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I
Maria Paula Miller Duarte
A Coluna e o Caminho:
tempo e espaço em uma cidade calabresa.
Dissertação de Mestrado, apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia social.
Professor Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
Rio de Janeiro, 2006
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II
Maria Paula Miller Duarte
A Coluna e o Caminho: tempo e espaço em uma cidade calabresa.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia social.
________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte, PPGAS/MN/UFRJ
(professor orientador, presidente da banca)
________________________________
Prof. Dr. Gilberto Alves Velho, PPGAS/MN/UFRJ
________________________________
Prof. Dr. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, IFCS/UFRJ
________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes, PPGAS/MN/UFRJ, suplente
________________________________
Prof. Dr. Andréa Moraes Alves, ESS/UFRJ, suplente
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III
Para Antonio.
IV
Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço e manifesto meu profundo respeito a meu orientador, Luiz
Fernando Dias Duarte, por toda a atenção, disponibilidade e paciência. Sem o suporte intelectual
oferecido com tanta generosidade, essa dissertação não seria concluída.
A Gilberto Velho, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, José Sérgio Leite Lopes e
Andréa Moraes Alves, por aceitarem compor essa respeitável banca examinadora.
Aos professores e ao Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional/UFRJ.
Aos professores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ. Ao apoio de Mirian
Goldenberg antes que eu fizesse essa viagem.
Ao professor Fabiano Gontijo / UFPI, por cada vírgula que me ensinou e por fazer efervescer
em mim idéias novas e paixões renovadas pela antropologia. Ao amigo, minha amizade infinita.
Aos colegas e amigos de mestrado e de graduação, especialmente Carla Ramos, Thiago Passos e
Patrícia Delgado Mafra pelo apoio carinhoso em tantos momentos e pelas conversas tão
imensamente ricas que tivemos por aí, durante todos os momentos de minha formação.
A minha família.
A meu pai e minha mãe; a minha irmã, leitora atenta, e a meu irmão, a quem esta dissertação
tirou o sono; a meus sobrinhos Natasha e Gabriel; a meu cunhado, irmão mais velho, Erik.
Pensei em separá-los neste agradecimento, já que as contribuições de cada um são tão
especialmente distintas. Mas o que eu herdo a cada dia é um conjunto: de imagens, vozes, falas,
idéias, criações, bagunças, carinhos e apoio. E é de uma sorte tão particular que apenas quem
cresceu em nossa casa pode saber do que estou falando. Obrigada, infinitamente.
V
A Léo, Cristina, Emilio, Dinah, Ju, Cláudia, Ricardo, Stephen, Juliana, Sérgio “Cabal”, Flavia; e
a cada amigo que fiz pelo caminho.
Aos amigos de Crotone, em especial à família de Antonio, a senhora Elisa, o senhor Cosimo,
Caterina, Luca, Alfreduzzo e Francesco; ao senhor Giorgio, à Lucia, à Zia Rosina e a cada
colega, aluno e amigo da Scuola di Danza Maria Taglioni; ao professor Cesare Pitto, pela
atenção prestada; a Salvatore, pela amizade eterna; a Vladimiro, Corrado, Aldo, Patty, Nicolo e
todos aqueles com quem fiz a peregrinação a Capocolonna.
Às amigas Luciana e Clarisse, pelo valor incalculável da companhia em casa e nas ruas de
Crotone; a Cristina, pela lembrança que teve no dia de seu aniversário em 2003, que me valeu
esta dissertação; a Andrea e Janaína, pela surpresa de poder falar “brasileiro” em terras
longínquas.
VI
Resumo
Duarte, Maria Paula Miller.
A Coluna e o Caminho. Tempo e espaço em uma cidade calabresa.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/MN. 2005. Dissertação.
Este trabalho parte da observação etnográfica de diversos aspectos da vida social de
Crotone, cidade de cerca de 60.000 habitantes no Sul da Itália, e se centra na compreensão das
noções de temporalidade e espacialidade aí prevalecentes. Tais noções põem em relação eventos
aparentemente díspares e descontínuos – como a interrupção da obra de restauração de uma
praça e um manifesto estudantil contra o fechamento de dois cursos universitários – e constituem
uma teia de significados que serve tanto para melhor compreender tais eventos, como para situá-
las (as próprias noções) dentro de um quadro simbólico abrangente. Compõem a análise
descrições de situações cotidianas e repetitivas, variáveis, fluidas, festivas e eventuais.
Fenômenos importantes e freqüentes em Crotone, como a grande emigração juvenil e as
referências ao passado da cidade (que fora um grande centro espiritual e político da Magna
Grécia) são pensados como pertencentes a um mesmo contexto social e simbólico, que coloca
em confronto categorias como crescer, partir, ficar, acontecer, manter, transformar, história,
velho, novo, mito, ausente, presente e passado. Inclui-se nesse mesmo plano de análise, no
último capítulo, a observação etnográfica do maior e mais importante evento festivo da cidade, a
festa da Madona de Cabo da Coluna.
VII
Abstract
This work derives from the ethnographic observation of several aspects of Crotone’s
social life – a 60,000 inhabitants town in the south of Italy. The ideas of time and space
prevailing there have been the main focus of the work. These ideas allow for a link among
apparently different and discontinuous events, such as the interruption of the restoration of a
central square and a student demonstration against the interruption of two local university
courses. These notions are part of an encompassing web of meanings that allow for the
understanding of such events just as for the ideas themselves. The description of several
kinds of events (daily, repetitive, fluid, casual, ritual) is an intrinsic part of the analysis.
Important and frequent local phenomena, such as the massive youth emigration and the
permanent reference to the past of the city – a great spiritual and political centre in Magna
Grecia – are considered as part of the same symbolic and social context. It is bounded by
important categories of thought such as growth, leaving, staying, remaining, transformation,
history, old, young, myth, absence, presence and past. The last chapter presents the
description of the most important ritual celebration of the town, the Madonna di
Capocolonna Day - as a part of the same encompassing analytical scheme
VIII
Sumário
Introdução
01
Capítulo 1 Uma cidade em obras: crescer,
interromper, permanecer e partir.
09
Capítulo 2 Alguns espaços, tempos e tipos
de sociabilidade em Crotone.
37
Capítulo 3 A Madona, a Coluna e o
caminho.
72
Considerações finais
97
Bibliografia
100
Apêndice Fotos 103
1
Introdução
Antes de ser um trabalho sobre “tempo e espaço” este é um trabalho “em um tempo e em
um espaço”. Em antropologia, porém, isso deve significar mais do que datas e nomes de
lugares. Quando se pensa na etnografia como um método relacionado ao “aqui e agora”,
pressupõe-se que esse “aqui e agora” é fruto de uma interação do tempo e espaço do
pesquisador com tempos e espaços que fazem parte da cosmologia e organização social
daqueles em meio a quem viveu durante o trabalho de campo. E se algo diferencia os “viajantes
comuns” dos etnógrafos, talvez seja o modo específico com que se pretende estar em um lugar
de modo a ser afetado por essa organização. Assim, ter passado um certo período de tempo em
um certo espaço passa a significar tê-los experimentado como temporalidades e espacialidades,
a maior parte das vezes diversas daquelas em que crescemos e de cujos princípios carregamos
conosco.
É desse modo que quando Evans-Pritchard (1978) dedica um capítulo de Os Nuer ao
“tempo” e ao “espaço” (dois capítulos, se considerarmos as relações intrínsecas estabelecidas
pelo autor entre essas categorias e o que chamou de “ecologia”)
1
concentra suas observações
nos modos como aqueles estabeleciam conexões entre períodos, referiam-se a épocas do ano
através das atividades que praticavam, organizavam distâncias e proximidades a partir de suas
linhagens, genealogias e ecologias; tudo isso, penso que está claro, sendo muito diverso de
medi-las de acordo com seus (de Evans-Pritchard) conceitos ocidentais de tempo e espaço, em
segundos e quilômetros, ou datá-las de acordo com os meses do calendário romano que,
segundo o próprio autor, nada tem a ver com os meses lunares que seguem os Nuer. Quando
utiliza-se daquele calendário é apenas para realizar o que Malinowski (1935) bem definiu como
uma tradução, mas seu objeto de interesse permanece o tempo e o espaço no modo como se
organizam e como os experimentam os Nuer – ou como ele os experimentou entre eles.
É nesse sentido que escrever notas etnográficas sobre tempo e espaço em algum lugar,
passa por compreender tais noções, elas próprias, como parte de um substrato cultural mais
amplo. Muitos autores dedicaram trabalhos à questão, fosse para definir seu lugar como objeto
da antropologia – distinguindo suas abordagens daquelas de físicos, astrônomos ou historiadores
1
Como observa Luiz Fernando Duarte: “O próprio Evans-Pritchard inicia sua análise do tempo estrutural opondo-o
a um tempo ecológico irredutível e natural, apenas para reconhecer que ao fim ‘todo o tempo é estrutural’”.
(Duarte, 1986a, p. 1205).
2
– ou mesmo para relativizar alguns modos de categorizá-las que incluíam aqueles no chamado
“mundo ocidental”. Dentre os aspectos distintivos das concepções antropológicas, estavam a
integração indissociável das noções na visão de mundo e no sistema classificatório de cada
cultura e, assim, sua associação com modos de hierarquizar a vida social, classificando,
valorizando e discriminando. De acordo com essa premissa, não se pode conceber configurações
de tempo (e penso que o mesmo vale para o espaço) sem perceber diferenças de relevo entre
momentos distintos, sem buscar encontrar que valores criam tais distinções e sem notar os
marcadores que as ritmam. Revela-se, portanto, como elemento crucial dessa percepção, a
heterogeneidade dos períodos de tempo (HUBERT, 1929; DUARTE, 1986a). Esse tempo
“estrutural” e “sincrônico” passa a ser oposto, como modelo analítico, ao tempo “linear” e
“diacrônico” típico das visões de mundo que caracterizariam a “modernidade ocidental”.
A dicotomia entre estrutura e sincronia, de uma parte, e linearidade e diacronia, de outra,
é cara à antropologia por algumas de suas implicações teóricas que terminam em intrincadas
contradições entre a antropologia e a história. Baseando sua proposta estruturalista nas
premissas da lingüística saussuriana, que distinguia langue (social, interna) e parole (individual,
externa), Lévi-Strauss sugeriu que também na antropologia se privilegiasse a estrutura simbólica
ao ato individual e, assim, o significado à ação e, de certo modo, o mito ao rito (ou o aspecto
simbólico desse segundo a seu caráter de ação, ou histórico) (SAUSSURE, 1995; LÉVI-
STRAUSS, 1945). Alguns teóricos buscaram conciliar, mais tarde, estrutura e história em suas
análises; dentre eles Marshall Sahlins com a noção de “estrutura da conjuntura”.
Mas eu dizia que essa dissertação é sobre “em um tempo e em um espaço”, tanto no
sentido de que não pretende ser um trabalho teórico sobre tais conceitos, quanto – e talvez
especialmente – no sentido de que as descrições e análises nela contidas não foram escolhidas
por um tema que existisse previamente mas, ao contrário, a determinação do tema veio da
percepção de que experiências e noções organizadoras de tempo e espaço em Crotone serviam
bem à tarefa de organizar também a apresentação escrita das situações observadas e vivenciadas
por mim na cidade. O que equivale, de certa forma, a dizer que na Crotone que eu conheci – e
no modo como eu a conheci – tais organizadores foram de central importância. Isso não
significa de nenhum modo que as situações a que me referi estão restritas a essa “esfera” da vida
social – até porque, como foi assinalado anteriormente, tempo e espaço não são “esferas”
independentes e distintas de toda a estrutura que a organiza e compreende simbolicamente. Mas
3
sim que encontrei nessa abordagem um ponto privilegiado a partir do qual tornou-se mais fácil
sistematizar outros, que pretendo poder desenvolver em trabalhos futuros. Isso porque ela
encerra também uma relação que considero fundamental dentre as que pude observar em
Crotone: aquela entre emigração e referência ao passado, dois fenômenos de significativa
importância simbólica inter-relacionados com toda a organização econômica, política, de
relações sociais, familiares e, como não poderia deixar de ser, de tempo e espaço da cidade –
como procuro demonstrar ao longo desta dissertação. Mas pego-me em contradição: comecei
meu texto explicando que tudo começou em um certo tempo e lugar e me adianto em reflexões
sem contexto, antes até mesmo de realizar uma breve apresentação da cidade e de como fui
parar nela.
Enquanto descíamos de Roma para lá, tudo o que sabia sobre Crotone era que se
localizava no sul da Itália (na virada da “sola da bota”, banhada pelo mar Jônio), na Calábria,
região mais pobre do país. Sabia também que a cidade tinha em torno de 60.000 habitantes e
que era cercada por vilarejos com os quais formava a província da qual era a capital. Foi em um
deles, Cirò Marina, que passei a primeira noite de minha estada. Chegáramos, eu, Luciana e
Cristina, na noite escura de 25 de setembro de 2003. Janelas fechadas, luzes apagadas, ruas
vazias. Eram dez horas da noite. No ponto de ônibus vieram nos receber amigos de Cristina,
dentre eles Ida, sua aluna e dona Maria, mãe de Ida, que trabalhava na escola e na casa de quem
almoçaríamos no dia seguinte. Foi a primeira vez que comi sardella – esparramando a pastinha
picante de peixe sobre o pão. Tudo preparado pelas mãos de dona Maria, da massa ao salame,
tudo feito em casa. A riqueza de sabores combinava com a da conversa – ao menos eu achava
que estava combinando, visto que a metade do que se dizia passava a quilômetros de meu
entendimento. De italiano, não sabia uma palavra. Até ali acompanhava, porém, os argumentos
do papo alegre, que girava mesmo em torno de nossa chegada: apresentações da família (além
de Ida, a filha mais velha, Vitória e o pai que não pudera sentar-se conosco à mesa),
apresentações também de nossa parte – minha e de Luciana que, indicadas por Cristina,
chegávamos à Itália para ensinar, em Crotone, Cutro e Isola (os dois últimos também vilarejos)
dança clássica e contemporânea. Até ali, sim, se acompanhava ao menos os assuntos. Difícil
mesmo foi quando a vizinha apareceu na janela falando difícil demais – “é o dialeto daqui de
Cirò!”, explicou Cristina. Lembro-me de ter ainda passeado um pouco com as meninas pelo
vilarejo – quase vazio naquele dia. Prédios bem baixos, ruas tranqüilas, sem barulho de carro.
4
Depois do almoço, veio nos buscar o senhor Giorgio, nosso patrão, para explicar detalhes da
escola, quantas turmas teríamos, nosso horário e tudo mais. Segunda e quarta eu iria a Cutro e
nos outros dias trabalhava em Crotone mesmo, onde moraríamos. Após a conversa, nos
despedimos de Cristina e entramos no carro que nos levaria a casa. Pegamos a estrada, que
ainda não conhecíamos e olhávamos encantadas, com suas fazendas e campos já amarelados
pela proximidade do outono. Em torno de quarenta minutos depois senhor Giorgio avisou:
“Chegamos, essa é Crotone!”.
As imagens de Cirò ainda muito presentes em minha cabeça fizeram-me surpreender em
um primeiro momento com a movimentação de carros e a altura – nem tanta nem tão pouca –
dos prédios. As ruas, porém, próximas à casa estavam também vazias de pedestres. Levei
algumas semanas, do sorvete que tomamos à noite na orla da cidade (que nos foi apresentada
como sua parte “nobre”), para entender realmente o quão pequena era Crotone. Quando entendi
sua pequenez, levei depois mais muitos meses para entender também que ela mudava, que tudo
mudava, dependendo da hora do dia, do período do ano, do calor e – tão claro desde o princípio
– do referencial. E, pouco a pouco, foi curioso notar que essa mudança, esse movimento, estava
presente de muitos modos na vida social da cidade, inclusive como manifestação de um desejo:
querer mudar. Os muitos tapumes de obras, os comentários que eles suscitavam, as freqüentes
comparações entre o que a cidade “deveria ser” e o que ela “era” de fato, por culpa de quem,
pela “mentalidade” de quem, com que possibilidades isso poderia ser resolvido no futuro – ou
não poderia e porque – levaram-me a conhecer o espírito de trânsito da cidade, mas não sem que
ele dialogasse todo o tempo com seu par mitológico, a permanência. Em uma sutil concordância
que incrementava soluções de conflitos e embates de interesses, múltiplos planos de percepção e
construção da realidade simbólica ora se fundiam ora se alternavam, variando entre visões de
mundo que privilegiassem linearidade ou sincronia, as idéias de tradição e inovação como
elementos integrados de uma mesma estrutura. Por outro lado, a história de crescimento de
Crotone, cidade industrial
2
da década de 20 até o fim dos anos 80, enfrentou crises econômicas e
políticas que trouxeram ao processo um acentuado aspecto de descontinuidade e grandes marcas
na memória recente da cidade. No início da década de 90, por exemplo, ao mesmo tempo que a
2
As indústrias instaladas em Crotone nos anos 20 eram as químicas Montedison (fusão entre Montecatini e Edison)
e Pertusola. Já na década de 70, instaurou-se a indústria Cellulosa Calabra, de papel, única que continua
funcionando até hoje.
5
cidade se tornava capital de província, deixando de pertencer à zona administrativa de
Catanzaro
3
, o setor químico viveu graves problemas que abalaram a estabilidade das indústrias
instaladas na cidade. Crotone sofreu com a demissão de um grande número de operários e em
torno de 800 famílias tiveram que deixar a cidade. Outros traumas, alguns ainda bem mais
antigos, eram constantemente recordados pelos crotonenses em suas conversas sobre o
desenvolvimento da cidade e a esperança de crescer, “dessa vez”.
Um dos pontos de grande interesse meu, sobre o qual tento lançar alguma luz nesse
trabalho, é a convivência dos projetos atuais, que dialogam com toda essa memória de traumas,
com a força das referências locais ao “passado glorioso” da cidade. Se as máculas da história
operária, os tapumes das obras, o permanente movimentar-se da cidade eu conheci pouco a
pouco ao longo dos meses que lá estive, a importância de Crotone durante a Magna Grécia,
como lugar onde Pitágoras tinha fundado sua escola e como centro de referência espiritual e
intelectual, dessa eu tinha ouvido falar ainda antes de sair do Brasil. E foi muito interessante ir
descobrindo gradativamente de que modo a forte referência a esse passado, tão presente na fala
de seus habitantes, nos hinos de futebol, nos nomes de praças, escolas, centros esportivos e
sociais, formava também um sistema simbólico que participava ativamente na conformação de
uma visão de mundo. E, ainda mais curioso, buscar perceber de que modo essa visão de mundo
não estava descolada dos novos projetos, de que modo ela se deslocava sem dissolver-se e, a
partir disso, poder refletir sobre as inúmeras correlações de um momento histórico pelo qual a
cidade passava e alguns dos modos como os habitantes pareciam pensá-la ou vivê-la de acordo
com suas teias de significados culturais. Nesse sentido, a memória como questão antropológica
torna-se um elemento fundamental desse quebra-cabeças; e procurei dar especial atenção ao seu
novo lugar nas percepções temporais do mundo moderno.
Penso estar já claro porque motivo sublinhei anteriormente que a abordagem teórica de
Sahlins sobre a saga do Capitão Cook poderia ajudar a pensar alguns tópicos dessa dissertação.
Mas há um aspecto de sua análise que eu gostaria de relembrar particularmente. O caso, que
3
Administrativamente, a Itália é dividida em regiões, províncias e municípios. A Calábria possui 5 províncias:
Crotone, Catanzaro, Cosenza, Reggio Calábria e Vibo Valencia. Tanto vilarejos, distinguidos pelo significativo
termo “paesi” (“países”), quanto cidades (“città”) são igualmente municípios do ponto de vista administrativo. A
distinção que existe, reconhecida por todos, passa por questões muito mais profundas. Traduzo aqui comodamente
o termo “paese” por “vilarejo”, apenas porque por enquanto a relação entre as cidades e os “países” não está no
centro de minhas preocupações. Suas particularidades devem ser observadas – o faço muito brevemente ao final do
segundo capítulo, porém devo ressaltar que o tema é riquíssimo e mereceria considerações bem mais profundas.
Espero ter a oportunidade de abordá-lo com o devido cuidado em trabalhos futuros.
6
associava à cosmologia mítica havaiana acontecimentos históricos, estava relacionado também a
um contato inter-cultural. Na perspectiva adotada pelo autor, que envolve a idéia de
“equívocos”, o entendimento da situação por parte de ambos os lados correspondia a suas
respectivas visões de mundo e dialética internas, relacionadas intrinsecamente (significados e
interesses) como duas faces de uma mesma moeda. A ênfase na significação e conflitos locais,
embora se tratando de um caso de relações interétnicas (em nenhum momento ignoradas pelo
autor) me serve para justificar, até certo ponto, a maneira como interferências “externas” (sem
perder de vista a relatividade do termo) aparecem nesta dissertação. Novas configurações
internacionais alteraram recentemente o envolvimento econômico e político das cidades
européias com um panorama “mais amplo” do continente. Para os fins – e dentro das limitações
– deste trabalho, agentes que poderiam, sob um certo ponto de vista e em dadas situações, ser
definidos como “externos” ou “internos” (onde começa o “lado de fora”?) fazem parte das
análises à medida e no modo em que são descritos em termos de situações etnográficas.
Procurei, assim, ater-me ao material que possuo, sem interpretações que ultrapassem o que pude
observar em Crotone junto a seus habitantes. Há certos termos, por exemplo, citados aqui, que
possuem uma clara conotação de “reconhecimento de fronteira”, mas que permanecem incluídos
em uma conformação simbólica percebida “localmente”. Assim, apenas menciono a “Europa”
quando ela foi mencionada por aqueles crotonenses entre os quais vivi; e a designação “Norte”
ganha ênfase em associação ao fenômeno migratório calabrês. Tais termos se deslocam e
dependem de um contexto de situação para serem compreendidos: o próprio “Norte”, diferencia
Crotone de seus imigrantes chineses, da África e, em certa medida, do próprio Leste europeu,
mas assume outro papel quando de lugar de “imigrantes” (que estão dentro) a cidade passa a
lugar de “emigrantes” (que estão fora). Nesse caso, o Norte passa a ser onipresente, desde que
se esteja fora dela – então, não importa de onde você tenha vindo, os crotonenses sempre te
perguntarão quando você “desceu” para Crotone. Ainda dentro dessa mesma questão, observo
que a própria noção de “Ocidente”, de grande importância como “modelo de análise” em
muitas teorias em que baseei esse trabalho, ganha cores e tons variantes que só têm a enriquecer
muito o quadro quando observada em sua concepção etnográfica: pois não foram poucas as
vezes que, em conversas nas quais amigos crotonenses satisfaziam suas curiosidades sobre o
meu país de origem, o Brasil, ouvi de suas bocas umaqui no Ocidente não é assim”. Entra para
o rol de trabalhos que pretendo poder fazer mais a frente a inserção do “Ocidente” em análises
7
futuras com a concepção que o termo tem para os próprios crotonenses. De quebra, ainda
podemos criar algumas perguntas sobre quem é esta etnógrafa, não ocidental. Quem somos
“nós”?
Dividi a dissertação em três capítulos. No primeiro, parto de duas situações etnográficas
que, de certa forma, sintetizam (ou atualizam como ocorrências) os fenômenos da referência ao
passado e da emigração juvenil. Apresento-as como acontecimentos pontuais no tempo, não-
repetitivos – talvez, sob uma certa perspectiva, “históricos” – para depois contextualizá-los e
relacioná-los entre si, trazendo à tona também seu caráter “estrutural” e até mesmo “cíclico”.
Isso se torna mais patente no primeiro evento em que, até certo ponto, o acaso parece intervir
em uma dada “descoberta”. Desse modo, a relação entre o passado e a migração é, a princípio, a
relação entre os contextos de dois eventos etnográficos. Essa relação, entretanto, deve permear
todo o trabalho, sob diversas formas: passado e emigração podem ser aproximados do
crescimento, do progresso, do Norte, da morte, mas trazem sempre um certo caráter de tempo
“não visto” ou “não presente” que os aproxima. Por outro lado, um certo presente e o cotidiano
entram em cena, já no primeiro capítulo, como peças críticas dessa relação.
O segundo capítulo é dividido em duas partes: na primeira parto de um costume fúnebre
da cidade para desenvolver algumas idéias importantes sobre o modo como as teias de relações
são nela construídas. As noções de pessoa e morte (“desaparecimento”) também tomam espaço
nesse capítulo – e a presença do ausente nas teias de relações traz importantes contribuições
para o desenvolvimento desse trabalho. Na segunda parte do capítulo, passo para a descrição
dos espaços da cidade, centrada não somente nas atividades e referências que os conformam,
mas também na variação das relações que estabelecem entre eles. É a partir dessas descrições de
espaços e deslocamentos que trago o esquema compreendido a partir do costume fúnebre para
perto de minhas observações cotidianas em Crotone. Desse modo, se, no primeiro capítulo,
parto de eventos pontuais, nesse segundo me baseio na repetição (cotidiana, sazonal, cíclica), na
finitude (morte) e na idéia de fronteira (relações entre espaços e tempos).
Por fim, no terceiro e último capítulo, me dedico à descrição e breves comentários
analíticos do maior evento festivo da cidade: a festa da Madona de Cabo da Coluna (la Madonna
di Capocolonna), imagem de Nossa Senhora, em pintura do século XVII, que é considerada a
protetora da cidade. A ela se atribuem muitos milagres, tanto pessoais quanto relacionados a
catástrofes históricas da cidade: invasões turcas, terremotos e epidemias. Sua festa ocorre todos
8
os anos no mês de maio e tem como evento principal uma procissão/peregrinação (os
crotonenses se referem a ela ora por um termo ora por outro) em que se leva a Madona a
percorrer os 13 quilômetros que separam a catedral da cidade e a única coluna que restou do
templo da deusa grega Hera Lacínia.
Morei em Crotone durante quase 10 meses – entre 25 de setembro de 2003 e 15 de julho
de 2004 – enquanto lecionava dança na escola Maria Taglioni. O trabalho determinou em
grande parte minhas primeiras condições de “campo”, por um lado oferecendo primeiros
preciosos contatos e por outro limitando meu horário. Retornei ainda à cidade mais duas vezes.
No primeiro retorno, em fevereiro de 2005, permaneci apenas por 15 dias; mas a visita teve sua
importância nesse trabalho pela oportunidade de estar hospedada na casa de uma família (já
como namorada de Antonio) e pelo fato de não estar na cidade “a trabalho” na escola de dança,
podendo organizar meu horário livremente. No segundo retorno, em maio de 2005, participei
pela segunda vez das festividades da Madona de Cabo da Coluna – e foi então que realizei a
peregrinação inteiramente, até o santuário do Cabo, visto que na primeira vez eu tinha ido
apenas até o cemitério (como fazem muitos crotonenses) para tentar mapear um pouco mais do
resto da grande festa. Além do cumprimento da peregrinação até o fim, essa possibilidade de
observar a festa pela segunda vez ainda foi ampliada em importância porque de sete em sete
anos o quadro transportado é um outro, maior, o que traz algumas diferenciações para o evento
– e 2005 era um desses anos. Nessa minha segunda volta à cidade, permaneci ainda por um mês,
morando sozinha, em uma casa próxima ao centro da cidade. Embora a maior parte de minhas
observações, como era de se esperar, tenha sido realizada durante os 10 meses consecutivos de
estada, entre 2003 e 2004, os dois retornos posteriores complementaram o quadro e
contribuíram para que eu pudesse rever algumas impressões.
O que apresento nesta dissertação são primeiras reflexões, descrições e breves esforços
analíticos. Trata-se de um exercício e espero que, nesse sentido, possa ser percebida como
primeiros passos de um caminho a ser percorrido em trabalhos futuros, mais aprofundados,
maduros e extensos. É apenas um começo.
Os nomes pessoais e de família contidos nas descrições são fictícios. As instituições
citadas nos cartazes fúnebres, no segundo capítulo, tiveram seus nomes substituídos por
números.
9
Capítulo 1 Uma cidade em obras: crescer, interromper, permanecer e partir.
1.1 As perguntas desenvolvidas neste capítulo partem de dois eventos aparentemente
desconexos: uma ocorrência que ameaçava interromper a obra de reforma da Praça da Catedral
e um manifesto estudantil contra a precariedade da situação universitária em Crotone. É das
relações entre esses dois eventos e de suas contextualizações que nascem minhas primeiras
questões. Como foi explicado na introdução, é a partir de relações entre diferentes situações
etnográficas que construo a base desse trabalho. Inicio apresentando eventos que deixam muito
claro o aspecto do momento específico, como uma das chaves para se pensar a dimensão
temporal do trabalho de campo. Suas contextualizações, porém, ampliam esse momento a partir
de suas relações com outros “momentos etnográficos” – esses apresentados aqui de modo
menos descritivo e mais analítico, de modo a caber nas dimensões e propostas desta dissertação.
1.2 Dia 27 de outubro de 2003, na Praça da Catedral: quando saí da igreja naquela
manhã, percebi um movimento diferente na praça. A obra durava meses... Eu mesma nem
poderia dizer quantos, visto que chegara a Crotone em setembro, quando a Praça da Catedral já
estava assim: coberta de tapumes, repleta de material de construção, alguns maquinários
espalhados. Nas laterais sobrava um caminho estreito para passagem, um pouco maior ao lado
esquerdo de quem olhava da igreja. O resto do espaço estava permanentemente cercado por uma
feia teia de plástico laranja, dentro da qual eu via sempre poucos trabalhadores, pouco
movimento, não muito barulho. Naquele dia também era assim, mas alguns homens
engravatados dentro do canteiro de obras, somados a tantas pessoas que observavam curiosas do
lado de fora com os olhos colados na cerca, denunciavam algum acontecimento especial. Desci
as escadarias da igreja e me aproximei.
Circundando a praça pelo lado direito, cheguei ao outro lado e parei atrás de um senhor a
quem decidi pedir informação:
— O senhor saberia me dizer o que está acontecendo?
— Encontraram alguma coisa. — me respondeu como se eu fosse compreender
rapidamente do que falava. Não compreendi; relutei um pouco e tornei a indagar:
— Que tipo de coisa?
Dessa vez ele se voltou para mim um pouquinho aborrecido, enquanto outro senhor, a
seu lado, também se virava para ver de quem eram tais perguntas:
— Alguma coisa velha... — e tornaram a olhar para dentro da obra.
10
Chateei-me um pouco com o que interpretei como uma certa falta de paciência dos dois
velhinhos. Nas pontas dos pés, agora calada, observei dentro do canteiro as conversas
interessadas dos homens bem vestidos e o trabalho atento daqueles abaixados no chão.
Murmurei sozinha um “ah... qualquer coisa de importância arqueológica...” e, surpresa, obtive
respostas (ainda que não tão bem humoradas...):
— Se for mesmo algo importante, vão ter que interromper a obra...
Fiz algum comentário ou pergunta, tentando prolongar a conversa, mas não consegui
soar interessante a ninguém e me vi falando sozinha outra vez. Resolvi continuar o giro ao redor
do canteiro de obras, enquanto pensava que aqueles velhinhos não pareciam muito felizes com a
possibilidade de se encontrar algum tesouro perdido no subsolo da praça. Eu, ao contrário, não
podia controlar minha ansiedade e já sonhava romanticamente com grandes descobertas de
objetos perdidos no tempo, reaparecendo debaixo de meu nariz. Aproximei-me do cercado
laranja outra vez e, puxando assunto com mais algumas pessoas, descobri estar, por culpa de
minha fatal ignorância estrangeira, completamente fora de sintonia com elas. Eu passara
instantaneamente a observar aquele espaço como um “sítio arqueológico”, enquanto todos com
quem falei tinham seus olhares atentos direcionados a uma obra urbana interrompida.
— Ocorre, Maria Paula — me informariam mais tarde Senhor Giorgio e Lucia, na escola
de dança — que todo o subsolo de Crotone é “arqueológico”. E nunca se consegue fazer “em
paz” obra nenhuma por aqui...
Além disso, fui sendo pouco a pouco esclarecida de que nem sempre há financiamento
para escavações. Segundo me informaram alguns amigos, muitas vezes as obras urbanas são
interrompidas e nada se pode fazer em relação às preciosidades arqueológicas encontradas. No
caso da Praça da Catedral, a situação era agravada por sua localização central na cidade: as
redondezas do Duomo são parte importante da vida social, religiosa, cultural, turística e
econômica de Crotone. Os comerciantes, moradores e freqüentadores da região já viam
perturbadas suas atividades. Como eu mencionei no início do texto, já tinham-se passado vários
meses desde o início da obra, o que representava mais motivos para o descontentamento que
provocava a idéia de uma possível interrupção.
Esse caso, porém, pode causar uma impressão equivocada ao leitor que não conheça
Crotone: é importante salientar que os subterrâneos da cidade – e tudo mais o que se refere à sua
história – são motivo de orgulho para todos que por lá conheci. Durante as partidas de futebol
11
locais, quando o time de Crotone fazia lotar animadamente o estádio “Ezio Scida”, a clássica
canção feita especialmente contra seu maior rival, o vermelho e amarelo Catanzaro, repetia o
refrão: “Quando os gregos chegaram/ Foi em Crotone que pararam/ Pode gritar o quanto quiser/
Mas a História somos nós!
4
”.Quando meus amigos de Crotone diziam que por toda a cidade,
não importando onde se cavasse, seria encontrado algo de muito antigo, não deixava de existir
esse mesmo orgulho em suas falas. O mal humor, portanto, ficava por conta de uma insatisfação
com a superfície da obra, ou seja, com a definição do que aconteceria com a Crotone de hoje. O
subsolo da praça poderia coincidir com o valor que os moradores atribuíam ao passado, mas a
rua “parada”, com seu movimento interrompido, provocava danos à vida presente, incômodo,
prejuízos. Na verdade, a expressão usada pelos crotonenses, em italiano claro, era: “rompeva le
palle”, ou seja, “enchia o saco”. Daí, ressalto um primeiro sentimento manifestado pelos
crotonenses com quem conversei a respeito: a profunda antipatia e esgotamento que lhes
provocava um processo interrompido – ou, em suas falas, mais um processo interrompido.
Um outro dado que eu gostaria também de relevar está relacionado a um conjunto maior
de acontecimentos, nos quais a Praça da Catedral estava inserida. Enquanto a riqueza
arqueológica do subterrâneo era quase uma obviedade para as pessoas com quem falei naquela
manhã, a enorme quantidade de obras urbanas que se multiplicavam pela cidade eram motivo de
grande curiosidade – e era essa a expressão dos olhares de quem, rosto colado na cerca de
plástico, observava o que ocorria na praça ansioso por saber a solução do impasse. O subsolo
era um velho conhecido; as reformas representavam uma novidade. Para que comecemos a
pintar o quadro com suas nuances, é preciso sublinhar alguns dados: um deles é o desejo
expresso pelos habitantes de ver a cidade “revitalizada”. Acredito que outros eventos possam
ajudar a compreender a relação entre o orgulho do passado e essa ansiedade em relação às
reformas. Para isso, entretanto, é fundamental que anteriormente possamos nos ater mais um
pouco nas obras urbanas e aprofundar a apresentação do processo pelo qual a cidade passava
quando lá estive em 2003-2004.
1.2.1 O apartamento em que estive hospedada em minha última visita à cidade era
localizado no centro, o que tornava ainda mais visível a pequeníssima dimensão da cidade de
4
“Quando i greci sono arrivati/ A Crotone si son fermati/ Puoi gridare quanto vuoi/ Ma la storia siamo noi”.
(Tradução minha).
12
60.000 habitantes
5
. Em menos de cinco minutos a pé, eu alcançava a Catedral; em tempo similar
a orla. Para, enfim, atingir o cemitério, ponto extremo da área habitacionalmente densa da
cidade, talvez vinte minutos de caminhada me servissem. Entretanto, a quantidade de carros em
circulação era enorme; e não cabia nas ruas. O engarrafamento na rua 25 de Abril na hora de
entrada das escolas era de se querer evitar e procurar vaga para estacionar em qualquer ponto de
Crotone significava, muitas vezes, perder mais tempo nessa tarefa do que caminhando a pé.
Tantos automóveis e engarrafamentos somavam-se, no cenário, a edifícios não tão baixos assim
(com entre quatro e seis andares) que, excluindo-se o Centro Histórico e o caminho para o Cabo
da Coluna, onde as casas ainda predominavam, compunham grande parte da paisagem
arquitetônica da cidade. Na rua Vittorio Veneto, eram lojas de “grife” e joalherias que
ocupavam as bordas da parte restrita aos pedestres. O alto número de obras de urbanização, por
fim, fechava o cenário de uma Crotone em crescimento, que parecia não caber mais em si
mesma.
Em Crotone, ouvi muito “falar sobre” a cidade e esse falar mencionava quase sempre
uma necessidade de crescimento e, palavra muito freqüente, desenvolvimento. As obras que
reformavam a cidade estavam associadas a projetos que se vinculavam a tais noções. A reforma
da Praça da Catedral, por exemplo, era parte do projeto Urban, empreendimento da
Comunidade Européia com objetivo de incentivar o desenvolvimento urbano sustentável de
cidades “em crise”
6
. Crotone se candidatara ao programa, sendo selecionada. As obras
5
Mais precisamente, eram 60.490 em 2003, segundo dados disponibilizados pelo escritório de estatística do
município de Crotone.
6
Nem todas os empreendimentos de “revitalização” da cidade pertenciam ao projeto Urban, sendo em grande parte
competência das administrações municipais e de província; mas a importância desse projeto merece algumas
observações. A exemplo do que é destacado por Otávio Velho (Velho,1997) a respeito do Cone Sul da América
Latina, em que se verifica uma significativa revisão das identidades sociais a partir da constituição do Mercosul, a
presença da União Européia coloca em pauta o tema caro à antropologia, fundamental em sua formação disciplinar,
das escolhas teóricas que priorizem o “local” ou o “global”, ou ainda ideologias “universalistas” ou
“particularistas”. A discussão a respeito da incorporação da “globalização” (muitas vezes percebida como um
objeto em si, mas sendo no artigo citado colocada em questão como perspectiva) envolve problemas complexos
que concernem às relações entre sujeito-objeto nas ciências sociais, bem como aos alicerces identitários da
antropologia como disciplina, sua relação com o “Ocidente”, com repercussões na própria noção de pessoa. O tema
é longo, complexo e foge em suas dimensões ao alcance da presente dissertação; mas cabe aqui não somente
notificar a relevância da questão como, ainda, acrescentar que, embora por enquanto somente sinalizado, ele se faz
presente aqui, através de lógicas que não são necessariamente as da etnógrafa (sendo usuária debutante de um
método “local” por excelência) mas de acontecimentos que formaram, dentre outros vários e suas múltiplas formas,
certos interlocutores de minhas observações. Especialmente porque priorizo, dentre muitos aspectos observados, o
da transformação – não necessariamente associada à “globalização” como objeto, mas certamente relacionada a
algumas das questões que a colocam como possível perspectiva. Destaco, dentre as referência simbólicas que
13
financiadas pelo projeto, portanto, visavam, dentre outras, a reforma de zonas da cidade que
poderiam gerar lucro turístico e comercial, ou que, abandonadas pelas políticas públicas,
apresentassem problemas de cunho sócio-econômico, faltando-lhes estrutura básica para
resolvê-los. As reformas, não eram restritas ao aspecto físico da cidade, estando as obras
urbanas incluídas em um plano mais amplo de ação social, ambiental e econômica. No caso de
Crotone, foram escolhidas como prioritárias três zonas: a Orla Marítima, o Centro Histórico e a
rua Mario Nicoletta, por ser via de acesso ao bairro Gesù, uma “ex-periferia” (aproximada do
centro pela expansão da cidade, mas sócio-economicamente ainda bastante “periférica”)
popularmente considerada uma das regiões “problemáticas” da cidade.
Os outdoors do programa, espalhados pelas ruas, avisavam: “Urban projeta a Nova
Crotone”. A foto, ao lado dos dizeres, mostrava em escala compatível com a enormidade dos
cartazes, um dos mais importantes símbolos da cidade: a coluna sobrevivente do famoso templo
grego da deusa Hera Lacínia
7
. Nos tempos da Magna Grécia – contam os crotonenses – quando
Pitágoras escolheu a cidade como local ideal à construção de sua escola, o imponente templo de
Hera tinha tamanha fama que vinha gente de toda parte para visitá-lo. Tendo sido testemunha do
tempo em que Crotone era uma das mais importantes e ricas cidades de que se tinha notícia, a
Coluna é única que ainda sobrevive. Atravessando a história incólume, resistiu até mesmo ao
terrível terremoto que, tardiamente, derrubou sua última gêmea dentre as quarenta e oito
8
da
construção original. A Coluna é reconhecida como um dos mais importantes símbolos da
cidade. A seu lado, figuram a tão venerada Madona de Cabo da Coluna, (que merecerá um
capítulo à parte nessa dissertação) e Pitágoras.
9
. Outros poderiam ser mencionados e ainda mais
outros estavam sendo como que “resgatados” (ou “reinventados”) na ocasião de minha estada
10
;
exigem reflexões especiais, a identificação de um universo europeu – a partir do qual se poderia pensar a respeito
de um projeto de “europeização da Europa”.
7
A coluna localiza-se geograficamente em um cabo, que deve a ela seu nome: “Cabo da Coluna” (Capocolonna).
Se o cabo, porém, traz no nome a referência da coluna, ela, por sua vez, é conhecida por sua referência ao cabo,
sendo muitas vezes chamada de “Coluna de Cabo da Coluna” (“la Colonna di Capocolonna”). Para clarear o texto,
quase sempre me refiro a ela nesse trabalho apenas como “Coluna”.
8
Há controvérsias quanto ao número preciso de colunas. Sigo a versão muito aceita de Angelo Vaccaro (Vaccaro,
1966).
9
Crotone não poucas vezes é chamada em guias turísticos, imprensa e eventos oficiais de “a cidade de Pitágoras” –
e seu nome é colocado em todo parte: escolas, empresas, agências de turismo, praças. O projeto Urban prevê,
inclusive, a construção de um parque temático “Pitágoras” na cidade.
10
Seria interessante relacionar essa proliferação de “símbolos da cidade” a uma espécie de “crotonização de
Crotone” – paralela a uma “europeização da Europa”. Minhas próprias alunas apresentaram uma coreografia na
inaugiração do Palamilone, um centro esportivo cujo nome remete a Milone, grande atleta crotonense do período da
14
mas os três aqui citados, sem dúvida, são aqueles segundo os quais a cidade forma de modo
mais explicito seu “reconhecimento simbólico”. Assim, nos símbolos reconhecidos por seus
habitantes, incluídos nas canções da torcida de futebol, nomes de praças, escolas e empresas,
Crotone era uma cidade com forte referência ao passado.
Luigi Satriani (1995) já ressaltara essa tendência: “(...) fala-se do presente de Crotone a
partir do passado, à sua luz, que se crê apta a iluminar seus múltiplos aspectos.” (Tradução
minha). O autor destaca a constante presença de uma contraposição entre o “passado glorioso”
de Crotone e seu presente decadente, pobre e vazio de perspectiva. Olhando ele também para o
passado, dessa vez mais recente, da cidade, busca compreender a questão a partir da sucessão de
sofrimentos pelos quais passou a região e que a teriam ameaçado, em suas palavras, como
“forças desagregadoras”. A memória, a percepção do passado a partir do presente e sua
reinvenção tornariam “tempo garantido o tempo ameaçador”, contribuindo eficazmente para a
construção de uma identidade social.
As observações são importantes, mas concordo apenas parcialmente com o autor. Se é
verdade que não devemos tomar a forte referência ao passado como um dado auto-explicativo e
sim buscar compreendê-la em seu contexto social, penso que o modo como Satriani busca esse
entendimento possui um problema: ele “naturaliza” a visão “contrária”, de acordo com a qual é
a partir do presente que uma sociedade “não decadente” perceberia o mundo. Ou seja, sua
explicação é negativa, visto que pretende demonstrar os motivos pelos quais Crotone não
constrói seu universo simbólico a partir do presente. Sem deixar de dar o devido valor à análise,
que assinala não somente interessantes fatores históricos mas também apresenta a questão sob
uma rica perspectiva de registros, que inclui de cartas de viajantes a contos populares, penso que
poderia ser útil uma releitura que tentasse desenvolver mais atentamente as diversas concepções
de temporalidade que podem estar presentes em termos como passado e presente. Já nas
premissas desta dissertação coloquei o entendimento do próprio tempo como um construto
social e acrescento ainda crer que mais de uma concepção diferente possa operar dentro de um
Magna Grécia. Seu nome é associado à força e espírito atlético da cidade. Como um outro exemplo, bastante
curioso, posso citar Rino Gaetano, de quem presenciei um “revival”. Rino era um cantor crotonense, famoso pela
Itália na década de 70, morto precocemente em um acidente de carro, em 1981, aos 31 anos. Nos dez meses que
passei na cidade entre 2003 e 2004 foram lançados um livro com textos e notas biográficas, um cd duplo que
passaria a tocar em bares, boates e, dado interessante, no estádio de futebol. Fizeram ainda um show em sua
homenagem no verão de 2004. Representa um dos poucos símbolos contemporâneos de Crotone e, dentre eles,
seguramente o principal.
15
mesmo grupo social.
11
O próprio caso narrado no início desse capítulo serve como exemplo de
como, em Crotone, não era em qualquer ocasião que o passado (e cabe perguntar que passado?)
prevalecia: o desejo de ver logo livre de obras um espaço cotidiano de sociabilidade como a
Praça da Catedral poderia significar que tal sociabilidade fosse tão importante quanto – ou mais,
em dadas ocasiões – para a constituição de uma identidade social. Afinal, é também em espaços
como aquele, como veremos no próximo capítulo, que a própria cosmologia crotonense se
constitui socialmente.
Assim, neste trabalho busco perceber alguns modos em que operavam as noções
relacionadas a tempo e espaço em Crotone, procurando ao máximo não descolá-las de um dia
passado na cidade. Só a partir delas podemos perguntar, admitindo que parte significativa da
organização simbólica e identitária de Crotone estava relacionada a seu passado, de que modo,
em que circunstâncias e a partir de que valores ele se configura como tal, em sua relação com
outras esferas e noções. Gosto de pensar nessa parcela em que a cosmologia crotonense constrói
como passado a partir da denominação Kroton, nome que a cidade possuía na antiguidade e que
aqui representa um sistema simbólico que a reconstrói hoje sobre determinados valores. Minha
intenção neste primeiro momento, porém, é apenas sugerir caminhos para que possamos pensar
a relação entre tal sistema simbólico, outras concepções de passado e os projetos de
revitalização e desenvolvimento que ocupavam a cidade.
Para isso, o importante de ser ressaltado agora é que a Crotone na qual vivi se parecia
com aquela do outdoor, em que um símbolo tão forte e sólido como a Coluna contracenava com
projetos e reformas – e a eficácia de uma construção milenar de pedras mantinha-se em sua
fotografia espalhada pelas ruas com cola e papel. Era uma cidade em transformação e seus
habitantes me pareciam muito preocupados com a criação de possibilidades. Ser uma cidade
antiga importava muito, mas só poderemos compreender em que sentido e de que modo, se
compreendermos que apenas isso não bastava aos crotonenses. Crotone é pequena e em pontos
importantes, por onde fluía diariamente a vida social da cidade, os tapumes de obras ocupavam
o espaço, reforçando a impressão de grandes mudanças. Os crotonenses, com sua manifesta
empolgação a cada trecho concluído, ou mesmo com seu processo, indagando quem já vira
11
Como exemplo do que quero dizer, posso citar a conciliação das dimensões estrutural e histórica do tempo na
organização ritual dos desfiles carnavalescos no Rio de Janeiro, ressaltada por Maria Laura V.C. Cavalcanti em seu
artigo “O rito e o tempo: a evolução do carnaval carioca” (Cavalcanti, 2001).
16
como ficaria tal ou tal parte da cidade, expressando opiniões, exclamando felizes seu “che
bello!” quando consideravam o resultado satisfatório, declaravam a vontade de ver sua cidade
reformada.
1.2.2 Atrás da Catedral, por sobre a colina, a “Crotone Velha”, ou como era mais
usualmente chamada, o Centro Histórico, parte mais antiga da cidade, cheirava a comida, tinha
o colorido de roupas nos varais e algumas pedras “roubadas” do antigo templo grego de Hera
Lacínia. Sim, me disseram alguns crotonenses que foi com parte do que restava nas ruínas desse
imponente templo, outrora tão caro aos habitantes dali, que gerações posteriores, já distantes
daquele dito áureo período grego, construíram uma parte da Crotone de seus tempos. Havia um
misto de reprovação e reconhecimento, simpatia, nos crotonenses que me contavam sobre os
“roubos” das pedras no templo para a construção da muralha da cidade – e das pedras da
muralha para construção de casas. Riam-se da falta de cerimônia de seus antepassados com seus
antepassados, mencionavam sua ignorância, necessidade, prática e simplicidade. Poderia ser
uma questão interessante para um futuro trabalho pensar o que os fazia rir? Talvez uma
diferença de postura com relação ao templo de Hera, que, em especial a coluna remanescente,
era parte fundamental da Crotone que conheci. Talvez fizesse rir, com aparente simpatia, a
empáfia de pessoas que não se importavam com ele. No discurso de quem me narrava, o templo
de Hera permanecia o mesmo: eles, entretanto, o reconheciam em sua importância, seus
antepassados simplórios, não
12
. Por outro lado, era também parte especial de sua história essa
gente engraçada e sofrida, de quem parecia difícil não sentir orgulho e por quem as narrativas
manifestavam curiosidade e carinho, que tomava “emprestado” as pedras de um templo grego,
as transportava por treze quilômetros e as usava para construir e proteger sua cidade.
Mas não é momento de estender essa reflexão. Comecei pelas pedras do templo
carregadas até a Crotone Velha e já passava às suas casas de hoje, para lembrar velozmente
quantas eras misturadas ocupavam aquele espaço. E aquela área, conhecida como Centro
Histórico de Crotone, foi abandonada por seguidas administrações públicas, não tendo sido tal
abandono evitado por nenhuma eficácia simbólica de muralhas, pedras e templos, mas agravado
por sucessivas crises econômicas. Muitas famílias deixaram suas casas para morar fora dali, em
12
Para informações sobre a crescente “tomada de consciência” do “passado histórico” de Crotone, desde o início
do século XX, ver Turi, 1992. Destaco, a respeito do que conta o autor, a associação entre essa “tomada de
consciência” e o início do movimento juvenil de migração para a realização dos estudos em outras cidades maiores.
Ao longo desse trabalho, se tornará claro como tal dado pode ser muito significativo.
17
um movimento que se iniciou ainda no início do século passado. Tais famílias se transferiram
não somente para outras cidades, mas também na parte nova de Crotone que vinha crescendo. A
história me foi narrada sem detalhes, mas parece que a um certo ponto apenas as famílias mais
pobres, sem condições de mudar-se, permaneceram, enquanto outras em iguais condições
financeiras terminaram por ocupar também as moradias abandonadas – não sei se
espontaneamente ou mediante algum acordo de pagamento – onde teriam construído suas vidas
durante algumas gerações. Tais famílias, porém, não tinham dinheiro suficiente para manter
devidamente restauradas construções tão velhas e, desse modo, o espaço, sem o investimento de
verbas públicas nem mesmo para o saneamento básico (a água encanada chegou há menos de
dez anos) e sem condições financeiras do ponto de vista privado, sucumbiu ao tempo e ao uso,
vendo degradarem-se as estruturas das casas.
Instalaram-se prostíbulos e pontos de venda de droga. Contava-me ainda Vladimiro, um
dos jovens moradores transferidos nos últimos anos ao Centro Histórico, que a situação virou
um problema até mesmo no sentido judicial. Os antigos proprietários não abriam mão
facilmente daquilo que tinham deixado para trás e queriam um pagamento justo pelas casas –
pagamento acima do alcance de quem nelas habitava. Havia ainda quem quisesse a casa de volta
para vendê-la, quem se recusasse a sair, quem quisesse aluguel, quem não o pagasse. Ou seja, os
problemas que assolavam a colina da Velha Crotone, por tanto tempo abandonada à própria
sorte e aos escassos recursos de seus ocupantes, incluíam, além da degradação das casas,
diferentes interesses e lutas judiciais de antigos e novos moradores. Há ainda um terceiro ponto
importante, relacionado ao envolvimento particular, público ou coletivo, com a imagem de
Crotone, tendo em vista a pretendida (e, a julgar por essa narrativa, nova) importância histórica
da “Crotone Velha”, não à toa “Centro Histórico” da cidade. Esse último ponto é precisamente
aquele que pude observar mais atentamente e de perto. Por enquanto, porém, basta que o
tenhamos em conta, para não esquecer do valor cultural, turístico e econômico que aquela parte
da cidade poderia ter; grande demais tal valor para que ela pudesse ser tranqüilamente
transformada política e socialmente em uma periferia (“periferia” no sentido social, não por sua
localização que é, ao contrário, central). Dito isso, podemos prosseguir a partir das soluções
encontradas em termos de políticas públicas para os impasses que emergiram na região e como
eu tomei – ainda que de maneira não aprofundada – conhecimento deles.
18
Penso que a questão seja realmente interessante: descobri pouco a pouco não ser por
acaso significativa a quantidade de amigos que se mudou para a “cidade velha” no ano e meio
que se passou desde que fui morar em Crotone até hoje. Quando conheci a belíssima casa de
Salvatore, ainda nos primeiros meses de minha estadia, ele me disse algumas palavras sobre
como estava feliz por morar por ali, no – e pronunciou atentamente a expressão – Centro
Histórico. Eu comentei compreender sua alegria, porque considerava aquela a zona mais bonita
da cidade (desde minha chegada não me cansava de passear por lá) e a casa era verdadeiramente
encantadora. Havia pouco que sua família terminara as principais reformas – mantendo na adega
as belíssimas paredes de pedra – e realizara a mudança. Nesse ponto da conversa, reconheci
uma certa “defesa cívica” nas palavras de meu amigo, ao acrescentar o quanto tal localidade
merecia ser valorizada e desconfiei pela primeira vez das questões que a envolviam. Somei a
impressão – e esse é mais um ponto importante – aos avisos de alguns conhecidos para que eu
não andasse desacompanhada durante a noite por aquela área da cidade, alertando-me sobre o
“tipo de gente” que lá habitava. Passaram alguns meses. A Salvatore, seguiram-se Aldo e
Patrícia (recém-casados), Lucia e Emílio (cujas casas anteriores ao casamento, devo dizer, eram
já próximas dali) e, por fim, novamente Salvatore, que deixara a família para morar só,
mantendo a decisão pelo Centro Histórico. Havia ainda Vladimiro (que também morava
sozinho) e o jovem casal Caterina e Luca, que conheci tempos mais tarde, tendo os três
comprado suas casas no Centro Histórico no ano anterior à minha chegada.
Fui descobrindo, à medida que ouvia não somente os novos moradores, mas também
pessoas que moravam em outros locais da cidade, ser pouco original o discurso de meu grande
amigo Salvatore sobre a valorização (ou “revalorização”, em certas falas) do Centro Histórico
de Crotone. Tal discurso contrastava com o outro, sobre o tal “tipo de gente” – alerta que, dito
por outras, certamente não se estendia a nenhuma dessas pessoas que eu conhecia.
Curiosamente, eu fui apresentada simultaneamente à má fama do Centro Histórico e ao seu
valor. Verdade que esse segundo tópico vinha muitas vezes com ares de “recuperação de uma
área enferma”... Afinal, o processo de “valorização” não sucede quando a algo se dá já tanto
valor. Com o tempo, os alertas sobre a “má freqüência” do Centro Histórico e as defesas de seu
valor, apesar de distintos, não me pareciam mais coisas exatamente opostas. Embora – é
importante deixar claro – fossem proferidas por pessoas diversas, havia um diálogo coerente
entre o que diziam ambas sobre como era e como deveria ser o espaço da “Crotone Velha”.
19
Cheguei a me indignar certa vez, quando ouvi uma pessoa – não habitante da área, mais uma
vez é importante ressaltar – dizer que era uma pena que um espaço “tão importante” fosse
habitado pelo que definiu como “a pior gente de Crotone”. Nunca ouvi declaração semelhante
ser feita por nenhum de meus amigos que por lá morassem, mas o que não posso deixar de
observar é que havia uma perversa e, ao meu ver, infeliz sintonia entre tais idéias e a
transferência de tantos novos habitantes para a área. Como não consigo evitar que transpareça
minha opinião sobre o assunto, devo esclarecer que qualquer desapontamento que eu possa
demonstrar não é de modo algum direcionado às pessoas que se transferiram para o Centro
Histórico – eu mesma escolheria sem dúvida aquela área para habitar, se pudesse – mas com a
lógica que geriu o que descobri ser uma política de incentivo à nova ocupação da área.
Voltemos à questão da disputa de interesses e moradias no Centro Histórico. Foi ainda
Vladimiro que me contou o resto da história, que foi parcialmente confirmada e refutada por
funcionárias do Município com quem conversei. Em linhas gerais, para resolver a pendenga,
passou-se a incentivar a compra das antigas casas por preços razoáveis (ou com o reembolso
posterior de parte do pagamento), que fossem suficientes para calar a insatisfação dos antigos
proprietários e permitissem, ao mesmo tempo, que os novos compradores conseguissem ainda
realizar as reformas necessárias com o dinheiro de seus próprios bolsos. Em contrapartida,
foram construídas, em bairros periféricos, novas casas que, justo por serem tão novas, não
precisariam de reforma alguma. Nelas, morariam aqueles ex-habitantes do Centro Histórico que
quisessem trocar suas velhas casas, que já caíam aos pedaços, necessitadas das obras que eles
não podiam custear, por aquelas na periferia, novas e inteiramente doadas, para que finalmente
pudessem ser proprietários legais de alguma coisa. Um velhinho – contava meu amigo – seu
vizinho, ficara tão contente por poder realizar a troca, que o fizera emocionar-se. Sob esse ponto
de vista, tal política pretenderia solucionar a questão de interesses em torno das antigas casas
gastando o mínimo possível do dinheiro público: a quem dizia querer uma casa, dá-se uma casa
– em outro lugar. A quem dizia querer ver garantidos seus direitos de propriedade, dá-se esses
direitos, arrebatando de lambuja o problema da restauração, visto os incentivos dados aos novos
compradores. E ao interesse coletivo, também muito incentivado, de ver valorizado o Centro
Histórico da cidade, belo e ajustado, provendo lucros à cidade com lazer e turismo, em suas
20
palavras “como tantos outros centros históricos de tantas outras cidades da Itália”
13
? Dá-se
uma “Crotone Velha” novinha em folha, renovada também nas pessoas (eu deveria escrever no
“tipo de gente”?) que nela habitava.
Apesar de minha antipatia declarada pela coincidência entre a solução prática encontrada
para o problema das casas ocupadas do Centro Histórico e a manifesta idealização de reforma,
que passaram por excluir seus ocupantes da região, meu objetivo acerca da questão não é
discuti-la e analisá-la diretamente como política pública, ou sugerir soluções menos
assimétricas. Visto que me faltou acesso a uma das partes envolvidas, seria bastante
constrangedor tentar pensar etnograficamente no problema com dados à metade, segundo os
quais o velhinho da história de Vladimiro será sempre da história de Vladimiro: não o conheci
pessoalmente. Infelizmente, as pessoas que habitavam no Centro Histórico a quem tive acesso
foram somente aquelas da “nova Crotone Velha”, com idade próxima a mim, chegados há no
máximo um ano. É a partir desses amigos que chego, por fim, no ponto que me interessa
especificamente para esse trabalho: criar perguntas, a partir do que pude conhecer sobre o caso
do Centro Histórico, sobre o modo como, a partir de uma “reforma”, compõe-se, um novo
lugar.
Alguns autores distinguem rigidamente as noções de “lugar” e de “espaço”
14
. Para o
presente trabalho, porém, em que o próprio espaço é percebido em seu aspecto social e,
portanto, relacional, não seria útil uma distinção teórica rígida entre as duas noções, visto
inclusive que não há uma exigência de base etnográfica para tal diferenciação
15
. Nesse sentido
etnográfico, porém, cabe salientar para entendimento da própria descrição, que neste capítulo e
13
Remeto à nota número 4.
14
Definições distintivas entre “lugar” e “espaço”, porém, podem ser úteis, não pela diferenciação entre os termos,
mas pelo que importa mais em um conceito teórico: a possibilidade de se descrever/analisar fenômenos sociais que
se aproximem daquilo que ele condensa. Para os próximos capítulos, portanto, embora eu continue a priorizar o
termo “espaço”, pode ser que algumas definições de “lugar” se tornem úteis. Cito, brevemente, algumas: Michel de
Certeau considera que o primeiro está associado a sua definição geométrica enquanto o segundo se constitui como
tal através do movimento. Assim, o espaço é o lugar revisto pelos deslocamentos que se dão em sua “prática”
(Certeau, 1990). Augé dialoga com Certeau, criando sua própria definição de lugar a partir do que chama de “lugar
antropologico”: relacional, identitário e histórico – e opondo-a ao que denomina “não lugares” (onde não haveria a
três características anteriores) (Augé, 2001). No mesmo texto, Augé cita ainda Merleau-Ponty, que faz uma
associação entre palavra e lugar, sendo o espaço definido como a palavra dita (“apreendida na ambigüidade de uma
efetivação (...) colocado como o ato de um presente (ou de um tempo)”) (Augé, 2001, p. 75). Guardemos tais
definições para utilizá-las em outro momento.
15
Em linhas gerais, tomo “espaço” aqui já como um conjunto em que aspectos “sociais” e “físicos” são
indissociáveis, e que pode ser a “soma” de duas idéias encontradas em Simmel sobre as “formas de socialização”:
espaço como “condição”, “meio”, de sociabilidade, mas também – e especialmente – como o que o mesmo autor
define como “fatores espirituais” que o constituem. (Simmel, 1986).
21
no próximo o lugar, ou mais precisamente, sua faceta de outro lugar (lugar em relação) ganha,
para além de sua dimensão social-espacial um aspecto de posição dentro de uma organização
estratificada que se relaciona com as questões relacionais e identitárias a partir também (mas
não somente) dessa organização
16
. Tal estratificação tornou-se mais clara quanto mais
transformações, reformas, deslocamentos pude observar em Crotone.
É assim que a noção de lugar vem tomar posto neste trabalho a partir justamente de uma
reforma, que a transformaria em um outro lugar. Aqueles que passaram a habitar ali, possuíam
certas posições na teia de relações da cidade (sobre a qual me debruço com mais atenção no
segundo capítulo) que alterava a relação que aquele lugar, no modo como era reconhecido tanto
pelos “de fora” como pelos “de dentro”, tinha com o resto de Crotone. Em outras palavras, o
processo de transformação de sua identidade se dava a partir de uma percepção do espaço
através da teia de relações hierárquicas que posicionava seus habitantes e freqüentadores. Essa
mesma relação com o espaço incluiu a criação de mais um novo lugar, longe dali, que abrigasse
em uma periferia as relações periféricas que antes tomavam palco em uma parte do centro da
cidade. Com relação a esse processo, caberá ainda perguntar: que relações com o Centro
Histórico estabelecerá a nova geração que vagarosamente o ocupa? Que nova “Crotone Velha”
foi essa que conheci, que ocupava ainda o mesmo espaço de uma outra e estava relacionada a
um projeto que pretendia transformá-lo?
Parece-me, nos discursos e práticas da “classe média” jovem com a qual convivi em
Crotone, que as relações pessoais encontradas no presente e no passado recente do Centro
Histórico eram associadas de modo certas vezes positivo, outras vezes negativo, com o que se
esperava que fosse compatível com o valor histórico do lugar– e devo marcar a relevância do
termo valor. Aquele espaço era reconhecido como um local de importância singular devido ao
tempo de sua existência, ao valor simbólico desse tempo, percebido como “histórico”, mas não
devido à sua existência história presente que, aliás, poderia (e deveria) ser alterada em nome
daquele valor. A aclamação do velho, nesse caso, era feita às custas de transformá-lo, em termos
16
Nesse aspecto difere-se muito também da expressão brasileira “ponha-se no seu lugar”, visto que nela apenas a
organização estratificada está em jogo. O “outro lugar” inclui essa organização mas não se restringe a ela, pois é
“outro”, identitário, diferencial, constitutivo de um “outro espaço” com esferas que não poderia jamais ser
compreendidas apenas em referência à estratificação. O termo “outro lugar”, com os ares que ganha nessa
dissertação, referindo-se a grandes diferenças em termos de “modo de vida”, “tipo de relações” e, ao mesmo tempo,
definido também por uma assimetria entre “lugares de centro” e “periferia” (podendo ser o “outro lugar” tanto um
quanto o outro, postos em relação), o devo a minha colega Carla Ramos, mestra em antropologia pelo PPGSA
IFCS/UFRJ – que o cunhou em nossas frutíferas conversas.
22
de relações pessoais e modo de viver, em outro lugar. Essa transformação era desejada
especialmente por tudo aquilo que proporcionava de novo e que, sobre essa base renovada,
permitiria desenvolver uma restauração do valor do velho. A relação entre o velho e o histórico
pode também ser pensada a partir desse caso. Parecia-me ser visto como mais “politicamente
correto” chamar a região de “Centro Histórico” do que de “Crotone Velha” ou “Cidade Velha”,
termos que algumas vezes fui sutilmente corrigida ao repetir:“Centro Histórico”, diziam sobre
minhas palavras. Talvez o velho fosse atualizado através do histórico? Talvez a noção de
historicidade fosse mais associada ao valor do presente, ou mesmo do passado, mas não do
velho?
É de grande interessante para este trabalho observar como tais questões estavam
integradas ao modo mítico (sincrônico e simbólico) crotonense de pensar a história na cidade.
Se invertermos a frase de Satriani “em Crotone se olha o presente à luz do passado”, vemos que
o passado é “a luz com a qual se olha o presente”: a teia de significados (GEERTZ, 1976) a
partir da qual se organiza simbolicamente a vida social – mas a relevância da observação é a
percepção dessa concepção mítica, simbólica da história, fundamental não somente à identidade
de Crotone, mas à sua cosmologia. Embora, como já destaquei anteriormente, eu não acredite
que essa seja a única maneira pela qual se organiza a percepção do tempo em Crotone (e esta
dissertação pretende indicar outras), penso que podemos concordar com o fato de que esse é um
modo freqüente de fazê-lo, organizando, a partir de um certo passado, um certo presente no
universo social crotonense. Sublinho, desse modo, uma sobreposição de visões de mundo
diversas, que, se em termos de interesses nem sempre eram tão harmônicas, em termos de
significados nem sempre eram tão divergentes assim. Não à toa remeto à teoria de Marshall
Sahlins. Penso que fosse possível reconhecer movimentos incessantes que portavam Kroton de
uma parte a outra, em um curioso processo de historização do mito e mitificação da história.
Talvez pudéssemos buscar naquele autor um rico instrumental teórico para compreender esse
duplo processo: se percebemos Kroton como parte importante da cosmologia crotonense, nos
podemos questionar, sobre os eventos descritos nesse capítulo, se não caberia pensá-los como
metáforas históricas (SAHLINS, 1981).
Mas a relação entre concepções do tempo com um fundo mítico que as amparasse como
visão de mundo e códigos de valor nos porta ainda a uma outra questão crucial desse trabalho: a
23
memória. Neste ponto do trabalho, apenas assinalo dois aspectos seus que pretendo desenvolver
mais à frente:
a) Vernant (1973) assinala a importância de Mnemosyne durante o período de tradição
oral grega entre os séculos XII e VIII a.c. e sua relação com a função poética. Poetas e
adivinhos compartilhavam a visão direta aos tempos que escapavam aos mortais. O passado a
que se refere o autor, é um desses tempos, não antecessor do presente, mas sim sua fonte.
Comporta o que vem antes e depois. Como explica Duarte (1983), “Se o passado é uma
dimensão do além, este é na verdade um ‘espaço’ alternativo e inverso ao da physis”. Nesse
contexto, “Qual a função da memória?” – indaga-se Vernant: “Ela não reconstrói nem anula o
tempo. Ao fazer cair a barreira que separa presente e passado, lança uma ponte entre o mundo
dos vivos e o do além (...)”.O tempo que se configura nessa concepção não é um tempo único e
homogêneo; é o tempo das origens, no qual o ritmo é dado por genealogias que diferenciam
durações e fluxos. E essa memória, citando novamente uma vez Duarte “(...) não tem portanto a
‘profundidade’ linear de nossa temporalidade, mas (...) uma ‘espessura’, (...) relativa à
permeabilidade entre as esferas coetâneas do humano e do divino”. A memória garantia aos
mortais a possibilidade permear outros níveis cósmicos, sem esquecer – e lembrar, é um modo
de permanecer, de sobreviver à morte. Interessam aqui particularmente a percepção do passado
como uma dimensão de tempo não visível aos mortais e a função da memória como fonte de
permanência.
b) Duarte demonstra como as idéias relativas à finitude e a essa concepção “não
profunda” mas “espessa” do tempo se transformam com novas concepções de temporalidade e
de pessoa: enquanto a pessoa cristã medieval tinha seu tempo de vida (“vôo da flecha”) pessoal
inscrito em uma eternidade estática, indiferenciada e onipresente; o “indivíduo racionalista”
deixa de circunscrever seu “vôo pessoal” nessa eternidade e passa a compreendê-lo como um
micro-tempo (visto que passa ele próprio a ser um micro-universo) de um Tempo e Universo
infinitos. As mudanças relativas à construção da pessoa, do tempo e da morte deslocam também
o papel da memória, agora progressivo – correspondente à visão de mundo individualista e à
concepção linear do tempo. Compreendendo o modelo individualista-racionalista como uma das
formas (e não como aberração) dentro de um quadro de articulação do holismo, paradoxal
porque nega a hierarquia e a totalidade, o autor busca compreendê-la através dos mitos e ritos
que lhes são particulares, mas que as suportam como ocorre em qualquer cultura – e não por
24
uma suposta ausência destes. Em especial a partir da observação da psicanálise, de cuja busca
da “cena primitiva” traz uma correspondência direta do tempo mítico – porém centrado, dessa
vez, na pessoa – Duarte aponta por um deslocamento da memória para uma significação
“presente”, relacionada menos ao passado do que a uma “identidade social”. Em outro momento
do texto, remete a uma volta da memória como meio de se fabular o futuro – em uma curiosa
sintonia com seu papel “não profundo” nas sociedades gregas arcaicas.
Parece-me que seria bastante pertinente refletir sobre o processo que observei em
Crotone como uma re-alocação de Mnemosyne. As articulações entre uma visão mítica do (a
partir do) passado com uma sua atualização presente a partir de noções que correspondem a
uma temporalidade linear (progresso, desenvolvimento) constituem meu ponto chave de
argumentação. Assim, temos o passado mítico atualizado como um passado histórico ou como
uma mítica histórica. É curioso observar que a memória do passado como fonte de identidade
presente está diretamente associada, no caso da Praça da Catedral, com uma onipresença de
Kroton – “não importa onde se cave, sempre se encontrará algo de muito antigo no subsolo de
Crotone”. Interromper a obra, porém, para trazê-lo à superfície seria eliminar sua possibilidade
de convívio subterrâneo do mito tanto com o tempo linear (progresso) mas também com o
espaço de sociabilidade cotidiana onde ambos se difundem e afirmam como identidade presente.
Antes de passar a um próximo tópico, é necessário sublinhar ainda o grande número de
jovens casais – e mesmo de solteiros independentes – no Centro Histórico em reforma. Há uma
outra zona da cidade, no caminho para o Cabo da Coluna, que é também muito procurada por
jovens moradores. Esses jovens introduzem uma nova questão, que desenvolvo a seguir, sobre a
necessidade de criação de novos espaços na cidade, que permitam seu crescimento. No caso do
Centro Histórico, o ponto me faz recordar um comentário de meu amigo Vladimiro sobre a
constante presença de crianças por ali. Essa presença decorreria, segundo sua análise, do fato de
que em outras áreas da cidade, como o condomínio no qual habitara com seus pais, apenas uma
geração crescia e depois o local se via tomado apenas pelos genitores que não se transferiam. De
acordo com Vladimiro, os casarões do Centro Histórico abrigavam gerações e gerações da
mesma família, cujos filhos, ao crescerem, permaneciam no local, criando ali seus próprios
filhos, e os filhos de seus filhos etc. A possibilidade de refletir sobre as relações entre
permanência, crescimento e transformação me parece interessante – e de que modo tais relações
dialogam com a necessidade de criação de novos espaços. Ainda nesse contexto, a presença de
25
solteiros morando sozinhos, situação muito rara em Crotone, introduz a questão ainda em um
outro conjunto de discussões, sobre os possíveis modelos de família (e valores familiares)
crotonense. Dentro dos limites etnográficos deste trabalho, ela pode ser pensada a partir de sua
relação com o segundo evento que compõe este capítulo: um manifesto estudantil.
1.3 Dias 12 e 13 de novembro de 2003: Estando próxima à rua Vittorio Veneto, no dia
anterior, eu fora atraída pelo som de atabaques, que me levaram a encontrar, na praça em frente
à sede do Município, um enorme número de jovens cercados de bandeiras vermelhas. Alguns
faziam malabarismo e, em uma barraquinha, outros enfeitavam os cabelos com “tererês”. Logo,
como era de se esperar, encontrei alguns alunos que, de maneiras diversas, me explicaram que
se tratava de uma manifestação contra a política de educação implantada pela ministra Moratti.
Acabei conhecendo, naquele dia, dois jovens universitários de Crotone, Ricardo e Iaco, que
integravam respectivamente a Sinistra Giovanile e a Gioventù Comunista, movimentos
estudantis que tinham organizado o evento. Conversando com ambos, fui avisada de que, no dia
seguinte, uma manifestação maior ocuparia aquele espaço, para tratar de um problema relativo
ao consórcio universitário local. Foi assim que me encontrei ali, no dia seguinte, no meio de um
número enorme de estudantes, na sua maioria cursando a scuola superiore (nosso ensino
médio). Vários alunos meus haviam faltado à escola para estar ali, ou saído mais cedo. A cena
era alegre, com o mesmo vermelho das bandeiras do dia anterior, a mesma tenda de tererê,
bongôs e malabarismos, o Comune repleto. O movimento crescia, coordenado pela Sinistra
Giovanile e pela Gioventù Comunista. Então, um dos rapazes do movimento pegou o megafone,
enquanto sentávamos todos no chão da praça. Pediu silêncio. Três ou quatro jovens
universitários de Crotone tiveram sucessivamente direito à voz no precário megafone. A fala
firme e vibrante, com o tom que aumentava e diminuía provocando aplausos e gritos de
aprovação, explicaram e opinaram, um por vez, sobre o problema que sofria o pequeno
consórcio universitário de Crotone, com cursos oferecidos ali por duas universidades calabresas,
sediadas em outras cidades.
São apenas 3 cursos, dentre os quais o de Ciências dos Serviços Sociais
17
, que estava
sendo ameaçado de fechar. Os alunos protestavam contra sua extinção, atestavam sua
17
Os outros dois cursos são os de Ciências Jurídicas e Engenharia Logística. No total, a universidade conta em
Crotone com cerca de 750 alunos. (informações disponibilizadas no sítio virtual da Província de Crotone:
http://www.comune.crotone.it/.).
26
produtividade, chamavam atenção para o que o fechamento acarretaria aos alunos já aprovados
para freqüentá-lo. Reclamavam também a construção de um campus, de um espaço universitário
em Crotone. Gritaram apaixonadamente por seus direitos de permanecer na cidade, de não
querer deixá-la, de realizarem ali seus estudos. Se tantos querem ir embora, conhecer outros
lugares – diziam – têm esse direito. Mas eles queriam ter, também, a escolha de ficar. O apelo
de um dos estudantes ficou muito gravado em minha memória: uma cidade sem universidade,
defendia, não pode crescer.
A emigração juvenil em Crotone é muito alta. A maior parte de meus alunos falava em
realizar seus estudos fora dali, quase sempre em uma universidade mais ao norte. Roma,
Bolonha, Pisa. Meus amigos, por sua vez, com idade próxima aos trinta anos, haviam concluído
seus estudos e voltado – enquanto muitos outros permaneciam longe, por melhores
oportunidades e condições de trabalho. Enquanto meus alunos adolescentes falavam com olhos
sonhadores em partir, os amigos de minha idade comentavam o desejo de retornar. Duas
relações diferentes com o tempo, sonho e nostalgia, o desconhecido a ser explorado e o tempo
passado, o pertencimento. O que eu assistia naquela manhã no Comune, eram tantos jovens que
gostariam de poder ficar. E relacionavam de um modo significativo crescer na cidade com
crescer a cidade. Uma cidade sem universidade não pode crescer – assim como em uma cidade
sem universidade não se pode crescer. O discurso segundo o qual em Crotone não se cresce não
estava problematizado somente no megafone daqueles jovens que protestavam em praça
pública. Amigos dos meus amigos, morando longe dali, muitas vezes me diziam que gostariam
de ter em Crotone as oportunidades que tinham fora. Sem dúvida, acrescentavam, preferiam
poder voltar.
Antes que deixassem o megafone, os estudantes puxaram palavras de ordem repetidas
por todos. Descontraídos, repetiam também, brincando, frases prontas “cantadas” em
manifestações de grevistas. Foi quando, rindo, um deles iniciou: “Siamo noi, siamo noi, u
Cruton´, u Cruton´ siamo no-o-oi!”
18
. Riram todos. Era um dos hinos da torcida de futebol do
Crotone, cantado sempre no estádio. A música foi rapidamente adotada por todos, que cantaram
alto até que o megafone fosse abandonado. Um dos líderes estudantis pediu que o Comune
permanecesse ocupado, com as habituais atividades: “tererê”, bongô, malabarismo...
18
Tradução minha.: “Somos nós, somos nós, u Cruton´, u Cruton´ somos nós” – a forma “ u Cruton´ ” obedece ao
costume de se falar, no estádio de futebol, em dialeto crotonense.
27
Compreendi que era com essa ocupação que se costumavam finalizar as manifestações em
Crotone – ponto do evento em que eu havia chegado no dia anterior. Fiquei por ali, conversando
um pouco com meus alunos e observando o movimento. Motos, penteados com gel,
universitários “rastafari”, paqueras... a rua tomada, a adolescência em Crotone. Até que se
enrolasse a última bandeira para a hora do almoço.
1.3.1 Com suas motocicletas e adereços da moda, roupas justas e cabelos grudados de
gel, espalhados em grupos, ocupando com ares de importância o espaço da cidade, em certas
horas do dia os adolescentes pareciam quase dominar Crotone, criando nela uma vida à parte,
em um universo só seu – mesmo que para os mais jovens ele pudesse durar somente até as dez
da noite! Alguém pode argumentar que os adolescentes de boa parte do “mundo ocidental”
parecem viver em um mundo só seu – e isso deve ser verdade – o que me impulsiona a
contextualizar a situação relacionando-a com outros dados.
Havia, sim, outras tantas Crotones, com outras tantas idades. Sob os chamados “portais”,
arcos que cobrem as calçadas sob velhas construções na Praça Pitágoras, eram os homens idosos
que pareciam multiplicados em número e força, ditando as regras na região. Ao cair da noite,
quando os adultos deixavam o trabalho, a rua Vittorio Veneto, na parte chamada “Comune”,
lotava de famílias, mães e pais com crianças – e as pessoas de todas as idades que por ali
passeavam pareciam esconder um pouco as motos dos adolescentes de gel. Há, entretanto, uma
peculiaridade com relação a esses últimos, de acordo com a distribuição etária de Crotone. Se a
ótica local procura identificar uma rede contínua de relações, como ficará melhor explicado no
segundo capítulo, segundo a qual uma pessoa é sempre conhecida da conhecida da conhecida,
infinitamente, qualquer aparente hiato nessa cadeia chama especial atenção. Muito embora
aqueles adolescentes pertencessem fortemente a essa mesma cadeia e, com um mínimo de
curiosidade pudessem ser reconhecidos por qualquer crotonense como “irmão do amigo” ou
“amigo do amigo” etc., nos horários de lazer, em que o mecanismo era acionado de modo
especialmente veloz e até certo ponto superficial, com base nos círculos de amizade, o hiato
agia distinguindo grupos que, estranhamente para uma cidade como Crotone, não se
reconheciam ou cumprimentavam.
Tal hiato, a que me refiro, decorre de que, uma vez que grande parte da população
pensava em realizar ou tinha realizado seus estudos fora dali, os jovens com idade entre 18 e 25
anos eram pouquíssimos na cidade. Os adolescentes, como muitos de meus alunos, que
28
chegavam agora à idade de estar mais tempo pelas ruas, com a liberdade que suas motocicletas
iniciavam a lhes conferir, eram crianças quando aqueles que, agora mais velhos, decidiram
tornar a Crotone depois de concluídos os estudos, haviam partido para suas universidades. Esses
mesmos adolescentes, por sua vez, estavam por concluir seus estudos na escola média, de modo
que já planejavam suas partidas para o ano seguinte – de fato, quando retornei à cidade em
2005, um ano depois de meu retorno ao Brasil, muitos já não estavam mais lá. Desse modo,
quando se aproximava a idade na qual as amizades e conhecimentos são feitos pelas ruas, de
modo mais livre e independente com relação à família, os jovens partiam para viver esse
momento fora de Crotone. Em contraponto, aqueles que tinham retornado reencontram seus
velhos amigos e familiares, mas não chegavam a fazer contato ou trocar experiências com uma
nova geração, pois ela já se preparava para partir.
É importante salientar que, apesar de bem pequena e das constantes queixas de seus
habitantes jovens, Crotone tinha uma vida social considerável, com algumas boas opções de
lazer até mesmo no inverno. Ainda que muito sujeitas às variações sazonais – como veremos
mais adiante – existem horas do dia em que o fluxo fora de casa é muito intenso (assim como
eram claras as horas de estar dentro de casa) e no ápice desses movimentos, chegaria a ser difícil
acreditar que se tratava de uma cidadezinha de 60.000 habitantes, não fosse o fato de se
encontrar facilmente as mesmas pessoas e se estar sempre nos mesmos locais. Era bastante
comum, especialmente conforme se aproximava o período mais quente do ano, que eu
encontrasse alunos durante a noite, que começavam a se inserir naquele universo social jovem e,
concomitantemente, preparavam-se para partir, para viver esse momento longe dali. Alguns
deles – eu sabia através de fofoca – passavam por um momento de “rebeldia” em casa, em que
questionavam prioridades quando o assunto envolvia amigos e famílias. Nesses termos, de
situações familiares relacionadas a essa distribuição etária, alguns fenômenos me chamavam
muita atenção. Primeiramente, o baixo número de jovens solteiros em idade adulta, número
ainda menor quando pensamos em pessoas solteiras economicamente independentes da família,
habitando sós. No círculo de amigos que eu costumava freqüentar, com idade entre 25 e 30 – ou
seja, aqueles que retornaram há alguns anos de suas investidas fora de Crotone – apenas dois
viviam nessa situação. Um deles estava noivo em minha última ida à cidade e casou-se
recentemente. Enquanto isso, outro amigo, de um outro círculo de conhecidos, deixou a casa dos
pais, com quem trabalhava (a empresa era familiar), para tornar-se seu vizinho.
29
Houve, durante um ano e meio (que inclui os dez meses em que morei na cidade e outros
oito que se seguiram), um grande número de matrimônios, noivados e, especialmente, de
gestações. Era um fato do qual se ria o número de jovens que tinham engravidado de seus
namorados, noivos ou maridos – sempre casos de “relações sérias”, que já duravam anos. Foram
– dentro de um mesmo círculo de amizades quantificado em mais ou menos 20 pessoas – 4 as
gestações que se sucederam praticamente ao mesmo tempo. Fora aquelas de conhecidos um
pouco mais distantes (as irmãs de amigos, os primos dos amigos etc) que somados, chegavam a
mais 10. Entre outros amigos, fora desse mesmo círculo, ao menos mais três matrimônios
seguidos de gestação (e me refiro apenas a conhecidos diretos meus, sem considerar aqueles dos
quais eu apenas ficava sabendo através de “amigos de amigos”). Os matrimônios eram
esperados. As gestações, especialmente aquelas fora deles, nem tanto: a cada caso novo
anunciado, tendo em vista a quantidade ser tanta, as risadas e comentários sobre o que se
considerava uma espécie de “epidemia” em Crotone denunciavam uma certa visão de situação
“peculiar”
19
.
Considerando o número de casamentos de que tive notícia em tão pouco tempo, chama
atenção o quanto era curto o período de tempo em que permaneciam solteiros em Crotone
aqueles que passavam grande parte de sua juventude fora dela. Enquanto havia poucos jovens
entre 18 e 25 anos na cidade, esse número começava a aumentar próximo aos 30, idade em que
os matrimônios também se tornavam bastante freqüentes
20
. Grande parte do tempo de solteiro
19
Uma das dificuldades – que possui, todavia, um aspecto interessante – de lidar com esse tipo de fenômeno,
especialmente em um tópico em que pretendo discutir crescimento, é o fato de que tudo o que posso narrar está
relacionado ao momento que vivenciei. Leia-se: minha referência são os dez meses que passei em Crotone, entre
2003 e 2004, o contato que mantive no ano seguinte e meu retorno por um mês na cidade em maio/junho de 2005.
Ou seja, a sensação de “peculiaridade”, relacionada à de “normalidade” ou “sintoma”, são impressões dadas pelo
momento da observação – o que não significa que não sejam válidas, mas apenas que estejam contextualizadas
naquele dado momento, a partir do que me diziam ou pareciam expressar os nativos. Penso que as relações que eu
observei entre os adolescentes e os jovens adultos de Crotone, bem como as distinções de projetos e modo de estar
inserido na teia de relações de cada geração não pode ser percebida de outro modo que não o de dados
concomitantes – aqueles adolescentes e jovens adultos pertenciam um ao presente do outro ou, paradoxalmente,
torna-se difícil escrever sobre crescimento, questão aqui nesse capítulo diretamente relacionada à transformação.
20
Infelizmente, com relação ao número de estudantes fora da cidade, os números disponibilizados pelo escritório
de estatística do município de Crotone são obscuros, devido a uma diferença (interessante até mesmo para ser
estudada futuramente) entre “dimora” e “abitazione”: quando os jovens partem para realizarem seus estudos
universitários não chegam, a maior parte das vezes, a registrar-se oficialmente como habitantes da nova cidade – é
a chamada “dimora”. Continuam, através de suas famílias, sendo oficialmente contados como habitantes de
Crotone. Com relação ao número de solteiros na cidade os dados terminam se obscurecendo também em
decorrência da mesma distinção, que faz com que aqueles em período de “dimora” em outras cidades sejam
contabilizados como solteiros em Crotone. Resta apenas acrescentar, com relação aos matrimônios que, segundo os
dados disponíveis, de 2.332 jovens com idade entre 25 e 29 anos, 511 eram casados; entre 30 e 35 anos a proporção
30
passavam longe dali, na cidade onde realizavam seus estudos. À medida em que retornavam,
voltavam para a casa dos pais. Dentre aqueles raros – quase todos do sexo masculino – que
chegavam a morar sozinhos, separando-se da família nuclear ainda quando solteiros, poucos
continuavam nessa situação por muito tempo: nos casos de que tomei conhecimento, o
matrimônio foi contraído cerca de um ano depois. E, mais uma vez, é importante ressaltar que
até mesmo essa trajetória é a de uma minoria, a maior parte dos jovens saindo da casa dos pais
diretamente para casar.
É um fato sabido com relação às cidades do sul da Itália esse pouco uso do “morar
sozinho” entre os jovens solteiros – ao contrário do norte, onde isso ocorre com mais
freqüência. Gioacchino Greco
21
, em seu livro Singles in una città del sud destaca que em alguns
casos, nas cidades em que é habitual partir para realizar fora os estudos universitários, essa
primeira experiência longe da casa dos pais acaba por estimular uma saída definitiva após o
retorno à cidade, devido a uma má readaptação dos jovens à vida imersa no núcleo familiar. Em
Crotone, entretanto, não foi o que observei. Embora eu tenha escutado de alguns a expressão do
desejo de deixar a casa materna/paterna, a atmosfera que cercava muitos discursos era a de uma
certa impossibilidade, que ia além das questões econômicas – embora esse fosse o fator mais
acionado como explicação para a permanência. Embora muitos pais vissem com tranqüilidade a
saída dos filhos de casa, pude perceber que nem sempre era assim e tive oportunidade de
conhecer alguns casos em que as interferências dos pais sobre a vida de solteiros chegaram a
gerar crises familiares sérias.
O tema da “subordinação dos filhos” em Crotone envolve questões amplas, que não
tenho condições de desenvolver longamente aqui, como, por exemplo, a distinção de gênero. Se
eram raros os homens que habitavam sós, esse número caía ainda mais quando concernente a
mulheres. Mas em linhas gerais pode-se dizer que crises e litígios no interior das famílias eram
ideologicamente repugnantes para a maioria das pessoas com quem tive contato. Nesse sentido,
pude perceber que, para alguns, estar sob o teto dos pais era um modo de corresponder a esse
ideal de harmonia. Certa vez, por exemplo, uma amiga crotonense com quem conversava sobre
aumenta para 1305 entre 2441 e já entre 35 e 40 anos eram 1793 contra apenas 575 solteiros. Informações
disponíveis em: http://www.comune.crotone.it
21
O livro do referido autor sobre jovens solteiros no sul da Itália, embora trate de uma cidade grande (Palermo, na
Sicília) apresenta algumas importante semelhanças com Crotone e pode ser interessante para acrescentar alguns
dados gerais à discussão. (Greco, 2002).
31
relações familiares perguntou-me se meus pais não ficavam chateados com o fato de que meu
irmão saíra de casa para morar só – visto que para os seus isso seria impensável. É claro que
nem todos os genitores, em Crotone, pensam como aqueles mas, em maior ou menor grau, ter os
filhos “por perto” é importante para a noção de família crotonense. Estar à mesa dos pais ao
menos na hora do almoço podia ser, em alguns casos, um bom modo de manter essa relação no
caso daqueles que já moravam em outras casas – como veremos no segundo capítulo.
1.4 Concluo este capítulo destacando três relações primordiais entre os dois eventos
apresentados, o ocorrido na Praça da Catedral e o manifesto estudantil:
a) Em primeiro lugar, destaco o “processo interrompido”. Eram muitas as fábricas que
eu via, sempre que saía do município de Crotone para dar aulas em Cutro! Mas em apenas uma
delas a fumaça saía das grandes chaminés, assinalando seu funcionamento. Era, segundo me
disseram, uma fábrica de papel. Todas as outras – me contava certa vez o senhor Giorgio –
estavam abandonadas, formando com suas carcaças verdadeiros sítios de “arqueologia
industrial”. A província tinha uma história operária e os amigos que a contavam incluíam suas
queixas quanto aos motivos políticos que levavam a cidade à situação de ser sempre preterida
como local de implantação de indústrias e palco de investimentos. Alguns desses amigos, agora
com idade em torno dos trinta anos, lembravam das vezes em que, nos últimos anos de escola,
uniram-se aos trabalhadores no bloqueio da estrada 106, para manifestar contra o fechamento
das fábricas. A história, nesse caso, faz parte da memória recente.de pessoas jovens, recém
entradas no mercado de trabalho. Muitos de seus ex-colegas de escola, que também
compartilham tais lembranças, estão agora morando longe de Crotone, em cidades maiores ou
nas quais haja melhor oferta de empregos. Não era a primeira vez que os crotonenses se sentiam
lesados com a interrupção de um processo que poderia trazer empregos e crescimento
econômico para a cidade. Há uma memória de interrupções conservada nas histórias que são
contadas, nas histórias da cidade. Essa memória estava presente quando a obra da Praça da
Catedral parou por conta do valor arqueológico de seu subsolo. Estava presente também no
manifesto estudantil contra o fechamento (a interrupção) de cursos do consórcio universitário da
cidade – aliás, segundo me contaram os próprios estudantes, tal ameaça era constante, repetida a
cada ano.
b) Em segundo lugar, destaco a cidade em “expansão e reforma”. Certa vez comentava
minhas impressões sobre o baixo interesse dos solteiros crotonenses pela possibilidade de morar
32
só, ao que fui surpreendida por um curioso comentário que incluía, dentre os motivos para a
situação, a própria dimensão da cidade que não oferecia espaço suficiente para acomodar tantas
casas novas. Muitas vezes eu já escutara associações do fato com o estilo de vida de “cidade
pequena”, mas a relação direta com a falta de espaço me chamou atenção. Primeiro porque
verdadeiramente sabia – por experiência própria e de minhas amigas – que encontrar uma boa
casa para alugar em Crotone não era tarefa fácil. Comprar, por outro lado, talvez não fosse o
caso que melhor se adequasse à situação instável e transitória de um solteiro. O fato, porém,
pareceu-me mais uma conseqüência da baixa freqüência de pessoas locais em situação de
transitoriedade – que incluiria, significativamente, os solteiros – do que uma causa. Porém,
havia um outro aspecto da teoria de meu conhecido que prendeu muito minha atenção: a
associação simbólica direta da permanência dos jovens na casa de suas famílias com a falta de
espaço em Crotone.
Nos dois eventos descritos nesse capítulo, a exigência de criação de novos espaços
estava relacionada com crescimento/desenvolvimento. Os estudantes presentes na manifestação
de 13 de novembro de 2003 reivindicavam, dentre outras coisas, a criação de um “campus”, ou
seja, de um espaço universitário em Crotone. Diziam que era impossível que se desenvolvesse
uma “cultura” universitária na cidade sem que houvesse tal luogo em que ela pudesse florescer
nas relações entre alunos. Crescer, ao que parece, de acordo com a noção operada em Crotone,
demanda criar espaços. No caso dos estudantes, eles estavam relacionados tanto à possibilidade
de crescer quanto à de permanecer na cidade. Poder realizar os dois atos simultaneamente,
crescer e permanecer, era a maior de suas reivindicações naquele dia 13 de novembro. No caso
do Centro Histórico, a presença de jovens casais e, de modo mais peculiar diante do quadro
traçado, de jovens solteiros constitui-se em mais um indício de como o surgimento de novos
espaços em Crotone pode ser associado a uma demanda pela possibilidade de crescimento na
cidade. Tal “surgimento” ou “criação”, como vimos anteriormente, não ocorria sem conflitos ou
disputas pouco assimétricas; que também faziam parte do processo de estabelecimento social e
econômico dos jovens que escolhiam tentar permanecer e crescer. Muitas vezes a decisão final
de partir ou, mais precisamente, de não retornar após a conclusão dos estudos vinha
acompanhada de uma lamentação quanto à falta de oportunidades – de crescimento, de espaço.
Enquanto jovens recém casados e solteiros, retornados a Crotone, buscavam seu novo espaço na
cidade, adolescentes buscavam espaço para crescer, dentro ou fora dela. A possibilidade de
33
crescer e tornar-se independente da família fora dali era presente para ambos os grupos etários.
A percepção de tempo, espaço e transformação em Crotone passa também pela evasão
estudantil ao Norte.
c) Como terceiro ponto de convergência entre os dois eventos, destaco a relação tensa
entre permanecer, partir, transformar e manter: compreendida de uma maneira simples, ela
parte da concepção segundo a qual “sem que a cidade cresça, não se pode ficar” e “sem que se
possa ficar, a cidade não pode crescer”, sendo que ficar poderia ser substituído por “crescer na
cidade”. O contraponto ideológico que fazia com que tal paradoxo fosse concebido nesse modo
era a certeza de que a “tanto a cidade quanto seus habitantes devem crescer”. A dupla noção de
crescer (na cidade e a cidade) comportava as dimensões econômica e social que pertenciam
tanto a um universo maior de relações, de acordo com as quais Crotone representava uma região
(Sul) desfavorecida no conjunto da Itália, quanto ao universo ideológico associado à qualidade
de vida, expressão usada por nove entre dez crotonenses que permaneceram no Norte após seus
estudos. Os estudos, em si, ganham um aspecto de investimento pessoal – que poderia encontrar
expressão teórica em análises sobre a relação entre famílias e ideologias individualistas
(VELHO, 2001). Por outro lado, o movimento que levava jovens a estudar em outra cidade,
produzia em Crotone o efeito inverso: uma cidade onde tais anseios existiam como projetos de
adolescentes e como memória dos jovens que retornavam – mas não vinham acompanhados da
presença física dos solteiros universitários (com exceção dos poucos freqüentadores dos cursos
ameaçados de extinção). Para mim, por exemplo, que fiz minhas observações dentro da cidade,
a idade universitária em Crotone existia nos relatos e fotos de amigos ou na comunicação que
eles estabeleciam (permanentemente) com quem estava fora. Em meio à cheia teia de relações
da cidade, estava incluída uma ausência – temporária ou não.
A emigração para o norte não é um fenômeno novo na Calábria. As razões que as
justificam, porém, não são as mesmas de 50 anos atrás. Vito Barresi (1988) registra, em seu Il
Villaggio Dimenticato de 1988, sentimentos ambíguos de jovens do vilarejo S. Giovanni in
Fiore, da própria província de Crotone, com relação à possibilidade de partir para o Norte. O
norte, aqui, não é aquele dos italianos que lá nasceram, é claro. É mais uma teia de valores,
representações, significados que não poderia vir de outra parte senão do próprio sul onde vivem
e, assim como Kroton (o sistema de representações), não poderia fazer outra coisa se não
participar da cosmologia social desses mesmos lugares:
34
(...) quem foi embora – afirma Domenico – quando retorna ao vilarejo não nos fala de trabalho, mas só do
divertimento da noite de sábado e do domingo.(...) É esse o aspecto do norte que me fascina e se eu pudesse
emigrar faria pensando no momento de sair com amigos (...) (BARRESI, 1988, p. 2)
(tradução minha)
Com os depoimentos que recolheu, Barresi pretendia também demarcar a diferença entre
os valores que impulsionavam tais jovens do final dos anos 80 a partir ou ficar em suas
cidadezinhas natais e a situação em que viviam esses mesmos vilarejos de épocas mais remotas:
E para quem, hoje, chegasse ao vilarejo crescido do frei Gioacchino, não seria complexo nem difícil reler a
verdadeira micro-história dessa gente, descobrir a América do Norte e aquela do Sul por detrás da fisionomia de
um velho convertido ao evangelismo pentecostal (...) e, enfim, decifrar a incerteza e a angústia dos filhos que
ficaram sem patriarca, a geração da não emigração, os rapazes que alongam suas adolescências, seduzidos pelas
cores rápidas e fortes de uma civilização eletrônica que os convida a mover-se permanecendo imóveis. (BARRESI,
1988, p. 1)
(tradução e grifos meus)
Se o autor esperava, como acrescenta depois, uma crescente permanência desses jovens
em suas terras, contava também com a recém nascida, então, Università di Cosenza, vizinha a
uma hora e meia de Crotone. Muitos, de fato, passaram a realizar ali seus estudos –e, a despeito
da proximidade física, constroem ali suas vidinhas jovens e solteiras durante esse período, vindo
à cidade natal com bem menos freqüência do que se poderia imaginar. O Norte, porém,
continuou fazendo parte de um impulso de mobilidade que, estranhamente, não me parece
contradizer em nada a imobilidade (relativa, é claro, visto o universo de migrações a que se
referia antes, de gerações inteiras, por longuíssimos períodos de tempo) a que se refere Barresi.
Se crescer em Crotone passava, na maior parte das vezes, por um período de estudos
fora da cidade, passava também pelo retorno a ela – mais cedo ou mais tarde; se não
concretizado, pelo menos nos sonhos de quem conheci morando em Pisa ou Bolonha. E, nesse
retorno, ganhava também a concepção de reprodução – tanto na quanto da cidade: casar, ter
filhos, constituir família, ter uma casa, transmitir adiante valores, educar. “Família”, “filhos”,
“casa” são noções que a antropologia das chamadas “sociedades complexas” vem se esforçando
para não tomar como “dadas”
22
. O que pude aprender sobre cada uma delas em Crotone será
22
Para citar alguns exemplos na antropologia brasileira: o trabalho de Tânia Dauster (1988) sobre o significado de
família em camadas médias urbanas; o trabalho de Ovídio de Abreu Filho (1982) sobre parentesco e identidade
social, os trabalhos de Gilberto Velho sobre família e relações de parentesco e amizade em camadas médias
urbanas (1983, 2001etc.). Muitos trabalhos que unem família e política buscaram ir além, etnograficamente, do
modelo “patriarcal” proposto por Gilberto Freyre (sempre resguardada, porém, a sua importância). Ainda nesse
sentido de “desnaturalização” de modelos, torna-se fundamental a ampla gama de contextos sociais em que estudos
35
desenvolvido a partir de descrições etnográficas do segundo capítulo. Mas desde já se
compreende de que modo tais idéias estão relacionadas também com percepções de “tempo” e
“espaço” – e vice-versa; tais percepções compondo parte da estrutura simbólica que constitui
socialmente idades e histórias de vida em Crotone.
As perguntas que levanto a partir deste capítulo são: seria a ida para o Norte, hoje,
também uma forma de permanência? Se podemos associar crescer na e a cidade, podemos
associar a migração a uma “não-migração”, ou um “não deslocamento” de outra parte Crotone?
Seria a coordenação entre juventude solteira e emigração, para além de relacionada a um
crescimento, também “conservadora” ou “conservante”? Parece-me que havia uma verdadeira
disputa de forças que, de certa forma regulava a tensão entre crescer, em uma dada concepção, e
manter, em outra. Os motivos dessas perguntas eu encontrei nos próprios valores que
impulsionam jovens a partir e retornar, hoje, em Crotone: educação, família e qualidade de
vida, todos os três fortemente relacionados ao crescimento do poder do Estado, formação das
sociedades modernas e ideologias individualistas
23
. Estaríamos diante de uma disputa política
entre tais ideologias (de alguns) e um poder (do) local? Para além de “resistências” ou
“reações”, talvez a sintonia fina entre permanecer e mudar estivesse em constante ajuste, com
múltiplas facetas, planos e interesses. Mas o que esta dissertação pretende dizer é que migração
e passado, de uma maneira ou de outra, faziam parte delas. O espaço de sociabilidade da Praça
da Catedral talvez dependesse tanto de seu subsolo tanto quanto do Nortepassado e ausente
olhados a partir e em nome de um presente coletivo e cotidiano que, ao mesmo tempo que
resiste, o faz em constante transformação. No próximo capítulo, descrevo diferentes espaços e
tempos da cidade que, certamente, colocam sal e nuances nessas considerações.
diversos foram realizados. Trabalhos realizados em meios operários ou de trabalhadores urbanos apontaram para a
importância de se considerar seus universos em suas particularidades culturais (para além da mera oposição com o
“centro”) e podemos citar como exemplo o trabalho de Luiz Fernando Dias Duarte (1986b) sobre a doença de
“nervos”, parte do universo íntimo entre trabalhadores urbanos, assim como o trabalho de Eunice Durham sobre
família operária e ideologia (1980). No caso da chamada “antropologia da região mediterrânea”, o esforço, a maior
parte das vezes, foi por “contextualizar” supostas percepções em comum nas etnografias de lugares diversos (como
o par honra e vergonha que marcaria as relações de gênero). O fato é assinalado por Marques (1999) que também
critica uma possível contaminação das próprias observações a partir de uma cosmologia teórica dos observadores
(visto que, como coloca Bourdieu, a “academia” é também um mundo social)e que, apesar do reconhecido esforço,
os levaria a buscar perceber sempre o que está a seu redor a partir de tais noções, em parte cristalizando as análises.
23
Para a relação entre educação, família e cidade ver Ariès (1978). Para Estado, cidade e individualismo, ver
Simmel (1967). Para individualismos e saúde, ver Foucault (1977), Donzelot (1980). Para individualismos e
investimento pessoal ver Velho (2001). Para individualismos e sujeito psicológico, Duarte (1983,1986b).
36
1.5 Os dois casos que serviram de base para este capítulo merecem um pequeno epílogo:
após o evento que quase a interrompeu, a obra da catedral continuou e foi concluída a tempo
para a festa da Madona de Cabo da Coluna, em maio de 2004. A universidade não fechou seus
cursos, mas continua com problemas:. em minha última conversa com membros da “Sinistra
Giovanile” (em fevereiro de 2005) ela estivesse ameaçada de ter os professores “ao vivo”
substituídos por aulas em “vídeo conferência” e recentemente tive acesso a fotos tiradas em
novembro de 2004, numa nova manifestação estudantil contra as mesmas repetidas ameaças de
fechamento de cursos.
37
Capítulo 2 Alguns espaços, tempos e tipos de sociabilidade em Crotone.
2.1 Neste segundo capítulo, pretendo descrever espaços onde se conjugam diversas
temporalidades em Crotone, em situações que oscilam entre cotidianidade, sazonalidade,
eventualidade, ritualismo/festividade. Para tanto, ele foi dividido em duas partes. Na primeira,
apresento, a partir do costume fúnebre de espalhar pela cidade cartazes com mensagens de
condolências, o modo como funciona na cidade uma importante teia de relações e afeto. A
experiência de tais relações será parte fundamental das descrições dos espaços da cidade, que
compõem a segunda parte desse capítulo. Nesta, parto de descrições etnográficas que
evidenciem modos como um espaço foi vivenciado em determinados tempos, ritmos, durações
(e vice-versa, como tempos foram experimentados em determinados espaços). Para compor a
descrição de cada um desses espaços, busco valorizá-los em suas relações com outros espaços
da cidade, sendo tais relações percebidas a partir de sua fluidez e plasticidade, tendo em vista o
modo como os vi transformarem-se cotidianamente, sazonalmente, eventualmente e ritualmente.
2.2 Em Crotone, quando alguém morre, amigos e familiares prestam uma homenagem ao
falecido e a aqueles que sofrem com sua perda (perdita) através de cartazes fúnebres, colados
nos muros da cidade – em entradas de edifícios, portas de escolas, escritórios, lojas
24
. Assim,
por toda parte, vêem-se em via pública nomes de mortos recentes, de seus parentes, amigos e
colegas. Dois elementos parecem fundamentais na composição dos cartazes fúnebres: seus
conteúdos escritos e a escolha dos locais onde serão colados. Ambos expressam ao mesmo
tempo relações pessoais de amizade ou parentesco e compõem o cenário público, da rua.
Textualmente, os cartazes fúnebres são dirigidos particularmente a uma ou a um grupo seleto de
pessoas. Ao mesmo tempo, são colados em via pública, em um espaço que pertence tanto a
quem são dirigidos quanto a quem apenas passa. Procuro ater-me a seguir com mais calma a
cada um dos dois elementos, o espaço e o texto, em seu modo de compor os cartazes fúnebres
25
:
24
Em nota pessoal, meu orientador Luiz Fernando Duarte sublinhou que esse papel é realizado pelos jornais locais
em muitas pequenas cidades brasileiras. Em Crotone, apenas as mortes de figuras ilustres têm espaço nos jornais.
25
O termo em italiano é manifesto funebre. Cogitei mantê-lo, visto que o termo “manifesto” trazia em si tanto a
idéia de “coisa manifestada”, quanto de “declaração pública”. Em português, porém, o amplo sentido do termo
(utilizado mais freqüentemente em sua conotação política) poderia causar alguma confusão. O termo “participação”
seria também adequado (em seu sentido de participação da dor/afeto manifestadas pelos amigos por ocasião da
“perda”), porém mais uma vez o sentido seria ambíguo: participar pode significar também “avisar”, “notificar”,
enquanto os cartazes privilegiados nessa análise são aqueles que contém mensagens de condolências e não avisos
de falecimento. Optei, por fim, pelo termo cartaz, que evidencia tanto seu aspecto de mensagem, quanto o meio
público pelo qual elas são remetidas (coladas pelos muros da cidade).
38
a) Primeiramente dedico-me ao local onde são colados os cartazes. Portas e muros de
casas, escolas, empresas e comércios pertencem de modo diverso à vida de quem passa a
caminho de qualquer outra parte e de quem ali mora, estuda ou trabalha. Do mesmo modo, um
cartaz fúnebre colado à porta de uma casa, media uma comunicação diferente entre aquele que o
encomendou para com o habitante da casa, seu vizinho, um passante desconhecido ou
conhecido. Não há uma só direção para onde se olhe em Crotone em que não se veja, ainda que
ao longe, um deles. Próximo à catedral, porém, existem dois muros onde eles se concentram em
número muito superior. Ali, cartazes novos são colados sobre aqueles antigos, em uma
constante renovação. O curioso é que enquanto em toda a cidade eles compõem o cenário de
quem, na maior parte do tempo, apenas passa, naqueles muros vi ocorrer sempre o contrário.
Ali, havia sempre ao menos um crotonense parado que os lia atentamente.
Compreendi, então, que os locais escolhidos para a colocação parecem obedecer, cada
um deles, a duas lógicas diversas. A primeira diz respeito a lugares que remetem à vida/morte
do defunto, de seus parentes e amigos. Assim, se morre um professor querido, pode-se encontrar
um cartaz colado ao muro da escola onde ensinava, como à porta de sua casa ou de seus
parentes. Um mesmo cartaz, porém, pode e costuma ser colocado em mais de um local
diferente. Observei que, tradicionalmente, um desses locais é sempre um dos muros da catedral,
que penso representar a segunda lógica. De certo modo, essa segunda lógica não está
relacionada prioritariamente à vida do defunto, mas talvez à vida da cidade. A catedral ao
mesmo tempo é um centro (da vida social e religiosa) e está no centro de Crotone, de modo que
a cidade, seus habitantes e suas idéias, passam por ela diariamente – passam e muitas vezes
param, para conversar e encontrar amigos. Se cada cartaz fúnebre direciona seu texto a um
grupo seleto de pessoas, o conjunto de cartazes fúnebres colados naqueles muros compõe um
espaço de homenagens e notificações que é único para toda Crotone.
Tal unidade, em oposição à diversidade de espaços que remetem particularmente à
história de vida de cada morto, é um dos pontos que considero importante nesta observação. Ela
talvez ajude a compreender melhor como se pode responder à seguinte pergunta: sendo os
cartazes fúnebres textualmente dirigidos a pessoas particulares, por que são colados em via
pública? Um telegrama, uma carta, um telefonema, mediam mensagens privadas. Os cartazes
não são telegramas, o espaço da rua é essencial em sua composição. Apenas passar é também
parte do jogo. Minha suposição é a de que as relações particulares, como aquelas expressas nos
39
cartazes, não são pensadas em oposição à via pública, mas em continuidade com ela. Cada
relação exposta em um muro é concernente, portanto, também à ordem pública, podendo ser
pensada como uma relação particular-pública. Do mesmo modo, a própria unidade de Crotone,
como se pode supor com base nos muros próximos à catedral, é pensada (a cidade pensa a si
mesma) em termos de tais relações particulares-públicas, em uma teia de sociabilidade.
b) O segundo elemento ao qual me atenho, são os textos e os termos dos cartazes
fúnebres: Já foi mencionado nesse ensaio o fato de que um mesmo cartaz pode ser colado em
mais de um local diferente. Ocorre também que mais de uma pessoa ou grupo encomendem
diferentes cartazes referentes ao mesmo falecimento. Muitas vezes, essas diferentes pessoas ou
grupos escolhem os mesmos lugares para colocá-los. Por isso, sucede tanto de haver um único
cartaz fúnebre colado em certo muro, como dois, três ou mais, todos referidos ao mesmo
defunto. Um aspecto importante do costume, é o fato de que na maior parte das vezes trata-se de
expressar solidariedade para com alguém que tenha sofrido a dor da perda de um ente querido.
Assim, por exemplo, colegas de trabalho manifestam sua participação na dor (“partecipano al
dolore”) de um amigo pela perda de seu pai. Assim, é evidenciada uma situação de afeto
situação de “ser afetado” – entre aquele(s) que oferece(m) o cartaz e aquele a quem ele é
oferecido.Cada cartaz destaca em seu texto três termos, com tamanhos e tipos de letras diversos,
quase sempre nessa ordem de grandeza: o defunto (letras maiores), aqueles que se manifestam
(letras médias), aqueles a quem os sentimentos expressos são dirigidos (letras menores).
Atenho-me um pouco a explicar o modo como as referências a cada termo são feitas. Os
exemplos na figura 1 podem facilitar o entendimento. Retirei-os de um mesmo muro e referem-
se os seis a uma mesma morte. Tanto sua disposição como a proporção entre as letras e grifos
nos textos, reproduzem, à medida do possível, aqueles originais. Apenas os nomes de famílias e
instituições foram substituídos por outros, fictícios
*
.
OS DOCENTES O D.S.G.A. E O PESSOAL DO
INSTITUTO 1
participam da dor que atinge os parentes
ROSSI e BLU
pela perda do caro cunhado
cav.FRANCO GIALLO
OS COLEGAS E O PESSOAL DO
INSTITUTO 2 DE CROTONE
Se associam à dor do amigo Antonio Giallo
pela perda do caro
PAI
40
AS FAMILIAS
GIALLO e ROSSI
SENTIDAMENTE AGRADECEM
ESCOLA MEDIA ESTADUAL INSTITUTO 3
– CUTRO
O Dirigente Escolar, o Conselho do Instituto, o
Pessoal Docente participam da dor do Prof.Pasquale
Giallo pela morte do caro
PAI
ANNA, SIMONA, PAOLA E PIETRO ROSSI
participam da morte do caro familiar
CAV. FRANCO GIALLO
INSTITUTO 3
E INSTITUTO 4
Todos Os Amigos participam da dor do
Secretário Prof. Pasquale Giallo pela perda do caro
PAI
O modo como as referências pessoais são descritas e enfatizadas nos textos, parece estar
de acordo e explicitar de modo sintético o modo como tais referências pessoais parecem
funcionar em Crotone, onde a ênfase nas relações e graus de relações inter-pessoais são
acessadas todo o tempo. Assim, nomes pessoais são menos utilizados que nomes de famílias e,
de modo ainda mais sugestivo, termos familiares (pai, cunhado), tipos de relações (colegas,
amigos, a família) e ainda referências ao universo que os une com aquele homenageado (nomes
de instituições, profissões). Franco Giallo, quem faleceu, é cunhado em um cartaz e pai em
outro, dependendo de a quem o cartaz é dirigido. O prof. Pascoale Giallo também aparece em
mais de um cartaz, sendo referido como professor em um e secretário em outro Tomando cada
um – e o conjunto – dos cartazes fúnebres citados, compreendemos graus de relações
(expressos de modo direto ou indireto) entre seus termos. Sabe-se que o falecido, por exemplo, é
pai de um amigo dos colegas de uma instituição. O exercício de compreender tais associações
pode parecer inútil. Mas é o modo como se aprende a pensar quando se chega a Crotone.
Lembro-me do senhor Giorgio, meu patrão na escola de dança onde eu ensinava, feliz
em me contar que havia descoberto quem era Luísa! Eu a havia conhecido havia algumas
semanas: era brasileira, casada com um crotonense. Apenas lhe contei, o senhor Giorgio não
disse nada, me fazendo crer até mesmo que não teria me ouvido. Semanas depois, porém,
sorriso de satisfação aberto, me explicava como havia conseguido saber que o Giuseppe com
quem Luísa era casada era um Griggio, família que possuía boas relações com seu irmão
41
(casada com quem tinha boas relações com seu irmão). Da mesma forma ocorreu semanas
depois que conhecesse meu namorado – imagina só, e o senhor Giorgio sorria feliz, que ele é
filho de um amigo, com quem trabalhou durante tantos anos. A irmã mais velha tinha inclusive
estudado balé na escola. Quando eu comentava com o senhor Giorgio que estava indo ao centro
comprar alguma coisa, ele sempre dizia que eu pedisse à Lucia, secretária da escola e uma
grande amiga, para me acompanhar. Assim, explicava, ela te leva às lojas onde temos nossos
conhecimentos. Seguindo tal procedimento, minha passagem aérea de ida foi comprada na
agência de turismo da prima de uma colega, enquanto a de retorno eu encontrei na do pai de
uma aluna, onde trabalhava também um amigo de meu namorado. É desse modo, também, que
se toma conhecimento de cada morte em Crotone. Lá, as notícias de morte chegam rápido.
Invadiam até mesmo as salas onde eu dava aulas de dança, explicando a ausência de algumas
alunas, na conversa de outras que comentavam a tristeza das amigas, no espanto ou sussurro
quando o acontecimento era assim, inesperado! De boca em boca, telefone em telefone, sabe-se
que o “primo-do-amigo-do-colega” faleceu.
O pequeno tamanho da cidade e mesmo da província, explica em parte a impressão de
que todos se conhecem. Mas acredito que os cartazes fúnebres, pelo modo como são compostos,
descrevem um sistema de relações com o qual podemos ir além de tal impressão, pensando o
contexto particular de Crotone. Foram já destacados três termos que compõem os cartazes e
estão claramente expressos em seus textos. Foi já colocada, também, a relação intrínseca entre o
cartaz e o espaço público onde é colado. Tal relação, portanto, nos pode levar a pensar em um
quarto termo: aqueles a quem o cartaz não menciona textualmente, mas a partir de sua
colocação. Cada um dos três termos expressos textualmente, como se pode perceber nos
exemplos aqui citados, encerra em si e entre si uma série de relações. No caso do quarto termo,
o espaço, elas não estão mais prescritas, envolvendo pessoas com graus de relação mais ou
menos distantes. Como ocorreu com senhor o Giorgio e Luísa, ou o senhor Giorgio e meu
namorado, o quarto termo pode representar infinitamente conhecidos de conhecidos de
conhecidos de...
Eis a importância de compreender o comportamento de ler cartazes fúnebres nos muros
próximos à catedral em diálogo com o comportamento de apenas passar por outros muros e
cartazes, a caminho de qualquer outra parte. Um cartaz se dá, necessariamente, na relação entre
os dois comportamentos. No modo de pensar crotonense, todos são conhecidos e desconhecidos
42
(ou conhecidos em potencial) ao mesmo tempo. Via pública e termos prescritos não são
incongruentes, mas sim indissociáveis. Um não faz sentido sem o outro – o movimento
particularizante só faz sentido com aquele que une o coletivo da cidade, tornando pública toda
relação particular, bem como tornando particular toda relação pública. Já mencionei que há
muito “falar sobre Crotone” entre os crotonenses, como se a cidade se pensasse todo o tempo. O
sentimento de unidade encontra grande expressão nos movimentos de apenas passar e parar
para ler. A impressão de que todos se conhecem em Crotone pode ser percebida dentro dessa
duplicidade que, ao procurar sempre pensar o outro em suas relações de conhecimento, o pensa
de um modo diverso a cada relação estabelecida ao mesmo tempo que o desconhece até que elas
sejam identificadas. Não se pode pensar o outro sem pensar suas relações, mas tais relações não
são dadas a priori: todo desconhecido pode ser um conhecido, como todo conhecido o é não em
essência, mas a partir de um movimento fluido. Assim, há ao mesmo tempo a cidade-coletivo e
a cidade-particular, o momento de apenas passar e aquele de parar para ler. Relações
particulares são postas em via pública, espalhadas pelo espaço concreto da cidade. Cada cartaz
colado em um muro, transforma esse muro, transforma os outros cartazes nele colados, cria
perguntas e respostas, estabelece relações diversas a cada um que passa. Reorganiza, recria e
pensa a cidade outra vez. – na perda de um ente querido, afirmam-se relações de afeto
26
e
reorganiza-se e reafirma-se a rede de conhecimentos que localiza uma pessoa. Alguns aspectos
dessa localização devem ser salientados, seja no tocante à situação limítrofe da morte, seja
quanto às inter-relações entre o modo como ela é concebida, a “teia de conhecidos” e a própria
construção da pessoa.
Nesse sentido, sublinho a dimensão diferenciada das letras dos cartazes e o efeito
produzido por esta diferenciação na distância a partir da qual os termos expressos podem ser
lidos. De longe, o que vemos é um conjunto de designações relacionais de “papéis familiares”
(na maior parte das vezes) ou “papéis sociais”, como PAI, MÃE, CUNHADO, COLEGA etc.
O termo nominal, a quem a mensagem de pêsames é dirigida, é o menor de todos – e só pode ser
lido de perto ou, é claro, deduzido pelo próprio destinatário pela relação entre o termo de
parentesco ou conhecimento e a instituição que une aqueles que enviaram a mensagem. Esse
26
Thales de Azevedo, em seu artigo “Avisos Fúnebres e Ritos Funerários: uma leitura Sócio-Antropológica”
(Azevedo, 1990) cita Witter em observação símile: “E o anúncio, de alguma forma, parece contribuir para que a
informação do desaparecimento do ‘morto querido’ permita manter, através da solidariedade aos que ficam, um
conforto e um calor humano que acabam por manter os laços do grupo” (p.11).
43
último termo, o remetente, apresenta letras médias, que podem ser vistas a uma distância maior
do que a do termo nominal e menor do que a do termo que representa o morto. Vale assinalar a
importância atribuída aos nomes, sobrenomes, designações por profissões e “papéis sociais” na
construção da pessoa (MAUSS, 2003a; ARIÈS, 1978). Thales de Azevedo (1990) destaca a
relevância da linguagem e do “trato do morto” nos avisos e participações fúnebres na
compreensão do significado da morte. Em suas observações, feitas em jornais (a maior parte
deles, brasileiros) evita-se mencionar o termo “morto”, preferindo-se a ele o “falecimento”,
“desenlace”, a “perda” e o “desaparecimento”. A opção constante por esses dois últimos termos
(perda e desaparecimento) em Crotone pode ser importante para se compreender a associação
do acontecimento, no rito do cartazes fúnebres, ao pertencimento à teia de relações e à sua
manutenção. A partir dessa colocação, penso que o modo como a teia, tal como prescrita em um
cartaz fúnebre, em sua interação com o espaço da cidade e com os outros cartazes, lida com o
morto talvez nos sirva para perceber de que modo ela dá conta do ausente, ou de um
deslocamento. Esse deslocamento, no caso da morte, corresponde, nas palavras do próprio
Thales de Azevedo, a uma “nova condição” do “homem separado dos vivos”, como
“participante de um ‘outro mundo’” (AZEVEDO, 1990, p.4).
É importante relembrar que, de acordo com o que vimos ainda no primeiro capítulo a
respeito da memória, o próprio passado, a partir de uma dada concepção de temporalidade é um
“outro mundo”, ou uma “dimensão do além”. É “tempo não visível aos mortais” – mas com o
acesso permitido pela memória, mostra-se presente. Isso se articula com uma observação
importante. Certa vez, conversando com Luiz Fernando Duarte, orientador dessa dissertação,
comentei sobre a forte associação que eu percebia em Crotone entre o espaço dos ausentes-
presentes e dos mortos-presentes na teia de relações, como organizavam os cartazes fúnebres,
assim como entre a atualização do passado através dos antepassados e os movimentos de
permanecer, manter, partir, transformar e retornar (mantendo através de ausentes-presentes)
através dos emigrantes. Ele, então, chamou minha atenção para o fato de que o antônimo de
ambos os termos (passado e ausente) é, igualmente, o presente (o que também ocorre em
italiano) – observação que clareou muitas das idéias contidas nessa dissertação. E é justamente a
compreensão dessa tríade fundamental (passado, presente, ausente) que me leva agora a pensar,
a partir também da bibliografia citada, que talvez se possa dizer que há uma forte
correspondência entre a idéia de passado como “tempo não visível aos mortais” e a percepção
44
do ausente como “espaço não visível a quem fica”. E é significativo que, em ambos os casos, o
modo de tornar visível o invisível pressupõe um deslocamento, um movimento que deve realizar
a conexão entre dois mundos.
No caso da morte, o deslocamento também em Crotone (assim como nas observações de
Thales de Azevedo) se dá através de ritos que incluem a escrita – de nomes, relações de
parentesco e amizade. Talvez possamos pensar nesses atos destinados aos vivos, mas “em
memória” do morto, como um modo de conectar, através da memória e das teias de relações, o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A presença efêmera dos cartazes fúnebres pelo espaço
da cidade – efêmera especialmente nos muros concorridos nas proximidades da Catedral,
porque um é velozmente substituído por outros – talvez tenha a duração de uma passagem, da
construção de uma ponte. Durante esse período de passagem, torna-se visível não somente as
relações entre vivos e mortos, como entre vivos e vivos, entre espaços de intimidade e espaços
públicos etc. Ou seja, o movimento permite uma visualização que não era igualmente possível
sem uma mudança de estado, um deslocamento.
Retorno com algumas observações a respeito dessas questões no final do capítulo. Do
mesmo modo, porém, que as descrições dos espaços da cidade dependiam dessa primeira
explicação sobre o sistema de relações expresso ritualmente nos cartazes fúnebres, no sentido
inverso, também esse sistema só ganhará a amplitude que merece para futuras análises se
observados em sua relação com as “formas de sociabilidade” que encontrei em tais espaços.
Desse modo, opto por primeiramente descrevê-las, para depois retornar não somente aos
cartazes fúnebres como mediadores de relações privadas-públicas, mas também acrescentar
reflexões sobre a morte no mundo social crotonense.
2.3 Neste tópico descrevo o que se poderia definir como “espaços de passeio e
encontro”, situados entre o trabalho, a casa e o lazer. Neles, o lugar se compunha a partir da
grande quantidade esperada de encontros entre conhecidos. Em se tratando de ruas, tornava-se
perceptível um duplo caráter, que unia ao mesmo tempo aspectos de vias de passagem e de
locais de encontros e passeios. Suas relações com outros espaços, como os interiores das casas,
locais de lazer, escritórios e centros de comércio, compunha um panorama em que a experiência
da teia pessoal, tal como percebida nos cartazes fúnebres, dialogava com transformações e
deslocamentos de tempo e espaço, deixando clara a ambigüidade de estar dentro ou estar fora,
das esferas pública (ou comum) e privada (ou particular), da família e da pessoa, dos limites da
45
cidade. Parto da descrição do espaço denominado Comune
27
, cuja movimentação está
diretamente relacionada ao tempo percebido como cotidiano, ligado ao trabalho e localizado
entre ele e a casa. A seguir, parto para a descrição da hora do almoço, em que os interiores das
casas tornavam-se protagonistas da jornada, esvaziando as ruas, o lado de fora. Por fim,
descrevo processos de transformação sazonal e urbana vivenciados na orla marítima, que era,
por sua vez, associada ao lazer da cidade, mantendo com essa relação sua grande importância
econômica e turística, mas também de espaço de sociabilidade entre crotonenses.
2.3.1 À rua Vittorio Veneto, no espaço compreendido entre a sede do Município
28
e a
Praça Pitágoras, se encontrava a região denominada pelos crotonenses de Comune. Vetado para
automóveis, com um rico comércio de lojas de grife e joalherias, o local era ponto de encontro
para pessoas de todas as idades, nas horas de entrada e especialmente de saída de escola e
trabalho. Essa relação com o horário comercial distinguia o Comune de outros espaços de
sociabilidade em Crotone. Talvez se pudesse descrevê-lo como um lugar de “sociabilidade
cotidiana”, de um tipo bastante diferente da que eu via aos domingos, feriados e férias, por estar
diretamente relacionada à jornada de trabalho, na qual o tempo livre é mais curto. Há também
uma associação do movimento do Comune aos dias comuns, deixando mais para o fim desse
capítulo algumas reflexões sobre como eram os dias assim considerados em Crotone.
Muitos dos encontros, daqueles que se viam por ali, de amigos e conhecidos, pertencia a
esses momentos entre a casa e o trabalho, entre a escola e a casa, entre o fim da jornada e a hora
do jantar. Variavam do breve passeio com amigos ao encontro casual – casual quanto a quem se
encontrava, mas não quanto ao fato de encontrar alguém, visto a pequeníssima probabilidade de
27
Comune é a palavra italiana para município; entretanto, tendo em vista a variedade de usos do termo em
Crotone, optei por mantê-lo nos casos em que a palavra em português pudesse causar confusões no entendimento.
Por exemplo, se um crotonense diz que algo aconteceu quando ele estava no Comune, ele não se refere às fronteiras
do município, mas apenas às redondezas de sua sede, no centro da cidade.
28
A praça onde estava situada a sede do Município foi o local que abrigou o manifesto estudantil narrado no
primeiro capítulo desse trabalho. Interessante observar um mesmo espaço em um dia de evento e um dia comum.
Perceber a diferença entre o que acontecia e o que aconteceu, perceber o que se percebia eventual ou cotidiano e,
ainda que cada momento tenha sido único, tentar inspirar-se na sensação de repetição e mudança que o contexto
trazia. Talvez por essas questões eu tenha pensado na noção de tipologia para descrever algo cotidiano: o típico é
sempre ideal, embora pautado no que ocorreu. Interessante também observar o que se compreende em um a partir
das relações com o outro, o quanto entendi o manifesto a partir desses dias comuns e o quanto ele me disse sobre
eles. O quanto foi por acaso que entrei naquele preciso dia na Vittorio Veneto, ouvi o som dos bongôs e descobri,
assim, as bandeiras ao longe no Comune – e o quanto era parte da normalidade cotidiana que eu passasse por ali
tantas e tantas vezes durante os dez meses que morei por lá, visto a importância que a rua tem e tudo mais o que
está sendo escrito sobre ela.
46
que isso não ocorresse ao se passar por ali. Essa relação entre o “casual” e o “previsto” pode ser
importante para pensar a vida pública (privada-pública) da cidade. O dado pode ser relacionado
com o modo como os cartazes fúnebres estavam expostos tanto às pessoas a quem eram
dirigidos nominalmente quanto àquelas que apenas passavam, reconhecidas em Crotone não
como anônimas, mas como conhecidos de conhecidos de... A casualidade dos encontros no
Comune seguia essa mesma lógica, visto que o encontro tem maior probabilidade de realizar-se
em um lugar onde todos eram (e buscavam ser) conhecidos em potencial. Apenas passar, tanto
no caso de quem cruzava em seu caminho com um cartaz fúnebre, tanto no caso de quem
cruzava o Comune a caminho do trabalho, aumentava, no espaço público da cidade, a
probabilidade de encontros privados, tanto com amigos, quanto com amigos de amigos, amigos
de amigos de amigos etc.
Poder-se-ia pensar em uma espécie de tipologia desses encontros e passeios ao longo de
um dia comum, de acordo com o aumento e a diminuição de fluxo no Comune. Entre as oito e
dez da manhã o movimento de ida ao trabalho preenchia o espaço com gente de passagem, que
saudava os conhecidos que, por sua vez, também iam passando em direção aos seus afazeres.
Como a jornada não iniciava em horário igual para todos, os encontros eram assim, pelo
caminho. Às vezes, como não eram muitos aqueles que caminhavam apressados, aproveitava-se
o encontro para uma breve troca de notícias, sobre familiares e amigos, ou para um café. A
importância desse hábito em Crotone lembra-me muito o papel dos Cafés, tal como destacado
por Áries (1981), como espaços coletivos de sociabilidade – substituídos, segundo o autor, em
muitas sociedades modernas, pelo espaço da família nuclear e da casa.
No caso das primeiras horas da manhã, antes que se chegasse ao escritório, esse café
podia vir acompanhado de uma colação um pouco mais extensa, com um dos chamados
cornetos, uma espécie de pão doce recheado com creme, chocolate ou Nutella. Por toda a manhã
e nas primeiras horas da tarde, depois do almoço, o café continuava a ser parte importante do
que eu chamaria de “pontuação” de ritmo da vida cotidiana crotonense. Encontrar ou convidar
alguém para um café era um hábito muito difundido em Crotone. Quando na rua, eram
encontros curtos que promoviam tanto breves pausas do trabalho quanto breves conversas entre
dois amigos, colegas de trabalho ou mesmo conhecidos sem muita intimidade. Era já um
pressuposto que o pequeno tempo de tomar o café era aquele que se passaria junto ao
47
convidado. Um dos dois pagava para ambos – e ele poderia ser tanto quem convidara quanto o
convidado, em retribuição à gentileza do convite.
Ariès, no texto mencionado, distingue cafés de cafeterias – os primeiros relacionados ao
tempo tradicional de sociabilidade coletiva e as segundas à velocidade e individualização do
espaço moderno. Em Crotone eu diria que, apesar da brevidade dos encontros, o café não só
pertence a uma sociabilidade muito mais próxima àquela dos antigos cafés que menciona o
autor, como ainda conjuga de maneira curiosa essa sociabilidade a temporalidades distintas,
espaço de estar e de passagem. Vejo-a relacionada a um tempo espesso, de cadência lenta –que
dá ritmo ao tempo de trabalho não com a hora do relógio mas com essas pequenas “pausas-
café”, curtas mas cheias, preenchidas com teias de relações que são particulares mas também
compõem um tempo e espaço coletivo. Outras são as formas que a velocidade encontrou em
Crotone para se instalar – e as mencionarei a seguir – mas o café mantém-se, apesar de breve,
seguindo em sentido contrário à “pressa” e à “individualização”.
Muitas vezes, durante a jornada de trabalho, convidava-se alguém para um café e as
situações do convite variavam bastante. Era comum que ele se desse em encontros casuais pela
rua, quando se estava a caminho de qualquer parte, de modo a valorizar a atenção e companhia
da pessoa encontrada sem que se tomasse muito tempo do trabalho e, ao mesmo tempo, sem que
tal brevidade pudesse ser confundida com uma pressa de livrar-se da companhia sendo, ao
contrário, um tempo de dedicação a ela. Outra situação, que ocorria comumente com amigos
um pouco mais próximos, era aquela na qual se telefonava ou mesmo passava diretamente no
escritório do outro, para fazer junto a ele uma pequena pausa (pausa-café) nas tarefas. Por fim,
negócios e relações de trabalho muitas vezes incluem o café como um momento supostamente
mais pessoal, ou menos distante – seguindo a lógica de tornar o outro um conhecido ou, em
certos casos, em um “bom amigo”, categoria sobre a qual dedico reflexões ao fim do capítulo.
Interessante pensar a partir do café em relações de negócios que a impressão de distância
ou proximidade de alguém, embora diretamente relacionada à posição na teia de relações, pode
ser momentaneamente recriada (ou forjada) por um rito, de acordo com o interesse de ambas ou
uma das partes. É importante ressaltar outros casos, também relacionados ao universo do
trabalho, em que o que estava em jogo não era uma relação de igualdade, mas uma relação
assimétrica como, por exemplo, aquela entre patrões e funcionários. Nessa situação, a
determinação formal era a de que fosse o patrão a pagar o café, mesmo quando o funcionário
48
fizesse o convite – o que ocorria mais raramente. Uma certa vez, paguei um café a meu patrão e
provoquei um certo constrangimento: o jogo ritual poderia movimentar as posições
aproximando conhecidos, personalizando relações, mas tal movimento se dava apenas dentro do
limite em que era pressuposto um reconhecimento claro das posições fora do rito.
Concluindo essa pequena reflexão sobre o café, ressalto que, apesar das situações do
convite variarem, os traços formais do encontro permanecem quase os mesmos, mudando
apenas o teor e a intimidade das breves conversas. Quando ocorrido dentro da casa de alguém,
normalmente após o almoço, o café tendia a se estender um pouco mais, mas ainda assim
mantém-se o caráter que associa encontro e brevidade e, é interessante observar, mesmo certos
traços formais. Por mais íntima que seja a situação quando, por exemplo, o convidado é um
amigo, a relação com o próprio café não é exatamente informal – não me refiro à “formalidade”
no sentido de pouca descontração, mas no sentido de algo que obedece a formas pré-
estabelecidas. Mais à frente, pode-se comparar a pontuação de ritmo e o traço de promoção de
encontros do café com o caráter doméstico e o ritmo mais lento da hora do almoço. Por
enquanto, o que considero mais importante desta digressão é a possível associação do aspecto
íntimo-público do café com a situação “entre espaços” em que o Comune parece se localizar em
relação à casa e ao trabalho.
Passadas as primeiras horas do dia, o movimento no Comune diminuía um pouco de
intensidade, mas ainda assim permanecia bastante vivo e contínuo, até as horas de almoço.
Quando rareava o número de pessoas que passavam a caminho de seus trabalhos, podiam-se
observar melhor outras ações que se desenrolavam por ali, como por exemplo, o passeio pelo
comércio. A região era repleta de lojas, especialmente de roupas de grife e joalherias. Lojas
bonitas, que traziam à rua um aspecto (a somar-se com tantos outros) de shopping a céu aberto.
Embora houvesse uma grande variação de preços, a rua Vittorio Veneto não abrigava lojas tidas
como populares. Era uma zona comercial direcionada a um público de camadas médias a altas, a
quem oferecia roupas, calçados e acessórios com marcas da moda ou mesmo algumas boutiques
(bem mais caras) de estilistas. Os crotonenses, homens e, ainda em maior grau, mulheres,
costumavam gostar de compras e sacolas: quando alguém chegava com alguma nas mãos,
provocava de imediato o interesse dos outros, que vinham curiosos indagar e ver o que tinha
sido adquirido. A quantidade de joalherias e roupas caras contrastava com as notícias que me
chegavam sobre ser Crotone uma das províncias mais pobres do sul da Itália – que é já a região
49
com menos recursos do país. Estar na moda, vestir-se bem, comprar muito, era uma importante
forma de distinção social na cidade.
Durante toda a manhã, após o horário de entrada no trabalho até que se aproximasse o
meio-dia, o Comune mantinha seu movimento, nem frenético, nem lento, em um ritmo calmo,
mas cheio e contínuo, de gente que passava e passeava, indo de um escritório a outro, a bancos e
reuniões de negócios ou de um lado a outro do Comune, de loja em loja, vitrine em vitrine.
Nesses percursos, muitos se encontravam, cumprimentavam, conversavam, convidavam
conhecidos a tomar um café, trocavam notícias. Até que se aproximava o meio-dia e chegava o
momento do primeiro ápice de movimento no Comune. O respeito pela hora do almoço fazia
com que as saídas de escola e trabalho ao final da manhã fossem bem mais coincidentes do que
suas entradas. Então, na hora que antecedia a uma da tarde, o espaço se enchia de gente que
retornava à casa para almoçar. As lojas, que também tinham seu movimento engordado pelas
pessoas que aproveitavam o tempinho livre, aproveitavam a possibilidade de vendas que lhe
ofereciam os últimos minutos antes que terminasse o turno da manhã.
Todo aquele movimento de pedestres a caminho de casa proporcionava um número
ainda maior de encontros entre amigos e conhecidos. O ato de saudar-se (salutarsi), tão visível
nesse horário, seguia a lógica expressa pelos cartazes fúnebres: do mais próximo ao mais
distante, variavam os encontros entre cumprimentos e perguntas pela família até conversas mais
íntimas, em todos os casos terminando pelas interessantes “saudações a Fulano!”, “abraços a
Cicrano!”, “lembranças aos seus...”. Ao contrário do que sou habituada a vivenciar no Rio de
Janeiro, tais saudações, abraços e lembranças eram sempre transmitidas a seus destinatários.
Não me refiro, ressalto, a saudações enviadas por pessoas que não fossem vistas há muito
tempo, mas a um universo onde a probabilidade de encontrar o mesmo conhecido mais de uma
vez por semana é muito alta. Quero ressaltar que fossem duas, três, quatro vezes por semana que
se encontrasse o mesmo conhecido, ele enviaria saudações às mesmas pessoas e elas seriam
devidamente portadas, recebidas e retribuídas. A frase “ti saluta...” (“te saúda...”), completada
com o nome da pessoa que havia enviado a saudação (“te saúda o senhor Giorgio!”, ou “te
saúda Lucia!”) iniciava, portanto, muitas conversas. Era dita apenas se encontrava a pessoa a
quem a saudação era remetida, normalmente (mas não necessariamente) familiares ou pessoas
do convívio próximo do “portador” (os “seus”), a quem a pessoa encontrada teria enviado
saudações. A essa frase, seguia-se inevitavelmente a narrativa de onde e em que circunstâncias
50
se tinham visto e, retribuindo a lembrança (e o afeto) perguntas e respostas interessadas sobre
como estaria a pessoa encontrada e família
29
. Familiares de amigos, amigos de amigos, amigos
de namorados de amigos... Notícias e saudações circulavam, assim, em um eficaz sistema de
comunicação oral.
As conversas relativamente breves (mas raramente apressadas e sempre interessadas)
que marcavam os encontros entre trabalho e casa ao Comune eram coisa de adulto. Nesse
mesmo horário, a região lotava de adolescentes de idade escolar que, embora também tivessem
pouco tempo entre a escola e a mesa do almo, deixavam-se estar um pouco mais, ocupando o
espaço de um modo diverso. “Dominavam a rua”, poderia dizer quem observasse a quantidade
de motocas e a alegria dos grupos espalhados. Era impossível, para mim, passar por ali a essa
hora sem encontrar alguns alunos, ver outros que passavam mais longe e mesmo ser vista por
aqueles que vinham me contar depois: “professora, te vi hoje no Comune!”.
Apesar de, através de meus alunos que me reconheciam como uma “professora jovem”,
ter tido oportunidade de manter conversas com adolescentes durante toda a minha estada, seria
necessária uma pesquisa mais bem direcionada para que eu pudesse discorrer com mais
liberdade e profundidade sobre seus hábitos
30
.Um deles, porém, muito marcante nas horas que
antecediam o almoço, especialmente no Comune, era o uso da motocicleta. Como a entrada de
veículos era proibida naquele trecho da rua Vittorio Veneto, eles as estacionavam enfileiradas,
às esquinas de cada rua que lhe era perpendicular. A chamada “patentina”, que permite dirigir
motos pequenas, pode ser obtida pelos adolescentes italianos a partir dos quatorze anos de
idade, enquanto o uso de motos um pouco maiores é concedido a partir dos dezesseis. É
precisamente, portanto, em seus últimos anos de escola (e, grande parte das vezes, de Crotone)
29
É curioso observar como a formalidade (mais uma vez no sentido de “respeito à forma” e não de falta de
descontração) presente nessas saudações – mesmo dentro de universos íntimos – se opõe ao estereótipo do italiano
fanfarrão e espontâneo. De fato, surpreendia-me a força formal da educação crotonense, que apenas não está
associada aos mesmos padrões de “civilização” do estereótipo francês ou inglês: falar baixo, manter distância etc.
No caso italiano, a forma é regida por outros valores, mas transmitidos em padrões igualmente rígidos (apenas
diversos) de “civilização” – usando aqui o termo “civilização” no sentido em que os alemães, segundo Elias (1990)
o distinguiam de kultur.
30
É interessante que me sinta tão menos confortável a escrever sobre os adolescentes do que sobre pessoas de minha idade,
mesmo considerando que em termos numéricos os primeiros compusessem, através de meus alunos, a maior parte de minha teia
de conhecidos. Esse dado se tornava especialmente expressivo quando eu me relacionava com pessoas de idade maior do que a
minha, muitos deles pais de alunos (conhecidos de conhecidos), ou mesmo de outras gerações, composta por seus familiares e
amigos. Tratava-se de referências profissionais e pessoais que, apesar de muito importantes e valiosas, não me permitiriam
penetrar o universo de hábitos de uma outra geração sem que houvesse uma dedicação muito especial, que fugia aos primeiros
objetivos desse trabalho. A partir desse dado, pode-se perceber a diferença de tipos de participação na teia: ser “amiga de um
amigo” portava a situações diversas daquelas relativas a ser professora.
51
que uma grande quantidade de jovens ganha uma motocicleta de seus pais. O senhor Giorgio,
meu patrão, falando em referência à sua sobrinha, me disse certa vez que as motos eram um
direito importante que os adultos davam a seus filhos adolescentes por serem o único modo com
o qual eles poderiam possuir uma relativa liberdade de ir e vir sem depender a cada momento de
seus pais. Relembrando a recusa crotonense de caminhar a pé, cabe acrescentar que a cidade não
possui um sistema público de transporte que sirva para sua circulação interna, sendo direcionado
apenas a áreas mais afastadas e vilarejos vizinhos. Ressalto, aqui também, a posição liberal dos
pais em contraste com as crises familiares a que remeti com relação a solteiros adultos.
Quis lembrar aqui a fala do senhor Giorgio, justamente por me parecerem muito
compatíveis os termos “liberdade” e “independência” com a imagem dos adolescentes
espalhados pelo Comune antes da hora do almoço. Concentrados em maior número na praça que
havia diante da sede administrativa do Município, enquanto bebiam coca-cola ou mesmo
roubavam parte do estômago ao almoço com fatias de pizza, viviam naquele espaço um tempo
situado entre o domínio da escola e aquele da casa, da família. Pareciam curtir aquele momento
como algo só deles, aproveitando a passagem para deixar-se ficar e viver suas histórias entre as
horas em que estavam sentados à carteira da escola e aquelas em que se sentariam com a família
como bons filhos à mesa do almoço.Faziam amizades, construindo, em território mais livre,
suas próprias relações.
31
Os adultos realizavam seu grande passa-passa em que se encontravam, cumprimentavam
e conversavam, vivendo de modo diverso aquele mesmo espaço e tempo entre o trabalho e o
almoço. Esse tempo, aliás, de estar entre o trabalho ou a escola e a casa, a família é
precisamente a primeira característica que eu gostaria de ressaltar nesta descrição do Comune.
Por mais que se prolongassem as conversas e por mais esperados que fossem os encontros,
grande parte deles estava relacionada, quando ocorridos durante a jornada de trabalho, a um
caminho, entre a casa e o escritório, ou mesmo de um escritório a outro, a bancos, a reuniões.
Não era à toa que o movimento aumentava por ali nos horários em que tais caminhos
31
Podemos associar significativamente esse “tempo e espaço só deles” e a liberdade oferecida, nesse sentido, pelas
motos presenteadas pelos pais ao período subseqüente de ida à universidade – talvez a própria “escolarização”
(ampliada a cada ano, hoje a universidade sendo percebida como algo imprescindível), já ressaltada no fim do
primeiro capítulo, possa estar relacionada ao “período de quarentena” a que Aries se refere (1978). Enquanto,
portanto, no primeiro capítulo essa “ausência” de Crotone foi associada a uma ação reativa a favor da “localidade
tradicional”, aqui assume também o caráter oposto, de ação “liberal” em todas as suas conotações ideológicas
relacionadas à “modernidade”. Não penso de modo algum que as duas conotações sejam paradoxais: elas apontam
justamente para o caráter regulador, de sintonia fina, entre “permanência e mudança”.
52
coincidiam. O Comune é parte de uma rua importante, a Vittorio Veneto, que corta todo o
centro da cidade.
Mas o Comune, além de ser parte de uma via de passagem importante, bem como um
importante espaço comercial, era um espaço destinado somente a pedestres. Em Crotone, como
eu já mencionei anteriormente, o tráfego era intenso. Seus habitantes costumam sair de casa
sempre com seus automóveis e não a pé. Nesse contexto, uma rua de pedestres, localizada no
centro da cidade, representa, além de uma via de passagem, uma via de passeio. O outro local
da cidade onde foi vetada a entrada de carros ficava na orla, mais associada às horas, dias e
períodos de lazer do que o Centro. Nesse sentido, penso que o Comune relacionava-se de modo
particular com a vida pública e a sociabilidade crotonense, compondo, em um eixo central da
cidade, um espaço onde se relacionavam horas livres e horas de trabalho, comércio e passeio,
encontros “casuais” e a previsibilidade de ver e ser visto, como um lugar de experimentação,
manutenção e constituição da teia de relações sociais de modo coligado a todas essas esferas.
Gradativamente, quando se aproximavam as 13 horas, o movimento começava a
diminuir. Já não passava tanta gente e as alunas que eu encontrava estavam já indo embora.
Quem devia comprar, no mercado ou mercearia, alguma coisa que ainda faltasse levar para a
mesa, deveria se apressar, pois todo o comércio fechava às 13 h. e tornava a abrir somente
depois das 16 h. As graciosas lojas do Comune não fugiam à regra e interrompiam suas
atividades, assim como os escritórios. Hora do almoço era hora de estar em casa. Por ali, não
havia casa e, sendo assim uma zona comercial, à medida que as pessoas terminavam de passar e
os adolescentes deixavam o espaço, pouco a pouco o silêncio aumentava, o vazio crescia, até
que reinavam, se impunham, quase absolutos.
Entre uma e quatro da tarde, aquele espaço tão movimentado se tornava desértico. A
enorme preponderância dos interiores das casas durante aquelas horas do dia, fazia com que
espaços marcantemente comerciais como o Comune fossem deixados em um abandono digno de
cidades fantasma. Estive por ali, sozinha, algumas vezes, experimentando o que seria estar no
lugar errado, na hora errada. Entre a paz e o perigo, sensações estimuladas pelo vazio e pelo que
eu definiria como uma margem. Dentre os raríssimos passantes (é difícil que se veja em todo o
percurso mais de um), cheguei a encontrar, na saída da área de pedestres, quem me abordasse de
modo ameaçador, especialmente sob o ponto de vista sexual. Não sei dizer se fui confundida
com uma prostituta – embora o homem não me parecesse exatamente procurar por serviço – ou
53
se simplesmente entrei nos padrões, marginais para a lógica crotonense, de uma mulher sozinha,
sem casa, sem marido, sem família. Apenas alguém assim estaria do lado de fora a uma hora
daquelas.
A impressão de perigo, que encontrei em situações semelhantes – domingo no centro em
hora de estar na missa, domingo no centro na hora de estar na orla ou em casa, em dias de frio e
chuva, à noite no centro e durante a hora do almoço em outros lugares da cidade – está
associada, portanto, à idéia de margem. Minha atitude de experimentar estar onde “ninguém
estava (ou “deveria estar”, segundo o hábito local) não chegou a trazer nenhuma conseqüência
durante minha permanência em Crotone e o máximo que ouvi de amigos foi que tomasse
cuidado. Mas me trouxe a certeza de que estar em casa entre uma e quatro da tarde não é apenas
aproveitar um momento de repouso, mas atualizar todo um conjunto ideológico básico
crotonense que une noções de família, casa, integração, pertencimento e tocam profundamente a
esfera moral. Especialmente para uma mulher, não é apenas um costume, mas também um bom
costume. Quem seriam e com quem se relacionariam aquelas tão raras pessoas que, como eu,
passaram pelo Comune em hora de estar em casa?
Alguns minutos antes que soassem quatro horas da tarde, um sutil movimento começava
a reaparecer por ali. Pouco a pouco as lojas reabriam, algumas mais cedo, outras já depois das
quatro e meia. Quando descrevi o movimento do Comune pela manhã até a hora do almoço,
enfatizei os encontros “casuais” e a via de “passagem”. Agora enfatizo o seu importante aspecto
de espaço de passeio, presente durante todo o dia, mas ainda mais evidente na parte da tarde.
Enquanto os atos de passagem possuíam sentidos únicos que variavam de pessoa para pessoa e
estavam relacionados ao lugar para onde se dirigiam, o passeio era realizado caminhando-se
pelo Comune em seus dois sentidos: indo até seu limite com a Praça e retornando tudo até seu
limite com a via Roma, indo e vindo, andando de um lado para o outro, diversas vezes.
Quando se aproximavam as seis ou sete horas da noite, o Comune passava por um novo
e mais alto pico de movimento e eram essas idas e vindas que ocupavam seu espaço. O espaço
do Comune deixava, portanto, de ser um via de acesso para tornar-se, ele próprio, um lugar
ocupado, como uma “via de estar”. Caminhando de uma parte à outra – de modo desvinculado
do comércio – e retornando repetidas vezes, sucediam-se outros tantos encontros. Passeios e
encontros tornavam o espaço, nas horas de saída de trabalho, muito mais cheio e movimentado
do que em todo o resto do dia. Seu ritmo, porém, era bem mais lento do que aquele da hora que
54
antecedia o almoço, em que se andava a caminho de casa. Agora não devemos mais pensar em
encontros que ocorrem no meio de um dia de trabalho, mas ao seu término. Viam-se menos
pessoas sozinhas, grupos maiores passeando, famílias inteiras, pais com crianças, gente de todas
as idades. Embora esse pico de movimento não durasse mais que uma ou duas horas, deixava
visível uma menor rigidez com relação à hora do jantar. Eu nunca vi um momento frenético em
Crotone, mas eu diria que o ritmo da cidade diminui ainda mais, pouco a pouco, durante o correr
do dia.
Eu já escrevi que dentro da divisão espacial da cidade, a orla era mais comumente
associada ao lazer, enquanto o centro concentrava os movimentos de comércio, trabalho e
administração. Escrevi também que, assim, o tipo de lazer que se observava no Comune estava
associado ao horário comercial (compras, intervalos, início e fim da jornada), sendo local de
passagem e passeio, ambos propiciadores de encontros. Minha sugestão é que se pense aquele
espaço como um local de mediação entre vida pública e particular, ou ainda melhor, onde tal
mediação pode ser observada de modo privilegiado, como nos cartazes fúnebres, como
definidora de um universo particular-público. No próximo tópico, busco complementar essa
observação tendo como referência ruas e casas durante as horas do almoço. Seria interessante
pensar na diferença entre essa grande pausa na jornada de trabalho e as pequenas pausas para o
café que se dão durante as horas de trabalho. Enquanto o almoço pertence ao universo e ritmo
interiores das casas, o café, breve como um encontro de passagem, está inserido em uma lógica
que une a intimidade de amigos e a via pública.
2.3.2. A água da massa já esquentava no fogo, visto que Caterina e Luca estavam a
caminho, o que o telefonema confirmara. Alfredinho, bebê do casal, já comia feliz seu prato de
papa molhada com um bom azeite, sentado na cadeirinha alta e cercado de atenção por todos
enquanto vovô Cosimo lhe dava cuidadosa e pacientemente as grandes colheradas. Televisão
acesa – novela e telejornal – mesa posta na cozinha onde, pouco a pouco, um a um chegava.
Dona Elisa já se informara sobre quem iria querer primeiro ou segundo (massa ou carne) e
deixara tudo encaminhado. À água já fervente colocava-se a massa, não sem antes indagar de
novo: “Antó, Caterina disse que está chegando? Boto a massa!” – “Eh, bota!” – “Senão fica
tarde... É tarde...” – “Eh, bota! Ela está chegando”. De fato, antes que Alfredinho terminasse,
por vezes começando a reclamar da distância que o separava do resto da mesa onde brilhavam
tantos objetos divertidos, tocava a campainha. Carregados de casacos, sacolas, bolsas que
55
apoiavam no sofá da sala, chegavam Caterina e Luca. Notícias do bebê – como passara o dia –
saudações vindas de encontros, mais notícias e a família se unia ao redor da mesa, com as
deliciosas massas de dona Elisa, seguidas de queijos, frutas, pães “de Cutro”. Bebia-se água,
vinho, refrigerante de laranja. Ao final, café ou um licor “digestivo”, como o típico “Amaro del
Capo”, da região calabresa.
Entre uma e quatro da tarde o que se via eram ruas vazias e casas cheias, algumas
deixando ouvir o som da família à mesa escapulir pelas varandas. Esse era o caso do Centro
Histórico, em que os casarões, ao inverso dos prédios do resto da cidade, tinham muitas de suas
grandes janelas próximas ao chão das ladeiras e preenchiam o vazio dos becos e ruelas estreitas
com o alegre rumor do almoço, conversas e barulho de crianças, cheiro de comida, som de
televisão que passava a novela americana “Beautiful” e em certos trechos músicas italianas
ouvidas a alto volume (peculiaridade tamara
32
do Centro Histórico), que talvez não parecesse
tão alto não fosse contrastar com o silêncio do lado de fora. A quem caminhava solitário por ali,
ruídos e música compunham harmonicamente o cenário como a trilha sonora de um filme
bonito, mas a alegria vinda dos interiores, devo confessar, parecia-me dar um tom melancólico
ao ato de passear pelas vielas desérticas – impressão derivada do tão forte contraste entre o que
se parecia viver lá dentro e o que se experimentava ali fora.
Ainda assim eu a considerava uma das situações mais encantadoras da cidade e insistia
em passear por ali a essa hora, admirando a beleza das casas. Gostava de perceber como suas
construções combinavam ricamente com aqueles barulhos abafados de gente vivendo dentro. O
vazio era já tanto, e a estreiteza das vias, a quantidade de ruas sem saída e as muitas curvas das
ladeiras pareciam aumentá-lo, visto que diminuíam ainda mais as chances de se ver mais
alguém pelas ruas. Quando isso ocorria, porém, e um outro passante fora de hora cruzava uma
esquina distante a caminho de casa, a sensação de solidão só fazia aumentar. Assim era também
que eu percebia a presença dos cachorros que dormiam, muitos, bucho cheio, em certos largos e
portas de casas – lembravam-me que eu estava, então, fora de casa como eles, sozinha com os
cães.
32
Tamaro é tudo que não é “fino” ou que é “pouco educado”, mas a palavra certas vezes tem um sentido
especialmente positivo, de certa forma associado ao “popular” e “local”. É senso comum que falar o dialeto dos
quais os locais têm muito orgulho soa mais tamaro do que falar italiano. Nesse e em outros tantos casos, o termo
tamaro perde a conotação pejorativa, para ganhar uma associação ao bom humor, simpatia, força e importância do
espírito social e político de localidade.
56
A impressão de hora do almoço variava de acordo com o local da cidade em que se
passeava. Se no Centro Histórico a presença das casas poderia ser tão sentida através de seus
ruídos e cheiros, o mesmo não ocorria em outras partes, nas quais a altura e distância dos
edifícios impediam o mesmo exercício sensorial. Apenas as varandas, que compõem a
arquitetura de quase todos os prédios da Crotone moderna, expunham timidamente parte dos
movimentos internos... Alguém que olhava para a rua, fumava um cigarro e, imagem marcante
da cidade, senhoras que estendiam suas roupas nos longos varais que coloriam ou branqueavam
as ruas vazias, com roupas, panos e enormes lençóis. Era o pouquinho de vida íntima que as
casas permitiam ver, sempre protagonistas absolutas, quase tirânicas, das horas de almoço.
Talvez fosse na orla, especialmente nos dias de sol, que ainda se pudesse encontrar
alguém atrasado para o almoço, ao menos até às duas ou duas e meia da tarde. Ainda assim,
enquanto não se aproximasse o verão, a “Tramontana” – vento frio que assola constantemente
Crotone – recolhia seus habitantes aos interiores de suas casas. Bares e cafés também serviriam
de abrigo, mas não na hora do almoço, que não são horas livres ou de lazer, mas de estar à mesa
com a família, comer bem e descansar para a segunda parte da jornada de trabalho. Mesmo as
casas mais alegres acabavam silenciando depois da primeira hora de pausa: qualquer barulho
muito alto seria inconveniente em um intervalo dedicado ao repouso. Após o queijo e a fruta,
havia quem ainda aproveitasse o tempo para uma breve soneca...
Quanto à possibilidade de almoçar fora, eram muito raras as vezes que os crotonenses o
faziam. As pequenas pizzarias “a taglio”, ou seja, que vendiam pizzas em fatias, além de outros
petiscos como batatinhas fritas ou os chamados “arancini” (salgadinhos de arroz), funcionam
apenas para aqueles que, por alguma razão, naquele dia não podem tornar a casa. Ou seja,
tratava-se de situações excepcionais. Focos raríssimos de movimento durante as horas do
almoço, ainda assim o funcionamento interno de tais pizzarias não chegava a contagiar nem
mesmo as ruas em que se localizavam. Ocorria que em tais pizzarias o ato de “comer”,
normalmente relacionado em Crotone à apreciação do sabor (mesmo no almoço de cada dia
dentro de casa) e ao desfrute da companhia de outros, tornava-se prioritariamente “matar a
fome”.
Assim, não estava incluído nos planos ficar por um tempo prolongado à mesa, como
ocorria na imensa maioria das situações, embora isso não queira, é claro, dizer que as pessoas
57
não conversem à mesa nesses locais
33
. Apesar de raro, porém, pode-se encontrar ali quem coma
sozinho, o que é inimaginável em qualquer outro tipo de local em Crotone. Portanto, mesmo
quando por algum motivo não se podia estar em casa à hora do almoço, essa refeição não
passava a ser vista como um momento de estar com os amigos à mesa, mas como uma situação
excepcional na qual se deveria comer fora de casa e sem a companhia familiar
34
.
Por outro lado, convidar um amigo para almoçar em casa, embora não ocorresse sempre,
era um hábito usado, especialmente se era sabido que ele estaria sozinho à mesa por algum
motivo. Eu mesma fui convidada mais de uma vez nessa situação: quando as amigas com quem
dividia o apartamento saíam em viagem, meus amigos, colegas de trabalho e patrão
preocupavam-se em me convidar para o almoço, para que eu não passasse aquelas horas em
solidão. O acolhimento visava corrigir a situação excepcional (e marginal) que eu passava,
fazendo-me sentir incluída, dentro.
Havia ainda outros tipos de situações extraordinárias, interessantes também para pensar
a hora do almoço a partir das relações entre o lado de fora e o lado de dentro. A primeira a que
me remeto é a situação de viagem, de estar por alguns dias fora de Crotone. Nessa situação, não
só a hora do almoço passava a ser um momento privilegiado para se estar com os amigos à
mesa, como diversas vezes se saía da cidade especialmente para isso. Isso ocorria especialmente
em períodos próximos às férias de inverno, ou a aquelas de verão, mas também, embora
33
É interessante observar que café tomado junto aos amigos, ainda que ocupe um tempo muito mais breve do
aquele de comer uma fatia de pizza, tem uma função de sociabilidade muito mais acentuada do que o que se vê nas
mesas das pizzarias “a taglio”. Ali, parece-me que a relação com a comida, em oposição ao papel que ela tem em
outras ocasiões é semelhante a que Ariés descreve no caso das modernas “cafeterias” em oposição aos “cafés”.
34
Do mesmo modo que o almoço estava associado à casa e à família, o tempo que se pensava em dividir a mesa
com os amigos era normalmente reservado à hora do jantar. Se a pausa para o almoço em casa se alongava por três
horas, o jantar na rua tinha a mesma propriedade de esticar-se, compondo um tempo de lazer entre amigos. A
associação amigos/exterior e familiares/casa se complexifica se consideramos as vezes em que as refeições, almoço
e jantar, eram feitas à casa de outros: enquanto no almoço convidar alguém significava, na maior parte das vezes,
incluir o convidado na esfera familiar, no jantar eram as casas de solteiros ou jovens casais aquelas escolhidas para
o encontro entre amigos. Enquanto alguns cozinhavam e os outros conversavam, observava-se a configuração de
uma outra idéia de casa, como que uma abertura desse espaço à outras esferas que não a familiar. Jantar fora
significava, na maior parte das vezes, comer pizza. Ao contrário das pizzarias “a taglio”, jamais escolhidas para
essa programação (trata-se de uma programação entre amigos, e não de matar a fome), aquelas nas quais se ia à
hora do jantar eram valorizadas tanto por seu ambiente quanto, de modo especial, pelo sabor a ser apreciado. Cada
pessoa escolhia e comia uma pizza grande inteira (não existiam fatias ou pizzas pequenas), inevitavelmente
comentando muito atentamente o sabor, a qualidade e mantendo-se interessado pelos comentários dos outros. Ir à
uma pizzaria não era somente uma oportunidade de estar com amigos, mas de dividir com eles um espaço à mesa,
repleto de impressões e nuances gastronômicas. Era também comum sair da cidade para jantar, em busca de bons
restaurantes nas estradas e vilarejos das redondezas. O jantar fora (de casa) tinha uma grande importância dentre o
lazer de interiores, dividindo esse espaço com pubs, cinema e jogos de carta.
58
raramente, em outras épocas. Ou seja, não se saía para almoçar fora quando se estava dentro de
Crotone, mas sair da cidade para almoçar junto à lareira de um restaurante nas montanhas
durante, por exemplo, o período de Natal era algo usual – o que não significa que fosse
cotidiano ou comum. Ressalto também as idas festivas aos chamados “agri-turismos”,
restaurantes onde eram servidos produtos cultivados na região. Nesse caso, pagava-se um preço
fixo e realizavam-se verdadeiras (e deliciosas) orgias gastronômicas.
E então chego ao segundo tipo (ou tipos) de situação extraordinária. Férias, festas,
feriados, transformavam as relações entre o lado de fora e o lado de dentro – acredito que a
hora do almoço, por ser nos dias ordinários uma hora tão definida para estar-se dentro, pode ser
um bom ponto de partida para pensá-los sob esse aspecto. Há um dia especial durante o ano, a
chamada “pasqueta”, segunda-feira seguinte ao domingo de Páscoa, em que tais relações entre
os interiores e o lado de fora são ainda mais claramente reformuladas. Em 2003, o grupo de
amigos com os quais eu tinha mais proximidade se dividiu entre duas opções de divertimentos:
ambas, porém, tinham como ponto em comum o que todos mais que conheci fariam naquele dia,
ou seja, almoçar fora da cidade e, de preferência, ao ar livre. Na pasqueta, me explicavam os
amigos, “há a tradição de se almoçar ao ar livre, como em um piquenique”. Em Santa Cristina,
na casa de um amigo onde fui passar aquele dia, a festa se desenrolou no jardim, onde todos
comiam e bebiam. No mesmo condomínio, em casas vizinhas, encontrei algumas alunas, que lá
estavam com suas famílias seguindo a mesma tradição. A escolha pelo ar livre e por sair da
cidade não é recente: um grande amigo me contava, rindo, que seus avós, quando pequenos,
passavam a pasqueta onde hoje é o estádio de futebol, pois a cidade ainda se restringia ao
espaço do Centro Histórico. Deslocar-se até aquele ponto, era – me dizia esse amigo –
considerado, naquele tempo, afastar-se o suficiente da cidade para entrar na região campestre...
boa para piqueniques e perfeita para a pasqueta. As fronteiras mudaram, mas a tradição
permaneceu. Em 2004, durante a semana santa, o sol já batia um pouco mais forte, de modo que
já se podia estar-se fora de casa sem casacos durante as horas mais quentes do dia. Daquela
época do ano até a chegada do verão, cada vez mais a ocupação dos espaços externos se fez
visível. A gradação que observei pode ser descrita a partir de três momentos festivos: a
pasqueta, a festa da Madona de Coluna do Cabo (com ápice no terceiro domingo de maio) e o
verão. Em tais festas, o deslocamento às áreas externas tomava, respectivamente, um dia (fora
59
da cidade), uma semana (dentro da cidade, ocupando-a por completo) e, por fim, toda uma
estação (em que estar dentro da cidade e sair dela eram movimentos alternados).
No próximo tópico, centrado na descrição da orla marítima de Crotone, desenvolvo
melhor o tema da mudança sazonal do inverno ao verão (bem como gradações entre dia e noite
etc.), enquanto o terceiro capítulo fica reservado à festa da Madona. Outros eventos, como
batizados e matrimônios, também deslocavam as relações entre interiores e exteriores, muitas
vezes incluindo grandes reuniões de amigos nas horas de almoço, como em uma
confraternização entre relações familiares e outros tipos de relações. Por azar (e até mesmo por
uma questão importante como o ritmo de inserção na vida social da cidade), todas as vezes em
que fui convidada a tais comemorações já não estava na Itália – por duas vezes, em fevereiro e
junho de 2005, tive que retornar ao Brasil poucos dias antes de mais de uma festa, perdendo três
matrimônios, um batizado e uma comemoração de bodas de ouro. O tema fica, portanto,
reservado para o futuro.
2.3.3. Marcel Mauss (2003b) destacava, a partir das variações sazonais nas sociedades
esquimós, dois conjuntos de fatos “oponíveis e paralelos” que, embora diretamente associados à
distinção entre o inverno e o verão, não poderiam ser compreendidos como decorrência do
clima. O que a oposição acentuada entre as estações fazia nas sociedades esquimós era “marcar
o contraste” entre variações que não pertenciam à ordem de fenômenos naturais, mas religiosos,
de direito, de moral etc. Cada fase do ano colocava em evidência aspectos que, embora diversos,
eram pertencentes às mesmas sociedades e nela coexistiam como formas fundamentais.
Acrescentava, ainda, o autor que “De resto, se esse grande ritmo sazonal é o mais aparente,
pode-se supor que não é o único, que há outros cujas oscilações têm uma menor amplitude no
interior de cada estação, de cada mês, de cada semana, de cada dia”(MAUSS, 2003b, p.502). É
nesse mesmo sentido que destaco, aqui, variações sazonais em Crotone.
No extremo oposto à hora do almoço e ao inverno, em que a vida nos interiores
predominava, encontrei na cidade o período de calor e férias, o verão, em que os dois cinemas
fechavam as portas, sem público, visto que o momento era de estar ao ar livre. O fluxo de
pessoas na orla marítima aumentava gradativamente, em proporção direta ao calor. Dentro dos
bares o movimento era menor do que fora, onde todos se encontravam, e cada vez mais viam-se
pelas ruas aqueles que não já não moravam em Crotone e retornavam para rever suas famílias e
amigos. Ao mesmo tempo, o eixo de mais movimento da cidade deslocava-se do centro em
60
direção à orla, enquanto a dedicação dos crotonenses ao lazer passava, pouco a pouco, a ocupar
mais e mais horas de seus dias. Era então que aquela parte da cidade, sempre associada ao lazer,
passava por um processo sazonal de desenvolvimento econômico, com a abertura de novos
bares e locais de divertimento destinados a durar somente até o fim da estação.
Por todas essas mudanças, os crotonenses costumavam me dizer que eu esperasse para
conhecer a cidade no verão. Uma “outra Crotone”, era como definiam aquilo no qual ela se
transformava. Um outro lugar, enfim, que começaria a anunciar-se com a festa da Madona, na
qual já se vislumbrava (me avisavam) o período belo da cidade, que crescia, crescia, até que
praticamente explodisse em uma nova forma, apenas iniciadas as férias de agosto. A
temperatura muda de um dia para o outro na Calábria e o que eu experimentei em 2004 foi uma
súbita passagem do clima temperado do fim de primavera para o forte calor de verão. Apesar da
impressão de mudança abrupta, porém, posso pensar em claras gradações entre trabalho e lazer,
que passam por transições de tempo e espaço, do frio (dentro) ao calor (fora), do dia (trabalho,
casa e família) para a noite (lazer e amigos), de segunda (menos lazer) a domingo (mais lazer),
do centro (trabalho) para a orla (lazer), de interiores (frio) a exteriores (calor). Os crotonenses
esperam tanto pelo verão que costumavam declarar que em Crotone não acontece nada em
outras épocas do ano. Tal declaração está implicada com construções ideais e rituais da cidade
em períodos ordinários/cotidianos (repetição, “não acontece nada”) e durante as festas e férias
(transformação, “um outro lugar”). Mais uma vez encontra-se uma relação entre o deslocamento
(nesse caso sem que se saia da cidade, mas transformando-a em “outra”) e a transformação, os
acontecimentos, as possibilidades.
O fato de ser raríssimo, apesar do calor forte do verão crotonense, que se encontrassem
locais de lazer equipados com ar condicionado, me fazia pensar no quanto se valoriza estar do
lado de fora nesse período do ano. Não se podia ir ao cinema ou ao teatro, porque eles fechavam
para as férias. As danceterias e bares construídos para a estação possuíam sempre uma grande
área externa. Talvez apenas o pequeníssimo shopping center, localizado em uma região
afastada, mantivesse algum movimento, talvez com base nas vendas de roupas para a moda de
verão. Sobre esse aspecto, das vestimentas, embora a passagem dos casacos às blusinhas leves
fosse muito evidente, ela não ocorria de maneira súbita e custava muito a se cumprir. Mesmo
quando o calor era já suficiente, muitos crotonenses mantinham-se cobertos por calças ou
mesmo jaquetas e blusas de manga comprida. Mesmo durante o verão, havia pouca exposição
61
de corpos fora das praias: nenhum homem sem camisa, mesmo na região da orla, mini-saias
muitas vezes usadas sobre meias-calças do tipo “arrastão”, muito na moda naquele verão.
Sapatos altos, cintos pesados, cabelos com gel (jamais molhados) e muita maquiagem
continuavam a fazer parte dos trajes obrigatórios apenas os pés pisavam fora das areias. Cabines
para troca de roupa, espalhadas pelas praias, ajudavam na tarefa.
O espaço da cidade a que os crotonenses chamavam de orla (lungomare) não era
composto por toda a sua extensão de praias. O próprio termo não era coincidente: praia, como
para nós, era a beira do mar, parte normalmente coberta de areia, enquanto orla era o
calçamento urbano que acompanhava seu contorno em um certo trecho da cidade
35
. Embora o
trecho chamado de orla pelos crotonenses se iniciasse no porto velho – fronteira antiga da
cidade com o mar – e fosse até o cemitério, quase sempre que alguém usava o termo referia-se a
uma parte bem menor, que se iniciava no mesmo ponto mas terminava muito antes, próximo à
rua Poggioreale. Com exceção do bar Sax, localizado próximo ao cemitério, que também era
bastante freqüentado durante todo o ano, todo o movimento na orla se concentrava naquela parte
menor, sendo especialmente grande nas vizinhanças do bar Columbus, investimento já sólido o
suficiente para resistir à baixa temporada. Alguns outros o acompanhavam no sucesso e,
segundo me disseram, embora ainda poucos o conseguissem, aumentava ano a ano o número
daqueles que permaneciam após o verão. Quando eu os conheci, fora da alta estação, eram dois
ou três bares e uma ou duas pizzarias aqueles que haviam resistido. Outros, ainda, mudavam de
endereço dependendo da estação, como o proprietário da invernal Tana del Togo, próxima ao
bairro periférico Gesù, que inaugurava no verão de 2005 sua “faceta de verão”, a Baia del Togo,
bem localizada na orla, em frente ao Columbus. Outros pequenos focos de lazer que existiam na
cidade durante as estações mais frias, praticamente se extinguiam com a chegada do calor.
Depois de desmontado o parque de diversões armado para a festa da Madona, o espaço na rua
Cutro onde se alojavam circos e ringues de patinação não era mais ocupado. O eixo de lazer de
Crotone se transferia completamente para proximidade do mar.
As recentes reformas da cidade incluíam a orla, constantemente referida como “a nova
orla” de Crotone. Quando cheguei por lá, as obras já se adiantavam pelas proximidades da rua
35
Durante meus primeiros meses de estadia, alguns mal entendidos provocaram muita confusão. Da praça
Pitágoras, no centro de Crotone, percebi rapidamente que se chegava ao mar caminhando em dois sentidos opostos
– mas demorei um pouco mais a compreender que apenas a um deles denominava-se usualmente orla, o que me
custou muitos giros, quase perdida pela pequeníssima cidade.
62
Poggioreale e, em meu último retorno, estavam quase concluídas, na altura do cemitério. Sendo
assim, durante os dez meses que morei em Crotone e nas minhas visitas à cidade em 2005,
presenciei dois tipos de transformações concomitantes no espaço da orla: aquelas referentes ao
próprio ritmo da cidade, relacionadas às estações, dias da semana, horas dos dias etc., e aquelas
referentes aos projetos de urbanização, crescimento e desenvolvimento. Ambas dialogavam
entre si e não creio que possam ser pensadas separadamente. A influência da tradição
36
nas
obras da cidade é percebida tanto pela escolha dos lugares a serem reformados quanto ao
momento em que se realizam, adequado ao calendário da cidade. A prioridade para as obras foi
estabelecida por critérios que só podem ser pensados a partir de definições tradicionais, como
posição (central ou periférica) e importância (histórica, econômica, de uso cotidiano etc.).
Quanto ao momento de realização das obras, tudo era feito de modo que elas não atrapalhassem
os empreendimentos para o verão e o percurso da procissão feita por ocasião da festa da
Madona. Nos momentos em que a ocupação tradicional do espaço foi atrapalhada pelos tapumes
e buracos, como no caso da obra interrompida mencionada no primeiro capítulo, a comunidade
crotonense agiu no sentido de pressionar para que a prioridade do uso cotidiano e das festas
fosse restabelecida.
Embora o movimento crescesse tanto no verão, durante todo o ano a orla, nas
redondezas do Columbus, mantinha-se freqüentada, especialmente nos momentos e dias de
lazer, ou seja, predominantemente à noite (pode-se dizer que crescia com as horas, mesmo no
inverno, até que, nos períodos mais frios, soasse meia-noite e começasse a diminuir) e aos
domingos. Os bares ofereciam atrações especiais para cada dia da semana e, quanto mais o
sábado se aproximava, mais a presença espontânea dos habitantes dispensava as atrações. No
inverno, é claro, o movimento interno dos bares predominava, embora uma recente lei de
proibição do fumo em locais fechados tenha mudado um pouco o cenário, fazendo com que as
portas, pelo lado de fora, mantivessem sempre uma ocupação nada desprezível. Estar por ali, ver
e ser visto era importante para o status de uma pessoa, não apenas “superficialmente” pelo que
se “parecia ser” (os crotonenses viviam reclamando do valor dado às “aparências” na cidade)
mas também e especialmente pelo que, a partir da teia de relações que assim se constituíam, se
36
Mais uma vez vê-se aqui a coexistência de múltiplos planos de temporalidade e espacialidade em ambos
os tipos de transformação do espaço – as reformas urbanas e as festas tradicionais.
63
“era de fato” – de acordo com alguns fatores que interferem na própria construção da pessoa em
Crotone, de acordo com o que vimos nas primeiras reflexões sobre os cartazes fúnebres. Seria
interessante aprofundar no futuro as possíveis relações entre “parecer” e “ser” na cidade, a
partir, especialmente, da diferença entre “ser visto” e “parecer”. Alguns diziam, por exemplo,
que para ser feliz em Crotone não se deve preocupar com aquilo que os outros pensam de você.
Outra crítica comum, feita de um grupo de amigos a outro grupo de amigos, era a acusação de
que aqueles se preocupariam demais com a “figheria”
37
, termo diretamente associado à
“aparência”, embora nem sempre usado negativamente – havia apenas limites considerados
adequados à importância que se dava a ela. Entre as noites, o verão e os domingos de sol no
inverno, a orla se transformava em relação ao valor dado a “ver”, “parecer” e “encontrar”. Em
linhas gerais, enquanto nas férias e, especialmente, à noite, o ambiente “jovem” priorizava
flertes e novas amizades, o domingo familiar estava mais associado à manutenção da teia de
conhecidos. Em relação ao que se via no Comune durante a semana, a principal diferença ficava
por conta da relação deste com as horas de trabalho, enquanto a orla estava associada ao lazer.
Nesse sentido, talvez se possa dizer que o lazer – o modo como cada grupo se ocupa (ou pode-
se ocupar) nas horas livres – é mais facilmente associado à dita figheria, associada ao
“esbanjamento” mal visto por alguns e valorizado por outros – ambas as atitudes com forte
aspecto de distinção social.
2.4. Confronto agora as relações experimentadas nos espaços da cidade com as relações
estabelecidas periodicamente entre tais espaços e os outros, descrevendo uma certa região da
cidade que, além de fazer fronteira com o Comune, com o Centro Histórico e com a orla,
apresentava, também, uma outra ordem de fenômenos limítrofes, a partir da presença maciça de
imigrantes e dos chamados paesani, nativos dos vilarejos vizinhos à cidade.
2.4.1. A Praça Pitágoras formava, em linha reta com a praça da catedral e o Comune, o
mais importante eixo comercial, político, religioso, de passagem e de sociabilidade do centro da
37
Nos dicionários italianos, o termo é descrito sempre como algo relativo à beleza e diversão, algo parecido com o
nosso “playboy”. No uso cotidiano, porém, vai um pouco além disso e se transforma de acordo com o contexto (ao
“contexto de situação”a que se referia Malinowsky). Pode-se tanto elogiar uma pessoa dizendo “sei figo!”, para
dizer que está bem vestida, como dizemos aqui no Brasil “que chique!”, como comentar entre amigos, ainda como
um elogio, que um terceiro é “figo” (“bello”, bem arrumado, charmoso), ou ainda dizer que alguém “fa il figo”
(aqui em um sentido mais comportamental, de mostrar aos outros como é “o bom” – mas nem sempre visto como
algo ruím, dependendo das circunstâncias), ou usar o termo como categoria de acusação, como um valor exagerado
dado à aparência, não somente no sentido físico (de beleza, vestimentas ou posses, como carros etc.) mas também
em um sentido comportamental que se aproxima realmente de nosso “playboy”.
64
cidade. Em outra direção, perpendicular a esse eixo, uma radial levava da praça à orla, através
da rua Poggio Reale e, em sentido oposto, descendo pela ruela Regina Margherita, portava à
grande rua de mesmo nome, que também fazia borda com o mar, e levava a sair da cidade. A
mesma praça tinha outras radiais importantes, como as duas ruas paralelas à Vittorio Veneto,
rua Cutro e rua Mario Nicoletta, que cruzavam a cidade naquela direção, levando à zona onde
fica o estádio de futebol e o mal afamado bairro Gesù, sobre o qual pretendo ter oportunidade de
escrever um dia. Ponto de referência importante para a cidade, se meu interesse fosse o de
descrever o mapa de Crotone como um todo, sem me ater a nenhuma relação em especial,
certamente seria o ponto mais fácil de onde partir. Constitui-se como um centro, e sua
importância não poderia deixar de equivaler a tal posição. Não sei se por esse motivo, por ser
um dos locais mais antigos da parte moderna da cidade, ou pela própria fama e glória de
Pitágoras, seu nome, de tão óbvio, era parte das vezes suprimido na fala dos crotonenses, que se
referiam ao lugar apenas como Praça.
Apesar do apelido, para que o leitor possa fazer uma imagem justa do local, devo
explicar que ela se aproxima bem mais daquilo que chamamos de “largo” do que de uma praça:
uma rua circular, destinada a carros e não a pedestres, com um espaço no meio pequeno como
uma calçada e no qual, por tal razão, não se poderia estar, em torno de que os veículos faziam o
retorno. A rua circular, somada às muitas esquinas que a rodeavam, compunha o espaço que os
crotonenses chamavam de Praça. Sendo assim, o lugar era muito mais um ponto de referência e
passagem do que um local de se estar, como se poderia imaginar pela referência de ser uma
“praça”. Através de fotos antigas da cidade, pude descobrir que não foi sempre assim: a parte
central dedicada aos pedestres era bem maior, contendo até mesmo, no período da guerra, um
enorme monumento fascista. Nas fotos, a praça está sempre repleta de gente que passa a pé. Nos
dias de hoje, o espaço ocupado por pedestres foi substituído pelo asfalto das ruas e passaram a
ser suas bordas, esquinas, e não mais o centro, a servir de passeio e encontro para aqueles
poucos que ainda insistiam em deixar-se estar – quase sempre senhores de idade, todos homens,
em grandes grupos, que conversavam próximos à banca de jornal ou da outra parte da rua, sob
os arcos chamados “portais” que cobrem as calçadas. Os “portais” contornavam as construções
que serviam de fronteira para a entrada no Centro Histórico, através da pequena ruazinha que
unia a Praça Pitágoras e a Praça da Catedral. Ali sim, sob os “portais”, fosse descendo a ruela
Regina Margherita, fosse seguindo em direção à igreja, alguns bares e comércios abrigavam
65
pessoas que não apenas passavam, mas se sentavam para conversar, tomar um aperitivo e
observar.
Ainda nessa pequena rua, ao lado direito de quem olhava a catedral, em um pequeno
túnel que levava ao Centro Histórico, colavam-se muitos dos cartazes fúnebres a que me referi
no início desse capítulo. O outro muro repleto deles ficava já na própria praça da Catedral, ao
lado esquerdo de quem olhava a igreja. A relação entre as duas praças era bastante interessante,
se pensamos que a cidade moderna e o Centro Histórico diferiam em ritmo e número de acessos.
Embora a Crotone Velha possuísse também tantas entradas, até hoje grande parte da muralha
que a protegia, a estreiteza de seus becos e o tamanho dos casarões que abrigam, muitas vezes,
famílias inteiras em suas muitas gerações, davam ao espaço uma impressão que defini em meu
diário de campo como “menos urbana”, explicando a seguir que entendia por isso que não
parecia aberta a qualquer um que quisesse entrar ou passar sem pedir licença. Os homens
reunidos nas ladeiras que subiam pelas laterais da Catedral observavam os passantes, assim
como o faziam as senhoras à porta de casa, cena também bastante vista dentro dos becos. Lá
dentro, não fossem as motos e carros, que atravessavam os becos desafiando sua estreiteza,
velozes e barulhentas, seria possível esquecer a cidade que nos cercava. Ao contrário da Praça
Pitágoras, aquela da Catedral obedecia ao ritmo daquele espaço onde só parecia entrar quem o
habitava ou quem visitaria um amigo. A permanência de tantas gerações no Centro Histórico,
que começaria a mudar com a vinda dos jovens que agora o ocupavam, se fazia sentir da praça.
Era uma praça com jeito de permanência, enfiada em meio às ladeiras e protegida pelas
construções que a cercavam. Além disso, a própria catedral, como principal centro religioso da
cidade, trazia para aquele recanto festas religiosas, dias santos, entradas e saídas de famílias que
se encontravam na porta da igreja, um calendário próprio que regia o local com uma cadência
que harmonizava com aquela permanência. Enquanto isso, do outro lado da pequena rua, a
Praça Pitágoras era um centro de conversões, com pouco espaço para que alguém se
acomodasse por muito tempo, com radiais que portavam a qualquer canto da cidade, mar, orla,
estrada, ônibus que tinham hora para sair e chegar, levando os paesani a seus vilarejos de
origem.
2.4.2. De todas as radiais da Praça, é sem dúvida a rua Regina Margherita que melhor
pode exemplificar esse conjunto de fronteiras, passagens, permanências e pertencimento. A rua,
em ladeira, que desce da Praça em direção inversa à orla, pode ser dita um “espaço repleto de
66
espaços”, que se entrecruzam e sobrepõem como locais de não estar e de estar, de esperar os
ônibus que levam aos vilarejos, do Caffè Moca, onde homens permanecem por mais tempo do
que o de um café, de camelôs que vendem bugingangas. É lá também que se encontra o cinema-
teatro Apollo e sua vizinha Pimpinella, talvez a pizzaria “a taglio” mais movimentada da cidade
– aliás, pertencente aos pais de duas alunas minhas. A rua é larga, de mão-dupla, mas pequena
em comprimento. A Upim (uma loja de departamentos) na esquina, somada ao referido café e à
confeitaria Siciliana, uma banca de jornal e mais das ou três lojinhas, dentre elas uma sapataria,
ocupam toda a sua extensão do lado direito.
Logo abaixo, depois da curva, já em outra rua, chega-se ao “Liceu Classico Pitagora”,
escola média que garante, em certa hora do dia, algum movimento por ali. A maior parte dos
adolescentes, porém, que ocupam na hora de saída de escola as calçadas e os arcos que portam a
uma pracinha interna transformada em estacionamento não é de Crotone. Ao menos não da
chamada “Crotone-Crotone”
38
(capital), mas de alguns dos 27 vilarejos que pertencem à
Crotone província. Ocorre que em frente à Upim encontra-se o ponto do ônibus que faz a
conexão entre a cidade e alguns desses vilarejos – aqueles que se localizam mais ao norte.
Portanto, no mesmo horário que o Comune estava repleto de crotonenses, os pontos de ônibus
que levavam estudantes às suas casas fora da cidade lotavam de adolescentes dos vilarejos. Era
interessante de se observar como não somente tais pontos constituíam-se em fronteiras, mas
também como localizavam-se em ruas as quais, elas próprias, tinham esse caráter limítrofe
muito acentuado. Os ônibus que portavam aos vilarejos do sul, por exemplo, paravam próximos
ao bairro Gesù, em uma região que não era repleta de radiais ou movimentada como a Regina
Margherita, mas que era, até certo ponto, “marginal” – não somente porque era próxima a uma
das saídas da cidade, mas também em como era percebido o perfil sócio-econômico de seus
habitantes. Um outro dado interessante é a proximidade de tal ponto de ônibus com o estádio –
do qual o movimento em dias de partida era referido muitas vezes como algo “extraordinário”
ou “festivo”, aspecto que contrastava com o vazio que tomava a zona em dias comuns.
Igualmente curioso era o boom que a região vivia no período da enorme Festa da Madona de
38
Quando alguém se apresenta como sendo de Crotone (ou de Roma, de Nápoles, ou de qualquer outra cidade) a
primeira pergunta que fazem muitos crotonenses é: “Ma di Crotone-Crotone?” (ou “di Roma-Roma?). Para além do
reconhecimento dos conterrâneos (conterrâneos-conterrâneos, não outros...) há, em Crotone, um certo status
refutado, claro, por muitos daqueles dos vilarejos, dos quais os habitantes na maior parte das vezes manifestam-se
orgulhosos de suas vilas natais.
67
Cabo da Coluna, constituindo-se em um novo eixo de lazer (sempre “extraordinário” e
“festivo”), como se tivesse uma certa vocação para eventos do gênero.
A rua Regina Margherita, ao contrário da rua do estádio (rua Cutro), era localizada em
uma região central. Porém, nem por isso deixava de ter o mesmo caráter limítrofe – não somente
por ser próxima à Praça Pitágoras, ponto de convergência de tantas radiais que cruzavam a
cidade, nem mesmo somente porque logo abaixo a rua se transformava na entrada da auto-
estrada 106, naquele trecho ainda com o mesmo nome (rua Regina Margherita) – o que
justificava o ponto de ônibus ser ali – mas também porque a própria presença dos moradores de
vilarejo, como foi dito, terminava por conformar-se em uma fronteira entre a capital e suas
vilas. A relação que tinha ali uma de suas faces, fronteiriça, merece atenção. O que aqui estou
traduzindo comodamente como “vilarejos”, para começar, exige uma denominação mais
adequada. São, sim, pequenas vilas, algumas com menos de 5000 habitantes. Mas o termo
italiano que as define vai muito além de sua dimensão e expressa de maneira singular a relação
que eles estabelecem com a cidade próxima: “paese”, se diz na Itália, a mesma palavra que em
outras ocasiões seria a tradução precisa de “país”. A Itália é um “paese” (um país), como Cutro,
vilarejo onde eu trabalhava duas vezes por semana, é um “paese”. Crotone, não: é uma città
39
.
Próximo ao ponto de ônibus, nas calçadas de ambos os lados da Regina Margherita,
outra presença marcava outros modos de participação e limites na teia social crotonense. Os
vendedores de rua, com atividade semelhante ao que denominamos aqui no Rio como
“camelôs”, eram chamados, em Crotone, de “marroquinos”. Estrangeiros, quase sempre negros
africanos; alguns sendo verdadeiramente provenientes de Marrocos, país africano de maior
incidência migratória em Crotone, e outros tendo herdado a alcunha da atividade típica de
39
Não cabe nesse trabalho me estender muito sobre o assunto, que precisaria de uma dissertação à parte para ser
minimamente tratado, porém destaco alguns aspectos que, fundamentais a essas primeiras reflexões sobre “tempo e
espaço” em Crotone, não me poderiam escapar e esperam por um futuro aprofundamento. Tais paesi, alguns
localizados há apenas dez minutos de carro de Crotone (até, no máximo, quarenta minutos, a partir de que começam
a ser mais próximos de outra cidade) possuem, cada um deles (muitas vezes vizinhos ainda mais próximos,
separados freqüentemente por uma pequena área de campo) dialeto próprio, festas religiosas muito distintas,
histórias particulares, costumes reconhecidos etc. Só para citar um exemplo, há em Cutro, no mês de agosto, uma
grande festa que ocupa a praça central com a representação de um jogo de “xadrez vivo”. O chão da praça é
quadriculado preto e branco como um tabuleiro, que ocupam “peças humanas” (incluindo cavalos de verdade) que
devem repetir, uma a uma, as jogadas realizadas pelo cutrense Leonardo Di Bona (chamado “Il Puttino”) e um
bispo espanhol em uma partida realizada no século XVI – vencida pelo rapaz de Cutro. Outras festas no mesmo
paese se juntam a essa compondo seu calendário particular. Assim como Cutro, cada paese é reconhecido e se
reconhece por suas tradições, dialetos, costumes e até mesmo pelo caráter de seus habitantes (ditos em Crotone
“finos” em alguns, “mal educados” em outros, “simpáticos” em outros etc.).
68
alguns dos conterrâneos. Aqui, uso o termo marroquino no sentido mais comum na cidade –
com relação à atividade e não à nacionalidade. Minhas conversas com os marroquinos
restringiram-se sempre às vendas. Nas vezes que tentei esticar forçadamente minha permanência
diante de uma “banquinha”, fui tomada, como era de se esperar, como uma cliente predisposta a
comprar mais, de modo que o assunto inevitavelmente retornava às ofertas de produtos.
Definitivamente, aquele não era o melhor espaço para buscar uma aproximação pessoal. Para
dificultar ainda mais, os objetos vendidos pelos marroquinos não são do tipo de primeira
necessidade, girando em torno de bonés, lanternas, colares, brinquedos e outras sortes de
“bugingangas”. Assim, era difícil (e estranho) retornar diária ou regularmente para fazer
compras, como eu fazia no supermercado, açougue e mercearias, onde o complicado seria, ao
contrário, não iniciar nenhum bate-papo...
Tomando esses outros locais como exemplos, porém, outras diferenças aparecem: neles,
eram sempre os próprios comerciantes que iniciavam a conversa, interessados em descobrir
quem era eu, essa estrangeira que não tinham jamais visto, e o que fazia por ali. Algumas vezes,
disparavam uma grande série de perguntas, que não raro, apesar dos sorrisos simpáticos da
maioria, chegaram ao ponto de constranger-me, como se estivesse em meio a um verdadeiro
inquérito. Uma vez descobertas tais informações, mantinham muitas vezes sua curiosidade e,
quando não, ao menos o gesto habitual de cumprimentar, denotando reconhecimento. Em pouco
tempo, porém, aprendi a reconhecer, até mesmo no “questionário”, o interesse amigável de
tornar-me uma conhecida. Com os estrangeiros, essa é mesmo uma tarefa diversa daquela
costumeira: não se localiza alguém que vem de fora por seu sobrenome ou amizades. Meu país e
meu trabalho eram os pontos de partida preferidos da maioria – e algumas vezes o segundo me
forneceu conhecidos o suficiente para ser devidamente identificada.
No caso dos marroquinos, porém, nunca encontrei algum que estivesse, como
estrangeiro, interessado em localizar-me nas teias de relações, do mesmo modo que eu também
não tinha esse hábito, típico das pessoas locais. Sendo estrangeiros de origens diversas, com
interesses particulares naquela cidade, o assunto terminava mesmo restrito às compras e vendas,
uma vez que eram elas a interseção única que parecia unir mutuamente tais interesses. A
segunda grande diferença entre as conversações costumeiras que eu tinha com alguns outros
comerciantes (não com todos, é importante que se diga), era o fato de que, não poucas vezes,
alguns deles me eram apresentados em algum momento por um amigo, muitas vezes em um
69
momento anterior ao encontro em ambiente comercial, ou conheciam as referências que eu dava
dos amigos da escola de dança. Alguns eram parentes de alunos, outros já haviam freqüentado
em tempos passados as aulas da Maria Taglioni.
Esse ponto nos leva a uma outra questão importante referente: nos dez meses que morei
na cidade, nunca um conhecido apresentou-me a um marroquino como amigo, nem o incluiu
como referência (conhecido de conhecido etc.). Nos locais onde nos costumávamos encontrar à
noite, para um chope ou bate-papo, não se viam tais “extra-comunitários” – nossas teias de
relações não coincidiam. Situação semelhante ocorria em relação aos muitos chineses
40
que
possuíam, por toda a cidade, pequenas lojinhas de roupas e acessórios a preços populares. Com
exceção aos membros de uma mesma família
41
que chegara à cidade antes desse grande fluxo
migratório, da qual os jovens, tendo crescido em Crotone, viam-se algumas vezes pela rua
integrados à vida social “crotonense” (de “crotonenses nativos”), os outros chineses que vi
(raras vezes) em bares ou restaurantes, ocupavam uma mesa à parte, divertindo-se entre si.
Africanos negros eram também muito raros nos bares da Orla. Tais constatações complexificam
certamente o discurso comum sobre a “calorosa e acolhedora receptividade crotonense aos
extra-comunitários”- que, mais uma vez, penso merecer um (longo) trabalho à parte. Como
primeira proposição, penso que o preconceito racial crotonense (declarado inexistente) não pode
ser pensado de outro modo que não o das próprias teias de relação – por seu papel decisivo na
inclusão de uma pessoa no próprio espaço da cidade e mesmo no que ela carrega de vantajoso
em termos de acesso a serviços, produtos e favores, que aumenta significativamente do
momento em que não está à mercê da rarefeita lógica que rege o anonimato na cidade – à mercê
de horários comerciais, filas de anônimos, serviços prestados sem divulgação em jornais ou
outros meios públicos que não o conhecimento (do conhecido do conhecido...). Para abrir minha
porta, por exemplo, quando a fechadura emperrava, nunca chamei o chaveiro (nunca soube da
40
No caso dos chineses, o termo remete – diversamente dos marroquinos, que viraram sinônimo de “vendedor
ambulante” – não somente a ocupação, mas à própria “nacionalidade” (são nascidos na China), embora a palavra
“chinês” em Crotone já traga, também, algumas outras pré-noções sobre suas atividades comerciais na cidade. Há
uma grande entrada de comerciantes chineses que, em um fenômeno comum até mesmo aqui no Brasil de
imigrantes que assumem uma atividade comum (italianos – jornaleiros, chineses – pastelaria, portugueses –
botequins etc.) se especializaram em pequenas lojinhas de roupas, que seguiam um padrão preciso que as fazia
parecer todas iguais. É claro que o termo aqui, portanto, embora agregue uma referência à origem nacional, assume
também um outro caráter visto que me refiro a aqueles comerciantes especificamente, sem poder afirmar, por
exemplo, que não existam chineses na cidade que desempenhem outras atividades profissionais.
41
Tal família não possuía, como as outras que conheci através do comércio, uma lojinha de roupas, mas um
restaurante de comida chinesa.
70
existência de um), mas sempre o vizinho ou meu patrão. Talvez um antropologia da economia
pudesse auxiliar a pensar de que modo alguns estrangeiros eram incluídos ou excluídos de certas
teias de relação (estando claro que constituíam outras) a partir também de uma lógica comercial
– como se, em certa medida, a teia se desse também através das coisas. Essa lógica não estaria
restrita, a meu ver, a alguns estrangeiros, mas corresponderia também a um tipo de relação
específica que poderia fazer parte da teia de qualquer pessoa em dadas situações.
2.5 Assim concluo minhas primeiras observações que continham o propósito de permitir
que se observasse em conjunto alguns aspectos da teia de relações – tal como expressa pelos
cartazes fúnebres da cidade – a configuração espacial e temporal da cidade. Antes de partir para
o próximo capítulo, faço algumas considerações finais relevantes, que unem de certo modo o
que já tinha sido assinalado no primeiro:
a) A diferença entre as duas praças, a Pitágoras e a da Catedral, traz para o trabalho uma
relação que ultrapassa largamente a análise daqueles espaços nos quais se faz tão visivelmente
presente: a parceria mitológica evocada por Vernant entre Hermes e Hestia. A segunda,
divindade do espaço doméstico, da casa, que enraíza na terra – garantia de fixidez, de
imutabilidade, de permanência. Ponto fixo que orienta e organiza o espaço humano. Hermes,
por sua vez, é o mensageiro que relaciona o mundo divino com o mundo terreno. Também
participa do habitat humano, mas não fixa estadia: seu lugar é na soleira, na passagem, no
movimento e mudança de estado. Temos assim, na conformação do espaço da cidade, mas
também na organização de suas fronteiras e redes relacionais, bem como nos deslocamentos
físicos e de estado ou posição, uma complementaridade entre a permanência e o movimento.
b) Talvez essa composição de Hermes com Hestia possa ajudar a pensar Crotone menos
como uma cidade voltada para o passado (em um sentido profundo, antecessor ao presente) e
mais como uma cidade voltada à passagem, ao movimento, que garantiria a coexistência e
sincronia de múltiplos planos cósmicos. Esse passado é composto (ou torna-se visível) a partir
da criação das diferenças, que compõem fronteiras e, entre elas, passagens. Sem distinção não
movimento – tudo se torna homogêneo, único. Mas tais fronteiras são também limites,
demarcações de inícios e fins. Leach (1974) destaca a relação entre a concepção do tempo e o
repúdio à finitude
42
– já apresentada neste trabalho sob o signo da memória. Se é o medo da
42
Segundo Leach, há uma razão religiosa para a aproximação de dois aspectos distintos da vida: a repetição de
certos fenômenos da natureza e a irreversibilidade das mudanças (enfatizada na visão de mundo moderna). Tal
71
morte que cria o tempo, e se ele se faz denso, através de diferentes durações, idades, qualidades,
não seria absurdo pensar que é a percepção dessas diferenças que, em sentido oposto, constrói a
noção de vida. Quando se distinguia em Crotone os tempos em que “nada acontecia” daqueles
períodos festivos, em que se configurava uma “outra Crotone”, penso que estava em jogo a
marcação do tempo como diferença capaz de proporcionar a visibilidade da cidade em
movimento. Se apenas naqueles períodos “algo acontecia”, talvez fosse porque era em
movimento que a cidade acontecesse – ou percebesse sua própria existência. Essa análise
permite explicar o trauma das interrupções em Crotone. Se o movimento era o que
proporcionava à cidade existir, se era o próprio deslocamento que a confortava em sua
permanência, interromper significava “não acontecer nada”, em outras palavras “não existir”,
não permanecer, acabar, morrer. Essa garantia de existência a partir de um constante
deslocamento pode ser objeto de reflexão em cada evento descrito neste trabalho. Está presente
em permanecer e crescer, em crescer e partir, no deslocamento de estado pela contração do
matrimônio, na permanência pela reprodução, na morte. E por isso passado, emigração e –
integrando ambos, como “tempo não visível aos mortais” e ausência – a morte, parecem-me tão
intrinsecamente relacionados na cosmologia da cidade.
aproximação, como a união de pares de oposições tão distintos como dia/noite e vida/morte em uma mesma
categoria (o tempo) provém do repúdio à idéia de morte. (Leach, 1974)
72
Capítulo 3 A Madona, a Coluna e o caminho.
3.1 O clímax da festa da Madona de Cabo da Coluna é o cumprimento de um percurso –
não de um percurso qualquer, mas daquele que levaria a santa da catedral, principal templo
católico da cidade, até o santuário de Cabo da Coluna, onde se localiza a capela dedicada à
Madona, mas também onde sobrevive a última coluna do templo sagrado de Hera Lacínia,
portanto ao mesmo tempo local original da santa e da cidade. Descrevo primeiramente alguns
deslocamentos que ocorrem na cidade para que se inicie a festa. Depois parto para a descrição
da própria procissão/peregrinação (os fiéis usam, indiscriminadamente, os dois termos), na
busca de compreender, através do percurso, um pouco sobre os espaços e tempos que os
peregrinos atravessavam em seu cumprimento.
3.2 Era Maio de 2004: recordo-me dos caminhões estacionados no grande terreno vazio
da rua Cutro e dos funcionários do parque, que desembarcavam velozmente as grandes peças de
montagem dos brinquedos. Era maio de 2004 e finalmente saíamos à rua, mesmo durante a
noite, vestindo apenas jaquetas leves. O clima entre meus alunos da escola de dança era já de
euforia pela proximidade das últimas semanas de aula regular, que antecediam as provas finais,
em junho. Desde o fim da Semana Santa, eu ouvia falar mais intensamente da festa da Madona,
que se tornara o ponto de referência temporal mais óbvio, até mesmo para o desenvolvimento
das atividades no trabalho: “até a festa da Madona” – diziam-me outras professoras – “quero
concluir mais três coreografias...”.
Desde que eu chegara à cidade, em setembro do ano anterior, muitos me falavam da
festa. Quando, em outubro, passeava pelas ruas observando as comemorações do dia do santo
padroeiro de Crotone, São Dionísio, cada conhecido que me via passar, câmera fotográfica em
mão, a curiosidade estampada no rosto, alertava para a pouca importância daqueles festejos.
Pequenos e sem graça, era como os classificavam, e o senhor Giorgio chegara a avisar-me para
nem mesmo descer de casa naquela noite: segundo ele, não havia nada a ser visto. Quando o fiz,
porém, surpreendi a Praça da Catedral enfeitada com luzes e repleta de gente, enquanto as
barraquinhas, a procissão e as liturgias pareciam a mim, recém chegada na cidade, bastante
atrativos. Os amigos a quem encontrava riam-se quando lhes dizia que estava achando tudo
muito bonito, pedindo-me que aguardasse maio para conhecer a verdadeira festa da cidade.
Embora São Dionísio fosse seu padroeiro, era a Madona de Coluna do Cabo a santa venerada,
protetora querida dos crotonenses.
73
Concordavam todos, portanto, que aquilo ali “não era nada”, enquanto eu me entretinha
com o entra e sai da catedral lotada, dentro da qual os soldados de penacho ao lado do altar,
indicando o caráter “oficial” da festa, eram apenas um dos elementos que pareciam pertencer a
uma celebração não ordinária. A imagem do santo tinha sido, em razão do dia especial, colocada
em um local próximo ao altar, o que explicava o movimento incessante das pessoas que, vindas
da festa, com roupas e maquiagens incomuns de serem vistas naquela igreja, entravam no
templo apenas para beijar, tocar ou fazer uma pequena oração ao santo. Crianças com balões de
gás, adolescentes em grupo, gente de todas as idades, ocupavam o corredor lateral em um fluxo
que vinha diretamente da festa que se desenvolvia do lado de fora, me fazendo pensar na
integração que o interior da catedral possuía com a rua. Enquanto isso, sem deixar que o
movimento as perturbasse, as pessoas que ocupavam todos os bancos da igreja repleta
acompanhavam, postura concentrada, a missa que se desenvolvia. Uni-me um pouco a elas,
respondendo em português o que todos diziam em italiano, em um ritmo tão semelhante ao que
eu havia memorizado dos meus tempos de primeira comunhão que, a despeito de estarmos
falando línguas diversas, concluíamos juntos cada frase, dizendo em uníssono “aleluias” e
“amém”.
No preciso momento em que a última palavra da missa foi proferida, do lado de fora
começou a tocar a banda. Eu estava, a bem da verdade, já na praça, ao lado dos músicos,
achando graça de duas crianças, talvez parentes de algum deles, que se apressaram a pegar seus
pequeninos instrumentos de plástico e alinhar-se também na formação para “acompanhar” as
notas. A banda tocava bem próxima à escadaria da igreja, apertada em seu lado direito, visto
que todo o centro da praça estava tomado, cercado pela teia de plástico laranja que protegia a
obra citada no primeiro capítulo, ainda bem longe de ser concluída. “Para a festa da Madona
certamente a terminam” – diriam, meses depois da crise que ameaçara interromper a reforma,
alguns amigos. E só quando começou a se aproximar o mês de maio, a esquentar a temperatura
e passada a páscoa, comecei a ter noção do quão tímida tinha sido, verdadeiramente, aquela
festa de São Dionísio. Pouco tempo depois de aumentado pelos fiéis que desciam as escadarias
ao som da música, o movimento começaria a diminuir. Antes disso, subi em um canteiro e olhei
em direção ao Comune. O movimento era intenso, como seria de se esperar em uma noite já fria
de outono, em que o eixo de lazer da cidade ainda não poderia descer inteiramente para a orla,
concentrando-se ali pelo centro nas primeiras horas noturnas. A diferença era que, naquele dia,
74
ninguém passava retornando do escritório: ao contrário dos dias de festa da Madona, em que se
trabalhava normalmente, o dia de São Dionísio era um feriado oficial da cidade – embora “não
acontecesse nada”.
Quando, tantos meses depois, os caminhões do parque de diversões chegavam à rua
Cutro, minha expectativa quanto à “verdadeira festa da cidade”, da qual ouvira tanto falar,
encontrou a primeira mostra concreta do que aconteceria naqueles dias. As descrições feitas por
amigos e conhecidos variavam tanto nas cores e tons que eu não poderia prever que cada uma
delas teria espaço e tomaria forma. Outras, que pretendiam me explicar do que se tratava,
acompanhando nas informações principais aquelas descrições feitas por roteiros turísticos,
pareciam ter uma forma única e definida. Tinham forma, mas não cores, nem tons, nem detalhes
– algo muito distante do brilho que os mesmos falantes tinham nos olhos quando narravam suas
próprias histórias ou pequenas fatias daquele todo: o parque, a feira, os sanduíches, as
promessas, a peregrinação. Pois foi somente depois que os caminhões chegaram à rua Cutro que
eu pude começar a localizar tudo aquilo, unir e perceber formas, cores, cheiros, sons,
dimensões, sentidos, relações, contexto. E minhas primeiras imagens da festa da Madona de
Coluna do Cabo são aquelas, dos brinquedos sendo descarregados, das grandes peças que
começavam a se armar pelas mãos pesadas dos trabalhadores do parque.
Poucos dias depois, em um sábado, terminada a última aula do dia, a primeira aluna a
sair da escola gritou: “O parque está aberto!” – ao que todas as outras correram, felizes e
tagarelas, para ver. Dentre as diversas sedes da escola de dança Maria Taglioni, eu ensinava em
três, uma das quais localizada no Largo de Santo Antonio, que desembocava na rua Mario
Nicoletta. Dali de baixo, daquela região escura e com jeito de abandono, viam-se por detrás dos
prédios as luzes vibrantes e o movimento dos brinquedos mais altos, enquanto ouviam-se os
gritos eufóricos provocados por cada uma de suas gigantes cambalhotas. Eram oito da noite.
Corri para casa, liguei para os amigos, troquei de roupa e fomos para lá participar da algazarra.
A rua Cutro, no trecho que ia de minha casa, próxima ao estádio, ao terreno vazio (agora
ocupado com o parque) parecia outra: colorida, movimentada, alegre, repleta de furgões que
vendiam lanches, cerveja, sanduíches que eu ainda não experimentara. Cheiro de comida rápida,
claramente conhecida por aqueles que corriam a buscar seus sabores especiais, suas cores de
festa. Pensando nos caminhões, no trabalho de armar os brinquedos, na chegada dos furgões, na
comida que se fritava e, de modo especial, na expectativa que eu conheci através das falas de
75
meus amigos crotonenses, penso na imagem de milho na panela virando pipoca. Junta-se o
milho, o trabalho de quem o aquece, o fogo, o tempo de espera, a vontade de comer pipoca, a
ocasião e, então, dá-se um estouro, que apesar de depender de todos esses elementos, parece
mágica: o que era amarelo vira branco, o que tinha um gosto ganha outro, transforma-se a
aparência, o volume, a forma, o nome. A festa da Madona pareceu estourar instantaneamente
debaixo do meu nariz, embora precisasse do período de um ano para poder acontecer
novamente. A rua que se movimentava apenas com as partidas de futebol, permanecendo no
resto das noites vazia e escura, ganhou nova ocupação, virou um outro lugar.
Daquele dia em diante, com a chegada das feiras – uma localizada ao lado do estádio e a
outra na extremidade oposta da rua Cutro, em sua junção com as ruas Mario Nicolleta e Regina
Margherita – Crotone ganhou um terceiro grande eixo de lazer, mais distante da Orla.. Esse
novo eixo tinha duração marcada, um tempo para iniciar e terminar – embora essa marca não
fosse pensada como um dia preciso, ao menos para a maioria dos habitantes que não trabalhava
na organização “oficial” do evento, sendo a chegada do parque e das feiras percebidos como e a
partir do ritmo de instauração da própria festa. Ainda assim, sabia-se que por volta de uma
semana antes do terceiro sábado de maio (ou seja, durante a segunda semana de maio) as
atrações se instalavam na cidade. Mas o que eu gostaria de destacar com relação ao fato de que
o “novo” eixo de lazer, que ocupava a rua Cutro, tinha uma duração prevista pelas festividades,
é uma possível relação dessa escolha com outras que se davam no mesmo espaço em outros
períodos do ano. O terreno vazio da rua Cutro, ocupado pelo parque de diversões, era o espaço
onde costumavam armar-se circos, ringues de patinação e outros centros de recreação de caráter
temporário e nômade. Ao mesmo tempo, ao final da rua, o estádio “Ezio Scida” era o
responsável, na maior parte das vezes, pelas alterações de movimento na região.
Nas vésperas de partida, o prenúncio da intensidade de movimento podia ser percebido a
partir das filas (ou da ausência de fila) na bilheteria. Lembro-me que durante toda a semana que
antecedeu o primeiro “derby” Crotone X Catanzaro a que assisti, a qualquer hora do dia que eu
passasse a caminho de casa me surpreendia a quantidade de pessoas que compravam seus
ingressos. Eu mesma me apressei a garantir o meu, já que, comparando o tamanho da fila com
aquele, pequeno, do estádio, tive medo que terminassem os lugares e eu ficasse de fora. Já nos
próprios dias das partidas, a importância do jogo (ou a rivalidade entre seus oponentes) podia
ser medida pelo número de policiais, armados como tropa de choque, com seus escudos e
76
capacetes, que fechavam a rua a partir do chafariz. Conforme chegavam os torcedores, os bares
daquela esquina começavam a encher e dali à entrada da “Curva Sud” (arquibancada da torcida
organizada) tudo se transformava em “arredores do estádio”, com gente passando, se
encontrando, bebendo cerveja. Nas saídas, nos casos das partidas lotadas, o confronto entre
torcedores que atiravam pedras e policiais que caminhavam em direção a eles, no chafariz, para
retirá-los do caminho e poder liberar a torcida adversária era também uma situação bastante
comum – e a confusão sempre deflagrava mais ou menos no momento em que passávamos por
ali em direção ao carro, ou seja, o tempo entre o final do jogo e o acontecimento era
aproximadamente sempre o mesmo. Depois, a região retornava à sua “normalidade”: poucas
pessoas passando, algum tímido – mas constante – movimento no bar, pouquíssimas pessoas no
parque “delle Rose”.
Assim, fosse pela presença de atrações circenses, artísticas e de divertimento que
ocupavam temporariamente o terreno vazio, fosse pela atividade mais constante do estádio, a
rua Cutro mantinha-se relacionada, mesmo nos períodos frios e supostos dias “comuns” do
calendário, a um curioso e específico tipo de lazer. Não chegava a caracterizar-se, porém, como
um eixo importante, como a Orla e o Comune, visto que, talvez à exceção do estádio, localizado
em uma extremidade da rua, os outros atrativos eram raros e pontuais. As partidas de futebol
eram, sim, constantes, mas duravam pouco, a ocupação da rua dando-se, especialmente quando
o jogo não era dos mais importantes, apenas poucos minutos antes e depois do apito do árbitro –
e, ainda assim, apenas nos arredores mais próximos do estádio, muito raramente ultrapassando o
chafariz. Curiosamente, a região parecia ter uma vocação especial a transformações temporárias,
a um lazer se não festivo ou ritualístico, ao menos com certos traços “extraordinários” que o
aproximam daqueles. Não deve ter sido à toa que justamente no dia da já referida partida
Crotone X Catanzaro Francesco Livadoti comentara comigo, olhando a alegria que tomava a
esquina do American Bar antes do jogo – “Parece uma outra cidade, não? Poderia ser sempre
assim...” – não deixando de acrescentar as “referências obrigatórias ao tema” – “Você vai ver
‘che bella Crotone’ no verão e na Festa da Madona...”.
Ao lado do estádio, “toda primeira terça-feira do mês”, uma grande feira (menor, é
claro, do que aquelas da festa da Madona) ocupava o espaço do estacionamento. Assim, o
estádio, em uma extremidade da rua, e o terreno vazio, em outra, eram espaços cuja ocupação
transformava em situações especiais. O “Ezio Scida” fora dos dias e horas de partida era como o
77
sambódromo vazio fora do carnaval... mas “Quann´ ú Cutron` ioca all’Ezio Scida/ Quann´ ú
Cutron` ioca nui simu ccá(...)”
43
Durante a festa da Madona, porém, os dois pontos, terreno e
estádio, se juntam em um grande eixo, permanentemente ocupado, o escuro noturno
aumentando ainda mais seu movimento, iluminado na medida requerida pelas pequenas luzes
dos trailers, barraquinhas, ou pelas grandes e coloridas dos brinquedos do parque.
Mas não somente a aquele novo eixo se restringia a festa. Ao contrário, ele representava
uma ampliação da cidade, como se Crotone ocupasse toda sua própria extensão de maneira mais
distribuída, embora não igual ou simétrica. Grande parte da cidade, ainda antes da chegada do
parque e das feiras, estava já decorada com as grandes armações iluminadas que caracterizam as
“festas de santo” em toda a província. As praças da Catedral e Pitágoras mantinham-se como
“centro” da festa, repletas de barraquinhas de doces e jogos. A calçada mais larga da segunda
abrigava também a visita de um gracioso teatro de fantoches. As armações iluminadas, porém,
além de manterem unidas em cadeia os caminhos habituais da cidade, descendo o Comune e
subindo a rua Roma (outra importante via de comércio do centro), percursos nobres, ricos e bem
freqüentados, abriam também “novos caminhos” a partir da Praça, chegando até o parque pela
via Cutro. Dali em diante, porém, a festa seguia na penumbra.
Eram dias de semana, de escola e de trabalho, mas o parque estava sempre cheio após as
sete ou oito da noite. Antes, parávamos sempre em um dos furgões para comer um dos
deliciosos sanduíches de “pipi e patata” (pimentão e batata) com salsicha picante e tomar uma
cerveja – nosso jantar. Se eu tivesse, como pretendia Bastide (1983)
44
, que usar figuras poéticas
para descrever algo de cujo aspecto estético não poderia ser atingido de outro modo (usaria, sem
dúvidas, as nuances ricas dos sabores fortes, picantes e variados de um sanduíche de “pipi e
patata” com salsicha calabresa para explicar a variedade de sensações provocadas pela festa da
Madona de Cabo da Coluna. Então, após esse jantar especial, caminhávamos até a entrada do
parque e já no entra e sai daquela primeira alameda de atrações, cujo lado esquerdo era tomado
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“Quando o Crotone joga no Ezio Scida/ Quando o Crotone joga, estamos aqui (...)”.Canção em honra ao time, em
dialeto crotonense. A minha preferida, aliás.
44
Dizia o autor: “(...) A expressão poética não seria pedagógica se a sociedade nada tivesse de poético. Há, porém,
na sociedade, um elemento de poesia, sendo a expressão poética um esforço de fidelidade em relação à própria
verdade das coisas” (Bastide, 1983, p. 85). Ou ainda: “(...) A estrutura social não é somente uma organização de
status, de comportamentos ou de regras, é uma organização na qual se imprime um pouco da atividade estética dos
homens. (...) Há sempre na festa um elemento estético. A comunhão se faz na poesia. Concluindo, (...) não sei
como me aproximar disso, como também expressá-la sem recorrer a alguma coisa que se parece com a poesia”.
(Bastide, 1983, p. 86).
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por barraquinhas de tiro ao alvo, encontrávamos tanta gente conhecida, de alunos meus a
amigos de Antonio. Era, de fato, uma outra Crotone que eu conhecia naqueles dias de festa.
3.3 Tendo em vista a dimensão deste trabalho, seria inútil pretender esgotar, mesmo em
termos descritivos, toda a festa da Madona de Cabo da Coluna. Busquei, portanto, concentrar
minhas atenções nos primeiros dois trechos do percurso, demarcados respectivamente pela ida
da Catedral ao cemitério e pela continuação desse ponto até a metade do caminho. Em ambos os
casos, realizam-se pausas repletas de significação para a festa.
a) Primeiro trecho do trajeto – da Catedral ao cemitério.
Eu comia com Antonio um dos deliciosos e típicos sanduíches de “pipi e patata” (batata
e pimentão) em um dos muitos trailers de alimentação da festa, quando o movimento das
pessoas que se dirigiam à Catedral começou a aumentar. Entendemos que era hora de ir, ou
correríamos o risco de perder a saída do quadro. Um casal de amigos nos encontrou por ali e
seguimos juntos. Era engraçado que os três caminhavam a passos rápidos, mas sem nenhuma
certeza de que isso era necessário – não sabiam a hora precisa da procissão, apenas imitavam
tantas pessoas que pareciam ter pressa, provavelmente também menos inspiradas pelo relógio
do que pelas outras que viam correr. Encontramos mais amigos, um grupo grande, ao
chegarmos na Praça. Estava lotada e aquele formigueiro de gente era tal que parecia ser toda a
população da cidade! Eram pessoas de todas as idades que esperavam, se encontravam para
seguir junto a procissão, viam-se e cumprimentavam-se. Estavam todos especialmente atentos
aos movimentos que vinham da outra praça, a Praça da Catedral. Embora muitos conversassem
e brincassem, a situação era de espera ansiosa e tinha coletivamente uma mesma direção. Em
pé, com a atenção voltada à porta da igreja, aguardava-se a aparição da santa festejada. A
própria peregrinação que se seguiria era assunto entre nossos amigos, que indagavam quem
pretendia cumprir seus treze quilômetros, quem iria somente até o cemitério ou nem mesmo até
lá, quem a havia feito no ano anterior ou quantas vezes já a fizera.
Não era uma multidão de indivíduos, nem um mingau de gente: embora o espaço
apertado transmitisse a idéia de uma massa homogênea, uma observação mais atenta mostrava
pessoas em grupos. Grupos de amigos, famílias, casais. Apesar disso, para além da proximidade
física de todos e de sua comunhão na festa, era também o constante movimento de encontrar ou
cumprimentar, de pessoas e grupos próximos ou distantes, que completava o quadro da Praça
como a imagem de uma multidão de conhecidos. Entre a Praça Pitágoras, onde estávamos, e a
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Praça da Catedral, a distância é bem pequena, sendo ligadas as praças por uma ruazinha curta.
Durante a festa, as milhares de pessoas unem os dois espaços em um só, contínuo e repleto de
gente até a porta da Catedral e mesmo dentro dela, onde antes da procissão se realiza uma
liturgia. Quis ir até lá, com a intenção de entrar na igreja e ver ao menos o fim da cerimônia.
Tornaria logo e encontraria os amigos para fazer com eles a peregrinação. Como dentro de um
labirinto de gente, eu e Antonio nos espremíamos tentando passar. Quanto mais nos
aproximávamos da Praça da Catedral, mais próximas estavam as pessoas uma das outras e mais
estiravam o pescoço, nas pontas dos pés, para tentar ver a Catedral e descobrir o que acontecia,
iniciando a interessante cadeia de reações que se propagava em onda até aqueles que estavam
muito longe para ter alguma visibilidade. Foi assim que, quando estávamos ainda na pequena
rua que liga as duas praças, ainda mais apertada devido também às barraquinhas de doces que
lhe ocupavam toda a margem, fomos superados por uma dessas reações em cadeia, uma onda
vibrante de aplausos. Partida da Catedral, veio em nossa direção para continuar a propagar-se
até aqueles bem atrás de nós, na Praça Pitágoras. A essa onda, seguiu-se uma excitação maior
daqueles ao nosso redor e muitas outras ondas de movimentos, de expectativas, de informações.
A esse ponto, tornou-se ainda mais difícil (e pouco compensatório) movimentar-se em
direção a qualquer parte. Paramos no meio da rua, de onde se via em diagonal, ao longe, a saída
da igreja, por entre cabeças e balõezinhos de gás coloridos, que marcavam sempre a presença
dos mais pequeninos em meio a tanta gente – bonitos de ver. Respirávamos todos juntos e os
pequenos movimentos dos grupos, ansiosos por ver e participar, aumentavam. Queríamos saber
da Madona, se havia deixado a igreja, e recebemos em poucos segundos a resposta da onda de
informações que vinha de lá: ainda não havia saído. Súbito, outra onda de aplausos, dessa vez
ainda mais fortes e vibrantes – o que nos fez entender velozmente: agora sim, sem dúvidas, era
ela. Dali em diante, nada ou ninguém permaneceria no mesmo lugar. O movimento não se
interrompeu mais, sempre propagado em onda, de modo rápido, coordenando com uma eficácia
surpreendente a enorme quantidade de fiéis. À espera segue-se a caminhada, a multidão quase
parada se reorganiza em procissão. Quem vê a imagem da Madona aproximar-se, sobre a
multidão, tem a impressão de vê-la “abrir” o mar de gente, boiando ou pairando sobre ele.
Naquele momento, ouvimos os disparos que anunciavam “oficialmente” a Madona.
Ouvimos também a música da banda, sobreposta pelos incessantes aplausos e muitos gritos de
“Viva Maria!”. Poucos segundos depois conseguimos entrever, por detrás de um vendedor de
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balõezinhos, o quadro iluminado. Quase ao mesmo tempo, o movimento da massa em direção às
margens da praça para deixar passar a procissão, chegou até onde estávamos e nos levou a abrir
espaço também. Enquanto isso, a chuva de orações escritas em papel picado, iniciada das
janelas e balcões próximos à igreja, se aproximava de nós, passando de casa em casa como
dominó. Alguns jogavam também pétalas de rosa... e quando a procissão passou diante a nós,
todo o ar ao nosso redor estava salpicado de cores. Passaram primeiramente os músicos da
banda. Depois alguns membros do clero. A seguir, os restos mortais de dois mártires, santos, de
quem eu quis saber mais três vezes naquele dia, a cada uma das três recebendo nomes e
informações diversos. Mais atrás, alguns soldados, com seus chapéus de penacho, usados
sempre nas cerimônias religiosas importantes de Crotone. Por fim, o enorme quadro, a Madona,
toda iluminada. A parte de trás vinha coberta por um enorme manto azul e o alto da moldura
endossava uma enorme coroa, como se o próprio quadro fosse a Virgem. Carregavam-no entre
dezesseis e vinte homens, apoiando as pesadas toras de madeira que fazem sua sustentação nos
ombros. Vestiam divisas com lenços azuis amarrados ao pescoço e logo descobri, ouvindo o
povo ao redor, que eram chamados de portantini. São voluntários em levar o quadro e mais
tarde o Senhor Giorgio me contou que primeiramente pertenciam a grupos específicos de
trabalhadores, como pescadores ou operários. O restante de fiéis se inseria atrás do quadro, mas
também à frente da procissão e nas laterais. Além disso, um mesmo grupo de pessoas não
mantinha sempre a relação de distância com o quadro – ao contrário, o que observei (e fiz) foi
uma troca circular contínua, na qual quem estava atrás corria pelas laterais para se aproximar da
Madona, enquanto quem seguia atrás e próximo a ela, se distanciava cada vez mais, até, muitas
vezes, se adiantar também pelas laterais ou “cortar caminho” por outras ruas.
Em um primeiro momento, entramos atrás do quadro, dele nos distanciando ao passar
pela Praça Pitágoras. Não vimos mais nossos amigos – que eu viria a reencontrar, sem o
Antonio, já na metade da peregrinação. Decidimos, como muitos, “cortar caminho” para nos
aproximarmos outra vez da Madona. Enquanto de longe se ouviam banda, disparos, aplausos,
cânticos entoados no microfone e seguidos pela multidão, pelas ruas vazias, por onde já passara
a procissão se viam pelo chão as orações e pétalas de rosa jogadas pelas janelas no momento da
passagem do quadro. Recolhi muitas das orações durante toda a primeira parte da procissão,
algumas do chão e outras enquanto voavam das janelas. As tenho aqui comigo. Algumas
repetem o tradicional “W MARIA” ou mesmo “WM” (Viva Maria), que se vê também nas
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decorações luminosas das casas. Outros pedidos possuem em comum o pronome “nosso(a)(s)”:
MARIA ABENÇOA a nossa cidade, MARIA ABENÇOA os nossos jovens, MARIA
ABENÇOA o nosso mar, MARIA ABENÇOA as nossas casas, MARIA ABENÇOA as nossas
crianças, MARIA ABENÇOA as nossas famílias, MARIA ABENÇOA o nosso trabalho,
MARIA ABENÇOA a nossa Igreja (tradução minha). Não quero me estender – ainda não é o
momento – sobre os pedidos das orações. Mas a descrição não seria completa se eu não fizesse
questão de recordar que, durante toda a festa, não é qualquer Madona que se festeja, mas sim a
Virgem de Coluna do Cabo, santa local, protetora da cidade, em nela contendo sua história, seja
como imagem, como Nossa Senhora (mãe de Deus no catolicismo), como festa... Procuro tornar
ao ponto depois, durante a análise, mas sempre em referência ao que vi e ouvi.
As ruas em que estávamos eram escuras e quando entrevíamos a procissão que passava
em ruas vizinhas, o contraste de luz, cores e sons deixava claro onde estava a Madona... Até
que, dois minutos depois, a alcançamos novamente. Desde a espera na Praça Pitágoras, ficou
claro que era o quadro ou, mais corretamente dizendo, a Madona de Coluna do Cabo, que de
certa forma determinava o espaço naquele dia. Existem muitos modos de se participar da festa,
o que torna minha afirmação menos simples do que parece: muitos permanecem em casa, à
espera da passagem da procissão; outros partem à frente dela para dormir em Coluna do Cabo,
ou mesmo na praia, pelo caminho. Quem vai somente até o cemitério, pode retornar depois ao
parque de diversões e às barraquinhas de bebida e comida. Mas a peregrinação, referida sempre
como o evento principal da festa, de um certo modo a coordena, através do objeto sacro da
Madona. Tudo isso deve ser bem desenvolvido e torno ao assunto depois, quando a descrição
mais completa permitir. Por enquanto basta narrar as vibrantes (não encontro palavra melhor)
reações daqueles que esperavam a passagem da procissão, com suas cestinhas repletas de
orações ou, em bem menos quantidade, pétalas de rosa. E era a procissão e, mais fortemente a
imagem da virgem, que regia tais reações, desde o momento de expectativa para a saída da
Catedral, sempre em onda. Da saída da imagem, início da procissão, até a chegada ao cemitério,
as pessoas nas janelas e balcões reagiam em cadeia, um após o outro, como ocorre no
movimento que ficou conhecido como “ola” nos estádios de futebol. A diferença em relação à
“ola” é que as ações se davam à medida que o quadro passava, por conta de seu movimento,
sendo a onda conseqüência, um “como”, e não intenção e finalidade. Tais ondas estão
relacionadas à força ritual da própria Madona: antes, no momento da espera, quando o quadro se
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encontrava em um ponto fixo (dentro da igreja), elas partiam de quem estava mais próximo dele
e se propagavam por toda a multidão.
Talvez uma comparação melhor fosse com aquilo que narra a canção “A Banda”, de
Chico Buarque: uma festa que passa levada pela banda. No caso, “para ver a Madona passar”...
Em todo esse primeiro trecho da procissão, até que ela chegasse ao cemitério, em que a imagem
era saudada e ovacionada, a importância da participação de quem não faria a peregrinação se
tornava evidente, em uma onda de comoção. Pronto, encontrei palavra melhor do que
“vibração”. Comoção! As figuras que eu via nas varandas eram velhinhas, algumas de luto, as
vezes várias juntas, ou famílias inteiras. Muitas crianças, concentradas e felizes com sua tarefa
de segurar o cestinho repleto de orações coloridas para jogá-las ao céu no momento justo. Então
se uniam aos longos aplausos que acompanhavam a imagem. A procissão tomava a forma das
ruas pelas quais passava. Quando entrou na Avenida Mazzini, bastante larga para os padrões de
Crotone, espalhou-se até suas margens, enorme, deixando-se ver ainda mais pelos prédios
iluminados, também bastante grandes em relação à média da cidade. Procurávamos seguir
próximos ao quadro, alternando estar atrás do quadro com ultrapassagens pelas laterais. Mas as
ultrapassagens têm um sentido, de se aproximar da Madona. Não era uma corrida: foi nesse
espaço de tempo que aprendi a rezar a Ave Maria em italiano. Apesar disso, tivemos que rir
quando observamos uma mesma velhinha, de tênis, que apelidamos de “Barrichello”, já que,
não importava quanto esforço fizéssemos para avançar, sempre a encontrávamos segundos
depois à nossa frente!
Era sempre impressionante observar os portantini. Um deles, um dos dois que apoiava
ao ombro a tora direita, parecia desaparecer sob tanto peso. Eu e Antonio observávamos seus
rostos, com expressões de sacrifício. Lembrava mesmo a imagem de Cristo carregando a cruz.
Um deles, à frente e no meio, comandava os movimentos de andar e frear, com uma força que
transparecia nos olhos e lhe fazia saltarem os músculos. Mas em alguns momentos, para frear o
quadro, tirava os pés no chão e nós pensávamos nos outros onze, que carregavam então o peso
de um homem a mais. Na verdade, embora tudo corresse sem transtornos ou problemas, a
enorme procissão não fluía com facilidade pelas ruas, as vezes dando a impressão de que eram
os portantini que a deviam carregar. Chegamos à grande ladeira que desce para o cemitério.
Embaixo, vê-se o mar, com a orla iluminada, enquanto que a própria descida carece de luz.
Olhei para cima: as milhares de pessoas que desciam acima de mim me pareceram lindas.
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Percebi que o silêncio aumentou um pouco e a procissão tão heterogênea me pareceu um pouco
mais coesa. Os prédios, que ocupam apenas um lado da ladeira, estavam ainda mais enfeitados,
iluminados. Havia muitas colchas nas janelas, costume que faz parte da festa. Colocam-se as
cobertas feitas dos melhores e mais belos tecidos em sinal de respeito à Madona. Até aquele
ponto, a cidade inteira parece estar envolvida. Então chegamos ao cemitério, de frente para o
mar, onde a peregrinação pára antes de pegar a estrada que leva a Cabo da Coluna. Os
portantini, em movimentos coordenados que realizam sob muitos aplausos, ultrapassam o
grande portão com a Madona, entrando no cemitério. O padre se posicionou entre a santa e o
povo, onde realizaria seu sermão, que apenas escutaram aqueles que estavam mais próximos.
Enquanto isso, a multidão permanecia do lado de fora, ocupando, apertada, todo o espaço
comprimido entre o portão do cemitério e o mar. Eu estava entre aqueles mais próximos, que
podem escutar o que o padre diz:. ele fala dos antepassados da cidade, que ali se encontram
enterrados e são parte integrante festa.
b) Segundo trecho do trajeto – do cemitério ao “meio do caminho”: Terminado o
sermão, a Madona foi erguida novamente pelos portantini e, uma vez fora do cemitério, seus
movimentos coordenados a viraram de frente para aqueles que a seguiriam em procissão – ou,
melhor dizendo, de frente para a cidade, que ela se prepara para deixar. Toda a organização
espacial do dia da festa e do momento da procissão, com as saudações das pessoas que ficavam
a aquelas que partiam, deixava clara a fixação do cemitério como limite da cidade. Se em outros
dias do ano e especialmente após a festa da Madona, com a chegada do verão, as praias de Cabo
da Coluna eram parte integrada à orla, durante a noite de sábado para o terceiro domingo de
maio o ingresso naquela estrada ficava proibido e a ida ao santuário do cabo passava a pertencer
a uma outra ordem espacial e temporal. Quando a Madona é virada para a cidade e segue assim
todo o resto do percurso, de costas ao local para onde se dirige, demarca aquele caminho entre o
cemitério e o Cabo da Coluna como um espaço entre tempos, entre mundos – como uma
passagem. Daquele ponto em diante, muitos voltaram. Alguns para o parque, ou para as
barraquinhas de venda de sanduíches... ou mesmo para casa. A peregrinação para Coluna do
Cabo continuou, em uma segunda etapa, sem banda, sem pedacinhos de papel colorido, sem a
agitação da cidade em festa, sem aquela sua participação que era ao mesmo tempo ovação,
saudação e audiência. O caminho após o cemitério tinha poucas casas e muito menos luz. Era
também um caminho único, só, sem ruas paralelas ou perpendiculares: uma única estrada, muito
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longa, de mão dupla, mas sem desvios. Em certos trechos, umas poucas residências, em outros,
bem espaçados, restaurantes, um hotel, um complexo de casas de veraneio (que parecem vazias
na primavera), algumas praias particulares que aguardam o calor para se tornarem locais de
divertimento, algum pequeno comércio ou quiosque. Tudo, porém, mais ou menos rarefeito,
espalhado de modo irregular pelas bordas da estrada em penumbra.
Na altura do cemitério, a rua ainda possui pista dupla, mas aquela do outro lado
desaparece poucos metros depois. Sendo assim, a peregrinação reiniciou já concentrada em uma
só pista, aquela que não desapareceria, bastante estreita e arborizada. Não podendo alargar-se
mais, domada pela dimensão do caminho, estreitou-se também a procissão, ajustando-se os
peregrinos na dimensão do caminho comprido, como uma enorme cauda. Despedi-me de
Antonio. Dali, eu seguia sem conhecidos, tentando integrar-me no que não era uma multidão de
solitários, como eu. Nos primeiros passos me ajudou muito saber rezar a Ave Maria. A ausência
da banda tornou o ambiente mais silencioso, abrindo um espaço diferente nos ouvidos, que
percebiam agora vozes baixas e o som dos passos dos fiéis. Os sons brandos ocupavam o fundo
desse espaço, enquanto os cânticos, entoados “à capela”, se sobressaíam. Nem sempre, porém,
se cantava. Quase por todo o tempo, no longo caminho do cemitério à Coluna do Cabo, rezava-
se a Ave Maria, de um modo particular: no microfone, alguém iniciava as primeiras frases da
oração... “Ave Maria/ cheia de graça / o senhor é convosco/ bendita sois Vós entre as mulheres/
E bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus”... ao que todos respondiam... “Santa Maria/ Mãe de
Deus/ Rogai por nós, pecadores / Agora e na hora de nossa morte/ Amém”... e outra vez a voz
no microfone reiniciava: “Ave Maria...”, muitas e muitas vezes. A repetição envolvente se
tornou comovente enquanto marcava o ritmo daquele tempo em que penetrávamos. Eu seguia,
então, próxima ao quadro, onde aqueles que rezavam contritos ocupavam todo o centro da rua,
coesos, mantendo o corpo da procissão. Eram muitas as senhoras, algumas bastante idosas,
rostos entregues à reza e ao canto. Lembro-me bem de uma delas, aparentando mais de setenta
anos, suas roupas pesadas que protegiam do frio e os pés descobertos, descalços, no chão.
Lembro também de uma moça abraçada a uma menina, mãe e filha, ou tia e sobrinha, não pude
saber. Grupos de amigos, famílias, casais... um empurrava o carrinho de bebê, o pequenino
dentro, bem coberto, aquecido. Ali, próximos ao quadro, ocupando o meio da rua, as pessoas
rezavam ...“Santa Maria/ Mãe de Deus/ Rogai por nós, pecadores / Agora e na hora de nossa
morte/ Amém”... O movimento das laterais continuava o de ultrapassar. As margens da
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procissão me fizeram pensar em outra festa da cidade, a de São Dionísio, bem pequena, que vi
no ano anterior. Dentro da igreja me chamara atenção a diferença entre aqueles que assistiam à
missa, no centro, onde estavam dispostos os bancos, e o movimento de entra e sai das laterais,
da gente que vinha saudar o santo, beijar sua imagem, rezar um pouco e voltar para a festa.
Também ali, na procissão da Madona, a margem se distinguia do centro. Nessa etapa, logo após
o cemitério, tal distinção se tornava mais clara, especialmente próximo ao quadro, onde aqueles
que seguiam pelo meio, atrás dos portantini, mantinham o passo mais ou menos regular, a
postura séria e concentrada nas orações. Os que vinham “por fora” eram, em sua maioria, os
mais jovens, algumas vezes rindo alto e sendo repreendidos com um “psssssssssiu” dos mais
contritos... “Ave Maria/ cheia de graça / o senhor é convosco/ bendita sois Vós entre as
mulheres/ E bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus”... Estávamos ainda no início do caminho.
Atrasei o passo e encontrei, afastando-me do quadro, um pouco mais de balbúrdia e
heterogeneidade. Já não restritos às margens, muitos adolescentes riam e conversavam. Outras
pessoas quase não falavam, outras conversavam baixo respeitando quem quer rezar. Juntos em
um mesmo espaço, com modos completamente diversos, a procissão congregava velhos,
crianças, outros tantos bebês, alguns donos com seus cachorros levados na coleira. A Ave Maria
unia os mais distantes, diminuia a heterogeneidade, deixando a impressão de serem poucos os
que não respondiam ao refrão.Quatro meninas que caminhavam abraçadas à minha frente, me
fizeram olhar outra vez ao redor: tantos jovens caminhavam abraçados ou segurando uns aos
outros em “corrente”. Olhei para baixo e vi, no mesmo grupo de meninas abraçadas que falavam
alegremente e sem parar, seus pés vestindo apenas meias, uma delas completamente descalça,
como a senhora que eu vira antes em postura tão contrita. Os pés no chão, sem sapatos, se viam
em grande quantidade. São promessas à Madona – eu o sabia do ano anterior, quando Dona
Maria de Cirò, a quem conhecia, faria a procissão desse modo tinha me explicado... “Santa
Maria/ Mãe de Deus/ Rogai por nós, pecadores / Agora e na hora de nossa morte/
Amém”...Ainda mais atrás, onde mesmo a prece no microfone chegava bem baixinha, o silêncio
era maior. Àquela distância, ainda que um ou outro grupo mais jovem se destacasse pelo
barulho, quase todos apenas caminhavam, tranqüilos, trocando poucas palavras... “Ave Maria/
cheia de graça / o senhor é convosco/ bendita sois Vós entre as mulheres/ E bendito é o fruto do
Vosso ventre, Jesus”... A rua se estreitava e alargava. Algumas vezes, mesmo pelas laterais, se
tornava difícil avançar mais rapidamente. Ali eu estava, tentando passar pelas margens, quando
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ouvi uma adolescente dizer: “Já estamos aqui? No ano passado, a esse ponto, eu estava já
exausta!”. Seu ponto de referência eram os primeiros cercados de praias particulares e áreas de
bangalôs que apareciam pelo caminho. Também se viam pizzarias, quiosques e lanchonetes nas
quais alguns peregrinos paravam para comer e beber alguma coisa, a tempo de retornar à longa
procissão que passava...“Santa Maria/ Mãe de Deus/ Rogai por nós, pecadores / Agora e na
hora de nossa morte/ Amém”... Uma das casas – onde se via uma pequena fila – vendia um
sanduíche com refresco a dois euros. É nesse ponto que as margens da estrada começaram a se
tornar mais interessantes de serem observadas, porque dali começava-se a ver, nas praias,
algumas das reuniões de jovens que – como se diz – “aproveitam” a festa para passarem a noite
fora. Pouco a pouco, o bate-estaca de músicas eletrônicas começou a ser ouvido, ainda que ao
longe, invadindo o som das preces e canções sacras da procissão. Quando se podia ver a praia,
havia sempre vultos que festejam ou conversam.Ao mesmo tempo, na própria estrada onde
estávamos, muitos jovens esperavam ou bebiam às margens do caminho, alguns com suas motos
estacionadas. Outros grupos de adolescentes chegavam com a procissão e ficavam por ali. As
entradas de bares e praias particulares, na estrada, estavam repletas.“Ave Maria/ cheia de graça
/ o senhor é convosco/ bendita sois Vós entre as mulheres/ E bendito é o fruto do Vosso ventre,
Jesus”... Pouco a pouco os adolescentes festeiros desapareciam da procissão, descendo as
escadas escuras que levam aos bares e praias particulares. Aqueles que ainda permaneciam nas
portas, traziam para dentro da procissão uma parte do evento que (supostamente) não lhe
pertenceria: bebidas alcoólicas, paqueras, gargalhadas...“Santa Maria/ Mãe de Deus/ Rogai por
nós, pecadores / Agora e na hora de nossa morte/ Amém”...Passado aquele trecho onde se viam
e ouviam as festas nas praia e bangalôs, o caminho ficou ainda muito mais escuro e muitos
peregrinos acenderam suas lanternas. Apenas seus fachos e as luzes da própria Madona nos
faziam ver o caminho. Sem a balbúrdia adolescente, não se ouviam mais as gargalhadas
seguidas do “psssssssssiu”. Quanto mais se caminhava, mais coesa parecia se tornar a procissão
e mais cansadas pareciam também as pessoas. Falava-se menos, à excessão das preces. Em
certos pontos se parava, algumas vezes para a substituição de um dos oito portantini. Faziam-se,
além disso, pequenas pausas, de instantes, durante as orações. Havia sempre aqueles que sentam
nas beiradas do caminho. Onde havia um muro, escada ou barranco, ocupava-o gente sentada,
querendo um repouso, e gente em pé, que subia para fotografar do alto, filmar ou apenas
admirar o momento. Muitas vezes se aproveitava a grandeza da procissão, que levava tanto
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tempo a passar, para descansar as pernas, recuperar o fôlego e retornar logo atrás. Em um dos
lugares onde muitos o fizeram, aproveitei também para subir na mureta e fotografar. Ali fiquei,
vendo toda a peregrinação caminhar... aquela enorme cauda de gente seguindo a Madona,
rezando ou calados, já diminuindo a rapidez dos passos por conta do cansaço. Taí, algo que não
consigo descrever é a velocidade em que caminham os peregrinos! Alguns mais rápidos, outros
mais lentos, claro, mas o estranho é que todas as vezes em que estive próxima à Madona ela me
pareceu ser levada velozmente pelos portantini, apesar do peso e suas expressões de esforço
para avançar. Aliás, andávamos, para acompanhá-los, desde o início, na cidade, a passos largos!
Não parecíamos mesmo caminhar lentamente. Mas a procissão sim... olhando de fora. Talvez a
impressão não seja paradoxal, mas decorra de uma diferença entre a visão de um “todo”
enorme, arrastado por almas já cansadas naquele ponto em que estávamos, e a visão de suas
“partes”, sendo levadas contraditoriamente pelo mesmo “todo” que levavam. Foi apenas
naquele momento que eu tomei consciência da enormidade da peregrinação, que não parava
mais de passar...“Ave Maria/ cheia de graça / o senhor é convosco/ bendita sois Vós entre as
mulheres/ E bendito é o fruto do Vosso ventre, Jesus”... Aproveitei para procurar e tentar ser
encontrada pelos amigos de Antonio, aqueles de quem eu me tinha perdido ainda na praça
Pitágoras. Um deles me viu e chamou, acho que foi Roberto. Estava com Giovanna, sua noiva,
além de Antonella, Mimmo, Paolo, um dos irmãos Vrenna e Laura. Uni-me ao grupo, que se
preocupava em manter-me entrosada. Foi bom ter tido a oportunidade de realizar metade da
procissão sozinha e metade acompanhada, de modo a poder me locomover dentro da multidão
com mais liberdade no início e sentir a integração em um grupo depois, cumprindo o resto do
percurso em uma situação mais parecida com a maioria dos peregrinos, que não caminhavam
sós. Os amigos, aliás, se mostraram preocupados por eu ter feito a procissão sozinha até ali.
Seguiam com pouca troca de palavras, com uma postura parecida com a daqueles que eu havia
observado mais ao fundo da procissão. Aliás, eles vinham bem atrás, mesmo. Algumas vezes,
passava algum conhecido que cumprimentavam. Em um ato gentil, se mostraram interessados
pela minha “pesquisa”, se oferecendo para ajudar. Perguntavam sempre se havia algo que eu
queria saber, me chamavam para contar coisas, dar-me explicações. Foi bastante diferente estar
acompanhada. Além de ajudarem com informações e me integrarem melhor ao evento, o
caminho se tornou mais agradável em companhia. ... “Santa Maria/ Mãe de Deus/ Rogai por
nós, pecadores / Agora e na hora de nossa morte/ Amém”... Aproximávamo-nos do parque
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aquático, antes das chamadas “curvas”. Começava a amanhecer. À nossa esquerda, o chão se
precipitava e a paisagem era o mar Jônio. Todos nós olhávamos encantados para o céu que
parecia unido às águas por causa de seu tom comum de azul. A semelhança com a cor do mar
era tanta que não se distinguia o horizonte. Parecia que o mar era ainda o céu, que se estendera
pela terra. Era tão bonito que de um em um os amigos vieram brincar comigo: “diz a verdade,
não existe essa paisagem no Brasil”. Aliás, a brincadeira se repetia, citando tudo aquilo que era
ressaltado na festa: a Madona (“vai dizer que existe no Brasil?”), a coluna grega... agora o
caminho, o céu e o mar. Roberto se aproximou com Giovanna e me contou que, em pouco
tempo, haveria uma pausa, que tinha um significado especial. Explicou-me que, apoiando-se a
Madona sobre um pedregulho plano, todos parariam para depositar pedras ao seu redor. Tais
pedras representavam a promessa de retornar no ano seguinte. E assim foi: dali a um pouco, a
procissão parou. Os portantini começaram a realizar os movimentos necessários para tirar a
Madona dos ombros e apoiá-la sobre o pedregulho, sempre muito aplaudidos a cada gesto
coordenado. Ao final, a Madona já bem colocada, mais aplausos, dessa vez à própria santa,
ovacionada também com gritos de “Viva Maria!”. Os outros amigos vieram também explicar-
me o que acontecia, enquanto Antonella escolhia uma pedra bem grande, declarando, divertida,
sua idéia de que poderia servir para todos. Ergueu uma enorme, repetiu sua intenção, riu e
desistiu, posando-a outra vez no chão. Alguns me chamaram: vem pegar uma pedra para você.
Eu disse que não, afinal não era seguro que eu pudesse retornar no ano seguinte, portanto
preferia não prometer. Alguns acharam graça de minha preocupação... mas lembro também que
alguém, sem saber que eu não havia depositado a pedra por não estar próximo naquele
momento, fez a brincadeira inversa, me dizendo que agora eu era obrigada a retornar em 2006.
Todos os meus amigos fizeram a promessa. Eu fui até a Madona junto à Mimmo. Cheguei a
fotografar sua mão enquanto depositava a pedra, mas a foto, como todas do cemitério em diante,
não saiu por falta de claridade. O movimento era grande próximo ao quadro, justo por conta das
pedras e promessas, mas apesar da enorme quantidade de gente, tudo corria de modo muito
tranqüilo, sem nenhuma confusão. Mimmo me perguntou se eu não queria que ele me
fotografasse enquanto eu depositava a minha... ao que lhe expliquei que não o faria e o porque.
Foi quando ele me corrigiu, dizendo que não sabia dessa história de promessa, que as pedras
representavam pedidos à Madona. Tive que rir com a confusão porque, dentre todos os meus
conhecidos, ele era o único com aquela teoria. Fiquei imaginando: quem sabe quantas razões
89
diferentes existem na mesma procissão para colocarem-se pedras junto ao quadro? Por via das
dúvidas, não coloquei. Enquanto procuravam-se pedras e faziam-se promessas, as preces e os
cânticos foram interrompidas. O ambiente se transformou, ganhando um ar de acampamento.
Muitos aproveitaram para fazer xixi: viam-se grandes filas indianas seguindo pelo meio do mato
com esse propósito. Brincamos, dizendo que eram outras peregrinações. Aliás, brincava-se
muito. Alguns lanchavam, bebiam água. Os portantini conversavam entre eles, em uma
descontração relaxante que contrastava com seus rostos exaustos de carregar tanto peso. Tive a
tentação de me aproximar para puxar assunto, mas não quis atrapalhar os únicos minutos em
que os via com a leveza de seus próprios corpos. No dia seguinte, Antonio me perguntou sobre
aquela pausa, se tinha sido feita. Eu respondi que sim e falei das pedras. Ele me contou que um
amigo lhe dissera que ali é a metade do caminho. Antonio acrescentou que não sabia se o amigo
estava certo... mas posso continuar essa descrição com esse dado a mais. Talvez fosse mesmo a
metade do caminho. Alguns minutos depois, alguém (talvez um dos padres que acompanhava a
procissão) perguntou ao microfone se estávamos cansados. Muitos responderam em coro
“nããão!”... ao que ele brincou: “então recomecemos, passamos direto por Cabo da Coluna e
vamos até Cabo Rizzuto...”. Os portantini suspenderam novamente o quadro, sempre com
movimentos coordenados e sob muitos aplausos. Terminaram os risos, os lanches, o descanso. E
a procissão recomeçou a caminho de Coluna do Cabo...
3.4 Considero que até aqui – embora estejamos ainda “na metade do caminho” – temos
já descrição suficiente para desenvolver algumas primeiras observações. Destaquei para esta
breve análise alguns elementos da festa:
a) A multidão de conhecidos: a organização da teia de relações permanecia perceptível
durante a festa, compondo grupos, passantes que se cumprimentam etc. Entretanto o caráter de
multidão diferenciava não somente o modo como o espaço era ocupado pelos conhecidos, como
uma certa “impessoalidade” na emanação das “ondas de reação” (aplausos, urros, movimentos
de abertura para a passagem da Madona) que, ao contrário das informações e saudações dos
“dias comuns”, não dependiam da proximidade dos graus de relação, mas da proximidade
espacial entre os corpos. Essa “impessoalidade”, porém, não correspondia ao modo como as
pessoas se relacionavam entre elas, nem a um “anonimato”, mas a um modo comum através do
qual participavam do rito e, em especial, se relacionavam (através de seus atos) com a Madona.
Essa multidão de conhecidos, formaria depois o corpo da procissão – dividido em grupos, com
90
gente que se cumprimentava, com sua integração espessa e diferencial garantida também pela
teia de conhecidos. Tanto o caráter de multidão quanto aquele de conhecidos eram
complementares na participação na festa e no recebimento de informações sobre ela (“hora de ir
para a catedral”, por exemplo – tanto copiada da onda de reações, como feita em grupo com
amigos). Assim, mais uma vez entra em jogo a prescrição, a previsibilidade, o inesperado e a
criatividade, como termos que fazem parte e se dão dentro e através da teia relacional e coletiva
de conhecidos – e não em “indivíduos individualizados”. É curioso pensar que para além (mas
não independentemente) da posição na teia, compunha-se por ocasião da festa uma distribuição
de papéis rituais – que embora não fosse em todos os casos uma distribuição “formal”, não era
nunca nem menos aleatória – entre aqueles que permaneciam em casa, compondo “a cidade que
ficava” e aqueles que cumpririam o percurso, compondo “a cidade peregrina”. Ir com amigos,
pregar, ir com a família, não ir, estava também diretamente associado ao modo como se
participava da teia de relações. É claro que ninguém ia para a procissão para ser “a cidade” cá
ou lá – iam por razões diversas, que variavam da tradição à promessa, da companhia dos amigos
à devoção, do credo ao divertimento... E quem queria rezar se irritava com quem conversava
alto, ria e fazia algazarra. Talvez possamos dizer, em certa medida, que aquelas pessoas
realizavam a cidade, assim como a santa era realizada pelo quadro – não penso que realizar
coisas seja antagônico a desejar outras: são duas faces de uma mesma moeda, como o
significado e o interesse (SAHLINS, 1981).
b) O caminho, a Santa e a Coluna: em um certo momento da descrição eu chego a
comentar o quanto a procissão se alargava, estreitava, alongava, restringia de acordo com o
espaço da estrada. Além disso, a participação de quem olhava, de quem bebia cerveja à beira da
estrada, de quem jogava papéis dos edifícios (mencionando aqui momentos muito diversos da
festa) compunha, “dentro” ou “fora” da cidade, o espaço pelo qual se passava. O caminho era
realizado tanto por seu “espaço físico” quanto por sua ocupação “em forma” de procissão,
quanto pela participação de quem estava “fora” dela, participando da festa de outro modo. Uma
das características mais importantes que pude observar na peregrinação, no meu entender, é
justamente o fato de que ela foi construída passo a passo. Não importava apenas chegar a um
fim; mas o cumprimento de um percurso, um ato simbólico. Cada passo o compunha, cada
passo era igualmente importante para sua felicidade (AUSTIN, 1962) como rito. E esses passos
– e isso é muito importante em uma análise sobre o tempo e o espaço na festa – não eram
91
homogêneos. Do mesmo modo que ressaltei grandes diferenças entre os dois trechos do
percurso (até o cemitério e após ele, “saindo” simbolicamente da cidade para penetrar em um
espaço fronteiriço) devo sublinhar também em minha descrição as variações que constituíram
momentos diversos na caminhada. Mais uma vez aqui são importantíssimas as distinções entre
os modos de participação na festa, ou os papéis desempenhados em seus múltiplos planos de
realização. Quem estava, como eu, dentro do corpo da procissão, superou durante o percurso
entre o cemitério e Cabo da Coluna um sem fim de situações, encontros, momentos claros e
escuros, o fim de uma noite e o raiar de um dia, trechos de asfalto, de pedra, de terra, estreitos,
largos, à beira do abismo. Passamos por jovens que seguravam, em um dado ponto, suas
garrafas de cerveja, apoiados nas motocicletas, na beira de escadinhas que os levariam à festa
nos bangalôs à beira do mar. Nós passamos por eles; eles nos viram passar. Em ambos os casos,
um encontro importante se deu naquele momento, definindo um (ou múltiplos) períodos de
tempo, com diversas durações. E foram esses diversos períodos e trechos do percurso que
compuseram seu tempo, não avaliado no espaço de treze quilômetros comuns, mas realizado na
duração de uma procissão/peregrinação, de noite e de um nascer do sol especial.
O trajeto que se cumpre, da porta de um templo, a catedral católica medieval da cidade,
a outro, capela católica dedicada à Madona no santuário de Cabo da Coluna, onde se erguia, no
passado (presente), aquele de Hera Lacínia. Mas o caminho cumprido na
procissão/peregrinação não fica somente entre dois templos sagrados: o Cabo que abrigou o
templo de Hera é lembrado (pertence à memória da cidade) como lugar original de Kroton; não
porque lá tenha nascido a cidade, mas ser signo de sua grandeza espiritual. Que a Coluna esteja
nos outdoors do projeto Urban é um fato duplamente significativo: ele não remete somente à
cidade, mas à sua origem mítica – e, através da memória, à possibilidade de reconstruí-la. A
Coluna é, assim, um símbolo de nascimento e renascimento; e, portanto, também de morte. Ela
está presente, nas narrativas crotonenses, no lugar de todo um templo que caiu, e quando eles a
apontam é para falar dessa sua continuação, da construção que a cerca em um tempo não visível.
Talvez esse tempo permanecesse inacessível se não fosse o nascimento de um elemento
móvel, também sagrado, capaz de atravessar, como a memória dos poetas inspirados por
Mnemosyne, um espaço entre tempos diversos. É no mesmo Cabo onde nasce e morre Crotone
que se sucedem os primeiros milagres da Virgem Santíssima de cuja imagem foi encontrada por
pescadores que durante muito tempo habitaram a região, para onde teria sido levada por São
92
Dionísio, padroeiro da cidade, ainda durante o final do período greco-romano – e onde se ergue
hoje a sua Capela. Muitas são as versões da história, assim como muitos são os milagres
atribuídos à Santa, dos quais cada crotonense conhece uma parte. Mas ainda com o dedo
apontado à Coluna, na narrativa que eu mencionava anteriormente sobre o tempo não visto do
templo que ali estava, cada um com quem conversei me falou da Madona de Cabo da Coluna,
contando de sua grande festa e da procissão/peregrinação
45
que a levava ali, para o seu
Santuário.
O Cabo da Coluna, como lugar mítico, pertence a um tempo diverso, não no sentido
decorrente da tripartição linear entre passado, presente e futuro, mas nas durações e ritmos de
suas genealogias (VERNANT, 1973). Quando, após o cemitério, percebi que estávamos em
uma margem, um “espaço entre espaços” (VAN GENNEP, 1978), entre os vivos e os mortos,
talvez fosse porque era esse o caminho que nos preparávamos para atravessar. Segundo Van
Gennep, “Todo peregrino está fora da vida comum, em um período de margem, da partida ao
regresso”.Mas, ao mesmo tempo, não se estava somente atravessando um espaço, mas o
construindo, através das diferenças e igualdades entre trechos e dos atos diversos que por sua
vez construíam tais diferenças e igualdades, como a repetição da Ave-Maria que, enquanto
avançávamos com os passos, nos garantia retornar sempre às mesmas palavras. Na busca pelos
tempos originais através de um caminho que os unisse à cidade, a memória ritual
46
não permitia
esquecer de onde se estava vindo. Durante muito tempo questionei se a procissão/peregrinação
levava ou seguia a Madona, e estou convencida de que era ela quem permitia esse duplo
movimento, de atravessar a passagem e de construí-la. E eis a função primordial dos portantini,
que não pode ser compreendida senão na relação ritual intrínseca que estabelecem com a
imagem sagrada – levar quem leva, ser levado por quem é levado – e com a multidão. É curioso
lembrar o quanto as duas imagens, de levar e ser levado, estavam presentes em minhas
observações e descrições: o enorme peso da Madona sob os portantini, a impressão de que eles
estavam sendo carregados pela multidão, a impressão de que a multidão era organizada
espacialmente por ela (com as ondas de reação que o objeto sagrado emanava). Essa dupla
impressão está relacionada tanto com o duplo caráter do percurso – de caminho para o sagrado
45
É interessante pensar no uso de ambos os termos, peregrinação e procissão, por ser o primeiro, como me
explicou em nota pessoal Luiz Fernando Duarte, uma “ida ao sagrado” e o segundo uma “ida do sagrado”.
(Informação verbal).
46
Para a função de memória dos rituais, ver Leach (1966).
93
e de caminho do sagrado – quanto, talvez, ao duplo caráter da própria festa, da qual se dizia na
própria cidade ser “sacra-profana”.
Penso que só é possível, porém, compreender esse duplo caráter da festa, bem como o
modo como nela se estabelecem as noções de sagrado, profano e suas “rotações”(VAN
GENNEP, 1978), se buscarmos compreender a relação entre a Madona e a Coluna em paralelo
com outras relações observadas na cidade, como aquela entre a Praça Pitágoras e a Praça da
Catedral, ou entre os jovens que partem para crescer, aqueles que retornam para casar e aqueles
que pretendem crescer e permanecer. Mais uma vez podemos pensar no par mitológico de
Hermes e Hestia. Curiosamente, na festa da Madona, tanto o movimento (que garante a
permanência) quanto a fixidez (que organiza o movimento) são imagens sagradas femininas. Na
imagem da Madona de Cabo da Coluna, a Virgem Mãe de Deus amamenta o Jesus menino. No
que me foi contado em Crotone sobre Hera Lacínia, sua festa era uma adoração à fertilidade.
d) A colocação de pedras aos pés da Madona. Este momento, da colocação das pedras,
traz alguns elementos para análise que pretendo abordar em duas perspectivas: na primeira,
ressalto seu aspecto simbólico e na segunda a relação deste com a realização de atos formais de
cuja prescrição garantem a felicidade do rito (AUSTIN, 1962). Esta dupla abordagem está
associada a uma multiplicidade de planos dos quais toma parte a própria observação etnográfica,
pois se, por um lado, ela pretende buscar uma totalidade estrutural que, do mesmo modo que
não pode ser compreendida por um único indivíduo, não poderia ser percebida pelo caráter
histórico, limitado e exterior de seus atos, por outro lado o acesso a elas se dá justamente através
de fatos episódicos, no sentido de que ao observar a procissão/peregrinação da Madona de Cabo
da Coluna, o que pude conhecer foram certos acontecimentos de sua realização/atualização em
maio de 2005. Assim, se Roberto me avisara com antecedência que pararíamos, que os
portantini apoiariam a santa sobre um patamar, que os fiéis depositariam pedras sobre seus pés,
significando a promessa de retornar no ano seguinte à procissão (tudo isso atestando o caráter
de prescrição do rito), quando presenciei a cena outros elementos se uniram ao que meu amigo
tinha narrado e expuseram o caráter episódico da observação. Mimmo apresentou-me outra
versão simbólica sobre as pedras – realizando outros atos (outros significados) apesar de manter
a mesma seqüência de movimentos prescritos (colocação da pedra). Enquanto isso, Antonella,
que compartilhava das mesmas idéias de todo o grupo sobre o uso das pedras, procurava uma
que fosse bem grande dizendo que assim serviria para todos: era uma invenção sua, um pouco
94
brincalhona, de um modo diferente (colocação de uma pedra muito grande) de realizar o mesmo
ato (mesmo significado). Havia um tom de brincadeira no que ela dizia, mas por muito tempo,
depois, ainda segurava nas mãos um pedregulho, olhando ao redor e pensando se levava a cabo
sua idéia, enquanto pedia a opinião do grupo. Pretendo, portanto, abordar de uma parte o caráter
simbólico das pedras, como promessas de retorno ou/e pedidos (de acordo com a versão),
buscando compreender de que modo as idéias de retorno, de promessa e de pedido podem
compor um quadro que se relaciona com outros significados da festa e daquilo que foi descrito
sobre a cidade em outros dias e períodos do ano. De outra parte, buscarei refletir sobre a própria
relação entre ato, objeto e significado (colocação de pedras, pedras, promessas e/ou pedidos)
exposta no episódio, acreditando que ela possa sugerir modos de se pensar as fronteiras entre
prescrição e realização – ou talvez atualização – na festa; ou ainda sobre permanência e
movimento.
Primeiramente, se pensamos em termos de versões do rito (ou do mito), nos devemos
perguntar sobre o que poderia haver de símile entre a promessa de retornar no ano seguinte e os
pedidos de Mimmo. E talvez fosse já um bom passo lembrar que ambos são atos do tipo que
Austin definiu como “ilocucionários” – atos de fala que realizam mais do que a própria locução
proferida. No caso a que nos referimos aqui, porém, o ato não corresponde à fala, mas a
colocação de uma pedra, de um objeto, sob o sagrado – a Madona. O interessante dessa
observação é perceber que, enquanto a Madona continua o percurso, partindo em direção ao
Cabo da Coluna, as pedras permanecem ali, no meio do caminho. Por outro lado, se pensamos
nas três variações descritas, a versão de Roberto, a versão de Mimmo e a inovação de
Antonella, temos também um conjunto de combinações possíveis entre a permanência do
objeto, do ato e/ou do significado e seus limites de variação e recriação: mesmo objeto
simbólico (pedra) variando o ato (promessas ou pedidos) ou mesmo ato (promessa) variando a
importância do objeto simbólico (pedra grande = muitas promessas, ou seja, importam novas
características do objeto). Cabe acrescentar que, segundo Austin, nos atos “ilocucionários”
importa o “como” realizá-los.
Minha segunda pergunta a respeito do momento de colocação das pedras (promessas ou
pedidos) sob a Madona é: por que ela ocorre na metade do caminho? A partir do que foi dito no
item b sobre a importância do cumprimento do percurso, passo a passo, sugiro que sua metade é
um ponto muito significativo. Não importa chegar se não se tiver passado
por ali. E que lugar é
95
aquele? É precisamente o meio do espaço entre dois mundos que se atravessa durante a
procissão/peregrinação. Esse espaço ritual, como mencionamos anteriormente, não pertence ao
tempo tripartido: é capaz de unir planos cósmicos diversos. Assim, a colocação da pedra que
atesta a passagem por aquele ponto, pode projetar-se ao futuro – que naquele espaço não é uma
sucessão de um tempo tripartido, mas sim um tempo mítico e original ao qual tem-se acesso
através do ritual – e passa a garantir um retorno, a pedra marcando o passado/a passagem/que
passará. Ela não está ali para mostrar que se esteve, mas que se esteve e se estará, ou ainda que
se está sempre, em outro plano, em um tempo que em outros momentos da “vida comum” não é
visível – torna-se, naqueles outros momentos, o passado ausente que depende de estratégias
cotidianas para ser relembrado.
Há um aspecto fundamental das pedras colocadas sob a santa, porém, que escapa às
etapas da procissão que descrevi até agora. Porque nós continuamos nosso percurso até Cabo da
Coluna – já sob a luz do sol que nascia (nascia ali, no meio do caminho) e com um clima um
pouco alterado por aquela pausa pela estrada, pausa que unia pedras, promessas, pedidos,
lanches, xixi e conversas de “acampamento”. Era um meio de uma viagem e depois dele, o som
do caminhar, os passos e pés pisando no chão, tornaram-se mais sonoros, sentidos, presentes.
Posso dizer que o mesmo ritmo de passos, preces e nascer do sol se manteve durante horas.
Durante as curvas ainda se girava o corpo, enquanto se via sempre luzinhas brancas iluminadas
pelo sol vermelho, a Madona na curva seguinte, e ouviam-se as ave-marias mais próximas ou
distantes dependendo da estreiteza da curva. Depois, porém, o caminho ficou reto e também as
horas. Pouco a pouco, nos aproximamos do Cabo. Não sei se por cansaço ou por uma conquista
de todo o espaço pela procissão, ela se espalhou (ou pôde se espalhar), os grupos já não tão
coesos como antes, separados por espaços vazios que se puderam criar justamente pela união
adquirida na metade do caminho. Diriam as pedras, passamos, passando e passaremos. Na
longuíssima estrada de terra, já em Cabo da Coluna, as casas abriram as portas aos peregrinos,
oferecendo café, comida e seus banheiros. Uma missa foi rezada, diante da capela da Madona,
vizinha da Coluna de Hera e, depois disso, ônibus e carros – de que a passagem tornava a ser
permitida até as quatro da tarde do dia seguinte – acumularam-se no estacionamento, para
buscar e levar às suas casas todo aquele mundo de gente que cumprira, durante a noite, os treze
quilômetros de procissão. A Madona permaneceu na capela, onde esperaria pela hora do retorno
em carro de boi, para ser recebida de volta à cidade com um festival de fogos de artifício.
96
Antonio veio me buscar com seu carro e descemos, em poucos minutos e no sentido
inverso, todo aquele percurso agora transformado em estrada para Crotone – ao menos até o
retorno da santa no dia seguinte. E eis que, “na metade da estrada”, passamos pelas promessas e
pedidos, agora transformados em pedras. Mas não completamente. Se as promessas e pedidos
superam, no espaço-tempo da passagem entre mundos, a qualidade física de existência da pedra,
é essa qualidade que a faz superar aquele espaço e permanecer junto às outras, não mais sob a
Madona, mas diante do mar de Crotone. Essa qualidade das pedras – que era também nossa e da
estrada – é fundamental para a festa, justamente porque o retorno que elas garantem no ano
seguinte depende desse outro retorno: o da pedra em ser pedra, o da gente em ser gente, o da
estrada em ser estrada, o da festa, enfim, terminar. A festa só pode cumprir seu papel quando o
“tempo comum” voltar. Não à toa o segundo início da procissão é no cemitério – limite ritual da
cidade, construído e construção desse limite. Para que não se morra, segundo dizia Alcmeão de
Crotone (VERNANT, 1973) é necessário ser capaz de juntar o começo ao fim.
97
Considerações Finais:
Talvez porque noções como progresso, evolução, desenvolvimento estejam tão
intimamente relacionadas ao individualismos e a “representações” sobre individualismos no
chamado “mundo ocidental”, por vezes tudo se confunde e se passa a associar esse modo
específico de se pensar o movimento – ou seu valor como mudança – ao movimento em si,
como se apenas através das noções “ocidentais” e lineares de tempo um grupo humano pudesse
transformar-se. Assim, associa-se comumente as chamadas “sociedades tradicionais” à
permanência, a uma certa estática, relacionando-as a uma falta de movimento ao invés de
pensá-las a partir de outras formas de movimento. “Progresso”, “desenvolvimento”, “história
linear” não são o único modo de deslocar-se, expandir-se, contrair-se, alterar posições, dar
explicações – o diria, por exemplo, uma bailarina ou um animador de “cartoons”. A despeito de
ambos, é possível assistir diariamente – não somente nos telejornais – a idéia de “indivíduo” ser
associada à liberdade, assim como nos filmes “hollywoodianos” é fácil encontrar um homem
solitário, uma mulher estrangeira, “diferenciados” do mundo que os cerca, provocarem
revoluções justamente por serem a representação ideológica óbvia de um “indivíduo. Tal visão,
porém, terminando por monopolizar em certos meios as associações com, por exemplo, a
“liberdade” ou o “desenvolvimento”, passou a restringir por vezes tais conceitos a uma única
forma, como se em qualquer lugar do mundo “desenvolver-se” quisesse dizer a mesma coisa,
tivesse o mesmo valor ou ainda fosse o único modo de “mover-se”.
Na pequena praça da Catedral de Crotone, – “Ocidente” em relação ao modo como se
pensa o Brasil, “berço da cultura ocidental” em relação a um dos modos como falam de seu
passado, “Calábria” em relação à Itália, “Mediterrâneo” em relação a uma certa antropologia –
as máquinas imprecisas que levariam a cidade ao “progresso” rompem uma fronteira que não
pertence ao tempo homogêneo dos minutos modernos, mas a um tempo espesso, cheio de
variações, relevos, ao qual um grupo de pessoas se encontra relacionado como às antigas
cidades angulosas e regiões montanhosas que descreve Simmel (1986) para dizer que dentro das
curvas um indivíduo constrói uma identidade mais profundamente que em relação a uma cidade
reta ou às retas de uma planície. Não se aqui trata de metrópoles ou montanhas, ou de discutir a
veracidade absoluta da declaração de Simmel, mas de pensar em retas e curvas, de homogêneo e
heterogêneo, de pontos finais e sinuosas reticências que duram mais que três pontos. Ali,
naquela praça, se decide “progredir”, não sem antes reclamar da droga de obra que não
98
terminava nunca e do espaço que ocupara, deixando tal espaço sem espaço para ficar, encontrar,
comprar, passar, brincar e fazer passar o tempo. Mas se logo atrás, no Centro Histórico, o
progresso também chega às custas de tirar quem não o representa e incentivar uma nova
ocupação e a abertura de comércios que tragam divisas à cidade, é também, e não nos
esqueçamos, porque essa cidade precisa tanto de divisas quanto seus antigos moradores
precisavam de pedras. E toca a deslocá-las, do templo à muralha, da muralha às casas, das casas
as pessoas...
Para além de “progressos”, “tradições” e espaços de sociabilidade coletiva, parece-me
que Crotone tem também necessidades, – que, nem por isso devem ser analisadas apenas
pragmaticamente, como se elas próprias não contivessem e remetessem a significados sociais.
Necessidades estas que se resolvem a seu modo, muitas vezes com uma praticidade brilhante e
quase assustadora. Pois então, lá estava o progresso presente, colado ao passado referido com
tantas nuances, versões e variações de tamanho, denso como a “hora” do almoço de três horas,
inseparável o mítico do histórico. Curioso o que ocorreu em Crotone, que seguindo uma
tendência que ultrapassava os limites nacionais da própria Itália, restaurou o histórico como
novo, mas, sendo a dita “civilização pitagórica” parte fundamental de sua cosmologia particular
(e que se identificava como tal), manteve Kroton enterrada e onipresente: “onde quer que se
cave, se encontra algo de muito antigo”. Que um passado, portanto, não atrapalhasse o outro.
E assim temos o que? Uma certa gama de associações inesperadas: a preferência pela
sociabilidade cotidiana e coletiva do espaço da praça é, por exemplo, associada ao
“progresso”: ou ao menos divide com ele a prioridade do mesmo ato de manifestação dos
passantes da praça, irritados tanto com a interrupção daquele processo quanto com o distúrbio
que causava a obra. Do mesmo modo, em outro canto, temos, nos adolescentes que partem em
nome da “educação”, “qualidade de vida” e “liberdade”, uma permanência garantida de sua
cidade natal – para onde, um a um, retorna nas festas e nas férias, quando “acontece algo em
Crotone”. Quando Crotone se vê acontecendo, em movimento – de tempo cíclico e “tradicional”.
Mas há ainda os que reclamam da falta de espaço universitário – querem crescer na cidade,
permanecer e transformar. O movimento da permanência, do não-deslocamento individual, mas
do deslocamento coletivo – unidos a um “crescimento individual” e a um “progresso” da cidade.
Tudo junto, misturado, e mais alguma coisa... Partir, em certa medida, torna-se uma reação da
permanência, enquanto poder ficar passa a ser a resistência da transformação.
99
Por tudo o que foi dito durante a dissertação, eu sugeriria que se trocasse o estático pelo
dinâmico e, inspirada por Van Gennep tanto quanto pela principal festa da cidade, a da Madona
de Cabo da Coluna, se pensasse Crotone não somente como um lugar de forte relação com o
passado, mas um lugar em que o presente e sua dupla de opostos ausente e passado relacionam-
se fortemente com o movimento de passagem. Transferir, deslocar, passar são, no meu
entender, elementos mais visíveis naquilo que conheci dos crotonenses do que os aspectos
extremos de manter ou mudar. Não é à toa que nada incomoda mais do que um processo
interrompido. Não é à toa também que se ouve tanto dizer em Crotone que apenas no verão e na
festa da Madona ocorre alguma coisa – sim, ocorrem transformações e uma série de
deslocamentos a partir dos quais a cidade se vê – como parece pensar-se também a partir dos
cartazes fúnebres, marcos de ocasiões limítrofes entre vidas e mortes.
É curioso observar na composição feita por Rino Gaetano, o músico crotonense já citado
aqui, em homenagem a seu Sul, a quantidade de figuras que fazem pensar na situação de
passagem. Canta o autor: “(...) Por exemplo, gosto de ver/ a mulher de negro, no luto de sempre/
sob sua soleira, todas as noites/ que espera o marido que torna do campo/ Caminhar com aquele
camponês/ que talvez cumpra minha mesma estrada/ falar da uva, falar do vinho/ que ainda é
um luxo para ele que o faz (...)”. A espera na soleira pela mulher de luto seria apenas da mulher
que, em face à morte e ao marido ausente, coloca-se significativamente na margem da porta que
divide dois mundos; ou será até mesmo a espera do Sul que aguarda por seus ausentes e
antepassados para, junto a eles, atravessar o espaço que já Satriani definira como incerto? A
viagem poética de Rino Gaetano pelos caminhos da Calábria, acompanhado do camponês que
não bebe o vinho que produz (ao menos não bebia na década de 70, quando foi escrita a música)
recorda-me as pequenas estradas cheias de curvas que menciona Barresi, que levam aos
pequeninos paesi e que, segundo o autor, a gente do lugar conhece de memória. Com essa
última frase, que conclui o texto desse autor, conduzo ao fim também essa dissertação,
sublinhando nela o termo memória associado às estradas, caminhos, passagens, passeios e tantos
modos de se perceber seus passados.
100
Bibliografia
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Fortaleza: Edições UC, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 95 – 118.
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