Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Dança com Hora Marcada:
uma etnografia da atração social em bailes de salão no Rio de Janeiro
Virna Virgínia Plastino
Rio de Janeiro
Agosto 2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
Dança com Hora Marcada:
uma etnografia da atração social em bailes de salão no Rio de Janeiro
Virna Virgínia Plastino
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de mestre em
Antropologia Social.
Orientadora: Prof. Dra. Antonádia Borges
Rio de Janeiro
Agosto 2006
ads:
iii
Dança com Hora Marcada:
uma etnografia da atração social em bailes de salão no Rio de Janeiro
Virna Virgínia Plastino
Orientadora: Antonádia Borges
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social
Aprovada por:
__________________________________
Profª. Antonádia Borges (orientadora)
__________________________________
Profª. Aparecida Vilaça (PPGAS/MN/UFRJ)
__________________________________
Profª. Lygia Sigaud (PPGAS/MN/UFRJ)
__________________________________
Profª. Sonia Maria Giacomini (PUC/RJ)
__________________________________
Prof. Federico Neiburg (PPGAS/MN/UFRJ – suplente)
__________________________________
Prof. Marcelo Carvalho Rosa (IFCH/UFF – suplente)
Rio de Janeiro
Agosto de 2006
iv
Plastino, Virna Virgínia.
Dança com Hora Marcada: uma etnografia da atração social em bailes de salão no
Rio de Janeiro/
Virna Virgínia Plastino.
Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional – PPGAS, 2006.
xi, 144p.
Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional.
1. Etnografia 2. Gênero 3. Velhice 4. Aprendizado social da dança
5. Técnica corporal
(Mestre. UFRJ/PPGAS)
I. Título.
v
RESUMO
DANÇA COM HORA MARCADA:
UMA ETNOGRAFIA DA ATRAÇÃO SOCIAL EM BAILES DE SALÃO
NO RIO DE JANEIRO
Virna Virgínia Plastino
Orientadora: Antonádia Borges
Resumo da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social.
Este trabalho é uma etnografia sobre as relações de interdependência instituídas em
torno da dança de salão em clubes sociais localizados no centro e na zona norte da cidade do
Rio de Janeiro. Ao longo dessa dissertação, procurei explorar diversas categorias acionadas e
articuladas de diferentes modos por homens e mulheres, freqüentadores antigos e recém-
chegados aos bailes. Gênero, velhice, juventude, classe social, raça e etnia são aqui
conjugados e significados como atributos sociais que, combinados com outros elementos,
figuram de forma cambiante na escala hierárquica dos privilégios das ‘sociedades dos salões’.
O movimento etnográfico proposto por aqueles que dançam levou-me a elencar uma
profusão de teorias sociais em variação contínua. Essas teorias, inelutavelmente articuladas às
suas práticas, respondem pelas mudanças efetuadas nos códigos de etiqueta, nos gestos
coreográficos, nas cadências musicais e nos valores que regulam a vida e os comportamentos
dentro dos salões. Com o intuito de fazer ver, nessas figurações, quais condições unem os
‘bailantes’, os atraem socialmente e os tornam indivíduos reciprocamente orientados e
dependentes, fui conduzida a mostrar a multiplicidade de pontos de vista e suas formas de
encadeamento, procurando restituir a riqueza social do universo dos chamados tradicionais
bailes de dança de salão.
Palavras-chave: etnografia, gênero, velhice, aprendizado social da dança, técnica corporal
Rio de Janeiro
Agosto 2006
vi
ABSTRACT
DANCING BY THE HOUR:
AN ETHNOGRAPHY OF SOCIAL ATTRACTION IN BALLROOM DANCES IN
RIO DE JANEIRO
Virna Virgínia Plastino
Supervisor: Antonádia Borges
Abstract of a Master’s dissertation presented to the Post-Graduate Programme in Social
Anthropology of the National Museum at the Federal University of Rio de Janeiro, as part of
the requirements for the title of Master in Social Anthropology.
This is an ethnography about the relations of interdependence constituted through
ballroom dancing in social clubs, located in the Centre and North Zone of Rio de Janeiro.
Through this dissertation I attempted to explore the diverse categories used and articulated in
different ways by men and women, old and recent participants of the ballroom dances. Here,
gender, old-age, youth, social class, race and ethnicity are conjugated and signified with social
attributes, which when combined with other elements, figure in a changeable form in the
hierarchical scale of privileges of the ‘ballroom societies’.
The ethnographic movement proposed by those who dance led me to list a profusion
of social theories in continuous variation. These theories, inevitably articulated to the
practices, respond through changes made in the codes of etiquette through choreographic
gestures, musical cadences and in the values that regulate life and behaviour within the
ballrooms. With the aim of eliciting these figurations the conditions that unite the ‘dancers’,
attract them socially and turn them into reciprocally guided and dependent individuals –, in
order to restitute the social richness of the universe of so-called traditional ballroom dances, I
was taken to show the multiplicity of points of view and their connections.
Key-words: ethnography, gender, old-age, social learning of dance, body technique
Rio de Janeiro
August 2006
vii
Para Mário
viii
Agradecimentos
Ao Ricardo, por ter-me acompanhado a cada passo, marcado e improvisado, agradeço
por sua presença militante em minha vida.
À minha amiga e orientadora Antonádia que me guiou nesses bailes por onde andei,
agradeço por seu inabalável entusiasmo, pelo frescor da antropologia que nos inspira (falo em
nome das aguerridas Antonetes), pela amizade, vizinhança e carnavais; meu muito obrigada
pela confiança compartilhada.
Às grandes amigas aqui conquistadas, sabem que: “eu sem você(s) não tenho por
quê (...)”. Juli, Cami e Aninha, las chicas mais cariocas da ilha, agradeço por tantas melodias
ensaiadas, pelo riso frouxo do nosso desafino, por nossas idas e vindas sempre amparadas
pela certeza do carinho e admiração que nos unem. que é para celebrar a turma mais
querida, PPGAS 2004, aqui vai meu especial agradecimento aos adorados amigos e
companheiros Zé, Chico, Salvador, Flávio e Julia por todas as mesas de bar nas quais nos
reunimos, pelo Coral Gardens em nossas vidas e por sua força atrativa. E por falar no coral,
um retorno a las chicas e al chico de forma mais melódica (puxando para o brega), nunca é
demais: Camila, a caçula mais incisiva da turma, obrigada pelo seu incansável incentivo,
pelas atenciosas e criteriosas leituras dos textos produzidos em suas várias etapas, pela ternura
das suas palavras e por receber-me de forma sempre acolhedora; agradeço por sua mansidão e
fortaleza inspiradoras. Julieta, a primogênita, mais conhecida como la hija del rigor, agradeço
por trazer o Rio de la plata para o de Janeiro, e desviar a corrente das águas; agradeço pela
cumplicidade, pelo companheirismo, pelas milongas no Jurubeba, e por traduzir-me sempre
de forma simples e brilhante a Antropologia e suas magias. Ana, a filha única das quatro
irmãs, agradeço pelo aconchego da morada, por estar presente de forma veemente e discreta
em minha vida, por povoar o nosso dia-a-dia com sua leveza e densas “conexões”; obrigada
por nutrir a nossa amizade. Ao Chico, agradeço por sua imbatível disposição em agregar-nos
ao longo desses dois anos e meio. Em especial, nessa última etapa de escrita, agradeço-lhe
pelo afeto, pela atenta leitura e estímulo a concluir este trabalho.
Ao professor Marco Antônio da Silva Mello, do IFCS/UFRJ, agradeço pelo incentivo
durante a graduação e por ter-me presenteado com uma das suas mil e uma pululantes idéias
de pesquisas de campo, a qual pude levar adiante durante o mestrado. Obrigada pela
ix
oportunidade de trabalho concedida, que me despertou para os temas desenvolvidos nessa
dissertação.
Obrigada ao amigo e professor Marcelo Rosa, da UFF, por acompanhar passo a passo
esta dissertação e ter-me inspirado enormemente nos últimos meses de escrita com sua leitura
sobre as “sociedades dos salões”.
Aos professores do PPGAS, agradeço especialmente a Lygia Sigaud e Aparecida
Vilaça, componentes da banca. À professora Lygia, pelo curso sobre troca e reciprocidade; à
professora Aparecida, pelo curso sobre antropologia do corpo, que gentilmente me permitiu
assistir como ouvinte. Este agradecimento estende-se aos professores Márcio Goldman,
Moacir Palmeira e Antonádia Borges, com os quais cursei disciplinas que foram igualmente
importantes para realização deste estudo. À professora Sonia Giacomini, da PUC/RJ,
agradeço por ter aceitado o convite a participar dessa banca.
Ao Fabiano e à Carmen, obrigada pelas agradáveis conversas e risadas durante a
espera. À bibliotecária Carla por sua infinda gentileza. Agradeço igualmente à Isabel e aos
funcionários da secretaria: Luis, Afonso, Tânia e Elizabeth. À CAPES, pela bolsa concedida
durante o mestrado.
À Nane e ao Jesus, minha mãe e “paidrasto”, agradeço pela fidelidade a essa
empreitada, por compreenderem meus porquês, por não se ausentarem de mim, apesar da
distância. Aos meus irmãos Pérsio, Rúbia e Cadmo –, obrigada por tê-los como referência
em tudo que penso e faço. A gente ainda se encontra; e vai ser à vera. Ao Pedro, nosso pai,
agradeço pela música em nossas vidas.
Aos meus inesquecíveis amigos, com os quais compartilhei interesses comuns de
pesquisa Emílio Domingos, Joana Saraiva e Flávio Santoro –, agradeço-lhes pelo diálogo
que mantivemos durante um tempo; eu queria que vocês soubessem que nessas páginas há um
pouco de cada um de nós.
Ao Glauco, obrigada pelo estímulo, por conduzir-me ao encontro da sintonia.
Quanto aos amigos do peito, Amauri, Gilda, Hércules, Maria, Julia, Samuel, Patrícia,
Isabel, Ana Paula e Carolina, agradeço-lhes pela alma, pelo amor e compreensão.
Aos bailantes que me receberam em suas mesas, que me concederam a honra de suas
danças, que me ensinaram a mover-me e a comportar-me nos salões, agradeço pela confiança
e amizade.
x
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................
01
Parte I – Clube dos Democráticos ..............................................................................
1. Dia de Nossa Senhora da Glória, padroeira do Clube dos Democráticos .....
1.1 A dança das mesas: o jogo das posições no baile social .......................
2. ‘Casais por contrato’ e a balança de poder ‘inter’ e ‘intra’ sexos .................
2.1 As diferentes acepções em torno da velhice e da juventude .................
2.2 Vestimentas, adereços e novas performances na dança como sinal dos
tempos .........................................................................................................
2.3 O replicar das relações ..........................................................................
2.4 Dançando conforme a música e agindo como manda o figurino ..........
3. Dançando no escuro, pagando para ver .........................................................
3.1 Motivações e significados atribuídos à dança .......................................
12
12
15
25
32
34
37
43
51
52
Parte II – Apartamento do Mário ..............................................................................
1. Método indutivo de Mário: a dança como saber prático ...............................
1.1 Repertório teórico, rítmico e físico da dança ........................................
1.2 As modalidades de danças ensinadas dentro e fora dos salões .............
2. Signos auditivos e visuais: os recursos musicais e seu relicário.....................
3. Profissão: Artista e Professor de Dança (o corpo como um instrumento
musical e de trabalho) ........................................................................................
4. Descrevendo seu santuário (zona da dança como um local de culto) ...........
4.1 Fotos reveladas e às escondidas ............................................................
4.2 Ser católico e flamenguista – profissões de fé ......................................
5. Idade de ouro em outros tempos (o ocaso de Mário) .....................................
5.1 De volta à cena (a apoteose de Mário) ..................................................
5.2 E com vocês: Mário Ferreira e Maria Antonieta!..................................
5.3 Renovando os diplomas de seu santuário .............................................
5.4 "Luz, câmera, ação"...............................................................................
6. Práticas de homenagens, comemorações e condecorações
............................
56
57
60
65
71
75
83
86
88
89
92
94
95
97
100
xi
Parte III – Clube Helênico ..........................................................................................
1. Um novo lugar no circuito dos bailes ............................................................
1.1 Outro tipo de balbúrdia em família .......................................................
2. Dançarino é uma profissão: modalidades de contrato e formas de
pagamento ..........................................................................................................
2.1 Para ser dançarino não é só dançar, tem que ser simpático ..................
3. Pedindo a conta (no fim das contas...) ...........................................................
102
102
104
108
119
124
Bibliografia ...................................................................................................................
129
Anexos
1. Estrutura Organizativa do Clube dos Democráticos ......................................
2. Boletim Informativo (conteúdo e quantidade de sócios) ...............................
3. Símbolo do Clube e o "histórico resumido" ..................................................
4. Letras dos "sambas de gafieira" .....................................................................
5. Panfleto da Academia Moraes de danças (fotos e fotocópias) ......................
6. Estatuto da Gafieira (Estudantina Musical) ...................................................
7. Mapas .............................................................................................................
8. Cartões dos serviços de dança ........................................................................
9. Fotografias .....................................................................................................
134
135
136
138
139
140
141
142
143
1
Introdução
Quando graduanda em Ciências Sociais, realizei, junto a uma equipe de pesquisadores,
uma investigação ‘sob encomenda’: dois senhores, moradores de Niterói, gostariam de saber
o que faziam aqueles que freqüentaram a "Sociedade Dançante Familiar Carnavalesca
Mimoso Manacá". Esta espécie de clube de dança de salão, fundado em 1920, encerrara suas
"atividades recreativas" em 1972. Sendo assim, naquela ocasião, nosso trabalho consistiria em
encontrar e conversar com os antigos freqüentadores dos bailes. Descobrimos que boa parte
deles morava no município vizinho de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Deles escutamos
diversas histórias que elencamos em uma publicação comemorativa impressa pelos dois
senhores. Muito do que ouvi e vi ficou guardado em minha memória, e parte das questões que
me foram suscitadas pôde desabrochar como tema e problema de pesquisa para a presente
dissertação de mestrado.
Os senhores que nos contrataram estavam interessados em fazer uma festa
reproduzindo aquela "ambiência glamourosa”, como nos diziam, para "salvaguardar a
memória dessa antiga gafieira", onde haviam desfrutado das experiências compartilhadas em
torno da dança, durante boa parte de sua memorável juventude. Pediam-nos que
"reconstituíssemos a história daquele local de convívio" e que registrássemos como se dava a
organização das atividades, a distribuição e ornamentação do salão, como eram as vestimentas
dos freqüentadores, a bandeira do clube, as datas festivas, as regras de comportamento, os
conjuntos musicais e as canções que marcaram os 52 anos de existência do chamado Mimoso
Manacá.
Os relatos emocionados daqueles homens e mulheres que freqüentaram os bailes e
envolveram-se nas atividades do clube, assim como os dos músicos que tocaram nos salões e
tinham naqueles espaços de lazer e divertimento seu local de trabalho, despertaram-me para
conhecer outros lugares de dança de salão. Em nossas conversas, os antigos habitués
desenhavam um extenso circuito de bailes que se estendia de Niterói à cidade do Rio de
Janeiro, embora muito tivessem deixado de freqüentar os salões de dança. Uns alegavam
que já não se faziam bailes como antigamente, outros padeciam de doenças adquiridas durante
a vida que, afirmavam, lhes impediam de dançar. Muitos, depois que se aposentaram ou
pararam de trabalhar, não dispunham de recursos financeiros para arcar com as despesas
que a ida a um baile requeria. A distância de suas casas aos "clubes tradicionais de dança de
2
salão” que funcionavam no centro da cidade Rio de Janeiro –, somada à idade que tinham,
era apontada como entrave à possibilidade de continuarem a freqüentar os clubes de dança
nessa etapa de suas vidas.
A 'idade de ouro' desses que freqüentaram os salões era localizada na juventude,
período de suas vidas em que se dedicavam às conquistas de grandes amores e ao capricho de
suas vestimentas para o baile, retratado como um ambiente que impunha severos códigos de
conduta durante a dança e também em relação ao comportamento nos salões.
*
Impulsionada pela narrativa daqueles que deixaram de freqüentar os salões, fiz
algumas incursões, em 2004, aos conhecidos como tradicionais bailes do centro do Rio de
Janeiro. Apenas em outubro desse mesmo ano, iniciei meu trabalho de campo no Clube dos
Democráticos
1
, situado na rua do Riachuelo, em uma zona da cidade associada à 'boemia da
Lapa' e à diversão musical noturna. Minha opção por fincar pés nesse Clube deveu-se ao fato
de eu encontrar de forma marcante, no chamado baile social, elementos que anteriormente
haviam sido apontados pelos 'ex-bailantes'
2
do Mimoso Manacá e que, para minha surpresa,
ainda compunham o ambiente contemporâneo de um clube de dança. Dentre eles,
destacavam-se: o cuidado com o bem vestir-se, a maestria dos casais na dança, e um rigoroso
controle nos códigos de comportamentos no salão.
Neste Clube, porém, em um movimento diferente daqueles que deixaram de freqüentar
os salões, não encontrei pessoas que estivessem ali desfrutando da sua mocidade, mas
deparei-me com um público freqüentador heterogêneo, composto sobretudo por homens e
mulheres com mais de 60 anos de idade, muitos dos quais freqüentavam o Democráticos
pelo menos vinte e cinco anos. Também, a despeito dos relatos daqueles que enalteciam o
ambiente dos clubes como familiar, harmonioso e coeso, era-me indicado pelos antigos sócios
um fator que desestabilizava as relações instituídas nesses espaços de convívio social, a saber,
a presença de "dançarinos contratados", que, mediante pagamento, acompanhavam mulheres
mais velhas no salão.
1
Ao me referir ao Democráticos e ao Helênico farei uso da palavra “Clube” em maiúsculo, com o intuito de
diferenciá-los dos demais clubes que freqüentei ocasionalmente.
2
O termo bailante será utilizado em menção aos freqüentadores dos clubes. Não se trata de uma terminologia
usual entre aqueles que dançam.
Com o intuito de diferenciar as palavras cunhadas por mim das demais, fiz uso das aspas simples. Toda
referência aos termos e elaborações dos freqüentadores dos bailes, quando o explicitada durante o texto,
aparecerá entre aspas duplas. Também faço uso destas para referir-me a frases e expressões de autores
referenciados.
3
A prática de contratação de dançarinos em sua maioria, negros e moradores de
bairros da periferia – por mulheres mais velhas, brancas, que aprenderam a dançar em
academias da zona sul era motivo de acirrados debates ou de manifestações discretas,
contrárias ou favoráveis, de aprovação ou incompreensão. As trocas de acusações eram
recorrentes entre esses que adentravam nos salões ('casais por contrato': ‘mulher contratante’ e
“dançarino contratado”) e os freqüentadores 'das antigas'
3
(diretores e cios do Clube,
homens e mulheres). Aos poucos, foi se evidenciando para mim, nos bailes, um jogo de
disputa por posição social entre os defensores dos valores da "boa sociedade" (Elias, 2001) e
da "tradição", e aqueles recém-chegados, proponentes de novos códigos de etiqueta
(vestimentas e comportamento) e de um outro estilo de dança.
Inúmeras vezes me foi sugerido, inclusive, que esses casais treinados em academias
também inseriam com suas performances durante o baile, novas cadências musicais nos
salões. Essa disputa mostrava-me os distintos modos de se lidar com as mudanças musicais
dada à progressiva ascensão da música tida como comercial frente ao tradicional improviso
das orquestras de gafieira –, e das técnicas do corpo com a difusão nos salões da dança de
academia.
Além disso, as recorrentes assertivas em torno da circulação de dinheiro e mulheres
entre jovens "dançarinos contratados" ensejavam acusações referentes à prostituição
masculina e à conduta inadequada nos salões. A polêmica gerada em torno dessa prática de
contratação de dançarinos por mulheres mais velhas constituiu-se em um importante ângulo
de análise dos diferentes olhares sobre a 'mulher contratante', e, mais especificamente, sobre a
mulher na velhice, que ora era vista como vítima de exploração dos dançarinos, ora como
exercendo uma conquistada liberdade ao desfrutar, mediante pagamento, da companhia de
jovens dançarinos.
Nos estudos sobre bailes de dança de salão, seja em "bailes-ficha" (Moraes, 2004) ou
de "terceira idade" (Freitas, 2000), esse ato de pagar para bailar havia sido apontado e
discutido. Se nos “bailes de terceira idade”, em Curitiba, estudados por Freitas, a existência de
homens jovens acompanhando mulheres mais velhas é abordada apenas como uma espécie de
um boato, de uma informação não confirmada, na pesquisa de Moraes sobre os “bailes-ficha”
4
no Rio de Janeiro, esses casais são protagonistas em sua análise. No caso abordado por
3
Por vezes, utilizarei esse termo para referir-me aos homens e mulheres freqüentadores antigos dos clubes.
4
Trata-se de bailes, geralmente organizados por professores de dança de salão ou donos de academias, em que as
mulheres compram fichas no valor de 1 real e, a cada música dançada, entregam-na ao dançarino/instrutor que
escolheu no salão. Esse tipo de baile surge na zona sul do Rio de Janeiro entre 1993 e 1995, e está localizado
principalmente em Copacabana, bairro que concentra a maior população de idosos da cidade (Moraes, 2004).
4
Freitas, os relatos sugeriam que essas mulheres, além de presentearem tais dançarinos em
troca de sua companhia na dança, envolviam-se amorosamente com os mesmos. Diante dessas
que seriam insinuações, a autora aponta para uma "inversão da lógica preponderantemente
machista de que as mulheres mais velhas não devam se envolver afetivamente com homens
mais jovens" (Freitas, 2000:14). Moraes (2004) sugere que a prática de contratação dos
dançarinos pelas mulheres mais velhas figura como uma subversão do controle masculino,
uma vez que elas conquistam um lugar no baile e passam a ter “a primazia da ação” ao
escolherem com quem elas querem dançar e as músicas que lhes agradam.
Ambas as abordagens dão margem para pensarmos que a contratação do dançarino
configura-se em mais um elemento que ratifica um modelo hierárquico de comportamento
entre os sexos nos bailes. Enquanto Freitas identifica uma inversão de uma suposta "lógica
machista" nessa relação, Moraes sugere que o domínio continua sendo masculino, uma vez
que os dançarinos pagos deviam “fazer de conta” que a relação estabelecida entre o casal se
dava de forma simétrica. Embora essas autoras formulem análises divergentes a respeito dessa
prática de contratação, nesses estudos o controle masculino é dado como uma ordem a priori
que será driblada ou confirmada; ou seja, ele é sempre tomado como um pressuposto a partir
do qual a análise se pauta, para ratificar ou subverter. Isto, de certa forma, induz-nos à
imagem de um quadro estático – estabelecido anteriormente ao vislumbre das relações que se
tecem nos salões –, em que a posição da mulher parece destinada
a uma condição
estruturalmente subordinada àquela do homem.
Sem negar a divisão entre os sexos, procurarei demonstrar que esta, quando aparece no
salão, está combinada com outros importantes elementos, e que não somente a relação
homem/mulher é tematizada, mas também aquelas entre homens/homens e mulheres/mulheres
(entre os homens 'das antigas' com os “dançarinos contratados”, entre as mulheres 'das
antigas' e as ‘contratantes’, por exemplo) as quais chamarei de relações intra-sexo. Nos
bailes que freqüentei, estes outros elementos estavam em jogo na definição das posições nos
salões e, somados de forma intermitente e cambiante, compunham um conjunto de atributos
comumente valorizados pelos freqüentadores dos clubes, tais como: tempo de associado,
titulação, técnica corporal (gestos coreográficos), domínio dos códigos de etiqueta e da
“tradição” (nas vestimentas e comportamento), poder aquisitivo, vigor físico, dentre outros.
Não quero sugerir com isso que a díade primordial do gênero não seja importante para
analisar as relações instituídas nos bailes lembrando que a dança no salão se
exclusivamente entre homem e mulher. Creio, porém, que pensá-la como a principal
ordenadora das relações é estabelecer um tipo por demais ideal em uma figuração onde tantos
5
itens são incessantemente combinados na conformação do "balanço de poder entre os sexos"
(Elias, 1998).
A idéia de explorar as relações no gênero e pensar o que é cambiante em quadros que
parecem estruturais está especialmente inspirada no texto The Changing Balance of Power
between the Sexes de Norbert Elias (1998). Este trabalho, que é pouco discutido pela literatura
clássica sobre gênero, cita um período na Roma Antiga em que os homens saem para a guerra
e suas mulheres começam a administrar as propriedades. Diante da atitude indiferente dos
governantes, elas começam a se manifestar politicamente: invadem o senado e pedem uma
audiência pública com os notáveis. Com este exemplo – que transgrediria o padrão de
comportamento esperado das mulheres –, Elias sugere que, embora as justificativas ordinárias
para a dominação masculina sejam a força física, a posse de capitais e da organização social,
tudo isso pode mudar. No entanto, tal mudança não necessariamente implicaria uma
reformulação das relações sociais e, sim, uma alteração de posição. Com sua ênfase na forma
assimétrica do exercício de poder, Elias esvazia os argumentos em torno de uma diferença de
gênero a priori em que o feminino estaria sempre subjugado ao masculino. Em última
instância, este autor desafia a naturalização da diferença biológica (o pênis e a força física
versus o útero e a tarefa reprodutiva) ao sugerir que o equilíbrio e o desequilíbrio entre os
sexos se fazem notar não pelas propriedades intrínsecas de um ou outro dos lados, mas pelo
fiel da balança: no caso por ele estudado, o Estado, que passou a legislar sobre as relações
matrimoniais da classe alta na Roma Antiga.
De volta aos bailes de salões, estes não devem ser pensados sem se levar em conta
uma certa orientação histórica dos fatos. A dança entre mulheres mais velhas e homens mais
jovens contratados, é certo, não acontece em um vácuo social. Um elemento importante nessa
configuração do balanço de poder entre os sexos é o próprio Estado em sua versão brasileira –
com direitos reconhecidos, certo monopólio da violência e ressarcimento do trabalho passado
sob a forma de pensão por aposentadoria ou viuvez.
No entanto, o baile não existe a despeito dos indivíduos e há, nesse espaço de
convívio, um jogo entre aquilo que pode ser resultado de um processo histórico em um
sentido lato (conquistas de direitos trabalhistas e de igualdade entre os sexos), e o que seria
um balanço de poder entre as pessoas que se relacionam em um mesmo tempo e espaço. A
noção de equilíbrio de poder se altera, segundo Elias (2001), acompanhando o movimento das
interdependências e ações dos indivíduos nas figurações dinâmicas e específicas.
6
*
Por figuração (ou configuração, conforme aparece em algumas traduções), Norbert
Elias designa todo e qualquer tipo de rede de interdependências formada pelas pessoas em
suas relações. Para Elias, uma das questões centrais da pesquisa empírica consiste em saber
"de que modo e por que os indivíduos estão ligados entre si” (2001: 213), constituindo, assim,
formações sociais que podem assumir dimensões variáveis
5
. A fim de ilustrar essa idéia de
rede de dependências recíprocas como aquilo que funda a existência social do indivíduo e a
própria sociedade, Elias (1994) remete-se à imagem da dança de salão para simbolizar a
integração dos indivíduos na formação da sociedade:
“Pensemos na mazurca, no minueto, na polonaise, no tango ou no rock'n'roll. A imagem
de configurações móveis de pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais
fácil imaginar Estados, cidades, famílias e também sistemas capitalistas, comunistas e
feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as antíteses,
chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje no uso das palavras
'indivíduo' e 'sociedade'. Certamente podemos falar na dança em termos gerais, mas
ninguém a imaginará como uma estrutura fora dos indivíduos ou como uma mera
abstração. As mesmas figurações podem certamente ser dançadas por diferentes pessoas.
Mas, sem uma pluralidade de indivíduos reciprocamente orientados e dependentes, não
dança" (1994: 250).
E foi seguindo essa abordagem figuracional que não cede espaço para aceitação de
uma proeminência da sociedade sobre o indivíduo ou para o senso de se estar preso e
englobado por um determinado modelo de dominação masculina que independa da dinâmica
das relações entre as pessoas, entre os casais – que procurei pensar os bailes de dança de salão
(e por que não chamá-los de "sociedades dos salões" ou "bailes de salão”?) como figurações
que reúnem diversos grupos de freqüentadores (mulheres e homens solteiros, casados e
viúvos, "velhos" e "jovens", “dançarinos contratados” e ‘mulheres contratantes’), a fim de
compreender quais condições os unem em uma dada situação, os atraem socialmente e os
tornam indivíduos reciprocamente orientados e dependentes.
Considerando a importância que as relações entre as pessoas têm para a composição
dos indivíduos, um esforço analítico para compreender os bailes de salão como uma
figuração, desloca a perspectiva de um único eixo orientador – como gênero ou idade,
7
conforme apresentarei abaixo para mostrar que o processo de construção dessas categorias
se de maneira relacional (isto é, a partir de relações sociais). Esses temas que perpassam a
escrita etnográfica dessa dissertação foram escolhidos, sobretudo, pela sua pertinência como
via de acesso para pensar as experiências compartilhadas entre os bailantes’ em torno da
dança de salão. E, do mesmo modo que procurei não fixar as pessoas a identidades e papéis
permanentes de gênero, propus-me pensar a velhice e a juventude – dos freqüentadores
antigos e daqueles que recém adentravam nos salões não como componentes que
enclausuram as pessoas em esquemas de comportamento pré-definidos ou amarrados, mas
como atributos que atuam de formas diversas nas relações sociais.
A idade cronológica, portanto, aparecerá neste trabalho como uma categoria que, ao
ser evocada por aqueles que dançam como um referente, lhes permite fazer comparações com
os demais freqüentadores dos clubes. Mas a mesma, como veremos, não era utilizada como
parâmetro único de avaliação de quem vem a ser classificado como velho ou jovem. A velhice
e a juventude o constituíam atributos substanciais adquiridos com o avançar da idade, mas,
antes, figuravam como categorias cuja designação parecia resultar da distribuição de poder e
de privilégios entre aqueles que se relacionavam nos bailes de salão (cf. Lenoir, 1998). A
fronteira entre a juventude e a velhice era tênue e muitas vezes manipulada como um objeto
de disputa entre os próprios bailantes (Bourdieu, 1980)
6
, que em algumas ocasiões faziam uso
do termo “velho” não para remeter a uma imagem de inaptidão física ou social, mas como
uma categoria de exaltação. Assim, alguém que era velho, podia ser valorizado por sua
"antigüidade de casa", por dominar um "estilo próprio" de dança, pela sabedoria e
reconhecimento alcançados por sua experiência vivida nos salões. A velhice ainda era usada
como um atributo de enaltecimento pessoal quando os ‘bailantes’ reivindicavam sua boa
aparência e disposição física apesar dos anos de vida mas também poderia figurar como
uma categoria de acusação àqueles(as) que não incorporassem as novas técnicas ou
demonstrassem perda de velocidade, de força, de vivacidade ou habilidade nos gestuais
durante a dança a partir do ponto de vista daqueles que os(as) julgavam.
Do mesmo modo que um(a) ‘bailante’ poderia ter muita idade e deter o desejado
"espírito jovial" no seu estilo de ser, de vestir-se e de dançar, outro(a) com pouca idade
poderia ser repudiado(a) por não se apresentar nos salões, por exemplo, como um
5
Tais figurações ou formações sociais, em suas análises, abarcam escalas diversas: de jogadores de cartas (1981)
a uma sociedade de corte (2001), e mesmo uma nação (1997).
6
Bourdieu (1980) analisa que a manipulação das categorias de idade envolve uma luta política na qual está em
jogo a redefinição de poderes ligados a grupos sociais distintos em diferentes etapas do ciclo da vida. As divisões
8
conhecedor(a) dos códigos coreográficos ou das regras de etiqueta necessários à condução das
relações. Os valores a respeito da velhice e da juventude, portanto, não podiam ser
estabelecidos de antemão, pois não figuravam nas relações como termos absolutos.
Nos bailes que freqüentei, o fato de possuir uma idade cronológica avançada, ser
mulher, ser negro e pertencer às classes baixas, por exemplo, não necessariamente jogava
contra a posição de um(a) bailante na escala hierárquica dos privilégios que se configurava
nas sociedades dos salões. E isso foi o que me conduziu a mostrar a multiplicidade de pontos
de vista e suas formas de encadeamento, procurando evitar formulações que esvaziassem a
riqueza do universo social tratado e o reduzisse à epifenômeno de variáveis sociológicas
autônomas, isto é, que prescindissem do baile. Gênero, juventude, velhice, classe social, raça,
etnia eram, sem dúvida, mais importantes pela relevância que lhes prestavam os próprios
bailantes do que como categorias transcendentais que permitiriam ao antropólogo dar a última
palavra.
Em suma, para lidar com essas categorias analíticas, sem essencializá-las como termos
anteriores às relações estabelecidas entre os ‘bailantes’ nos espaços de dança de salão,
procurarei explorá-las como atributos sociais que, combinados com outros elementos em
momentos diferentes, figuram de forma cambiante nas relações.
Ao longo dessa dissertação, pretendo mostrar que, entre aqueles que dançam, vigora
uma profusão de teorias sociais em variação contínua, inelutavelmente articuladas a práticas;
um complexo mosaico que pode ser visto de diferentes formas dependendo da perspectiva
privilegiada. Minha intenção é demonstrar, por meio de um esforço etnográfico, as sutilezas
das diferentes visões dos ‘bailantes’ a respeito desses temas.
*
Na primeira parte desta dissertação, apresento o modo de funcionamento do Clube
Democráticos: como se a estrutura organizativa das atividades, a composição do chamado
quadro social, e o jogo das posições física (a dança das mesas) e social (atributos valorados,
prestígio e status) que se efetua no salão. Exploro a correlação de força entre homens e
mulheres ‘das antigas’ com aqueles que, recém-chegados ao Clube, efetuavam mudanças na
estrutura de idade e nas redes de interdependência daqueles que freqüentavam os bailes. Tais
mudanças, conforme menciono, eram sentidas com grande incômodo pelos que procuravam
salvaguardar os tradicionais códigos de etiqueta dos salões frente às incontornáveis alterações
entre as idades e a definição das práticas legítimas associadas às etapas da vida, portanto, são arbitrárias, e
tratam-se de divisões de poder (:112-113).
9
provocadas nas concepções de comportamentos corretos e condenáveis, de gestual a ser
empregado na dança (nas técnicas corporais), de relacionamentos entre os bailantes que,
interconectados, davam especificidade a essa figuração social.
Se nessa primeira parte apresento o modo como as pessoas com suas ações,
intelectos e em suas relações recíprocas e obrigatórias se orientam em um Clube fortemente
regido por uma preconizada etiqueta social, em um segundo momento procuro elucidar e
aprofundar o percurso de um indivíduo, Mário que se tornara meu professor de dança –, e
sua posição cambiante na trama de interdependências que se configurava nas sociedades dos
salões.
Partindo dessa perspectiva etnográfica figuracional
7
explorei a vida e o cotidiano de
trabalho do professor Mário em seu apartamento na rua do Riachuelo, onde ministra as suas
aulas de dança e organiza toda uma espécie de memorabilia em forma de fotografias, revistas,
livros, panfletos, discos, diplomas, troféus e medalhas. Essa memorabilia, ao longo de meu
convívio com Mário, revelou-se como um valoroso arquivo pessoal, o qual permitiu-me
elaborar, a partir dos seus ensinamentos, possíveis sentidos para a dança em sua vida dentro e
fora dos salões. O apartamento do Mário, portanto, tornou-se, aos poucos, não um local
onde procurei etnografar o modo como se constrói um estilo coreográfico e uma teoria social
sobre a dança de salão, mas um universo de registro material que, inventado por ele, produzia
o seu próprio encantamento como uma pessoa de valor por sua raridade, pelo tempo de ofício,
pelo seu saber.
Foi através dos ensinamentos de Mário – seja praticando sua aula, seja observando sua
didática com outras alunas, ou freqüentado bailes em sua companhia que procurei explanar
um processo de "aprendizado mimético" (Wacquant, 2002) das cnicas corporais da dança,
que passava não pelo exercício prático do casal e pela observação nos salões dos outros
pares dançantes, mas também pelo crivo de suas teorias a respeito dos diferentes estilos de
dança praticados que não raro se traduzia em juízos de valor sobre o caráter dos próprios
bailantes. Conforme procuro demonstrar, essas elaborações as quais chamo de teóricas –,
que atrelavam a dança praticada por um casal à posição que ele vinha a assumir em uma dada
figuração, interferia sobremaneira na escolha do gestual a ser empreendido no salão.
7
Por perspectiva etnográfica figuracional quero me referir a uma abordagem na qual se considera que atributos
sociais não-estanques se combinam, se transformam e são avaliados de diferentes formas pelos bailantes em
conjunto ou por um bailante em particular, ao longo do tempo e das relações estabelecidas.
10
Levada por Mário a outros clubes e gafieiras em ocasiões comemorativas, cheguei a
um novo lugar no circuito dos bailes de salão: o Clube Helênico (situado na rua Itapiru, entre
o Catumbi e o Rio Comprido), sobre o qual versa a terceira parte desta dissertação.
Se nos Democráticos vinculei-me àqueles que compunham a "boa sociedade" o que
me permitiu observar como a presença dos 'casais por contrato' desestabilizava as posições de
homens e mulheres instituídas naquela figuração –, no Helênico pude aproximar-me das
‘mulheres contratantes’ e dos "dançarinos contratados". Durante o convívio com esses pares
na dança, acompanhei os anseios e expectativas que os mobilizavam e atraíam aos salões,
procurando alinhavar o percurso que os envolvia em uma intricada trama de relações
intercambiáveis.
Entre as mulheres contratantes, demarquei que o aprendizado social da dança e a sua
inserção nos salões, em uma nova rede de dependências, lhes acresciam novos valores e
outras características pessoais (Elias, 1997). Já entre os dançarinos contratados, explorei o que
significava ser profissional em um ambiente de dança, de lazer, de diversão. Os diversos
modos de relação contratual que pude observar, assim como as formas de pagamento e os
contratempos que podiam levar ao rompimento desses vínculos criados em torno da dança de
salão, também são discutidos na parte final desta dissertação.
*
A respeito da escrita, gostaria de enfatizar que as pessoas que me acolheram nos
Clubes, que compartilharam as suas mesas, que me concederam a honra da sua dança, e sobre
as quais versam as páginas que se seguem, serão apresentadas ao longo das três partes dessa
dissertação. Os 'bailantes' que me conduziram no campo e ajudaram a construir a presente
reflexão etnográfica acerca de um momento vivido nos salões, datado do ano de 2005, e aos
quais – nesse período de escrita, pós-fato me remeto como personagens, serão adensados ou
subsumidos de acordo com a figuração na qual se encontrem. As idas e vindas daqueles que
aos poucos serão inseridos no texto, com suas falas e teorias (que estão indicadas quando
aparece dois pontos seguido por um travessão), também vigoram na estrutura da dissertação, a
qual acompanha o percurso trilhado durante a pesquisa de campo.
Se fui levada dos Democráticos ao apartamento do Mário, e por fim aterrissei no
Helênico fazendo algumas incursões ao clube do Bola Preta (na Cinelândia) e à Estudantina
Musical (na Praça Tiradentes) –, foi menos por livre arbítrio, mas sobretudo pelo modo como
fui conduzida por aqueles que me ensinaram a mover-me nesses espaços de convívio social
11
que, interligados pelos que freqüentavam os seus salões, constituíam um circuito reconhecido
como os "bailes tradicionais de dança de salão".
12
Parte I – Clube dos Democráticos
1. Dia de Nossa Senhora da Glória, padroeira do Clube dos Democráticos
No dia 14 de agosto, o Clube dos Democráticos realiza o "tradicional Baile da
Padroeira", em homenagem à santa Nossa Senhora da Glória, com uma missa celebrada na
parte interna do saguão do Clube, seguida de um coquetel oferecido pela direção aos
associados no salão nobre. Em 2005, essas atividades se encerraram pontualmente às 20h,
quando a banda Resumo tocou o primeiro bolero, dando início ao chamado baile social.
Nessa noite, consegui uma carona que me levaria até a porta do Clube, situado na rua
do Riachuelo. Quando seguíamos no carro, a um quarteirão dos Democráticos, um casal e
uma senhora fizeram sinal para um táxi, que parou na nossa frente. Esse tempo de espera para
que pudéssemos seguir no fluxo do tráfego foi suficiente para que eu percebesse por meio das
suas vestimentas considerando que sete meses eu freqüentava os bailes que os mesmos
seriam adeptos da dança de salão e que possivelmente se dirigiriam a um clube de dança. As
mulheres com seus vestidos rodados de panos leves, nas cores preta e vermelha, usavam
sapatos de salto um pouco quadrado, atados ao calcanhar, no mesmo tom de suas pequenas
bolsas a tiracolo; o homem parecia compor suas roupas de acordo com o figurino delas,
vestindo-se com as mesmas tonalidades: blusa de cetim vermelha de botão e manga comprida,
uma calça de linho preta, com pregas na região da cintura, e calçados bicolor de cor preta com
um bico de couro trançado em vermelho. Embora suspeitasse que eles iriam a um baile, eu
não poderia imaginar que saltariam do táxi 100 metros adiante, exatamente no lugar onde eu
mesma pararia, na porta do Clube dos Democráticos.
Notava que aquelas três pessoas tinham feito um investimento estratégico para
desembarcarem de um táxi na entrada do Clube e que aquela atitude somava-se a outros
dispêndios com roupas, sapatos e acessórios que, de uma forma peculiar, valorizavam os
próprios bailantes.
Ao longo do meu trabalho de campo, percebia que o universo social da dança era
povoado não só por bailantes distintos, como também por uma profusão de signos e emblemas
que iriam compor um cenário glamouroso. Apresentar-se bem vestido, com penteados
elaborados e com sapatos lustrados eram meios necessários à aparição nos salões.
Nas conversas mantidas durante o baile, outros desses sinais emergiam a posse de
carro, da casa própria, o recebimento de uma aposentadoria ou do que se chamava de uma boa
13
pensão (deixada normalmente pelo falecido marido) que permitisse fazer viagens em
excursão, prestar "ajuda financeira" aos filhos ou promover festas de aniversário no Clube
como índices que reforçavam a reputação e o prestígio daqueles homens e mulheres frente aos
outros freqüentadores
8
. Mas esse tipo de ostentação não era o único modo obrigatório de
marcar posição nesse espaço de convívio. A juventude, a beleza física e as habilidades para
dançar, como irei demonstrar adiante, podem proporcionar ao freqüentador que não disponha
de posses ou títulos, o reconhecimento desejado.
Os títulos aos quais me refiro são disponibilizados pelo próprio Clube; dizem respeito
ao chamado quadro social dos Democráticos composto por diversas categorias de associados.
A classificação comporta uma hierarquia em cuja base encontram-se os efetivos novos,
seguidos dos efetivos antigos, dos remidos, dos beneméritos e dos grandes beneméritos
9
. Os
dois primeiros níveis são compostos por sócios contribuintes que pagam 15 reais mensais à
secretaria do Clube. Os remidos são aqueles que passam a ser isentos das mensalidades após
25 anos de contribuição. Os beneméritos, segundo Arcádio Antunes, presidente do Clube:
São contribuintes ou remidos que fizeram algo significativo ou contribuíram de forma
expressiva [isto é, financeiramente, por meio da compra do título] com o Clube, tendo antes
passado pela avaliação dos Conselhos. Agora, para se tornar um grande benemérito, tanto o
tempo de associado [mais de 25 anos] como a dedicação às atividades do Clube são requisitos
necessários para as avaliações dos Conselhos Consultivo e Deliberativo. Essas classificações
se dão, portanto, de acordo com o tempo de associado, com o poder aquisitivo daqueles que
compraram a sua titulação, e, ainda, segundo o grau de engajamento nas atividades que
mantêm o funcionamento do Clube. O prestígio do sócio é considerado maior caso este
possua um cargo em um dos conselhos que compõem a estrutura organizativa do Clube (ver
anexo 1).
Esses elementos em conjunto poderiam levar-nos à composição de uma espécie de
padrão a partir de atributos comumente valorizados pelos freqüentadores dos bailes. No
entanto, é preciso frisar que tais elementos entram em movimento e, com isso, compõem
constantemente novos significados, por meio de suas combinações. Aqui, os diversos arranjos
obtidos de modo contínuo seguem uma forma semelhante àquela identificada por Elias em sua
8
Índice é pensado ao longo dessa dissertação como um signo que apresenta uma ligação factual, metonímica, ao
objeto ao qual ele remete (Peirce, 1998).
9
No informativo mensal de circulação interna ao Clube lê-se: "a reintegração de associados e a campanha de
novos sócios aumentou o nosso quadro social, que hoje tem a seguinte composição: efetivos antigos 164
membros, efetivos novos 24 membros, remidos 43 membros, beneméritos 22 membros, grandes
beneméritos – 12 membros; totalizando 265 associados”.
14
análise da corte francesa de Luís XIV, ou seja, trata-se de uma figuração social específica em
que os diversos membros concorrem por chances de poder ligadas ao prestígio e ao status.
"A posição real de um indivíduo no entrelaçamento da sociedade de corte sempre foi
determinada por dois fatores ao mesmo tempo: o nível oficial e a posição vigente, mas o
segundo era o mais importante para o comportamento dos cortesãos. A posição que um
homem ocupava na hierarquia da corte era, por isso, bastante instável. Aquele que
houvesse conquistado certa reputação esforçava-se imediatamente para elevar seu nível
oficial. (...) [N]a corte o valor de um indivíduo se expressa primordialmente nas nuances
do convívio social e mundano” (Elias, 2001:108).
Na portaria dos Democráticos a excepcionalidade daquela noite de comemoração
poderia ser percebida facilmente pelos freqüentadores contumazes. O segurança e o bilheteiro
vestiam-se com terno e gravata, e a fachada do prédio, que exatamente naquele mês de agosto
tivera a sua obra de recuperação finalizada, ganhara uma iluminação amarelada que permitia
visualizar uma placa permanente na qual se lia: "Clube dos Democráticos, Rua do Riachuelo,
91/93. Tradicional Sociedade do Carnaval Carioca, fundada em 1867. Participou das
campanhas Abolicionista e Republicana. Sede construída em 1931"
10
.
Das seis grandes janelas das duas sacadas do segundo andar saíam feixes coloridos de
luz e propagava-se à rua o som da música tocada no salão. Do portão de ferro da entrada que
sustenta dois brasões com as iniciais “DC”, um tapete vermelho aveludado estendia-se até o
balcão da bilheteria, situada ao fundo deste saguão, subindo pelas escadas de mármore.
Arranjos de folhas verdes com tulipas, lírios e dálias brancas ornamentavam o corrimão de
metal dourado da escadaria que conduzia ao salão, cujas paredes e palco estavam ornados
com arranjos contendo os mesmos elementos.
Ao final da escadaria fui recebida pelas diretoras sociais. Enquanto uma delas
entregava-me uma rosa branca, a outra tratava de conduzir-me à mesa cativa de Rosa, uma
mulher de 72 anos que eu conhecia cinco meses, e com a qual eu costumava sentar-me.
No intervalo de tempo em que eu cumprimentava as diretoras sociais, pude ouvir a
justificativa da vice-presidente da Secretaria à interpelação de uma associada que questionava
o fato de sua mesa estar reservada em nome de outrem: Não basta ser sócio para ter uma
mesa [dizia a vice-presidente]. A pessoa tem que freqüentar todos os domingos; por isso a
mesa é cativa!
15
O procedimento pelo qual fui conduzida à mesa de Rosa, assim como os contratempos
concernentes ao onde se sentar, eram recorrentes nos Democráticos. Em algumas ocasiões,
presenciei o mal-estar causado naqueles que se viam deslocados das mesas que gostavam de
ocupar por terem se ausentado nos últimos domingos ou porque chegavam atrasados para o
baile. Havia ainda uma regra velada que permitia à direção ceder as mesas cativas alheias,
caso essas não tivessem sido ocupadas depois das 21h.
Quando entrei no salão, sequer dez mesas estavam efetivamente ocupadas. No entanto,
quase todas tinham papéis de reserva sobrepostos onde se lia o nome do sócio-freqüentador.
Esses papéis constrangiam freqüentadores novos ou esporádicos, indicando um hiato, um
momento de espera a ser aguardado pelos não-sócios desejosos de ali se sentarem.
Como veremos no tópico seguinte, todas as questões em relação às mesas devem-se ao
fato de sua posição no espaço do salão constituir um elemento a mais na infindável lista de
atributos que se combinam incessantemente no universo do baile, destituindo ou agregando
valor aos bailantes.
1.1 A dança das mesas: o jogo das posições no baile social
As mesas foram-se revelando objeto de acirrada disputa entre os bailantes – disputa de
quem as ocupava e, igualmente, de seu significado. Havia mesas para todos, logo a questão
não dizia respeito a uma escassez de assentos. O que estava em jogo era o status do
freqüentador, apenas em parte evidenciado pela posição da mesa que ocupava. A princípio,
quanto mais próxima do salão de dança, maior era o prestígio daquele que a detinha como
cativa. As mesas mais concorridas eram aquelas que margeavam a pista de dança, sobretudo
aquelas situadas de frente para o palco, de onde se tinha a visão privilegiada dos casais
dançando, da banda de música, e a uma distância das caixas de som agradável aos ouvidos.
Quem estava na borda da pista poderia interagir com os outros casais, observando e
comentando os seus gestos e controlando os seus passos. Em situações mais jocosas e de
maior intimidade, certos comentários eram inclusive endereçados aos colegas que dançavam.
Esse envolvimento com a dança, sem necessariamente bailar, constitui um momento
importante no transcorrer de um baile. Ao fazer seus comentários, os bailantes à mesa
refletiam sobre sua própria forma de dançar. A exemplo do que sugeria Elias, também aqui “a
arte de observar as pessoas não se refere apenas aos outros, mas estende-se ao próprio
10
O "Democráticos Carnavalesco", antes de se instalar definitivamente nesta sede, migrou por sete diferentes
endereços, todos no Centro da cidade (conforme “histórico resumido do clube” apresentado em anexo 3).
16
observador. (...) Trata-se de uma observação de si mesmo para a disciplina no convívio em
sociedade” (2001:121).
Geralmente as mesas que margeiam o salão são cativas daqueles sócios aos quais se
atribui prestígio ou renome, devido à combinação de diversos sinais de valor que começamos
neste momento a elencar: tempo de associado, titulação adquirida, o fato de ocuparem ou
terem ocupado cargos nos conselhos e por disporem de um poder aquisitivo maior. Devemos
observar, porém, que nem todos os sócios com tais atributos marcavam sua presença nas
mesas cativas; afinal, para cultivar uma posição social valorizada no salão durante um baile,
era preciso freqüentá-lo com assiduidade e participar das trocas de gentilezas, danças, olhares
e palavras.
Tais gestos e condutas criam a expectativa de um retorno e fundam o próprio elo entre
os bailantes. Como procurarei demonstrar ao longo da dissertação, é por meio da circulação
desses gestos e condutas que se tece a rede de dependências recíprocas entre aqueles que
freqüentam o Clube. Veremos que nas relações de troca que fundam essa figuração social,
circulam para além dos bens materiais agrados, homenagens e honrarias, e que o caráter
público e cerimonial no qual são efetuadas essas trocas é o que lhes agrega um sentido a mais
de obrigatoriedade (Malinowski, 1935 e 1991). O não cumprimento de algumas normas de
etiqueta, assim como o dispêndio de energia social para driblar certos contratempos,
demonstrava que a reciprocidade das relações entre os diferentes bailantes não consistia em
um ciclo harmônico ou em uma colaboração mecânica entre o dar, o receber e o retribuir que
não implicasse conflito (Mauss, 2003).
Ausentar-se por muito tempo dos salões, não cumprir com o pagamento das
mensalidades, não reconhecer publicamente o esforço daqueles que se dedicavam às tarefas
do Clube, não conceder a honra de uma dança, dos cumprimentos, de um elogio à vestimenta,
de um olhar de admiração, de um assento às mesas cativas, enfim, não retribuir às
expectativas requeridas nas relações de troca entre diretores, associados e freqüentadores,
podia acarretar mal-estar, tensão, ou mesmo ameaçar a reputação do bailante conquistada
junto à opinião daqueles que constituíam o Clube. A opinião social conferia lugar ao bailante
na hierarquia das posições e fundava a existência social do próprio indivíduo. Era, portanto,
preciso estar atento aos códigos de comportamento, ao cálculo dos gestos e às nuances das
palavras para garantir-se como membro da "boa sociedade" (Elias, 2001).
Tomo emprestado esse termo de Elias para referir-me aos diretores e freqüentadores
antigos do Clube que, de uma maneira ou de outra, procuravam impor ou manter, junto à
opinião dos freqüentadores, um padrão de comportamento como instrumento de formação e
17
controle das chances pessoais de poder social nessa figuração. De acordo com a definição de
Elias, a "boa sociedade" consiste em toda formação social que "tende a se segregar e a se
destacar dos campos sociais circundantes (por exemplo, em toda sociedade aristocrática e
patrícia). (...) Considerando uma 'boa sociedade' nobre (...) não importa seu título: ele [o
indivíduo] faz parte da 'boa sociedade' enquanto os outros acham que faz, ou seja,
enquanto o consideram um membro" (ibid:111-112).
Assim, para além da titulação oficial de um freqüentador dentro do quadro social, a
posição de um bailante podia ser conquistada nas relações interpessoais estabelecidas no
cotidiano dos bailes e percebida a partir de sinais como a mesa para a qual era conduzido, o
grau de reverência com o qual era recepcionado, os cumprimentos que recebia fora ou dentro
da arena da dança, o tipo de dança que empreendia, o tempo que permanecia dançando no
salão e com quem dançava, dentre outros. Mas, devo mais uma vez ressaltar, o equilíbrio
dessas posições era instável, e as dependências recíprocas que se delineavam entre os diversos
freqüentadores do Clube, conforme sugeriu Elias, conflituais: "No centro das figurações
móveis, ou seja, no centro do processo de figuração, se estabelece um equilíbrio flutuante das
tensões, um movimento pendular de equilíbrio de forças, que oscilam ora para um lado, ora
para outro" (1981:157).
Em um ambiente onde toda ocasião é festiva, era preciso atentar para os símbolos que
se faziam presentes naquele dia em especial, o da Padroeira do Clube, e que nem sempre
compunham o cenário dos bailes. Arranjos de flores enfeitavam as mesas de madeira forradas
com panos brancos cobertos de rendas da mesma cor. As cadeiras também ganharam uma
nova aparência e tiveram os seus encostos revestidos por um forro branco com o símbolo do
Clube e a seguinte inscrição: “líder do carnaval carioca”
11
. Nos lustres presos às paredes
foram postas lâmpadas azuis; enfim, todos os recursos ornamentais procuravam frisar a
coloração branca e azul que representa o Clube. E, sem escapar a tais cores, uma mesa grande
coberta com panos acetinados foi posta ao lado esquerdo das escadas, em frente ao desativado
elevador. Sobre ela, um bolo de um metro de comprimento com a imagem desenhada da
Nossa Senhora da Glória. Quem chegava ao salão, aproximava-se da mesa e tecia elogios ao
11
O símbolo do Clube é uma águia que sustenta pelo bico uma faixa onde aparece escrito “Clube dos
Democráticos” e um mastro com uma bandeira listrada nas cores branca e preta com as inicias DC no canto
esquerdo da mesma. DC era a antiga denominação do Clube, Democráticos Carnavalesco, que teria ganhado a
disputa de 68 carnavais, na época das "grandes sociedades", segundo o relato do presidente. Para informações a
respeito do carnaval no Rio de Janeiro entre 1880 e 1920, ver Cunha (2001). Uma explicação da águia como
símbolo dos Democráticos pode ser lida no "histórico resumido" anexado ao final da dissertação (anexo 3).
18
trabalho decorativo coordenado pela vice-presidente social, Laurita, que no mês anterior havia
tomado posse.
Laurita vestia um vestido longo azul-turquesa de paetês e bijuterias de strass branco.
Ela circulava pelas mesas, cumprimentando a todos e relatando o esforço feito pelos que
trabalharam na organização da festa. Diretores sociais como ela são remunerados para
desempenharem tarefas como ornamentar o salão, receber os freqüentadores, ocupar-se das
homenagens e divulgações dos bailes de outros clubes ao microfone, vender as cartelas do
bingo e cantar as pedras, contratar os músicos, dentre outras atividades. Naquele primeiro
grande evento depois de ser empregada, Laurita empenhava-se principalmente porque
deveria agradar os membros da direção (empossada em dezembro de 2002 com a tarefa de
coordenar o funcionamento do Clube), que, caso desgostassem de seu trabalho, tinham o
poder de demiti-la.
A eleição deveria ocorrer de dois em dois anos, quando uma Assembléia convocaria os
associados para, por meio do voto direto, nomear novos conselheiros. No entanto, a atual
gestão estava três anos na direção do Clube, mantida por meio de dispositivos do estatuto
interno que permitiam a formação de uma Junta Governativa, seguida de uma Comissão
Gestora que permanecerá no poder até dezembro de 2006
12
. Os postos dos Conselhos e da
Comissão Gestora eram preenchidos por homens, sendo reservadas às mulheres funções na
Direção Social ou na Secretaria, na qual a vice-presidente tinha por tarefa fazer a cobrança
das mensalidades aos associados.
Por volta das 19:30h, o movimento no salão começava a crescer. Alguns associados
chegavam para o coquetel, mas grande parte dos freqüentadores vinha exclusivamente para o
baile. Muitos vestiam as cores azul e branco, inclusive os músicos da banda, por exigência da
direção. Rosa, que chegou a tempo de degustar o coquetel junto com o seu marido, Nelson,
e seu professor de dança, Mário – contou-me que: – Há pouco tempo atrás todos que
quisessem participar dessa festa não poderiam entrar se não usassem as roupas nessas cores.
Naquela noite, os associados antigos que exerciam ou exerceram alguma função
administrativa no Clube procuravam manter a fidelidade a tais colorações em suas
vestimentas. Mais uma vez, manipulando elementos a um só tempo sagrados e raros, os sócios
distinguiam-se dos demais.
12
Atualmente o Democráticos mantém uma estrutura organizativa composta por um Conselho Deliberativo com
presidente e 1
a
secretária; um Conselho Consultivo com 5 membros; e uma Comissão Gestora com presidente e
vice-presidentes da secretaria, das finanças, do patrimônio, do social, e três diretores sociais (anexo 1).
19
Um pouco antes da banda Resumo começar a tocar, um rapaz de aproximadamente 23
anos foi barrado na portaria do baile social porque calçava tênis. Seu pai, recentemente
associado, insistia com a direção para que o permitisse entrar, afinal era dia dos pais e ele
levava sua esposa e seu filho para comemorar no Clube. A negociação foi demorada; o
associado insistia com as diretoras sociais, até que ele resolveu pedir ao Arnaldo, um
freqüentador antigo do Clube que mora próximo ao Democráticos, na rua Francisco Muratori,
um sapato emprestado para o seu filho. Arnaldo reclamava que pouco tempo atrás havia
prestado tal favor a esse mesmo senhor, na primeira vez em que ele compareceu ao baile.
Agora se negava a ajudá-lo, alegando que o rapaz teria o maior que o seu. Depois o pai
dirigiu-se à Laurita para resolver a situação. Ela obteve a permissão do presidente do Clube,
Arcádio Antunes, e liberou a entrada do rapaz que esperava a decisão junto à sua mãe, na
portaria. Ao adentrar no salão, foi encaminhado rapidamente por uma das diretoras sociais
para o local onde permaneceria, passando pelas bordas do conglomerado de mesas. Sentou-se
ao lado do operador de som, à direita do palco, em um lugar pouco privilegiado dentro da
disposição hierarquizada das mesas.
Quando a música ao vivo começou a tocar, prontamente os casais dirigiram-se ao
salão de dança. Muitos deixavam para se cumprimentar apenas neste momento, quando
dançavam. Os homens davam-se tapinhas nas costas ou toques na cintura uns dos outros,
enquanto as mulheres acenavam com a cabeça trocando não mais que duas ou três frases.
Outro movimento comum era segurar o passo da dança, movendo-se sem sair do lugar, para
atualizar o cumprimento com aqueles que se sentavam nas mesas em volta da pista. Nelson, o
marido de Rosa, falava em voz alta desde sua mesa a um casal de amigos que trocavam beijos
enquanto dançavam diante de nós: – Ei, olha isso aí, esse clube é família, tem que respeitar! O
casal ria do comentário, voltava a se beijar e cumprimentava-os em seguida.
Rosa tirou Mário para dançar o "soltinho"
13
. Eles também, na pista, tratavam de
cumprimentar os seus amigos e conhecidos. Quando conheci Rosa, em fevereiro, ela estava
separada do Nelson e eu a encontrava apenas acompanhada pelo Mário nos bailes. Há mais ou
menos quinze anos, Mário a acompanhava nos salões, e, a cada baile, recebia 20 reais de
pagamento ao serviço prestado como dançarino. Além do dinheiro, ela lhe oferecia festas de
aniversário e presentes e responsabilizava-se por mantê-lo como sócio do Clube, pagando
suas mensalidades.
Eu tinha começado a fazer aula de dança de salão com Mário um dia depois da
Quarta-feira de Cinzas (10/02/05) no seu conjugado (também localizado, tal como o Clube
20
Democráticos, na rua do Riachuelo). Mas passei a sentar-me com os dois, nos
Democráticos, no final do mês de março, quando, a essa altura, ela tinha reatado o seu
namoro de onze anos com Nelson.
Rosa foi casada com dois militares falecidos, e depois de ficar viúva pela segunda
vez, no final da década de oitenta, começou a freqüentar aulas de dança de salão com um
grupo de seis amigas que moravam ou ainda moram em Copacabana. Todas eram viúvas e,
depois de já terem feito aulas particulares ou em academias, foram praticar, aprender e
conhecer a dança de salão com o Mário. As seis mulheres passaram a freqüentar o seu
apartamento, no mesmo prédio onde ele morava ainda nesta ocasião narrada.
Elas contavam que naquela época andavam sempre juntas: iam a muitos bailes,
reuniam-se na casa de Rosa e, aos fins de semana, encontravam-se no Clube Militar aonde
Rosa, sendo sócia, podia levar os seus convidados. tomavam sol na piscina e depois iam
para um salão treinar suas danças com Mário, onde ficavam até às 18h. Voltavam para casa e
preparavam-se para o baile. Hoje esse grupo se dispersou. Algumas só freqüentam os “bailes-
ficha” de Copacabana, outras não dançam por restrições médicas, duas delas freqüentam
outros clubes com seus dançarinos contratados, e uma última não vai mais a bailes por causa
da tristeza que a perda de um filho lhe causou. Apenas em datas comemorativas elas se
reencontram – e foi em uma dessas ocasiões que tive a oportunidade de conhecê-las.
Enquanto Rosa dançava o soltinho com Mário, Nelson queixava-se dessa modalidade
de dança que considerava "fajuta". Dizia que hoje em dia aquando se toca bolero estão
dançando soltinho. Enquanto não retornavam à mesa, ele avaliava o baile: Eu não gosto de
dançar quando o salão está cheio porque depois eu me aborreço; viu, né? Ainda mais
com essa banda tocando música corrida desse jeito. Teve um par de vezes aqui que eu quase
parti para cima desse tal de Hugo [vice-presidente de patrimônio]. Você sabe de quem eu
estou falando? Desse ex-namorado da Rosa que se faz de diretor do Clube. Eu dançando com
ela, ele vinha e tropeçava na gente; aconteceu duas vezes e eu não tirei satisfação porque a
Rosa me impediu. Mas eu tenho certeza que foi de propósito.
Depois de dançarem por volta de três músicas consecutivas, eles retornaram à mesa.
Rosa ofereceu-me Mário para que eu dançasse justo no momento em que a banda começava a
tocar samba. Mário prontamente levantou-se, convocando-me ao salão. Ele seguia
cumprimentando seus conhecidos e entretinha -se mais com aqueles que nos cercavam do que
com a dança que empreendíamos. Dançamos em torno de quatro sambas até que,
13
As modalidades e estilos de dança de salão são explorados na próxima parte.
21
encaminhando a nossa dança em direção à mesa, sugeriu que nos sentássemos. Em seguida,
um senhor chamado Getúlio dirigiu-se a mim e, estendendo-me a mão, tirou-me para dançar.
A banda, especialmente naquela noite, estava com um repertório musical bastante
eclético, que destoava do que normalmente se ouvia nos bailes. Tocaram samba e choro de
gafieira, mambo, rumba e merengue; e foi justamente quando comecei a dançar com o seu
Getúlio, que foram tocar tais ritmos caribenhos.
Getúlio, que tem 69 anos, foi professor de dança de salão e empenhou-se em me
ensinar a dançar aqueles ritmos que eu ainda não tinha ouvido em nenhum outro baile de
dança de salão e que de certa forma indicavam a raridade da ocasião. Enquanto dançávamos,
contava-me a sua história de dançarino: Eu ganhei muitos concursos de dança, inclusive
do Carlinhos de Jesus
14
, que, quando começou, eu tinha anos de estrada. Mas depois que
minha mulher faleceu, eu tive que fechar a academia que a gente tinha aberto em Bonsucesso
[bairro da zona norte da cidade]. Nessa época eu tinha para mais de 50 alunos e até hoje,
quando esses que aprenderam a dançar comigo me vêem nos bailes, eles dizem que estão
esperando que eu volte a dar aula. Mas agora já não mais não. Minha mulher era tudo para
mim, além de ter sido a melhor partner
15
que um dançarino pode ter. Ela dançava muito. Eu
também trabalhei como percursionista, toquei com o Raul de Barros
16
, mas eu ficava louco
para largar o instrumento e ir dançar. Então nos intervalos eu descia do palco e fazia
apresentação de tango com a minha mulher.
Getúlio, como declaram muitos freqüentadores do Clube, além de ir ao baile social dos
Democráticos, percorre os bailes da Estudantina, do Bola Preta e do Clube Municipal. Ele
afirma que não vai todos os dias aos bailes porque mora na Pedra Mauá (bairro que fica
próximo de Magé, em direção à Região dos Lagos), longe da cidade do Rio de Janeiro. Para
retornar à casa, Getúlio precisa pegar um ônibus na Central do Brasil e ainda contar com uma
carona para chegar a Pedra Mauá, pois não condução de madrugada. Ainda assim ele
garante que pelo menos três vezes por semana vai aos bailes.
No primeiro intervalo da banda, a diretora social assumiu o microfone diante do palco,
acenderam-se as luzes e ela agradeceu a presença de todos que prestigiavam o baile da
14
Trata-se de um bailarino de dança de salão renomado que faz coreografias e espetáculos de dança e é dono de
academia. Recentemente lançou uma autobiografia intitulada Vem dançar comigo (2005).
15
Denominação dada ao parceiro ou parceira fixos na dança.
16
Trombonista que, até os anos 70, tocou em muitas gafieiras. Mário contou-me que Raul de Barros descia do
palco tocando o seu instrumento para se aproximar dos dançarinos que lhe despertavam o entusiasmo do
improviso, sugerindo musicalmente ao par na dança variações nos seus movimentos. Ele gravou alguns discos,
dentre eles "O som da Gafieira", onde algumas músicas compostas por ele e outros abordam situações vividas
nos bailes, como: "Tema de Gafieira Flor de Liz", "Estatuto da Gafieira" e "Piston de Gafieira". Essas duas
últimas são composições do Billy Blanco e do Silvio Caldas. As letras encontram-se no anexo 4.
22
Padroeira: Aos senhores visitantes que ainda não são sócios, ao quadro social, aos
associados, conselheiros e amigos da casa. Laurita chamou à frente do palco, nome a nome,
aqueles que hoje compõem os conselhos e a comissão gestora do clube, e ainda os sócios
beneméritos e grandes beneméritos presentes. O primeiro a discursar em nome da festa de
Nossa Senhora da Glória foi o reverenciado, pelos "seus 40 anos de dedicação à casa", dr.
Vicente, presidente do conselho consultivo e grande benemérito do Clube. Este senhor contou
a história da santa, escolhida em 1867 para ser a padroeira dos Democráticos. E depois de
destacar que a imagem da Nossa Senhora da Glória que o Clube possui teria vindo de
Portugal
17
, dizia: Ela, com o seu manto sagrado, de cobrir a nossa casa, a nossa família,
os nossos amigos e convidados. Porque são 138 anos de existência e é com muito esforço que
a gente vem sobrevivendo. Agora acabamos de pagar todas as nossas contas, promovemos
obras no banheiro, nas paredes internas e renovamos a fachada; e tudo isso é fruto de uma
vida de luta e de alegrias que juntos construímos nessa casa. A nossa missão é manter essa
instituição viva e caracterizada. Vicente finalizou o seu discurso, marcado pelo topos da
superação de desafios, homenageando os membros dos conselhos e da comissão gestora, e
destacando a atuação do presidente do Clube, qualificado como um "grande tocador de
obras".
Outros conselheiros tiveram direito à fala no microfone. Mais tarde, no segundo
intervalo da banda, prestaram uma homenagem ao eleito "pai do ano" pela direção do Clube:
justamente o pai do rapaz que entrou de tênis o qual recebeu das mãos do presidente um
diploma emoldurado. O filho do "pai do ano" foi chamado no microfone para dirigir-se à
frente do palco. O rapaz titubeou, pois antes lhe teriam dito para que não circulasse pelo salão,
pois ele estaria infringindo uma norma da casa, sempre lembrada ao microfone pela diretora
social: a de que não seria permitida a entrada daqueles que estivessem vestindo calça jeans ou
usando tênis. E, naquele momento, ele era convocado a prostrar-se diante do palco e de todos,
sob a luz branca que se acende nos intervalos.
Rosa e Nelson estranharam a homenagem prestada àquela família que, como disseram,
eles sequer conheciam. Os mesmos, durante o baile, haviam dado algumas demonstrações de
que não dominavam os códigos instituídos no Clube. Não era difícil de identificar, por
contraste aos outros bailantes, que esse casal parecia ensaiar os seus primeiros passos na
dança e no baile social. A aparente ambigüidade do tratamento dispensado aos recém-
17
Essa imagem,
de mais ou menos um metro de altura, fica protegida por uma redoma de vidro em uma ante-
sala, na parte privativa do clube à direção, próxima à sala da presidência. Nessa ante-sala, estão expostos mais de
40 retratos emoldurados, muitos do século XIX, daqueles que participaram da direção do Clube. A maioria
desses diretores eram imigrantes portugueses.
23
chegados ao salão parecia evidenciar algo como um duplo vínculo de incorporação e de
exclusão (Bateson, 1998). Eles recebiam uma homenagem passando por uma humilhação, o
que de certa forma os inseria por via traumática em uma experiência bastante presente no
cotidiano dos bailes
18
.
Essa prestação de homenagens durante o baile, com entregas de diplomas e placas, e
as intervenções em nome do apreço ao baile social e das relações definidas como familiares
inscritas naquela "casa", naquele Clube, manifestavam publicamente o poder daqueles
envolvidos em tais práticas. Estar à frente de todos, diante do palco, vestindo as cores do
Clube, discursando em nome de uma instituição secular onde vigoravam a tradição, a religião,
o trabalho pessoal e o esforço conjunto, constituíam elementos que a um tempo
valorizavam o orador e o homenageado em questão, considerado um pai de família de boa
conduta. Tomar parte no cerimonial confirmava a existência social daquelas pessoas em uma
gradação indicada pela maior ou menor habilidade em lidar com o próprio ato da cerimônia.
Em tais pronunciamentos, estava em jogo a possibilidade de manter distância daqueles que
não eram identificados como membros da boa sociedade ou integrantes da estimada “família
Democráticos”. E isso era percebido e apontado pelos próprios bailantes, cônscios da sua
posição social nos Clubes
19
.
Neuza, que três anos freqüenta o Clube acompanhada por aquele que ela chama de
“seu dançarino”, cujo nome é Lauro, queixava-se de tanto discurso. Afirmava com veemência
que tudo aquilo o passava de uma farsa: Eu não agüento mais essa velharia. Eu não
acredito em uma palavra deles. Esse papo desse amor todo aí, de uma grande família;
para nós, isso é tudo mentira. E gritava: Anda! Chega disso, eu venho aqui é para dançar.
Sua amiga, que se sentava à mesa ao lado junto de seu dançarino, levantava os braços e
demonstrava-se também insatisfeita com as intervenções de membros da direção. A
impaciência que se instalava entre essas mulheres que contratavam dançarinos sinalizava um
mal-estar e expressava a existência de posições diversas na hierarquia do Clube, que
procurarei esclarecer ao longo da dissertação.
18
Bourdieu (2002) narra o constrangimento ao qual os camponeses celibatários de Beárn estavam sujeitos
durante o baile. Estes deixariam entrever, por meio de sua hexis corporal, o fato de não dominarem as técnicas
necessárias às danças da moda citadina, próprias daqueles homens que causavam fascínio e interesse nas moças
casadoiras.
19
"A elaboração meticulosa da etiqueta, do cerimonial, do gosto, das vestimentas, da atitude e até da própria
conversa tinha a mesma função. Cada detalhe constituía, então, uma arma na luta por prestígio, de modo que
elaborá-los não servia somente para a representação ostentatória e para a conquista de maior status e poder, para
a segregação em relação aos de fora, mas também marcava mentalmente a distância entre os membros da
sociedade" (Elias, 2001:126).
24
Esses 'casais por contrato' viviam uma relação conflituosa com aqueles que
discursavam ao microfone e que, aos olhos deles, procuravam manter seu isolamento diante
das ameaças circundantes ameaças aos costumes, ao regimento, ao estatuto, às boas
maneiras. E nessa configuração das relações, também se podia verificar, de modo semelhante,
aquilo que elaborou Elias (2001) a respeito das cerimônias do quarto do Luís XIV:
"[A] pressão dos relativamente menos privilegiados obrigava os que usufruíam de
mais direitos a conservar seus privilégios. E, pelo lado oposto, a pressão de cima
forçava quem estava sujeito a ela a empenhar-se para escapar; impelia-os também
para a esfera da concorrência por status (...). Todo e qualquer vínculo existente
ficava incessantemente exposto aos ataques de quem ocupava um nível mais baixo,
ou dos rivais e concorrentes do mesmo nível. Os ataques vinham na tentativa de
inserir mudanças na etiqueta e, assim, na hierarquia social” (:105).
Os olhares atentos de uns, as lágrimas valorizadas por outros, o silêncio daqueles que
aguardavam a próxima música, o gesticular com os braços, o retorcer dos rostos e os gritos de
insatisfação
20
constituíam-se diversas expectativas e interpretações àquela espécie de ode aos
Democráticos, à "grande família", à "casa" que abrigava a todos, mas acolhia corpos seletos.
*
Neste tópico, procurei expor o evento do Baile da Padroeira apontando para algumas
questões que me pareceram essenciais à apresentação do funcionamento do Clube, qual seja,
como se dão a estrutura organizativa das atividades, a composição do chamado quadro social,
e o jogo das posições física (a dança das mesas) e social (atributos valorados), prestígio e
status). A seguir, apresento aqueles que mantêm relações tensas com a hierarquia instituída
dos privilégios e dos papéis tradicionais. Essas pessoas, como veremos, elaboram seus valores
ao mesmo tempo em que os redefinem, fazendo com que o pêndulo da balança do equilíbrio
do poder ora penda para um lado, ora para o outro.
20
E aqui sugiro que a expressão desses sentimentos e emoções diante do cerimonial, por meio de gritos, lágrimas
e aplausos, possa ser encarada como ações socialmente impostas e cuidadosamente pautadas. Conforme Mauss
analisou na "Expressão obrigatória dos sentimentos", os gritos e prantos diante da morte compreendem uma
linguagem, e aparecem como frases e palavras que expressam mais do que os próprios sentimentos – "manifesta-
se a si, exprimindo aos outros, por conta dos outros" (1979:153).
25
2. 'Casais por contrato' e a balança de poder 'inter' e 'intra' sexos
Na primeira noite em que fui ao baile social (no dia 10/10/04), fui tirada para dançar
pelo Arnaldo, o freqüentador que mora próximo ao Clube. Arnaldo conhecia a amiga que me
acompanhava naquela ocasião, pois ela trabalhava na bilheteria dos Democráticos em outros
dias da semana, quando o espaço é alugado para eventos musicais ligados ao chamado samba
de raiz, dirigido a um público de jovens de camadas médias
21
.
Arnaldo, quando viu minha amiga no baile social, lhe disse: Finalmente resolveu
largar aquele pagode dos universitários e conhecer um baile de verdade; isso aqui não é
aquele bailinho de quinta-feira onde as pessoas vestem chinelo de retirante, bermuda e fica
todo mundo em pé, não. Agora você vai ver o que é realmente bom! Ele frisava muitas das
qualidades que distinguem os bailes, algumas das quais apresentadas neste trabalho
sobretudo aquelas que dizem respeito aos trajes adequados e à ocupação das mesas. Seu
comentário, porém, não ficou nas palavras. Ele ensaiou tirar a minha amiga para dançar,
mas ela recusou-se pois, apesar da fama de “pé-de-valsa” que tinha, o se sentia apta a
acompanhá-lo naquele cenário de dança tão distinto do qual ela costumava interagir. E, então,
o convite se estendeu a mim.
Senti igualmente um certo receio; as pessoas ao redor se movimentavam no salão, com
variações de passos díspares e ligeiros. A expertise dos casais me levava a classificá-los como
dançarinos profissionais. E o que significava ser profissional em um ambiente de dança, de
lazer, de diversão? Aquele era o primeiro momento em que se tornava sensível para mim a
importância vital dos outros casais para a constituição de uma apreciação da dança
sensibilidade que eu viria a desenvolver atenta à sua inarredável importância para o grupo de
bailantes.
Procurei ficar atenta ao modo como Arnaldo me conduzia e tentei responder aos seus
estímulos corpóreos que me direcionavam de um lado ao outro (por meio de leves toques nas
costas e alguns tirões mais fortes em minha mão). Somente depois de acertarmos os passos
básicos, sobre os quais nos mantivemos ao longo de três músicas, pudemos conversar
enquanto dançávamos, mantendo os movimentos de corpo em consonância com a música.
Ele me contou que era do Ceará, que tinha um filho e que mesmo aposentado, aos 67
anos trabalhava, aos sábados, vendendo livros usados e cartão postal antigo na feira da Praça
21
Ao menos três anos, grupos de jovens chamados “universitários" passaram a promover eventos de samba e
a freqüentar o Clube dos Democráticos. O sucesso desse empreendimento, realizado em um espaço que reúne
todas as “lendas” a respeito da "boemia carioca", tem levado aos salões do Clube uma parcela dos turistas que
vêm ao centro da cidade à procura de diversão noturna no cenário da Lapa. Para uma análise a respeito da
26
Quinze, no centro da cidade. Relatava-me, com certa mágoa, que, apesar de trinta anos
freqüentar o Clube, não fora promovido a sócio remido por ter se afastado dos bailes depois
do nascimento do seu filho, deixando de ser sócio contribuinte. Hoje o menino tem 7 anos e
desde que, três, Arnaldo se separou da mulher que havia conhecido no Clube, voltou a
freqüentar os salões.
Ele ocupava uma mesa na borda do salão, de frente para o palco, de um sócio
benemérito que comparecia ao Clube em ocasiões festivas momento em que Arnaldo,
que era sócio contribuinte, era obrigado a retirar-se da mesma. Mais uma vez, como sugere
Elias (2001), "[a] noblesse não queria nem podia ceder seu lugar àqueles que não eram nobres
e tinham de pagar impostos" (:105). Nesse caso, o sócio benemérito não poderia ceder seu
lugar a um sócio-contribuinte, pois tal atitude ameaçava a hierarquia de privilégios instituída.
Essa situação era constrangedora e lhe causava grande incômodo. A cada vez que ocorria
foram duas ou três vezes que presenciei essa troca de lugares – ele afirmava que não voltaria a
se sentar em uma mesa que não fosse a dele. Deslocar-se do lugar que tinha por costume
sentar-se, além de reposicioná-lo, física e hierarquicamente, de uma forma não desejada,
significava uma quebra nas relações que estabelecia com aqueles que se sentavam próximos a
ele. Era com esses que ele trocava olhares, elogios, gentilezas, por vezes desaforos, danças, e
elaborava suas teorias a respeito da vida, do baile e dos casais dançando. E por vezes vivia
situações conflituosas, como está sujeita toda relação de obrigações sociais
22
. Era ainda nesse
conglomerado de mesas que ele tinha o controle das mulheres que estavam disponíveis à
dança; normalmente aquelas desacompanhadas, com as quais, pelo convívio, estabelecia certa
intimidade.
Arnaldo ficava atento às mulheres desacompanhadas e recém-chegadas no baile
geralmente sentadas às mesas mais periféricas – sem muita habilidade com a dança de salão e
pouco disputadas pelos outros homens do Clube. Ele aproximou-se de mim em meus
primeiros meses de freqüência ao baile, tirando-me para dançar a despeito de minhas
dificuldades e embaraço. Sua dança era classificada como moda antiga" o que facilitava
com que eu o acompanhasse, pois fazíamos poucas variações de passos. Desprestigiado pelo
estilo de sua dança, nem mesmo o fato de ocupar uma mesa à borda do salão adquirida por
categoria "universitário" e sobre a manipulação do que vem a ser um gênero musical "de raiz", isto é, "genuíno"
e "autêntico", ver o estudo de Ceva (2001), sobre o "forró universitário".
22
Em Sigaud (2004), é explorado um caso etnográfico de um trabalhador da cana que vai à Justiça contra seu
patrão depois de entender que um código de respeito mútuo entre eles fora profanado. A autora sugere que uma
noção de reciprocidade harmônica (em termos clássicos, inercialmente marcada pelos atos de dar, receber e
retribuir) deveria ser suplantada por uma noção de “obrigação” que, no caso, responderia pela mudança social
relativa à noção de direitos.
27
empréstimo ajudava-o a garantir reconhecimento frente àqueles que freqüentavam o Clube.
Tampouco Arnaldo expressava uma polidez de comportamento, ou evidenciava em suas
vestimentas algo que pudesse associá-lo a um homem de posses. Além disso, os seus cabelos
brancos, mais do que o seu porte físico, demonstravam seus anos de vida, e a velhice,
expressa em parte pela aparência, nem sempre era apreciada pelos bailantes nos salões.
Apesar de todos esses atributos desvalorizados e também da fama de rabugento, Arnaldo tinha
adquirido, ao longo do seu tempo de associado, certa popularidade entre os freqüentadores do
Clube. Como uma espécie de “dublê de outro” (cf. Borges, 2006), ele transitava entre os
integrantes da boa sociedade e fazia amizade com os 'casais por contrato', apesar de não
poupar críticas a ambos.
Na primeira noite em que dançamos, após saber do meu interesse em fazer do Clube
dos Democráticos um campo de pesquisa, induzia-me a observar a diferença de idade entre os
casais ao nosso entorno enquanto me conduzia na dança. Em um tom depreciativo, lamentava
os dias de hoje e, com nostalgia, lembrava-se de um tempo que se perdeu: Ih, minha filha;
isso aqui não presta mais não! Foi-se o tempo... Mas que você querendo pesquisar esse
museu de velharia, oh, está vendo aquela velha gorda ali, só, ela dança a noite toda com o
mesmo par. É tudo contratado de academia. Elas pagam para eles dançarem com elas. Eu é
que não quero vir para ficar a noite toda dançando com essas velhas pelancudas. Eu venho
para o baile para me divertir, para conhecer pessoas e dançar com mulheres bonitas. Não me
presto de jeito nenhum a esse tipo de serviço. Além do que, essa gente não dança nada. Eles
ficam treinando com o mesmo par na academia para fazer o que fazem aqui.
Arnaldo anunciava-me gradualmente os temas que povoavam a vida dos bailantes e
que me desafiariam daquele momento em diante: a maestria na dança, a hierarquia na
estrutura do Clube, e a relação entre idade e sexo dos casais, reforçada pelo estilo de dançar
que diferencia freqüentadores 'das antigas' e recém-chegados das academias. Devo ressaltar
que, na perspectiva daqueles que freqüentam os clubes mais de vinte anos, os que não
tinham dez anos de "casa" podiam ser encarados como recém-chegados.
Temas como velhice e gênero me eram, portanto, sugeridos pelos bailantes, porém não
como dados soltos, que apresentam um significado em si. As inferências sobre o ser velho ou
jovem, ser homem ou mulher, ganhavam sentido no contexto da dança, onde estes
atributos, somados a outros, correlacionavam-se e apresentavam valores tão cambiantes
quanto a troca das músicas e dos casais. Nenhum termo se mostrava fixo nessa figuração, e,
deste modo, não se podia estabelecer a priori o que era ser velho, mulher, bom ou mau
dançarino: tudo dependia da perspectiva de quem analisava e de como estes tantos fatores
28
estavam combinados em determinado momento. Assim, uma circunstância que aparecia
valorada positivamente, podia ser apresentada por outrem ou pela mesma pessoa em um
outro momento – de forma depreciativa e jocosa.
Ao longo de minhas primeiras inserções nos clubes, ouvia manifestações similares à
de Arnaldo e percebia que a presença e a performance de certos dançarinos contratados
apareciam como fatores desestabilizadores das relações inter e intra sexos que se
configuravam naquele espaço. Nessa nova posição, a ‘mulher contratante’, mesmo aquela
com mais idade
23
, não precisava mais esperar o convite do homem para dançar, e, assim,
exibia nos salões as suas fortunas: o seu dançarino, o seu bailado, as suas roupas e a sua
resistência física.
Freqüentadores das antigas, assim como Arnaldo, pareciam se afetar com isso. Muitos,
homens e mulheres, associavam a chegada desses dançarinos à perda do romantismo e do
glamour, que existiria até os mesmos terem “invadido os salões”. O romantismo era sobretudo
ilustrado pela forma de se abordar uma mulher. Antes, diziam os 'das antigas': Os
cavalheiros iam ao baile e observavam a dama, a maneira como ela se vestia, o modo como
dançava, sua elegância, até convidá-la para dançar, levando-a de volta à sua mesa. A
importância concedida ao tratamento formal dirigido à mulher em público aparecia em
inúmeros relatos dos 'das antigas'. Essas falas manifestavam a energia social despendida pelos
mesmos na tentativa de publicizar e manter certos códigos de comportamento fazendo frente
aos recém-chegados aos salões ('casais por contrato'), os quais, como irei mostrar mais
adiante, ameaçavam a sua posição social dentro dessa figuração
24
.
Para os freqüentadores 'das antigas', o próprio prazer relacionado à junção dos corpos
na dança teria um significado distinto nessa outra época justamente pela importância atribuída
ao ato de cortejar uma mulher. Esse cortejar, segundo relatos, não seria mais uma prática
comum nos bailes de hoje, o que se deveria à difusão dos 'casais por contrato' nos salões.
23
A recente terminologia acerca da "terceira idade", da "idade do lazer" ou da "melhor idade", marca a
construção social de um problema que, como aponta Lenoir (1979), esteve relacionado a diferentes agentes
interessados na gestão da velhice. Este autor demonstra a importância de descrever o processo social através do
qual os indivíduos são socialmente designados como velhos. Um esforço analítico para compreender o baile de
salão como uma figuração (Elias, 1994), como aqui proposto, desloca a perspectiva de um único eixo orientador
como a idade ou o gênero a fim de demonstrar que o processo de construção de tais atributos se de
maneira relacional (isto é, a partir de relações sociais).
24
Aqui, como na sociedade de corte analisada por Elias (2001) onde a prudência e a reserva apareciam como
alguns dos traços dominantes no trato com as pessoas, tendo em vista que os relacionamentos nessa sociedade
eram duradouros –, o 'como' do comportamento, a maneira de lidar com as pessoas, não é somente um meio para
alcançar um objetivo, mas apresenta também um fim em si: o de criar um determinado vínculo. "Isso que
chamamos de apego às aparências, de formalismo, nada mais é do que a expressão do primado da correlação de
todas as coisas e acontecimentos com as chances de status ou de poder da pessoa que age em seu relacionamento
com outras pessoas" (Elias, 2001:124).
29
Tanto os homens como as mulheres, portanto, apontavam para uma ameaça que rondava os
salões: a ausência dos gestos cordiais nas relações que se reconfiguravam de um modo
indesejável para os 'das antigas'.
Moraes (2004) chama esse cortejar, ao qual me refiro, de cavalheirismo. Aponta-o
como regra principal de conduta nos bailes de dança de salão e afirma que o mesmo expressa
"o controle do homem sobre a mulher representando um tipo de relacionamento hierárquico
que está presente na vida cotidiana" (:50). Ao analisar os bailes como um espaço de
sociabilidade, conforme propôs Simmel (1983), onde vigorariam as regras de uma estrutura
social mais abrangente, Moraes sugere que exista um padrão de comportamento comum entre
"dama" e "cavalheiro" no salão que reproduz "uma relação hierárquica nos moldes de Dumont
(1992), uma relação de troca entre diferenças complementares" (:55). A competição entre os
sexos é um enfoque recorrente em sua análise, competição que aparece "transcrita nas regras
de vestir, da polidez e da hierarquia no salão, sendo o cavalheirismo a sua mais alta
expressão" (:55). A autora indica que, por meio do cavalheirismo, dá-se a primazia da ação do
homem no salão, pois é ele quem escolhe a mulher para dançar, buscando nela dois atributos
fundamentais: habilidade com a dança e juventude. O cavalheiro, sendo o responsável pela
condução e pela proteção da mulher durante a dança no salão, poderá desfrutar da sua
aparição por meio da boa condução da dama. Partindo desses códigos de comportamento, a
autora explora o cavalheirismo como meio através do qual a desigualdade entre os sexos
reproduz-se no salão.
Moraes (2004) baseia sua análise em princípios da chamada dominação masculina,
evocando, mesmo sem citá-lo, os argumentos sustentados por Bourdieu (1999). A
predominância masculina, de acordo com este autor, permeia o mundo social, sendo tanto
elaborada quanto garantida por agentes e instituições como Escola, Estado, Igreja, etc. Esta
estrutura de relação social reverbera nos espaços mais íntimos de convivência, conforme
demonstrou no seu estudo sobre os camponeses das aldeias Kabília (Bourdieu, 2002), onde a
divisão entre os sexos aparece inscrita em todas as partes da casa, bem como nos corpos das
pessoas sob a forma de hexis corporal (cf. Bourdieu, 1999)
25
.
Esse tipo de abordagem que fixa a posição social de um indivíduo em uma estrutura
mais ampla, distingue-se daquela proposta por Elias (1998) centrada na noção de equilíbrio de
25
"A divisão entre os sexos está presente em todo o mundo social, em estado incorporado, nos corpos e nos
habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. Esse
programa social de percepção incorporada aplica-se ao próprio corpo (...) e é ele que constrói a diferença entre os
sexos biológicos, conformando-a aos princípios de
uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária
30
poder entre os sexos equilíbrio que se altera acompanhando o movimento das
interdependências e ações dos indivíduos em configurações particulares. Ao analisar a
desigualdade de poder entre os sexos ao longo da história, Elias não nega uma conformação
estrutural. No entanto, mais do que um quadro de antagonismos perene, Elias aposta na
imagem de um pêndulo que pende ora para um lado ora para o outro, de acordo com as
relações instituídas nas figurações. Inspirados pela abordagem deste autor, poderíamos
compreender essa forma de tratar as mulheres publicamente apontada como expressão de
uma atitude masculina dominadora por Moraes (2004) como dotada de teor semelhante
àqueles comportamentos dispensados a um soberano (ficar atrás de uma mulher enquanto ela
cruza uma porta, não se sentar enquanto a mulher não o fizer e, sinal supremo da
subordinação, beijar a mão da mulher em reverência). Elias não chama esses atos de
cavalheirismo, mas de rituais de saudação (greeting rituals). Sem sexualizar o termo, o autor
pretende demonstrar que, em tais situações, impunha-se aos homens um constrangimento (de
prostrar-se diante de uma mulher) que poderia se agravar caso a mulher não respondesse ao
seu cumprimento (1998:189).
Nos bailes que freqüentei, essas atitudes cordiais, ou regras de conduta que seguem
sendo usuais nos salões (mesmo entre 'casais por contrato'), contrariando os saudosos relatos
dos 'das antigas' sobre sua extinção –, não eram encaradas pelas bailantes como índices de
uma posição social que sobrepunha um sexo ao outro, mas sim como gestos compartilhados e
desejados por ambos. A idéia que devo explorar não é a de que haja uma dominação
intrínseca do homem sobre a mulher que se reflita em atitudes como a de estender a mão à
"dama" para uma dança, de conduzi-la durante a mesma ou de levá-la de volta à sua mesa. As
mulheres com as quais convivi valorizavam esses códigos de conduta e requeriam que fossem
tratadas em público como pessoas merecedoras de tal zelo. Elas, portanto, não davam a sua
parcela de contribuição à manutenção desses gestos cordiais entre os sexos, como podiam
expor o homem a uma situação embaraçosa caso, por exemplo, viessem a recusar o pedido de
uma dança ou mesmo a difamar o parceiro de dança como um mau dançarino.
É neste sentido que reitero a abordagem figuracional de Elias (1981, 1994, 2000,
2001), a qual, como vimos, não cede espaço para a aceitação de uma proeminência da
sociedade sobre o indivíduo, ou para o senso de se estar preso e englobado por um
determinado modelo de dominação que independa da dinâmica das relações entre os grupos,
de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma, inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da
ordem social" (Bourdieu, 1999:17).
31
entre as pessoas e, no caso aqui estudado, entre os casais
26
. E, para não correr o risco de
partir de questões que são elas mesmas respostas, procurarei expor, ao longo da dissertação,
os variados modos como as relações entre homens e mulheres se davam sem tomar a
diferença entre os sexos como um dado, um fato pré-social ou um atributo essencializado que
de antemão irá ditar um ordenamento das relações.
Não pretendo, portanto, lançar mão desse primado do domínio masculino que pairaria
sobre o mundo, sobre todas as coisas ou sobre todos os corpos, mas, de outra forma,
confrontar as relações estabelecidas nos bailes entre homens e mulheres, entre mulheres e
mulheres e entre homens e homens, sem me utilizar de uma categoria analítica de gênero que
parte de um a priori dicotômico e assimétrico entre os sexos
27
. Firmar de antemão o que é ser
homem ou mulher neste contexto, bem como fixar padrões de comportamento de gênero ou
de velhice (como veremos adiante), inviabiliza uma abordagem etnográfica figuracional em
que os atributos não-estanques se combinam, se transformam e são avaliados de diferentes
formas pelos bailantes em conjunto ou por um bailante em particular – ao longo do tempo e
das relações estabelecidas.
Mesmo considerando que os pares do salão têm algo em comum com uma "estrutura
social mais abrangente", uma suposta relação de hierarquia não é de todo generalizável. Ou
seja, o que pode ser denominado como "dominação masculina" em um contexto doméstico,
por exemplo, não pode ser transposto para um outro contexto, como o da dança, sem se
avaliar a apreciação dos bailantes sobre a relação inter-sexo na figuração dos salões.
Conforme procurarei demonstrar, por mais que irremediavelmente o homem seja o condutor
na dança, ele não é hierarquicamente superior à mulher a não ser que consideremos um
valor intrínseco ao conduzir que sobrepuje o valor de ser conduzida. Até porque, como
26
A idéia de dominação masculina universal associada ao conceito de gênero orientou grande parte dos estudos
antropológicos sobre a mulher, que principalmente na década de 70 manteve relações estreitas com as
motivações políticas feministas e com os estudos marxistas. Lasmar (1996) analisou os principais paradigmas
analíticos utilizados pela chamada Antropologia Feminista para pensar a questão do gênero durante as
décadas de 70 e 80. Ao elaborar alguns questionamentos a respeito da pertinência da dominação masculina como
uma categoria analítica universal, aplicável a todas as sociedades humanas, Lasmar sugere: "Ainda que com
algumas exceções, de uma maneira geral é possível afirmar que as antropólogas feministas da primeira fase [leia-
se anos 70] marcharam na direção das outras sociedades munidas de um arsenal teórico e conceitual forjado no
contexto de uma luta que lhes era própria e cara. O problema foi terem esquecido de perguntar às mulheres que
transformaram em objeto se a dominação masculina, que no Ocidente assumiu um estatuto de problema, era
problematizada por elas” (1996:29-30).
27
No esteio dessa divisão baseada em uma apreciação anatômica e fisiológica, o conceito de gênero surge como
um construto social e vai carregar consigo uma série de pressupostos que se tornam essenciais nas abordagens
sobre os papéis, as esferas ou domínios e as identidades elaborados culturalmente a partir de uma diferença
biológica entre os sexos. E a uma literatura clássica de gênero (Rosaldo & Lamphere, 1974; Ortner, 1976;
Rosaldo, 1974, 1980) que postula a divisão entre público e privado, cultura e natureza, produção e reprodução,
dominação e subordinação atribuindo universalmente aos homens o primeiro pólo e às mulheres o segundo –,
que busco aqui contrapor meus dados de campo.
32
desenvolverei na parte III, o próprio conduzir durante a dança é modelado pela possibilidade
de respostas gestuais da mulher, que também pode induzir a condução do homem com a
aceleração rítmica ou floreios nos passos que o mesmo será obrigado a responder caso
contrário, o casal corre o risco de fracassar diante dos demais bailantes.
Mais uma vez, sugiro que as avaliações em torno da hierarquia dependem de diversos
fatores, pois, como veremos, o mesmo homem que se gaba do domínio dos códigos de
cortesia, de tradição na dança, e de que possui uma condição apreciável no quadro de sócios
do Clube, pode ser alvo de zombaria de uma mulher acompanhada de seu dançarino
contratado, por ser visto como muito antiquado e não se adaptar às mudanças produzidas nos
salões.
2.1 As diferentes acepções em torno da velhice e da juventude
A entrada dos dançarinos nos salões e a sua interação com as mulheres bailantes – que
os escolhiam em detrimento de um relacionamento com homens mais velhos ('das antigas')
configuravam um quadro em que o balanço de poder não entre os sexos, conforme sugeriu
Elias (1998), mas também intra-sexos, se modificava em direção a uma alteração nas
posições, nos códigos de prestígio e nos valores daqueles que dançam.
A disseminação dessa prática de contratação de dançarinos equacionava a quantidade
de homens e mulheres nos salões, invertendo uma situação anterior dos bailes, supostamente
marcados pela escassez masculina. É certo que a freqüência das mulheres ainda era
significativamente maior do que a dos homens, mas os freqüentadores antigos costumavam
queixar-se de que as mulheres mais apreciáveis, as que geralmente aparentam menos idade
pela forma física, pela disposição social e pela habilidade na dança, queriam ou sabiam
dançar com os seus “jovens” dançarinos. A entrada, portanto, desses dançarinos parecia
inserir diversos termos neste meio aparentemente harmonioso do baile de salão. Em torno
dessa presença, eram elaborados discursos sobre tradição, experiência, cortesia, bem-vestir,
etc. Se a velhice passa a existir ao ser tematizada, é importante atentar para os termos por
meio dos quais ela se configura, tendo em vista que um elemento de contraste surge para
ativá-la – no caso, a juventude dos dançarinos contratados.
Era comum se presenciar nos bailes, dançarinos com menos de 25 anos acompanhando
mulheres com mais de 55 anos, fato que modificava, visivelmente, a estrutura etária nos
salões. Mas a faixa de idade desses dançarinos era ampla, e não era exclusivamente por um
critério de aparência fisiológica que os mesmos costumavam ser designados pelos das antigas
como "jovens" ou "garotos" (Lenoir, 1998). Havia nessas denominações um sentido que ao
33
aludir à imagem de aprendizes, pouco qualificados, e inexperientes rebaixava a posição
social desses que detinham as técnicas corporais valorizadas pelas mulheres que aprenderam a
dançar nas academias e, atualmente, representavam uma considerável parcela das
freqüentadoras dos salões.
Os "jovens" dançarinos contratados, por sua vez, também apontavam para uma ameaça
constante ao ofício da dança: a eterna juventude daqueles que estão constantemente
ingressando nos salões e ofertando a sua força de trabalho. Muitos se sentiam afrontados por
aqueles recém-chegados aos salões, não por, única e exclusivamente, disporem de um porte
físico mais juvenil ou parecerem mais atraentes aos olhos das possíveis contratantes, mas
também por ofertarem a sua mão-de-obra a preços módicos aumentando a concorrência no
mercado de venda da força de trabalho para a dança. Assim, os dançarinos estabelecidos,
diante da concorrência com os dançarinos aprendizes, adotavam estratégias defensivas para
que não fossem desalojados de suas posições conquistadas nas figurações por causa daqueles
que chegavam aos salões, sem parceiras fixas para a dança
28
.
Também as freqüentadoras 'das antigas' afetavam-se com a performance das
contratantes recém-chegadas aos salões, que, fossem elas mais jovens ou mais velhas, podiam
destacar-se por dominarem novas técnicas de dança ou por darem sinais de sua riqueza com o
uso de roupas e adereços sofisticados e por pagarem bons e belos dançarinos para acompanhá-
las nos salões. Ainda essas recém-chegadas, como veremos, podiam ser apreciadas como
"coroas gostosas" ou acusadas pelos(as) das antigas e pelos jovens dançarinos contratos como
"velhas assanhadas" ou "velhinhas coitadas", variações que dependiam do modo como a
mulher contratante, como um novo elemento, afetava as relações presentes nos salões.
Era, portanto, recorrente nos relatos dos "das antigas" que, devido à presença dos
'casais por contrato', o "baile perdeu a elegância de outros tempos" não pelo modo como
os dançarinos contratados se vestiam (que, por vezes, destoava das exigências da direção do
Clube), mas pela introdução de um outro modo de dançar, com "passos marcados" e
"acrobáticos", definidos como "mecânicos"
29
ou de "academia" por aqueles que aprenderam a
dançar freqüentando os bailes. Assim, o uso de certas vestimentas, o grau de incorporação dos
28
Faço-me valer da abordagem proposta por Lenoir (1998) de que a velhice, assim como a juventude, não diz
respeito às características substanciais que surgem com a idade cronológica, mas antes figuram como categorias
cuja delimitação depende do valor do indivíduo no mercado de trabalho. Entre os dançarinos contratados,
podemos pensar que: "O envelhecimento é avaliado (...) à escala de critérios cuja imposição depende do estado
das lutas entre as diferentes categorias de vendedores [dançarinos] e compradores da força de trabalho [no caso
em estudo, as mulheres contratantes]" (:73).
29
Apreciação similar a essas sugeridas pelos bailantes foi feita por Wacquant (2002) quando se referiu aos
noviços do boxe. Ele sugere que os mesmos são facilmente reconhecíveis num encontro de amadores porque
34
códigos de conduta a serem manejados e o domínio de distintos estilos de dança
configuravam-se nos salões como índices de uma estimada "juventude", ora rejeitada, e de
uma ultrapassada "velhice", ora valorizada.
2.2 Vestimentas, adereços e novas performances na dança como sinal dos tempos
A juventude simbolizada nas vestimentas dos dançarinos contratados costumava
compor-se com calças ajustadas ao corpo na altura dos quadris, blusas de malha de botão
meia-manga ou comprida com as mangas dobradas a um palmo do antebraço (em algumas
ocasiões, deixando escapar propositadamente a abertura do último botão da camisa para
deixar à mostra o peito), e sapatos bem lustrados, de bico e com um pequeno salto quadrado.
Adereços como cordão, pulseira e brinco de argola, geralmente dourados, também
costumavam compor os seus figurinos. Apesar das constantes divulgações ao microfone de
que não seria permitida a entrada de pessoas usando calça jeans ou tênis, tais dançarinos
faziam uso do jeans, sendo que as próprias mulheres que os contratavam por vezes aderiam à
tal vestimenta. Na maioria dos casos, porém, os dançarinos contratados procuravam se
adequar às exigências de vestuário "da casa" a fim de evitar possíveis constrangimentos,
apesar de as considerarem uma imposição "fora de época".
Os 'das antigas', no entanto, procuravam manter-se fiéis às regras das vestimentas:
usavam o sapato bicolor de bico fino, a calça de linho e a blusa tipo cetim de manga
comprida. Alguns vestiam terno, e muitos não dispensavam os seus lencinhos para secar o
suor encarado como uma substância impura que atrapalha na condução da dama na dança
do rosto e das mãos.
Mário, que posteriormente se tornara meu professor de dança, me contava que no seu
tempo de baile o uso do lencinho era obrigatório e que era comum o homem levar consigo
dois lencinhos: o do cavalheiro, que ficava no bolso do paletó, e um lenço para secar as
mãos da dama, que a gente botava no bolso de trás da calça para não confundir com o nosso.
A impureza ou o incômodo que o suor poderia provocar no ato da dança era
amenizado pelos ventiladores. Mas vale notar que esse fluido masculino ou feminino, o suor,
enquanto para uns era considerado impuro ou um fator desestabilizador da dança, para outros
casais aparecia como um índice de entrosamento e de comunicação entre os corpos que
dialogariam envoltos por cheiros e sensações despertados pelos mesmos fluidos. Entre esses
últimos, via-se que, enquanto dançavam, o suor não carregava uma conotação de impureza
seus gestos são mecânicos: “(...) [A] rigidez e o academicismo do boxe traem a interferência da reflexão
consciente na coordenação dos gestos e movimentos” (:118).
35
que contamina, mas ganhava um sentido de vitalidade, de energia despendida, de jovialidade
demonstrando a infinita possibilidade de sentido a ser atribuído às zonas intersticiais, de
fronteira (cf. Douglas, 1976).
Dentre os casais que ‘gostam de suar’, tive a oportunidade de me aproximar de um em
fevereiro de 2005, quando, antes de conhecer Rosa, passei a me sentar junto ao Arnaldo e a
relacionar-me com aqueles que estavam próximos a ele. E nessa mudança de posição de
quem a cada domingo sentava-se sozinha ou circulava entre várias mesas –, tive a
oportunidade de estreitar laços, pela primeira vez, com um ‘casal por contrato’ que ficava na
fileira de mesas atrás da qual eu me encontrava. O próprio Arnaldo se encarregou de me
apresentar a eles: Estão vendo essa moça? Ela fica aqui escrevendo tudo o que e que eu
conto para ela. Ela pegou essa doença da gente [de freqüentar os bailes] e agora quer
escrever um livro. Conversa com ela que vocês vão gostar.
Nesse primeiro contato que tive com a referida bailante, chamada Neuza, ela me
indagou de forma incisiva, bastante desconfiada do meu interesse em conhecê-la: – Você deve
estar interessada nisso de, como é que chamam, dançarino de contrato? Tem gente que diz que
eles o prestam, que eles enganam e se aproveitam das mulheres, mas não tem nada disso
não. Ele me acompanha e a cada baile eu pago o dinheiro dele e pronto. Eu, por exemplo,
antes quando eu ia para os bailes ficava sentada à espera de alguém que me tirasse para
dançar; e do jeito que eu sou, eu não gosto de ficar esperando e quero dançar a noite toda!
Mas, ainda pior é ter que dançar com quem não sabe. Desde que eu estou com o Lauro eu não
passo mais por isso. A gente vai se aperfeiçoando a cada dia na dança. Agora mesmo eu
paguei um professor particular para aperfeiçoar o nosso samba. Com ele aprendemos vários
passos que não fazíamos e essa é a graça da dança, estar sempre nos superando, inovando.
Neuza e Lauro, assim como outros casais não de contrato e bailantes
desacompanhados, dançam durante quase todas as 4 horas de baile nos Democráticos e
freqüentam um circuito de dança de salão que vai da zona sul, passando pelo centro, à zona
norte do Rio de Janeiro. Atualmente, esse casal vai a cinco bailes por semana: do Olímpico e
do Sírio Libanês (na zona sul); do Santa Luzia, do Clube Militar e dos Democráticos (no
centro); e do Clube Municipal (na zona norte). Eles se conheceram em um baile-ficha em
Copacabana, dois anos depois de Neuza ficar viúva de um militar, pai dos seus dois filhos.
Depois da morte do seu marido, ela matriculou-se na academia de Jaime Arouxa, um
renomado professor de dança de salão, onde Lauro era instrutor de dança, e nessa ocasião o
36
contratou como dançarino. Hoje ele deixou de "fazer baile-ficha" e de ser instrutor de
academia e sobrevive como dançarino contratado quase exclusivo de Neuza
30
.
Lauro tem cerca de 20 anos, mora na Central, bairro do centro da cidade do Rio de
Janeiro, e, como diz, ainda não concluiu o ensino médio. Neuza tem aproximadamente 55
anos e mora na Barra da Tijuca. Ela herdou uma distribuidora de alimentos do marido, onde
trabalhava na contabilidade. Hoje vive da pensão que recebe e deixou a administração da
firma sob a responsabilidade dos seus filhos.
Durante um longo tempo, Neuza e Lauro, assim como outros 'casais por contrato',
chamavam a minha atenção por sua performance na dança, desempenhada como se
encenassem um jogo de sedução: olho no olho, as mãos deslizando pelo corpo um do outro,
os rostos se encontrando frente a frente, por vezes com pouca distância entre os seus lábios.
Os sorrisos dela eram uma constante e se abriam sempre após uma sucessão de passos mais
elaborada, quando parecia exigir-lhe mais destreza ou esforço físico.
Arnaldo, inconformado com o que considerava um "exibicionismo descabido",
comentava comigo a respeito da dança de Neuza e de Lauro: Olha essa aí; se isso que
eles fazem é dançar?! Eles são os piores dançarinos do baile e acham que são muito bons.
Olha como é que ela fica. Eu vou te contar, esse baile tem isso agora. E aqueles outros
dois?! [apontando para outro casal] Antes eu respeitava esse garoto. Ele estava sempre aqui
com a mesma senhora, ficava quieto, na dele. Agora ele está com essa aí, dançando desse jeito
que você está vendo. Essa mulher tem um carrão que você nem acredita! E depois ainda vêm
me dizer que isso é trabalho. É muita cara de pau mesmo. Desde quando dormir junto é
trabalho? Para mim isso é outra coisa.
Em março, quando comecei a sentar-me à mesa de Rosa motivada pelo meu
interesse em aproximar-me não só dos membros da direção, mas principalmente daqueles com
quem Mário se relacionava –, o assunto “contratação de dançarino” parecia tabu entre aqueles
que participavam da boa sociedade. Nelson, namorado de Rosa, estava sempre implicando
com os sorrisos de Neuza durante a performance dela e de seu dançarino no salão. Dizia que
ela era horrorosa e parecia uma hiena. Rosa chamava-lhe a atenção, dizendo que Neuza era
minha amiga e que eu ficaria chateada se ele continuasse fazendo esses tipos de comentários.
A vinda de Lauro, o dançarino de Neuza, para me cumprimentar à mesa deles, também
30
A respeito desse percurso comum da profissão do dançarino, ver a terceira parte.
37
parecia causar-lhes grande incômodo. Eles nem sequer o cumprimentavam. E quando ele saía,
não faziam nenhum tipo de comentário, o que aludia à sua inexistência “social”
31
.
Nelson, na ausência de Rosa, não deixava de questionar o ofício de dançarino
contratado e, assim como Arnaldo, apontava para a possibilidade de prostituição masculina
como o ápice do envolvimento entre a mulher contratante e o dançarino contratado. A
introdução de dinheiro nos bailes intermediando a dança era vista como algo espúrio pelos
'das antigas' que freqüentavam os salões
32
. Eles insinuavam, por meio de falas entrecortadas,
gestos e olhares, o caráter duvidoso dessa ocupação e questionavam a “integridade moral” da
mulher que ia ao baile acompanhada por tais dançarinos. Mas esse assunto, na maioria das
vezes, me era vetado dentro do espaço do Clube, à exceção de Arnaldo que não costumava
medir palavras comigo nem com ninguém.
2.3 O replicar das relações
Foi conversando com freqüentadores não associados ao Clube e em ambientes
externos a ele, que obtive relatos como o do jornalista Wando, editor de um jornal chamado
"Dance News"
33
. Wando me contou que a idéia do jornal surgiu em 1994 quando ele
retornava aos salões de dança – depois de 20 anos sem freqüentar bailes por motivo de
trabalho e também para se manter no casamento. Nessa época, ele foi a um baile no clube
Sírio Libanês e, ao tirar uma "dama" para dançar, lhe disse: Você vai me desculpar, mas eu
parei de dançar há muito tempo e estou me reciclando. E ela virou para mim na maior cara de
pau, sem me conhecer e falou: olha, eu estou aqui para me divertir, mas quando eu vou dar
alguma instrução eu cobro porque eu sou professora. Aquilo me chateou de uma maneira que
quis parar de dançar naquele ato. comecei a perceber que era preciso fazer alguma coisa
pela dança de salão, que no meu ponto de vista está no CTI. A dança antigamente não tinha
31
Se pensarmos a relação entre os 'das antigas' e os 'recém-chegados' por meio do modelo established outsider
para definir a estrutura de poder que organiza essa figuração (Elias, 2000), é possível avaliar que: "[A] evitação
de qualquer contato social mais estreito com os membros do grupo outsider tem todas as características
emocionais do que, num outro contexto, aprendeu-se a chamar de 'medo da poluição' (...). [O] contato com os
outsiders ameaça o inserido de ter seu status rebaixado dentro do grupo estabelecido" (:26).
32
Para além das trocas de gentilezas, agrados, e da honra da dança, o dinheiro também circulava entre os
bailantes em um mesmo contexto onde se teciam relações pessoais de interdependência. Baptista (2006), ao
analisar as relações de troca que envolvem a presença de dinheiro entre os adeptos do candomblé, mostrou que,
ao contrário do que se postulou a respeito da monetização racional das relações e da objetificação da
subjetividade (Simmel, 1978), o uso do dinheiro "pode ter sentidos e qualidades distintas segundo o contexto
onde ocorrem as relações (...). Antes de conferir sentido, alterar laços de sociabilidade ou impor padrões
relacionais, o dinheiro é também objeto de transformação segundo as interações onde aparece" (Baptista,
2006:16). Os diferentes significados atribuídos à intermediação do dinheiro na relação contratante/contratado
serão aprofundados n parte III.
33
Um informativo da dança de salão no Rio, de circulação interna e distribuição grátis nos clubes, gafieiras e
academias. Sua primeira edição é de 1996. Esse jornal é patrocinado pelas propagandas de academias.
38
essa disputa que tem hoje, onde um quer dançar mais que o outro, se machucam, dão porrada;
as mulheres saem contundidas, é um desespero. Eu culpo algumas pessoas por essas agressões
no salão
34
.
Antes de eu conhecer Wando nos Democráticos, tinha lido um artigo assinado por ele
no Dance News, no qual procurava incentivar "maridos, namorados ou companheiros das
mulheres-dançarinas", e ainda “casais mais envergonhados” a se matricularem em aulas de
dança particulares. A respeito da profissionalização do ofício de dançarino, lia-se neste artigo:
"(...) [A] maior divulgação do serviço faria com que nossos bailes não tivessem tantas damas
solitárias disputando cavalheiro ou sentadas como figuras decorativas dos salões. Os
verdadeiros cavalheiros de aluguel teriam seus espaços, diminuindo expressivamente a
presença dos que não passam de impostores, tentando suprir a falta masculina nos bailes e
trazendo, muitas vezes, conseqüências mais infelizes que a solidão”.
Wando faz uma distinção, não neste artigo, mas também na conversa que tivemos,
entre os "verdadeiros cavalheiros de aluguel" e os "dançarinos de aluguel". Os primeiros
seriam professores de dança, formados em academias conceituadas, com uma trajetória
profissional reconhecida entre os freqüentadores assíduos do universo social da dança de
salão. Aqui poderíamos pensar em Mário, professor de dança cujo ofício e cotidiano procuro
apresentar no próximo capítulo.
Mário também atua como dançarino contratado, porém, diante dos freqüentadores do
circuito da dança de salão, sua posição de professor permitia que se distinguisse por seu
"estilo próprio" de dança, conferindo-lhe respeito e valor entre os membros da boa sociedade.
Os demais dançarinos costumam ser menosprezados pelos 'das antigas' por serem aprendizes
ou seguidores de um estilo de dança que não lhes é próprio. São encarados e referidos como
instrutores, parceiros ou companheiros de baile e não como professores de dança de salão.
Segundo Wando, mestres como Mário seriam cavalheiros bem vestidos, perfumados,
educados, que dançam com alegria, diferentemente dos "dançarinos de aluguel" que, além de
dançarem "de cara amarrada", dissimulariam serem professores de dança: O que eles fazem
é trambique, roubam as velhinhas. As senhoras chegam ávidas para dançar; elas precisam
de carinho, coitadinhas, entendeu bem? Elas estão largando os netos, deixando de servir de
babá para irem para um baile se divertir, para dançar. chega um cara, sabendo disso, das
necessidades delas, dizendo: ah eu cobro x; ah tem um dinheiro para me emprestar, me
empresta tanto depois eu te dou; e depois não paga, desaparece. Isso eu acho sacanagem.
34
É menos comum encontrar, nos salões que freqüentei, dançarinas contratadas; eu não as conheci pessoalmente,
mas, de acordo com o relato de Wanyr, há muitas trabalhando nos bailes.
39
Agora tem uns dançarinos de aluguel que são caras maravilhosos. Eu não sou contra o
dançarino de aluguel; não é de hoje que a dança é um meio de ganhar dinheiro. Antigamente,
nos Dancings
35
, as mulheres sentavam, os homens tiravam elas para dançar e furavam o
cartão. Mas que os caras deturparam a coisa toda, construíram guetos, uma rede de jovens
que o dinheiro vai passando entre eles; e cada vez mais você só vê garotões nos salões.
Wando tornou-se sócio recentemente de um professor de dança, dono de uma
academia em Niterói, onde estive na ocasião dessa entrevista. E algumas vezes ele sugeriu
que era mais negócio, em termos lucrativos, ser dançarino de aluguel, do que ter uma
academia e arcar com todos os custos e impostos. Dizia-me: Além do montante que eles
ganham, que por vezes chega a quatro mil reais por mês, as mulheres pagam o táxi, compram
carro para os caras, dão 13
º
como se fosse uma empresa. Tem umas ainda que são muito
afoitas né, e chamam o cara para um papo diferente. E aí, dependendo do cara, ele topa, não
quer saber. vai e toma. Eu conheço uma que o dançarino tomou dela dez mil reais. A
senhora estava cem anos sem ter qualquer tipo de relação, pegou a mulher, coitada, o que
ele pedia ela deu. contou uma história, disse que pagava em quinze dias e nunca mais
apareceu.
Quando Wando dava o seu parecer sobre o "dançarino de aluguel", deixava entrever
que seu cálculo não era feito apenas por amor à dança, à tradição. Ele parecia enxergar na
referida ascensão social desses jovens dançarinos em sua maioria, negros, moradores de
bairros periféricos uma ameaça ao seu próprio negócio e à sua posição como dançarino,
como homem mais velho, como profissional liberal e membro da classe média nos salões. Em
seus juízos sobre esses dançarinos, era possível vislumbrar os anseios e estratégias que
orientam também a sua própria vida. O uso de estereótipo aqui se fazia entre sujeitos
envolvidos em um jogo de poder em que o mesmo atributo poderia ser usado como arma de
orgulho ou de acusação
36
.
Nos relatos dos freqüentadores 'das antigas' semelhantes aos do Wando, as mulheres
que contratavam esses "jovens" dançarinos, quando não eram tratadas por "velhinhas
coitadas", eram apontadas como "velhas assanhadas". Nesse tipo de abordagem dos ‘das
35
Dancings eram locais de dança de salão, no centro da cidade do Rio de Janeiro, que tiveram o seu auge nas
décadas de 40 e 50. Neles as mulheres eram pagas para dançar com os homens que freqüentavam os seus salões:
"A cada dança ou a cada dois ou três minutos, um picotador perfurava o cartão do cavalheiro, recebido quando
ele entrava no dancing, registrando o quanto ele pagaria na saída, e o quanto cada dançarina receberia no fim da
noite” (Perna, 2001:48). Também o estudo de Cressey (1969), realizado na década de 20 em Chicago sobre os
taxi dance halls, demonstra que a atividade de dançarina já naquela época era remunerada.
36
Herzfeld (1992) sugere que se possa fazer um uso do estereótipo não como simples preconceito, mas como
instrumento destinado a mascarar interesses e estratégias: “Le recours au stéréotype est inseparable des situations
40
antigas’, a velhice é apresentada de forma estereotipada por meio de um juízo acerca das
atuações dessas mulheres frente aos dançarinos. Elas mesmas se faziam valer da velhice como
categoria de acusação para referir-se aos 'das antigas' demonstrando desprezo pelo tipo de
dança que eles empreendiam nos salões, conforme demonstrarei no capítulo seguinte. Mas a
velhice ainda podia ser usada como uma categoria de exaltação, quando ambos reivindicavam
sua boa aparência e disposição física apesar dos anos de vida.
O senso comum de Wando sobre velhice permeia, de forma distinta, alguns estudos
antropológicos sobre o tema. Quando ele afirma que “elas estão largando os netos, deixando
de servir de babá para irem para um baile se divertir, para dançar”, Wando aponta para uma
questão presente nos estudos de Barros (1998), Motta (1998), Freitas (2000), Moraes (2004),
dentre outros. Essas apreciações partem de um fenômeno suposto como geral e hegemônico, a
saber, o de uma velhice reclusa e assexuada, em que indivíduos aposentados e/ou sem ofício
remunerado viveriam à margem da sociedade, e, sobretudo no caso das mulheres, estariam
voltadas para as relações instituídas no âmbito doméstico e, principalmente, para o cuidado
com os netos. A partir disso, as autoras citadas, em contextos etnográficos distintos,
preocuparam-se em mostrar que, nas chamadas sociedades complexas, os indivíduos
encontram possibilidades diversas de elaborarem a sua vivência na velhice, possibilidades que
fugiriam daqueles estereótipos tidos como clássicos ou ao que seria considerado padrão. Outra
perspectiva comum adotada nessas pesquisas é a busca pela definição que triunfará como
um atributo essencial em suas análises de uma nova "identidade feminina" que dará sentido
às vidas dessas mulheres, as quais, na velhice, irão requerer espaços públicos para
desempenharem papéis diferentes do de dona de casa, de esposa, de mãe e avó, exercidos na
esfera doméstica.
Esses estudos parecem compartilhar da idéia de que a origem da dominação masculina
está no fato de os homens controlarem as posições de comando das instâncias de decisões que
regulam a sociedade (Rosaldo & Lamphere, 1974). Desse modo, estando essas instâncias
reservadas à atuação masculina, a divisão da vida social em domínios público e privado
encerra uma relação hierárquica das atividades humanas. As mulheres, com suas aptidões
tidas como naturais à reprodução e aos cuidados com a prole, confinavam suas relações ao
âmbito doméstico e tinham o seu status social submetido ao controle das decisões dos
homens, os quais ditavam as regras nos espaços das grandes decisões ligados à esfera pública
(Rosaldo,1974). A diferenciação em dois domínios das atividades humanas associados aos
des identités sont en jeu. (...) [L]a production de stéréotypes permet aux protagonistes de développer des
stratégies d'áuto-justification" (:67).
41
sexos, tratada como universal e hierárquica, destina à mulher uma condição estrutural de
inferioridade. Mas aqui reitero uma pergunta: por que essa diferença no âmbito das atividades
associadas aos sexos deve ser necessariamente encarada de forma hierárquica?
37
O que figura nessas pesquisas é que tanto no caso das mulheres idosas católicas de
classe média do Rio de Janeiro que se engajaram em um movimento político religioso entre
1977 e 1978 (Barros, 1998), quanto no das mulheres de classe popular que em 1986 a 1988 se
reuniam em um grupo de convivência para idosos da Legião Brasileira de Assistência do Rio
Grande do Sul (Motta, 1998), assim como nos casos daquelas senhoras pertencentes a
camadas médias curitibanas (Freitas, 2000) e cariocas (Moraes, 2004) que freqüentam bailes
de dança de salão, seja, respectivamente, de "terceira idade" ou bailes-ficha as mulheres,
nessa etapa da vida (durante a velhice), teriam como motivação primeira garantir um espaço
público para sua "identidade feminina". E o que muda nessas abordagens é para onde se dirige
o foco dessa "identidade": em uma, recai sobre a mulher trabalhadora e intelectualizada que
optou por não viver a maternidade para investir na sua formação acadêmica e profissional
(Barros, 1998); em outra, os holofotes destacam as "velhas faceiras" que constroem sua
identidade feminina em função da sua "sensualidade/feminilidade" "expressa no discurso, na
aparência, na jocosidade e na atitude diante do corpo numa linguagem fundamentalmente
sexualizada" (Motta, 1998:17); nos embalos dos bailes de terceira idade em Curitiba, "as
mulheres estão à procura de prazer e liberdade" (Freitas, 2000:69), buscando se reafirmar
como "indivíduos" ao se lançarem no espaço público dos bailes; e no caso dos bailes-ficha do
Rio de Janeiro, "o centro da identidade das mulheres está no prolongamento do exercício da
sedução na velhice através da dança" (Moraes, 2004:119). Moraes (2004) ainda sugere que a
possibilidade de exibirem os seus corpos envelhecidos ao lado de homens jovens, confere a
essas mulheres o próprio sentido de uma "vida ativa", não atrelada exclusivamente às relações
domésticas.
A diversidade das formas de envelhecimento que são exploradas nos estudos
antropológicos sobre o tema aponta para variações segundo a classe social e o sexo. Acredita-
se, nesses casos, que certas prescrições sociais colidam com as práticas dos indivíduos. As
primeiras seriam normas da sociedade que existiriam a despeito das ações individuais. As
últimas representariam um "desvio" em relação aos "papéis" sociais estabelecidos. Assim, se a
mulher classificada como idosa milita em um grupo político religioso (Barros, 1998), se
sinais da sua sexualidade ativa na maneira de lidar com o seu corpo, de se vestir, de falar
37
Um estudo que recorre à indagação semelhante é o de Lasmar (1996).
42
(Motta, 1998), ou de seduzir enquanto dança (Freitas, 2000; Moraes, 2004), ela estará atuando
em contraposição a uma expectativa comum a respeito da velhice. Segundo esta abordagem,
indivíduos (principalmente mulheres) classificados como idosos, caso dancem, por certo não
devem estar cumprindo os papéis que deveriam em outras esferas da sociedade. Insisto:
esferas que existiriam e exigiriam a priori sua participação lembrando que a principal e
incontornável dessas esferas para indivíduos considerados velhos seria a família.
Nessa literatura, muito se discute a respeito de um suposto processo de
individualização dos velhos. A aquisição de um ideário feminista, as conquistas de direitos
trabalhistas como o ressarcimento do trabalho passado sob a forma de pensão por
aposentadoria ou viuvez, quando somadas à redução dos papéis sociais desempenhados no
âmbito familiar e do trabalho, são apontadas como fatores que propiciam às mulheres,
sobretudo das camadas médias, a possibilidade de uma vida mais liberta durante a velhice.
Fala-se em "liberdade de gênero" nesse estágio de suas vidas, e chega-se a elaborar que as
mulheres na velhice, quando solteiras ou viúvas, por não terem que se submeter aos preceitos
do "controle marital" e ao "tradicional ônus das obrigações domésticas", se aproximam do
"modelo atual masculino de independência" (Motta, 1998:234).
Estes estudos, portanto, pautam-se em um linguajar de identidade para contestar
estereótipos que dizem vigentes sobre a mulher na velhice. Mas, ao fixarem outros tipos de
comportamentos e papéis associados ao gênero e aos grupos etários, e ao veicularem outras
imagens associadas aos termos "velhas faceiras" (Motta, 1998), "velhas jovens" (Motta,
2004), "jovens idosos" ou "jovens aposentados" (Peixoto, 1998), não estariam os mesmos
estabelecendo novos estereótipos desta vez, em torno de uma velhice "ativa" e "sexuada"
em oposição a um suposto senso comum que pretendem desbancar acerca de uma velhice
"reclusa" e "assexuada"?
Se nas apreciações de Arnaldo, Wando e outros bailantes, a demarcação de
determinados tipos nos bailes de salão aponta para diversas categorias relacionais que atuam
neste balanço de poder em uma figuração específica, em determinada literatura antropológica
sobre gênero e velhice aparecem atribuições de valores a priori como se as pessoas
mantivessem identidades fixas e imutáveis e avaliassem umas às outras sempre do mesmo
modo, segundo critérios rígidos. Nessa literatura, não se considera que os termos são
configurados seguindo uma ampla possibilidade de relações. Conforme procurei abordar, o
mesmo freqüentador 'das antigas' que ironiza dizendo que o baile de salão é um 'museu de
velharia', enaltece a tradição frente à constatação de uma juventude que estaria alterando os
43
códigos vigentes. Os valores a respeito do gênero, da velhice, da juventude, como vimos, não
são absolutos.
2.4 Dançando conforme a música e agindo como manda o figurino
Opinião similar à de seu Wando a respeito dos dançarinos, me foi dada pelo seu Paulo
Cândido, vice-presidente do Clube Bola Preta
38
, quando, no início de março de 2005, fui
conhecer esta agremiação que fica na Cinelândia, no centro da cidade. Ambos demoraram a
expressar opiniões sobre os dançarinos. Os dois tinham uma história para contar a respeito dos
clubes e ainda sobre o significado da dança na vida das pessoas, mas, em um primeiro
momento, excluíam dos seus relatos a presença dos dançarinos contratados nos bailes.
Era a primeira vez que eu ia a esse baile, em uma quarta-feira, por volta das 21h. Eu
estava sozinha e receosa, mas logo que entrei, reconheci Waldomiro, um senhor de mais ou
menos 65 anos que trabalhou como produtor musical e hoje distribui filipetas nos clubes
anunciando a programação do Bola Preta. Quando passei pela porta de entrada, ele se dirigiu a
mim oferecendo-me a programação do mês. Aproveitei a ocasião, lhe falei da pesquisa e
perguntei se ele poderia me apresentar alguém da direção com quem eu pudesse conversar.
Apontou para uma mesa que estava na nossa direção, falou que ali estavam alguns diretores
do clube, inclusive o presidente, e se dispôs a me levar até eles. Acreditava, devido à minha
experiência prévia, que insinuar interesse por uma conversa com membros da direção
significaria atrelar-me aos membros da mesma, e por isso evitei, em um primeiro momento,
esse contato direto. Respondi ao seu Waldomiro que eu daria uma volta pelo salão, arrumaria
uma mesa para mim e depois retornaria para conversar com eles. Mas a essa altura eu
estava sendo observada pelos tais senhores, e Waldomiro sugeriu-me: Faz assim, busca um
lugar para você sentar que eu vou falar com o vice-presidente do clube que você está aqui e
ele vai ter com a senhora.
Entrei no salão à procura de uma mesa onde eu pudesse me sentar. Os lugares vazios
mais próximos ao espaço de dança tinham, assim como ocorria nos Democráticos, papéis de
reserva. Fui em busca do garçom responsável pela área onde eu queria sentar-me, diante do
salão, para saber se aquelas mesas ainda seriam ocupadas, pois, segundo a regra velada dos
Democráticos, lembrava-me que depois das 21h as mesas cativas podiam ser liberadas. O
problema era que eu não o encontrava, e, em meio a essa busca, via que um senhor andava em
minha direção. Estendi-lhe a mão para cumprimentá-lo e ele me perguntou: – É a senhora que
está interessada em conversar sobre o Bola Preta? Diante da minha resposta, prontamente me
38
Sobre a história do Clube e do "Cordão da Bola Preta" bloco carnavalesco que 89 anos sai às ruas do
centro da cidade no sábado de Carnaval – ver Brasil (2005).
44
convidou para sentar em uma das mesas, à beira do salão, que estaria reservada, dizendo que o
seu valor ficaria por conta da casa
39
.
Muitos dos sinais referentes a uma etiqueta e à organização do espaço no salão que eu
conhecera anteriormente se repetiam no Bola Preta. Minha maior desenvoltura dizia respeito a
um conhecimento incorporado do universo dos bailes que não se restringia exclusivamente à
dança, mas aos códigos de comportamentos necessários para mover-se e situar-se no salão.
Paulo Cândido, sócio do clube 32 anos, é administrador de empresas e mora em
Niterói. Contou-me que o clube foi fundado por uma dissidência dos Democráticos em 1918.
Quando ele próprio tornou-se sócio, em 1973, o Bola Preta “virou uma cachaça" na sua vida.
Na ocasião, havia mais de 1500 associados, disse o seu Pedro em tom de lamento: – Mas hoje
o quadro de sócios-contribuintes não passa de 170 pessoas. Esse baile que você está vendo...
hoje em dia a casa não fatura nada com isso. A gente não tira da programação porque são
87 anos de tradição e isso é a história do clube. Mas a gente está querendo passar o baile para
as segundas-feiras e assim liberar a quarta para outros eventos. Se fosse em outros tempos, a
essa hora teria tanta gente no baile que você não conseguiria caminhar por esse salão.
Ele continuou, acrescentando elementos para que eu compreendesse o porquê da
necessidade de alugar o espaço do clube para outros eventos musicais não ligados ao
"tradicional baile de dança de salão": Esse tipo de dança não mais lucro não.
Gradualmente passei a intervir: A qual tipo de dança o senhor se refere? Isso que
dançam hoje em dia. – Mas o senhor não dança esta dança? – Esta que fazem aí não. Eu danço
à moda antiga. Hoje essa gente toda aprende a dançar em academia. Eles chegam aqui e
dançam entre eles. O senhor se refere aos dançarinos contratados? É. Essa gente de
academia es organizada como uma máfia. O dinheiro circula entre eles... as mulheres...
porque eles vão fazendo as indicações uns aos outros. E o pior é que eles não o lucro
nenhum para o clube; eles não consomem nada! E também essa gente não gosta de tradição.
Se eu coloco uma orquestra desconhecida deste público para tocar aqui, o salão fica pela
metade do que voestá vendo. Na próxima quarta-feira vamos trazer a orquestra Euterpe
de Petrópolis para tocar no clube, e no dia 16 de março virá a Tabajara
40
. Essas orquestras
nem se comparam a essa Devaneios, mas a gente tem que colocar o que traz o público, e este
público só vai aonde essas bandas tocam.
39
Assim como nos Democráticos, no Bola Preta se cobrava o valor de 7 reais pela mesa
40
Sobre as orquestras populares que atuaram entre as décadas de 30 e 50 no Brasil, com destaque a respeito da
orquestra Tabajara e do seu regente Severino Araújo, ver a dissertação do Albricker (2000).
45
O público do Bola Preta, naquela noite, era composto sobretudo por dançarinos
contratados. E o principal índice que me permitia identificá-los era justamente o fato de
dançarinos mais jovens acompanharem mulheres mais velhas, empreendendo um estilo de
dança que, somado às suas vestimentas, lhes era peculiar. Havia em torno de cinco mesas nas
quais um único dançarino acompanhava de três a quatro mulheres, que revezavam-se entre si
no salão. Diferente dos Democráticos, onde o soltinho e o bolero costumam ser os ritmos mais
tocados, no Bola Preta, o samba ritmado de forma acelerada parecia prevalecer no salão. A
princípio acreditei que fosse uma particularidade daquela banda que pela primeira vez via
tocar. Mas, ao freqüentar os bailes, revendo os mesmos grupos tocarem em diferentes clubes –
ora nos Democráticos, ora no Helênico, ora na Estudantina e ora no Bola Preta –, me dava
conta de que o repertório musical explorava os ritmos de acordo com o suposto gosto do
público presente. A presença maciça de jovens dançarinos acompanhados por suas
contratantes naquela noite parecia estimulá-los a tocarem ritmos mais acelerados que
propiciavam a exibição, por parte dos dançarinos, de passos acrobáticos com jogadas de
pernas e rodopios constantes.
Nas apreciações dos 'das antigas' sobre os dançarinos contratados, a situação atual dos
salões era apontada como se todos os elementos presentes nos bailes gravitassem em torno
deles. As mulheres circulavam entre os dançarinos, assim como o dinheiro. Da mesma forma,
a dança predominante, os gostos musicais, as predileções pelas bandas, e a própria "levada"
rítmica dos músicos pareciam prevalecer nos salões sob o desígnio dos mesmos.
Dentro dessa lógica de predileção, as bandas Devaneios, Brasil Show, Paratodos e
Resumo eram apontadas como as que garantiam maior público nos bailes. A Devaneios
cobrava o cachê mais alto, no valor de 800 reais. O preço médio pago às outras bandas girava
em torno de 500 a 600 reais. Todas elas apresentavam-se com a seguinte composição musical:
teclado, bateria, guitarra, baixo, trompete, trombone e/ou saxofone, e dois a três cantores
alternando-se durante o show de quatro horas de duração, com uma média de três a quatro
intervalos de 10 a 15 minutos cada um. Algumas delas, como Devaneios, Pingos e Gotas, e
Brasil Show existem desde meados da década de 60 e sofreram alterações – não reduziram
o número de instrumentistas, renovando parte dos seus músicos, como mudaram seus
repertórios. Elas costumam tocar sucessos atuais da música popular brasileira gravados por
Alcione, Zeca Pagodinho, Ivete Sangalo, Mastruz com Leite, Djavan, Ed Motta, Rita Lee,
Laurita –, mesclados com os chamados clássicos das gafieiras, como “Bananeira” de João
Donato e “Moonlight Serenade” de Glenn Miller. A maioria dos músicos é composta por
46
negros e quase todos os de sopro são militares reformados das Forças Armadas, onde eram
membros da banda oficial.
A respeito dessa especificidade dos músicos de sopro, Samuel o “homem do
trompete”, o “trompetista de ouro”, músico de 70 anos que tocou em várias orquestras, dentre
elas a Tupi, do maestro Cipó dizia-me: Eu não entrei para as Forças Armadas porque eu
fiz Conservatório Nacional de Música e logo me empreguei na Orquestra do Teatro Municipal
e eu tocava música erudita. Mas o Macaé, o Constantino e o Cipó, que tocavam comigo no
Idade Média, e grande parte dos músicos de sopro com os quais trabalhei, estavam
empregados nas bandas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Eu conheci seu Samuel em 2002 tocando com o grupo Garrafieira, no Rio Scenarium,
uma das casas de show da rua do Lavradio, no centro da cidade. Nessa ocasião, esse grupo
formado por jovens músicos, muitos com formação universitária, acabava de se constituir, e o
seu Samuel ingressava no lugar de Barrosinho, outro trompetista que se lançou musicalmente
no Rio de Janeiro em finais da década de 60, tocando nas gafieiras. Depois voltei a vê-lo tocar
em outros lugares na Lapa. Mas só fui me aproximar dele em agosto de 2005, quando ele
tocava no Clube Helênico
41
, acompanhado por um tecladista, em homenagem a um ex-
presidente do Clube que aniversariava naquele dia.
Depois de contar-me sua trajetória profissional, Samuel elaborou o seguinte
diagnóstico da mudança musical nos clubes e gafieiras: No tempo em que eu fazia bailes,
havia espaço para a música instrumental, para o improviso e ainda dançava-se de forma livre,
dança de gafieira mesmo. Hoje esses bailarinos que são alugados impõem uma dança nos
salões e ainda querem que a gente [músicos] os acompanhe. E a música que eles querem
dançar é a que a mídia vende. São músicas que não ficam, não marcam uma época, nem
permitem que se crie nada em cima delas porque se o músico quer improvisar ele não pode,
porque não entendem nada e ainda vão dizer que ele errou, não percebem que criação
naquilo. Antes, nos bailes, o instrumental tinha o mesmo peso da música cantada, mas hoje
por causa desse público da dança, ditado pelas academias que fabricam esses dançarinos
alugados, quase não variação no repertório dessas bandas
42
. Repara como tudo que se
toca é abolerado [ritmo do bolero]. Antigamente os músicos podiam tocar uma música mais
dinâmica, com mais liberdade, de tal forma que o músico pudesse se expressar e o improviso
41
A terceira parte desta dissertação versa preponderantemente sobre este Clube.
42
Becker (1971) dedica dois capítulos do livro Outsiders para falar dos músicos profissionais de orquestras
populares que não concebem o fato de terem de submeter a sua atividade artística ao controle dos chamados
square, uma vez que se vêem obrigados a tocar música “comercial” para satisfazerem a vontade do público
pagante, os quais classificam como “musicalmente alienados”.
47
não fosse identificado como um erro. que esse público não aceita a música do músico e
quer impor a música da mídia. E essas músicas impostas não ficam, não fazem casa de
morada. Tocávamos o que nós gostávamos e não o que os outros tocavam. Essa música do Ed
Motta que está tocando por exemplo [e me faz ouvir a banda]: não tem como desenvolver o
músico instrumental. Antigamente, havia muitas orquestras e cada um tocava com o seu
grupo; não era assim, como eu mesmo faço hoje em dia, que o músico tem que tocar cada
hora com um grupo diferente para sobreviver.
Samuel apontava para uma interação entre os músicos e os bailantes, quando os
primeiros improvisavam a partir dos corpos dos casais. Com danças coreografadas, sem a
saudosa simbiose entre o show dos músicos e o dos dançarinos, o improviso se tornaria, aos
seus olhos, impossível. De acordo com sua apreciação, ambos são pasteurizados, não havendo
espaço para criação: As bandas que estão tocando atualmente são as que fazem show para
aqueles que dançam o mesmo passinho. Samuel lamenta não somente a perda da possibilidade
de criar, mas o rechaço à improvisação, como se esta fosse um erro o que indicaria algo
inverso ao que costumava ser a convenção.
Samuel, paralelamente a essas críticas, dizia-me que ele e sua mulher estavam vivendo
um "drama familiar", pois o namorado da sua enteada era dançarino de aluguel. Contou-me
que nenhum dos dois estava de acordo com aquele namoro. Sua atual e quinta esposa, no
entanto, havia sido dançarina do Dancing Eldorado e eles se conheceram mais de trinta
anos atrás. Reencontraram-se no show da Bibi Ferreira, onde ele atuava como músico, e ali
reataram um namoro que anteriormente não havia dado certo, pois, dizia-me: Ela era muito
ciumenta. Mas eu também fui muito mulherengo e ela acha que até hoje eu faço como
antigamente. Ela nem gosta de falar de antigamente e também não gosta dessa minha vida de
sair para tocar à noite. Sabe, ela estava acostumada com as crooners das antigas, viu a Elizeth,
a Angela Maria, que eram dançarinas também, e agora acha que nada presta. Eu demorei a
entender certas coisas, certas mudanças, mas tenho um entendimento maior da juventude do
que ela.
Críticas como a do Paulo Cândido e a do Samuel me foram feitas por muitos
freqüentadores ‘das antigas’ que afirmavam que as bandas não diversificavam o seu
repertório, que eram poucas as que tinham qualidade, que não existia mais integração entre os
músicos e dançarinos, e que hoje os músicos tocavam de cabeça arriada, desmotivados, não
criavam, o improvisavam e não interagiam com o público. E os dançarinos contratados
48
apareciam como alvos preferenciais dessas críticas. Além de serem classificados como "gente
de academia que não gosta e nem respeita a tradição", eram acusados de imporem gostos
musicais associados à "música comercial" que toca nas rádios e que em outras épocas jamais
tocaria nos salões, apontando assim para uma degradação da 'boa' música.
Inúmeras vezes, como mencionei acima, me deparei com comentários críticos feitos
por essa 'velha-guarda' dos salões à forma "mecânica" como consideram que os casais por
contrato dançam, classificando-a como dança de "academia" ou "moderna", por oposição à
dança moda antiga" ou "tradicional". A primeira me foi descrita como uma dança
"enquadrada", "formatada", "repetitiva", "competitiva", "distanciada", "cheia de
malabarismos" e “esvaziada de sentimentos”. a dança moda antiga" aparecia nos seus
relatos de formas diversas: ora como uma dança que "envolve respeito", que "requer emoção",
"elegância" e "sentimento"; ora onde a "entrega", a "malícia" e a "malandragem" apareciam
como elementos indispensáveis ao ato da dança.
Wando, o editor do jornal "Dance News", ao relembrar o reverenciado "tempo de
gafieira", me dizia: Então a dança é coisa altamente envolvente, ela tem um teor de malícia,
porque um grande dançarino tem que ser um bom malandro, ele tem que chegar perto da
dama encostar a cabeça nela, sentir o peso dela, o corpo dela, como se faz na Argentina com o
tango. O tango é peito com peito; a mulher sente, ela fecha os olhos e vai nem sei onde!
Desculpe o termo, mas eu acho que ela chega num ponto de prazer que não tem explicação.
Mas isso hoje não acontece, primeiro porque eles ['casais por contrato'] dançam a dez metros
de distância um do outro, não tem olho no olho, o cara nem encosta na mulher. Pô, o quê que
é isso!? Dança tem que grudar, tem que sentir; eu acho que a dança é isso. E não tem esse
negócio de passo marcado, você cria na hora. Cada vez que eu danço, eu dou o básico; agora,
o resto é diferenciado. Eu intervinha: Quando você fala no tempo da gafieira, esse é um
outro tempo. Qual é o tempo de hoje, como você o vê? Hoje é o tempo do sei o quê. E
quando você fala em gafieira, gafieira para você é o quê? Eu vou te mostrar é na dança.
Ah então tem a ver com a dança e não com o ambiente? – Gafieira é o local onde se dançava o
samba de gafieira. Mas tem a forma de se dançar gafieira e a forma de se dançar passo
marcado. A gafieira você junta, sente, é o que te falei. A dança para mim, tirando zouk
43
que é
um coito permitido no salão, a dança é um aconchego. Forró também se aproxima do zouk. E
43
Explicação dada pelo coreógrafo João Carlos: – O zouk saiu do Caribe e foi para França e agora chega aqui. O
zouk tem a ver com a lambada, que fez um percurso parecido. Mas pode-se dizer que o zouk é uma gafieira
nova: dançou a dois, tá mal intencionado, é gafieira.
49
quem não dançar um forró arrochado, por fora da dança, porque forró tem que arrochar
mesmo! O homem tem que sentir a mulher e a mulher o homem; se não sentir, não dança.
Wando me colocou em contato com o coreógrafo e fundador da Companhia Aérea de
Dança
44
, Antônio, que tinha opiniões similares às dele no que diz respeito à "dança de
gafieira". Antônio – que deve ter aproximados 50 anos e freqüentou as noites da Domingueira
Voadora
45
nas décadas de 70 e 80 – me procurou interessado em que eu o ajudasse a organizar
um seminário para discutir os "rumos da gafieira". Marcamos nossa conversa no próprio
Circo Voador, onde, na ocasião, ensaiava o espetáculo que estrearia dentro de um mês, em
agosto, no teatro Cacilda Becker, no Catete.
Antônio, assim como Wando, expressava a mesma preocupação em salvar a gafieira.
Wando, em seu jornal, diz que pretende salvaguardar os bons ambientes e homenagear os
"verdadeiros cavalheiros" e "dançarinos" com a entrega de troféus no evento chamado Passos
de Ouro que organiza há quatro anos. Naquele ano, garantia ele: Vou fazer igualzinho como
é o Oscar do cinema, com tapete vermelho e tudo que tem direito. Eu também criei a Abrarda,
Academia Brasileira da Arte da Dança, cuja proposta é fiscalizar e ditar alguns dançarinos que
se destacaram no ano. Se a gente não der o esquema, a dança de salão vai para o cemitério.
Ninguém mais vai dar valor. E a gente vai voltar para quando ela começou, quando o maxixe
não era permitido
46
. E esse ano eu quero contar com o aval da prefeitura e contratar um
tremendo cantor, à altura do Roberto Carlos.
Antônio quer organizar um seminário que discuta os rumos da gafieira, e assume:
Estou na disputa do mercado para assegurar o espaço dos negros nessa história que vem
rendendo ganhos. Ele tinha uma teoria a respeito do assunto: Gafieira é a forma que você
expressa o prazer sexual através da dança. E isso é uma benção, não é pecado, é
conhecimento, é sabedoria do corpo que a cultura negra africana traz (...). A academia é um
comércio, tem um produto, um serviço a oferecer que as pessoas vão e compram. Mas ela
44
Essa Companhia comemorou, em 2005, 19 anos de existência com o espetáculo "Dança, samba, gafieira e
coisa e tal", dirigido e encenado pelo João Carlos.
45
Evento de dança de salão que ocorria no Circo Voador, uma casa de show situada na rua Mem de Sá, na Lapa,
no centro da cidade do Rio de Janeiro.
46
O maxixe, segundo Sandroni (2001:62) e Perna (2001:23), teria sido a primeira dança de par enlaçado que
surgiu na segunda metade do século XIX na cidade do Rio de Janeiro. O livro “Maxixe: a dança excomungada”,
do Jota Efegê, é citado pelos dois autores como a principal referência a respeito dessa modalidade de dança e
gênero musical. Ainda segundo as explicações do João Carlos: O maxixe foi a primeira dança do negro
africano, na guerra contra o branco europeu, que obteve sucesso, apesar de toda repressão, de ter sido
excomungada pelo papa. Porque o maxixe é todo aqui [e faz gestos centrados no quadril e nas pernas]. A dança
de gafieira toma a base do maxixe, entra no território do branco com a mesma intenção do maxixe. A gafieira
nasce quando o negro coloca o seu sentimento na dança: o lero-lero, o acalanto e a pegada embaixo. O que quero
é defender os matizes negros porque o branco se apropria do que foi construído pelo negro deixando este na
50
contribui com o quê, para quê na dança? A pergunta que deve ser feita é: qual a gafieira que é
aceita nas academias? Eles é que vão determinar os rumos da dança de gafieira? A academia
ensina forma, ela formata uns desenhos e por ali deve se expressar. Ela tira os matizes negros
da dança. Nos bailes não tem mais veneno, só dançam de camisinha [dança comportada, a um
metro de distância, que não seria a dança visceral da gafieira] e estão preocupados em
acompanhar, em seguir comandos.
João dizia que, na gafieira, não havia “essa história de comandar nas costas”. Contava-
me que só existiam três conduções: – A que induz a saída pelo lado, o puladinho, e a
acalmada da mulher; porque se ela se empolga muito e fica toda rebolativa, a gente uma
levantada nela, tira o seu do chão para retomar a dança. E não tinha esse negócio de um
monte de passos diferenciados para cada ritmo não. Os passos eram os mesmos. O que
mudava era o compasso da dança. Sempre houve malícia de todas as partes. Mulher
submissa? Fala sério...
E continuava sem que eu o interrompesse: – A gafieira é suja, é a dança dos excluídos.
O problema é que ela embranqueceu, tiraram o que ela tinha de sujo. Quantas vezes me
empurraram para fora do salão porque eu incomodava com a minha dança! A dança de salão
das gafieiras era isso aqui: o malandro mandava o lero-lero na orelha da mulher, acalentava
no peito, fazendo com que ela se sentisse no colo do pai, e se aproveitava dela embaixo
[mexia o quadril]. A gafieira é conceito, não é estilo, não é linguagem. Não importa o que
você faça; o que interessa é que atinja um objetivo de homem e mulher. Os malandros sempre
comeram as mulheres dos ricos. Malandro quer boa vida, quer trabalhar com aquilo que lhe dá
prazer e dinheiro. Isso de se corromper e prostituir vai até aonde? Os dançarinos são pagos
para dançar, mas se um ou outro faz sexo gostoso por dinheiro, seria algo ilícito? Isso é
prostituição? Até onde eu sei, prostituição é algo tolerável; sempre existiu senhores que
bancavam as dançarinas e ninguém censurava isso. Se o mundo consome, é porque é
necessidade do corpo. Agora são as coroas que querem o filé mignon, e se elas estão
consumindo é porque a sociedade abriu espaço para isso.
Vale notar que as mulheres que conheci nos bailes não eram profissionais da dança,
isto é, não eram musicistas, professoras, jornalistas ou coreógrafas. Embora não fossem
intelectuais dos bailes, eram elas o objeto dessas digressões sobre o corpo, sobre a
sensualidade. No discurso desses profissionais, vemos uma elaborada teoria que contrasta
com a de algumas mulheres que apresento nesse estudo, cuja teoria de saber sobre a dança é a
merda. É importante entender os matizes africanos na história; a humanidade precisa disso, entender a matriz, a
necessidade do corpo.
51
teoria da prática: de quem dança, de quem não dança, de como dança. Elas vão tecendo
observações enquanto vêem a coisa acontecendo; não elaboram um nível de generalização,
um tipo ideal, como aquele proposto por Wando e Antônio, em que tudo parece estar
amarrado, armado.
3. Dançando no escuro, pagando para ver
Ter-me iniciado na dança de salão foi importante para eu entender e contrastar as
elaborações a respeito do ato de dançar: as oposições construídas; o diálogo entre os corpos
sugerido pelos bailantes; quais sentimentos certos signos desvelam; a que tipo de disputas,
incômodos e ameaças estão sujeitos aqueles que se lançam à arena; e quando os infortúnios
deixam de ser meras casualidades. A própria possibilidade de ver que o corpo do bailante
pode interagir com outras coisas que não a música ouvida, e de identificar as zonas
privilegiadas do mover-se no salão (como demonstrarei no capítulo seguinte), advêm, em
parte, dessa minha participação dançante. A exemplo do que pude perceber dançando, aponto
para a possibilidade de, no momento em que o casal entra no salão para dançar, o objetivo
principal não ser necessariamente o movimento ideal da dança em si, o corpo envolto em
todos os sentidos, mas o cumprimentar aqueles que dançam e os que se sentam às mesas
cativas.
Fiz-me valer da dança como um tipo de acesso à experiência sensível para
compreender a vida dos bailantes, mas com isso não quero dizer que ela seja um tipo único ou
privilegiado. O fato de eu dançar durante a pesquisa apenas contribuiu para que eu criasse
vínculos, estabelecesse o meu status no clube e minha legitimidade de aprendiz de dança de
salão junto aos bailantes, o que me permitiu regular a vida de um modo diferente daquele
pesquisador que não dança. Não se trata, portanto, de uma decisão de ordem epistemológica
ou de um radicalismo da prática que implique em fazer no campo aquilo que as pessoas nele
envolvidas fazem. Com a posição que assumo frente aos bailantes, não pretendo sugerir um
entendimento que deva necessariamente passar pela experiência corpórea do pesquisador.
Csordas (1999), um dos principais teóricos que discorre sobre o embodiment como um
paradigma, como uma ferramenta metodológica, propõe que a análise do campo seja feita a
partir de sentimentos vividos pelo próprio corpo do antropólogo, que, situado no mundo
nativo, deverá ter consciência do seu habitus. Para este autor, o mundo objetivo existe a
partir da experiência perceptiva e das sensações localizadas no corpo do indivíduo. Meu
incômodo com este campo teórico diz respeito a essa pretensa formulação de que a
52
compreensão do chamado “Outro” se por meio de um "corpo com mente". No esteio
dessa proposta metodológica, uma tentativa de superação da divisão entre corpo e mente
em termos de um holismo universal que acaba por reiterar a cisão que procura desfazer – algo
que, para me referir ao caso aqui desenvolvido, não condiz com uma perspectiva comum entre
aqueles que dançam. Os bailantes fazem essa separação quando afirmam que, para que o
pensamento interfira em uma dança, depende do domínio prático e do grau de entrosamento
afetivo e técnico com o seu parceiro(a). Se um "encaixe perfeito entre os corpos", estes se
encarregam de si, sem que a mente atue em seus movimentos. Caso contrário, o mecanicismo
e a técnica da dança tornam-se aparentes, pois o pensamento é quem dita as reações aos
estímulos da condução e o ordenamento previsível dos passos. As experiências dos corpos,
portanto, diferem em contextos relacionais distintos, e dependem da música, da roupa, do
desempenho com o(a) parceiro(a) na dança, dos estímulos dos outros pares dançantes, e dos
olhares prestigiosos daqueles que possivelmente estarão observando.
É certo que muito do que percebia na dinâmica entre os casais me foi sugerido pela
experiência de praticar a dança, o que me ajudou a ver elementos importantes e significativos.
Porém, nada impedia que eu não observasse nos rostos dos bailantes e nas suas atitudes como
eles se sentiam ao empreender uma dança 'bem-sucedida’ no salão, ou mesmo o incômodo
causado por uma dança 'mal' conduzida. E o que pude perceber nessa minha experiência
etnográfica é que, no espaço social dos Clubes de dança de salão, um mundo heterogêneo
onde as pessoas demonstram destreza e agilidade ou são sensuais quando a ocasião pede, e
que não há problema em não acompanhar o compasso da música se o objetivo é cumprimentar
a mesa que está ao lado.
3.1 Motivações e significados atribuídos à dança
Nos primeiros meses da minha participação nos bailes e iniciação na dança de salão, a
minha companhia era disputada por pessoas que não gozavam das fontes de status mais
valorizadas no salão, tais como habilidade para dançar, acúmulo de bens, de titulações ou
tempo de associado. Os dançarinos desacompanhados que, em um primeiro momento, me
tiravam para dançar a fim de vender a sua força de trabalho, após não obterem meu retorno
aos seus oferecimentos de aulas de dança e companhia nos bailes com um telefonema ou em
um próximo encontro, não mais me convidavam para uma dança. Normalmente eram os
freqüentadores ‘das antigas’ que me tiravam para dançar e apenas os que não estavam
engajados na boa sociedade, pois, nela, a maioria dos homens, membros da direção ou não,
freqüentava o Clube com suas respectivas mulheres.
53
A despeito da importância da atração física e social para a dança, mesmo a pessoa
socialmente mais estigmatizada poderia ter seu momento de glamour no salão. Assim, os
bailantes que eram desprovidos de recursos econômicos, de tempo de associado, de titulação,
de juventude, de beleza física, ou mesmo de habilidade para dançar, poderiam ser admiradas
pelo convívio e receber convites à dança se tivessem estabelecido laços de amizade com os
freqüentadores. E, por mais que a concessão da honra da dança aos estigmatizados – à
"gorda", diretora social; ao "surdo", distribuidor de filipetas; à freqüentadora 'das antigas' que
sofrera uma mastectomia; ou ao "idoso" que padecia de artrose e pouco se movia pudesse
ser interpretada por alguns como um ato de generosidade desinteressado, que era valorizado
entre os bailantes, havia ocasiões em que os mesmos se destacavam por sua dança no salão
fato que dependia do desempenho dos seus pares.
Nesses primeiros meses, nos quais havia circulado pelas mesas explicando às pessoas
o meu interesse de pesquisa, esbarrei com motivações díspares para se freqüentar os salões.
Havia, por exemplo, aqueles que não dançavam e viam nesses ambientes de convívio social a
própria possibilidade de se manterem vivos, de curar ou de prevenir doenças. E, ao falarem
sobre a prática da dança, expressavam o seu interesse para além dela: para se "exercitar", para
se "libertar", para "se distrair" ou "ocupar a mente". Enquanto uns se referiam à mesma como
um "exercício terapêutico", outros a associavam a um "vício", a uma "cachaça", a uma
"doença que contamina pelo prazer que gera". Os relatos a respeito do "sentir-se outro" no
momento da dança, da "transcendência" ou do "encaixe perfeito" entre os corpos eram
apontados como aquilo que produzia prazer. Outra declaração recorrente entre diferentes
grupos de bailantes, dançantes ou não, era a busca por companheirismo, por participar de um
grupo, por estreitar laços de amizade, por se sentir atraído ou atraente, além da expectativa de
conhecer alguém, e ter a possibilidade do entrosamento sexual ou amoroso. Os elos de
companheirismo e amizade que se configuravam em torno da dança se replicavam em
atividades fora dos salões
47
.
Freqüentar o baile para os diferentes grupos tinha significados diversos, e o próprio
mundo da dança de salão, que tento aqui esboçar, apresentava uma série de divisões. As
pessoas se mapeavam e se aproximavam inicialmente com aquelas que se identificavam.
Assim, era mais comum a aproximação espacial e o estreitar dos laços sociais entre pessoas
que compartilhavam de uma compreensão mútua sobre determinados assuntos e de uma
47
Farrer (2004), em sua pesquisa em um baile de imigrantes chineses em Tóquio, chamava atenção para uma
motivação semelhante dentre os freqüentadores do baile: "Some also sought fellowship at the dancy party (...).
They formed friendship bonds at the dance party that extended to activies beyond dancing” (:660) .
54
vivência parecida. Não quero com isso dizer que não houvesse relações entre os diferentes
grupos dançarinos contratados, mulheres que contratavam dançarinos, membros da boa
sociedade, casais e bailantes 'das antigas' ou recém-chegados. Essas pessoas trocavam olhares,
gestos, cumprimentos, ofensas, danças e conversas, e buscavam associar-se ou distanciar-se
umas das outras dependendo do momento, do contexto e do que estava em jogo na situação
vivida. E, ainda, muitas migravam de um grupo ao outro.
Esse era o caso de Rosa, que entrou para os Democráticos com um dançarino
contratado (Mário), teve um envolvimento amoroso duradouro com um membro da direção e
associou-se à boa sociedade. Depois se separou por ter sido traída amorosamente diante dos
olhos dos freqüentadores do Clube, mas manteve o seu posto junto à boa sociedade. Rosa se
apresentava como uma mulher de posses no Clube: promovia festas de aniversário nos
Democráticos ou na sua casa, se encarregava pelo bolo da festa da Padroeira, presenteava
aqueles com quem convivia, e estava sempre dando demonstrações da sua riqueza aos
freqüentadores do Clube. Associar-me a ela, como mencionei, foi importante para que eu
tivesse acesso e transitasse entre os membros da direção, e para que eu estreitasse laços com
aqueles com os quais o Mário, seu professor e dançarino, se relacionava. Tanto Rosa quanto
Mário, ao longo do nosso convívio, tornaram-se pessoas-chave, pois desmistificavam os
estereótipos das elaborações feitas pelos bailantes. Rosa era uma mulher 'contratante', que,
além de não estar solteira para a dança – como normalmente estão aquelas que alugam
dançarinos –, desfrutava de uma posição estimada junto aos membros da boa sociedade. Do
mesmo modo, Mário, professor e dançarino contratado, também circulava entre eles e era
benquisto por aqueles que identificavam nele a valorosa “tradiçãodos salões”, dos "áureos
tempos da gafieira".
*
Durante o curso do meu trabalho de campo, experienciei antagonismos entre os grupos
que se configuravam ali dentro, e em algumas ocasiões tive que escolher entre estar com um
ou outro, pois a prática de cruzar as fronteiras entre os mesmos passou a ter implicações não
para aqueles com os quais eu me associava, mas para a própria posição que eu vinha
adquirindo naquele contexto. Assim, depois de circular por várias mesas, percebia que era
importante eu me filiar a algum grupo naquele espaço de relações que se revelavam tão
íntimas e onde o controle da opinião se exercia em todos os momentos
48
.
48
Esse controle é apontado por Bourdieu em seu estudo: "Em grupos de relações tão íntimas como os da aldeia
Kabila, o controle da opinião se exerce em todos os momentos (...). É também essencialmente a pressão da
55
Demorei a perceber que, por fim, sentar-me à mesa de Rosa nos Democráticos era uma
decisão que me posicionava naquela figuração social. Por um lado, pareceu-me contar
positivamente o fato de eu ter tido clareza, um pouco tardiamente, de que, uma vez em sua
mesa, circular por outras onde se sentava apenas um homem solteiro, onde os casais eram
estabelecidos por contrato, ou mesmo à mesa de um casal de amantes acompanhado por um
irmão solteiro que sempre me tirava para dançar – era algo que comprometia a minha posição
e a daqueles aos quais eu havia me associado. Não seria mais possível flanar
indiscriminadamente pelas mesas sem, como sugere Favret-Saada, sofrer retaliações:
“[V]ouloir simplement s’informer est le propre d’um naïf ou d’un hypocrite qu’il est urgent
d’intimider” (1977:29). Para conhecer o universo dos bailes, conforme a perspectiva aqui
seguida, era preciso tomar parte ativa no mesmo: aprender a dançar, a se vestir e a se
comportar adequadamente ao lado de quem ficar. Nesta escolha, o processo de conhecimento
não se daria apartado de um processo de auto-transformação e, com o passar do tempo, senti
que meus vínculos e minhas atitudes ali dentro a cada dia foram sendo delimitados pelos
'bons' modos que esperavam de mim, quando optei por fazer-me, em parte, devota dos
preceitos da boa sociedade.
opinião que funda a dinâmica das trocas de honra (...). [A] atenção fascinada ao comportamento dos outros, tanto
quanto a obsessão pelo seu julgamento, tornam inconcebível ou desprezível qualquer tentativa de escapar aos
imperativos da honra" (1995:65).
56
Parte II – Apartamento do Mário
O presente capítulo procura explorar o cotidiano de trabalho do professor Mário. A
partir de seus ensinamentos seja praticando sua aula ou observando sua didática com outras
alunas –, procura-se apresentar a constituição de um estilo de dança. Como vimos no capítulo
anterior, nos bailes, além do saber incorporado dos códigos de conduta e dos gestos
coreográficos que se traduz em performances mais ou menos felizes (Austin, 2003), a prática
do comentário sobre a dança se faz igualmente importante.
Nas aulas de Mário, fora do ambiente dos bailes, foi possível acompanhar a
constituição de uma dessas teorias locais sobre a dança de salão. No interior de seu
apartamento, Mário sugere que, embora dançar se aprenda dançando, é preciso saber formular
em palavras o ensinamento aos alunos. A reflexão de Mário sobre a distância e a distinção que
separa o gesto da palavra alude a uma noção de eficácia que reside no poder mágico das
palavras e em sua própria melodia e adequação à música tocada com o instrumento corpo
noção que se aproxima do que Malinowski (1972) chama de efeito performativo. Malinowski
(1916) defendia que, embora nosso trabalho de campo se sustente sobre o conhecimento que
travamos com indivíduos particulares e concretos, parte do que escutamos de suas próprias
bocas são “idéias sociais”, algo que poderíamos sem pré-juízo entender como ideologias,
como saberes comuns.
Esta terminologia de Malinowski constitui uma recusa à noção de consciência coletiva
de Durkheim. Para Malinowski (1916), parte dos significados particulares, idiossincráticos,
que cada indivíduo a essas “idéias coletivas” (no caso, a teoria geral sobre a dança) tem
muito menos a ver com o seu “conceito” em um sentido cartesiano do termo, que separa
fenômeno de conceito e mais com sua “música” (o saber prático de cada um realizado em
cada dança). Essa colocação de Malinowski a respeito dos sentimentos particulares em
relação às idéias sociais está plenamente desenvolvida em suas análises das fórmulas mágicas
e da dança trobriandesa propriedades de indivíduos e grupos, que podem ser transmitidas,
ensinadas e mesmo vendidas, mas cujo sentido será sempre ditado pelo contexto da situação.
A preocupação de Mário com o ensino diz muito a respeito dele próprio, acerca de
seus atributos específicos como professor. Mário evoca episódios de seu passado que sugerem
um destino fadado à dança. Atentando para suas palavras, percebemos o quanto ele se enreda
nos próprios fios da história que procura manejar. À luz do seu momento atual, motivado
57
pelas inquietações que brotam das suas relações, Mário interpreta e encadeia eventos de sua
vida buscando indícios vinculados à dança que justifiquem seu envolvimento ulterior.
Freqüentando sua casa e suas aulas, pude ainda deslocar minha atenção para outros
elementos que, por vezes, sugeriam chaves fundamentais para entender o passado e o presente
de Mário. Esses outros símbolos espécie de memorabilia depositada em seu apartamento,
em forma de fotografias, revistas, livros, panfletos, discos, diplomas, troféus e medalhas
compuseram, ao longo de meu contínuo convívio com Mário, um mosaico de possíveis
sentidos para a dança em sua vida dentro e fora dos salões.
1. Método indutivo de Mário: a dança como saber prático
Na
décima sétima aula, Mário, meu professor de dança de salão, me emprestou um
livro chamado "Como Aprender a Dançar. O novo método de danças modernas". Durante
suas recomendações a respeito do cuidado que eu deveria ter com o livro manual da década
de 40 com várias ilustrações de casais dançando e gráficos de passos diversos –, contava-me
como o mesmo lhe tinha sido importante na época da Academia Moraes
49
. Naquele lugar, ele
aperfeiçoara sua dança e se tornara professor aos 17 anos. Mário tem 70 anos completados em
16 de julho, dia de Nossa Senhora do Carmo, de quem é devoto.
Ao me emprestar seu livro, frisava que, enquanto dava os seus primeiros passos no
ofício de professor, tais ensinamentos escritos foram importantes para ajudá-lo a elaborar suas
aulas de dança. Dizia que tinha sido de grande valia para ele aprender a teoria lendo, para
depois ensinar aos seus alunos. Mas ressaltava que esse livro só me serviria porque eu teria
alcançado um patamar mínimo de conhecimento prático da dança, o que me permitiria
acompanhar a leitura e aprender algo com ela. Mário apontava pela primeira vez para uma
distinção entre uma compreensão prática ou física da dança e outra teórica ou escolar que ele
teria adquirido apenas em um segundo momento. A aquisição de um conhecimento prático da
dança, portanto, me era expressa como condição para que se fizesse possível o meu próprio
entendimento teórico do livro, segundo o que fora sua experiência.
Esse livro inicialmente pareceu-me a solução para um enigma: nele, Mário teria
aprendido a verbalizar o saber incorporado da dança para transmitir aos seus alunos. Não
49
Essa Academia, segundo Mário, foi aberta por um português chamado Vasco de Moraes. A primeira foi
fundada em 1943, situada na rua do Passeio, ao lado do cinema Palácio, no centro do Rio de Janeiro. Foi nela
que Mário conheceu Maria Antonieta, sua principal partner na dança de salão. Mais tarde foram inauguradas
outras duas academias de mesmo nome: uma na avenida Passos e outra na rua São José, ambas no centro da
cidade.
58
tardou para que eu descobrisse que essa era mais uma projeção minha. O livro era somente
um dos objetos que Mário me mostrava para que eu tomasse consciência de tudo o que cabia
nos seus cinqüenta e três anos de estrada. O valor atribuído a esse objeto, portanto, parecia
estar mais associado ao que representava como um ícone
50
do "tempo da Moraes" do que à
sua operacionalidade nos seus ensinamentos de dança contemporaneamente. Ele me dizia: – É
um livro muito antigo que eu tenho guardado comigo há anos. Teve um aluno que me
perturbava por causa dele; queria porque queria levar para copiar, mas eu não deixava não.
Até que um dia ele levou, mas demorou à beça para devolver. Eu não gosto que ele saia de
perto de mim porque é uma lembrança que guardo do tempo da Moraes e que foi muito
importante para mim.
Desde as suas primeiras aulas, a linguagem verbal que poderia enunciar a execução
dos passos ensinados –, não foi algo muito explorado por ele ou indispensável aos nossos
encontros. Os nomes dos passos que fazíamos, além de diferirem dos que apareciam no livro,
costumavam ser pronunciados posteriormente à realização dos mesmos, e as instruções orais
que indicariam como efetuá-los me eram dadas quando a sua condução não era suficiente
para me induzir a uma percepção dos movimentos que eu deveria fazer. Quanto a esta
percepção, me refiro a um entendimento que passava pelo corpo não só através dos toques nas
costas ou na cintura, dos jogos de pernas e dos manejos com os braços que são executados
pelo homem enquanto conduz a mulher na dança –, mas também por uma noção rítmica que
me permitia acomodar o compasso da música tocada aos movimentos do seu corpo . Assim,
suas falas apenas adentravam em seus ensinamentos quando ele precisava se deter em um
passo por eu não conseguir apreendê-lo no ato contínuo da dança, dando-me, sim,
instruções verbais sobre como efetuá-los. Mas, sempre que o fazia, conduzia o meu corpo em
consonância com seus movimentos. E mesmo que suas palavras indicassem o caminho
acertado, eu aprendia mais pela repetição dos movimentos conduzidos do que pela
compreensão dessas palavras a seu respeito. Na situação da aula, diferentemente do baile,
ainda que por um movimento meu (de erro, de dúvida), e não dele, interrompia a condução da
dança para depois retomá-la.
Procurei, então, fazer o movimento inverso de aprendizagem dos passos na tentativa
de descrevê-los ao longo da dissertação, e na vigésima oitava e vigésima nona aulas tomei
50
O modo como ícone é aqui concebido está baseado na formulação de Peirce (1977). Com isto, quero me referir
àqueles signos que apresentam uma característica de pura qualidade cabendo ao interpretante perceber um valor
que não é portanto intrínseco ao objeto. Assim, nesta situação, trato este livro como um ícone porque se para
mim não passava de um manual de dança de salão, para Mário objetificava a sua longa data’ de experiência e
sabedoria com a dança.
59
nota dos mesmos. Na trigésima, resolvi fazer toda a aula segurando o gravador com a minha
mão direita, e, enquanto dançávamos, pedi ao Mário que me narrasse os passos. Na trigésima
segunda, apelei para o método visual e pedi a ajuda de uma amiga para que nos filmasse
dançando, pois acreditei que eu poderia ter condições de descrever os passos fazendo uso do
recurso slow motion. Diante da minha dificuldade de fazer corresponder minha escrita à
minúcia dos códigos necessários para narrar tais movimentos, desisti dessa árdua tarefa.
O fato de sua fala não clarificar a dimensão prática da dança de salão demonstrava-me
que não fora precisamente pelo uso da linguagem verbal que eu havia sido nela iniciada. E foi
por meio dessa tentativa frustrada de escrita que percebia que eu estava fazendo o movimento
inverso do processo de aprendizagem da dança. A escrita e o saber da dança de salão, assim
como os passos, davam-se em idas e vindas.
Na ocasião do empréstimo do livro o manual de dança de salão ao qual me referia –,
eu vinha freqüentando a casa de Mário duas vezes por semana, exatamente dois meses.
Naquele momento, me senti à vontade para propor que me mostrasse suas fotografias – não as
selecionadas para ficarem expostas nos murais, nos porta-retratos ou mesmo aquelas afixadas
nos espelhos, portas e geladeira, mas as fotos que estavam guardadas, empilhadas em uma
estante localizada no espaço reservado às suas aulas. Neste mesmo lugar, ele encontrou, além
do livro citado, uma fotocópia plastificada de um panfleto da "Academia Moraes" que
divulgava aulas de dança e apresentava um "moderno método visual prático e atualizado".
Esses objetos estavam envoltos em um saco plástico e conservavam um cheiro peculiar, que
parecia derivar de uma mescla de perfume adocicado com o aroma de papel antigo, bastante
característico dos pertences do Mário.
Tal panfleto que trazia o título, apelativo e irônico, "Dançar! Uma agradável
exigência da sociedade. Agradável! Sim! Mas quando você dança!" dividia o processo de
aprendizagem em dois cursos: básico e complementar. No primeiro, eram previstas quinze
aulas de uma hora para "aqueles que nunca dançaram ou para os que dançam ficarem aptos a
dançar mais corretamente". o segundo era composto de vinte aulas de uma hora, e se
propunha ao "aprimoramento, a recapitular o curso básico e a ensinar mais variedades de
passos". Além da exposição dos passos, de ambos os níveis, que se aprenderiam em cada
aula
51
, havia recomendações como esta que se segue: "Aconselhamos aos alunos a
51
Ver anexo 5. Os nomes dos passos desse panfleto se aproximam dos ensinados pelo Mário, como por
exemplo: volta parafuso, rodopio, queda, cruzado, passo V, tesoura, passo S, trocadilho, puladinho, cortada lisa,
vai e vem.
60
freqüentarem bailes depois da décima aula e tendo feito no mínimo duas sabatinas dançantes".
Estas últimas eram bailes que a academia realizava aos sábados, das 18 às 22h, para que os
alunos adquirissem, segundo o panfleto, "maior prática em um ambiente idêntico ao baile".
Como procurarei demonstrar mais adiante, o dançar nas aulas difere muito do se apresentar
dançando nos salões. E, nesse processo de aprendizagem, uma ação se seguia e
complementava a outra.
Ante tais objetos, livro e panfleto, Mário falou-me pela primeira vez de sua didática de
aula, elaborando-a da seguinte maneira: Eu tenho uma teoria, um método de aula: eu ensino
a dança a partir do que observo. Enquanto eu estou lá no baile, sentado, bebendo a minha
cervejinha, eu fico olhando os casais dançarem e vejo como eles estão fazendo os passos para
passar para os meus alunos. Porque não adianta nada eu ficar aqui ensinando passos que o
cavalheiro não dança mais, ou se dança, o faz pela metade. Eu tenho que mostrar aquilo que
ele faz, para depois você acompanhá-lo no salão. Na opinião do Mário, se os alunos deveriam
freqüentar os bailes, esta também era uma obrigação do professor, que a dança estava
continuamente sofrendo alterações a partir dos novos estímulos provocados pelas atuações
daqueles que se apresentavam no salão.
1.1 Repertório teórico, rítmico e físico da dança
Com o freqüentar das aulas em sua casa, e ao passo que íamos ganhando intimidade,
Mário demonstrava-me, por meio desses objetos, que além de um conhecimento prático da
dança, ele detinha um distanciamento, uma reflexão teórica a respeito dela. Dizia-me que
fazia parte do seu método a observação dos casais dançando, para depois, por meio da
imitação dos passos encenados nos salões, ensiná-los. Portanto, Mário revelava-me, com a
explanação do seu método de aula, que havia adquirido sua técnica corporal da dança não
praticando-a, mas observando-a nos salões e elaborando teorias ao seu respeito. Com isto, ele
apontava para existência de uma "pedagogia implícita e coletiva" nos bailes e para uma
"aprendizagem visual e mimética" da dança de salão, que em muito se assemelhava ao
"inculcar da arte pugilística" estudado por Wacquant (2002).
Nesta etnografia, Wacquant descreve, a partir da sua experiência de iniciação no boxe
em uma academia de um "gueto negro" do subúrbio de Chicago, como este aprendizado se dá
de forma implícita, prática e coletiva. A pedagogia pugilística, conforme abordada, não tem
normas nem etapas explícitas; a transmissão desse saber se olhando como os outros o
fazem, imitando-os mais ou menos conscientemente, observando seus gestos e suas respostas
à instrução do treinador a qual nunca era direcionada a um único boxista e acabava agindo
61
como um mecanismo de correção coletiva, que era a essência do seu método de ensino
(2002:144). O autor destaca que "os meios que fazem um pugilista acabado o, como toda
'técnica do corpo', segundo Mauss, 'a obra da razão prática coletiva e individual'" (ibid:34).
Do mesmo modo que os pugilistas no gym, conforme observado por Wacquant,
servem como auxiliares do treinador e cada um colabora para a formação do outro, nos salões
de dança, as técnicas corporais eram apreendidas pela "imitação prestigiosa" dos passos e
posturas bem-sucedidas
52
. Essa gradual revelação respondia parte da minha inquietação
acerca do sentido atribuído à observação e à avaliação mútua entre os pares no salão, os quais,
das mesas vizinhas, tinham suas danças avaliadas pelos demais casais.
Um dos aspectos vinculados a essa observação dos pares, como foi dito, referia-se à
aprendizagem de novas técnicas de dança. Mas, no momento do baile, além do aprendizado
mimético de passos e posturas que poderiam ser 'roubados' com os olhos (Herzfeld, 2004),
havia uma disputa teórica a respeito da dança que deveria ser praticada no salão que não raro
se traduzia em juízos de valor sobre o caráter dos próprios bailantes, como vimos no capítulo
anterior. Todos, homens e mulheres, tinham uma teoria e classificavam a dança praticada
segundo uma escala, em nada rígida, adequada à situação vivida escala esta que ia de uma
dança "tradicional" (que poderia ser qualificada como genuína ou "repetitiva"), a uma dança
“mais moderna" (adjetivada ora como "envolvente", ora como "mecânica", "de academia",
por vezes considerada espúria).
As mulheres que tinham aprendido ou "reciclado" a sua dança nas academias ou nos
bailes com os próprios dançarinos contratados, afirmavam que tinham cansado de "esquentar
cadeira", de dançar o "feijão com arroz", ou o de fazer o "papai e mamãe". Esta última figura
de linguagem era usada com freqüência para se referir ao modo de dançar dos freqüentadores
antigos os quais, segundo elas, não acompanharam a "evolução dos passos", dançando o
"tradicional", repetindo movimentos de modo previsível e pouco envolvente. os 'das
antigas', que aprenderam a dançar nos bailes, enaltecem o fato de dançarem do jeito
"tradicional", e se orgulham de terem vivido um "tempo áureo dos salões" que lhes
possibilitou dominarem o saber de uma dança genuína.
Como dito, tais abordagens tampouco eram rígidas: variavam conforme as situações
vividas, e nem sempre correspondiam à dança praticada. As pessoas, enquanto dançavam,
52
Mauss (2003), ao abordar a dimensão social do corpo, sugere: precisamente nessa noção de prestígio da
pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o
elemento social (...). O indivíduo assimila a série de movimentos de que é composto o ato executado diante dele
ou com ele pelos outros" (:405).
62
tinham uma forma de expressar sua compreensão sobre a dança que diferia de quando
conversavam ou explicavam como funcionava a sua própria dança e a de outros.
Estaríamos aqui diante de uma relação com o conhecimento vivido semelhante àquela
identificada por Malinowski (1972), quando observa a inexistência de homologia entre o ato e
as palavras. Não creio que no caso da dança de salão exista uma hierarquia perene nem
sempre a prática se sobrepõe ao discurso, e não raro essa divisão sequer faz sentido. Para
Mário, faz parte de sua vida falar uma coisa e fazer outra, sem que isso seja tido como
contraditório. Nem tudo o que ele elaborava a respeito da dança ou narrava ensinando-me os
passos correspondia ao que se via ou ao que se dançava no salão.
A dança de salão, como já expressei, é conduzida normalmente pelo homem por meio
de toques nas costas com a mão esquerda e jogadas estratégicas com o corpo. Assim ele induz
a mulher ao passo que deve ser feito e às variações que se seguem. O homem, portanto, se
encarrega de indicar as alterações de ritmo, de passos e de direção. A mulher, por sua vez,
precisa demonstrar habilidade em seguir seus comandos. Entretanto, para ser guiada é
importante que a mulher conheça os passos que podem ser combinados pelo dançarino, o que
torna mais ágil a condução. Daí a preocupação de Mário em me ensinar as possibilidades de
passos que podem ser combinados nos salões, para que eu pudesse reconhecê-los e responder
aos estímulos do condutor sem perder a marcação rítmica da música. Conhecer o repertório de
passos possíveis é fundamental para que a mulher garanta ao condutor o controle da dança; é
o conhecimento da mulher que a permite responder ao homem. Sem esse arranjo em
harmonia, a dança não flui. Esse jogo de competências alinhadas demonstra que as respostas
gestuais da mulher são condição necessária para o exercício masculino da condução. O
compartilhar de códigos rítmicos e físicos, de ação e de reação, é o que garante que uma
dança seja bem-sucedida.
Nesse sentido, podemos dizer que o repertório aparece como se fosse uma linguagem.
Se a mulher domina o corpo mais do que o homem, ela pode induzir a condução com floreios
nos passos e o homem será obrigado a respondê-la – caso contrário, tropeçará literalmente em
sua falta de habilidade. Uma vez que se conheçam os passos básicos, os quais serão
apresentados mais adiante, improvisa-se com movimentos, gingados, e assim é construído o
chamado estilo de dança que diferencia os casais.
No entanto, era amplamente difundido pelos bailantes que não bastava o domínio da
técnica para construir-se um estilo de dança valoroso no salão. Uma oposição recorrente
elaborada por aqueles que dançam dizia respeito ao uso que se fazia da "técnica" e da
63
"emoção", duas espécies de pilares que pareciam estruturar a dança. Para eles, era importante
aprender a técnica (associada ao domínio comum) para dançar, mas era preciso agregar um
"algo a mais" que personalizasse a dança não a individual, mas a do casal. Esse "algo a
mais", quando descrito, parecia resultar de uma combinação entre o "sentir a música" (os
sentimentos que ela desperta) com uma espécie de quinta-essência ou de uma química
despertada pelos corpos em relação na dança.
Embora a mulher fosse conduzida, não era possível determinar uma proeminência do
homem no salão anterior à relação estabelecida entre o casal na dança. De acordo com os
ensinamentos de meu professor, pelo contrário: O bom dançarino deve fazer a dama brilhar
no salão e não deixar que as pessoas notem caso ela não consiga acompanhar o cavalheiro.
Ele mesmo o fez inúmeras vezes quando eu errava durante nossas aulas. Mário, como
mencionei, pouco interrompia a nossa dança a fim de apontar para os meus erros. Mesmo
quando eu travava os pés (ou meus pés travavam), me dizia: Vai, continua! Eu não deixo
você perder! Induzindo com o seu corpo, passava a gesticular de forma mais marcada,
intensificando a sua força na condução dos meus braços, nos toques dados com suas pernas
nas minhas, redirecionando-me à posição correta com suas mãos apoiadas sobre a minha
cintura ou indicando sutilmente o sentido que eu deveria seguir com seus dedos soltos no ar,
no momento de um rodopio ou em que dançávamos apenas com uma das mãos atadas.
E era assim que se devia proceder no salão: perdendo o passo, deve-se aprender a
retomá-lo sem interromper a dança, pois um lapso qualquer precisa ser disfarçado e não pode
invalidar a dança, nem comprometer o par dançante. Esse trabalho de retomada do passo e do
ritmo a partir do movimento do outro ia se adensando ao meu corpo. Não havia passo a passo
no método de Mário; o ato da dança era contínuo.
Mário era elogiado por suas ex-alunas por ser um mestre inigualável, que
elegantemente omitia os tropeços e desacertos alheios. Essa atitude era apontada pelas
mulheres como um dos aspectos que definiam um bom dançarino. Havia, entretanto, uma
outra dimensão que também estava em jogo: neste mundo da dança de salão, uma das
propagandas mais contundentes dos méritos de um professor se inscrevia no próprio corpo e
na performance dos seus alunos. Mário me apresentava ao mundo da dança como sua aluna e,
uma vez atrelada aos seus ensinamentos, eu deveria fazer jus aos mesmos.
Como se os estilos de dança dos professores se inscrevessem nos corpos dos alunos,
era comum ouvir daqueles que teorizavam a respeito da dança, que poderiam identificar na
performance de um bailante, pelo seu jeito de dançar, a qual "escola" ele pertencia. Assim
como me apontou Mário, outros dançarinos reconheciam nas séries de movimentos
64
executadas nos salões, a manifestação de atos anteriormente ordenados e autorizados por um
professor de dança que gozava de alguma autoridade frente aos demais bailantes
53
. Mário me
dizia: – Por exemplo, a Stelinha
54
gosta muito do ritmo e da elegância. Ela não gosta muito de
jogar, de tirar fora não; ela gosta da pessoa que tem mais elegância e faz aquela variedade
de passos bonitos, mas sem fazer aquele esparrame que o Jimmy faz. Ele gosta de dar
escorrego, de jogar a perna e tirar a perna ligeiro. Ele era da dança aeróbica, que é aquela que
joga, que pula, que salta, joga braço. Depois ele passou para a dança de salão. E a dança de
salão dele ficou marcada pela dança aeróbica que ele fazia antes de estudar para ser professor.
Hoje muita gente dança essa dança aeróbica, jogando muito, rodando demais, jogando na
perna, fazendo balão, naquele estilo mais aeróbico. os alunos de Jaime Arouxa são mais
clássicos por causa do tango. Ele dança mais marcando os passos e não é tão rápido como os
alunos do Jimmy. Então dá para perceber. Quando é do Carlinhos de Jesus eu percebo
principalmente quando eles fazem aquele S que chamam de 8. É aquele o estilo do Carlinhos
de Jesus, que dança muito elegante fazendo aquele alarido da perna. Não faz ligeiro demais,
mas faz aquele jogo de pernas. E mexe da cintura para baixo. E quando lhe perguntei pelo
modo como via a sua dança, me respondeu: Eu gosto do estilo da Stelinha, menos jogadas,
mais elegante, mais ritmo e pose. Esse que é o bonito da gafieira.
A gafieira, assim como os demais conceitos, transveste-se de sentidos positivos e
negativos ao sabor da ocasião. O caráter clássico, elegante e respeitoso a que Mário alude,
difere daquele exposto por Antônio coreógrafo que apresentei na primeira parte –, para
quem gafieira é "a forma que voexpressa o prazer sexual através da dança (...). Gafieira é
suja, é a dança dos excluídos". Esses dois exemplos, apesar de contemplarem concepções
distintas sob o desígnio de um mesmo termo, atribuem à gafieira um sentido positivo. Mas,
como veremos, do mesmo modo que a dança do Mário podia ser considerada como muito
apreciável, em outro contexto ela podia ser taxada como previsível e pouco envolvente. E da
mesma forma que a dança aprendida nos salões podia ser referida negativamente como “a
dança de trás”, ultrapassada, repetitiva, “papai e mamãe”, “feijão com arroz”, “não
evoluída”, a dança aprendida nas academias dependendo da situação e de quem estava
presente nas discussões empreendidas podia ser classificada pejorativamente como
53
A respeito dos atos ordenados e difundidos por aqueles que detêm autoridade social ver Mauss (2003: 408).
54
Stelinha é uma professora de dança, contemporânea de Carlinhos de Jesus e de Jaime Arouxa – outro
renomado dançarino.
Stelinha não montou uma academia de dança de salão, mas, atualmente, utiliza o espaço da
Estudantina para dar suas aulas.
65
enquadrada, formatada, coreografada, agressiva, rápida, aeróbica e mecânica (que não cede
espaço à criação).
1.2 As modalidades de danças ensinadas dentro e fora dos salões
Mário escolhe as modalidades de danças a serem ensinadas também a partir do que se
toca nos clubes. Até a oitava aula, dançávamos apenas bolero, samba e soltinho. E, diante de
meu pedido, Mário também passou a ensinar-me tango. Dividíamos os sessenta minutos de
aula em vinte minutos para cada tipo de dança, os quais eram cronometrados no seu
despertador em forma de escudo do Flamengo que ficava em cima da estante, ao lado do
aparelho de som.
Mário costumava colocar as mesmas coletâneas de boleros para tocar durante as suas
aulas
55
. Sob a minha perspectiva, a da mulher conduzida, Mário procede do mesmo modo ao
iniciar uma dança: posiciona-se diante de mim estendendo o seu braço esquerdo – que
mantém levemente flexionado – na altura do meu ombro direito, enquanto o seu braço direito,
com a mão aberta, abraça sem rigidez a minha cintura, de modo a dar liberdade aos
movimentos. Minha mão direita vai ao encontro da sua esquerda, e, estando com os nossos
ombros alinhados, simultaneamente juntamos os nossos pés antes de começarmos a coordenar
o passo básico
56
, que consiste em dois para trás e dois para frente.
Passos para trás e para frente são freqüentemente efetuados com saídas em pequena
lateral para a esquerda e para a direita. No bolero, os movimentos se fazem deslizando os pés;
os passos são curtos e, por vezes, executados em sentido circular. Os passos que me foram
ensinados pelo Mário possuem nomes que traduzem mais ou menos a imagem ou o
movimento que deve ser efetuado: cruzado, S duplo, C, S parado, leque, meia-lua, trocadilho,
avante, S ao lado, cortada lisa, S marcado, vai e vem, volta parafuso, queda, e chapéu.
Esses passos podem ser associados durante a dança de diversas formas, e após a
combinação de dois a três passos consecutivos é comum o retorno à base: dois para trás e dois
para frente, com saídas pela lateral esquerda e direita. Por isso, dançar com um desconhecido
no baile é sempre um risco que se corre com relação à sua performance e aparição nos salões,
pois além de não conhecer o tipo de combinação de passos no qual o dançarino vai lhe guiar –
exigindo, portanto, mais atenção aos seus comandos –, ainda há uma série de restrições
55
Nos bailes se dança bolero com qualquer ritmo de andamento (mais lento) que o permita. O bolero costuma ser
dançado com músicas românticas, do Roberto Carlos, por exemplo, ou até mesmo com samba-canção. Este é um
samba melódico, com pouco acompanhamento de instrumentos de percussão, que costuma relatar dores de amor.
Dentre muitos cantores que popularizaram este gênero musical, destaco Nelson Gonçalves.
56
Os passos que me foram ensinados pelo Mário aparecerão ao longo do texto em itálico.
66
espaciais impostas não pela quantidade de casais no salão, como também pelos
direcionamentos que os demais homens darão às suas parceiras na dança.
O casal de bailantes deve dançar tendo como referencial os demais. Na arena do salão,
todos se observam e muitos querem ocupar as bordas, consideradas um espaço privilegiado
por dar mais visibilidade à dupla de dançarinos, que, por conseguinte, será apreciada e
avaliada por aqueles que estão sentados em suas mesas. Colocar-se nas margens do salão,
portanto, é se posicionar no centro das atenções, onde se estará sujeito a todos os
constrangimentos que o risco de uma dança mal-sucedida pode acarretar.
As duplas devem circular sempre no sentido anti-horário e não podem ficar paradas
em um mesmo ponto durante muito tempo. Esses códigos de comportamento no ato da dança
dão a medida para evitar que os casais se colidam. Um dançarino que domina a arte da
condução está muito atento à dinâmica do salão e mede com precisão seus movimentos em
relação aos demais casais. Caso esbarre em outro dançarino, é dever do homem pedir
desculpas ao condutor que foi importunado pelo seu mau comando.
Pela complexidade das condutas, muitos bailantes apontaram para disputas que
ocorriam na arena de dança, e para a ameaça gerada pelos corpos que iam ganhando espaço
com suas performances aos outros casais que, por conseqüência, iam esvaecendo no salão. O
abrilhantar de um casal de dançarinos podia interferir na atuação de outros casais. Enquanto
uns passavam a exibir-se e a atrair os olhares para si atenção que é um importante signo de
prestígio nos bailes –, outros podiam incomodar-se com isso e optavam por deixarem a pista.
Com o passar do tempo, minha própria atuação serviu de parâmetro para que eu
percebesse esse jogo de admiração e incômodo. Depois de alguns meses tendo aulas semanais
com Mário e praticando a dança nos clubes que freqüentava, acabei conquistando alguns
pares na dança que eram valorizados pelas freqüentadoras desacompanhadas dos bailes. Com
isso, Rosa passou a se chatear comigo quando eu ficava mais tempo dançando do que sentada
à sua mesa. Ela e seu namorado Nelson estavam sempre me dizendo: – Que trabalho bom esse
seu! O seu namorado não se incomoda com isso não?! Eu respondia que ele não gostava de
dançar e que por isso ele não poderia se queixar. Nelson completava: Pois eu também não
gosto de dançar e o faço por amor à minha mulher, porque por mim uma hora dessas eu estava
em Saquarema. As farpas e as piadas surgiam gradualmente como sinal ambivalente de
minha maior intimidade: estando próxima, eu estava sujeita aos mesmos julgamentos
destinados aos demais bailantes julgamentos que me ensinavam quais os tipos de termos
adequados para se exercitar o espírito crítico nos bailes.
67
Os freqüentadores(as) das antigas falavam-me também de uma ameaça física dos que
empreendiam "danças acrobáticas" no salão. Contavam que, nos dias de hoje, era comum que
as pessoas saíssem contundidas dos bailes, pois os passos elaborados pelos casais eram
"velozes" e "agressivos". E, em tom de alerta, também me diziam que essas agressões não
deveriam ser encaradas como meros infortúnios. Reforço, por exemplo, as vezes em que
Nelson insistia em dizer-me que, quando começou a namorar Rosa, o vice-presidente de
patrimônio dos Democráticos (ex-namorado dela), lhes dava tropeços propositadamente no
salão, para que passassem vergonha sugeria.
Na casa de Mário, em certa ocasião, demos início aos vinte minutos de aula de samba
que, até a décima oitava aula, era conduzida por um mesmo CD do grupo de pagode Fundo de
Quintal. Samba é o gênero musical e o ritmo de dança predileto do Mário. Sempre que
dançávamos juntos, ele cantarolava as músicas e tecia elogios a uma canção chamada "Laços
de Amor", deste mesmo CD: Essa música é um primor, é a minha preferida, fala de uma
história de amor, de que quando a pessoa amada chega, toda a dor vai embora. Para mim,
dançar o samba acabava sendo o momento mais envolvente da aula, pois havia uma entrega
maior da parte dele, um empenho em ritmar ("swingar") a nossa dança de uma forma mais
harmoniosa à sonoridade da música o que também era possível ser visto nos salões, no
bailar dos casais e nos seus rostos, quando a música que dançavam e cantarolavam lhes tocava
a alma.
O samba tem variações rítmicas e por vezes é dançado com mais vivacidade ou
rapidez nos movimentos, de acordo com o andamento da música. Essa modalidade de dança
exige uma maior flexibilidade do corpo e jogo de pernas que requer firmeza e pulso por parte
dos dançarinos. Os joelhos devem se conservar flexionados, o movimento de bamboleio do
corpo é algo bastante contínuo e por isto ele deve ganhar uma certa liberdade; quer dizer,
dança-se enlaçado, mas o agarrado ao parceiro (como se dança o forró, por exemplo). Os
passos fundamentais do samba também se configuram em círculos, para frente e para trás,
com saídas pela lateral. Muitos dos passos do bolero se repetem aqui. Essa modalidade de
dança abertura a passos, apesar de ligeiros, mais largos do que no bolero, o que permite ao
dançarino floreá-lo com alguns movimentos quase acrobáticos que exigem equilíbrio. O ápice
desses passos elaborados pode ser visualizado no que Mário chama de balão: quando o
homem suspende e joga a mulher com um impulso rápido, e finaliza com ela sentada na sua
perna esquerda, estando ele de joelhos.
68
Este passo jamais fizemos em suas aulas. Nos salões, o vi sendo encenado poucas
vezes. Uma delas foi quando o baile social dos Democráticos estava por terminar e um
casal o fez ganhando os olhares atenciosos da pequena platéia que ainda restava no Clube. À
meia-hora do baile acabar, os casais que mantêm o embalo da dança parecem dar asas às suas
performances, com encenações de giros e rodopios, deslocando-se de ponta a ponta no salão.
Isto aconteceu outra vez no Clube Helênico, quando eu fotografava um casal dançando fora
da pista, no vão entre as mesas e as cadeiras, e eles posaram para mim como se quisessem
expor o máximo de destreza, de equilíbrio e de vitalidade. Esse dançarino tinha 21 anos e a
mulher que o alugava, aproximados 65, e tais movimentos pareciam ser manipulados como
índices de uma juventude que pertencia a ele e que, nesse tipo de contato contratual, por
contigüidade, se estendia a ela.
Mário resumia: O puladinho, o jogo de joelho e o vai mas não vai são os únicos
passos que não têm no bolero. Tem mais um que é de samba, o toque da perna da dama
que faz um S para trás. Eu trago você até a minha perna, você entra e sai; no segundo eu dou
um toque na sua perna você dois S para trás e volta ao puladinho. Após a execução de
giros e cortadas no samba, costuma-se retornar ao passo básico, não como estratégia de
descanso, mas para preparar uma outra combinação de passos que requer um certo equilíbrio
inicial.
O soltinho é a modalidade que atualmente mais se dança nos bailes, ao som de baladas
do rock brasileiro, como as da Rita Lee ou da Cássia Eller, e do swing norte-americano,
gravadas por Frank Sinatra ou Irvin Berlin. O soltinho é uma variação da dança que também
se chama swing, que, por sua vez, resultaria de um fox-trot mais acelerado. No livro que me
foi emprestado pelo Mário, cuja primeira edição é de 1946, está escrito que no fox-trot "o
movimento básico é a dança-andante, para frente e para trás, a qual entretanto, permite uma
infinidade de passos e ritmos que quebram a monotonia deste andante" (Fornaciari,1950:38).
o soltinho estaria bem representado nesta descrição como uma dança-andante, e há, nos
salões, quem reconheça essa filiação e o chame de swing ou fox-trot
57
.
No soltinho, portanto, os movimentos serão lentos ou rápidos de acordo com o ritmo
da música. O passo básico pode ser mais ou menos visualizado a partir da junção de ambas as
mãos do casal um pouco acima da cintura. O dançarino conduz sua parceira para o lado
57
O soltinho, como uma variação do fox-trot americano, era depreciado por Fornaciari, um imigrante italiano
que, em 1946, escreveu o referido manual "Como Aprender a Dançar", onde dizia: "A América do Norte nos deu
o Swing, não muito tempo. Talvez por sermos um povo de região tropical, a dança teve em nosso meio, a
melhor aceitação. De quase todas as danças, o Swing é a única que nada tem de arte. Como exercício, porém,
69
esquerdo e direito, soltando as mãos esquerda e direita da mulher enquanto ambos efetuam
uma marcação rítmica com os pés para frente e para trás, que se repete. Essa dança é
entrecortada por execuções, por vezes sucessivas, de giros de ambos os dançarinos. Os
passos, aqui, diferem totalmente dos acima mencionados: saída americana, meia-lua, jogo de
braço passeando, inclinar, lua-cheia, diagonal, patinha, patinar tipo twist.
É comum ouvir de alguns freqüentadores antigos do Clube manifestações como a do
Nelson: Essa dança é uma praga! dançam isso. Pode estar tocando bolero ou até mesmo
samba que vem essa dancinha. Eu é que não me presto a dançar esse tipo de coisa. Mário,
por sua vez, costuma ser mais discreto em suas críticas com relação às mudanças ocorridas e
vividas por ele nos bailes: – Hoje em dia é assim, o soltinho tomou conta do salão. Pode tocar
bolero, samba-canção, rumba, e rumba quando toca!, que tem casal dançando soltinho. Mas
rumba, mambo, salsa, lambada, essas danças todas caíram, como o tango que, agora para
dançar, você tem que ir num lugar especializado onde toca tango. Não adianta que em
clube nenhum nem em gafieira você vai ouvir um tango, a não ser que tenha algum momento
especial, aniversário ou comemoração, com direito a apresentação especial a casa ou a
pessoa convida os dançarinos para fazer uma homenagem.
A única vez que assisti a uma apresentação de tango foi no aniversário de 78 anos da
Maria Antonieta
58
, no dia 14 de maio de 2005. Esta também foi a primeira vez que fui a um
baile acompanhada com o Mário sem a presença de Rosa. O casal que se apresentava era de
ex-alunos da Antonieta, e anunciavam ao microfone que eles teriam ensaiado uma coreografia
para presenteá-la. O salão, a esta altura, já estava livre, e todos se organizavam no seu entorno
a fim de assistir a homenagem. Os dois se vestiam a caráter: o homem usava um terno negro
com gravata borboleta e tinha um cavanhaque aparado com preciosismo e o cabelo penteado
para trás, moldado com gel fixador; a mulher vestia um longo vermelho-púrpura, com
decotes avantajados, meia-calça arrastão e sapato de salto, ambos na cor preta. Os dançarinos
eram jovens, possuíam corpos esguios, e havia uma harmonia convincente em seus
movimentos quando encenavam um romance conflitivo. A luz baixa colaborava para construir
uma atmosfera propícia àquele momento. Uma certa nobreza parecia impor-se através da
melhor que o swing não há. É derivado do Fox-Trot, seguindo portanto os mesmos passos, no mesmo compasso,
distinguindo-se principalmente por ser executado com mais rapidez" (1950:93).
58
Dançarina muito reverenciada nos eventos de dança de salão do Rio de Janeiro uma espécie de 'abelha
rainha' dos dançarinos, sobre quem já foi escrita uma biografia chamada "Enquanto Houver Dança" (Drummond,
2004). Sobre Maria Antonieta Guaycurus de Souza, Costa (2000) mencionou, embaixo de uma foto na qual ela
aparecia ao lado do Mário: "Ela foi a grande resistência da dança de salão, exímia em todos os andamentos do
samba. Mestra e incentivadora de talentos como Carlinhos de Jesus e Jaime Arouxa".
70
música, dos gestuais retilíneos, das aberturas de pernas que pareciam exigir a habilidade de
bailarinos clássicos. Eles dançaram dois tangos, enquanto todos assistiam com expressão de
admiração e fazendo comentários entre si.
Mário me contou que fez algumas apresentações como dançarino de tango em
aniversários e em outros eventos comemorativos. Hoje quase não o pratica, a não ser quando
ensina a algum aluno. Mas, toda vez que ele se refere ao tango, fala que é uma dança que
exige mais concentração do que as outras, pois a seqüência de passos é muito variada e, para
efetuá-la, como diz, “é preciso pensar”. Ele considera o tango uma dança sofisticada, que
requer mais formação, elegância, charme e postura que as demais. Por vezes, durante as aulas,
diz que o tango é quase um ballet, pois tem aberturas de pernas, rodadas na ponta dos pés que
exigem equilíbrio, e uma postura ereta que nenhuma outra dança de salão requer.
Dentre os movimentos aprendidos com o Mário, os que me parecem predominar no
tango são: a execução de passos laterais efetuados tanto pelo homem como pela mulher; o
deslizar dos pés; a flexão pouco acentuada dos joelhos; o entrecruzar e as aberturas das
pernas. Talvez seja a dança que exija mais firmeza e equilíbrio nos movimentos
59
. Os passos
que fazíamos em nossas aulas chamavam-se: básico, passo 4, coçar, corropio, doble, volta o
parafuso, S, bailarina, passo V, tesoura , combinado, quedinha , jogo de cabeça e dos pés.
Mário aponta para a existência de uma hierarquia entre as modalidades de dança de
salão praticadas no circuito dos bailes. Nessa hierarquia, o tango aparece como menos
acessível ao "dançarino de baile", sendo o domínio dessa dança restrito àquele(a) que
freqüentou aulas ou a exerceu profissionalmente. Ao ensinar o tango, Mário aludia à
necessidade de “fazer uso do pensamento no ato da dança” comentário que jamais fizera ao
dar aulas dos outros tipos de dança. Esta falta de saber inscrito no corpo, bem como de uma
teoria calcada na observação contínua dos pares, emerge na própria maneira como Mário me
ensinou os passos de tango. Ele explicava cada movimento encenando-o lentamente, sozinho.
Nas demais modalidades, ele dançava o passo comigo e verbalizava o que havíamos feito
caso eu pedisse explicações ou identificasse, no que acabara de ensinar, um passo raro que ele
não anunciara ou nomeara espontaneamente nas aulas.
59
A respeito do tango, ver Julie Taylor (2000), que fez um estudo antropológico sobre o aprendizado da dança a
partir da sua experiência.
71
2. Signos auditivos e visuais: os recursos musicais e seu relicário
O tango, como expus acima, foi introduzido posteriormente nas nossas aulas
atendendo a um pedido meu, pois Mário privilegiou ensinar-me as modalidades que se dança
atualmente nos bailes. Retomando suas palavras: Não adianta, que em clube nenhum nem
em gafieira vovai ouvir um tango. Mário, assim como muitos freqüentadores do circuito
dos bailes, diferencia uma gafieira de um clube, e justifica essa distinção da seguinte maneira:
– Nos clubes, são todos associados. Já a gafieira é bilheteria, não tem quadro social; todos que
entram, têm que pagar. A única que ainda funciona assim é a Estudantina. O Elite [fundado há
setenta e cinco anos, situado na Frei Caneca] não conta porque está muito em baixa, mas antes
éramos todos associados a esse clube, que agora vive de bilheteria. Para o Mário, o fato de
necessariamente ter que se pagar a bilheteria para entrar em uma gafieira é o que a diferencia
dos clubes como o Democráticos, que contam com sócios ou associados (que pagam o valor
de quinze a vinte e cinco reais por mês) e se isentam da bilheteria, tendo que arcar apenas com
o custo da mesa (entre sete e dez reais).
Mas, como vimos, o termo “gafieira” também podia designar um modo genuíno de se
dançar ora aludindo a um caráter clássico, "respeitoso" e "elegante" da dança, ora a uma
"malícia", a um "malandreado", a uma "dança suja" e "dos excluídos". Outra definição a ela
atribuída, era a que sugeria "um ambiente menos familiar"
60
se comparado aos clubes (nos
quais "as pessoas se conhecem" e são "solidárias" umas com as outras). Já os músicos
definiam uma gafieira pelo "estado de espírito que predomina ao tocar" ou "pelo tipo de
conjunto usado" (pela formação instrumental). E o termo ainda podia ser empregado para
designar um gênero musical: Para se tocar um samba de gafieira ou choro de gafieira, é
indispensável o uso de instrumentos de sopro, como trombone, trompete e saxofone, me dizia
um músico.
Resumindo: a palavra gafieira, além de ser utilizada como "um local que permitiu a
quem não fosse sócio de clube freqüentar bailes mediante pagamento de ingresso"
61
, aparecia
60
Nesse tipo de expressão, sobressaía uma "valorização ético-social dessa maneira de estar junto (...). A família
designa implicitamente o modo de fazer parte de um grupo", aparentemente dotado de coesão, e sobretudo por
uma condição social "semelhante" entre aqueles que o compõem (Lenoir, 1989:74).
61
Trecho de uma reportagem sobre gafieira na Revista Ele e Ela (1979). Segundo algumas versões jornalísticas,
a criação do neologismo gafieira surge na década de 30, quando substitui o termo mil-e-cem” (baile de preço
barato) até então atribuído a esses espaços que foram sede das agremiações carnavalescas, ranchos e grandes
sociedades. Conta-se que o jornalista Romeu Arêde que escrevia nas colunas destinadas ao noticiário
recreativo e carnavalesco do Jornal Vanguarda e depois no Jornal do Brasil cunhou tal palavra do galicismo
“gaffe”, à qual assimilou o termo “cabroeira” (baile de “cabras”, de “gente rude”). Ele teria nomeado o clube
Elite situado na rua Frei Caneca, em frente ao Campo de Santana, próximo à Central do Brasil de tal forma
pejorativa, por ter sido repreendido em um baile devido a seu comportamento desrespeitoso às regras do
“Estatuto”. Um estatuto como este, pode ser visto hoje fixado à parede da gafieira Estudantina Musical, na praça
Tiradentes (transcrevo os itens desse estatuto no anexo 6).
72
como um estilo de dança passível de diversas interpretações. Outra formulação recorrente
dizia respeito a uma oposição frente ao "ambiente familiar" dos clubes. A mesma palavra
ainda era usada para designar um "estado de espírito" ou identificar um gênero musical,
conforme sugeriam os músicos.
Outro ponto que me parece importante explorar é a referência que Mário faz ao
"tempo da gafieira", no qual, na maioria dos bailes, se dançava ao som de grandes orquestras
como Tabajara, Tupi e Cuba Libre, e não de bandas com pequena formação instrumental.
Esse tempo passou a ser mais relembrado pelo Mário quando, na nossa décima oitava aula,
começamos a ouvir os seus vinis, que há mais ou menos quinze anos não eram tocados. Como
me informou o Mário: Desde quando apareceu o CD e eu ganhei uma aparelhagem de um
aluno, nunca mais ouvi meus discos, porque a vitrola que eu tinha antes dessa pifou e ficou
por isso mesmo. Eu tentei colocar para tocar aqui, mas esse braço corria para toda vez que
eu tentava; aí eu desisti.
Em certa ocasião, resolvi averiguar que tipo de problema teria o seu toca-disco,
quando percebi que o único esforço necessário para fazê-lo tocar era retirar o plástico que
protegia a agulha. Mário não podia enxergar esse pequeno detalhe e, por isso, havia
abandonado a vitrola que ganhara, sem nunca a utilizar.
Ele ficou eufórico com a descoberta de que o aparelho estava funcionando, e correu
para pegar um vinil em meio aos duzentos LP's que possuía, e que ficavam empilhados,
dispostos horizontalmente em uma estante situada no corredor estreito da entrada da sua casa.
Estes discos estavam muito empoeirados e alguns melados em decorrência de algum líquido
adocicado derramado em cima deles. Pegou então um vinil do Wando, um cantor romântico –
o primeiro a tocar na sua vitrola que estava em perfeito estado, mas que nunca havia sido
estreada por ele. Entusiasmado e risonho, dizia-me : – Eu tenho de tudo aqui, e agora eu posso
dar aulas com minha discoteca completa, com direito a tudo o que se tocava nos bailes! Sugeri
que ele pegasse um grupo ou um cantor que tocava nos bailes de antigamente para que a gente
fizesse a nossa aula dançando as músicas do "tempo da gafieira", e o segundo vinil foi
escolhido. Era um disco da orquestra Tupi: só, a música tocada por uma orquestra é
outra coisa. É melhor até mesmo para dançar, se escuta mais os instrumentos.
Enquanto dançávamos, Mário relembrava que tinha participado como dançarino do
lançamento do vinil que ouvíamos, chamado "Dança e Romance", no Clube Social de Ramos,
na zona norte da cidade. Sobre essa noite, Mário contava: Fiz uma participação especial
dançando bolero junto a outros casais. O clube estava cheio de gente e o presidente do clube
73
veio me cumprimentar, agradecendo pela coreografia que tínhamos ensaiado e tudo. O quê?!
todo mundo me conhece! Foi muito lindo, o clube nos aplaudia de que vendo [e
encenava com as mãos os aplausos recebidos]. Mário demonstrava-me a importância de se
fazer reconhecer em um universo social pequeno, onde lhe eram enaltecidos muitos atributos
que não poderiam ser percebidos, e, portanto, reconhecidos, fora dos salões. Naquele espaço,
o seu talento como dançarino e o seu trabalho como professor de dança eram valorizados e o
seu mérito reforçado publicamente por aqueles que o aplaudiam e o saudavam.
Dançamos todo o vinil, pois ali se tocava de tudo: bolero, soltinho e samba. Era como
se estivéssemos em um baile. Mário não precisava, como normalmente fazia, mudar o CD de
acordo com a nossa dança. Pela primeira vez, ultrapassamos o tempo de uma hora de aula. Em
dois momentos, eu fiz menção em pararmos, tendo em vista que havíamos excedido o nosso
tempo, mas, na segunda vez, ele sugeriu: Vamos terminar o vinil, eu tenho tempo.
Geralmente, ele finalizava a aula dizendo que tinha compromissos: ir à loteria, ao mercado,
pagar uma conta ou dar outra aula. Eu nunca conseguia prolongar nossos encontros; a não ser
naquele dia, por vontade de Mário.
Ele havia deixado de lado sua vasta e eclética coleção de LP's de músicos, grupos e
orquestras norte-americanos, latino-americanos e franceses, e mais ou menos quinze anos
passara a fazer uso de um número restrito de coletâneas de CD's que se repetiam a cada aula
que fazíamos. Eu temia que os seus discos estivessem empenados àquela altura, pois os
encontrei, como dito, dispostos um em cima do outro, e ainda com uma cesta cheia de objetos
sobre eles. Propus-me a arrumá-los de uma maneira distinta, justificando-lhe que tinha
interesse em conhecer os registros musicais da sua vida. Tais LP's foram um dia seu
instrumento de trabalho, com os quais dava aulas e ensaiava coreografias, e certamente, por
meio deles, eu conheceria o repertório musical que se tocava nos bailes.
Cinco dias depois do advento da vitrola funcionando, quando cheguei à sua casa para a
nossa décima nona aula, os vinis estavam enfileirados, sem a espessa poeira que os cobria, e
dispostos seguindo uma lógica de gêneros musicais: boleros, mambo, rumba, tangos (tocados
por argentinos e franceses), orquestras americanas, brasileiras, cantores e cantoras nacionais,
samba e pagode. O próprio Mário havia limpado e ordenado os seus vinis, dispondo-os, na
mesma estante, em posição vertical do modo como eu havia sugerido quando o alertei da
possibilidade de estarem empenados. Mário ficou entusiasmado com o fato do seu toca-disco
funcionar e envaidecido com o valor que eu demonstrei residir em uma vitrola que poderia, de
outro ponto de vista, ser considerada como mais obsoleta que um aparelho de CD.
74
A partir desse dia, começamos a ouvir os seus vinis em nossas aulas. Esses discos,
tocando, inspiraram lembranças de eventos como apresentações, shows e novelas das quais
participou como dançarino. Nessa décima nona aula, eu encontrei um disco com músicas para
sapatear em que o Fred Astaire aparece na capa. Perguntei-lhe se sabia sapatear: – O quê?! Eu
fiz shows no Internacional, no Clube Santa Luzia, e dava aula de sapateado! Eu aprendi a
sapatear na Academia Mário Mascarenhas, na Cinelândia. Mas depois que me mudei para
eu tive que parar por causa das reclamações do vizinho de baixo. Porque você sabe como é
que são aquelas tachinhas de ferro para botar na sola de trás do sapato? Eu tenho as minhas
aqui; deixa eu te mostrar [e retira de dentro do armário uma sacola com alguns pares delas,
bastante desgastadas]. Fred Astaire, Ginger Rogers e Gene Kelly são os meus ídolos. A
Ginger Rogers é parceira do Fred Astaire, assim como eu e a Antonieta. Eu soube que todos
eles tinham academias de dança nos Estados Unidos e por isso eu gostaria de conhecer lá. E
também a Argentina, para eu ir às milongas e poder me aprimorar no tango.
Outro vinil que o fez contar histórias, foi a trilha sonora da novela "Pai Herói"
(exibida pela Rede Globo em 1979), uma das que trabalhou fazendo figuração como
dançarino de uma gafieira, cuja dona era a atriz principal. Mário chegou a mostrar-me uma
revista chamada Secretíssima, datada deste mesmo ano, na qual ele aparecia ao fundo, em
uma cena onde os atores dançavam na Estudantina. Outras três revistas me foram mostradas,
na ocasião da nossa vigésima segunda aula, nas quais ele aparecia. Duas eram "Manchete".
Em uma edição comemorativa de 20 anos desta extinta emissora, ele era visto fazendo
figuração na novela "Kananga do Japão"
62
; já na outra edição, aparecia na Sapucaí desfilando
pela escola de samba "Unidos da Cabuçu", que homenageava, em 1991, Adolfo Bloch (dono
da emissora). Outra revista era a "Ele e Ela", de 1979, na qual uma foto sua fazendo um
passo com uma dançarina na abertura de uma reportagem de oito páginas, intitulada:
"Gafieira, o chega para cá da burguesia". Esta última reportagem, que descrevia o ambiente e
contava histórias das gafieiras, apontava para "as invasões" da classe média a esse espaço. A
sinopse da reportagem dizia: "A classe média brasileira adquiriu nova febre dançante e
invadiu as gafieiras, misturando-se a malandros, operários e empregadas domésticas.
Enquanto isto surgem as gafieiras de luxo, com orquestras famosas, ar-condicionado e
62
Novela exibida pela Manchete entre 1989 e 1990, cujas histórias se desenrolavam no início do século XIX na
sede de uma "pequena sociedade carnavalesca" chamada "Kananga do Japão". No carnaval, agremiações como a
que a novela aludia de forma fictícia, faziam o seu cortejo nas ruas no formato de "rancho", e, ao longo do ano,
funcionavam como locais de baile, conhecidos como "jarra" (Efegê, 1965; Cunha, 2001). Até meados dos anos
40, havia diversas "sociedades dançantes" por toda a cidade. Dentre as mais conhecidas, destaco: "Pepinos",
"Maçã de Ouro", "Descarados do Catete", "Estrêla Dalva", "Mimosa Japonesa", "Ameno Resedá", "Eldorado",
"O Prazer é Nosso", "Tira o dedo do Pudim", "Recreio das Flores", "Mimosas Cravinas" e "Mimoso Manacá".
75
cozinha internacional". Esta fala em tudo recordava o discurso em torno da chamada
“revitalização” da Lapa e cercanias, que ganhava força em 2005. Percebia que, com novos
termos, se aludia a um movimento semelhante que, dado o intervalo de tempo, era levada a
crer que se tratava de uma espécie de ciclo.
O mundo que cerca Mário foi inventado por ele próprio; as peças que descrevo foram
postas por ele ali, o que sugere um reconhecimento do seu trabalho por meio da materialidade
dos objetos, dispostos em uma espécie de relicário que ele organiza. Por meio desses artifícios
materiais e sonoros, desses instrumentos que podem ser vistos como fruto de um trabalho, ele
se faz reconhecer como uma pessoa de valor por sua raridade, por seu tempo de ofício, pelo
seu saber. Seu trabalho, além de dançar com maestria, é documentar a sua própria
experiência, a sua própria vida. Mário investe energia para produzir o seu próprio
encantamento e para conhecer o mundo da dança.
3. Profissão: Artista e Professor de Dança (o corpo como um instrumento musical e de
trabalho)
Mário costumava me contar suas histórias como artista. Além das aparições em
novelas, filmes e em reportagens sobre gafieiras nas revistas citadas das décadas de 70, 80 e
90, ele posou para a capa de um disco chamado "Dançando nas Gafieiras". Este vinil me foi
mostrado por ele, e, ante a ausência de sua capa, explicou-me: Então, os fotógrafos fizeram
várias fotos comigo na Estudantina. Tudo bem. Falaram com o seu Manolo
63
e ele permitiu
que a sessão de fotos fosse com a condição de que aparecesse o nome da Estudantina no
disco. Tudo bem, o disco saiu comigo na capa, mas o nome da gafieira que aparecia era
Jangada, uma que tinham aberto na Barra e que estava na moda naquela época. Seu Manolo
ficou danado, me pediu a capa do disco e disse que ia processá-los e tudo. Acabou que isso
nunca aconteceu e eu fiquei sem a minha foto da capa. Mário pôde guardar o LP que era o
ícone de seu trabalho –, porém sem a capa. A vida de Mário e o seu trabalho são a dança.
Documentar sua própria experiência de vida não deixa de ser uma forma de criar e/ou
conservar outros instrumentos de trabalho seu apartamento, suas vestimentas, seus CD’s e
63
Imigrante espanhol que abriu a gafieira Estudantina, na Praça Tiradentes, mas que antes era dono do Clube
Elite (situado na rua Frei Caneca) junto com seus quatro irmãos (ver localização dos clubes e gafieira no mapa
do anexo 7).
76
vinis, além de seu próprio corpo. É por meio de todo o seu relicário que Mário fascina e
convence seus alunos de que ele é um professor que vale a pena.
A consistência material das memórias de Mário podia ser apreciada por todos.
Obviamente cada qual que adentrava naquele recinto percebia alguns objetos como mais
evidentes que outros. Como sugere Marcel Mauss (1979) em sua apreciação sobre a prece, a
necessidade de uma fixação material acessível a todos não impede que sentidos distintos
sejam suscitados a cada oração. Em cada aula, a cada aluno, lecionando variadas modalidades,
Mário ensina a dançar em seu apartamento e nos salões a partir dos passos que trilhou em
sua própria vida.
Sua memória é também uma fonte primorosa de referências para as quais falta registro
material em especial quando se trata de casos traumáticos, em que Mário se empenhou em
alguma tarefa e não recebeu a retribuição que almejava. Mário contribuiu, por exemplo, para a
elaboração de dois livros: o de Teresa Drummond (2004) sobre a vida de Maria Antonieta,
citado, e o de Haroldo Costa (2000), que fez um catálogo musical intitulado "Na cadência do
samba". Mário falava com certa indignação sobre o fato de não ter sido presenteado pelos
autores com nenhum desses livros. Teresa Drummond freqüenta a Estudantina e o conhece há
anos, mas, no dia em que fez uma noite de autógrafos nessa mesma gafieira, Mário me disse:
Esqueceu que entrou na minha casa, me entrevistou, filmou, fotografou tudo e foi embora.
Ela chegou a me mandar um convite para o lançamento do livro em uma livraria, que eu já
nem me lembro. Fiquei sem jeito de ir porque me disseram que eu teria que comprar o livro e
eu não tinha como. eu deixei para ir na noite de autógrafos porque eu não ia ter essa
obrigação. O quê?! Ela o me ofereceu nada. E depois eu vi que a Antonieta tinha recebido
três livros! Mas disse que um era para não sei quem, o outro para outro, e eu fiquei sem
nenhum.
Quem este livro percebe a presença de Mário logo na primeira página, quando a
autora narra a festa de aniversário da Antonieta em 1993: "Mário, que, além da gravata-
borboleta, tinha o mesmo azul na lapela, sobre um impecável linho branco", teria dançado um
blues com a Antonieta e aberto o champagne.
Já para o lançamento do livro do Haroldo Costa – que ocorreu na "Bienal do Livro" de
2000, no Riocentro, localizado na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro –, Mário conta que
Antonieta e ele foram pegos em casa por um motorista. Ambos fariam uma apresentação de
dança no momento do lançamento, para a qual foram pagos. Ele ganhou cem reais pela dança
apresentada, mas um exemplar do livro foi dado apenas à Antonieta: Eu nem pedi
emprestado a ela porque do jeito que ela é mão-fechada, eu fiquei na minha. Mas você tinha
77
que conseguir esse livro para o seu trabalho, tem fotografia da gente e tudo! Outro registro
material ao qual ele atribui muito valor e que está nas mãos de Antonieta, segundo Mário: É
o Globo Repórter que a gente gravou em 1977. Mas ela não empresta para ninguém porque
um aluno dela uma vez levou para copiar a fita para ele e quando devolveu, pois bem,
entregou a cópia para ela e desapareceu com a original. Ela ficou danada da vida e agora ela
não quer saber de emprestar nada seu.
Desde a primeira aula de dança que tivemos, em fevereiro de 2005, até a nossa
vigésima quinta, ocorrida no dia 24 de maio desse mesmo ano, seu último trabalho de vulto
artístico, como ele mesmo classifica, foi gravar um documentário, em 2004, sobre a sua vida e
a da Antonieta. Esse documentário foi feito por uma produtora alemã que lhes pagou cem
reais a diária para filmá-los na Lapa, em Santa Teresa, na Estudantina e na própria casa de
Mário. Ele conta que foi pedir permissão à direção do Clube Democráticos, localizado na rua
do Riachuelo, onde mora, para filmá-lo na hora do baile, mas que "o vice-presidente não
deixou que eles filmassem lá. Sabe por quê? Porque tem muito homem que vai com
amantes e eles não querem ser filmados ou fotografados para não se comprometerem".
Mário é filho de músico; seu pai tocava acordeão, e, dos treze irmãos que teve, diz que
foi o único da família que não aprendeu a tocar nenhum instrumento. No entanto, conta que
desde menino se segurava na cintura de suas irmãs mais velhas para dançar. E identifica nessa
ocasião o momento em que começou a exprimir a sua musicalidade "de berço" por meio do
seu corpo, como se este fosse um instrumento musical que não emitiria som, porém seria
dotado de uma capacidade rítmica inata. Sua habilidade com a dança, portanto, é interpretada
por ele como uma herança familiar. O ambiente musical no qual foi criado lhe despertara um
saber sensorial auditivo que foi traduzido, ainda quando menino, em movimentos rítmicos por
meio da dança.
Sua elaboração a respeito da sensibilidade rítmica sugere que, por meio de um ouvido
apurado, seu corpo responderia com à música. É curioso notar que, com a perda parcial da
audição, Mário demonstra outras formas de percepção, para além da escuta, que o permitem
seguir bailando no ritmo correto. Para me comunicar com ele, precisava falar sempre em um
tom de voz mais alto ao que estava habituada. E, quando falávamos ao telefone, sua
dificuldade auditiva ficava ainda mais evidente. Nada disso, entretanto, interferia em sua
habilidade com a dança.
Nos salões, era comum encontrar bailantes com alguma deficiência física ou mesmo
auditiva. Nos Democráticos e no Helênico, eu dançava com um surdo, distribuidor de
78
filipetas, que, mesmo impossibilitado de escutar desde o nascimento, havia aprendido a
dançar observando aqueles que dançam. Assim, este senhor dançava as músicas mais
aceleradas que lhe davam ritmo pela vibração do ar.
Penso que as situações adversas não devam ser usadas para reforçar um modelo dos
atributos naturais imprescindíveis à dança como se a deficiência fosse traduzida em
impossibilidade (de dançar, de atualizar um modelo ideal de bailante, etc.). Conheci pessoas
que dançam sem perna, sem braço, sem mamas. Não creio que devamos apenas pensar nas
razões que as permitem fazê-lo, mas refletir sobre o consenso acerca de uma suposta base
física, material, natural, necessária à dança como se a dança não fosse uma invenção que se
realiza em concomitância com a produção do próprio corpo.
Mário, aos 16 anos, saiu de Itaboraí (município do Grande Rio), onde morava com os
seus pais em uma fazenda de um coronel do Exército. Lá seu pai cuidava dos bois e
trabalhava como chofer, e sua mãe era doméstica. Desde os 14 circulava pelo Rio de Janeiro,
pois ajudava sua madrinha a fazer a faxina da casa de um almirante da Marinha, que morava
na rua Real Grandeza, em Botafogo, zona sul da cidade. Mário conta que esse almirante teria
simpatizado com ele e lhe dado o seu primeiro trabalho com carteira assinada. Aos 14 anos,
tornou-se office-boy da Companhia de Transporte Comercial Importadora Empresa Viação
Estrela do Norte. Aos 24, saiu de como chefe do almoxarifado. Serviu ao exército dos 18
aos 19, na rua Bartolomeu Mitre, em São Cristóvão, e conta que, apesar de seu bom
desempenho ter-lhe rendido propostas de promoção, não quis seguir a carreira militar, pois
nessa altura já estava envolvido profissionalmente com a dança.
Dois anos antes de servir, Mário morava com sua irmã em Santa Teresa, e tinha
ingressado na Academia Moraes – primeiro como aluno, e logo depois como professor, sendo
remunerado por isso. Ele conta: Desde que eu vim morar para perto do centro, eu passei a
freqüentar os clubes todos daqui: o Elite, o Clube Tupi, o Bola Preta, o Clube dos Sargentos,
os Democráticos, o Feniano, o Tenente do Diabo. Ih nossa, eram tantos os clubes: Dancing
Brasil, Dancing Avenida. O Dancing Brasil era o número 277, e o Dancing Avenida é onde
agora é o Passeio Público. Eu freqüentei também a Casa do Estudante do Brasil, onde tinha os
bailes da Domingueira, lá na estrada do Castelo, perto da Santa Casa da Misericórdia.
Aos 24 anos, foi trabalhar em uma loja de roupas chamada Impecável Maré Mansa,
onde prestou serviços para o escritório administrativo (fazia contas, selava cartas de cobrança
e as levava aos correios). Tanto a loja como o escritório de contabilidade onde trabalhava
ficavam na rua Marechal Floriano, situada no centro da cidade. Até que se tornou copeiro do
79
Hotel Savoya, da rede Othon, em Copacabana, onde chegou a ser chefe de copa antes de se
aposentar em 1986. Mário fala que buscou essas ocupações paralelas ao seu ofício de
dançarino como forma de garantir o seu sustento, mas que a sua profissão e sua vida é ser
professor de dança: Dar aula é a minha vida. E se tirarem isso de mim, eu o sei o que
acontece comigo.
Mário sugeria em diversos momentos que, quando lhe faltava o trabalho de (ensinar a)
dançar, lhe faltava vida. Podemos pensar, a partir das reflexões de Florence Weber (1989),
sobre a imbricação entre as atividades nem todas laborais no mesmo sentido, nem todas
remuneradas e exploradas da mesma forma que constituem as específicas noções de
trabalho. Para Mário, o trabalho não está apartado de sua vida; talvez trabalho e vida sejam a
mesma coisa, pois ele considera que vive de fato quando está fazendo o que gosta.
E era com orgulho que me contava que, no Savoya, ele era conhecido como o artista
do hotel por suas participações nas novelas. Além disso, em 1977, na ocasião em que gravou
o Globo Repórter, foram filmá-lo no Savoya durante o seu expediente o que teria agradado
ao gerente, pois acreditava que o hotel seria recompensado por isso. A partir de então, passou
a fazer apresentações de dança para os hóspedes e conquistou muitos alunos e amigos entre os
funcionários. Maior demonstração dessa amizade, segundo Mário, foi quando ele tinha se
aposentado, em novembro de 1989, e foi convidado para a festa de fim de ano dos
funcionários do hotel, onde lhe presentearam um pôster do Charles Chaplin. Este quadro fica
exposto na sala em que dá aulas de dança, como um índice de reconhecimento do seu atributo
que mais valoriza: ser um artista como o Chaplin, conforme lhe disseram no momento da
homenagem.
Mário se dedicou a me narrar esse evento durante um longo tempo: – Eu fiquei
surpreso com o convite e mais ainda quando eu cheguei e me prestaram uma homenagem;
de me lembrar eu me emociono. foi aquela festa, dancei com todo mundo que eu tinha
ensinado, até que o gerente do hotel chegou para mim e falou: agora você vai dançar um
samba para a gente de olhos vendados. Então eu pensei que, como eu sambava no pé, aquilo
ia ser moleza para mim. Fui e sambei. Daqui a pouco ele chega perto de mim, destapa os
meus olhos e me mostra um quadro grande coberto com um papel, e disse que era um
presente de todos para o artista do hotel. Quando eu tirei o papel que cobria o presente, era
esse quadro do Chaplin que, se você olhar na parte de trás, está todo assinado pelos
funcionários [e retirou o quadro da sua parede para que eu visse as assinaturas]. Eles diziam
que eu era artista assim como o Chaplin e que por isso me presenteavam com a sua imagem.
80
Em várias ocasiões, ele fazia menção ao fato de verem nele um artista: – Eu já conheci
muitos atores de televisão que interpretam, mas que na hora de dançar é a maior dificuldade
para conseguir aprender alguns passinhos. Muitos deles me disseram que, na dança, eu é
que era o artista. Mário reconhece em si mesmo certos atributos que lhe dão essa aura, essa
alma de artista à qual tanto se refere e que o diferencia dos demais funcionários dos empregos
anteriores que conjugava ao ofício de professor de dança.
dezenove anos, Mário se aposentou e, desde então, recebe quatrocentos reais por
mês, que não cobrem o valor pago pela sua moradia. cinqüenta e três anos ele aulas,
fazendo do seu corpo, por meio da dança, um instrumento de trabalho. As participações em
eventos e gravações são ocasionais e ele não costuma contar com isso para pagar suas contas.
Mário fica muito aflito com a possibilidade de, no final do mês, não ter dinheiro suficiente
para pagá-las: Eu tenho pavor de não conseguir pagar as minhas contas. Uma vez, para não
cortarem a minha luz, vendi o deo cassete da Panasonic que uma aluna tinha me dado.
Naquela época, se passassem poucos dias de atraso, eles cortavam a minha luz. E imaginou
eu aqui sem luz? Eu não trabalho, e isso atrapalharia a minha vida.
Sua principal atividade é dar aulas particulares em sua casa durante a semana, sendo
que, às sextas-feiras, ele vai a Copacabana dar aula para uma senhora que recentemente
recebeu recomendações médicas para praticar a dança de salão como um exercício físico,
segundo ele. O número de alunos era instável, mas a média girava em torno de sete alunos
fixos que pagavam dez reais por aula. Seus alunos costumavam lhe oferecer suprimentos de
cesta básica; além disso, observei que, desde quando comecei a freqüentar sua casa, ele
recebeu uma geladeira e depois uma estante de uma aluna, moradora do seu prédio, que pedia
em troca aulas de dança. Mário por vezes acompanhava Rosa aos bailes de domingo no Clube
Democráticos – a qual, como já disse, também lhe remunerava por isso.
Conheci duas de suas alunas: Diamantina e Dulce. Ambas praticam dança de salão
apenas uma vez por semana como exercício físico, conforme indicam. Diamantina não
deixava passar um dia sem fazer suas caminhadas, além de dedicar-se ao ioga, à natação e ao
canto com uma professora particular. Já Dulce praticava hidroginástica três dias na semana.
Diamantina tem mais ou menos 70 anos, é dentista aposentada e mora em Santa
Teresa, bairro localizado no centro do Rio de Janeiro. Ela freqüenta a casa de Mário há quatro
anos e chegou ali por intermédio de uma amiga. Diz que sempre gostou de dançar, apesar de –
antes do Mário nunca ter feito aulas, nem ter por costume ir a bailes. Ela observa: Mas eu
já levei o Mário para me acompanhar em alguns bailes junto com minhas amigas.
81
Diamantina é uma senhora de cabelos grisalhos, que fala em um tom de voz baixo,
expressando uma certa timidez. Eu a conheci na minha décima oitava aula, quando catalogava
os vinis do Mário antes de começar a dançar. Nesse período, eu pagava por duas horas de aula
para que, na primeira, eu pudesse tomar nota, ouvir os discos, e ver as fotografias de Mário na
sua companhia, e, na segunda, déssemos continuidade às nossas aulas práticas de dança. Certo
dia, dona Diamantina chegou para a sua aula, deixando o Mário um pouco constrangido com a
confusão de horários. Apresentei-me e perguntei se ela o se incomodava se eu assistisse à
sua aula, explicando-lhe um pouco da pesquisa. Ela ficou à vontade com a minha presença e
ainda fez poses, enquanto dançava com o Mário, para as fotos que eu tirava.
Diamantina se movia lentamente, com uma leveza corpórea e uma serenidade no rosto
que fazia da sua dança um exercício que parecia não requerer esforço algum da sua parte. Sua
aula seguia uma seqüência musical que diferia da minha (bolero, soltinho, samba, e tango)
apenas pela inserção do forró depois do samba. Por insistência dela, Mário vinha introduzindo
aos pouquinhos o "samba no pé", como ele dizia. Dona Diamantina fazia uma variedade de
passos maior do que a que eu sabia, principalmente no que diz respeito ao tango chegando
mesmo a interrompê-lo quando o Mário se esquecia de algum passo da seqüência que ensaiara
com ela.
Dulce, conheci na minha vigésima nona aula de dança. Cheguei em um horário que
não era meu e Mário estava à espera dela. Mário não se importou, pois sua aluna estava
atrasada e, caso ela não viesse, eu faria a aula no seu horário. Dulce que é funcionária
pública aposentada, tem 73 anos e mora no Méier, zona norte da cidade chegou vinte
minutos atrasada, e se justificava: Foi por causa da moleza do motorista. Nunca vi nada
igual! Para chegar no Mário, ela tomava um ônibus que costumava demorar quarenta minutos,
mas que naquele dia especialmente demorara uma hora devido à lentidão do motorista, como
mencionou.
Dulce chegou ali por intermédio de uma ex-aluna do Mário que hoje mora em Brasília,
e sobre a qual ela trata de informá-lo enquanto dançam. Durante aquela aula, Mário virou-se
para minha direção e me disse: onze anos ela dança comigo, desde que eu morava no
706. Mas ele se equivocara nas contas, pois havia me dito várias vezes que se mudara para
aquele prédio em 1989, morara durante três anos, e em 1992 passara a viver no 903, onde
está treze anos. Este erro era, na verdade, uma forma de calcular especial de Mário: ele
costumava acertar nas datas, mas, quando somava, sempre diminuía os anos. Acredito que isto
faça parte de sua perspectiva; da perspectiva de quem tem uma vida longa, de quem tem 70
anos.
82
Dulce é uma mulher vaidosa, o que se evidenciava nas cirurgias plásticas que havia
feito no rosto e nas roupas que usava naquele dia saia jeans com a barra trabalhada em
crochê bege, cinto prateado, sapato de salto tipo anabela e muitos adereços de prata, como
pulseiras, anéis e brincos (de dois a três em cada orelha). Ela não dança mais em bailes,
apesar de já os ter freqüentado. A respeito disso, diz: Esse negócio de ter que pagar para
dançar senão você não dança, isso não é para mim não. E também a dança ficou muito
moderna e para acompanhar tem que treinar muito; não é Mário?
Além dessas mulheres que na velhice deixaram de freqüentar os salões por esses e
outros motivos não explicitados, outras que vão desacompanhadas aos bailes e se recusam
a pagar o aluguel de dançarinos, pois encaram essa atitude com desconfiança. Alegam que
não são "mulheres de dar dinheiro para homem", apontando para o não reconhecimento desse
ofício como trabalho, e identificam no ato de pagamento algo que destitui a dança de valor, a
qual deve ser concedida e não comprada. No capítulo três, demonstro que, mesmo entre os
casais por contrato, o ato de pagamento ao dançarino por vezes é algo que deve ser velado.
A aula da Dulce era dividida em bolero, cha cha cha, tango, blues e samba. O curioso
é que, em nossas aulas, o Mário não fazia a distinção entre o que vinha a ser o cha cha cha e o
blues, nomeando-os como soltinho. Ele chegou a traduzir para mim que: – Ela dança o
soltinho no estilo cha cha cha e não no dos "Anos Dourados" que a gente dança [fazendo
menção ao vinil da Orquestra Tabajara], porque o cha cha cha é mais agitado. Dulce
completou: – É, quando a música é muito mole eu reclamo! Ela fazia passos curtos e
vagarosos, mas se "a música é mole" ela reclamava. A seqüência de passos que Mário fazia
com ela era pouco variada e se repetia em todas as modalidades de dança.
Assistir a essas aulas foi bom para perceber mais a didática de Mário. Ele parece
aplicar os passos de acordo com a condição de praticá-los que estima de cada aluna. Vendo-o
dançar o tango com Dulce, pude reparar as vezes em que ela tropeçou e que o Mário a
segurou para que não perdesse o passo ou mesmo caísse, assumindo os erros como seus. A
gentileza de Mário é reconhecida por Dulce, que, diante de um elogio meu a respeito do tango
que eles dançavam, comentou: Também... com o Mário a gente dança qualquer coisa. O
difícil é pegar um outro cavalheiro depois!
Ele também mantém-se muito atento à disposição física de quem dança com ele,
alternando o ritmo de tal forma que permita que a pessoa descanse. Dulce tinha reclamado
que o tango tocado no disco era muito longo e Mário deixou acabar a música para
prontamente colocar um blues. Apesar do andamento mais lento, Dulce não se queixou,
embora naquele momento parecesse cansada. Depois do descanso, veio a hora do samba,
83
ritmo predileto da Dulce e que lhe dava mais prazer em dançar. Nesta ocasião, ela exclamava:
– Ainda bem! Aquela música estava muito lenta.
Mário as recebe em sua casa com bastante cordialidade. Para a Dulce, prepara café e
forra um pano em cima do seu aquário, sobre o qual coloca uma xícara com um pires e uma
garrafa térmica. Ao término da aula, lhe oferece o ca e pergunta se ela não quer ir ao
banheiro lavar o rosto como sempre o faz. Diamantina havia deixado papel-toalha no banheiro
da casa do Mário, para que tivesse onde se enxugar quando finalizasse o seu exercício físico
que, conforme averiguou, faz-lhe perder trezentos gramas a cada aula. Esse presente evocava
a preocupação com os lenços dos 'das antigas' (para enxugar o suor da “dama” e do
“cavalheiro”).
Ao longo do nosso convívio, percebia a importância dos seus alunos em sua vida. Nos
bailes que freqüentamos juntos, sempre apontava para aqueles que eram ou tinham sido seus
alunos. E se tinha a oportunidade, apresentava-me a eles: – Esse aqui foi aluno meu. E quando
se referia a mim: Essa é minha aluna. Com freqüência, falava-me daqueles a quem ensinou
a dançar, tanto dos seus alunos atuais quanto dos antigos daqueles que moram na zona sul,
aos quais por vezes ele ia às casas dar aulas particulares; os que se mudaram para o exterior
levando as suas fotos "até para o estrangeiro"; de algumas moradoras e moradores do prédio
que já passaram pelos seus ensinamentos de dança ou que ainda faziam aula semanalmente na
sua casa; as mais assíduas, e aquelas que compareciam de tempos em tempos. Referia-se
também às aulas em grupos que, em outros tempos, ministrava no pequeno espaço da sua sala.
4. Descrevendo seu santuário (zona da dança como um local de culto)
Era 9 de fevereiro de 2005, Quarta-feira de Cinzas, e, como havíamos combinado,
voltei a ligar para o Mário Ferreira ao término do carnaval. Marcamos a nossa primeira aula
para o dia seguinte, às 17h na sua casa, na rua do Riachuelo, número 271, apartamento 903.
Parti dos Arcos da Lapa à procura do prédio, indo encontrá-lo somente quase à altura da Praça
da Cruz Vermelha, no outro extremo da rua na qual ele morava.
O Edifício Boa Jornada talvez seja o mais alto de todos dessa rua e o que concentre o
maior número de apartamentos por andar (são onze andares com dezesseis apartamentos em
cada um). Na base do prédio, funcionam alguns estabelecimentos comerciais um bar, uma
farmácia, uma locadora de vídeo e um estacionamento –, o que dificulta, à primeira vista, a
localização da portaria. Desde fora se um portão grande de ferro e um corredor com uma
certa profundidade, pouco iluminado. Foi preciso um esforço para eu enxergar, na mesa ao
84
fundo, a presença do porteiro. E, depois, não via maneira de comunicar-me com ele que não
fosse apelando para o grito, até que, fortuitamente, pude perceber que o portão estava apenas
encostado e que era só empurrá-lo. Fiquei meio receosa, mas em seguida veio alguém por trás
de mim que pedia passagem e isso acelerou a minha entrada e me deu firmeza no andar.
Dirigi-me ao porteiro comunicando que eu iria para a casa do rio, no 903. Atendendo ao
meu pedido, ele interfonou, deixou tocar umas quatro vezes e disse que eu poderia subir,
porque ele deveria estar no banho e por isso não respondia. Mas acredito que essa fora uma
forma sutil de sugerir que ele possivelmente não ouviria o toque do interfone. Depois que fui
conhecendo a dinâmica do prédio, percebi que a prática do interfonar não era algo recorrente
naquela portaria e que o portão de fora sempre estaria aberto no horário comercial.
O tempo que aguardei entre os quatro toques do interfone e a vinda do elevador foi
suficiente para encher o saguão com cinco pessoas à espera do mesmo. Na parede lateral aos
dois elevadores, estava exposta, em medidas ampliadas e protegida por um vidro, a convenção
do condomínio. Em uma das primeiras cláusulas, constava: "os apartamentos no todo ou em
parte destinam-se a fins residenciais e comerciais sendo expressamente proibido usá-los para
pensões, hotéis, hospedarias, clubes de jogos ou carnavalescos, escolas em geral e etc, ou por
pessoas de vida duvidosa, de maus costumes, assim como para qualquer fim ilícito passível de
repressão penal ou policial".
Conforme eu fui freqüentando o edifício, averigüei uma movimentação constante de
sacos de roupa que desciam e subiam para além do nono andar. Depois vim a saber pelo
Mário que na cobertura funcionava uma pequena fábrica de roupas, cujo dono era o seu
Américo, um ex-presidente e sócio do clube dos Democráticos. Este senhor mora com sua
esposa nessa mesma cobertura, onde ela coordena as outras costureiras. A vizinhança do
Mário é diversificada; no entanto, grande parte dos moradores com os quais encontrava no
elevador ou no saguão do edifício era de pessoas idosas.
Foi na busca pelo 903 que cheguei ao 916, constatando, assim, a quantidade de
apartamentos por andar. Eu estava dez minutos atrasada para a nossa primeira aula, e o Mário
me esperava com a porta aberta assistindo à televisão. Chamei o seu nome e, levantando-se,
convidou-me a entrar. Passei por um estreito corredor onde, do lado esquerdo, via-se uma
pequena cozinha. No momento da minha passagem, com o feixe de luz da porta entreaberta,
era possível ver bandeiras, escudos e pôsteres do Flamengo colados nas paredes e móveis. Em
uma caixa de papelão forrada com um papel dourado, situada ao lado do móvel que estreitava
a passagem pelo corredor, destacava-se um desenho de um casal dançando (contornado por
caneta hidrocor e pintado com lápis de cor) no qual se lia embaixo: "professor Mário". Mas o
85
que sobressaía na decoração do corredor e da sala-quarto, nesse primeiro olhar, eram as
ornamentações de um flamenguista convicto.
Nesse cômodo que estou chamando de sala-quarto, se configurava o espaço doméstico
da casa; havia um sofá-cama, um armário, uma estante, uma televisão, um aquário com três
peixinhos acinzentados, e uma geladeira que estava coberta por fotografias suas e de outras
pessoas em contextos ligados à dança. No entanto, as fotografias ganhariam maior destaque
no espaço reservado às suas aulas de dança de salão, onde expunha todos os seus troféus,
placas, medalhas e "brasões de distinção" (por exemplo, "padrinho da Estudantina",
"cavalheiro do Elite" de um determinado ano), mesclados com imagens de Nossa Senhora,
São Judas Tadeu, São Sebastião e São Jorge.
O espaço doméstico era separado, por um compensado, da sala de aula. Essa divisória
de madeira mantinha uma abertura de mais ou menos meio metro com o teto, o que garantia a
passagem de alguma luminosidade vinda da janela, situada no espaço privilegiado da casa:
sua sala de aula. Dessa janela, via-se a rua do Riachuelo, o relógio da Central do Brasil à
esquerda, e a Catedral em frente, seguindo a reta da rua do Rezende. Era nesse compensado
que, por ter uma certa espessura, estavam amparados os troféus, as placas, as medalhas, as
imagens de santos (que ficavam no alto, próximo ao teto pintado com uma fina camada de
tinta branca sobre borrões cinzentos), e as demais fotografias, dispostas para o lado da sala de
aula. Algumas dessas fotos estavam organizadas com o nome e o ano do evento fotografado e
expostas em um quadro coberto para evitar a perda de cor. Mas, apesar do esforço, muitas das
fotos da década de 90 perderam a nitidez da imagem retratada enquanto as das décadas de
70 e 80, principalmente as em preto e branco, ainda mantinham suas cores definidas.
No espaço reservado à sua aula de dança, as paredes são repletas de fotografias nas
quais o Mário aparece junto a atores, músicos, compositores, políticos, dançarinos, alunos
anônimos, donos e diretores de clubes e gafieiras. Há fotos em que está dançando, posando de
passista na Sapucaí, nas festas dos seus aniversários comemorados com direito a bolos e a
faixas em homenagem ao "professor Mário", em concursos de dança, em momentos de
premiações e de condecorações. Nas paredes, destacam-se o quadro do Chaplin e um cartaz
do filme "Tango" dirigido por Carlos Saura, em meio a diplomas de dança, gravuras de
santos, um escudo do Flamengo e uma bandeira do Brasil, de plástico.
As fotos e diplomas sem molduras são colados, com fita adesiva, na parede e no
contorno dos quatro espelhos com mais ou menos um metro de comprimento que ficam
pendurados nas laterais da sala de aula. Logo nas primeiras aulas fui percebendo que esses
espelhos eram imprescindíveis ao ato da dança e da fala do Mário. Ele tinha por hábito
86
realizar essas duas ações mirando-se neles, como se averiguasse a nossa performance e como
se só pudesse me encarar através dele. Poucas vezes me olhava de frente, expressando, apesar
da sua fala articulada, uma certa timidez. Seus olhos esbranquiçados no contorno das
córneas e sua audição reduzida tornam mais notório o avançar da idade, imperceptível diante
de sua fortaleza corpórea e disposição física.
Com o passar do tempo, pude ganhar os seus olhares, e conhecer certas fotos e objetos
que não estavam expostos uns por não atribuir importância, outros por preferir não revelar.
Antes, quando eu chegava, Mário costumava me conduzir diretamente ao espaço da sala de
aula. Suas outras alunas tampouco eram convidadas a sentar-se no seu sofá-cama para tomar
um café ou conversar. As vezes que impus minha presença nessa sala-quarto foram durante o
período em que estive catalogando os seus vinis, que inicialmente ficavam dispostos em uma
estante neste cômodo. Como mencionei, tal tarefa me foi permitida devido ao fato de eu
ter-lhe oferecido o valor de uma hora além daquela em que me ensinava a dança.
4.1 Fotos reveladas e às escondidas
Entre as fotografias guardadas, encontrei algumas de momentos de lazer, muitas delas
na praia na Região dos Lagos (Saquarema, Araruama, e Búzios, na sua juventude). Mário até
hoje vai à praia do Lido, em Copacabana, onde tem uma porção de amigos, diz ele. Fotos de
familiares e conhecidos seus em situações talvez não tão solenes para ele quanto as destacadas
nos seus murais, também estavam guardadas. No entanto, entre essas mesmas fotos do
armário, encontrei a de um reconhecido cineasta espanhol, na Estudantina, com a seguinte
dedicatória: "Al grande conocedor de la noche carioca, un abrazo, Pedro Almodóvar". Mas
Mário não atribuía a essa foto a mesma importância que dava àquelas em que aparecia ao lado
dos atores com quem trabalhou, atuando como dançarino nas novelas: É que assim, com
essas fotografias eu vou indo com todos. Eu tenho minhas novelas que eu faço, eu tenho os
meus artistas junto comigo, né?
Almodóvar não era um artista dos seus e não foi selecionado para compor o seu
repertório artístico, pensado em referência ao reconhecimento daqueles que freqüentam a sua
casa em busca de aulas de dança. Mas por que uma pessoa praticaria dança de salão em um
conjugado de poucos metros quadrados, onde não se dança nem sequer ao som de CD's,
mas sim de vinis, pois o equipamento de som do professor havia quebrado três meses? O
preço das aulas de Mário não estava abaixo da média do das academias, que costumavam
cobrar sessenta a setenta reais a mensalidade por uma hora e meia de dança em grupo por
semana. O que movia aquelas pessoas (trabalhadores assalariados, militares, senhoras
87
aposentadas, pensionistas e viúvas de militares) a se deslocarem da zona sul, da zona norte ou
da vizinhança da rua do Riachuelo para terem aula de dança com o Mário?
O modo como constrói a sua história e seleciona os seus relatos, os quais são
retratados na composição desse seu espaço de aula, produz um encantamento que nos prende
ali. Ter fotografias da Glória Perez (escritora de grande parte das novelas da qual participa e
que alguns anos recebeu o título de "rainha da Estudantina"); de políticos como a Benedita
da Silva (governadora do Rio de Janeiro em 2001), que participou junto com seu marido
Antônio Pitanga, ator da Rede Globo, da festa de encerramento da novela “O Clone”; de
atrizes como a Marília Pêra, dentre muitas outras; de músicos como Caetano Veloso, João
Bosco, dona Ivone Lara e Billy Blanco; e, ainda, muitas fotografias de Maria Antonieta a
quem estou chamando de abelha-rainha da dança de salão –, de quem cinqüenta anos é
reconhecido como partner; garante-lhe, como que por contágio, a fama desejada perante
aqueles que se seduzem com sua artística trajetória. Também a gentileza do seu método de
ensino e sua postura de um excepcional ouvinte fazem com que as suas alunas tenham grande
afinidade e cumplicidade com ele conversam sobre os seus problemas de saúde, trocam
notícias de amigos em comum ou discutem os capítulos das novelas que assistem.
em sua sala de aula, conforme eu havia dito, um painel de fotografias feito por um
ex-aluno seu, que era tenente da Aeronáutica e trabalhava também fazendo quadros. Este
aluno organizou uma série de fotos que o Mário havia separado, dedicando-se a escrever
algumas legendas com informações sobre o evento fotografado e sua respectiva data. Dentre
as fotos com legenda, destacou aquelas de Mário dançando no Clube Elite com uma aluna em
1977; retratos em que aparece a primeira "madrinha da Estudantina" (já falecida), vinte e
cinco anos atrás; Mário sendo condecorado com uma faixa de "padrinho da Estudantina"
(posto que até hoje é seu) em 1987; fotos dele com Maria Antonieta e o seu Manolo, dono da
Estudantina; aniversários de Mário, onde ele aparece fazendo apresentações de tango,
lambada, etc., com alunas suas; a entrega de um troféu oferecido pelos seus alunos em 1989,
na Estudantina, também em comemoração ao seu aniversário; fotografias da procissão em
homenagem à Nossa Senhora da Glória, dentro do Clube Elite, no dia 15 de agosto de 1972,
em que os casais aparecem em fila indiana rumo ao altar da santa carregada pelos padrinhos
do clube. Nesta última foto, como eu mesma havia visto no Democráticos, um padre rezava a
missa no salão do clube e comandava a procissão. Outras imagens retratavam uma
apresentação de tango junto ao grupo de alunos da professora Lena Fiori, também falecida.
Essa apresentação, que se chamou “Noite em Buenos Aires”, foi feita no Clube Social de
Ramos em 1990, quando Mário recebeu das mãos do presidente uma placa de prata.
88
Havia ainda uma "seqüência de fotos com saídas em Escolas de samba", conforme
aparecia na legenda: Portela, Caprichosos de Pilares, Unidos de Cabuçu e São Clemente. Ao
comentar essas fotos, Mário afirma: Tudo isso nos anos 80, durante quatro anos seguidos; e
agora faz dois ou três anos que eu não estou desfilando. Como mencionado, ele fala desses
momentos passados com uma perspectiva temporal que lhe é muito particular, pois costuma
reduzir o tempo em que certos eventos aconteceram em sua vida. Para uma pessoa que viveu
setenta anos, de fato pode ser diferente essa contagem do período em que não mais se desfila,
ou que se deixa de ir à Estudantina (na qual vários meses de ausência são traduzidos em duas
semanas de não comparecimento aos bailes). Mas por vezes parecia que essa atitude
suavizava seu ocaso nos eventos e nos clubes. Assim, acreditei em vários momentos que esses
lapsos com o tempo eram calculados, ou seja, que não se tratava de uma desatenção, de um
equívoco a mim, parecia uma forma de não se mostrar demasiado afastado do mundo social
da dança em que habitava.
4.2 Ser católico e flamenguista – profissões de fé
Mário nasceu no dia da Nossa Senhora do Carmo, 16 de julho, motivo pelo qual
tornou-se devoto dessa santa e durante anos freqüentou essa igreja, localizada na rua da Lapa,
no outro extremo da rua do Riachuelo. Mário participou da Ordem do Carmo dos
Escapulários durante trinta anos, e, conforme me contou: De primeiro, antes de eu ir para o
trabalho, eu pegava a missa das 6 ou das 7 horas da manhã durante a vida toda; eu, meus pais
e meus irmãos. Então eu tinha que levantar cedo e isso tomava o meu tempo, porque eu tinha
que sair para ir à missa. Eu sou missionário e faço a minha missão de cristão praticante aqui
em casa mesmo, acompanhando a leitura das missas da Igreja Católica aqui, nesse livro. Em
sua casa, por meio do "Missal Cotidiano", Mário faz as orações do salmo: reza todos os dias,
em jejum, nos mesmos horários em que antes freqüentava as missas. Vai à Igreja de São
Crispim que é mais próxima à sua casa, na rua Carlos Sampaio aos domingos. Em datas
especiais, se desloca até a Igreja da Nossa Senhora do Carmo, na Lapa – como o fez no dia do
seu aniversário e dessa santa. Nesta ocasião, ele assistiu à missa das seis horas e contou-me
que seu nome foi lido pelo padre, que prestou uma homenagem aos que nasceram na mesma
data da santa.
O "Missal Cotidiano" é um livro que reúne as orações, de cada dia da semana,
proferidas pelo padre na Igreja. Mário me mostrou esse livro na nossa vigésima primeira aula,
quando falávamos sobre sua religião. Contou-me que, desde menino, era católico praticante,
assim como os seus pais e seus irmãos, e que há quarenta anos carrega consigo aquele mesmo
89
Missal Cotidiano. A capa, por ser de couro, ainda mantém-se inteira, com alguns pedaços de
fita isolante para atá-la ao corpo do livro; a parte de baixo das ginas está desfeita,
desgastada pelo suor das suas mãos, o que inviabiliza por completo a leitura dos trechos finais
dos salmos. Mas Mário age como que não se importasse com isso e folheava as páginas para
me mostrar as leituras que fazia diariamente. Essa foi a primeira vez que o vi fazer uso dos
seus óculos de grau; Mário diz ter aversão aos óculos e que os usa quando vai ler. Nos
bailes, observei essa mesma ojeriza por parte de outros homens e mulheres, que fazem pouco
uso deste aparato.
São muitas as imagens do catolicismo distribuídas por todos os lados da sua casa:
santinhos impressos em papéis com uma oração no verso; reproduções de imagens de santos
em tamanhos diferenciados; fotos ampliadas retiradas de revistas e calendários. Entre estas
últimas, havia a da Nossa Senhora (iluminada por uma pequena luz verde que ficava acesa
constantemente), a do papa João Paulo II, e a do padre Marcelo Rossi.
Também, como descrito, pôsteres e escudos do seu time de futebol em todas as
partes da casa. Mário acompanhava todos os jogos do Flamengo na televisão ou no rádio à
pilha e estava sempre informado sobre a situação do time, que ao longo daquele ano de
2005 não saíra das últimas colocações dos campeonatos Estadual e Brasileiro. Mas cada vez
que o Flamengo respirava com uma vitória, era motivo para o Mário suspirar de alegria e me
narrar detalhes do jogo. Algumas vezes o ouvi dizer: O Flamengo é o meu time de coração,
porque eu amo o meu time desde criança. Os meus pais, meus parentes, todos eram Flamengo.
Por isso a minha casa é cheia desses quadros. Eu tenho o dos bicampeões, e de todos os
campeonatos vencidos pelos jogadores do Flamengo. E assim eu vou indo, junto com todos.
5. Idade de Ouro em outros tempos (o ocaso de Mário)
Desde quando saiu da casa da sua irmã em Santa Teresa, Mário mora sozinho em ruas
localizadas no centro da cidade. Na época em que trabalhava para a loja Impecável Maré
Mansa, morou na rua do Livramento, atrás da Central do Brasil, em um sobrado de mero
64. Diz que perdeu as contas de quanto tempo ficou por lá. Depois foi morar na rua Frei
Caneca, em frente ao campo de Santana, número 148, apartamento 209, onde viveu apenas
um ano. Em 1989, foi direto para o edifício Boa Jornada da rua do Riachuelo. Primeiro para o
706, cuja propriedade era do mesmo "senhorio" da Frei Caneca. Após três anos, mudou-se
para o 903, onde vive há treze anos.
90
Mário tem pouco contato com a família. Diz que grande parte dos seus parentes mora
em Niterói e que tem dificuldades para conseguir se comunicar por telefone com eles. Mesmo
em datas comemorativas, como a Páscoa ou seu aniversário, Mário não recebeu ligações dos
seus familiares. Apenas uma vez, quando estávamos na nossa décima quarta aula, pude vê-lo
atendendo a um telefonema de uma sobrinha que não lhe trazia boas notícias: comunicava o
falecimento do marido de uma outra sobrinha. Propus que interrompêssemos a aula, mas ele
não concordou; disse que o rapaz tinha morrido vinte dias e que agora ele não poderia
fazer muito por ela, a não ser orar. Seguimos com a aula, mas o Mário parecia-me disperso;
fazia passos que nunca havíamos feito e que eu não conseguia acompanhar. Logo ele se
lamentou: – Desculpe, eu fiz um passo que eu estava para te ensinar, mas você se saiu bem. É
que eu estava com a cabeça no rapaz que era muito agarrado com a filha. Ele se esforçava
para dar as coisas para ela. Dos sessenta e quatro sobrinhos, Mário mantém contato apenas
com aquela que lhe telefonara, com quem se encontra também nos bailes da Estudantina.
Ao longo dos meses de março e abril, Mário ficou sem ir à Estudantina. E a cada
sexta-feira em que fazíamos a nossa aula, ele me dizia: Vou ver se a Antonieta me liga para
eu ir apanhá-la e talvez sábado eu à Estudantina. Eles tinham um trato de dividir os
custos com o táxi, e muitos anos ele a buscava em casa (na Frei Caneca), pois assim
cumpriam a etiqueta de chegarem ao baile juntos, como o fazem os casais freqüentadores 'das
antigas' dos clubes. Os casais por contrato, por sua vez, costumam encontrar-se diretamente
nos bailes, na porta dos clubes, ou sentados na mesa à espera um do outro. No nosso encontro
seguinte, eu lhe perguntei se havia ido ao baile da Estudantina e obtive respostas como:
Não, a Antonieta não me ligou. Talvez ela esteja com o negócio da pressão dela subir por
causa da tireóide e por isso ela não tem ido aos bailes. Mas, com o passar do tempo, fui
percebendo que essa era uma justificativa recorrente às ligações não recebidas.
Com Rosa, começou a acontecer o mesmo. No final de março, ela reatou o seu namoro
com Nelson, e Mário deixou de acompanhá-la aos domingos no baile dos Democráticos.
Mário explicava a sua ausência no bailes dizendo que Rosa estaria viajando para Saquarema,
onde ela tem casa, ou enrolada por conta dos preparativos do noivado do seu filho, conforme
ela o teria informado. Mas eu continuava indo ao baile social e sentava-me com ela e com
Nelson à sua mesa. Ela me pedia para que eu não contasse para Mário que estava no baile e
justificava-se: Chegamos ainda pouco de Saquarema e não sabia se viríamos ou o;
acabou que ficou tarde para convidá-lo. Por vezes me dizia que estava economizando dinheiro
para o noivado do filho, ou ainda: – Se eu soubesse que você viria, eu teria chamado o Mário;
91
mas é que às vezes Nelson fica querendo que eu dance com ele, então eu deixo de chamá-
lo.
Durante todo o mês de abril, Mário não compareceu aos Democráticos, e eu continuei
sentado-me com Rosa. Em uma dessas noites na qual o Mário não compareceu, ela me disse
que antes dançava muito melhor do que hoje em dia. Falou-me do professor Walter, que teria
sido seu grande mestre de dança de salão, e, ao se referir ao Mário, dizia: Ele é ótimo para
começar a aprender a dançar. Para isso ele realmente é muito bom professor. Mas ele está
velho e não inova nos passos porque não agüenta, por isso ele dança daquele jeito tradicional.
Odete, sua amiga e com quem eu vinha freqüentando os bailes do Clube Helênico –, em
algumas ocasiões compartilhava dessa mesma opinião a respeito da dança com Mário – assim
como outras pessoas que me perguntavam com quem eu estava aprendendo a dançar. Muitos,
inclusive, se referiram a ele como o ex-partner de Maria Antonieta. E, como se me
anunciassem gradativamente o seu envelhecimento social (cf. Lenoir, 1989), sugeriam-me,
diante da sua ausência nos salões, que sua dança estava ultrapassada e que ele já não dispunha
da vivacidade, da força e da habilidade no comando, que um dia lhe foi tão característico.
No final do mês de abril, por volta da nossa vigésima aula, notava que Mário estava
mais distante e preocupado. mais de um mês ele não ia a baile algum, e, além disso, dizia-
me que muitos dos seus alunos não estavam comparecendo às aulas. Falava-me muito do
quanto ficava aflito em não ter no final do mês dinheiro suficiente para pagar as suas contas e
que, por isso, não podia estar gastando o que ganhava com suas aulas indo aos bailes ,
que sem a companhia de Iva ou de Maria Antonieta, ele teria que arcar com as despesas
cobradas pelo valor das mesas e com o que consumisse.
Contou-me ainda, nesse dia, sobre um grupo de alunos que teve, os quais, antes de
irem ao baile juntos aos domingos, faziam churrasco na casa de um deles (que hoje está
morando em Roma, trabalhando com restauração de imagens): Minha vida mudou muito.
Eu não parava quieto. Todo dia eu era convidado para alguma coisa. Nessa ocasião, Mário
também estava ressabiado porque estavam gravando a novela “América”, da Rede Globo, na
Estudantina. Ele não entendia o porquê de não o terem chamado, pois estava convicto de que
Glória Perez, autora da novela, não o deixaria de fora, tendo em vista que ele participara de
suas novelas anteriores.
Nesse mês, por diversas vezes Mário mencionou que, depois de ter ficado mais velho,
a sua situação tornara-se mais difícil, e que hoje ele saía pouco de casa. O modelo da 'idade de
ouro', para ele, costumava ser localizado no tempo em que: Dançava todos os dias da
semana nos bailes e recebia convites para muitas festas; quando Elza Soares, Miltinho,
92
Ângela Maria, Elizeth Cardoso, todos cantavam nas gafieiras; quando homem entrava
vestindo terno completo com gravata, e as damas usavam vestidos-saco, justos, abrindo em
babados na altura da batata da perna para cobiçar os homens.
5.1 De volta à cena (a apoteose de Mário)
Era 14 de maio de 2005, dia em que iria, pela primeira vez, a um baile acompanhada
pelo Mário. Ele havia me convidado para ir ao "Grande Baile e Aniversário da Mestre Maria
Antonieta" conforme aparecia em uma faixa posta na entrada do salão na Estudantina. A
homenageada lhe avisara que iria para o local com os seus familiares e dispensou-o de ir
buscá-la de táxi.
Passei por sua casa às 23:15h. Ele me esperava na frente do seu prédio conversando
com suas vizinhas, que, com curiosidade, olhavam para dentro do táxi para ver quem o levaria
para o grande baile. Logo que o vi, notei que havia se preparado com esmero para a ocasião.
E, quando entrou no carro, seu perfume anunciava que aquela era a noite mais esperada do
ano. Parecia-me muito elegante com sua blusa de manga comprida de botão e uma calça de
linho que variava pouco na cor escura acinzentada. Sua vestimenta estava passada de forma
impecável.
No táxi, a conversa ganhou ares do "tempo das gafieiras". Quando pedi ao motorista
que nos levasse à Estudantina, casualmente o mesmo começou a falar da sua época de baile,
de todos os clubes pelos quais circulava e dos músicos que conhecia. Repetia, com
entusiasmo, como lhe encantava a vida noturna na época em que funcionava o Roda Viva na
Urca, e fazia ode à saudosa "boêmia carioca". Mário concordava e demonstrava conhecimento
de causa de tudo que o taxista dizia, se referindo à memória de bailes do motorista como o
"tempo da melodia", dos grandes músicos e orquestras que tocavam nos salões.
Chegamos à Estudantina, e enquanto eu comprava o meu bilhete de entrada, Mário
cumprimentava Manolo, dono da gafieira, e outro senhor que também estava sentado na porta
de entrada. Logo quando chegamos no salão, Maria Antonieta tratou de adiantar-se e foi
conduzir Mário até as mesas que tinha reservado. Ele gentilmente lhe disse que se sentaria
comigo ao lado do lugar onde ela tinha sugerido que ele ficasse. Sentamo-nos em frente ao
palco, em uma mesa privilegiada para ver o salão, mas que dificultava as nossas conversas por
conta do alto volume das caixas de som, situadas a poucos metros dos nossos ouvidos.
Todos os freqüentadores de baile e profissionais de dança presentes vinham até a nossa
mesa cumprimentá-lo. Fui apresentada como aluna dele aos professores presentes Stelinha
(professora na Estudantina), Jimmy (dono de uma academia conhecida em Copacabana),
93
Lincon (professor nas Lonas Culturais da zona oeste) e aos filhos de Maria Antonieta
(Arthur e Chiquinho). Muitos dos freqüentadores reclamavam de sua ausência nos bailes e
demonstravam respeito e admiração nos seus cumprimentos. A atualização destes parecia ser
uma conduta indispensável a seguir, pois ninguém se furtava deste ato. Mas havia uma
diferença entre aqueles que se moviam para ir saudar alguém, e os que recebiam as saudações
sem sair da sua mesa. Mário permanecia todo o tempo sentado em sua mesa à espera dos
cumprimentos, até o aparecimento de uma 'estrela-' centralizadora das atenções na noite:
Carlinhos de Jesus, o qual não procurou se mover até Mário para cumprimentá-lo. O mais
famoso dos dançarinos de dança de salão deteve-se, rodeado por pessoas, em uma mesa um
pouco à frente da nossa – de onde acenou para Mário, que se levantou para dar-lhe um abraço.
Carlinhos de Jesus era muito assediado; as pessoas se colocavam ao redor dele para
conquistar um sorriso, um beijo, um abraço ou uns segundos de conversa. Ele se esforçava em
responder a todos os apelos de atenção. Deu entrevista para uma emissora de São Paulo que
filmava o evento, dançou com Maria Antonieta, embalando-a no colo, e subiu ao palco para
prestar uma homenagem à aniversariante da noite. Aproveitou a oportunidade para divulgar
seu espetáculo em cartaz e o lançamento do seu livro autobiográfico intitulado "Vem Dançar
Comigo", presenteando a homenageada com um exemplar.
Manoel, que foi diretor social dos Democráticos e hoje é da Estudantina, chamou
Carlinhos de Jesus ao palco. Este, em agradecimento, falava da Estudantina como: um
celeiro, palco, casa da maior expressão da dança desse país. E lembrava das vezes em que saiu
dali nas madrugadas. Depois homenageou Maria Antonieta: – Eu acabei de sair do teatro, mas
não poderia deixar de vir dar um abraço nela, que marcou a vida de todos nós. Hoje não tem
um dançarino dessa escola que não tenha que reverenciá-la. Lembro-me de que, quando me
conheceu, ela me aconselhava: larga a pedagogia e vai viver da dança! Nunca vou esquecer
que a primeira vez que ela se sentiu mal pelo câncer que teve, eu fui a primeira pessoa para
quem ela ligou. A Raquel, minha esposa, trabalhava no Instituto do Câncer e foi quem nos
ajudou a acudi-la, conseguindo o atendimento imediato. Antonieta calada, sem falar nada é
um exemplo de vida e faz parte da vida de todos nós.
Ela o ouvia falar, dando-lhe algumas respostas; aque chegou sua vez de comandar o
microfone: – Eu peguei a tesoura e cortei as arestas dele. E quando eu passar para o outro lado
da vida, esses aos quais eu ensinei a dançar darão continuidade ao trabalho que iniciei. Que
você continue segurando a corda firme da dança de salão para que ela não caia nunca
concluiu, sob o aplauso de todos. Àquela altura, Carlinhos de Jesus havia anunciado que
94
teria uma gravação no Projac, cidade cenográfica da Rede Globo, e que por isso não
permaneceria na festa, onde ficou durante uma hora.
Depois que ele desceu do palco, foi a vez da professora Stelinha, junto à Maria
Antonieta, anunciar o baile em comemoração aos 20 anos do sindicato dos dançarinos, o qual
Antonieta fez questão de frisar que ajudou a construir. Stelinha prestou várias homenagens à
aniversariante e disse que tudo o que havia hoje no mundo da dança de salão era "cria" dela.
Agradeceu a presença do Mário no microfone e se queixou por ele lhes dar a honra da sua
presença uma vez ao ano. Depois apresentou o seu projeto de dança de salão com bailantes
em cadeira de rodas: E se alguém conhecer um cadeirante, manda para porque a gente
quer fazer uma noite só de cadeirantes.
5.2 E com vocês: Mário Ferreira e Maria Antonieta!
Em seguida, os alunos de Lincon fizeram uma apresentação de valsa. Vestidos a
caráter, procuravam encenar o espírito da música e da época. Lincon entrou no salão com
Antonieta e, depois, passou-a para o seu partner, Mário, sem que ele soubesse que participaria
daquela apresentação. Os dois rodopiaram pelo salão enquanto os casais caracterizados
mantinham-se nas bordas. Foram muito aplaudidos de por grande parte dos ali presentes.
Era a consagração do Mário, que meses não ia à Estudantina por falta de dinheiro e de
convite de Maria Antonieta para acompanhá-la. Para se defender das afirmativas de que ele
havia abandonado os freqüentadores da Estudantina, ele me dizia: – Essa gente é muito
exagerada; porque eu não venho uns vinte dias eles ficam assim. Mas o que ninguém
sabe é que sem dinheiro fica difícil para mim.
O salão estava enfeitado com bolas verdes e brancas. Na ala reservada aos familiares
de Maria Antonieta, havia um bolo enorme feito pela Mirela que me sugeriu Mário como
professor de dança na primeira vez em que fui à Estudantina, no dia 11 de novembro de 2004
e oferecido pelo seu Manolo. A aniversariante cumpria o seu papel de anfitriã: circulava
pelo salão, dispensando beijos e abraços a todos. E logo depois dos parabéns, a banda tocou
uma música, que foi composta para ela, chamada "Antonieta na gafieira".
Dançar com Mário naquela cena onde ele era um pouco protagonista foi uma tarefa
árdua. Primeiro porque o salão estava lotado, o que, além de muito limitar as possibilidades
de passo, exigia uma certa astúcia do dançarino para não deixar sua dama esbarrar nos casais.
O homem é quem devia controlar o diâmetro no qual o casal pretendia encenar o passo, mas
por vezes esse espaço era invadido por outro casal e a dama precisava ser reconduzida. Além
disso, dançar sob olhares de avaliação fazia com que freqüentemente nos movêssemos sem
95
incorporar o ritmo da música, e os movimentos tornavam-se mecânicos em demasiado sem
contar os erros que eu cometia devido ao estado de tensão no qual eu me encontrava.
Houve um momento, logo depois dos parabéns, que Mário me tirou para dançar um
samba de gafieira, sob uma luz branca que deixava todos os corpos mais visíveis. Eu não
respondia corretamente aos seus estímulos, mas ele não permitia que os meus tropeços fossem
notados, emendando os meus erros e procurando explorar os meus acertos. Ainda assim, tive a
sensação de que havia uma diferença na sua condução. Não parecia tão firme como
costumava ser nas suas aulas, e a seqüência dos passos não tinha muito a ver com aquilo que
repetíamos incansavelmente em sua casa. Ele dançava comigo, nas bordas da pista,
cumprimentado as pessoas que conhecia, e alguns momentos estabelecia diálogos. Comentava
com um casal que havia notado a ausência deles no baile do dia das mães dos Democráticos;
contava-me que havia gravado com um outro casal que estava, a novela "O Clone"; e
fazia sua aparição social dançando comigo, procurando participar daqueles momentos de
diálogo na dança com a euforia de quem esteve presente nos últimos eventos de um circuito
de baile de salão.
5.3 Renovando os diplomas de seu santuário
Mário também tinha recebido convite para participar da comemoração dos 20 anos do
sindicato dos dançarinos que aconteceria no dia 17 de maio, no clube Bola Preta. Ele me
chamou para acompanhá-lo também a essa festa. O seu convite vip o isentava de pagar a
entrada e lhe dava direito ao coquetel. Marcamos de nos encontrar no clube por volta das
20:30h. Cheguei antes dele e, durante alguns minutos, fiquei à sua procura, até constatar que
ele ainda não estava no baile. Resolvi pegar uma mesa e busquei alguma mais estratégica
pensando na visibilidade do salão. Havia poucas para escolher; o clube não estava lotado,
mas, àquela altura, as melhores mesas, próximas ao salão, já estavam ocupadas. Acabei
pegando uma em frente ao balcão do bar, próxima à caixa de som, pois eram estas as que
sempre sobravam.
Em seguida, vi Mário chegando e cumprimentado a professora Stelinha, que o
convidava a sentar-se com ela. Ele lhe dava explicações e movia a cabeça à minha procura,
sem sair do lugar. Levantei-me, fui ao seu encontro, e voltamos à mesa que eu tinha
escolhido. Fiquei um pouco tensa com a situação, porque, por alguns instantes, pensei que
para ele seria mais interessante sentar-se ao lado da Stelinha ou estar desacompanhado para
poder dançar com ela ao longo da noite na qual, assim como no aniversário de Maria
Antonieta, ele era cumprimentado por todos os que se aproximavam da nossa mesa.
96
A banda era composta por músicos com aparentemente mais de 55 anos e tocava
hits do rock dos anos 60 e 70. Todos os músicos cantavam, cada um uma música, e vestiam-se
com blusas e calças sociais e gravatas. Via-se que era uma banda pouco atualizada no que diz
respeito aos gostos musicais e estéticos dos atuais freqüentadores dos clubes de dança de
salão. A festa tampouco deveria ser representativa desses praticantes da dança, pois o
sindicato era de todos os dançarinos e não dos da dança de salão, apesar de este
“segmento” ser o mais representado ali dentro. Havia, inclusive, uma mulher dançando
sozinha no meio do salão nos momentos iniciais da festa. Depois, os casais passaram a
dominar o espaço com suas danças sincronizadas, e ela pareceu retrair-se.
As mesas e cadeiras forradas com panos de cetim em tom chá davam glamour ao
ambiente. Do outro lado da pista, à direita do palco, estava o bolo indispensável às
comemorações. Os garçons serviam aos convidados salgadinhos, cervejas e refrigerantes.
Pessoas como Marquinhos de Copacabana (dono de uma academia neste bairro), Wando
(editor da Dance News), e Arthur (dançarino e filho de Maria Antonieta), estavam presentes.
A estética das roupas que prevalecia no salão era a dos dançarinos contratados.
Homens vestidos com blusas e calças apertadas, com pulseiras, relógios, brincos e cordões
dourados eram os que me chamavam mais a atenção. Eles demonstravam grande insatisfação
com a música tocada, mas, nas poucas vezes em que os músicos se propuseram a tocar um
samba ou mesmo uma bossa nova em ritmo de samba, eles tiraram as mulheres que os
acompanhavam para dançar. A mesa do Marquinhos, que de início era compartilhada apenas
com a sua esposa, a uma certa hora foi ocupada por um outro professor de dança que trazia
consigo três alunas jovens uma delas, sua namorada –, e duas senhoras que aparentavam
entre 55 e 60 anos.
Mário novamente apresentava-me a todos que se aproximavam à nossa mesa como sua
aluna, e, no momento em que me tirou para dançar, voltei a sentir-me apreensiva. Angustiava-
me a possibilidade de decepcionar os espectadores que eu percebia me olharem fixamente
para avaliar que tipo de dança eu havia aprendido com aquele senhor respeitado no universo
social dos clubes e gafieiras, mas desacreditado pelos anos de evolução da dança nos salões
que ele não teria acompanhado. Meu desejo de dançar bem inibia a minha desenvoltura no
salão. Na tentativa de me deixar conduzir como nas aulas, frustrava-me a cada desacerto.
Depois do início desastroso, eu parei de pensar (como insistia Mário) nos passos a serem
dados e consegui me sustentar um pouco melhor no salão. Mário sorria para os casais que
conhecia e dançava pelas beiras do salão, como fazia na Estudantina e nos Democráticos, para
97
ser visto pelos presentes – e inclusive chegou a posar dançando comigo para uma profissional
que fotografava o evento.
A música cessou, e os diretores do sindicato foram chamados ao palco para discursar.
A presidente agradeceu a presença de diversas pessoas e, falando em nome da "classe
trabalhadora organizada da cultura", anunciou a inauguração de "Delegacias Regionais dos
Sindicatos da Dança" (a primeira em Teresópolis, a segunda em Nova Iguaçu, e a terceira em
Friburgo). Ela ressaltava a importância dessas representações sindicais nos municípios,
pedindo uma salva de palmas a cada um dos "dirigentes" de tais "delegacias".
Depois houve a entrega dos diplomas em homenagem aos dançarinos filiados ao
sindicato. A presidente chamava, nome a nome, aqueles que mais de cinco anos eram
sindicalizados. Mário, com quatorze anos de filiação, foi homenageado o que para mim foi
uma surpresa, porque, apesar de saber que haveria alguma menção ao seu nome, ele não me
comunicou nada a respeito da entrega do diploma. Mário foi bastante aplaudido, e o único que
tinha mais anos de sindicato do que ele com dezessete anos de "participação filiativa" –, era
Carlinhos de Jesus, que chegou apenas no momento de ser condecorado.
Mário, dessa vez, ficou sem o cumprimento do famoso colega. Tentou acenar-lhe de
onde estávamos sentados, mas o conseguiu ser visto por este que estava a menos de dois
metros de nós dois, e que saía do palco já se despedindo, após anunciar o lançamento do seu
livro que aconteceria no dia 24 de maio.
Depois vieram os parabéns. Mário foi chamado a participar desse momento em torno
da mesa do bolo, e a posar para as fotos. Ficou satisfeito com o seu diploma; disse que o
colocaria na sua sala, e eu lhe prometi uma moldura bonita para mais um objeto, que lhe
agregaria um prestígio renovado, em seu santuário de homenagens e culto à sua profissão de
dançarino e professor.
5.4 "Luz, câmera, ação"
No fim desse mesmo mês, no dia 30 de maio, Mário voltaria a gravar. Ele foi
convidado para fazer figuração em um filme chamado "Desafinado". Mário recebeu cem reais
para estar das três horas da tarde às três da manhã à disposição das filmagens, que seriam
feitas na Estudantina. No dia seguinte, eu estive em sua casa e ele estava eufórico. Contou-me
que o diretor do filme era o mesmo que tinha feito o Globo Repórter em 1977 com ele e com
Maria Antonieta: E sabe que foi ele que me reconheceu? Pediu para tirar foto comigo e
tudo. As pessoas não entenderam nada, ficaram olhando para mim querendo saber por que ele
me tratava com tanta consideração. Antonieta não compareceu por conta do seu problema de
98
pressão alta, mas foi ela quem o indicou para a produção do filme, que a procurou pedindo
que ela selecionasse os casais. Mário seguia o seu relato: Você tinha que ver como trataram
a gente! Além dos cem reais, nos deram jantar e lanche. Para mim foi muito bom porque eu
paguei minhas contas de luz e telefone de uma vez só. Agora eu estou aguardando “América”.
Eles devem estar pagando o mesmo do filme porque na época de “O Clone" eu recebia setenta
reais pelo dia de gravação; e agora deve ter aumentado.
Mário tinha sido posto em contato com a pessoa que estava selecionando os casais
para a novela "América" uma antiga freqüentadora da Estudantina, que estava trabalhando
para Glória Perez. E no dia 22 do mês de junho, em uma quarta-feira, Mário foi convocado a
ir à Estudantina para gravar a novela. Gravou das oito horas da manhã às seis da tarde e
recebeu oitenta reais pelo trabalho.
Na sexta-feira seguinte, estive na sua casa para a nossa vigésima nona aula, e, como
comentei anteriormente, cheguei fora do meu horário, quando acabei por assistir à aula da
Dulce. Mário lhe falava dos atores que participaram das gravações, descrevia cada uma das
cenas, e fazia os cálculos para lhe informar quando apareceria na televisão. Nesse dia,
comentava que daria mais cinco aulas: Hoje está sendo como antigamente, que eu acabava
as minhas aulas às 21h; dançava quase o dia todo. O problema é que com esse negócio de
revolução [referia-se aos enfrentamentos ligados ao comércio de drogas], fica todo mundo
com medo de sair de casa à noite. Antes eu tinha aluno de tudo quanto é lugar; do Engenho de
Dentro, da Tijuca. Agora é que o negócio está ruim e ninguém quer mais saber de aula à noite.
No dia 30 daquele mês, ele voltou a gravar capítulos da novela “América” e
participou, como convidado da produção, de uma festa no Bola Preta em homenagem a Glória
Perez e ao ator Marcos Frota, que receberam uma "placa de ouro" do clube. Mário contou que
ficou na área reservada aos atores, diretores e produtores, com direito a coquetel e flashes.
Fotografaram-no junto a Glória Perez, pois, segundo ele, a autora, ao vê-lo, ficou muito
emocionada, apresentando-o, em seguida, a todos e convidando-o a se sentar à "grande mesa".
Glória Perez, nos anos 90, foi condecorada como "madrinha da Estudantina", e Mário três
décadas é o "padrinho" dessa mesma gafieira.
Antes que completasse 70 anos, eu propus-lhe irmos juntos à Estudantina para
comemorarmos a data, mas ele preferiu não divulgar que era seu aniversário nesse ambiente,
porque senão esperariam dele, como "padrinho da gafieira", o oferecimento do bolo e da
champagne, como fazia em outros tempos. Nas paredes da sua sala de aula, Mário expunha
muitas fotografias dos seus aniversários, nas quais aparecia cercado por seus alunos e amigos
do circuito dos salões. Para o clube ou gafieira, me dizia, era interessante ceder o espaço a tais
99
comemorações de pessoas que gozassem de certo prestígio no meio da dança de salão, o que
poderia render uma boa quantidade de público pagante e consumidor. Mas, alguns anos,
ele não dispunha mais dos recursos necessários para patrocinar a comemoração do seu
aniversário na Estudantina. Desde que se tornou dançarino de Rosa, ela passou a arcar com os
custos de seus aniversários e a organizar festas privadas nos Democráticos ou jantares em sua
casa. Nessas ocasiões, que pude ver também em registros fotográficos e em imagens de vídeo,
Rosa prestava-lhe homenagens ao microfone e destacava-se no salão nos momentos em que
apresentava aos convidados a sua dança com Mário, seu consagrado parceiro o qual, em
meados desse ano de 2005, voltava a interessá-la , após suas aparições televisivas. Todos os
convidados, sentados, assistiam a eles dançando as três modalidades rítmicas atuais dos salões
(bolero, samba e soltinho), aplaudindo no intervalo de cada dança.
Também nos aniversários de Nelson e nos seus, Rosa procurava envolver na sua
casa em Saquarema, na sua cobertura no Catete ou no salão alugado do Clube dos
Democráticos o cenário mais complexo do baile da sociedade. Inventava festas
reproduzindo situações similares as dos bailes sociais, nas quais ela exercia certo papel
protagonista, atraindo olhares atenciosos nas ocasiões em que se apresentava dançando ora
com Mário, ora com seu namorado. Rosa, aqui, surgia no centro da trama das relações na qual
se inseria, e amenizava certo dilema vivido por ela na figuração dos salões: seu duplo vínculo
de mulher comprometida amorosamente e que contrata um dançarino fixo. Essa posição
singular que assumia no baile social dos Democráticos afastava dela a possibilidade de ser
vista e valorizada pelos freqüentadores como uma pessoa livre para a dança,
descomprometida, e possível compradora da força de trabalho de outros dançarinos.
Entretanto, por mais que ela procurasse reunir nas suas festas vários elementos
presentes nos salões, o que Rosa reproduzia tinha um caráter diferente do baile da sociedade,
onde aqueles que dançam, conforme venho demonstrando, desfrutam de ampla possibilidade
de se fazerem atrair no salão. Nas festas de Rosa, as mulheres viúvas e solteiras, que
constituíam a maioria dos convidados presentes, não compareciam acompanhadas por seus
dançarinos mesmo aquelas habituadas a freqüentar bailes-ficha ou a contratá-los para os
bailes de salão. Algumas dançavam entre si, outras negavam-se a desempenhar o papel de
conduzir e preferiam mover-se sem par, e poucas poupavam críticas à dança dos escassos
casais compostos por homens e mulheres.
100
6. Práticas de homenagens, comemorações e condecorações
O que quis demonstrar com a descrição desses eventos relacionados a Mário muitos
vividos no passado e que me foram contados a partir dos objetos que tive acesso na sua casa –
é que as práticas de homenagens, comemorações e condecorações elaboram e reafirmam
posições que devem ser atualizadas constantemente, tendo em vista que, nesse mundo da
dança de salão, o freqüentador-dançarino se constrói como partícipe de eventos sucessivos
que comunicam algo a seu respeito. Para ser reconhecido nesse meio, não basta ser um bom
dançarino: é preciso freqüentar, estar em relação, atualizar os laços, demonstrar valor ao
clube, comemorar seus aniversários e encher a "casa" de acordo com a sua popularidade
enfim, participar das trocas que vinculam uns aos outros e que os tornam interdependentes
nessas figurações. Mesmo Carlinhos de Jesus, coreógrafo da escola de samba Estação
Primeira de Mangueira, dançarino da Rede Globo, sente-se obrigado a comparecer, ainda que
rapidamente, a essas comemorações, como no aniversário de Maria Antonieta e do sindicato
dos dançarinos.
A ausência no baile pode ser associada à perda de reconhecimento da sua posição na
sociedade dos salões. rio, como foi dito, tem o título de "padrinho da Estudantina", mas
como não pode arcar com as despesas que os freqüentadores do baile devem assumir de
acordo com a etiqueta, pagar pela mesa, consumir, dar a gorjeta ao garçom e pegar o "táxi da
casa" de volta –, não tem exercido o papel que lhe foi designado. Para desempenhá-lo, é
preciso estar presente nos bailes, honrando a sua titulação junto aos demais bailantes. Para
isso, Mário costumava depender dos convites de Maria Antonieta, que tem a mesa de graça,
não paga pelo que consome, divide o táxi com ele e compartilha o seu prestígio durante o
baile ao lado dele. Mário se ressente por não receber o mesmo tratamento "da casa" que
Antonieta, e essa sua dor me foi demonstrada diante uma descoberta recente sua: a de que sua
partner receberia cinqüenta reais para marcar presença aos sábados na Estudantina.
Nas primeiras cenas gravadas na Estudantina para a novela “América”, como vimos,
Mário não foi convocado. Quem aparecia em destaque era o professor Marquinho
Copacabana e seus alunos. Mário articulou seus amigos, fez com que sua ausência fosse
notada e acabou posto em cena novamente, vindo mais tarde a participar de uma sucessão de
eventos convites contínuos de Rosa ao Democráticos e de outras pessoas para aniversários
comemorados em outros clubes, além da aquisição de novas alunas e de prestígio junto
àqueles que acompanhavam suas aparições na novela. Houve, inclusive, uma ocasião na qual
ele prescindiu da companhia de Maria Antonieta para comparecer à Estudantina, deixando-a
espantada quando chegou ao baile sem se comunicar com ela previamente.
101
Ao acompanhar o percurso do Mário, via que, de acordo com a situação vivida e com
as pessoas com as quais se relacionava, ele deixava de ser visto apenas como um "dançarino
tradicional", que faz passos datados, sem acompanhar a evolução da dança (conforme ouvi em
dia de bailes corriqueiros), e passava a ser valorizado justamente por representar uma 'velha-
guarda' da dança de salão, carregando consigo ícones de tradição (principalmente nos bailes
em que eram celebradas ocasiões especiais). Portanto, sua posição, conforme procurei
mostrar, era periclitante, e modificava-se mesmo diante de pessoas como Rosa e sua amiga
Odete, a quem apresentarei no capítulo seguinte. Delas ouvi apreciações díspares a respeito do
Mário: ora ele era um "dançarino tradicional" já "ultrapassado" (e que ninguém dava nada por
ele), ora uma "raridade" como professor, um mestre "inigualável".
102
Parte III – Clube Helênico
1. Um novo lugar no circuito dos bailes
Na minha décima segunda aula de dança, no dia 18 de março, Mário comentou que, no
sábado, iria acompanhar Rosa e Odete ao chamado almoço dançante no Clube Helênico.
Aquela não era a primeira vez que eu ouvia falar neste Clube, nem a primeira referência de
Mário a seus passeios com as alunas. Tanto nos Democráticos quanto nas vezes em que fui ao
Bola Preta e à Estudantina, havia recebido panfletos que divulgavam o baile do Helênico e
ainda ouvido os diretores sociais dos respectivos clubes e gafieira anunciarem a programação
do almoço dançante (a banda que tocaria e o cardápio do dia).
Mário contava-me que a feijoada seria seguida de um baile e, entusiasmado, frisava o
valor do ingresso (dez reais) naquele Clube em que não se pagava pela mesa. O preço parecia-
lhe justo se comparado ao que se costumava cobrar nos demais clubes de dança de salão.
Mário despertava-me o interesse em conhecer o Helênico, mas não me convidava para
acompanhá-lo, pois ele ia ao baile juntamente com Rosa, que lhe pagava pelos seus serviços
de companheiro e dançarino. Apesar de Mário expressar-me por diversas vezes que seu ofício
era sua vida, eu percebia que, nessa situação de trabalho – conjugada ao que também era o seu
lazer –, havia alguns códigos de conduta que precisavam ser respeitados, e ele não poderia
convidar uma outra mulher a compartir a sua dança, nem mesmo a mesa que não era dele, sem
que isso implicasse em um mal-estar à pessoa que o contratara. Posteriormente, quando eu
vim a estabelecer uma relação de proximidade com Rosa, eu pude ir ao clube e sentar-me
junto a eles. Mas naquele momento inicial, entretanto, apenas começavam a se esboçar os
primeiros passos em direção àquele outro ponto da cidade e ao circuito de bailes por eles
freqüentados. Diante daquela informação de Mário, que não era propriamente um convite,
procurei confirmar minha presença, dizendo que era interessante para a pesquisa conhecer o
almoço dançante. Ao me despedir, enfatizei que nos encontraríamos no Helênico.
No dia seguinte, peguei uma Kombi na rua da Assembléia, no centro da cidade, que
fazia o mesmo trajeto do ônibus 201 em direção ao Rio Comprido e que passava pela rua
Itapiru
64
, onde está localizado o Clube. Eu não tinha o endereço. Mário havia me garantido
64
Essa rua liga o bairro do Catumbi ao do Rio Comprido, o que faz com que ela seja identificada, até uma certa
altura, com o primeiro bairro e depois com o outro. Essa poderia ser uma justificativa à confusão feita com
relação ao pertencimento do Clube a um bairro ou a outro. Apesar de, no código postal, o endereço do Helênico
constar como Rio Comprido, a história da formação do Clube lembrada por aqueles que participaram da sua
fundação, em maio de 1976 é a que o faz ser reconhecido como pertencendo aos dois bairros. O atual
103
que era pedir ao motorista que me deixasse em frente ao Helênico, pois o Clube era
conhecido pelos moradores daquela área.
Eu sabia que a rua Itapiru começava na esquina do cemitério do Catumbi bairro que
conheci no ano de 2002 –, mas como eu nunca havia subido essa rua em direção ao Rio
Comprido, prestava atenção à nova paisagem no trajeto para o Clube. Por onde passava, via
favelas, botecos, pequenas lojas comerciais, mercearias, um posto de gasolina, casas e vielas
de moradia. O sábado estava ensolarado, e ainda não eram 13h quando cheguei ao "Helênico
Atlético Clube". Na portaria, do lado de fora, algumas faixas anunciavam aulas de judô,
taekendô e musculação; a maior de todas divulgava a programação das bandas que tocariam
no Clube naquele mês de março. Interrompi o sono do porteiro, que tirava sua sesta diante da
televisão, para perguntar-lhe onde acontecia o baile, pois não conseguia dali identificar sinais
do evento.
Ao lado direito do portão de entrada, havia um ginásio onde algumas crianças jogavam
bola. Seguindo adiante, vários carros estacionados. Por aquele caminho, cheguei a um outro
edifício de dois andares, com uma fachada coberta por trepadeiras. Eu não conseguia saber se
era aquele o prédio onde ocorria o baile porque a música ainda não tocava, e tampouco havia
pessoas entrando por ali. Ao retornar ao porteiro, este me confirmou que era só seguir adiante.
Subi um primeiro lance de escadas do saguão de entrada, paguei pelo bilhete e
perguntei se havia pessoas para o baile. O bilheteiro me respondeu que ainda era cedo, mas
que, dentro de meia hora, o almoço seria servido, e os freqüentadores logo começariam a
chegar. Ao rmino do segundo lance de escadas, deparava-me com um imenso brasão do
Clube, na cor azul, simbolizado por uma tocha com uma bola de futebol embaixo da chama
vermelha. Passei por uma área livre onde havia alguns senhores conversando e bebendo
cerveja, sentados em mesas próximas ao balcão do bar.
O tamanho do salão era impactante; em um primeiro momento, me parecia que três
Democráticos, cinco Bolas Pretas e sete Estudantinas caberiam ali dentro. Naquela ocasião,
lembrava-me de Paulo Cândido, o vice-presidente do Bola Preta, que, quando anunciava ao
microfone a programação do Helênico, dizia: – E não percam o almoço dançante desse sábado
no maior de todos os clubes, no nosso querido e irmão Clube Helênico.
Busquei uma mesa próxima às janelas, onde não havia papéis de reserva, posicionada
na direção de um dos muitos ventiladores presos às pilastras de sustentação do andar de cima
do salão. Destas janelas, a paisagem que se via era a de uma favela em meio a uma vegetação
Helênico, antigo Minerva (fundado em 1946), surge da junção deste com o clube Astória que, de 1934 até 1976,
situava-se na rua Catumbi.
104
vistosa. Da minha mesa, eu acompanhava os últimos preparativos do salão. As pessoas
começavam a chegar. Não tardou para despontar Mário, junto com Rosa e sua amiga Odete.
Ao me verem, examinaram a mesa na qual eu estava, mas escolheram uma outra. Apesar do
calor que fazia naquele dia, soube depois que elas não queriam o vento soprando sobre os seus
cabelos, porque bagunçaria o penteado das duas.
Rosa prontamente me convidou a sentar-me com eles. Assim como eu, ela ia pela
primeira vez ao almoço dançante. Contava-me que ainda não havia acompanhado Odete, que
atualmente freqüentava o Helênico, porque tinha receio de ir ao Clube pela "má fama" do
lugar, e pelo fato daquela zona ser considerada perigosa
65
. E em tom de burla, referindo-se à
sua amiga Odete, dizia: Eu sou família, diferente de certas pessoas...; por isso que não
freqüento estes ambientes.
Apesar do tom jocoso, esta foi a primeira e última vez que estive com Rosa no
Helênico. Na ocasião, ela estava separada de Nelson oito meses. Depois desse evento, ela
retomou seu relacionamento com ele e também a rotina de ir para sua casa de praia em
Saquarema nos fins de semana sempre se esforçando para retornar em tempo de ir ao baile
social de domingo nos Democráticos.
1.1 Outro tipo de balbúrdia em família
Além da maratona dançante a que eu estava me acostumando, naquele dia fui
apresentada a um verdadeiro banquete, uma espécie nova de orgia a orgia gastronômica. A
feijoada foi servida às 13:30h. Às 15h, começou o baile, que iria acabar às 20h. Além da
sobremesa servida doce de abóbora e melancia –, três pessoas comemoravam o seu
aniversário e ofereciam-nos bolos e tortas salgadas.
Um deles era um dançarino contratado chamado Rafael, que comemorava o seu
aniversário de 21 anos. Ele levou para o baile seu filho de 3 anos de idade, o qual chamava de
“dinda” a senhora que contratava seu pai. Esta senhora oferecia a comemoração de
aniversário do Rafael, com direito além do bolo e da torta salgada a uma ornamentação
com bolas e toalha de mesa. Mas o aniversariante não foi o único a levar o seu filho; no salão
havia em torno de seis crianças, de 2 a 14 anos. Havia inclusive um bebê de dois meses de
idade assistido pela mãe, pela avó, pela bisavó e sobretudo pela chamada “madrinha” (minha
conhecida Rosa), em caráter de revezamento. Selma, a avó da criança, que na ocasião ainda
65
No entorno do Clube, encontram-se os morros da Mineira, da Coroa, Fallet, Escondidinho, Querosene,
Turuna, do Zinco, dos Prazeres, e do São Carlos. Alguns associados e diretores creditam a baixa no número de
freqüentadores à "falta de segurança" da região e às "dificuldades financeiras" daqueles que antes não deixavam
de comparecer aos salões.
105
ocupava o cargo de diretora social do Clube dos Democráticos, justificava a presença da sua
neta no baile: Eu e meus irmãos fomos criados nos salões de bailes, meus filhos também, e
agora com minha neta não tem por que ser diferente.
No Clube Helênico, esbarrei com situações e posições que se diferenciavam das dos
freqüentadores dos Democráticos, e que por isso me chamavam a atenção. A forma de
interagir no Helênico parecia-me menos marcada pela coação de um código social a ser
seguido, pela rigidez de uma etiqueta que preconizava a permanência dos casais sentados em
suas mesas quando não estivessem dançando, pela imposição de um padrão de vestimenta e
por um modo de proceder no momento da dança que requeresse autocoibição; em suma,
movimentos típicos que eu encontrara até ali, em outros locais de dança
66
.
A presença de membros de uma mesma família e de amigos reunidos em torno de uma
grande mesa, com crianças dançando com adultos, homens beijando suas mulheres, alguns
vestindo camiseta, bermuda e chinelo, davam a esse Clube um aspecto mais descontraído. As
pessoas em geral circulavam entre as mesas e chegavam a sentar-se umas com as outras para
atualizar um cumprimento ou uma conversa. E não havia problema em dançar uma ou duas
músicas fora do salão, entre os vãos das mesas diretor social ou dançarinos contratados o
faziam. Estes últimos demonstravam-se mais entrosados entre si (a coesão grupal parecia ser
mais forte), com as mulheres que os contratavam, e também com a direção do Clube: falavam
alto, brincavam entre eles e com as contratantes que rebolavam ou exibiam-lhes suas pernas.
A proporção de 'casais por contrato' aqui era maior do que a nos Democráticos. Em uma
estimativa de trinta casais dançando no salão, contei quase vinte como sendo 'contratados'.
Naquela ocasião, percebia que o Helênico poderia ser um bom lugar para eu me
aproximar das mulheres que iam ao baile acompanhadas pelos seus dançarinos contratados.
Principalmente porque, naquela tarde e início de noite, depois das sete horas em que
estivemos juntas, eu havia me afeiçoado por demais a Odete, que costumava contratar
dançarinos – embora não o tenha feito naquele dia em que recebia Rosa e Mário no Clube que
freqüentava.
66
Elias (1997), ao analisar uma instituição característica como o "duelo" em contraste com o corpo a corpo de
uma briga, mostrou-nos que o mesmo um tipo altamente formalizado de confronto físico. Os adversários,
neste caso, não se lançam espontaneamente um contra o outro sob a pressão da ira e do ódio. Pelo contrário, o
ritual prescrito exige, primeiro que tudo, um rigoroso controle de todos os sentimentos hostis, bloqueando e
impedindo o acesso dos impulsos agressivos aos órgãos executivos, os músculos, e assim impedindo que
qualquer ação seja levada a efeito. Aqui, a coação externa do código social requer uma auto-coação sumamente
intensa, o que é típico da formalização de estratégias de sentimento e comportamento" (:75). Da mesma maneira,
a dança de salão também requer um controle sobre os sentimentos, prescrevendo um modo de se comportar no
salão, de se fazer atrair para a dança e de seduzir durante a mesma. Mas, como veremos, a figuração que os
grupos formavam entre si no Helênico não impunha uma contenção tão rigorosa de impulsos e afetos como
aquela descrita nos Democráticos.
106
Odete empenhava-se em falar-me dos seus gostos por homens e em dar-me opiniões a
respeito das danças alheias, mas era em tom de fofoca que essas conversas surgiam
paralelamente aos assuntos centrais da mesa. Contava-me que seu atual dançarino era um
"negão" de mais de 1,80 de altura e dizia que eu tinha que retornar ao Clube para vê-la
dançando com ele. Havia, da parte dela, certo resguardo com relação ao que dizia diante da
Rosa, apesar desta, no Helênico, na presença da Odete e do Mário e na ausência de Nelson,
ter-se mostrado de forma diferente ao que costumava nos Democráticos. Rosa gargalhava das
piadas da Odete, recordava do tempo em que saíam juntas para dançar na companhia do
Mário e de outras amigas, demonstrava-me a centralidade que a dança adquiriu em sua vida
após a morte dos seus dois maridos, e expressava repúdio à idéia de: Nessa altura do
campeonato ter que cuidar de homem velho dentro de casa.
Rosa e Odete, assim como outras mulheres que contratavam dançarinos com as quais
convivi nos bailes, expressavam, em determinados momentos – dependendo da situação
vivida e de quem estivesse presente –, certa indignação por terem se dedicado anos de suas
vidas aos cuidados com filhos, maridos e afazeres domésticos. Reclamavam do não
reconhecimento dos seus esforços por parte dos filhos e associavam a introdução da dança em
suas vidas à própria "descoberta de si", da sua "individualidade", do "seu corpo" ou da sua
"verdadeira natureza".
Essa idéia sugerida pelas bailantes acerca de uma "verdadeira natureza" adquirida ao
ingressar nos salões após a separação ou a viuvez, pode ser contrastada com uma perspectiva
de habitus adotada por grande parte das abordagens presentes na literatura antropológica
sobre a mulher que, ao posicionarem de forma fixa tanto o homem como a mulher em uma
estrutura social mais ampla, deixaram de analisar as variações que se configuram nas relações
entre os mesmos. A leitura que faço do habitus como uma "segunda natureza", como um
"saber social incorporado" suscetível a transformação (Elias, 1997), é uma tentativa de levar
em consideração que algumas dessas mulheres que hoje dançam, elaboram a extinção de uma
natureza de mulher dominada pelo marido. Sugiro, então, que elas transformaram essa
"segunda natureza" a partir do aprendizado social da dança e da sua inserção em uma nova
rede de dependências, adquirindo outras características pessoais, pois, como observou Elias:
"As pessoas mudam umas em relação às outras e através de suas relações mútuas, de se
estarem continuamente moldando e remoldando em relação umas às outras (...)" (1994:29).
Parece-me que a nomeada "verdadeira natureza" figura como uma transformação de
um habitus que nesse momento de suas vidas não é mais desejado. A mulher que aprende a
dançar, que começa a freqüentar academias e bailes e a contratar dançarinos, é uma pessoa
107
transformada pelas novas relações, e por isso não vejo motivo para apostar na idéia de que o
essencial é o que ela foi. Se essas mulheres, na atual fase de suas vidas, não vêem nos homens
com quem dançam por contrato ou se relacionam amorosamente a imagem do controlador,
não se trata de um efeito "inconsciente" produzido pela própria história, mas sugere que esta
questão da dominação masculina universal "inscrita em toda ordem social" não es
"operando na obscuridade dos corpos" dos bailantes, conforme propôs Bourdieu (1999:99).
Haveria uma ideologia de universalização do masculino e do feminino nessas
abordagens; uma ideologia de dominação do feminino pelo masculino. Porém, penso, essas
mulheres, em um terceiro movimento, estariam inventando um outro jeito de ser mulher que
não se relaciona com o seu lastro biológico, nem com seus elos matrimoniais ou familiares.
Mesmo que se continue a falar em gênero, o gênero aqui não se configura única e
exclusivamente a partir das relações convencionais de parentesco (por aliança ou por
descendência, isto é, por ser esposa ou por ser mãe, filha, etc.).
É certo que, em algumas ocasiões, o 'bom' cumprimento dos papéis de mãe, de esposa
e de 'mulher prendada' com os afazeres do lar eram acionados de forma valorativa. Desse
modo, divulgar no ambiente da dança os seus dotes culinários com o preparo de bolos e doces
para as datas festivas, assim como prestar ajuda financeira aos seus filhos e netos com sua
aposentadoria ou com a pensão que lhes foi deixada pelo marido provedor da família
67
, eram
atitudes que podiam colocar essa mulher, no pequeno universo do Clube, em uma posição
social de destaque. Mas, diferente do que sugerem os estudos sobre mulheres das camadas
populares e médias que freqüentam "grupos de convivência" organizados para idosos (Motta,
2004; Motta, 1998), essas dimensões da vida ligadas ao contexto familiar e doméstico
reverenciadas nos salões não eram evocadas apenas para servir ao social (ou à "esfera
pública"), de modo a apontar para uma proeminência de um eixo feminino/social sobre um
outro feminino/doméstico durante a 'velhice ativa dos novos tempos' ditada pelos
gerontólogos e outros especialistas interessados na gestão 'do bem viver', na "melhor idade",
ou na "idade do lazer".
A diferença no âmbito das atividades que realizavam, associadas às esferas “pública” e
“doméstica”, não era encarada de forma hierárquica pelas bailantes, como aparece nas
pesquisas antropológicas e sociológicas sobre a mulher na velhice. E por mais que, em
67
Motta (2004) apontou para o fato recorrente das viúvas arcarem com os custos domésticos com suas pensões e
aposentadorias (:140). Questionaria, no entanto, a abordagem da autora a respeito da viuvez, que, ao partir de
categorias analíticas de "identidade" e "papéis de gênero", sugere: "Nas sociedades onde a mulher tem sido
subordinada a partir das regulações primeiras da sua capacidade reprodutiva, é na viuvez e na velhice que ela
alcança uma posição mais livre e mais pública, por vezes equivalentes a dos homens" (:132).
108
algumas ocasiões, figurassem nas falas dessas mulheres que dançam um certo distanciamento
ou desdém às relações familiares e aos afazeres domésticos, em outras, eles eram acionados
como fonte de orgulho e de satisfação pessoal.
Naquele mundo dos bailes de salão – onde as pessoas se conheciam e trocavam
opiniões, receitas, dançarinos, estilos de dança e modos de se vestir –, além da oportunidade
de tornarem públicas suas qualidades como mãe, mulher prendada e provedora, elas podiam
atribuir-se valor quando se mostravam nos salões com um 'bom' dançarino contratado, com
penteados, adereços, roupas caras e decotadas, e com sapatos feitos sob medida especialmente
para que exibissem a sua dança, os seus corpos, a sua habilidade e sua energia física e social
no contexto dos bailes.
2. Dançarino é uma profissão: modalidades de contrato e formas de pagamento
A partir do convite da Odete, passei a freqüentar os almoços dançantes do Helênico e a
sentar-me à mesa da Carmem, a companheira dela nos bailes do almoço dançante. As duas
moravam em Copacabana e dez anos freqüentavam o Helênico. Carmem é "sócia-
contribuinte" do Clube e integra o grupo das chamadas heleninhas, composto por trinta
senhoras que se reúnem, conforme afirma Carmem: Para ajudar nas tarefas necessárias ao
engrandecimento do Clube. Elas ornamentam o salão em dias de festa, se responsabilizam
pelos bolos oferecidos às comemorações dos aniversários, recebem as pessoas e as direcionam
às suas mesas, dentre outras atividades. A principal função de Carmem como heleninha é
vender as cartelas de bingo aos freqüentadores e rodar o globo onde estão dispostos os
números a serem sorteados.
Carmem tem em torno de 60 anos, é massagista, síndica do prédio onde mora, tem
dois filhos, e trinta anos vive com o seu marido. Odete tem 63 anos, é formada em
serviço social, mas nunca exerceu sua profissão. Ela é viúva de um delegado da Polícia
Federal, com quem teve dois filhos. Elas se conheceram no baile-ficha do clube Olímpico em
Copacabana, onde Rafael o dançarino que aniversariava no primeiro dia em que fui ao
Helênico aos 11 anos de idade já dançava profissionalmente, pois sua mãe convocava e
organizava os dançarinos que trabalhavam nesse baile.
Carmem o conheceu anteriormente em uma academia onde ele trabalhava como
instrutor. As duas passaram a contratá-lo e a dividi-lo nos bailes do clube Sírio Libanês, no
Flamengo (zona sul), e do Helênico. Contaram-me que, como Rafael nessa ocasião era uma
criança, a mãe do menino o levava para que autorizassem sua entrada nos clubes noturnos.
109
Durante anos eles dançaram juntos, até que ele passou a ser "dançarino exclusivo" da
Margarida, uma mulher de mais ou menos 65 anos que o contrata durante seis bailes por
semana.
Margarida é viúva de um funcionário público, com quem teve cinco filhos que lhe
deram netos e bisnetos. Ela começou a dançar após a morte do seu marido, quando passou a
freqüentar o pagode do Clube Municipal, situado na Tijuca (zona norte). conheceu um
dançarino que começou a levá-la para os bailes de salão. Contou-me que ela o dividia com
três mulheres, porém, depois de um tempo, essa relação passou a não dar mais certo: Ele
pegou tanta mulher para dançar que quando não dava mais conta passava a gente para o
Rafael. Então eu larguei mão de dar o dinheiro para que o Rafael repassasse para ele e
contratei diretamente o Rafael. E também ele se envolveu com uma delas que estava na
mesma situação que eu, aí não deu mais porque ele começou a dar privilégios para outra, aí eu
me separei. Perguntei, então, a Margarida: Que tipo de privilégios? E ela me respondeu:
Ele se dedicava mais a ela, ficavam mais tempo dançando e a gente esperando. eu me
chateei com aquilo e contratei o Rafael. cinco anos Margarida dança com Rafael, desde
que ele tinha 16 anos. Hoje ela, além de sua 'contratante', é madrinha do filho dele, que, como
citado, tem 3 anos idade.
Carmem diz que não contrata dançarinos, pois nunca mais conseguiu construir uma
relação de amizade como a que tinha com o Rafael. Quando Margarida dispensa os serviços
dele por algum motivo extraordinário, Carmem desfruta da companhia do Rafael,
contratando-o para os bailes do Olímpico em Copacabana. Odete, por sua vez, guardava certa
mágoa dele. Dizia que não se sentia recompensada pelo tanto que o ajudou, tendo pagado
inclusive contas do seu cartão de crédito. E se queixava dele nunca tirá-la para dançar, como o
fazia de vez em quando com Carmem, mesmo estando contratado pela Margarida.
Odete tinha um dançarino que se chamava Julho. Ele trabalhava como motorista na
Rede Globo, e eram raras as vezes que lhe dava garantia da sua ida ao baile (com freqüência,
ele confirmava sua presença por telefone, durante o baile), deixando-a na expectativa da sua
chegada). Mas ele não dançava só com ela; Julho ia para o Clube e era contratado para dançar
com mais uma pessoa.
Essa modalidade contratual de um dançarino com mais de uma mulher como era o
caso da Odete com Julho, de Margarida com o seu primeiro dançarino, e ainda da Odete e da
Carmem que antes se revezavam com Rafael – não pode ser vista no Clube dos Democráticos.
Como me alertou seu Wando, o editor da New Dance, nos Democráticos a direção não
permite a entrada de dançarinos de aluguel com mais de uma mulher: Você pode reparar
110
como eles o disfarçados. Entram com a dama, vão arrumadinhos e ninguém pode dizer que
eles são alugados. Agora, na Estudantina, eles nem entram! O seu Manolo, o proprietário, não
permite; ele é contra isso. Tem o estatuto e ele fica na porta olhando; se ele que é
dançarino, ele diz que não pode entrar. Ele prefere ficar com a casa vazia a aceitar dançarino
alugado ali dentro.
Mário também havia me dito que os mesmos eram 'barrados no baile' da Estudantina:
O quê? A Antonieta o aceita de jeito nenhum! Ela chegava a discursar no microfone
contra os dançarinos. Dizia que era uma pouca vergonha e tudo mais. Aí, o que aconteceu? As
senhoras ficavam envergonhadas com aquilo. Então muitas nem vão mais porque sabem
que não vão ser bem tratadas. Eu não vejo problema nisso. Antes essas senhoras iam para os
bailes e tomavam chá de cadeira porque ninguém queria saber de dançar com velha; agora
elas encontraram uma solução.
Essa modalidade de contrato, onde o dançarino dividia-se entre duas ou três mulheres
que repartiam os custos com o mesmo, era corriqueira no Helênico. Era comum vê-los
sentados juntos em uma mesma mesa durante o baile, o que pressupunha uma relação
amigável ou mesmo uma certa afinidade entre as mulheres justamente o que Odete não
expressava ter pela outra bailante que também contratava Julho. Ela se dizia insatisfeita em
dividir "seu dançarino" com a outra freqüentadora do Clube, que se sentava do outro lado do
salão. E reclamava por pagar quarenta reais a ele, enquanto a outra lhe daria menos pelo
mesmo serviço prestado. Odete acreditava que, por lhe pagar mais e ainda responsabilizar-se
por seu bilhete de entrada, Julho deveria dedicar-se a dançar mais tempo com ela.
Percebia que, como sugeriu Margarida, para manter-se nessa relação em que um
dançarino era dividido entre duas ou mais mulheres, exigia-se dos mesmos um certo
autocontrole, uma certa cautela. Pois, caso uma das mulheres passasse a ter privilégios sobre
as outras – como ficar mais tempo na pista dançando, ser conduzida durante a dança de forma
mais sedutora, receber mais atenção nas conversas empreendidas na mesa, ou mesmo ser
olhada de um modo diferente pelo dançarino –, a sociedade estabelecida entre elas se desfaria.
O interesse em assumir essa modalidade contratual por parte das mulheres podia
justificar-se pelo barateamento da mão-de-obra oferecida, mas também pelo próprio fato
dessa forma de sociedade evitar possíveis comentários e insinuações a respeito da existência
de um envolvimento amoroso da contratante com o dançarino que não era apenas um
casal que se apresentava de forma 'suspeita' aos olhares alheios nos salões.
Portanto, a contratação de um dançarino, seja por essa modalidade coletiva ou
individual, além de colocar em relação homens e mulheres de faixa etária distintas, promovia
111
um elo entre mulheres que compartilhavam interesses comuns ligados à dança. Para essas
mulheres, era importante sentirem-se atraídas e atraindo nos salões, por meio dos atributos
que eram adquiridos com o aprendizado da dança e valorizados entre aqueles que dançam.
Grande parte havia sido iniciada nas academias de dança de salão, conforme apontado, onde
elas aprenderam, junto aos instrutores, outros códigos de comportamento e modos de lidar
com o seu próprio corpo (de vestir-se, de exercitar-se, de mover-se e de seduzir) que muitas
vezes diferia de uma postura anterior à aquisição desses novos saberes. Expor a sua habilidade
no manejo de novas técnicas da dança, a sua disposição física em sintonia com a 'levada'
jovial do dançarino, ou ainda corresponder aos estímulos provocativos dele (com um teor de
erotismo nessa interação), tanto no momento da dança como nas conversas e brincadeiras
empreendidas à mesa, eram comportamentos que, associados a uma imagem de
desprendimento e jovialidade, costumavam ser valorizados entre dançarinos e contratantes
que tinham algum tempo de convívio. Vale lembrar que tudo isso também compunha o
jogo de despertar a curiosidade e a admiração não apenas do sexo oposto mas igualmente das
mulheres com as quais estas bailantes conviviam. Julho e Rafael costumavam fazer
brincadeiras com apelos sexuais com as mulheres contratantes, e vice-versa. Bastava que um
começasse a provocá-las por meio de toques físicos, com apertos e beijos no corpo, ou de
falas sobre os genitais deles e delas, para que outras se aproximassem para participar daquele
jogo. Dentre os muitos momentos que presenciei situações desse tipo, houve uma vez em que
a Odete sentou-se à mesa com Julho e com Rafael, vindo outras posteriormente se aproximar.
Ela dizia: Não, porque eu sei que negão tem aquilo grande, e eu gosto de homem assim, do
povo, que pega no pesado. Outra respondia: – Mas tem uns que de tão grande a ponta chega a
envergar e arranha na hora do vamos ver; esse não presta não!
Enquanto isso, Julho, que estava sentado, beijava por cima da blusa o seio esquerdo de
uma portuguesa (que também freqüentava o Clube com um dançarino) que, em pé, estava
agarrada ao seu pescoço. Ele dizia para Odete: Eu e o Rafael vamos para sua casa em
Itacuruçá e vamos dormir contigo, cada um de um lado da sua cama e fazer sanduíche de
você. E Odete falava ao meu ouvido, referindo-se a uma outra mulher: Olha o Rafael com a
mão na xereca dela. Essa era uma mulher que me chamava a atenção tanto pelo seu tamanho,
por ser muito alta, quanto pela quantidade de bijuterias que carregava no pescoço, nas mãos e
nos dedos. Ela simulava gestos de quem fugia de Rafael e retornava provocando a
brincadeira.
Nos estudos sobre velhice e gênero, é recorrente a atribuição de práticas e idéias
homogêneas associadas a um recorte de classe. Motta (1998) considera, em sua pesquisa
112
sobre mulheres que se reuniam em um grupo de convívio para idosos, que o fato delas
referirem-se ao corpo e ao ato sexual de forma espontânea e jocosa remetia a uma perspectiva
própria do "ethos popular". Já no trabalho de Moraes (2004), a concepção de prazer e diversão
ligada às práticas sexuais não era assunto compartilhado entre as mulheres idosas das camadas
médias que alugavam dançarinos. Entre essas, ressalta a autora, o sexo aliava-se à existência
de um relação estável, de um namoro fixo, e expressões jocosas com um certo teor de
erotismo só apareciam em alusão à prática da dança.
Embora Motta e Moraes apontem para o fato das diferentes situações de pesquisa
exercerem certa influência nos resultados obtidos, ambas consideram a pertença a uma classe
como uma dimensão definidora dos comportamentos em relação ao corpo e à sexualidade.
Assim, durante o baile, afirma Moraes, as referências a práticas sexuais nas conversas eram
escassas, mas na casa das entrevistadas o tema podia ser abordado. as "velhas faceiras"
(Motta, 1998) assumiam uma "identidade" mais caseira e familiar no contexto do lar, mas não
deixavam de manifestar jocosamente a sua "faceirice" por meio das falas, das piadas e do
gosto pela "social". Mas não seria o caso de subvertermos essa equação e levarmos mais a
sério o "contexto da situação" (conforme sugeriu Malinowski
68
) no qual tais frases são
proferidas, antes de partirmos para princípios normatizadores dos comportamentos sob a
forma de gênero, velhice e classe social? Será que podemos encapsular essas mulheres
pesquisadas em fórmulas identitárias que partem dessas categorias a priori, a despeito de
como elas reagem aos diferentes estímulos daqueles com quem se relacionam?
Vimos até aqui que homens e mulheres de “classes sociais”, “etnias” e “faixa etária”
distintas se relacionam nas figurações dos bailes, e que as vestimentas, os valores, o
comportamento, e mesmo a hexis corporal vão sendo moldados e remoldados a cada vínculo
feito ou desfeito, a cada encontro, a cada desencontro. Aquele tipo de jogo ao qual me referia
acima, e que os bailantes empreendiam normalmente ao término do baile, não fugia a essa
regra, e fazia-me ver, em suas falas eróticas proferidas fora dos ‘parâmetros ideais’ de
comportamento nos salões, que o fato de os dançarinos serem jovens, negros, moradores da
periferia e pertencerem às classes populares, antes de figurarem como princípios ordenadores
dos comportamentos, podiam aparecer como atributos valorizados da força de trabalho que os
mesmos tinham a oferecer. Esses símbolos combinados pareciam conjugar um ideal de
68
Segundo Malinowski, uma expressão verbal ou uma fala "só se torna inteligível quando colocada no seu
contexto de situação, se me permitirem criar uma expressão que indica, por um lado, que a concepção de
contexto tem de ser ampliada e, por outro lado, que a situação em que as palavras são proferidas nunca pode ser
tida como irrelevante para a expressão lingüística (...). Em cada caso, portanto, a fala e a situação encontram-se
113
virilidade que atraía essas mulheres. Entretanto, em outras ocasiões, quando alguns
contratempos atravessavam as suas relações com os seus respectivos pares na dança – a saber,
quando seus dançarinos dedicavam-lhes pouca atenção, vestiam-se de uma maneira que não
lhes agradava, chegavam atrasados, dançavam sem entusiasmo, faltavam a um baile ou
quebravam qualquer tipo de acordo entre o casal –, esses mesmos atributos outrora
valorizados pelas contratantes, podiam ser utilizados como termos acusatórios. Assim,
inúmeras vezes, diante de um desentendimento, de um desgosto ou de uma ausência, ouvia
daquelas que valorizavam os dançarinos pela diferença de cor, de idade e de classe em relação
a elas, insultos que se faziam valer dessas mesmas características.
Essas mulheres contratantes (brancas, das “camadas médias”, moradoras da zona sul
da cidade), ao empregarem adjetivos aos quais costumamos chamar de "raciais" para
referirem-se a dançarinos como, por exemplo, "macaco esfomeado" –, estigmatizavam os
membros desse grupo, menos por um preconceito estrito às diferenças de aparência física (a
cor de pele ou outros aspectos), e mais para, por meio deste, restabelecer, utilizando-se da
fofoca depreciativa, o equilíbrio instável de poder que pendia em determinada ocasião contra
elas (Elias, 2000). Pelos motivos apresentados acima, os dançarinos, podiam deixá-las em
uma posição desfavorecida frente aos demais freqüentadores do baile. E quando a relação de
poder se alterava em favor do dançarino que tinha outras possibilidades de contratação por
uma (duas ou três) mulher(es) mais rica(s), mais jovem(ns) ou mais generosa(s), e que
poderia(m) deixá-lo mais vontade", mais "solto", sem exigir-lhe esforços em demasiado–,
as contratantes diante da ameaça de serem trocadas ou ao padecerem da troca efetivada
tratavam de difundir boatos a respeito da conduta e da condição social do dançarino,
acusando-o de "falta de profissionalismo", de ser "interesseiro", ou estigmatizando-o por "não
ter onde cair morto"
69
.
Participar do almoço dançante na companhia da Odete e da Carmem, me fez
aproximar dessas mulheres que contratavam dançarinos e perceber um pouco mais a
intimidade estabelecida em suas relações. Era comum vê-las prepararem o prato de comida
para 'seus' dançarinos, que chegariam no horário em que começava o baile, às 15h. Elas se
inextricavelmente interligadas e o contexto de situação é indispensável para a compreensão das palavras
proferidas” (1972: 304-305).
69
Ao fazer uso do modelo de figuração established/outsiders para analisar as relações intra e intergrupos,
considerando graus cambiantes de poder que estão em jogo a cada momento, Elias (2000) propôs que "a
sociodinâmica da relação entre grupos interligados na condição de estabelecidos e outsiders é determinada por
sua forma de vinculação e não por qualquer característica que os grupos tenham, independentemente dela" (:32).
114
preocupavam em lhes dar um tempo de descanso para a digestão da comida, antes de
começarem a dançar. E ofereciam-lhes festas de aniversário com bolo, doces, torta salgada,
balões que ornamentavam uma área de mesas reservadas para a comemoração –, e
presentes.
Esse tipo de tratamento dispensado aos dançarinos também apareceu no relato da
Neuza, de quem me aproximei nos Democráticos. Quando ela falava da sua relação com
Lauro, seu dançarino, expressava a existência de um vínculo íntimo, de uma "cumplicidade",
de um "respeito", de uma "solidariedade" e de um "entendimento entre os corpos" no
momento da dança, que ela nunca teria alcançado com ninguém. Neuza contou-me que
sempre ajudava Lauro a resolver seus problemas familiares, o orientava a não deixar os
estudos, e pagava seu cartão de crédito quando ele se enrolava com as contas. Esta vida
dele, confirmava Neuza, costumava ser quitada por meio da dança.
O pagamento do cartão de crédito do dançarino que apareceu no relato de Neuza, de
Odete e de outras mulheres –, assim como as demais atitudes mencionadas acima, eram
emblemáticas do tipo de intimidade e da dimensão do vínculo construídos entre o 'casal por
contrato'. Podemos pensar que o cartão pago além de revelar à contratante como foi gasto o
dinheiro que o dançarino recebeu por seu serviço no baile – aparecia em suas falas como mais
um mecanismo de criação de dívida, como uma tentativa de fortalecer o elo e manter a relação
com 'seu' dançarino que, na posição de endividado, se via preso a ela. Nessa prática de
divulgação da assistência financeira e afetiva prestada aos dançarinos, havia uma expectativa
de retribuição por parte dessas mulheres que, por mais que fosse ocultada, deixava-se
transparecer quando a troca era interrompida (cf. Mauss, 2003). Esta relação, portanto, diferia
daquela em que o pagamento era feito em dinheiro ao fim do mês, a cada encontro, ou a cada
dança.
Enquanto Neuza esforçava-se em me dar provas da sua generosidade espontânea e
desinteressada, e da sua participação na vida íntima e familiar de 'seu' dançarino, Lauro
procurava reforçar que estava ali, preso àquela relação, exclusivamente por um vínculo de
trabalho. Ele se preocupava em dar-me justificativas ao fato de o me tirar para dançar e se
desdobrava em explicações para que eu não tivesse dúvida a respeito da sua ligação com
Neuza, que, conforme me alertava: – Era estritamente profissional.
Em uma ocasião em que ele insistiu para que Neuza me desse uma carona, presenciei
o ato do pagamento, o qual Lauro, gesticulando com o dinheiro na mão, não buscava
Para Elias o "preconceito racial" é resultado de uma configuração de poder anterior ao "problema" relacionado à
cor de pele. É o tipo de vínculo, e não atributos em si, que estabelece os preconceitos.
115
dissimular apesar de Neuza ter tentado colocar a quantia de forma disfarçada em seu bolso.
Até aquele momento, eu nunca havia visto o ato de pagamento ao dançarino, mas depois
comecei a perceber, em algumas situações, como essa atitude precisava ser disfarçada pelas
mulheres que pleiteavam uma ligação com esses rapazes que ultrapassasse uma mera relação
objetificada pelo cálculo monetário.
Outra ocasião em que pude ver um pagamento ser efetuado, foi no primeiro sábado do
mês de junho, quando o diretor social do Helênico convocou em torno de cinco dançarinos de
uma academia que estava funcionando na sede da "Agremiação Familiar Carnavalesca Vai
Quem Quer", situada na rua do Catumbi, para participar do baile. Esses rapazes tinham de 15
a 18 anos, eram todos negros, moravam nos morros ao redor do Clube e comportavam-se
timidamente durante o baile. Como estavam sendo iniciados nessa profissão, apesar de todos
saberem dançar, havia um constrangimento em se aproximar das mesas e convidar as
mulheres desacompanhadas para o salão. Diante dessa inibição, o diretor social, para
estimulá-los a tomar a iniciativa, tratou de anunciar a presença deles ao microfone: – Pedimos
aos dançarinos, instrutores da academia, que tirem as damas para dançar. E Carmem
prontamente se encarregou de levá-los às mesas dessas mulheres para que eles as chamassem
ao salão.
Carmem escolheu um dos dançarinos e esteve com ele grande parte da noite. Seu
nome era David, tinha 18 anos e morava no morro da Mineira. Ele contou-me que todos
aqueles rapazes haviam começado a dançar graças a projetos patrocinados pela prefeitura
primeiro em um galpão no morro da Mineira, depois no chamado "casarão cultural" em Santa
Teresa (situado na entrada do morro dos Prazeres). Recentemente tinham se tornado
instrutores da academia do professor que ministrava as aulas nesses projetos, e estavam, a
trabalho, no baile, por um acordo estabelecido entre este professor e Osvaldo, diretor social do
Clube. Em troca dos serviços prestados como dançarinos, Osvaldo oferecia-lhes o salão do
Helênico para que promovessem bailes na ocasião em que o Clube estivesse disponível.
David me assegurou que nenhum daqueles cinco dançarinos ganhava dinheiro da "direção da
casa" para trabalhar naquela noite. Mas não excluía a possibilidade de ganharem algo, uns
"trocados" ou certa "freguesia", caso as mulheres com quem dançassem, simpatizassem com
eles.
Observei isto acontecer quando uma mulher de mais ou menos 45 anos que
normalmente se sentava e dançava sozinha, diante da sua mesa deu algumas notas de um
real a um desses rapazes que havia acabado de dançar com ela. Essa mesma mulher, em outra
oportunidade, havia me dito: Você acha que eu vou pagar para marmanjo dançar comigo?
116
Esse dinheiro eu dou para minha filha que tem sua idade. Eu que não venho para cá para ficar
sentada esperando que me tirem para dançar. As minhas amigas deixaram de vir porque
ninguém dançava com elas, mas eu tenho paquera aqui de mais de dez anos! É menina; eu
venho para esse Clube desde que eu era pequena, com os meus pais.
No sábado seguinte, esses dançarinos não compareceram e eu voltei a vê-los uma
vez mais no Clube. Carmem, que não mais contratava dançarino para acompanhá-la no
Helênico, voltava a se queixar: O único mal desse Clube é que a direção ainda não se
conscientizou de que se pagasse dois a três dançarinos para acompanharem as mulheres que
vêm sozinhas, elas trariam suas amigas e isso daria lucro para o Clube. Hoje é essa a
realidade, dançarino é uma profissão. Ninguém dança mais de graça. Só eu e você, por
exemplo, que somos chamadas porque as pessoas nos conhecem; agora o resto, vão ficar
todas essas aí, sem dançar, e depois não voltam mais. Carmem fazia menção a uma mesa com
oito mulheres que vinham de Duque de Caxias trazidas por uma freqüentadora do Helênico.
Esta mulher, a uma certa altura dessa mesma noite, foi homenageada pela Vânia, a presidente
do Clube, que lhe entregou um buquê de flores pela iniciativa de levar um grupo de amigas ao
baile. O diretor social agradeceu ao microfone a presença daquelas mulheres e as convidou,
perante todos, a retornarem.
Um terceiro momento em que presenciei o ato de pagamento a um dançarino, foi na
comemoração do aniversário da Odete, no dia 6 de agosto de 2005, quando ela convidou
Mário e Rosa para irem à sua festa no Helênico. Aquele evento me criou uma grande
expectativa, afinal, depois de quase cinco meses, eu voltaria a reencontrá-los juntos no
almoço dançante, onde estive pela primeira vez na companhia dos três.
Quando cheguei, por volta das 13h, apenas Mário estava presente, procurando a mesa
na qual iria sentar-se. Chamei-o para a mesa de Carmem, onde Odete e eu costumávamos
ficar. Estranhei o fato dele não chegar acompanhado pela Rosa, mas prontamente rio
explicou-me que ela não compareceria, pois estava indisposta pela úlcera recentemente
detectada em exames médicos. Porém, eu demorei a perceber que, mesmo na ausência de
Rosa, ele estava ali a trabalho naquela ocasião. E foi somente diante de um ato de pagamento,
feito pela Odete por baixo da mesa, que pude perceber a função que Mário desempenharia
naquela noite. Ele se ocuparia em manter as convidadas da Odete dançando durante o baile;
principalmente suas amigas de Copacabana, as mesmas que tinham sido suas alunas no início
dos anos 90: Dolores, Santuza e Amélia.
Dentre as ex-alunas do Mário, Odete era quem mais se destacava como dançarina. Não
"abriu o salão" acompanhada por ele, como exibia constantemente o seu bailado e seu
117
decote às amigas, que cochichavam entre si: Viu a saia da Odete como é transparente?!
Antes, Amélia havia comentado sobre isso com a própria Odete, tendo o consentimento da
Santuza: Não tinha um decote mais avantajado que esse não?! Odete respondia, baixando
ainda mais o decote da sua blusa, de forma provocativa: O quê que tem o meu decote? Não
gosta dele não é? E todas riam. As amigas se vestiam de forma totalmente diferente das
freqüentadoras assíduas do baile no Helênico: com calças compridas e blusas de seda ou
viscose, com colares de pedras ou pérolas e cabelos escovados, exibiam um certo requinte no
conjunto da vestimenta.
Odete me dizia, em tom confidencial, que todas eram ricas e viúvas: Elas se dizem
minhas amigas, mas são porque eu não preciso delas. A mais pobrinha é a Amélia. A
Elizeth, que é irmã da Santuza, morava em Miami em casa própria. Agora ela está doente e
precisa da irmã, por isso voltou. A Dolores, que é nora da Santuza, até empresa no nome dela
ela tem porque o marido deixou. Agora a Amélia não está bem porque ela perdeu o filho não
tem muito tempo.
Conversei com essas amigas de Copacabana de Odete. Contaram-me que, havia doze
anos (em 1993), elas, Odete e Rosa começaram a freqüentar aulas de dança de salão e os
bailes do Olímpico, em Copacabana. Além de Mário – com quem estiveram ao longo de cinco
anos –, listaram-me com precisão os professores com quem fizeram aula: Yeda Cardoso,
Elizabeth Nunes, Luís do Olímpico, Álvaro, e Antônio José (hoje conhecido como Antônio
Carioca). Santuza e Dolores ainda freqüentam o que chamam de baile-aula do Antônio
Carioca, todas as quartas-feiras das 18 às 20h, em sua academia em Copacabana. Explicaram-
me que, nesse baile-aula, vários "instrutores" as tiravam para dançar (a escolhida era aquela
que estivesse com um leque que ia passando de mão em mão). Disseram-me que esse
mecanismo permitia que elas dançassem quase o baile inteiro, e que valia muito a pena por
isso. Amélia contou-me que não freqüentava mais bailes e que, desde a morte de seu filho,
ela o sabia mais o que era dançar sentença que foi desfeita para o final daquela noite,
quando bailou no salão.
Odete, em meio a elas, era a única que assumia uma ‘estética de dançarinae chegava
toda produzida, com as pálpebras maquiadas de verde. Ela me contava, como era de costume,
onde tinha comprado sua roupa. Seus sapatos, normalmente mandava fazer em uma loja
antiga de Copacabana
70
. Geralmente mencionava nomes de lojas famosas e mostrava-me suas
70
Essa era uma prática comum entre os bailantes: usavam sapatos feitos por encomenda. Os bailes eram,
inclusive, locais de divulgação de serviços ligados à dança. Eu mesma recebi vários cartões de profissionais que
vendiam sua força de trabalho como dançarinos, músicos e sapateiros (ver anexo 8).
118
jóias, reforçando que nenhuma delas era bijuteria. Perguntava-me se estava muito barriguda
com a blusa que vestia ou se a saia lhe assentava bem. Mas naquele dia do seu aniversário,
parecia-me mais apreensiva com sua aparência, e não conseguia centrar-se em nada nem em
ninguém.
Nos primeiros momentos do baile, como sempre, demonstrava-se ansiosa com a
chegada de Julho, seu dançarino, e comentava comigo: Ele disse que vem hoje com o filho.
Eu não gosto de homem com filho. Ainda bem que o Edésio [um "caso" seu que mora em
Goiânia] não tem filho. Mas também o Julho não é meu homem. Depois, durante o baile, fez
algumas queixas de Julho quando ele ficava muito tempo distante por estar dançando com a
outra contratante. E perguntava-me: Cadê o Julho? para mim se ele está dançando.
Odete, assim como grande parte das freqüentadoras dos bailes, não usava óculos para não
aparentar ter mais idade. O agravante aqui é que ela tampouco colocava lente de contato, e o
alcance da sua visão era bastante limitado assim como o de Mário e o de Rosa, que também
não faziam uso de lentes durante o baile.
Julho, nesse dia, me pareceu mais magro e, ao perguntar-lhe o que tinha acontecido,
me disse que tinha saído do hospital na quinta-feira, pois estivera doente. Quando fui
comentar com a Odete, ela falou que Julho sempre vinha com histórias tristes para contar, mas
que essas conversas não lhe interessavam, pois, dizia: Ele não é pago para ficar falando dos
problemas que ele tem ou deixa de ter! Ao final do baile, quando todos os seus convidados
tinham ido embora, Odete, depois de beber mais que o habitual, começou a queixar-se do fato
de ter pagado cem reais ao Julho para ele nem sequer dançar durante toda a noite com ela.
*
Neste tópico, procurei abordar as formas de contrato e de pagamento que observei
entre os casais nos salões, a fim de demonstrar como as relações entre as mulheres
contratantes e dançarinos diferem nas situações apresentadas. Vimos que o ato de pagamento,
assim como qualquer outro índice que evidenciasse uma relação contratual, costumava ser
omitido pelas mulheres durante o baile. Porém, esse mesmo ato podia ser explicitado como
símbolo de uma relação de proximidade e de intimidade entre o casal (como expressou Neuza
ao mencionar o pagamento do cartão de crédito de Lauro) ou como um símbolo de
subordinação do dançarino em relação à contratante (expresso no descontentamento da Odete
em relação ao seu ex-dançarino, Rafael, e ao desempenho de Julho, 'seu' atual dançarino, no
dia do seu aniversário). O significado atribuído ao dinheiro como um meio de troca pela
dança e companhia desejada, seja pelo pagamento em espécie ou do cartão de crédito, diferia
119
de acordo com a situação vivida e com o tipo de relação estabelecida entre aqueles envoltos
na contratação.
Ora essas mulheres referiam-se às suas relações com os dançarinos como uma grande
amizade, integrando-os à posição de "como se fosse da família" e dispensando-lhes cuidados
que ultrapassavam o acordo inicialmente estabelecido vestindo-os quando pagavam os seus
cartões de crédito, presenteando-os com o que eles precisassem, dando-lhes de comer durante
o baile e organizando as comemorações de aniversário deles no clube ora os acusavam de
estarem interessados no dinheiro delas, de serem malandros, mal-educados, e de não terem
"nível social" suficiente para acompanhá-las nos salões.
Já alguns dançarinos contratados, como mostrarei abaixo, propunham – em falas
proferidas normalmente fora da situação de trabalho uma espécie de inversão da relação de
dominação que poderia existir entre contratante e contratado, desqualificando as detentoras do
poder aquisitivo, por não se contentarem apenas com seus serviços prestados como
dançarinos.
2.1 Para ser dançarino não é só dançar, tem que ser simpático
Entre Julho, Rafael e Lauro, os dançarinos que até agora apresentei, é possível traçar
algumas semelhanças. Dentre elas, todos são negros, têm menos de 35 anos e moram na
periferia do Rio de Janeiro, com exceção de Lauro, que mora na Central do Brasil.
Começaram suas carreiras como alunos em academias e tornaram-se instrutores das mesmas.
Atuaram como dançarinos em bailes-ficha, onde conquistaram sua clientela e tornaram-se
dançarinos contratados.
Rafael iniciou-se na carreira mais cedo. Ele tem 21 anos e, dez, começou a dançar
profissionalmente, ganhando dinheiro como instrutor em academia e dançarino em baile-
ficha. Há três anos, atua apenas como dançarino contratado. Rafael não se demonstrava
satisfeito com a sua carreira de dançarino e estava fazendo um curso preparatório para o
concurso do Tribunal Regional Eleitoral. Ele se queixava da dificuldade de conciliar os seus
horários de estudo com os de trabalho. Estava tendo aulas todos os dias, e, aos bados,
trabalhava nesse mesmo curso preparatório cumprindo a contrapartida que lhe isentava do
pagamento das mensalidades. Após o expediente, corria para o Helênico, onde dançava até às
20h.
Ele me dizia: Eu doido para sair dessa vida, mas é muito difícil. Antes eu até
pensava em ter uma academia, mas hoje não me iludo mais com isso. Para quem
começando, eu não desaconselho não. Mas eu estou cansado, não sinto mais prazer com
120
isso não. Meus joelhos doem muito. Eu tenho que operar, mas eu não tenho tempo! Vou lá ao
médico, faço uma infiltração e depois estou aqui, fazendo esforço, e o meu joelho incha
todo de novo. Nessa vida que levo, eu não consigo me cuidar. Eu quero cuidar dos meus
estudos e, se Deus quiser, eu vou ser advogado. Eu quero estudar Direito.
Rafael e Julho costumavam chegar atrasados ao baile. Margarida queixava-se disso
com discrição; dizia que sempre pensava em descontar do pagamento de Rafael, mas que
nunca tinha coragem de fazê-lo porque sabia que ele contava com aquele dinheiro no fim do
mês. Odete reclamava dos atrasos de Julho: Ele deve ter dançado a noite inteira e por isso
não chega! Mas quando o seu dançarino chegava, ele lhe dava um monte de beijos na
bochecha, abraçava-a forte, beliscava-lhe as pernas, massageava as suas costas, e ela não fazia
uma queixa sequer. Odete oferecia-lhe algo para beber, perguntava-lhe se tinha almoçado ou
se ele não queria descansar do almoço antes de começarem a dançar.
Depois que Julho confirmava a sua vinda ao baile pelo telefone, ela parecia preocupar-
se ainda mais com sua aparência; perguntava-me se os seus cabelos estavam bagunçados, se
nos seus lábios ainda restava batom, ou voltava a perguntar-me se eu gostava da roupa que ela
vestia. E começava a revirar a sua bolsa em busca de uma escova, de um espelho ou de um
batom para retocar sua aparência. A confirmação da vinda de Julho, com quem ela dança
dois anos, modificava-a notoriamente.
Muitas vezes o vi chegar com os olhos vermelhos e cara de quem teria acabado de
acordar. Reclamava-me de dores no corpo, e às vezes o via sair mancando da mesa para o
salão. Para Odete, porém, Julho procurava mostrar a vitalidade que ela requeria e dançava
cinco a seis músicas sem interrupção. Depois a deixava em nossa mesa e ia a outra em busca
da segunda mulher para quem ele também trabalhava.
Julho tem 35 anos, é casado, e tem dois filhos e uma filha (de 9, 11 e 12 anos). Ele
começou a dançar aos 13 anos de idade, quando freqüentava um pagode onde conheceu o
professor que lhe ensinou o ofício de dançarino: – Ele nos dava aula em um galpão de graça e
foi quem me ensinou que, para ser dançarino, não é dançar, tem que ser simpático. E que
quando se chega no baile, os problemas têm que ficar de fora. A dança funciona como uma
terapia. Eu percebo se a pessoa está tensa através da dança. Mas Julho costumava dizer-me
que se sentia "preso" quando dançava contratado: – Só no pagode que eu fico livre, que eu me
sinto à vontade. Aqui eu tenho que estar preocupado com tudo.
Esse tipo de ligação entre a dança e um efeito medicinal ou terapêutico era comum de
se ouvir dos dançarinos quando divulgavam os benefícios propiciados àquelas que
contratavam os seus serviços. Mas outra consideração recorrente em suas falas a respeito de
121
sua profissão é que "dançar por contrato não prazer", ao contrário de quando se "dança por
lazer". Essa diferença entre estar no baile a trabalho e ir ao baile livre era frisada por grande
parte dos dançarinos. Ronaldo, um dançarino que acompanhava duas senhoras com mais de
70 anos, me dizia: A dança para minha mulher é prazer, para mim é minha profissão, e
nessa situação de trabalho é difícil ter prazer com isso. Agora, essas senhoras dançam por
terapia, por distração, por lazer. E muitas porque o médico mandou fazer atividade física,
como é o caso dessa senhora que eu acompanho. Eu as busco em casa e as levo de volta.
Ronaldo, 29 anos, foi dançarino da Odete em outra ocasião, mas ela disse que o
dispensou porque não gosta de homem baixo. Ele mora em Ramos e costuma trabalhar como
dançarino no Olímpico, no Bar do Tom, e no Hotel Everest, em Ipanema. Houve uma época
em que conciliava a dança com outros trabalhos, como office-boy, vendedor, supervisor e
gerente de loja de roupas. Trabalhou ainda em um galpão de cervejaria e em loja de venda de
celular. Mas depois passou a dedicar-se apenas à dança: Não para sobrar dinheiro, mas
para pagar as contas dá. Eu gosto desse trabalho porque as pessoas são boas, interessadas e
gostam de ajudar, o que acaba virando uma família. Mas, quando acontece alguma gracinha,
eu trato de colocar a mulher no seu lugar. Porque onde se ganha o pão, não se come a carne.
Ronaldo contou-me que é recorrente o envolvimento amoroso por parte das mulheres
que o contratam. E identifica o porquê desta situação construindo uma diferenciação entre o
homem e a mulher: As mulheres envelhecem de corpo, mas continuam querendo ter prazer,
porque para elas é mais fácil do que para os homens. Mas quando elas apelam para este lado,
eu mostro que não é por aí. Agora, existem casos e casos, e daí o preconceito com essa
profissão. Eu mesmo já fui ofendido. Tem uns caras que estão se prostituindo; porque, vamos
falar sério , a ocasião faz o ladrão. Eles querem comprar um carro novo, gostam de andar
bem vestidos, com o celular top de linha. Propostas acontecem; a carência sexual é muito
grande.
Outro dançarino que alegou esse tipo de assédio por parte das mulheres, foi Lúcio,
com quem eu dancei uma vez no Bola Preta e encontrava todos os domingos nos
Democráticos acompanhando uma mulher que o contratava. Enquanto no primeiro clube
onde estava livre, sem trabalhar ou à procura de serviço –, me tirou para dançar e convidou-se
para sentar em minha mesa, nos Democráticos – onde estava contratado –, cumprimentava-me
apenas com um sorriso discreto ou um olhar, quando nos esbarrávamos na pista de dança.
Lúcio tem 32 anos, mora em São Cristóvão e trabalhou durante oito anos como
mecânico em uma empresa de refrigeração, até que passou a se dedicar exclusivamente à
dança. Sua formação como dançarino não se diferenciava muito da dos demais citados. Ele
122
começou a dançar dez anos em uma academia no Rocha, bairro na zona norte da cidade,
cujo dono era seu "patrão", chefe da empresa de refrigeração onde trabalhava: Foi ele que
me levou para a dança. Mas o trabalho na empresa era muito pesado. Tinha dia que eu pegava
às sete horas da manhã e largava às oito da noite e ia direto para a academia. Depois que
comecei a dançar contratado, ainda saía da aula e ia para baile. Chegava em casa e dormia
pouco. Às vezes, faltava ao trabalho ou chegava atrasado; eu fui despedido e nunca mais
quis saber de voltar a ser mecânico.
Nessa ocasião em que foi demitido do seu emprego, Lúcio estava freqüentando a
academia do Jimmy, na rua do Catete, onde foi "bolsista" durante algum tempo, ou seja,
atuava como instrutor e não pagava pelas aulas que recebia. Mas foi no baile-ficha que ele
passou a ser contratado: Quando eu não tinha conhecimento de área, de como as coisas
funcionavam, eu ia para lá. Mas depois você ganha cliente, se faz reconhecer, e é muito
mais jogo dançar por contrato do que por ficha. Eu perguntei: Muito mais jogo por quê?
Ganha-se mais? – Contratado, eu ganho mais e danço menos. Agora, bom é quando você pega
uma dama que te deixa à vontade para dançar as músicas que você quer. Mas tem umas que
não te deixam quieto e, como estão pagando, você tem que dançar o tempo todo! tem dias
que eu não agüento; chego a sentir os músculos de minhas pernas mexerem sozinhos. E
quanto você cobra, em média, por um baile? – Depende. Eu costumo cobrar sessenta a setenta
reais; mas se a dama quer que eu vá buscá-la em casa, eu cobro vinte reais a mais pelo frete.
Após assumir uma postura depreciativa em relação à mulher que o emprega, referindo-
se a ela como um objeto ou uma mercadoria que precisa ser fretada ou transportada, Lúcio
chega a afirmar que todas as mulheres com as quais trabalha ou trabalhou, seguem um
caminho único: apaixonam-se por ele: E aí começam a me presentear, a querer participar da
minha vida e a saber se eu estou precisando de alguma coisa. A maioria chega a se insinuar,
às vezes tentam me beijar, e já viu, né? Elas confundem tudo. E o pior é que muitas são
casadas. Aí eu vejo que é hora de conversar, senão complica a relação.
Assim como Lúcio, grande parte dos dançarinos com os quais conversei tiveram uma
outra profissão ou ainda a exerciam paralelamente. A maioria seguiu um percurso comum e
acenava para um discurso de ascensão social: tornou-se bolsista/instrutor de uma academia,
partiu para os bailes-ficha da zona sul, onde conquistou sua clientela e adquiriu contratos.
Lúcio atualmente é contratado como dançarino durante seis dias da semana e freqüenta os
bailes, a trabalho, do Sírio Libanês, da Churrascaria Gaúcha, do clube América, do Santa
Luzia e do Olímpico. Também entre os dançarinos assim como ocorria com os bailantes a
123
freqüência nos bailes era apontada como um índice de prestígio, de disposição física e de
saúde.
Outro ponto que me parece importante frisar na fala de Lúcio, e que apareceu nas
conversas com Rafael e com Julho, são os efeitos do trabalho de um dançarino nos seus
corpos. Lúcio diz que, quando a mulher não quer parar de dançar durante o baile, chega a
sentir os músculos das suas pernas mexerem sozinhos. Julho costumava sentir nódulos na
virilha; por vezes ia para a pista mancando, e seu cansaço era algo notório, não nos
movimentos do seu corpo quando dançava, mas no seu rosto, nos seus olhos vermelhos de
sono. Rafael há algum tempo tinha detectado um problema no joelho esquerdo, no qual sentia
dores. De acordo com a orientação médica, ele precisava fazer uma cirurgia e evitar qualquer
tipo de esforço físico. Essas dores eram associadas a momentos anteriores ou posteriores ao
ato da dança; normalmente conforme argumentavam não os dançarinos, mas os bailantes
em geral –, enquanto dançavam, não sentiam qualquer tipo de dor, a o ser quando o
parceiro o dominava minimamente a técnica da dança, executando movimentos bruscos e
descompassados.
Mais um aspecto importante no que diz respeito aos efeitos do ofício de dançarino
sobre o próprio corpo, referia-se ao tipo de dieta alimentar feita para se manter com 'boa'
aparência, ágil, e 'bem cotado' no seu trabalho. Lúcio disse que, antes de dançar
profissionalmente, pesava 50kg e que, depois, passou a preocupar-se em ganhar massa
muscular. Começou a alimentar-se diariamente com macarrão, arroz, carne, batata, banana e
leite e a fazer musculação. Rafael e Julho eram repreendidos por suas contratantes, que por
vezes queixavam-se de que eles estariam acima do peso normal e que isso influía sobre a
dança do casal. Ronaldo, por sua vez, esforçava-se para diminuir o seu peso, procurando
controlar-se com a alimentação. E, assim como os outros dançarinos, demonstrava-se
preocupado com uma ameaça recente ao seu ofício nos salões: a juventude daqueles que estão
ingressando na carreira de dançarino. Dizia-me: – A profissão tem um limite: a idade. A idade
limita muito; hoje ainda tem trabalho para um dançarino de 30 a 35 anos, mas a tendência é
decair.
Havia, por parte de algumas das contratantes, certa exigência com relação ao preparo
físico dos dançarinos, e muitas afirmavam que, desde quando começaram a freqüentar os
salões, passaram a cuidar mais da sua alimentação e a praticar algum outro exercício além da
dança para ganharem resistência e manterem-se com a aparência desejada. Mas, no almoço
dançante ou em outros eventos comemorativos, eu não as via fazer qualquer tipo de restrição
alimentar. Impressionava-me justamente como podiam comer e dançar quase
124
simultaneamente, e voltar a comer, sem parar de dançar. Odete, que sofria de pressão alta,
prevenia-se do excesso de sal da feijoada, ingerindo dois dentes de alho amassados em um
copo com água. para se livrar da possibilidade do mal-estar causado pelo álcool
consumido, tomava dois comprimidos de Engov (medicamento usado para digestão).
A boa aparência de ambas as partes –, além de aludir a uma busca por um
desempenho exemplar na dança, sugeria que o interesse por seu par motivava cada bailante a
se manter atraente e disposto. O interesse pelo outro despertaria o cuidado de si, que, por sua
vez, implicaria em um controle mútuo – da mulher contratante sobre o dançarino e vice-versa.
3- Pedindo a conta (no fim das contas...)
Apesar do suposto interesse sexual no parceiro de dança nunca ser abordado
diretamente pelas mulheres sendo algumas vezes insinuado pelos freqüentadores 'das
antigas' e confirmado pelos próprios dançarinos –, não explicitamente ou necessariamente o
apelo sexual era o motivo pelo qual os corpos se entrelaçavam no cenário da dança de salão.
Havia muitas mulheres que buscavam parceiros que as seduzissem com gestos, toques,
olhares e sussurros; que improvisassem nos passos e as fizessem se sentir visadas e desejadas
não só pelo dançarino, mas, por meio dele, pelo grande público, enquanto exibiam seus
corpos vitais e sincronizados no salão. É certo que o tipo de performance que evidenciava
um jogo de sedução, encenado ou não – podia ser um requisito importante para que o contrato
se mantivesse. Mas havia outras performances nos salões, e as relações estabelecidas entre os
‘casais contratados’, estavam sempre sujeitas a variações dependia do baile que
freqüentavam, das pessoas presentes e do grau de intimidade compartilhado entre o casal no
momento da dança.
O circuito de bailes apresentado, ao envolver as pessoas em situações distintas, exigia
das mesmas posturas diferentes, o que me sugeria um argumento a mais contra a noção de
uma identidade única que se daria a despeito das relações propiciadas por aquela atração
social.
Odete, nos Democráticos, sentada na mesa de Rosa e de Nelson, sem a sua rede de
amigos freqüentadores do Helênico, sem a presença do seu dançarino contratado, sem as suas
elaboradas vestimentas (em uma noite que foi ao baile social desprevenida), portou-se de
modo diferente: dançava de forma contida com Mário (que já não a satisfazia com seus passos
datados, de uma outra época), não tecia comentários jocosos a respeito das pessoas que nos
cercavam, lamentava-se da vida solitária de viúva e confidenciava-me a falta que sentia do
125
seu falecido marido. Ali, nos Democráticos, onde poucos a conheciam, Odete não reunia
atributos suficientes (tais como ‘popularidade’ entre os freqüentadores, tempo de associado,
titulação dentro do quadro social do clube, o vestir-se com esmero e apresentar-se com um
dançarino jovem e vivaz durante a dança) para atrair olhares que lhe garantissem uma
aparição desejada no salão. Odete, nessa única noite em que esteve nos Democráticos, além
de estar desprovida de todos esses elementos que, manejados de formas diversas, poderiam
posicioná-la de um modo mais satisfatório no baile –, tinha poucas chances de ser tirada para
dançar por um desconhecido diante da presença de Mário à nossa mesa, pois era sabido por
todos que ele estava ali também cumprindo a função de dançarino contratado.
Foi por meio dessas idas e vindas dos personagens tendo em vista suas posições
cambiantes na trama de interdependências que se configurava nas sociedades dos salões –,
que procurei demarcar o processo pelo qual os indivíduos eram socialmente designados como
velhos ou jovens (nos sentidos acusatório e enaltecedor atribuídos aos dois termos),
dominadores ou submissos, bons ou maus dançarinos. Sendo essas classificações variáveis ao
longo do tempo e de formas diversas pelos bailantes (e pelo mesmo bailante), percebia, no
entrelaçamento das relações, que duas mulheres podiam ser consideradas uma velha e outra
não (apesar da mesma idade cronológica), uma dominadora e outra submissa (o que
demarcava uma idéia de dominação/submissão intra-sexo), e, ainda, que um mesmo dançarino
ora podia ser taxado como antiquado por seus passos marcados, ora podia ser ovacionado pelo
seu “talento” irrepreensível.
Diante dessas diferentes percepções a respeito dos indivíduos, apesar de eu ter
dialogado com parte da literatura sobre gênero e principalmente com aquela que tematizou
as variações das formas contemporâneas de envelhecimento segundo a classe social e o sexo
dos indivíduos –, procurei o delimitar o objeto de estudo pelo pertencimento a categorias
analíticas que fixam identidades, ethos e papéis, que delimitam posições ou tipificam
comportamentos – a saber, segundo o gênero, o grupo etário, a classe social e a etnia.
Como vimos, nos clubes que freqüentei, homens e mulheres, “jovens” e “velhos”,
grupos das camadas médias e populares que se relacionavam nos salões orientavam suas
ações e seus gostos atribuindo sentidos e valores diversos a essas categorias que, nesta
dissertação, foram abordadas como atributos sociais. Estes atributos, conforme demarquei,
longe de definirem de antemão o lugar ocupado pelos bailantes na conformação das posições
no clube, ganhavam novas significações quando combinados de modos distintos àqueles
outros elementos apresentados, como a técnica corporal que o bailante detinha, o grau de
126
incorporação dos códigos de etiqueta (comportamento e vestimenta), o tempo de convívio, o
histórico de envolvimento com a dança e com as atividades do clube.
Procurei, portanto, não encarar essas categorias que aparecem em parte da literatura
antropológica sobre gênero e velhice como marcas identitárias ou como dados
essencializados, uma vez que as mesmas figuravam nas relações como atributos construídos e
variáveis.
Lenoir (1979), em seu célebre estudo intitulado L'Invention du "troisiéme age" et la
constitution du champ des agents de gestion de la vieillesse, mostrou-nos que o fato de a
velhice (assim como procurei demarcar também sobre o sexo) ser uma categoria
aparentemente natural, traz consigo obstáculos à pesquisa sobre a sua constituição como um
“problema social”. Este autor chamou-nos a atenção para o fato de a idade não ser um
princípio de constituição dos grupos nem um fator explicativo dos comportamentos. Mostrou-
nos ainda que as divisões das idades e as definições das práticas legítimas associadas a elas
estão relacionadas ao aparecimento das instituições e agentes especializados na gestão das
chamadas “etapas da vida”. E sugeriu que aqueles interessados em fazer da velhice um objeto
de estudo sociológico ficassem atentos ao processo através do qual os indivíduos são
socialmente designados como tais. No caso francês, esse autor mostrou que a invenção da
‘terceira idade’ como uma nova etapa do ciclo da vida entre a aposentadoria e a velhice é
produto da generalização dos sistemas de aposentadoria e da intervenção de instituições e
agentes que, ao se especializarem no tratamento da velhice, contribuem para o processo de
autonomização da categoria e da população designada como tal.
“No processo de constituição da “terceira idade” como problema social, (...) encontramos
esse trabalho coletivo de imposição de uma identidade social específica. No entanto,
diferentemente do “movimento feminista”, emanou não tanto de associações de defesa de
aposentados ou de pessoas idosas (...) mas das diferentes categorias de profissionais da
gestão da velhice (trabalhadores e animadores sociais, gerontólogos, geriatras, etc.) que,
nessa ocasião, desempenharam um papel homólogo ao dos militantes’” (Lenoir,
1998:89).
Lenoir apontou também para a intervenção dos cientistas sociais no campo dos agentes
de gestão da velhice, que difundem uma nova problemática associada à velhice: a da
“‘inserção social das pessoas idosas’; assim o envelhecimento é descrito como um processo
de diminuição da vida social, uma ‘redução dos papéis sociais’, que desemboca em ‘morte
127
social’(ibid:99)”. Esse tipo de discurso contribui para que a velhice seja definida como uma
etapa do ciclo da vida, para “credenciar a representação da velhice como uma faixa autônoma
com características específicas, relacionadas fundamentalmente com os efeitos da idade”
(ibid:99). Esse isolamento de um grupo social por meio de um atributo que lhe é outorgado
como essencial encontra eco em produções mais contemporâneas que fazem do recurso à
etnografia uma forma de construir evidências para seus argumentos.
Um tema recorrente nos estudos antropológicos brasileiros sobre a velhice é
justamente a necessidade dos idosos de darem sentido às suas vidas – depois de receberem sua
pensão por aposentadoria e/ou por viuvez e de terem criado seus filhos –, e, com isso,
buscarem locais de sociabilidade, onde principalmente a mulher pudesse exercer a sua
“sexualidade” ou viver sua “individualidade” em um espaço público de lazer e divertimento
(Motta 2004; Moraes, 2004; Freitas, 2000; Motta, 1998). De acordo com essa literatura, como
vimos, seja em bailes ou em grupos de convivência, as mulheres desempenham outros papéis
que o aqueles ligados ao âmbito doméstico e criam “condições para a formação de um
processo identitário que por definição as diferencia da avó, tia ou viúva tradicional” (Freitas,
2000:78) o qual costuma ser descrito como um processo contemporâneo, típico das
sociedades ditas complexas, de “individualização” dos idosos frente a família.
Mas essa busca desenfreada por espaços de sociabilidade, principalmente por parte das
mulheres, seria uma prática fortemente influenciada pelos agentes interessados na gestão da
velhice (gerontólogos, psicólogos, animadores culturais, e por que o incluir os sociólogos e
antropólogos que em muito contribuem para a transformação da “velhice” em uma
especialidade), tal como abordado pela literatura citada? Em outras palavras, o discurso destes
agentes exerceria de fato esse fascínio sobre aqueles que dançam? Faria algum sentido falar
em etapas do ciclo da vida se muitos indivíduos não encaram esse período como uma ruptura
nas suas relações anteriores, se seguem trabalhando e praticando suas tarefas domésticas e
familiares? E as pessoas que freqüentam os clubes mais de vinte anos e que, portanto, não
fizeram um movimento posterior ao aposentar-se ou liberar-se dos cuidados com os filhos
para passarem a freqüentar os salões? E se nem mesmo esses freqüentadores do clube se
identificam como um grupo social específico definido pela idade, como enquadrá-los em uma
categoria social de velhice? Ou ainda, é possível generalizar que aquelas mulheres que
aprenderam a dançar nas academias e que ingressaram nos bailes de salão recentemente, pós-
viuvez, estivessem imbuídas de um desejo comum de viver aquilo que lhes teria sido
renegado pela opressão marital ou pelos afazeres domésticos e familiares? Não estaríamos
aqui partindo daqueles pressupostos de universalidade da dominação masculina, baseada em
128
uma divisão perene da vida social em domínios público e privado, que encerra
necessariamente uma relação hierárquica entre as atividades desenvolvidas nessas esferas?
Podemos partir da idéia de que as mulheres que na velhice freqüentam os salões teriam sido
atingidas por um ideário de direitos feministas de emancipação, de autonomia, de igualdade
entre os sexos, e estariam ali reivindicando um espaço público de atuação onde pudessem
construir, exercer e praticar a sua “identidade feminina”?
Tendo como dupla inspiração tanto as sugestões daqueles que me receberam nos
Clubes quanto um incômodo teórico diante dessas formas de compreender a atração social nos
bailes, procurei mostrar nesta dissertação que os modos como os bailantes conduzem suas
ações, gostos e sentimentos escapam desse arcabouço identitário individualizante que os
inscreve em “trajetórias”, “ciclos” e “projetos” de vida, e os torna sujeitos sociais previsíveis
e amarrados em esquemas totalizantes. E foi seguindo os movimentos de Mário, Rosa, Odete,
e de todos aqueles com os quais convivi nos salões, que observei que se de fato quisermos
assinalar a existência social deles como um “grupo”, este não poderá ser definido como tal
por uma especificidade de gênero, velhice, classe social, raça ou etnia, mas por dançarem e
compartilharem idéias a respeito da vida.
A vida dentro dos salões, portanto, antes de ser regulada exclusivamente por esquemas
identitários que fixam os sujeitos sociais a partir de um quadro estrutural mais amplo, era
permeada por uma série de imponderáveis definidos e redefinidos nas relações, os quais iam
compor de forma cambiante a escala de privilégios das figurações em estudo. O ingresso nos
bailes, o aprendizado social da dança e a inserção dos indivíduos em uma rede de
dependências recíprocas – tecida a partir das experiências e idéias compartilhadas em torno da
dança acresciam novos valores aos indivíduos, os quais orientavam o comportamento dos
bailantes de forma específica nessas formações sociais. Assim, a idéia que procurei explorar,
muito influenciada por Elias, é a de que a vida em comum, seus atos recíprocos e relações
mútuas dão origem a uma rede de indivíduos, uma sociedade dos salões, onde os bailantes não
se apresentam como seres fechados em si mesmos, mas como pessoas que se tornam
interdependentes na sua convivência.
129
BIBLIOGRAFIA
ALBRICKER, Marcos V. L. A Big Band Brasileira: a contribuição de Severino Araújo e
sua Orquestra Tabajara. Dissertação – UFRJ. Rio de Janeiro: Escola de Música,
2000.
ATTIAS-DONFUT, Claudine. Sexo e envelhecimento. In: PEIXOTO, Clarice. Família e
Envelhecimento. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 85-108.
AUSTIN, JOHN L. Como hacer cosas com palabras: palabras y acciones. Buenos Aires:
Paidós, 2003.
BAPTISTA, José Renato C. Os deuses vendem quando dão: Um estudo sobre os sentidos
do dinheiro nas relações de troca no candomblé. Dissertação UFRJ/MN. Rio de
Janeiro: PPGAS, 2005.
BARROS, Myriam M. L. de. Velhice na contemporaneidade. In: PEIXOTO, Clarice. Família
e Envelhecimento. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 13-22.
______. Apresentação; Testemunho de vida: um estudo antropológico de mulheres na velhice.
In: BARROS, Myrian. L. de. Velhice ou Terceira Idade? Estudos Antropológicos
sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
BATESON, Gregory. Pasos hacia una ecología de la mente. Buenos Aires: Lohlé-Lumen,
1998.
BECKER, Howard. Los Extraños. Buenos Aires: Tiempo Contemporâneo, 1971.
BORGES, Antonádia. Dublê de outro ou, por que algumas pessoas nos dão a mão em campo.
2006. (Mimeo)
______. Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política. Rio de Janeiro:
Relume Dumará; Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Le bal des célibataires: crise de la société paysanne en Béarn. Paris:
Éditions du Seuil, 2002.
______. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
______. Senso de Honra. In: CORRÊA, Mariza e SILVA, M. (eds). Três ensaios sobre a
Argélia e um comentário. São Paulo, 1995. Textos Didáticos.
______. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org). Bourdieu. São Paulo:
Ática, 1983. Coleção Grande Cientistas Sociais. p. 46-81.
______. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. e AMADO, J. (orgs). Usos e Abusos da
História Oral. Rio de Janeiro: FGV.
130
______. Juventude é apenas uma palavra. In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco
Zero, 1983. pp. 112-121.
BRASIL, M. A História do Cordão da Bola Preta. Rio de Janeiro: Teatral, 2005.
CEVA, Roberta. Na batida da zabumba: uma análise antropológica do forró
universitário. Dissertação – UFRJ/MN. Rio de Janeiro: PPGAS, 2001.
COSTA, Haroldo. Na Cadência do Samba. Rio de Janeiro: Novas Direções, 2000.
CRESSEY, Paul G. The taxi dance hall: a sociological study in commercialized recreation
and city life. New Jersey: Patterson Smith, 1969.
CSORDAS, T. The body’s career in Anthropology. In: MOORE, H (ed.). Anthropological
Theory Today. Cambridge: Polity Press, 1999. p.172-205.
CUNHA, Maria. C. P. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e
1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
DEBERT, Guita G. Antropologia e o Estudo dos grupos e das categorias de idade. In:
BARROS, Myrian. L. de. Velhice ou Terceira Idade? Estudos Antropológicos sobre
identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
DRUMMOND, Teresa. Enquanto Houver Dança: biografia de Maria Antonietta
Guaycurús de Souza, a grande dama dos salões. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2004.
DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus. O Sistema de Castas e suas Implicações. São
Paulo: Edusp, 1992.
EFEGÊ, Jota. Ameno Resedá: o rancho que foi escola. Documentário do carnaval
carioca. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes LTDA, 1965.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
______. The Changing balance of power between the sexes in Ancient Rome. In: MENNEL,
Stephen and GOUDSBLOM, Johan (eds.). On Civilization, Power, and Knowledge.
Chicago and London: The University of Chicago Press,1998.
______. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1997.
______. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
______. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
______. O Processo Civilizador, vols I e II. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
______. Qu'est-ce que que la sociologie? Pandora: Paris, 1981.
131
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Zahar
Editora, 2000.
FARRER, Gracia Lu. The Chinese Social Dance Party in Tokio: the identity and status in a
immigrant leisure subculture. In: Journal of Contemporary Ethnography. v. 33, n. 6.
University of Chicago; Sage Publications, 2004. p. 651-674
FREITAS, Fátima da S. O baile: estudo antropológico dos bailes de terceira idade em
Curitiba. Dissertação – UFPR. Curitiba: PPGAS, 2000.
FAVRET- SAADA, Jane. Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard, 1977.
GROSSI, Miriam P. Identidade de gênero e sexualidade. In: Antropologia em primeira
mão, n.24. Florianópolis: PPGAS/UFSC, 1998.
INGOLD, Tim (ed.). Key Debates in Anthropology. London and New York: Routledge,
1996. (The concept of society is theoretically obsolete? – p. 57-98).
HERZFELD, Michael. La pratique des stéréotypes. In: L'Homme, 32, 1992. p. 67-77
______. The Body Impolitic: Artisans and Artifice in the Global Hierarchy of Value.
Chicago: University of Chicago Press, 2004.
LASMAR, Cristiane. Antropologia Feminista e Etnologia Amazônica: A questão do
gênero nas cadas de 70 e 80. Dissertação UFRJ/MN. Rio de Janeiro: PPGAS,
1996.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Ensaio de Antropologia Simétrica. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1994.
LEACH, Edmund. Sistemas Políticos da Alta Birmânia . São Paulo: Edusp, 1996.
______. Dívidas, relações, poder. A Diversidade da Antropologia. Rio de Janeiro: Edições
70, 1982.
LENOIR, Rémi. L'Invention du "troisieme age" et la constitution du champ des agents de
gestion de la vieillesse. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 26-27,
mars/avr, 1979. p.57-82
______. Objeto sociológico e problema social. In MERLLIÉ, D. et al. Iniciação à prática
sociológica. Petropólis: Vozes, 1998. p. 59-106
MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona:
Editorial Ariel S.A., 1991.
______. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Editora Abril, 1976.
______. O problema do significado em linguagens primitivas. In: OGDEN, C.K. &
RICHARDS, I.A. O Significado de Significado. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
132
______. Coral gardens and their magic. London: George Allen & Unwin, 1935.
______. Baloma: os espíritos dos mortos nas Ilhas Trobriand. In: Magia, Ciência e Religião.
Lisboa: Edições 70, 1916. p. 155-272
MARX, Karl. O Fetchismo da mercadoria. In: ______. O Capital: crítica da economia
política: livro I. 19
ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
______. As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naif,
2003.
______. A expressão obrigatória de sentimentos. In: OLIVEIRA, R. Cardoso de (org.).
Mauss, Coleção Grande Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1979. p. 147-153.
_________. A prece. In: OLIVEIRA, R. Cardoso de (org.). Mauss, Coleção Grande
Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1979. p. 102-146.
MITCHELL, J. Clyde. The Kalela dance. In: The Rhodes Livingstone Papers, n. 27.
Manchester University Press, 1971.
MORAES, Andréa. A Dama e o Cavalheiro: um estudo antropológico sobre
envelhecimento e gênero e sociabilidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
MOTTA, Alda. B. Sociabilidades possíveis: idosos e tempo geracional. In PEIXOTO, C. E.
Família e Envelhecimento. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 109-142.
______.
Chegando para idade. In: BARROS, Myrian. L. de. Velhice ou Terceira Idade?
Estudos Antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV,
1998.
MOTTA, Flávia. de M. Velha é a vovozinha: identidade feminina na velhice. Santa Cruz
do Sul: Edunisc, 1998.
ORTNER, Sherry. Is Female to Male as Nature is to Culture?. In: ROSALDO, M. &
LAMPHERE, L. (eds). Woman, Culture and Society. Satnford: Stanford University
Press, 1974.
PEIXOTO, Clarice E. Introdução - Processos diferenciais de envelhecimento; Aposentadoria:
retorno ao trabalho e solidariedade familiar. In: Família e Envelhecimento. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2004. p.9-12; p. 57- 82.
______.
Entre o estigma e a compaixão e os termos classificatórios: velho, velhote, idoso,
terceira idade. In: BARROS, Myrian. L. de. Velhice ou Terceira Idade? Estudos
Antropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
PEIRCE, Charles.The essential Peirce volume 2. Bloomington: Indiana University Press,
1998.
133
______. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.
PERNA, Marcos. Samba de gafieira: a história da dança de salão brasileira. Rio de
Janeiro: O Autor, 2001.
ROSALDO, M. e LAMPHERE, L. Introduction. In: ______. Woman, culture and society.
Stanford: Stanford University Press, 1974.
ROSALDO, Michelle. Woman, culture and society: a theorical overview. In ROSALDO, M.
& LAMPHERE, L. (eds.). Woman, culture and society. Stanford University Press,
1974.
______. The use and abuse of anthropology: reflections on Feminism and cross-cultural
understanding". In: Signs: Journall of women in culture and society, vol.5, n.3, 1980.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-
1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
STRATHERN, Marylin. Entrevista: No limite de uma certa linguagem. In: Mana. Estudos
de Antropologia Social, vol. 5, n. 2. Rio de Janeiro: PPGAS/UFRJ, 1999. p. 157-175.
SIGAUD, Lygia. Armadilhas da honra e do perdão: usos sociais do direito na mata
pernambucana. In: Mana, Estudos de Antropologia Social, vol.10, n. 1. Rio de
Janeiro: PPGAS/UFRJ, 2004. p.131-157.
TAYLOR, Julie. Tango, gifle et caresse. In: Terrain, n. 35, september, 2000.
WACQUANT, Löic. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002.
WEBER, Florence. Le Travail à-côté: etude d'ethnographie ouvrière. Paris: Institut
national de la recherche agronomique; Ed. de l' École des Hautes Études en Sciences
Sociales, 1989.
WHITE, William Foote. Sociedad de las esquinas. México: Editorial Diana,1971.
134
Anexo 1. Estrutura Organizativa do Clube dos Democráticos
135
Anexo 2. Boletim Informativo (conteúdo e quantidade de sócios)
136
Anexo 3. "Histórico resumido do Clube dos Democráticos”
137
138
Anexo 4. Letras dos “sambas de gafieira
ESTATUTO DA GAFIEIRA
Billy Blanco
Moço
Olha o vexame
O ambiente exige respeito
Pelos estatutos
Da nossa gafieira
Dance a noite inteira
Mas dance direito
Aliás
Pelo artigo 120
O distinto que fizer o seguinte:
Subir na parede
Dançar de pé pro ar
Debruçar-se na bebida sem querer pagar
Abusar da umbigada
De maneira folgazã
Prejudicando hoje
O bom crioulo de amanhã
Será distintamente censurado
Se balançar o corpo
Vai pra mão do delegado
Ta bem, moço?
Olha o vexame, moço!
PISTON DE GAFIEIRA
Sílvio Caldas
Na gafieira segue o baile calmamente
com muita gente dando volta no salão
Tudo vai bem, mas eis porém que de
repente
Um pé subiu e alguém de cara foi ao chão
Não é que o Doca, um crioulo
comportado
Ficou tarado quando viu a Dagmar
Toda soltinha dentro de um vestido saco
tendo ao lado um cara fraco
e foi tirá-la pra dançar
O moço era faixa preta simplesmente
e fez o Doca rebolar sem bambolê
A porta fecha enquanto o duro vai não
vai
quem está fora não entra
quem está dentro não sai
Mas a orquestra sempre toma
providência
tocando alto pra polícia não manjar
e nessa altura, como parte da rotina
o piston tira a surdina e põe as coisas no
lugar.
139
Anexo 5. Panfleto da Academia Moraes de danças
140
Anexo
6
. Estatuto da Gafieira – Estudantina Musical
Artigo 1
o
– Não é permitida a entrada de cavalheiros:
a) de camisetas sem mangas
b) de bermudas
c) de chinelos (de qualquer material)
d) alcoolizados
e) de chapéu ou qualquer objeto que cubra a cabeça
Artigo 2
o
– Não é permitida a entrada de damas:
a) de shorts ou bermudas curtas
b) de camisetas (tipo regata)
c) de chinelos (de qualquer tipo)
d) de chapéu, lenços, turbantes ou qualquer objeto que cubra a cabeça, fazendo ou não parte
da indumentária.
Artigo 3
o
– No salão não é permitido:
a) uso de bolsa a tiracolo (grande ou pequena)
b) portar cigarro aceso na pista de dança
c) entrar na pista de dança com copo ou garrafa na mão (com exceção dos garçons)
d) dançar mulher com mulher ou homem com homem.
Artigo 4
o
– No interior da gafieira não é permitido:
a) beijar demoradamente ou escandalosamente
b) aos cavalheiros colocar damas no colo ou vice-versa
c) provocar confusões
d) berrar gritar ou gesticular exageradamente
e) colocar os pés ou subir nas mesas e cadeiras, sob quaisquer pretextos
f) dançar espalhafatosamente, incomodando os demais dançarinos.
Artigo 5
o
– A desobediência de qualquer um dos artigos citados do presente Estatuto
poderá implicar as seguintes sanções ao infrator:
a) advertência verbal
b) retirada do recinto
c) suspensão a critério da direção da casa.
Parágrafo único – Traje adequado aos freqüentadores desta gafieira: Passeio ou esporte fino
gosto.
"E assim conseguirá divertir-se em um ambiente onde poderá trazer familiares e
amigos, tendo a certeza de que você é, na Estudantina, um baluarte do respeito e do prazer".
Observação – Não esqueça:
"Enquanto houver dança, haverá esperança"
Fonte: Perna (2001:147-148)
141
Anexo
7. Mapas
142
Anexo 8. Cartões dos serviços de dança
143
Anexo 9. Fotografias
144
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo