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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centralização e faccionalismo
Imagens da política no Alto Xingu
Marina Vanzolini Figueiredo
2006
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ii
Centralização e
faccionalismo
Imagens da política no Alto Xingu
Marina Vanzolini Figueiredo
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2006
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iii
Centralização e faccionalismo
Imagens da política no Alto Xingu
Marina Vanzolini Figueiredo
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por:
______________________________
Presidente, Prof.
______________________________
Prof.
______________________________
Prof.
______________________________
Prof.
______________________________
Prof.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2006
iv
Figueiredo, Marina Vanzolini.
Centralização e Faccionalismo. Imagens da política no Alto
Xingu/ Marina Vanzolini Figueiredo. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu
Nacional, 2006.
ix, 109f.
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Dissertação (mestrado) UFRJ/Museu Nacional/ Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 101-109.
1. Política ameríndia. 2. Alto Xingu. 3. Modelos etnográficos. I.
Viveiros de Castro, Eduardo Batalha. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Centralização e faccionalismo. Imagens da
política no Alto Xingu.
v
Para meus avós Paulo e Maria de Lourdes
vi
Resumo
Esta dissertação consiste em uma análise dos discursos sobre a política xinguana
pela articulação desses discursos a modelos descritivos usados na história da antropologia
em diferentes épocas e sob diferentes orientações teóricas. Dois tipos de imagens polares
são identificados, uma que descreve a política local como sendo centralizadora e
hierarquizada, e outra que descreve esta política como sendo flexível e com tendências
centrífugas. Estas duas imagens serão associadas, na presente análise, respectivamente, ao
modelo evolucionista da chefatura
vii
Abstract
This dissertation presents an analysis of discourses on xinguano policy by the
articulation of these discourses with descriptive models drawn from the history of
Anthropology at different times and under different theoretical premises. Two types of
polar images are identified. One describes localpolicies as being centralized and
hierarchical, and the other as flexible, with centrifugal tendencies. In the present analysis
these two will be associated, respectively, with the Evolutionist model of chiefdom and
with Pierre Clastres´s theory on the Amerindian policies.
Key-words: Alto Xingu, amerindian politicies, descriptive models.
viii
Agradecimentos
Sem a ajuda e o incentivo do meu orientador, Eduardo Viveiros de Castro, esta
dissertação não teria realmente sido possível. Eduardo foi sempre mais generoso com as
idéias e atencioso do que eu poderia esperar. Além disso, foi ele o culpado por minha
decisão de estudar etnologia, quando ministrou o curso sobre “As Mitológicas” de Lévi-
Strauss, em 2005. Só não se sabe como depois disso fui estudar política.
Marcela Coelho de Souza foi quem me conduziu pela primeira vez ao Alto Xingu.
Agradeço a ela pela confiança, por ter me apresentado às pessoas certas e ensinado o
caminho das pedras para a vigem ao campo, por ser além de amiga um modelo de trabalho
e pela companhia nos momentos difíceis que inevitavelmente acontecem na aldeia.
Agradeço também ao professor Gilberto Velho, cujo incentivo, como amigo, foi
fundamental para minha entrada no PPGAS/Museu Nacional, e, como professor, para que
minha formação em antropologia fosse mais aberta o possível.
Agradeço sempre às colegas Clara Flaksman e Joana Miller. Clara, por ter me
conduzido (literalmente) ao mestrado em antropologia, quando a direção a tomar na vida
profissional ainda era um grande problema para mim. A ela agradeço também pela
companhia tão inteligente nos estudos e pelo conforto da sua amizade. Joana foi, e espero
que continue sendo, além de amiga, uma companheira de etnologia para conversar sobre
viagens ao campo, idéias e para ouvir meus infindáveis lamentos sobre o trabalho, quando
este parecia impossível. Agradeço a presença das duas ao meu lado. Adriano, que chegou
no fim do processo, ajudou a tornar os meses de escrita menos solitários e penosos. E a
Mariana Rito me deu casa, comida e cerveja num momento crucial.
Também aos colegas do Nuti, que ao longo do último ano expuseram da forma mais
generosa seus trabalhos, agradeço por não me deixarem ser preguiçosa demais com as
idéias.
Agradeço aos meus pais, cujo apoio e confiança foram imprescindíveis para a
realização deste trabalho e, mais ainda, para que a antropologia fosse para mim uma opção
viável. Minha mãe, especialmente, ajudou na revisão de texto.
A realização desta dissertação foi possível graças à bolsa financiada pelo
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ).
ix
Índice
Capítulo 1 A política no Alto Xingu e na antropologia........................................................01
1.1 Apresentação do problema..............................................................................................01
1.2 Sociedade e política na literatura antropológica: breve comentário...............................12
1.2.1 Matriz evolucionista: descendência e estrutura.........................................................13
1.2.2 A política como campo de estudo e a mudança social..............................................15
1.2.3 Transformações do problema da origem do Estado: tribos e chefaturas no modelo de
Sahlins...................................................................................................................................20
1.2.4 Transformações do problema da origem do Estado: marxismo e ecologia cultural....24
1.2.5 Clastres contra o determinismo ambiental e contra o Estado......................................29
Capítulo 2 Imagens da centralização...................................................................................33
2.1 Fundamento ecológico....................................................................................................35
2.2 Fundamento cultural: a tese de Schmidt.........................................................................39
2.3 Uma ou duas cosmologias...............................................................................................52
2.4 Nova síntese....................................................................................................................58
2.5 Conclusão: Heckenberger versus Barcelos Neto............................................................63
Capítulo 3 Imagens do facionalismo....................................................................................64
3.1 Ambigüidade: ser e não-ser chefe...................................................................................66
3.2 Poder distribuído: donos, pajés e chefes.........................................................................77
3.3 Contra-poder: feitiçaria...................................................................................................87
3.4 Última consideração: poder ou não poder.......................................................................91
Conclusão..............................................................................................................................94
Referências bibliográficas..................................................................................................101
x
Este é o reino do rei que não tem reino
E que – se algo o tocar – desfaz-se em pedra.
Augusto de Campos
Capítulo 1
A política no Alto Xingu e na antropologia
1.1 Apresentação do problema
Enquanto ainda decidia que rumo tomar na antropologia, uma “carta de
recomendação” me permitiu visitar rapidamente, em Novembro de 2004 e Agosto de 2005,
a aldeia Aweti, localizada às margens do rio Curisevo, no Alto Xingu. Mas foi
principalmente a leitura de parte da literatura sobre a região que me conduziu ao recorte
temático deste trabalho, a política. De acordo com a prática corrente dos mestrandos em
etnologia, minha pesquisa foi puramente bibliográfica; as viagens aos Aweti tiveram antes
o sentido de preparar o terreno para uma estada mais extensa em futuro próximo, com
vistas a uma etnografia deste grupo até hoje pouco estudado. Assim, ao desenvolver um
problema que apenas de forma impressionista é confirmado pela parca experiência que tive
entre os índios, pretendo também delinear uma questão que justifique uma pesquisa de
campo a ser realizada, espero, brevemente.
Mesmo para quem esteve em uma aldeia da região tão pouco tempo como eu, é
aparente que os xinguanos valorizam imensamente a chefia. Em comentários corriqueiros,
como, por exemplo, discutindo quem seria bem ou mal recebido pelo chefe do posto da
Funai na área (o “Posto Leonardo”), os Aweti distinguiam “lideranças” (morekwát) e
“peões”. Na literatura, o primeiro destes termos (amulaw, em Yawalapití, amunaw, Waurá,
anetu, em Kuikuro, por exemplo) é normalmente traduzido por “chefe”, às vezes por
“nobre” ou “aristocrata” (especialmente em Viveiros de Castro, 1977). Seu recíproco
2
“peão” parece estar ausente dos léxicos nativos; ele existiria apenas na língua do contato,
nos termos “camará” ou “camaga”, derivados do português “camarada”1. Uma questão que
surge imediatamente, então, é a do sentido da ausência de termos indígenas para designar
não-chefes. O que isso pode nos dizer sobre o sistema político xinguano? Outra questão
surge da observação, por virtualmente todos os etnógrafos da área, de intensas disputas em
torno do poder. Como explicar a resultante instabilidade da posição do “chefe”, ou da
maioria dos chefes, instabilidade que pareceria estar em contradição com o ideal nativo? A
partir de questões como essas, a idéia de procurar entender a política no Alto Xingu
apareceu-me em primeiro lugar como um modo de procurar de entender o Alto Xingu, isto
é, como uma intuição de que a política seria um bom começo e um bom fim para os
propósitos atuais.
A área conhecida como Alto Xingu é compreendida pelos rios formadores do Xingu
(Batovi, Ronuro, Culuene) e seus afluentes, no centro-norte do estado do Mato Grosso, uma
região de transição entre o Planalto Central e as terras baixas amazônicas. Os povos que
habitam esta região vivem fundamentalmente da pesca e da agricultura de mandioca,
compartilhando uma restrição alimentar ao consumo de muitos animais de caça,
principalmente certos grandes mamíferos como o porco do mato, o veado e a anta, ao passo
que certas espécies de macacos, algumas espécies de aves e os jabutis são consumidos
normalmente. O Alto Xingu integra o Parque Indígena do Xingu (PIX), nascido Parque
Nacional do Xingu em 1961, sob a direção dos irmãos indigenistas Orlando, Cláudio e
Leonardo Villas-Boas. A designação desta região como “área cultural”, “sistema social” ou
“sociedade” (variações de nomenclatura que correspondem a correntes teóricas diferentes)
1 Segundo informação de E. Viveiros de Castro, em algumas outras línguas/culturas amazônicas, os derivados
da série “camará” designam os Brancos em geral (cf. a forma araweté kamarã), ao passo que estes são
chamados karaiba no Alto Xingu
3
é baseada na crença geral de que os grupos que habitam o Alto Xingu podem ser
compreendidos como um bloco homogêneo sob certos aspectos cruciais, crença que se tem
traduzido na forma de generalizações pan-xinguanas feitas a partir de estudos de grupos
locais (aldeias). O presente trabalho, da mesma maneira, supõe uma identidade xinguana
que corresponde em alguma medida a uma estrutura social comum aos habitantes da região.
Tal suposição remete à primeira descrição sobre os xinguanos como têm sido chamados
estes grupos na literatura de que temos notícia, realizada por von den Steinen (1894) em
fins do século XIX. A caracterização desta região como “área do uluri” por Eduardo
Galvão (1953) confirmou e fortaleceu a imagem deixada por Steinen sobre a
homogeneidade cultural da região.
A paisagem social descrita por von den Steinen (1894) é a de um conjunto
lingüisticamente variado - composto por grupos falantes de línguas Aruaque (atualmente
Waurá, Yawalapití e Mehinácu), Caribe (atualmente Kuikuro, Kalapalo, Nafuquá e
Matipu), Tupi (atualmente Kamayurá e Aweti)2 e da língua isolada Trumaí - cujas relações
internas são da ordem da troca matrimonial, cerimonial e econômica, enquanto as relações
com o exterior são de potencial hostilidade e guerra. Estudos posteriores, mais preocupados
com o pensamento indígena, indicaram que esta caracterização corresponderia aos sistemas
classificatórios nativos, segundo os quais grupos integrados no sistema auto-denominam-se
gente, marcando aparente indistinção entre si, e distinguem-se tanto dos índios (ou índios
bravos, uma vez que os próprios xinguanos passaram a se reconhecer como índios no
discurso do contato) quanto dos caraíba, ou brancos (Gregor, 1977:300; Basso, 1969:275).
2 Por não constituirem o foco deste trabalho, evito citar grupos lingüísticos desaparecidos, muitas vezes pela
fusão de indivíduos remanescentes em grupos que mantiveram sua identidade distintiva até hoje. Além disso,
convém notar que em grande parte do século XX cada grupo linguístico correspondia a uma aldeia. Essa
situação pode estar mudando com o crescimento populacional registrado nas últimas décadas. Tive notícia,
pelos Aweti, de pelo menos duas aldeias Kuikuro e duas em que haveria mistura de contingentes Aweti e
Kamayurá.
4
Recentemente, pesquisadores da área têm procurado matizar o clichê do pacifismo
xinguano com uma perspectiva histórica que problematiza a definição dos limites dessa
“sociedade” (c.f. Menget, 1977; Bastos, 1984/85 e 1987/88/89; Basso, 1995; Coelho de
Souza, 2000). Veremos adiante que esta perspectiva processual, especialmente atenta à
dificuldade de se estabelecer uma fronteira rígida entre interior e exterior da “comunidade
moral” xinguana (Basso, 1995), está associada a uma certa imagem da política na área.
Portanto, se nos vemos aqui obrigados a falar em “Alto Xingu” ou “xinguanos”, deveremos
também eventualmente questionar, com alguns autores, tal designação. Além do mais,
teremos de considerar a existência de variações entre os grupos xinguanos, dentro de um
processo histórico, no que diz respeito à sua organização sociopolítica.
Se me parece interessante entender a política indígena para entender o Alto Xingu, o
sistema político xinguano, como é descrito, apresenta peculiaridades interessantes para
pensarmos questões da antropologia política em geral, e de uma antropologia política
pensada a partir do contexto ameríndio, em particular3.
Grosso modo, as etnografias da área apresentam duas imagens polares da política: ora
teríamos um sistema centralizado, fundado na transmissão hereditária do status de chefe,
cuja atuação e atualização seria a razão de ser dos rituais intertribais; ora vemos esse
sistema marcado pelo faccionalismo, pela comum ambigüidade na atribuição de status aos
indivíduos e, conseqüentemente, por uma grande flexibilidade na ocupação das posições de
destaque político. Um ponto que deve ser necessariamente considerado no presente
trabalho, o que não quer dizer estabelecido por ele, diz respeito à existência de uma
3 A definição do domínio “político” é complicada, mas necessária para possibilitar qualquer recorte temático
deste trabalho. Entenderei por “políticas” as questões na vizinhança da chefia indígena. A revisão do conceito
de “chefe” (capítulo 3) implicará necessariamente o questionamento dos limites da “política” e suas conexões
com “xamanismo”, “parentesco” etc. Ademais, nossa incursão pela literatura da antropologia política segue
basicamente conexões feitas pelos próprios autores que estaremos investigando, na tentativa de explicitar os
modelos que subjazem às etnografias.
5
duplicação problemática desta dualidade, isto é, de sua vigência nos modelos descritivos e
na realidade etnográfica (ou pelo menos nos modelos nativos, presentes explicita ou
implicitamente nos modelos etnográficos). Teríamos duas faces da política xinguana
enfatizadas (ou desprezadas) e interpretadas de maneiras diferentes nas etnografias?
Meu problema, contudo, no âmbito desta dissertação não será entender a política
xinguana em si, para o que me faltam recursos analíticos e, sobretudo, dados de campo,
mas tentar articular os discursos da etnologia regional sobre a política com problemas da
teoria antropológica em um nível mais amplo. Trata-se mais de um estudo sobre a
antropologia política feita sobre o Alto Xingu, pelos antropólogos, que de uma antropologia
da política feita no Alto Xingu, pelos xinguanos. Vamos procurar entender principalmente
em que medida as descrições do modelo político xinguano reproduzem orientações teóricas,
correspondendo a momentos históricos (não necessariamente etapas evolutivas da Teoria
antropológica) diferentes. O resultado esperado não pode ser mais que uma certa
“desnaturalização” desses discursos descritivos, isto é, sua politização teórica.
Fortalecida pela pesquisa arqueológica empreendida na década de 1990 por Michael
Heckenberger (2000, 2005), a imagem que enfatiza o aspecto hierárquico e centralizador da
política xinguana faz do Alto Xingu um caso-problema para a teoria clastreana A
sociedade contra o Estado, ao mesmo tempo em que, ou na medida em que, o transforma
em exemplo de “chefatura”, na linha dos modelos evolucionistas da antropologia política.
No mesmo fôlego, esta imagem é usada por Heckenberger, junto com alguns estudiosos de
grupos Aruaque (Hill e Santos Granero, 2002), para contestar os limites da teoria da
predação ontológica (c.f. Stolze Lima, 1996; Viveiros de Castro, 1996). Este modelo,
bastante influente nas últimas décadas como descrição do processo de constituição da
identidade nas terras baixas sul-americanas, sugere uma noção de identidade ameríndia
6
distinta da noção clássica ocidental, substituindo a equação Eu sou o não-Outro por Eu me
constituo pelo Outro incorporado, canibalizado. Segundo o modelo de Heckenberger,
centralização política e auto-reprodução social seriam partes de um mesmo ethos(para
seguirmos o termo muitas vezes empregado pelo autor): caberia aos chefes garantir a
continuidade social “fazendo” chefes-ancestrais - chefes que, depois de mortos, ascendem à
condição de ancestrais míticos, conectados à comunidade dos vivos através de seus
descendentes de substância e sucessores - nos rituais funerários e de iniciação.
Quanto à diferença entre a teoria de Heckenberger e a noção de predação
ontológica, seria possível diferenciá-las em termos de aquisição vertical e aquisição
horizontal de potência, seguindo a distinção feita por Stephen Hugh-Jones (1994) para o
xamanismo ameríndio? Aqui vale desviarmo-nos da literatura xinguana brevemente para
um comentário ao estudo comparativo feito pela arqueóloga Mary Helms (1993) sobre os
processos de constituição e legitimação do poder. Abrangendo o amplo universo das
“sociedades tradicionais” de diversas partes do mundo, Helms encontra “uma moldura
conceitual comum” que se realizaria tipicamente sob duas formas: de um lado, teríamos
sociedades de artesãos (crafters), em que o poder estaria associado à habilidade de
transformação de elementos (sobre-)naturais; de outro, sociedades de comerciantes
(traders), em que o poder seria conferido àqueles que controlam a interação com centros de
produção distantes. Esses modos distintos de obtenção do poder teriam a função comum de
propiciar a aquisição de potência do exterior cosmológico. Isso porque, segundo Helms, a
distância geográfica significa exterioridade cosmológica, num eixo horizontal, da mesma
forma que o mundo celeste dos ancestrais, por exemplo, num eixo vertical (isto é, a
sociedade estabeleceria em todos os eixos alteridades de valor equivalente). O objetivo da
autora é mostrar que, de modo geral, nas “sociedades tradicionais”, o poder se constitui
7
pela captura de energia concebida como elemento de fora, algo que deve ser incorporado e
transformado pela sociedade.
Artesãos e comerciantes distinguir-se-iam, contudo, quanto ao modo de aquisição
de potência. Segundo Helms, nos dois tipos de sociedade, a potência estaria referida à
ancestralidade, locus de habilidade criadora e produção da ordem moral. As sociedades que
situam o centro provedor de potência num eixo vertical veriam a si mesmas como
realização quantitativa mas não qualitativamente distinta deste lugar “lá no alto” (o mundo
dos deuses, geralmente celestial). Essas sociedades se veriam como recriadoras do ideal
moral cósmico, lugar da civilização e da moral, em oposição a centros distantes no eixo
horizontal, vendo-se assim com a obrigação e o poder de incorporar tais centros amorais e
incivilizados. Nos termos de Helms, o centro terreno, reproduzindo a relação de
“superordinação” com o centro “lá no alto” (up there), vê-se como centro de
superordinação dos centros distantes “lá fora” (out there). Quer dizer, este seria um tipo de
sociedade missionária e expansionista, processo que se realizaria por meio da sua elite
político-ideológica, diretamente identificada com a potência gerativa ancestral. Isso porque
os lugares distantes no eixo horizontal, ao mesmo tempo que incivilizados, são vistos como
fonte de potência; esta porém, deve ser transformada, moldada pela cultura. Assim os
centros civilizados seriam exportadores de objetos trabalhados (artesanato) e importadores
de matéria-prima, sendo a habilidade transformadora do artesão prova da superioridade
inerente das verdades da moralidade ancestral que permite ao centro expandir-se,
conquistar e abarcar o caos além de suas fronteiras.
Em oposição a esse tipo de sociedade que se como um “centro superordinado”
(superordinate center) estariam as “sociedades aquisitivas” (acquisitional societies), que
veriam a relação com centros horizontais como meio de aquisição de poder ancestral
8
(vertical). Sob o ponto de vista de uma sociedade deste tipo, um centro “lá fora” é um lugar
em que a conexão com os deuses ancestrais (encontro dos mundos terreno e celestial) pode
ocorrer na ação ritual. Isso estaria ligado a alguma característica física do lugar exterior:
árvores muito altas, cabeceira de rios, montanhas etc. Centros “lá fora” são vistos assim
como focos de transformação da potência (produção artesanal externa) e liderança política
ritual. Para a sociedade aquisitiva, as coisas trabalhadas que vêm destes lugares significam
o ideal distintivo de humanidade e indicam ligações com o poder transformativo dos
ancestrais criadores da ordem moral.
Acredito ser possível estabelecer uma analogia entre o modo de aquisição de potência
do tipo “comerciante” e a ontologia “predatória”, por um lado, e, por outro, o modo
“artesão” e a ontologia da “incorporação” como podemos chamar o modo
xinguano/Aruaque de constituição do poder segundo o modelo de Michael Heckenberger.
Em relação aos discursos antropológicos, o que se pode concluir de tal comparação é que a
consideração dessas duas ontologias políticas opostas ultrapassa o contexto da literatura
ameríndia. O questionamento, por Heckenberger e Santos-Granero (entre outros
aruacólogos), da prevalência de um único ethos ameríndio (de tipo “aquisicional”) e a
afirmação da existência de um ethos Aruaque (do tipo “centro superordinado”) estaria
assim em consonância com o estudo muito mais abrangente de Mary Helms sobre as
“sociedades tradicionais” (sendo que o trabalho desta autora não aparece na bibliografia do
xinguanólogo). Vejamos melhor o teor da crítica de Heckenberger.
Heckenberger (2005) sustenta haver uma diferença relevante entre as matrizes
etnolinguísticas que compõe o sistema xinguano; especificamente, haveria uma distinção
marcante entre um ethos proto-Aruaque e um ethos Tupi e Caribe. O primeiro seria
caracterizado pela divisão hierárquica da sociedade, por uma tendência à centralização do
9
poder e à incorporação pacífica de elementos estrangeiros à esfera da “civilização”
mediante alianças comerciais, rituais e matrimoniais. Os traços fundamentais da “cultura
xinguana” derivariam diretamente desta cultura proto-Aruaque, que teria assimilado, num
processo de aculturação assimétrico, os grupos Caribe e Tupi, que teriam entrado mais
tarde na área dos formadores do Xingu. Notamos desde que, segundo esta teoria, a
discrepância entre as descrições enfatizando ora a centralização, ora o faccionalismo, não
seria estranha, já que existe de fato uma coincidência entre etnografias sobre grupos
Aruaque e a ênfase na centralização (Barcelos Neto, 2004), e etnografias sobre grupos
Caribe e Tupi e a ênfase no faccionalismo (Basso, 1969; Menezes Bastos, 1984/1985;
Coelho de Souza, 2000). Testando esta hipótese, poderíamos nos perguntar sem poder
responder —, se as ênfases diferentes na centralização e no faccionalismo correspondem a
diferenças de fato entre os grupos étnicos que compõe o sistema xinguano, os quais têm
sido estudados isoladamente.
A afirmação de uma tendência à centralização política (proto-Aruaque), associada à
comparação do sistema xinguano com exemplos de sistemas “proto-estatais” segundo a
literatura evolucionista, como a chefatura havaiana, leva Heckenberger a conceber a prática
política atual no Alto Xingu como resíduo de uma “complexidade” política perdida. As
intensas disputas faccionais registradas principalmente nas etnografias de Ellen Basso
(1969, 1974) e Rafael Menezes Bastos (1984/1985), mas sugeridas em pesquisas anteriores
como as de Buell Quain (1955) e Thomas Gregor (1977) são entendidas, sob a ótica de
Heckenberger, como disputa entre elites numa sociedade hierarquizada segundo princípio
de descendência, mas também, em certa medida, como produto de uma decadência
sociopolítica resultante das enormes perdas populacionais anteriores aos primeiros contatos
registrados, no século XIX (Heckenberger, 2005: 174-176). No extremo, Heckenberger
(2000b) parece sugerir que nenhum documento histórico e muito menos uma etnografia
recente pode ser tão fiel quanto o material arqueológico para atingir o que seria a
verdadeira cultura xinguana. Vale ressaltar que, de acordo com a tese de que uma matriz
proto-Aruaque seria o fundamento único da cultura xinguana, Heckenberger considera o
quadro político atual uma involução do sistema Aruaque primitivo pelo contato com os
Brancos, e jamais como transformação (ainda que pensada em termos de degeneração)
deste sistema como quer que fosse originalmente devido a sua interação com outros
ethoses ou outros sistemas políticos indígenas.
Ao tratar a presença de ênfases diferentes na centralização e no faccionalismo como
um problema, revelo meu ponto de partida no debate aqui configurado. Quando levamos
a sério o fato relatado por muitos etnógrafos de que, se na teoria sabem dizer exatamente o
que é e como se faz um chefe, na prática os xinguanos têm muitos problemas para
concordar sobre o status das pessoas, inclusive de chefes “ativos” (veremos adiante as
sutilezas dessa questão); quando levamos a sério também descrições sobre a combinação
dos statuses transmitidos hereditariamente e dos statuses adquiridos em atuação ritual; e se
não desprezamos o comentário de Buell Quain – para citar um exemplo de Clastres
(1963:77-78) sobre o tremendo desprestígio do chefe Trumaí, que aliás foi sucedido não
por seu filho, como era de se esperar, mas por um indivíduo que havia sido classificado
como não-chefe pelo informante; enfim, quando consideramos uma parte importante do que
se observa hoje na política no Alto Xingu, pensamos que, a despeito da existência passada
de um verdadeiro e intocado (e único) sistema político pré-colonial, talvez algo possa ser
dito para além da teoria da degeneração político-demográfica. Seria o Alto Xingu de hoje
uma mera sombra deixada por uma evolução rumo ao Estado indígena, abortada pelo
contato desastroso com o Estado ocidental colonizador? Ou teriam os rumos dessa
sociedade após o contato algo a nos dizer sobre modos indígenas (tão indígenas quanto os
do Alto Xingu pré-contato) de pensar e fazer política?
Na próxima seção, farei uma breve revisão da literatura de antropologia política,
procurando situar minimamente os modelos que orientaram o tratamento do material
xinguano por seus etnógrafos. Na comparação das análises etnográficas, diferenças de
ênfase deixam a impressão de uma “contradição” entre o ideal nativo - de uma política
centralizada e de uma sociedade estratificada - e a prática - marcada pelo jogo faccional. É
principalmente no tratamento das “inconsistências” do sistema que se diferenciam os
autores. Com isso pretendo justificar minha atenção, na seção a seguir, ao lugar dado à
disputa pelo poder nos diferentes modelos.
Veremos que, nos modelos evolucionistas, que têm o Estado nacional no horizonte, a
disputa política será vista, ora como motor da centralização (Carneiro, 1978), o que
poderíamos chamar de interpretação positiva, ora como resultado da ação de forças
desorganizadoras externas ao sistema, ou seja, uma interpretação negativa (Heckenberger,
2005). Neste último sentido, as disputas pelo poder serão tratadas como mera contingência,
irrelevantes para o entendimento do sistema social. Pierre Clastres (1974, 1980) inverterá a
equação, procurando na sociedade primitiva (no duplo sentido do termo, isto é, anti-estatal
e pré-colombiana) os mecanismos que explicam a não-emergência do Estado. Esta
abordagem permite positivar os elementos de disputa porque tem a limitação do poder
como horizonte.
No segundo capítulo detenho-me sobre os modelos que descrevem o sistema
xinguano como hierárquico e centralizador e procuram distingui-lo de outros sistemas
sociais das terras baixas sul-americanas. Os trabalhos sobre grupos xinguanos realizados
por Robert Carneiro, Michael Heckenberger e Aristóteles Barcelos Neto serão nosso fio
condutor. No terceiro capítulo, são apresentadas as etnografias que contradizem a imagem
acima apresentada, levando-nos a questionar o significado de termos como “chefe” e
“linhagem”. Veremos também que estes trabalhos representam um esforço de apresentar o
sistema xinguano como exemplar mais ou menos “normal” de uma configuração
sociopolítica ameríndia generalizada.
1.2 Sociedade e política na literatura antropológica: breve comentário
Após mais de meio século esquecidas pelas principais correntes teóricas da
antropologia, as sociedades sul-americanas tornaram-se, nas décadas de 1960 e 1970, berço
de uma poderosa crítica aos modelos analíticos vigentes até então. Com a teoria
estruturalista, é Lévi-Strauss (1947) quem primeiro as coloca no centro de um palco até
então dominado por sociedades oceânicas e africanas. Seu trabalho posterior sobre mitos
suscita ainda uma revisão dos próprios objetivos da antropologia, no sentido de associar
estreitamente a “organização social” ao pensamento nativo ou “filosofia” indígena. As
sociedades da América do Sul tornam-se a partir daí um exemplo ou experimento
importante para a antropologia pós-estruturalista, desenvolvida em grande parte na esteira
das intuições de Lévi-Strauss. Duas questões desenvolvidas neste cenário nos interessam
aqui particularmente para discutir as etnografias xinguanas: o problema da natureza da
sociedade a partir da crítica às noções de descendência e linhagem; e, especificamente em
relação à “política” indígena, a crítica ao evolucionismo e ao determinismo ambiental
empreendida por Pierre Clastres a partir da teoria exposta em A Sociedade contra o Estado.
Tentarei nas seções a seguir situar brevemente estas questões e os modos como
foram tratadas na literatura. De uma perspectiva basicamente diacrônica, pretendo apenas
relacionar certas correntes teóricas entre si, procurando mostrar como certos modelos foram
desenvolvidos a partir da necessidade de superação de questões colocadas por seus
predecessores. Esta forma de apresentação pode causar a impressão perigosamente
enganadora de superação real de um modelo por aquele que surgiu a partir da sua crítica.
Na verdade, sabemos que novos problemas teóricos surgirão a cada tentativa de superação
de problemas antigos. Reconhecemos de antemão, contudo, a dificuldade de mantermo-nos
igualmente alertas frente a todos os modelos, sobretudo os mais próximos desta dissertação,
ideológica ou historicamente.
1.2.1 Matriz evolucionista: descendência e estrutura
Para os antropólogos evolucionistas, explicar a sociedade primitiva significava
desvendar o caminho que teria levado da “selvageria” à ordem social moderna, isto é, ao
Estado moderno. A imagem de sociedade projetada por estes antropólogos baseava-se
fundamentalmente na idéia de que a sociedade era constituída por grupos de parentes
consangüíneos cuja perpetuação no tempo estaria ligada à manutenção da riqueza (da
propriedade) do grupo em seu próprio seio. O modelo de L.H. Morgan (1877) enfatiza
especificamente este problema, ao situar o desenvolvimento da família monogâmica, a
partir de um suposto estágio de prosmicuidade, como etapa necessária da evolução social.
A monogamia, para Morgan, seria uma condição para a formação de linhas de
descendência, fundamentais por sua vez para a determinação da transmissão de direitos e
propriedades. Este modelo serviu de base para a teoria de Engels (1884), segundo a qual a
retenção dos bens pela família monogâmica seria o fundamento para a diferenciação social
baseada na posse dos meios de produção, isto é, para a constituição de classes sociais. Para
Engels, o Estado surge para conter o antagonismo entre as classes e, com isso, assegurar a
manutenção da diferença social; a transformação deste modo de vida poderia acontecer
mais adiante na história, com a superação do Estado capitalista.
Este modelo, forjado ainda nos quadros da “antropologia de gabinete”, a partir de
relatos de viajantes não-especializados, determinou fortemente a agenda da ciência
nascente. Dentre os novos antropólogos-etnógrafos, A. R. Radcliffe-Brown, trabalhando na
África, ao se destacar pelo desenvolvimento de estudos sobre o parentesco, deu
continuidade à abordagem “juralista” que marcava as teorias evolucionistas de Morgan e H.
Maine. Em Sucessão Patrilinear e Matrilinear (1935), texto em que o modelo de sociedade
radcliffe-browniano aparece com clareza, a linhagem, como célula social cuja continuidade
constitui a razão de ser do “sistema”, aparece como resposta ao problema da transmissão de
direitos sobre bens e pessoas, essencial para a perpetuação da sociedade. Por outro lado, na
época de florescimento da teoria de Radcliffe-Brown havia passado a um segundo plano
a determinação de explicar a sociedade moderna a partir dos primitivos; a descoberta de leis
implícitas ou inconscientes que operariam em um dado sistema social garantindo sua auto-
reprodução constituem o novo objeto da antropologia, e a questão da origem do Estado sai
de cena temporariamente.
No terceiro capitulo, veremos como o sistema político xinguano, relacionado ao
sistema de parentesco, levará alguns antropólogos a questionar o modelo de sociedade
segmentar (as linhagens portadoras de direitos) derivado do evolucionismo e desenvolvido
pelo estrutural-funcionalismo (Basso, 1969; Viveiros de Castro, 1977). Este
questionamento se inseria em uma crítica mais ampla à imagem “juralista” de sociedade
por parte da antropologia das décadas de 1960 e 1970, crítica essa que orientou a atuação
de muitos antropólogos americanistas (Overing Kaplan, 1978), e que se desdobrou na
formulação ou “descoberta” de novos modelos e questões, entre as quais a da difusão e
importância do parentesco cognático em sociedades tribais “da floresta” por Marshall
Sahlins (1968), como veremos adiante.
No mesmo sentido em que “rigidez” da descendência linear é posta à prova pelos
dados, a rigidez do “sistema social” radcliffe-browniano será criticada, criando espaço para
uma concepção antropológica da sociedade como resultado (consciente ou inconsciente) de
um trabalho coletivo contingente mais que como expressão automática de uma regra
necessária, concepcão essa que sublinhará a abertura do social ao evento. Este é o tema da
próxima seção.
1.2.2 A política como campo de estudo e a mudança social
As pesquisas na África avançam com a geração de alunos de Radcliffe-Brown.
Aplicando a noção de sistema ao estudo da política, na coletânea de artigos African
Political Systems (1940) os editores Meyer Fortes e E.E. Evans-Pritchard propõem um
recorte que delimita o campo do político na antropologia até hoje. O prefácio de Radcliffe-
Brown traz uma definição deste campo em termos do estabelecimento e manutenção da
ordem social, dentro de uma moldura territorial, pelo exercício organizado da autoridade
coercitiva através do uso, ou possibilidade de uso, de força física” (Fortes e Evans-
Pritchard, 1940: xvi). O autor prossegue explicando que os dois meios de exercício desta
força seriam a lei, por um lado, e a guerra, por outro. Na introdução à mesma coletânea,
Fortes e Evans-Pritchard identificam dois tipos de sistemas africanos: “Estados primitivos”
e “sociedades sem Estado”. Os autores relacionam o modelo das linhagens (essencialmente,
linhagens agnáticas) ao segundo tipo de sistema político, caracterizado pela ausência de
instituições administrativas. Nestas sociedades, o sistema linhageiro (descendência
unilinear), que os autores distinguem de um sistema de parentesco (sempre cognático, e
baseado em noções de consangüinidade mais ou menos próximas da noção ocidental), seria
isomorfo à estrutura política: as clivagens internas e as fronteiras do grupo seriam marcadas
pelas relações entre linhagens. Fortes e Evans-Pritchard conferem especial atenção aos
modos de resolução de conflitos nos dois tipos de sistema: nas sociedades com estrutura
administrativa, instituições diversas operariam de maneira a promover um equilíbrio
momentâneo, enquanto as divergências entre as linhagens seriam contrabalançadas pela
soma das relações que elas estabelecem entre si (como grupos matrimoniais, de ajuda
mútua, grupos de idade etc.). Ainda nesta introdução comparativa, os autores sugerem que
sistemas centralizados poderiam abarcar sociedades mais populosas, e que a centralização
política estaria relacionada à heterogeneidade cultural e econômica, resultando numa
estrutura de classes (Fortes e Evans-Pritchard, 1940: 9). Quanto a este ponto, eles ressalvam
que, entre grupos culturalmente e economicamente mais homogêneos, a centralização
política poderia não resultar no desenvolvimento de uma estrutura de classes.
É o próprio Radcliffe-Brown que, ao escrever o prefácio da coletânea, parece adaptar
seu conceito de sistema a uma abordagem menos rigidamente sincrônica: “A estrutura
social não deve ser pensada como estática, mas como condição de equilíbrio que persiste
apenas por ser continuamente renovada...” (idem: xxii). Nesse sentido, as pesquisas
editadas em African Political Systems apontam o início de uma reação ao modelo
estrutural-funcionalista clássico e ao método sincrônico de estudo das sociedades. Uma
nova linha analítica, desenvolvida pelos antropólogos da chamada escola de Manchester,
mostrou-se particularmente apropriada para o estudo da política, uma vez que dirigia seu
foco sobre os arranjos e rearranjos de poder. A história é reintroduzida com força na
antropologia, a mudança torna-se mais interessante ao olhar do pesquisador do que a
estabilidade; esta passa a ser vista como transitória, e como não mais verdadeira ou
reveladora do que a transformação. Um dos marcos desse tipo de antropologia é a Análise
de uma situação social na Zululândia moderna, de Gluckman (1958). O método consistia
em detectar na situação cotidiana que ganha status de um ritual, onde se processa o
balanço de forças antagônicas da estrutura - os elementos e as relações funcionais entre os
elementos do sistema social zulu-branco. Uma investigação bibliográfica da história local
confirma e explica o desenvolvimento do sistema analisado, resultante da interação da
sociedade hierárquica zulu, marcada pelo faccionalismo, com o sistema colonial britânico,
fundado na dominação política e na produção capitalista.
Se Gluckman transforma, para efeito de análise, o cotidiano em ritual, encontrando a
estrutura onde havia política, Victor Turner faz em certa medida um movimento inverso,
para encontrar política onde deveria haver pura estrutura. Em um artigo publicado numa
coletânea sobre políticas “locais” (local-level politics), isto é, sobre um campo definido
negativamente como política fora do Estado, (in Swartz, 1968), Turner analisa o ritual
Ndembu de iniciação de rapazes, ressaltando a operação de interesses pessoais em contraste
com o próprio sentido do ritual, que seria a afirmação de valores comunitários e a
desvalorização de grupos corporados. Em outras palavras, o autor enfatiza o efeito
centrífugo da luta por status sobre o movimento (“durkheimiano”) centrípeto da estrutura
ritual. A mesma coletânea traz uma análise interessante da biografia do cacique de uma
comunidade agrária mexicana, por Paul Friedrich (idem). Não sendo um cargo oficial, o
cacicado seria uma posição alcançada por influência e força monetária, na forma de um
controle informal da vida jurídica e econômica do lugar, onde a competição por prestígio
entre parentes se combina à manutenção do poder na mão de uma mesma família. Notemos
que nestes artigos de Friedrich e Turner, a política aparece fundamentalmente na ação de
forças contrárias à acumulação e centralização absolutas do poder, resultantes da própria
disputa pelo poder.
O grupo da escola de Manchester pode ser caracterizado pela preocupação em abrir
espaço nas etnografias para as ambigüidades e contradições da prática nativa, opondo-se à
imagem fechada de sistemas sociais criada pela ortodoxia funcionalista. Esta reação veio
acompanhada de uma revisão do conceito radcliffe-browniano de estrutura social, revisão
que tem na obra de Edmund Leach uma referência fundamental. Em Sistemas Políticos da
Alta Birmânia (1954), este conjuga a descrição dos sistemas políticos “ideais” (isto é, assim
como descritos, mas não vividos pelos nativos) kachin gumsa e gumlao e chan com uma
análise minuciosa das inconsistências dos mesmos, avaliando as possibilidades de
manipulação das normas em função de interesses pessoais. Resumindo, Leach interpreta o
sistema altamente instável gumsa como uma combinação de duas estruturas políticas pré-
existentes que teriam entrado em contato em determinado momento histórico - o modelo
igualitário gumlao e o modelo hierárquico e centralizado chan. O sistema gumlao está
fundado na troca generalizada de esposas, havendo diferença relativa de status entre
linhagens doadoras (superiores) e tomadoras de mulheres (inferiores). Em teoria, esse
sistema não admite a formação de hierarquias fixas, mas Leach observa que na prática
facilmente o status relativo se converte em diferenciação de classes entre linhagens,
tendendo para uma organização hierárquica gumsa. A questão é que essa evolução para a
hierarquia, na verdade uma tentativa dos chefes kachins de imitação do sistema político
chan, é igualmente instável e tende a precipitar por sua vez revoltas de grupos dissidentes
que impedem ao chefe em ascensão transformar-se em chefe chan verdadeiro. O problema
estaria na inconsistência do casamento entre o sistema kachin de status relativo, em que o
superior doa esposas aos inferiores, e o sistema chan de status absoluto, em que a
superioridade está ligada à posse de terras e o superior toma esposas de seus inferiores,
estabelecendo deste modo suas alianças políticas. Assim “ao tornar-se um chefe chan, o
chefe kachin tende a isolar-se das raízes de seu poder, ofende os princípios de reciprocidade
mayu-dama e encoraja o desenvolvimento das tendências revolucionárias gumlao”(Leach,
1954:270). Voltarei a este modelo para comentar uma reinterpretação marxista do material
birmanês. Por enquanto, ressalto que o conceito de estrutura nesta obra tem uma dimensão
necessariamente histórica: é na variação diacrônica que se revela a estrutura de alternância
entre dispersão e centralização política.
Enquanto a crítica à teoria e aos métodos de antropólogos evolucionistas do século
XIX afastou alguns antropólogos radicalmente do problema da origem do Estado moderno,
levando-os mesmo a procurar a política ali onde faltava o Estado, a problemática
7468(99.2(d)-4.0585c)-3.48087(h)]TJ262.8455aão 1.90368(t)1.08495(t)5.3975851de7(o)1.08495(n3)]T953no7(o)1.08495(n3a)68094t iners8()6.48206(99.2(d)87(n)-4.05851(c)1.6625845(c)-3.48087(a)1.66258( )250]TJ-274.79 -26.88 Td[(e)-3.48025(v)1.08495(o)1.08495(l)0.253657(u)-4.05851(c)1.66321(i)0.2536595(p)1.0862(ó))-146.04(s)3.23977(t)0.253657(a)1.66258(d)1.08495(o)-4.08632( ).05851(d)-.39711(a)-4.09711(s)3.23977(o)-41.084911(a)1.66258(d)1.08495 (s)3.23977(d)-4.05851soio4(r)-6.4685.3eetíeão(o)1.08495(r)-108495(03(ã)-3.48087(o)-4.05851( )3.1142(e)-3.t)11(í)-4.0585im ( -4.05851(r)1.08495(p)]TJ247.(e)-3.48087(n)1.08495(d)-4.05851(ê))-146.04o,od (e)-3.48087l38 0 Td[((e)-3.48087z-1.32354((o)1.08495(s)3.7955.179 008495(4(r)-6.4685.31.08495(â)9.81)258(t)-4.892(( )250]TJ-241.897 -21(c)1.6632n)6.82 Td[(l)0.253657(e)1.6632)(e)1.6632h(e)6.80604(e)0.253657(.08495(t)0.253657(e)-3.48087( )-372.358(à)-3.48087( 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)-305.493(e)e)-41985( )-146.045(à)1.66258( )-e)-41985( )3.24103(o)1.66258(.8060462(o)-4.05851i-)-295.20(ç)1.66711(o)1.08495()-22.6031(o)-4)-41985àà)1.66258( )-e)8a)1.87(ã)1.66258(o)]TJ247.(e)-3.48087538 0 Td[((e)-3.48087(il)-4.8898(e)1.66258( )-e1.405495(o)-4.05851( )-32.89(E)-)8a)1.8rema(e)1.66258( )]TJ244.538 0 0368( )-94.6114002ttit v7(r)-1.32479(e)-3.480(e)1.66384( )-48.3203(m)6.98.938(7(o)-4.05851( )-32.895(a)6.80604(j)-4.8351(r)-1.32479(o)43)1.691622 0 Td[( )-89.468((u)1.08495( ).08495(t)0)-3.250]T.1(e)-3.81(c)1.66258o (r)-1.32354(e)1.ta (p)]TJ247.(e-6.80604(ç)-3.4808l-)-295.20m ca r
1.2.3 Transformações do problema da origem do Estado: tribos e chefaturas no modelo de
Sahlins
Em Sociedades Tribais (1968), livro da fase evolucionista da obra de Marshall
Sahlins, encontra-se uma classificação dos estágios de evolução social que nos servirá de
base para entender a caracterização da sociedade xinguana como chefatura4 (Carneiro,
1978; Heckenberger, 2000, 2005), assunto do nosso segundo capítulo. Ao mesmo tempo, a
descrição das sociedades sul-americanas pelo próprio Sahlins nesta obra contribui para a
fixação da imagem que Carneiro e, posteriormente, Heckenberger, contestam.
Sahlins distingue uma tribo de uma nação moderna na medida em que as “várias
comunidades [da tribo] não estão unidas sob o governo de uma autoridade soberana, nem
os limites do todo estão clara e politicamente delimitados” (1968: 7). A tribo seria pouco
“complexa”, porque lhe falta esta organização coletiva e porque não possui instituições que
regem sua economia, política e religião; tais aspectos da vida seriam organizados pelo
mesmo regime de parentesco e grupos locais: segmentos de linhagem e clã, famílias
extensas e aldeias” (idem: 8). Esta sociedade tribal caracterizaria um estado evolutivo entre
uma suposta organização menos “complexa” de caçadores/coletores e o Estado. Tal
passagem evolutiva estaria relacionada à revolução neolítica, sem ser condicionada por ela.
A chefatura, representando uma tendência à integração do sistema segmentário, é
apresentada como estágio intermediário entre a tribo e o Estado. Diferentemente dos grupos
segmentares equivalentes de uma tribo, os grupos da chefatura seriam hierarquicamente
organizados. Não se trata ainda de uma sociedade de classes, porque não há controle
restrito da força e dos meios de produção, mas é como se, todos sendo parentes e membros
4 O termo correspondente encontrado na tradução de Sociedades Tribais é chefia.
da sociedade, uns fossem mais membros que outros, por serem de descendência superior.
A hierarquia característica de estruturas semi-complexas como a chefatura estaria fundada
numa estrutura social de clã cônico.
Sahlins define o clã - “unidade de descendência multilocal, patrilinear ou
matrilinear” (Sahlins, 1968:41) - como instituição típica da tribo. Vejamos com mais
detalhe sua definição do clã cônico, tipicamente encontrado nas sociedades polinésias, uma
vez que vamos encontrar este tipo de estrutura nas etnografias sobre grupos xinguanos
discutidas a seguir:
O clã cônico é um grupo de descendência comum extensivo,
hierarquizado e segmentado ao longo da linha genealógica [cognática], com
tendência ideológica à patrilinearidade5. (...) São feitas distinções entre os
membros do grupo de acordo com a distância genealógica com relação a um
ancestral.(...) uma regra de primogenitura está implícita: o filho mais velho
deverá suceder à autoridade de seu pai. Uma segunda implicação é que
qualquer grupo de descendentes de um ancestral comum será dividido em
um ramo superior (linha principal) e ramos inferiores (linhas caçulas).
Assim a chefatura, enquanto sistema político, estaria baseada no clã enquanto
unidade de descendência hierarquizada. A produção cotidiana seria ainda levada a cabo
pelas residências e aldeias, mas a chefia tornaria possível o recrutamento de maior
contingente para a execução de grandes obras públicas. A chefatura seria também
caracterizada pela especialização produtiva dentro de uma mesma “organização cultural”,
enquanto a troca entre tribos segmentares se daria entre culturas diferentes.
5 O texto da tradução brasileira foi ligeiramente modificado por mim para facilitar o entendimento. A frase
original em português era: ... segmentado ao longo das linhas genealógica e patrilinear em uma tendência
ideológica”.
De acordo com sua resposta adaptativa ao ambiente, os povos amazônicos são
classificados por Sahlins, ao lado de outras “culturas da floresta no Congo e Oceania”,
como povos tribais. O autor interpreta a coivara, agricultura de queimada, como limitador
da produção que, embora permitindo a sedentarização parcial, requer área cultivada muito
grande, obrigando os grupos a manterem-se pequenos e dispersos. Com a consideração
deste aspecto, que denomina “efeito centrífugo” da coivara, Sahlins pretende explicar o
“atraso político” destes povos. Em termos de estrutura social, essas sociedades seriam
organizadas em “grupos de descendência local cognáticos”, sem ênfase na linha e sem
hierarquia. O autor chama atenção para o fato, contrariamente ao que se costumava pensar,
de não funcionar este sistema de parentesco como princípio de recrutamento para grupos
corporados. Ao contrário, o parentesco dos “povos da floresta” seria caracterizado pela
possibilidade de escolha e pela formação de grupos através da combinação dos princípios
de residência e descendência. Se a residência patrilinear, nota Sahlins, pode ser mais efetiva
que a linhagem na constituição de grupos, a descendência seria principalmente uma forma
de estabelecer alinhamentos políticos – uma linguagem.
Notemos que esta imagem das sociedades sul-americanas converge com a imagem
traçada por Clastres (1980) em aspectos importantes e, em relação à antropologia xinguana,
converge parcialmente com a etnografia de uma das principais pesquisadoras da região,
Ellen Basso (1969). Em primeiro lugar, a imagem de sociedades atomísticas em Sahlins,
assim como em Clastres, é associada a um estado de guerra (Clastres diz, “ser-para-a-
guerra”) diferenciado do Estado no que este se define pelo monopólio da força - monopólio
considerado por Sahlins necessário para a ordenação de uma sociedade grande e
internamente dividida. Isso explicaria a influência do modelo estrutural-funcionalista, cujo
foco recai sempre sobre os mecanismos de equilíbrio social e reprodução do grupo:
“...quanto mais a guerra está implícita, tanto mais fazer a paz torna-se uma necessidade
explícita...” (Sahlins, 1968: 19).
A percepção do conflito e da instabilidade dos grupos sociais também está presente
na etnografia de Basso sobre os Kalapalo (1969), editada logo após Sociedades Tribais. Em
Basso, esta instabilidade é associada a ambigüidades no princípio de organização de grupos
e, principalmente, na formação de linhagens de transmissão de status. Basso refere-se à
mesma flexibilidade e possibilidade de escolhas estratégicas descritas por Sahlins em
relação ao sistema de parentesco cognático. Muitas vezes alianças “de conveniência” são
“encobertas” pelo parentesco, diz Sahlins (1968). Confirmando o caráter “ficcional” do
regime de classificação de parentes, o autor ressalta a designação de certas associações
como “fraternidades” e o uso do mesmo termo para designar “viver como parentes” e
“fazer a paz”. Nas palavras do autor: “Não importa quão remotos, genealogicamente, os
parentes não precisam ser considerados distantes, nem de fato ser tidos como remotos na
classe de parentesco” (idem: 24).
Sahlins apresenta, no estudo de 1968, uma distinção que desenvolvera
anteriormente (1963) entre chefete (tradução brasileira para petty chief), homem com
autoridade oficial, mesmo que mínima, e líder, sem autoridade oficial, homem que não
alcança uma posição de destaque, mas adquire destaque nas suas ações. Chefetes e líderes
seriam, segundo o autor, tipos encontrados às vezes na mesma tribo. No artigo de 1963,
contudo, Sahlins explora o contraste entre o der Melanésio (big man) e o chefe Polinésio
(chief) em termos de “tipos ideais” que indicam, senão etapas evolutivas, os limites de
expansão de um sistema político. O chefe havaiano, de qualificação herdada, possuiria
grande capacidade de mobilizar trabalhos coletivos, armazenar fundos para investimentos
sociais e sustentar sua máquina burocrática. Com o crescimento da estrutura
governamental, ocorreria um desequilíbrio entre os bens convertidos para sua manutenção e
aqueles redistribuídos para a população, resultando no irrompimento de revoltas políticas e
na instauração de um ciclo de centralização e fissão das chefaturas, neste sentido
semelhante à estrutura instável gumsa descrita por Leach (1954). O chefe melanésio, por
sua vez, ascenderia a uma posição privilegiada através do apoio de uma facção. Tomando
partido das obrigações de reciprocidade tecidas na rede de parentesco, vale-se do trabalho
de seu grupo restrito para patrocinar rituais e outras atividades de interesse do grupo mais
amplo e opor-se a líderes rivais. Mas a natureza pessoal das relações que fundamentam este
poder constitui seu próprio limite: obrigado a explorar o trabalho da facção em favor da
população, o chefe Melanésio pode perder facilmente o apoio daqueles que o sustentam. A
importância de tal distinção deve ficar clara no decorrer desta dissertação, pois veremos que
a divergência das etnografias em relação à política xinguana se basicamente em torno de
descrições que associam (explicitamente) o chefe xinguano ao chefe polinésio e outras que
apresentam (sem necessariamente fazer menção direta) o chefe como um líder melanésio,
um big man.
1.2.4 Transformações do problema da origem do Estado: marxismo e ecologia cultural
Um dos principais expoentes do neo-evolucionismo, Elman Service distingue, na
introdução à coletânea de artigos que edita em conjunto com Ronald Cohen (1978), duas
linhas teóricas da antropologia evolucionista em relação à política. De um lado, estariam o
que o autor chama de teorias integrativas, que enfatizam o acordo social em torno da
necessidade de centralização política para garantir o acesso aos meios de subsistência e à
justiça. A estratificação social seria conseqüência da formação de um corpo especializado
na função estatal (hipótese do próprio Service). Do outro lado estariam as teorias que
identificam um conflito resultante da estratificação social precedente à centralização
política, tendo esta a função de neutralizar as forças desagregadoras (tese de Morton Fried,
na mesma coletânea). O marxismo é visto como vertente desta última tese.
Em relação à teoria marxista clássica, formulada como explicação para a sociedade
de classes, sua aplicação ao estudo das sociedades primitivas mostra uma tentativa de
relativizar a noção de infra-estrutura para livrá-la de seu conteúdo excessivamente
“materialista”. No entanto, o que se faz é complexificar a análise dos meios pelos quais a
“base material”, isto é, a produção alimentar, determina e é determinada pela “estrutura
social”, ou instituições como o casamento e a vida ritual.
Vimos que Leach analisa o sistema gumsa da Alta Birmânia em termos do choque
de estruturas políticas distintas gerando um sistema político intrinsecamente oscilante entre
igualitarismo e hierarquia. Jonathan Friedman (1975), em artigo publicado numa coletânea
editada por Maurice Bloch sobre a influência do marxismo na antropologia social, retoma
os dados de Leach e analisa a mudança do esquema igualitário à centralização hierárquica
como evolução linear de um único sistema político. Ele a possibilidade de distinção
hierárquica progressiva contida em germe no sistema gumlao. Ela resultaria da
combinação, interna ao sistema, da troca matrimonial generalizada – em que ocorre a
diferenciação relativa de status entre linhagens doadoras e linhagens tomadoras de
mulheres – com a hierarquia dos espíritos celestes reproduzida como hierarquia entre
linhagens. À medida que estas são classificadas em termos de grupos de descendência de
irmãos mais novos ou mais velhos, a distinção relativa da aliança matrimonial tende a ser
substituída por uma distinção absoluta e fixa de status, expressa em termos da relação
preferencial de uma linhagem com o espírito ancestral mais importante (configurando o que
alguns autores chamam de clã cônico, cf. supra). Essa hierarquia estaria em última análise
baseada na produção material e tenderia ao acúmulo de status pelo chefe da linhagem
superior, segundo a seguinte lógica: a terra cultivada da aldeia pertence ao fundador
ancestral, do qual o chefe político estaria genealogicamente mais próximo que os demais
aldeões; o chefe é mais rico porque coleta impostos, é beneficiário do trabalho de escravos
e recebe um alto valor em pagamento pelas filhas dadas em matrimônio; sua opulência é
associada à ligação privilegiada com o mundo sobrenatural, de modo que fica confirmada
sua genealogia e justificada sua atuação ritual, política e econômica. Os limites desse
sistema seriam igualmente materiais: uma combinação de expansão demográfica e
limitação territorial levaria ao uso abusivo das terras e à degradação ambiental. A resultante
queda na produção entraria em contradição com o crescente status do chefe, acompanhado
da inflação dos impostos e do preço da noiva. Daí a explosão de revoltas, tendo como
conseqüência direta a desvalorização do status de chefe e a deflação geral. E aqui entra
efetivamente a novidade da interpretação: a nova ordem econômica estabelecida
possibilitaria uma reconstituição ambiental, permitindo assim o restabelecimento das
condições necessárias à “evolução” política. Quer dizer, o retorno ao igualitarismo, em
condições adequadas, funcionaria na verdade como um mecanismo de reajuste do sistema
hierárquico e centralizador gumsa, que prosseguiria então em direção à formação de um
Estado. O que a Leach aparecia como oscilação estrutural a Friedman se revela como micro
involuções num movimento macro-histórico de transformação unidirecional.
A interpretação de Friedman exemplifica bem a importância da ecologia em certas
correntes da teoria antropológica na segunda metade do século. Leach relaciona os modelos
políticos a ecossistemas e técnicas agrícolas, mas o coração da sua análise está na
descoberta de uma incompatibilidade entre sistemas sociais distintos. Aliás, aquilo que
Leach chama de ecossistemas distintos será tratado por Friedman como oposição entre
ecossistemas intactos e ecossistemas degradados, o que baseia sua reinterpretação da
relação observada por Leach entre solo pobre para a agricultura e sistemas
autodenominados gumlao. Vimos também que no resumo evolucionista de Sahlins (1968),
os grupos da floresta são classificados, em função do meio ambiente e da sua possibilidade
produtiva relativa a este, tribos menos “complexas” que as chefaturas havaianas, por
exemplo. De fato, o pensamento evolucionista posterior à crítica estrutural-funcionalista vai
se fundar fortemente na imagem da sociedade com um reflexo adaptativo ao meio
ambiente. No que se refere à América do Sul, autores ligados à ecologia cultural norte-
americana o se debruçar fundamentalmente sobre uma questão: porque os habitantes das
terras baixas não criaram sistemas políticos tão desenvolvidos quanto os dos povos
andinos?
Via de regra, altas taxas demográficas e disputa pelos meios de produção
constituirão o principal argumento das teorias evolucionistas que apresentam a
centralização política como solução para uma crise sócio-ambiental. Um dos defensores
mais influentes desta tese é Robert Carneiro (1978. cf Earle, 1991). Carneiro alega que o
crescimento populacional decorrente da revolução tecnológica neolítica teria sido o
detonador de um processo gradativo de centralização política. Em lugares onde a acesso a
terras férteis fosse limitado (condição ambiental característica de regiões secas como o
Oriente Médio, por exemplo), grupos subjugados na disputa por terras acabariam
incorporados pelo grupo vencedor, de modo que uma relação hierárquica se estabelecesse
entre eles, então constituintes de uma nova e mais
centralização política e, mais especificamente, de hierarquia regional nas terras baixas
sul-americanas fica explicada pela abundância de terras férteis: ali, unidades políticas em
conflito teriam espaço suficiente para manter sua autonomia.
No que diz respeito à América do Sul, talvez a tese mais pregnante do ecologismo
cultural, defendida principalmente pela arqueóloga Betty Meggers, tenha sido uma que
parte de suposição contrária à de Carneiro sobre o solo amazônico; é a pobreza dessas
terras, e não sua fertilidade, que responderia pelo “atraso” político dos índios das terras
baixas, já que a impossibilidade de produzir alimentos em grande escala impediria a
constituição de grupos amplos o suficiente para a constituição de uma unidade social
hierarquicamente dividida. Subentende-se que este desenvolvimento seria a evolução
normal de qualquer sistema político (Meggers, 1995).
A geração subseqüente empenhou-se em retomar e matizar teorias como a de
Carneiro, Fried, Service e Sahlins. Em linhas gerais, todos essas teorias vêem no Estado a
solução para a escassez de terras/bens materiais. A discussão na década de 1990, ao
contrário, parte de uma crítica ao determinismo ambiental e demográfico para apontar
múltiplos fatores que, por diferentes rotas, levariam “à complexidade” teoria do
“evolucionismo multilinear” (Earle, 1997:13). Pesquisas arqueológicas combinadas a
material etnográfico fundamentam teorias que procuram identificar nas chefaturas
havaianas e centro-americanas as condições de aumento do controle econômico, militar e
ideológico. Na prática, e no trabalho de Earle isto é explícito, a base produtiva não perde
seu posto; sob o controle militar e ideológico que asseguram a posição diferenciada de um
chefe, está o poder econômico que sustenta a concentração crescente do poder.
Na década de 1980, as pesquisas da arqueóloga Anna Roosevelt, identificando nas
terras baixas vestígios de sociedades de grande escala, representam um golpe na teoria da
pobreza ambiental amazônica. Ainda que Carneiro (1995) alegue ter contestado os estudos
de muito antes de Roosevelt, a divulgação das pesquisas desta autora parece ter sido mais
impactante em termos de história da disciplina. Esta virada abriu caminho para a teoria de
Michael Heckenberger, discutida no próximo capítulo, sobre a complexidade parcialmente
perdida da sociedade xinguana pré-colonial, a qual vai ser aproximada morfologicamente
da chefatura polinésia. Assim, a descoberta de que o ambiente amazônico não é um
limitador fundamental da centralização política conduz à imagem oposta a de um sistema
político que se desenvolvia em direção à centralização do poder e à constituição de
unidades políticas amplas, hierarquicamente relacionadas. Note-se que, por ser o negativo
da anterior, esta imagem parece de alguma ainda vinculada à problemática do determinismo
ambiental. Ao mesmo tempo, adotando a perspectiva menos materialista defendida pelo
evolucionismo multilinear, Heckenberger sustenta a existência de uma competição por bens
de prestígio - uma economia simbólica - e não por bens materiais.
1.2.5 Clastres contra o determinismo ambiental e contra o Estado
Valendo-se da descoberta, por Sahlins, de que nas chamadas economias de
subsistência indígenas a capacidade produtiva era muito maior do que o necessário, e
portanto a ausência de excedente não seria efeito de limitações tecnológicas, Pierre Clastres
procura uma maneira de evitar o determinismo ambiental e referir as formas de organização
social a si mesmas, como sistemas ideológicos e não meramente adaptativos (Clastres,
1974). Antes de entrar no modelo clastreano propria
de Leach anteciparia de certo modo o tipo de abordagem adotado por Clastres para
desenvolver o modelo da sociedade primitiva, ou “contra o Estado” (ainda que Leach
admita uma estrutura oscilante entre centralização e dispersão do poder, enquanto Clastres
defende a existência de dois sistemas regidos por lógicas diversas, uma de conservação e
igualitarismo, outra de mudança e hierarquia, como veremos melhor a seguir).
Clastres dialoga diretamente com as teorias evolucionistas ao tomar a ausência de
Estado em certas sociedades como produto de um esforço histórico tão grande quanto o
demandado pela presença do Estado em outras. Ao invés de se perguntar que
condições/ações propiciariam o acúmulo e a manutenção do poder, indaga sobre as
condições/ações que permitiriam a não-acumulação do poder. O Estado está no horizonte
de ambos como destino (quase) inexorável. Para os evolucionistas, como objetivo a ser
alcançado, como solução para um cenário de disputa sócio-econômica; para Clastres, o
poder se parece com algo como uma compulsão anti-social universal, a ser combatida. Ele
descreve o chefe primitivo não como homem de poder, mas como homem de prestígio, cuja
palavra não tem força de lei, mas força de convencimento, objeto de crítica social e por isso
instável segundo o modelo do titular chief, de Lowie (1948. apud Descola, 1988: 820) e
comparável ao líder ou big-man melanésio, de Sahlins (1963; 1968). É fundamental para a
teoria clastreana o postulado da descontinuidade radical entre esta figura e o “chefe de
Estado” (1974: 223). Seria impossível pensar numa gradação entre um e outro, afirma
Clastres, pois o chefe primitivo representa a negação do poder, ou o poder da sociedade
contra o Estado.
A teoria de Clastres propõe um “ser da sociedade primitiva” como unidade
autônoma igualitária e conservadora, isto é, voltada para a reprodução simultânea da sua
homogeneidade interna e sua identidade diferenciada em relação ao exterior (1980). A
negação do Estado seria estrutural nos dois sentidos. Por um lado, significaria a negação de
qualquer divisão interna entre comandantes e comandados, negação da constituição de
hierarquia anterior ou posterior à instauração do lugar diferencial de poder. Se este lugar
existe nas sociedades primitivas, diz Clastres, é para afirmar exatamente a ausência de
poder de quem o ocupa, como que para lembrar da existência de algo a ser combatido
(1974:63). Por outro lado, o Estado como resultado da agregação de unidades políticas
inicialmente autônomas (c.f.Carneiro, 1978) também é negado. A unidade política primitiva
é anti-estatal não só por ser contra-hierárquica, mas também por ser movida por uma
“lógica do centrípeto”: tendência à dispersão das unidades no espaço, das pessoas em
unidades autônomas de tamanho controlado, e do poder dentro de cada unidade política.
Eis a sociedade primitiva segundo Pierre Clastres: sociedade movida para a guerra e
para a fissão em vista de uma manutencão da própria autonomia, afirmando-se em oposição
a outras comunidades autônomas, ao mesmo tempo em que a troca restrita interna à
comunidade local instaura a indivisibilidade (igualdade entre as partes) daquela unidade
política. Sociedade que tem a guerra como condição de permanência; não como o seu
contrário (a troca mal-sucedida, cf. Lévi-Strauss); nem tampouco, o que nos interessa em
particular, como necessidade ambientalmente determinada, como afirma Carneiro. De certa
maneira, Clastres e Carneiro concordam quanto à imagem da sociedade primitiva
primordialmente caracterizada pela fissão social e guiada pela busca de autonomia. Mas,
para Carneiro, os povos amazônicos não fazem guerra porque têm terras em abundância; se
a fizessem, seria por necessidade econômica. Para Clastres, o ser-para-a-guerra das
sociedades primitivas é o fato etnográfico necessário e irredutível; elas fazem guerra para
permanecerem iguais, não por contingência ambiental.
Críticas recentes a esta teoria sugerem que a idéia paradoxal de um chefe sem poder
é um engano etnográfico, como se Clastres tivesse sistematicamente procurado o poder no
lugar errado (Santos-Granero, 1986, 1993; Descola,1988). Questionando a associação feita
por Clastres entre poder e coerção, alguns autores apontam o poder do xamã (que detém os
“meios místicos de reprodução social” e controla a produção econômica, nas palavras de
Santos-Granero) como o verdadeiro poder político (mas não-coercitivo), enquanto o chefe-
sem-poder seria apenas uma ficção antropológica criada para dar conta de papéis sociais
diversos. A partir dessa crítica, a fissura clastreana entre sociedades com Estado e
sociedades sem Estado perde sentido: o xamã poderoso descrito por Descola e Santos-
Granero está em continuidade com o chefe “de Estado” na medida em que seu poder não é,
por princípio, controlado pelo grupo. Um comentário de Philippe Erickson (1988) à tese de
Santos-Granero nos ajuda a pensar o problema do poder na figura do xamã ou chefe com
poderes sobrenaturais: Erickson lembra que mesmo o controle místico não é tido como
legítimo senão sob a confirmação da sua efetividade. Ora, o material xinguano citado no
artigo de Descola (Dole, 1973, apud Descola, 1988:824) revela mais do que o autor faz
parecer. Mostra não apenas o papel “político” do xamã, isto é, a participação do xamanismo
no jogo político, mas também a influência de aspectos da vida política estranhos ao
xamanismo na atividade xamânica. Em outras palavras, se o xamã pode ser mais poderoso,
em termos do controle social alcançado em seus diagnósticos, do que um chefe, a atividade
do xamã também está sujeita a avaliações guiadas por interesses particulares de grupos e
pessoas em torno do poder. De modo que o deslocamento da questão da poder político do
chefe para o especialista ritual não parece resolver o problema.
Capítulo 2
Imagens da centralização
A aparente flexibilidade da política xinguana surpreendeu os etnógrafos da área
desde von den Steinen, o primeiro viajante a relatar sua estada entre os habitantes das
cabeceiras do Xingu. Steinen nota, por exemplo, que a transmissão hereditária do posto de
chefe muitas vezes se em desacordo com o ideal nativo, e que o poder do chefe sobre
sua comunidade é bastante reduzido; esta pode simplesmente abandonar o líder caso esteja
descontente (von den Steinen, 1894: 426). Depois dele, muitos outros etnógrafos notaram
uma contradição entre teoria e prática nativas no domínio político: não-chefes que se
tornaram líderes em lugar dos herdeiros legítimos, chefes que não cumprem as funções
esperadas de um homem nesta posição (como o discurso matinal), chefes acusados de
praticar feitiçaria (cf., por exemplo, Coelho de Souza, 2000; Murphy & Quain, 1955). Buell
Quain, em notas sobre sua visita aos Trumai em 1938, relata um fato que lhe parece
significativo: quando as mulheres da aldeia recusam-se a prestar um serviço ao etnógrafo, o
chefe é obrigado a fazê-lo sozinho, o que atesta sua total falta de autoridade. Quain
acreditava que em outros grupos xinguanos, como os Kamayurá, haveria chefes com maior
domínio sobre suas comunidades, e sugere que o desprestígio do chefe Trumai resultava da
grande perda populacional sofrida pelo grupo nas primeiras décadas do século XX. Esta
hipótese é exemplar de um modo de análise das “incongruências” ou “inconsistências” da
política xinguana que ganhou força com o avanço da arqueologia na área - referimo-nos
especificamente aos trabalhos recentes de Michael Heckenberger (2000, 2005). Neles,
interpreta-se o jogo político “flexível” registrado nas etnografias como sombra apagada de
um sistema outrora mais nítido, no qual o chefe teria muito maior autoridade de fato. Neste
capítulo, pretendo discutir as análises que projetam esta imagem da política xinguana, a
saber, a imagem de uma sociedade onde o poder político é efetivo e se concentra na mão de
um grupo restrito de pessoas, e vou tentar expor os alinhamentos teóricos que fundamentam
tais análises. Veremos que os dados de Quain, por exemplo, correriam o risco de ser
descartados sob a alegação da anexação recente dos Trumai ao conjunto xinguano, quer
dizer, sob a “acusação” de serem os Trumai pouco xinguanos demais para servir de ponto
de partida para uma análise do sistema regional.
Se parecem incondizentes com o discurso nativo, as acirradas disputas pelo poder
observadas no Alto Xingu estão de acordo com a imagem, forjada no contraste com as
grandes sociedades andinas e centro-americanas, dos grupos da floresta como pequenas
unidades autônomas. Duas correntes teóricas sustentaram essa imagem. Por um lado, os
chamados ecologistas culturais norte-americanos, do qual consideraremos a arqueóloga
Betty Meggers como principal expoente para o caso amazônico, postulavam a limitação
ambiental (isto é, uma limitação extrínseca de tipo material) como impedimento para o
desenvolvimento social, leia-se, o desenvolvimento de unidades políticas grandes e
hierarquicamente organizadas. De outro lado, questionando a tese materialista de Meggers,
Pierre Clastres defende a existência de um dispositivo contra-hierárquico imanente à
socialidade indígena, (isto é, uma limitação intrínseca de tipo político-cultural) definidor do
que ele chama de “sociedade primitiva”: uma sociedade contra o Estado. Apostando nas
descrições nativas sobre o sistema político xinguano, os etnógrafos que defendem a
existência de uma divisão social fortemente marcada e de uma chefia efetiva, no passado ou
no presente, deverão confrontar as duas teses acima. Vejamos como isso se dá, a começar
pelo problema das limitações ecológicas.
2.1 Fundamento ecológico
A teoria proposta na década de 1950 pela arqueóloga Betty Meggers para explicar
por que as sociedades das terras baixas sul-americanas não teriam evoluído como as
sociedades meso-americanas representou um duplo compromisso com a imagem corrente
das sociedades da floresta (tribos, na tipologia evolucionista revista em Sahlins, 1968) e
com a necessidade de explicar evidências arqueológicas da existência de grandes
organizações cio-políticas nas regiões de Marajó e Santarém, entre outras áreas
amazônicas, no período pré-colonial. Para dar conta do caso marajoara, especificamente,
Meggers lançou a hipótese de que esta sociedade descenderia de povos andinos deslocados
para a floresta, que teriam se extinguido como cultura (se não como população) sob as
condições limitadas de sobrevivência em território amazônico (c.f. Roosevelt, 1987).
Em 1970, a tese da influência andina sobre a cultura marajoara é questionada por
Donald Lathrap, que sugere ter havido um movimento migratório inverso da floresta em
direção aos Andes em conseqüência da disputa por terras cultiváveis. Lathrap considera,
assim como Meggers, que a infertilidade do solo seria o aspecto mais marcante da história
dos povos amazônicos, mas o autor sustenta que a limitação ecológica não teria impedido
sua evolução tendo, pelo contrário, impulsionado estes povos à expansão dominadora.
Lathrap propõe haver, em termos de possibilidades adaptativas, uma distinção relevante
entre os solos da várzea e da terra firme. A partir de relatos sobre grandes populações na
bacia do Amazonas nos primeiros séculos da colonização, o autor sustenta que o habitat da
várzea teria sido a origem da cultura da floresta, isto é, um lo de evolução cultural de
onde, com o aumento populacional associado ao desenvolvimento tecnológico, teriam
partido levas de emigrantes em busca de novas terras. Logo após a edição de O Alto
Amazonas, de Lathrap (1970), Meggers lança Amazônia, ilusão de um paraíso (1971), onde
argumenta que, apesar da alta fertilidade do solo da várzea, a variabilidade do regime de
cheia do Amazonas tornaria imprevisível a produtividade agrícola nestas regiões, de modo
que o crescimento populacional seria também limitado neste ambiente, como o era na terra
firme, ainda que o limite populacional da várzea fosse maior.
Seguindo os passos de Lathrap, na década de 1980 a arqueóloga Anna Roosevelt
volta ao “problema” das grandes sociedades amazônicas procurando explicar sua existência
a partir do desenvolvimento in loco de formas de subsistência capazes de sustentar grandes
populações e, logo, chefaturas, organizações sócio-políticas “complexas”, isto é,
hierarquizadas e com poder centralizado. A autora sugere ainda que a economia baseada na
agricultura de queimada e na caça ou pesca, comum aos povos das terras baixas no
presente, seria o retorno, decorrente da depopulação no período colonial, a um modo de
vida arcaico, que teria existido na Amazônia antes do desenvolvimento da economia
intensiva das chefaturas tais como a marajoara e tapajônica. (Roosevelt, 1987: 159).
Roosevelt argumentava inicialmente, a partir do estudo de uma sociedade do médio
Orinoco, que a introdução do cultivo do milho teria proporcionado condições nutricionais
para um salto demográfico. Ao comentar esta teoria, Robert Carneiro (1995) nota que ela só
seria pertinente à medida que a quantidade de proteína disponível para as sociedades
ribeirinhas antes da introdução do milho fosse insuficiente. Notando que a própria
Roosevelt, ao mudar seu campo de pesquisa para o Amazonas, não retoma a tese do milho
como condição tecno-ambiental para o desenvolvimento de chefaturas nas terras baixas,
Carneiro aponta como condicionante ecológico do crescimento populacional a presença de
pesca abundante nos grandes rios.
Em suma, enquanto Meggers via tanto na várzea quanto na terra firme ambientes
incapazes de fornecer nutrientes para o desenvolvimento de sociedades de larga escala,
Roosevelt e Carneiro afirmam a existência de áreas ecológicas mais ricas onde teriam
florescido culturas superiores à dos povos pouco sedentarizados, autônomos e socialmente
homogêneos representados na imagem mais comum das sociedades da floresta. Roosevelt
procura no solo a possibilidade de se desenvolver uma dieta suficientemente rica em
proteínas para permitir um aumento da população, o que a leva a circunscrever as áreas
com condições ambientais favoráveis às terras férteis da várzea. Carneiro discorda da tese
de Roosevelt em três aspectos: primeiro, alega que na chamada terra firme é possível
cultivar mandioca e milho em quantidade suficiente para sustentar unidades locais de até
duas mil pessoas; segundo, questiona, como Meggers, a própria produtividade das terras da
várzea, já que a cheia dos rios seria variável demais para garantir constância nas plantações;
e terceiro, afirma ser não o milho, mas a proteína animal o condicionante crítico do
crescimento demográfico. O que possibilita a sedentarização de um povo e a constituição
de grandes grupos locais, afirma Carneiro, é a presença abundante de proteína animal, o
que de fato só pode ser conseguido quando a dieta se baseia mais na pesca que na caça, pois
esta última torna-se inevitavelmente escassa com o tempo, enquanto a quantidade de peixes
nos grandes rios é ilimitada (Carneiro, 1995).
Desvinculando a alta produtividade de alimentos da área da várzea, ao sugerir que a
fertilidade do solo importa menos que a proximidade de grandes rios provedores de pesca,
Carneiro abre caminho para a busca de chefaturas em regiões antes consideradas
limitadoras. Para nós interessa especialmente que essa tese tenha sido elaborada a partir de
pesquisa entre os Kuikuro, que, plantando na terra firme e pescando nos formadores do
Xingu, estariam em um ambiente favorável ao desenvolvimento da sua atual complexidade
social e, talvez até, de unidades locais ainda maiores, organizadas regionalmente sob a
liderança de um chefe político único, e com estratificação social mais marcada. Em suma,
Carneiro vislumbra um Alto Xingu, no passado, como mais plenamente xinguano, no
sentido de mais desenvolvido naquilo que ele identificava nos Kuikuro do tempo da sua
pesquisa - hierarquia social, poder centralizado, integração regional pacífica - e o situa, nos
termos das tipologias evolucionistas da época, como chefatura, estágio intermediário entre
a tribo - organização sedentária e agrícola, como a chefatura, mas composta de aldeias
politicamente autônomas (sem chefia supralocal) e com pouca ou nenhuma estratificacão
social - e a sociedades estatais.
A tese de que uma perda quantitativa (demográfica) estaria associada a uma perda
qualitativa da organização social (involução) defendida por Carneiro para os grupos do Alto
Xingu, encontra certo eco em uma hipótese sugerida pelos irmãos Claudio e Orlando Villas
Boas (1970) em relação à presença de extensas "valetas" em torno de aldeias abandonadas.
Segundo os Villas Boas, as valetas deveriam ter sido usadas como abrigo contra o frio e
denotavam a presença muito antiga de grupos na região (a antiguidade era sugerida pelo
fato de que apenas em uma condição climática significativamente diferente da atual este
tipo de abrigo seria necessário).
As mesmas valetas que suscitaram essa interpretação tão pouco ortodoxa dos irmãos
Villas-Boas constituem um dos principais elementos da pesquisa arqueológica que levou
Michael Heckenberger a caracterizar o sistema político xinguano como chefatura
(chiefdom), algo que Carneiro parecia mais reticente em fazer - ou preferia fazer evocando
um passado hipotético, enquanto Heckenberger aposta numa continuidade essencial entre
passado e presente.
2.2 Fundamento cultural: a tese de Schmidt
Ao mesmo tempo em que segue a agenda de Carneiro, procurando os signos da
centralização do poder, da operação de hierarquia social e da integração regional pacífica
nos povoamentos passados e presentes xinguanos, Heckenberger pretende evitar uma
argumentação puramente materialista. Como vimos, as teses de Meggers, Roosevelt e
Carneiro se apóiam numa cadeia causal que relaciona base alimentar, crescimento
populacional e formação de organizações políticas complexas, isto é, com crescente
diferenciação social em classes e centralização do poder, além da constituição de unidades
regionais também expansivas. Lembremos que Carneiro (1978), em um artigo clássico
sobre o surgimento do Estado, enfatizava o papel da competição e da guerra por recursos
materiais na formação de estruturas políticas regionais centralizadoras; de fato, a afirmação
de que no território amazônico seria inexistente tal competição devido à ausência de
“circunscrição”, i.e. de limites ecológicos claros e territorialmente restritos, de forma que a
migração para terras férteis na vizinhança seria nas uma solução possível para o conflito
político ou a escassez alimentar, permitiu-o então explicar a existência de pequenos grupos
autônomos na região. No artigo de 1995, Carneiro mantém a tese de que a guerra seria o
principal motor da centralização política associada à estratificação social, utilizando-a
agora para explicar a concentração do poder em certas sociedades amazônicas (e não a
ausência de centralização). Em outras palavras, se por um lado afirma a existência de
condições ambientais favoráveis ao crescimento populacional na terra firme Carneiro supõe
haver uma relativa escassez de recursos naturais impulsionando o processo de concentração
do poder e a constituição de unidades sociais expansionistas.
Informado por uma corrente da antropologia mais “mentalista”6, ou seja, mais
voltada para os fatores internos de desenvolvimento das culturas como o seriam as visões
de mundo, as cosmologias ou como se queira chamar -, Heckenberger dissocia condições
ambientais e disputa pelo poder no contexto xinguano. O bem escasso em disputa são os
distintivos simbólicos de poder dentro de uma estrutura social que é, de saída,
hierárquica, independentemente das condições ambientais. Em outras palavras,
Heckenberger sustenta a tese de que o ambiente alto-xinguano é capaz de sustentar
estruturas sócio-políticas de larga escala, e sugere que estas de fato teriam existido no
passado; propõe que essas estruturas em larga escala seriam, provavelmente, fortemente
marcadas pela hierarquia e concentração do poder; e que esta centralização e hierarquia
derivariam não (ou não somente) da disputa por recursos materiais escassos, mas seriam
características de uma base cultural anterior à fixação dos povos neste ambiente. Esta
última tese é largamente fundamentada nos escritos de Max Schmidt sobre os povos
Aruaque.
Schimidt (1913) entende que a difusão de povos falantes de línguas Aruaque
carregou consigo uma matriz cultural comum, que, com a migração desses povos,
combinou-se a outras bases culturais formando híbridos culturais e linguísticos. O traço
fundamental dessa matriz cultural (e motor principal da sua dispersão no continente) seria a
economia de base agrícola e sedentária. Este regime econômico teria conduzido os povos
Aruaque à expansão por três motivos: busca de terras férteis para o cultivo; busca de mão-
de-obra subordinada para realizar os trabalhos de caça, pesca e procura de lenha, trabalhos
gradativamente mais pesados à medida que o ambiente próximo ao assentamento era
6 O vocábulo pertence às discussões teóricas travadas no ambiente intelectual norte-americano, nas décadas
de 1970 e 1980, entre “mentalistas” e “materialistas”.
degradado pela ocupação; e necessidade de estabelecimento de redes de troca para obtenção
de utensílios como as pedras próprias para a confecção de machados e a cana de flecha,
recursos naturalmente escassos nas terras favoráveis à agricultura. Schmidt acreditava que a
expansão dos povos Aruaque teria se dado em levas sucessivas de grupos avançando em
busca de povos "inferiores" a serem submetidos economicamente, num processo que
lembra o modelo do nascimento da hierarquia elaborado por Carneiro muito depois: a
divisão da sociedade em classes é na verdade um produto da incorporação de povos
dominados. Essa incorporação se daria de maneira pacífica, através de alianças de
casamento e do controle econômico, ou belicosa, com o rapto de mulheres e crianças
(Schmidt, 1913). Esta imagem de uma matriz Aruaque expansionista, incorporativa,
colonizadora e hierarquizadora traçada por Schmidt perdura em Heckenberger, ainda que
ligada a novas teses sobre as causas da "diáspora"7.
É importante ressaltar que parte dessas conclusões é tirada do estudo comparativo
de duas áreas consideradas por Schmidt de "influência Aruaque", isto é, marcadas pelo que
o autor chama de "colonização" Aruaque, onde povos falantes de línguas distintas teriam
sofrido um processo de "aruaquização": o Alto Xingu e o Rio Negro. As pesquisas
arqueológicas de Heckenberger no Alto Xingu apoiam-se fundamentalmente na mesma
tese. Segundo este pesquisador, a "sociedade regional" do Alto Xingu que conhecemos hoje
é resultado de um processo de aculturação assimétrico de grupos Aruaque e Caribe que
ocupavam a área no período entre 500-880 a 1750 d.C., depois acompanhados de outros
contingentes etno-linguísticos. Os antepassados dos atuais Aruaque e Caribe xinguanos
teriam vivido separadamente, em dois agrupamentos de aldeias bastante distintos. O
7 Note-se como essa palavra é desviada de seu uso mais corrente, por exemplo a diáspora judia, significando
a dispersão de um povo devido à perseguição, exílio, invasão por potência estrangeira etc.
agrupamento a oeste, habitado pelo contingente Aruaque, era composto por aldeias
circulares, às vezes organizadas na forma "galáctica" de uma grande praça central
avizinhada por praças satélites menores, interligadas por largas estradas e circundadas por
valetas concêntricas, provavelmente defensivas; neste conjunto foram encontrados
fragmentos cerâmicos semelhantes em estilo e função à cerâmica usada no Alto Xingu hoje,
e que é especialidade técnica de um grupo Aruaque atual, os Waurá. Este tipo de formação
geopolítica teria chegado ao auge por volta de 1400. O grupamento a leste, por sua vez, era
habitado pelo contingente Caribe, e seu padrão de ocupação era caracterizado por aldeias
separadas, compostas de uma única ou de algumas poucas grandes casas circulares.
Heckenberger supõe que, como efeito indireto das entradas européias em busca de escravos
(cerca de 1600-1750), os habitantes do grupamento a leste tenham se deslocado em direção
ao oeste, passando a ocupar aldeias abandonadas pelo contingente Aruaque, também em
migração e desorganizado após grandes perdas populacionais resultantes da difusão de
epidemias. Fundidos, estes dois grupos que habitavam desde há muito a região teriam
formado a base da sociedade xinguana, mas a partir de uma “colonização” ou
“enculturação” dos Caribe pelos Aruaque. O período entre 1700 e 1800 foi de
deslocamentos e incorporação de novos grupos à base cultural xinguana: dos Yawalapití
(Aruaque) até sua localização atual, rio acima; dos Kamayurá (Tupi) também rio acima; dos
Aweti (Tupi) vindos do sul. Depois de 1800, o padrão Aruaque de aldeias fixas domina a
região. Em meados de 1800 chegam os Trumai (língua isolada), Bakairi (Caribe) e Suyá
(Gê); no século XX, Arawiné, Manitsauá e mais tarde, Ikpeng todos passando pelo
processo de xinguanização pelo qual haviam passado os primeiros Caribe e Tupi. Processo
que, na definição de Heckenberger, significa aceitar a cosmologia e o ethos proto-Aruaque
que fundamentam a cultura xinguana: “Comunidades estabelecidas vieram a aceitar
estrangeiros como parceiros iguais na cultura xinguana, e imigrantes vieram a aceitar os
padrões culturais xinguanos sobrepostos aos seus próprios” (2005:152).
Cabe aqui um comentário sobre a noção de sociedade usada por
Heckenberger para descrever o conjunto multiétnico do Alto Xingu. Ele distingue uma
“sociedade regional” de um “sistema regional” pelo critério de que a primeira dependeria
para sua reprodução material e simbólica da participação de todas as unidades constitutivas
o autor tem em mente os grandes rituais intertribais xinguanos, em que chefes mortos são
celebrados e filhos de chefes iniciados, idealmente, na presença e com a participação de
especialistas rituais de todas as aldeias da região. Além de diferenciar o Alto Xingu de
outros conjuntos multiétnicos (como o rionegrino, por exemplo), parece-me que o autor
quer enfatizar a imagem de uma unidade política integrada e, portanto, passível de ser
(mesmo que não necessariamente) hierarquicamente organizada sob um poder regional
centralizado. Ontemle daerdle qurursitco ,pmliturtet, uspsecom(i)5.39711( )-542.092(u)6.05851(dO)43coiusar4(i)5.39711()1.66258( )1.08495(r)-1.32354(i)es , ]TJ253.962 0 Td[isme-4.05851(d)-4.05851(e)1.66258(o)-4.06353( )çlp( )-18855(u)-4.05851(t)(,)3.15.943atearqc"sospalc[(p)-4.056(a)1.66258(ç)1.66258(ã)mmep d.058J695( )250]TJ.67 Tf166.021.90368(u)-4.05851(n)1.66258(i)0.2Td[(p-17.4596(c)-3.4809 -26.82 Td[(ã)4r44604(n)-4.05851-253.962 -26.82 Td[u)-4.05851vnil me-4.05851(d)-4.0851(o)-4.05851(s4r44604((c)6.8396(o)-4.084956(r)3.81866(a)1.66258(is4r44604(i)0.253657(s)-1.90243(1()-4.0585d(m)6.24471(e)1.66384 )-4r44604(7(”)-3.48087()3.81992(2)-4.05850(m)6.482061(0)1.08495(0-4.058511(0)1.0849532)-4.05850(m)6.48206(t)-4.8898(e)-4r44604(o)-4.01142(,)-2.02925( )-182.055(m)6.48206(e)1.66321(c-223.12.26)-4.05851e)-449.5154(,)3.1142( )-156.333(p)-4.05851a)-4.05851(u)662.7951(i)5.39711e)-449.5155( )-182.05(d)-4.05851(e)6.806046(e)1.66258(i)-4.8898(1(d)1.08495(u)1.08495(ç)-3.48087(ã)4r44604(6(a)-3.48087-4.05851(u)6644604(r)-1.32354( )-223.198(m)6.482060.577 0 Td[(p)-4.051(d)1.08495(r-4.05851(d)1.66298(c)6.8-.12.26)-946( )250]TJ))3.81992( )-1.32479( )-22.Td[(p)-4.05851á)-22.Td[(p)-4.0585-253.962 -26.82 Td[u)-4.05851(u)0.253657(i)0.2536526.82 Td[(ã)70.5 706(a)1.66258(g-17.4596(e)70.5 7065(c)1.66258s)-4.05851vn rai-4.05856(a)-3.4806(r)3.8186vn(p)-4.05851-26.82 Td[(“)1.66258(o)1.480604(i)1.08495 mep-4.05851(i)0.253657(e)70.5 706(e)6.80604(p)-4.061024(i)1.084956(t)5.39711(e-4.8898(.67 Tf166(O)4396321(n)(p)-4.061024(i)1.084954(p)1.08495(e)1.662354(e-1.323546i)0.253657(b-22.60316(r)3.8729)(p)-4.06102.i)-4.8898(e)70.5 706S)-3507314(n)-4.058511(i)5.39711(n)1.084957(m)6.4820( )]TJ261.105 0 Td[(d-4.0585-369.388 -26.88 Td51(1(-4.05851(e)-3.48025(c)5.397115(( )3.1142(s)3.24103 )-22.60318(-4.8898(g(m)1.3386( )-182.049(p-4.05851(o)-4.05851(s70.5 706i)0.253657(s))-3.4808(u)1.08495(a)-3.48087(i)0.1.08495(p-4.05851(i)0.253657(m)6.482060.577 0 Td[(p)-4.051(d)1.08495(r0.251145(v)-4.05851(a)-3.480873546i)0695( )250]TJi))3.81866((s)3.24103(u)-49959(c)-3.4809 -(s)-1.9024p()1.08495(p)-4.058511(e)1.66384(f)3.81866((o)1.48060(b-22.60311(t)5.3946(i)0.251145((g-17.4596)-4.05851())49959(6(r)3.81992(i)5 0 Td[(d)1-1.32354(,)3.1142( )-1.90243( )-161.4767(e)1.66258(s-1.9729)(z)43c)1.66258o)-4.05851(s)-14.05851(”)6.80604( )1.66258(l))6.482060.577 0 Td(u)-4.05851(e)6.80604(8(-4.8898(6(a)-3.48087-4.05851,)-2.02674( )-125.472([(p)-4.056(a)1.66258(ç)1.66258(ã))4.05851(e)1.66258(i)1.66258((d)-4.0258(i)0..80604(s)-1.978365(n)-4.5851(n))1.3386( ))6.8060.86)-4.058519(c)1.6625o)-4.05851(d)-4.0258(i)0.49959(o)-4.05851( )-542.092(ç)1.66258(ã))4.058518(ç)1.66258(ã))49959((c)6.80604–)-4.05851((n)-4.05851(r)-1.3247(m)6.48206(p)-4.05851(ã))49959("r)-1.761(r)]TJ270.289 0 Td[4(p)1.08495á6.88 Td51(1(-4.058516(f)3.81866(a)1.66258e)-3.48087()-1.3247"s)3.24585(o)-4.05851(s)499598(u)-4.05851(( )-130.616(c)6..6625(m)6.47955(a0.86)-946( )250]TJ5(t)-4.8898(r)-4.5851(n)-4.05851(r)-4.05851(e)1.66321(c)-3.48025õ)-4.05851(e)-395.06047(e)1.66258(s-1.958516(f)3.8186é)0.253657(m)6.48206(c)1.66258(e)-1.32479( )-22.6031e)-390.084(s)-1.90368( ))1.66258z x
pela predominância de certos chefes sobre os chefes de outras aldeias como representantes
do conjunto xinguano, em face de grupos não-xinguanos (os brasileiros, por exemplo). No
primeiro caso, tratam-se de relações dentro de uma mesma etnia, pois referem-se ao modelo
de aldeias Aruaque segundo a interpretação do material arqueológico. O segundo caso,
relativo ao presente, trata de relações inter-étnicas e é associado pelo autor à suposta
supremacia da cultura Aruaque. Na verdade, esta proto-cultura seria em si mesma
hierárquica, e por meio de um processo colonizador teria conferido padrões
organizacionais hierárquicos ao sistema resultante da incorporação de grupos étnicos
estrangeiros. Em outras palavras, Heckenberger vê uma hierarquia de origem Aruaque
operando em nível local, dentro de cada aldeia, e no nível regional, entre as aldeias de todas
as matrizes étnicas constituintes do sistema. Outra afirmação importante para a definição do
Alto Xingu como uma unidade política é a de que relações entre os grupos da região teriam
sido pacíficas desde a pré-história. Esta interpretação é referida ao sistema de estradas que
ligavam as aldeias e à proximidade entre estas, ambos os traços levando à suposição de que
o sistema de valetas observado pelos irmãos Villas Boas tinha o objetivo de proteção contra
inimigos distantes (2005:136). Hierarquia entre aldeias e interdependência econômica e
ritual num sistema de trocas em que a guerra interna está ausente parecem definir o que
Heckenberger denomina “regionalismo”.
A permanência generalizada entre os grupos da área das aldeias circulares e das
técnicas agrícolas observadas entre os ancestrais Aruaque, além da continuidade da
produção cerâmica com estilo e usos semelhantes aos do passado (cerâmica cuja produção
é hoje restrita ao grupo Aruaque Waurá, mas usada por todos os outros grupos da região)
são tomadas por Heckenberger como prova da continuidade e prevalência de um ethos
fundamentalmente igual ao descrito por Schmidt para todos os Aruaque no começo do
século XX. Grosso modo, o que Heckenberger afirma é que a "sociedade" do Alto Xingu é
um exemplar da cultura Aruaque, e que as mudanças ocorridas foram basicamente no
sentido de enfraquecimento de certas instituições. Já Schmidt apontava para o fato de que,
além do sedentarismo e da tendência de acomodação de grupos estrangeiros ao seu padrão
cultural, os povos Aruaque teriam como característica comum uma organização social
fundada em divisões hierárquicas8. Ora, o foco principal da tese de Heckenberger é a
continuidade, os modos de reprodução e os fatores de mudança da sociedade hierárquica (e
quiçá pré-estatal) do Alto Xingu antes da colonização européia.
Segundo Heckenberger, a chefia xinguana segue linhagens cognáticas que tendem a
diferenciar-se em classes sociais endogâmicas, os chefes e seus descendentes sendo
designados (na língua dos Caribe Kuikuru, junto a quem Heckenberger fez sua pesquisa)
pelo termo anetï, e os demais por camaga, do português camarada9. A constituição de
linhagens de chefes seria favorecida pela tendência de as famílias mais importantes
manterem na casa de origem seus filhos homens após o casamento, de modo que as
linhagens de chefe correspondem geralmente a casas de chefe10. Dado o pequeno tamanho
das comunidades atuais, o autor reconhece que virtualmente todo Kuikuro tem um ancestral
anetï. Os indivíduos são então classificados de acordo com a proximidade genealógica a um
8 O autor não procura explicar o fato de povos Aruaque como os Terena e Chané tenham sido subjugados por
povos não-Aruaque, referindo-se apenas à presença de formações “regionaise hierárquicas entre estes os
primeiros, sobre os quais Oberg (1949) teria desenvolvido o conceito de chefatura.
9 Heckenberger não discute especificamente a ausência de termos nativos para designar não-chefes. Uma
explicação possível para este fato aparece nas etnografias de que trataremos no próximo capítulo.
10 A manipulação da regra uxorilocal default e sua exceção para famílias poderosas parecem ser bastante
generalizadas no Brasil Central e na Amazônia. Encontra-se em estado difuso nas etnografias sobre povos
ameríndios a observação de que filhos homens de chefes ou, mais geralmente, de “grandes homens” e de
famílias/facções poderosas adotam a residência pós-marital de tipo virilocal, isto é, trazem a esposa para
morar com seus pais, ao mesmo tempo em que as filhas destas mesmas famílias adotam a residência
uxorilocal. São formados assim grupos domésticos maiores e mais produtivos que os demais da aldeia, com
filhos e genros, noras e filhas morando sob o mesmo teto e autoridade. O primeiro autor a generalizar esta
questão, tendo o caso dos Tupi-Guarani em mente (citando também os xinguanos), foi Viveiros de Castro em
sua tese sobre os Araweté (1984: 96-97 nota 9).
anetï reconhecido; ela é que determina a força de sua reivindicacão ao ofício de chefe – um
posto a ser conquistado para além da condição herdada de anetï.
O elemento fundamental para a constituição de hierarquia entre linhagens, segundo
o modelo de Heckenberger, é a superioridade das linhas de primogênitos. Filhos mais
novos teriam progressivamente menos força (em ordem de nascimento) que o filho mais
velho para reclamar para si o status dos pais. Isso resultaria numa formação de tipo “clã
cônico”, que incorpora linhagens de maior e menor status numa estrutura genealógica
unificada (2005:63-64): a aldeia é pensada como um conjunto de linhagens de germanos
hierarquicamente ordenadas. Os chefes, por serem primogênitos, seriam os indivíduos
genealogicamente mais próximos dos heróis culturais. Mulheres receberiam também o
status, sendo incapazes de assumir as posições de efetivação da chefia, mas capazes de
transmitir o status a filhos homens ou mulheres (no entanto, não fica claro o que
aconteceria no caso de uma mulher primogênita, se estar teria precedência sobre seus
irmãos mais novos no que diz respeito à geração de seus filhos) Por serem conexões do
conjunto da aldeia com o passado mítico, os anetï seriam os únicos interessados em
registrar genealogias; na verdade, a legitimidade de sua posição depende delas. Por isso são
os “donos” da história da comunidade, e representam toda a aldeia enquanto mediadores
desta com os ancestrais (2005:286).
Em suma, o pertencimento a uma linhagem de chefes seria condição necessária, mas
não suficiente, para a ascensão de um indivíduo a uma posição de liderança oficial
(2005:269). O filho do chefe é preparado para a chefia nos rituais de iniciação, ele é feito
chefe desde seu nascimento (2005:271). Note-se que o conceito do “fazer” aqui remete á
tese de Viveiros de Castro (1977) sobre os Yawalapití. Esta noção parece complicar a
imagem de uma hierarquia dada, de uma ordem imutável natural das coisas. No entanto
aqui o fazer do chefe faria parte de um processo de manutenção da hierarquia dada. Esta
hierarquia seria objetificada e reproduzida à medida que membros de linhagens de alto
status detém o acesso a bens simbólicos como conhecimentos rituais, objetos distintivos e
títulos de posse do território, da praça e dos caminhos; estes dariam, por extensão, acesso a
bens econômicos e a direitos políticos, isto é, de mobilização de pessoas. A praça circular
assume um papel central neste modelo como reflexo e promotora da assimetria social: o
acesso à praça, lugar da palavra e da ação pública, é restrito aos indivíduos de status
superior, enquanto os demais ficam confinados nos espaços politicamente passivos da
periferia. Também o posicionamento das casas importantes em pontos cardeais definidos é
visto como fixação física e simbólica da hierarquia no espaço.
Nas suas próprias palavras, Heckenberger delineia um processo de
institucionalização e fixação de uma “nascente estrutura hierárquica", o modo “pelo qual
padrões incipientes de hierarquia baseados em princípios de gênero [subordinação das
mulheres aos homens] e idade [subordinação dos mais novos aos mais velhos] e
encorporados na praça puderam ser transformados em controle real do ritual e da
ação/processo políticos por certos segmentos da sociedade [subordinação dos camaga aos
anetao]”(2005:311). Não se trataria de um processo especificamente xinguano, pois teria
precedido a formação do conjunto multiétnico que conhecemos hoje, tendo ocorrido nos
povos proto-aruaque entre 1000 e 500 A.C. (Heckenberger, 2002). Ao que parece, então,
tais princípios hierárquicos seriam incipientes e nascentes somente entre os proto-
Aruaques, tendo se desenvolvido no período de formação da “sociedade” xinguana. Este
processo derivaria da combinação de uma ideologia hierárquica (ideologia que teria o
estatuto, no modelo de Heckenberger, de um “arbitrário cultural”, isto é, de um dado
sociocosmológico primordial, talvez mesmo de uma “essência”,dos povos Aruaque) com
condições ambientais determinadas, a saber, condições que favorecessem um crescimento
demográfico tal que a distribuição das casas em círculo em volta da praça, em anéis
concêntricos, representasse uma distinção real e simbólica entre os mais próximos e os
mais distantes do centro, que é também um centro de poder. Lembremos que para
Heckenberger o surgimento da hierarquia e a competição por distintivos de poder explicam
a dispersão dos povos Aruaque11. A distinção entre o tempo em que as casas eram
distribuídas em diversos anéis concêntricos e o tempo atual, em que nenhuma aldeia possui
mais de um círculo completo de casas em torno da praça, sustenta o argumento de que a
atual separação algo difusa entre chefes e não-chefes é uma versão enfraquecida do que foi
no passado. Se grandes aldeias proporcionaram o nascimento de grupos sociais
hierarquicamente distintos numa sociedade em que a hierarquia era “incipiente”, a grande
baixa demográfica decorrente da colonização teve o efeito contrário (2005:311).
Temos contudo a impressão de que este quadro foi constituído pelo avesso: para
explicar a contradição entre as “obras monumentais” do passado e uma chefia relativamente
fraca hoje (chefes com pequena autoridade e ambigüidade de status), Heckenberger infere
que houve uma perda em termos de concentração do poder e que esta está relacionada à
inegável perda demográfica sofrida pelos ameríndios desde os primórdios do contato
colonial. Assim explica-se também a contradição entre ideologia e prática nativas, como se
houvesse uma descontinuidade entre a continuidade do ethos Aruaque/xinguano e as
transformações da eco-demografia xinguana.
É marcante o contraste entre a descrição feita por Heckenberger do sistema político
xinguano e as notas de Gertrude Dole tomadas entre os mesmos Kuikuro cerca de 40 anos
11 É de se perguntar quais seriam as condições de surgimento da ideologia proto-Aruaque, ou proto-
hierárquica dos Aruaque e seu lugar de origem.
antes, em meados da década de 50. Vale a pena reler a sucinta apresentação da etnóloga em
um artigo publicado em 196412:
Enquanto em outros grupos da floresta na América do Sul o líder
(headman) organiza empresas comunitárias, entre os Kuikuro o trabalho por
tais atividades é pago com comida e bebida oferecidas por um indivíduo,
referido como dono da empreitada.
Como sugerem essas técnicas de mobilização de trabalho, a liderança formal
entre os Kuikuro é extremamente fraca. Muito poucos privilégios e obrigações são
atribuídos ao líder. (...) Na prática, contudo, é questionável que qualquer uma
dessas funções fosse realizada pelo homem que ocupava a posição de líder na
época em que as observações que resultaram no presente trabalho foram feitas.
Na teoria, a posição de líder é herdada patrilinearmente, mas na
verdade muitas vezes os filhos são jovens demais para assumir a liderança
quando o líder morre. Sob essas condições o posto passa a um homem
adulto de outra família, de modo que homens de muitas famílias assumiram
a liderança ao longo das últimas gerações e os filhos de todos eles têm agora
algum direito à sucessão.(Dole,1964:53)
A despeito das teorias nativas sobre os deveres de um chefe e a transmissão
hereditária de status, dada a fraqueza” da chefia Kuikuro, o problema que Dole se coloca
é: como numa sociedade sem chefia efetiva são assegurados o controle moral do
comportamento e a coesão social? Em outros termos, trata-se do problema da natureza do
socius, a que antropólogos africanistas haviam respondido com teorias sobre constituição
12 Texto originalmente em inglês, tradução minha.
de linhagens e direitos sobre pessoas, e a que Lévi-Strauss respondeu com a teoria da
aliança e a proibição do incesto. Numa perspectiva mais “hobbesiana”, Dole assume que
deve haver na sociedade indígena uma autoridade que garanta a perpetuação do grupo
social.
Dole aponta o xamã como detentor da autoridade que falta ao chefe. Ela explica que a
doença e a morte entre os Kuikuro são sempre entendidas como fruto da ação maligna de
um feiticeiro ou do contato com um espírito patogênico. O xamã, por manter uma relação
privilegiada com alguns espíritos familiares, tem a capacidade de identificar (ver) o
causador de uma doença, isto é, de acusar um feiticeiro, que pode vir a ser executado caso a
acusação seja suficientemente convincente. Para contrapor este poder divinatório do xamã,
que ela compara ao de um juiz, à ausência de autoridade do chefe, Dole relata o episódio
em que uma execução foi levada a cabo sem que o representante oficial da aldeia fosse
sequer consultado. Neste caso, o homem acusado estava envolvido numa disputa com o
irmão do xamã em torno de uma jovem, de modo que a acusação e posterior execução do
“culpado” acabou por resolver a querela em favor da família do xamã. Apesar de observar
que, neste caso, houve uma solução do xamã em causa própria, Dole acredita que as
divinações xamânicas geralmente ecoam opiniões correntes na praça, e por isso são
também geralmente aceitas sem contestação. Para a etnóloga, o fato relevante é que as
divinações acusatórias funcionam como exemplo moral, estimulando as pessoas a
manterem comportamento pacífico, amável, solícito. Ao mostrar-se descontente ou
combativo um indivíduo sujeita-se a ser acusado e eventualmente morto quando surge um
problema pelo qual pode ser culpabilizado. Como controle moral internalizado, tomando o
lugar de um poder coercitivo externo, a autoridade do xamã seria então inversamente
proporcional ao poder do chefe.
A tese de Dole nos lembra os comentários ao modelo de Clastres por Fernando
Santos-Granero e Philippe Descola. Segundo estes autores, seria errôneo ver no chefe
indígena sem poder a ausência de poder na sociedade indígena; há poder nessas sociedades,
mas ele está associado à liderança por autoridade religiosa e não à coerção. No entanto, é
preciso destacar que para Santos-Granero o poder resulta do controle dos “meios místicos
de reprodução social”, isto é, controle dos rituais ligados à produção alimentar e de pessoas,
enquanto Dole focaliza, sobretudo, os efeitos moralizadores do julgamento por meio da
ação divinatória.
Em artigo posterior, Dole retoma o questionamento sobre a autoridade política entre
os Kuikuro, agora apontando a falta de poder do chefe como resultado de uma perda
demográfica: em outros tempos, os Kuikuro teriam possuído liderança política mais forte
(1966:79). Isso seria evidente pela força da “tradição” da chefia patrilinear. Historicamente,
a perda de autoridade do líder estaria ligada ao amalgamento de famílias de chefes
provindas de grupos diferentes em uma mesma aldeia devido à depopulação, o que teria
gerado maior competição pela posição de liderança e enfraquecido a instituição da chefia.
A autora acredita também que a ausência de linhas claras de transmissão de autoridade,
devido ao sistema de descendência cognática, teria contribuído para dificultar o
estabelecimento de uma liderança amplamente reconhecida com autoridade efetiva. (Dole,
1966:85). A cognação seria um mecanismo de resposta à perda populacional.
Heckenberger se opõe à primeira tese de Dole (1964) alegando que as observações
feitas pela etnóloga em 1954 registravam uma situação atípica entre os Kuikuro, decorrente
da baixa demográfica que teve seu auge em meados do século passado. Para criticar isto
que caracteriza como uma superestima do poder xamânico, Heckenberger usa
levantamentos demográficos indicando que as doenças do branco teriam atingido as
populações indígenas do interior do país muito antes do contato direto com o europeu, e
principalmente antes dos primeiros relatos escritos sobre essas populações. O autor sugere
então que o poder do xamã teria aumentado à medida que, com a propagação de epidemias,
doenças, mortes, o medo da feitiçaria passou a ocupar um papel central na vida social das
aldeias. Conseqüentemente, o xamã não deveria ser visto então como um elemento da
estrutura social em oposição ao chefe - nem como concorrente, nem como substituto deste.
Seu poder seria, antes, derivado dos efeitos do contato e da desestruturação do sistema
político centrado no poder do chefe. (Heckenberger, 2000; 2005). Como observamos, o
que leva Heckenberger a apostar numa chefia mais forte no “antigo regime” é a presença de
obras pré-históricas “monumentais”, a interpretação das praças circulares como inscrições
da hierarquia no espaço e dos rituais intertribais como meios de produção de
chefes/ancestrais. O problema desta teoria, em concordância com a segunda tese de Dole
(1966), é que indica que o poder do chefe e o sistema político xinguano podem ser
apreendidos em sua potência real quando olhamos para o passado. Em outras palavras, para
Heckenberger o sistema político xinguano atual é e será exclusivamente efeito do sistema
político passado, este último visto como atualização completa de suas virtualidades. É como
se todos os dados tivessem sido lançados nos séculos que viram a “diáspora” Aruaque e as
primeiras epidemias dos brancos. Nada de novo ou criativo aconteceu depois.
2.3 Uma ou duas cosmologias
A diferença entre poder do chefe e poder do xamã é importante para a tese de
Heckenberger porque ela aponta para modos distintos de aquisição/reprodução de potência.
Dole explica assim a feitura do xamã - uma vez que o poder xamãnico não é
hereditário: um homem torna-se xamã quando é “chamado” por seres sobrenaturais através
de sonhos, passando então a ter um xamã experiente como tutor para ensinar-lhe cantos e o
transe induzido pelo tabaco;( )-43.1769(t)-4.889172jdxuzilomoarac-27.7465(s)8.38323(e)-3.48087(r)-27.7465(c)1.66258()-94.8891726.82 Td[(d)-3.47838.
esta teria prevalecido sobre as demais matrizes culturais dos grupos que integram o sistema
multiétnico em questão. Semelhança ainda maior, por força da proximidade temporal,
observamos entre a descrição de Heckenberger e trabalhos recentes sobre povos de língua
e/ou cultura Aruaque, compilados no volume organizado por Jonathan Hill e Fernando
Santos-Granero (2002), que contém aliás um ensaio de Heckenberger. Esses autores
parecem concordar quanto à especificidade Aruaque no que se refere a um princípio
ontológico fundamental: enquanto em certas sociedades a pessoa se constitui (torna-se
potente) pela apreensão de qualidades pertencentes a seres estrangeiros (Viveiros de Castro,
2002b; Vilaça, 2000; entre outros), os xinguanos ou, mais especificamente, os Aruaque,
localizariam a potência social no interior da sua sociedade, literalmente, no centro da praça
onde estão enterrados os chefes ancestrais mais importantes. A diferença da relação com o
exterior em um “ethos da acomodação” (Aruaque) e um “ethos da predação” (Tupi e
Caribe, no Alto Xingu) seria então a diferença entre constituir-se como o alter (identidade
apreendida) e constituir o alter como si mesmo (identidade quantitativamente, mas não
qualitativamente, estendida). Hill e Santos-Granero resumem este ponto na introdução da
coletânea14:
...a guerra e o canibalismo o são constitutivos das identidades Aruaque
como se entre os Jívaro, Caribe, Pano e Tupi. Este contraste marcante
sugere a existência de uma ontologia Aruaque profundamente arraigada,
na qual poder ritual e relações de comercio e troca cerimonial predominam
14 Texto original em inglês.
sobre predação e conflito como princípios básicos de ordenação da vida
social e construção da socialidade. (Hill e Santos-Granero, 2002:18) 15
Para Heckenberger, a ação propriamente política se nos grandes rituais
intertribais, na praça, e não nas divinações xamânicas realizadas dentro de casa. Assim ele
enfatiza a diferença, na sociedade xinguana, dos papéis de chefe e xamã, mas associa o
poder do chefe ao que poderíamos chamar, parafraseando Santos-Granero (1986) de "meios
místicos de reprodução social". É a ligação genealógica mais direta com os ancestrais
míticos que justifica a posição do chefe, o que leva Heckenberger a qualificar como
"sagrada" sua autoridade; esta ligação é confirmada e mantida pelo controle dos rituais
iniciatórios e funerários de chefes, quando se afirmaria o ciclo de transmissão de substância
divina dentro da linhagem de alto status. Baseado nesta descrição, Heckenberger propõe a
classificação do sistema político xinguano pré-colonial como chefatura teocrática, conceito
que fora usado por Oberg para descrever sociedades Aruaque do sudoeste amazônico (apud
Heckenberger, 2005:332), por Julian Steward e Louis Faron (1959) para sociedades
Aruaque das Antilhas (os Taino), para as chefaturas mesoamericanas e, finalmente, por
Sahlins, para as chefaturas polinésias. Ao situar a polity xinguana neste grupo,
Heckenberger pretende corrigir o que considera um erro de avaliação histórico: a
identificação inicial do sistema xinguano, por Steward e Faron, como "cultura tropical da
floresta", quando na verdade tratar-se-ia de um sistema hierárquico involuído após o
contato colonial (Heckenberger, 2005:42). Esta imagem da polity xinguana está em
15 Não estou a par, no entanto, do lugar reservado pelos defensores desta particular distinção entre o ethos
Aruaque e o ethos predatório Tupi/Caribe/Pano aos povos Jê do Brasil Central, que combinam aldeias
circulares e chefia desenvolvida ora com sistemas guerreiro-expansivos, ora com sistemas pacíficos não-
incorporativos. A questão merece investigação.
concordância com a tese de Santos-Granero (1993) sobre a origem do poder centralizado
nas lideranças religiosas. Vale notar que Schmidt discute em 1913 o domínio, entre os
Pareci, de certa camada social sobre a demais pelo controle dos rituais, sugerindo ser o
controle cósmico a verdadeira fonte de poder.
O chefe xinguano é descrito assim como um líder religioso, porém com um modo de
conexão com o mundo sobrenatural distinto daquele que fundamenta o poder xamãnico.
Mais propriamente, diríamos que são sobrenaturezas diferentes em cada caso. O chefe-
sacerdote deriva seu poder da relação privilegiada com ancestrais cultuados como heróis
míticos; o poder se funda, pois, na continuidade de substância entre iguais. o xamã
adquire poder pela sua habilidade em transformar-se em outro, em comunicar-se com a
alteridade cosmológica e capturar sua potência16.
A tese de Renato Sztutman (2005) sobre o profetismo tupi-guarani do século XVI é
esclarecedora quanto às implicações contra-hierárquicas do regime cosmológico associado
ao xamanismo. Tal cosmologia, que Eduardo Viveiros de Castro isolou a partir de
etnografias diversas e chamou de perspectivismo, define a condição humana como posição
discursiva, ponto de vista ou perspectiva, passível de ser transmutada. A capacidade de
assumir outros pontos de vista de ver um espírito como humano, isto é, de se ver como
um espírito se vê e, portanto, comunicar-se com ele – é o que define o xamã. A mudança de
perspectiva que funda a experiência xamânica é associada por Viveiros de Castro ao que se
passa com o guerreiro tupinambá ao matar um inimigo, o qual compõe a alteridade social
do guerreiro assim como o espírito compõe o exterior cosmológico do humano em geral;
ambos são provedores de uma potência que deve ser apreendida. Este processo instaura um
16 Esta diferença pode corresponder à distinção entre xamã vertical e xahorizontal proposta por Stephen
Hugh-Jones (1994).
trânsito entre humanos e não-humanos, parentes e inimigos, que torna sempre instáveis as
identidades pessoais e coletivas. Pois, se a potência do grupo ou pessoa provém do exterior
exterior social, os inimigos derrotados pelo guerreiro, e exterior metafísico, os espíritos
com quem o xamã se alia - as identidades resultantes serão sempre impuras, constituídas
por fragmentos de alteridade, e instáveis, constituídas num processo contínuo de apreensão
de alteridades. Retomando Viveiros de Castro, Sztutman reconhece no trânsito cósmico
próprio à cosmovisão perspectivista um impedimento à fixação do poder político, que só
poderia constituir-se sobre uma unidade identitária estável. Essa função xamânica seria
oposta à do chefe-sacerdote, cuja função representativa implica a existência de um grupo
humano não ameaçado por mudanças de perspectiva advindas da incorporação de
subjetividades diversas (Sztutman, 2005:79). Em suma, a predação e o perspectivismo,
dado o “perigo” da perda de identidade (cosmológica e social) que engendram, seriam um
impedimento para a constituição de unidades políticas estáveis, ao passo que uma
cosmopolítica na qual a pessoa ou grupo são constituídos por transmissão de potência em
linhagens de parentesco permitiria a estabilização de unidades identitárias.
Lembremos que Clastres (1974) aponta uma contradição interna à figura dos profetas
tupinambá: se, por um lado, eles atuavam em oposição ao crescente poder dos chefes-
guerreiros, impelindo à fragmentação dos grandes assentamentos, passavam, por outro lado,
a constituir uma força agregadora que sugeriria a origem de uma religião de Estado. Santos-
Granero (1993) discute essa hipótese ao analisar a história dos sacerdotes Amuesha, grupo
Aruaque da Amazônia peruana. Estes sacerdotes se diferenciavam dos chefes em dois
sentidos: tinham influência regional, enquanto os chefes atuavam apenas localmente; e
tinham a seu favor uma relação assimétrica com a população Amuesha, sendo doadores de
palavras eficazes, rituais e bens. Contra Clastres, Santos-Granero alega que a força
agregadora dos sacerdotes não era estável o suficiente para fundamentar uma crescente
fixação e institucionalização do lugar de poder. Mas aponta alguns indícios da evolução
(interrompida [comme toujours...]) de maior estabilidade, entre eles a associação dos
sacerdotes com castas de guerreiros e a transmissão hereditária do posto sacerdotal. Mais
uma vez então, encontramos a coincidência entre formação de linhagens, divisão social e
constituição de liderança política com poder, coincidência significativamente relativa, mais
uma vez, a um grupo Aruaque.
2.4 Nova síntese
Tendo a tese de Michael Heckenberger como base, tentamos até agora demonstrar a
maneira pela qual uma certa imagem da política xinguana associa condições materiais
favoráveis ao desenvolvimento de grandes assentamentos, uma matriz cultural Aruaque que
teria servido de molde para a formação da “sociedade” multiétnica e regional, a
caracterização dessa matriz como anti-predatória e uma concepção (antropológica ou
indígena) do poder como controle cosmológico, sendo o aspecto econômico fundamental
para garantir a fixação de distinções sociais.
Vejamos agora uma descrição do sistema político no Alto Xingu que concebe a
centralização do poder como resultado da coordenação entre chefia e o modo
xamânico/predatório de potência, de modo que a apropriação e domínio dos “meios
místicos de reprodução social” fica aparentemente dissociado da formação de linhagens,
mas ainda assim assume papel fundamental no jogo político. Refiro-me à pesquisa recente
de Aristóteles Barcelos Neto (2004) entre os Waurá (grupo Aruaque), sobre as máscaras
cerimoniais e as relações que ocorrem “na vizinhança” (Gell, 1998) desses artefatos,
relações que culminariam com a produção e de máscaras que, inversamente, seriam
propagadas nesse processo. É significativo que, tratando da relação do poder político com o
domínio cósmico, Barcelos Neto e Heckenberger tratem de contextos cerimoniais distintos.
Heckenberger, como vimos, chega à imagem do chefe-sacerdote a partir dos rituais inter-
tribais, enquanto Barcelos Neto enfatiza o poder do xamã ao se ocupar dos rituais intra-
aldeãos realizados no contexto de cura de doenças causadas pelos espíritos apapaatai.
Segundo a mitologia Waurá, os apapaatai são transformações de espíritos ancestrais,
yerupoho, que viviam no mundo hoje habitado por humanos. A criação dos humanos pelos
gêmeos Sol e Lua tornou o mundo humano inabitável para os yerupoho. Aqueles que não
conseguiram fugir transfiguraram-se com roupas que lhes conferem traços animais
identificados a propriedades tecnológicas, como o poder de voar, tocar flautas etc. Um
mesmo yerupoho pode transfigurar-se por meio de uma quantidade aparentemente ilimitada
de roupas/atributos tecnológicos; é sob esta forma, isto é, transformado em apapaatai, que
ele se apresenta aos humanos, mas isso não acontece e nem deve acontecer normalmente. O
contato com apapaatai se dá quando, inadvertidamente, a pessoa é tomada de uma vontade
de comer que não é satisfeita. Quando ela encontra o espírito, parcelas de sua alma se
perdem, vão passear com o apapaatai em seu mundo, o que significa, para o humano,
doença. No ritual de cura, o doente recupera as parcelas perdidas de sua alma e estabelece
uma relação de proximidade amistosa com o apapaatai raptor. A manutenção dessa relação
por meio de ações rituais continuadas garante que o ex-doente não vai se tornar novamente
vítima do mesmo apapaatai. Mediante o processo ritual, a transição da pessoa humana
para o mundo dos espíritos é convertida em seu contrário, a integração do espírito ao
mundo Waurá.
A integração dos apapaatai ao mundo humano se realiza por meio da representação
dos espíritos patogênicos por certos parentes escolhidos pelo doente, seus kawoká-mona.
Em um primeiro momento do ciclo ritual, os kawoká-mona visitam cerimonialmente o
convalescente, o que sinaliza a devolução das parcelas raptadas de sua alma. O segundo
movimento do processo de cura é a realização do ritual propriamente dito, envolvendo toda
a comunidade na confecção das máscaras de apapaatai, na produção de comida para os
atores-encenadores e na execução musical de flautas sagradas. Os mesmos indivíduos
podem atuar no ritual como “donos” dos apapaatai, fornecendo matéria-prima para a
produção das respectivas máscaras e comida para os atores, ou como kawoká-mona,
produtores de máscaras e encenadores (representantes) de apapaatai no ritual. A relação de
proximidade ou colaboração com os apapaatai perdura enquanto o ex-doente e dono do
ritual mantiver a alimentação de seus kawoká-mona, fora do contexto ritual. Em troca da
alimentação, estes últimos oferecerão ao ex-doente artefatos como panelas, s de virar
beiju, casas, roças de mandioca etc. Este ciclo de trocas constitui o que Barcelos Neto
chama de “máquinas de produção”, das quais depende a manutenção da relação com os
apapaatai. A eficácia desses objetos residiria no fato de tornarem visível e durável a
aliança com os apapaatai que entraram em contato com o doente. As máscaras seriam,
assim, um canal de transferência da potência dos apapaatai para determinados indivíduos.
A efetividade da transferência é sustentada pela qualidade formal dos objetos, sua
decoração gráfica, durabilidade, excelência técnica.
Barcelos Neto, porém, observa que nem todo doente parece poder receber um
diagnóstico de ataque por apapaatai e tornar-se dono de ritual; é preciso ter substância
nobre, isto é, ser amunaw, “chefe” ou descendente de chefe em linhagem paterna ou
materna. Este indivíduo também deve ser alguém que merece a confiança/respeito do grupo
por ter demonstrado possuir certas qualidades, especialmente a generosidade, além de
possuir uma parentela que o ajude a manter o fornecimento de alimentos aos kawoká-mona
de seus apapaatai. Se os chefes são aqueles que, por nascimento, já merecem respeito do
grupo social e se, por meio da relação com apapaatai, ganham condições maiores de
demonstrar sua generosidade e gerar mais respeito, o sistema ritual é visto como uma
máquina operando em prol da manutenção da ordem e das posições sociais na hierarquia
social.
Barcelos Neto sugere não haver então descontinuidade entre os rituais de apapaatai
e os rituais pós-funerários e de iniciação de chefes realizados em escala regional; ambos
formariam um complexo que opera “como um plano consciente de produção ritual contínua
de homens e mulheres amunaw”(2004:286). Note-se que essa relação implica uma
interpretação dos rituais intertribais bastante diferente daquela avançada por Heckenberger.
Para Barcelos Neto, tanto o kwarup quanto festas de apapaatai são mecanismos de
domesticação da alteridade. É verdade que o autor refere-se especificamente às festas
funerárias realizadas para os irmãos Villas Boas, entendendo o rito como meio de captação
de potência da alteridade branca. De qualquer maneira, isso permitiria conjeturar que os
ancestrais, em geral, estariam talvez numa posição de alteridade a apreender, e não de
identidade a reproduzir.. O que mudaria bastante as coisas. Sublinhe-se de qualquer modo
que, tratando de um grupo Aruaque, Barcelos Neto relaciona hierarquia e predação,
diferenciando-se dos etnólogos cujas teorias foram comentadas acima.
Se por um lado descreve uma máquina de reprodução do poder, Barcelos Neto
identifica no sistema político-ritual xinguano o que chama de “desconfiança do poder
absoluto”, (Barcelos Neto 2004:285). Isso porque o chefe depende do diagnóstico do pajé e
da colaboração de seus kawoká-mona para estabelecer uma boa relação com apapaatai. O
pajé, cujo poder deriva da introdução, em seu corpo, de substâncias apapaatai, é
responsável por determinar no diagnóstico divinatório quantos e quais apapaatai estão em
relação com o doente. Depende do número e dos atributos “tecnológicos” dos apapaatai
patogênicos a potência transferida ao dono do ritual. Os kawoká-mona são responsáveis
pela produção de objetos rituais e, portanto, pela manutenção da relação do ex-doente com
os espíritos. Em ação coordenada, todos os indivíduos que participam desse processo
formam o que Barcelos Neto chama de sistema de distribuição de poderes políticos,
fundado na interdependência hierárquica dos estatutos sociais.
O sistema político Waurá como descrito acima se aproxima de modelos que
enfatizam um “fazer” do chefe independente das determinações de transmissão de status.
Esta diferença pode ser traduzida pela oposição dos tipos ideais do big man e do chief
segundo Sahlins (1977). Nesse sentido, Barcelos Neto rejeita a imagem de uma matriz
Aruaque destacada do conjunto ameríndio, ou nem mesmo considera essa imagem ao não
considerar equivalentes cultura xinguana e matriz Aruaque. No entanto, o tipo de controle
do poder do chefe que o autor identifica nos Waurá é diferente do controle exposto em A
sociedade contra o Estado . Segundo a etnografia de Barcelos Neto, o chefe Waurá é
poderoso e dono de uma palavra eficaz, derivada do contato com seres sobrenaturais. Esta
imagem nos remete novamente ao sacerdote Amuesha descrito por Santos-Granero,
indivíduo que, doando à comunidade mais serviços, e serviços mais essenciais do que
aquilo que recebe em troca, é dono de uma autoridade moral maior do que a normalmente
creditada a chefes em outros grupos indígenas (Santos-Granero, 1993:222). Para Pierre
Clastres, a assimetria fundamental que garante o controle do poder do chefe pelo grupo é a
diferença de valor entre aquilo que o chefe recebe, mulheres, e aquilo que em troca,
palavras. Ora, no momento em que essas palavras ganham o estatuto de “meios místicos de
reprodução social” ocorre uma grande inflação do discurso e seu poder se presentifica.
2.5 Conclusão: Heckenberger versus Barcelos Netos
A discrepância entre as imagens da política xinguana traçadas por Heckenberger e
Barcelos Neto não anula o fato de estarem ambos descrevendo um sistema de chefia com
poder (ou sistema de poder com chefia). Para Heckenberger, este poder deriva de
transmissão hereditária e está associado um regime cosmológico baseado na auto-
reprodução de identidade. Barcelos Neto, ao contrário, descreve a constituição do poder do
chefe Waurá como se dando por via da apreensão de potência no exterior cosmológico.
Com este enfoque o autor se aproxima de imagens da política xinguana que enfatizam o
aspecto ambíguo da classificação de pessoas e a disputa faccional, de forma que a “chefia”
aparece diluída em statuses diversos, incluindo o de pajé, dono da aldeia, donos de rituais
etc. No próximo capítulo vamos tratar deste modelo alternativo.
Por fim ressalto que a etnografia de Barcelos Neto constitui uma imagem do poder
no jogo político presente, e não referida ao passado, como ocorre na argumentação de
Heckenberger.
Capítulo 3
Imagens do faccionalismo
Alternativamente ao modelo que focaliza a centralização do poder enquanto
elemento constitutivo e distintivo da “sociedade” xinguana, um certo número de etnografias
sobre os grupos da área põe em primeiro plano a dispersão, e por vezes a negação, do
poder. Se imaginarmos os modelos que informam uma descrição etnográfica como se
estivessem dispostos numa linha, nos aproximamos agora do pólo clastreano. Chama-se
aqui atenção para a falta de autoridade do chefe e para a instabilidade da sua posição. Não
se trata de negar a chefia, mas de um duplo movimento de aproximar a noção de “chefe”
dos conceitos nativos, por um lado, e ressaltar mecanismos sociais que impediriam a
concentração do poder nas mãos de uma pessoa ou grupo, por outro. A coexistência e a
complementaridade de diversas posições de destaque social parecem resultar na diluição do
poder, de modo que encontramos nas etnografias, não a figura de um “chefe” isolado, mas
inúmeros líderes ou “donos” dos recursos valiosos do grupo (Murphy & Quain, 1955;
[Basso], Becker 1969; Gregor, 1977;Viveiros de Castro, 1977). A etnografia de Viveiros de
Castro, especialmente, aponta para a impropriedade da palavra “chefe” como tradução de
termos nativos que designam ora o que parecem ser cargos ou funções públicas, ora uma
camada social distinta, uma espécie de nobreza. Ao mesmo tempo, análises da estrutura
social indígena que procuram se libertar do modelo africanista clássico encontram nas
aldeias xinguanas uma enorme flexibilidade na classificação de parentes e,
conseqüentemente, na formação de grupos, fato que parece confundir não o
entendimento analítico do processo de transmissão hereditária da chefia, ou a própria
sucessão de homens no poder ([Basso] Becker, 1969).
Este tipo de abordagem, do qual Ellen Basso (1969), para o Alto Xingu, é pioneira,
antecipa os pontos principais avançados por Joanna Overing Kaplan no XLII Congresso
Internacional dos Americanistas (1976), a saber, a crítica às noções de “descendência” e de
“grupo corporado”, uma vontade de aproximação aos modelos nativos, e a fusão
(influenciada pelo trabalho de Lévi-Strauss) dos domínios, até então separados na
antropologia, da “cultura e da “organização social” (Overing Kaplan, 1976:9-10).
Podemos ver assim na etnografia de Basso um esforço para situar o Alto Xingu no cenário
mais amplo das sociedades ameríndias, buscando mais semelhanças que especificidades,
enquanto Heckenberger (2000, 2005), por exemplo e ao contrário, aproxima o sistema
xinguano de sociedades que pareciam ser antes exceções que norma entre os grupos
amazônicos (as chefaturas pré-colombianas marajoara e tapajônica).
No que diz respeito à política, a descrição do sistema político xinguano por Basso
coincide com a imagem traçada por Clastres na década seguinte. Lembremos que este autor
usa uma etnografia xinguana, as notas de Buell Quain sobre os Trumai, para exemplificar a
ausência de autoridade na forma do poder coercitivo – do chefe ameríndio (Clatres,
1963). Algumas sociedades Aruaque (Taino, Caquetio, Otomaque, do noroeste amazônico,
e Guaná, do Chaco), ao mesmo tempo, eram apresentadas por Clastres (1962: 46) como
exceções à sua tese. O posicionamento dos grupos xinguanos dentro ou fora da norma
clastreana pode ser relacionado, desta forma, a uma consideração sobre as origens do
sistema multi-étnico. Ali onde se defende a tese da aculturação assimétrica (Heckenberger,
2005), é possível analisar o Alto Xingu em termos de um bloco de sociedades da exceção;
por outro lado, uma visão menos aruaque-centrada, que considere as contribuições (no
mínimo) Tupi e Caribe, pode conduzir ao encontro com outros grupos amazônicos.
Devemos ressaltar, contudo, que a questão das origens do sistema multi-étnico não é tratada
sistematicamente por nenhum dos autores aqui discutidos, cabendo a s relacionar essas
etnografias com teoria da matriz aruaque defendida por Michael Heckenberger (2005).
3.1 Ambigüidade: ser e não-ser chefe
Como resume Eduardo Viveiros de Castro (1977) na introdução à sua etnografia
sobre os Yawalapití, o problema de certa etnologia americanista na segunda metade do
século é livrar-se do modelo juralista da sociedade forjado por Radcliffe-Brown, Fortes,
Evans-Pritchard etc. sobre os sistemas africanos. Esta crítica está ligada ao que Viveiros de
Castro chama “descoberta dos sistemas cognáticos” (1977:51), isto é, à percepção de que as
sociedades sul-americanas (e quiçá as africanas) não se constituem como agregados de
grupos unilineares de parentesco que respondem pela transmissão de direitos sobre bens e
pessoas e que se acham ligados (a contragosto, poder-se-ia dizer) por aliança
matrimonial17. Quais seriam então os princípios de organização dessas sociedades ou, mais
geralmente, qual a natureza do socius ameríndio, quais as unidades que o constituem, se é
que ele é constituído por unidades? No Alto Xingu, especificamente, a flexibilidade das
regras de filiação e residência e a ambigüidade na classificação de pessoas foram apontados
como traços marcantes desde os primeiros trabalhos mais sistemáticos sobre a organização
social dos povos da região (Galvão, 1953; Dole, 1954; Murphy & Quain, 1955 ; Gregor,
1977).
17 A descoberta dos sistemas cognáticos se fez, sobretudo, fora da América do Sul, mas levou os etnólogos
americanistas a perceberem que muitas das sociedades que vinham sendo descritas como baseadas em
princípios unilineares de recrutamento eram na verdade sociedades cognáticas, ou simplesmente desprovidas
de princípios relevantes de afiliação social, ou mesmo, como proposto na etnografia-modelo de Joanna
Overing sobre os Piaroa, sociedades que usariam a aliança, não a filiação, como princípio de formação
intragrupal, e não apenas de relação intergrupal.
Em 1953, Eduardo Galvão publica um artigo sobre o parentesco xinguano em que
aparecem bastante claramente alguns dos principais aspectos da política explorados depois
mais sistematicamente por Ellen Basso. Tendo centrado sua pesquisa sobre os Kamayurá,
Galvão descreve o chefe xinguano como o cabeça de uma família extensa, cuja influência é
exercida quase que somente sobre seus co-residentes. Para Galvão, a grande extensão dos
termos de parentesco possibilitaria uma alta flexibilidade na formação de grupos baseados
nas relações de obrigação entre parentes. O autor afirma ainda que a aparência de que as
famílias xinguanas se organizariam em grupos de descendência seria uma falsa impressão
sobre a composição frouxa da família extensa, dada a possibilidade do indivíduo escolher a
que grupo se uniria segundo critérios pessoais. Quanto às disputas em torno da chefia,
Galvão observa, tanto na aldeia Kamayurá quanto entre os Trumaí, que indivíduos que se
proclamavam chefes tinham seu status questionado por um grupo oponente com base em
acusações de falsa descendência, mau comportamento e impureza étnica (por descender de
pai ou mãe de outra etnia). Estas observações levam o autor a afirmar que a chefia estaria
ligada não somente à transmissão do status em linhagem preferencialmente patrilinear, mas
também ao apoio de uma parentela extensa e ao comportamento do indivíduo que pleiteia o
status. É a flexibilidade do sistema classificatório de parentes, aparentemente intrínseca ao
sistema, que aparece como elemento fundamental da disputa pelo poder, tanto pelo seu
papel na formação de grupos quanto pela ampla possibilidade de estabelecimento de linhas
de transmissão de status.
Explicar essa flexibilidade em termos de princípios estruturais e não de uma
discrepância entre teoria e prática ou de involução de um sistema complexo é o objetivo
fundamental de Ellen Basso (1969) e, posteriormente, como ênfase para a relação entre
cosmologia e sociologia, Viveiros de Castro (1977). Tanto Basso quanto Viveiros de Castro
sublinham a influência dos estudos sobre os grupos Jê orientados por Maybury-Lewis
(publicados quase dez anos após o período das pesquisas de campo em Dialectical
Societies, 1979), especificamente no que se refere à crítica ao modelo juralista anglo-saxão.
Maybury-Lewis descobre que as linhagens Xavante, compondo facções de apoio a líderes
políticos, não eram determinadas por aspectos puramente genealógicos, mas
contextualmente formadas segundo interesses ligados às disputas faccionais - de modo que
a linhagem aparece na verdade como um idioma dessa disputa e não como uma entidade
real definida pré-existente. Contrabalançando esta força altamente centrífuga, fissional, da
sociedade Xavante, estariam os grupos de idade e todo o complexo ritual ligado à iniciação.
Esta mesma composição de forças centrífugas e centrípetas aparece na figura do
próprio chefe Xavante, que é, simultaneamente, líder de uma facção importante (que apóia
sua alegação de legitimidade para representar a aldeia) e representante da aldeia como
unidade. A chefia aldeã não precede a liderança faccional, pelo contrário, é um
reconhecimento da influência já exercida pelo chefe dentro de seu grupo faccional, de
maneira que, numa comunidade dividida entre facções de igual força, um der pode ser
reconhecido como chefe por apenas parte do grupo, ou mais de um der pode ser
reconhecido como tal. No entanto, uma vez tendo assumido a função de representante, o
chefe deve tanto expressar a unidade local frente a outras unidades, quanto promover esta
unidade procurando arbitrar imparcialmente querelas faccionais.
A ambígua figura do chefe como simultânea ou sucessivamente representante da
comunidade e líder faccional também é notada por Ellen Basso em relação aos líderes
Kalapalo. De fato, dois anos após a publicação de Akwê-Shavante Society (Maybury-Lewis,
1967), Basso produz a primeira descrição sistemática das disputas faccionais e das figuras
de liderança no Alto Xingu ([Basso] Becker, 1969), com bastante maior rigor que o de
outras observações esparsas sobre a “flexibilidade” da sociopolítica xinguana, anteriores ou
posteriores a sua tese (c.f. Murphy & Quain, 1955; Gregor, 1977). Ao invés de linhagens
funcionando como grupos corporados, Basso encontra entre os Kalapalo um termo que
define uma parentela cognática ego-centrada de limites variáveis, o otomo. Quanto mais
genealogicamente distantes, as pessoas são classificadas como parentes ou não-parentes
com certa liberdade, de acordo com interesses pessoais (c.f. Coelho de Souza, 1993). A
categoria otomo também pode designar, em outros contextos, um grupo faccional, isto é, as
pessoas em torno de um líder que o apóiam em situações de disputa. Veremos adiante que
este grupo é isomorfo à(s) casa(s) de um grupo de germanos; a casa constitui, portanto, uma
unidade política dentro da aldeia além de ser também a unidade produtiva mais
consistente. Alternativamente, diz Basso, otomo designa o conjunto dos habitantes da
aldeia; aqui, como entre os Xavante, a facção e a aldeia são tornadas homólogas pela
relação com o chefe são o conjunto de pessoas que têm o líder em comum. Vale notar
que, entre os Kuikuro, Bruna Franchetto (1986) encontra a palavra otomo designando
igualmente uma categoria de abrangência contextualmente determinada: parentela, facção,
co-residentes, co-aldeãos.
Da mesma maneira que um parente pode ser mais ou menos próximo e
contextualmente, parente ou não-parente -, no que diz respeito à chefia, Basso descobre
uma gradação entre chefes fortes, de status inquestionável (em Kalapalalo, anetu ekugu) e
chefes de status questionável (anetu intsoño = chefe pequeno), distinção que corresponderia
melhor ao sistema classificatório nativo que uma oposição discreta e rígida entre chefes e
não-chefes. Esta gradação seria relativa ao seguinte critério: o chefe forte (anetu ekugu) é o
primogênito de um chefe cujo status também é coletivamente reconhecido, enquanto o
pequeno chefe (intsoño anetu) é herdeiro do status por outras vias (filho de mãe chefe, filho
do irmão do chefe, filho não-primogênito de um chefe ou filho de um chefe de status
questionado). Ao lado deste sistema gradativo, Basso apresenta o freqüente questionamento
da legitimidade dos chefes. O fato de que é possível ser mais ou menos chefe, neste caso,
resultaria em um sistema em que nenhum ou quase nenhum homem parece ser chefe o
suficiente e inversamente, ninguém é suficientemente não-não-chefe, ou seja, chefe. Isso
poderia explicar a ausência de termos nativos para não-chefes.
Além de Galvão e Basso, outros etnógrafos discorrem sobre o questionamento do
status de chefe nas aldeias xinguanas. Em relação aos Trumaí, por exemplo, Buell Quain
(Murphy & Quain, 1955) chamara a atenção para a dificuldade em distinguir chefes de não-
chefes e para a oposição constante feita ao chefe Maibu por membros de uma das casas da
aldeia. A oposição, nota Quain, se manifestava em duelos verbais, em disputas
matrimoniais e também na recusa em participar de atividades grupais organizadas pelo
chefe. Quain interpreta a vontade deste grupo como uma “aversão à autoridade”
(Murphy & Quain, 1955: 55), mas na análise de Basso dados como este serão interpretados
em termos de disputa política e alinhamento faccional. O etnógrafo dos Aweti, George
Zarur, também alude a uma gradação ideal entre chefes fortes, filhos de pai e mãe chefes, e
chefes fracos (morekwat itoto e morekwayt, respectivamente), mas ressalta que, no
momento da sua pesquisa, haveria apenas chefes fracos na aldeia. Zarur sugere que este
fenômeno seria efeito da depopulação, mas reconhece que, na época da pesquisa, a chefia
estaria mais fundada nas relações concretas de um homem com sua família extensa que na
descendência – igualmente fraca para todos os que pleiteavam o status.
Na esteira do trabalho de Maybury-Lewis, a etnografia de Ellen Basso apontava a
facção como um grupo social crucialmente relevante, cuja composição merecia ser
investigada em profundidade. Em sua primeira descrição extensa sobre a organização social
Kalapalo, a autora ([Basso] Becker,1969) define a facção como agrupamento em torno de
um pequeno chefe, com a função principal de confirmar publicamente a legitimidade de seu
status. Este grupo seria composto pelos co-residentes de um líder e os co-residentes de seus
germanos (o que é confirmado pelo relato de Quain citado acima). O grupo faccional presta
serviços de assistência mútua entre seus membros e, principalmente, defende-os de
acusações de feitiçaria por meio de contra-acusações a indivíduos de outros grupos
faccionais. A importância da facção como unidade produtiva fica mais clara a partir da
análise da autora de outros status que marcam posições de destaque na sociedade Kalapalo,
assunto de que trataremos na próxima seção. Por enquanto, diremos apenas que Basso, e
depois dela outros etnógrafos, apresenta a chefia como realização de um ideal de
sociabilidade ligado a outros status que não o de anetu, sugerindo que esta realização
depende fortemente da capacidade de um homem de demonstrar generosidade distribuindo
comida em quantidade que pode produzir com auxílio de uma parentela extensa. A
facção seria importante então na medida que reconhecemos a distinção entre um posto ou
cargo de liderança, designado por termos vulgarmente traduzidos por “chefe” ou “capitão”,
e uma camada social específica, composta por indivíduos hereditariamente aptos a
ocuparem esta posição. Quanto à potência acusatória da facção, veremos também adiante
de que maneira, na etnografia de Basso, a feitiçaria aparece como linguagem da disputa
política pela posição de representante da aldeia.
Até aí, vemos a facção determinada pelas relações de parentesco e regras de aliança,
que é a casa e os grupos de germanos que a constituem. Num trabalho posterior, Basso
(1975) demonstra que em larga medida a facção é determinante das alianças matrimoniais,
enfatizando com isso o aspecto indeterminado do sistema classificatório apresentado na
tese de 1969 e, indiretamente, opondo a facção à linhagem como unidade de cooperação e
troca. Segundo a autora, um dos critérios para designar um indivíduo como casável
(suficientemente distante, isto é, não-parente) ou não-casável (próximo demais, parente),
dada a abrangência indeterminada do otomo, é o pertencimento a uma facção diferente de
ego. Quer dizer, é mais o interesse em classificar tal indivíduo como consangüíneo não-
casável ou como aliado potencial que vai orientar o termo de parentesco empregado por
ego, e não uma relação “real” genealógica. O aspecto “estratégico” dessa escolha é em
grande parte referido pela autora ao jogo político em torno da chefia, mais especificamente
em torno da ocupação da posição de representante da aldeia. É como se os Kalapalo
fizessem aliados (e casas) para fazerem chefes melhores, de status inquestionável. Isso
como condição de sobrevivência, contra a violência das acusações que pairam sobre
indivíduos de status ambíguo.
Lembremos que Dole (1966) atribui a ambigüidade do status dos chefes xinguanos
contemporâneos não à depopulação, como mais tarde o fará Heckenberger (2000, 2005),
mas também aos efeitos do parentesco cognático, que considera ineficiente como princípio
de formação de linhas de descendência. Dole ressalta que, apesar de bilateral na prática, a
transmissão do status entre os Kuikuro seria idealmente patrilinear, ou com peso maior
dado ao status paterno, fato que a autora interpreta como prova da degeneração de um
sistema que teria sido agnático na origem (c.f Coelho de Souza, 1993). Galvão se mostrara
indeciso quanto à(s) regra(s) de transmissão de status e sucessão da chefia: por um lado,
nota uma preferência à sucessão por linha paterna; por outro, reconhece que a ambigüidade
em torno do status dos indivíduos no presente seria coerente com a transmissão bilateral
(Galvão,1953). A gradação encontrada por Basso entre os Kalapalo aponta também para
um conflito entre o ideal patrilinear (e de primogenitura) e as demais possibilidades de
transmissão de status, mas a autora não atribui esta aparente contradição à ação de fatores
extra-estruturais. Entendidas como parte da estrutura social, a facção formada em torno dos
homens que pleiteiam o status de chefe desempenharia o mesmo papel centrífugo das
facções Xavante descritas por Maybury-Lewis, ao passo que os rituais intertribais de
iniciação e morte de chefes atuariam centrípetamente, como se as discordância fossem
momentaneamente anuladas em prol da confirmação e perpetuação da identidade do grupo
local.
Comparando os sistemas de parentesco xinguanos, Marcela Coelho de Souza (1993)
ressalta uma diferença entre os sistemas Aruaque e Carib em relação à classificação de
germanos: enquanto nos sistemas Carib (Kuikuro, Kalapalo) germanos não são distinguidos
por idade relativa, os Aruaque (Yawalapití, Waurá) possuem termos distintos para irmão
mais velho e irmão mais novo. Ressaltamos aqui o fato notado por Coelho de Souza para
retomar brevemente a tese de Michael Heckenberger sobre a origem Aruaque do sistema
regional xinguano. Heckenberger descreve tal sistema ou “sociedade” como organização
hierárquica cuja progressão em direção à “idéia de Estado” (Yoffee, 2001, apud
Heckenberger, 2005) estaria fundada numa estrutura comparável às de “clã cônico” ou
“ramagem” descritas para a Polinésia. Neste tipo de estrutura, as linhagens são distinguidas
em termos de sua maior ou menor proximidade aos ancestrais importantes, sendo tal
distância relativa à ordem de nascimento, com privilégio seja de primogênitos, seja de
últimogênitos.
Heckenberger tenta resolver o “problema” da ambigüidade de status frente à
distinção ideal entre chefes e não-chefes pela afirmação de que a estrutura de linhagens (ou
ramagens) teria se tornado pouco eficiente após a intromissão de fatores externos ao
sistema. Basso, como vimos, rejeita a noção de linhagem como grupo de descendência, mas
encontra na norma de residência um dispositivo de formação de grupos de aliança
diferenciados hierarquicamente. A autora nota que uma tendência à virilocalidade imediata
para as famílias de chefe e uxorilocalidade (em princípio) temporária para os demais levaria
à formação de quase-patrilinhagens aristocráticas em casas habitadas por grupos de irmãos
e suas famílias nucleares. Por este mecanismo, casas de chefes (sempre homens, entenda-
se) tenderiam a permanecer no tempo, enquanto casas de não-chefes tenderiam à dispersão.
Note-se, porém, o deslocamento do foco, na questão da formação de uma classe de chefes,
do grupo de descendência para o grupo de residência: a condição de chefe não estaria
ligada somente ao status herdado, mas também à possibilidade de afirmar este status nas
relações com afins. Com isso Basso abre caminho para a consideração de outros fatores
além da concepção na “fabricação” de indivíduos com status distintivo.
A etnografia de Viveiros de Castro (1977) sobre os Yawalapití estende as
observações de Basso ao relacionar a “flexibilidade” do sistema de classificação de pessoas
ao que poderíamos imperfeitamente chamar de flexibilidade do sistema cosmológico. A
gradação nos sistemas classificatórios observada na distinção entre chefes fortes e fracos
Kalapalo é retomada e explorada a fundo a partir de modificadores lingüísticos que indicam
maior ou menor proximidade dos referentes em relação aos conceitos-protótipos. Para os
Yawalapití, diz Viveiros de Castro, todo ser pode ser classificado como mítico/arquetípico
(-kumã), divino mas também monstruoso, ou segundo um regime de aproximações
sucessivas desse modelo – pode ser a versão natural do protótipo sobrenatural (-ruru), uma
imagem aproximada dele (-mina) ou apenas uma imitação imperfeita (-malú). O importante
é que reencontramos a distinção entre chefes fortes (amulaw-ruru) e fracos (amulaw-
mina). Mais precisamente, a condição de nobreza (amulaw) seria expressão da realização
do protótipo de chefe, uma vez que os Yawalapití entendem que todos os indivíduos
nascem “maus” e tornam-se (“ficam”) amulaw ao longo da vida.
Para entender este processo de “ficar” chefe precisamos rever, com Viveiros de
Castro, a noção de pessoa Yawalapití. Todo o esforço do autor é no sentido de situar o
pensamento Yawalapití como particularmente preocupado com uma lógica de substâncias e
do fazer do corpo. No caso que nos interessa, a chefia, a etnografia obriga a uma revisão da
noção de transmissão de status, pois postula que a pessoa é fabricada não na concepção,
recebendo substância paterna (esperma) e materna (sangue; há controvérsias sobre a
contribuição feminina), mas também nos rituais de transição como a iniciação e a couvade.
Esta fabricação se daria pela perda e acumulação de substâncias determinadas, e também
por sonhos que associam o indivíduo a animais que possuem as características desejadas. A
reclusão, especificamente, seria um momento fundamental de constituição de indivíduos
amulaw, pois ela determina o sucesso do jovem como futuro lutador, condição fundamental
para o exercício da chefia. O amulaw condensa assim dois princípios, a transmissão de
substância na concepção (caráter “dado” da posicão social) e a educação/fabricação
corporal pela indução de determinados comportamentos (caráter “construído” da mesma).
Como vimos, a ausência de termo nativo para designar não-chefes, pode indicar o amulaw
como protótipo da pessoa Yawalapití; como se todo indivíduo, devidamente “fabricado”,
pudesse ser amulaw.
Neste modelo, a associação entre um sistema de classificação gradativa dos seres e a
noção de fabricação da pessoa responde então pela falta de nitidez da fronteira entre
amulaw e não-amulaw, para além dos efeitos da descendência cognática. Mas subsiste no
campo aberto da transformação/fabricação corporal o determinante da descendência, já que
os Yawalapití aparentemente não admitem a possibilidade de um filho de não-amulaw
tornar-se chefe; este chegaria no máximo à condição de líder, de big man, sem receber
distintivos de nobreza. Um dos líderes Yawalapití na época da pesquisa de Viveiros de
Castro, Kanatu, era de família de grandes chefes, mas não era ele mesmo considerado
amulaw, por seu comportamento irrascível (se por defeito de fabricação ou não-
primogenitude, não está claro). Ocupava uma posição de destaque mas subordinada à do
chefe principal do grupo, seu irmão mais velho; Kanatu era um chefe fraco (amulaw-mina),
não por ilegitimidade da descendência, mas por comportamento (1977:222). Idealmente um
grande homem, um grande lutador, generoso, ponderado etc., é um amulaw, mas existe a
possibilidade de não ser assim.
Essas aparentes inconsistências remetem à cosmologia “perspectivista” sintetizada
por Viveiros de Castro (2002c) anos mais tarde, sobre a qual tratamos brevemente (Cap.
2). Refiro-me à possibilidade de mudança de perspectiva entre os homens e destes com
outros seres do cosmos, mudança ligada à transformação corporal, como um impedimento à
fixação de identidade e, logo, de cristalização de lugares de poder. Este modelo radicaliza o
que estava prefigurado na etnografia Yawalapití sobre a contínua fabricação da pessoa, nos
convidando a abandonar os vestígios de determinação hereditária que aparecem na tese de
1977. Nesse sentido, na reedição de seus comentários sobre a cosmologia Yawalapití,
Viveiros de Castro enfatiza a conexão entre os conceitos de fabricação e metamorfose: a
fabricação como tentativa de fixar identidade humana num mundo onde o risco de
metamorfosear-se em outro é constante (2002:73). De qualquer maneira, parece haver uma
diferença relevante entre a noção de fabricação da pessoa e a concepção de que os rituais
são marcadores (símbolos) de status diferencial adquirido no nascimento (Heckenberger,
2005).
Utilizei até agora os termos “nobre” e “chefe” com certa liberdade, que meu
objetivo imediato era mostrar de que maneira certas etnografias mostram e procuram
explicar a indistinção ou ambigüidade de status num sistema social idealmente hierárquico.
Veremos a seguir o problema colocado pela terminologia para a descrição da política
xinguana.
3.2 Poder distribuído: donos, pajés e chefes
Se as sócio-lógicas ou cosmo-lógicas nativas aparecem em algumas etnografias
como impedimento para a formação de classes sociais rigidamente distintas, também a
noção ocidental de “chefe” é (mesmo que implicitamente) problematizada pela percepção
das diversas figuras de liderança das quais nenhuma, em certas descrições, parece
corresponder facilmente a um “chefe”. Em primeiro lugar, consideraremos a
distinção/confusão entre “nobre” e “dono”, que corresponde em certa medida à relação
entre chefe potencial e chefe efetivo, representante da aldeia. Em segundo lugar, veremos o
poder divinatório do xamã como complementar mas também antagônico ao do chefe, caso
que remete mais claramente que o primeiro a uma distribuição contra-cumulativa de força
política.
von den Steinen, quando relata sua segunda viagem ao Alto Xingu, refere-se à
coexistência nas aldeias de vários chefes, havendo sempre um especialmente encarregado
de receber os visitantes: “Em todas as aldeias de certa importância havia diversos chefes
que moravam em diferentes casas; para tratar conosco, um só representava.”(von den
Steinen, 1886:426). Não fica claro nesta observação a natureza da relação entre os diversos
caciques, isto é, se eram rivais ou ajudantes daquele que recebia o etnólogo, e não podemos
ao menos saber como este tomou conhecimento do status de chefe desses homens que
“moravam em diferentes casas”. Pela generalidade da observação poderíamos facilmente
ignorá-la, mas surpreendentemente muitas etnografias posteriores parecem confirmar a
existência de “diversos chefes” nas aldeias xinguanas. Quain é bastante explícito na
caracterização de um chefe (aek) Trume dois subchefes, que deveriam agir como chefes
quando o principal estivesse fora. A função principal deste chefe seria incentivar o grupo a
trabalhar, em sua fala matinal, mas notemos logo que,segundo o etnógrafo, faltava
autoridade ao líder Trumaí. Quain não distingue a chefia como posto e como classe
nobre. Por exemplo, discorre sobre a dificuldade em se estabelecer quem é aek (no sentido
de nobre) e quem não é; diz que alguns filhos de um homem aek o são também, outros não.
Afirmando ser a sucessão ao posto de chefe (aek) idealmente patrilinear, observa que o
jovem que estava sendo preparado para o cargo era filho do irmão do então líder principal;
no entanto, quem assume a posição anos mais tarde informação que Murphy recebe
verbalmente de Galvão é o principal oponente do chefe que havia recebido Quain, um
homem que havia sido classificado como não-aek, ou camará (Murphy & Quain, 1955:
40).
A etnografia de Kalervo Oberg (1953) sobre os Kamayurá antecipa o
questionamento da descendência como via de aquisição do status de chefe desenvolvida no
trabalho de Basso e na noção de “fabricação” da pessoa de Viveiros de Castro. Oberg
distingue “obtenção” e “manutenção” do status de morerekwát, enfatizando a importância
do comportamento quando se escolhe um sucessor ao posto de “chefe”:
habilidade como bom provedor e bom organizador de atividades econômicas e
cerimoniais. (Oberg, 1953: 46) (grifo meu)
A distinção, prefigurada no trecho transcrito acima, entre camada social superior
(nobreza) e posto representativo aparece mais claramente em outras etnografias em que o
homem designado normalmente como o “chefe” da aldeia é não apenas um nobre (filho de
chefes) mas também o “dono da aldeia”. Basso (1969) apresenta em momentos diferentes
os chefes e os “donos” dos lugares públicos, como se fossem posições independentes. Ela
se refere a quatro chefes ativos entre os Kalapalo, sendo um o principal três deles sendo
chefes “fracos”, inclusive o principal. Este homem era também o dono da praça (fugombo
oto), enquanto seu maior rival era dono do caminho de entrada, e outro chefe o dono do
caminho do banho (1969: 207). Aparentemente, a distinção de Basso entre chefes ativos,
pouco ou muito legítimos, e chefes não ativos, simplesmente nobres ou chefes em
potencial, é relativa aos que atuam como representantes do grupo em cerimônias intertribais
e os que não o fazem. Em Viveiros de Castro (1977) a associação entre hereditariedade e
aquisição de status aparece claramente; o autor descreve o chefe como um “donodos
espaços públicos, mas de outras coisas também. Assim havia entre os Yawalapití um
homem que “tomava conta” do grupo, representava-o nas interações formais com outras
aldeias, coordenava a cerimônia de troca; este era o “dono da aldeia” e, ao que parece, são
prerrogativas desta posição as funções normalmente associadas ao chefe exortação do
grupo ao trabalho, representação regional, fala cerimonial. O irmão mais novo do “dono da
aldeia” era considerado “dono” de um grupo dentro da aldeia; com a saída deste grupo,
passa a ser o ajudante principal do seu irmão mais velho. O filho do irmão mais novo,
jovem que então representava os Yawalapití nos contatos com o branco, estava sendo
preparado para substituir o irmão de seu pai como “dono da aldeia” (idem:76). Segundo
informação pessoal do autor, o dono da aldeia Yawalapití tinha um filho homem, apenas
ligeiramente mais jovem que o filho do seu irmão mais moço. Em nenhum momento os
Yawalapíti teriam explicado a Viveiros de Castro as razões para a não-escolha desse rapaz
como futuro dono da aldeia. A “vocação” de Aritana, sobrinho paterno do então dono da
aldeia, era um fato tomado como natural.
Ao escrever sobre a chefia Aweti (grupo Tupi), Zarur se refere a uma tripla
distinção entre uma classe de chefes (morekwat), um chefe especialmente proeminente que
cuida da vida cerimonial da aldeia e profere discursos matinais (também morekwat), e um
posto de “capitão” designado a um homem que representa a aldeia no mundo branco,
especialmente nas relações com o posto na Funai. O autor acredita ter havido uma
transformação do sistema político, com a institucionalização do posto de “capitão”
diferenciado do posto de morekwat. Inicialmente, o termo capitão seria apenas a tradução
do aweti morekwat, que desempenharia tanto a função de chefe “para dentro” quanto a
função representativa. A partir da intensificação do contato com a formação do Parque,
homens da classe dos morekwat, alguém com chances de tornar-se o chefe principal da
aldeia, passam a ser escolhidos pelos funcionários do Posto da Funai –estes procurando
respeitar a estrutura de poder nativa - para representar o grupo nas negociações com o
mundo branco. Zarur credita então à depopulação, que teria confundido as linhas de
transmissão de status, e ao aumento da participação do Posto na vida indígena, a
diferenciação dos dois tipos de chefe. Em princípio, portanto, o autor parece acreditar ter
havido um movimento de descentralização do poder em relação ao passado pré-contato. No
entanto, a descrição prossegue deixando dúvidas quanto à distinção entre a classe e o posto
de morekwat. Zarur afirma, por exemplo, que um morekwat “mais influente” falava
diariamente pela manhã na praça e era o “dono da aldeia”. Este mesmo homem era também
“dono” das flautas sagradas (karytu), posição que Zarur reconhece como especialmente
influente quanto à mobilização de trabalho coletivo, além de implicar na constante
distribuição de comida aos homens da aldeia. Ou seja, apesar de sugerir que a chefia
xinguana teria sido mais centralizada e mais rigidamente fundada na transmissão
hereditária de status num período anterior ao contato, Zarur aponta a confusão entre os
statuses de “dono” e morekwat , nos sentidos de classe diferenciada e chefe principal, entre
os Aweti contemporâneos. Além disso, o autor é bem claro quanto à necessidade de
acúmulo dos statuses cerimoniais e de pajé para a efetivação da liderança dos morekwat.
Basso sugere que a necessidade de acrescentar o status de “dono” ao status de chefe
seria um recurso dos indivíduos ambiguamente classificados, chefes fracos, para aumentar
seu status. Ela aponta a condição de “dono” cerimonial como um meio de obtenção de
prestígio independente das relações de parentesco. O status de “dono”, assim, deveria ser
visto como caminho alternativo para a obtenção do status de chefe representativo. Segundo
a etnografia de Viveiros de Castro, porém, a chefia como atividade não seria indissociável
da condição de “dono”. Lembremos da etnografia de Barcelos Neto (2004) sobre os Waurá,
bastante minuciosa com respeito à aquisição e manutenção da posição de dono cerimonial
(Cap. 2): um indivíduo torna-se dono de uma cerimônia quando adoece devido ao contato
não controlado com espíritos; uma vez curado, o ex-doente passa a promover regularmente
cerimônias em que alimenta os espíritos de modo a garantir sua proximidade não mais
perigosa; a alimentação dos espíritos consiste na distribuição de comida produzida pela
parentela do ex-doente à comunidade em geral, e aos especialistas rituais em particular.
Barcelos Neto avalia a conexão deste processo com a chefia em termos de
“potencialização” e “progressão” de substância nobre, de modo que “por meio de um
processo contínuo e prolongado de familiarização dos apapaatai (...) o cenário mais amplo
das transmissões toma corpo” (2002:296). Nesse sentido, a interpretação que provém da
etnografia Waurá difere bastante da interpretação feita a partir do material Kalapalo.
Muitas outras relações são pensadas em termos de “posse” ou “domínio” (no
sentido de maestria) pelos xinguanos: o feiticeiro Kalapalo é “dono de dardos” que
penetram no corpo de uma pessoa fazendo-a adoecer, conhecimento transmitido pelos pais
aos filhos homens no período de reclusão ([Basso] Becker, 1969: 213). O guerreiro
Kalapalo, herói das narrativas míticas, é o “mestre do arco” (Basso, 1995). Um bom orador
Mehináku é um “mestre das palavras”, o pajé cantador, um “mestre da canção” (para outros
tipos de “dono”, c.f. Gregor, 1977: 250). Basso (1969,1974) traduz o Kalapalo oto
alternativamente por “dono” (owner) e patrono (sponsor), pois o dono de uma cerimônia é
a pessoa que, ajudada por sua parentela, produz comida para distribuir aos participantes do
ritual (especialistas e convidados). Viveiros de Castro (1977) propõe, para os Yawalapití,
uma associação entre o “dono” cerimonial e o pai: ambos estariam em posição de
alimentar/tomar conta o primeiro, na relação com o espírito patogênico (a cerimônia é
“filha” do “dono”, dizem os Yawalapití), o segundo, na fabricação do filho (ver acima
sobre fabricação da pessoa Yawalapití). A relação de “paternidade” mais evidente notada
por muitos etnógrafos é aquela do chefe que fala diariamente e seus “filhos”, a comunidade
que ele aconselha e exorta ao trabalho. Esta fala seria de fato uma prerrogativa do “dono da
aldeia”. Vê-se, portanto, mais uma vez, que o “chefe” pode ser descrito como um “dono”, e
o “dono” como um “pai”.
Vale fazer uma breve comparação entre interpretações da relação “paternal” entre
chefe e comunidade. Vimos que Michael Heckenberger analisa este fato de modo a
justificar a caracterização do sistema xinguano como chefatura, isto é, afirmando que o
tratamento do chefe como ancestral comum, descendente direto dos heróis fundadores e
conexão destes com os homens atuais, teria por efeito a fixação crescente (acompanhando o
crescimento demográfico e a limitação do acesso a certos bens ou símbolos de poder) das
distinções hierárquicas. Com relação ao mesmo fato entre os Xavante, Maybury-Lewis
enfatiza a posição paradoxal do chefe, simultaneamente representante da comunidade e de
uma facção. Ele é pai (real ou classificatório) da sua linhagem, constituída basicamente por
seus descendentes e co-residentes, afins tornados consangüíneos pela proximidade
(1967:227). Torna-se “pai” da comunidade apenas enquanto esta pode ser considerada
isomorfa à facção enquanto sua facção é dominante –, mas isso não implica em fixação
de posições. A própria maleabilidade da estrutura genealógica Xavante indicaria que a
linhagem e, portanto, a legitimidade de status por descendência, constituem mais uma
linguagem que uma coisa. Seguindo a direção de Maybury-Lewis, e a partir da noção de
fabricação da pessoa, Viveiros de Castro sugere que o chefe é tido como realização mais
aproximada de um protótipo, ideal de pessoa xinguano, o que não significa proximidade
genealógica dos ancestrais. A designação do “chefe” por “pai” é retraduzida por relação do
“dono da aldeia” com a comunidade, e assim a figura do “chefe” lugar a um híbrido
constituído pela “nobreza” transmitida e pela condição adquirida de “dono”, partes do
mesmo processo de fabricação.
Comparando os sistemas rio-negrino (a partir de S. Hugh-Jones, 1995) e xinguano
com o sistema político dos antigos Tupi, Renato Sztutman (2005) diferenças em termos
de gradação de valor depositado sobre os princípios de descendência e aliança. Enquanto o
sistema Tupi estaria fortemente fundado na “magnificação” dos guerreiros, quer dizer, na
extensão de sua influência à medida que, capturando inimigos, adquirissem maior potência
e maior renome, os sistemas rio-negrino e xinguano seriam marcados pela combinação
entre transmissão de status e “magnificação” da pessoa que deseja atingir de fato a posição
de liderança. Essa diferença estaria ligada, segundo Sztutman, à relativa estabilidade das
unidades sociais e da posição de poder nos sistemas do Rio Negro e xinguano, em
comparação com a pequena fixação dos grupos sociais entre os antigos Tupi. No caso
xinguano, “um sólido regime de objetivação” (idem:218) responderia pela maior facilidade
com que o poder é transmitido – mesmo a relação com os espíritos, através do patrocínio de
festas, pode ser passada de pai para filho, principalmente as cerimônias realizadas com e
para os espíritos/flautas, lembra Sztutman. O que nos interessa ressaltar é que esta tese não
opõe diametralmente “predação” e transmissão hereditária de status, isto é, não associa
estes modos de aquisição de potência a duas cosmologias distintas, como fazem
Heckenberger e Santos-Granero.
Baseado na pesquisa de Barcelos Neto sobre os rituais de máscaras Waurá,
Sztutman compara os ritos xinguanos em torno da doença e os ritos guerreiros Tupi.
Sztutman sugere, para os antigos Tupi, que a extensão das unidades políticas seria
homóloga à extensão de pessoas; variações corresponderiam à distância entre tempo de paz
e tempo de guerra, este último tornando possível a magnificação do guerreiro e a
conseqüente ampliação de seu domínio político. O autor se pergunta então quais seriam os
mecanismos que permitem essa variabilidade (Sztutman, 2005:226). Ora, se consideramos
a doença xinguana como mecanismo de magnificação análogo à ritualística guerreira tupi,
isso contradiz as considerações de Gertrude Dole (1966) e Michael Heckenberger (2001,
2005) sobre o impacto das epidemias no sistema político xinguano. Segundo Dole e
Heckenberger, a doença teve o duplo efeito de esfacelar as linhagens cognáticas e aumentar
a influência dos pajés visionários, que então teriam passado a representar poder
concorrente ao do chefe hereditário. Alternativamente, inspirados pela tese de Sztutman,
poderíamos pensar na possibilidade de uma maior concentração do poder do chefe por
acúmulo de statuses cerimoniais adquiridos via doença - relacionada à baixa demográfica.
É possível que poucos homens tenham passado a monopolizar diversas posições de “dono”
antes distribuídas por mais membros do grupo. Pelo mesmo raciocínio, poderíamos
considerar a hipótese de a baixa demográfica ter favorecido o acúmulo das funções de chefe
e pajé. O que mudaria completamente as coisas.
O pajé xinguano não herda o status de seus ancestrais. Os conhecimentos do pajé
podem ser transmitidos de pai para filho, mas a iniciação pode ser feita por qualquer pajé
experiente mediante pagamento, o que parece ser mais comum (Murphy & Quain, 1955;
Dole, 1964; [Basso] Becker, 1969; Gregor, 1977; Viveiros de Castro, 1977). Sendo aquele
que profere o diagnóstico sobre a natureza da doença (qual o espírito patogênico, se é mais
ou menos poderoso), é o pajé que define quem vai tornar-se “dono” de qual cerimônia
(Barcelos Neto, 2004). Considerando-se que a chefia é conseqüência do acúmulo de
posições de destaque como quer Basso (1969, 1974) - ou que a descendência nobre do
chefe precisa ser “potencializada” - segundo Barcelos Neto (2004) - pelo patrocínio de
cerimônias de espíritos, a importância do diagnóstico xamãnico na distribuição de poder
político é enorme. A aliança (no sentido não ou não necessariamente matrimonial)
constituiria assim um contraponto ao poder das linhagens nobres, aliança tanto em nível
sociológico (do iniciante com o pajé iniciado não-parente) quanto cosmológico (do pajé
com o espírito que lhe confere poderes visionários).
Basso especial atenção ao papel do poder xamãnico no contexto da chefia. A
autora nota que entre os Kalapalo todos os chefes envolvidos em disputas faccionais são
pajés (o mesmo é notado para os Kam05851(a)-3.4.87(r)3.81866(a)1.666v
hereditariamente a outras aldeias ([Basso] Becker, 1969: 229). Sua influência estaria
fundada não apenas no poder visionário, mas também na ostentação de símbolos de status
adquiridos devido ao poder xamãnico: muito bem pagos por serviços de cura, os pajés
Kalapalo são os indivíduos mais “ricos” da aldeia. Os chefes/pajés também tenderiam a ser
tornar especialistas cerimoniais, pagos por “donos” dos rituais. Ao mesmo tempo, como
patrocinadores de festas, estariam na posição de distribuidores de bens e, logo, de
paradigmas de sociabilidade.
Trabalhando entre os Kamayurá e Yawalapití, Rafael Menezes Bastos (1984/85)
também alerta para a relação entre poder político e poder xamãnico. Destaque-se a
descrição da doença e cura de um pajé Kamayurá: enquanto doente, este pajé entra em
contato com diversos seres (ancestrais) que ensinam a ele canções e práticas antigas da
pajelança. O adoecimento se no contexto de uma acusação de feitiçaria feita pelos
Mehináku (associados a facções Kamayurá e Waurá) contra o grupo Kamayurá-Yawalapití
do qual o pajé faz parte. A recuperação marca o fortalecimento de seu prestígio e a
legitimação de seu poder, tanto pela participação dos mais reconhecidos pajés xinguanos no
processo, quanto pela aquisição de novos auxiliares sobrenaturais e de novos
conhecimentos “tradicionais”. Vale notar que a partir daí o pajé torna-se “dono” (yayat) de
nove festas rituais consagradas a novos auxiliares, intensificando com isso o fluxo de bens
à sua volta.
Sobre os Waurá, Barcelos Neto (2004) afirma que não haveria coincidência dos
papéis de xamã e chefe representativo, o que para o autor representaria um impedimento à
acumulação do poder político. Diferentemente de Basso, contudo, Barcelos Neto não
focaliza as ambigüidades classificatórias que subjazem ao faccionalismo Kalapalo. Se não
dúvidas quanto à legitimidade de um chefe, seu poder é controlado à medida que ele
depende de outros homens de destaque. Se a legitimidade dos chefes nunca é totalmente
segura (como entendemos ao ler a tese de Basso), a própria ambigüidade do status
desestabiliza sua posição a daí a aquisição de outros statuses, quer dizer, poderes, torna-
se estrategicamente importante.
O peso da participação do pajé no sistema xinguano atual contrasta com a
insistência com que Michael Heckenberger recusa em conceder-lhe uma importância
concorrente à da chefia hereditária. Para Heckenberger, no “antigo regime” a doença teria
papel marginal, e conseqüentemente também o pajé, frente aos grandes rituais de
confirmação de substância nobre e produção de ancestrais. Outra hipótese, entretanto,
poderia ser aventada aqui. Menezes Bastos (1987/88/89) sugere que a pajelança xinguana
seria originalmente Tupi (logo, seria uma contribuição tardia ao sistema multiétnico). Caso
verdadeira, esta tese estaria de acordo com a hipótese de uma mesma matriz cultural para os
rituais de cura, a ideologia da identidade alter-centrada e um sistema político não (só)
baseado na transmissão hereditária de status, em oposição à matriz cultural Aruaque e o
sistema político baseado na reprodução de identidade ego-centrada, segundo a descrição de
Heckenberger de que tratamos no capítulo anterior. O que, mais uma vez, mudaria bastante
as coisas.
3.3 Contra-poder: feitiçaria
Vimos que, para Ellen Basso, a ambigüidade da classificação de pessoas seria o
fundamento da disputa pelo posto de chefe. A autora completa a imagem de instabilidade
do sistema político xinguano identificando a feitiçaria como a linguagem por excelência da
disputa faccional. Von den Steinen notara que a acusação de feitiçaria é sempre dirigida a
alguém de outra aldeia; na mesma linha, Quain sugere que a feitiçaria substitui a guerra nas
relações intertribais xinguanas; Oberg também encontra somente xinguanos de outras
aldeias sendo acusados pelos Kamayurá; Gregor nota que a acusação de feitiçaria se dirige
sempre contra um homem não-parente e não-co-residente do acusador. O feiticeiro
xinguano é comumente descrito como paradigma negativo de socialidade, sendo ora
contraposto ao chefe (Gregor, 1977, sobre a oposição homem da praça versus homem dos
fundos da casa), ora ao xamã (Viveiros de Castro, 1977). A feitiçaria, assim como os
conhecimentos xamãnicos, não é transmitida na concepção, mas seria sempre ensinada pelo
pai ao filho no período da reclusão. Sendo assim, o filho de um homem acusado de
feitiçaria será também ele alvo preferencial de futuras acusações, enquanto o filho de um
pajé importante não será considerado pajé a não ser que sua iniciação se torne pública.
Rafael Bastos é talvez o etnógrafo que mais detalhadamente registrou a relação
entre feitiçaria e faccionalismo. Em dois artigos sobre a história recente xinguana do ponto
de vista de alguns indivíduos Yawalapití e Kamayurá, Rafael Bastos faz um levantamento
detalhado de trocas de acusações entre uma facção M
matrimoniais - com uma facção da aldeia acusada. Assim, mesmo que um nome não seja
apontado, o alinhamento do grupo acusador indica ao menos qual grupo da outra aldeia está
sendo acusado aquele com o qual os acusadores não têm parentesco. Num caso analisado
por Bastos, a acusação suscita por parte do chefe principal da aldeia acusada uma reação
em nome da coletividade, do tipo “nós Yawalapití não somos feiticeiros”; mas isso talvez
porque era a sua facção que estava implicitamente sendo acusada por um grupo adverso
Mehináku (ligado a seus opositores Yawalapití).
Uma série de artigos não-publicados de Gertrude Dole, dos quais, infelizmente,
tivemos acesso somente aos resumos, tratam da relação entre feitiçaria e disputa política e
procuram desfazer a imagem do feiticeiro como um pária ou marginal (imagem
especialmente presente nas etnografias de Gregor e Zarur). Em artigo de 1993, Dole
conclui, a partir do levantamento genealógico desde 1880, que todos os homens
considerados de alto status, ou bem assumiram o posto de chefe representativo (tornaram-
se “donos da aldeia” ?), ou bem foram exilados e freqüentemente mortos sob acusação de
feitiçaria. Nos anos seguintes (1994 e 1995), a autora parece ter prosseguido a investigação
no sentido de desconstruir a interpretação da feitiçaria como mecanismo de controle moral
e apontá-la como instrumento da disputa política.
A análise de Rafael Bastos sobre acusações de feitiçaria é interessante, pois desfaz
uma imagem corrente das facções como subgrupos circunscritos à política interna da aldeia.
Bastos descreve as facções como grupos locais interligados regionalmente por casamentos
entre aldeias, sendo, portanto, fatores importantes da integração supralocal, tanto quanto os
rituais intertribais que celebram a morte e a iniciação de chefes representativos. Estes
mesmos chefes seriam o pivô de disputas faccionais, e sua atuação a nível supralocal parece
interferir tanto no jogo faccional quanto a força de sua facção parece garantir sua posição
representativa. Na etnografia de Barcelos Neto (2004), os rituais em torno da doença e da
acumulação de status são enfocados em sua dimensão local, isto é, como máquinas de
reprodução do poder local; a história contada por Bastos amplia o foco de visão, revelando
as repercussões regionais daquelas festas supostamente restritas à comunidade local.
Exemplo evidente deste movimento é o caso do pajé Kamayurá que, acusado de feitiçaria
pela conexão faccional adversária Kamayurá-Waurá-Mehináku, adoece e torna-se dono de
nove festas de espírito (apapaatai), aumentando assim enormemente seu status e
fortalecendo sua facção Kamayurá-Yawalapití. Quer dizer, Bastos não estabelece uma
distinção clara entre grupos de descendência e facções, ambos relacionados regionalmente
por alianças matrimoniais.
A ênfase no conflito coincide, assim, com o questionamento da imagem congelada
de uma sociedade pacífica, e com uma tentativa de abordagem processual que diverge um
tanto da teoria da colonização Aruaque. Nos artigos de Rafael Bastos, os limites da
“sociedade” xinguana parecem ser menos marcados do que muitas vezes se faz crer, uma
vez que índios (“bravos”) como Txikão e Kayabi são alvo de acusações de feitiçaria e
incluídos no jogo faccional como executores pagos por facções do “Alto” (função que
grupos tipicamente xinguanos também podem desempenhar)18. A mesma indefinição dos
limites sociais é marcada em um conjunto de narrativas Kalapalo traduzidas e comentadas
por Ellen Basso: nelas, o interlocutor é muitas vezes confundido no jogo gente X índios
bravos (angikogo) quando este último termo se refere a “nós-Kalapalo” - ou a grupos que
posteriormente fariam parte do sistema de trocas pacíficas - antes da “pacificação”.
18 Quanto à execução de feiticeiros por xinguanos pagos, ver descrição de Bastos sobre execução de chefe
Yawalapití por grupo Aweti pago por facção Kamayurá (1984/85).
Como se casa esta abordagem processual e pouco afeita à substancialização das
unidades sociais com a afirmação, nas etnografias de Basso e Viveiros de Castro, do caráter
representativo e diplomático da chefia? Em primeiro lugar, o chefe nos é apresentado como
um “ser-para a diplomacia regional”, cuja função sica seria a mediação e não a coerção.
Segundo, a moral encarnada pelo chefe é uma moral compartilhada, um ideal de pessoa
xinguano([Basso] Becker, 1969; Viveiros de Castro, 1977). Interpretando uma narrativa
Aweti, Marcela Coelho de Souza sugere que a feitiçaria seria o “elemento de abertura do
sistema” (Coelho de Souza, 2000: 373), quer dizer, enquanto a chefia marcaria a
pacificidade que idealmente define o limite da xinguanidade, a feitiçaria deixaria uma fresta
aberta para que os “de fora” sejam incorporados como Outros segundo o código xinguano,
tornando-se Mesmos. Mais uma vez, testando a hipótese de Heckenberger apresentada no
capítulo anterior, podemos nos perguntar se feitiçaria e chefia hereditária não representam
contribuições de origens diversas (Aruaque versus Tupi ou Caribe) ao sistema xinguano.
3.4 Última consideração: poder ou não poder
O quadro que traçamos a partir, principalmente, das etnografias de Ellen Basso,
Viveiros de Castro e Rafael Bastos é o seguinte: os statuses de “nobre”, “dono” cerimonial,
pajé e feiticeiro são independentes, mas aparecem muitas vezes sobrepostos; “nobres”
efetivam sua liderança sobre a comunidade quando tornam-se “donos” de lugares públicos
ou de cerimônias; homens nesta posição, vulgarmente chamados (para branco ouvir) de
“chefes” ou “capitães”, ou pessoas próximas a eles, são freqüentemente acusados de
praticarem feitiçaria por seus opositores, o que muitas vezes obriga ao seu deslocamento e
resulta na alternância do poder entre facções de uma aldeia; sendo eles mesmos pajés ou
mantendo próximo de si um pajé importante, “chefes” tornam-se potenciais acusadores, isto
é, podem manipular as acusações de feitiçaria de acordo com sua posição faccional. A
posse de poderes xamãnicos, portanto, representa uma via de defesa contra acusações de
feitiçaria. Por outro lado, a associação com seres sobrenaturais colocaria o xamã na posição
perigosa de feiticeiro potencial.
Ao tentar explicar a constituição da chefia dos Tupi da costa, Renato Sztutman cita
uma interessante distinção feita por Waud Kracke para os Kagwahiv (Tupi-Guarani) entre a
capacidade de mobilizar pessoas, criar grupos, que Sztutman chama de liderança, e a
capacidade de representar grupos, que Sztutman designa por chefia. (apud Sztutman,
2005:258-261). Para Sztutman, a chefia seria um desenvolvimento possível da liderança,
uma passagem, pela via da magnificação (no caso Tupi, pela guerra), à diplomacia. A
representação é, assim, vista como uma pausa circunstancial no processo contínuo de
constituição de grupos e pessoas. Fica claro aqui por que a instabilidade (cosmológica e
sociológica) do grupo conduziria à instabilidade da chefia porque a chefia, no sentido de
representação, existe para um grupo representável (e formado na ão do líder, seja ele
detentor de um cargo formalizado ou não). Sztutman sustenta então que a instabilidade
prevista nas cosmologias perspectivistas justifica a crítica à noção de “sociedade” como
totalidade acabada. A multiplicidade de lideranças será analisada em termos de
mecanismos de multiplicação e alternância, a um tempo práticos e
conceituais, [que] descortinam justamente a natureza das chefias
ameríndias, ou seja, a sua recusa em representar uma totalidade como algo
acabado. Se representação há, pois o grupo, ou algum grupo, deve
aparecer de alguma forma, ela jamais se completa, jamais se estabiliza,
impedindo a transcendência das formas sociais e políticas, e mantendo um
estado de imanência, em que a pessoa do ‘representante’ conta bastante
(Sztutman, 2005:263).
Considerando da mesma forma ser necessária, para o exercício da chefia, a
combinação do status hereditário com a aquisição de outros statuses distintivos, Patrick
Menget (1993) chegava a uma imagem bastante diferente do chefe xinguano, a imagem de
um chefe com poder, anti-clastreano. Para Menget, a acumulação de posições de destaque
constituiria o caminho mesmo de efetivação do poder. É por ser em primeiro lugar um líder
que o chefe xinguano tem poder: ele mobiliza uma parentela extensa e produz mais do que
outros chefes de casa da aldeia (1993:69). Além disso, a acumulação das funções de chefe e
xamã – segundo o autor, em 1989 todos os chefes xinguanos eram também xamãs
garantiria a efetividade da chefia. Ele se referiria especialmente ao poder de mandar matar,
via acusações de prática de feitiçaria, como um distintivo da chefia.
A questão, afinal, não é somente sobre como se faz e desfaz - um chefe, mas
também o que o chefe faz. As duas questões estão relacionadas, pois importa saber de onde
vem sua potência, se é que existe uma potência de fato que lhe confere autoridade.
Enquanto essas e outras questões permanecem irresolvidas, notamos somente aqui que a
consideração dos mesmos elementos pode conduzir a interpretações bastante diversas. E
não é mais do que um comentário a essas possibilidades interpretativas que procuramos
empreender aqui.
Conclusão
Procurei analisar os discursos antropológicos sobre a política xinguana, sem a
pretensão de entender a política xinguana “em si”. A leitura das etnografias da área levou-
me a elaborar um problema dicotomizando estes discursos. Colocá-los em oposição foi um
recurso que, em diversos momentos, exagerou na simplificação do que diziam os autores
analisados. O que pode surgir de mais interessante a partir deste método, creio, não é a
crítica a este ou aquele etnógrafo, mas a capacidade de tornar mais evidentes as
perspectivas utilizadas na interpretação do material xinguano.
Como está evidente na apresentação deste trabalho, o problema surgiu de um
reflexo meu de contestação da imagem mais recentemente elaborada a partir desse material,
por Michael Heckenberger. Combinando dados arqueológicos e etnográficos, este autor
situa a polity xinguana numa escala evolucionista em posição comparável a de outras
grandes sociedades amazônicas, como a tapajônica e marajoara. Por ter tido acesso à
etnografia de Ellen Basso antes de ler o livro e os artigos de Heckenberger, e como a
descrição de Basso se parecesse bastante com a parca experiência que tive na aldeia Aweti,
meu primeiro movimento foi questionar a imagem construída por aquele autor. No entanto,
não posso deixar de admitir que tal movimento está ligado à minha formação teórica, e ao
fato de que etnografias como a de Basso (que tomo como precursora, nos aspectos mais
relevantes, de Viveiros de Castro, Zarur, Menezes Bastos, Coelho de Souza etc.) descrevem
o Alto Xingu à semelhança da imagem que me é mais familiar das sociedades das terras
baixas sul-americanas.
Uma diferença relevante entre as imagens comparadas aqui, então, diz respeito às
referências usadas para a interpretação do material xinguano. Heckenberger, seguindo
Carneiro e em diálogo direto com os ecologistas culturais, aproxima o Alto Xingu de
sociedades que fogem ao modelo clássico da tribo ou sociedade da floresta. Parece-nos que
este movimento tem um objetivo maior que a descrição da polity xinguana, qual seja, o
questionamento do conceito de “predação ontológica”, senão para todas as sociedades
amazônicas, ao menos para os grupos Aruaque. Do outro lado, temos um corpo teórico que,
embora fugindo das tipologias evolucionistas, propõe uma imagem das sociedades
amazônicas fundamentalmente semelhante àquela divulgada por Steward e Faron (1959),
como grupos igualitários. Etnografias como as de Basso e Viveiros de Castro compõe este
corpo. É importante notar que a oposição de referências – sociedades igualitárias “da
floresta” versus chefaturas amazônicas corresponde a diferentes referências temporais:
Heckenberger olha para o Alto Xingu do passado e o compara a outras sociedades
amazônicas pré-colombianas, enquanto Basso olha para o Alto Xingu e para as sociedades
amazônicas presentes.
Este último aspecto se relaciona diretamente com o tratamento dado, em cada
modelo, à disputa em torno do poder. Nem Heckenberger nem Basso ignoram sua
existência, nem remetem-na somente a diferenças conjunturais entre “teoria” e “prática”.
Heckenberger toma como “mais verdadeira” a estrutura política pré-colombiana inferida a
partir da combinação da teoria indígena atual com certas evidências arqueológicas, e daí
conclui que desvios desse suposto sistema são resultado de alterações “ecológicas” –
basicamente, da queda demográfica. Basso apresenta o faccionalismo e estratégias de
aquisição do poder diferentes da transmissão hereditária de status - por exemplo, o acúmulo
de funções cerimoniais - como partes integrantes do sistema. Nesse sentido, creio não ser
exagero aproximar sua etnografia da perspectiva clastreana, pois a autora parece
preocupada em apontar os vários mecanismos que impedem a concentração do poder, tanto
pela instabilidade da posição o chefe, quanto pela inexistência de uma camada social
efetivamente distinta.
Na tradição evolucionista, a chefatura é caracterizada, enquanto estágio
intermediário entre a tribo e o Estado, pela institucionalização do poder, a extensão regional
da influência do governante, e algum grau de hierarquia social fundada na transmissão
hereditária de status (Heckenberger, 2005:20). Estes três aspectos são problemáticos em
relação ao Alto Xingu, isto é, aparecem de formas divergentes nas etnografias. A descrição
de uma chefia institucionalizada contrasta com a dupla significação dos termos nativos que
designam tanto uma espécie de aristocracia quanto um cargo de liderança; este, por sua vez,
parece ser, segundo as etnografias de Basso, Viveiros de Castro etc., necessariamente
associado a certos statuses independentes do status de “nobre”. Entramos então no
problema da hierarquia social. Seria o sistema xinguano atual baseado na distinção
hierárquica entre linhagens, com a disputa política ocorrendo somente dentro desta camada
privilegiada? Notemos que a crítica à noção de linhagem para o entendimento da
organização social xinguana (cap. 3) não está diretamente ligada à rejeição da imagem de
uma sociedade hierarquizada, já que é possível haver hierarquia sem linhagens, e linhagens
sem hierarquia. No entanto, a percepção da “flexibilidade” do sistema de classificação de
pessoas, especialmente quanto à extensão amplamente variável das categorias de
parentesco (de modo que a linhagem seja uma “falsa impressão”, como diz Galvão, 1953,
sobre os Kamayurá, e como indica Maybury-Lewis, 1967, sobre os Xavante), torna
problemática a noção de “clã cônico”, uma estrutura de linhagens ordenadas por status
relativo. Assim, tanto o lugar do chefe quanto a camada social de “chefes” perdem seus
contornos. A questão passa a ser a de decidir se tomamos essa pouca nitidez como um
“falso arcaísmo” uma adaptação do sistema a condições histórico-demográficas
limitadoras - ou se a vemos como ambiguidade estrutural, ignorando deliberadamente o
problema da forma que teria este sistema no passado
autor nega a existência tanto de fatores ecológicos restritivos quanto do que chama de
“contrato social” para a limitação do poder, pois questiona esta mesma limitação. De fato,
um dos aspectos fundamentais da imagem da chefia xinguana projetada por Heckenberger é
a afirmação da autoridade do chefe, que controlaria o acesso aos distintivos de status e
principalmente à praça da aldeia, lugar do discurso/ação político. Este controle seria ainda
auto-reproduzido, pois sua transmissão seria garantida aos filhos de chefe nos rituais de
iniciação e rituais funerários comandados pelo chefe. Heckenberger segue
fundamentalmente a crítica à Clastres feita por Santos-Granero a partir da análise do lugar
do sacerdote entre os Amuesha, líder que, longe de ser um prisioneiro do grupo como o
chefe clastreano, seria antes um favorito dos deuses (1993). Caberia perguntar então se,
para Santos Granero, o grupo ele próprio não seria prisioneiro dos deuses...
Não procurei, nas teses apresentadas aqui em oposição à tese de Heckenberger, nem
dados nem formulações que confirmassem a teoria de Clastres sobre o controle do poder do
chefe pelo grupo, até porque esta aproximação o é feita pelos autores analisados. A idéia
de modelo clastreano aqui está mais ligada à percepção de elementos internos ao sistema
político que representariam limitações à autoridade do chefe, de modo que, nas palavras de
Clastres, a “tendência ao sistema” fosse representada pela ação de forças centrífugas em
oposição ao movimento centrípeto/centralizador (Clastres, 1963). No caso xinguano, esta
discussão liga-se ao problema da natureza do poder político. Tanto Heckenberger, num
pólo, quanto Basso, no outro, reconhecem haver uma combinação de hereditariedade e
aquisição de status em vida. Heckenberger, porém, enfatiza o aspecto da descendência,
vista como uma pré-condição para a aquisição de statuses que permitiriam a efetivação da
chefia, enquanto Basso apresenta um campo de manobra muito mais aberto, em que chefia
parece ser virtualmente acessível a todos, mediante a manipulação das relações de
parentesco. O elemento crucial para a efetivação da liderança, na visão de Basso, passa a
ser a aquisição de potência não dos ancestrais, mas dos espíritos patogênicos. É a partir do
contato com estes espíritos que a pessoa torna-se dona de ritual e/ou xamã. Prefigurada na
etnografia de Basso, esta interpretação é também adotada nos trabalhos de Viveiros de
Castro e Menezes Bastos.
Parece haver uma associação entre a constituição do poder pela transferência
vertical de potência (status adquirido por descendência) e um chefe com poder, por um
lado, e a constituição do poder por transferência h
100
povos considerados inferiores como parentes (irmãos mais novos). O que nos interessa
especialmente a este respeito é que a interpretação de Helms permite desvincular dois
aspectos da estrutura política xinguana que na tese de Heckenberger parecem
inextricavelmente associados – a aquisição do poder no eixo vertical (diretamente dos
ancestrais) e a centralização do poder.
Outro problema que aparece na confrontação das etnografias xinguanas é a origem
étnica da cultura regional. Heckenberger afirma não ter havido um processo de
aculturação assimétrica (ou enculturação) dos Tupi, Caribe e Trumaí pelos Aruaque, como
também defende a tese da singularidade do ethos Aruaque em relação aos ethoses Tupi,
Caribe, Pano etc. (todos os demais ameríndios em geral? Não está clara para mim a posição
concedida aos Jê). Lembremos que, em 1965 (e, portanto, quando havia somente uma
monografia extensa sobre um grupo xinguano, mesmo assim fruto da pesquisa
precocemente interrompida de Buell Quain entre os Trumai) Egon Schaden lança a hipótese
de que o sistema multiétnico do Alto Xingu teria resultado da aglomeração dos grupos
locais por necessidade de defesa, sendo que, alegando haver “fracos padrões de liderança”
em cada grupo e uma “paridade de recursos” entre eles, o autor explica que um padrão de
relações horizontais e aculturação intertribal teria se estabelecido. Vê-se assim que a tese de
Heckenberger de que os Aruaque teriam incorporado os grupos adventícios ao seu próprio
padrão cultural está intrinsecamente ligada à afirmação de que estes grupos Aruaque seriam
diferenciados dos demais exatamente porque seus padrões de liderança não eram tão fracos
assim; Heckenberger sugere, de fato, que a estratificação social e a liderança Aruaque eram
desenvolvidas o suficiente para motivar um movimento expansionista de elites
conquistadoras, movimento curiosamente chamado, pelo autor, de “diáspora”.
101
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