeito ao conteúdo
conceitual, na Begriffsschrift, como também à posição de Kant com
respeito à trivialidade que atribuiu às sentenças de igualdade.
“Se, em geral, julgamos que o valor cognitivo de ‘a = a’ e ‘a = b’ é
diverso, isto se explica pelo fato de que, para determinar o valor
cognitivo, é tão relevante o sentido da sentença, isto é, o
pensamento por ela expresso, quanto sua referência, a saber, seu
valor de verdade.”
62
Outra objeção suscitada por Frege contra a presença da intuição
na demonstração matemática advém da natureza dos meros expressa no
parágrafo 10 dos Fundamentos:
“Isto não ocorre aqui, por não serem os meros espaciais e
temporais. As posições na rie dos números o equivalem aos
lugares do espaço. Os números comportam-se também de modo
completamente diferente que os indivíduos, digamos, de uma espécie
animal, pois possuem por natureza uma hierarquia determinada, pois
cada um é formado de maneira peculiar e possui características
peculiares, o que é particularmente evidente no caso do 0, do 1 e do
2.”
63
60
Idem, p. 156.
61
Idem, p. 157.
62
Idem, p. 170.
69
Por serem os números objetos, mas estarem fora dos domínios do
espaço e do tempo, segundo mantém Frege, a concepção kantiana não se
sustenta uma vez que o espaço e o tempo, como sabemos, são as formas
essenciais da intuição, e sobretudo porque para Kant os objetos nos
são dados, nos afetam e são constituídos pelas intuições de espaço e
de tempo como atesta a seguinte passagem.
“A faculdade de intuição sensível é propriamente apenas uma simples
receptividade que nos torna capazes de ser afectados de certo modo
por representações cuja relação recíproca é uma intuição pura do
espaço e do tempo (meras formas da nossa sensibilidade), e que se
denominam objectos, na medida em que o ligadas e determináveis
nessa relação (no espaço e no tempo) segundo leis da unidade da
experiência.”
64
Uma explicação precisa da recusa de Frege em aceitar os juízos
sintéticos a priori propostos por Kant como fundamento da aritmética
é dada por Burge, e resgata em certa medida o ponto central dessa
divergência, a saber, o modo como cada um concebe os fundamentos do
a priori. Diz Burge:
“A aprioridade na matemática para Kant depende da construção
possível envolvendo uma faculdade, intuição pura, que não contribui
diretamente com componentes de verdades, o componente conceitual de
proposições ou pensamentos. Segundo Kant, a prova em aritmética e
geometria não é puramente seqüências de proposições (...) a
justificação de ambas apóia-se em construções imaginativas da
63
FREGE, J. G. Os Fundamentos da Aritmética – Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito de
Número: Tradução de Luís H. dos Santos. OS PENSADORES, Editora Abril, São Paulo, 1974, § 10.
70
intuição pura, que não podem ser reduzidas à seqüência de verdades
(...) não parte de uma ordem eterna de conteúdos conceituais. A
prova mesma essencialmente implica atividade mental e produz
referência essencial, através da intuição, para particulares.”
65
Em síntese, se se parte da epistemologia, assim como o fez
Kant, não se pode prescindir do caráter universal e necessário que o
elemento a priori fornece, todavia, ao adotar leis lógicas para a
definição de verdades a priori, posição assumida por Frege, tem-se a
generalidade lógica como fundamento. Frege ao escolher um critério
lógico para a redefinição dos conceitos kantianos elimina toda e
qualquer referência às categorias epistemológicas pelo menos como se
lhes apresentavam as de Kant à sua época.
Kenny confirma que o novo critério do qual Frege se utiliza a
fim de fornecer um relato lógico e por isso mais rigoroso, dos
conceitos que toma de Kant, supõe a generalidade lógica. “Nós temos
lido”, sustenta Kenny
“esta passagem cuidadosamente se estivermos vendo o que, para Frege,
é a diferença entre a distinção do a priori/a posteriori e a
distinção entre o analítico/sintético. o é mais um assunto de
epistemologia versus gica: é uma matéria de grau de generalidade.
Uma verdade é a priori se ela é provável de leis gerais, sem apelar
aos fatos particulares; uma verdade não é somente a priori, mas
também analítica, se as leis gerais das quais ela é provável são
leis gerais da lógica. Uma lei é uma lei da lógica se ela é
64
KANT, I. Crítica da Razão Pura em Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian. Tradução de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa, 1997. A 494/B 522.
65
BURGE, T. Frege on Apriority, in New Essays on the A Priori. Oxford: Clarendon Press, 2000, p. 19.
71
universalmente aplicável e não restrita às disciplinas
particulares.”
66
O autor tem corroboradas as suas pelas próprias palavras de
Frege sobre a natureza do critério adotado para a redefinição dos
conceitos de Kant.
“Dever-se-ia pensar que as fórmulas numéricas são sintéticas ou
analíticas, a posteriori ou a priori, conforme o sejam as leis gerais sobre
as quais se assenta sua demonstração.”
67
A perspectiva de Frege é oposta à de Kant na medida em que não
pretende construir o conhecimento matemático senão derivar as
proposições aritméticas a partir de leis e definições lógicas, o que
corresponde ao seu projeto logicista. Portanto, para quem como Frege
busca tal objetivo, não o apenas dispensáveis como também
indesejáveis juízos sintéticos a priori na matemática porque a
intuição pressuposta por essa classe de juízos, embora a priori, não
faz parte da lógica.
66
KENNY, Anthony, in FREGE, Penguin Books, England, 1995, p. 57.
72
4.2 - Aprioridade
A diferença crucial da concepção fregeana de aprioridade com
relação à kantiana é, por uma parte, o apelo às leis lógicas gerais
ao menos no que diz respeito à fundamentação da aritmética, uma vez
que em geometria Frege segue Kant ao reconhecer a existência de
verdades que são a priori, mas de natureza sintética, portanto, não
de origem lógica. Por outra parte, o que sustenta a noção de
aprioridade de Kant é o caráter de universalidade e necessidade
alcançado pelo modo como se obtém conhecimento. Portanto, a
concepção kantiana de aprioridade tem um caráter notadamente
epistemológico. Para tal constatação é suficiente recordar a
clássica passagem sobre a distinção entre o conhecimento a priori e
a posteriori exposta na Introdução da Crítica na qual Kant afirma
que todo o nosso conhecimento começa com a experiência, contudo,
isso não equivale a dizer que todo ele seja ou tenha sido derivado
dela (Cf. B1-2).
Kant utiliza-se da contraposição à experiência a fim de definir
o conhecimento como a priori, se independente dela, ou a posteriori,
se extraído da própria experiência
68
. Os conceitos de a priori e a
posteriori, então, são obtidos a partir do modo como obtemos
conhecimento.
Portanto, a concepção de aprioridade de Kant parte de uma
característica epistêmica e fundamenta-se em última instância na
capacidade cognitiva que o sujeito possui para alcançar o
conhecimento e conceder-lhe validade.
67
FREGE, J. G. Os Fundamentos da Aritmética – Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito de
Número: Trad. de Luís H. dos Santos. OS PENSADORES, Ed. Abril, São Paulo, 1974, § 7.
68
Cf. Prolegômenos, 1987. § 5.
73
Burge sustenta em seu ensaio Frege On Apriority exatamente esse
aspecto cognitivo que radica na atividade mental do sujeito,
encontrado em Kant, que lhe serve de base para a sua definição de
aprioridade. Como ressalta Burge
“A cognição a priori é para Kant a cognição cujos recursos
justificacionais derivam puramente da função de capacidades
cognitivas em contribuir para a cognição. O emprego a priori de
conceitos (outras representações) é o emprego que leva uma garantia
de que é independente das experiências sensórias. A cognição a
posteriori é a cognição que é derivativa justificacional, em parte,
do sentido da experiência.”
69
Como sinalizava Frege, sua noção de aprioridade não assenta
em uma divisão baseada em noções epistemológicas, ao menos não como
as de Kant, mas em leis gerais ou ainda em axiomas que não admitem
nem necessitam ser demonstrados.
74
4.3 – Juízos sintéticos a priori em Frege e Kant
Frege mantém uma posição contrária com respeito aos juízos
sintéticos a priori aplicados à matemática uma vez que os aceita
como fundamento apenas e tão-somente na geometria. Aqui ele está de
acordo com Kant, pois as verdades da geometria são a priori e
repousam sobre a intuição. Uma objeção possível e natural seria
perguntar por que Frege admite os juízos sintéticos a priori na
geometria e não na aritmética.
basicamente duas respostas que podem ser oferecidas a tal
indagação. Primeiramente, à tese principal do logicismo que previa a
redutibilidade da aritmética à lógica não conviriam juízos que não
tivessem natureza puramente lógica como é o caso dos sintéticos a
priori que não pressupõem a intuição como dependem essencialmente
dela a fim de construir seus objetos. E, em segundo lugar, a
natureza da geometria que ao contrário da aritmética em que seus
objetos, os números, têm cada um a sua peculiaridade, e que exigem
por isso cada um uma definição particular, os objetos dos quais se
ocupa a geometria, a saber, os pontos, retas, curvas, planos podem
permanecer juntos em um nível homogêneo que é rompido apenas quando
são apreendidos em uma intuição. Vejamos como o próprio autor se
pronuncia acerca dessa questão:
“Vários pontos, retas, planos podem distinguir-se apenas quando
apreendidos simultaneamente em uma intuição. Se em geometria leis
gerais são obtidas a partir da intuição, isto explica-se pelo fato
de que os pontos, retas e planos intuídos não são propriamente
69
BURGE, T. Frege on Apriority, in New Essays on the A Priori. Oxford: Clarendon Press, 2000, p. 18.
75
particulares, podendo por isso valer como representantes de toda sua
espécie. Isto não ocorre no caso dos números: cada um tem sua
peculiaridade. Em que medida um número determinado pode representar
todos os outros, e em que momento sua particularidade se faz valer,
é algo que não se pode dizer de antemão.”
70
Frege no parágrafo 14 dos Fundamentos da Aritmética define o
escopo tanto da aritmética quando da geometria do seguinte modo:
“(...) Do ponto de vista do pensamento conceitual, pode-se sempre
assumir o contrário deste ou daquele axioma geométrico, sem incorrer
em contradições ao serem feitas deduções a partir de tais assunções
contraditórias com a intuição. Esta possibilidade mostra que os
axiomas geométricos são independentes entre si e em relação às leis
lógicas primitivas, e portanto sintéticos. (...) O fundamento da
aritmética não é mais profundo que o de todo saber empírico, mais
profundo mesmo que o da geometria? As verdades aritméticas governam
o domínio do enumerável. Este é o mais inclusivo; pois não lhe
pertence apenas o efetivamente real, não apenas o intuível, mas todo
o pensável. Não deveriam portanto as leis dos números manter com as
do pensamento a mais íntima das conexões?
71
No trecho acima há claramente uma vez mais a indicação do maior
grau de generalidade entre os fundamentos da aritmética e os de
outras ciências, no caso em questão, a geometria. Ao passo que a
esfera, o domínio sobre os quais incidem as leis da geometria que
são o espacial e o intuível, as leis da aritmética se aplicam a todo
o pensável o que lhe confere maior alcance. O acordo que entre
70
Idem, § 13.
71
Idem § 14.
76
Kant e Frege no tocante à geometria é expresso por Burge, ele
salienta que:
“Frege aceita a doutrina de Kant de que a geometria Euclideana é
sintética a priori. Frege entende por ´sintético´ aqui não derivável da
lógica. Ele também mantém com Kant que a geometria repousa na intuição
espacial geométrica.
72
A
filiação de Frege aos juízos sintéticos a priori kantianos na
geometria revela não vários pontos de convergência entre ambos,
ademais, explicita interesses comuns que os ligam mais estreitamente
do que se possa pensar. O que se segue é a tentativa de lançar luz
sobre essa suposição. Para tanto, faremos referências às geometrias
não-Euclidianas e à figura de David Hilbert que serão de valor
inestimável para nosso objetivo.
72
BURGE, T. Frege on Apriority, in New Essays on the A Priori. Oxford: Clarendon Press, 2000, p. 29.
77
4.4 – Frege e Kant e as Geometrias euclidiana e não-Euclidiana
A ciência do espaço, isto é, a geometria, ocupou um papel
central na crise que envolveu os fundamentos da matemática no século
XIX. Uma das obras de Euclides, a mais amplamente difundida, Os
Elementos, se tornou o paradigma de método a ser seguido no âmbito
científico que perdurou até meados deste período.
A geometria euclidiana [geometria plana], como ficou conhecida,
consistia num sistema axiomático-dedutivo do qual, a partir de um
pequeno número de axiomas admitidos sem demonstração por força de
sua auto-evidência, eram derivadas as proposições válidas deste
mesmo sistema. São muitos os traços de sua influência facilmente
identificáveis em obras importantes de diversas áreas como, por
exemplo, o Discurso do Método de Descartes, a Ética de Spinoza
além de seu Tratado da correção do intelecto - e a Óptica de Newton
que seguem o método geométrico.
Porém, excetuados os caracteres lógicos e rigorosos desse
sistema, qualidades que asseguraram durante mais de dois milênios o
forte predomínio no campo da ciência, desde a Antigüidade, uma das
proposições de Euclides atraíra, especialmente para si, a
suspeição de alguns dos contemporâneos de seu autor, no que
concernia a sua principal característica, a saber, sua auto-
evidência.
O V postulado, freqüentemente designado como o postulado das
paralelas, pode ser assim enunciado: Por um ponto C fora de uma reta
dada AB há uma e somente uma paralela para uma reta dada.
Gauss que viveu entre as duas segundas metades dos séculos
XVIII e XIX, considerado o maior matemático de seu tempo,
78
compartilhava igualmente da idéia a respeito da falta de evidência
que pesava em especial sobre essa proposição. Esse foi o motivo que
o levou a admitir que este postulado fosse, realmente, independente
dos demais, além de estimulá-lo a pesquisar a possibilidade da
existência de uma geometria distinta da euclidiana.
Não certeza quanto ao que teria dissuadido a Gauss de
publicar, em vida, o resultado alcançado com suas pesquisas visto
que, em 1820 apresentava parte desenvolvida de uma geometria não
assente no postulado das paralelas. Assim, coube, então, à
descoberta das geometrias não-Euclidianas a Bolyai, Lobachevski e
posteriormente Riemann.
Não é nosso desígnio tratar em pormenor as geometrias não-
Euclidianas, visto não se constituir diretamente em nosso objeto de
análise, entretanto, julgamos ser necessária uma rápida abordagem do
tema, pois será de grande utilidade para nossa exposição não apenas
por manter ligações relevantes como, também, indissociáveis, com o
propósito do presente trabalho.
As geometrias não-Euclidianas vieram à luz como resultado do
esforço por parte de alguns matemáticos em tentar demonstrar o V
postulado de Euclides pela razão já manifestada.
O problema pode ser expresso deste modo: para pôr à prova a
força da evidência do V postulado, seria preciso demonstrá-lo, isto
é, em substituição a este se assumiria um outro ou mesmo outros
postulados que negasse as exigências impostas por Euclides. Se ele
realmente fosse uma derivação lógica e necessária dos demais
axiomas, então, certamente as geometrias que daí pudessem ser
criadas revelar-se-iam inconsistentes logicamente. Portanto,
79
permaneceria indemonstrável e sua auto-evidência por algum tempo
deixaria de ser questionada.
Uma parte desse projeto foi atingida no sentido da expectativa
de Gauss, pois que o V postulado se houve independente dos demais.
Dito de outro modo, por mais de dois mil anos pensou-se tratar de um
teorema quando, em realidade, sempre fora um axioma.
Além disso, o fato decisivo a mergulhar a matemática em uma
crise que exigia um processo de reavaliação dessa ciência e,
conseqüentemente, impunha urgente reformulação acerca de seus
alicerces, foi o resultado obtido com a negação do V postulado por
outros distintos. A partir disso, surgiram novas geometrias,
portanto, geometrias não-Euclidianas, que apresentavam uma inovação
demolidora. Eram, em suas estruturas internas, logicamente
consistentes
73
.
Eis o primeiro ponto a ser considerado imediatamente ao
resultado alcançado: as geometrias não-Euclidianas são logicamente
tão válidas quanto à euclidiana. Portanto, é legítimo afirmar que a
última não é logicamente necessária, pois que as primeiras são a
prova concreta e irrefutável, ao menos no aspecto lógico, de que o
contrário não redunda em contradição alguma. Aqui joga um papel
fundamental a distinção kantiana de possibilidade real e lógica e em
particular a diferença entre pensar e conhecer
74
. Analogamente e com
base nisso, podemos dizer que as geometrias não-Euclidianas são
matematicamente possíveis, contudo, fisicamente (realmente) pouco
73
A garantia de consistência lógica interna de quaisquer sistemas formais só logrou êxito até o aparecimento dos
teoremas de Gödel. Desde então, a crença na coerência desses sistemas, ficou abalada e os cientistas tiveram de
realizar um esforço, a partir de modelos de cálculo, com o intuito de evitar contradições em seu interior.
74
Cf. B XXVI.
80
prováveis
75
. E na opinião de Friedman, as geometrias não-Euclidianas
não refutam a concepção transcendental da filosofia kantiana.
“...a existência de sistemas consistentes da geometria não-
Euclidiana não somente falham decisivamente em refutar a concepção
da matemática, e realmente conforma perfeitamente com aquela
concepção e de fato proporciona confirmação rigorosa à perspectiva
de Kant. Pois a existência de tais sistemas mostra precisamente que
o geometria Euclidiana não é logicamente necessária e que de fato
espaços logicamente possíveis que o satisfazem os axiomas de
Euclides
76
...”
O aparecimento das geometrias não-Euclidianas abalou a
convicção e a crença não primeiramente na possibilidade, mas, antes,
na impossibilidade de uma geometria que não fosse à de Euclides.
Saccheri seguramente foi um a sucumbia à forte ascendência da
geometria euclidiana.
A Análise, que havia pautado seu procedimento no rigor
demonstrativo da geometria, seus fundamentos comprometidos. Se o
poder intuitivo advindo da auto-evidência da verdade das proposições
geométricas era o elemento que servia de auxílio aos matemáticos, e
essa mesma auto-evidência mostra-se duvidosa, então, é forçoso
reconsiderá-lo, por um lado, ao mesmo tempo em que, por outro,
empreenda-se a busca de bases mais sólidas e seguras a fim de que
possa assegurar sua reconstrução.
Todo esse movimento culmina inevitavelmente não no abandono
da intuição como fundamento para a matemática, bem como e,
75
A bem da verdade é necessário dizer que tal posição pode ser contestada a medida que dentro de alguns
modelos que tenham as características de uma geometria não-Euclidiana, realizar experiências fisicamente
81
sobretudo, a sua total extirpação dessa ciência. O que acaba por
deixa em suspenso o estatuto da geometria como ciência.
Este é, num plano geral, o contexto em que esta verdadeira
revolução teve lugar, e nos cabe a partir de agora realizar a
abordagem e a análise das conseqüências no trabalho de alguns
filósofos ora em sentido prospectivo como é o caso de Frege, ora em
retrospectiva com referência a Kant.
Frege participou ativa e efetivamente do movimento que impôs à
intuição seu expurgo total da aritmética. Basta que retrocedamos a
1879 e 1884, anos das publicações da Begriffsschrift e dos Die
Grundlagen der Arithmetik respectivamente, para constatarmos que
tais obras tinham como objetivo fundamentar a aritmética em bases
puramente lógicas.
No que respeita à geometria, não não se verifica o mesmo
empenho por parte de Frege, mas, pelo contrário, defende de maneira
por vezes intransigente a intuição como base para essa ciência, na
medida mesma em que se alinha à posição kantiana que a faz assentar
sobre juízos sintéticos a priori.
Uma abordagem açodada que, por sua natureza, oferece o risco
iminente de cometer desvios quaisquer e realizar, por isso,
interpretação do pensamento fregeano, até certo ponto é
compreensível, todavia, não aceitável a hipotética afirmação de que
Frege assume um comportamento ambíguo frente à filosofia
transcendental kantiana. A diminuição dessa impressão meramente
superficial é proporcional ao avanço na leitura dos Grundlagen até
atingir sua culminância no parágrafo 89 em que o autor declara que
Kant revelou a verdadeira natureza da
geometria ao afirmar que esta
prováveis.
82
ciência fundamenta-se em juízos sintéticos a priori. Aqui, talvez, a
passagem mais emblemática e representativa que, em essência, revela
sim, sua dupla postura com relação aos juízos analítico e sintético,
destacando o primeiro como a condição sem a qual a aritmética não
atingiria o mínimo rigor em suas demonstrações e, como temos
destacado, em franca discordância com Kant; limitando o último ao
domínio da geometria apenas e nisso de pleno acordo com este. Eis a
declaração de Frege:
“...Para aludir aqui apenas ao mais imediato, vejo em Kant o
grande mérito de ter feito a distinção entre juízos sintéticos e
analíticos. Ao chamar as verdades geométricas de sintéticas e a
priori, revelou sua verdadeira natureza. E vale repeti-lo ainda
uma vez, por ser algo ainda freqüentemente ignorada. Se Kant errou
no que concerne à aritmética, isto não afeta essencialmente, creio
eu, seu mérito. Importava-lhe a existência de juízos sintéticos a
priori; que eles apareçam apenas na geometria, ou também na
aritmética, é de menor importância”
77
.
É de fundamental importância, para nossa exposição, destacar a
ênfase dada pelo autor no que respeita à verdadeira natureza das
verdades da geometria, i.e., seu caráter sintético a priori que, é
dito com certa assertividade, tem sido esta natureza, freqüentemente
ignorada.
Portanto, não lugar à dúvida sobre o consenso entre Kant e
Frege no que concerne aos juízos sintéticos a priori na geometria.
Mas por que razão Frege adere à concepção kantiana de juízos
76
FRIEDMAN, Michael, Kant and the Exact Sciences, HARVARD UNIVERSITY PRESS, 1992 p. 100.
77
FREGE, J. G. Os Fundamentos da Aritmética – Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito de
Número: Tradução de Luís H. dos Santos. OS PENSADORES, Editora Abril, São Paulo, 1974, § 89.
83
sintéticos a priori na geometria, e com qual finalidade? E isso não
é tudo: o que faz com que Frege defenda veementemente essa posição
contra as geometrias não-Euclidianas?
Alcançaremos presumivelmente alguns subsídios para tornar
possível ao menos cogitar respostas a tais questionamentos a partir
do momento que analisarmos a concepção de geometria desses autores.
Quando tratarmos de geometria tanto em Kant como em Frege temos
de ter presente que nos reportamos a um único e mesmo universo de
discurso. A geometria euclidiana.
Não é em absoluto fortuito o fato de compartilharem dessa
concepção de ciência, pois outros elementos divididos entre
conceitos e interesses que os unem a ela; essa ligação é mais afim
do que, parece, pudesse ser apontada.
Comecemos por apontar a concordância existente no que concerne
à natureza e a definição do conceito de axioma.
Na Lógica Kant estabelece uma clara distinção entre dois
princípios que possuem naturezas distintas. Ao primeiro cabe a
característica intuitiva, ele o chama de axioma (axiomata) e ao
segundo a natureza discursiva (acroamas). (Cf. KANT, I. Lógica, # 34
e # 35, A 172) Frege, por seu turno, oferece algumas definições para
esse conceito no transcurso de sua produção filosófica, as quais
acabaram por sofrer algumas transformações.
No ano de 1899 é publicada a obra Grundlagen der Geometrie de
David Hilbert, período que marca o início de uma série de artigos
que constituíram até 1906, a controvérsia travada por Frege e
Hilbert cuja concepção formalista, desse último, desempenhará papel
relevante no campo da matemática. Esta característica formal que
Hilbert aplica a estas ciências (matemática e geometria) é que
84
animará a dissensão entre ambos. Com o advento das geometrias não-
Euclidianas muda-se a forma de definição de alguns conceitos tais
como axioma, que perde as suas características de auto-evidência e
de verdade. Hilbert com o seu formalismo deixa bem claro não ter
mais preocupação alguma a esse respeito, ele o concebe apenas como
mera hipótese, como simples ponto de partida para o seu raciocínio.
Segundo Hilbert, um axioma não é nem verdadeiro e nem falso,
interessa-lhe tão-somente seu aspecto formal, e é justamente sobre
este ponto em que tornam-se as perspectivas fregeana e hilbertiana
inconciliáveis. A Frege jogam um papel decisivo a verdade, o
conteúdo e a intuição para assegurar a objetividade do conhecimento,
a Hilbert não. Portanto, entram em choque, inevitavelmente, a
concepção semântica de Frege e o aspecto meramente sintático
(formal) de Hilbert.
Na primeira série do On the Foundations of Geometry Frege
oferece a seguinte definição de axioma.
“Tradicionalmente, o que eu chamo de um axioma é um pensamento cuja
verdade é certa sem, todavia, ser provável por uma corrente de
inferências lógicas”.
78
Em comparação à perspectiva kantiana sobre a natureza intuitiva
dos axiomas, hão de ser notados dois pontos com respeito a ela: um
que lhe é comum e outro distinto. No primeiro, Frege subscreve a
natureza intuitiva do axioma, pois que a certeza de sua verdade não
depende do processo discursivo representado por uma cadeia de
inferência lógica. Portanto, é auto-evidente. O novo aspecto que
85
parece apontar para um caminho diverso do de Kant, deixa-se
apreender no momento em que o autor identifica o axioma com um
pensamento (Gedanke).
Sabemos da importância central desempenhada pela intuição na
filosofia transcendental de Kant. No que tange à geometria, a
intuição pura do espaço, base sobre a qual essa ciência assenta, é
abordada na Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura (Cf.
A25/B39). Nessa seção o autor preocupa-se em destacar a natureza
intuitiva, pura e a priori do espaço.
1) se pode ter a representação de um espaço único, o que está em
perfeita consonância com o fato de a intuição ser o
conhecimento imediato de um objeto singular;
2) Não existem outros espaços, mas partes do mesmo e único espaço;
3) uma anterioridade do todo com relação às partes, i.e., as
partes desse espaço não podem ser pensadas senão nele. Percebe-
se claramente, por meio da característica elencada por Kant,
explícita a proposição aristotélica de que o todo é maior do
que sua parte, que reaparece no quinto axioma de Os elementos;
4) O espaço é uno em sua essência, e a eventual diversidade que se
possa apresentar é resultado de limitações feitas nesse espaço
que é uno.
Ora, quando construímos magnitudes tais como retas, pontos,
comprimentos, áreas, ou seja, quando representamos na intuição esses
objetos, nós como que limitamos partes desse espaço uno que é
anterior a essas mesmas partes. É em que se configura, em termos
78
FREGE, J. G. On Foundations of Geometry: First Series, in Collected Papers on Mathematics, Logic, and
86
kantianos, como a condição de possibilidade dos objetos geométricos.
Em outros termos, por meio da intuição a priori do espaço é que nos
é dado o conteúdo, a parte material, que nos possibilita empreender
a construção de conhecimento válido e objetivo no campo da
geometria. É o que confirma Friedman nessa passagem:
“Finalmente, portanto, a reivindicação de Kant da prioridade para a
intuição singular do espaço repousa sobre nosso conhecimento da
geometria. Nossa apreensão cognitiva da noção de espaço é manifesta,
absolutamente, em nosso conhecimento geométrico
79
.”
É notória a recepção negativa a que Frege expõe às geometrias
não-Euclidianas. Com certo descrédito, mas, todavia, tolerante, faz
referência, nos Grundlagen, à geometria não-Euclidiana de Riemann
(geometria esférica na qual o espaço possui curvatura constante
positiva). Nesse segmento de sua obra Frege destaca o caráter
eminentemente lógico dessa geometria e o traço peculiar que divide
com as demais, a saber, ser pouco ou nada intuitiva. Não é
absolutamente intuitivo admitir que a distância mais curta não seja
mais uma reta, mas uma curva, como as geodésicas da geometria
Riemanniana. A mesma falta de evidência da qual, curiosamente, o V
postulado de Euclides, por assim dizer, padecia. Frege, porém,
mantém-se fiel à geometria euclidiana ao afirmar ser este espaço o
único intuível. Eis um dos traços distintivos entre ambas.
“...Apenas o pensamento conceitual pode de certo modo, desembaraçar-
se deles, admitindo, digamos, um espaço de quatro dimensões ou com
Philosophy, p. 273.
79
FRIEDMAN, Michael, Kant and the Exact Sciences, HARVARD UNIVERSITY PRESS, 1992 p.70.
87
medida positiva de curvatura. Tais considerações não são
absolutamente inúteis; mas abandonam completamente o terreno da
intuição. Quando também neste caso recorremos a ela, trata-se sempre
da intuição do espaço euclidiano, o único de que podemos fazer
imagem...”
80
Como anteriormente afirmado
81
, outros interesses que ligam
Frege e Kant à geometria euclidiana. Kant necessita da intuição a
priori manifesta nas duas formas da sensibilidade - espaço e tempo -
porque é através dela que nos é dado o múltiplo das sensações o
conteúdo, a parte material que se constituirá em conhecimento
válido e objetivo. Frege, por outro lado, também defende uma certa
espécie de conteúdo como parte indispensável a obtenção de
conhecimento, contudo, um conteúdo de natureza proposicional.
Doravante iremos mostrar como se deu a transformação do
conceito de axioma no pensamento fregeano. Nos Grundlagen der
Arithmetik Frege identifica axioma com as leis gerais que não
necessitam e nem exigem demonstração. É importante chamar a atenção
para o fato de que o autor ainda não havia realizado a distinção
entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung) o que ocorrerá em
1892.
No artigo On Euclidean Geometry escrito entre 1899 e 1906, tão
conciso quanto incisivo, Frege recrudesce totalmente a relação pouco
cordial que mantinha com as geometrias não-Euclidianas, tornando
nítido cada vez mais a mudança de eixo temático pela qual passa sua
filosofia. Em uma palavra, Frege começa a descolar-se do âmbito da
lógica para o campo da semântica e com isso abre caminho para novas
80
FREGE, J. G. Os Fundamentos da Aritmética – Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito de
88
áreas de estudo na filosofia, notadamente, as filosofias analítica e
da linguagem. Por outro lado, afasta-se de Kant, pois que a
semântica, até o ponto em que investigamos, parece ser estranha a
esse pensador.
Isso tudo talvez se configure em pontos obscuros se não
acompanharmos não propriamente o abandono por parte de Frege de
algumas de suas concepções, mas a mudança na direção de suas
pesquisas, se não atentamos para os acontecimentos importantes que a
cercaram.
A descoberta de uma contradição no sistema lógico das
Grundgesetze de Frege em 1902, por parte de Russell, constitui-se
num fato de primeira ordem e decisivo para os rumos do logicismo. É
possível detectar, por meio do agradecimento de Frege a Russell ao
reconhecer seu achado, como se fosse, por assim dizer, o canto do
cisne de seu projeto logicista. (Cf. BEANEY, Michael. The Frege
Reader, pp. 279-289)
É possível sustentar que a partir de então, acentua-se por
parte de Frege, a inclinação em direcionar seus interesses
filosóficos, desenvolvidos em 1892 com o artigo Sinn und Bedeutung,
para o campo da semântica, conquanto seja possível identificar um
movimento nesse sentido nos Grundlagen e até mesmo na
Begriffsschrift. Portanto, não é sem mais que se verifica tal
deslocamento.
Voltemos a considerar algumas das passagens desse artigo acerca
da geometria euclidiana a fim de que possamos confirmar nossa
suposição segundo a qual Frege começa a ter de forma mais insistente
Número: Tradução de Luís H. dos Santos. OS PENSADORES, Editora Abril, São Paulo, 1974, § 14.
81
Ver pp. 75-76 dessa dissertação.
89
e consistente interesses de natureza semântica, sobretudo a partir
da constatação de inconsistência de seu logicismo.
“Todavia não é a própria sentença que realmente nos interessa quando
falamos, mas o sentido ou o conteúdo que associamos a ela e que
desejamos comunicar. Porque o sentido mesmo não pode ser percebido
pelos sentidos, temos a necessidade, a fim de comunicar, de algo
para nos ajudar que possa ser percebido. Assim a sentença e seu
sentido, o perceptível e o imperceptível, estão relacionados”
82
.
“Quem sustenta que a geometria euclidiana é verdadeira atribui um
sentido a cada um de seus teoremas: ele considerará cada teorema
como expressando uma verdade, ele, além disso, exigirá que reconheça
que os conceitos ‘ponto’, ‘linha’, ‘plano’ tenham sentido. Na
geometria euclidiana, a certas verdades tem tradicionalmente sido
concedido o status de axiomas”.
83
Note-se que no primeiro trecho, Frege se expressa
conceitualmente de maneira diferente. Põe acento no sentido, no
conteúdo da sentença que tem de ser comunicados; associa à sentença
um caráter perceptível e ao sentido a natureza de ser imperceptível.
Frege em seu artigo Gedanke de 1918 utiliza-se de uma metáfora que
retoma no essencial esta passagem.
“...O pensamento, em si mesmo é imperceptível pelos sentidos, veste-se no
traje perceptível de uma sentença, e deste modo, somos capazes de
apreendê-lo. Dizemos que uma sentença expressa um pensamento...”
84
82
FREGE, J. G. On Euclidean Geometry in Posthumous Writings, Basil Blackwell, 1979. p. 166.
83
Idem, p. 168.
84
FREGE, J. G. Thought in The Frege Reader, Blackwell Publishers, Ltd. Edited by M. Beaney p. 328
90
Implicitamente, na segunda citação, Frege faz referência ao
modo como Hilbert entendem ser um axioma, i.é., como vimos, nem
verdadeiro nem falso. Portanto, do ponto de vista fregeano, algo sem
sentido, sem conteúdo.
Nos dois últimos fragmentos Frege sinais inequívocos de sua
postura favorável à geometria euclidiana e, evidentemente, contrário
às geometrias não-Euclidianas. Pode-se perfeitamente entender, com
um certo grau de liberdade na linguagem, que quando Frege diz
utilizar-se tradicionalmente de um determinado conceito da
geometria, ele quer significar que tal conceito geométrico foi usado
“euclidianamente”.
Frege faz uso da parábola dos dois senhores proferida por Jesus
Cristo no Sermão da Montanha. Aqui fica expresso o auge de sua
intransigência e radicalismo na medida em que impõe a essa passagem
a estrutura de uma das leis lógicas do pensamento, isto é, a do
terceiro excluído. Dá-nos a crer que em nenhum momento admite a
possibilidade da existência dos dois estudos ou sistemas acerca do
espaço e suas propriedades. Frege assume um tom excludente como
respeito a essas geometrias: ou uma ou a outra é verdadeira, mas não
as duas.
“Nenhum homem pode servir a dois senhores. Não pode servir a ambas a
verdade e a falsidade. Se a geometria euclidiana é verdadeira, então
a geometria não-Euclidiana é falsa, e se a geometria não-Euclidiana
é verdadeira, então a geometria euclidiana é falsa”
85
.
85
FREGE, J. G. On Euclidean Geometry in Posthumous Writings, Basil Blackwell, 1979. p. 169.
91
Frege faz uma vez mais alusão à postura formalista de Hilbert
no que tange aos axiomas, a saber, somente se se trata da geometria
como uma não ciência tal como a astrologia é que se pode encarar as
proposições euclidianas como algo desprovido de sentido, i.é., nem
falsas nem verdadeiras, como meras hipóteses. E, ao final e ao cabo
desse trecho, Frege parece ter-se esquecido que ele próprio foi o
responsável direto por uma revolução radical em alguns aspectos
fundamentais envolvendo o edifício da lógica aristotélica, mais
longevo do que a geometria euclidiana. Guardadas todas as
proporções, aqui Frege iguala sua reivindicação segundo a qual por
ter mais de 2000 anos a geometria mantivera seu prestígio
inabalável, ao argumento de Kant com relação à lógica aristotélica.
Vamos a ele.
“Ousamos a tratar Os Elementos de Euclides, que tem exercido domínio
inquestionável por 2000 anos, como temos tratado a astrologia? Isto
é, somente se nos atrevermos a isso que podemos colocar os axiomas
de Euclides como proposições que não são nem falsas nem duvidosas.
Neste caso a geometria não-Euclidiana terá de ser contada entre as
pseudociências, para o estudo das quais juntamos ainda a algo de
insignificante importância, mas somente como uma curiosidade
histórica”
86
.
Na disputa com Hilbert Frege ganha o aporte de um crítico do
pensamento hilbertiano de primeira hora e de grande envergadura
científica. Poincaré em resenha que leva o título Revisão dos
Fundamentos da Geometria de Hilbert expressa manifestamente a mesma
posição de Frege com respeito à falta de sentido e significado dos
92
termos empregados pelo autor que, com isso, demonstra não ter
realmente preocupação alguma com o aspecto semântico da geometria,
mas tão-só com sua estrutura formal, com sua estrutura sintática.
Nestes três trechos é possível identificar marcas muito próprias e
peculiares da argumentação fregeana.
“Desta maneira, o Professor Hilbert quis, por assim dizer, pôr os
axiomas numa forma tal que pudessem ser aplicados por uma pessoa que
não percebesse o seu significado, por nunca ter visto nem um ponto,
nem uma reta ou um plano. De acordo com ele, deveria ser possível
reduzir o raciocínio a regras puramente mecânicas, e para criar uma
geometria deveria bastar aplicar estas regras cegamente aos axiomas
sem saber o que os axiomas significam”.
87
“Se o conseguirmos, poderemos estar seguros que nada foi esquecido.
Pois a nossa máquina não pode trabalhar senão de acordo com as
regras da gica para as quais construídas; ignora o vago instinto a
que chamamos intuição”.
88
“Se considerarmos três diâmetros da mesma esfera existentes num
mesmo plano diametral não teremos qualquer razão para dizer que um
deles está entre os outros dois. A palavra entre” não tem agora
qualquer sentido, e os axiomas da ordem ficam naturalmente
excluídos”.
89
Tomando por base os dois capítulos introdutórios que serviram
de estágios necessários para que pudéssemos desdobrar a proposta
86
Idem, p. 169
87
POINCARÉ, H. Suplemento in David Hilbert. Tradução baseada na 7ª ed. de Grundlagen der Geometrie,
Gradiva Publicações Ltda. , Portugal, 2003, pp. 318.
88
Idem. pp. 318-319
93
dessa dissertação, atingimos com esse terceiro capítulo o término de
nosso trabalho, esperando, mais do que tudo, ter alcançado de forma
integral o objetivo por nós postulado.
Partindo do que foi tratado por nós ao longo desses três
capítulos, constatamos a importância direta da influência do
pensamento de Frege como uma das fontes para a criação e
desenvolvimento da filosofia contemporânea. Embora não possamos
afirmar categoricamente que o seu debate com Kant tenha sido a
condição sem a qual a ascendência ora aludida sobre a filosofia de
nossos dias pudesse se efetivar, é fato inquestionável a presença e
a atuação do pensamento kantiano ainda hoje. Não dúvidas de que
Frege representa um elo, uma ponte através dos quais as filosofias
dos séculos XVIII e XIX não apenas se comunicam como, também, se
reaproximam o que permite sempre uma nova análise à luz do passado,
condição sem a qual não há avanço no âmbito do conhecimento.
Um ponto de partida no sentido de verificar a extensão do
pensamento kantiano em nossos dias, vale dizer, é feito Stenius (Cf.
Wittgenstein´s Tractatus: a Critical Exposition of its main Lines do
Thought). O autor sustenta a seguinte proposição: em
Wittgenstein, assim como em Kant, a tendência de estabelecer um
limite. Contudo, no autor do Tractatus o objeto era a linguagem,
isto é, sobre o que pode ser dito, ao passo que em Kant havia a
necessidade de impor limites ao conhecimento, a saber, o que podemos
conhecer?
Outros fatos podem ser aduzidos a essa discussão, como, por
exemplo, a crítica de Quine a concepção de analiticidade de Frege
89
Idem. p. 322
94
podem remontar a Kant. Em seu artigo Dois dogmas do Empirismo, uma
referência obrigatória quanto o assunto enfocado é a analiticidade,
o autor expõe à crítica contundente a tentativa em definir o
conceito de analiticidade com base na sinonímia, pois que todas as
teorias de sinonímia são insuficientes para tal objetivo. O que
confirma que a filosofia foi é e sempre será construída tendo como
elementos cardinais o debate, o confronto e a análise de suas
principais questões.
95
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato de ter-se mantido ligado à filosofia kantiana, e sua
aceitação dos juízos sintéticos a priori na geometria, como vimos, é
suficientemente consistente e permite-nos levantar a tese de que
Frege tinha uma preocupação epistemológica assim como Kant, e que
seu objetivo não seria apenas fundamentar a aritmética sobre a
lógica.
Notemos que comparativamente à empresa de Kant não cabem
dúvidas de que o intento de Frege é bem mais modesto, contudo, à
medida que tenta dar fundamentos lógicos à aritmética, isto é,
assegurar a validade e legitimidade de tal ciência, Frege em certa
medida, estaria sim ocupado com uma questão de cunho epistemológico.
Pode-se afirmar também que não rompe definitivamente com o
pensamento de Kant, ainda que imponha a ele duras críticas e
correções relevantes, afora o fato de inaugurar uma área
completamente nova dentro do âmbito filosófico: a filosofia
analítica. Frege representa em alguns aspectos uma continuação do
projeto kantiano, o fato mesmo de ter escolhido a filosofia de Kant
para, num primeiro momento, criticá-la e depois segui-la. Nos
Grundlagen Frege critica vários pensadores inclusive J. S. Mill. É
legítimo pensar que se Frege não tivesse simpatia pela filosofia de
Kant - e possuímos um testemunho disso nessa mesma obra - seria
suficiente dispensar o mesmo tratamento a Kant que deu aos outros.
No entanto, é sabido que a controvérsia de ambos os filósofos
concentra-se na questão de quais juízos fundamentam a aritmética que
são, para Frege, os analíticos e para Kant os juízos sintéticos a
96
priori; além do fato de haver total concordância com respeito à
aplicação desses últimos na esfera da geometria.
O autor T. Burge é um dos que sustentam que Frege tem uma
concepção epistemológica (Cf. Frege on Apriority) e chega a traçar
um paralelo com Kant ao evocar o parágrafo 3 dos Fundamentos no qual
Frege realiza a redefinição dos conceitos kantianos. Seguindo a
mesma linha de análise encontramos P. Kitcher (Cf. Frege´s
Epistemology) que afirma ver em Frege como portador de um legado de
natureza epistemológica que de alguns de seus predecessores. J.
Weiner por sua vez (Cf. Frege and the Linguistic Turn) um projeto
epistemológico fregeano na medida mesmo em que busca a fonte da
justificação de nosso conhecimento acerca das verdades aritmética.
Uma voz discordante nesse debate é P. Benacerraf (Cf. The Last
Logicist). Sua posição revela que Frege perseguia o objetivo de
analisar possíveis relações metafísicas entre as proposições
matemáticas.
Obras e condições históricas muito estão dadas, resta-nos
perscrutar nessas fontes e extrair razões convincentes o suficiente
a fim de reafirmar ou refutar as teses quaisquer que possam ser
suscitadas à luz, sobretudo da produção desses autores.
97
6 - BIBLIOGRAFIA
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