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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA FRANCESA
ESCRITURA DA PERDA:
UM TEMPO NÃO-RECONCILIADO EM BANDEIRA E APOLLINAIRE
Tatiane Milene Torres
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Língua e Literatura Francesa, do Departamento de
Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof(a) Dr(a) Maria Cecília de Moraes Pinto
São Paulo
2007
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA FRANCESA
ESCRITURA DA PERDA:
UM TEMPO NÃO-RECONCILIADO EM BANDEIRA E APOLLINAIRE
Tatiane Milene Torres
São Paulo
2007
2
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Aos queridos
NEUSA, ISAÍAS E CLÉCIO
amores genuínos
3
Agradeço
À Profa. Dra. Maria Cecília, pelo apoio e compreensão que me dedicou e pela desmedida experiência
transposta para orientações que me levaram, quando enleada, a voltar à vereda poética.
À Profa. Dra. Maria Lídia, que me despertou para a paixão literária quando ainda gateava e
pela imensurável atenção que me dedicou na graduação.
À Profa. Dra. Sandra Nitrini, pela solicitude de sempre, mesmo em meio a tantos afazeres.
À Profa. Dra. Maria Augusta, pelos notáveis pareceres na qualificação.
À Secretaria da Educação, pela concessão da bolsa.
Aos meus pais, pelos aplausos de sempre, independentemente do sucesso.
Ao Clécio, querido irmão, alicerce de todas as construções.
Ao Joceley, pela colaboração em vários momentos na execução deste projeto.
À Iara e Nevinha, pelas lições de fé e de força, amigas queridas.
Aos queridos amigos da graduação, que de perto ou de longe, ensinaram-me a amar
malgrado à distância.
A Deus, que me fortaleceu para enfrentar as intempéries.
4
RESUMO
Tendo em vista a influência confessa da poética apollinairiana nas primeiras produções de
Manuel Bandeira, o que, em hipótese alguma, se deve a uma leitura positivista segundo a
escola francesa tradicional, propomos a análise temático-comparativa de poemas retirados
da obra A cinza das horas ( 1917 ) e de Alcools (1913 ). O estudo vem se dando a partir da
recorrência motívica central do tempo, presente em ambos os poetas, que traduzem os seus
desgostos íntimos através de uma linguagem sentimentalmente artística e expressiva em
que o amor canta a morte. A dor, o tédio, a solidão e a melancolia são os sentimentos que
sustentam essa condição poética desditosa, buscando resgatar aquilo que findou por meio
de um tempo mítico, haja vista que este será eternamente não-reconciliado, estando o olhar
poético direcionado para um passado que traz reminiscências dolorosas. Além disso, nossa
preocupação é a de observar como esse tema é representado em seus vários subtemas, bem
como nas diferentes formas poéticas que constituem nosso corpus de análise.
Palavras-Chave: Tempo, Melancolia, Infortúnio, Amor, Reminiscência.
5
ABSTRACT
As we have the known influence of the Apollinaire poetry at the first production of Manuel
Bandeira, which is based on the reading of the positivism according to the traditional french
school, the main aim of this research is to analyse tematic and comparatively the poems
taken from the works A cinza das horas (1917) and Alcools. The cited research has been
developed through the central constant motive of the time, being held at both poets’ works,
which translate their inner disgustings throughout the sentimental-artistic and the
expressive language, where the love sings the death. The pain, the tedium, the lonely and
the melancholia are the feelings that supply such unfortunate poetic condition, trying this
way to recollect what is over through a mythical time, remembering that such time will
never be recuperated, through a poetic sight focused on the past which brings painful
remains. Nevertheless, our main concern is to observe how such theme is represented in its
assorted subthemes, as well as how the different poetic forms are built in our analysis.
Keywords: Time, Melancholia, Bad Luck, Love, Remains.
6
SUMÁRIO
Resumo 05
Abstract 06
Introdução 08
Capítulo I
Rumo à Pasárgada e aos Caligrammes 13
Capítulo II
Ainda que haja uma influência confessa 26
Capítulo III
O diálogo entre a poética bandeiriana e apollinairiana 54
3.1 O medievalismo na lírica apollinairiana 55
3.2
O noturno como marca de uma poesia penumbrista 78
3.3
A efemeridade do amor e a inexorabilidade do tempo 89
3.4
A Epifania e o Ubi Sunt? 128
3.5 O gozo a partir da contemplação 137
3.6
Ainda que o júbilo desponte em meio à melancolia 146
3.7
O destino talhado pela má-sina 158
Considerações Finais 168
Referências Bibliográficas
170
7
Introdução
8
Introdução
Em estudos realizados durante a graduação como bolsista do programa FAPESP,
demos início ao estudo dos poetas Manuel Bandeira e Guillaume Apollinaire, com suas
respectivas obras, A Cinza das Horas e Alcools. O surgimento da idéia do trabalho se deu
no momento em que estudávamos poesia brasileira na grade e percebemos que essa tinha
muitas relações com a poesia francesa. Foi então, que lendo alguns poetas franceses e
brasileiros observamos certas similitudes, sendo que dentre os quais Bandeira e Apollinaire
nos despertaram grande interesse, sobretudo no que concerne à fase inicial de suas obras,
ainda com traços notadamente melancólicos de uma poesia finissecular e parnasiano-
simbolista.
É importante salientar, que o desenvolvimento de tal projeto trouxe um
enriquecimento assaz relevante no que diz respeito a nossa formação enquanto docente e,
por conseguinte, pesquisadora. Assim, pudemos ter acesso a todo um universo acadêmico
que nos era desconhecido, ao participarmos de vários congressos e ao desenvolvermos a
pesquisa, com os relatórios semestrais e finais entregues à FAPESP. Ainda, outro fator
significativo foi a aceitação do pedido de prorrogação da bolsa pelo programa, o que
garantiu um maior tempo para trabalhar na pesquisa e uma maior participação em
congressos.
Mesmo com a ampliação do prazo e com a aprovação final do relatório, percebemos
que o estudo necessitava de uma maior fundamentação teórica e metodológica. Então,
observamos que o corpus pedia ampliação, posto que alguns poemas essenciais não tinham
feito parte da análise inicial e que um outro viés literário surgiu como resultado do
desenvolvimento da pesquisa. Por conta disso, trouxemos o projeto da graduação para o
mestrado, sendo possível o aumento do corpus em mais onze poemas.
Acreditamos que a execução desse projeto poderá levar a um maior conhecimento e
aprofundamento literário de dois grandes poetas modernos, ambos com características
parnasiano-simbolistas em suas obras iniciais que já apresentavam traços importantíssimos
9
para o desenvolvimento do Modernismo Brasileiro e das Vanguardas Francesas. O tema a
ser abordado nas análises dos poemas de Manuel Bandeira e de Guillaume Apollinaire
circunda a elegia amorosa, como sentimento principal, mas que representa toda uma
atmosfera melancólica de um eu lírico marcado por um “mau destino” cujas perdas são
irreparáveis, resultado de um tempo não-reconciliado, segundo a teoria de Gilles Deleuze
do círculo eternamente descentrado, o da Diferença.
O tema a ser estudado “Escritura da perda: um tempo não-reconciliado em Bandeira e
Apollinaire”, leva-nos necessariamente à consideração do tom melancólico-crepuscular
típico da poesia finissecular:
o lirismo elegíaco de Bandeira [e diríamos de Apollinaire]
caracteriza suas dores pessoais que se misturam com a
sentimentalidade crepuscular da poesia do fim do século XIX,
criando um clima de melancolia. (Garbuglio, 1998, p.59)
A elegia é aqui concebida como um pequeno poema consagrado ao luto ou à tristeza
pela perda do objeto do amor, exprimindo sempre um lamento doloroso e sentimentos
melancólicos. A noite vai funcionar como cenário de eleição nessa representação do mundo
em que o amor e ausência do objeto amado se conjugam nostalgicamente (Cf. Rosenbaum,
1993, p. 51). Podemos dizer que essas faltas ou perdas estão relacionadas aos amores
frustrados do eu lírico bandeiriano e apollinairiano, de maneira a ser possível identificar em
suas obras um grande amor que se esvaeceu: o de Marie, que inspirou em Apollinaire, após
rompimento definitivo, um belíssimo poema de mesmo nome, e o de Maria Cândida, irmã
de Bandeira que, inspirado em uma de suas cartas, escreve “A Canção de Maria”. Devemos
destacar que essas perdas ou faltas não estão somente ligadas aos amores frustrados e
perdidos do passado, mas também à passagem do tempo, ao saudosismo do eu poético,
sobretudo em relação às coisas mais simples do cotidiano, que foram vivenciadas e que
ficaram para trás: “Nessa passagem do tempo, o calor aquece o passado e deixa o presente
entregue à frustração do poeta” (Rosenbaum, 1993, p. 51). Logo, o amor elegíaco provém
de um sujeito inconformado com a sua própria trajetória de vida marcada por diferentes
tipos de amor, que permanecem em suas lembranças angustiantes.
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A partir dessa perspectiva de leitura dos poemas, concebidos sempre como elegíaco-
amorosos, ou seja, de um lirismo quase sempre terno e triste dada a situação de luto em que
o eu lírico se encontra (perda do ente amado ou de um tempo não-reconciliado), analisamos
o modo como se dá a representação poética nos dois autores mencionados. Acrescente-se
que eles não foram, até o momento, aproximados sob o viés nostálgico e doloroso de se
fazer poesia, sobretudo concentrado na sua fase inicial com fortes marcas de um lirismo
triste, característico do fim do século XIX e início do século XX, e que remonta até mesmo
à Idade Média.
Nesse sentido, com a finalidade de avaliar os recursos poéticos utilizados por
Bandeira e Apollinaire, apontando suas semelhanças e diferenças, o trabalho deteve-se,
primeiramente, na leitura e levantamento de textos crítico-analíticos sobre A Cinza das
Horas e Alcools, privilegiando os seguintes poemas da lírica bandeiriana: “Solau do
Desamado”, “Crepúsculo de Outono”, “A Canção de Maria”, “O Anel de Vidro”, “Dentro
da Noite”, “Confissão”, “Enquanto morrem as rosas”, “Madrugada”, “Ao Crepúsculo”,
“Volta”, “Oceano”, e da lírica apollinairiana: “Le Pont Mirabeau”, “La Chanson du Mal
Aimé”, “Marie”, “Automne Malade”, “Nuit Rhénane”, “1909”, “Mai”, “Le Vent
Nocturne”, “Crépuscule”, “Rosemonde” e “Signe”.Tal leitura e levantamento objetivou,
extrair dos textos o já estudado pelos críticos, de modo a estabelecer um ponto de partida
para que este trabalho de análise tenha um mínimo de originalidade e uma fundamentação
teórico-analítica mais consistente possível.
O critério de seleção dos poemas foi o de eles conterem a manifestação, por parte dos
poetas, de uma submissão à força do mau destino, ao tédio baudelairiano: “o mau destino
queima sem razão nem dó o coração do[s] poeta[s], reduzindo-o[s] a um montinho de cinza
fria” (Coelho, 1982, p. 17).
Após a leitura das obras que serviram de base para as análises e reflexões críticas de
Alcools e de A Cinza das Horas, classificamos os poemas acima mencionados pelos
subtemas que, de alguma forma, justificaram a figura do eu-lírico mal-amado: “O
Medievalismo na lírica bandeiriana e apollinairiana”, “O noturno como marca de uma
poesia penumbrista”, “A efemeridade do amor e a inexorabilidade do tempo”, A vida como
misto de angústia e esperança”, “A epifania e o Ubi Sunt?”, “O gozo a partir da
contemplação” e “O destino talhado pela má-sina”. Os poemas foram analisados, em um
11
primeiro momento, separadamente, para uma melhor compreensão, sobretudo no que
concerne suas diferenças, além de direcionar de forma inteligível e didática a sua leitura.
Em um segundo momento fizemos o diálogo propriamente dito entre os poemas, aos
pares, enfatizando a questão temática desenvolvida, e considerando alguns aspectos formais
na medida em que eram pertinentes para o enriquecimento da pesquisa.
12
CAPÍTULO I
13
Rumo à Pasárgada e aos Calligrammes
O presente capítulo resulta de uma síntese de conjecturas acerca da poesia de Manuel
Bandeira e de Apollinaire, tanto em sua fase inicial, com traços notadamente líricos no
alvorecer do século XX, quanto em sua fase já avançada em termos de modernidade
poética. Também, para uma melhor compreensão da lírica bandeiriana e apollinairiana,
fizemos um levantamento de dados biográficos relevantes, de modo que auxiliassem o
esclarecimento de aspectos nebulosos da poética dos autores.
A propósito dos autores, Guillaume Apollinaire Albert Kostrowitzky, nasce em
Roma, no dia 26 de agosto de 1880. Sua origem paterna é desconhecida, sabe-se apenas que
sua mãe, de origem polonesa e italiana, teve uma efêmera relação com Francesco Flugi
d’Aspermont, um italiano que se presume ser seu pai. Após seis anos, nasce Manuel
Carneiro de Souza Bandeira Filho em Recife, no dia 19 de abril, na Rua da Ventura, atual
Joaquim Nabuco. É interessante notar, que ambos autores em sua infância, fizeram várias
viagens, a constatar: Apollinaire com sua mãe Angélica e seu irmão Albert saem de Roma
em 1887 e se instalam em Mônaco, após esse período, entre 1896-1897 passa por Cannes e
depois por Nice. Em 1899, a família se instala finalmente em Paris, em condições precárias.
Bandeira também viaja na infância, sua família em 1890 se transfere de Recife para o Rio e
a seguir para São Paulo, e novamente, Rio de Janeiro, passando dois verões em Petrópolis.
Em 1892, retorna para Pernambuco e mais uma vez para o Rio de Janeiro em 1896. Vale
destacar, que é na ou sobre a infância dos poetas que eclode muitos poemas, Bandeira que
busca recuperar o período realmente feliz de sua vida, antes da doença e com os seus
queridos, em “Evocação do Recife”, e Apollinaire ao relembrar Rome onde nasceu, sua
origem misteriosa com todas as suas intempéries, no verso 95 de Vendémiaire”, reduzido a
duas sílabas “Ô Rome”, sendo mais explícito no manuscrito: “Ô Rome, Ô Rome où je suis
né” ou em “Zone”:
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Et moi en qui se mêle le sang slave et le sang latin
Je regarde ces pauvres Polonais [...]
(“Zone”)
Lorsque la nuit revint couverte d’yeux ouverts
Errer au site où l’hydre a sifflé cet hiver
O Rome
Maudire d’un seul coup mes anciennes pensées
Et le ciel où l’amour guide les destinées
(“Vendémiaire”)
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
(“Evocação do Recife”)
É importante mencionar, que nesse período os dois poetas estudaram, Bandeira em
1892 no colégio das irmãs Barros Barreto, como semi-interno do Virgínio Marques
Carneiro Leão, e ainda em 1896, no Externato do Ginásio Nacional. Apollinaire no colégio
Saint-Charles de Mônaco entre 1887-1895, no Stanislas de Cannes e no Liceu de Nice,
entre 1896-1897. Mas não chega a se formar e abandona os bancos escolares no verão de
1897, final de 1898, embora fosse um excelente aluno e se interessasse sobremaneira pelos
estudos: “Guillaume est un bon élève. À onze ans (1891), en septième, il obtient sept prix et
cinq accessits, dont le second prix d’execellence et le premier prix de français et de calcul”
(Parinaud, 1994, p.21). O abandono dos estudos não impede que Apollinaire se torne um
leitor ainda mais voraz, e passe os dias a ler e a escrever, posto que objetiva ser escritor ou
jornalista. O curioso é que, após seis anos, quem tem os estudos interrompidos é Bandeira,
abandona o sonho de ser arquiteto ao descobrir que está tuberculoso.
Apollinaire, ao abandonar os estudos, precisa trabalhar para se manter, pois a situação
financeira da família é extremamente difícil. Então, em 1900, começa a desenvolver
diversos tipos de ocupação, visto que sendo estrangeiro e sem formação não pode exigir e
15
escolher qualquer ofício. Em maio de 1901, torna-se professor de francês da filha de
Gabrielle Milhau, viúva de um conde, proveniente de uma rica família de Cologne.
É nesse momento que inicia suas atividades literárias com mais afinco, tendo
publicado três poemas na revista La Grand France de setembro. Como sua situação
financeira é crítica, ao receber a proposta irrecusável de Mme Milhau para acompanhá-la à
Alemanha, sem hesitar a aceita. No ambiente germânico cada elemento do cotidiano será
para Apollinaire uma inesgotável fonte de inspiração, como por exemplo a coletânea
“Rhénanes”, além de nessa época apaixonar-se por Annie, uma jovem inglesa que
trabalhava também para Mme Milhau. Nesse ínterem, Bandeira cursa o ginásio em
Pernambuco e muda para São Paulo, em 1903, a fim de matricular-se na Escola Politécnica,
onde pretende tornar-se arquiteto. Mas seu sonho é interrompido em 1904, quando descobre
a tísica que será fiel companheira ao longo de toda a sua vida, e volta para o Rio de Janeiro.
Em busca de um clima melhor para sua saúde começa a viajar, passando várias temporadas
em diversas cidades: Campanha, Teresópolis, Maranguape, Uruquê, Quixeramobim.
Nesse mesmo ano, Apollinnaire freqüenta os meios intelectuais da época, como o
ateliê de Picasso, onde tem oportunidade de conhecer vários eruditos, dentre os quais o
escritor Max Jacob.Também conhece os pintores Derain e Vlamink, em seus passeios
dominicais ao lado do Chatou, contatos que serão decisivos em sua poética.
Faz sua segunda viagem à Inglaterra para tentar em vão recuperar o amor de Annie, o
rompimento é definitivo. De 1907 a 1911, o poeta se instala em Montmartre em seu
primeiro domicílio próprio e conhece Marie Laurencin, uma pintora, com a qual terá um
relacionamento conturbado até meados de 1912. Nesse período, colabora em vários
periódicos, tem uma intensa atividade literária e jornalística. Em 1909, instala-se em
Auteuil, ficando assim próximo ao domicílio de sua amada, Marie. Outro acontecimento
importante na vida do poeta, é a sua prisão em Santé por seis dias, em 1911, quando é
acusado injustamente de ter roubado a Joconda do Louvre, fato que lhe causa bastante
angústia e inspira o poema “À la Santé”.
Em 1910, Manuel Bandeira participa de um concurso de poesia da Academia
Brasileira de Letras e vence, mas não recebe o prêmio de 500mil réis, como determinado.
Em 1912, o poeta escreve seus primeiros versos livres, sob influência de Apollinaire,
Charles Cros, Mac-Fionna Leod. Nesse mesmo ano, Apollinaire funda a revista Les Soirées
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de Paris, com André Billy, André Salmon, André Tudesq e René Dalize. Mais um ano de
intensa atividade literária, com uma nova série de contos no Paris-Journal, “Merlin et la
vieille femme” no Les Rubriques nouvelles, e tantos outros poemas que se sucedem.Mais
uma ruptura amorosa na vida do poeta. Após uma cena um tanto quanto violenta, Marie o
deixa, mantendo um estado que durou dois meses.
Em 1913, Manuel Bandeira aconselhado a procurar tratamento na Europa. Viaja em
junho desse ano, apesar de sua situação financeira e vai para o sanatório de Cladavel, na
Suíça. Os quinze meses de Cladavel são decisivos para a saúde do poeta, que também
conhece Paul Eugène Grindel, que se torna um grande poeta da literatura francesa e
reaprende o alemão estudado nos tempos de colégio. No mesmo ano, Apollinaire publica
Alcools, com poemas escritos no período de quinze anos e compõe seu primeiro “poème-
conversation”, “Les fenêtres”. Também publica o manifesto L’Antitradition futuriste, torna-
se o anunciador do Cubismo e se afasta cada vez mais das antigas formas.
No mesmo período, Bandeira pensa pela primeira vez em publicar um livro,
chegando a organizá-lo sob o título de Poemetos Melancólicos. Irá enviá-lo a Eugênio
Castro que está em Coimbra, do qual não recebe sequer resposta. Ao deixar o sanatório em
outubro de 1914, devido ao início da Primeira Guerra Mundial, esquece os originais do
livro que jamais conseguirá recuperar na íntegra. Em 1915, Apollinaire parte para a Guerra,
embevece-se com a beleza de tal combate, quiçá uma visão poética, e mesmo em meio a
esse cenário caótico, não cessa de escrever seus poemas. É ferido em 1916, no momento em
que lhe concedem a nacionalidade francesa, e volta para casa devido a um grave ferimento,
sendo homenageado como “poète-héros”.
No momento em que Apollinaire volta para casa, Bandeira vivencia uma das
primeiras perdas de sua vida, sua mãe, Francelina Ribeiro de Souza Bandeira. No ano
seguinte, em 1917, Bandeira reúne poemas que havia escrito nos últimos dez anos e publica
sob o título de A cinza das horas, em uma tiragem de 200 exemplares, custeados pelo
próprio autor. Apollinaire produz a peça Les Mamelles de Tirésias, fundamentada em um
drama surrealista, sendo bastante criticada pelo público. Faz publicar em 1918, seis
pequenos poemas intitulados Vitam impedere amori, em homenagem à Marie Laurencin e
também sua conferência sobre o Esprit Nouveau. Nesse mesmo ano, sai Calligrammes e no
dia 2 de maio casa-se com Jaqueline Kolb, com quem permanecerá pouquíssimo tempo,
17
posto que em novembro adoece vítima da gripe espanhola e morre no dia 9, em Paris, aos
38 anos e, até o fim, em plena atividade literária.
Bandeira, ainda vive por mais 50 anos após a morte de Guillaume Apollinaire, tendo
no mesmo ano da perda do poeta francês, a de sua irmã Maria Cândia de Souza Bandeira,
que foi para ele uma enfermeira extremamente afetuosa.
Em 1919, publica Carnaval que, com o primeiro livro, compõe o período pré-
modernista de Bandeira, poemas que seguem uma linhagem ainda parnasiano-simbolista,
mas com inovações, elogiado por João Ribeiro e já com laivos decisivos para os
precursores do Modernismo.
Como as mortes são uma constante na vida e na obra do poeta, é importante
acrescentar que antes de seu terceiro livro, presencia mais uma perda, a de seu pai, Manuel
Carneiro de Souza Bandeira, em 1920. O poeta nesse momento vê-se sozinho, a saúde
debilitada, em situação financeira crítica e sem condições para trabalhar como outras
pessoas. Após a morte do pai, antigo engenheiro do Ministério de Viação e Obras Públicas,
recebe uma pensão mensal, na condição de “filho maior inválido”. Ao pagar o aluguel,
sobra-lhe pouco dinheiro para suas despesas, tendo que complementar o orçamento com
trabalhos na imprensa e com traduções. Diante de tal situação, Bandeira em carta de 1926, a
Carlos Drummond de Andrade, revela ao amigo: “Ando numa miséria tão safada que
preciso defender os tostões para comer!”
Em 1922, Manuel Bandeira não participa da Semana de Arte Moderna, pois afirma
que deve muito aos parnasianos (tradição) para ridicularizá-los fortuitamente, mas tem seu
poema “Os Sapos”, de Carnaval, declamado no evento por Ronald de Carvalho. Nesse
mesmo ano, morre seu irmão, Antônio Ribeiro de Souza Bandeira, apenas dois anos depois
da morte de seu pai.
Até 1930, antes da publicação de Libertinagem, custeada ainda pelo próprio autor,
participa de muitos eventos e atividades que colaboram para o seu desenvolvimento no viés
modernista. Então, Bandeira com um de seus versos, marca a decisiva adesão ao
movimento “Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.
Em 1935, Manuel Bandeira é nomeado, pelo Ministro Gustavo Capanema, inspetor
de ensino secundário, tendo aos 49 anos, a primeira atividade fixa remunerada. Após três
anos, torna-se professor de literatura geral do Colégio Pedro II, e em 1943, abandona tal
18
atividade para assumir a cadeira de literatura hispano-americana na Faculdade Nacional de
Filosofia.
No ano de 1936, realizam-se grandes comemorações que marcam os cinqüenta anos
do poeta, dentre as quais a publicação de Homenagem a Manuel Bandeira. Nessa obra os
participantes chegam a trinta e três, entre os mais importantes escritores brasileiros, com
poemas, estudos críticos e comentários. No mesmo ano publica Estrela da manhã.
Mas é somente em 1937 que recebe o primeiro retorno financeiro considerável com
sua poesia, um prêmio concedido pela Sociedade Filipe de Oliveira.
Em 1940, é eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a vaga que era de
Luís Guimarães Filho. Publica Poesias Completas, sendo aí inserida a obra Lira dos
Cinqüent’Anos, custeada também pelo autor.
Na seqüência, publica Belo Belo em 1948, Mafuá do Malungo em 1949, Opus 10 em
1952, Estrada da Tarde em 1958 e Estrela da Vida Interia em 1966.
É importante salientar, que nesses anos Bandeira escreve prosa e crítica literária, não
apenas poesia, e traduz muitos textos, como em 1956 Macbeth, de Shakespeare, em 1961
Mereille, de Fréderic Mistral, entre outros.
Em 1967, um ano antes de sua morte, tendo a saúde se agravado, muda-se para o
apartamento de Maria de Lourdes Heitor de Souza, sua companheira dos últimos anos.
Em 1968, aos 82 anos, morre no Hospital Samaritano, em Botafogo, sendo sepultado
no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no cemitério São João Batista.
É interessante destacar, após finalizarmos a biografia dos poetas, que ambos
participam de uma evolução literária semelhante, obviamente cada um a sua maneira,
respeitando as características próprias da literatura de seu país. Eles partem de uma poesia
com traços notadamente parnasiano-simbolistas e adentram decisivamente na nova
tendência vanguardista no caso de Apollinaire, e no Modernismo, no caso de Bandeira que,
na expressão de Mário de Andrade, foi considerado o São João Batista do movimento.
Isso posto, partimos para a análise das obras aqui estudadas, tanto no que concerne a
sua contribuição para o desenvolvimento em termos de modernidade poética, quanto a sua
herança característica de um começo de século que denuncia uma certa indefinição literária.
Por isso, é importante se indagar a respeito da situação da literatura brasileira no
momento em que Bandeira publica o livro de 1917. Prevalece um contexto de indefinição,
19
mas com alguns traços que já denunciam um momento de transição, que será efetivamente
decisivo dentro de alguns anos. Como Américo Facó observa, o primeiro livro de Bandeira
apresenta marcas inspiradas em “escolas”, o que significa para a época características de
uma poesia elevada e de “bom gosto”. O crítico também nota que o poeta estreante
apresenta sinais de talento e de erudição, denunciando o domínio das técnicas formais do
fazer literário, confirmando a relação com notáveis autores da língua nacional e estrangeira,
com a tradição. Diante disso, observa-se que não existe um momento literário definido,
sendo o poeta exemplo dessa atmosfera literária incerta.
Vale acrescentar que tão somente dez anos, separam Bandeira dos últimos romances
de Machado de Assis, o Canaã de Graça Aranha e Os Sertões de Euclides da Cunha. Sem
mencionar Coelho Neto, Rui Barbosa e Olavo Bilac que estavam em plena atividade
literária. Mas devemos salientar que, se o contexto mostra traços notadamente
representativos da tradição, a partir de 1915 já temos obras que despontam como
denunciativas de uma nova ordem, a ver: O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto, em 1916, no ano subseqüente, Há uma gota de sangue em cada poema de Mario
de Andrade e Memórias sentimentais de João Miramar, que começa a ser escrito por
Oswald de Andrade.
O livro de estréia, aqui tomado como objeto de estudo, ainda que tenha marcas
simbolistas e decadentistas, como assim a crítica observa, não é, em hipótese alguma,
totalmente voltado para uma estética da rebeldia, nascida com o Romantismo. Embora o
artista de fins do século XIX e início do século XX expresse nitidamente seu menosprezo
pelo mundo da Belle Époque, Manuel Bandeira oscila nesses dois âmbitos, a tradição e a
inovação, visto ter a presença de tonalidades um tanto quanto formais caras ao
Parnasianismo na fatura de A cinza das horas, sem considerar ainda os outros dois livros de
sua fase pré-modernista.
Mas é importante ressaltar, que se Bandeira apresenta-se dividido entre a tradição e a
modernidade, é porque percebe que ficaria muito distante da atmosfera cultural brasileira, o
que não traduz um desconhecimento do poeta em relação a aspectos renovadores da
linguagem e da literatura. Muito pelo contrário, com esse livro de estréia, o poeta visa
apenas a conquista de um espaço literário, fato que justifica o seu caminho na mesma
direção da atmosfera que o circunda. Essa consciência além daquela restrita ao universo
20
cultural do período em questão, mesmo que não transposta totalmente ou em ínfimos
aspectos para sua poética, é percebida na citação de Paul Éluard, em uma entrevista ao
Jornal de Letras, de 1951, retirada da dissertação de mestrado de Martins (1994, p.78-79):
conheci-o em Davos, na Suíça. Esse amigo teve uma
influência decisiva na minha poesia. Foi ele quem me abriu os
horizontes do que já se tinha feito na França e no mundo. Esse
meu amigo é brasileiro e chama-se Manuel Bandeira. Ainda
me lembro de como Bandeira brigava comigo, achando um
absurdo que eu, sendo francês, não conhecesse Rimbaud.
Começou a me emprestar livros e falar de poesia moderna,
coisa que eu desconhecia por completo. Foi então que tomei
contato com Rimbaud, Apollinaire e mesmo Baudelaire cujo
grande valor ainda não me havia tocado. Bandeira não teve,
apenas influência sobre mim. A poesia que cheguei a fazer
depois saiu das longas conversas que tivemos então. Saiu
daquela teimosa em me dar a conhecer os grandes poetas da
minha própria língua. Eu ficava espantado com tamanha
cultura do Bandeira e ao mesmo tempo sentia-me
envergonhado.
Além dessa observação, é importante salientar que a obra A cinza das horas é
composta por poemas de épocas totalmente disparatadas, de um período que abarca dez
anos, ou seja, mesmo apresentando os poemas datados de Cladavel, nos anos de 1913 1914,
com uma visão menos conservadora e mais rebelde, há outros que estão completamente
imerso em condutas formais da época.
É a mesma atmosfera de indefinição que encontramos em Alcools, posto que essa
obra data de um período que não apresenta nenhum princípio de ordem, no que tange à
literatura. No século XX francês, não podemos falar em “escolas”, ou em tendências
possíveis caracterizadas por palavras abstratas, como: Classicisme, Romantisme,
Naturalisme, Symbolisme. Agora não há mais escolas, ou espíritos em consonância. Há
21
apenas poetas que observam ser necessário se agrupar em pequenas igrejas ou fazer
manifestos, os mais disparatados possíveis. Por isso, devemos considerar a questão de
Simon (1959, p.6) e sua resposta:
et à quel groupe rattacher Valéry et Claudel, Gide et Proust,
Moriac e Malraux? Quant à l’étiquette, apparemment comode,
de l’Existentialisme, elle accroît la confusion propre à un
processus littéraire de toute l’indétermination d’un concept
philosophique approximativement employé.
Por isso, observamos Alcools como palco de todo esse disparate, ainda mais se
considerarmos que está no início do século XX, em 1913, muito mais em consonância com
o século anterior do que com o vindouro, que está ainda se firmando. O poeta mistura
poemas dos mais tradicionais aos mais audaciosos em termos de modernidade. Essa mistura
clássico/moderno pode ser exemplificada em “Larron” ou “Pont Mirabeau”, que para a
crítica mostrava Apollinaire como “poète de la tradition” e como “poète de la inovation”
com o poema da mesma coletânea, “Zone”. Essa crítica não se deu conta de que tais
aspectos para Apollinaire são indissociáveis, haja vista que ele só será adepto da invenção
na medida em que essa for tributária da tradição. É o que reitera em Méditations
Ésthétiques:
on ne peut pas transporter partout avec soi le cadavre de son
père. On l’abandonne en compagnie des autres morts. Et l’on
s’em souvient, on le regrette, on en parle avec admiration. Et
si l’o devient père, il ne faut pas s’attendre à ce qu’un de nos
enfants veuille se doubler pour la vie de notre cadavre. Mais
nos pieds ne se détachent qu’en vain du sol qui contient les
morts.(Apollinaire Apud Décaudin, 1993, p.127)
22
É uma excelente definição da modernidade, pois o poeta não deve se prender ao
passado (le cadavre de son père), pois corre o risco de mergulhar no academicismo, mas ao
mesmo tempo, não pode descartar um passado que o construiu.
Isso só reitera as marcas de modernidade nas obras aqui estudadas, posto que esse
amálgama tradicional/moderno confirma a importância de Alcools e de A cinza das horas
no desenvolvimento das Vanguardas Francesas e do Modernismo Brasileiro, mesmo que a
primeira esteja bem mais avançada em termos de modernidade poética.
Em virtude disso, é mister apontar os traços que fazem dessas obras, não meros
livros sem importância para a tradição literária, sobretudo no que tange à modernidade
poética, mas obras que contrariam ou anulam aquilo que críticos chegaram a mencionar,
Alcools como uma “boutique de broncateur” e A cinza das horas como um livro
característico da imaturidade literária do poeta.
Comecemos por A cinza das horas, onde são visíveis os primeiros “sapos” que
prepararão e anunciarão o Modernismo. Livro com cinqüenta poemas, dentre os quais
muitos podem ser associados ao Penumbrismo ou ao Crepucolarismo, tendência poética
presente em autores europeus muito caros a Manuel Bandeira. É importante ressaltar, que
tivemos no Brasil alguns poetas penumbristas, sem um grupo propriamente dito, mas que
seguiam o mesmo viés que os poetas europeus: temas intimistas, quotidiano, melancolia,
gosto pela penumbra e pelos meios-tons, ritmo solto e fluido que abrirá as portas para o
ritmo inovador do verso livre modernista.
Sendo assim, observamos que a maioria dos poemas de A cinza das horas, segundo
Lopez (1987, p.11), segue a tendência crepuscular, marcada pelos efeitos de atenuação e
pelo tom melancólico, além da predominância da regularidade de composição, e de traços
anunciadores do Modernismo, seja no ritmo (deslocamentos de acento, rimas toantes,
tensão rítmica), seja na temática (ironia, metalinguagem, aceitação e transfiguração do
quotidiano). Como exemplo dessa observação de Lopez, A cinza das horas é marcada por
elementos decadentistas e melancólicos, tanto na presença de atmosferas crepusculares
quanto em um léxico que denuncia tal tendência, a ver: névoa, crepuscular, luar, cinza,
moribundo, tédio, desalento, desencanto, gemer, etc.
Outro exemplo que anuncia o Modernismo, é a presença na obra, do “corvo”, ave
prenunciadora da condição moderna do poeta e da poesia na civilização industrial. Essa ave
23
apresentaria as mesmas qualidades que os poetas “malditos”, cantores do mal, possuíam.
Tal recorrência motívica vai aparecer transfigurada no Modernismo Brasileiro, no anjo
torto drummondiano, que condena o poeta a ser gauche na vida. Observamos que o motivo
do “corvo” aparece mais de uma vez em A cinza das horas, mas a título de exemplificação,
apontamos apenas a recorrência no poema “Ruço”, marcado pela atmosfera das lembranças
infantis e pelo mau destino:
O vento do largo da praia,
O meu vestidinho de saia,
Aquele corvo, o vôo torvo,
O meu destino aquele corvo!
(“Ruço”)
É o que observamos, sobretudo, em Alcools, posto que já na ausência de pontuação,
sem a presença de qualquer sinal, a obra denuncia um certo tipo de inovação poética, ou
seja, um ritmo próprio, não mais aquele direcionado por regras de versificação e
metrificação ou de ordenação de uma gramática consensual. Sabemos que ao término da
obra o poeta descontente, suprime toda a pontuação, o que não é prática apenas a partir
dessa obra. Então, Apollinaire afirma que a pontuação não é essencial em uma obra, a sua
associação ao ritmo e à medida do verso está na lógica mesma da escrita e da leitura.
Além da ausência de pontuação, observamos que Alcools segue as mesmas
características crepusculares que anunciarão as Vanguardas, a atenuação da temática, os
temas não são “nobres” como antes, tal tendência passa aos “banais”, indo ao encontro da
temática do cotidiano freqüente na poesia modernista, como em “À la Santé”, poema que
tem como tema, seis dias de prisão em Santé, ambiente nada poético e esmerado. Também
nesse mesmo poema, observamos a estética da atenuação (aceitação) do mau destino sem
queixa nem revolta, a atenuação psicológica, languidez e passividade, estrofação irregular e
enjambements, que tornam o ritmo do poema mais solto e o aproximam da prosa, o que
certamente antecipa muitas características do modernismo, a constatar:
24
IV
Que je m’ennuie entre ces murs tout nus
Et peints de couleurs pâles
Une mouche sur le papier à pas menus
Parcourt mes lignes inégales
V
Que lentement passent les heures
Comme passe un enterrement
Tu pleureras l’heure où tu pleures
Qui passera trop vitement
Comme passe toutes les heures
(“À la Santé”)
Outro exemplo que reforça a importância de tal obra para o período literário em
questão, embora tal mal-compreendida na época, é a questão do “cubismo na literatura”, o
que é tomado aqui de forma metafórica, posto que tal tendência existe apenas entre os
pintores. Mas alguns poetas participaram da mesma sensibilidade, dentre eles, Apollinaire.
O que eles têm em comum é o princípio de admitir que a arte não tem a função de
representar o mundo, mas sim de criá-lo. Então, acreditam na construção de um outro
mundo, fora dos paradigmas vigentes.
É nesse cenário, que se desenvolve a poesia de Apollinaire, apresentando uma nova
forma, um novo mundo, aquele da justaposição de impressões, a multiplicação de ações, a
decupagem, em que se obtém a unidade apenas pela intenção psicológica. Vários poemas
dessa coletânea seguem tal tendência, mas citamos “La Chanson du Mal Aimé”, que tem
dois de seus versos emprestados de um outro poema, datado de 1901, dedicado à Linda
Molina da Silva.
Portanto, podemos dizer que o primeiro capítulo só corrobora a idéia de que tais
obras e autores, mesmo líricos no alvorecer do século XX e tão execrados pela crítica da
época, foram fundamentais para o desenvolvimento das tendências renovadoras da
linguagem e da literatura.
25
CAPÍTULO II
26
2. AINDA QUE HAJA UMA INFLUÊNCIA CONFESSA
Partimos, agora, para o estudo temático-comparativo, visto que nesta etapa
estudaremos as similitudes e as diferenças no que concerne ao tema central do “tempo não-
reconciliado” e outras contíguas recorrências temáticas. No entanto, devemos lembrar que,
para o desenvolvimento de tal temática, não partimos unicamente da questão da influência
confessa de Apollinaire em Bandeira, mesmo que a tenhamos constatado em muitas obras
críticas que apontam o fato de o poeta brasileiro ter sido um leitor voraz dos poetas
franceses, apresentando dados ainda mais precisos de tal relação, como na afirmação de que
o poema “Solau do Desamado” foi inspirado em “La Chanson du Mal Aimé”.
Gostaríamos de salientar que tal comparação vai além das fontes e influências
intertextuais, considerando somente os traços biográficos dos autores estudados na medida
em que esses esclareçam questões inexplicáveis no âmbito literário, o que do contrário
empobreceria em demasia o nosso projeto e acrescentaria muito pouco ao desenvolvimento
da temática. Apesar de sabermos que tal estudo é do domínio da Literatura Comparada, ou
seja, da verificação de razões das semelhanças apontadas, interligadas por uma
problemática de recepção e influência (Cunha, 2000, p. 13), não partimos apenas desse
pressuposto, pois o que dá sustentação a nossa pesquisa são os pontos de contato temático
que observamos na obra dos autores trabalhados, apontando para as estruturas e as funções
comuns de suas poéticas e, ainda, a importância de suas diferenças. Nesse sentido,
tomamos como tema central “o tempo não-reconciliado” e consideramos os subtemas que o
circundam: o cenário noturno, a efemeridade do amor, a inexorabilidade do tempo, a
mulher longínqua, o Ubi Sunt? e a melancolia, sentimento sustentador de todos os motivos
analisados.
Vale acrescentar ainda, a análise da figura do mal-amado, que norteará todos as
tópicas destacadas, pois esse apresenta toda uma história de sentimentos e situações
perdidas e de uma má sina constante, característica fundamental de nossa temática que
exemplificaremos no estudo dos poemas. Assim, faremos mais do que uma simples
27
comparação, que privilegiaria a história literária ou a biografia dos autores - trabalharemos
com a crítica temática, tão cara a Jean Pierre Richard, que propõe, segundo Cunha (2000, p.
21-22),
o envolvimento e o compromisso com a obra e, por meio de
uma leitura criteriosa dessa obra, é que se tenta conhecer
melhor o homem, o que traduziria uma certa intimidade com a
biografia e o psiquismo do(s) autor(es). A crítica temática
defende a reflexão acerca da obra e do escritor por inteiro, em
forma de uma analogia, correspondendo a um desvelamento e
a uma fruição de signos essenciais e individualizados,
portadores de formas íntimas da mundividência do
autor/poeta.
Nesse aspecto, analisamos as correlações temáticas existentes em “Volta” e
“Rosemonde”, “La Chanson du Mal-Aimé” e “Solau do Desamado”, “Automme Malade” e
“Crepúsculo de Outono”, “Le Pont Mirabeau” e “O anel de vidro”, “Crépuscule” e “Ao
Creúsculo”, “Madrugada” e “Le vent nocturne”. De tais poemas procuramos extrair os
elementos formadores de um sistema de signos a ser decifrado, o que nos permite a
exploração de uma outra lógica na poética de ambos os autores. Erradicando com a poética
do mundo objetivo, e remetendo-se à esfera do devaneio, da imaginação, apontando
características de uma determinada época, cultura, humanidade, representadas em seus
poemas, mas que reitera todo um conjunto de apropriações motívicas. Essa perspectiva de
cunho maravilhoso é estudada em alguns poemas analisados, o mundo onírico, pois é
somente no cosmo do devaneio que o mal-amado pode apaziguar a dor que sente em função
do mal de amar e de sua própria condição desditosa de ser.
Tal consideração apresenta um leque do qual podemos nos valer para analisar a
poética de Bandeira e de Apollinaire, pois a crítica temática abrange os domínios da
psicologia, da antropologia, das motivações inconscientes, dos símbolos e mitos, para uma
melhor interpretação e compreensão dos valores imaginários do mundo fantástico, o que na
poesia se apresenta sob forma de imagens. Logo, utilizamo-nos de todos os domínios
citados para a realização da comparação entre as obras Alcools (1913) e A Cinza das Horas
28
(1917), privilegiando o aspecto da tematização e explicitando-o por meio da análise dos
poemas.
Longe de um comparativismo tradicional puramente de influências, tivemos por
objetivo o trabalho com diferentes disciplinas - história, teoria e crítica da literatura, o que
nos possibilita um estudo mais amplo e significativo, tomando o devido cuidado para não
ultrapassar os limites do corpus literário, considerando influências ou aspectos que
comprometam a perspectiva da poeticidade das obras. Nesse caso, a aproximação da
poética apollinairiana e bandeiriana dá-se a partir do âmbito da tematização, contemplando
todas as disciplinas citadas, fazendo uma certa junção entre o mundo real e o imaginário
dos autores, e ainda possibilitando diferentes leituras por parte do leitor:
tal proposta é enriquecida pela definição, que a partir de uma
atitude extremamente lúdica, esboça a noção de tema na
atualidade, resguardando todos os elementos que se embricam
na construção dessa visão: (o tema) ‘Il est donc le point
d’affleurement d’un ensemble de relations à la fois construites
par le texte et déduites par son lecteur, en collaborations”
(Hamon, Ano: 496).
A coerência do tema é, portanto, fruto da ordenação de diversos valores e conteúdos
que permeiam o texto e revelam, conseqüentemente, uma visão de mundo. O tema mistura
ingredientes do “vivido” e do imaginário do autor, invocando assim, a partir de quem o
resgata, uma conivência e uma intimidade, uma “colaboração” com o corpo poético
(Cunha, 2000, p. 23)
Ainda em relação ao trabalho comparativo por meio da tematização, devemos
enfatizar a questão para a qual Leyla Perrone Moisés nos chama a atenção: trata-se dos dois
aspectos existentes na noção de tema - a valorização de imagens recorrentes e obsessivas,
distanciadas do todo da obra, que traz o risco de limitação da análise, excluindo dessa
forma considerações relevantes; e o aspecto com o qual trabalhamos, partindo da pesquisa
no contexto global da obra, e das recorrências motívicas na tradição literária, estabelecendo
uma relação entre as figuras temáticas e a expressão poética.
29
Nesse viés, partimos de uma questão de suma importância para o desenvolvimento de
nosso estudo: por que comparar Apollinaire e Bandeira? Para respondermos a tal pergunta,
valemo-nos de dois trabalhos relevantes para o nosso projeto: a dissertação de mestrado de
Elisabete Maria Gaban Passalacqua, Apollinaire, Bandeira e a Modernidade, na qual a
temática estudada é a questão da Modernidade na poética apollinairiana e bandeiriana, e o
livro da professora Silvana Amorim, de Araraquara, intitulado Guillaume Apollinaire:
fábula e lírica, além de outras referências bibliográficas pela autora sugerida. Embora os
dois trabalhos comparativos tenham se desenvolvido praticamente no mesmo período,
tomaram caminhos opostos, mas complementares: a nossa pesquisa se ateve à primeira fase
de ambos os autores, a parnasiano-simbolista de seus primeiros livros, enquanto
Passalacqua estudou os aspectos da modernidade em toda a obra dos poetas, o que atesta a
“originalidade” de nosso projeto.
Dessa dissertação, retiramos apenas os dados importantes para a nossa pesquisa,
como os fatos que dão maior sustentação a tal comparação, tais como a circunstância que
fez com que Manuel Bandeira fosse leitor de Apollinaire e de outros poetas franceses (os
dois são contemporâneos, com a diferença de apenas seis anos), o fato de ambos terem tido
uma formação parnasiano-simbolista, a presença de características do Romantismo em suas
obras, e ainda o aspecto da frustração, seja em Apollinaire pelos amores não
correspondidos, ou na constante presença da morte em Bandeira. Esse aspecto foi por nós
trabalhado de forma diferenciada, pois consideramos que ambos os poetas sofreram do mal
de amar. Pode-se dizer que, seja na tuberculose ou não, notamos a presença do mal de amar
na poética bandeiriana, pois, segundo Rosenbaum (1993, p. 181 e 182), “o tratamento que
Bandeira atribuía às suas relações amorosas freqüentemente revela frustrações, platonismo,
abandono, insatisfação, perda, traição. A distância, já se viu, impera muitas vezes, entre o
poeta e a amada”.
Tal proposta é enriquecida ainda pelo livro de Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha,
que se originou da tese de doutorado defendida em 1994 junto ao Departamento de Letras
Modernas de FFLCH/USP, sob a orientação da professora doutora Maria Cecília de Moraes
Pinto, com o título A poética da natureza na obra de Éluard e Bandeira. Deste livro
extraímos também a informação de que Bandeira foi leitor de poetas franceses, o que nos
possibilita a reflexão sobre possíveis pontos de contato temáticos presentes na obra de
30
escritores de origens diferentes. Além do fato de tal livro ter suscitado a proposta de
trabalhar com a crítica temática, que nos proporciona uma maior fundamentação de nossa
reflexão.
A propósito das relações poéticas enriquecidas com a leitura dos dois trabalhos e de
tantas outras obras, podemos responder à questão do por quê comparar Bandeira e
Apollinaire. Partimos então da observação do percurso pessoal de ambos, com vistas à
aproximação temática de suas obras, e exploramos as primeiras produções poéticas de
autores que são contemporâneos, de nacionalidades e culturas distintas, mas que
apresentam muitas semelhanças no que concerne à temática elegíaco-amorosa decorrente
de um tempo não-reconciliado, visto que sofreram do mal de amar, embora não façamos
uma comparação de cunho biográfico.
Pelo fato de trabalharmos com a Literatura Comparada, consideramos necessário
fazer um breve histórico de tal linha de pesquisa, o que nos remete ao momento em que
surgiram as literaturas grega e romana, já que aí foram comparados os seus méritos. Um
outro momento decisivo dessa história se deu no século XIX, quando há a consideração da
Literatura Comparada como método e como ciência, em que comparar e defrontar seria
uma maneira de se comprovar uma conjetura.
Outro viés observado nesse século é a questão da visão cosmopolita que estimulou
viagens e encontros entre grandes pensadores e intelectuais da época, a ver, Mme de Staël,
Goethe e Sainte Beuve, ávidos pela necessidade do contato com outras literaturas.
Em meio a essa visada cosmopolita, a partir de 1828, a disciplina Littérature
étrangère comparée foi primeiramente lecionada nas universidades francesas, sendo a
“influência” o ponto de partida e a base teórica para estudos comparatistas até a primeira
metade de século XX, passando a ser profundamente criticada a partir dos anos 50.
Sobretudo pelo momento americano, como denomina Cláudio Guillén, propondo um
modelo supranacional ligado às questões mais gerais da literatura, buscando uma estreita
relação entre história, teoria e crítica, o que atesta a derrocada do factualismo positivista da
Literatura Comparada tradicional. É importante ressaltar, que tal literatura calcada na causa
e no efeito, não foi criticada apenas pelos americanos, mas por um teórico francês, René
Étiemble, que colaborou sobremaneira para o desenvolvimento da história dessa disciplina,
31
embora tenha suscitado muitas discussões e críticas, por se apoiar exclusivamente em um
material norte-americano e europeu.
A partir de então, a literatura comparada enfrenta novos questionamentos, devido aos
estudos de Adrian Marino, que não concorda com os princípios epistemológicos da escola
francesa e ainda a perspectiva crítica dos americanos. Percebe-se, dessa forma, que Marino
propõe considerar a literatura comparada sob uma perspectiva teórica, transformando as
relações particulares até então consideradas em relações universais.
Vale, portanto, lembrar que no final do século XX, segundo Sandra Nitrini (1997, p.
60), observa-se que há a inauguração de uma nova fase na história da Literatura
Comparada, já que ela continua em crise no Ocidente e já que crescem os estudos
diferenciados nesta área pelos países do Terceiro Mundo e do Leste, colocando em cheque
o cânone dos escritores europeus. Para isso, esses estudos atestam para a importância da
transformação criadora do “modelo emprestado”. Tal modelo deve adequar-se às tradições
e particularidades históricas da literatura que sofre a influência externa.
Ainda abordando a questão da evolução do comparativismo, notamos que, depois de
quase dois séculos de estudos nessa área, passa a haver a valorização das relações no texto
e entre os textos, dando relevância à colaboração de Julia Kristeva que, por meio dos
estudos sobre Tynianov e Bakhtin, constrói a noção de “intertextualidade”, que se definiria
como processo de produtividade do texto literário, o que para ela existe porque “todo texto
é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se
instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla (apud
Carvalhal, 1986, p. 50).
Com essa proposta, observamos que a intertextualidade, presente e freqüente em
todos os textos contraria um simplório e puro estudo de comparações.
Considerando esse conciso histórico a respeito da literatura comparada, remetemo-
nos ao nosso corpus de estudo, ou seja, o paralelo entre os poemas de Bandeira e os de
Apollinaire, objetivando destacar características ou pontos de contato temáticos em suas
poéticas, e de ambos ao longo da tradição literária, ou melhor, como a obra brasileira A
cinza das horas nos obriga a releitura de todo um passado literário, no qual está incluído o
poeta francês:
32
como uma obra forte nos obriga a uma releitura de todo
passado literário, onde passaremos a encontrar não as fontes
daquele novo autor, mas obras que se tornam legíveis e
interessantes porque existe esse autor moderno; obras que
passam a ser, então “precursoras” dessa nova obra. Diz ele: O
fato é que cada escritor cria seus precursores (Moisés, 1990,
p.95)
Nessa perspectiva, diante as teorias apresentadas, sucintamente, seguimos a da
intertextualidade de Julia Kristeva, que de forma mais coerente, a nosso entender, garante o
diálogo entre as duas obras estudadas, que embora criticada pelo teórico espanhol Cláudio
Guillén, esse reconhece o benefício considerável da teoria para o comparatismo. Pois como
atesta Sandra Nitrini (2000, p.166), sobre a observação que Guillén faz a respeito da teoria
de Kristeva, “Seria mais uma teoria que nos abre o caminho para a leitura, mas que não
oferece diretamente caminho. Em outras palavras, não resolve o método da literatura
comparada” - o comparatista exagera ao fazer semelhante afirmação, além de depauperar a
teoria da intertextualidade, baseando-se no comentário de duas citações, retiradas de seus
contextos, e sem maiores explicações.
É importante destacar, que tal análise segue o viés das inter-relações, sem o confronto
hierárquico valorativo da literatura comparada tradicional. Por isso, devemos mencionar,
que embora haja a influência confessa por parte de Bandeira, notadamente nos poemas
“Chanson du Mal Aimé” e “Solau do Desamado”, não podemos, de maneira alguma, fazer
uma simples leitura de recepção passiva do poeta brasileiro. Isso se dá, ao contrário, de
maneira crítica e dinâmica, fazendo da obra de Bandeira “a transformação do velho em
novo, do alheio em próprio, do déjà vu em original. Por reconhecer que a originalidade
nunca é mais do que uma questão de arranjo” (Moisés, 1990, p. 98-99).
Partindo da citação de Kristeva, de que “todo texto se constrói como um mosaico de
citações, todo texto é absorção e transformação de textos” (Moisés, 1990, p.94), a obra A
cinza das horas, apesar de muitos contatos com Alcools, apresenta a partir da “fonte” uma
configuração própria, sem a qualificação de superioridade ou inferioridade, enfatizando a
33
natureza criativa do processo de produção textual, e inserindo-se no conjunto maior do
literário.
Essa natureza criativa permite-nos considerar as “fontes – Apollinaire e seus poemas”
somente para observar de que maneira essas foram assimiladas e transformadas por
Bandeira, diferentemente de uma dependência canônica eurocêntrica. Logo, cabe ressaltar
que nessa leitura, além de considerarmos a teoria da intertextualidade, tomamos para
análise as propostas teóricas do século XX de Bakitin, Tiniánov, Borges e Oswald de
Andrade, que semelhantemente à de Kristeva, privilegiam a busca das diferenças sobre as
analogias, ênfase que caminha para a transformação dos textos.
Diante disso, gostaríamos de corroborar que nosso projeto segue uma leitura oposta
ao comparativismo positivista e factualista, pois se o fosse, reduziríamos a obra do nosso
grande poeta Manuel Bandeira ao simples fato de ter dito que seu poema “Solau do
Desamado” foi inspirado em “La Chanson du Mal Aimé”, o que seria uma grotesca
injustiça para com a literatura brasileira.
Feitas estas considerações de ordem teórico-metodológica, damos continuidade à
pesquisa, partindo para a comparação entre a poética de Bandeira e de Apollinaire,
tomando como tema central “o tempo não-reconciliado”, iniciando com os títulos das obras
estudadas A Cinza das Horas e Alcools, que de forma semelhante apresentam o elemento
fogo, como alimento de suas coletâneas. Logo, notamos que o nome alcools, segundo Jean
(1998, p. 117) “coloca sua poesia sob o signo implícito de Dionísio, Deus do ditirambo, do
vinho, do álcool que transforma o fogo criador de Apolo em bebida que queima e
embriaga”. Com essa citação vimos que o elemento fogo é o combustível da coletânea
nomeada Alcools, visto que é o álcool que transforma o fogo em bebida que queima e
embriaga, direcionando-nos para a temática de nosso projeto, pois essa mudança demonstra
a efemeridade ou a instantaneidade do amor que circunda toda obra.
Por isso, esse fogo nos remete a uma leitura elegíaca da obra, na medida em que a
chama só permanece acesa durante o efeito de embriaguez dos seus alcools, processo que
demonstra toda a esfera fantástica em que o eu lírico mal-amado está inserido,
possibilitando o resgate do amor perdido apenas no campo onírico, mesmo que isso se dê
de forma abrupta, como a chama que se transforma rapidamente em fumaça.
34
O mesmo ocorre com o título A cinza das horas, pois a cinza, resquício do fogo que
em um passado indeterminado queimou, retrata como em Apollinaire, se pensarmos a obra
como um todo, a efemeridade do amor e a sua instantaneidade, e ainda por meio das
“horas” que passaram, a inexorabilidade do tempo, restando apenas a “cinza” e uma dita e
feliz história de amor finda. Ainda, como em Alcools, o mundo fantástico causado pela
embriaguez da bebida, é notado no título de Bandeira, pois o fogo apresentado em A cinza
das horas ultrapassa o mundo real, para se embeber do maravilhoso, objetivando nesse
como do devaneio a recuperação do amor que se esvaeceu com o passar do tempo:
o fogo, que não é somente um elemento constituinte da
realidade terrestre, é uma realidade particular cuja simbologia
se calca em uma análise do imaginário. Condutor de realidades
supra-poéticas que, ultrapassando a experiência científica ou os
árduos e impessoais trabalhos de Física, privilegiam a intuição
pessoal e recuperam a primitiva e original condição de
devaneio, materializa o real imaginário e realiza a síntese
perfeita entre a complexidade da rede simbólica e a
manifestação dela decorrente (Cunha, 2000, p. 127)
Em ambos os títulos observamos que o elemento fogo é representativo da busca pela
recuperação do objeto amado, seja pela cinza, símbolo da imortalidade e eterna presença do
homem, explicitado por Fênix, pássaro mitológico que em si concentra a longevidade e a
ressurreição cíclica e que renasce das cinzas, seja pela bebida (álcool), que se transforma
em fogo criador e possibilita, mesmo que na embriaguez do corpo onírico, o recobrar do
perdido, o amor que nesse momento é elegíaco, por caracterizar apenas uma lembrança
feliz.
Em relação ainda ao referencial teórico explicitado, devemos salientar que a
problemática decorrente da teoria da intertextualidade destacada por Cláudio Guillén, ao
dizer que ela não resolve o método da Literatura Comparada, está presente em qualquer
outra desenvolvida em território nacional ou em outros países.As inúmeras teorias criadas
em épocas diferentes, entrando em consenso ou não, avançando aspectos umas das outras,
ou buscando um discurso próprio, acabam dialogando entre si, e deploravelmente, nessa
35
querela infinita não permitem responder a pergunta que há tempos questiona o verdadeiro
sentido da Literatura Comparada.
Por esse motivo, a resposta a tal pergunta: O que é Literatura Comparada? permanece
sem afirmações categóricas, posto que essa, como afirma Sandra Nitrini ( 2000, pp. 289-
293), acompanha as mudanças habituais da história da literatura, de suas teorias e de seus
países em relação a outros.
A justificativa para tal posicionamento crítico-analítico reside no propósito de
contribuir, em consonância com os objetivos pretendidos no âmbito dos estudos
comparados sob um de seus domínios a “tematologia”, para a aferição de pontos de contato
entre a poética bandeiriana e a apollinairiana.
Para tanto, não podemos deixar de mencionar que tomamos o cuidado para não cair
em uma análise tematológica vazia, aquela que segue uma certa exaustividade
enciclopédica e um certo ostracismo. Assim, observamos que tal isolamento seria
irrealizável, posto que a obra literária não é um fenômeno em si, mas participante de uma
cadeia em que cada anel em consonância forma ao término o conjunto da tradição literária.
É o que Trousson (1965, p. 46-47) esclarece:
mais il convient aussi d’éviter de tomber dans l’erreur de faire
d’une oeuvre um phénomène frappé de “splendide
isolement”; cet insularisme littéraire ne saurait se concevoir
que comme une vue de l’esprit, dénuée de toute réalité, car
l’étude d’une oeuvre en soi ne suffit pas à l’expliquer, ni
même à la comprendre. Imaginons une monographie qui ne
situerait pas l’oeuvre de Hugo dans le contexte intellectuel et
politique du romantisme et ne chercherait pas à savoir ce
qu’elle doit à son siècle et au précédent. Nous suffit-elle? Une
oeuvre fait toujours sur un arrièrre- et plus particulièrment
peut-être lorsqu’elle traite un thème doté de sa tradition
propre dans laquelle l’auteur a choisi de s’inscrire.
Isto posto, é mister discorrer sobre as profícuas controvérsias que a noção de tema
tem sucitado segundo Raymond Trousson. Ele cita uma infinidade de termos empregues à
36
definição de tema em francês, a ver: mithe, thème, motiv, idée, élement, type, figure, ou em
alemão, stoff, fabel, motiv, figur, bild, idee, element.
Essa miscelânea de oposições, como em qualquer outra área, tem o seu aspecto
positivo, mas deixa lacunas para interpretações errôneas e críticas infundadas de polemistas
sobre o verdadeiro papel da crítica temática na atividade comparatista.
Nesse viés, baseado no texto de Philippe Chardin, inserido na obra Compêndio de
Literatura Comparada (2004), organizado por Pierre Brunel e Yves Chevrel, tradução do
original francês intitulado Précis de Littérature Comparé, fizemos uma súmula dos
principais pares antitéticos que variam de crítico para crítico.
Philippe Chardin elenca tais pares privilegiaec ->BDC l30lade.harl:co.
1ent.ada
com o rigor conceitual, chegando a propor a substituição da notória expressão
“Stoffgeschichte” pelo termo “Tematologia”, posto que se trata de um conjunto
inseparável de forma-conteúdo, matéria-modo. Seguindo esse viés, a tematologia
não estaria muito distante do estudo das formas literárias em sentido amplo. Ainda,
incansables variaciones lúdicas sobre una misma sinécdoque:
senos = mujer.
Outra questão importante a ser destacada é o fato de nas modalidades dos estudos
temáticos a idéia de tema estar vinculada à raiz grega do verbo tithemi que significa posar,
seguindo a razão de ser cumulativa de algo vivo, sempre alentada pelo fazer literário. Essa
relação dinâmica da tematologia cairá no que Barthes diz sobre a prática literária que é
produzida “como fios de uma temática centrada na pessoa do autor e assim definida como
estrutura de uma existência”.
Ao considerar essa vinculação da prática literária com uma temática centrada na
pessoa do autor, observamos que tanto na poesia de Bandeira quanto na de Apollinaire há
uma contígua série organizada de obsessões motívicas, em que se destaca a inexorabilidade
do tempo, a efemeridade do amor, o Ubi Sunt?, o noturno, a melancolia, a má sina, a
mulher longínqua, entre outros. Logo,
a vida de um escritor é sua biografia artificialmente recomposta,
inevitavelmente lacunar. Sua existência é uma emergência no
instante: a página que escreve é inseparável do instante que ele
vive, mas também de um passado no qual ele mergulha suas
raízes (Brunel&Pichois&Rousseau, 1990, p. 112)
A obsessão individual de um autor pode ser observada em outros, como no caso de
Bandeira e de Apollinaire, apresentando temas e motivos que se propagam a partir de um
pensamento individual, de um período ou grupo em questão. Dessa forma, essas reiterações
temáticas e motívicas podem ser de cunho social, político, literário ou artístico. Logo, os
temas de uma determinada época podem se disseminar por meio de imagens que estão em
voga ou suceder novamente seguindo o viés da intertextualidade em relação a autores
predecessores, como ressonância da temática eterna, que é o caso de Alcools e de A cinza
das horas, com recorrências do tipo, o tempo, o amor, o Ubi Sunt?, a melancolia, o outono,
o crepúsculo, etc. É o que observamos em toda a história da literatura, temas de tempos
remotos presentes na atualidade em questão, o que Brunel& Pichois& Rousseau (1990,
39
p.114) declaram, “a literatura seria como um palimpsesto raspado sem cessar e reescrito
sem cessar”.
Considerando a ressonância da temática eterna, partimos de alguns universais
temáticos, que recentemente tem sido objeto de estudos de muitos comparatistas, a ver: a
guerra, a cidade e o mar. Com esses universais temáticos, observamos na obra de Pierre
Brunel e Yves Chévrel (2004,p.174-175), uma gama de trabalhos consagrados e recentes que
seguem tal domínio, como o de Charles Dédéyan (Une guerre dans les mal des hommes) –
sobre temas e microtemas do romance de guerra, de Leon Riegel (Guerre et Littérature), de
Julien Hervier (Deux individus contre l’histoire: Drieu la Rochelle, Ernest Jünger)- aborda
problemas fundamentais da temática da guerra e literatura no século XX, entre outros. Nesse
viés, seguindo com tema da cidade, temos uma antologia temática notável feita por Michel
Tibert, que se desenvolve a partir de três articulações: a cidade a contemplar, antes da
revolução industrial do século XVIII, a cidade a conquistar, desde o fim do século XVIII e
cidade a decifrar a partir de 1950. Ainda, sobre a mesma temática um recente estudo de
Roger Chemain dedicado à cidade africana. Outro universal temático apontado é o mar, cujos
estudos contemplam a tese de Monique Brosse (Récit maritime français dans ses relations
avec les littératures anglaise et anglo-americaine), destacando aspectos sociológicos “a vida
cotidiana das tripulações, a opinião perante os dramas do mar...”, psicocríticos “as relações
do homem com o mar e com o barco foram sempre fortemente antropomorfizadas e até
mesmo sexualizadas” e literários, por meio da análise de subgêneros “diário de bordo,
romance histórico-marítimo, contos de folclore, epopéia, poesia, marinhas...”. Também, é
importante ressaltar que o trabalho de Monique Brosse não contempla apenas autores
renomados como Hugo, Byron, Coleridge, Poe, Melville, Loti, mas também um conjunto de
escritores marítimos que “saem do ordinário” como diz em Proust.
Ainda, para erradicar a concepção de que os estudos temáticos acabaram por se
transformar em uma “discipline maudite ou, pire encore, dédaignée”, como cita Trousson,
observamos que muitos trabalhos notáveis seguem ainda tal tendência, como a revista
trimestral Corps écrit que surge a partir de 1982, e que reúne textos de criação literária e de
reflexão crítica segundo o viés da inspiração freqüentemente temática. Sendo assim, a título
de ilustração, citamos os números que abordam, segundo Brunel & Chevrel (2004, p.175-
176), o domínio dos estudos temáticos, a conferir: 4. La Récompense; 6. L’animal
40
fabuleux; 7. Le sommeil; 8. Le nom; 9. La demeure; 11. La mémoire; 12. Le silence; 13.
L’ivresse; 14. La nuit; 16. L’eau; 19. La faute. Também, um outro exemplo, de que tal
domínio continua atuante na atividade comparatista, é a coleção temática de orientação
comparatista das Éditions Bordas, que apresenta ilustres fascículos que abordam temas
como a aventura, o sonho, o tédio, etc. Isso só vem a corroborar a nossa tese de que a
tematologia não está esquecida, além de ter sido responsável, nos últimos anos, com a
mediação de programas temáticos, por uma certa inserção da Literatura Comparada no
ensino secundário.
Nessa perspectiva, baseado nos universais temáticos ou em uma temática eterna,
fizemos um breve levantamento de contíguas recorrências temáticas nos poemas de
Bandeira e de Apollinaire, seguindo a tradição literária que é preservada pela
intertextualidade:
na zona de cooperação social que se institui ao longo do
tempo, a tradição literária funda uma comunidade de autores e
textos num sistema sígnico poético-histórico em constante
elaboração. É pela tradição que se consolidam as convenções
estilísticas, como o uso motívico, determinando uma certa
sensibilité stylistique entre os autores, épocas e nacionalidades
díspares, numa espécie de hybridisme culturel (Rodrigues
Filho, 2001, p.17)
A propósito dessa zona de cooperação, é importante ressaltar as referências
intertextuais nas obras A cinza das horas e Alcools, no tocante a autores, seus motivos e
temas já tradicionais na literatura.
Isso posto, destacamos primeiramente de Manuel Bandeira o poema “A Camões”
que mostra toda a portugalidade presente em sua obra, ou gosto pelos clássicos
portugueses, nascido na infância e retomado por meio do contato com seu professor Silva
Ramos e com seu colega Souza Silveira. Também, outra apropriação observada é a
retomada da tradição medieval e renascentista portuguesas, explicitada pela utilização de
artifícios estilísticos característicos de antigas narrativas compostas em versos e
acompanhadas por músicos, como em “Solau do Desamado”. Além da referência à
41
literatura portuguesa, devemos mencionar que é o próprio Manuel Bandeira quem confessa
a influência de um outro autor, Apollinaire, especificamente do poema “La Chanson du
Mal Aimé”. Eis daí, a temática do desamor, tratada em Camões, retomada, num tom
elegíaco por um processo de recriação por Apollinaire e em seguida por Bandeira, como em
uma cadeia de consonância.
Outra referência intertextual é o poema “A Antônio Nobre”, que reforça o viés
pesaroso da obra estudada, pois se baseia no infortúnio do poeta Antônio Nobre que morreu
com apenas trinta e três anos, mas que não consegue ser maior do que o mau destino do eu
lírico bandeiriano caracterizado em tal poema:
Revejo em teu destino o meu destino
Foste conde aos vinte anos...Eu nem isso...
Eu não terei a glória...nem fui bom.
(“A Antônio Nobre”)
Bandeira retoma por meio do soneto, com uma nota insistente de mal-estar, a
temática da melancolia e da morte recorrentes no poeta simbolista.
Ainda, no poema “Paráfrase de Ronsard” identificamos uma recorrência intertextual
do poeta Ronsard, cuja temática pela qual é conhecido universalmente, é recorrente na
tradição literária, “o desaparecimento das belas neves de antanho – a inexorabilidade do
tempo”, e é retomada por Bandeira, a ver:
Senhora, o tempo foge... o tempo foge...
Com pouco morreremos e amanhã
Já não seremos o que somos hoje...
(“Paráfrase de Ronsard”)
Em “Don Juan” a referência intertextual é explicita, pois parte de uma figura
romanesca, o “Don Juan”, tomado na tradição literária tanto por poetas quanto por
filósofos, como símbolo-chavão de paixões e loucuras humanas. Nessa perspectiva,
observamos que o motivo “desamor” recorrente em A cinza das Horas é exemplificado por
meio do astuto sedutor, o tema Don Juan. É importante salientar, que o tema já decantado e
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cristalizado, como afirma Trousson, tem características próprias, ou transformadas pelo
fazer literário, pois se assim o fosse, correríamos o risco de chegar a uma significação
comum do tema e do motivo em diferentes épocas. Para uma melhor compreensão, é
interessante destacar a observação que Trousson (1965, p.12-13) faz do motivo, apresenta
um conceito mais amplo e do tema segue uma menor generalidade:
qu’est-ce qu’un motif? Choisissons d’appeler ainsi une toile
de fond, un concept large, désignant soit une certaine attitude
– par exemple la révolte – soit une situation de base,
impersonnelle, dont les acteurs n’ont pas encore été
individualisés – par exemple les situations de l’homme entre
deux femmes, de l’opposition entre deux frères, entre un père
et un fils, de la femme abandonné, etc. Nous avons affaire à
des situations déjà délimitées dans leurs lignes essentielles, à
des attitudes déjà définies, à des types même par exemple le
révolté ou le seducteur – mais qui restent à l’état de notions
générales, de concepts: dans ce sens, l’idée de bonheur ou
celle de progrès, la rébellion métaphysique ou l’avarice sont
des motifs.Qu’est-ce qu’un thème? Convenons d’appeler ainsi
l’expression particulière d’un motif, son individualisation ou,
si l’on veut, le résultat du passage du général au particulier.
(Trousson, 1965, p.12-13)
Nesse processo de particularização, vimos o motivo “desamor” da obra estudada se
transformar no tema “Don Juan” que não passa de um representante da figura aqui
trabalhada, praticamente em todos os poemas, o mal-amado. Convém ressaltar, que o
segundo se aproxima do primeiro apenas no que diz respeito ao destino do sedutor,
frustrado e desfeito pelo próprio amor, mas que se distancia na medida em que o mal-
amado não possui e não pratica essa capacidade de sedução, tudo nesse é regido pela força
do mau destino.
É o que vimos em Alcools, um vasto sistema de trocas, como “Zone” datado de 1912
que foi fortemente influenciado pelo poema “Pâques” de Blaise Cendrars. Isso se deu no
43
momento em que Apollinaire acompanha Cendrars recitar seu poema no ateliê de
Delaunay, bastante tocado, escreve “Cri”, que se intitularámais tarde “Zone”. Essa
recorrência intertextual não molda o poema de Apollinaire ao de Cendrars, ao contrário,
malgrado tais semelhanças, a força criadora e transformadora do fazer literário é nítida:
Zone et Pâques entretiennent de fortes ressemblences:
proximité des thèmes, analogies de structures extérieures,
d’agencement mélodique. Toutefois les Pâques se présentent
sous la forme de distiques separés, alors que la démarche est
libre dans Zone qui procède par groupes de longueurs
différentes.
O intertexto é ainda observado em “Cors de Chasse”, cuja constante desamor é
abordada, apresentando a imagem do destino dos amantes fadada ao infortúnio,
essencialmente patético. É na segunda estrofe especificamente que destacamos o intertexto,
a referência ao escritor inglês Thomas de Quincey. O mais curioso é que a própria história
de Apollinaire, o amor por Annie que o fez correr as ruas de Londres a sua procura, remete-
nos às caminhadas pelas ruas de Londres de Quincy, onde conheceu Ann, uma prostituta
que lhe salvou a vida. É nessa atmosfera, que se desenvolve o poema, o eu lírico intoxicado
pelo amor e Quincy pela droga, ou melhor, essa última sendo representativa do sentimento
que envenena como os “colchiques”. Ainda, nessa mesma estrofe, observamos outra
referência intertextual, mesmo que indireta, a inexorável passagem do tempo que nos
remete mais uma vez a Ronsard, “où sont les neiges d’antan?”, sendo transposta para o
verso de Apollinaire “Passons passons puisque tout passe” (v.9).
Outra referência intertextual está no poema “Salomé”, que apresenta um diálogo com
as escrituras sagradas, na medida em que recorre à história de adultério de Herodes com
Salomé, presente nos quatro evangelhos. Nessa, o rei Herodes trai o próprio irmão Philippe
com sua cunhada “Salomé”, sendo descobertos pelo profeta João Batista, que critica tal
atitude, pois diz “não ser lícito viver com a mulher do irmão”. Nesse ambiente de traição,
Herodes oferece uma festa em comemoração de seu aniversário, em que presencia e aprecia
sua sobrinha a dançar, ficando embevecido com tamanha graça, chegando-lhe a oferecer,
como prêmio, tudo aquilo que pedisse, até mesmo metade de seu reinado. Diante disso,
44
rapidamente consulta sua mãe, Salomé, que lhe orienta pedir a cabeça de João Batista, como
vingança por suas interferências proféticas. Então, Herodes não hesita em cumprir com sua
palavra, manda decapitar o profeta e traz a sua cabeça em uma bandeja perante todos.
A despeito de tal referência intertextual, devemos salientar que não há, em hipótese
alguma, uma despersonalização do processo criador, haja vista a transformação nítida da
história bíblica de adultério no poema de Apollinaire. Em “Salomé”, embora seja o profeta
Jean-Baptiste decapitado como na história bíblica, esse é colocado em uma posição que
denuncia a sua relevância. Ele é agora tratado por senhor “sire”, vocábulo que é usado para
nomear apenas imperadores e reis, mostrando que o profeta é protagonista, chegando a ser
mais importante do que o próprio rei Hérode. Também, a sobrinha do rei parece dançar
para o profeta e não mais para Hérode, indagando o por quê de tamanha tristeza de sua
mãe, tendo essa mostrado sinal de arrependimento. Por isso, a menina pede a uma espécie
de bobo da corte “louco” que não chore, e ao invés de pegar o seu cetro “marotte”
guarnecido de guizos e sinos, símbolo da loucura, pegue a cabeça de sua mãe e dance, mas
sem tocá-la, visto que sua tez já está fria:
Venez tous avec moi là-bas sous les quinconces
Ne pleure pas ô joli fou du roi
Prends cette tête au lieu de ta marotte et danse
N’y touchez pas son front ma mère déjà froid
(“Salomé”)
Com um certo tom de humor, observamos a mulher arrependida, como que castigada
pelo seu relacionamento adúltero. Isso explica na obra estudada, que o motivo do adultério
se particulariza no tema Salomé, mas ao mesmo tempo, na temática constante tanto em
Alcools quanto em A cinza das horas, o desamor, que reforça a contínua atmosfera de pesar
das obras analisadas.
Isso posto, partimos para o universal temático tempo, que desde os primórdios é
tema versado, na literatura, na história, na filosofia, nas artes e nas ciências, e que é o fio
condutor do trabalho aqui realizado, haja vista que é pelo “tempo não-reconciliado” que se
cria toda uma atmosfera pesarosa nas obras em questão.
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No que tange aos complexos temáticos, em uma obra, é importante ressaltar que um
tema não é tomado isoladamente. É por isso, que a temática eterna “tempo” não rejeita a
contigüidade ou a união à temática do noturno, do Ubi sunt?, do amor, da melancolia, entre
outros. Essa relação segue a noção de redes e cadeias de temas e motivos, permitindo uma
explicação de ordem comparatista voltada para a ponderação de uma rede intertextual coerente.
Ao considerar a justaposição de temas e de motivos, decidimos dar preferência à
análise da tópica “tempo”, visto ser um tema caro aos poetas aqui estudados, também
recorrente ao longo de toda as obras e gerador de todos os outros subtemas em questão.
Para a predileção da recorrência motívica do tempo, é importante salientar que a
figura do mal-amado está submersa em uma atmosfera de infortúnio causada por esse que é
sempre não-reconciliado, haja vista o caráter da recusa simplista do tempo cíclico aqui
desenvolvido, que seria uma maneira de recuperar o que findou.
No plano das recorrências motívicas do tempo em Alcools e A cinza das horas,
caímos no que o método analítico do teórico Joseph Texte, citado por Rodrigues Filho
(2001, p. 122) considera, “o estudo temático-comparativo como legado da crítica que
investiga a ocorrência de temas (lugares-comuns) no cotejo de Homero com Virgílio,
Demóstenes com Cícero e outros”. É importante ressaltar, que a constante “tempo” não será
analisada apenas no que concerne aos autores Bandeira e Apollinaire, mas sim por meio de
um percurso analítico histórico-literário e adentrando no âmbito filosófico, apresentando
como tal tópica foi desenvolvida diacronicamente, conduzindo a um profícuo acolhimento
da compreensão da textualidade literária.
Para desenvolver esse percurso diacrônico, partimos da concepção de tempo que dá o
sentido ou a consciência da duração e das diferenças entre passado, presente e
futuro.Segundo observações de Whitrow (1993, p.19 à 23) retiradas da obra O tempo na
história, essa distinção é característica e uma das mais importantes faculdades mentais a
distinguir o homem de outras criaturas vivas.
A despeito disso, vale destacar que apesar de tal faculdade ser peculiar à humanidade,
deve-se tomar o devido cuidado para não desconsiderar o fato de que alguns seres humanos
passam e passaram pela história sem a concepção de tempo que nos é consensual. A título
de ilustração, apontamos, segundo Whitrow, três grupos em que a concepção de tempo lhes
é própria, a conferir:
46
1. Os hopis do harizona, sendo sua língua estudada por Benjamin Lee Whorf,
que verifica a inexistência de palavras, formas gramaticais, construções ou
expressões referentes ao tempo ou a qualquer de seus aspectos.No lugar dos
conceitos de espaço e de tempo, eles empregam outros termos “objetivo” e
“subjetivo”, respectivamente. Ainda, é importante acrescentar que a língua
hopi, diferente do inglês, prefere verbos a substantivos, mas seus verbos não
apresentam tempos.
2. Os azandes do sudeste do Sudão, observados por Evans-Pritchard, que
acreditavam na superposição do presente e do futuro, ou seja, os
acontecimentos futuros do homem desse povo procediam de condições
futuras já existentes. Sendo assim, quando os oráculos indicavam que um
homem ficaria doente, isso significava que ele já estava mal, posto que seu
futuro estava interligado ao presente
3. Os nuers, outra raça sudanesa estudada por Evans-Pritchard, que vivem às
margens do Nilo Branco e não possuem nenhum equivalente para o nosso
vocábulo tempo. Eles não concebem o tempo como algo que passa, que pode
ser administrado com parcimônia ou gasto sem proveito, mas sim pela
referência às suas atividades sociais, ou a acontecimentos do tipo de
enchentes, pestilências, guerras, entre outros.
Com tais exemplos, observamos que a concepção de tempo/recorrência motívica
aqui estudada não é única e comum a toda humanidade, essa não é e não foi igualmente
concebida em muitos povos primitivos e civilizações relativamente avançadas.
Considerando as diferenças que existem em relação a tal concepção, fizemos uma
súmula das bases naturais de medição que foram usadas para registrar e marcar o tempo ao
longo da história, baseado ainda nas observações de Whitrow (1993, p.28 a 31).
Essa computação do tempo teve o seu primeiro método, o mais antigo, por meio de
fenômenos nitidamente reconhecíveis, como a contagem dos dias por meio das auroras, o
que é visto em Homero: “Esta é a décima segunda aurora desde que cheguei a Ílion”,
(Ilíada, XXI.80-1).
47
Já o aborígine australiano marcava o momento para uma determinada ação, por meio
da colocação de uma pedra em um tronco bifurcado de uma árvore, de maneira que o sol ali
incidisse na ocasião estabelecida.
Outras tribos nos trópicos precisavam a altura do dia pela direção do sol ou pela
projeção da sombra de uma vareta na vertical.
Dentre as diferentes convenções a propósito do estabelecimento do início da unidade
dia, os egípcios elegeram a aurora, à medida que os babilônicos, judeus e mulçumanos
escolheram o pôr-do-sol. Também, os romanos escolheramc(a 8]TJm0013 Tc 0.0037 Tw1853785 .72[( escolhonve,ra,)6( à m)s)-5(TJ0s.0007 Tc 0.17 Tw -2um).235 -8.725 Td[(dia, osobserna rora,na i43o de um)0 m
Esse tempo “não-reconciliado”, assim como o nome já diz, não segue um círculo
físico ou natural em que tudo há de voltar - como os amores e outras situações vivenciadas
do sujeito poético mal-amado - esse é aquele que procura desfazer tal círculo bem centrado
demais, descartando o velho senso comum do eterno retorno:
assim acaba a história do tempo: cabe-lhe desfazer seu círculo
físico ou natural, bem centrado demais, e formar uma linha reta,
mas que, levada pelo seu próprio cumprimento, torna a formar um
círculo eternamente descentrado. (Pelbart, 1996, p.163)
O círculo eternamente descentrado faz com que o tempo estudado em Bandeira e
Apollinaire saia da gaiola onde se vê aprisionado ao longo da história, desde a sua
domesticação. Aqui, ele não é como na filosofia antiga, uma porta giratória, mas sim
emancipado de qualquer forma extrínseca. É justamente por isso, que nasce o infortúnio do
sujeito mal-amado, visto que nessa leitura deulezeana não é tudo que retorna, reforçando a
sua condição pesarosa de ser, pois seus anos de gozo jamais voltarão, “sem as ilusões que
repertoriaram: a transcendência, os universais, o eterno”.
Isso posto, é mister discorrer sobre a história do tempo de Gilles Deuleze, baseada em
seu interregno em meio ao seu curso em torno do cinema, ministrado em 1983-4, em Paris
VIII, inserida na tese de Pelbart (1996, p.163 a 170).
Essa história corresponde a três períodos, um tempo selvagem, na seqüência uma
domesticação do tempo e uma liberação do tempo, o que não se entende por momentos
sucessivos, em uma única linha temporal, mas interligados e embaralhados, sendo
“afirmados” por uma quarta linha “o espiralamento descentrado do tempo”.
O primeiro período, um tempo selvagem, corresponde ao tempo próprio do mito,
pois nesse existe uma distância que separa uma origem de uma soberania. É essa distância
que Deuleze aponta como um tempo do terror, do sem-fundo, tempo desordenado da luta
dos deuses. Nesse cenário do tempo não-domesticado, o tempo da distância está entre a
origem das coisas (Caos) e a ordem do soberano (Zeus), não colocado ainda nos eixos por
um deus.
No segundo período, observamos a domesticação do tempo, o momento em que o
modelo mítico dá lugar à Filosofia. Nesse, os dois termos afastados do mito, origem e
49
soberania se aproximam, fazendo com que o mundo seja feito e ordenado em um único
gesto. Assim, a distância que existia no mito é substituída pela identidade inédita da gênese
e ordem da origem e dominação. É dessa forma, que o movimento do mundo torna-se
circular, e o tempo se vê acuado, domesticado, tendo Platão como aquele que estaria
narrando o encurvamento do tempo, dando a sua forma cíclica.
O terceiro período, uma liberação do tempo, equivale à ineficácia do aprisionamento
do tempo (domesticação), que por mais ordenado que seja, apresenta problemas. É o
momento em que o tempo sai dos gonzos, vê-se liberado do movimento circular.
Considerando os três tempos aqui apresentados, de forma bastante breve, chegamos à
linha que serve como base para o desenvolvimento da recorrência motívica “tempo” em
nossa pesquisa, o espiralamento descentrado do tempo. É nesse, que encontramos
fundamento para o pesar derivado de um tempo não-reconciliado na figura do mal-amado,
pois esse é um tempo pensado à luz da diferença e como multiplicidade pura. Esse tempo
não é uma recusa fortuita à “circularidade”, mas a uma cadeia cíclica mecânica que sempre
remete ao Mesmo:
o tempo como multiplicidade virtual liberada do seu eixo,
obedece a uma lógica rizomática que desafia frontalmente as
monocentragens recusadas. Mas não basta que o rizoma
temporal se contraponha à “circularidade” do tempo. É
preciso que intervenha um outro círculo, ainda mais tortuoso,
para que, ao fazer retornar não o Mesmo, mas a Diferença, o
tempo conquiste sua potência última. (Pelbart, 1996, p.207)
É justamente o que vai de encontro à figura do mal-amado, posto que o seu eterno
pesar é fundamentado na impossibilidade de recuperar as coisas findas. Esse tempo passado
não pode ser resgatado pelo presente, pois o tempo agora está liberado do movimento e não
está mais preso ao Presente e ao Passado enquanto centro. Desse modo, esse tempo
descentrado admite a concepção de eterno retorno somente “como seleção, que deixa
subsistir apenas o novo, a novidade”, e não a repetição de encadeamentos de
50
acontecimentos de forma idêntica, como assim o espera a figura do mal-amado, com seus
amores, sentimentos e situações irrecuperáveis.
Essa repetição do novo, o eterno retorno, não recai sob o conjunto do tempo, pois
como já mencionamos, não é tudo que volta. Por isso, os amores que se esvaeceram como
decorrência da inexorabilidade do tempo nos poemas analisados, jamais retornarão, visto
que esse tempo descentrado luta bravamente contra a repetição do hábito e da memória:
o eterno retorno ao incide, pois, sobre o conjunto do tempo:
não é tudo que volta. Não volta a condição, não volta o
agente, não volta o fundamento, não volta a fundação, não
volta Mnemósina, não volta o Hábito: servir-se da repetição
do hábito e da repetição da memória, mas delas servir-se
como estágios e deixa-las pelo caminho; com uma das mãos,
lutar contra o Hábito; com a outra lutar contra Mnemósina.
(Pelbart, 1996, p.187)
É o que tomamos como justificativa para a ma sina do eu lírico mal-amado, que vive
a constante dor da perda por não poder reter e nem recuperar o tempo que é inexorável, haja
vista que esse aqui não é condicionado à sucessão de movimentos, por conveniência e de
forma circular simplista, ele está reconciliado consigo mesmo, sem a dependência da
memória de um passado ou da expectativa de um futuro. Nesse sentido, o eterno retorno,
como estratégia para o mal-amado recuperar o perdido, é impossível, posto que a repetição
sempre estará centrada na diferença, e não na retomada ordenada derivada de um ciclo que
corresponderia ao equilíbrio que de fora viria salvar aquilo que era caos.
Esse ciclo pensado por Deleuze, “afirma o caos, não o enverga nem o corrige”. Por isso,
o fato do filósofo recusar algumas teorias desenvolvidas, a ver: O Tempo vergado em Círculo
pelo demiurgo platônico, o Tempo como número do movimento segundo Aristóteles, o Tempo
submetido à Lei da causalidade com Kant, o Tempo retornado do Mesmo, nos Círculos
concêntricos de Hegel. Assim, o ciclo pensado por Deleuze, afirma a condição primeira do eu
lírico mal-amado, o infortúnio por estar imerso em uma atmosfera da repetição da diferença em
meio ao caos, sem qualquer expectativa de recuperação do vivido.
51
Portanto, essa repetição não será, em hipótese alguma, a retomada de um tempo
perdido, mas sim a categoria do futuro, ou seja, fazer do futuro o incondicionado, o objeto
da repetição. O que corrobora a nossa idéia de um tempo não-reconciliado, pois ao procurar
o resgate pela repetição, encontrar-se-á não um passado olvidado, mas sim um futuro que
não está vinculado a um encadeamento derivado do presente e do passado. Esse tempo é
puro, sem a carga conciliatória redentora de antemão, é o tempo ele mesmo, descarrilado, e
que afirma o retornar não o Mesmo, mas sempre a Diferença.
Tendo ratificado a questão do “tempo não-reconciliado” no sujeito poético mal-
amado pelas colocações de Deleuze, chegamos a um ponto relevante de nosso trabalho, o
motivo do tempo recorrente na literatura, posto que já acompanhamos suas implicações no
viés histórico e filosófico.
Nessa perspectiva, é o que observamos na percepção do tempo como motivo na
literatura, tendo os escritores de diferentes épocas se debatido nas garras da angustiante
pergunta Ubi sunt?, cada um a seu modo, buscando encontrar resposta ao mistério que é a
eterna inexorabilidade do decurso.
Ao focalizarmos a recorrência motívica “tempo” em Bandeira e em Apollinaire, não é
suficiente destacar que ela faz parte de uma tradição literária, como já mencionamos em dado
momento de nosso trabalho, mas de salientar que a visão de tais poetas é a visão de homens do
século XX, embora ainda carregados da herança parnasiano-simbolista do final do século XIX.
Por isso, o conjunto temático que data de séculos na história da literatura, serve como
patrimônio comum aos escritores, para que esses o utilizem e o adaptem a seu momento
histórico-literário. Nessa “reciclagem” de temas e de motivos, que é constante desde a
Antigüidade, podemos observar que a integração entre o já cristalizado e a nova seiva, permite
ao fazer literário um caminho mais amplo e abrangente, no sentido de possibilitar todo o
trabalho artesanal do escritor, sendo esse como sabemos, um artesão das palavras.
A rememoração do tema e do motivo faz com que consciente ou inconscientemente,
ressuscitemos aqueles que jazem na necrópole dos imortais, mas que foram os precursores
de tal tradição, e que possuem um “surplus” de significante, como classifica o crítico inglês
Frank Kermode, aqueles que são sempre retomados e completados a cada leitura, como
Catulo, Horácio, Ronsard, passando por Machado, Proust, Cervantes, Joyce, entre tantos
outros, o que só nos faz pensar que a recorrência motívica “tempo” é uma busca obsessiva,
52
tendo cada autor a ilusão de sua manipulação, de sua explicação e de seu resgate protelado
a cada obra.
53
CAPÍTULO III
54
3 - O diálogo entre a poética bandeiriana e apollinairiana
3.1- O medievalismo na lírica apollinairiana
Considerando a temática central de nossa pesquisa, “escritura da perda” como
resultado da passagem do tempo, observamos um subtema relevante para o
desenvolvimento do nosso trabalho: «O medievalismo na lírica apollinairiana».
Ao estudarmos esse subtema observamos que ele está relacionado, em alguns
aspectos, com a tópica ‘‘A imagem da mulher amada (volubilidade, ‘‘santidade’’, etc.)”.
Desse modo, para realizarmos o estudo dessa temática, utilizamos como objeto o poema
‘‘La Chanson du Mal-Aimé’’(1904), escrito por Apollianire a partir da recusa ao pedido de
casamento feito a Annie, useus gsideeessa
Un soir de demi-brume à Londres
Un voyou qui ressemblait à
Mon amour vint à ma rencontre
Et le regard qu'il me jeta
Me fit baisser les yeux de honte
Je suivis ce mauvais garçon
Qui sifflotait mains dans les poches
Nous semblions entre les maisons
Onde ouverte de la Mer Rouge
Lui les Hébreux moi Pharaon
Que tombent ces vagues de briques
Si tu ne fus pas bien aimée
Je suis le souverain d'Égypte
Sa soeur-épouse son armée
Si tu n'es pas l'amour unique
Au tournant d'une rue brûlant
De tous les feux de ses façades
Plaies du brouillard sanguinolent
Où se lamentaient les façades
Une femme lui ressemblant
(Strophes 55 à 59)
[...]
Juin ton soleil ardente lyre
Brûle mes doigts endoloris
Triste et mélodieux délire
J'erre à travers mon beau Paris
Sans avoir le coeur d'y mourir
Les dimanches s'y éternisent
Et les orgues de Barbarie
Y sanglotent dans les cours grises
Les fleurs aux balcons de Paris
Penchent comme la tour de Pise
Soirs de Paris ivres du gin
Flambant de l'électricité
Les tramways feux verts sur l'échine
Musiquent au long des portées
De rails leur folie de machines
56
Les cafés gonflés de fumée
Crient tout l'amour de leurs tziganes
De tous leurs siphons enrhumés
De leurz garçons vêtus d'un pagne
Vers toi toi que j'ai tant aimée
Moi qui sais des lais pour les reines
Les complaintes de mes années
Des hymnes d'esclave aux murènes
La romance du mal ai
Et des chansons pour les sirènes.
Notamos já em seu título, ‘‘La Chanson du Mal-Aimé’’, a criação de um neologismo
‘‘Mal-Aimé’’, palavra criada pelo autor a partir do modelo ‘‘bien-aimé’’, opondo-se a ele.
O protagonista ‘‘mal-aimé’’ apresenta o fim de sua história de amor vivenciada em um
passado indeterminado, conta a tristeza de ter sido abandonado, gerando uma grande pesar,
representado de diferentes maneiras, em todas as esferas do poema. Esse poema é
caracterizado como uma longa elegia de sessenta estrofes de cinco octossílabos, apresenta-
se como uma crônica do amor triunfante e infeliz. Seus versos são distribuídos
regularmente em quintetos, e a sua epígrafe demonstra que se trata de um romance, no
sentido medieval e mais antigo do vocabulário (Amorim, 2003, p. 122).
Nesse poema, o fato essencial para sua compreensão, é o amor de Apollinaire por
Anni Playden e o relacionamento que ele manteve com sua amada inglesa, entre 1902 e
1904. Esse acontecimento serviu como inspiração para a realização do poema, o poeta
apresentando um amor incondicional por Annie, e não aceitando facilmente a sua recusa,
sendo necessárias algumas viagens para reencontrá-la, em novembro de 1903 e em maio do
ano posterior, para certificar-se de que havia perdido definitivamente o seu grande amor,
em janeiro de 1905. Logo, para exemplificar esse fato citamos uma carta que Apollinaire
escreveu como resposta às indagações de Madeleine Pagès, em julho de 1905, o que nos
esclarece sobremaneira a leitura do poema pelo viés da inspiração e do seu caráter
essencialmente lírico:
57
‘Aubade’ não é um poema à parte, mas um intermédio
intercalado na Chanson du Mal-Aimé que, datado de 1903,
comemora meu primeiro amor, aos vinte anos, uma inglesa que
encontrei na Alemanha; isso durou um ano, nós tivemos de
voltar cada um para seu país, depois não nos escrevemos mais.
E expressões desse poema são severas demais e injuriosas para
uma moça que não me compreendia nem um pouco e que me
amou, mas ficou desconcertada em amar um poeta, ser
fantasioso; eu amei-a carnalmente, mas nossos espíritos
estavam longe um do outro. Entretanto, ela era fina e alegre.
Tive muito ciúmes dela sem razão e pela falta vivamente
sentida, minha poesia que pinta bem meu estado de alma de
então, poeta desconhecido no meio de outros poetas
desconhecidos, ela distante e não podendo vir a Paris. Fui vê-la
duas vezes em Londres, mas o casamento era impossível e tudo
se arranjou com uma partida para a América, mas sofri com
isso, testemunho é esse poema em que me acreditava mal-
amado enquanto era eu que amava mal, e também ‘L’Émigrant
de Landor Road’ que comemora o mesmo amor...(Apollinaire,
1994, p.1046 – Apud Amorim, 2003, p.123)
Mas, ao constatarmos o fato biográfico que serviu como principal inspiração para a
composição do poema, não podemos a ele limitar, pois estaríamos destruindo toda a sua
poeticidade, e reduzindo a poética apollianairiana ao relato biográfico. Assim, podemos
partir da concepção de Décaudin (1993, p.34-35), de que embora tenha relacionado cada
um de seus poemas a um fato de sua existência, Apollinaire não teve a pretensão de contar
a sua vida por meio de sua poética. ‘‘Mais Apollinaire n’a pas voulu raconter sa vie bien
qu’il ait dit que chaque poème commémorait un événement de son existence’’.
Feita essa ressalva, podemos prosseguir com a análise propriamente dita do poema,
que trata de uma triste história de amor contada já em sua epígrafe com a marca mítica ‘‘Du
beau Fhénix’’, o que reitera a caracterização do eu lírico como mal-amado. Nessa história
58
de amor finda, observamos duas personagens principais, o homem que diz: ‘‘Je’’ (aquele
que fala), identificado somente com o ‘‘Mal-Aimé’’ do título. Ele conta a história que viveu
em um passado, ‘‘Un soir de demi-brume à Londres’’(v.1), no outono de nevoeiro e
cerração, o que já denota uma ambientação gélida e enganosa, pela incerteza que transmite
devido à falta de nitidez. A outra personagem é a mulher, que foi ‘‘bien aimée’’(v.12), o
que aparece primeiro como ‘‘tu’’ (a quem se fala) no discurso do Mal-Aimé (monólogo
interior da estrofe 3) e em seguida é designada em terceira pessoa, pelo pronome «lui» (de
quem se fala): ‘‘Une femme lui ressemblant’’(v.20). Sua identidade não pode causar dúvida
porque ela é ‘‘l’amour unique’’ (v.15) desse ‘‘je’’, não aparecendo diretamente na história
contada (Morhange-Bégué & Lartigue, 1993, p.31)
Nessa triste história de amor os personagens estão inseridos em um cosmos
demasiadamente nostálgico, no qual o amor mortifica o coração daqueles que amam. A
nostalgia presente na figura do ‘‘mal-aimé’’ pode ser vista, quando ele em uma tarde, em
Londres, acredita vir ao seu encontro a mulher que ainda ama (embora a relação com sua
‘‘bien-aimée’’ tenha acabado), mas se trata apenas de um ‘‘voyou’’, que lhe lança um olhar
de desprezo e se vai. Desse modo, o protagonista pesaroso segue o ‘voyou’’, afirmando a
persistência do amor que ele tem por essa mulher, mesmo que ela não faça mais parte de
sua vida, pois é impossível esquecer o passado, visto que esse envenena o presente e
colabora para a construção de um sujeito poético mal-amado, com marcas dolorosas de uma
intensa e feliz história de amor finda: ‘‘Le passé ne peut s’oublier, il empoisonne le présent.
Le souvenir gâte le fragile bonheur de l’instant et il ternit l’avenir, impénétrable et
finalement, indifférent. Errance du poète, cet éternel insatisfait: passé vide, présent infernal,
avenir absent’’(Lecherbonnier, 1983, p.15).
Em seguida há um segundo encontro, em que a ilusão de ver sua amada se manifesta,
ele observa uma mulher vulgar, de rua, com um olhar pesado, que se assemelha ao seu
grande amor, mas que não passa de uma mulher devassa. Então, o protagonista toma
consciência da ‘‘fausseté de l’amour’’(v.25) e sente o desalento de ver a imagem da mulher
que ama nos transeuntes corrompidos da grande cidade. Desse modo, nota por meio dessa
imagem que a sua amada não está mais presente, que ela só permanece em suas alucinações
e sonhos. Assim, ele demonstra todo o pesar e a efemeridade que existe no ato de amar.
Considerando todo esse desalento, podemos trabalhar com uma concepção de amor
59
medieval, que, na Idade Média, apresentava um fundo notadamente negativo, pois a morte
inevitável certificava o homem de que ‘‘toda a beleza e toda a felicidade eram inúteis
porque estavam destinados a acabar em breve’’ (Huizinga, 1978, p.131) – processo que
ocorreu com a figura do ‘‘mal-aimé’’, de toda a sua feliz história de amor hoje restam
apenas o pesar e as tristes lembranças de sua amada.
A busca pelo amor findo continua, quando o ‘‘mal-aimé’’, tomado pela vergonha,
lança-se obstinadamente a perseguir o ‘‘voyou’’, como que em um enfeitiçamento mágico e
afirma sua fidelidade à mulher amada, que se assemelha a esse personagem sem escrúpulos:
‘‘Si tu ne fus pás bien aimée’’ (v.12), ‘‘Si tu n’es pas l’amour unique’’ (v.15) ; vê-se dessa
forma uma concepção trágica do amor, pois ela ‘‘foi’’ a sua amada em um passado que não
retorna. Já no segundo encontro, o jovem não persegue a personagem, ele rejeita o amor,
devido à semelhança da mulher ‘‘saoule’’ com a sua amada: mesmo sexo ‘‘une femme’’
(v.20), mesmo ‘‘regard’’, mesma ‘‘cicatrice’’ (v.21-22). Em seguida a perda do amor é
total: essa mulher é deprezível ‘‘saoule’’, ‘‘taverne’’ (v.23), seu egoísmo é notório ‘‘regard
d’inhumaine’’ (v.21), e a sua beleza é degradada ‘‘cicatrice’’. Logo, não é digna de seu
amor. Conseqüentemente, ele condena o seu caráter enganador, sua ‘‘fausseté’’(v.25), o
mesmo sentimento que emprega ao amor. Dessa forma, podemos dizer que essas
personagens servem de reveladoras dos sentimentos, ainda inconscientes, do ‘‘mal-aimé’’;
a vergonha de continuar a amar uma mulher que não o ama mais, a inutilidade desse amor
sem esperanças e, enfim, a rejeição do amor que não sustenta suas promessas (Morhange-
Bégué &Lertigue, 1993, p.33).
A memória do protagonista serve como uma guia eficaz, pois por meio das
reminiscências que guarda de sua história de amor, transforma o seu desalento em poesia, o
que se fazia na Idade Média, por meio da composição, sobre o verdadeiro sentido da
existência humana e de tudo o que a cerca: ‘‘Verificam-se muitos pontos semelhantes entre
Les Fleurs du Mal e os Alcools de Apollinaire, coletâneas nas quais a construção formal
tem grandes destaques e significado, onde ‘ressoa a simbólica da alta Idade Média que
costumava refletir, nas formas da composição, a ordem do cosmo criado’, e onde se vê o
homem dividido entre a matéria e o espírito. São obras que representam o sofrimento
transformado em poesia; a dor, então é poetizada’’(Amorim, 2003, p.131).
60
Embora haja a presença marcante de uma poesia medieval que aborda a questão do
pesar que existe no ato de amor, por conseqüência de sua efemeridade como todas as coisas
terrenas, observamos efeitos-surpresa e traços humorísticos dignos de uma composição
moderna, como na estrofe 40ª: ‘‘Et moi j’ai le coeur aussi gross’’, ‘‘Qu’un cul de dame
damascène’’. Nessa mescla do passado com o presente, destacamos a importância das
palavras na poesia apollinairiana, pois esse utiliza vocábulos dos mais raros até os mais
triviais, chegando até mesmo aos vulgares: ‘‘Tous les mots semblent provoquer en lui un
étonnement ‘naif’. Il se saisit des termes les plus vulgaires comme putain, maquereau, cul,
pet, bordel, démerdard non pour le seul plaisir de choquer, masi parce qu’ils possèdent en
eux une charge d’émotion et une force d’expression irréductibles et irrépressibles’’.
(Lecherbonnier, 1983, p.21). Mediante essa mistura entre o moderno (vocábulos mais
simples), a utilização da memória, junto ao antigo, a concepção negativa do amor efêmero
como todas as coisas terrenas, apontamos o poema como um dos grandes exemplos da
modernidade; embora apresentando muitos aspectos da poesia medieval.
Desse modo, podemos partir para mais um tópico medieval na poesia apolliairiana:
A inacessibilidade da mulher amada
Aqui, ainda encontramos o amor elegíaco, pois a inacessibilidade da amada, causada
pela ruptura da história de amor, coloca a mulher como um ser longínquo, cujo resgate por
meio da memória e da composição poética ameniza a dor que a figura do ‘‘mal-aimé’’
sente por tê-la perdido. Essa angústia por não possuir o seu grande amor pode ser observada
na estrofe 55, na qual o episódio do poema se encontra situado no tempo ‘‘Juin’’ (v.1) e no
espaço ‘‘Paris’’ (v.4). Nessa estrofe os ‘‘doigts indoloris’’ (v.2) evocam por associação de
idéias o coração dilacerado do jovem, no qual o imenso desespero amoroso foi cantado nas
cinqüenta e quatro estrofes precedentes. Assim se explica ‘‘triste et mélodieux délivre’’. A
crise psicológica e moral se resolve por ela mesma, a tentação do suicídio não se concretiza
como confirma o verso 5: ‘‘Sans avoir le coeur d’y mourir’’. Nesse caso ‘‘coeur’’ é
sinônimo de ‘‘courage’’, mas essa palavra,como sabemos, também tem uma ressonância
amorosa. Nesse sentido, notamos que o protagonista ‘‘mal-aimé’’ resgata lembranças de
seu passado dito feliz, alimentando-se das reminiscências, o que permaneceu de sua história
de amor, que se resume na amada inatingível.
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Nesse viés, podemos fazer referência às cantigas de amor nas quais o homem sofre
pela inacessibilidade de sua amada, sendo o ponto-base o amor cortês: amor-sentimento,
amor-aspiração, amor-inatingível. Assim, nessa canção repleta de lamentos notamos que,
para suavizar a intensa dor do mal de amar, o mal-amado se utiliza de uma arma eficaz para
romper tamanha distância de sua amada, o resgate do passado: ‘‘As imagens fragmentadas,
simultâneas e/ou colocadas retratam o passado, a memória, suas lembranças entrecortadas e
guiadas – ou desviadas - pelo fluxo da consciência. Assim, abarca a união do antigo e do
novo sem detrimento de nenhum desses universos.’’ (Amorim, 2003, p.184).
Podemos prosseguir com as estrofes 56 e 57, nas quais o protagonista ‘‘mal-aimé
parece não encontrar pessoa alguma na cidade, o que é uma maneira de exprimir a sua
solidão. Em seguida, a respeito da comparação: ‘‘Penchent comme la tour de Pese’’(v.10),
notamos que o humor equilibra a tristeza dos versos precedentes. Tudo se passa como se o
jovem tivesse ‘‘maitrisé’’ sua dor e pudesse desde então renunciar à sua tristeza: ‘‘les
tramways [...]/ Musiquent [...]/ [...] leur folie [...]’’(v.13-15), que fazem eco no ‘‘mélodieux
délire’’ da estrofe 55 (Morhange-Bégué & Lartigue, 1993, p.42). Todos esses sentimentos
de solidão, dor e renúncia à tristeza estão inseridos na criação poética do poeta ‘‘mal-
aimé’’, a qual não passa de um melodioso delírio, que caracteriza traços da poesia elegíaca.
Dessa maneira, observamos toda a problemática que existe no ato de amar, pois além da
passagem do tempo que devora qualquer sentimento por maior e mais intenso que seja
(tornado o objeto amado inatingível), o verdadeiro amor ou uma certa reciprocidade no
amar é impossível, dadas as diferencas entre homem e mulher: ‘‘Plus que tout, l’amour
porte le poids de la fuite du temps. Si le poète est le ‘mal-aimé’, c’est moins en raison de
déboires sentimentaux qui lui seraient propres que parce qu’un véritable amour est
impossible à cause des ‘éternités différentes de l’amour de l’homme et de la femme’’’.
(Décaudin, 1993, p.83)
Portanto, nessa poesia escrita na ausência, o protagonista lamenta a sua condição de
‘‘mal-aimé’’, pois a inacessibilidade de sua amada o faz refletir sobre a inconstância que é
o ato de amar.
Nesse sentido, constatamos mais uma tópica que colaborou para o desenvolvimento
de nosso tema:
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A musicalidade na poética apollinairiana
Ao estudarmos essa tópica, vemos que ‘‘La chanson du Mal-Aimé’’, é uma canção
amorosa, cheia de lamentos que transforma a tristeza em canto. Assim, nas duas últimas
estrofes - 58 e 59, trabalhamos os aspectos mais importantes relacionados ao amor elegíaco,
como: os diversos barulhos que se escutam nessa cidade, como palco das angústias do
‘‘mal-aimé’’, cujo mais notável é um grito indiferente de amor (provado pelos ‘‘tziganis’’
os ‘‘siphons’’, os ‘‘garçons’’) lançados pelos ‘‘cafés’’(v.16), lugar onde se misturam todos
esses sons que se encontram personificados. O último verso exprime a intensidade do amor
do protagonista, pela repetição do pronome pessoal e pelo emprego do advérbio de
intensidade ‘‘tant’’: ‘‘toi que j’ai tant aimée’’. Mas o emprego do passado indica o caráter
findo desse amor. Assim, ele pertence ao passado e perdeu seu poder torturador, logo o
‘‘mal-aimé’’ busca na estrofe seguinte sua natureza e seus dons de poeta. Nessa busca, o
poeta indica o forte traço nostálgico desse amor, pois crê não valer mais a pena amar ou
sofrer fisicamente, mas sim poetizar o seu sentimento, cantar o seu pesar, amenizando dessa
maneira a sua dor com criações poéticas.
Todos os sons personificados, encontrados na cidade colaboram para uma poesia
calcada na musicalidade, sendo essa uma melodia do pesar. Logo, na estrofe 59, ainda
notamos elementos do universo musical e lírico, com a presença de termos amorosos ‘‘lais’’
(v.21), poemas líricos da Idade Média, romance’’ (v.24), canto de amor, ‘‘complaintes’’
(v.22), canções populares lamentosas, ‘‘hymnes’’ (v.23), orações cantadas e uma mistura de
fé fatal e mágica, dada a condicão das sereias ‘‘chansons pour lês sirènes ( v.25) – todo as
manifestações de lirismo, denotando que mesmo trabalhando com rimas, sons e recursos
poéticos o ‘‘mal-aimé’’, ainda canta as dores do amor em uma poesia elegíaca.
Ao trabalharmos com esse subtema, analisamos o poema “Solau do Desamado”
que segue tal linha, o qual segundo o próprio Bandeira, foi inspirado em “La chanson
du mal-aimé”:
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SOLAU DO DESAMADO
Donzela, deixa tua aia,
Tem pena de meu penar.
Já das assomadas raia
O clarão dilucular,
E o meu olhar se desmaia
Transido de te buscar.
Sai desse ninho de alfaia,
- Céu puro de teu sonhar,
Veste o quimão de cambraia,
Mostra-te ao fulgor lunar.
Dá que uma só vez descaia
Do ermo balcão do solar
Como uma ardente azagaia
O teu fuzilante olhar.
Donzela, deixa tua aia,
Tem pena de meu penar...
Sou mancebo de alta laia:
Não trabalho e sei justar.
Relincham em minha baia
Hacanéias de invejar.
Tenho lacaio e lacaia.
Como um boi ao meu jantar!
Castelã donosa e gaia,
Acode ao meu suspirar
Antes que a luz se me esvaia...
Tem pena de meu penar.
Vou-me ao golfo de Biscaia
Como um bastardo afogar.
Minh’alma blasfema e guaia,
Minh’alma que vais danar,
Dona Olaia, dona Olaia!
- Meu alaúde de faia,
Soluça mais devagar...
Notamos já no título que o sujeito poético sofre do mal de amar, trata-se da figura do
mal-amado, um protagonista desolado, desesperado por amar e não ser correspondido,
apresentando um forte sentimento de pesar. Assim, a partir da estrutura dialógica e uma
64
função apelativa com imperativos, vocativos e pronomes de 2ª pessoa do discurso (a quem
se fala), destacamos no poema dois personagens principais: a mulher, representada pela
donzela e pela castelã, “castelã donosa e gaia” (v. 23), “Donzela, deixa tua aia,” (v. 1),
designada também pelos pronomes reflexivos “te”, “Transido de te buscar” (v. 6), “Mostra-
te ao fulgor do lunar” (v. 10) e ainda pelo pronome possessivo “teu”, “Céu puro de teu
sonhar” (v. 8); e o homem, amante representado pelo vocábulo “mancebo” e pela voz em
primeira pessoa (a que fala): “Sou mancebo de alta laia:” (v. 17), “Não trabalho e sei justar”
(v. 18), “Como um boi ao meu jantar!” (v. 22).
As personagens estão inseridas em uma esfera de ceticismo auto-arrasador, em que o
amor dilacera o coração e mostra as conseqüências amargas que existem no ato de amar,
provocando naquele que ama (mancebo) o sofrimento por não poder estar junto a sua
amada (castelã/donzela) e a angústia por amar e não ser correspondido. Devemos salientar
que notamos um outro tipo de angústia no poema banderiano, a saudade ontológica,
“nostalgia do Ser, sentimento que se confunde com o puro tormento de estar no mundo,
desgarrada a angústia existencial, imersão na intimidade profunda” (Brayner, 1980, p. 244).
Dessa maneira, a questão da saudade ontológica explicita a angústia do sujeito-poético,
representado sempre como mal-amado, no mundo que o cerca. Logo, o eu lírico sempre foi
e será pesaroso, dada sua própria condição humana. Mesmo que viva uma relação amorosa,
ela rapidamente se esvai, e ele retorna à sua condição primeira de mal-amado. Portanto, o
sujeito poético vive perturbado ou angustiado em relação à sua existência, ao estar no
mundo, visto que nunca se realizará enquanto ser humano, mas sim viverá sempre à mercê
de sua problemática interior.
Notamos então, que o poema banderiano se nutre de muitos aspectos medievais, pois
segundo Huizinga, os grandes fermentos da cultura moderna estão na cultura medieval. E
ainda segundo Ernst Robert Curtuis, que diz: “A poesia do amor moderno é obra da Idade
Média” (Cf. Brayner, 1980, p. 244-245)
Nesse sentido, partimos para mais uma tópica medieval na poesia de Manuel
Bandeira:
65
A inacessibilidade da mulher amada
Encontramos essa idéia em uma frase bastante característica na poética banderiana: “A
vida inteira que podia ter sido e que não foi”. É dessa forma que Bandeira apresenta o eu
poético “mal-amado”, aquele que suplica o amor de sua amada e que sofre por não tê-lo:
“Donzela, deixa tua aia”, (v. 1); “Tem pena de meu penar” (v. 2); “E o meu olhar se desmaia”
(v. 5); “Transido de te buscar” (v. 6). Nesses versos observamos tamanho sofrimento pela
busca desse amor que o olhar do mancebo descora, desfalece, esmorece, demonstrando a sua
luta para conquistá-lo, exigindo reconhecimento por tamanho esforço. Assim, vimos nos
versos a existência do amor platônico, tal como ocorre na poesia trovadoresca, que se dirige a
um objeto inatingível. É o tema do Bem Amado longínquo que orvalha de sonho e
melancolia todo trovar dos líricos medievais (Cf. Brayner, 1980, p. 251).
Seguindo essa visão trovadoresca, o eu lírico banderiano insiste no convencimento de
sua amada, “Sai desse ninho de alfaia”, (v. 7); “Céu puro de teu sonhar,” (v. 8); “Dá que
uma só vez descaia” (v. 11); “Do ermo balcão do solar” (v. 12); “Como uma ardente
azagaia” (v. 13); “O teu fuzilante olhar” (v. 14); “Donzela, deixa tua aia,” (v. 15); “Tem
pena de meu pensar...” (v. 16). Esses versos indicam o mundo pudico no qual sua donzela
está inserida, em um ninho de ornato de igreja, em céu puro e na companhia de uma criada
de dama nobre. Logo, pede-lhe que saia desse cosmos imaculado para que lhe dirija o seu
fuzilante olhar ameaçador, questionando o seu caráter e a sua franqueza, demonstrando que
o sentimento do amor é enganador como a mulher. A partir do tema da inacessibilidade,
trabalhamos com três tópicas da lírica trovadoresca que completam o esclarecimento da
questão, a domnei – consagrando a submissão absoluta, a entrega total, humilde e paciente,
a mesura – prudência, cuidado para que o amor não comprometa o prestígio social da
Amada e a joy, a alegria suprema, estado de espírito que eleva o trovador acima de si
mesmo (Cf. Brayner, 1980, p. 251). O sujeito poético utiliza-se dessas três tópicas, pois
eleva a sua amada acima dos céus, adorando-a com total submissão, tendo cautela para não
macular a sua moral e ainda apresentando uma imensa alegria, que o coloca acima de si
mesmo, pois ama tal donzela de forma sobrenatural, de forma beatificada. Essa
inacessibilidade da mulher nos remete ao amor cortês, que também exprime total submissão
do homem em relação à amada, sempre inatingível. Rosenbaum (1993), que diz:
66
Historicamente, é na moral do amor cortês (séculos XI, XII e
XIII) que Lacan identifica esse sistema literário que aborda o
objeto feminino – a Dama – conferindo-lhe valor de
representação da Coisa. O objeto feminino, aqui miragem da
própria Coisa, corresponde a um primeiro plano do ideal,
sendo sempre inatingível: “[...] o amor cortês era em suma um
exercício poético, uma maneira de jogar com certo número de
temas de convenção, idealizantes, que não podia ter nenhum
correspondente concreto real”. (p.129)
Mas não podemos esquecer que, se a própria Idade Média se opõe à Idade Média, as
palavras de Tertuliano caracterizando a mulher em sua dialética como ianua diaboli são
refutadas pela poética dos trovadores e mnnesaengers, para os quais a contemplação da Eleita
substitui Deus: “Por que vos amo/tão finamente que não me lembro de mais nada,/nem
mesmo quando rogo a Deus, do qual esqueço por amor de vós” (Brayner, 1980, p. 252).
Assim observamos que, mesmo havendo uma beatificação do ser da mulher, notamos que ela
é aparece no poema de Bandeira e já na Idade Média de forma maniqueísta, com um lado
bom, puro, casto e o outro lascivo e enganoso.(Brayner, 1980, p. 252)”.
Prosseguindo com a temática da inacessibilidade da mulher amada, notamos ainda
outras tentativas de sedução do eu poético de “Solau do Desamado”, com suas invectivas
para impressionar a sua donzela. Assim, ele menciona a sua inserção social, a sua
ociosidade, a capacidade de lutar esgrima, o fato de possuir cavalos, criados e a abundância
de víveres, visto que não vê outra alternativa para conquistá-la: “Sou mancebo de alta
laia:/Não trabalho e sei justar./Relincham em minha baia/Hacanéias de invejar./Tenho
lacaio e lacaia./Como um boi ao meu jantar!”, nos quais o amante lhe promete todos os seus
bens(Cf. Pontiero, 1986, p. 55). Mesmo assim, o tom terno e triste ainda perdura nos versos
banderianos, vide versos 27 a 31: “Vou-me ao golfo de Biscaia/Como um bastardo
afogar./Minh’alma blasfema e guaia,/Minh’alma que vais danar,/Dona Olaia, dona Olaia!”,
em que o poeta retoma o vigor das tradicionais formas portuguesas e extrai um pouco do
humor malicioso que caracterizou tantas baladas desse gênero, visto que no alvorecer do
67
século XX, há a reiteração de uma forma um tanto quanto arcaica, mas aqui estereotipada,
como se ironizasse a sua própria condição de mal-amado.
Esses versos indicam a aflição que o eu lírico banderiano sente ao ameaçar com a
tentativa de suicídio, demonstrando que prefere a morte à separação ou à rejeição de sua
amada. Mas logo em seguida o refrão final nos assegura que não há nada a temer, e que o
trovador está em perfeito controle de sua situação (Pontiero, 1986, p.55): “- Meu alaúde de
faia,/Soluça mais devagar...” (v. 32-33).
Portanto, vemos que as tópicas trabalhadas nos direcionam para o nosso tema de
pesquisa, “Escritura da perda: um tempo não-reconciliado em Bandeira e Apollinaire”, pois
o sujeito poético do poema trabalhado padece por amar em demasia e sem reciprocidade,
mostrando que a història vivida com sua amada não retorna em hipòtese alguma. Logo,
destacamos mais uma tópica que colaborou para o desenvolvimento do nosso tema:
A musicalidade na poética banderiana
Para uma maior compreensão do subtema proposto, analisamos a questão da
musicalidade no poema “Solau do Desamado”, que já no título, apresenta um eu poético
angustiado e “mal-amado” . Em seguida, observamos que o vocábulo solau significa um
antigo romance em verso, geralmente acompanhado de música, que indica um gênero
exclusivamente português e popular, talvez originário do latim solor-consolar, aliviar pelo
canto, cantu solata (Virgílio, Geórgicas, I, 293). Em Bernardim Ribeiro, poeta português
do século XVI, podemos identificar a expressão “Cantar à Maneira de Solau”. O vocábulo
“desamado” é forma substantivada do particípio do verbo desamar. Pode referir-se também
à forma pronominal do verbo desmaiar, usada sobretudo literariamente e como arcaísmo,
no caso significando perder o brilho, obscurecer (Moraes, 1986, p. 101). Assim, por meio
dessas definições, destacamos a questão musical no poema, em que a figura do mal-amado
busca o alívio de sua dor através do canto, mostrando um ser que perdeu o brilho, que
obscureceu devido ao mal de amar. Ainda em relação à musicalidade poética, notamos que
a própria disposição dos versos de “Solau do Desamado” nos remete ao subtema
trabalhado, pois o poema de Bandeira composto em versos de arte menor, alternados, com
rimas em aia e ar, revive uma antiga forma de balada, comum na literatura do século XVI
ao XVII, criando uma melodia própria, intrínseca ao poema.
68
Nessa análise, observamos que Bandeira, talvez mais do que qualquer poeta
brasileiro, se utilizou dos recursos musicais para realizar as suas criações poéticas. Assim:
A musicalidade da poesia de Bandeira não decorre da
organização do poema, não emerge do processo de elaboração
do poema, mas resulta da natureza intrínseca da emoção
poética: música como que armada quase numa só equação de
silêncio – tão fina se esconde na última camada audível da
palavra; música que começa onde a palavra acaba. (Brayner,
1980, p. 237).
Dessa forma, podemos dizer que a musicalidade em Bandeira nos remete à definição
do vocábulo elegia em sua origem, nome que parece ter sido dado primeiramente a uma
espécie de lamento ou canto fúnebre acompanhado com som de flauta, havendo autores que
ligam o étimo grego élegos a “sopro de flauta”. O método específico chamava-se élegion,
constando de hexâmetros, pentâmetros, dalíticos que se combinam em dísticos, por isso
mesmo denominados elegíacos, e que no plural (èlegeía) constituíam o poema (Mirador
Internacional, 1975, p. 3693-3694).
Ao trabalharmos com nosso tema de pesquisa, “escritura da perda”, vimos que ele
apresenta traços marcantes da poesia elegíaca grega, tanto na questão do subtema
musicalidade (sopro de flauta) quanto na questão pesarosa do fazer poético (lamento ou
canto fúnebre). Partimos então para a questão do símbolo na linguagem, pois, se a poesia
era antigamente acompanhada ou composta pelo som de algum instrumento musical, na
poesia moderna, como na poesia banderiana, encontram-se “lacunas” advindas da falta
dessa prática. A musicalidade é trabalhada de uma outra forma: agora ela é inserida ou faz
parte da própria composição dos versos. Se considerarmos a história da poesia, algumas
considerações importantes podem ser lembradas, tal como a seguinte:
69
não esqueçamos [...] a gravidade da crise que afeta o lirismo a
partir do século XIV. Até então o poema permanecia
teoricamente tributário da música. O texto não era senão a
face literária de uma obra feita para viver no embalo do canto.
Mas enquanto a polifonia vem complicar a arte musical, a arte
literária procura conquistar sua autonomia poética. Os poetas
estão à procura de um novo lirismo que deveria se restringir
unicamente à fala humana. Sobre as estruturas antigas é
preciso então edificar uma obra nova, fundada doravante na
magia da linguagem. Não é surpreendente que os primeiros
monumentos deste lirismo moderno chamam a nossa atenção
por uma certa insipidez e uma certa falta de elevação. É
preciso esperar Charles D’Orléans para que a sutileza do
estilo e a força das metáforas criem, nesse gênero novo,
autênticas obras de arte. (Poirion, 1965, p. 11)
Mas não podemos esquecer que:
a acepção do vocábulo elegia não corresponde, de modo
algum às primeiras elegias gregas, pois essas não passavam de
canto de guerreiros, incitando à luta e também em relação à
sua composição formal, por meio de hexâmetros, pentâmetros
os quais se combinavam em dísticos. A elegia em sentido
moderno, como na poesia de Bandeira, é sobretudo uma
criação original da literatura latina. O primeiro grande nome é
o de Tibulo, cujos três livros de elegias, comovidas e algo
sentimentais, foram muito lidos na Idade Média e exerceram
forte influência nos poetas da renascença. Foram preferidas as
elegias de Propércio, dos elegíacos latinos Ovídio, cujos
Tristia (Poemas tristes) e Epistolae ex Ponto (cantos do
ponto), lamentando seu exílio, são os mais próximos da elegia
moderna. (Mirador Internacional, 1975, p. 3693-3694)
70
Desse modo, notamos, na origem do gênero elegíaco, uma forte tendência da poesia
para a música, sempre sendo demasiadamente nostálgica e melancólica. Assim, vemos que
esses traços originários do gênero perduram na poética banderiana, com uma poesia
extremamente musical e pesarosa.
A seguir, destacamos os significados para algumas palavras do poema, que
corroboram a presença de um vocabulário um tanto arcaico na poesia moderna.
Vocabulário:
Solau: antigo romance em verso, geralmente acompanhado de música;
Aia: dama de companhia, criada de criança nobre, camareira;
Penar: sofrer pena, dor, aflição, pesar, tormento;
Assomadas: cumeada, cume, cabeço;
Dilucular: relativo ao crepúsculo (crepúsculo matutino, alvorada);
Transido: repassado de fim, medo;
Alfaia: tapeçarias, adornos, enfeites;
Quimão: quimono;
Azagaia: lança curta e fina usada como arma de arremesso;
Laia: casta, qualidade, feitio, espécie, raça, jaez;
Justar: ajustar, acertar, esgrimir, jogar;
Hacanéias: (do inglês hackney/francês haquenée) égua ou cavalo de forma
delgada e elegante. Animal próprio para ser cavalgado pelas damas. Égua
pequena e mansa.
Donosa: donairosa, elegante, graciosa, gentil;
Gaia: jovial, alegre;
Biscaia: (golfo de) = ou da Gasconha = golfo do oceano Atlântico, entre a
França e a Espanha;
Guaiar: soltar ais ou guais, queixar-se, lamentar-se;
71
Faia: nome comum de certas árvores de casca lisa, cinzenta e madeira dura de
contextura fina;
Baia
: compartimento ou espaço ao qual se recolhem o animal nas cavalariças
e.estábulos.
72
Apollinaire e Bandeira
Podemos dizer que ao compararmos os dois poemas sob o viés do medievalismo,
encontramos, de forma semelhante, já em seus títulos, o sujeito poético que sofre do mal de
amar, “mal-aimé” em Apollinaire e “desamado” em Bandeira. Desse modo, observamos
nos títulos uma antecipação dos acontecimentos passados nos poemas, o que já define seus
protagonistas como desolados, desesperados por amar e não serem correspondidos,
apresentando um forte sentimento de pesar. É ainda interessante notar que, além da
semelhança nos títulos, mencionamos o fato do poema “Solau do Desamado”, segundo o
próprio Bandeira, ter sido inspirado em “La Chanson du Mal-Aimé”, escrito por
Apollinaire a partir da recusa ao pedido de casamento feito a Annie, o que sustenta tal
semelhança, pois há a influência confessa por parte do poeta brasileiro.
Assim, é possível progredir com a análise propriamente dita dos poemas, que de
forma semelhante abordam a questão do fim de amor, e ainda apresentam duas personagens
principais, como em Bandeira por meio de uma estrutura dialógica e uma função apelativa
com imperativos, vocativos e pronomes da segunda pessoa do discurso (a quem se fala), a
mulher, representada pela donzela e pela Castelã, “castelã donosa e gaia”(v. 23), “Donzela,
deixa tua aia”, (v.1), designada também pelos pronomes reflexivos “te”, “Transido de te
buscar”(v. 6), “Mostra-te ao fulgor do luar”(v. 10) e ainda pelo pronome possessivo “teu”,
“Céu puro de teu sonhar”(v. 8); e o homem, amante representado pelo vocábulo “mancebo”
e pela voz em primeira pessoa (a quem fala): “Sou mancebo de alta aia:”(v. 17), “não
trabalhar e sei justar”(v. 18), “Como um boi ao meu jantar!” (v.22). De modo semelhante, a
partir de uma história de amor finda, observamos também em Apollinaire, duas
personagens principais, o homem que diz “je” (aquele que fala), identificado somente como
“Mal-Aimé” do título, a mulher que foi “bien aimée”(v. 12), que aparece primeiro como
“tu” (a quem se fala) no discurso do Mal-Aimé (monólogo interior da estrofe 3) e em
seguida é designada, em terceira pessoa, pelo pronome lui (de quem se fala): “Une femme
lui ressemblant”(v. 22).
Além da semelhança de ordem estrutural dos poemas, notamos ainda que eles foram
inscritos em um cosmos demasiadamente nostálgico, no qual o amor mortifica o coração
daqueles que amam. Notamos que as personagens estão inseridas em uma esfera de
73
ceticismo auto-arrasador, em que o amor dilacera o coração e monstra as consequências
amargas que existem no ato de amar, provocando naquele que ama (mancebo) e (mal-aimé)
o sofrimento por não poder estar junto a sua amada (castelã/ Donzela) e (bien-aimée).
A concepção de amor medieval presente em ambos os poemas, seja pela busca do
amor perdido na confusão dos transeuntes da cidade, em Apollinaire, seja pelas súplicas de
amor e ameaças de suicídio em Bandeira, que apresentam com essa tentativa de
recuperação do objeto amado, todo o pesar e a efemeridade que existem no ato de amar.
Com essa concepção, notamos que nos dois poemas há um fundo notadamente negativo,
como na Idade Média, pois então, a morte inevitável certificava o homem de que “toda
beleza e toda felicidade (amor) eram inúteis porque estavam destinados a acabar em breve”.
(Huizinga, 1978, p. 131) – processo que ocorreu tanto com o eu-lírico bandeiriano quanto o
apollinairiano, pois ambos sempre foram e serão pesarosos, dada a sua condição humana,
pois mesmo ao vivverem uma relação amorosa, ela rapidamente acabará, fazendo com que
eles retornem à condição primeira de “mal-aimé”e “desamado”.
Embora tenhamos constatado tais similitudes, vimos que Apollinaire se utiliza de
traços humorísticos em seu poema, dignos de uma composição moderna, como na estrofe
40: “Et moi j’ai le coeur aussi gross”, “Qu’un cul de dorme damascène”, mesclando o
passado com o presente, com vocábulos dos mais raros até os mais triviais, o que em
Bandeira não ocorre, porque ele usou um vocabulário notadamente arcaico e que nos
direciona para uma leitura medieval, apesar de ter sido escrito no século XX.
Por fim, observamos que os poemas bandeiriano e apollinairiano se nutriram de
muitos aspectos medievais pois, “segundo Huizinga, os grandes fermentos da cultura
moderna estão na cultura medieval. E ainda de acordo com Robert Curtuis que diz: “A
poesia do amor moderno é obra da Idade Média”( Brayner, 1980, p. 244-245)
Nesse sentido, desenvolvemos mais uma tópica medieval na poesia de Manuel
Bandeira e Guillaume Apollinaire:
A inacessibilidade da mulher amada – “santidade”
Por meio dessa tópica, notamos que nos poemas “Solau do Desamado” e “La
Chanson du Mal-Aimé”, “há a presença da aura das coisais inatingíveis. A vida autêntica -
mas longínqua- no tempo e no espaço” (Brayner, 1980, p. 244) - o que coloca o sujeito
74
poético de tais poemas longe de sua amada, confirmando a sua condição única e primeira
de “mal-aimé” e “desamado”. É dessa forma que Bandeira apresenta o eu-poético
“desamado”, aquele que suplica o amor de sua amada e que sofre por não tê-lo: “Donzela,
deixa tua aia”, (v.1), “Tem pena de meu penar”, (v.2), “E o meu olhar se desmaia”, (v. 5),
“Transido de teu buscar”, (v. 6). Nesses versos observamos tamanho sofrimento pela busca
desse amor que o olhar do mancebo descora, desfalece, esmorece, monstrando a sua luta
para conquistá-lo, exigindo reconhecimeto por
tentativa de suicídio, indicando que esses preferem a morte à separação ou rejeição de sua
amada . Em seguida o refrão final em Bandeira nos assegura de que não há nada a temer, e
que o trovador está em perfeito controle de sua situação, fato que se manifesta da mesma
forma em Apollinaire, pois na estrofe 55, o vocábulo “triste”, que qualifica “délire” (v. 3),
“Triste et mélodieux délire”, mostra que a crise psicológica e moral se resolve por ela
mesma, e que a tentativa de suicídio não chega ao fim, como confirma o verso 5: “Sans
avoir le coeur d’y mourir”. Sendo assim, constatamos que a figura do mal-aimé e do
“desamado” nos dois poemas, acabam por aceitar essa condição de seres abandonados,
visto que não podem mudar sua própria e constante condição de ser, aquele que não é
amado.
Portanto, nessa análise, vimos que a tópica trabalhada nos leva ao nosso tema de
pesquisa, “Escritura da perda: um tempo não-reconciliado em Bandeira e Apollinaire”, pois
o sujeito poético dos poemas trabalhados padece por amar em demasia e sem reciprocidade,
resultado de um tempo sempre não-reconciliado.
A musicalidade na poética bandeiriana e apollinairiana
Ao estudarmos essa tópica, observamos que tanto “Solau do Desamado”quanto “La
Chanson du Mal-Aimé” são poemas musicados, que cantam todo o pesar da figura do mal
amado. Salientamos que o vocábulo “solau” de Bandeira significa antigo romance em verso
geralmente acompanhado de música, o que indica um gênero exclusivamente português e
popular, talvez originário do latim solar-consolar, aliviar pelo canto, cantu solata. Em
Bernardino Ribeiro, poeta português do século XVI, podemos identificar a expressão
“Cantar à Maneira de Solau”. E nesse sentido e por meio dessas definições que destacamos
a questão musical no poema, em que a figura do “desamado” busca o alívio para sua dor,
daquele que não é amado, através do canto, monstrando-se um ser que perdeu o brilho, que
obscureceu devido ao mal de amar. Ainda em relação à musicalidade poética, notamos que
a própria disposição dos versos de “Solau do Desamado” nos remete ao subtema
trabalhado, pois o poema de Bandeira é composto em versos de arte menor, alternados, com
rimas em aia e ar, revivendo uma antiga forma de balada, muito comum na literatura dos
séculos XVI ao XVII, criando uma melodia própria, intrínseca ao poema.
76
Esse traço de musicalidade também é percebido em “La Chanson du Mal-Aimé”,
poema identificado como uma canção amorosa, cheia de lamentos, que transforma a tristeza
em canto. Nas duas últimas estrofes 58 e 59, trabalhamos os aspectos mais importantes
relacionados ao amor elegíaco, como os diversos barulhos que se escutam nessa cidade,
como palco das angústias do mal-aimé, cujo mais notável é um grito indiferente de amor
(provado pelos “tziganes”, os “siphons”, “os garçons”) lançado pelos “cafés”(v. 16), lugar
onde se misturam todos esses sons que se encontram personificados. Todos os sons
personificados e encontrados na cidade colaboram para uma poesia calcada na
musicalidade, sendo essa uma melodia de pesar. Na estrofe 59, ainda notamos elementos do
universo musical e lírico, como a preseça de termos amorosos “lais” (v.21), poemas líricos
da Moyen Âge, “romance”(v. 24), canto de amor, “complaintes” (v. 22), canções populares
lamentosas, “hymnes”(v. 23), orações cantadas e em princípio `a fé fatal e mágica
“Chansons pour les sirènes”(v. 25) (Bégué & Lartegue, 1993, p. 43) - todas manifestações
de lirismo, denotando que há um trabalho com rimas, sons e recursos poéticos, em que o
“mal-aimé” canta as dores do amor em uma poesia elegíaca.
Podemos dizer que a musicalidade em Bandeira e em Apollinaire nos leva à
definição do vocábulo elegia em sua origem, nome que parece ter sido dado primeiramente
a uma espécie de lamento ou canto fúnebre acompanhado com o som de flauta, havendo
autores que ligam o étimo grego élegos a “sopro de flauta”. Nesse sentido, ao trabalharmos
com o nosso tema de pesquisa, “escritura da perda”, vemos que apresenta traços marcantes
da poesia alegíaca grega, tanto na questão do subtema musicalidade (sopro de flauta)
quanto na questão pesarosa do fazer poético (lamento ou canto fúnebre).
É, pois de suma importância, salientar que o poema francês apresenta 295 versos,
diversas histórias que denunciam a fragilidade do amor, e ainda uma linguagem moderna
com traços humorísticos. Dessa maneira, vimos nitidamente um confronto produtivo com o
Outro – La Chanson du Mal-Aimé/ Solau do Desamado – uma absorção e transformação do
poema francês, visto que a diferença se dá no fato do segundo, ser constituído por 33
versos, uma mmudança significativa, além de apresentar somente uma história de amor
findo, e uma linguagem oposta à moderna, a medieval.
Em resumo, notamos que a origem do gênero elegíaco está ligada à música, esta
última sendo demasiadamente nostálgica e melancólica. Assim, vemos que esses traços
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originários do gênero perduram nas poéticas bandeiriana e apollinairiana, por meio de uma
poesia extremamente musical e pesarosa.
3.2 – O noturno como marca de uma poesia penumbrista
Dando seqüência a análise com a temática do noturno, temos dois poemas cuja ambientação
se dá na escuridão da noite e de seus mistérios, “Le vent nocturne” e “Madrugada”. Desse
modo, analisamos primeiramente “Le vent nocturne”que retrata a melancolia penumbrista
existente na poesia pesarosa em questão:
Le vent nocturne
Oh! Les cimes des pins grincent em se heurtant
Et l’on entend aussi se lamenter l’autan
Et du fleuve prochain à grand’voix triomphales
Les elfes rire au vent ou corner aux rafales
Attys Attys Attys Charmant et débraillé
C’est ton nom qu’en la nuit les elfes ont raillé
Parce qu’un de tes pins s’abat au vent gothique
La forêt fuit au loin comme une armée antique
Dont les lances ô pins s’agint au tournant
Les villages éteints méditent maintenant
Comme les vierges les vieillards et les poètes
Et ne s’éveilleront au pas de nul venant
Ni quand sur leurs pigeons fondront les gypaètes
Demos início à análise com o poema de Apollinaire, no qual notamos uma atmosfera
assaz melancólica, em que se escuta o lamento do vento sul, ainda o ranger dos cumes dos
pinheiros se chocando e a interjeição “Oh” (V.1), da qual emana, de antemão, um grande
pesar como abertura do poema: “Oh! Lês cimes dês pins grincent em se heurtent”, “Et l’on
entend se lamenter l’autan” (V.1e 2).
78
Temos nos versos seguintes um rio próximo de onde se escuta, com voz triunfal, os
diversos barulhos desordenados dos gênios do ar, na mitologia escandinava “elfes”, que com
toda a sua fúria das rajadas ou vendavais “rafales” apresentam uma frase direcionada para
uma segunda pessoa, quiçá a mulher amada do sujeito poético em questão: “Et du fleuve
prochain à grand’voix triomphales”, “Lês elfes rire au vent au córner aux rafales”, “Attys
Attys Attys charmant et débraillé”, “C’est ton nom qu’um la nuit lês elfes ont raillé” (V.3,4,5
e 6). È importante destacar, que diante desse cenário obscuro, apesar da ambientação
elegíaca, há a presença de uma certa ironia no poema, pois os “elfes”, gênios do ar, zombam
e brincam com o nome daquela para quem o eu lírico se dirige, talvez devido a uma história
de amor finda, como tentativa de vingança por parte desse mal-amado.
Logo, devemos mencionar um fato que contribuiu sobremaneira para o estudo desse
poema, a sua inserção no “Groupe des Rhénanes”, pois nesse observamos as primeiras
impressões de Apollinaire evocadas diante do ambiente germânico em que viveu durante
um ano na Alemanha, na casa dos Milhau. Esse, como outros poemas do ciclo renano,
apresentam explicitamente ou implicitamente a paixão do jovem poeta pela governanta da
casa onde trabalhou, Annie Playden, um de seus grandes amores findo. Dessa forma,
podemos inferir que, longe de uma leitura puramente biográfica, essa segunda pessoa a
quem o sujeito poético se direciona no verso 6, seria Annie Playden e toda a atmosfera
natural, com as árvores e o rio Reno, a paisagem germânica.
Ademais, vimos que o vento noturno é classificado como vento gótico, direcionando-nos
para uma cultura obscura, devido ao período sombrio mencionado de estilo penumbrista dos
godos, mostrando toda a sua fúria por meio da queda de um dos pinheiros do cenário. Ainda,
essa ambientação é constituída por uma floresta que se mostra fugidia e longínqua na noite,
como um batalhão antigo, cujas lanças, os cumes dos pinheiros, agitam-se com movimentos
circulares: “Parce qu’un de tes pins s’abat au vent gothique”, “La forêt fuit au loin comme une
armée antique”, “Dont les lances ô pins s’agitent au tourment” (V.7,8 e 9).
Nesse viés, vimos que em tal atmosfera de trevas, o sujeito poético apresenta as
cidades dormindo, mas meditando ao mesmo tempo, como metáfora da vigília angustiante
daqueles que pensam em seus amores, seus medos e seus desejos secretos, confirmando a
citação de Shakespeare em Hamelet: “Alguns devem velar, enquanto outros devem
dormir”, “Assim gira o mundo”. È o que ocorre com as virgens que sonham acordadas com
79
toda a sua ansiedade inocente, os velhos que naturalmente reduzem o tempo de sono, e
conseqüentemente velam toda a nostalgia de um passado e o temor de um futuro não muito
longo, e os poetas que mesmo nas horas mais mortas do dia, a noite, transformam e
despertam o sentimento do belo: “Les villages éteints méditent maintenant”, “Comme les
vierges les vieillards et les poètes” (V.10 e 11).
Notamos que no final do poema há a permanência do eu lírico mal-amado no cenário
sombrio, pois indica que “as virgens, os velhos e os poetas”, incluindoolo8(ortas dv)o3is
E enquanto penso em ti, no meu sonho erradio,
Sentindo a dor atroz desta ânsia incontentada,
- Fora, os beijos glaciais e cruéis da geada,
Tremem as flores, treme e foge, ondeando, o rio,
E as estrelas tremem no ar frio, no céu frio.
Observamos que a primeira estrofe apresenta um céu frio em que até mesmo as estrelas
tremem, gotículas da orvalhada que se condensam nas superfícies frias e um silêncio
pavoroso interrompido apenas por um vago murmúrio na ribanceira: “As estrelas tremem no
ar frio, no céu frio...”, “E no ar frio pinga, levíssima, a orvalhada.”, “ Nem mais um ruído
corta o silêncio da estrada,” “Se não na ribanceira um vago murmúrio.” (V.1,2,3 e 4)
Na estrofe seguinte, temos a certeza de que na madrugada fria tudo dorme, exceto o
sujeito poético mal-amado que na vigília olha o espaço sombrio, pensando na imagem
adorada de sua amada, confirmando a sua solidão em meio ao negrume da noite: “ Tudo
dorme. Eu, no entanto, olho o espaço sombrio,”, “Pensando em ti, ó doce imagem
adorada!...” (V.5 e 6). Nessa, as estrelas continuam a tremer no ar e céu frios, com as gotas
da orvalhada a pingar, como em um cenário gélido e assustador, pois até mesmo os astros
com luz própria, que poderiam trazer claridade à escuridão, tremem e se apagam diante de
tamanha força das trevas: “As estrelas tremem no ar frio, no céu frio,”, “E no ar frio pingam
as gotas da orvalhada...” (V.7 e 8).
Na terceira estrofe, o eu lírico insiste em dizer que pensa em sua amada, e chega a se
perder em seu sonho ou pensamento. Dessa forma, já não sabemos se o eu-poético está
sonhando, ou se está simplesmente sonhando acordado: “Enquanto penso em ti, no meu
sonho erradio,”. Diante dessa atmosfera que emana melancolia, onde tudo parece tremer
com o frio da madrugada, vimos que a arte do fazer poético se mistura ao sonho, sendo esse
um mundo de fantasia.A figura do mal-amado aí se refugia para tentar reviver a lembrança
daquela imagem adorada que se esvaeceu com o tempo, pois é na arte que os sonhos e a
imaginação se cruzam:
81
mas os sonhos não são simplesmente um mundo de fantasia
para onde o artista foge; são também parte da natureza e da
trama da arte. Em outras palavras, é na arte que os sonhos e a
imaginação se cruzam e, muito antes de os românticos
redescobrirem o pesadelo e Freud o inconsciente, a função da
arte era de alimentar a realidade desperta com o poder, a
vividez e a dramaticidade dos sonhos. (Alvarez, 1996p.164)
Nos versos subseqüentes, o pesar do eu lírico toma maior força e clareza, visto que o
pensamento na imagem adorada provoca uma dor intolerável como resultado da ânsia
incontentada: “Sentindo a dor atroz desta ânsia incontentada,” (V.10). Essa consternação é
confirmada por meio de beijos glaciais e cruéis da geada, o que nos causa um certo
estranhamento, pois o calor e o júbilo que tal atitude amorosa deveria provocar, é aqui
apresentada com crueldade e gelidez. Assim, nesse cenário congelado pelo frio da
madrugada, as flores tremem e o rio foge movendo-se em ondulações: “- Fora, aos beijos
glaciais e cruéis da geada”, “Tremem as flores, treme e foge, ondeando, o rio,” (V.11 e 12).
“Madrugada” termina com a repetição do verso “E as estrelas tremem no ar frio, no
céu frio...” (V.13), que intensifica a permanência do eu-poético pesaroso na escuridão da
noite, garantida pelas reticências, na medida que é nessa ambientação, característica de todo
o seu lamento, que pode reviver o que findou.
Enfim, “Madrugada” elege como palco a noite fria, com toda a sua carga simbólica
de lamento, solidão e enigmas, sendo propícia para reanimar ou reviver na figura do mal-
amado aquilo que o tempo levou consigo.
Apollinaire e Bandeira
Dando seqüência, iniciamos o diálogo entre as duas poéticas, elegendo como fio
condutor a escuridão da noite, cuja anãlise se passa no universo da ausência do sol.
Então, nota-se que tanto “Le vent nocturne” quanto “Madrugada” têm a escuridão
como cenário de uma poesia penumbrista. Logo, considerando toda a simbologia existente
nessa atmosfera, citamos a visão dos gregos que colaborou de forma relevante para o
estudo dessa temática obscura e elegíaca. Nessa, a noite (nyx) era a filha de Caos e a mãe
82
do Céu (Urano) e da Terra (Gaia). Ainda, produziu o sono e a morte, os sonhos e as
angústias, a ternura e o engano. È o que observamos nos poemas, pois o eu lírico nos insere
em um mundo de mistério e consternação, o qual não conseguimos identificar se é a vigília
ou o sono onde o inconsciente se libera, o berço frio e a escuridão da morte, ou a ternura
vindoura do desabrochar do dia seguinte.
Nesse cenário de trevas e incertezas, a melancolia no poema “Le vent nocturne” se
manifesta por meio do lamento do vento sul, do ranger dos cumes dos pinheiros se
chocando e da interjeição “Oh!”(V.1), da qual emana por antecipação um grande pesar:
“Oh! Les cimes des pins grincent em se heurtent”, “Et l’on entend se lamenter l’autan”
(V.1e 2).
De forma semelhante, “Madrugada” se inscreve em uma atmosfera repleta de
sombriedade e de enigmas, tendo também a angústia como sentimento constitutivo do poema,
cuja ambientação se constrói por meio de um céu frio em que até mesmo as estrelas tremem.
Assim, como “Le vent nocturne”, todos dormem e o silêncio noturno paira no ar, sendo
interrompido apenas por um vago murmúrio na ribanceira: “As estrelas tremem no ar frio, no
céu frio...”, “E no ar frio pinga, levíssima, a orvalhada.”, “ Nem mais um ruído corta o
silêncio da estrada,” “Se não na ribanceira um vago murmúrio.” (V.1,2,3 e 4). Logo, notamos
cenários frios, obscuros, solitários e enigmáticos, como a própria historicidade da temática da
noite nos apresenta, pois segundo Bruce Chatwin a razão para que o mal esteja sempre
associado à escuridão na mente humana, tem suas raízes nos homens primitivos que
acreditavam, além de todos os símbolos, nictomórficos de vulnerabilidade, solidão e frio que
as trevas possuíam um predador maligno que apreciava carne humana chamado Dinofélis:
Dinofélis era um felino menos ágil do que um leopardo ou uma
chita, mas muito mais encorpado. Seus dentes mortíferos eram
retilíneos como adagas, a meio caminho em sua forma entre os
de um dente-de-sabre e os de um tigre atual. Sua mandíbula
inferior podia fechar-se com violência e, como devido à sua
constituição física algo pesado ele precisava caçar de
emboscada, deve também ter caçado à noite [...] seus ossos
foram encontrados do Transvaal à Etiópia: ou seja, a área de
83
presença original do homem. (...) Será que somos tentados a
perguntar, que o Dinofélis era a Nossa Besta, uma Besta
separada de todos os outros Avatares do Inferno? O
Arquiinimigo que nos espreitava, dissimulada e
astuciosamente, onde quer que fôssemos? Quer aceitemos um
grande felino, vários felinos ou horrores como a hiena
caçadora, o que Bob Brain conseguiu, na minha opinião foi
recuperar uma figura cuja presença vinha se tornando cada vez
mais obscura desde o fim da Idade Média: o Príncipe das trevas
em toda a sua sinistra magnificência. (Álvares, 1996, p.47-48)
É nesse viés que se inscrevem tais poemas, tendo o cenário noturno com toda sua
carga simbólica de terrores e solitude, como condição primeira para nutrir tanto o eu lírico
mal-amado por natureza bandeiriano quanto o apollinairiano, visto que suas poesias são
insistentemente pesarosas e obscuras em praticamente toda as obras aqui estudadas.
Nos versos seguintes de “Le vent nocturne”, notamos um rio próximo de onde se
escuta, com voz triunfal, os diversos barulhos desordenados dos gênios do ar, na mitologia
escandinava “elfes”, que com toda a fúria das rajadas ou vendavais “rafales” apresentam
uma frase direcionada para uma segunda pessoa, quiçá a mulher amada do sujeito poético
em questão: “Et du fleuve prochain à grand voix triomphales”, “Les elfes rire au vent au
córner aux rafales”, “Attys, Attys, Attys charmant et débraillé”, “C’est ton nom qu’em la
nuit lês elfes ont raillé”(V.3,4,5 e 6). Com esses, devemos nos reportar ao que Silvana
Amorim, em seu livro Guillaume Apollinaire: fábula e lírica, estuda, a questão fabulírica
dos poemas do Ciclo Rhénanes. E o que observamos em “Le vent nocturne”, há um
cruzamento de sonho e realidade, lenda e cotidiano, e ainda a presença do sobrenatural
manifestada de várias formas, como exemplo, o mito dos “elfes”. Assim, podemos dizer
que todos os aparatos fabulares e mitológicos presentes na obra de Apollinaire nos levam
para uma evasão simbolista, tendo as lembranças esmaecidas pela passagem do tempo,
resgatadas em uma poesia calcada no onírico, onde se pode reviver ou recriar o que findou.
Essa poesia com incursões no onírico, pode ser ainda exemplificada pela própria atmosfera
84
que a constitui, pois estando o poema localizado na noite, nunca temos a certeza de que
tudo não passa realmente de um sonho.
È importante salientar, que diante desse cenário obscuro, apesar da ambientação
elegíaca, há a presença de uma certa ironia no poema, pois os “elfes”, gênios do ar,
zombam e brincam com o nome daquela para quem o eu lírico se dirige, talvez devido a
uma história de amor finda, como tentativa de vingança por parte desse mal-amado. Diante
disso, devemos mencionar um fato que contribuiu sobremaneira para o estudo do poema, a
sua inserção no “Groupe de Rhénanes”, pois nesse observamos as primeiras impressões de
Apollinaire evocadas diante do ambiente germânico em que viveu durante um ano na
Alemanha, na casa dos Milhau, conseqüentemente a apreensão de toda uma literatura
popular, lendária e mitológica do lugar em questão. Esse, como outros poemas do ciclo
renano, apresentam explicitamente ou implicitamente a paixão do jovem poeta pela
governanta da casa onde trabalhou, Annie Playden, um de seus grandes amores findo.
Do mesmo modo que Apollinaire, Manuel Bandeira aborda na segunda estrofe a
questão da madrugada fria onde todos dormem, exceto o eu lírico mal-amado que na vigília
olha o espaço sombrio pensando na doce imagem adorada de sua amada, confirmando a sua
solidão em meio ao negrume da noite: “Tudo dorme. Eu, no entanto, olho o espaço
sombrio”, “Pensando em ti, ó doce imagem adorada!...” (V.5 e 6). Nessa, as estrelas
continuam a tremer no ar e céus frios, com as gotas da orvalhada a pingar, como em um
cenário gélido e assustador, pois até mesmo os astros com luz própria, que poderiam trazer
claridade a essa escuridão, tremem e se apagam diante de tamanha força das trevas: “As
estrelas tremem no ar frio, no céu frio,”, “E no ar frio pingam as gotas da orvalhada...”(V.7
e 8). Logo, semelhante a “Le vent nocturne” o frio e o vento da madrugada corroboram a
imagem lúgubre do ambiente no qual se insere o eu lírico pesaroso, atestando o caráter
melancólico da obra estudada, A cinza das horas que é escrita com “a cinza fria que restou
das horas ardentes”, e também, Alcools, com “as cinzas” que ficaram do fogo que
transforma a bebida que queima e embriaga.
Desse modo, vimos que tanto Bandeira quanto Apollinaire citam diretamente ou
indiretamente a imagem da mulher amada na noite fria, o que nos direciona para um fator
importante da vida do primeiro que muitos exegetas de sua poesia pouco analisaram, tendo
Ivan Junqueira abordado de forma significativa. O crítico em seu livro Manuel Bandeira
85
Testamento de Pasárgada aponta a questão de o poeta ter sido um homem doente e de vida
social extremamente irregular. Além disso, nunca pôde contar com os atributos de beleza
física que a vida, ainda uma vez, madrasta, negou-lhe. Suas relações amorosas com as
mulheres foram, por isso mesmo, sempre problemáticas e, não raro, frustrantes. (Junqueira,
2003,p.209). Assim, a doce imagem adorada para quem o eu lírico se direciona pode ser a
lembrança de um dado amor acabado, tendo uma relação bastante próxima a de Apollinaire,
na medida em que o poeta francês também teve várias histórias de amor cessadas.
Um outro dado relevante para a nossa pesquisa, é a possível explicação para a
presença enfática do cenário noturno na poética Bandeiriana, que provavelmente tem
ligação com o seu estado de homem tísico, cheio de imposições de repouso e
confinamentos para o seu tratamento. Dessa maneira, Bandeira se viu em um mundo de
silêncio e solidão, tendo a noite e a morte como fiéis companheiras durante toda a sua vida.
Mas o mais interessante é que, o poeta deveria, de acordo com as orientações médicas, sair
durante a manhã ou a tarde, o que fazia ao contrário, pois era completamente da noite,
mesmo porque a luz do sol é que lhe desencadeava as piores crises, talvez por sofrer
também de um agudo processo alérgico. Logo, o silêncio e a solidão da noite estão em
grande parte de seus poemas, com todas as suas sombras e fantasmagorias (Junqueira,
2003, p.233). È importante ressaltar, que tais referências biográficas, não reduzem a
grandeza da poética bandeiriana simplesmente a sua vida, mas colaboram para
compreender ainda mais a grandiosidade de sua incomparável lírica.
Vimos ainda que em “Le vent nocturne” o vento é classificado como vento gótico,
direcionando-nos para uma cultura obscura, devido ao período sombrio mencionado, de
estilo penumbrista dos godos, mostrando toda a sua fúria através da queda de um dos
pinheiros do cenário. Essa ambientação é constituída por uma floresta que se mostra fugidia
ou longínqua na noite como um batalhão antigo, cujas lanças, os cumes dos pinheiros,
agitam-se com movimentos circulares: “Parce qu’ un de tes pins s’abat au vent gothique”,
“La forêt fuit au loin comme une armée antique”, “Dont les lances ô pins s’agitent au
tournant” (V.7, 8 e 9).
Observa-se então, que em tal atmosfera de trevas, o sujeito poético apresenta as
cidades dormindo, mas meditando ao mesmo tempo, como metáfora da vigília angustiante
daqueles que pensam em seus amores, seus medos e seus desejos secretos. “È o que ocorre
86
com as virgens que sonham acordadas com toda a sua ansiedade inocente, os velhos que
naturalmente reduzem o tempo de sono, e conseqüentemente velam com nostalgia todo um
passado e o temor de um futuro, e os poetas que mesmo nas horas mais mortas do dia, a
noite, transformam e despertam o sentimento do belo: “Les villages éteins méditent
maintenant”, “Comme les vierges les vieillards et les poètes” (V.10 e 11). Mas devemos
mencionar que apesar dessas personagens se mostrarem acordadas não temos certeza de tal
situação , nada nos garante que elas estejam dormindo com o restante da cidade, pois todo o
cenário com os gênios do ar e a floresta personificada em um batalhão, já nos demonstra
uma atmosfera onírica, sem a lógica do mundo da vigília, o que Eugène Ionesco classifica
como, o sonhar sendo a base da arte:
O sonho é puro drama. Num sonho, a pessoa está sempre
numa situação intermediária. Para ser mais conciso, creio que
o sonho é um pensamento lúcido, mais lúcido do que qualquer
pessoa tem quando está acordada, um pensamento expresso
em imagens, e que, além disso, sua forma é sempre
dramatizada.(Alvarez, 19996, p.144)
O mesmo acontece na terceira estrofe de “Madrugada”, o eu-lírico insiste em dizer
que pensa em sua amada, e chega a se perder em seu sonho ou pensamento. Dessa forma, já
não sabemos se está sonhando, ou se está simplesmente sonhando acordado: “E enquanto
penso em ti, no meu sonho erradio,” (V.9). Logo, diante dessa atmosfera sombria e
melancólica, onde tudo parece dormir e tremer no frio da madrugada, vimos que a arte se
mistura ao sonho, sendo esse um mundo de fantasia. A figura do mal-amado aí se refugia,
como em “Le vent nocturne”, para tentar reviver a lembrança daquela imagem adorada que
se esvaeceu com o tempo, pois é na arte que os sonhos e a imaginação se cruzam:
mas os sonhos não são simplesmente um mundo de fantasia
para onde o artista foge; são também parte da natureza e da
trama da arte. Em outras palavras, é na arte que os sonhos e a
imaginação se cruzam e muito antes dos românticos
87
redescobrirem o pesadelo e de Freud o inconsciente, a função
da arte e a dramaticidade dos sonhos. (Alvarez, 1996, p.164)
Essa consternação, ao mesmo tempo feérica, é confirmada por meio da paisagem
acrescida de beijos glaciais e cruéis da geada, o que nos causa um certo estranhamento,
primeiro porque a geada está personificada, segundo porque o calor e o júbilo que tal
atitude amorosa deveria provocar, é aqui apresentada com crueldade e gelidez. Diante desse
cenário congelado pelo frio da madrugada, as flores tremem e o rio foge movendo-se em
ondulações: “Fora, aos beijos glaciais e cruéis da geada”, “Tremem as flores, terme e foge,
ondeando, o rio,” (V.11 e 12).
Ademais, vimos que tanto em “Madrugada quanto em “Le vent nocturne” há a
presença de um rio, o que nos atesta para o seu caráter simbólico de fertilidade, morte e
renovação. Esse simboliza ainda a existência humana e o curso da vida, pois a variedade de
seus desvios indica tanto o nascimento em uma nascente quanto o morrer nas águas do
oceano. Logo, podemos inferir que as águas que escoam são metáfora da passagem do
tempo nos poemas, indicando a lembrança da mulher amada, como algo que se perdeu no
olvido imenso do passado.
Notamos que no final de “Le vent nocturne” há a permanência do eu lírico mal-
amado no cenário sombrio, pois esse indica que “ as virgens, os velhos e os poetas”,
incluindo ele, não acordarão em hipótese alguma, nem mesmo quando os pombos forem
abatidos pelas grandes aves de rapina, que caçam somente durante o dia. Elas são
apresentadas como símbolos do dia, visto que não fazem suas buscas à noite. Desse modo,
mesmo que tais pássaros cheguem para anunciar o dia, o sujeito poético insiste em
permanecer nas trevas: “Et ne s’éveilleront au pás de nul venant”, “Ni quand sur leurs
pigeons fondront les gypaètes” (V.12 e 13).
É o que ocorre em “Madrugada”, encerrando com a repetição do verso 7, e
intensificando a permanência do eu poético pesaroso na escuridão da noite, garantida ainda
pelas reticências, na medida em que é nessa ambientação, característica de todo o seu
lamento, que se pode reviver o que se esvaeceu com o decurso do tempo: “E as estrelas
tremem no ar frio, no céu frio”... (V.13).
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Por fim, “Madrugada” e “Le vent nocturne” são poemas que se constituem sob o
manto obscuro da noite e do lirismo triste, com todos os seus sortilégios e terrores, sendo
campo de liberdade para o eu lírico, por meio do fazer poético, recuperar o que os
crepúsculos diários levaram consigo e que não se pode reviver na claridade do dia.
3.3. A efemeridade do amor e a inexorabilidade do tempo
Dando continuidade ao tema de nossa pesquisa, “Escritura da perda: um tempo não-
reconciliado em Bandeira e Apollinaire”, analisamos ainda o pesar na figura do “mal-aimé”
no poema “Le Pont Mirabeau”(1912):
Le pont Mirabeau
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu'il m'en souvienne
La joie venait toujours après la peine.
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
Les mains dans les mains restons face à face
Tandis que sous
Le pont de nos bras passe
Des éternels regards l'onde si lasse
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Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
L'amour s'en va comme cette eau courante
L'amour s'en va
Comme la vie est lente
Et comme l'Espérance est violente
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Vienne la nuit sonne l'heure
Les jours s'en vont je demeure
Ao trabalharmos com este subtema no poema selecionado, vimos que ele nos
apresenta um cosmos de tamanha melancolia que o término do amor se equipara ao
desespero do olhar daquele que não pode reter o tempo que passa. Desse modo, o eu lírico
apresenta a angústia pelo tempo ininterrupto que leva embora os amores e o faz se
distanciar de seus anos de gozo.O sujeito poético sofre ao se indagar a respeito de que
forma pode esquecer ou aceitar a passagem dos anos e de seus amores. Essa angústia pode
ser suprimida na tentativa de se criar um novo mundo, imaginário, no qual seus alcools
amenizam o desespero advindo da efermidade do amor e da passagem de todas as coisas
terrenas. Nesse mundo onde não existe pesar, quiçá um “au-delà” baudelairiano, em que a
evasão fictícia colabora para que as agruras vivenciadas sejam mais leves e mais fáceis, o
eu-lírico de uma certa forma obtém um consolo:
90
“Comment oublier les années et les amours qui passent, résistir
au lent empoisonnement du temps? Première tentative:
l”imagination et ses alcools semblent nous ouvrir un monde où
tout est plus léger, plus facile.” (Lecherbonnier, 1993, p.15)
Embora haja uma embriaguez poética como fuga da amarga realidade, o sujeito
poético não alcança êxito, pois essa evasão sempre o direciona para si próprio, ou seja, o
maior desalento está interiorizado no seu “eu”, como uma certa angústia existencial: “Mais
fuir ne sert à rien: tout vous ramène toujours à vous-même”. (Lecherbonnier, 1983, p.15)
Com o propósito de analisar o pesar em relação ao tempo que se esvai levando consigo as
lembranças felizes,tomamos como ponto de partida a expressão do tempo que passa,
representada pelo escoamento da água do rio no poema, indicando com precisão a sucessão das
horas, dos dias e dos anos. O amor resiste desesperadamente ao curso do rio parisiense que
passa, tranqüilamente, inexoravelmente, sob essa ponte maciça, rígida, austera, insensível aos
pensamentos dolorosos do amor, às sensíveis lembranças das sombras persistentes, advindas do
sofrimento, e totalmente infelizes (Rouveyre, 1995, p.86).
Os elementos da imagem comportam os mesmos caracteres: a lentidão (v.15), a
continuidade ininterrupta (“éternels”) (v.10), a irreversibilidade (v.20-21). Ademais,
relacionado ao símbolo do verso 1, “coule la Seine”, retomado no verso 22, o campo lexical
da passagem se organiza a partir dos verbos. Todos eles estão no presente, exceto “venait”
(v.4). Esse tempo marca a continuidade ininterrupta: “passe” (v.4), “s’en va” (v.13-14),
‘Passent” (v.19), repetido e retomado pelo particípio “passé” (v.20) e sobretudo “s’en
vont”; no segundo verso do refrão, retomado quatro vezes. Junto a essa idéia da
inexorabilidade do tempo podemos associar a inconstância de muitos elementos da
natureza, como o rio, a neve, tudo se resumindo ao estado da mudança, do efêmero. Assim,
nessa associação, notamos que a natureza também é errance , passagem, inconstância,
como o amor observado no poema, que se esvai com a fluidez do rio: “tout est fleuve,
neige, tout se resume à l’état du devenir, de l’éphémère. La nature aussi est errance,
passage, inconstance, comme l’amour...” (Lecherbonnier, 1983, p.15)
Além disso, por meio de toda essa poesia pesarosa que lamenta o amor findo,
observamos que o curso incessante do rio indica um estado sentimental, a nostalgia
91
presente na passagem do tempo, representativa das decepções amorosas do eu poético que,
segundo Royere (1995, p.86), Apollinaire sabia por revelação íntima e por experiência já de
sua vida, que a dor, especificamente do amor, era o alimento predestinado, necessário
mesmo à fonte ou origem de sua arte. Mas sempre lembramos que essa associação
biográfica serve simplesmente para esclarecer dados relevantes e jamais para limitar a
poética do autor.
Por meio da passagem do tempo, ainda podemos estudar as imagens e as
correspondências existentes no poema, como: as águas do rio e o amor no verso 13:
“L’amour s’en va comme cette eau courante”, havendo igualmente uma associação do amor
com o Seine, nos versos 21e 22; “Ni les amours reviennent”, “Sous le Pont Mirabeau coule
la Seine”. Então, observamos o sentimento amoroso comparado à água corrente do rio,
demonstrando toda a sua efemeridade, pois, segundo o poeta de Alcools, não existe amor
feliz. Pois em vão é tentar resgatar o tempo perdido, pois nem o tempo passado, nem os
amores retornam. A única defesa contra essa inexorabilidade do tempo é a sua abolição,
criando um eterno presente, ou seja, presentificando as situações findas.
Em seguida, notamos a invocação do amor passado que, apesar das tempestades
vivenciadas pelos dois amantes, não apresenta nenhuma característica dramática, nem
desesperada, “Faut-il qu’il m’en souvienne” – o que não diminui a dor do poeta em relação
ao fim do seu grande amor. Essa interrogação (pode apresentar também uma surpreendente
ambigüidade, uma exclamação em forma de suspiro) se faz sob um tom de lassitude sem
agressividade. O verso 4 ainda evoca tanto as lembranças felizes quanto as tristes: “La joie
venait après la peine”. O tempo presente encontrado na maioria dos versos indica a
continuidade da lembrança, da mesma forma que o fluxo contínuo do rio indica uma
história de amor acabada, sem retorno, como a passagem do tempo: “Ni les amours
reviennent (v.20-21). Desse modo, o rio “Seine” é o confidente desse eu-lírico mal-amado,
no qual vê refletida a imagem de seu triste destino. Essa angústia pelo amor passado é
também vista na união dos amantes atormentada pelo tempo que corre. A onda se cansa de
ser observada, como se cansa o olhar mútuo dos amantes, em uma ligação que muito durou.
(Morhange-Bégué & Lartigue, 1993: p.23-24) – imagem essa que representa o desgaste de
uma relação longa, através mesmo do olhar mútuo dos amantes, o qual indica que devora
ou irradia qualquer chama de amor, por maior ou duradoura que seja.
92
Nesse sentido, podemos dizer que o rio é ao mesmo tempo o símbolo da destruição
vagarosa e imperceptível, caminho que nos leva à morte irrefutável, sendo classificado
como o espelho que reflete o desalento dos amantes, pois nesse caso o amor “s’en va
comme l’eau courante”. Assim, esse rio caminha para sua própria morte, aderindo à lei
natural do universo de que tudo apresenta um fim, como o amor. O pesar devido à
passagem do tempo e, conseqüentemente, o fim do amor podem ser explicados por meio de
uma carta do poeta de agosto de 1916, para Jeanne-Yves Blanc: “Nada determina mais
melancolia em mim do que essa fuga do tempo. Ela está em desacordo tão formal com meu
sentimento, minha identidade, que é a própria origem de minha poesia” (Apud Décaudin,
1993, p.81). Ao trabalharmos com a inexorabilidade do tempo, observamos que o eu-lírico
procura de qualquer forma retomar o seu amor perdido mesmo que seja poetizando-o, pois
quando o resgata pela memória, presentifica aquilo que passou.
Essa lembrança que o poeta apresenta em relação a sua fragilidade e a sua impotência
mediante a passagem do tempo obriga-o a recuperar o passado imortalizando o presente,
construindo assim uma cadeia cíclica através das reminiscências, mas que jamais recupera
verdadeiramente o que findou, haja vista que o resgate nunca serà do Mesmo, mas da
Diferença. Essa cadeia cìclica è proveniente de um cìrculo eternamente descentrado, como
apenas seleção que deixa subsistir o novo.
O eu lírico, por meio da água do rio e do tempo ininterrupto, apresenta a imagem
simbólica da “permanência do ser”, visto que a continuidade do rio representa a
continuidade psíquica do poeta: “Les jours s’en vont je demeure”, pois a água e a vida
representam um eterno recomeço. Além da imagem simbólica da ponte de concreto, que
abruptadamente é humanizada, formada por dois braços “pont de nos bras”(v.9), o eu-lírico
faz ressurgir de sua história passada uma lembrança sem amanhã. Essa desesperança é
perenizada ainda na estrofe 2, “Les mains dans les mains restons face à face”(v.7), estando
os olhares de seus protagonistas voltados para a eternidade. Mas logo essa idéia é desfeita,
pois embora haja essa presentificação ou eternização do passado, é ilusório e vão voltar ao
mesmo. A impossibilidade da volta às coisas findas é explicitada na última estrofe, por
meio do curso do rio, o qual jamais se inverte, e nunca corre ao contrário. Pois mesmo que
volte “nem mesmo o rio em que entrais pela segunda vez é o mesmo que da primeira
vez”(apud Deleuze, 1967, p.93). Enfim, essa recuperação do passado através da memória
93
como metáfora do rio não o resgata de forma verdadeira pois, ao ser retomado, é
simplesmente relembrado de forma ainda mais dolorosa.
Portanto, o poema “Le pont Mirabeau” apresenta a impotência da figura do mal-
amado mediante a efemeridade do seu grande amor como conseqüência da inexorabilidade
do tempo, em que predomina uma totalidade melancólica, caracterizando-o como elegíaco.
Assim, considerando os sistemas analisados, podemos partir para mais uma tópica
presente no poema:
“Aspecto da modernidade – Uma linguagem retirada do mais humilde cotidiano”.
Nessa tópica, observamos que, embora haja uma certa distribuição regular dos versos
e por conseguinte de suas rimas, ainda a presença de 4 estribilhos idênticos, notamos que a
sua temática é retirada da “banalidade” cotidiana, uma ponte de concreto, como metáfora
do tempo que passa. Logo, podemos dizer que a poesia apollinariana está em tudo, nas
palavras mais sublimes e nas mais triviais:
Du plus trivial au plus raffiné, du plus banal au plus rare, du
plus clair au plus ésotérique, aucun mot n’est exclu de son
lexique où ne cessent de se composer et de se défaire
d’imprévisibles amalgames tout en dissonances. (Décaudin,
1993, p.54)
Desse modo, vimos que é da linguagem banal que surge a linguagem poética em
Apollinaire, não mais aquela do casticismo, com fortes inversões, conceitos e arcaísmos do
Parnasianismo. Agora é a opulência na simplicidade. Notamos que a triste história de amor
é contada por meio de imagens simples, como a água do rio e a ponte de concreto,
utilizando o cotidiano, e tudo o que há nele, como material poético. Assim, notamos que o
poeta trabalha com tudo aquilo que nutre o seu exterior, reservatório de imagens,
utilizando-se de um elemento da natureza, a água do rio, e de uma imagem nada sublime
para explicitar a questão do amor. Mas a sua criação poética não condiz com uma pura e
simples reprodução das “imagens do cotidiano”, mas sim com a chave decisiva que nos
permite adentrar no mais profundo mistério de sua criação artística, a qual transforma a
angústia humana em poesia:
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Le premier point concerne la relation du créateur, poète ou
peintre, à la nature. Il se nourrit du monde extérieur qui est
pour lui un inépuisable réservoir d’images. Mais son rôle
n’est pas de seulement le reproduire. (Décaudin, 1993, p.123)
Essa simplicidade lingüística e temática pode ser ainda observada no próprio desejo
que o poeta Apollinaire apresenta, transformar tudo em matéria poética, transformando os
objetos e situações mais simples em poesia: “É o próprio Apollinaire, o poeta mal-amado,
quem expressa seu desejo de transformar tudo em matéria poética, ao dizer em seu diário
que ‘tudo se tornará Poesia, a história torna-se fábula, os próprios objetos, ao tornarem
antigos, enfeitam-se de poesia. O respeito aos velhos, o culto dos mortos, tudo isso é a
prova dessa transformação de tudo em poesia’”.(apud Burgos et al, 1998, p.270).
Por fim, podemos trabalhar com uma outra característica que colabora para o
desenvolvimento dessa tópica, a ausência de pontuação. Nessa notamos uma certa fluidez
poética, sem as limitações rítmicas e melódicas de antemão. Assim, essas marcas de
modernidade poética, como a utilização de vocábulos retirados do mais humilde cotidiano
e, ainda, a ausência de pontuação, colaboram para compreendermos o que o poeta de
Alcools busca demonstrar à maneira dos modernos, uma imagem fiel do universo tal como
nós a percebemos.
Dando seqüência a essa poesia escrita com a tinta da melancolia como resultado do
decurso do tempo, passamos ao poema “O anel de vidro”.
O ANEL DE VIDRO
Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim – era vidro e logo se quebrou...
Assim também o eterno amor que prometeste,
- Eterno! Era bem pouco e cedo se acabou.
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, -
Aquele pequenino anel que tu me deste,
- Ai de mim – era vidro e logo se quebrou...
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Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo na alma a saudade celeste...
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste...
(Bandeira, 1982, p. 42)
Ao analisarmos o subtema através do poema indicado, constatamos que esse está
inserido em uma atmosfera de extrema tristeza e solidão, remetendo-nos ao tema de nosso
projeto. Esses sentimentos são provocados pela passagem ininterrupta do tempo e, por
conseguinte, o fim do amor. Assim, essa tristeza poética acentuada nos remete ao crítico
Coelho (1982, p. 16), o qual analisa a questão do tédio na lírica bandeiriana:
o tédio, ‘ce mostre délicat’ da definição de Baudelaire em Les
Fleurs du mal, e o tempo, outra entidade não menos monstruosa,
são propícios ao surgimento da melancolia e da monotonia
(palavras-eixo no léxico do Simbolismo, verdadeiros emblemas
da angústia moderna). Esse tédio, que no livro A cinza das horas
cai até dos telhados (“ Enquanto a chuva cai”, “Cartas de meu
avô”), enlanguesce e deprime a consciência, submetendo-a,
como em Verlaine, a crises de tristeza e lassidão indivisíveis e
inexplicáveis. Por isso, a poesia bandeiriana é embebida ou
construída por meio do pesar existente no ato de viver, o
sofrimento é a sua fonte inspiradora.
Por meio de toda essa poesia nostálgica, Bandeira trabalha a expressão angustiante e
inexorável da passagem do tempo em “O anel de vidro”, cujos versos indicam o começo e o
fim dos amores do sujeito poético, mostrando que o tempo passa ininterruptamente,
deixando uma triste marca e uma saudade avassaladora: “ Aquele pequenino anel que tu me
deste,” ( v. 1); “ Ai de mim – era de vidro e logo se quebrou...” ( v. 2); “ Símbolo da afeição
que o tempo aniquilou,” ( v.6). Além dos verbos, quase todos no pretérito, exprimindo
ações que ocorreram no passado, contrastando o presente do eu poético, de sofrimento
arraigado, de dor e ressentimento, com o passado de juras de eterno amor, observamos um
96
suposto símbolo ou aliança, o anel de vidro, de uma união eterna: “me deste” ( v. 1), “ se
quebrou” ( v. 2), “ prometeste” ( v. 3), “ aniquilou” ( v. 6), “ investe” ( v. 9), “ amou” ( v.
3), “ guardei” e “ me ficou” ( v. 12). Através desses verbos no passado, constatamos que o
sujeito poético chora a dor de seu amor findo, fazendo uma associação do mesmo com algo
concreto, um anel de vidro. Esse objeto por si só já representa uma certa fragilidade da
relação entre o eu-poético e a sua amada, visto que o seu material é o vidro, substância
sólida, frágil e translúcida.
Desta forma, o poeta apresenta uma história breve, frágil como o material de que é
composto o anel (o vidro) – “era de vidro e logo se quebrou...” – tão vulnerável quanto a
promessa de eterno amor que é muito em breve esquecida. Logo, o sujeito poético participa
de uma história de amor tão breve que nem mesmo acredita que essa acabou. Por isso
continua intensamente a busca de seu amor perdido. Desse modo notamos que, mesmo
havendo uma certa aproximação dos amantes, essa foi tão efêmera que trouxe mais angústia
do que se ambos não tivessem vivenciado história alguma, tornando o objeto amado ainda
mais distante e inacessível.
Essa tragicidade na vida da figura do “mal-amado” pode nos remeter à “vida inteira que
podia ter sido e que não foi” do próprio poeta Manuel Bandeira, refletindo classificação que
fazia de suas relações amorosas, freqüentemente carregadas de frustrações, platonismo,
abandono, insatisfação, perda, traição. Mas devemos salientar que essa análise psicopoética
tem a prudência de não qualificar a obra bandeiriana por meio de seus dados biográficos, pois
os traços biográficos, se não determinam sua obra, ampliam
as possibilidades de compreensão de sua poesia. Importa-nos
considerar tais elementos apenas na medida em que auxiliem
na explicitação da dinâmica de sua criação poética. É o
próprio Bandeira quem se coloca incapaz de enfrentar a
efemeridade de todas as vidas. (Rosenbaum, 1993, p. 74).
O poeta é castigado pelo fracasso e, resignado, constrói um diálogo em que o
interlocutor está presente apenas no discurso, nas várias marcas do pronome de 2ª pessoa (a
quem se fala).
97
A imagem do anel, como já dissemos, é característica de um amor efêmero, da
amargura que o eu-poético sente ao perder o seu amor que jurava não ter princípio nem fim.
Dessa forma, o eu-lírico caracterizado como “mal-amado” busca reviver os momentos
felizes que viveu, mesmo que esses tenham sido demasiadamente rápidos pois, para
assumir o papel de “mal-amado”, busca reviver o seu passado de juras de eterno amor,
como uma história cíclica, na qual o fim impulsiona a busca pelo começo. Como resposta a
essa inexorabilidade do tempo que transforma todas as coisas em reminiscências, sobretudo
o amor, que esvai com passar das estações, o sujeito poético cria a ilusão de um retorno
consolador em que, como o anel de vidro é frágil e tenha se quebrado, representa um
círculo que não tem início nem fim. Diante do eterno retorno na história elegíaco-amorosa
do eu lírico bandeiriano, que busca reviver aquilo que passou, retomamos a teoria do tempo
não-reconciliado de Deleuze, posto que essa circularidade de um retorno simplista
representa uma falsa aparência de reencontro com o vivido.
A recusa em aceitar a fugacidade de todas as coisas pela passagem ininterrupta do
tempo traz nostalgia ao sujeito poético de “O anel de vidro”, pois esse é incapaz de
interromper esse ciclo, a não ser poetizando aquilo que vivenciou em um passado
indeterminado, revivendo a sua história de eterno amor na criação poética.
Toda essa busca pelo objeto perdido é ainda explicitada pela indiferença, recusa, ou
menosprezo da mulher amada, enfatizando ainda mais que a história de amor findou por
completo. Vide versos 9 e 10: “Não me turbou, porém, o despeito que investe”; “Gritando
maldições contra aquilo que amou”, os quais mostram que, apesar do desprezo da mulher, o
eu lírico continua a alimentar a nostalgia do seu amor infeliz, simbolizado pelos fragmentos
do anel de vidro: “De ti conservo na alma a saudade celeste...”, “Como também guardei o
pó que me ficou”, “Daquele pequenino anel que tu me deste...” – simbolizando a
permanência do ser, com versos indicativos de uma poesia que se inscreve no eterno.
Permanência essa nutrida pelo fato de o sujeito poético alimentar o seu amor infeliz nas
lembranças que lhe restaram de sua relação, os fragmentos e o pó do anel, conservando na
alma a saudade e fazendo dessa eterna e constante em sua vida. Desse modo, essa “saudade
celeste” que o eu-lírico nutre como lembrança de sua breve história de amor remete-nos ao
significado do vocábulo “saudade”, “soêdade, soidade, suidade”, mal da ausência, vontade
de ver (Heimweh), morrer de amor, tal como ela surge na cantiga medieval de João Roiz
98
(“Senhora, partem tam tristes/ meus olhos por vós, meu bem,/ que nunca tam tristes vistes/
outros nenhuns por ninguém”) (Brayner, 1980 p. 244). Assim, a partir dessa vontade de
estar junto à sua amada, ou do pesar que a ausência da mesma provoca, mencionamos uma
frase lacaniana que exemplifica com destreza esse vazio resultante do mal de amar
representado na poesia: “O desejo se sublima em retorno de um vazio central, a escrita
passa a ser concebida como um gesto desejante de uma reconciliação com a Coisa perdida
– lugar central do desejo” (apud Rosenbaum, 1993 p.128). Desse modo, notamos no poema
um cunho romântico, mesmo porque esses em suas composições fizeram a volta ao mundo
medieval. Assim, “a saudade é sentimento que nasceu da conjugação do paganismo com o
cristianismo. Esse encontro deu-se na Idade Média. Quem diz paganismo diz Grécia. O
Medievo está cheio de recordações gregas” (Brayner, 1980 p. 244 – 245).
Portanto, o poema “O anel de vidro” é característico do gênero elegíaco-amoroso,
em que não há a reciprocidade no amar, mas sim uma surpreendente exposição poética do
desespero amoroso, do mal da ausência e da separação dos amantes.
Considerando a efemeridade do amor e a inexorabillidade do tempo podemos
trabalhar com o subtema que decorre desses dois primeiros:
Aspectos da modernidade – uma linguagem retirada do mais humilde cotidiano
Por meio desse subtema, notamos que, embora o poema seja composto por versos
alexandrinos, distribuídos em duas quadras e uma quintilha, com rimas alternadas e,
portanto, com uma certa regularidade, há uma inovação em sua temática, “o cotidiano como
material poético”. Vemos que o tema não é mais extraído de um cosmos sublime, como
antes, mas sim do mais humilde cotidiano, no qual notamos o “poetizar a banalidade
cotidiana, a realidade decaída do mundo”. Dessa forma, o poema analisado apresenta como
tema “um anel de vidro”, símbolo da relação efêmera que os dois amantes vivenciaram.
Essa breve história é contada por meio de uma linguagem simples, não através de temas e
vocábulos esmerados, como por exemplo no Parnasianismo. Assim:
o ideal da poética de Bandeira, é o de uma mescla estilística
inovadora e moderna, uma vez que persegue uma elevada
emoção poética através das palavras mais simples, de todo
99
dia. Para o poeta, o alumbramento, revelação simbólica da
poesia, pode dar-se no chão do mais ‘humilde cotidiano’, de
onde o poético pode ser desentranhado, à força da depuração
e condensação da linguagem, na forma simples e natural do
poema. (Arrigucci, 1990 p. 15).
Essa simplicidade lingüística e temática pode ser ainda exemplificada por meio da
escolha da cantiga infantil que deu origem ao poema, “Ciranda Cirandinha”, a qual nos
remete ao mundo infantil, que por si só já nos apresenta uma clareza e uma simplicidade
inconfundíveis. Logo, nesse poema “a infância aparece na fala mesma da criança, fazendo
soar pela voz lírica um eu infantil. Evoca-se a infância sem explicitação direta da falta
através de um tom nostálgico, mas o ausente acaba por reviver na brincadeira de uma trova
de uma música, que recriam a atmosfera encantatória infantil” (Rosenbaum, 1993 p. 53).
A linguagem poética simples, livre do artificialismo da poética parnasiano-simbolista,
proporciona-nos temas os mais variados e “banais” como material para a poesia,
erradicando os temas rebuscados anteriormente escolhidos. Mas devemos lembrar que essa
inovação ainda é superficial nos primeiros livros de Bandeira, quase ínfima, apresentando-
se poucos poemas com essas marcas de renovação, os quais já anunciam a liberdade de
criação que será acentuada no modernismo:
`assim, na companhia paterna iam-me embebendo dessa idéia
que a poesia está em tudo – tanto nos amores quanto nos
chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas’. O
poeta veio, portanto, para contribuir na incorporação à poética
nacional do ‘humilde cotidiano’, baseado em ‘locuções
trivialíssimas’ (Lopez, 1987 p. 06).
Por meio dessa linguagem poética simples, Bandeira observa que “a poesia não está mais
no mundo da lua, mas na terra dos homens, no chão do cotidiano”, utilizando-se de um estilo
humilde, com palavras do dia-a-dia, situada perto do chão” (afinal, humilde, humilis, procede
de humus) (Schwarz, 1983 p. 108). Desse modo, vimos que no poema “O anel de vidro” essa
simplicidade lingüística é acentuada, pois o sujeito-poético parte de um “anel de vidro”, objeto
100
banal, frágil, de pouquíssimo valor, diferentemente, por exemplo, de um “anel de diamante”,
que valorizaria e daria quicà mais sustentação a essa breve história de amor.
Embora haja uma certa simplicidade temática no poema, devemos mencionar que
essa não desvaloriza ou banaliza sua construção; ao contrário, sua complexidade está nessa
aparente modéstia e espontaneidade lingüística, pois:
esse movimento em busca da simplicidade tem de fato algo de
misterioso, na medida em que evita todo mostrar-se ostensivo,
seja pelo espetáculo da forma ou da emoção, para recolher-se
ao redor do essencial, do reduto último daquele ‘luzir sensível
da idéia’ (na expressão de Hegel), despojado de todo brilho
fácil. Sugere, em troca, outro tipo de facilidade, enganosa,
porque esconde a verdadeira dificuldade no mais fundo.
(Arrigucci, 1990 p.48)
Portanto, essa linguagem poética inscrita por meio do simples na dependência do
complexo, retirada como disse Bandeira do mais “humilde cotidiano”, apresenta-nos
aspectos da poesia moderna, valorizando o fazer poético pela sua beleza enigmática
criadora e não pelos seus arquétipos temáticos sugeridos de antemão.
Apollinaire e Bandeira
Nos dois poemas encontramos o triste fim do amor como resultado da inexorabilidade
do tempo, apresentando um cosmos de tamanha melancolia que o término do amor se
equipara ao desespero do olhar daquele que não pode reter o tempo que passa. Desse modo,
o eu-lírico de tais poemas apresenta a angústia pelo tempo ininterrupto que leva embora os
seus amores e o faz distanciar de seus anos de gozo.
Assim, com o propósito de analisar o pesar em relação ao tempo que se esvai levando
consigo as lembranças felizes, tomamos como ponto de partida a expressão do tempo que
passa, representada pelo escoamento da água do rio no poema “Le Pont Mirabeau”,
indicando com precisão a sucessão das horas, dos dias e dos anos. O amor resiste
desesperadamente ao curso do rio parisiense que passa, tranqüilamente, inexoravelmente,
101
sob essa ponte maciça, rígida, austera, insensível aos pensamentos dolorosos do amor, às
sensíveis lembranças das sombras persistentes ou advindas do sofrimento, e totalmente
infelizes (Rouveyre, 1995, p.86).
Logo, os elementos da imagem comportam os mesmos caracteres: la lenteur (v.15), a
continuidade ininterrupta “éternels” (v.10), a irreversibilidade (v.20-21). Ademais,
relacionado ao símbolo do verso 1, “coule la Saine”, retomado no verso 22, o campo lexical
da passagem do tempo se organiza a partir dos verbos. Todos eles estão no presente, exceto
“venait” (v.4). Esse tempo marca a continuidade ininterrupta: “passe” (v.9), “s’en va” (v.13-
14), “Passent” (v.19), repetido e retomado pelo particípio “passe” (v.20) e sobretudo “s’en
vont”, no segundo verso do refrão, retomado quatro vezes (Bégué & Lartigue, 1993, p.23).
Por meio de toda essa poesia nostálgica, Bandeira de modo similiar também trabalha
a expressão angustiante e inexorável da passagem do tempo em “O anel de vidro”, cujos
versos indicam o começo e o fim dos amores do sujeito poético, mostrando que o tempo
passa ininterruptamente, deixando uma triste marca e uma saudade avassaladora: “Aquele
pequenino anel que tu me deste,” (v.1); “Ai de mim - era de vidro e logo se quebrou...”
(v.2); “Símbolo da feição que o tempo aniquilou,” (v.6). Os verbos, quase todos no
pretérito - diferentemente dos verbos em “Le Pont Mirabeau”, que estão no presente, mas
que exprimem do mesmo modo a passagem do tempo e dos sentimentos - exprimindo ações
que ocorreram no passado, contrastam o presente do eu-poético, de sofrimento arraigado,
de dor e ressentimento, com o passado de juras de eterno amor, por meio de um suposto
símbolo ou aliança, o anel de vidro, de uma união eterna: “me deste” (v.1), “se quebrou”
(v.2), “prometeste” (v.3), “aniquilou” (v.6), “investe” (v.9), “amou” (v.3), “guardei” e “me
ficou” (v.12). Através de tais verbos no passado, constatamos que o sujeito poético chora a
dor do seu amor findo, fazendo uma associação do mesmo com algo concreto, um anel de
vidro. Como em Apollinaire, esse objeto por si só já representa uma certa fragilidade da
relação entre o eu-poético e a sua amada, sobretudo se pensarmos nos elementos das
natureza mencionados em “Le Pont Mirabeau”, que são inconstantes e de fácil destruição (a
neve, o rio etc.), e os compararmos com o anel cujo material constitutivo é vidro,
substância sólida, frágil e translúcida.
Dessa forma, o poeta apresenta uma história breve, frágil como o material de que é
composto o anel (o vidro)- “era de vidro e logo se quebrou...” - tão vulnerável quanto a
102
promessa de eterno amor que é muito em breve esquecida. Assim, mediante tal fugacidade do
tempo e dos sentimentos, demostrando toda a efemeridade que existe no ato de amar,
observamos uma certa recusa, por parte do eu-lírico bandeiriano, em aceitar todo esse
processo, sendo incapaz de interromper esse ciclo, a não ser poetizando aquilo que vivenciou
em um passado indeterminado, revivendo a sua história de eterno amor na criação poética.
Nota-se, então, que toda essa busca pelo objeto perdido é também explicitada pela
indiferença, recusa ou menosprezo da mulher amada, enfatizando ainda mais que a história de
amor findou por completo, vide versos 9 e 10: “Não me turbou, porém, o despeito que
investe”, “gritando maldições contra aquilo que amou”, os quais mostram que, apesar do
desprezo da mulher, o eu-lírico continua a alimentar a nostalgia de seu amor infeliz,
simbolizado pelos fragmentos do anel de vidro: “De ti conservo na alma a saudade celeste...”,
“Como também guardei o pó que me ficou”, “Daquele pequenino anel que tu me deste...” -
simbolizando a permanência do ser, com versos indicativos de uma poesia que se inscreve no
eterno. Permanência essa nutrida pelo fato de o sujeito poético alimentar o seu amor infeliz
nas lembranças que lhe restaram de sua relação, os fragmentos e o pó do anel, conservando
na alma a saudade e fazendo dela algo eterno e constante em sua vida.
Em Apollinaire, as imagens relativas à passagem do tempo e dos sentimentos
refletem também a questão da “permanência do ser”, pois observamos que o sujeito poético
apollinairiano, como o bandeiriano, procura de qualquer forma retomar seu amor perdido,
mesmo que seja poetizando-o: o resgate pela memória presentifica aquilo que passou. Essa
lembrança que o eu-lírico apresenta em relação à sua fragilidade e impotência diante da
passagem do tempo obriga-o a recuperar o passado imortalizando o presente, construíndo
assim uma cadeia cíclica através das reminiscências. Nesse sentido o eu-poético, por meio
da água do rio e do tempo ininterrupto, apresenta a imagem simbólica da “permanência do
ser”, visto que a continuidade do rio representa a continuidade psíquica do poeta: “Les
jours s’en vont je demeure”. A água e a vida desse sujeito “mal-amado” representam, pois,
um eterno recomeço.
Mesmo constatando o aspecto da “permanência do ser” por meio da circularidade na
poética de Bandeira e Apollinaire, notamos que há uma impossibilidade de retorno às
coisas findas, pois o curso do rio jamais se inverte, nunca corre ao contrário. E, ainda, os
fragmentos do anel de forma alguma recompõem a história de amor vivenciada. Logo, nos
103
dois poemas a recuperação do passado por meio da memória, como metáfora do rio e do
anel, não o resgata de forma verdadeira pois, ao ser retomado, é simplesmente relembrado
de forma ainda mais dolorosa.
Portanto, os poemas “O anel de vidro” e “Le Pont Mirabeau” são característicos do
gênero elegíaco-amoroso, em que não há reciprocidade no amar, mas sim uma
surpreendente exposição poética do desespero amoroso, do mal da ausência e da separação
dos amantes.
Além disso, constatamos mais uma semelhança entre os poemas analisados,
considerando a tópica:
Aspectos da modernidade - Uma linguagem retirada do mais humilde cotidiano
Aqui observamos que tanto “Le Pont Mirabeau” quanto “O anel de vidro” apresentam
o cotidiano como material poético, extraindo os seus temas não mais de um cosmos
sublime, como antes, mas sim do mais humilde cotidiano, já que “poetizam a banalidade
cotidiana, a realidade decaída do mundo” (Arrigucci, 1990, p. 24). Desse modo,
percebemos que é do vocabulário “banal” que surge a linguagem poética, não mais aquele
do casticismo, com fortes inversões, conceitos e arcaísmos do Parnasianismo; agora é a
opulência na simplicidade.
Assim, notamos que o poema de Bandeira apresenta como tema “um anel de vidro”,
símbolo da relação efêmera que os dois amantes vivenciaram. A breve história de amor é
contada por meio de um estilo de absoluta simplicidade, não através de termos e vocábulos
esmerados. Essa simplicidade lingüística e temática pode ser ainda exemplificada por meio
da escolha da cantiga infantil que deu origem ao poema, “Ciranda Cirandinha”, a qual nos
remete ao mundo infantil, que por si só já nos apresenta uma clareza e uma simplicidade
inconfundíveis. Neste sentido, no poema “O anel de vidro” essa simplicidade é acentuada,
pois o sujeito poético parte de um “anel de vidro”, objeto banal, frágil, de pouquíssimo
valor se comparado, por exemplo, com um “anel de diamante”, que valorizaria e daria mais
sustentação a essa breve história de amor.
De forma similar constatamos o mesmo aspecto no poema de Apollinaire, “Le Pont
Mirabeau”, no qual a triste história de amor é contada por meio de imagens simples, como a
104
água do rio e a ponte de concreto, utilizando o cotidiano, e tudo o que há nele, como
material poético. Assim, notamos que o poeta francês, do mesmo modo que o brasileiro,
trabalha com tudo aquilo que nutre o seu exterior, reservatório de imagens, utilizando-se de
um elemento da natureza, a água do rio, e de uma imagem nada sublime para explicitar
também o triste fim de uma história de amor. Como Bandeira, Apollinaire apresenta o
desejo de transformar tudo em matéria poética, buscando nos objetos e nas situações mais
simples, os termos para a sua poesia, valorizando os “pequeninos nadas”, e convertendo-os
em questões sublimes: “É o próprio Apollinaire, o poeta mal-amado, quem expressa seu
desejo de transformar tudo em matéria poética, ao dizer em seu diário que “tudo se tornará
Poesia, a história torna-se fábula, os próprios objetos, ao tornarem-se antigos, enfeitam-se
de poesia. O respeito aos velhos, o culto dos mortos, tudo isso é a prova dessa
transformação de tudo em poesia” (apud Burgos et al, 1998, p. 270).
Atentando ainda para a temática da efemeridade do amor e da inexorabilidade do
tempo, analisamos outros dois poemas que seguem tal perspectiva, “Crépuscule” e “Ao
Crepúsculo”. Seguindo a tendência crepuscular caracterizada pela melancolia e pela
valorização dos temas do cotidiano, iniciamos com a análise do poema “Crépuscule” de
Apollinaire.
Crépuscule
À Mademoiselle Marie Laurencin
Frôlée par les ombres des morts
Sur l’herbe où le jour s’exténue
L’arlequine s’est mise nue
Et dans l’étang mire son corps
Un charlatan crépusculaire
Vante les tours que l’on va faire
Le ciel sans teinte est constellé
D’astres pâles comme du lait
105
Sur les trétaux l’arlequin blême
Salue d’abord les spectateurs
Des sorciers venus de Bohême
Quelques fées et les enchanteurs
Ayant décroché une étoile
Il la manie à bras tendu
Tandis que des pieds un pendu
Sonne en mesure les cymbales
L’aveugle berce un bel enfant
La biche passe avec ses faons
Le nain regarde d’un air triste
Grandir l’arlequin trismégiste
Nesse, notamos imagens advindas do dia que se esvai, em uma ambientação que
transborda pesar como resultado do mal de amar, mesmo que de forma implícita. Vimos
também uma personagem tocada pelas sombras da morte, a Arlequine, que nua sob a relva,
observa seu corpo em um lago: “Frôlée par lês ombres dês morts”, “Sur l’herbe où lê jour
s’exténue”, “L’arlequine s’est mise nue”, “Et dans l’étang mire son corps” (V.1 a 4). As
águas desse espelho mágico/l’étang são turvas e quiméricas, e têm como
“fleuves/Rhénanes”, os sonhos como constituição primordial. Assim, todo esse clima
melancólico de meio-tom, direciona-nos para a temática crepuscular, que é a poesia de um
grupo de jovens escritores sem uma única alegria para cantar. Esses, representavam a
revolta de uma geração contra os seus antercessores, além de sofrerem de um novo mal do
século, a “consomption”, que a essa época era característica dos jovens com “tuberculose
pulmonaire”, em sua maioria candidatos à “étesie”, emagrecimento extremo decorrente de
tal moléstia. Ainda, os crepusculares almejavam a vida tranqüila e simples da longínqua
província, ou seja, tinham a nostalgia do campo.
Vimos que no poema “Crépuscule” há a valorização do que é sombrio e melancólico,
como no crepuscolarismo, bem como um cenário, na primeira estrofe, natural, com a relva
e o lago banhados pelo meio-tom do dia que se extingue. Notamos também a presença da
temática do cotidiano, uma das características dos poetas crepusculares, pois a Arlequine,
no crepúsculo, nua sobre um gramado, observa seu corpo no lago, cena de inteira
simplicidade e banalidade. Ainda, para reforçar essa atmosfera anuviada pelas suas cores
apagadas, temos o corpo da Arlequine também lívido como o restante da ambientação.
106
Observamos que o meio-tom do crepúsculo perdura na segunda estrofe, pois o
“charlatan” é caracterizado como “crépusculaire”, o céu, embaciado pela chegada da noite,
tem astros “pâles comme du lait” e as constelações, cuja luz própria poderia amenizar o tom
sombrio e trazer beleza ao manto negro que se aproxima com o escoar do dia, que são
apagadas em um céu sem cor: “Um charlatan crépusculaire”, “Vante lês tours que l’on va
faire”, “Le ciel sans teinte est constellé”, “D’astres pâles comme du lait” (V.5 ao 8).
Sena007d 1 12 0 sei435nID 0 >>BDC 0 >>85 0 Td[ervam-7(sa na estrofa seg,)]TJ01961 Tw 94.25 0 Td(eint,o pesonage(nsdisatan)Tjsei475nID 0 20251 Tw 9.85 0 Td(aciadsa darealidadte, )Tjsei4605 Tc 009654 Tw -28805 -1.725 Td(reptreentVantsr dounivpeso )Tjsei4503 Tc 0.9543 Tw 20.45 0 Td[(ons)5lricdo cs)5amr: fl(es,enchs)5(ns)5(tcu)5(r)2(s,0 sei4706 Tc 0.9461 Tw113.95 0 Td[(sor c)4(iers)-5os)38( c)4(ds)38visosndc Bohlmec4, o0 sei479nID 0 21294 Tw -3.942 -1.725 Td[pals doDcr!scussalientVanaiundamaois do enp(rioondte esp in2 0)Tj0.8621 Tw 9511 0 Td1(rdo,e apreentV-ste ms )Tjsei486nID 0 05714 Tw -28.72 -1.725 Td[ um sdo:dsa(s)pess. Mas (s)sao
pesquisa biográfica que, quer quira ou não, reduz o texto ao estatuto de documento ou
pretexto” (Vaillant, 1992. p.110).
Prosseguindo, vimos que tal atmosfera melancólica e feérica subsiste no poema, pois
o Arlequin retira uma estrela do céu e a maneja com os braços estendidos, enquanto que um
“enforcado/pendu” toca címbalos (um morto-vivo), confirmando as sombras da morte da
primeira estrofe, e criando um clima sombrio de finitude, com uma música mortífera de
fundo: “Ayant décroché une étoile”, “Il la manie à brás tendu”, “Tandis que dês pieds um
pendu”, “Sonne em mesure lês cymbales” (V.13 ao 16).
Esse cenário de lamento e de nuanças finaliza com imagens que reforçam tal pesar, a
primeira, um cego que embala um belo bebê, o que nos direciona mais uma vez para a
imprecisão, pois privado da visão esse representa o mundo das trevas, embora tenha algo
que caracterize a vida, a criança em seus braços: “L’aveugle berce um bel enfant” (V.17).
Em seguida, a corça que passa lentamente com os seus filhotes, dando-nos a impressão de
passagem do tempo e de que incita vagarosamente uma caminhada triste e árdua para a
defesa dos seus: “La biche passe avec sés faons” (V.18). E por último, um anão que,
provavelmente, saiu do circo na “campagne crepusculaire” e que com um ar triste, devido à
sua baixa estatura, que jamais chegará a desse personagem, observa “grandir” o “Arlequin
trimégiste” (epíteto dado a Hermès , lê trois fois très grand, deus entre outros dos estados e
ginásios): “Le nain regarde d’un air triste”, “Grandir l’arlequin trimégiste”(V.19 e 20).
Ainda, essa última imagem corrobora a atmosfera sombria e enigmática do poema, pois o
anão sendo considerado como um velho deus da natureza, gênio da terra e do solo, conhece
os seus segredos, exprime-se por enigmas, enfatizando a questão imprecisa da ambientação
crepuscular e ainda salientando o topos da nostalgia do campo:
mas o anão é sobretudo um guardião tagarela, segundo as
tradições; um tagarela, é verdade, que se exprime de
preferência por enigmas. Se ele parece ter renunciado ao
amor, continua, entretanto, ligado à naturez da qual conhece
os segredos. Por isso pode servir de guia, de conselheiro.
Participa das forças telúricas e é considerado como um velho
deus da natureza (Chevalier & Gheebrant,1992, p.49)
108
Enfim, “Crépuscule” é um poema que tem como temas nodais, a melancolia e o
meio-tom característicos da temática crepuscular, bem como a dor do mal de amar
representativa da decepção de um eu-lírico que perdeu a sua amada com o decurso do
tempo.
Dando seqüência à temática elegíaco-amorosa partimos para o poema “Ao
Crepúsculo.
Ao Crepúsculo
O crepúsculo cai tão manso e benfazejo
Que me adoça o pesar de estar em terra estranha
E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo,
Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo,
Fitando no horizonte a linha da montanha.
A montanha é tranqüila e forte, e grande e boa.
Ela afaga o meu sonho. E alegra-me pensar
(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!)
Teces o meu sonho, ouvindo e vendo o mar.
Embalada na voz do grande solitário,
Tu mortificarás teu casto coração
Na dor de revocar o noivado precário.
(Ah, por que te confiei o meu desejo vário?
Por que me desvendaste a tua sedução?)
Se nos aparta o espaço, o tempo – esse nos liga.
A lembrança é no amor a cadeia mais pura.
Tu tens o grande Amigo e eu tenho a grande Amiga:
O mar segredará tudo quanto eu te diga,
E a montanha dir-me-á tua imensa ternura.
Podemos dizer que esse segue tal tópica, pois tudo se passa no findar do dia, no cair do
crepúsculo, havendo no eu-lírico um pesar por estar em terra estranha, tudo sendo embalado
na voz do grande solitário que fita no horizonte a linha da montanha, pensando naquela que
teve um dia em seus braços:”O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo”, “Que me adoça o
109
pesar de estar em terra estranha”, “E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo”, “Eu penso em
ti apaziguado e sem desejo”, “Fitando no horizonte a linha da montanha” (V.1 a 5).
Esse tom crepuscular é visto ainda na estrofe seguinte, visto que a ambientação é
descrita por meio da tarde que se escoa, tendo a natureza como cenário que emana tédio e
nostalgia, sendo a saudade o sentimento primeiro do eu-lírico qual afirma ter perdido
aquela que amou para o tempo. Também, é importante destacar o caráter simbólico da
montanha no poema, que aqui, parece proporcionar o sonho do sujeito poético e amenizar-
lhe a dor de tamanha perda, pois essa “pode ser caracterizada como sendo uma das
representções do SELF, posto que possui uma simbólica de centro de omphalos, tanto que
em todas as tradições aparece como sendo uma imagem da imortalidade. Ela é um local
onde se processam as revelações ou a meta de uma longa busca para a eternidade”(citação
retirada da internet Araújo).
Não é por acaso, que a imagem da montanha aqui produz essa sensação de sustentar a
volta ao que findou, pois a longa busca para a eternidade, seria no caso, a busca para
eternizar o que se esvaeceu com o passar do tempo, o grande amor do sujeito poético: “A
montanha é tranqüila e forte , e grande e boa.”, “Ela afaga o meu sonho. E alegra-me
pensar”, “(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!)”. Ainda, em se tratando da
questão da procura por aquilo que permaneceu no passado, temos outra imagem nos versos
9 e 10 que confirma tal problemática: “Que tu na doce paz da tarde que se escoa,”, “Teces o
mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar.” Dessa forma, vimos que a ameaça de finitude já se
concretiza, pois com o escoar da tarde, tem-se a impressão de que o processo de morte do
dia e de todas as suas lembranças, começou. Logo, esse pronome “tu” parece já fazer parte
do passado, pois se apresenta apenas no sonho do sujeito poético mal-amado, ou seja, no
cenário banhado pela beleza e triste melodia da solidão do mar. Nesses versos, a imagem
do mar é sugestiva, visto que:
Representa a dinâmica da vida, tudo sai e retorna a ele: lugar
dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos.
Águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório
entre as possibilidades ainda informes as realidades
configuradas, uma situação de ambivalência, que é a de
110
incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem
ou mal. Vem daí que Omar é ao mesmo tempo a imagem da
vida e a imagem da morte. (Biedermann, 1993, p. 592)
Observamos que por simbolizar o renascimento, o eu-lírico por meio da imagem do
mar no mundo onírico, revive aquele amor acabado, e reforça a atmosfera crepuscular,
tanto pela fuga para o cenário natural quanto pela ambivalência e imprecisão que esse
representa, junto às nuanças e o meio-tom. Sendo assim, o mar aqui pode simbolizar a vida
- o renascimento desse amor - mesmo que no sonho, e a morte, a certeza de que tudo
permanece apenas na memória.
Temos na estrofe seguinte a mesma atmosfera melancólica por conta da triste história
de amor. O eu-lírico se mostra solitário e deseja mortificar o casto coração de sua amada
com a dor do remorço, devido ao noivado precário que provocou: “Embalada na voz do
grande solitário,”, “Tu mortificarás teu casto coração”, “Na dor de revocar o noivado
precário.” (V. 11 a 13). Esse continua a lamentar o pesar que sente nos versos
subseqüentes, pois por meio de duas indagações se direciona àquela para quem confiou o
seu desejo: “(Ah, por que te confiei o meu desejo vário?”, “ Por que desvendaste a tua
sedução?)” ( V. 14 e 15). Nesses, o sujeito poético se apresenta inconformado por ter
confiado os seus sentimentos àquela mulher e também por ela ter desvendado a sua
sedução, o que nos dá a impressão de que todo esse noivado, não passou apenas de
dissimulação. Ainda, observamos que toda essa poesia se inscreve na banalidade do
cotidiano, tendo um noivado precário como motivo, a tarde que se escoa, os elementos da
natureza como o mar e a montanha, tudo com uma inteira singeleza que é característicada
poesia crepuscular.
Na última estrofe há a confirmação da separação dos amantes, mas ao mesmo tempo
o resgate, ainda que mnemônico e imagístico, pela lembrança cujas imagens das encostas
da montanha e do mar, servem de canais de comunicação entre os dois: “Se nos aparta o
espaço, o tempo – esse nos liga.”, “A lembrança é no amor a cadeia mais pura.”, “Tu tens o
grande Amigo e eu tenho a grande Amiga:”, “O mar segredará tudo quanto eu te diga,”, “E
a montanha dir-me-á tua imensa ternura.” (V.16 a 20). Assim, o poema finaliza com
imagens da natureza – mar, montanha, nostalgia do campo- que possibilitam a volta do que
111
foi perdido, com toda a sua significação simbólica de renascimento e imortalidade, mas ao
mesmo tempo dá a idéia de finitude, pois o próprio crepúsculo, que é o cenário de tal
poema, representa a morte do dia, ou do noivado precário. É, pois, importante destacar que
somente por meio da atmosfera onírica na imprecisão do tom crepuscular, que o sujeito
poético recompõe a sua história.
Em resumo, “Ao Crepúsculo” é um poema inscrito com a tinta toldada do meio-tom
crepuscular, da qual transborda melancolia e dor pela distância da mulher amada.
Bandeira e Apollinaire
Partindo para o diálogo entre as poéticas bandeiriana e apollinairiana, tomamos para
estudo os dois poemas “Crépuscule” e “Ao Crepúsculo”, que apresentam um cosmo
exacerbadamente melancólico, fruto do mal de amar como conseqüência da passagem do
tempo. Esses seguem a tendência crepuscular, caracterizada pelo pesar e pela valorização
dos temas do cotidiano, como palco de tristes histórias de amor findas.
Nesse viés, observamos em “Crépuscule” imagens advindas do dia que se esvai, em
uma ambientação que transborda pesar, como resultado do mal de amar, mesmo que de
forma implícita. Vimos ainda, uma personagem tocada pelas sombras da morte, a
Arlequine, que nua sob a relva observa seu corpo em um lago: “Frôlée par les ombres dês
morts”, “Sur l’herbe où lê jour s’éxténue”, “L’arlequine s’est mise nue”, “Et dans l’étang
mire son corps” (V.1 a 4). As águas desse espelho mágico/l’étang são turvas e quiméricas e
têm como os “fleuves/Rhénanes” , os sonhos como constituição primordial.
E o que ocorre em “Ao Crepúsculo”, pois tudo se passa no findar do dia, no cair do
crepúsculo, havendo no eu-lírico um pesar por estar em terra estranha, fitando no horizonte
a linha da montanha e pensando naquela que teve um dia em seus braços: “O crepúsculo
cai, tão manso e benfazejo”, “Que me adoça o pesar de estar em terra estranha.``, “E
enquanto o ângelus abençoa o lugarejo”, “Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo,”,
“Fitando no horizonte a linha da montanha”. (V.1 a 5).
Em ambos os poemas, encontramos o mesmo cenário angustiante de fim do dia/
símbolo da passagem do tempo, característica da temática crepuscular, que é a poesia de
um grupo de jovens escritores que se mostrava farto da vida.
112
É importante salientar, que não podemos classificar os poetas estudados como
crepusculares, pois esses se encontram em outra fase da literatura, apesar de recuperarem
muitos traços de tal tendência. Assim, tanto Apollinaire quanto Bandeira, em sua fase
inicial, fizeram uma poesia exacerbadamente melancólica, de uma singeleza notável,
buscando sempre a natureza como cenário para as suas angústias e uma linguagem retirada
do mais humilde cotidiano. Uma outra relação com essa poesia pesarosa dos jovens
crepusculares é a própria vida de Bandeira, sempre ameaçada pela tísica, o que o aproxima
sobremaneira dessa falta de crença na vida dos poetas do crepuscolarismo, que também
cantavam poeticamente a dor do fundo dos hospitais e dos cemitérios.
Logo, vimos que em “Crépuscule” há a valorização do meio-tom e da melancolia,
como no crepuscolarismo, constituído por um cenário na primeira estrofe, natural, com a
relva e o lago banhados pelas nuanças do dia que se extingue, além dos astros pálidos como
leite e do “charlatain crépusculaire”: “Le ciel sans teinte est constellé”, “D’astres pâles
comme du lait” (V.5 e 8). Nessa, notamos também a presença da temática do cotidiano, pois
a Arlequine nua sobre o gramado observa seu corpo no lago, cena de forte simplicidade e
banalidade. Ainda, para reforçar essa atmosfera anuviada pelas suas cores apagadas, temos o
corpo da Arlequine também lívido/sem luminosidade como o restante da ambientação.
De forma semelhante encontramos em “Ao Crepúsculo” uma atmosfera pesarosa e
marcada pelo toldo do cair da do dia, também um cenário notadamente natural e cotidiano,
pois temos imagens do escoar da tarde e de elementos da natureza, como o mar e a
montanha, tudo de uma inteira singeleza característica da poesia crepuscular.
Outra aproximação que podemos fazer é a questão da temática elegíaco-amorosa
presente nos poemas. Em “Crépuscule”, essa tópica está subentendida nos versos 3 e 9:
“L’arlequine s’est mise nue”, “Sur les tréteaux l’arlequin blême”. Desse modo, devemos
considerar a história das personagens “Arlequin e Arlequine” para indicarmos um outro
fator que colabora para a sustentação desse cenário triste e apagado, a existência de uma
relação amorosa frustrada. Nessa, observamos segundo à clássica comédia italiana, que se
trata de um amor servil e desesperado de um bufão mágico “Arlequin”, além de fazer parte
de um trio amoroso junto a Pierrô e Colombina. Esse triângulo apresenta Arlequin como
amante de Colombina, que na verdade é namorada de Pierrô, o que nos indica o sofrer por
amor, pois o bufão, apesar de farsante e dissimulado, vive na incerteza de amar aquela que
113
é oficialmente de outro. Dessa maneira, além do eu-lírico apresentar indiretamente essa
triste história de amor, notamos que tal poema foi dedicado à Mademoiselle Marie
Laurencin, uma pintora com quem Apollinaire teve uma ligação amorosa, que lhe inspirou
a maior parte dos poemas de Alcools, e a quem permaneceu fiel, mesmo após o término da
relação, durante seis anos, de 1907 a 1913.
Considerando tais elementos intertextuais, vimos que o topos do amor triste possui
extrema significação, como em “Ao Crepúsculo”, cuja tópica também aparece como tema
gerador da melancolia que inunda todo o poema, apesar de nesse manifestar-se de forma
direta. Assim, já na primeira estrofe, vimos que o sujeito poético pensa em sua amada,
representada pelo pronome “ti”: “Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo” (V.4). Em
seguida, fala da saudade que ficou daquela cuja lembrança permaneceu apenas nos seus
sonhos: “(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!)”, “Que tu na doce paz da tarde
que se escoa,”, “Teces o mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar.” (V.8 a 10). E ainda, na
terceira estrofe, em que o pesar pelo fim do amor aparece representado pelo noivado
precário e pela solidão do eu-lírico mal-amado. Esse não se conforma por ter confiado
nessa relação efêmera e ainda na sedução daquela que se esvaiu com o passar do tempo.
Por isso, o seu desejo é de mortificar o casto coração de sua amada, com a dor do remorso:
“ Embalada na voz do grande solitário,”, “Tu mortificarás teu casto coração”, “Na dor de de
revocar o noivado precário.”, “Ah, por que te confiei o meu desejo vário?”, “Por que me
desvendaste a tua sedução?” (V.11 a 15).
Por conta dessa temática elegíaco-amorosa é importante citar que tanto Bandeira
quanto Apollinaire abordam enfaticamente essa questão em seus poemas. Como já
mencionamos, os dois poetas fizeram do amor um canto pesaroso, no qual a amada se
mostra, na maioria dos poemas, longínqua, relacionada à morte, efêmera e inexorável como
o tempo, sombria em um cenário de sortilégio e sobretudo em uma atmosfera feérica, onde
há a possibilidade de recuperção de histórias findas.
É nessa perspectiva que citamos um fato de extrema importância na obra
apollinairiana, a imagem da mulher que povoa de forma significativa os seus poemas,
sendo de três tipos: as mulheres míticas (Viviane, Salomé, Morgane...), as mulheres amadas
(Annie, Marie) e as mulheres fáceis (Lea, Marizibil...). Assim, para apresentar o caráter
114
falso e efêmero do amor, segundo o sujeito poético mal-amdo, Apollinaire classifica as
mulheres da seguinte forma:
Déesses ou prostituées, les femmes sont d’abord des infidèles
(grelottantes étoiles fausses femmes dans vos lits). Elles ne
séduisent que pour mieux trahir, empoisonner, Telles les
colchiques. Mais qu’elles sont belles, ces ombres trompeuses!
Comment échapper à la magie de leurs yeux, “couleur de
Rhin”, à la finesse, à l’élegance de leurs mains?
(Lecherbonnier, 1983, p.22-23)
Observamos que Apollinaire apresenta o amor/amada de forma notadamente
enganosa e falsa, seguindo um tom de acentuado lamento, provocando essa idéia de que a
mulher existe apenas para trair e envenenar como os “colchiques”. Mas, salienta por meio
de muitas imagens, que apesar de todo esse caráter mortífero e dissimulado, não se pode
escapar à magia, à sedução e a todos os atributos da mulher, ou seja, é a fonte que nutre o
eu-lírico mal-amado, embora muitas vezes contaminada pelo logro.
Da mesma forma, o poeta brasileiro aborda a temática da mulher, pois assim como
Apollinaire, segundo Ivan Junqueira, 2003,p.280-281, “em alguns poemas de Bandeira o
amor e a morte como se tangenciam, adquirindo esta a condição de mulher ora grave grave
e discreta, ora terna e envolvente, ora, ainda, lúbrica ou mesmo devassa.” Em face disso,
vimos que a mulher está associada à morte ou vice-versa, ao engano de toda a lascívia que é
era devassa e enganadora, ora pudica. Assim, semelhante a Apollinaire, Bandeira , também
expõe a mulher como santa/virgem – casta/clara, deusa do amor, Afrodite, Lilith sedutora e
traiçoeira e prostituta “prostitutas bonitas para a gente namorar”. Por isso, notamos que na
maioria dos poemas em que aparece a temática do amor, esse é frustrado e inacessível, mas
sem a relação que muitos exegetas fazem, a uma vida pueril e a uma sublimação amorosa
por parte do poeta:
tal procedimento, entretanto, não se confunde com a
celebração anímica de uma projeção ideal ou irreal de figura
feminina. Muito ao contrário, em sua poesia a mulher
115
corresponderá sempre a uma entidade tangível, pulsátil e que
será aceita, conforme as circunstâncias, Pura ou degradada até
a última baixeza.(Junqueira, 2003, p.202)
O amor aparece na obra de Bandeira como sentimento dado ao fracasso, cabendo à
mulher, com toda a sua face encantatória e simulada, o papel de representar a efemeridade e
a inexorabilidade do amor/ tempo que é “ chama, e, depois, fumaça” ou que “no fundo é
amargo e triste e dói mais do que tudo”. Mas, como Apollinaire, o poeta brasileiro também
mostra não resistir aos encantos daquela que envenena como os “colchiques”, pois no
“Poemeto erótico”, da obra aqui estudada, enumera os atributos físicos, em reticências, do
corpo que lhe faz arfar de desejo: “A todo momento vejo...”, “Teu corpo... a única ilha”, “
No oceano do meu desejo...” (V.19 a 20).
Nesse viés, notamos que por conta de toda essa persistência da temática elegíaco-
amorosa em ambos os poemas, é no universo onírico que o eu-lírico vai tentar resgatar o
que findou com a sucessão dos anos. Essa busca em “Crépuscule” se dá em um cosmo
feérico e melancólico, em que o Arlequin retira uma estrela do céu e a maneja com os
braços estendidos, enquanto um “enforcado” toca címbalos: “Ayant décroché une étoile”,
“Il la manie à bras tendu”, “Tandis que des pieds um pendu”, “Sonne en mesure les
cymbales” (V.13 a 16). Assim, esse Arlequin, embora triste por sua amada Arlequine,
mostra-se como um mágico que pode brincar com uma estrela, com um morto-vivo que
toca címbalos, representando toda a magia, imprecisão e pesar de tal cenário crepuscular.
Ainda, observamos outras imagens que reforçam esse ambiente fantástico e de meio-tom,
um cego que embala um bebê, pois privado da visão reafirma o caráter sombrio do poema,
uma corça que passa com os seus filhotes, dando-nos a impressão de caminhar junto à
passagem do tempo e de forma árdua, e um anão ar triste que observa “grandir” o
“Arlequin trimégiste”, sendo esse último considerado um deus da natureza, gênio da terra e
do solo, colaborando para a pintura desse cenário encantatório e pesaroso: “L’aveugle berce
um bel enfant”, “La biche passe avec sés faons”, “Le nain regarne d’um air triste”, “Grandir
l’arlequin trimégiste” (V. 17 a 20).
È o que ocorre em “Ao Crepúsculo”, pois toda ambientação é construída com
elementos da natureza advindos de um cosmo feérico e crepuscular, possuindo uma carga
116
simbólica notável, na medida em que a montanha apresenta-se capaz de produzir o sonho
do eu-lírico e de amenizar a sua dor, ainda representa em todas as tradições a imagem da
imortalidade, ou seja, a busca para eternizar o que o tempo levou consigo, o noivado
precário. Vimos também outra imagem que alimenta esse cenário de nuanças e de
quimeras, o mar, cuja simbologia é a dinâmica da vida, dos renascimentos, passando-nos a
impressão de que aquele amor findo ressuscitará do fundo de suas entranhas. Tanto o mar
quanto o mar servem de canais de comunicação entre os amantes, como em um passe de
mágica, em que tais elementos personificados serviriam de cupidos que trariam de volta o
amor que esvaeceu com o tempo.
Logo, nos dois poemas o eu-lírico, apenas por meio do universo onírico crepuscular
pode reviver a história de amor com sua amada, em que “Eros e a dinâmica dos fenômenos
naturais constituem essa díade salvadora, posto que nela o eu logra a transcendência de
outro modo inatingível”. (Rosenbaum, 1993, p. 22)
Ainda, atentando para à tópica da efemeridade do amor e da inexorabilidade do
tempo, analisamos outro poema, “Mai”, como o terceiro da série de pares que seguiu tal
viés, que no total resultou em seis, salientando a questão das recorrências motívicas nas
obras aqui estudadas.
Mai
Le mai le joli mai em barque sur le Rhin
Des dames regardaient du haut de la montagne
Vous êtes si jolies mais la barque s’éloigne
Qui donc a fait pleurer les saules riverains
Or des vergers fleuris se figeaient en arrièrre
Les pétales tombés des cerisiers de mai
Sont les ongles de celle que j’ai tant aimée
Les pétales flétris sont comme ses paupières
Sur le chemin du bord du fleuve lentement
Un ours un singe menés par des tziganes
Suivaient une roulotte trînée par un âne
Tandis que s’éloignait dans les vignes rhénanes
Sur un fifre lointain un air de régiment
Le mai le joli mai a paré les ruines
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De lierre de vigne vierge et de rosiers
Le vent du Rhin secoue sur le bord les osiers
Et les roseaux jaseurs et les fleurs nues des vignes
Assim, podemos dar início à análise do poema, tendo como fio condutor a temática
da passagem do tempo e dos sentimentos. Logo, em “Mai”, podemos dizer que o
sentimento findo está caracterizado como uma desilusão amorosa ligada à estada de
Guillaume na Rénanie, local em que conheceu a bela Annie Playden, governanta inglesa da
casa onde trabalhou como “précepteur”. Como resultado disso, nasce uma paixão do jovem
poeta para comAnnie, a qual, no início, corresponde a tal sentimento, mas logo, por medo
de tamanha intensidade, volta para seu país. Então, vimos que se trata de um poema lírico
com sentimentos pessoais e impressões que o poeta recolheu “ aux bords du Rhin”. Se tal
situação biográfica não é apresentada explicitamente, temos alusão a uma triste história de
amor findo, praticamente com o mesmo enredo de dor do poeta que sofreu do mal de amar.
Em virtude disso, partimos para a primeira estrofe de “Mai”, a qual parece anunciar
um idílio de primavera, dado seutítulo “Mai” e retomado no primeiro verso “Le mai le joli
mai”. Estação de ambientação florida, considerando o mês citado na Europa (maio). Nessa,
ainda, devemos destacar as personagens inseridas no contexto, “des dames qui regardent du
haut de la montagne” (v.2), um jovem que passa de barco no Rhin “en barque sur le Rhin”
(v.1) com uma expressão de admiração mediante a beleza das “dames” “Vous êtes si jolies
mais la barque s’éloigne”(v.3).
Considerando o verso 3, vale destacar que as “dames” são inacessíveis, visto que se
encontram no alto de uma montanha, e ainda,que o barco se distancia com a correnteza do
rio “la barque s’éloigne”. No verso 4, é interessante apontar que até mesmo as árvores
“saules”, às margens do rio, lamentam os amores impossíveis: “Qui donc a fait pleurer les
saules riverains”. Logo, vimos que na primeira estrofe os temas da distância e da passagem
imperam, pois o rio, como já dissemos em um outro momento, segundo Heráclito, exprime
a noção da passagem do tempo e da alteração dos sentimentos: “ On ne se baigne jamais
deux fois dans la même eau”.
A imagem central do rio, com o barco sendo levado pela correnteza, indica o fluxo
ininterrupto do tempo, o qual leva consigo os sentimentos, no caso de “Mai”, o amor.
118
Nessa pespectiva, continuamos com a análise da segunda estrofe, na qual
observamos explicitamente a figura da mulher amada. Nessa, notamos que a natureza é
citada como um recurso para trazer de volta o que foi perdido, com toda a sua dinâmica de
ciclos, e eterna sucessão de fenômenos: “ A volta do que foi perdido encontra suporte na
dinâmica da natureza, mecanismo alentador para a elaboração do luto. Nela, perdas e
conquistas se sucedem na multiplicidade de formas, cores, cheiros e movimentos”
(Rosenbaum,1993,p.195-196).Assim,temos imagens da natureza que traduzem a densidade
da perda, como o barco que navega no rio, com os “ vergers fleuris” de sua margem ficando
para trás e na memória do jovem “ Or des vergers fleuris se figeaient en arrière” (V.5)
O tema da passagem perdura na estrofe, pois estando as pétalas caídas das cerejeiras de
maio associadas à lembrança da amada, compreendemos que a metáfora representa o ciclo
das estações, como conseqüência do inexorável processo do fluir do tempo, “Les pétales
tombes des cerisiers de mai”, “ Sont les ongles de celle que j’ai tant aimée” (V.6-7). Assim,
as pétalas das flores são associadas às unhas e às pálpebras da mulher amada, não indicando
mais o desabrochar da vida, a beleza no que tange o mais alto grau de sua frescura e viço,
estando agora “flétris”, murchas ou mortas, fazendo alusão aos ciclos da existência de todas
as coisas, “Les pétales flétris sont comme ses paupières” (V.8).
Considerando o que foi exposto, partimos para a estrofe de “Mai”, que como nas duas
primeiras, apresenta imagens representativas da passagem. Nessa, observamos dois cortejos,
de um circo local, que caminham co esforço e lentidão, movimento exemplificado por meio
dos dois alexandrinos (4-5-3//2-2-2-6), além da extensão da estrofe, que é de cinco versos,
um quinteto, em contrapartida com as outras três, de quatro versos, quadras: “ Un ours un
singe un chien menés par des tziganes”, “ Suivaient une roulotte trainée par un âne” (V.10-
11). Esse primeiro cortejo, que às margens do rio, caminha lentamente, dá-nos a impressão de
sucessão do tempo, pois além do curso ininterrupto do Rhin, como cenário, os animais são
guiados por ciganos, personagens que, já de antemão, indicam constante mudança. Indivíduos
de um povo nômade, que vive de ler a sorte e do artesanato, e sobretudo, de vida incerta, sem
fixar raízes em um determinado lugar. Esses, com a leitura da sorte, jogam com o tempo que
passa, procurando retê-lo, unindo passado, presente e futuro.
Ainda, temos o segundo cortejo, a única referência alegre do poema, mas
representado como algo que se distancia: “Tandis que s’éloignait dans les vignes rhénanes”,
119
“ Sur um fifre lointain um air de régiment” (V.12-13). Assim, a música da flauta é
longínqua, indicando como na primeira estrofe, em que o barco se afasta, que a alegria
como o amor se esvai com o tempo.
Nessa perspectiva, a última estrofe do poema segue a leitura do decurso, pois o que
temos é uma paisagem construída por meio de ruínas, de antigos castelos fortificados,
signos contraditórios da passagem ( o que é destruído) e da permanência ( o que se
conserva): “Le mai le joli mai a paré les ruines” (V.14). Logo, nesse cenário de primavera,
de beleza do mês de maio, ornamentado por arbustos, flores e plantas, como “lierre”,
“vigne”, “osiers”, “roseaux” e “fleurs”, o que impera é a visão das ruínas, ou seja, a morte
ou a distância, no caso, de um dado amor: “ De lierre de vigne vierge et des rosiers” (V.15).
É importante observar que, a última estrofe apresenta a evocação do vento, que como
o rio, procura tudo carregar, sugerindo mais uma vez dor da distância, e embalando com o
seu potente sopro, com uma bela harmonia, em [V], [S], [Z], [F], as plantas sobre as
margens: “ Le vent du Rhin secoue sur le bord les osiers”, “ Et les roseaux jaseurs et les
fleurs nues des vignes” (V.16-17) ( Morhange-Bégué& Lartigue, 1993, p.72).
Dando continuidade à temática, analisamos o outro poema que serviu de objeto para o
diálogo entre a poética bandeiriana e apollinairiana, “Enquanto morrem as rosas...”.
Enquanto morrem as rosas...
Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância.
Fora, a mortiça luz dos crepúsculos arde.
Nas árvores, no oceano e no azul da distância
Morre a tarde...
Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham
No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas...
Morre o teu sonho?... Neste instante o pensamento
Acabrunha o meu ser como um pesar medonho.
Ah, por que temo assim? Dize: neste momento
Morre o teu sonho?...
Aqui, notamos um cenário ornamentado por flores, sendo essas metáfora da passagem
do tempo e dos sentimentos, visto que já no título, elas se apresentam em um processo de
120
morte. Sendo assim, na primeira estrofe há todo um clima que denuncia a inexorabilidade
do tempo, pois a cena se dá na tarde que morre, “Morre a tarde. Erra no ar a divina
fragrância” (v.1), com uma luz, que é mortiça, prestes a apagar-se, característica do tom
crepuscular, “Fora, a mortiça luz dos crepúsculos arde”(v.2). Além, da própria natureza
com suas árvores e o seu oceano, indicar no azul da distância, que o tempo passa
ininterruptamente, “Nas árvores, no oceano e no azul da distância”(v.3).
Vimos que o topos da distância daquilo que esvaeceu com o tempo, toma o centro da
poesia bandeiriana, apresentando o oceano com toda a sua carga simbólica, de algo com
extensão aparentemente sem limites, e ainda, segundo o Taoísmo: “o Tão está para o
mundo como o mar está para os rios. Todas as águas confluem para o mar, sem enchê-lo;
todas as águas saem do mar, sem esvaziá-lo (Chevalier, 1992, p.650). Por meio dessa
citação, notamos que já na primeira estrofe temos todo um cosmo que indica finitude e
passagem, pois sendo o oceano/mar um receptor de todas as águas, incluindo as dos rios,
observa-se que essa impressão longínqua e sem limites que ele causa, também apresenta o
fluir incessante de sua correnteza, conseqüentemente, do decurso do tempo.
Dessa maneira, observamos no poema de Bandeira que a natureza expressa o pesar
diante da passagem do tempo, pois na segunda estrofe, as rosas continuam a ornar uma
paisagem crepuscular, na qual a melancolia paira no ar devido ao pranto da distância.
Nessa, as pálpebras, não mais da mulher amada, mas do eu lírico, molham-se com o pranto
das desesperanças dolorosas, e as pétalas caídas sobre a mesa indicam um processo infinito
de morte, reforçado pelas reticências, seja como metáfora do tempo findo ou de
sentimentos não especificados: “ Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham”, “No
pranto das desesperanças dolorosas”, “ Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham”,
“Morrem as rosas...”(V.5,6,7e 8).
É importante mencionar que as imagens da natureza em Bandeira são bastante
freqüentes, adquirem de tal forma valor expressivo, que muitas vezes falam das dores
humanas por meio de metáforas, emprestam características romântico-simbolista a sua obra.
Como resultado do triste decurso do tempo e dos sentimentos, o poema finaliza com
uma atmosfera de ruínas-morte, mas de um dado sonho, quiçá de sentimentos, momentos
ou planos findos: “Morre o teu sonho?...Neste instante o pensamento” (V.9). Esse clima de
finitude,é ainda exemplificado por meio dos versos 10 e 11, em que um “pesar medonho”
121
toma conta do pensamentodo eu-lírico, demonstrando que a irreversibilidade daquilo que
findou chega a lhe causar paúra, “Acabrunha o meu ser como um pesar medonho.”, “Ah,
por que temo assim? Dize: neste momento”. È interessante notar, que nos versos 9, 11 e 12,
há expressões de dúvida, as quais são representadas por pontos de interrogação, que
indicam a descrença do sujeito poético mediante a possibilidade do fim de seu sonho. Esse
continua a indagar, e tenta recuperar o que foi perdido por meio da sustentação da incerteza
de que o tempo não levou consigo o seu sonho: “ Morre o teu sonho”...(V.12).
Apollinaire e Bandeira
Ainda, seguindo o viés de uma poesia inscrita com a tinta da efemeridade dos
sentimentos e da inexorabilidade do tempo, partimos para o diálogo “Enquanto morrem as
rosas” e “Mai”.Podemos dizer que tanto um quanto o outro abordam a questão da finitude
dos sentimentos como decorrência da passagem do tempo.
É importante mencionar, que o pesar devido à inexorabilidade do tempo e,
conseqüentemente, o fim dos sentimentos, é um tema caro aos poetas estudados. Por isso, a
temática pode ser exemplificada por meio de uma carta de Apollinaire, datada de agosto de
1916, à Jeanne-Yves Blanc, na qual lhe confia:
je n’ai jamais désiré de quitter pour ma part le lieu où je
vivais et j’ai toujours désiré que le présent quel qu’il fût
perdurât. Rien ne determine plus de mélancolie chez moi que
cette fuite du temps. Elle est en désaccord si formel avec mon
sentiment, mon identité, qu’elle est la source même de ma
poésie. (Apud Décaudin, 1993, p.81)
Observamos que a angústia do poeta está relacionada à impossibilidade de reter o
tempo que passa, pois esse leva consigo o presente que sempre desejou eternizar. Ainda,
Apollinaire, diante de tal impotência, afirma que a fonte para a sua poesia, é justamente o
icontrolável fim de todas as coisas, atribuindo relevância ao seu estado melancólico de ser.
É nesse viés, que o poeta pernambucano também constrói a sua obra, apontando a
distância daquilo que findou em todas as esferas de sua poesia, apresentando-se movido
122
pela busca do que se esvaeceu com o tempo, seja na infância perdida e na saúde debilitada
seja na perda brusca dos entes queridos ou dos sentimentos vivenciados:
a partir de índices que evocam as reminiscências, Bandeira se
coloca de um ponto onde avista o passado e apreendea
mutabilidade dos fenômenos do mundo. Para ele importa,
sobretudo, registrar como sua sensibilidade capta as
transformações que destroem a pulsação dos tempos idos; seu
olhar reveste os lugares e personagens do presente com um
toldo amarelecido, revelação da perda e da deterioração. Os
poemas que homenageiam cidades são mais do que
testemunhos desse mecanismo que vê na distância histórica o
declínio de uma magia (Rosenbaum, 1993, p. 144)
É pois, o que se vê na poética bandeiriana, um toldo amarelecido como imagem do
tempo ininterrupto, deixando apenas o aspecto corrosivo do passar dos anos, determinando,
como classifica Rosenbaum, uma poesia da ausência.
Notamos que tanto Bandeira quanto Apollinaire trabalham essa questão dos “tempos
idos” em sua obra, por meio das reminiscências que restaram do que se foi ou de metáforas
representativas dessa passagem inexorável.
Assim, podemos dar início à análise dos poemas, tendo como fio condutor a temática
da passagem do tempo e dos sentimentos. Logo, em “Mai”, podemos dizer que o
sentimento findo está caracterizado como uma desilusão amorosa ligada à estada de
Guillaume na Rénanie, local em que conheceu a bela Annie Playden, governanta inglesa da
casa onde trabalhou como “précepteur”. Como resultado disso, nasce uma paixão do jovem
poeta para comAnnie, a qual, no início, corresponde a tal sentimento, mas logo, por medo
de tamanha intensidade, volta para seu país. Então, vimos que se trata de um poema lírico
com sentimentos pessoais e impressões que o poeta recolheu “ aux bords du Rhin”. Se tal
situação biográfica não é apresentada explicitamente, temos alusão a uma triste história de
amor findo, praticamente com o mesmo enredo de dor do poeta que sofreu do mal de amar.
Em virtude disso, partimos para a primeira estrofe de “Mai”, a qual parece anunciar
um idílio de primavera, dado seutítulo “Mai” e retomado no primeiro verso “Le mai le joli
123
mai”. Estação de ambientação florida, considerando o mês citado na Europa (maio). Nessa,
ainda, devemos destacar as personagens inseridas no contexto, “des dames qui regardent du
haut de la montagne” (v.2), um jovem que passa de barco no Rhin “en barque sur le Rhin”
(v.1) com uma expressão de admiração mediante a beleza das “dames” “Vous êtes si jolies
mais la barque s’éloigne”(v.3).
Considerando o verso 3, vale destacar que as “dames” são inacessíveis, visto que se
encontram no alto de uma montanha, e ainda,que o barco se distancia com a correnteza do
rio “la barque s’éloigne”. No verso 4, é interessante apontarque até mesmo as árvores
“saules”, às margens do rio, lamentamos amores impossíveis: “Qui donc a fait pleurer les
saules riverains”. Logo, vimos que na primeira estrofe os temas da distância e da passagem
imperam, pois o rio, como já dissemos em um outro momento, segundo Heráclito, exprime
a noção da passagem do tempo e da alteração dos sentimentos: “ On ne se baigne jamais
deux fois dans la même eau”.
A imagem central do rio, com o barco sendo levado pela correnteza, indica o fluxo
ininterrupto do tempo, o qual leva consigo os sentimentos, no caso de “Mai”, o amor.
É o que ocorre em “Enquanto morrem as rosas...”, pois notamos o mesmo cenário
ornamentado por flores, como na primavera de “Mai”, sendo essas, metáfora da passagem
do tempo e dos sentimentos, visto que já no título, elas se apresentam em um processo de
morte. Sendo assim, na primeira estrofe há todo um clima que denuncia a inexorabilidade
do tempo, pois a cena se dá na tarde que morre, “Morre a tarde. Erra no ar a divina
fragrância” (v.1), com uma luz, que é mortiça, prestes a apagar-se, característica do tom
crepuscular, “Fora, a mortiça luz dos crepúsculos arde”(v.2). Além, da própria natureza
com suas árvores e o seu oceano, indicar no azul da distância, que o tempo passa
ininterruptamente, “Nas árvores, no oceano e no azul da distância”(v.3).
Como Apollinaire, notamos que o topos da distância daquilo que esvaeceu com o
tempo, toma o centro da poesia bandeiriana, apresentando o oceano com toda a sua carga
simbólica, de algo com extensão aparentemente sem limites, e ainda, segundo o Taoísmo:
“o Tão está para o mundo como o mar está para os rios. Todas as águas confluem para o
mar, sem enchê-lo; todas as águas saem do mar, sem esvaziá-lo (Chevalier, 1992, p.650).
Por meio dessa citação, notamos que já na primeira estrofe temos todo um cosmo que
indica finitude e passagem, pois sendo o oceano/mar um receptor de todas as águas,
124
incluindo as dos rios, como o Rhin, observa-se que essa impressão longínqua e sem limites
que ele causa, também apresenta o fluir incessante de sua correnteza, conseqüentemente, do
decurso do tempo.
Continuamos com a análise da segunda estrofe, a qual em “Mai” observamos
explicitamente a figura da mulher amada. Nessa, notamos que a natureza é citada como um
recurso para trazer de volta o que foi perdido, com toda a sua dinâmica de ciclos, e eterna
sucessão de fenômenos.Temos imagens da natureza que traduzem a densidade da perda,
como o barco que navega no rio, com os “ vergers fleuris” de sua margem ficando para trás
e na memória do jovem “ Or des vergers fleuris se figeaient em arrière” (V.5)
O tema da passagem perdura na estrofe, pois estando as pétalas caídas das cerejeiras
de maio associadas à lembrança da amada, compreendemos que a metáfora representa o
ciclo das estações, como conseqüência, do inexorável processo do fluir do tempo, “Lês
pétales tombes dês cerisiers de mai”, “ Sont les ongles de celle que j’ai tant aimée” (V.6-7).
Assim, as pétalas das flores são associadas às unhas e às pálpebras da mulher amada, não
indicando mais o desabrochar da vida, a beleza no que tange o mais o mais alto grau de sua
frescura e viço, estando agora “flétris”, murchas ou mortas, fazendo alusão aos ciclos da
existência de todas as coisas, “Les pétales flétris sont comme ses paupières” (V.8).
Da mesma maneira, observamos no poema de Bandeira que a natureza expressa o
pesar diante da passagem do tempo, pois na segunda estrofe, as rosas continuam a ornar
uma paisagem crepuscular, na qual a melancolia paira no ar devido ao pranto da distância.
Nessa, as pálpebras, não mais da mulher amada, mas do eu-lírico, molham-se com o pranto
das desesperanças dolorosas, e as pétalas caídas como, em Apollinaire, aqui sobre a mesa,
indicam um processo infinito de morte, reforçado pelas reticências, seja como metáfora do
tempo findo ou de sentimentos não especificados: “ Morrem as rosas. Minhas pálpebras se
molham”, “No pranto das desesperanças dolorosas”, “ Sobre a mesa, pétala a pétala, se
esfolham”, “Morrem as rosas...”(V.5,6,7e 8).
É importante mencionar que as imagens da natureza em Bandeira são bastante
freqüentes, adquirem de tal forma valor expressivo, que muitas vezes falam das dores
humanas por meio de metáforas, emprestam características romântico-simbolista a sua
obra.
125
(...) as imagens da natureza adquirem (sic) valor expressivo
em sua confluência com processos subjetivos. Esse caráter
romântico-simbolista da obra de Bandeira não deve ser
subestimado. Embora não se possa falar de uma visão
panteísta, a sensibilidade ao“ser”da natureza ocupa um espaço
significativo no lirismo bandeiriano (Rosenbaum, p.186)
Tendo esses elementos fixos, partimos para a estrofe de “Mai”, que como nas duas
primeiras, apresenta imagens representativas da passagem. Nessa, observamos dois cortejos,
de um circo local, que caminham co esforço e lentidão, movimento exemplificado por meio
dos dois alexandrinos (4-5-3//2-2-2-6), além da extensão da estrofe, que é de cinco versos,
um quinteto, em contrapartida com as outras três, de quatro versos, quadras: “ Um ours um
singe um chien menés par des tziganes”, “ Suivaient une roulotte trainée par um âne” (V.10-
11). Esse primeiro cortejo, que às margens do rio, caminha lentamente, dá-nos a impressão de
sucessão do tempo, pois além do curso ininterrupto do Rhin, como cenário, os animais são
guiados por ciganos, personagens que, já de antemão, indicam constante mudança. Indivíduos
de um povo nômade, que vive de ler a sorte e do artesanato, e sobretudo, de vida incerta, sem
fixar raízes em um determinado lugar. Esses, com a leitura da sorte,jogam com o tempo que
passa, procurando retê-lo, unindo passado, presente e futuro.
Ainda, temos o segundo cortejo, a única referência alegre do poema, mas
representado como algo que se distancia: “Tandis que s’éloignait dans les vignes rhénanes”,
“ Sur um fifre lointain um air de régiment” (V.12-13). Assim, a música da flauta é
longínqua, indicando como na primeira estrofe, em que o barco se afasta, que a alegria
como o amor se esvai com o tempo.
Nessa perspectiva, a última estrofe do poema segue a leitura do decurso, pois o que
temos é uma paisagem construída por meio de ruínas, de antigos castelos fortificados,
signos contraditórios da passagem ( o que é destruído) e da permanência ( o que se
conserva): “Le mai le joli mai a paré les ruines” (V.14). Logo, nesse cenário de primavera,
de beleza do mês de maio, ornamentado por arbustos, flores e plantas, como “lierre”,
“vigne”, “osiers”, “roseaux” e “fleurs”, o que impera é a visão das ruínas, ou seja, a morte
ou a distância, no caso, de um dado amor: “ De lierre de vigne vierge et des rosiers” (V.15).
126
Sendo assim, é importante observar que, a última estrofe apresenta a evocação do vento,
que como o rio, procura tudo carregar, sugerindo mais uma vez dor da distância, e
embalando com o seu potente sopro, com uma bela harmonia, em [V], [S], [Z], [F], as
plantas sobre as margens: “ Le vent du Rhin secoue sur le bord les osiers”, “ Et les roseaux
jaseurs et les fleurs nues des vignes” (V.16-17) ( Morhange-Bégué& Lartigue, 1993, p.72).
No mesmo sentido Bandeira finaliza o seu poema, pois na última estrofe, também
apresenta uma atmosfera de ruínas-morte, mas nesse, de um dado sonho, quiçá de
sentimentos, momentos ou planos findos: “Morre o teu sonho?...Neste instante o
pensamento” (V.9). Esse clima de finitude, é ainda exemplificado por meio dos versos 10 e
11, em que um “pesar medonho” toma conta do pensamentodo eu-lírico, demonstrando que
a irreversibilidade daquilo que findou chega a lhe causar paúra, “Acabrunha o meu ser
como um pesar medonho.”, “Ah, por que temo assim? Dize: neste momento”. È
interessante notar, que nos versos 9, 11 e 12, há expressões de dúvida, as quais são
representads por pontos de interrogação, que indicam a descrença do sujeito poético
mediante a possibilidade do fim de seu sonho. Esse, continua a indagar, e tenta recuperar o
que foi perdido sustentando a incerteza de que o tempo não levou consigo o seu sonho: “
Morre o teu sonho”...(V.12).
Enfim, nesses poemas encontramos o lamento pelos sentimentos findos, a resignação
mediante a passagem do tempo e a submissão do eu-lírico às reminiscências dolorosas.
127
3.4 - A Epifania e o Ubi Sunt?
Corroborando a temática da poesia da ausência do eu-lírico mal-amado, tomamos
para estudo os poemas “Volta” e “Rosemonde” considerando que esses seguem as
características da tópica “A epifania e o Ubi Sunt?”. Nesses, vimos a questão da
evanescência de todas as coisas, como a mulher amada (Ubi Sunt?) e a visão súbita
(epifania) daquela que havia se perdido com o tempo.
Assim, iniciamos com o poema “Rosemonde” de 1912, que apresenta o reencontro do
eu-lírico com o seu amor que havia sido levado pelo decurso do tempo.
Rosemonde
Longtemps au pied du perron de
La Maison où entra la dame
Que j’avais suivie pendant deux
Bonnes heures à Amsterdam
Mes doigts jetèrent des baisers
Mais le canal était désert
Le quai aussi et nul ne vit
Comment mes baisers retrouvèrent
Celle à qui j’ai donné ma vie
Un jour pendant plus de deux heures
Je la surnommai Rosemonde
Voulant pouvoir me rappeler
Sa bouche fleurie en Hollande
Puis lentement je m’en allai
Pour quêter la Rose du Monde
Esse reencontro se dá como uma verdadeira aparição, visto que a mulher amada
surge no pé da escadaria “perron” de uma casa, depois de duas horas de procura do sujeito
poético em Amsterdan, tempo prolongado pelo adjetivo “bonnes” e pelo vocábulo
“longtemps”, que ampliam a idéia de distância do objeto amado. Diante dessa visão
epifânica, o eu-lírico parece ter verdadeiramente reencontrado o seu amor e chega mesmo a
lhe jogar beijos: “Longtemps au pied du perron de”, “La Maison où entra la dame”, “Que
j’avais suivie pendant deux”, “Bonnes heures à Amsterdam”, “Mes doigts jetèrent des
128
baisers” (V. 1 a 5). Logo, essa visão da mulher amada não passa de uma imagem súbita,
demonstrando toda a fugacidade dos seres e conseqüentemente do amor, confirmado na
estrofe seguinte.
A imagem da mulher amada some como uma chama que se apaga, simbolizando
apenas o instante feliz da visão ou “o momento de uma aparição”. Dessa forma, da imagem
repentina e fugaz (epifania) restam apenas o canal e o cais desertos, além de não haver
ninguém para testemunhar os beijos que não chegam àquela por quem o eu-lírico dá a vida:
“ Mais le canal était désert”, “Lê quai aussi et nul ne vit”, “Comment mês baisers
retrouvèrent”, “ Celle à qui j’ai donné ma vie” (V. 6 a 9). Assim, essa imagem do vazio
(désert/nul) simboliza, mesmo que implicitamente, questão do “Ubi Sunt?” como indagação
à respeito da ausência da mulher amada, tendo o silêncio como resposta. Desse modo, à
pergunta “Ubi Sunt?” que ficou como resposta ao caráter instantâneo da imagem epifânica
(no pé da escadaria), temos a repetição da idéia dos versos 3 e 4, a procura pela mulher
amda durante mais de duas horas, ou seja, a volta à questão da perda: “Um jour pendant
plus de deux heures” (V. 10).
Nessa perspectiva, obersvamos que na última estrofe o eu-lírico tenta dar resposta à
angustiante pergunta “Ubi Sunt?” por meio do recurso mnemônico, evocando a imagem
daquela que nomeia como Rosemonde, visando lembrar de sua “boca florida”, no próprio
país característico por suas flores, para quiçá apaziguar tamanha dor da falta: “Je la
surnommai Rosemonde”, “Voulant pouvoir me rappeler”, “As bouche fleurie em Hollande”
(V. 11 a 13). Diante disso, não podemos deixar de mencionar o caráter simbólico da
(rosa/Rosemonde/Rose du Monde) no poema, “remontando ao mito de Adônis, o amado de
Afrodite (Vênus) de cujo sangue teriam brotado as primeiras rosas vermelhas. Essas se
tornaram assim o símbolo do renascimento e do amor que sobrevive à morte
(Biedermann, 1993, p.329).
O caráter elegíaco-amoroso é acentuado nos últimos versos, na medida em que a
“rosa”, símbolo do renascimento e do amor que sobrevive à morte, serve como resposta ou
consolo à questão pesarosa “Ubi Sunt?” à respeito da falta e à imagem repentina da mulher
amada. Então o registro simbólico funciona como alternativa para reconstruir ou
reencontrar o amor perdido, permanecendo a “rosa” apenas como lembrança que ameniza a
dor da ausência. Mas logo esse valor simbólico de restauração do amor é erradicado, pois
129
apesar dessa associação e volta da mulher amada, mesmo que de forma instantânea (visão
epifânica) e mítica (a rosa como símbolo), o eu-lírico volta para a realidade, segue seu
caminho lentamente para aceitar e deixar definitivamente a “Rose du Monde”: “Puis
lentement je m’em allai”, “Pour quêter la Rose du Monde” (V.14 e 15). Desse modo, o
poema finaliza com a questão do distanciamento do outro, voltando a mulher/rose a sua
condição primeira de recordação, circundando a pergunta “Ubi Sunt?” em relação àquela
que “ante nos em mundo fuere?”.
Dando seqüência, partimos para o poema de Manuel Bandeira, “Volta”.
Volta
Enfim te vejo. Enfim no teu
Repousa o meu olhar cansado.
Quanto oturvou e escureceu
Sem apagar teu vulto amado!
Porém já tudo se perdeu
No olvido imenso do passado:
Pois que és feliz, feliz sou eu.
Enfim te vejo!
Embora morra incontentado,
Bendigo o amor que Deus me deu.
Bendigo-o como um dom sagrado.
Como o só bem que há confortado
Um coração que a dor venceu!
Enfim te vejo!
Nesse, notamos que o eu-poético finalmente revê a sua amada, repousando o seu
olhar cansado naquela por quem experimentou o pranto amargo, não apagando, apesar de
tamanha dor, as suas reminiscências: “Enfim te vejo. Enfim no teu”, Repousa o meu olhar
cansado.”, “Quanto o turvou e escureceu”, “O pranto amargo que correu”, “Sem apagar teu
vulto amado!” (V.1 a 5). Assim, notamos que a ausência da mulher amada é preenchida
pela sua chegada repentina – “Enfim te vejo” – como uma visão abrupta (epifania), que
volta, de forma breve e imaginária.
Mas essa “volta” se dá realmente como uma aparição, visto que na estrofe seguinte há
a confirmação de que tudo se perdeu no passado, restando implicitamente a questão “Ubi
130
Sunt?” diante daquela que amou: “Porém já tudo se perdeu”, “No olvido imenso do
passado” (V. 6 e 7). No entanto, temos novamente a visão súbita, na medida em que o eu-
lírico apesar da triste perda da amada, mostra-se feliz, devido a mais um instante de
revelação da mesma: “Pois que és feliz, feliz sou.”, “Enfim te vejo!” (V. 8 e 9). Desse
modo, é importante destacar a repetição do verso “Enfim te
mas concomitantemente o seu reencontro como uma visão que lhe traz, mesmo que de
forma fugaz, a felicidade perdida (epifania).
Iniciamos pela análise formal do poema Rosemonde”, que apresenta três estrofes de
cinco versos, quintilhas, em sua maioria heptassílabos. Ainda, é constituído por 15 versos
no total, os quais não finalizam juntamente com o segmento sintático, sendo construídos
por meio do encadeamento, ou pelo termo francês mais conhecido “enjambement”:
“Longtemps au pied du perron de
La maison où entra la dame
Que j’avais suivie pendant deux
Bonnes heures à Amsterdam”
De forma semelhante, o poema “Volta contém três estrofes, mas apenas a primeira
classificada como quintilha, as outras duas, uma quadra e a outra uma sextilha. Também, o
poema, no total, é constituído por 15 versos, embora menos uniforme quanto à medida ou
extensão da linha poética, pois temos ora heptassílabos e octassílabos, ora quartetos.
Semelhante à “Rosemonde”, a pausa final dos versos não coincidem com a pausa
respiratória, eles são construídos pelo recurso poético “enjambement”:
“Porém já tudo se perdeu
No olvido imenso do passado:
Pois que és feliz, feliz sou eu.”
Após a análise dos aspectos formais dos poemas, partimos para o estudo da temática
propriamente dita “A epifania e o Ubi sunt?”. Par isso nos reportamos às literaturas mais
antigas que já tinham a questão da ausência – Ubi sunt?” – como tema:
mas esse lugar rotulado da literatura – que está em trechos
bíblicos de Salomão e Isaias, em Boécio (“De consolatione
philosophiae”), em Jacopone de Todi (em seu “Rhythmus
contemplu mundi”), em Eustache Deschamps, em Villon, nas
132
famosas coplas de Jorge Manrique, além de Von Platen,
Goethe e outros – é apropriado por Bandira e recriado em
diversas tonalidades. Verifica-se um aproveitamento bastante
original do tema, tornando-se parte fundamental dessa poesia
que se arvora em evocar as ausências. (Rosenbaum, 1993,
p.97)
É importante destacar que na história da literatura esse tema sempre esteve presente e
tanto Bandeira quanto Apollinaire se apropriam dessa tópica, cada um à sua maneira,
recriando mesmo que de forma implícita, a questão do “Ubi sunt?” vinculada à morte ( nem
sempre física) ou à perda do objeto amado.
A epifania nos poemas completa a idéia de ausência, pois em ambos a súbita visão da
mulher amada reforça o caráter fugaz dessa poesia, permanecendo apenas por “um
momento de aparição”, sempre voltando para a indagação referente à falta - Ubi sunt?”.
Desse modo, em “Rosemonde” o eu-lírico, como em uma miragem que não dura mais do
que segundos, vê a sua amada no pé da escadaria. Ele enfatiza o esforço que teve durante
duas “bonnes heures” para reencontrar o seu amor, que entra surpreendentemente na casa,
como uma visão inesperada: “Longtemps au pied du perron de”, “La Maison où entra la
dame”, “Que j’avais suivie pendant deux”, “Bonnes heures à Amsterdam”, “Mês doigs
jetèrent dês baisers” (V. 1 a 5).
É o que ocorre em “Volta”, pois o eu-lírico finalmente revê a sua amada, repousando
o seu olhar cansado naquela por quem experimentou o pranto amargo, não apagando,
apesar de tamanha dor, as suas reminiscências: “Enfim te vejo. Enfim no teu”, “Repousa o
meu olhar cansado.”, “Quanto o turvou e escureceu”, “O pranto amrgo que correu”, “Sem
apagar teu vulto amado!” (V. 1 a 5). Como Apollinaire, a ausência da mulher é preenchida
pela sua chegada repentina – “Enfim te vejo” – como uma visão abrupta (epifania) que
volta de forma breve.
Observamos que em ambos os poemas a mulher retorna como uma aparição, ou seja,
transformando os pequenos feitos e experiências da vida humana (a perda de um dado
amor) em instantes de revelação e epifania:
133
neste momento, aborda o impacto dessa visão iluminada da
mulher implica a discussão do conceito de “epifania” enquanto
expressão de um “êxtase estético”. Etimologicamente,
“epifania” vem de epiphaino, ou seja, fazer aparecer, mostrar,
fazer conhecer. No texto “Uma Noção Joyceana”, Umberto
Eco rastreia as relações entre epifania em Joyce e a tradição
decadentista, estabelecendo paralelos entre o escritor irlandês
(e seu herói Stephen Hero) e a obra Il Fuoco, de Gabriele
D’Annunzio. Eco mostra a epifania como “o momento de uma
aparição [grifo seu] ( quando a realidade aparece, se revela,
prestes a ser traduzida em imagem poética, ou melhor, quando
ela já aparece como imagem poética). (Umberto Eco, apud
Rosenbaum, 1993, p. 15
Mas essa súbita manifestação da mulher ou retorno instantâneo, logo volta para a sua
condição primeira, a ausência - “Ubi sunt?”, pois em “Rosemonde” os beijos que o eu-lírico
joga já não encontram o seu amor. Além de apresentar uma cena que confirma a perda
daquela a quem deu sua vida, o vazio do deserto, do cais e a inexistência de pessoas, o que
nos direciona para a imagem que se desfez, não havendo ninguém como testemunha dessa
aparição, inclusive ele: “Mais le canal était désert”, “Lê quai aussi et nul ne vit”, “Comment
mes baisers retrouvèrent”, “Celle à qui j’ai donné ma vie”, “Un jour pendant plus de deux
heures” (V. 6 a 10)
Da mesma forma, no poema de Bandeira a volta da mulher amada se dá também
como uma aparição, visto que na segunda estrofe há a confirmação de que tudo se perdeu
no passado, restando implicitamente a indagação – “Ubi sunt?” mediante aquela que amou:
“Porém já tudo se perdeu”, “No olvido imenso do passado:” (V. 6 e 7). No entanto, temos
novamente a visão súbita, na medida em que o eu-lírico, apesar da triste perda da amada,
mostra-se feliz, devido a mais um instante de revelação da mesma: “Pois que és feliz, feliz
sou eu.”, “Enfim te vejo!” (V. 8 e 9). Desse modo, é importante destacar a repetição do
verso “Enfim te vejo!”, agora exclamativo, reforçando a idéia de surpresa e brevidade de tal
aparição. Nessa perspectiva, observamos que esse retorno acontece de forma instantânea,
134
como “flashs” de visão, pprimeiro se mostrando para em seguida se apagar, restando
sempre após o êxtase fugaz, a dor da ausência ou a pergunta angustiante “Ubi sunt?”.
Notamos que ambos os poemas têm a ausência – “Ubi sunt?” como leitmotiv,
estando na linguagem poética a salvação para a aflição eterna da figura do mal-amdo, a
perda de sua amada, tentando por meio do ato sublimatório (a escrita), reconquistar o que
ficou no passado:
tratando-se, em Bandeira, [e aqui inserimos Apollinaire], de
uma poesia que referencializa, na linguagem, a questão da falta
– ao mesmo tempo em que é movida pela necessidade de
elaborá-la e encontrar caminhos para existir entre as perdas - ,a
pergunta “ubi sunt qui ante nos en mundo fuere?” essencializa
esse veio que sulca a as obras (sic). È uma questão que
demanda uma resposta, que busca, na objetivação da
linguagem, um sentido apaziguador. (Rosenbaum, 1993, p. 97)
Então, a ausência do outro é confirmada na última estrofe dos poemas, visto que o eu-
lírico em “Rosemonde” tenta dar resposta à angustiante pergunta “Ubi sunt?” por meio do
recurso mnemônico, evocando a imagem daquela que nomeia como Rosemonde, visando
lembrar de sua “boca florida” na “Hollande”, para quiçá amenizar tamanha dor da falta: “Je
la surnommai Rosemonde”, “Voulant pouvoir me rappeler”, “Sa bouche fluerie em
Hollande” (V. 11 a 13). Assim, o caráter elegíaco-amoroso é acentuado nos últimos versos,
na medida que a “rosa”, símbolo do renascimento e do amor que sobrevive à morte, serve
como resposta para a questão pesarosa “Ubi sunt?” à respeito da falta e à imagem repentina
da mulher amada.
Então o registro simbólico funciona como alternativa para reconstruir ou reencontrar
o amor perdido, permanecendo a “rosa” apenas como lembrança que ameniza a dor da
ausência. Mas logo esse valor simbólico de restauração do amor é eliminado, pois apesar
dessa associação e volta da mulher amada, mesmo que de forma instantânea (visão
epifânica) e mítica (a rosa como símbolo), o eu-lírico retorna para a realidade, segue seu
caminho lentamente para aceitar a sua condição de mal-amdo e deixar definitivamente a
“Rose du Monde”: “Puis lentement je m’em allai”, “Pour quêter la Rose du Monde” (V. 14
135
e 15).Desse modo, o poema finaliza com a quest~~ao do distanciamento do outro, voltando
a mulher a sua condição primeira de recordação, circundando mesmo que indiretamente a
pergunta “Ubi sunt?”.
De forma similar, o eu-lírico de “Volta” tenta recuperarpor meio do tom evocatório
do poema e do amor dado por Deus, a sua amada, como se isso fosse a única lembrança que
permaneceu após a perda. Nessa perspectiva, o eu-poético apresenta toda a sua condição de
mal-amado, salientando que somente o amor que Deus lhe deu (sentimento de
recordação/sagrado) pode confortar seu coração dilacerado pela distância de sua amada:
“Embora morra incontentado,”, “Bendigo o amor que Deus me deu.”, “Bendigo-o como um
dom sagrado.”, “Como o só bem que há confortado”, “Um coração que a dor venceu!” (V.
11 a 14). Como em Apollinire, o sujeito poético encerra com a indagação subentendida
“Ubi sunt?, pois a aparição do último verso “Enfim te vejo!”, como já denominamos aqui
de visão súbita (epifânica), desaparece em questão de segundos, permanecendo apenas o
lamento pela distância da amada e a pergunta sem resposta, cujo silêncio já é representativo
de sua própria ausência:
el efecto máximo de este esquema (Ubi sunt?) se dá cuando
no se contesta a la pregunta del “adonde” de um modo
explícito, y la respuesta queda sobrentendida en el silencio. Es
dar la callada por respuesta. Ese silencio traduce
simbolicamente el inmenso “no ser” de la muerte, en el “no
ser” de ninguna voz respondiente. Todos han caido en el
silencio. (Oliveira, apud Rosenbaum, 1993, p.101)
Em resumo, “Rosemonde” e “Volta” são poemas que apresentam a ausência “Ubi
sunt” como tema central, havendo no eu-lírico uma eterna busca pela reaproximação de seu
objeto amado, mesmo que isso se dê de forma súbita, como uma aparição que logo se esvai
“epifania”.
136
3.5 - O Gozo a partir da contemplação
Por meio desse subtema, pudemos abordar a questão da existência do amor platônico
no eu-lírico mal-amado de “1909”, tal como foi visto acima na poesia trovadoresca que se
dirige a um objeto intocável.
1909
La dame avait une robe
En ottoman violine
Et sa tunique brodée d'or
Était composée de deux panneaux
S'attachant sur l'épaule
Les yeux dansants comme des anges
Elle riait elle riait
Elle avait un visage aux couleurs de France
Les yeux bleus les dents blanches et les lèvres très rouges
Elle avait un visage aux couleurs de France
Elle était décolletée en rond
Et coiffée à la Récamier
Avec de beaux bras nus
N'entendra-t-on jamais sonner minuit
La dame en robe d'ottoman violine
Et en tunique brodée d'or
Décolletée en rond
Promenait ses boucles
Son bandeau d'or
Et traînait ses petits souliers à boucles
Elle était si belle
Que tu n'aurais pas osé l'aimer
J'aimais les femmes atroces dans les quartiers énormes
Où naissaient chaque jour quelques êtres nouveaux
Le fer était leur sang la flamme leur cerveau
J'aimais j'aimais le peuple habile des machines
Le luxe et la beauté ne sont que son écume
Cette femme était si belle
Qu'elle me faisait peur
137
Semelhante à leitura platônica do amor, observamos um outro aspecto que vai ao
encontro dessa visão contemplativa, a “estética parnasiana do erotismo (a imagem da
mulher-estátua)”.Logo, segundo essa estética, a mulher se mostra longínqua e inacessível, o
que é observado no poema de Apollinaire.
Já na primeira estrofe notamos traços dessa mulher inacessível, pois o eu-lírico a
descreve com tamanha beleza que a sua própria vestimenta a caracteriza como um ser
diferente dos humanos, provavelmente uma mistura de deusa, santa e anjo. Assim, ela é
descrita com um vestido violeta, uma túnica e uma bandana bordados a ouro, material
oneroso que de antemão indica não se tratar de pessoa comum. Também, é importante
ressaltar que a túnica faz parte de um antigo vestuário, longo e ajustado ao corpo usado por
muitas entidades e divindades, o que atesta mais uma vez o caráter sagrado dessa mulher:
“La dame avait une robe”, “Em ottoman violione”, “Et as tunique brodée d’or”, “Ètait
composée de deux panneux”, “S’attachant sur l’épaule” (V. 1 a 5).
A imagem sacralizada é confirmada na segunda estrofe, posto que os olhos azuis da
mulher dançam como anjos, seus lábios são extremamente vermelhos e seus dentes
brancos, dando-nos a impressão de estarmos diante de um anjo ou de uma santa, em um
mundo pueril com toda a sua alvura, ou com seu corpo alvirrósseo como no dizer dos
poetas parnasianos.
Outrossim, notamos um outro aspecto relacionado ao subtema e que é destacado por
Affonso Romano de Sant’Anna sobre a tensão (desejo interdição) presente na “mulher-
estátua” da estética parnasiana. Essa tensão é observada em “1909”, na medida em que a
“dame” usa um vestido de cor um tanto quanto provocante, violeta púrpura, passando-nos a
imagem de mulher que desperta desejo. Assim, segue o conflito de sentimentos, pois os
belos braços dessa mulher se mostram nus, sem o véu do pudor, como se era esperado:”La
dame avait une robe”, “Em ottoman violine”, “Avec de beaux brás nus” (V. 1, 2 e 13).
Silmutaneamete, essa mesma “dame” tem olhos azuis que dançam como anjos, dentes
brancos e lábios bastante vermelhos, descrição típica de uma virgem alva. Ainda, essa
mulher longínqua apresenta um degolo deveras respeitoso, “en rond”, com o qual se
resguardam os seios, e também uma outra característica que sugere um mundo pueril e
jovial, suas fivelas enfeitando seus sapatos, talvez seus cabelos, visto que o verso 18
“Promenait ses boucles”, não determina a parte do corpo adornada: “Elle était decolletée en
138
rond”, “Et trînait sés petits souliers à boucles” (V.11 e 20), o que confirma tal tensão, pois a
mulher é ora pudica, ora provocante com toda a sua beleza tentadora.
Ao se falar de mulher-estátua na estética parnasiana, não podemos deixar de
mencionar a origem do termo, o seu surgimento se dá como conseqüência do positivismo,
enfatizando a função mediadora da esposa e incentivando o culto da santa mãe. Logo, o eu-
lírico segue tal tendência, pois a mulher é de tal forma exaltada, que na realidade, é como se
estivesse em um pedestal para ser adorada, sua beleza ultrapassa os limites a tal ponto que
ninguém ousaria amá-la, ou seja, ela existe unicamente para ser contemplada como uma
santa: “Elle était si belle”, “Quelle me faisait peur.” (V. 28 e 29).
Diante desse cenário de contemplação e santificação da mulher amada, também
observamos que o eu-lírico afirma que em um determinado momento de sua vida gostou de
mulheres cruéis das grandes cidades. Nessas, diz ainda, que nasciam todos os tipos de
pessoas, com sangue de ferro e cérebro de chama. Desse modo, o que observamos é um eu-
lírico cansado dos sortilégios e atrocidades dessas mulheres, chegando mesmo a querer
mudar tal situação por meio de sua idealização e santificação, criando para si a imagem
pueril para ser apenas contemplada, para talvez não provar mais do gosto amargo do fel
dessas “Lilith dos grandes centros”: “J’aimais les femmes atroces dans les quartier
énormes”, “Où naissaient chaque jour quelques êtres nouveaux”, “Le fer était leur sang la
flamme leur cerveau” (V. 23 a 25). Ainda, em se tratando do cansaço do sujeito poético
diante de tais mulheres, também afirma que já gostou do povo hábil das grandes máquinas,
ou seja, daqueles que estavam no domínio das descobertas na sociedade industrial, mas que
hoje vê somente vaidade e futilidade como suas mazelas, sua parte desprezível, posto que o
vocábulo usado no poema “écume” no sentido figurado, denota “Partie vile et méprisable
des grandes villes.”(Larousse, 1984, p.135).
O eu lírico cria todo um universo idealizado, no qual a sua amada não passa de uma
virgem/santa para ser contemplada, em um cenário onde não se escuta jamais soar a meia
noite, horário que talvez acabasse com todo o seu sonho pueril: “N’entendra-t-on jamais
sonner minuit” (v.14).
Prosseguindo com a análise desse subtema, notamos no poema “Confissão” de
Bandeira, a presença do amor contemplativo segundo a estética parnasiana da “mulher-
estátua”.
139
Confissão
Se não a vejo e o espírito a afigura,
Cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.
Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
Agora embravecida e mansa agora...
E é num arroubo em que a alma desfalece
De sonhá-la prendada e casta e clara,
Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...
Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.
Nesse, o eu-lírico enaltece a sua amada, colocando-a em uma posição superior a dele,
sobre um pedestal para ser contemplada, o que conta na primeira estrofe toda a angústia por
não tê-la em seus braços. Por isso, o amor que sente é visto como um ritual sagrado,
exaltando a mulher amada acima de tudo, não vendo-a, mas afigurando-a em seu espírito,
ou seja, adorando-a como uma imagem santificada - a “mulher-estátua” do parnasianismo.
O eu lírico aborda a questão da santidade e da alvura da mulher amada, pois cita que
sua alma esmorece quando sonha com ela “prendada e casta e clara”, e faz referência à
associação com o branco marmóreo das estátuas clássicas, o que foi retomado pelos
parnasianos. Em “Confissão, verificamos que o vocábulo “casta” direciona os olhares do
amante para a pureza do corpo e do meio no qual está inserida a sua amada, elevando-a
com todo pudor que mais parece estarmos mediante uma figura canonizada. O eu-lírico
ainda, com a palavra “prendada”, organiza um cosmo em que a mulher possui prendas ou
qualidades apreciáveis, sendo não somente um ideal de beleza feminina, como também, um
ideal de mulher: “ E é num arroubo em que a alma desfalece/ De sonhá-la prendada e casta
e clara,/ Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...” (v. 9 a 11). Esse último verso,
demonstra-nos todo o pesar que o eu-lírico sente diante desse amor que é alheio a interesses
ou gozos materiais, pois na sua miséria, embevecido pela imagem que mais se assemelha a
140
uma santa, aguarda, não importando quanto tempo, a sua amada, o que é indicado pelas
reticências.
Vale destacar um outro aspecto que diz respeito ao subtema analisado, a tensão
(desejo e interdição) presente na imagem da “mulher-estátua” da estética parnasiana. Logo,
essa questão pode ser exemplificada por meio dos versos 2 e 10, em “Confissão”, “ Cresce
este meu desejo de hora em hora.../ De sonhá-la prendada e casta e clara,”, os quais
confirmam essa tensão de sentimentos, ora desejando ardentemente ora prezando pela
castidade da amada, sem maculá-la. Esse conflito, é característico da mulher-estátua, visto
que ela é polissêmica. Ela apresenta diversos significados míticos e ideológicos, seja no
paganismo, a Vênus e a Afrodite seja no cristianismo a representação de forma direta ou
indireta da Virgem Maria. Dessa dubiedade, surge uma problemática simbólica enraizada
no homem cristão ocidental: o prazer amoroso sufocado pelo remorso do pecado segundo a
ideologia judaico-cristã, o pecado e a virtude.
A mulher amada apresenta uma beleza rara, estando acima do sujeito poético,
confirmando a sua posição sobre um supedâneo: “Mas ela chega, e toda me parece/ Tão
acima de mim... tão linda e rara...” (v.12 e 13). Assim, o eu-lírico irresoluto ao ver a sua
amada , diante de surpreendente beleza, chega a balbuciar e se acobardar, corroborando a
concepção da estética parnasiana da mulher-estátua que existe unicamente para ser adorada,
causando temor naquele que a cultua como uma santa e alimentando um desejo que cresce
de hora em hora: “ Que hesito, balbucio e me acobardo” (v.14).
Apollinaire e Bandeira
Prosseguindo com a análise desse subtema, notamos nos poemas “1909” e
“Confissão” a existência do amor contemplativo, caracterizando a dor do eu-lírico que
busca incessantemente recuperar o seu amor perdido, estando esse sempre inatingível ou
não-reconciliado.
Semelhante a essa visão contemplativa do amor, observamos um outro aspecto
relacionado com o topos - a inacessibilidade da mulher amada- “ a estética parnasiana do
erotismo (imagem da mulher-estátua)”. Desse modo, é importante ressaltar que essa leitura
segue um viés temático caro ao Parnasianismo, a imagem longínqua da mulher, e não a
forma propriamente dita dos poemas, embora “Confissão” seja um soneto composto por
141
rimas em todos os seus versos. . Nesse sentido, notamos que esse amor é puramente
platônico, por isso tortura o sujeito poético que pede, chama e implora à sua amada a
reciprocidade de tal sentimento: “ Se não a vejo e o espírito a afigura,/ Cresce este meu
desejo de hora em hora.../ Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,/ O amor que a exalta e a
pede e a chama e a implora”. (v.1, 2, 3)
Notamos que o eu-lírico de “1909” descreve a sua amada como um ser de beleza
inefável, que a sua própria indumentária caracteriza um indivíduo sacralizado, quiçá uma
mistura de deusa, santa e anjo. Logo, ela é descrita com um vestido violeta, uma túnica e
uma bandana bordados de ouro, material oneroso que nos indica, a priori, um sujeito
poético que caracteriza sua amada não como uma mulher comum, além da segunda peça da
vestimenta ser um antigo vestuário, longo e ajustado ao corpo usado por muitos diáconos e
subdiáconos na alva, e por muitas divindades religiosas como deusas e santas, o que atesta
de alguma forma o seu caráter sagrado: “La dame avait une robe/ Em ottomant violine/ Et
sa tunique brodée d’or/ Ètait composée de deux panneux/ S’attachant sur l’épaule”.(v. 1, 2,
3, 4, 5 e 19).
É, dessa maneira, também enaltecendo a sua amada, colocando-a em uma posição
distante, sobre um pedestal para ser contemplada, que o eu-lírico bandeiriano conta, na
primeira estrofe, toda a sua angústia por tê-la longe de seus braços. Por isso, o amor que
sente é visto como um ritual sagrado, exaltando a mulher acima de tudo, não a vendo, mas a
afigurando em seu espírito, ou seja, adorando-a como uma imagem santificada – a mulher-
estátua do Parnasianismo. Nesse sentido, notamos que esse amor é puramente platônico,
por isso tortura o sujeito poético que pede, chama e implora à sua amada a reciprocidade de
tal sentimento: “ Se não a vejo e o espírito a afigura,/ Cresce este meu desejo de hora em
hora.../ Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,/ O amor que a exalta e a pede e a chama e a
implora”. (v.1, 2, 3)
Vimos que tanto Bandeira quanto Apollinaire constroem a imagem da mulher por
meio da adoração daquele que ama para com o ser amado, restando apenas o gozo a partir
da contemplação. Sendo assim, é importante mencionar um trecho de Affonso Romano de
Sant’Anna à respeito de tal temática:
142
com a cristalização do movimento parnasiano em torno de
1880, começa a surgir em nossa poesia, reincidentemente, a
imagem da mulher-estátua. Descrita em cima de um
pedestral, ela é a Vênus e a Afrodite greco-romanas seduzindo
o homem. Seu corpo alvirrósseo, no dizer dos poetas, surge
das ondas cercado de espumas e irradiações de desejo. Vem
nua e fria, mas latejando pulsões inconscientes do escritor.
(Sant’Anna, 1984, p.62)
É, o que observamos nos poemas, visto que as mulheres estão acima do eu-lírico
como deusas greco-romanas a serem adoradas, seduzindo-o mesmo que à distância. Logo,
podemos dizer que se trata do conceito, mulher ideal, como se caracterizava no esplendor
do Parnasianismo, as diferentes peças de escultura que se faziam de Vênus como ideal de
beleza feminina.
Essa figura da mulher-estátua, pode ainda ser representada por maio de mais um
exemplo de sacralização feito em “1909”, a descrição da amada com seus olhos azuis que
dançam como anjos, seus dentes brancos e seus lábios extremamente vermelhos: “ Les yeux
dansants comme des anges/ Elle riait/ Elle avait um visage aux couleurs de France/ Les
yeux bleus les dents blanches et les lèvres très rouges/ Elle avait um visage aux couleurs de
France/ Et traînait ses petits souliers à boucles” (v.6 a 10 e 20). Assim, temos a impressão
de estarmos diante de um anjo / santa com seus sapatos de fivela, em um mundo pudico,
com toda a sua alvura ou seu corpo alvirrósseo como no dizer dos poetas parnasianos.
O sujeito poético bandeiriano, da mesma forma, aborda a questão da santidade e da
alvura da mulher amada, pois cita que sua alma esmorece quando sonha com ela “prendada
e casta e clara”, e faz referência à associação com o branco marmóreo das estátuas
clássicas, o que foi retomado pelos parnasianos. Também, em “Confissão”, verificamos que
o vocábulo “casta” direciona os olhares do amante para a pureza do corpo e do meio no
qual está inserida a sua amada, elevando-a com todo pudor que mais parece estarmos, como
no poema de Apollinaire, mediante uma figura canonizada. O eu-lírico ainda, com a palavra
“prendada”, organiza um cosmo em que a mulher possui prendas ou qualidades apreciáveis,
sendo não somente um ideal de beleza feminina, como também, um ideal de mulher: “ E é
143
num arroubo em que a alma desfalece/ De sonhá-la prendada e casta e clara,/ Que eu, em
minha miséria, absorto a aguardo...” (v. 9 a 11). Esse último verso, demonstra-nos todo o
pesar que o eu-lírico sente diante desse amor que é alheio a interesses ou gozos materiais,
pois na sua miséria, embevecido pela imagem que mais se assemelha a uma santa, aguarda,
não importando quanto tempo, a sua amada, o que é indicado pelas reticências.
Vale destacar um outro aspecto que diz respeito ao subtema analisado, a tensão
(desejo e interdição) destacada por Affonso Romano de Sant’Anna na imagem “mulher-
estátua” da estética parnasiana. Logo, essa questão pode ser exemplificada por meio dos
versos 2 e 10, em “Confissão”, “ Cresce este meu desejo de hora em hora.../ De sonhá-la
prendada e casta e clara,”, os quais confirmam essa tensão de sentimentos, ora desejando
ardentemente ora prezando pela castidade da amada, sem maculá-la. Esse conflito, é
característico da mulher-estátua, visto que ela é polissêmica. Ela apresenta diversos
significados míticos e ideológicos, seja no paganismo, a Vênus e a Afrodite seja no
cristianismo a representação de forma direta ou indireta da Virgem Maria. Dessa
dubiedade, surge uma problemática simbólica enraizada no homem cristão ocidental: o
prazer amoroso sufocado pelo remorso do pecado segundo a ideologia judaico-cristã, o
pecado e a virtude.
No poema de Apollinaire, como se percebe, também encontramos o conflito “desejo e
interdição”, na medida em que a “dame” porta um vestido de cor um tanto quanto
provocante, violeta púrpura, passando-nos uma imagem de mulher que desperta desejo.
Além, de apresentar seus belos braços, nus, sem cobri-los como sinal de pudor: “ La dame
avait une robe/ Em ottoman violine/ Avec de beaux bras nus” (v.1, 2 e 13).Em contrapartida,
essa mesma “dame” tem olhos azuis que dançam como anjos, dentes brancos e lábios
bastante vermelhos, descrição típica de uma virgem alva. Ainda, apresenta um degolo assaz
respeitoso, “en rond”, com o qual se resguardam os seios, e uma outra característica que
denota um mundo pueril e jovial, suas fivelas enfeitando seus sapatos, talvez seus cabelos,
visto que o verso 18 “ Promenait ses boucles”, não determina a parte do corpo adornada: “
Elle était decolletée en rond/ Et traînait ses petits souliers à boucles” (v. 11 e 20)
Nesse sentido, devemos ainda mencionar um fator relevante para a temática da
mulher-estátua na estética parnasiana, o seu surgimento como conseqüência do positivismo
ortodoxo, salientando a função mediadora da esposa e incentivando o culto da santa mãe.
144
Logo, percebemos que tanto Bandeira quanto Apollinaire se utilizam dessa imagem, pois
cultuam a mulher como se o fizessem à Virgem.Em função desse aspecto, não podemos
deixar de acrescentar a concepção positivista da mulher de June E. Hahnerem, citada por
Affonso Romano de Sant’Anna:
Os positivistas ortodoxos rendiam homenagem a Clotilde de
Vaux, inspiradora de Augusto Comte, e ao próprio Comte,
como fundadores de sua doutrina. Raimundo Teixeira Mendes
e Miguel Lmos, líderes do Apostolado Positivista Brasileiro,
seguiam as idéias de Pierre Lafitte e deos comteanos
ortodoxos quanto aos assuntos sociais e religiosos e quanto à
organização da sociedade, destacando enfaticamente a
preponderância da família e a importância das liberdades
individuais... O pedestal em que a mulher estava colocada foi
um dos pilares do positivismo ortodoxo no Brasil. Os
positivistas elevaram a mulher por meio do que se poderia ser
considerado a transfiguração do culto da Virgem. A
feminilidade como um todo devia ser adorada e colocada a
salvo de um mundo perverso. Para os positivistas, a mulher
era base da fa[(ciaisQdt)-ssisQdts Sa(nt’Ann, .194(, .66a e67), )TjETEMC /P <</MCID21 >>BDC BT/TT0 1 Tf04959 Tw 12 0 0 121-1346 .19.006 Tm[Eessafea)-6([(ie)2(nnilid)5( de doc)5(r)25dd(a esd)5(a)-1lvao de um m)8(undo perverse pd)5 de (er lin)5 a
pedestal para ser não mais que cultuada, com o temor o temor dos santos e o desejo da
carne: “ Cette femme était si belle/ Qu’elle me faisait peur”.
Em Manuel Bandeira, ocorre o mesmo, visto que a mulher amada também apresenta
beleza rara, estando acima do sujeito poético, confirmando a sua posição sobre um
supedâneo: “Mas ela chega, e toda me parece/ Tão acima de mim... tão linda e rara...” (v.12
e 13). Assim, o eu-lírico irresoluto ao ver a sua amada , diante de surpreendente beleza,
chega a balbuciar e se acobardar, corroborando a concepção da estética parnasiana da
mulher-estátua que existe unicamente para ser adorada, causando temor naquele que a
cultua como uma santa e alimentando um desejo que cresce de hora em hora: “ Que hesito,
balbucio e me acobardo” (v.14).
Portanto, nos versos de “1909” e de “Confissão” a mulher amada é de tamanha
superioridade em relação ao amante que, já de antemão, sabemos que a concretização dessa
relação é impossível, visto se tratar de um amor puramente contemplativo.
3.6. Ainda que o júbilo desponte em meio à melancolia
Prosseguindo com nosso estudo , analisamos o poema “Automne malade”, cuja data
de composição é incerta (quiçá 1902), e observamos que ele é constituído por imagens ora
de vida, ora de morte:
Automne malade
Automne malade et adoré
Tu mourras quand l'ouragan soufflera dans les roseraies
Quand il aura neigé
Dans les vergers
Pauvre automne
Meurs en blancheur et en richesse
De neige et de fruits mûrs
Au fond du ciel
Des éperviers planent
Sur les nixes nicettes aux cheveux verts et naines
Qui n'ont jamais aimé
Aux lisières lointaines
Les cerfs ont bramé
146
Et que j'aime ô saison que j'aime tes rumeurs
Les fruits tombant sans qu'on les cueille
Le vent et la forêt qui pleurent
Toutes leurs larmes en automne feuille à feuille
Les feuilles
Qu'on foule
Un train
Qui roule
La vie
S'écoule
Notamos que a vida do eu lírico é embebida da dicotomia presente na estação
enferma – “automne malade” -, que representa metaforicamente as angústias e as alegrias
do sujeito poético, em um clima penumbrista de influência crepuscular típico da segunda
década do século XX. Contudo, esse sujeito poético nos remete ao título da obra que
pesquisamos – Alcools –, pois, para amenizar o seu pesar, embriaga-se do fazer poético,
único subterfúgio capaz de apaziguar a dor decorrente da passagem do tempo e dos
amores.Ao analisarmos um cenário extremamente pesaroso, o vimos concomitantemente de
forma esplendorosa, por meio dos óculos da embriaguez poética, confirmando a dualidade
existente na estação outonal. Embora haja a presença de imagens antagônicas no campo
lexical do poema, de vida (criação poética) e de morte (o fim de todas as coisas), notamos,
de acordo com Lecherbonnier (1983, p. 17), que, como toda embriaguez, aquela da criação
poética é passageira. A súbita emoção poética é uma eterna insatisfação, embebida em seus
“alcools” e, como um drogado, não pode se separar dos mesmos sem correr o risco de
emergir novamente na desesperança:
Le poète, au terme de sa réflexion, sait que seule la poésie
peut lui apporter soulagement et consolation, lui permettre
d’oublier la fuite du temps et des amours. Mais comme toute
ivresse, celle de la création poétique est passagère. Le fou de
poésie est un éternel insatisfait, rêvé à ses alcools, et tel un
drogué, il ne peut se séparer d’eux sans risquer de sombrer
dans le désespoir.
147
O contrate dos termos lexicais representa tanto uma estação rica, por sua abundância de
frutos representados pela criaçãaETEM/MC/3/P <</MC i /GS0 gsB-00093
tout. La mienne brille comme une étoile, elle illumine le chemin de l’Art à travers
l’effroyable nuit de la vie” (Apollinaire, Apud Lecherbonnier) Em outras palavras, essa
tristeza, ao mesmo tempo que lamenta as coisas findas, transforma a dor em canto, dando-
lhe vida. Mas devemos tomar cuidado ao realizarmos essa aproximação entre o autor e a
sua obra, pois Apollinaire intitulou comemoração e não relação a cada acontecimento de
sua vida, o que evita o risco de fazer uma leitura biográfica do poema e da obra em geral:
“On aura remarqué qu’il dit ‘commémoration’ et non ‘relation’, ce qui écarte la tentation
d’une lecture purement biographique, mais autorise à s’interroger sur la relation de tel ou
tel poème aux circonstances de la vie de l’auteur.” (Décaudin, 1993, p. 102)
Da mesma forma, encontramos ainda a opulência do outono sendo ameaçada por sua
destruição nos versos 2 e 8-11. Pois encontramos essa riqueza outonal sendo intimidada
pelo sopro da tempestade, anunciada pelo futuro do verbo (v. 2): “Tu mourras quand...”.
Essa dialética no campo lexical prossegue nos versos “Au fond du ciel”, “Des éperviers
planent”, “Sur les nixes nicettes aux cheveux verts et naines”, “Qui n’ont jamais aimé”.
Segundo Morhange-Bégué & Lartigue (1993, p. 78), os “nixes”, sobre os quais voam as
aves de rapina são, na mitologia germânica, as Ondines, divindades das águas. Elas
lembram, neste contexto, o Rhin (seus cabelos “verdes” seriam algas). Assim, o vocábulo
“nicettes” significa no francês antigo “simplettes”, sendo que o adjetivo é chamado
foneticamente por “nixes” mas ele apresenta ainda um valor desen.132re1(s , m)8(aica dr e a )]TJ0.0008 T19421399 Tw 137.88 -1.725 Td[(et naines8-11r[(a)-6s)-5(m)8(,1(s ), os od(Ondrdesç ),)-5(u)8(d[re), os en” m222de l9(es)-5(m)8ttesis aibo rea, seoo de
la femme est à la fois envoûtante et atroce, le monde
ressemble à une prison où l’on tourne tous en rond, la vie
ressemble à l’automne, saison malade de la mort, nous
passons notre existence à changer d’hôtel, à errer, les
souvenirs enfin sentent et annoncent la mort prochaine.
Nessa binomia observada na ambientação, vimos que o outono – estação trágica – é,
ainda, responsável pela separação dos amantes, como metáfora do fim dos sentimentos
humanos, e apresenta uma outra profundidade que não somente como na primavera, com o
florescer do amor, e no verão, com o espalhar de sua força. Esta estação é responsável,
como uma lição de amor, pela reconciliação do homem consigo mesmo que, por meio da
tristeza e do sofrimento, eleva-se e se ilumina, extraindo desses sentimentos a aura
profunda de sua natureza. Por certo, essas imagens outonais de separação e de morte nos
remetem ao caráter dialétic poort proctra7702514 Tc 0.004 Tw 18re-1(nos, , rperan(de s8(a)xtra34peran(de s, 6(to entent et a)Tj0.0856 Tc 0.0004Tw -18.155 -1gica tm)8(ed0 Tdd ce ceor, pir c, roncent laex)(liç, elevaos a aura )]TJ0.0015 Tc 0.532 Tw 19.2peran(de s))8(a))6(eor,5( Tw( um)9(a lig, el u,m)8(ee aoam)retooam)()8(orte nos9)]TJ0.78102 Tc 0.599 Tw -13.63 -34peran(de s))89(ouperaco)6(ncili6.155(e rcardo,i6.1o)6( b(o milu)5( e se il)]TJ00775)]TJ0.362 Tw 19.2oriaesses srt Drainonceda. Pore joem)ir)1(rnior, pa)-6( outra )]TJ0.64211 Tc 0.362 Tw -13.63 -e mcomoat79 fera o dagrnios8(a8(orte nos )]TJ0.6504 Tc 0.211 Tw 10.8ot-2(.72 Td[(43o pPori(Nessa biforo m)95 Td[(o mvivanoncent s pri8(ort, nous )]TJ0s i56 Tc 0.0288 Tw -19.81 -1.nfornt1.72 Td6[(um)e derperan(de s8de, com)9( o )us )]Tc 0.1433 Tw 1)rere on7(nr t1.pextr jne 2bais de sepa)Tj0..00)]Tc 1. im Tw 10.ilo localiza55(am)1.72ada. t1.72 osle m)8(ondoutra )]TJ(rt p163 Tc 0.197 Tw -20.155 -1tureze s6(r sof)4pooriba rcar m)8(e qeu)retooamt prochaine.
“s’écoule”, marcando o distanciamento progressivo do “train qui roule”, e da passagem do
tempo. Por fim, as imagens das folhas mortas também acentuam essa idéia de que tudo há
de passar, como disse Santo Agostinho. Assim, podemos afirmar que o poeta trabalha com
destreza a junção que faz entre as imagens, o tema e a sonoridade poética.
É, portanto, essa dialética explicitada por meio do campo lexical na ambientação
outonal que mostra toda a problemática existente no ato de viver, com todas as suas agruras
e os seus deleites, sendo as primeiras predominante na vida da figura do mal-aimé,
corroborando a idéia de que ainda que o júbilo desponte em meio a melancolia, esse viverá
sempre à mercê de seu infortúnio.
Crepúsculo de Outono
(Cladavel, 1913)
O crepúsculo cai, manso como uma benção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.
O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa espaço no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.
Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura inânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.
Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale... o horizonte purpúreo...
Consoladora como um divino perdão.
O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos .
A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.
(Bandeira, 1982, p. 11)
151
Observamos que a criação poética elegíaca vista em “Crepúsculo de Outono”
denuncia uma influência crepuscular típica da segunda década do século XX, permeada
pelo penumbrismo da literatura da época. Assim, nesse clima exacerbadamente nostálgico
de influência crepuscular, notamos que o contraste dos termos lexicais sugere a fragilidade,
a instabilidade e a riqueza do outono (estação que representa metaforicamente os
sentimentos humanos), manifestando-se na oposição das cores e das imagens. Os termos
antagônicos podem indicar tanto a vida do sujeito poético, representado por essa estação
instável, quanto a sua morte vindoura: “negros/alvura” (v. 11); “sol/neve” (v. 17);
“flores/morrem” (v. 8). E ainda, o esplendor do outono é apontado através dos termos
lexicais “viçam e breve” (v. 9), seguidos por “esperança” e “paz”. Portanto, o valor
simbólico do outono, por meio de um jogo sutil de contrastes, anuncia paralelamente tanto
a vida fértil quanto a chegada imediata do fim. Por isso, ao estudarmos essa linguagem
antagônica, por meio da estação “outono”, lembramos que a crítica menciona
constantemente que muitos poemas de A cinza das horas foram inspirados na natureza.
Dessa forma, Bandeira trabalha com correspondências entre o comportamento da natureza e
a alma dos homens, demonstrando toda a nostalgia da existência humana.
Essa luta de contrastes, em um cosmos que denuncia a melancolia no ato de viver dos
primeiros poemas líricos de Bandeira, apresenta o amor com suas notas de angustiante
confiança, o que nos leva de volta às tensões petrarquistas entre gelo e fogo, entre
esperança e desespero (Cf. Pontiero, 1932, p. 46). Essas tensões caracterizam um eu-lírico
que vivencia um conflito existencial, quando a vida em sua máxima intensidade se doa em
morte. Como o amor que a figura do mal-amado vivencia em seu ápice em um passado
indeterminado e que logo em seguida presencia a tristeza de sua rápida passagem.
Nessa poética de contrastes ou nessa criação da poesia por meio da visão alumbrada,
Bandeira trabalha com a contradição e a contaminação dos opostos que, em sua
complexidade, aparece resguardada na ambigüidade do branco, ao mesmo tempo material e
imaterial, concreto e abstrato, aparência sensível e iluminação espiritual (Cf. Arrigucci,
1990, p. 161). Desse modo, essas tensões que aparecem no poema nos remetem ao próprio
poeta Manuel Bandeira, que viveu de maneira acentuada a morte, que o acompanha em
toda a sua trajetória, consigo e com aqueles que amou e que partiram abruptamente.
152
Logo, Bandeira passa para a sua poesia o viver intensamente e o morrer inevitável,
aquilo que presenciou em toda a sua existência. Portanto,
aquela umidade febril da tísica se infiltrou por tudo e
embolorou tudo. Um veludo silencioso amaciou a rigidez, a
linha aguda, a reta cruel da vida. A tubercui7qui9Mana cro e
Para aqueles que estão solitários, a melodia do rio traz consolo, vide versos 13 a 16:
“O sino plange. A sua voz ritma o murmúrio/Do rio, e isso parece a voz da solidão./E essa
voz enche o vale... o horizonte purpúreo.../Consoladora como um divino perdão.”.
Observamos que o estado de espírito desse sujeito-poético pode ser tão teimoso quanto o
conturbado espírito do próprio poeta, mas a água indicada (essencial à vida) ou a sua
melodia no rio pode nutrir a sua alma da mesma forma que nutre o solo. Logo, esse fascínio
pela água, personificada em todas as suas manifestações, remete-nos à associação direta
que o eu-poético faz entre seu próprio sentimento e a voz inconsolável do mar, vide versos
21 a 24: “A sombra casa os sons numa grave harmonia./E tamanha esperança e uma tão
grande paz/Avulta do clarão que cinge a serrania,/Como se houvesse aurora e o mar
cantando atrás.”
O poeta de A cinza das horas é inegavelmente um poeta triste que não compreende
bem a razão de ser da vida e faz versos “como quem chora, de desalento... de desencanto”.
É o melancólico que ama a solidão e as confissões e se acaso chega a ouvir a voz da alegria
é sempre como uma “voz de fora” que vem até ele mas que não o consegue empolgar e
dominar por muito tempo” (Cf. Lopez, 1987, p. 90). Mas, ao lado do grande pesar na vida
do eu-lírico banderiano, notamos que o outono se apresenta como uma estação abençoada,
visto que o vocábulo crepúsculo indica: luminosidade proveniente da iluminação das
camadas superiores da atmosfera pelo sol, quando embora escondido, está próximo do
horizonte (Cf. Ferreira, 1993, p. 153). Assim, o crepúsculo de outono vem para aquecer,
perenizar e revitalizar essa estação tão ameaçadora, que petrifica com seu inverno
devastador os sentimentos humanos. Dessa forma, nos versos -“O crepúsculo cai, manso
como uma benção./Os pinheiros porém viçam, e serão breve/Todo o verde que a vista
espairecendo vejas,/Mais negros sobre a alvura inânime de neve,/Altos e espirituais como
flechas de igrejas./O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha/Reponta.” (v. 1, 9-12, 17-
18),- notamos que o sol do crepúsculo funde a neve que é inânime para trazer vida à
natureza, à folhagem vermelha que agora reponta, aos pinheiros que viçam, rompendo com
aquela condição de paralisia mortífera que o outono apresenta por meio do seu inverno
gélido.
Embora haja essa dicotomia lexical (morte/vida – angústia/esperança), o poema
espiritual, havendo muito que admirar no retrato vivo do ritual de outono, com seus
encantos e magias misteriosos, transformando as cores e os contornos da paisagem e
mergulhando o mundo em estado de inefável paz. (Cf. Pontiero, 1986, p. 42), mas que ao
mesmo tempo simula a dor do sujeito poético mal-amado que sabe que tal mansidão não o
livra de sua condição primeira, de eternamente desdichado.
Logo, o poema “Crepúsculo de Outono” é característico do lirismo elegíaco da poesia
banderiana. Nesse, encontramos temas de seu universo poético, como o outono frágil, o
tempo que corre, e ainda a passagem da vida para a morte, visto que esta estação é um
divisor de águas entre a fertilidade da vida, por seus frutos, e a efêmera existência dos
sentimentos humanos como metáfora do inverno devastador, sendo esse último tão voraz
que elimina qualquer resquício de júbilo na vida eu-lírico mal-amado.
Bandeira e Apollinaire
Dando continuidade à proposta comparatista calcada na crítica temática do tempo
não-reconciliado, trabalhamos com os poemas “Automne Malade” e “Crepúsculo de
Outono”, que são constituídos por imagens ora de vida ora de morte.
Considerando tal subtema, observamos que em ambos os poemas a criação poética
elegíaca denuncia uma influência crespuscular típica da segunda década do século XIX,
permeada pelo penumbrismo da literatura da época. Apresentando influência ainda de
algumas características simbolistas, o [s] poeta [s] crepuscular se instala em uma parte do
mundo e conta as suas tristezas (Rosembaum, 1993, p. 28)
Nesse clima exacerbadamente nostálgico de influência crepuscular, notamos em
“Crepúsculo de Outono” que o contraste dos termos lexicais sugere a fragilidade, a
instabilidade e a riqueza do outono (estação que representa metaforicamente os sentimentos
humanos), manifestando-se na oposição das cores e das imagens. Nesse viés, os termos
antagônicos podem indicar tanto a vida do sujeito poético, representado por essa estação
instável, quanto a sua morte vindoura: “negros/alvura” (v. 11), “sol/neve” (v. 17);
“flores/morrem” (v. 8). E ainda, o esplendor do outono é apontado através dos termos
lexicais “viçam e breve” (v. 9), seguidos por “esperança” e “paz”. Portanto, o valor
simbólico do outuno, por meio de um jogo sutil de contrastes, anuncia paralelamente tanto
a vida fértil quanto a chegada imediata do fim. Assim, essas tensões caracterizam um eu-
155
lírico que vivencia um conflito existencial, quando a vida em sua máxima intensidade se
doa em morte. Em face disso, remetemo-nos para o tema de nosso projeto, pois nesse a
figura do mal-amado vivencia o amor em seu ápice, em um passado indeterminado e logo
em seguida a tristeza de sua rápida passagem.
A dicotomia lexical é também observada em “Automine Malade”, pois o contraste
dos termos lexicais, do mesmo modo que em “Crespúsculo de Outono”, representa tanto
uma estação pela abundância de frutos, representados por meio da criação poética, quanto a
sua fragilidade e instabilidade devido ao inverno que a acompanha. Considera-se, então, a
oposição das cores e das imagens no campo lexical, demonstrando toda a opulência do
outono, como: “adoré” (v. 1), “vergers” (v. 4), “richesse” (v. 6), “fruits mûrs” (v. 7).
Quanto aos termos lexicais antagônicos, temos o fausto do outono que se opõe à sua
extinção, como v. 1: “malade” / “adoré”, v. 3-4: “aura neige” / “vergers”, v. 7: “neige” /
“fruits mûrs”, seguindo a cor do ouro dos frutos que se opõe à brancura invernal da neve.
No campo lexical composto por termos opostos, consideramos ainda a ambientação
na qual ele está inserido, o outono, estação símbolo do tempo que passa, sensível à posição
que marca essa época do ano, fecunda pelos seus frutos, mas ameaçada pelo seu inverno
(Morhange-Bígué & Lartegue, 1993, p. ). Por isso, observamos que essa estação é de suma
importância para o poeta, como se ele estabelecesse com ela uma relação afetiva, pois em
1913 a outubro de 1914, ele “aprende a não morrer” (Holanda & Barbosa, 1958, p. LXIX).
Nesse período Bandeira vive uma estação representativa da vida pelos seus frutos e da
morte pelo seu inverno ameaçador. Essa estada devolve ao moço a revitalização que desde
os dezoitos anos havia perdido. Por isso, a relação afetiva do autor com a estação pode
representar ou servir como um espelho de seu estado emocional em Cladavel, ora com
apetite divino da vida e do amor, ora no inverno gélido da morte.
É, pois, o que ocorre de forma semelhante em Apollinaire, pois temos também a
ambientação outonal, estação símbolo, como já foi mencionado, do tempo que passa
ininterruptamente, fecunda pela abundância de frutos mas ameaçada pelo inverno vindouro.
Semelhante a Bandeira, a estação “outuno” é de suma importância para Apollinaire, como
se também esse mantivesse uma relação afetiva com ela. Essa predileção é devida ao seu
signo astrológico, “virgem” - ele nasceu em 26 de agosto, data que marca aproximadamente
o início do outono. Além disso, trata-se de uma paixão pela natureza outonal, um certo tipo
156
de determinismo astrólogico. Conforme essa afirmação, a afetividade do poeta com a
estação outonal se exemplifica por meio de sua personificação no poema.
Devemos mencionar, que “Le Pont Mirabeau” e “Automne Malade” são poemas
musicados: tanto em um quanto no outro encontramos sons e vozes outonais que nos
remetem a uma melodia de fundo, sendo essa notadamente melancólica. Esse aspecto pode
ser percebido na melodia do próprio rio presente no poema “Crepúsculo de Outono”,
canção do eu-poético que chora a prisão de seu leito, o lamento de sua infeliz condição
humana, por meio de uma música característica da figura do mal-amado, o choro: “Dir-se
que o rio chora a prisão de seu leito...”(v.2). Essa melodia elegíaca que o rio apresenta traz
nostalgia e se torna uma companheira inseparável e suave para a própria cantiga de solidão
mas, ao mesmo tempo, o eu-lírico pode encontrar uma beleza fúnebre; trata-se de um
consolo na atmosfera cinzenta de um “corvo que passa e grasna”, “no terror algural e
encantos e feitiços”..., alimentando a sua condição primeira de mal-amado, que senão como
tal, não tem razão de existir. Desse modo, até mesmo a musicalidade no poema é
representada pela binomia, visto que essa tanto alimenta a melancolia no sujeito poético
quanto o consolo. Por isso, o fascínio pela água, personificada em todas as suas
manifestações, remete-nos à associação direta que o sujeito poético faz entre seu próprio
sentimento e a voz inconsolável do mar, vide versos 21 a 24: “A sombra casa os sons numa
grave harmonia. / E tamanha esperança e uma tão grande paz / Avulta do clarão que cinge a
serrania, / Como se houvesse aurora e o mar contando atrás”. Logo, se as vozes da natureza
(as notas musicais) e seus elementos lembram o mau destino da figura do mal-amado (o fim
de todas as coisas), sua solidão e seu desepero também lhe aconselham paciência e
submissão (Pontiero, 1932, p. 45-46)
O mesmo traço de musicalidade é encontrado em “Automne Malade”; no entanto, de
forma diferenciada quanto à binomia lexical, pois nesse o poeta também incita a
imaginação sonora do leitor por meio ainda da natureza, mas sem demonstrar
explicitamente a dialética existente nesse recurso, com todos os seus “sons” outonais: “le
souffle de l’ouragan” (v. 2), “le brame de cerfs” (v. 13), “la plainte du vent” (v. 16). Além
da transcrição musical dos “barulhos” no registro poético, através das vogais no verso 2, de
quinze sílabas, no qual observamos a repetição por três vezes da seqüência sonora: ou / ra /
an: “Tu mourras quand l’ouragan soufflera dans les roseraies”. Nesse observamos que a
157
sucessão dos sons da natureza com a imagem apresentada, como em Bandeira (a música
elegíaca), sugerem um certo lamento outonal, na primeira parte do poema, destacando o
sopro dessa crescente estação gélida. Já nos seis últimos versos de duas sílabas, notamos
que de forma semelhante a “Crepúsculo de Outono”, a inexorabilidade do tempo, o ritmo
crescente da vida que se esvai, ou melhor, trabalhando com a nossa temática do “mal-
aimé”, que viu o seu grande amor findar com a passagem do tempo: “la vie qui s’écoule”.
Com esse recurso sonoro, vimos que o poeta trabalha com o fenômeno do eco, “foule”/
“roule” / “S’écoule” marcando o distanciamento progressivo do “train qui roule”, e da
passagem do tempo. Por fim, a imagem das folhas mortas também sublinha a idéia que tudo
há de passar, como disse Santo Agostinho.
Vale notar ainda que tal estação representa o falso amor visto que, após a primavera,
o verão deveria começar, mas é o outono que se anuncia, contra toda regra da natureza, no
ciclo dos amores de Alcools. Desse modo, o “mal-aimé” de fato ignora a estação (verão) da
maturidade, da opulência, da claridade, que poderia satisfazer plenamente seus desejos,
destruindo a condição que o alimenta, o “mal de amar”. Logo, o “falso amor”, em ambos os
poemas e no ciclo de Alcools, não é um simples acidente da existência, pois é essa última
que por si própria soa falso, devido às suas promessas enganadoras.
Portanto, a dialética lexical explicitada na ambientação outono demonstra-nos toda a
problemática existente do ato de viver (amar), com todas as suas agruras e seus deleites,
prevalecendo as primeiras, posto que ainda que a alegria tente se fazer presente na figura do
mal-amado esse viverá eternamente a condição de um tempo não-reconciliado.
3.7 - O destino talhado pele mà sina
Para análise dessa tópica, consideramos o eu-lírico submetido à força do “mau
destino” nos poemas “Signe” e “Oceano”, cuja melancolia representa toda a sorte de
pesares que lhe subjaz.
Nessa perspectiva, iniciamos com “Signe” que primeiramente foi publicado em 1912
com o título “Stances”, em seguida retomado e intitulado “Signe de l’automne”, para
finalmente ser reduzido a uma única palavra “Signe”, que reflete melhor que os outros o
seu caráter eminentemente simbólico.
158
Signe
Je suis soumis au Chef du Signe de l’Automne
Partant j’aime lês fruits je déteste les fleurs
Je regrette chacun des baisers que je donne
Tel un nouer gaulé dit au vent ses douleurs
Mon Automne éternelle ô ma sison mentale
Lês mains dês amantes d’antan jonchent ton sol
Une épouse me suit c’est mon ombre fatale
Les colombes ce soir prennent leur dernier vol
Na primeira estrofe o sujeito poético se apresenta como alguém submetido ao chefe
do signo do outono, ou seja, guiado pelo signo da estação que por si só representa o
anúncio do inverno e conseqüentemente da morte de todo resquício de vida: “Je suis soumis
au Chef du Signe de L’Automne” (V.1). Desse modo, devemos mencionar que o outono é
um dos temas mais caros a Apollinaire, aparecendo em vários outros poemas de
Alcools,simbolizando ora o decurso do tempo e o amor findo, ora o fim de todas as coisas –
a morte. Aqui, o que observamos é um eu-poético submerso em uma vida de lamento,
marcada pela invocação de um signo (a má sina) que nos faz lembrar da “soumission de
Verlaine à Saturne: Or ceux-là qui sont nés sous lê signe de Sturne... ont entre tous... Bonne
part de malheurs” (Lecherbonnier, 1983, p. 78). Essa submissão é observada com o outono
que traz consigo o declínio da maturidade e a aproximação da morte. Por isso, o eu-lírico
diz detestar as flores e amar os frutos, os quais são característicos dessa estação que o
constitue como mal-amado: “Partant j’aime lês fruits je deteste lês fleurs” (V.2).
Essa má sina é confirmada no verso subseqüente, pois os beijos que o eu-lírico dá
parecem representar o seu pesar, posto que seu destino é ser mal-amado sob o “signe de
l’automne”: “Je regrette chacun des baisers que je donne” (V.3). Sendo assim, vimos outra
imagem que complementa tal cenário, a comparação que o eu-lírico faz de si com uma
árvore tombada que lamenta suas dores ao vento: “Tel um noyer gaulé dit au vent sés
douleurs” (V.4).
Nesse viés, temos a certeza de que o sujeito poético é regido pelo signo do outono,
quando afirma que esse é a sua eterna estação mental, ou seja, apresenta-se como um
“gauche” frente ao seu destino nefasto: “Mon éternelle ô ma saison mentale” (V. 5). Essa
ambientação de pesar é nutrida ainda pela imagem das mãos dos amantes de outrora que
159
recobrem o solo de tal estação, como suas folhas secas, simbolizando que tudo jaz, até
mesmo o amor dos enamorados: “Les mains des amantes d’antan jonchent ton sol” (V.6).
Observamos que o signo do outono tem uma conotação ainda mais funesta, pois
quem segue o eu-lírico constantemente é uma sombra fatal, uma esposa extremamente
macabra, a morte: “Une épouse me suit c’est mon ombre fatale” (V. 7). Logo, notamos que
o eu-poético de “Signe” está predestinado a ter uma vida marcada pelo lamento e pela
morte, o que é percebido em outros poemas da obra aqui estudada, e que reafirma o caráter
pesaroso da figura do mal-amado:
la mort est partout dans Alcools. Aux exemples déjà cités on
peut ajouter ce “mort qu’on emporte” de “La Dame”, la mort
du sacristain dans “Les Femmes”, celle de la Loreley, et aussi
les “nageurs morts” de “La Chanson du mal-aimé”, les regards
morts du “Voyageur”, les heures d’ “À la Santé” qui passent
“comme passe un enterrement”...(Décaudin,1993, p.88)
Essa sombra malévola que persegue o eu-lírico é observada na imagem do último
verso: “Les colombes ce soir prennent leur dernir vol. Aqui, temos a confirmação de que há
um processo infinito de morte nesse cenário, pois até mesmo as pombas dão o seu
derradeiro vôo, símbolo da vida de aflição e fatalidade que caracteriza o eu-lírico de
“Signe”. Assim, toda essa atmosfera pesarosa, tanatológica e austera resultante da má sina
do sujeito poético, o signo de outono, apresenta um toque romântico e baudelairiano, na
medida em que a consciência da morte cria um estado de melancolia ativa, o spleen
necessário à criação.
160
Prosseguindo com a temática do destino talhado pela má sina, citamos o poema
“Oceano”.
Oceano
Olho a praia. A treva é densa.
Ulula o mar, que não vejo,
Naquela voz sem consolo,
Qua há na voz do meu desejo.
E nesse tom sem consolo
Ouço a voz do meu destino:
Má sina que desconheço,
Vem vindo desde menino,
Cresce quanto em anos cresço.
- Voz de oceano que não vejo
Da praia do meu desejo ...
Partindo para a análise do poema “Oceano”, observamos um sujeito poético
embebido por uma névoa de melancolia, em que olha a praia e se vê afastado da visão pela
treva densa: “Olho a praia. A treva é densa.”, “Ulula o mar, que não vejo,” (V.1 e 2).
Assim, nos versos subseqüentes a voz que é percebida é carregada de pesar, como se
estivéssemos escutando a lamúria do eu-lírico mal-amado que, na tristeza imensa, apresenta
também a voz do seu desejo.: “Naquela voz sem consolo,”, “Naquela tristeza imensa”,
“Qua há na voz do meu desejo.” (V. 3 a 5).
Nessa perspectiva, na estrofe seguinte perdura o sentimento melancólico, pois é no
tom sem consolo que o sujeito poético escuta a voz de seu destino: “E nesse tom sem
consolo”, “Ouço a voz do meu destino:” (V. 6 e 7). Logo, o eu-lírico, diante de tal
atmosfera de lamento, mostra a má sina que o acompanha desde menino, ou seja, a marca
de desafortunado que carrega e que cresce com o passar do tempo: “Má sina que
desconheço,”, “Vem vindo desde eu menino,”, “Cresce quanto em anos cresço.” (V.8 e 10).
Essa vida marcada por um “mau destino” pode ter uma certa relação com o “desdichado”
de Nerval, pois tanto um quanto o outro caminham sob “o Sol Negro da Melancolia. Torna-
se de chofre a vida que se anunciava luminosa, e o poeta, de ‘bem nascido’ que era,
transforma-se num deserdado da sorte, a caminhar sob ‘o Sol Negro da Melancolia’ como o
desdichado de Nerval” (Coelho apud Rosenbaum, 1993, p.38).
161
É importante salientar, que toda essa vida de predestinação pelo “mau gênio da
vida”, é observada já no poema que abre A Cinza das Horas, como um atestado da
condição desditosa que cerca o poeta e sua obra, o que tomamos aqui como o eu-poético
atacado furiosamente pelo “mau destino” em todos poemas analisados, traduzido pelo pesar
de um auto-retrato mordaz. Assim, “Desencanto” esclarece esse viés melancólico do livro e
do poeta Manuel Bandeira, que adverte os seus leitores que faz versos como quem chora:
“Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto”
Sendo assim, o eu-lírico que se apresenta como alguém condenado ao infortúnio,
retoma por meio do último dístico, as imagens da primeira estrofe: “- Voz de oceano que
não vejo”, “Da praia do meu desejo...” (V. 11 e 12), como se estivesse afirmando que a
falta de visão seria a ausência de perspectiva ou de alegria em sua vida “madrasta”,
representada pela “praia deserta de seu desejo”. Nesse sentido, considerando a análise,
observamos que a essência da voz é modificada ao longo do poema: de voz “de meu
desejo” (primeira estrofe) para “voz do meu destino” (segunda estrofe) e desta para “voz de
oceano” (terceira estrofe). Hà uma certa consonância entre os vocàbulos
desejo/destino/oceano, passando-nos a mesma idéia de lamento, emitindo o mesmo som de
lamùria, a voz sufocada de um eu lìrico desditado. Diante disso, na última estrofe, notamos
a existência de um travessão, que rompe com o silêncio angustiante, hà finalmente a idéia
de uma fala. Desse modo, o poema emite a voz que denuncia o pesar sem consolo do eu
lírico mal-amado.
Por fim, considerando toda a atmosfera melancólica do poema, vimos que Bandeira,
no século XX, revive traços de teor romântico, visto que com o seu mal pertinaz, a tísica
(como o mal du siècle), aborda o caráter triste de se fazer poesia, característica que no
Romantismo era sinal de sensibilidade e refinamento.
162
Apollinaire e Bandeira
Considerando o diálogo entre Apollinaire e Bandeira no que concerne à temática do
destino talhado pela má sina, vimos que o eu-lírico de “Signe” e de “Oceano” fundamenta
todo o caráter melancólico observado nos outros poemas de Alcools e de A Cinza das
Horas, aqui analisados. È por isso que decidimos deixá-los por último, pois após todo o
estudo dos subtemas que constroem o sujeito poético mal-amado que vive a dor da ausência
e a eterna busca pelo que findou, chegamos à derradeira tópica que realmente corrobora a
sua constituição como um ser talhado pelo “mau destino” e que justifica toda a atmosfera
pesarosa até aqui examinada.
Desse modo, antes de iniciarmos com a análise temática, destacamos alguns aspectos
formais que constituem o processo de versificação nos poemas. Em “Signe” temos dois
quartetos, rimas alternadas abab, cdcd, alexandrinos e no total 8 versos.Vimos também que
a alternância tradicional de acordo com as regras clássicas das rimas (rimas femininas e
rimas masculinas)
É aqui abolida, pois segundo (Vaillant, 1992, p.58) Apollinaire utiliza uma
alternância entre reimas vocálicas “(dont lê dernier son perçu est une voyelle: ton/prison) et
rimes consonantiques (dont lê dernier son perçu est une consonne: port/dore)”. È o que
acontece em “Signe”, pois ora temos o som vocálico “automne”, ora o som consoântico
“fleurs”, alternadamente até o final do poema.
Já “Oceano”, apresenta três estrofes, duas quintilhas e um dístico, rimas em abcab,
cdede, bb, heptassílabos e no total 12 versos.Ainda, observamos alguns efeitos sonoros
decorrentes dos jogos vocálicos do poema, como as aliterações em [v] “vem vindo”
relacionadas às assonâncias das vogais [e] e [i], que se alternam “vem,vindo,menino” e a
sua nasalidade (vem, vindo, menino). Assim, é importante destacar a vocalização fechada
do poema em “e, i, o, além da maioria das rimas no final dos versos, exceto duas, com
vocais abertas “densa e imensa”, terminarem com o som vocálico fechado “o”, dando-nos a
impressão do crescimento sombrio e assustador da má sina.
Dando seqüência à temática do “mau gênio da vida”, observamos tanto em Signe”
quanto em “Oceano”, um cenário que transborda melancolia, como se tivesse a função de
alimentar ou completar a condição de existência do sujeito poético que por si só já é
pesarosa. Assim, o eu-lírico apollinairiano diz ser submetido ao nefasto “Chef du Signe de
163
l’Automne”, como uma má sorte, e aprecia tudo aquilo que o representa, os frutos e não as
flores. Ainda nessa ambientação mordaz, o sujeito poético nega qualquer resquício de
alegria, pois lamenta até mesmo os beijos que dá, comparando-se a um “noyer gaulé”, uma
árvore derrubada que conta suas dores ao vento: “Je suis soumis au Chef du Signe de
l’Automne”, “Partant j’aime les fruits je deteste les fleurs”, “Je regrette chacun des baisers
que je donne”, “Tel um noyer gaulé dit au vent ses douleurs” (V.1 a 4).
O mesmo ocorre em “Oceano”, pois o eu-lírico também está inserido em uma
atmosfera soturna, cuja treva densa lhe esconde qualquer sentimento de alegria. Esse não vê
o mar e confirma a falta de visão diante dacrença de uma vida de gozo, ou seja, o que
assiste é apenas a tristeza imensa e sem consolo da voz do seu desejo: “Olho a praia. A
treva é densa.”, “Ulula o mar, que não vejo,”, “Naquela voz sem consolo,”, “Naquela
tristeza imens”, “Qua há na voz do meu desejo.” (V. 1 a 5).
Logo, o profudo pesar do eu-lírico nos dois poemas é justificado na segunda estrofe,
pois tanto um quanto o outro indicam que o “mau destino” os acompanha, de maneira que
em Apollinaire isso é traduzido pelo tema do outono, como um signo de mau agouro que
rege o sujeito poético, sendo a sua estação mental: “Mon Automne éternelle ô ma saison
mentale” (V. 5). Além de outra imagem que sustenta essa condição de condenado do eu-
poético, as mãos dos amantes de outrora que recobrem o solo dessa estação mental, dando-
nos a impressão de que tudo está predestinado à tristeza e à morte. Como ele, que é
perseguido por uma esposa funesta,sua sombra fatal, ou a morte: “Lês mains dês amantes
d’antan jochent ton sol”, “Une épouse me suit c’est mon ombre fatale” (V. 6 e 7).
Em Bandeira, isso é visto do mesmo modo, pois no tom sem consolo o eu-lírico diz
ouvir a voz do seu destino, que como em Apollinaire, é representado por uma má sina que o
persegue desde menino e cresce de tempos em tempos. Logo, notamos que o sujeito poético
também se apresenta como ser maldito, cuja condenação ao infortúnio é a sua condição de
existência: “E nesse tom sem consolo”, “Ouço a voz do meu destino:”, “Má sina que
desconheço”, “Vem vindo desde eu menino,”, “Cresce quanto em anos cresço.” (V. 6 a 10).
Nessa perspectiva, é importante mencionar o papel de Bandeira e Apollinaire, pois
fazendo parte do Mordenismo, apresentam traços notadamente parnasiano-sinbolista e
romântico em suas primeiras obras, colocam-se como os poetas “malditos”, cantores do
mal, de acordo com a poesia do mal pproposta por Baudelaire. Todo o tédio baudelairiano é
164
observado em Apollinaire e Bandeira, visto que esses passam a incorporar a condição de
malditos, e demonstram indiretamente por meio de seus poemas elegíacos, que a arte de
fazer poesia não é valorizada pela burguesia, posto que não tem o teor utilitarista que essa
classe procura em tudo.
Essa má sina observada nos dois poetas como prenúncio de maldição, notada já na
poesia decadente, demonstra a condição moderna do poeta e da poesia na civilização
industrial, que são postos na marginalidade pela burguesia, o que será visto também em
Drummond como o anjo torto que condena o poeta a ser gauche na vida.
Além da leitura do poeta moderno frente à civilização industrial, Bandira apresenta
também um outro fator de cunho romântico que o faz diferente do modelo de homem viril
imposto pela sociedade, ele é acometido pela tísica, transformando de acordo co Susan
Sontag, a doença num meio de diferenciação social, sobretudo do artista frente aos outros.
Nesse viés, o artista/Bandira é visto como um ser diferenciado nessa civilização que
objetiva a competição e produtividade. Então, o poeta doente assume a condição maldita e
marginal na sociedade, sendo a sua melancolia representativa dos artistas sensíveis e
refinados, posto que o sentimento da tristeza tinha essa conotação no Romantismo:
o mito da tuberculose constitui o episódio quase derradeiro na
longa carreira da antiga melancolia – que era a doença do
artista, de acordo com a teori dos quatro humores. O caráter do
melancólico – ou tuberculoso – era um caráter superior,
sensível, criativo, um ser à parte. (Martins apud Sontag, !994,
p. 80)
Essa tristeza está intimamente ligada ao lirismo de Bandeira, pois dos seus 344
poemas, nada menos que 115 apresentam vocábulos pertencentes a esse campo semântico.
Assim, todo o pesar dessa poesia, além de ser representado por cenários sombrios e
crepusculares de teor simbolista-decadentista, também exibe uma gama de palavras das
quais destacamos apenas algumas, retiradas dos 11 poemas aqui estudados: “pesar”,
“pranto”, “desesperança”, “dolorosas”, “magoa”, “solitário”, “tortura”, “mal”, “chora”,
“desfalece”, “melancolia”, “sombria”, “ais”, “amargo”, “incontentado”, “morreu”,
165
“súplice”, “soluçar”, “penar”, “distância”, que explicitam a atmosfera melancólica do
artista/Bandeira, caracterizado como um homem fadado à morte.
Ademais, Apollinaire também se coloca como um poeta marcado pelo “mau destino”
(signe de l’automne), quando em seus poemas questiona a sua misteriosa origem, o seu pai
enigmático e a vida noturna de sua mãe “Le Larron”, a sua caracterização como mal-amado
com seus amores frustrados “Marie”, a sua prisão em Santé “À la Santé”, suas interperes de
ordem financeira, “La Porte”, e ainda por meio de uma reflexão que faz em um caderno de
notas de 1899 (publicado por Lawler dans le Mercure de France de primeiro de janeiro de
19955) que revela ou justifica de forma relevante sua melancolia e sua condição de poeta,
ainda que de forma literária:
a ... pensait somnolent, sur son lit dans l’obscurité douce de la
chambre qui succède aux repas de midi. “Pourquoi ne suis-je
pas né riche comme tant d’autres. Pourquoi mon avenir se
presente-t-il mystérieux, hermétique alors que les autres,
riches, ne voient dans l’avenir qu’une succession de fêtes, de
noces, avec lê gâtisme fatal à l’heure du mariage, tandis que
moi...J’eus mieux fait au lycée de bûcher mês maths et
d’essayer Centrale, de tâcher d’em sortir ingénieur, d’avoir
une positio assurée. Non, au lieu de travailler, j’ai fait dês
vers, j’ai eu dês rêves, je me suis occupé de Littérature,
merde, merde”. Ces derniers mots furent prononcé à mi voix.
Et là-dessus la pendule sonnant deux heures il se leva.
Allumant une cigarette il songeait encore. Sa mère....
(Décaudin,1993,p.103)
Essas alusões autobiográficas na poesia de Apollinaire, como ele mesmo escreveu a
Henri Martineau, “Chacun de mes poèmes est la commémoration d’un événement de ma
vie”. Mas ao mesmo tempo, é importante salientar que ele diz “comemoração” e não
“relação”, o que nos protege de qualquer leitura puramente biográfica, embora garanta a
possibilidade de “comemorar” tais circunstâncias da vida do poeta por meio de seus poemas.
166
Ainda, toda a carga melancólica de sua poesia, como Bandeira, pode ser vista no
léxico utilizado em sua obra, aqui no caso, Alcools,além de cenários também sombrios e
crepusculares típicos da poesia de cunho simbolista-decadentista. Assim, ligado ao campo
semântico da tristeza, relacionamos alguns vocábulos que aí se inserem, dos outros 11
poemas analisados nessa pesquisa: “regrette”, “douleurs”, “ombre”, “malade”, “automne”,
“pleurent”, “larmes”, “lamenter”, “peine”, “mal”, “crépuscule”, “morts”, “s’éxtenue”, “mal
aimé”, que do mesmo modo que Bandeira, demonstra a via triste de se fazer poesia e a
condição predestinada do poeta/artista a um mundo pesaroso.
Por meio do léxico melancólico e da reflexão que o próprio Apollinaire faz sobre sua
condição “maldita”, coloca-se fora dos padrões da civilização burguesa, pois ao invés de
trabalhar e ser útil para tal sociedade, que assim o espera, ocupa-se da literatura, dos sonhos
e dos versos.
Por fim, os dois poemas finalizam com imagens que reforçam a condição de
infortúnio do eu-lírico, pois em “Signe”, as pombas que se preparam pa dar o último vôo,
não são pássaros que representam a paz, como assim o era esperado, mas sim aves de mau
agouro cuja fun cão é trazer o “mau destino”, a morte: “Les colombes ce soir prennent leur
dernier vol” (V.8). Também “Oceano” apresenta em seu dístico final a voz que denuncia o
pesar sem consolo do eu-lírico mal-amado, a sua má sina que cresce com o passar dos anos,
a sua morte vindoura, quiçá da “companheira de todas as horas” como o próprio Bandeira
nomeou: “- Voz de oceano que não vejo”, “Da praia do meu desejo...”.
Em síntese, encerramos o quarto capítulo com a análise dos subtemas que sustentam a
condição do eu-lírico mal-amado, seja na figura melancólica desse ser, seja nos cenários
sombrios e crepusculares em que está inserido, todos corroborando a nossa tese de que esse
vive a dor da ausência, a eterna busca pelos sentimentos findos e pelo passado que esvaeceu
com o decurso do tempo, permanecendo apenas o pesar pelo tempo não-reconciliado.
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
168
Considerações Finais
Considerando o estudo realizado e os resultados de tal proposta de pesquisa,
chegamos ao objetivo final deste trabalho que, desde a graduação vem sendo desenvolvido,
a possível confirmação de um eu lírico mal-amado na poética bandeiriana e apollinairiana.
Esse sujeito poético sofre a ausência das coisas e sentimentos findos como resposta a um
tempo não-reconciliado, proveniente de uma leitura deulezeana do círculo eternamente
descentrado, cujos vários subtemas aqui desenvolvidos corroboram a problemática pesarosa
em questão.
Ademais, o estudo temático-comparativo das obras A cinza das horas e Alcools visou
lograr um maior conhecimento da poética bandeiriana e apollinairiana, tanto no que
concerne à fase parnasiano-simbolista, com traços anunciadores de tendências renovadoras
da linguagem e da literatura, quanto às transformações pelas quais passaram até chegar,
Bandeira ao Modernismo e Apollinaire às Vanguardas Francesas.
Vale destacar, que a proposta estudada é flexível e jamais definitiva, sendo com
certeza acrescida, melhorada e modificada em alguns aspectos na medida em que a
pesquisa passe pelos olhares atentos dos componentes da banca e dos possíveis leitores.
169
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