século XX. Grosso modo, o que Heckenberger afirma é que a "sociedade" do Alto Xingu é
um exemplar da cultura Aruaque, e que as mudanças ocorridas foram basicamente no
sentido de enfraquecimento de certas instituições. Já Schmidt apontava para o fato de que,
além do sedentarismo e da tendência de acomodação de grupos estrangeiros ao seu padrão
cultural, os povos Aruaque teriam como característica comum uma organização social
fundada em divisões hierárquicas8. Ora, o foco principal da tese de Heckenberger é a
continuidade, os modos de reprodução e os fatores de mudança da sociedade hierárquica (e
quiçá pré-estatal) do Alto Xingu antes da colonização européia.
Segundo Heckenberger, a chefia xinguana segue linhagens cognáticas que tendem a
diferenciar-se em classes sociais endogâmicas, os chefes e seus descendentes sendo
designados (na língua dos Caribe Kuikuru, junto a quem Heckenberger fez sua pesquisa)
pelo termo anetï, e os demais por camaga, do português camarada9. A constituição de
linhagens de chefes seria favorecida pela tendência de as famílias mais importantes
manterem na casa de origem seus filhos homens após o casamento, de modo que as
linhagens de chefe correspondem geralmente a casas de chefe10. Dado o pequeno tamanho
das comunidades atuais, o autor reconhece que virtualmente todo Kuikuro tem um ancestral
anetï. Os indivíduos são então classificados de acordo com a proximidade genealógica a um
8 O autor não procura explicar o fato de povos Aruaque como os Terena e Chané tenham sido subjugados por
povos não-Aruaque, referindo-se apenas à presença de formações “regionais” e hierárquicas entre estes os
primeiros, sobre os quais Oberg (1949) teria desenvolvido o conceito de chefatura.
9 Heckenberger não discute especificamente a ausência de termos nativos para designar não-chefes. Uma
explicação possível para este fato aparece nas etnografias de que trataremos no próximo capítulo.
10 A manipulação da regra uxorilocal default e sua exceção para famílias poderosas parecem ser bastante
generalizadas no Brasil Central e na Amazônia. Encontra-se em estado difuso nas etnografias sobre povos
ameríndios a observação de que filhos homens de chefes ou, mais geralmente, de “grandes homens” e de
famílias/facções poderosas adotam a residência pós-marital de tipo virilocal, isto é, trazem a esposa para
morar com seus pais, ao mesmo tempo em que as filhas destas mesmas famílias adotam a residência
uxorilocal. São formados assim grupos domésticos maiores e mais produtivos que os demais da aldeia, com
filhos e genros, noras e filhas morando sob o mesmo teto e autoridade. O primeiro autor a generalizar esta
questão, tendo o caso dos Tupi-Guarani em mente (citando também os xinguanos), foi Viveiros de Castro em
sua tese sobre os Araweté (1984: 96-97 nota 9).