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Rodrigo Fonseca e Rodrigues
A IMAGEM DA ESCUTA:
os sites person-to-person e os compositores heterônimos
PUC-SP
2007
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Rodrigo Fonseca e Rodrigues
A IMAGEM DA ESCUTA:
os sites person-to-person e os compositores heterônimos
Tese apresentada ao Curso de Doutorado do
Programa de Comunicação e Semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como requisito parcial à obtenção do
título de Doutor em Comunicação Social.
Área de Concentração: Signo e Significação
nas Mídias. Linha de Pesquisa: Sistemas
Sonoros. Orientador: Professor Doutor Silvio
Ferraz.
São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2007
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Rodrigues, Rodrigo Fonseca e
Título. A imagem da escuta: os sites person-to-person e os compositores
heterônimos. Rodrigo Fonseca e Rodrigues. São Paulo, 2007.
Tese - Doutorado - Programa de Comunicação e Semiótica – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
1. Escuta. 2. Composição. 3. Internet. 4. Deleuze. 5. Tempo. 6. Pensamento.
4
Banca Examinadora
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5
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a
reprodução total ou parcial desta tese por processos
reprográficos ou eletrônicos.
_________________________
Rodrigo Fonseca e Rodrigues
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RESUMO:
A questão principal desta tese diz respeito à escuta e suas composições face aos modos
experimentais de freqüentação das arquiteturas person-to-person na internet. Serão
abordadas, como corpus empírico, práticas de composição sonora disseminadas por meio
de sites-programas como o Soulseek.org e conhecidas pelo nome de "bootleg mash ups". A
pesquisa tenta demonstrar as dificuldades das especulações do pensamento quando se trata
de indagar como as sensações na escuta se contagiam, animadas por afetos coletivos
ligados às temporalidades da tecnologia e da criação musical. A fundamentação conceitual
da tese se ampara na aproximação entre idéias ecoantes de Duns Scott, F. Nietzsche, G.
Tarde, H. Bergson, F. Pessoa, G. Deleuze e F. Guattari. O objetivo aqui é demonstrar, a
partir das concepções que estes autores deram para o problema da imagem no pensar, o que
muda na sensação da escuta ao se mudar a imagem mesma do pensamento. Para tanto, este
trabalho adota as contribuições do "pensamento das hecceidades" para tentar re-imaginar as
virtualidades criativas do Tempo na composição da escuta musical. De acordo com esta
concepção, em vez de se ater à prática de cortar e de colar elementos sonoros, o
“compositor de desktop” precisará antes investir numa economia experimental de ritmos e
de imagens do Tempo para singularizar sensações na escuta. A partir desta premissa,
afirma-se que as performances criativas da música, estimuladas pelos hábitos de convívio
nos sites peer-to-peer, precisam interferir em regimes de percepção, de sentido e da
imagem que a subjetividade adquire nas cadências estereotipadas da internet. Tais práticas
apresentam-se como uma atividade poética heteronímica, de resistência inventiva aos
recentes processos tecnológicos de subjetivação. Por tal razão, a escuta compositora
necessita ultrapassar os regimes estáveis do som, do signo, do espaço, do fenômeno, do
sentido, da técnica, do logos musical recorrentes na imagem transcendental do pensamento.
A partir do embate criativo num ambiente saturado de axiomas, a composição musical
enfrenta o problema de restituir o singular na sensação, de transduzir vontades e de
contagiar virtualidades sensíveis na escuta e no seu pensamento.
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ABSTRACT
The main issue of this thesis is concerned to the listening and it's compositions in view of
the experimental ways of frequentation of the architecture person-to-person in the internet.
They will be approached, as empirical corpus, practices of sonorous compositions spread
through site-programs like soulseek.org and known as bootleg mash ups. The research tries
to demonstrate the difficulties coming from the specutations of the thought when dealing
with the investigation how the sensations in the listening,make some contagious,
encouraged by collective affects linked to the temporalities of the technology and the
musical creation. The conceptual basis of this thesis leans on the approximation among the
echoing ideas of F. Nietzsche, Gabriel Tarde, Henri Bergson, F. Pessoa, Gilles Deleuze
and F. Guattari. The purpposal is to discuss, from the conceptions that these authors
brought to the problem of the imagem in the thought, what changes about the sensation of
listening when the image of the thought changes.In such a way this work adopts the
contribution of the "thought of the haecceitas", trying to re-imagine the creative virtualities
of the Time in the composition of the musical listening. Accorded to this conception, instead
of abiding by the practice of cutting and pastting sonorous elements, the desktop's
composer will need to invest previously in an experimental economy of rhythms and images
of the Time to potencialize the sensations in the listening. From this premise, it is asserted
that the creative performances of musical listening, stimulated by the ways of conviviality
into the sites peer-to-peer, need to interfere in the regimes of perception, sense and the
image that the subjectivity aquires in the stereotyped cadences of the internet. Such
practices present themselves as an heteronymic poetical activity, with an invenctive
resistence to the recent technological processes of subjectivation. To achieve this level, the
compositional listening needs to go beyond the reccuring stable regimes of the sound, the
sign, the space, the phenomenon, the sense, the techinque and the musical logos in the
transcndentalimage of thought. From this creative battle in a saturated enviroment of
axioms, the musical composition faces up the problem of retitute singular in the sensation,
to transduce the wills and to make a contagious of the sensivity virtualities into the thought
of the listening.
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Dedicatória:
À minha mãe Lúcia e à Sandra, pelo amor incondicional.
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Agradecimentos:
Ao meu orientador Prof. Silvio Ferraz, pela sua condução segura e amiga; à CAPES; aos
memoráveis mestres César Guimarães, Júlio Pinto e João Gabriel. Aos professores Norval
Baitello e Rogério Costa. À Teresa Leão, amiga para todo o sempre. Ao Junio Fernandes,
pela sua exortação perene. Ao Gedley Belchior, pelas motivações iniciais e por
disponibilizar seu conhecimento musical e seu acervo fonográfico. Ao Cláudio José, pela
sua solicitude e amizade. À sempre amiga e colaboradora Kênia Machado. Ao inspirado
companheiro Everton. Ao compositor Nuno Leão, pelas conversas e audições. Aos meus
irmãos lusitanos Chico Fialho, Paulão Pires, Domingos e a todos os amigos de Évora. À
anfitriã Andréia Moassab, a todos os amigos presentes na fase da pesquisa: Guaracy
Araújo, Otávio "Cuca" Paiva, Nils Peter e Rogéria Torres, Andréa Casa Nova, Alexandre
Bobs, Cláudia Fonseca, Cláudia Siqueira, Guida Trindade, Carlão e Inêz. À tia Célia e a
todos os familiares. Aos sempre saudosos Lúcio Fonseca, Antônio Rodrigues e José
Vilela.
10
"Num canto da sala, pessoas conversavam e um rádio
tocava alto. O grande maestro, sentado ao piano,
escrevia uma partitura. Cheguei perto de Villa-Lobos,
envolvido na fumaça de seu charuto, e perguntei se
tudo aquilo não o incomodava: 'Meu filho', respondeu
ele, 'o ouvido de fora nada tem a ver com o ouvido de
dentro'."
Tom Jobim
11
SUMÁRIO
Introdução...........................................................................................................................13
CAPÍTULO PRIMEIRO
1 – A internet como ambiente processual de contágios: as performances criativas da escuta
e os P2P's..............................................................................................................................25
1.1 – As imagens do Tempo no pensamento e a escuta musical...........................................31
1.2 – O Tempo das hecceidades: diferença e repetição na imagem da música.....................40
1.3 – O virtual, a virtualidade e o devir na escuta.................................................................47
CAPÍTULO SEGUNDO
2 - Os ritmos cadenciais do virtual tecnológico...................................................................56
2.1- Memória, percepção e a imagem da consciência na escuta musical.............................60
2.1.1- As "sínteses do Tempo" que fazem a escuta..............................................................70
2.2– A imagem poética do Eu ubíquo..................................................................................75
2.3- Os processos tecnológicos de subjetivação e a heteronímia criativa na internet..........80
CAPÍTULO TERCEIRO
3 - O "dj de desktop" e o bootleg mash up..........................................................................86
3.1 – A "arte da escuta" e as sonoridades...........................................................................92
3.2 – O limite e a liberdade na invenção da música: o plano de composição e o
diagrama.............................................................................................................................101
3.3 – Os ritornelos da escuta compositora.........................................................................109
12
CAPÍTULO QUARTO
4- A montagem digital e a composição de virtualidades...................................................117
4.1 – O corte-maquínico, a sensação e o material na criação musical................................121
4.2 - O pensamento compositor de sensações....................................................................134
4.3 – O clichê na internet: a fadiga e o singular na escuta criativa.....................................143
4.3.1 - A novidade e o futuro na música.............................................................................150
Conclusão...........................................................................................................................158
Referências Bibliográficas................................................................................................163
Anexos................................................................................................................................173
13
INTRODUÇÃO
O compromisso desta pesquisa é dar evidência ao embate entre uma nova gama de suportes
técnicos de registro, de conexão e de criação, a saber, o computador e as redes, e os
problemas da criação musical. A sua questão principal diz respeito às composições da
escuta face aos modos experimentais de freqüentação das arquiteturas person-to-person na
internet. Como um pressuposto corpus empírico, são abordadas práticas de composição
sonora, disseminadas por meio de sites-programas P2P como o Soulseek.org e conhecidas
pelo nome de "bootleg mash ups".
O trabalho foi construído por quatro Capítulos. O Primeiro se encarregou de estudar certos
traços potenciais que a escuta pode ganhar quando animada pelas circunstâncias de uso
experimental dos file-sharing services e de aplicativos de áudio. Basicamente, as nossas
perguntas são: o que se diferencia, o que se cria na realidade da escuta, em circunstâncias
motivadas por tais hábitos de conexão na internet? Como a freqüentação dos sites person-
to-person poderia propulsionar outras performances criativas para a escuta musical?
Priorizamos trabalhar a imagem conceitual da internet como um ambiente, mas como um
ambiente processual, uma imensa máquina de redistribuições de temporalidades. Os tempos
da vida, ora são codificáveis, controláveis, ora imprevistos, inapreensíveis e incontroláveis.
Em suma, a rede precisa ser apreendida como um plano catalítico de contágios potenciais
de vontades criativas, para aquém e para além dos seus regimes tecnológicos, semióticos,
imaginários e comunicacionais.
No rastro da idéia deleuziana de "contágio", apostamos que a dinâmica da existência
coletiva de convivência se ergue a partir de uma insistência de forças velozes e singulares,
fluxos do tempo que ultrapassam os tempos perceptíveis das relações pessoais e dos ritmos
da comunicação entre as pessoas. Por essa razão vimos, neste Tópico, que certos hábitos de
freqüentação aos sites "person-to-person" passam a ser pensados como potenciais
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contagiantes de um diferente regime de trocas, não apenas restrito a informações ou ao
material musical partilhados, mas que dispara e captura afetos singulares. Tais regimes de
afetos podem contagiar e intensificar uma vontade de criar. A questão tratada, no entanto, é
a do potencial afetivo que tal modo de compartilhamento pode estimular para uma nova
liberdade de experimentação de performances para a escuta. Indagamos, porém, se a
intromissão coadjuvante da internet em nossos hábitos musicais poderia, efetivamente,
motivar novos modos de contágio para uma escuta musical criativa.
Deve-se, de início, traçar um desenho de interrogações para se pensarem as implicações
desta realidade criativa musical com mudanças na escuta e nos modos como esta se pensa,
se imagina, se sente e se compõe. O Tópico 1.1 começará por assumir as dificuldades - e
também as possibilidades - encontradas na tarefa de se definir conceitualmente a escuta que
temos por hábito chamar de "musical". Ele apresenta a questão de saber se a escuta poderá
ser pensada, sem ser, no entanto, remetida às imagens transcendentais do pensamento, tais
como a representação das variedades formais dos seus materiais, dos fenômenos sonoros,
das percepções e afecções, da consciência, da lembrança, dos estados sentimentais etc.
Tendo assim em conta que o pensamento da música tradicionalmente se assenta em tais
performances de abstração que o orientam e condicionam a sua lógica, tentaremos
perscrutar, primeiramente, por que meios o olhar, a linguagem, o pensamento e a escuta
podem "se temporalizar" mutuamente. Tal exercício de re-imaginação do pensamento
precisa lutar criativamente com as palavras e os nomes, ambos criados sob a rubrica da
retina, do espaço e da imagem abstrata do Tempo.
Apresentamos a imagem paradoxal de um Tempo não-cronológico, pautados nos conceitos
que Gilles Deleuze desenvolveu para as palavras diferença e repetição, bem como na idéia
de eterno retorno, retomado dos estóicos por F. Nietzsche, para pensarmos a música a partir
de suas potências intensivas, não apenas a sua realidade extensiva. Tal concepção dessa
constante diferenciação íntima que faz toda a realidade se torna, para a nossa discussão,
uma imagem definidora, porque nos leva a pensar essa outra realidade de movimentos que
se inovam, que se afetam, irrefreáveis, por meio de uma vontade criativa do Tempo.
15
Tendo assim em conta que o pensamento da música tradicionalmente se assenta em
abstrações e imagens formadas ( afecções ) que o orientam e condicionam a sua lógica,
tentamos perscrutar, primeiramente, por que meios o olhar, a linguagem, o pensamento e a
escuta "se temporalizam" mutuamente. Tal exercício de re-imaginação do pensamento
precisa lutar criativamente com as palavras e os nomes, ambos criados sob a rubrica da
retina, numa imagem abstrata e espacializada do Tempo. Questionamos assim a suposta
validade da lógica recognitiva, da memória e da representação no investimento da
imaginação conceitual da escuta musical. Por todas as dificuldades que o pensamento
enfrenta no encontro com o ainda impensado, defendemos a adoção de ritmos silenciosos
da escuta, na composição experimental de imagens conceituais. Esta proposta acerca do
modo de se pensar as imagens pelas quais o pensamento pensa, de imaginá-lo
"iconoclasticamente", também pode afetar, sobremaneira, a imagem mesma que se constrói
do Tempo, da sensação e da própria escuta musical. Pensar o Tempo e o espaço, os ritmos
extensos e intensos, as afecções e os afetos, o som e a sonoridade, o signo e o não-sígnico,
pede antes por um trabalho de dessubstancialização das imagens. Em razão disto, propõe-
se o exercício de um modo experimental de pensamento, acolhendo uma possibilidade de
adotar princípios da escuta no exercício conceitual. Um modo, por assim dizer,
"composicional" de se pensar, de imaginar o impensável, de estimular o pensamento a
contar com o impensável de que também se compõe a escuta, das suas micro-políticas de
ritmos vitais de sua vontade criadora.
O curso destas indagações não pôde, todavia, ser desenhado sem um amparo das idéias
sobre a imagem do Tempo construída pelo chamado pensamento das hecceidades, da
individuação, da imanência. Estas idéias nos ajudam na tentativa de re-imaginar as
virtualidades criativas do Tempo na composição da escuta musical. Elaborado pelo filósofo
Duns Scott, o conceito de hecceidade recebe em Deleuze a idéia de uma imagem que liberta
o pensamento da estrutura analítica que individualiza elementos, abstrai fenômenos, que
estabelece relações, que identifica formas etc. Ao invés de representar a realidade, o
pensamento das hecceidades a imagina como uma realidade absolutamente temporal, que
16
insiste em virtude de seus amplexos rítmicos, de suas velocidades intensivas, condensando-
se e se dissipando, em uma irrefreável transiência de devires.
O Tópico 1.3 se dedica a problematizar os conceitos de virtual e de atual na música. Inicia-
se por apresentar a difícil imagem do virtual, um conceito antigo que sofreu uma radical
mutação no final do século XIX, com o pensamento de G. Tarde e de Henri Bergson.
Detectamos que os autores se afinam em assumir no pensamento uma imagem paradoxal da
realidade, como se esta fosse um devir universal de fluxos co-implicados. Décadas depois,
o virtual seria de novo re-imaginado por G. Deleuze. De gérmen potencial, como queria o
pensamento dialético, o virtual passou à imagem de força incorporal, imanente ao
movimento e à celeridade absoluta do Tempo. Adotamos, apoiados na concepção que
Deleuze e Guattari deram ao virtual bergsoniano, um modo de re-imaginar a escuta musical
como uma realidade feita de acoplagens tanto te modulações sensíveis, sonoras, quanto de
forças incorporais, silenciosas. Trata-se de uma realidade pré-subjetiva da escuta musical
que se urde por céleres conexões de ritmos intensivos. Em resumo, a escuta se modula em
fluxos de acoplamentos de intensidades, de "transduções", de sensações, de regimes de
imagens, de afetos incorporais invivíveis, mesmo que não nos demos conta de tudo isso.
O Tópico inicial do Capítulo Segundo virá fazer um diagnóstico dos hábitos coletivizados
nos modos triviais de uso das máquinas digitais em rede. Apontamos que no convívio com
imagens simuladas, os ritmos da nossa percepção podem ser discreta e espertamente
cadenciados pelos enclaves tecnológicos digitais: por meio de sutilíssimas celeridades, as
condutas da memória, da imaginação e da vontade têm sido ditadas por regimes de um
minucioso gerenciamento e de um controle pré-coordenado das virtualidades do Tempo.
No Tópico 2.1 são aventadas as performances da percepção e como esta espécie de
"educação da memória", que sintetiza os tempos da consciência e da personalidade, erige
toda uma realidade de escuta. Demonstramos neste ponto o pensamento inovador de Henri
Bergson a respeito da imagem da subjetividade, das performances da memória, da
percepção e da consciência na escuta musical. O autor se torna para o nosso debate uma
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figura privilegiada, porque foi dele que partiu a noção radical de imagem sem forma, e do
mundo como um conjunto dessas imagens-movimento. O investimento de Bergson vai
também alcançar uma redefinição da própria imagem conceitual de "imagem". Este ponto
se torna especial para as nossas questões, a partir do momento em que o autor ressalta que
há uma realidade de imagens imperceptíveis com as quais os nossos atos de percepção
produzem por certos condicionamentos da memória. Estas são chamadas de afecções ( as
"imagens internas" ), imagens já formadas e qualificadas da vida sensível e cognoscível.
Vimos que devemos despir a imagem da escuta musical dos traços da consciência e da
subjetividade. É a partir desta idéia que passamos a pressupor na escuta a possibilidade de
um trabalho sempre criativo de uma "imaginação sem imagens", de uma composição de
ritmos intensivos, de afetos que não se traduzem por grandezas ou por formas extensivas.
Conectamos, no Sub-tópico 2.1.1, as idéias de Bergson com uma outra concepção
deleuziana que imagina "sínteses do Tempo", idéia que ele buscou abrir para pensar as
potências e os devires não-humanos que captamos e acoplamos para fundar a existência
que redunda em nossa experiência sensível do Tempo. O mundo sensível da escuta pode ser
também pensado como uma temporalidade complexa de contrações ainda pré-sensíveis,
apenas intensivas, rítmicas, moduláveis. O mundo das formas só virá com os mecanismos
extensivos da memória voluntária ( lembrança ), com a percepção, com a linguagem e com
a vida psicológica. Apoiados nas sínteses de apreensões do Tempo, tentaremos pensar
como este amplexo de contrações, contemplações, sensações, memórias, percepções,
afecções e representações de imagens afeta a escuta musical.
Fomos encontrar nos textos de Fernando Pessoa uma intrigante concepção da imagem
subjetivada da personalidade e de como ela precisa ser ultrapassada, nos embates da arte,
pelas experimentações da imaginação criativa. O autor parte de uma arrojada suposição: a
idéia de que um artista precisa pensar-se, para criar, a partir de uma imagem
despersonalizada do eu, de um sentir-se como outrem sem deixar de sentir-se: "sente-se em
mim". Este gesto vital da fantasia precisa, para Pessoa, passar por uma despersonalização
imaginativa da subjetividade, a invenção de um heterônimo que, como um personagem
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criativo, pré-subjetivo, componha no lugar do sujeito compositor. Esta idéia de Pessoa foi
aqui re-endereçada aos nossos questionamentos da imagem do Eu a partir da ficção
experimental de um heterônimo da criação musical na internet. Por este exercício
imaginativo de heteronímia nos ambientes digitais, pode-se talvez escapar, mesmo que não
se saiba até quando, das arbitrariedades das imagens da consciência perceptiva musical, do
espaço e de semiose na escuta e na criação musical.
O Tópico 2.3 se voltou para reativar questões ligadas aos modos dominantes de produção
da nossa subjetividade, à conformação de nossa imagem subjetiva vinculada a processos
condicionadores dos usos das arquiteturas digitais. Nos atentamos, inicialmente, à
exposição dos processos de subjetivação - a produção sutilmente controlada de nossa
identidade subjetiva - pela presença hegemônica do logos técnico informático. Aqui nos
perguntamos: a partir das prerrogativas "rizomáticas" da internet, por quais meios
poderíamos recriar, experimentar e afirmar uma nova modalidade da personalidade, uma
multiplicidade implosiva do que há de unívoco na imagem do Eu? A resposta nos levará a
uma proposta de despersonalização criativa da escuta: saber como se tornar um
"personagem compositor", erguido pela experimentação de sensações e de vontades ainda
despersonalizadas. É nessa linha imaginativa de um ethos da sensação, que se desdobra
uma espécie de "política das sensações" pela qual o desejo impessoal de simplesmente
intensificar potências rítmicas de vida, pode contagiar afetos criativos. Esta potência de
querer afetar e ser afetado torna a composição musical na internet uma tática de resistência
aos regimes sub-reptícios de controle sobre os hábitos de freqüentação dos ambientes
digitalizados.
O Capítulo Terceiro apresenta a questão da criatividade da escuta musical na internet, a
partir do aparecimento de práticas de composição sonora conhecidas por "bootleg mash
up", "bastard pop" ou "glitch pop". As singularidades desta modalidade de criação será o
nosso corpus empírico privilegiado a partir deste ponto. Os problemas composicionais dos
bootleg mash ups implicam certos modos diferentes de experimentação da escuta musical, a
partir de hábitos de convívio e de trocas nos peer-to-peer. Tomamos como um importante
19
pretexto a figura de um personagem criativo: o "compositor de desktop". Ele parece
assumir posturas afins a um personagem da escuta, um heterônimo experimental de
sonoridades, nas fímbrias abertas pelas arquiteturas dos ambientes digitalizados. O dj
bootlegger, como também é chamado, passará a ser imaginado aqui como um criador que,
antes de se restringir à conotação estrita de um compositor musical, torna-se algo como um
personagem experimentador de sonoridades. Estes problemas figuram ainda como um
pretexto para outras questões menos evidentes que banham os ritmos da escuta. Tais
interrogações dizem respeito a uma escuta que "se compõe" e como tal modo de
composição se dá por uma espécie de economia de sensações, de montagem de imagens, de
cortes em nossos regimes estáveis do Tempo, da percepção, da memória, da afecção e do
sentido.
O Tópico 3.1 se dirige a compreender e a definir os modos pelos quais a escuta se constrói
para compor música, em sua constante encruzilhada de tempos e de movimentos, de forças
e de formas, de coisas e de velocidades, de signos e dos ritmos intensos, de som e de não-
som etc. Privilegiamos, de início, as idéias do conhecido pioneiro da musique concrète,
Pierre Schaeffer. O seu importante trabalho conceitual nos ajudará a pensar a escuta na
condição principal de uma efetiva performance compositora. Aderimos à sua premissa de
que a música se faz, antes de tudo, como uma arte que, para além dos dotes técnicos,
teóricos ou performáticos, diz respeito a uma real prática de composição. Debatemos a
concepção nuançada e especificamente musical que Schaeffer deu ao antigo conceito
pitagórico de "escuta acusmática". Esta idéia que defende a escuta como uma atividade
auditiva concreta, imediata, descondicionada e desimpedida de todas as camadas visuais
imaginárias, performáticas, gestuais, simbólicas ou abstratas anexadas em função de nossos
hábitos de audição musical. Contrastamos a sua concepção com a necessidade de
aceitarmos um destino extra-acusmático para a escuta musical, no intento de devolvermos a
ela, por direito, uma plena realidade paradoxal de devires, de afetos e de vontades. Nos
amparamos nas idéias de Rodolfo Caesar para colocar em xeque a possibilidade efetiva da
escuta acusmática estrita. Relatamos aqui um cruzamento entre as idéias de Pierre
Schaeffer e de Brian Ferneyrough, que Silvio Ferraz interpenetra, ao cogitar três
20
modalidades recorrentes na escuta musical: a figural, a simbólica e a textural. Para cada
uma destas posturas da escuta, entram em cena trabalhos diferentes da imaginação criativa
e da mera recognição do imaginário. Tais modos muitas vezes se encavalam, se misturam,
em convivências imprevisíveis, às vezes em incontroláveis migrações: instável, a escuta se
faz como uma tarefa criativa e plural de espalhar ouvidos por todos os lugares do Tempo.
Investimos no conceito de sonoridade, nesta imagem da escuta que se reporta a todo um
plano de potencialidades e que se compõe como uma realidade de devires-sons.
Paradoxalmente, a sonoridade modula tanto idéias musicais quanto forças silenciosas,
tanto materiais sônicos quanto virtualidades imateriais, tanto formas quanto intensidades
não-formadas. Serão, portanto, a partir de ritmos intensivos ( que constroem as sensações )
e nos ritmos extensivos ( que organizam as percepções ) que vamos nos compondo: não
como uma subjetividade que ouve música, mas antes como personagens criativos de uma
escuta que se compõe nos devires das sonoridades.
O Tópico 3.2 expõe um dos conceitos mais abrangentes do pensamento de Deleuze e de
Guattari: o de "plano de composição". Vamos tentar estender esta importante noção aos
problemas da composição da escuta. A discussão se encaminhará a partir da concepção que
os autores deram para da imagem do limite e do ilimitado, do finito e do infinito, idéia que
trouxemos para problematizá-la na composição da música. Empregamos a palavra
"diagrama", que diz respeito aos limites artificiais que o artista instaura como um princípio
de estabilidade contingencial inventada para ele mesmo ser estimulado a torná-la
indecidível, a desestabilizá-la e a reestabilizá-la de um modo singular.
O Tópico 3.3 tenta imaginar uma vontade rítmica do Tempo na criação musical, acolhendo
o conceito de "ritornelo" tal como este foi redefinido por Deleuze e Guattari. O mérito dos
autores foi abstrair desta palavra a sua antiga conotação espacializada, direcional,
mnemônica, de retorno a um início, além de desprendê-la de seu sentido de repetição crua
e, principalmente, de seu significado, na sintaxe musical. O fluxo da escuta seria composto
por infinitos ritornelos do Tempo, operando para além de problemas musicais estritos, tais
21
como notas, harmonias, cadências, figuras, timbres, idéias, referências, sentidos,
simbolismos etc.
O Capítulo Quarto recupera, por ser oportuno ao nosso tema, um questionamento que nos
envia ao pensamento da música sobre os seus ditos modos "concretos" de composição, os
procedimentos de colagem, de montagem ou de edição sonoras, religando-o com as
prerrogativas de criação possibilitadas pelos usos da informática e da internet. Este
momento abordará a definição conceitual a respeito da real composição que se faz pelo
princípio da montagem digital: de ritmos afetivos, modulações e transduções de
temporalidades, invenções de novas virtualidades para a sensação.
O percurso do Tópico 4.1 inicia expondo que a composição da escuta se faz entre regimes
estáveis da enunciação e transiências não-enunciáveis da sensação. Para discutir esta
imagem da criatividade na escuta, empregamos os sentidos afins que Gabriel Tarde e Félix
Guattari criaram para pensarem os movimentos criativos do mundo a partir da palavra
"máquina". Este termo, longe de ser aqui a metáfora de um sistema de natureza mecânica,
será pensado um agenciamento de ritmos, para que possamos auscultar os dispositivos que
processam, na composição da escuta, tanto signos e sons quanto velocidades e ritmicidades
incorporais simplesmente intensivas. A sensação na música, antes de ser trespassada pelo
domínio transcendental dos códigos, regimes e sentimentos catalogados, opera como uma
compositiva máquina de tempos: por meio de suas experimentações, se acoplam, se
conservam, se escoam contrações, imagens-tempo, sensações, reminiscências, gestos,
pensamentos etc. Esta idéia nos levará à interessante inversão conceitual que Guattari e
22
Adveio desta discussão, uma questão acerca da concepção do "material" na composição da
música, que ultrapassa a noção de matéria dotada de uma forma. O que se chama
usualmente de "material", a despeito de se referir a toda matéria ( mesmo não sendo
estritamente sonora ) que sofre a injeção dos investimentos do compositor, é apenas um
pretexto para uma composição que maquina virtualidades para a sensação. A palavra
"material" precisará ser imaginada, não como qualidade de uma matéria formada, mas
como um composto de sensações que ganha vida nos afetos do Tempo. Demonstramos que
não importa se o artista se vale deste ou daquele material, se é um violão ou um
sintetizador, uma partitura ou um groove de sampler, uma imagem percebida ou uma
sensação ordinária não-musical, uma escala musical exótica ou uma célula rítmica, uma
frase solta lida num livro, uma batida de samba, uma reminiscência ou a lembrança de uma
cena cotidiana qualquer etc. O que conta na composição é o poder de singularizar a
vontade, afetar os nossos devires. O que conta na composição é o poder de singularizar a
vontade, de afetar devires.
Precisamos definir, no Tópico 4.2, o esquivo conceito de "sensação" e como o pensamento
das hecceidades lida com ela na escuta. Para imaginarmos o que se move na música, para
além das figuras conceituais que se apóiam em estados vividos e em afecções, atribuímos à
palavra sensação uma realidade de fluxos intensivos e "invivíveis" para os tempos
"dramáticos" da percepção. Nos apoiamos nos conceitos de "percepto" e de "afeto"
pensados por Deleuze e Guattari para entendermos o papel dessas virtualidades do Tempo
na música. O percepto e o afeto poderão nos trazer uma imagem diferente da sensação e de
como ela pode ser intensificada pela criação musical. Apresentamos ainda neste mesmo
Tópico a instigante doutrina criada por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, um tipo
de pensamento poético altamente imaginativo e ousado ao qual se deu o nome de
Sensacionismo. O pressuposto sensacionista seria o de intensificar fluxos da sensação ou de
criar sensações extra-ordinárias, por meio da imaginação. Tomando de empréstimo esta
idéia, pode-se também pensar a escuta como uma economia de perceptos e de afetos, para
aquém e além dos estados de coisas, do vivido, pela memória perceptiva e pela afecção já
repertoriada por sentimentos.
23
No Tópico 4.3 problematizamos a questão da fadiga, como sintoma dos hábitos de escuta
na freqüentação da internet. É a partir do conceito de clichê, re-trabalhado pelos dois
autores, que iremos demonstrar o problema da composição como um problema de restituir
uma singularidade que desarme a fadiga da sensação. Pelo fato de o mash up ter vindo à
baila como uma prática criativa nascida no seio do excesso informacional e da velocidade
de seus fluxos, são levantados os problemas que esta modalidade de composição enfrenta
nos pressupostos de convivência massiva com os regimes hegemônicos de enunciação
musical. Ainda imaginamos aqui o trabalho da criação mash up como uma performance da
escuta, uma escuta que interfere e que desestabiliza certas forças dominantes de sentido
musical. O compositor de desktop deverá, por princípio, desencaminhar as formas
estabilizadas pela escuta habitual e deformá-las, despi-las de suas figuras e cadências,
provocando um oxímoro na sensação. Antes de operar nas camadas semânticas ou
mnemônicas, uma composição mash up pode, ao atenuar o clichê musical, forçar a escuta a
se recompor para proceder novos acoplamentos entre virtualidades, sensações e afetos. A
escuta estará, por algum tempo, livre ou ao menos desprendida das vestes do estereótipo
que estorvam seu contato com a novidade. A singularidade na sensação somente se fará na
condição de se ativar uma restituição do paradoxo nos regimes imagéticos da percepção, da
memória e da significação.
Para finalizar o trabalho, o Tópico 4.3.1 trata das imagens do futuro e do "novo",
respectivamente, e como estas podem ser pensadas na escuta musical. Primeiramente, de
acordo com a imagem que lhe dá o pensamento das hecceidades, o "futuro", sendo
concebida como a face imprevista do devir, também se torna a força realmente criativa do
Tempo. Apesar de ter na face do passado o apoio prévio de ritmos estáveis para a criação,
o futuro é a face livre do Tempo e que irá responder pela sua incessante renovação. A nossa
preocupação vai, desse modo, abarcar o futuro como um especial problema da escuta:
compor sonoridades é intervir nos fluxos de afetos dos devires.
24
Ao aproximar a imagem de um futuro sempre iminente, de um futuro-do-devir como a face
criativa da sensação na música, procuramos definir essa potência sempre inventiva e
recomeçante que faz a escuta. Perguntamos: se a concepção do futuro vive intimamente
conectada à idéia da contínua novidade, o que seria realmente inovar na música? O que faz
da composição na música uma instauração da novidade na escuta não se dará, afinal, por
meio de meras combinações e re-combinações de códigos, de sintaxes formais, de notas
musicais, de acordes, de figuras rítmicas. A composição antes pressupõe um recomeço de
mundo, uma vontade de afetar os regimes estáveis da percepção por ritmos singulares da
sensação.
25
CAPÍTULO PRIMEIRO
1 – A internet como ambiente processual de contágios: as performances criativas da
escuta e os P2P's
"A realidade verdadeira de um objeto é apenas parte
dele. O resto é o pesado tributo que ele paga à matéria
em troca de existir no espaço".
F. Pessoa
Escutar música diante da tela de um computador conectado a um file-sharing-service,
enquanto vasculham-se arquivos de outros membros on-line, à procura de novas músicas a
serem baixadas em seguida: esta pode ser, para quase todos nós, acostumados ao consumo
de música eletronicamente distribuída, a mera ilustração de uma cena trivial, de um dos
muitos modos corriqueiros de se ouvir música. Um traço diferencial começa quando os
nossos hábitos de audição musical, já acomodados sob as condições instauradas pelo
regime da indústria fonográfica, têm agora a chance de se desprender de algumas das suas
chancelas e, quiçá, de reinventar outras novas performances para a escuta. Esta chance,
acreditamos, vem sendo propulsionada pelo expansivo uso de uma arquitetura digital
específica, que se desenvolveu, há alguns anos, no seio da internet: os gerenciamentos de
fluxos "person-to-person", usualmente chamados de "peer-to-peer", ou simplesmente
P2P”. Este é um fato que hoje assume para si uma parte significante dos fluxos em tráfego
na internet.
A sua lógica de roteamentos, como se sabe, é diferente da tradicional,
basicamente dominada pela arquitetura da Web
1
.
1
Os responsáveis pela instauração e manutenção dos peer-to-peer são os ISPs (Internet Service Providers),
tecnologias de suporte e provisionamento de recursos de fluxos digitais. O princípio desta arquitetura de rede
se pauta no controle do comportamento básico do tráfego, em termos de volume, de vazão e de duração dos
fluxos. A diferença é que o seu volume gerado é, substancialmente, menor do que o tráfego gerado por
aplicações via Web. Isto se dá por meio da elaboração de algoritmos mais eficientes, de novas técnicas de
caching e deste roteamento otimizado, na rede overlay. Ao desenvolverem seus próprios mecanismos de
roteamento, os ISPs provêm um conjunto de serviços, tais como aqueles que possibilitam a localização de um
usuário ou de um recurso disponível, além da criação de grupos de discussão, da performance dos downloads
e uploads de arquivos etc..
26
Dentre as centenas de sites-programas de intercâmbio de arquivos person-to-person
encontrados na internet, a nossa atenção concentrou-se exclusivamente nas práticas ligadas
ao Soulseek ( www.slsknet.org ) por duas razões, respectivamente: os P2Ps em atividade,
de modo geral, se restringem aos modos triviais de baixar arquivos, sem muitas novidades
para além da partilha de arquivos musicais etc.; e a notável singularidade do Soulseek no
que concerne ao movimento de experimentação e de criação musical que este programa
vem estimulando em muitos de seus freqüentadores habituais.
O que distingue o Soulseek dos demais P2Ps pode ser aventado, portanto, em algumas
particularidades que nele se efetivam. Algumas das singularidades que justificam o nosso
interesse, resumidamente, são: a pragmática realidade de acesso a um universo de
composições musicais, numa diversidade de acervos que antes era restrito, sob a rubrica da
indústria fonográfica; as normas de convívio do programa que implicam uma contrapartida
ao simples download, que condiciona o freqüentador a construir uma fonoteca que traduz,
em tese, o seu perfil como ouvinte; uma certa manutenção pessoal dos arquivos
fonográficos, como se os membros mais assíduos dispusessem o seu repertório musical
com vistas a atrair preferências e empatias afins, na chance de apresentar aos seus visitantes
novidades musicais; o Soulseek gerou, em sua dinâmica, uma prática insuflada por djs que
passaram a trocar arquivos de canções alteradas, por softwares, para futuras criações de
novos remixes etc. Esta última razão foi um dado importante para que pudéssemos
observar o quanto uma arquitetura tecnológica, altamente condicionada por interesses
mercantis e por performances de utilização triviais, pode motivar gestos criativos e que
ultrapassam o mero hábito de compartilhar música. Foram circunstâncias dessa ordem que,
para além de contagiarem outras práticas criativas, impulsionaram o aparecimento dos "dj's
de desktop" e o desdobramento do expansivo movimento musical conhecido como bootleg
mash up.
Será esta a nossa pergunta: por quais princípios a sonoridade poderia se renovar, se
singularizar, a partir de virtualidades desconhecidas que assomam os hábitos de
freqüentação dos sites person-to-person"? O que mais conta para o nosso trabalho, no
27
entanto, é saber como pensar esta trama dispersiva de situações de escuta, em jogo nas
modalidades inventadas na freqüentação do Soulseek, obviamente atravessadas por outras
tantas forças coletivas, a partir de uma problematização da própria realidade da escuta
musical. Nessa trilha de indagações, muitas outras questões se erguem diante do
pensamento, o que nos levou, por vezes, a um labirinto de imponderabilidades.
Não é novidade o fato de que nós nos habituamos e aprendemos a ouvir de acordo com os
materiais técnicos, sígnicos, imaginários, sonoros a que estamos expostos. Mas o problema
do qual nos ocuparemos, todavia, será o das novas aberturas experimentais para a escuta,
ensaiadas pelos usos criativos deste site-programa. E tal acontece, imprevisivelmente, por
práticas de resistência criativa que vão aparecendo, nas fímbrias dos hábitos sutilmente
instaurados pela "tecnologia do virtual". Tais atividades de resistência surgidas a partir da
freqüentação nos peer-to-peer vêm ativando, principalmente, uma ampliação mútua de
interesses, de trabalhos, de projetos, de ações e de experimentações. Diante disto,
trataremos de saber se há realmente alguma dinâmica inovadora ou, ao menos, certas
possibilidades criativas na escuta musical, uma vez implicada aos modos de convívios na
internet.
Estas questões serão discutidas e re-imaginadas no problema da realidade criativa da
escuta, quando digitalmente "plugada". As ocasiões de convívio que se constroem a partir
das arquiteturas person-to-person, na internet, serão adiante abordadas, no que tange aos
movimentos chamados de "contágios criativos". Tais encontros singulares, catalisados pelo
Soulseek, redundaram em certas modalidades intrigantes de composição: os bootleg mash
ups.
Jean Baudrillard (2002) assinala que estamos implicados, de um modo inexorável, a uma
era de conexões, de contato, de contigüidade, de simultaneidades e de interface
generalizada no universo da comunicação. Ele também se mostra cético quanto à
ostensivamente alardeada "cultura da interatividade", como uma atmosfera de interação
interfaceada entre máquinas e "usuários", que nelas investem os seus desejos pré-
28
codificados. A despeito das laureadas promessas de heterogeneidade que habitaria a
freqüentação da internet, uma vez sob a rubrica do controle gerencial, não seríamos,
segundo o autor, estimulados a experimentá-la criativamente, o que acaba por inibir o seu
enorme potencial de abertura. Por isso ainda não tivemos a chance de experienciar a
arquitetura sistêmica da internet em sua possível liberdade "rizomática"
2
. E o que distingue
uma simples comunicação ou interatividade em rede da suas virtualidades criativas é que,
ao contrário da rede, controlável em suas performances, o rizoma se in-decide sem parar,
em imprevisíveis bifurcações, em encontros, contágios e potencialidades irredutívais à
lógica da rede digital.
Afirma-se, por isso, que há sim um potencial "rizomático" na internet. Ela abriga gestos de
invenção que podem potencializar imprevisíveis conexões de afetos, justamente a partir de
um regime de trocas e de contatos circunstanciais. Tais práticas vão se consolidando, antes
de qualquer ato comunicativo, como ações contagiantes. São, destarte, nas trivialidades dos
hábitos de convívio em rede, que certas experimentações acabam por se firmar, assumindo
um papel de "disparadoras", de catalisadoras, que podem nos contagiar e nos levar a agir
criativamente. Em suma, as forças heterogêneas que daí emergem, antes de serem
comunicáveis, são simplesmente "contagiosas".
Para tentar entender essas forças contingenciais, mas que perduram nas ocasiões de
convivência nas arquiteturas de rede person-to-person e das condições da escuta permeadas
pelos ditames da tecnologia digital, vamos tomar aqui a internet não como "rede", uma vez
que esta palavra se encontra bastantes metaforizada pelos jargões das ciências da
comunicação e do marketing digital. Vamos imaginá-la sim como um tipo de ambiente,
mas não num sentido de "meio espacializado", de um espaço homogêneo, de um invólucro
imersivo do espaço "cibernético", de um entorno ou de um envoltório simulacral, mas sim
2
O rizoma se define como um termo da biologia que pressupõe um complexo de conexões em que qualquer
ponto se conecta a qualquer outro, em qualquer parte. Não há, no rizoma, nenhuma ordem hierárquica,
sistêmica ou classificatória. O rizoma é pensado como um plano de conexões heterogêneas, sem um eixo
central nem direções previsíveis, multiplicando livremente distribuições singulares de ritmos.
29
como uma ambiência individuada, como um processo, uma hecceidade de fluxos, de
velocidades, de imagens, de temporalidades, de contágios.
Uma importante acepção que Gilles Deleuze dá à palavra “contágio” vem para nos
amparar. Não é a comunicação entre pessoas que interessa ao autor, mas sim o encontro
com o que elas fazem, com as suas atitudes, gestos, pensamentos, afetos etc. Em toda a
gama de coexistência coletiva nas redes é, de fato, muito comum nos encontrarmos com
atividades - e com virtualidades - que podem estimulam o que há de virtualmente ativo em
nossos apetites vitais, que nos atraem e nos agitam, nos afetam e nos impelem, de modo
imprevisto, a outras ações. Por sua vez, nossas ações também estarão imprevisivelmente
abertas e potencialmente contagiantes. Seria preciso exercitar, na internet, essa capacidade
de capturar, por exemplo, um gesto, um ritmo, um pensamento poético, um "charme",
mesmo antes que se efetue qualquer significação. Deleuze assim aponta o efeito indelével
do contágio:
...percebendo alguém com quem nos ajustamos, alguém que nos ensina algo, que
nos abre, nos desperta, e nós nos tornamos sensíveis a uma certa emissão de sinais.
Nós os recebemos ou não, mas nós nos tornamos abertos a eles. (DELEUZE, 2003,
p. 24)
As iniciativas de criação na internet podem, deste modo, passar pelos encontros
"incomunicáveis" com virtualidades que acabam por entrar em ressonância com o que se
está fazendo. É um tipo indeterminado de contato "imanente", no qual se podem criar
relações imperceptíveis com pessoas imperceptíveis, com uma linguagem, uma pré-
linguagem, ou mesmo um afeto não lingüístico. São esses modos inapreensíveis de
contágio que ultrapassam os nossos tempos “dramáticos”, fenomenológicos, das relações
entre pessoas.
Na verdade, o contágio se realiza não somente nos trâmites da internet, mas sempre se
opera em qualquer outra circunstância social. O que pode haver de diferente nos modos do
contágio que co-implicam-se nos encontros person-to-person é, por exemplo, como certos
30
hábitos de freqüentação ao Soulseek passaram a contagiar um novo regime de trocas, não
apenas restrito ao material musical, mas de afetos singulares, de criatividade, que gerou
uma prática coletiva de criação musical e assim por diante. Enfim, a principal questão
tratada nesta trilha de indagações é a do potencial afetivo que tal lógica de contato pode
estimular, para a experimentação da escuta.
A internet precisa ser, por tudo isto, repensada, não apenas como uma realidade midiática,
restrita às performances técnicas e de comunicação, mas antes como um ambiente temporal
de catálises, de encontros, de colisões, de encruzilhadas, em suma, de uma heterogeneidade
de contágios, de sensações incomunicáveis, para aquém e além dos regimes tecnológicos,
informáticos, semióticos e comunicacionais.
Apontamos, à guisa de argumentação, o conceito "sound-giving”, uma expressão do
compositor contemporâneo Paul Lansky. Podemos, com alguma liberdade, estender a sua
idéia para a possibilidade rizomática da internet, porque tais hábitos hoje incluem a troca de
arquivos musicais, sejam metódicos ou sejam aleatórios, nos sites p2p, blogs afins, páginas
de artistas etc. Ao transportarmos para esse universo exponencial de permutas a noção de
que um ouvinte reaviva a experiência social da música, ao compartilhar o que está ouvindo,
tentamos demonstrar o quanto a lógica do contágio, para além da comunicação, pode
catalisar novas performances para a escuta
3
. Imaginamos aqui um novo personagem da
escuta: o "p2p-sound-giver". O "sound-giver dos p2p" se distingue, desse modo, não apenas
pela maneira como ele compartilha os seus arquivos, mas como aquele que também faz, por
exemplo, cópias de gravações, que as oferece ou as empresta aos amigos, recomenda ou
critica algum artista, indica um álbum recente etc. Em termos de vitalidade social o
"sound-giver", comporta um grande número de implicações ativas: uma vez afetado pelas
sensações da escuta, ele as compartilha.
3
O compositor Paul Lansky afirmava, ainda nos anos setenta, que o hábito de escutar, promulgar e partilhar
sons, idéias, materiais, informações, afetos, pontua, decisivamente, muitos momentos de nossa vida musical
contemporânea. Os exemplos são infinitos e variadíssimos. Basta que façamos uma breve consulta à memória
e verificaremos, por quantas maneiras singulares de vida social, chegamos a escutar uma canção, a conhecer
um artista etc.. Lansky admite, no entanto, que não é possível saber o alcance das trocas, o destino dos
contágios, e de que modo decisivo a escuta seria modificada por episódios dessa natureza.
31
São, por fim, as imprevistas ações impulsionadas pelos encontros singulares da internet,
que levam o ouvinte a criar possibilidades rizomáticas de trocas, num processo que, avesso
às inflexões meramente comunicacionais, antes se aproxima de um contágio de afetos, de
empatias, de uma "micro-política" na escuta musical.
1.1- As imagens do Tempo no pensamento e a escuta musical
"Com uma textura de palavras e conceitos, ( o
pensador ) lança como que uma rede no rio do tempo,
mas pesca apenas os peixes que ele próprio lá havia
colocado..."
Fink
Pensar a escuta. Pensá-la como escuta musical. Pensar o que se passa com escuta quando
esta se implica à realidade das conexões digitais. Pensá-la também a partir do que ela tem
de potencialidades de criação, uma vez comovidas pelos modos de contato com os
intrincados fluxos contemporâneos da tecnologia. Imaginar as forças coletivas que estes
fluxos condicionam, das transiências criativas aninhadas entre os tempos coletivos,
perceptivos, mnemônicos, sensitivos e incorporais, implicados na composição do que
usualmente denominamos como escuta musical. Que imagem de pensamento pode dar
conta de problematizar esta palavra que pretende definir uma realidade composta em meio
a tantas forças mudas, co-implicadas e que excedem a todas as circunstâncias musicais? E
ainda: de que vale pensar a escuta, problematizá-la como uma realidade vital, para além das
questões estéticas, objetivas, técnicas, musicais, sociais? Mas como desligá-la destas
esferas tradicionais do pensamento?
O desafio experimental deste momento da pesquisa trata de pensar, juntamente com as
questões pontuais da escuta ligada à internet, a imagem do pensamento que se volta para
conceber a sua realidade: os tempos, os movimentos, as forças, os ritmos, a linguagem, o
32
não-linguístico, as performances da memória, da percepção, da suposta consciência
subjetiva, diante dos mistérios da sensação, dos movimentos impensáveis do pensamento e
da criação musical.
Sabemos que a realidade sensível se nos apresenta em sua impenetrabilidade ao nosso
pensamento. Tentamos, através deste artifício, domar infinitos movimentos que são
absolutamente estranhos e rebeldes ao modo de operação do pensar. Ao que nos parece, o
artifício do pensamento se constrói, contudo, como um exercício paradoxalmente
inextricável à dinâmica das sensações. A estas remetemos imagens, signos abstratos e
relações, criados para lhes dar alguma forma estável e, por meio de convenções, um certo
sentido compartilhável.
Tal como Gilles Deleuze enfatiza, o pensamento tem, por sua própria gênese, uma imagem.
Pensa-se imaginando um mundo formado por múltiplos elementos isolados e finitos e no
qual adquirem contornos calculáveis, formas identificáveis e durações mensuráveis. O que
o nosso pensamento tradicional pressupõe como condição primeira, a imagem de um
sujeito, com um olhar fixo, perspectívico, sempre imobilizado por uma lógica de
binarizações e de compartimentações objetivas e articuláveis.
Ora, isso significa que, quando percebemos e pensamos o mundo, quase sempre nos
valemos de imagens mentais, afecções que são dotadas de forma, de contorno, de
espessura, de medida, de substância, de mobilidade etc. Essa realidade percebida, produzida
por nossos estados vividos, porém, precisa coincidir com um modo de organizar o
pensamento que, para se orientar e se desenvolver, imagina uma lógica espacial.
Não é preciso aqui demonstrar que a linguagem, sendo portadora de dinamismos e
articulações próprias precisa, para ela se efetivar, de que recortemos os fluxos contínuos da
existência em unidades descontínuas, "discretas", do signo. São tais descontinuidades, as
palavras, as frases, as idéias de grandeza, as imagens formadas etc. Ela também exige que
estabeleçamos, entre nossas idéias, as mesmas distinções, a mesma descontinuidade que
33
supostamente percebemos haver entre os objetos materiais. A língua, atada aos seus
problemas intrínsecos, é forçada a figurar, a metaforizar, para exprimir forças e
movimentos que não se circunscrevem sob o sistema lingüístico, que nem sequer se
restringem a um regime de signos e que, igualmente, se esquivam à memória e à percepção.
Estas, de sua parte, facilmente nos convencem de que vivemos uma realidade que é urdida
por relações entre fenômenos. Este modo fenomênico de pensar é, porém, absolutamente
incapaz de pensar a indivisibilidade do ato, dos fluxos do Tempo.
Alguns pensadores contemporâneos, tais como Maurice Blanchot, Michael Foucault, Gilles
Deleuze, respectivamente, nos alertaram para um fato deveras intrigante, que envolve a
nossa realidade vivida e que afeta a realidade do pensamento: o quanto a nossa linguagem é
atravessada por todo um modo de ver, por uma visualidade (DELEUZE, 1991). Eles
assinalam que a relação, ao mesmo tempo simbiótica e dicotômica entre o olhar e a
linguagem, condiciona a maioria dos nossos modos de imaginar, de lembrar, de sentir, de
pensar, de criar etc. O ato de ver mentalmente enquanto se está pensando tem sido uma
espécie de recurso que, ao longo processo histórico de construção do pensamento, toma o
domínio do sentido da visão como o próprio paradigma do conhecimento, deste modelo que
sempre nos mantém nos limites e na inércia de um horizonte espacial e homogêneo
4
.
4
Em um de seus primeiros textos, Michel Foucault apresenta uma idéia insólita a respeito da obscura gênese
do pensamento: aprendemos a pensar porque o homem desenvolveu uma aptidão mnemônica para se lembrar
dos seus sonhos. A explicação que ele nos dá é a de que os sonhos possuem uma dinâmica plástica e
imaginativa. Isto quer dizer que a imaginação no sonho é uma tarefa absolutamente criativa. Assim pensado, é
ao sonho que todo ato de imaginação remete. O sonho não é somente uma modalidade da imaginação, ele é a
sua condição primeira. Foucault afirma que foi no trabalho dinâmico da imaginação onírica, no caráter de seu
movimento, engendrado pelo sonhar, que nasceu a nossa aptidão para conectarmos imagens numa progressão,
com um certo ritmo distinto dos ritmos da percepção e da memória, quando estamos em vigília. Quando a
consciência, no mundo já constituído pelas percepções, tenta reapreender esse movimento, ela o interpreta em
termos de encadeamentos lineares de imagens, que vão sendo injetadas de sentido. O sonho imagina, cria
imagens, e a percepção, apenas as reconhece. Concluindo, Foucault assinala: “A frase (lingüística) se oferece,
de imediato, com um sentido trivial: os caminhos da percepção estariam fechados ao sonhador, isolado pelo
desabrochar interior de suas imagens.” (FOUCAULT, 2002, p.127-130).
34
Sabe-se que, há muitos séculos, a música se diz como uma arte sonora para os olhos
5
. Isto
significa que a escuta "se vê" sempre assomada por um desejo de controlar a emergência de
imagens: abstratas, simbólicas, gestuais, figurais, narrativas, episódicas, filosóficas, afetivas
etc. O que temos por hábito chamar de música, por ser das práticas criativas aquela que lida
com um material especialmente "volátil", etéreo, invisível, tais como os ritmos, os fluxos
incomunicáveis e as modulações simplesmente intensivas, nos lembra Pasquale Criton
(2000), talvez seja, por isso, uma das que mais sofrem os persistentes trabalhos de
codificação dos hábitos sociais. A fluidez das intensidades fugidias motivou, há muito
tempo, práticas musicais que adotaram uma espécie de território formalizador: o nomos.
Esse recurso talvez tenha sido, antes de tudo, um mecanismo instituído para atender a
necessidades de hábitos mnemônicos coletivizados. Uma base rítmica estável,
convencionada, passou a se operar, na música, por padrões dinâmicos de acentuações e de
tempos extensos, o que se efetivou por meio de formas reiterativas de durações perceptíveis
e memorizáveis. Tal prática recorrente de adoção do nomos como essa espécie de
"plataforma" temporal escandida, de organização dos trabalhos da memória - a anamnese -
passou a condicionar, coletivamente, a escuta musical. São mecanismos dessa natureza, tais
como a escansão, a rima, os versos entoados, os cadenciamentos, a estrofe e o refrão, por
exemplo, que orientam a prática da música desde as remotas expressões líricas,
dramatúrgicas e intrinsecamente musicais de compositores e ouvintes da Antiguidade.
Vide, por exemplo, todo o universo de figuras, intervalos, gradações etc.. que aindam
persistem condicionando a realidade da música, ao menos na história do Ocidente, de um
modo geral. É interessante notar que, palavras como: ponto, linha (melódica), intervalo,
distância, até mesmo velocidade, andamento, ritmo, compasso, ritornelo, não se encontram
imunes à tendência imagética formalizada e cronológica. Tão logo apreendemos os seus
símbolos e sistemas de valores duracionais, passamos a reconhecê-los, por força de uma
5
A frase de Tomas Draxe, em 1616, nos atesta esta noção: "A música é o olho do ouvido". Aqui nos
referimos especialmente aos recursos musicais recorrentes nos madrigalismos, pelos quais o que está sendo
dito nos versos é sugerido por convenções de gestos musicais, tais como escalas, cadências, arpejos, notas
repetidas, intervalos harmônicos etc.
35
domesticação coletivizada da audição
6
. A escuta passa, submetida a tal recurso
"espacializador", a sofrer um tipo de delimitação de um horizonte lógico, de uma
verticalização harmônica matematizada e de um tempo dramatizado, que se pautaram em
encadeamentos sucessivos, tanto de formas perceptíveis, quanto de estados sentimentais.
Toda a sua temporalidade submete-se, desde então, a relações de cálculos cronométricos,
de índices de velocidades escalonadas (os andamentos), de grandezas duracionais. Os
ritmos, sejam das vibrações sonoras, sejam das obras e das suas estruturas (recorde-se o
compasso) ou até mesmo o ritmos das sensações, passam a ser, arbitrariamente,
mensurados e limitados em estados mnemônicos, perceptivos. Esses estados serão
traduzidos em outros estados: em afecções (imagens interiorizadas), sentimentos, pathos,
catarse etc.. Leiamos esta idéia de Paul Valèry:
O contraste entre o ruído e o som é aquele entre o puro e o impuro, entre a ordem e
a desordem; esse discernimento entre as sensações puras e as outras permitiu a
constituição da música. Que essa constituição pode ser controlada, unificada,
codificada graças à intervenção da ciência física, que soube adaptar a medida à
sensação e obter o resultado essencial de ensinar-nos a produzir essa sensação
sonora de maneira constante e idêntica, por meio de instrumentos que são, na
verdade, instrumentos de medida. (VALÈRY, 1991, p. 209)
Muitas das linhas teóricas que se restringem ao escopo da percepção sonora buscam
compreender os modos por meio dos quais os sons se apresentam na escuta. Algumas delas
relutam em se deter somente diante de questões acerca deste caráter espacial da imagem do
Tempo na música e da escuta. Em todo caso, a expressão “espaço sonoro” será sempre
ambígua, porque ela pode designar, de uma parte, o espaço acessível ao movimento
corporal no qual se produzem os sons que, propagados fisicamente no ar, podem ser
6
A imagem mental que o pensamento clássico – e que se estende à música - gera, por exemplo, do conceito
de "sistema", se define por elementos hierarquizados e articulados por relações coordenadas funcionais. Das
funções de seus órgãos, devidamente articulados, o seu "organismo se organiza", quer dizer, na organização
de um sistema as coisas só ficam juntas por uma explicação, por associações de imagens espacializadas, como
matérias formadas e suas mobilidades coordenadas. A organização do sistema dependerá sempre de uma
dimensão anexa. O sistema, desse modo, é pensado como se ele fosse fundado num princípio em que uma
constante sofre suas variações ou articula-se com as variáveis de um sistema de mobilidades – não
movimentos – coordenadas, com um início e um fim, um espaço fechado pelos limites de enquadramentos
visuais imobilizantes aos quais a prática do horizonte óptico-lingüístico nos condicionou.
36
localizados por um ouvinte. Esta é uma tarefa à qual se dedica a psicoacústica. De outro
lado, a musicologia insiste estudando o espaço lógico dos sons, a estrutura relacional entre
intervalos escalonados das alturas do som e das durações dos pulsos rítmicos ou, num
sentido mais genérico, os espaços internos da música. Estes, uma escuta visual vasculha,
pautada em preceitos da simbologia da música, transformando-os em afecções sentimentais.
A escuta que chamamos de "abstrata" corresponde a estes preceitos, pois, quando ela passa
a alinhar os sons em sucessões num espaço ideal – o meio -, também ela imagina contar
esse sons numa duração que é, geralmente, uma representação espacial do Tempo.
Um
modo de pensar calcado na visualidade e na mobilidade abstrata erige, na realidade, um
pseudo-movimento
7
Esta é a deficiência do pensamento que vê elementos num meio
espacializado: o Tempo só se torna representável por imagens espaciais
8
. Se, no entanto, o
nosso modo ocidental de pensar se firmou numa certa lógica fenomenal, seria preciso
retirar da escuta a primazia de representar, de metaforizar o Tempo. Precisamos aceitar que,
ao escalonar durações temporais, não fazemos mais do que formalizar, espacializar,
homogeneizar e tornar estáticas forças não-figuráveis do Tempo.
Vale, desde já, mencionar uma interessante idéia, citada por Rodolfo Caesar, pela qual
Nietzsche observa que certos eventos, geralmente ignorados num estado de vigília, quando
passam a perturbar o ouvido, na ausência da visão, e podem despertar um outro tipo de
atenção ou de uma outra performance sensorial que passa a trabalhar criativamente,
imaginativamente. A noite é, então, o momento no qual a escuta e os modos do medo
passam, segundo o autor, a convergir em direção a uma performance de imaginação sonora.
Isto quer dizer que, na ausência de imagens perceptíveis, nos vemos forçados a imaginar.
9
7
Segundo a concepção fisicalista da manifestação acústica, o que se entende por "onda sonora", define-se
assim pela compressão de um meio, cujas moléculas se deslocam a partir de uma fonte de emissão. É
importante aqui considerar, ao contrário, que ondas sonoras num meio são, antes de tudo, processos co-
implicados. E se um processo, por princípio, não se desloca, a onda sonora também não age assim.
8
Para Strawson, uma experiência puramente auditiva supõe, como princípio motor, um mundo não espacial
(STRAWSON, apud CASATI & DOKIC, 1959).
9
Nietzsche, a partir de duas categorias sensíveis e imaginárias - a angústia e a ansiedade - e da sua
prevalência sobre o ouvido, arriscou uma abordagem que aproximava as experiências musicais ligadas à
experiência do espaço e à do tempo a esses dois modos emocionais do medo. Os dois eixos principais do
37
Poderíamos, desde já, inferir o quanto esta idéia de Nietzsche já procurava antecipar uma
espécie de "acusmática" no pensamento
10
. O ouvido, em sua natureza sintética, ao contrário
da tendência óptica das abstrações analíticas, poderia experimentar o mundo "cegamente".
A orelha, "órgão da noite", seria capaz de nos habilitar para desarmarmos, por meio da
imaginação desfigurada, essa compulsão espacializadora em sua obstinada recognição de
formas. Quando escutamos, com efeito, somos afetados por um mundo que é
primordialmente vibratório, um mundo feito de intensidades e de ritmos (NIETZSCHE
apud CAESAR, 2004).
Michel Serres (2001) é outro autor que também nos adverte sobre a necessidade de nos
libertarmos do império da simbiose entre a retina e a linguagem. Serres argumenta que o
som exige uma dimensão a mais para a escuta das suas ondas e, nessa aptidão, o audível
supera o visível, na ampliação intensiva do campo sensível. O dado, sendo já uma entidade
da linguagem que, por sua vez, impõe silêncio ao mundo ("a clareza substitui o rumor"),
precisa ser escutado como um "dado fugidio". Para Serres, somente a orelha conhece esse
afastamento em relação ao signo (SERRES, 2001).
cruzamento de referências filosóficas do mundo vivido, o tempo e o espaço, foram relacionados por Nietzsche
aos "modos do receio". O primeiro, que diz respeito à dinâmica própria da ansiedade, e o segundo,
correlacionado à sensação da angústia. A ansiedade e a angústia, continua ele, cada uma a seu modo, estariam
ligadas ou presidiriam a percepção musical. O pólo da ansiedade fala de algo como um tipo de sofrimento dos
efeitos da passagem do tempo sobre os nossos estados sensíveis. Esta escuta literalmente anseia pelo término
de uma espera. O filósofo atribui a percepção de um tempo teleológico à prática da música ocidental, se
comparado com o chamado "tempo contemplativo", cíclico, próprio da escuta mais cultivada na história
oriental. Nietzsche afirma, deste modo, que o sentido temporal que se expressa como ansiedade só se exprime
como que cadências episódicas que dramatizam o fluxo contínuo sensível em um determinado rumo. A ânsia
na escuta denota o desejo constante de renovação, de ultrapassagem, de não-conformidade com o presente, de
uma não aceitação do instante, querendo, por conseguinte, detê-lo ou acelerá-lo. Já o modo de escuta ligado à
angústia, por sua vez, parece mais se aproximar de experiências percepcionais nas quais prevalece uma
dinâmica espacial, a um senso e a uma imagem que se plasmam ao som e ao seu ambiente sensível. Como
assinala Rodolfo Caesar, a angústia de se estar dentro de um espaço menor, é uma situação que pede para ser
musicalmente "resolvida" através de uma abertura espacial. Tome-se, como sentido de movimento
engendrado por uma escuta relacionada à sensação espacial, a experiência musical, quando à percepção se
oferece, por exemplo, o conforto de uma reverberação de espaços mais ampliados. (NIETZSCHE, apud
CAESAR, 2004)
10
Acusmática, termo pitagórico, designa um modo de escutar que se esforça por evitar uma realidade visual
na escuta. A escuta acusmática se refere à uma escuta despida de quaisquer imagens narrativas, gestualidades
visualmente performáticas etc..
38
Quando, em seu Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche nos propunha "filosofar com o martelo",
era ao instrumento da medicina, àquele que se usava para auscultar o corpo de um paciente,
que o filósofo se referia. É por esta figura que Nietzsche evoca a necessidade de se acolher
um modo de "escutar no pensamento", para que se possa ao menos tentar capturar
intensidades e nuances que escapam ao domínio hegemônico do olhar abstrato. De fato, os
encontros com o mundo auditivo, por processos que sequer conhecemos, nos forçam, de
algum modo, a pensar, a imaginar
11
.
Não nos parece que se trata de uma frase de efeito quando Deleuze nos diz que a música
está imediatamente ligada ao pensamento e que os conceitos são verdadeiras canções em
filosofia
12
. É que, de acordo com o filósofo:
há uma música no pensamento, e inversamente, a música faz com que vejamos
algumas coisas estranhas, cores e sensaçõe
39
antes, voltada para uma outra apreensão da realidade da música, como se esta fosse uma
fábrica de tempos que recriasse diferentes ritmos, que levasse à sensação uma
transritmicidade do Tempo. Para tanto, é preciso antes problematizar a própria imagem que
o Tempo assume no pensamento. Uma tarefa como esta precisaria antes redimensionar
alguns pontos de partida, na busca de experimentar outros meios conceituais para re-
imaginar a escuta, não mais como um fenômeno ligado ao som, mas sim como uma
paradoxal composição de sensações do Tempo.
Para Nietzsche e para alguns de seus epígonos, o pensamento ocidental deveria se investir
de poderes libertários para despir-se de suas imagens abstratas, encorajando a proposta de
um pensamento destituído de imagem. Para tanto, ele prioriza a questão da impensável
física de forças que faz o pensamento viver e se criar. Em muitos de seus princípios, este
estudo se assume como uma experimentação que tateia certas linhas do pensamento de
Gilles Deleuze, principalmente as que transitam pelos âmbitos da música e do próprio
pensamento. O autor adota a defesa de um pensamento que esteja em imediata correlação,
não com uma forma, seja do mundo ou do sujeito, mas sim com forças, com potências não-
formadas de um cosmos de fluxos energéticos. Afinal, há movimentos ínfimos e
pequeninas vibrações dos quais se elevam eventos impensáveis à realidade do pensar.
Por essa razão, o pensamento só pode existir na condição de um investimento de
imaginação criativa, de encontrar um princípio de criatividade ao pensamento, que
promova um modo de se pensar criativamente. E tal vontade criativa somente se dará ao se
fugir do pensamento como mero exercício da recognição: isto significa "problematizar".
Pensar, enfim, é criar, porque é o que poderá fazer nascer um problema que ainda não
existe, ao invés de simplesmente representar o que já está dado
14
. A partir das idéias de
Henri Bergson (1999), o pensamento terá uma chance de ultrapassar o pensamento
representacional e passará a investir na recriação de um mundo inteiramente
"problemático". Pensar, segundo Bergson, não é resolver uma questão com respostas, mas
14
Para Deleuze, é preciso exercer, antes de tudo, o pensar em um nexo com o impensável, de dar pensamento
a um impensado, de tentar atingir um plano paradoxal que não pode ser pensado e que todavia nos dá o que
pensar, um não pensável que nos força a pensar (DELEUZE, 2003).
40
experimentar, criar um campo de problemas. Problemas esses que não param, contudo, de
deslocar-se e de disfarçarem-se a si mesmos
15
. Esta iniciativa faz do pensar a escuta não
como uma questão com respostas, mas como um campo problemático, ou seja, é preciso
tratar a questão da escuta como um campo de problemas.
1.2 – O Tempo das hecceidades: diferença e repetição na imagem da música
"Fervilha, sob a nossa realidade percebida, na espessura
de uma matéria efervescente, radiante, múltipla,
inquieta, marulhosa, espumante, uma vida engendrada
por miríades de mudanças ínfimas."
Tarde
Vale perseverar, neste momento da discussão, recordando que Gabriel Tarde (2003) se
preocupava muito mais com a ação recíproca entre os elementos do que com a sua natureza
íntima, essencial. É que para ele não havia nada no universo senão conexões que se
compõem e que também nunca uma coisa seria separável de suas acoplagens com o mundo.
A sua imagem
41
movimentos não-identificáveis, que nos fazem e que nos afetam. Individualizar é operar,
por meio de um recorte imagético abstrato, unidades materiais formadas por suas supostas
características e naturezas. O pensamento das hecceidades, ao contrário, pressupõe a
"individuação" (e não individualização), que evita olhar para as coisas e tenta imaginar
ritmos, fluxos, cópulas, velocidades, transiências. A necessidade de se pensar em termos de
hecceidade é que, antes de se deter na matéria e na forma, prefere deslizar entre estas,
imaginando o mundo como um amplexo maquínico de ritmos heterogêneos
16
.
Parece, todavia, que o nosso mundo percebido nos é dado "fenomenalmente", numa
multitude de elementos, de formas e de relações. Na realidade do presente vivido, as coisas
percebidas, lembradas e abstraídas encobrem, contudo, um ilimitado e irrefreável
movimento que se compõe por céleres dinamismos, irredutíveis aos recortes
fenomenológicos. Mas eis que a evidência sensitiva contradiz, aparentemente, esta
concepção das hecceidades, pois vemos efetivamente coisas, distinguimo-nos como uma
coisa em relação a outras. Todo o real se move, já o dissemos, por meio da força
onipresente, una e múltipla, que é o Tempo. Podemos aqui descrevê-lo como um jogo de
ondas de força, acumulando-se num dado ponto enquanto se afrouxam noutro, do mais
ínfimo ao mais gigantesco movimento. Ou seja, a realidade do Tempo possui uma dinâmica
que não se parece, em nada, com a realidade do nosso mundo espacial, da percepção e da
linguagem. Enquanto percebemos formas e exprimimos estados vividos, um mar de forças
agitadas por tempestades moleculares, em perene fluxo-refluxo, encavala ritmos que nem
sequer sentimos. Tamanho acoplamento de ritmos se torna sensível apenas quando ganham
velocidades que nosso organismo – ele mesmo uma síntese de ritmos variados - alcança
apreender como duração perceptiva, por meio de várias performances de memória.
Buscamos também um amparo no "pensamento da imanência", afinado às hecceidades de
Scott e defendido por autores como Nietzsche, Bergson, Blanchot, Deleuze e Guattari.
Foram principalmente eles que ousaram investir na apreensão, pela experimentação do
16
Deleuze nos afirma a necessidade dessa imagem no pensamento porque: "não amamos alguém
separadamente das paisagens, das circunstâncias de toda natureza por ele englobadas" (DELEUZE, 2002, p.
128).
42
pensamento, de uma face intensiva da realidade, de sua transiência íntima, heterogênea e
imprevisivelmente criativa. Já temos visto que, enquanto o pensamento transcendental
escreve sobre coisas, objetos, signos ou fenômenos, o pensamento a favor da imanência
pretende conceber imagens que nos remetam ao problema das intensidades, do movimento,
dos fluxos, ritmos e afetos do Tempo.
Um dos pontos mais delicados na demonstração do pensamento da imanência, da
individuação ou das hecceidades na escuta é apontar que, para a imagem conceitual da
música, o pensamento transcendental nos mantém irremediavelmente retidos nas imagens
individualizadas do som, do fenômeno sonoro, das qualidades sonoras etc.., com suas
características formais, tais como abstrações matemáticas, intervalos, métricas, durações
extensivas, estruturas, simetrias entre partes, figuras, cadências, objetos musicais, imagens
psicológicas (afecções), pathos, gestos, narrativas, biografias, símbolismos, subjetividade
etc.. Isso tudo pode ocupar o rol de preocupações poéticas de muitos compositores, mas não
é o que realmente interessa ao mundo das sensações, não é o que nos afeta, não é o real
poder da música. Isto porque será somente um acavalamento singular de sensações que
poderá realizá-la diferente, paradoxal e criativamente.
A realidade que apreendemos perceptivamente é, em suma, o resultado de uma
complexidade infinita: sob uma aparente uniformidade, se encontra uma diversidade. Trata-
se, por fim, de uma agitação, de uma realidade inquieta que subsiste/insiste por trás da
percepção do vivido, tal como uma intempestividade, uma realidade feita de tempos
"invivíveis". O que nos parece imóvel, na realidade, está prenhe, repleto de movimentos
incessantes, infinitos, imanentes; de ritmos, continuamente dobrados uns nos outros.
Recorremos às idéias de Tarde, uma vez que ele assinala que até mesmo os átomos, última
unidade elementar que se acreditava ser homogênea, estável, se revela múltipla, e cuja
diversidade interna executa movimentos de grande imprevisibilidade. As suas palavras nos
explicam melhor: "Sob a calma aparência que a percepção nos dá, um turbilhão se diz, num
ritmo vibratório, algo infinitamente complicado." (TARDE, 2003, p.11) Como antecipara o
autor, a realidade linear e seqüencial da nossa consciência tem como origem, entretanto,
43
uma singularidade prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível de
movimentos múltiplos, ao mesmo tempo, distintos e semelhantes: paradoxais (TARDE:
2003)
17
.
Gabriel Tarde (2003) supunha ser toda a realidade animada por uma diferenciação
imanente. O autor também sinalizava a existência de uma "diferença universal", como
princípio e fim de todos os movimentos. Tarde (2003, p. 77) antecipou a imagem desse
transbordamento de variações, em insensíveis transições que maquinam a realidade: "Há
por todos os lados uma exuberante riqueza de variações e de modulações inesperadas,
multidões num movimento turbilhonar, caótico, capaz de operar mudanças imprevisíveis
num sistema qualquer" (TARDE, 2003, p. 94). A tais forças ignotas, o autor chama de
"agentes do mundo": "...nascidos diversos, eles tendem a se diversificar; é sua natureza que
o exige". Logo depois, ele se pergunta: "como esse magnífico florescer de variedades
rejuvenescem o universo, a todo momento, nessa série de revoluções inesperadas que o
transfiguram?" (TARDE, 2003, p. 97). A diferenciação, para Tarde, trata-se de uma
mudança íntima, de um fator livre, incontrolado, imprevisível e, por isso mesmo, criativo.
Em sua expressão, "existir é diferir", querendo com isso dizer que a diferença é que funda
toda a existência
18
.
Apenas para relembrar o leitor: de acordo com o pensamento de Deleuze, o Tempo, tal
como um tear imanente, é a força que urde ritmos diferentes, movimentos diversos, numa
ubíqua diferenciação íntima das coisas. Uma indispensável articulação conceitual que
17
Van Gogh sintetiza: "...animada não sei por que comoção íntima..." (VAN GOGH, 2002, p. 60)
18
Deleuze distingue, neste ponto, dois modos do Tempo, de naturezas diferentes: o primeiro é o "Tempo de
Áion", tempo não-pulsado, livre, heterogêneo, múltiplo, sem sentido, a-histórico, não mensurável, que vibra
em vários ritmos. É a idéia do Tempo que, apesar de plástico, não tem imagens formadas. Ele flutua, cruza, se
choca, encontra, se perde, rodopia, espirala, enverga, estica, acelera, dispara, salta etc.. Aion abriga a imagem
de um tempo ilimitado, do devir que se divide, ao infinito, em passado e em futuro, que não pára de bifurcar,
paradoxal e simultaneamente, o instante, num já-aí e num ainda-não-aí, num tarde-demais e num cedo-
demais: o que acaba de passar e o que vai se passar, o ainda por vir e o já chegado. A este Tempo,
turbilhonado de velocidades e encontros os mais improváveis, Deleuze contrasta o tempo de Cronos, tempo
representado pelo relógio, pela percepção, tempo pulsado, estriado, submetido a figuras espacializadas, é
quantificado, extenso, metrificado, pelos usos e pelo sentido estável, coletivizado (DELEUZE, apud
ZOURABITCHVILI, 2004).
44
Gilles Deleuze concebeu, várias décadas depois, para estudar esta natureza intensiva co-
implicada à realidade extensa, foi apresentada em sua tese Diferença e Repetição. O autor
se prestou a redefinir a concepção ligada ao princípio destas duas palavras-chaves na
filosofia. Em primeiro lugar, é importante entender por quais princípios Deleuze conseguiu
designar o sentido que a palavra "diferença" deve comportar em seu plano de pensamento.
O autor começa, como H. Bergson já o fizera, assinalando os entraves que o conhecido
paradigma dialético, que concebe a oposição fundamental entre o ente (a matéria
conformada) e o que não coincide com ele. O próprio Tarde também já havia se
perguntado: "Como pensar a diferença, se deixamos a nossa âncora presa a uma
identidade?" (TARDE, 2003, p. 12).
Deleuze ainda assinala que, a cada percepção de que algo mudou ao nosso redor, ou com o
nosso corpo, nascem - ou renascem - diferenciações em diversos níveis. Estes modos pelos
quais a diferença se representa são apenas superficiais, espaciais, qualitativas, extensivas,
formais. São a elas que Deleuze chama de "diferenças de primeiro tipo". Essa maneira de
recortar e de destacar as coisas do mundo como unidades que se diferem e se assemelham
por pressupostos da forma e do nome, talvez por isso, também míope a movimentos auto-
diferenciantes, puramente intensivos, não-formados e inomináveis. Deleuze argumenta que,
quando se lê a "diferença" como uma oposição, como resultados sumários ou como
processos simplificados de contradição, ela já foi privada de sua espessura própria, de sua
densidade, dinâmica e perplexa. A diferenciação é, para o seu pensamento, tudo o que
freme em intensidade, uma vez que toda intensidade é, por definição, "diferencial". A
diferença, porém, que interessa a Deleuze, é uma outra: é a diferença em si, o desigual em
si.
O que vale para a diferença, na sua imagem imanente, vale para a repetição, como faces
entre as duas forças, co-genéticas do Tempo
19
. Na crença do senso comum, quando se diz
que algo se repete, é o mesmo que retomar, por um processo mnemônico, perceptual,
19
Gabriel Tarde chegou anteriormente a definir três principais formas de repetição universal: a ondulação, a
geração e a imitação. A primeira, seria a da radiação vibratória, a segunda, a da expansão geradora, e a
terceira, a do contágio do exemplo (TARDE, 2003).
45
lingüístico e recognitivo, a semelhança de algo que só pode ser lembrado, percebido,
nomeado e reconhecido. Repetir é, desta maneira, submeter-se ao passado fenomenológico
e, daí notar similaridades, identidades, analogias e diferenciações de gênero, espécie,
família etc.. Repete-se tal como se recomeça, mas tal reinício se dá num presente tomado
como um instante do vivido, de um estado de coisas episódico, de percepção e de
lembrança, que só vivem na condição de se isolarem a matéria e a forma. Este é, enfim, um
regime de repetições nuas, mecânicas e estereotipadas: a imagem de uma repetição da
ordem serial, da sucessão, da extensão, do encadeamento, da seqüência etc.. A repetição
percebida, acredita o autor, é apenas um tipo de eco de outras vibrações, secretas, de
dinamismos intensivos que a animam
20
.
É que, para o pensamento deleuziano, tal como há dois tipos de diferenças, há também dois
modos de repetição. Uma afirmação de Silvio Ferraz nos leva a distinguir o que Deleuze
chama de "repetição-medida" e de "repetição-ritmo". A primeira seria apenas a aparência
ou o efeito abstrato da segunda, quer dizer, a medida serviria apenas como o envoltório de
outros ritmos. Esta outra repetição é modulatória, incorporal, coalescente, de coexistência,
de simultaneidade, de sínteses temporais. Em outras palavras: o modo transiente da
repetição imanente do Tempo diferencia-se em si mesmo, em sua performance de
"repetição diferenciante". Assim pensada, a repetição é a potência afirmativa da diferença.
Já está aqui subentendido que um dos nossos principais interesses é o de perscrutar o
problema da diferença, da repetição e das imagens do Tempo na realidade da escuta.
Deleuze também nos diz, acertadamente, que só podemos viver certas experiências ao
modo da repetição representada, como se ela fosse um ponto de acomodação. Isso é o
mesmo que dizer na prática da criação: a repetição é a condição sob a qual alguma coisa de
novo é efetivamente produzida. Nos domínios da composição, portanto, só se produz
alguma coisa de novo, na condição prévia de algo se repetir. Esta idéia deve ser claramente
exposta: a de que o criador deve procurar sempre fazer, de qualquer repetição, algo novo,
20
Uma noção fundamental nesta questão virá do conceito de intensidade: uma mudança de intensidade é a
condição de tudo aquilo que aparece para os nossos sentidos, a razão mesma do que é a realidade sensível.
46
apresentando modos criativos de a repetição se diferenciar ou de a diferença se repetir. É
preciso, deste modo, encontrar na composição singularidades, diferenças naquilo que
aparentemente se repete. Deste modo, ao servir-se das repetições do hábito e da memória, o
compositor pode fazer delas apenas estágios, contanto que ele as deixe pelo caminho. Esta é
uma das mais importantes idéias que sinalizam os passos do nosso trabalho: a de que o
compositor, ao criar, faz da mera repetição, uma outra repetição singular, esta como afeto
diferenciante da face futura do presente. É na intervenção nas repetições nuas, meramente
perceptivas, que o compositor, tecendo outros ritmos, a partir dessas reiterações triviais,
traz à tona ritmos sutilmente diferenciantes, fluxos de sensações diferentes.
A esse respeito, voltemos a Nietzsche, ao lembrar que, quando ele passou a recusar a noção
teleológica e transcendental do Tempo no pensamento ocidental, procurou encontrar um
outro modo de pensá-lo, sem a ajuda de um fundamento metafísico, de uma causa primeira,
de uma ontologia. Ele encontrou uma imagem conceitual interessante na sua recriação do
"eterno retorno", expressão dos estóicos e que nada tinha a ver com a circularidade formal
nem com ciclicalidades extensivas, mas que dizia respeito a uma potência, intensiva, que só
viria ao eterno diferente retornar
21
.
É forçoso aceitar que, a partir do modo como Nietzsche re-imagina o movimento, a única
coisa que se repete, em absoluto, é a própria força de repetição. Absolutamente nada se
repete, somente essa força modulatória que afirma a diferença. Ele nos dizia que tudo o que
muda e se move está no Tempo, mas que o Tempo, ele mesmo, não muda. O Tempo, assim
pensado, será uma paradoxal força/forma "imutável" da mudança: o modo invariável da
variação eterna, aquilo que só retorna para trazer o diferente (NIETZSCHE apud
DELEUZE, 1997)
22
.
21
O "eterno retorno", se posto a partir de sua expressão fenomenológica, nos envia a uma imagem
espacializada do tempo e de movimentos meramente coordenáveis. O eterno retorno, por esta maneira de
pensá-lo, pode produzir em nós uma imagem de simples repetição do Mesmo, de volta ao ponto inicial, por
causa do sentido comum que damos às palavras retorno e eternidade.
22
O eterno retorno supõe, desse modo, um centro que será descentrado e re-centrado, a cada nova modulação,
a cada vibração: esse é o afeto do devir.
47
Nietzsche pressupõe que a repetição da desigualdade é o que faz retornar, não os elementos
ou as imagens fenomenais, mas a potência mesma do futuro, os afetos que nos compõem.
(NIETZSCHE apud DELEUZE, 1988). A dinâmica do eterno retorno é um modo de
repetição virginal, que sempre recomeça, mas sem jamais ter começado nem acabado. Ele é
o infinito do movimento, como um retorno sempre singular. A repetição, no eterno retorno,
vale reiterar, não é qualitativa nem extensiva, mas sim intensiva: são diferenças de
diferenças, que se repercutem indefinidamente, nas sutilezas convulsas, incorpóreas,
impalpáveis, em que uma virtualidade se transmuda, ritmicamente, em uma substância
corpórea, atual. Esta, por sua vez, será apenas uma estabilização provisória desses ritmos,
prenhes de outras virtualidades diferenciantes.
1.3 – O virtual, a virtualidade e o devir na escuta
"...interseciono a realidade, já despida da matéria,
com um imaterial absoluto."
Fernando Pessoa
Existe uma palavra que, se pensada cautelosamente, poderá nos auxiliar em nossa
especulação teórica sobre a imagem do Tempo na escuta: esta será a idéia do "virtual". Este
conceito poderá municiar o pensamento para lidar com uma enorme gama de movimentos,
imagens, tempos e ritmos: os virtuais são potências inomináveis que perfazem a própria
plenitude do real. Este momento do texto se dedica, por esta razão, a estudar o papel da
"realidade do virtual" na escuta musical.
Mas afinal, de qual idéia de virtual estamos falando? Como se desenvolveu, historicamente,
esta imagem conceitual? É sabido que, no século VI a. C., Aristóteles postulou que o ser
não é apenas o que já existe, em ato. O ser também é o que "pode ser", a virtude, uma
48
potência para existir. O ponto de partida de seu conceito de "virtual" foi logo tratar de
relacionar três elementos fundamentais em um mundo que ele dizia ser múltiplo e mutável:
a potência, o ato e o movimento. Toda a dinâmica vital, todo o movimento do mundo, se
faz assim, na passagem da potência ao ato, da realidade como virtude à realidade como ato,
sensível, em desdobramentos recíprocos. Em suma: a passagem entre a potência e o ato é
que vai constituindo o movimento
23
. O esquema do virtual aristotélico, no entanto, buscava
distinguir, na gestação contínua da realidade, uma relação dialógica entre "real" e
"possível". Sob a rubrica de uma tensão dialética, Aristóteles instituiu uma equivalência
entre atual (ato) = real; e virtual (força) = irreal ou ilusório. Significa dizer que, todo e
qualquer movimento do mundo trata-se, deste modo, de um tipo de jogo agonístico entre o
par que ele chama de "dynamis e energeia".
A lógica do sistema aristotélico obedece, no entanto, ao princípio fenomenológico da
identidade, da recognição e da não-contradição. No seu pensamento, ele acreditava que não
seria possível, por exemplo, existir, ao mesmo tempo, "A" e "não-A". Isso porque, sob o
princípio negativo da "contradição", algo não pode "ser" e "não-ser", ao mesmo tempo -
querendo dizer que, entre várias possibilidades, apenas uma seria realizada, em cada
momento.
O conceito de virtual assim vem trafegando, dos gregos antigos ao pensamento escolástico
e à teologia, na Idade Média. Depois ele foi abordado pela filosofia e pela ciência modernas
(especialmente pela física óptica). Parcialmente reformulado, aqui e ali, ora como uma
adjetivação, ora como uma virtude, ou, como se dá na lógica dos fluxos binários de zeros e
uns, na condição de uma realidade de dígitos que erigem uma incrível realidade de formas,
informações, movimentos analógicos e simulacrais em nosso desktop, por exemplo. As
combinações numéricas ganharam, na performance digital, o nome de virtuais, na condição
23
Aristóteles concebe, enfim, vários movimentos, como atualizações das virtualidades de diferentes
naturezas, interdependentes. O princípio que vigora na doutrina do ato-potência da metafísica aristotélica,
acha-se estreitamente vinculada a uma concepção de causalidade. Por tal premissa, cada ser atualiza suas
virtualidades, devido à ação de outro ser que, possuindo-as em ato, funciona como motor daquela
transformação (ARISTÓTELES apud PESSANHA, 1991).
49
de fluxos velocíssimos que são capazes de realizar uma atualização sensível de formas, de
imagens que não se parecem com os algoritmos que as urdiram. Mas eis que a palavra
"virtual" tornou-se um rótulo sabidamente oportunista do marketing da web e do mercado
da tecnologia informática.
É partindo desde ponto que vale, de ora em diante, pensar a diferença radical de concepção
que Henri Bergson deu a essa clássica imagem do virtual. Bergson decidiu abraçar,
diferentemente, essa difícil idéia de virtual. Para tanto, ele precisou repensar e questionar a
imagem que lhe dava o pensamento clássico. Mas foi preciso que o fizesse a partir de uma
outra entrada conceitual, porque, quando se reduz o virtual a um simples "possível", as
relações virtuais/atuais passam a ter uma forma "negativa", de uma polaridade entre
espaços vazios. Bergson tomou o virtual em sua natureza "paradoxal": a imagem conceitual
de uma realidade que passa a "insistir", para aquém dos tempos da nossa existência
sensível, da percepção ou da cognição ("existir"). Guiado por esta idéia, o autor procurou
conceber uma espécie de genealogia do virtual e do atual, como faces processuais da
realidade
24
. Com Bergson, não há mais dúvidas quanto a isso, mudou-se a definição
conceitual do virtual, passando-se do "germe aristotélico" e da virtude potencial dialógica, à
multiplicidade processual, paradoxal e criativa do Tempo.
A partir do que Bergson diz, o pensamento deve construir, para imaginar o paradoxo
virtual-atual, um mundo inteiramente "problemático", uma realidade criada por co-
implicações irrequietas que se resolvem e se problematizam, simultaneamente. O virtual é,
para Bergson, a origem não manifesta de tudo, o dinamismo de tempos imperceptíveis para
nós
25
. O virtual, tal como Bergson o definiu, é um evento singular incorporal e subsistente
24
Além disso, há uma outra metáfora fundamental ligada à imagem do virtual tecnológico: a "energia". O
virtual não é um potencial físico, relativo a fenômenos energéticos. O virtual não é, portanto, da ordem da
energia, pois esta, ao contrio, se “entropiza”.
25
Vale citar aqui uma idéia de Merleau-Ponty que irá mais tarde ecoar com a importância do virtual atribuída
por Bergson. Os aspectos inatuais das coisas não pressupõem o homem, é justamente o contrário: ele é quem
se faz da carne deles. Cf. em Visível e Invisível: "O nosso mundo não é, em seu próprio tecido, feito de
atualidade." (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 210)
50
a tudo aquilo que existe para as nossas apreensões sensitivas
26
. Daí que a sua proposta irá
investir em modos de se pensarem os ritmos intensivos, as forças informais e as
velocidades absolutas que se implicam e se aninham por entre as durações extensivas da
percepção humana. A idéia de "intensidade" irá nortear o pensamento do virtual.
Expliquemos, brevemente, este ponto: as intensidades são parte de um processo oscilatório.
A sua dinâmica revela, por sua vez, o mundo vital não-sensível e ainda sem nome, num
processo complexo de velocidades imateriais. Essas velocidades absolutas que geram
ritmos ainda incorporais, são o que chamaremos de "virtuais". Os ritmos intensivos são,
certamente, virtualidades, ainda insensíveis para os tempos da nossa já pré-condicionada
percepção. Significa dizer que só conhecemos a realidade das intensidades quando ela já se
encontra desenvolvida num Tempo "extenso", por isso, já recoberto por signos e por
qualidades formais etc..
Reiterando de um outro modo: os ritmos intensivos nos "trabalham", muito antes de nos
darmos conta deles.
Conclui-se com isso que, quando escutamos, somos afetados por um
mundo de virtualidades insensíveis, silenciosas, por uma realidade que é primordialmente
vibratória, por fluxos heterogêneos compostos tanto de ritmos intensivos e não
mensuráveis, quanto de ritmos extensos, quer dizer, percebidos e qualificados como
matérias formadas no espaço-tempo. Isso quer dizer que os virtuais agem e se encarnam no
mundo sensível, mas são silenciosos, jamais dados na experiência. O virtual possui, no
entanto, uma plena realidade e é, justamente, a partir dela que toda a existência sensível é
produzida
27
.
26
O virtual se torna um conceito que nos leva a pensar o mundo não como matéria formada, mas sim como
diferenciação, paradoxal e imanente, de que se faz o mundo. Este é um processo complexo de dinamismos
virtuais que se atualizam na realidade dos nossos tempos "dramáticos". Por isso, os nossos verdadeiros
acontecimentos não são os nossos dramas. O virtual foi uma vez definido por Fernando Pessoa como mais
rápido que o tempo que vemos viver (PESSOA, 1998).
27
Para o pensamento de Bergson, a grande dificuldade para se imaginar o tempo do virtual advém da vetusta
representação que se faz da própria imagem abstrata da "duração". Porque o movimento, quando percebido
pelos nossos sentidos, já é também o signo palpável de uma duração homogênea e mensurável. Só o
pensamento do virtual pode criar uma imagem da duração "pura", ou como diria Bergson, da duração em sua
pureza original. A realidade do virtual, ou do devir, para o autor, é a coexistência de durações muito
51
Quando seus ritmos – as virtualidades – perseveram e se consolidam para as nossas
sensações, eles se tornam um ato, se atualizam materialmente, como a realidade sensível
que experienciamos. Dito de outra maneira: não há experiência do virtual como tal, uma
vez que ele não é dado, e sequer tem uma existência psicológica. Já temos visto que, por
natureza, o virtual é incaptável ao horizonte da realidade vivida. É que, por definição, os
"problemas" que perfazem o virtual escapam à consciência.
Em resumo, tudo só existe/insiste como paradoxo, tal como se concebe a importante
imagem do devir: sensível e insensível, forma e força, passado e futuro, ritmo e arritmia
etc.., tudo ao mesmo tempo. Este é o paradoxal mundo do virtual, um universo não
abarcável pelo conceito abstrato e que reside nas regiões de existência "fora" do contato de
um sujeito percipiente com uma realidade objetiva.
A concepção bergsoniana de virtual foi assimilada e burilada por Deleuze, que se manteve,
por sua vez, próxima aos preceitos de Bergson. A realidade do virtual supõe, refinado pelo
pensar deleuziano, um plano imenso de linhas de forças que operam nos mínimos eventos,
no infinitesimal, nos mais ínfimos movimentos da realidade. Esse processo de forças
informuladas, "incorporais", é um fluxo de velocidades imateriais e inexpressas
28
. Para a
concepção ulterior de Deleuze (1974), tudo o que existe em nossa vida sensível, em nossos
tempos dramáticos, é apenas o resultado de composições de íntimas modulações, mas
somente em intensidade, redistribuindo novos acoplamentos de vários ritmos de naturezas
diferentes
29
. O virtual é a força auto-diferenciante que, em seu movimento, põe em
diferentes, superiores e inferiores à nossa, e todas comunicantes. O que dá espessura representável à "pura
duração" é a nossa memória. Uma vez "educada", ela passa a condensar os momentos múltiplos de duração,
em instantes perceptivos.
28
Os movimentos do virtual, ainda é preciso dizer, não possuem um destino "teleológico", não progridem,
não têm um sentido prévio. A maneira pela qual Deleuze se volta para explicar a natureza do virtual é a de
pensá-lo como um "problema" a resolver, como uma "questão" que persiste ou como uma "tarefa" a cumprir.
O movimento virtual é, desse modo, uma força de procura, um devir problematizante, mas é um problema que
não pára de deslocar-se e de disfarçar-se a si mesmo. O virtual é um problema continuamente a se resolver,
um ilimitado dinamismo alógico. Isso quer dizer que o real é a coalescência de virtual e de atual: tudo na
natureza é feito dessa coexistência. Diz-se, todavia, que o virtual fornece a "coisa", mas não se assemelha, em
absoluto, à "coisa" produzida por ele (DELEUZE, 2002).
52
comunicação a simultaneidade, a contemporaneidade ou a coexistência de todas as séries
heterogêneas, convergentes e divergentes do Tempo, no encontro de infinitos amplexos e
dispersões
30
.
No intento de reimaginar a escuta musical por esta via das virtualidades, recuperamos aqui
outra idéia deleuziana, recriada a partir da antiga concepção do "vir-a-ser", defendida por
alguns pré-socráticos e, no século XIX, retomada por Bergson: a imagem do Tempo do
devir. Esta se opõe radicalmente à realidade temporal-espacial da percepção, do estado
vivido, do fenômeno, da matéria formada, da convencional série tridimensional passado-
presente-futuro. Assim, o presente extenso, como um estado vivido, só pode existir na
condição de uma sucessão de tempos encadeados, como instantes estendidos sobre a
percepção, por isso já qualificados e figurados numa imagem espacializada do Tempo. A
concepção abstrata do presente vivido é, dito de outro modo, o recorte de um instante, que
se encaixa entre outras dimensões, a do passado e do futuro. O devir, ao contrário, não é um
instante, não tem espessura nem extensão e não suporta a separação arbitrária do antes e do
depois, do passado e do futuro, como se estes fossem tempos separados.
O devir, em sua paradoxal movência, se furta a tal apreensão do presente vivido, não tem
uma "história" nem se dramatiza. O Tempo do devir apresenta assim uma outra imagem do
presente: um condensado rítmico acoplando, num mesmo movimento, a face conservada do
29
Resumindo: há uma ambigüidade constitutiva do relacionamento entre atual e virtual, uma vez que todo
objeto é virtual e atual, a um só tempo. Eles são distintos, mas indiscerníveis, como duas faces da mesma
imagem. Noutras palavras, são duas dinâmicas inversas e complementares da existência: a atualização de
formas e a involução – e não evolução - que destina o mundo a redistribuições incessantes. É nesse
deslocamento virtual simultâneo, em função do qual asries, atualizadas, se desenvolvem, que suas linhas de
força podem tanto se perder quanto podem se intensificar. A "máquina do devir" engendra durações que se
conservam enquanto novas durações ganham impulso ou intensidades que ainda persistem enquanto outras
intensidades ganham embalo e ritmo. Essa implicação complexa entre dinamismos virtuais e atuais é a própria
criatividade inovadora da realidade. O virtual se atualiza por criação. Ele só cria virtualidades, intensidades e,
por modulações de vários ritmos, ele se nos apresenta, como ato, por qualidades e formas, a partir de forças
encontrantes (ZOURABITCHVILI, 2004).
30
Essa performance paradoxal de interfaces entre o virtual e o atual, gerando novos ritmos em convibrações
que se consolidam, e sempre porvindo, mesmo que não sejam para nós espetáculos sem espectador. Esse
mundo das intensidades revela o mundo vital não-sensível que, num processo complexo de dinamismos, se
tornam ato, se atualizam em nossa realidade humana dos sentidos e da linguagem, ou seja, o mundo extenso e
qualitativo da percepção e que fazem birfurcar novas virtualidades.
53
passado imediato e a face interveniente do futuro iminente
31
. A realidade temporal do devir
abarca o já chegado e o não-ainda, tudo junto. Por fim, o que chamamos de presente é
apenas uma imagem condensada por devires que, em sua acoplagem rítmica, perseveram e
se atualizam em tempos extensivos.
Para prosseguir, a idéia do "Tempo do devir" é a de um condensado de acoplamentos
rítmicos em que passados e futuros insistem no presente. Quando os tempos cronológicos
passam e levam o instante e percebido, haverá sempre uma trepidação rítmica, sem
nenhuma progressão ou destino prévios, sem início e sem fim. O devir aglutina um
composto de movimentos e de durações irredutíveis ao presente da percepção. O trabalho
incessante do devir, ao enxertar ritmos em outros ritmos, revela a paradoxal a-topia ubíqua
de um Tempo acrônico.
Bergson e Deleuze apostaram, cada um a seu modo, no pensamento do devir como o modo
imanente das mudanças potenciais do Tempo, na sua atividade criadora, anônima,
impalpável, imaterial. É aí que convocamos novamente a subsistência, na escuta, dos
ritmos não-humanos, inorgânicos, insensíveis, incorporais, silenciosos que se "resolvem" e
se co-implicam como música
32
.
A performance criadora do virtual começa quando ele se conserva como ritmo, se tornando
"virtualidade". A virtualidade, afetada por outras tantas virtualidades, ganha uma duração
material, atual, extensiva, quer dizer, ganha uma realidade para os tempos do sensível. O
virtual pode então ser tomado como o agente de uma comunicação particular que se dá
entre duas séries básicas de vibrações. Nesse encontro, se provoca alguma reverberação
31
Na expressão de Bergson o presente se traduz no "inapreensível avanço do passado a roer o futuro"
(BERGSON, 1999, p. 176).
32
Cf. em Mil Platôs IV, quando os autores dizem que o conteúdo musical, por exemplo, é percorrido por
devires, que ele tende para o devir-molecular, numa espécie de "marulho cósmico", onde o inaudível se faz
ouvir e o imperceptível aparece como tal. Não é mais, por exemplo, cantor ou cantora que cantam, mas
moléculas que nos atravessam e que nos transmutam em devires-vocais. (DELEUZE & GUATTARI, 2005)
Os autores insistiram na importância de descobrirmos os nossos devires, de diagnosticarmos os devires que
nos atravessam. O devir, portanto, compõe-se da contínua e paradoxal transiência dos ritmos humanos e dos
não-humanos (DELEUZE & GUATTARI, 1997).
54
que vai, por sua vez, reagir com outras, gerando ritmos, co-ritmando-se, adquirindo uma
espécie de autopoiesis, de auto-movimento, transrítmico, intensificando a sua potência
móbil: a virtualidade.
Concluindo, o que existe para a nossa percepção pode ser a música, uma nota que se
estende, um acorde que é atravessado por um fraseado, jogos de ritmos e timbres, a fluírem
para a nossa audição, mas o que insiste nela e nos afeta são os ritmos intensivos, as
virtualidades. Antes de se perguntar “o que é que eu escuto?” ou "o que existe na escuta?",
é preciso se voltar primeiro para "o que subsiste – ou insiste- na escuta?". Escutar, enfim, é
algo como amalgamar um fluxo de ritmos que existem/insistem: melodias, pulsações,
harmonizações, idéias, paisagens, afecções etc.. são trespassadas por velocidades, ritmos
incorporais, afetos, modulações de intensidade, sensações, imagens-tempo. A música, se
contemplada a partir de suas virtualidades, se cria sempre na condição de ser atravessada
por inúmeros tempos de escuta e de não-escuta
33
. Nos tempos imperceptíveis da escuta
captamos certas vibrações intensivas e, antes de o percebermos, compomos com elas
muitos ritmos singulares de sensação.
Aqui nos detemos brevemente para descrever a ambígua noção de "simulacro", importante
chave de pensamento para abordar problemas que não se restringem somente aos da
simulação digital e da internet. Esta palavra também foi radicalmente redimensionada por
Deleuze e Guattari, a partir do pensamento das hecceidades
34
. Para os autores, a dualidade
platônica entre modelo e cópia,
55
de que uma imagem dialética entre o real e o ideal,
56
CAPÍTULO SEGUNDO
2 - Os ritmos cadenciais do virtual tecnológico e a imaginação desejante
“Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de
um espetáculo”.
Pessoa
Os discursos de orientação crítica acerca dos hábitos coletivos ligados à internet, apontam-
na como um meio simulacral propício à proliferação de signos vazios, mas também
questiona a natureza ultra-veloz de sua emissão, aventando os perigos de um suposto
controle virtual da realidade. Daí que os problemas emersos dessa gama constelacional de
atividades coletivas, genéricas, implicadas em seu uso, devem ser espreitados para além de
suas performances técnicas, que não pertencem exclusivamente ao campo da comunicação
e que, tampouco, se submetem totalmente à lógica informacional e discursiva das mídias. A
internet, sendo a expressão tecnológica de um grande império matemático, um ambiente
simulacral erigido por cálculos numéricos e por logaritmos, é suportado por um logos que
faz com que o finito, o delimitado, o coordenável, o controlável, o sistêmico prevaleçam
sobre o infinito, o singular, as intensidades e as virtualidades criativas.
O virtual precisa ser relembrado neste ponto, porque sabemos que os insistentes jargões dos
porta-vozes publicitários da indústria da digitalização não cessam de se desdobrar em
rótulos, revestidos de uma sonoridade sedutora, mas que nada tem a ver com o virtual
criativo do Tempo do devir. A razão primeira do equívoco no uso do termo virtual parece
ter começado quando a multimídia o reivindicou, para seus fins mercadológicos.
Expressões como: “mercado virtual”, “banco virtual”, “loja virtual”, “amizade virtual”,
"música virtual" etc.. geram uma eufonia retórica que recobre uma realidade midiática
conveniente às demandas do controle tecnocrático digital. “Realidade virtual” se torna
assim uma palavra de ordem para o consumo dos produtos informáticos.
57
Para que as situações coletivas de atividades, de encontros, de cruzamentos e de criação na
internet sejam aqui pensadas, a partir da questão do virtual, é necessário que se recorde que
a vida anda em muitas velocidades e ritmos, muitos deles nem sempre perceptíveis: é a
nossa realidade pré-subjetiva, pré-objetiva, não-orgânica e pré-lingüística. Mas eis que
esses ritmos inapercebidos, pelos quais capturamos imagens e somos capturados por elas,
passaram a ser, sorrateiramente, cadenciados pelas tecnologias da simulação digital. É
preciso, diante disso, assumir que muitos de nossos insuspeitados hábitos perceptivos,
mnemônicos, imaginais, semiósicos são, com impassível freqüência, condicionados pelas
máquinas de gerenciamento da informação e da comunicação.
Não é novidade que, nesse cotidiano crescentemente povoado pelas micromáquinas e sob o
imperativo irrefreável das conexões informáticas, estejamos a correr riscos de nos
expormos a insuspeitados mecanismos de sujeição, a um controle gerencial da produção de
subjetividade. Tais maquinismos são, todavia, difíceis de perceber, porque fluem, velozes,
sob os algoritmos da realidade simulada
35
. Em suma, as máquinas informáticas e
telemáticas estão a operar, franca e incisivamente, em ritmos que se produzem muito antes
das nossas percepções e da dos tempos da discursividade.
O próprio desktop em nossa tela ou os videogames hiperrealistas são alguns dos exemplos
mais triviais da sofisticadíssima produção técnica de universos imaginários simulados, cada
vez mais convincentes à nossa percepção. Tal simulação possui, por meio de um
vertiginoso coeficiente de velocidades, uma eficácia total para iludir os nossos regimes
perceptivos. O fato é que se criou, nestas últimas décadas, pela performance tecnológica de
velocidades sobre-humanas de fluxos digitalizados, um espaço simulacral que podemos
arriscar chamar de "mediação imediata".
35
A simulação onipresente, que vai do desktop aos videogames, dos programas, ambientes imersivos às
interfaces sofisticadíssimas, é regida, sabidamente, pelos vultuosos investimentos empresariais tecnocráticos.
É também sabido que a internet, a despeito de seu alardeado descentramento da lógica midiática e de sua
horizontalidade expressiva, não poderia existir alheia às suas estruturas centralizadas de controle. Ignorá-las é
ignorar a sua parte gerencial, e que faz funcionar uma ubíqua tecnologia de telecomunicações.
58
Já não são mais recentes tais críticas que apontam essa gestão pré-orientada de fluxos
informacionais que percorrem o ambiente das redes, visando a controlar, de modo sub-
reptício, a reprodução de nossas imagens de subjetividade. Na maioria do nosso tempo de
convívio com as imagens digitalizadas, nem sequer notamos que os fluxos tecnológicos
tornam-se cada vez mais importantes para o controle dos nossos ritmos corporais, porque
esses fluxos simulam novos meios de extensão, de virtualização do próprio corpo. Significa
que a mente tecnocrática não se contenta em fornecer a este "braços virtuais" ou um
"cérebro ampliado": os fluxos que seus dispositivos técnicos produzem penetram nos
tempos imperceptíveis do nosso corpo, extrapolando muitas de nossas relações
psicomotoras naturais. Não é por acaso que tudo se joga, em investimentos econômicos, na
tentativa de povoar esse novo espaço performático do simulacro. Os dispositivos de
interatividade e de interfaces, ao orquestrarem regimes de gestos pré-codificados, acabam
por impingir cadências de sentido sobre a nossa imaginação criadora. Em seu lugar, a
simulação ultra-realista trata de reduzir nossas performances imaginativas a um mero
imaginário, já repertoriado. Ora, um sistema penetrante e sutil de controle pode, deste
modo, imprimir ritmos estereotipados sobre o corpo e a sua habilidade imaginadora.
Habita aqui uma outra questão ligada ao ambiente informacional e ao poder que este exerce
sobre a nossa realidade sensível. Este problema concerne à natureza do desejo. É que,
obstinadamente realimentados pelas sobrecodificações hegemônicas de sentido, sob a égide
numérica de relações e de mobilidades pré-coordenáveis, corremos o risco de atrofiarmos a
liberdade da vontade criativa, confinando-a em clichês simplistas, em binariedades sem
saída para a experimentação de nossas potencialidades. Em virtude desses mecanismos de
controle binarizante do saber, dos signos, das imagens e das afecções, pode-se reduzir
drasticamente a força de experimentação do desejo, orientando-a para uma simples divisão
dualista preestabelecida
36
.
36
Fala-se muito a respeito de todo o nosso universo de imagens, responsável por gerar sentido em nossos
mínimos gestos, que já estariam por demais insuflados por um desejo subreptício, ingênuo e inconfessável de
atingirmos uma compatibilidade total com o "tecnocosmos digitalizado".
59
O desejo, como uma potência livre que faz a vida, vai sendo conduzido a jogos pre-
determinados que o padronizam em uma performance de projeções de um suposto sujeito
desejante sobre objetos desejáveis. A realidade digitalmente simulada atua, a partir de seus
fluxos inatuais, sobre a nossa atividade de imaginação desejante e criativa. Envoltos por
essa condição de consumidores das tecnologias multimidiáticas, somos desmotivados a
potencializar o desejo, tal como ele poderia ser: uma avidez afirmativa da existência. Ao
contrário, vamos sendo instigados à convivência com objetos virtualizados e a um desejo
de possuí-los
37
.
Concluindo, as máquinas técnicas informáticas, com suas velocíssimas performances,
permitindo às estratégias hegemônicas esquadrinhar os tempos do imaginário, podem lograr
interromper ou mascarar os fluxos do desejo, dessa potência impessoal, a-subjetiva, que se
realiza apenas como uma vontade criativa de intensificar a vida. Pelo contrário, os enclaves
tecnocráticos, ao investirem na convergência dos seus interesses, instauram escolhas de
escolhas, controlando virtualmente as forças desejantes para seus fins mercadológicos. Por
fim, sob esta rubrica do controle gerencial, não seremos jamais estimulados a experienciar
o que há de rizomático e aberto na web.
Não se deve confundir, afinal, a realidade do virtual e a simulação digitalizada do real. A
primeira não deve ser coincidente, como vimos, com a chamada "realidade virtual". A
simulação do real a partir de ultra-velozes fluxos digitalizados é uma invenção tecnológica
que age poderosamente sobre a nossa sensibilidade, que produz uma realidade perceptiva
controlável, em sorrateiras filigranas de tempo. A "realidade do virtual", ao contrário, deve
ser pensada para além da conotação que ela ganha nos ambientes digitalizados. Já vimos
que o virtual se diz de uma máquina de tempos, de devires criativos, recompondo ritmos,
recomeçando a vida, em contínua reabertura diante da força inovadora do futuro.
37
O desejo, que Schopenhauer denominou como "vontade", não se curvaria ao intelecto, não reconheceria a
consciência, não possuiria sujeito ou objeto, nem procuraria uma relação de possessão, por si mesmo. A
potência desejante da qual falamos deverá ser aqui imaginada como um apetite, uma avidez, uma força sem
nenhuma finalidade preexistente, sem nenhum destino programável (SCHOPENHAUER apud PERNIN,
1999).
60
Uma simulação bem sucedida seria, desse modo, a inibição mesma do virtual. Este
desapareceria da imaginação criativa e se tornaria simplesmente "imaginário", em
repertórios regrados de produção de imagens, prolongando o processo hegemônico da
estereotipia no consumo da própria imagem do desejo. Condicionados pelos chaveamentos
binários da percepção ou da imagética, induzidos pelo simulacro digitalizado, não haveria
nenhuma chance, por exemplo, de sairmos de nossa subjetividade, de nos surpreendermos,
de criarmos uma existência outra, implicada com a singularidade iminente do futuro.
Os segmentos hegemônicos dos discursos, das imagens e dos ritmos que sustentam a malha
tecnológica da informação sobrevivem, já o sabemos, do investimento nas reproduções
conformadas da imagem do Eu, nas codificações fechadas de subjetivação. As técnicas da
simulação alcançam, finalmente, modos diferentes de controle que se operam em ritmos
ínfimos, mas de grande poder na fixação orientada da subjetividade. Dotada de um logos
técnico sofisticadíssimo de simulação, capaz de erigir uma "hiper-realidade", vêem-se
achatadas e padronizadas, de maneiras cada vez mais sorrateiras e ostensivas, as
singularidades pré-subjetivas e pré-objetivas do desejo.
2.1- Memória, percepção e a imagem da da consciência na escuta musical
"... a identidade, de onde falsamente partimos."
Tarde
No que diz respeito à prevalência histórica da identidade subjetiva na imagem da escuta, se
se quiser persistir a questionar a primazia da memória e da percepção sobre as sensações na
música, não se pode esquivar de questões que se reportam aos problemas dos processos
coletivos de subjetivação. Para tanto, faz-se necessário voltar brevemente às idéias
antecipatórias de David Hume, pensador que, ainda no século XVIII, sinalizou com
perspicácia a questão do que se entende por "identidade subjetiva". Hume apontou novas
61
entradas para o pensamento que se ocupa da construção da identidade do Eu, em suas
correspondências com a percepção, com a memória, com a sensação, com a imaginação e
com as operações mentais da consciência. Todos esses aspectos que erigem a nossa
identidade pessoal foram, por ele, agudamente articuladas.
Na Seção VI do Tratado sobre a Natureza Humana, Hume (2000) começa afirmando que a
identidade atribuída à subjetividade é apenas fictícia, que é um produto de certas
dificuldades antes gramaticais do que filosóficas. Hume procura demonstrar, por uma via
original, como as nossas noções de "identidade pessoal" decorrem, integralmente, de um
progresso suave e ininterrupto dos fluxos sensoriais e da memória perceptiva. Para Hume, o
Eu não é, em si mesmo, uma impressão apenas, e sim aquilo ao qual nossas diversas
impressões e idéias supostamente se referem. Ele quer com isso dizer que, se alguma
impressão é aquela que dá origem à idéia do Eu, essa impressão deveria continuar,
portanto, invariavelmente a mesma, ao longo do curso de nossas vidas. De acordo com o
autor, somos, em contrapartida ao que diz a metafísica, algo como um feixe ou uma coleção
de diferentes percepções, que se sucedem umas às outras, com uma rapidez inconcebível, e
que estão em perpétuo fluxo. Isto significa que nunca apreendemos a nós mesmos, em
momento algum, sem uma percepção. Por isso, prossegue ele, nunca conseguimos observar
absolutamente nada que não seja uma percepção.
Nestas correspondências que o filósofo entabula entre a percepção e a produção de nossa
identidade pessoal, ele se pauta em duas perguntas iniciais, para depois desdobrá-las em
outras questões. Hume indaga: "Numa pessoa, observamos algum vínculo real entre suas
percepções? Ou apenas sentimos um vínculo entre as idéias que formamos dessas
percepções?"(HUME, 2000, p. 289) E responde, ao afirmar que a “mente humana” é uma
espécie de teatro, onde diversas percepções fazem, sucessivamente, a sua aparição. Estes
estados perceptivos passam, repassam, esvaem-se, e se misturam, em uma infinidade de
situações fluentes. Ao dizer que todo o curso de percepções vai sendo unido pela imagem
da identidade pessoal, Hume afirma que é o trabalho da memória que nos dá a propensão a
atribuir à nossa identidade percepções sucessivas, e que nos faz, ilusoriamente, supor que
62
possuímos uma existência invariável e ininterrupta
38
. Quanto ao imprescindível papel da
memória na produção da nossa subjetividade, diz o autor, ela não apenas revela uma certa
identidade, mas contribui intimamente para a sua criação, porque é a memória que produz
"relações de semelhança" entre as percepções. É ela que religa as nossas percepções
diversas
39
. E, como a memória nos faz conhecer tal continuidade e tal extensão dessa
sucessão de percepções, Hume a considera como o principal vetor, na produção da
identidade pessoal
40
.
Abrimos aqui um parágrafo para descrever a imagem da percepção concebida por Merleau-
Ponty, muito conhecido por defender um modo de pensamento que pudesse ser, antes de
meramente abstrato, portador de uma natureza pré-reflexiva
41
. De antemão, Merleau-Ponty
afirma que é preciso aceitar a impossibilidade de se conhecer um objeto, mas que só é
possível conhecê-lo segundo suas regras de acessibilidade à consciência. Seria o mesmo
que dizer que conceber objetos só se torna possível através de meios que imponham limites
à nossa percepção
42
. O autor assinala que há um meio perceptivo e que este, efetivamente,
38
Hume argumenta que uma outra causa da impressão do Eu é a de que nós nos deixamos com freqüência
influenciar por princípios aparentemente triviais do trabalho obscuro da imaginação. Isto quer dizer que nós
possuímos uma idéia distinta de um objeto que permanece invariável e ininterrupto, ao longo de uma suposta
variação de tempo. A ação da imaginação pela qual consideramos o objeto e a ação pela qual nós refletimos
sobre tal sucessão de objetos relacionados são, ambas, diz Hume, sentidas de maneira quase igual. Esta
relação facilita a transição da mente de um objeto a outro, e torna essa passagem tão suave como se
contemplássemos um único objeto contínuo. A idéia de uma mente humana, conclui o autor, é a imagem de
um sistema de diferentes percepções encadeadas por relações de causa-e-efeito, e que produzem, destroem,
influenciam e modificam-se umas às outras (HUME, 2000).
39
Hume prossegue em suas indagações: "O que é a memória, senão a faculdade pela qual despertamos as
imagens de percepções passadas?" Mas, uma vez que nós, tendo adquirido da memória essa noção de
causalidade, podemos estender essa mesma cadeia de causas e, pela recognição, produzimos uma identidade
para nós, e que vai além de nossa memória (HUME, 2000).
40
Henri Bergson irá, no futuro, concordar com Hume, ao dizer que "a subjetividade consiste em uma
contração do real operada por nossa memória" (BERGSON, 1999, p. 77).
41
Segundo Merleau-Ponty, no “maciço” da totalidade fervilham pormenores incompossíveis ao pensamento
metafísico (MERLEAU-PONTY, 1996).
42
A percepção, para Melerleau-Ponty, é polimorfa. Ela se torna uniforme, ao contrário, quando se deixa
orientar pelo sistema lingüístico, racional, cultural etc.. O mundo da representação faria assim existir uma
espécie de "dilatação da percepção", um tipo de transferência da chamada percepção natural para certas
relações instrumentais que a obrigam a se abrir ao mundo cultural. A percepção "bruta", desde que modelada
63
constrói o sentido, mas a realidade do mundo ultrapassa, infinitamente, a nossa percepção
(MERLEAU-PONTY, 2003)
43
. É a partir deste ponto que convocamos o pensamento
inovador de Henri Bergson.
Uma afirmação primordial na concepção bergsoniana é a de que o exercício de pensamento
interessado em somente encontrar semelhança, identidade, analogia, conflitos ou
contradições, acaba por representar o mundo apenas por efeitos de superfície. O
pensamento representacional não nos fornece mais que uma realidade extensiva,
qualificada e perspectivada por epifenômenos de consciência. Deste modo, como não há
coisas, também não há consciência e, se toda imagem construída pelo pensamento não está
mais em referência a uma consciência, é porque ela própria se apresenta como mais uma
imagem entre outras
44
. O autor se esmerou então em demonstrar, a partir de uma singular
idéia de imagem, a realidade da percepção, da memória, da afecção, do corpo e da
consciência subjetiva.
Vale a pena aqui uma breve explanação acerca do modo como Bergson concebe a idéia de
Imagem. A sua primeira grande afirmação é que, tudo o que engloba o que chamamos de
mundo material, é urdido, segundo ele, por um "sistema de imagens" (BERGSON, 1999).
Esta é a sua tese, em Matéria e Memória, de 1888: o mundo é um conjunto de imagens e é
em função delas que devemos colocar o problema da realidade, porque só a apreendemos,
justamente, a partir das imagens. Por tal via de pensamento, o autor irá redimensionar a
imagem conceitual que temos da palavra "imagem". Esta, como veremos, não mais
pressupõe apenas a forma, o contorno, a cor, a perspectiva, a textura etc..
pela cultura deveria, segundo o autor, reencontrar-se em sua natureza mesma, não aprisionada pela
representação da linguagem
(MERLEAU-PONTY, 2003).
43
É um Todo anônimo, anterior a qualquer objetivação, que reúne todas as posições e vontades, claras ou
cegas, fazem o conceito deslizar do subjetivo para um "Sendo", como um tecido de modos de ser das coisas.
A expressão primeira do Ser não seria assim nem o ser-objeto nem o ser-sujeito, nem essência, nem
existência, mas o seu próprio tecido conjuntivo. (MERLEAU-PONTY, 1996)
44
Tal situação fenomenológica é claramente expressa numa conhecida afirmação de que toda consciência é
consciência de algo. Para Bergson, ao contrário, toda consciência já é algo.
64
Há, para Bergson, três principais tipos de imagem: imagens-percepção, imagens-ação e
imagens-afecção. A percepção (imagens externas), a ação (movimento imanente à imagem)
e a afecção (imagens internas), são descontínuas entre si e vivem separadas por intervalos
de tempos. Esses tempos são entremeios de durações vividas, mas inapercebidos, como
hiatos de não-percepção e que a "educação" dos sentidos vai preenchendo.
Uma afirmativa cabal de Bergson diz respeito à realidade do nosso corpo: esta realidade
nos é dada, ao mesmo tempo, na forma de sensação e na forma da imagem (BERGSON:
1999).
Por isso, ele afirma que a imagem também tem um “dentro”: são as afecções. Isso
quer dizer que nós conhecemos as imagens não apenas “de fora”, mediante as percepções,
mas também interiormente, mediante as nossas imagens internas. Para ele, a nossa
percepção está fora do nosso corpo e as nossas afecções, ao contrário, nele se fazem. A
diferença entre a afecção sentida e a imagem percebida é, portanto, que a afecção está em
nosso corpo, e a percepção, fora. Mas o corpo não se limita a refletir a ação de fora: ele luta
e absorve algo dessa ação. Esta é, portanto, a origem das afecções. Não há, por conseguinte,
nenhuma percepção, se não houver também uma afecção. Isto porque o corpo vai
justamente efetuando ações e experimentando afecções. Ainda no que concerne a estas
performances do corpo, no conjunto de todo o mundo material, ele também não é mais que
uma imagem e, como tal, se cria e atua como todas as demais imagens. O corpo, pensado
deste modo, é um condutor, um traço de união interposto entre os objetos que agem sobre
ele, os objetos sobre os quais ele age, recolocando continuamente a sua imagem no tempo
que flui. (BERGSON, 1999). O corpo, a partir da concepção de Bergson, transforma-se
num lugar de passagem dos movimentos recebidos e devolvidos. Em outros termos, o corpo
experimenta sensações e, ao mesmo tempo, executa movimentos. Ele recebe e devolve
movimento, com a única diferença de que ele parece "escolher", em certa medida, a
maneira de capturar e de devolver o que recebe (BERGSON, 1999).
65
Esta é uma idéia central bergsoniana do que ele nomeia de “imagem-movimento”: as
modificações causadas, por um corpo, às imagens que o cercam
45
. Há, com efeito, infinitos
movimentos, vibrações, intensidades, aos quais ele permanece absolutamente indiferente.
Isso se dá porque o processo da percepção, para Bergson, retém apenas o que "interessa" ao
corpo, ou seja, ele só retém certas longitudes de ondas e certas freqüências, assimiláveis
sensorialmente, sempre deixando escapar infinitas vibrações do mundo, modulações apenas
intensivas. O papel do corpo é o de eliminar, do conjunto das imagens, todas aquelas sobre
as quais ele não teria nenhuma influência. Depois de cada uma das imagens retidas, o corpo
despreza tudo aquilo que não interessa às imagens de que ele precisa (BERGSON. 1999).
Mas entre isto e aquilo que a percepção destaca, entre o limiar e o limite que ela injeta nas
coisas, há insondáveis mudanças na realidade, movimentos que lhe escapam
completamente
46
.
Gilles Deleuze, em conferência sobre os textos de Bergson, explica a concepção de duas
operações do corpo por meio das quais ele gera a sua realidade de imagens. A primeira
operação seria a da "seleção": ele seleciona, numa excitação recebida, aquilo que ele vai
eliminar ou subtrair. Por meio desse trabalho seletivo, ocorre um processo contínuo de
multidivisões de cada excitação sofrida. A segunda operação seria a da "eleição": uma
síntese que vai integrar a multiplicidade das reações que nascem do trabalho da seleção. Há,
nesse processo duplo, sensório-motor, uma defasagem de tempos, um atraso de
velocidades. Esta é a gênese da imagem: a diferença entre as velocidades da percepção e da
afecção (BERGSON apud DELEUZE, 1998).
45
É importante esclarecer que, tal como pensa o autor, a percepção não nasce do sistema nervoso. Este é
somente o condutor que transmite, que reparte, que distribui ou que inibe movimentos. Bergson completa: as
percepções não estão no cérebro, é ele, ou antes a sua imagem, que está nelas. Ele também nos diz que o
cérebro é apenas um instrumento de análise do movimento recolhido, e um instrumento de seleção do
movimento executado (BERGSON, 1999).
46
Bergson explica esta difícil idéia: "O espírito retira da matéria as percepções, e as devolve na forma de
movimento". Esta é uma espécie de "questão", que não cessa de se colocar à nossa atividade sensório-motora.
Isso implica que a percepção se faz inteiramente orientada para a ação. Toda percepção prolonga-se em ação
nascente. À medida que as imagens se fixam e se alinham nessa memória, os movimentos criam, no corpo,
disposições novas para agir (BERGSON, 1999, p. 45).
66
Bergson (1999) também assinala que uma imagem nunca está sozinha, que ela sempre
coexiste com uma infinita multiplicidade de outras imagens. Todas elas, portanto, agem e
reagem umas às outras, e toda imagem é “interior” a certas imagens, e exterior a outras. A
imagem, afirma Bergson, continua-se nas que a seguem, assim como prolonga aquelas que
a precedem. As antigas imagens, desse modo, costumam prolongar-se, gerando assim o
movimento. Isto significa que, aos dados imediatos captados pelos nossos sentidos, nós
misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Essa sobrevivência
mnemônica das imagens irá se misturar, constantemente, à nossa percepção do presente
vivido e poderá, inclusive, substituí-la. Dito isto, ele arremata que a nossa percepção do
mundo é muito pouca coisa em comparação com tudo o que a nossa memória nele
acrescenta. Esta é a razão pela qual nós só percebemos, praticamente, o passado. Esta idéia
leva o autor a concluir que a percepção do presente é, por sua natureza, uma memória: não
há, absolutamente, nenhuma percepção que já não esteja impregnada de lembranças
47
.
Bergson (1999) diz que este problema da gênese da percepção se deve aos nossos
mecanismos sensório-motores e mnemônicos. A memória e a percepção vão juntas
construindo o movimento à nossa volta, tal como uma série de imagens fixas que vão se
sucedendo e nos dando uma imagem sintética. Aufere-se desta argumentação de Bergson
que a percepção exige um enorme e contínuo esforço pré-condicionado da memória. É a
memória que vai prolongar uma pluralidade de momentos, uns nos outros. Cada percepção
estende-se, ela própria, sobre uma certa espessura de duração, pelo fato de que a memória
condensa aí uma multiplicidade enorme de estímulos.
A idéia dessa multiplicidade de durações heterogêneas e co-implicantes, que perfazem o
presente sensível, leva o autor para a discussão acerca do papel da consciência na
percepção da realidade. Todas as coisas, para Bergson (1999), existem num estado
47
A percepção, desse modo, só existe imbuída por "lembranças-imagens" que a completam, interpretando-a.
Esta "imagem-lembrança", assim nomeada por Bergson, insinua-se a tal ponto em nossas percepções que não
mais podermos sequer discernir o que é realmente percepção e o que é lembrança. Com isso, o filósofo
inverte a concepção da correspondência entre percepção é memória, quando diz que toda percepção já é
memória, ou melhor, que a percepção nada mais é do que a estabilização sensorial de uma incalculável
multiplicidade de elementos rememorados (BERGSON, 1999).
67
temporal misto e impuro: todos os elementos contêm algo daquilo que os precedem e algo
daquilo que os seguem. Essa lógica da percepção e das afecções o leva a concluir que os
momentos supostamente sucessivos do tempo não são jamais momentos reais das coisas,
mas apenas momentos de nossa consciência. Seria o mesmo que dizer: a consciência do
tempo-espaço percebido é uma síntese de tempos. É a consciência que unifica, numa
imagem simultânea, fluxos heterogêneos de durações inapercebidas. E só depois é que ela
irá projetar, por meio da qualificação, da objetivação, um regime serializado de imagens
formadas e a sua própria temporalidade. Para o autor Prado Jr. (1989), comentarista do
pensamento bergsoniano, é pelo trabalho da consciência que ela mesma se resigna a viver
de intervalos, de gradientes, de escalonamentos, de elementos mesuráveis e de
encadeamentos seqüenciais de tempos perceptíveis
48
.
Bergson complementa esta idéia de que há muitos outros tempos, encavalados, aninhando-
se entre a série linear perceptiva “passado-presente-futuro”: o presente é, antes de tudo,
infinita e simultaneamente divisível em ritmos que se conservam enquanto outros se
acoplam a novas forças. Esta é, para o autor, a principal contribuição da consciência
individual na percepção: analisar o próprio movimento da memória que trabalha,
contraindo uma multiplicidade de momentos para fazer uma síntese (BERGSON, 1999).
A teoria de Bergson nos ajuda a distinguir as realidades tanto do tempo do vivido na escuta
musical quanto o tempo das suas velocidades e ritmos "invivíveis". Esta idéia nos endereça
à hipótese de uma existência não percebida da música, a uma realidade “imperceptível”
com a qual estaríamos, inconscientemente, em contato. Pelas condições expostas, fica
patente que é possível, no problema da escuta, talvez pensá-la naquilo que ela tem de
inapercebida, em seus tempos não-perceptíveis, mas determinantes em sua realidade. Esses
48
Spinoza, dois séculos antes de Bergson, já anunciava uma necessária desvalorização da consciência face ao
pensamento. Isto significa, em outros termos, que ele endossou uma descoberta do inconsciente do
pensamento. O filósofo já dizia que a consciência padece de uma deficiência seminal: ela só recolhe os
efeitos, mas ignora as causas. O pensamento seria assim o gesto criativo que viria para suprir a ignorância da
consciência, invertendo a ordem das coisas, tomando os efeitos pelas causas. Espinosa então propõe que
busquemos captar, por um exercício criativo de pensamento, forças do mundo que vivem para além das lentas
condições perceptivas dadas pela nossa consciência. (SPINOZA apud DELEUZE, 2002)
68
lapsos da percepção podem ser, de acordo com a nossa tese, os tempos de interferência que
um compositor injeta nos fluxos estáveis da educação perceptiva e das afecções ligadas à
experiência da música.
A partir do exemplo da realidade imperceptível da escuta, o autor demonstra que, numa
fração de segundo - e que “dura” na mais curta percepção possível de um dado som, por
exemplo -, trilhões de vibrações tomam lugar, sendo que a primeira é separada da última
por um intervalo infinitamente divisível. Bergson (1999) argumenta que, por mais rápida
que suponhamos uma percepção, ela sempre ocupará uma certa “espessura” de duração, de
modo que toda sucessão existirá somente para uma consciência que se lembra do passado e
que justapõe as duas oscilações ou os seus símbolos num espaço auxiliar.
Mas como as implicações do trabalho da memória e da consciência iriam se estabelecer na
escuta musical? Esta é uma parte de nossa preocupação: questionar o pensamento que
aborda a escuta a partir de um foco sobre a consciência de um sujeito ouvinte. Para
apresentar este problema, Bergson recorre ao exemplo do trabalho da consciência na
escuta: a síntese imagética operada pela consciência, da imagem atual e do que a nossa
memória retém das imagens anteriores, faz com elas se interpenetrem, se completem e
ainda assim continuem, de algum modo, sendo umas e outras. Esta síntese da consciência
seria, portanto, qualitativa, ou seja, uma organização gradual e sucessiva das sensações
comportaria uma unidade análoga àquela de uma frase melódica. Além do mais, prossegue
o autor, as imagens sonoras adquirem, neste processo, o poder de contrair ou de capturar
outras imagens ou uma série de outras imagens
49
. Bergson cita um outro exemplo prosaico:
"Quando ouvimos uma série de golpes de martelo, os sons formam uma melodia indivisível
tal como sensações puras, e dão ainda lugar ao que nós chamamos um progresso dinâmico."
(BERGSON, 1999, p. 141). Daí que o número de golpes passam a ser percebidos como
49
Por obra das sínteses da consciência, não contamos mais os sons, mas nos voltamos para recolher uma
impressão qualitativa. Conservamos, juntamente à imagem da oscilação presente, a lembrança de oscilação
que a precederia, de modo a formar uma multiplicidade indistinta ou "qualitativa". Poder-se-ia dizer, a partir
da sua idéia de síntese, que as notas não se sucedem, e sim que nós as percebemos, distintas, se penetrando
entre si, para o efeito de uma solidariedade íntima de elementos, onde cada um não se distingue mais, a não
ser por um pensamento ulterior, capaz de abstraí-las. (BERGSON, 1999)
69
qualidade, e não como quantidade. E tal mudança qualitativa é a mesma que advém da
escuta de uma frase musical. Isso porque retemos, segundo o autor, cada uma das sensações
sucessivas, para organizá-las com as outras e assim formar um grupo que evoca um ritmo
reconhecido pela memória.
Para Bergson, as lembranças auditivas devem à consciência a "soldadura" que esta lhe dá.
Os sons, "brutos", se completariam através das lembranças: confusamente sentidos em
massa, resultam em uma clareza, produzida pelas imagens auditivas, rememoradas. Neste
ponto recordamos o papel da memória anamnésica, diferente tanto da memória das
reminiscências (involuntária), quanto da "memória gráfica" das lembranças (voluntária). A
anamnese funciona tomando a existência com um trabalho de inferência, de natureza
abdutiva, tal como um tipo de processo silogístico. Por isso ela é, para Herman Parret
(1997), o sentido do tempo rítmico-melódico. A anamnese seria, desse modo, a
temporalidade específica da memória rítmico-melódica ocidental, uma experiência fusional
que torna o tempo perceptível. Ela é o "temporizador que melodifica" (PARRET, 1997, p.
72). A anamnese aparece como um importante vetor da melodificação. A fusão de sons que
ela engendra é a responsável pela continuidade melódica. Para melhor definir esse
misterioso processo no qual se implicam a consciência, a percepção, a memória e a
imagem, Bergson utiliza o termo "endosmose". Na escuta musical se produz, da mesma
maneira, uma mistura de tempos de várias durações. Na melodia, por exemplo, são
estabelecidas tais ligações no nível consciente, mas há muito mais ritmos subjacentes e
inconscientes em sua escuta.
Novamente Herman Parret (1997), a este respeito, mais tarde nos dirá que a "fusão
melódica", sendo já qualitativa, baseia-se numa temporalização muito específica, num
processo paradoxal que combina a persistência das recordações com o "apelo" das
antecipações. Para o autor, tal síntese temporal de imagens (que não pressupõem nenhuma
graphè) operada pela consciência, torna-se essencial para a música, pois é ela a principal
responsável pela nossa percepção de uma unidade melódica. É por isso que o autor também
assinala que deve haver ou, ao menos, deve se criar uma "imaginação sem imagens",
70
intimamente correlata à sensibilidade. Seria algo como imaginar imagens sem imagem.
Essa performance imaginativa singular nos faria sentir, imanentemente, as forças do Tempo
por meio da escuta musical.
Esta noção ecoa nas idéias de Michel Foucalt sobre a diferença crucial que separa a
imagem da imaginação. A imagem constitui, para o autor, uma astúcia da consciência para
não mais imaginar, desencorajando todo trabalho de imaginação. É esta que cria o autêntico
movimento; e a imagem, a sua adulteração. Dito de outro modo: ter uma imagem é
renunciar a imaginar.
A imaginação, inventiva, na medida em que destrói e consome o
universo aprendido das imagens é, paradoxalmente, "iconoclasta" (FOUCAULT, 2002).
2.1.1- As "sínteses do Tempo" que fazem a escuta
"Quem ouve? Sou eu o quê de mim?"
De Certeau
No livro Diferença e repetição, Gilles Deleuze (1990) estima a existência de "três sínteses
do Tempo", sínteses que operamos para fundar a nossa realidade vivida. Para entender o
trabalho dessas sínteses na criação da experiência vital, é preciso levar em conta que uma
vida se modula, simultaneamente, por infinitas durações intensivas. Em suma, é por
incontáveis sínteses de tempos que vamos compondo/decompondo a nossa
existência/insistência. São sínteses de acentos ínfimos do Tempo, contraídas pelas
chamadas contrações e contemplações do hábito (a "primeira síntese passiva") e da
reminiscência (a "segunda síntese passiva"), da memória voluntária (a "primeira síntese
ativa") e da representação (a "segunda síntese ativa"); e, finalmente, da "terceira síntese".
Essa última nasce de nossa intervenção criativa nas imagens e nos ritmos insistentes, nas
virtualidades inapercebidas que constroem a nossa existência percebida.
71
Para melhor explicitar este ponto: antes de mais nada, no complicado processo de sínteses
temporais não haveria um Eu, um sujeito unívoco, mas sim uma infinidade de "eus
contraentes". Esses infinitos “eus” são, na verdade, focos de capturas temporais que
produzem nossos dinamismos e possui, cada um deles, capacidades diferentes de captar a
duração das oscilações e dos fluxos de intensidades. São o que Deleuze chama de "eus
contemplantes", pequenos eus que, tal como uma placa sensível, alquímica de fluxos, retêm
certas excitações, liberam outras, enquanto novas aparecem do futuro iminente, ou seja, que
conservam uma intensidade enquanto outra sobrevém. Seríamos, por assim dizer,
"máquinas de contrair": contraímos, antes mesmo de sentirmos. É então a partir das
contemplações contraentes que se definem, portanto, todos os nossos ritmos, as nossas
reservas, os nossos tempos de reações, as nossas modulações. Pode-se reafirmar que, sob o
Eu que age, há infinitos eus, testemunhas que contemplam e que tornam possíveis não só a
ação, mas também o trabalho da imaginação. Esta produção de sínteses acaba por acionar
um Eu que tende a unificar-se, a reunir todos os seus pequenos eus passivos contemplantes
e a distinguir-se topicamente do "isso".
Deleuze explica que há, na experiência vital, diversas durações de presentes, que duram
segundo o alcance natural de contração de cada síntese que elaboramos. Nesta lógica, dois
presentes sucessivos podem muito bem ser contemporâneos de um outro presente, mais ou
menos extenso segundo a quantidade de instantes que ele contrai ou que recolhe das
caóticas e rítmicas oscilações de intensidades (as durações "puras"). Essas sínteses
contraentes formam necessariamente um presente de certa duração extensiva. Esta
coexistência pressupõe que no presente co-habitam o passado (na medida em que os
instantes precedentes são retidos na contração) e o futuro (a expectativa, por exemplo, é
uma antecipação, nesta mesma contração).
O hábito, pensado como a primeira síntese do Tempo, é o modo que aprendemos a operar,
contraindo os instantes sucessivos, uns nos outros, o presente vivido. Tal retenção do hábito
faz o estado dos instantes sucessivos se contraírem num atual presente que terá uma
duração perceptível-mnemônica. Deleuze expõe a relação que existe entre a contração, a
72
contemplação e o hábito: é contraindo que somos hábitos, mas é pela contemplação que
contraímos. Os hábitos fornecem, por assim dizer, escopos contemplativos, compostos de
milhares de pequenos hábitos contemplantes, uma multitude de eus duracionais que
povoam o inconsciente, formando em nós outros tantos eus, entrelaçando, numa liga
complexa de tempos, todos os hábitos pelos quais nos compomos. A síntese passiva do
hábito constitui, com efeito, uma certa ordem do Tempo. Esse modo de contração de
durações intensivas, e redistribuí-las em instantes extensivos, seria o que Deleuze chamou
de "fundação passiva" do Tempo.
A "segunda síntese passiva do tempo" é o que Deleuze chama de "memória involuntária",
ou reminiscência. Esta é uma memória ainda sem imagem e, por isso mesmo, desprovida
dos recortes do imaginário, da percepção, da lembrança e da representação. A memória
involuntária não qualifica, nem reconhece, tampouco dramatiza a existência. Esta
performance de reminiscência coopera com o hábito, tal como a placa de retenção,
produzindo sínteses das contrações e das contemplações. Se a fundação do Tempo é o
hábito, prossegue Deleuze, o "fundamento" do Tempo é a memória involuntária, porque é
ela que o constitui como puro passado. Este é o fundamento que faz com que o presente
passe e dele advenham outros tempos.
A "primeira síntese ativa", derivada de nossa "memória voluntária", já nos conduz a um
Tempo derivado. É uma ação mnemônica que constitui o tempo do vivido com o encaixe
dos próprios presentes já representados justo por essa capacidade de rememoração ativa
50
.
O seu passado é reflexivo, extensivo: o passado da lembrança, da representação, da
recognição, o passado histórico, construído por entrelaçamentos habituais de signos, de
imagens formadas e de percepções. O chamado "flash-back", na escuta musical, é um
exemplo da memória representada, de produção estereotipadas de afeccções e de
sentimentos numa sucessividade temporal extensiva.
A "segunda síntese ativa", por sua vez,
abarca toda a vida lingüística, semiósica, psicológica, moral, representacional,
50
Note-se que o passado da memória ativa não é mais o passado imediato da retenção passiva da
reminiscência.
73
comunicativa, social etc.. Esta síntese cadencia e acomoda os tempos esquivos a uma
educação das performances da memória e da percepção, para os fins de orientação de
hábitos coletivos.
E há, finalmente, a “terceira síntese”, pensada como a síntese do a-fundamento do Tempo.
Ela se apresenta como uma potência indiscernível do futuro do devir, imanentemente
acoplado ao presente e ao passado "puro". Dito de outro modo, é a gênese do Tempo “fora
dos eixos”, libertado momentaneamente das representações, das cronologias e do seu
conteúdo simbólico e imaginário. A terceira síntese temporal emerge do confronto criativo
das retenções passivas (o passado "puro") com as forças do futuro do devir. Pode advir daí
uma outra realidade, de sensações singularizadas, liberadas do hábito e da memória ativa.
Finalmente, esta síntese, em sua obscura composição de tempos, só vive de desestabilizar
criativamente os ritmos estáveis, as imagens atualizadas, as afecções repertoriadas da
subjetividade.
Em resumo: as sínteses passivas do Tempo, combinando-se com as suas sínteses ativas,
restituem um "tempo de conservação", próprio destas sínteses da memória e da
representação, da linguagem da consciência e da subjetividade etc.. As sínteses ativas, ao se
erguerem sobre as sínteses passivas, tornam a se desdobrar em outras sínteses que vão se
acavalando, numa impressão qualitativa, em instantes vividos, lembrados, homogeneizados
em seus ritmos de imaginar, de sentir, de pensar. Os níveis de sínteses passivas, as
combinações destes níveis entre si e, processualmente, as infindáveis combinações destes
níveis com as sínteses ativas compõem também as forças e as figuras, o indizível e o
sentido, as sensações e as afecções na escuta musical
51
.
51
Deleuze afirma que os eus passivos são integrações locais e um "eu ativo" será a tentativa de integração
global. Por meio das sínteses passivas, que se passam a contrair outras sínteses, orgânicas, se dá uma
passagem da sensação à imaginação espontânea e, destas, às faculdades ativas da representação refletida, da
memória e da inteligência, da reprodução e da reflexão, da rememoração e da recognição, da lembrança e do
entendimento.
74
Isso implica que, na escuta, antes mesmo de reconhecer e apreciar certo fraseado melódico,
esta ou aquela cadência de acordes, uma figura rítmica ou uma imagem anexa etc..,
sintetizam-se, maquinam-se, criativamente, não só tempos recognitivos da memória, da
comunicação, do imaginário, mas também tempos que são insonoros, incorporais,
inumanos. Estes são tempos de durações, velocidades e intensidades impalpáveis, tanto
pela percepção subjetiva, quanto pela representação objetiva. Essa sensação "sub-
percebida" da escuta é, de acordo com Deleuze, o resultado de milhões de contrações
silenciosas, reminiscências e lembranças operadas pelas nossas diversas sínteses do Tempo.
São essas incontáveis sínteses, simultâneas, encavaladas, rítmicas, disjuntivas, que
compõem a realidade virtual e sensível da escuta musical.
São, realmente, as notas de uma melodia que se tornam claramente apercebidas, mas as
durações que "contraímos" são uma outra face da música, as suas virtualidades, que nos
afetam e criam sensações novas, muito antes do material, dos elementos, das formas e
idéias musicais, e que também vão mais além delas. Podemos escutar, portanto, o sentido
implicado da música, o seu movimento, as suas combinações de acordes, a respiração e o
lirismo no canto, as palavras, as frases, os significados, mas não percebemos
conscientemente as virtualidades que os maquinam
52
. Mais do que uma seqüência de sons,
todavia, é tal jogo de tempos não musicais o que doa, intimamente, a força da sensação na
escuta.
52
Silvio Ferraz assinala quanto ao pensamento da escuta, que ele deve se dar conta "...das limitações da
escuta humana e dos mecanismos de filtragem operados pelo ouvido, que se dão antes mesmo de tomarmos
consciência de um "objeto sonoro" (FERRAZ, 1998, p. 139).
75
2.2– A imagem poética do Eu ubíquo
"Substitui-te sempre a ti próprio. Tu não és bastante para ti."
F. Pessoa
Retomamos agora uma discussão acerca da realidade objetiva e da subjetividade no
pensamento da escuta musical, tratando de pensá-la, apoiados nas idéias de Fernando
Pessoa, a partir dos movimentos da criatividade poética. Partindo do princípio de que o
mundo empírico, como realidade da percepção e da consciência subjetiva, se encontra
envolvido por determinações imperceptíveis, Pessoa propõe, em seus esparsos esboços
teóricos, uma concepção "meta-empírica" da realidade (PESSOA, 2004, p. 30). Para
mergulhar nessa realidade diversa da nossa existência, Pessoa apresenta um esforço de
"redobrar do pensamento sobre si", uma experimentação imaginativa que se aninhe nas
distâncias imanentes entre a vida e o pensamento, entre a sensação e a consciência, entre si
e os outros, entre a existência e a criação poética.
Ainda nos seus textos especulativos, Fernando Pessoa (1998) nos dizia, a respeito da
produção histórica da nossa consciência, que esta se conformou, em nossa cultura
ocidental, por obra da antiga ficção teológica cristã, cujo princípio afirma que a alma de
cada um é Una e indivisível. É o que ele chama de "dogma da personalidade": a noção
comum de que temos uma personalidade separada das personalidades dos outros. Isso
implica que estamos, há séculos, confinados nos altos muros individualizados que a
consciência ergueu para circunscrever e fixar a imagem de um eu unívoco. A consciência
surge, assim, na condição de um disfarce que serve apenas para um fim: o de amortecer os
obscuros movimentos da inconsciência. É por isso que a civilização tenta evitar o
inconsciente, justamente porque ele não tem nenhum disfarce.
Das premissas que norteavam as idéias de Pessoa sobre uma aptidão imaginativa, sensível e
ativa do pensamento, o artista deveria exercitar, em sua criação poética, uma concepção
76
"meta-consciente" da realidade
53
. Tal investimento experimental foi concebido, já o
dissemos, como um tipo de desdobramento especular do pensamento, gesto que desnudaria
a imagem mesma da nossa consciência
54
. É o que ele chama de "meta-consciência" (ou de
"...transcendência primeira de mim a mim..."). Esta corresponde a um artifício poético de se
abrir um espaço "... entre mim e mim, no interior mesmo da imanência". É crucial, como
base da sua arte, a invenção deste exercício que permita viver, sentir e pensar, ao mesmo
tempo, a sua realidade de sensações.
Mas a solução inicial, assevera o autor, só advirá quando o artista lograr, em seu embate
criativo, dissipar essa ficção grosseira de que ele é uma personalidade indivisível. Já bem
sabemos, nos diz ele, que os nomes próprios, registros socialmente inevitáveis, são
procedimentos impostos de fora. Ora, a personalidade de cada um de nós, assinala Pessoa, é
composta do cruzamento social com as personalidades dos outros, da imersão coletiva em
correntes e direções sociais, de modo a nos fixar em nossos vínculos hereditários
55
.
A idéia de Pessoa pressupõe que, para tanto, a atitude do artista, no pensar-sentir, deve
começar por libertar toda sensação sempre que ela estiver presa à idéia condicionante de
um Eu. Para tal ação, é preciso que ele dissolva antes esse Eu, que ele o esvazie da sua falsa
unidade identitária
56
. Mas tal personalidade imaginativa, antes de tudo, deve alcançar uma
existência singularizada, polissêmica, "animista", transindividual
57
. Fernando Pessoa
53
O poeta, ao modo de Henri Bergson, também acredita que a consciência não preexiste, em si, mas que há
somente uma imagem da consciência, uma imagem entre outras imagens (BERGSON, 2004).
54
A condição da sensação estética requer, segundo o autor, que vivamos num tipo de "lusco-fusco da
consciência", e que desta deve-se trazer apenas alguns pequenos vestígios. O artista deve se tornar um
"nômade da consciência de si" (PESSOA, 1998, p. 100).
55
A ciência nos ensina, conclui o autor, que "...somos um agrupamento de psiquismos subsidiários, nada mais
do que uma síntese, mal feita, de almas celulares" (PESSOA, 2004, p. 518).
56
O autor José Gil, estudioso de sua poética, nos aponta, a este respeito, que todo artista deve, sim, investir
antes na recriação de uma personalidade, recordando-nos do que supõe Pessoa, quando este invoca: "Senhor,
livra-me de mim!" (PESSOA apud GIL, 1997, p. 130).
57
F. Pessoa ilustra, nesta passagem, o artifício da diversificação do indivíduo dentro de si mesmo: "Como o
panteísta se sente árvore, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
77
persiste incitando todo criador a explodir o Ser, a estilhaçá-lo, a fragmentá-lo, por modos
experimentais de inventar um Eu imaginário, "plástico, intersticial", pronto a tornar-se
múltiplos Eus, anônimos e indefinidos. O próprio autor sintetiza esta imagem da
subjetividade: "Sou variamente outro do que um Eu que não sei se existe" (PESSOA, 2004,
p. 38).
No plano da criação, o artista é incoerente consigo próprio, é aquele que se indefine:
um indivíduo que sente por vários, que se sente plural
58
. As especulações do seu
heterônimo Bernardo Soares o levam a considerar o enigmático universo que ele é para si
mesmo. Soares medita sobre estas questões, persistentemente, ao sentir que, mesmo só,
recolhido em si mesmo, as multidões o povoam: "Cada um de nós é vários, é muitos, é uma
prolixidade de si mesmos". Ele se pergunta: "A quem assisto? Quantos sou?" (PESSOA,
1998, p. 418-419). A partir daí, Fernando Pessoa (1998)
concebe, para o início do trabalho
criador da arte, um tipo de exercício, ou de procedimento imaginativo, que ele chama de
"dispersão unificada do Eu". O criador será, de ora em diante, quantos lhe aprouver. Ele
começa imaginando-se, por fantasia, como uma multidão de seres que se reúnem, em leque
aberto, multiplicando-se para sentir. Talvez ele queira com isso dizer que o artista deva
fazer da sua antiga imagem de sujeito, de consciência e de objeto, algo a ser sentido, a ser
imaginado, a ser pensado, como uma multiplicidade impessoal (PESSOA, 1998)
59
.
Pessoa avança nesta questão da dessubjetivação artificial imaginativa, ao dizer que jamais
chegaremos a outrem a não ser "outrando-nos". Ele explica: para se sentir "puramente" a si-
próprio, o Eu tem de se sentir, simultaneamente, consubstanciado ao Outrem. Ele assim o
exprime: "Ah, poder ser tu, sendo eu!". Somos, prossegue o autor, parte dos outros, e eles,
parte de nós. Aqui reside a interessante idéia do "eu-ubíquo". Pessoa defende tal imagem
que engendra o pensamento sensível do artista: "...os que nunca se definem, e são, um e
como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por uma suma de não-eus
sintetizados num eu postiço." (PESSOA, 1998, p. 81).
58
Como ele mesmo diz: "...ubiquito-me neles", num esforço que anseia por criar uma nova e alargada
personalidade. (PESSOA: 2004, 66)
59
Processar-se como um personagem de sensações compostas é o sumo exercício da heteronímia de Pessoa.
Este trabalho de dessubjetivação experimental passa a lhe permitir que, em seu imaginário criativo, aflore
uma coexistência de vários Eus sensientes. (PESSOA: 2004, 565)
78
outro, ninguéns" (PESSOA, 1998, p. 14).
"Outrar-se", portanto, seria o mesmo que criar um
"eu-outrem", imaginativo, imanentemente ubíquo, que fosse encarregado de viver, de
pensar, de se sentir em nós. É algo como se fabricar, criativamente, um Eu que goze, que
pense, que sinta como se fosse outrem, que se coloque fora da sua intimidade pessoal, e que
todas as sensações sejam, nas palavras do poeta: "minhamente alheias" (PESSOA, 1998, p.
435). E isso é o que será possível por meio deste tipo de imaginação criativa: a "outridade",
ou o "outramento". Se "outrar", finalmente, é imaginar um paradoxal eu-outrem, é capturar
essa textura urdida por várias espécies do Eu e do "alheio"
60
.
Aqui adentramos diretamente na sua espantosa poética dos heterônimos, na realização
plena da outragem artística. Abandonando os contornos da sua personalidade própria, e não
simplesmente adotando um pseudônimo, vimos que Fernando Pessoa construiu um
processo imaginativo singular de despersonalização poética. O poeta mesmo o dizia:
"Construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim" (PESSOA, 2004,
p. 87). Ele se recriava, por este recurso, tal como um personagem, mas um personagem
despido de qualquer drama. Pessoa o confirma: "Hoje já não tenho personalidade: quanto
em mim haja de humano, eu o dividi entre vários autores de cuja obra tenho sido o
executor" (PESSOA, 2004, p. 97).
É igualmente sabido com que grau de detalhamento Pessoa desenhou os contornos (nome,
biografia, estatuto social, psicologia) de seus heterônimos
61
. Mas tal artifício tem uma
razão primordial: a de fazer da identidade, a instância primeira doadora de sentido, o caos
60
"Isso não pode implicar fusão com os outros, pois assim o ente não se sentiria a si-próprio: sentir-se-á não-
si-próprio, e não si-próprio-outros. Para não deixar de ser si-próprio, tem que continuar a ser distinto dos
outros. Tem que ser distinto dos outros-ele. Só pode dar-se sendo distinto de si-mesmo. Para ser distinto de si
mesmo sem ser outros, porque não seria ele-mesmo. Teria de ser nem ele mesmo nem outros, tem de ser a
essência de outros e de ele-mesmo. Se indistingue dos outros pelo próprio processo porque se distingue de si
mesmo." (PESSOA, 2004, p. 529)
61
Pessoa foi esmerando-se, com o tempo, em sua capacidade de criar personalidades novas, chegando, por
fim, a criar mesmo um ortônimo ("Fernando Pessoa Ele-mesmo"), ele próprio tornado uma variante
heteronímica de si mesmo. O que vale notar aqui se refere a um dispositivo de heteronimização em si mesmo,
que se torna um heterônimo, ou seja, cada novo personagem torna-se capaz de criar outros heterônimos ou
sub-heterônimos.
Isso porque, tal como um "personagem virtual atualizado", ele contém, em si, outros
personagens virtuais: "...eu sou virtualmente múltiplo...". (PESSOA, 2004, p. 61)
79
das intensidades nômades. O heterônimo não tem uma identidade inteiramente fixa, mas
apenas um contorno, cheio de virtualidades (PESSOA, 2004)
62
.
Neste ponto da exposição, apontamos a invenção do personagem criativo com a sensação
mesma do Tempo. O processo de outrar-se, vale dizer, implica sobretudo uma
temporalidade indeterminada. Seus heterônimos têm, por isso, uma face sedentária, voltada
para o tempo territorializado, e uma outra, nômade, a sua face desterritorializante. Por um
processo especular de heteronomia é que se acoplam um Eu, como vetor territorializante e
humano, e um Outro, nômade e trans-humano, múltiplo, capaz de devires inesperados
63
.
Um aspecto a mais que devemos realçar, na imaginação sensível no pensamento pessoano,
é a necessidade que a imagem subjetiva do Eu tem de desarmar, definitivamente, o "dentro"
das afecções que aprisionam a consciência e a vida socializada dos sentimentos. A
realidade das nossas afecções poderá, destarte, sofrer mutações radicais, justo pela
imaginação experimental da heteronímia criativa. As afecções se tornam assim,
paradoxalmente, "exteriores" (PESSOA, 2004). Mas essa transformação da imagem interior
em sensação exterior, deve-se advertir aqui, não diz respeito a nenhuma exterioridade
espacial, fenomenológica ou metafórica. Esta idéia do "fora" diz respeito a estar fora dos
tempos da percepção, para aquém do fenômeno espacial e para além da sua representação.
O "fora" se torna, para Pessoa, a realidade meta-empírica, virtual, abstrata, uma paradoxal
"alma exterior" dos entre-tempos não perceptíveis, mas inventados pela criação: a paisagem
exterior vai se misturar às sensações interiores, logrando, com isso, criar um "híbrido
sensitivo de interior e exterior". E ele completa: "...sou eu-mesmo no exterior de mim,
62
Há, como condição desse efeito, a premissa de um autor pré-heteronímico, que modifica radicalmente a sua
escrita, o seu estilo, a sua identidade, no pensar e no sentir. O autor afirma: "Sou o verdadeiro sujeito da
escrita, mas simultaneamente sou outro. Não existo atualmente, como sujeito que escreve (é a personalidade
que inventei quem escreve): nesse sentido posso dizer, como criador dos heterônimos, que existo apenas
virtualmente". (PESSOA, 2004, p. 47)
63
É com esta imagem que o poeta aspira a existir "fora" do tempo. Ele quer dizer, com esta expressão, que é
preciso, para a sua criação literária, imaginar o heterônimo num tempo imemorial, virtual, e o sujeito-
personagem que escreve, no tempo atual, cronológico. A realidade do virtual também é definida, por Pessoa,
como "abstrata". Para o poeta, apenas o virtual - ou o abstrato - aparece nu, sem os anexos das durações
codificadas (PESSOA, 2004).
80
aspiro à exterioridade absoluta". (PESSOA, 2004, p.118) Vale ressaltar a importância da
sua idéia de ubiqüidade do Eu, porque, para o poeta, só se pode pensar e criar quando se
alcança uma exterioridade impessoal
64
.
2.3- Os processos tecnológicos de subjetivação e a heteronímia criativa na internet
"Médium, assim, de mim mesmo, todavia, subsisto".
F. Pessoa
Uma vez ambientados com o pensamento das hecceidades, que também defende a realidade
pré-subjetiva da sensação, poderemos dele nos valer, daqui em diante, para interrogarmos
acerca das condições de criatividade e de experimentação da escuta musical sob a lógica
dos ambientes de mídia digitalmente simulados. Vimos anteriormente que, sob o "controle
do virtual", novos modos de orientação do imaginário são fabricados por meio de
inumeráveis fluxos imperceptíveis, sensoriais e semânticos que se implicam e se redizem
no processo coletivo da subjetivação. Para Michel Foucault (2002) há, nos planos sociais
contemporâneos, fluxos de consumo, fluxos de arte, fluxos científicos, fluxos de redes de
computadores, fluxos de opinião etc.. Ele trata esta idéia com perspicácia: "Esses fluxos são
constantemente modulados em função de uma axiomática, permitindo que potências
midiáticas participem dos processos de subjetivação, a ponto de ditar-lhes ritmos"
(FOUCAULT, 2002, p.195). Daí que esses "fluxos tecnológicos", tais como o autor os
nomeia, tornam-se mais e mais importantes para um regime estereotipado dos afetos,
porque esses fluxos conquistaram um poder de interferência ultraveloz nas próprias
virtualidades da carne.
64
Não são meus os meus pensamentos, mas são pensamentos que passam através de mim: pensa-se e sente-se
em mim (PESSOA, 2004).
81
Em meio a essa miríade de fluxos existenciais dominantes conformando imagens da
subjetividade, enfrenta-se na internet a instauração de uma espécie de "coquetel subjetivo",
metáfora esta que ilustra uma situação sintomática em que cada indivíduo é envolto por
várias subjetividades transversais coletivas, num cruzamento persistente de inúmeros
vetores e mecanismos estereotipados de subjetivação
65
. Segundo a autora Paula Sibilia
(2002), as empresas informáticas e de multimídia se esforçam para lançar e relançar, no
mercado, novas formas postiças de subjetividade que serão adquiridas e, de imediato,
descartadas
66
. Para Sibilia, tal prática realmente alimenta uma espiral de consumo
imediatista de "modos de ser", ou seja, de modelos identitários efêmeros, obsolecentes,
descartáveis. Estes são chamados por Sibilia (2002, p. 33) de "upgrades subjetivos".
Alguns autores, no entanto, se desdobram para compreender o surgimento de uma idéia de
liberdade criativa em relação ao estatuto hegemônico da subjetividade cultivado nos
ambientes de encontro "virtual". Estes acreditam que investimentos experimentais de
subjetivação poderiam levar, quem sabe, as forças desses fluxos tecnológicos para mais
longe do que a axiomática de controle os programara. A despersonalização criativa notada
em produções na internet pode se apresentar como uma espécie de "guerrilha", de uma
micro-política que se torna capaz de descarrilar os clichês que as potências empresariais
depositam nos atuais processos de subjetivação. A resistência criativa a esse mercado da
subjetividade e do imaginário desejante nasce de práticas insurgentes de reinvenção de
novos modos de agir, de imaginar, de experimentar um ethos singular
67
. São as "linhas de
fuga" do desejo, da vonta
82
criações de vacúolos de não-comunicação nos sistemas comunicacionais. É por isso que
toda a arte precisa tentar se mover sempre um átimo à frente dessa axiomática tecnológica
dominante.
83
para compor: viver ritmicamente, imaginando-se múltiplo, singular, atravessado por ritmos
intensivos.
Pensar a realidade da escuta como hecceidade começa num movimento que visa a se
libertar da unidade coercitiva que preside a uma suposta experiência subjetiva da música.
Não haverá caminho criativo para o pensamento musical, reiteramos, enquanto se persistir
na idéia fixa da prevalência de um Eu ouvinte subjetivo, como se este fosse um mero
receptáculo de psiques, dotado de faculdades de recognição e de consciência, com estados
sentimentais caracterizados
68
.
A imagem individuada do personagem não se refere, por fim, ao indivíduo individualizado.
O compositor não é mais um eu unívoco, mas um personagem "equívoco". A partir dessa
idéia, também não poderá haver mais aquela distância transcendente entre o artista que
exprime, o meio de exprimir e o que é exprimido. Deste modo, não é mais a escuta que se
torna o ponto de vista de um sujeito, ao contrário, a subjetividade passa a ser apenas mais
um ponto de vista para a escuta.
A imagem do devir vem agora a propósito para a defesa de uma necessária
despersonalização do vivido, ocupando-se de priorizar aquilo que estamos em vias de
deixar de ser e, ao mesmo tempo, os novos acontecimentos em que estamos a tornar-nos.
Por isso os autores que defendem o pensamento imanente das hecceidades pedem para que
não nos pensemos mais como pessoas constituídas na experiência, mas antes como um
princípio plástico, anárquico e nômade: um centro de indeterminação ou um contemplador
indefinido que já não quer linguagem, nem consciência, nem mesmo quer o sentido
69
.
68
A pergunta de Fernando Pessoa ainda ecoa em nossas questões: "Que coisa morro quando sou?" (PESSOA,
1998, p. 75). Para o poeta, a identidade do sujeito precisa se dissolver, para que ele possa se dizer criativo.
Daí em diante, para os seus epígonos contemporâneos, a imagem do pensamento experimenta, como assinala
Roberto Machado, “a elisão do sujeito, da alma, da interioridade, da consciência, do vivido, da reflexão, da
dialética, da memória” (MACHADO apud SALEM, 2000, p. 115).
69
Os heterônimos de Pessoa foram inspirar Félix Guattari e Gilles Deleuze, que criaram a imagem de um
"personagem conceitual", um heterônimo que pensaria por nós. É o mesmo que supor a presença de outro
pensador no pensador. Nas questões da criatividade na música, os autores cunharam o conceito de
84
Em síntese: não sou um Eu que escuta, mas sim tal ou tal personagem que "se escuta em
mim". Precisamente como personagem efêmero, porém criativo, nascido de sínteses de
tempos ou de sensações inventadas, é que o ouvinte também deve se individuar,
transmutando-se num "bloco de intensidades". Este bloco hetenímico seria um consolidado,
contingente, de ritmos heterogêneos perseverantes. Isto significa que as sensações podem
ser diferentemente apreendidas e recriadas quando são catalisadas por um personagem de
ficção que fizermos de nós.
Para problematizar o que muda, decisivamente ou não, em nossa escuta na rede, será
preciso evocar a existência de um personagem que compõe e que se compõe como uma
virtualidade de devires-sons. Este heterônimo, para a nossa questão, se investe de uma
obscura tarefa, a de exercitar um ethos singular de resitência criativa na internet.
Podemos aqui arriscar uma proximidade deste processo com a idéia do ritornelo e do seu
movimento territorializar-desterritorializar-reterritorializar: a partir dos constrangimentos
da personalidade, despersonalizar-se e, por cortes da vontade, re-personalizar-se, por uma
avidez ou por um apetite de apenas intensificar a sua potência de existir, se reinventando e
contagiando outras invenções.
O compositor heterônimo de desktop, personagem que se cria para freqüentar, por modos
pré-pessoais, a rede digital, teria a tarefa de exercitar uma "micropolítica da escuta". Ao
buscar experimentar na internet - e para além dela - a produção contínua de uma
subjetividade-outra, imaginativa, o personagem inventa uma persona que se componha
como uma máquina existencial, afirmativa de uma vontade, de um desejo que não almeja
"personagem rítmico". O personagem da escuta estará, para a música, tal como o heterônimo está para a
escrita, e tal como a idéia deleuziana de "personagem conceitual" está para a filosofia. Criar um personagem
do pensamento é, portanto, adotar as diversas posturas que o pensador assume enquanto pensa, e que se
tornam, através dele, puras determinações. O personagem só passa a viver quando nasce no pensador uma
terceira pessoa que o destitui do poder de dizer: "Eu." (DELEUZE, 1990).
85
nada além da potencialização mesma da vida. Tal vontade de potência nos intensifica e nos
move a agir como personagens-encruzilhada, como foco catalítico de afetos.
86
CAPÍTULO TERCEIRO
3 - O "dj de desktop" e o bootleg mash up
"Nasce uma nova raça de personagens."
Deleuze
É unânime certa reserva que compositores contemporâneos têm com relação à indústria
tecnológica aplicada à manipulação digital de áudio. A crítica diz respeito aos programas de
criação sonora, crescentemente dotados de dispositivos performáticos que, cada vez mais
sofisticados, desesperam compositores, ora atônitos, ora enfastiados, diante de cada nova
versão lançada de um software para composição e processamento de áudio etc.. Por meio
de tais programas aplicativos, as empresas da multimídia estreitaram seus estratagemas em
prol de uma estandardização de usos supostamente criativos. A indústria da informática de
áudio, ao que nos parece, vem orientando o consumo informático a paradigmas de
utilização pseudo-artísticos, que visam antes a prescrever uma utilização pré-coordenada
dos seus softwares. O computador passa a ser, desse modo, não um instrumento de
composição, mas uma mera ferramenta mimética, já ligada a uma linearização obediente
que também acaba por padronizar a escuta musical.
Em seu embate criativo, o compositor, em contrapartida, pode também desvirtuar as
performances triviais dos equipamentos, instaurando certas instabilidades no ambiente
funcional do computador e de seus dispositivos, para que estes próprios o surpreendam. Tal
gesto poderá talvez tirá-lo, nem que seja por um lapso de tempo, de seus territórios
conhecidos. Daí o compositor poderá multiplicar conexões, abrindo algumas brechas de
indecidibilidade de sensações no regime tecnológico aplicativo, este mais interessado nas
emoções catalogadas da música. A experimentação instaura, nas cadências estereotipadas
da atividade musical, alguma arritmia que pode singularizá-la, afetando a própria sensação
da escuta. Na prática da criação musical a partir dos suportes digitais, a interface precisa ser
87
então tratada como uma motivação para o compositor. Praticando uma espécie de
dissidência criativa, ele pode explorar uma habilidade para romper certas conexões triviais
e para criar outras novas ligações nos circuitos de usos habituais das máquinas
informáticas.
No que concerne às linhas de resistência ligadas à tecnologia informática, problematizamos
aqui a potencialidade criativa da escuta a partir de práticas de composição na internet.
Elegemos, a título de ilustração, o "bootleg mash up”, como uma modalidade de
composição iniciada e viabilizada a partir das circunstâncias de freqüentação dos peer-to-
peer. Avançamos acerca deste problema da composição musical motivada pelos hábitos de
experimentação da escuta na internet tomando como um pretexto empírico a figura do "dj
de desktop". Estes também chamados "remix-j's" ou "booties" dizem-se, antes de tudo,
compositores não-músicos, mas que, ao investirem numa experimentação da escuta, podem
chegar a singularizar as performances auditivas.
O mash up pode representar, até onde sabemos, o primeiro novo gênero musical a emergir,
a se desenvolver e a se disseminar, exclusivamente, por meio da internet. Seus
desdobramentos, não obstante, já estão bastante diversificados, tornando difícil qualquer
definição conceitual precisa que a todos englobe sob este mesmo nome. Os seus princípios
de composição antes partem, inicialmente, da sobreposição de duas canções, consistindo
em se acoplarem, sincronizados, o acompanhamento instrumental de uma canção
(playback), ao canto, sem os instrumentos (à capela) de outra
70
.
bootlegs que também buscam amalgamar tanto canções pertencentes ao mesmo gênero
musical quanto gêneros totalmente alheios entre si. Às vezes, o princípio da composição
mash up acolhe somente uma única canção, estrategicamente estilhaçada, para que se
70
Historicamente, o início do movimento bootleg mash up se deu em 1993, com o grupo de dj’s ingleses
chamado Evolution Control Committee. A idéia inicial era combinar apenas duas canções diferentes, sem
adicionar nenhuma outra música adicional ou uma melodia original. Tal emparelhamento de canções foi
motivando variantes e desdobramentos inesperados para as performances triviais da escuta. A maioria das
colagens começou a ser feita a partir de sobreposições entre canções do pop tomadas das top 40 hits e singles
do usualmente chamado "pop low profile".
88
retirem dela ou ecoem nelas outras conexões paradoxais. Certos dj’s restringem,
propositadamente, o seu material, como os que acolhem apenas duas canções do mesmo
compositor (tal como fez o DJ Hypercrad ao mesclar duas composições dos Beatles: Drive
my Car e I am The Walrus). Os dj’s que embarcam neste princípio de entrecruzar duas
canções do mesmo autor, às vezes as recompõem em uma dada sincronia pulsional, outras
vezes alteram o andamento de uma delas, ou mesmo, como trabalha um dos mais profícuos
remixers, Go Home Productions (Mark Vidler), ao mesclar, por exemplo, um maior
número de canções, as retalha para procurar nas experimentações dos cortes e das fusões
novos planos de composição para a escuta. Pioneiro da prática remix na internet, o dj Mark
Nicholson, mais conhecido como Osymyso, preferia, por exemplo, a abundância do
material, chegando a mesclar mais de cem canções numa única faixa. O seu plano de
composição se ocupava, no entanto, principalmente em selecionar extratos locais de cada
canção (como, p. ex., a introdução de cada uma delas) ou de qualquer enunciado da
paisagem sonora midiática, procurando interfoliar alguns de seus fragmentos
71
.
Muitos “remixers de desktop” vêm operando sobre materiais sônicos variados (canções,
trilhas, discursos, locuções jornalísticas, diálogos televisivos e radiofônicos, mensagens
publicitárias etc..) enunciados quase sempre exaustivamente sobrecodificados pela indústria
cultural
72
.
71
Outros dj’s, como fazem os integrantes do grupo de remixers chamado Possible Costly Illegals, começam
por recortar frases coloquiais muito recorrentes em letras de canções do repertório geral da produção
mainstream e as costuram numa única peça. Já o dj Danger Mouse, por exemplo, circunscreveu em seu plano
o conjunto das canções do White Album dos Beatles e The Black Album, do rapper Jay-Z, gerando "The Grey
Album". Ou como o The Kleptones, que elegeu um álbum do grupo Queen e o entrecruzou com hits do hip
hop ("A Night at The Hip Hopera").
72
Os dj's depositam nos file-sharing services, ora versões "à capela" de hits, ora playbacks instrumentais, que
as companhias fonográficas incluem nos singles promocionais para pistas de dança. Não raro eles mesmos
também "retiram", de certas canções gravadas nos anos sessenta e setenta, por exemplo, o canto, os vocais ou
o instrumental (isso porque o recurso da estereofonia isolava, às vezes totalmente, o canal esquerdo do canal
direito: basta ouvir alguma das primeiras gravações dos Beatles, por exemplo). O recurso do estéreo,
destinado à ambientação aural na escuta, passa a estimular outra operação técnica transdutora, que se tornou
um princípio seminal da composição mash up.
89
Certos autores analisam o movimento bootleg mash up como um tipo de regresso a uma
exploração sonora residual e nômade. Outros o apontam como o movimento musical
contemporâneo mais alegremente niilista, um campo de invenção musical em que as
impossibilidades técnicas já não são propriamente uma privação, mas antes uma afirmação
da vontade criativa.
Pensar acerca do que "podem" os mash ups, nas possíveis provocações artísticas daí
disparadas, é tão produtivo quanto pensá-los a partir de abalos de sensações que podem
provocar, quando se intervém na escuta habitual
73
. Nick Hornby (2005, p. 144) comenta, a
este respeito, que até mesmo os refugos deixados pela indústria cultural são "lenha para
uma chama inovadora", fazendo algo com eles, a fim de levá-los a um outro modo de se
ritmar.
Sabemos que recortar e modular samples e grooves tornaram-se atividades específicas e,
em certos momentos, aparentemente distintas daquelas em que se experimentam melodias
vocais e harmonizações, já dotadas, à partida, de algum destino lírico, certo ethos melódico
e de vocalidades, tal como se determinam muitas das formas tradicionais da canção.
Ninguém, nem mesmo o compositor, todavia, pode saber ao certo o que se acrescenta ou se
subtrai a elas nessa incógnita aproximação, em cada novo corte e em cada nova conexão.
Na prática da canção contemporânea, a palavra cantada, em sua melodia vocal, concentra a
sua força lírica “alquimicamente”, imanentemente, em seus fluxos mistos de imagens e de
73
Um bootleg deve ter de ser alguma coisa que tenha algo de marginal, de limítrofe, como diz um dos dj's
pioneiros do mash up, David Dewaele. E quanto mais ímpar se torna a aproximação entre as canções
escolhidas, mais instigante para ele. A prática do mash up contribui para uma efervescência contagiante e
produtiva nesta prática da colagem sonora na internet. São, no limite, continua Dewaele, “bootleggers
bootlegging bootlegs". Um outro ponto que o dj assinala diz respeito ao caráter inicial do mash up: a marca de
um bootleg se nota quando ele não soa absolutamente como a antiga canção original. O bootleg,
paradoxalmente, não deve soar como bootleg: precisa soar como uma nova gravação, original. Em outras
palavras, grosso modo, sobrepõe-se uma canção sobre a outra, mas uma nova música, por si mesma, deve
nascer.
90
ritmos
74
. Os desdobramentos de recursos líricos na canção, no século XX, sofreu tanto
achatamentos, formulações simplistas, paroxísticas quanto experimentações fertilíssimas
das potencialidades da vocalidade e da sonoridade lírica. Basta nos lembrarmos,
rapidamente, da poesia fonética, da poesia sonora, dos poemas eletrônicos, das explorações
vocálicas de Luciano Berio, da phase music de Steve Reich, do glitter rock de David
Bowie, do pop concreto de Brian Eno e David Byrne, dos “sampleamentos” vocálicos
realizados pelo grupo Art of Noise, das ambigüidades vocais do techno-ambient inaugurado
pelo The Orb e das infindáveis experimentações posteriores a partir da tecnologia digital de
áudio. A lírica se transfigurou, se estilhaçou, foi reinventada diversas vezes no decorrer do
último século.
No caso do mash up, a indecidibilidade das melodias superpostas cria uma força
diferenciante para a composição bootleg. Isso significa que, pelo efeito destas
sobreposições, a melodia se desprende e se esvazia, em lapsos incontroláveis do tempo, de
seus comprometimentos líricos, expressivos, subjetivados. Torna-se, por assim dizer,
"concreta". No confronto entre duas canções, por exemplo, suas respectivas melodias e
harmonias não cessam de repercutir, umas nas outras, indefinindo o destino da memória e
recriando sensações inesperadas na escuta.
A nova composição poderá, tanto potencializar
uma nuance, antes obscura, quanto atenuar um incômodo clichê. Assim, algumas sutilezas
ou alguns pequenos detalhes, antes inapercebidos, podem se tornar muito mais pregnantes,
mais intensos, incomunicáveis e, por isso, singulares.
Porque temos defendido a escuta em a sua realidade criativa, tentamos desenvolver um
modo de apreender conceitualmente a criação dos compositores de desktop como uma
espécie de "escuta de interferência". O fato é que eles fazem, a cada mínima escolha e a
cada ínfima decisão, sempre aquilo que um músico não faria, porque eles se dão conta de
que não se encontram munidos de nenhuma garantia de musicalidade instituída. Em
74
É um fato que se fazerem novas criações musicais a partir de outras preexistentes, não é algo tão novo.
Resguardadas todas as proporções, haja vista a prática ancestral dos cancioneiros e trovadores; e até mesmo
como o Mestre Perotinus de Notre Dame (Séc. XII) o fazia, ao recortar trechos de partituras de outrem e colá-
las, empiricamente.
91
contrapartida, os dj's de desktop também estarão desprendidos de qualquer constrangimento
técnico ou "musical". O que eles têm à mão é, para além da tecnologia e do logos musical,
a atividade livre, experimental, idiossincrática e afirmativa da escuta. Vivendo a
desestabilizar as fronteiras entre os procedimentos do artista e do diletante, do profissional
e do amador, o dj de desktop se vê menos como um músico e mais como um
experimentador de sensações
75
. Vale aqui dizer que ele atua como um verdadeiro
"personagem da escuta", como um heterônimo experimental de sonoridades pré-
subjetivadas. O dj bootlegger passou a ser tomado aqui como um criador na internet que,
antes de se restringir à conotação estrita de compositor "musical", torna-se um personagem
catalisador de sensações.
É esta condição que nos leva a conceber a composição mash up como uma verdadeira
performance experimental da escuta, uma modalidade de criação, ao mesmo tempo
empírica e conceitual, cujo material não se restringe aos sons ou às idéias, mas que diz
respeito à invenção de modos de sentir, de imaginar e de pensar: de sonorizar. Pode-se
dizer que, ao mesmo tempo em que dj de desktop revela, explicitamente, o seu material (as
canções do pop mainstream, por exemplo), ele também lida com o seu desaparecimento. É
importante assinalar que a composição bootleg mash up torna-se, para a nossa
problemática, a imagem de um procedimento criativo musical ambíguo, uma arte de
paradoxos e de oxímoros para a escuta.
A única força da qual o mash up dispõe é, portanto, a livre, idiossincrática e afirmativa
disposição de escutar, de colocar ouvidos em toda parte, mesmo nos ritmos inaudíveis da
sensação. A sua tarefa é a de saber como tais ritmos irão ou não disparar, contagiar, nas
escutas futuras, novas potências afetivas, rítmicas, sensitivas, ressoantes, de pensamento e
75
É importante notar que os djs de desktop não se sabem como herdeiros de uma suposta linhagem
modernista da experimentação na música eletroacústica, na literatura, no cinema ou nas artes visuais,
tampouco eles se filiam aos grupos de epígonos de Varèse, Cage, Schaeffer, Proust, Joyce, Vertov, Eisenstein,
Kandinsky, Duchamp, Schwitters e outros tantos artistas que exploraram as várias prerrogativas tecnológicas
do século XX para inovar em sua arte. Os compositores bootleggers parecem respirar o que de fato insiste na
criação: o contágio que é de todos os tempos, sem influência de tal ou tal artista, apenas capturam o que lhes
afeta, nos investimentos cotidianos da freqüência à internet.
92
de fantasia
76
. Por fim, para que a realidade da escuta musical se intensifique como uma
potência recomeçante da vida, a sua prática criativa deverá ser atravessada pela
experimentação não só de materiais, mas sim de velocidades, de ritmos insonoros e de
modulações mudas: virtualidades. O compositor de desktop precisa, para tanto, investir na
liberdade inventiva, no embate entre a técnica e a sensação, entre o sentido e a sonoridade,
para que estas práticas se tornem contagiantes para outra vontade criativa.
3.1 – A "arte da escuta" e as sonoridades
"Compor é uma coisa, ouvir é outra. O que elas podem ter em comum?"
John Cage
O problema que iremos perseguir adiante tem a ver com alguns modos pelos quais a escuta
musical veio sendo pensada no século XX e como poderemos imaginá-la a partir da prática
do mash up. Se nós pretendemos defender a realidade da sensação como um misterioso
motor da criação na música, devemos problematizar o impacto da escuta e a sua força
motriz sobre a composição. Isso já foi pensado por Pierre Schaeffer, quando ele dizia que,
antes de começar a compor, o criador deveria investir nas potencialidades da escuta.
Schaeffer, tal como Edgar Varèse e John Cage, é um pioneiro no pensamento e na
experimentação da escuta como princípio da criatividade musical
77
.
76
Com os desdobramentos inventivos das práticas do mash up, muitos dj's de desktop, tal como fizeram a
dupla do Eclectic Method e o dj Danger Mouse, além de muitos outros, passam não mais a restringir a
composição bootleg ao material sonoro, das músicas ou canções eleitas para a composição. Eles estendem as
suas experimentações às possibilidades de tratamento das imagens em seus videoclip mash ups. Os "vj's
booties" multiplicam, com isto, a redistribuição de canais de passagens e de novos encontros entre sensações.
A composição das imagens-movimento se faz por meio de cortes que efetuam cruzamentos singulares entre os
fluxos concretos, rítmicos, da imaginação e de sonoridades. O compositor, também no video-mash up, opera a
partir do mesmo princípio de transdução, entre materiais e forças heterogêneas: no contato entre os regimes da
sensibilidade quando afetados pelas ondulações de sons, de música, de imagens em movimento, de ritmos
com temporalidades misturadas, uma rica composição "sinestésica" pode se realizar. Tal transdução, por sua
vez, realiza-se por meio de modulações de fluxos e de velocidades diferentes de sensações, geradas a partir do
contato alquímico entre ondas sonoras, luminosas, inaudíveis e invisíveis.
93
Compositores contemporâneos, igualmente hábeis no plano do pensamento conceitual, se
dedicaram a tomar os problemas da escuta na condição de principal potência em qualquer
composição musical. Além dos três autores citados acima, merecem atenção os escritos de
Pierre Boulez, Paul Lansky, Jean Molino, Michel Chion, Steve Reich, Sílvio Ferraz,
Rodolfo Caesar, Brian Eno, entre muitos outros. Estes são os exemplos mais conhecidos
pelo mérito de priorizarem, na música, o plano da escuta, considerando todas as suas
implicações na sensibilidade criativa musical.
Destes compositores que perscrutaram a problemática da composição musical a partir da
análise do processo da escuta, foi Schaeffer quem primeiro investiu em suas pesquisas, sob
o válido argumento de que a escuta seria a principal e verdadeira atividade da música. Para
o autor, fazer música é pressuposta como uma arte para ser antes de tudo escutada, uma
verdadeira "arte da escuta". Um compositor precisaria, por tal razão, se transmutar num
ouvinte singular. Não obstante os seus limites, este gesto intelectual acabou por elevar a
escuta musical à categoria de conceito e, com este salto, instaurou um novo terreno para o
percurso contemporâneo do pensamento musical.
O pioneirismo criativo de Schaeffer instaurou um modo de composição inédito na história
da música, a reconhecida poética seminal e contagiante, da musique concrète. Após os seus
trabalhos de composição experimental que desenvolveu a partir de 1948, ele preocupou-se
obstinadamente com os problemas da escuta musical. Conceber a composição como a arte
de escutar e de pensar aquilo que se escuta, tornou-se, para Schaeffer, a única razão e o
propósito da criação musical. A música só viverá a partir de investimentos que instaurem a
presença do ouvido na composição. Ele argumenta, de início, que não existe nenhuma
precedência natural da fonte sonora sobre a escuta. Daí que o seu critério primeiro na
invenção sonora é, por definição, tornar a escuta em uma arte. (SCHAEFFER, 1969).
77
Tal como disse Varèse a respeito das potências da criação musical: "...devem se lançar sobre o ouvinte,
envolvendo-o num movimento que enrede a sua escuta num ato de composição" (VARÈSE, 1993, p. 153).
94
É importante abrir, neste momento, alguns parágrafos para evocar os princípios de uma
importante atitude auditiva, habilmente defendida por Pierre Schaeffer e por François
Bayle, nomeada como "escuta acusmática" ou "escuta reduzida". Apoiados nas antigas
idéias pedagógicas de Pitágoras, eles conceberam um modo artificial de escuta, pela qual o
sonoro e o musical, o concreto e o abstrato, passam a se confundir, despojando-se de suas
habituais fronteiras. A idéia central que liga os dois autores é a constatação de que, grande
parte daquilo que acreditamos estar ouvindo é, na verdade, resultante de experiências de
ordem visual, semiósica e imagética, gestual, episódica, associadas à cultura da audição
musical. Isto implica que há, banhando a nossa escuta, todo um universo valorativo,
interpretativo e simbólico. A finalidade da "escuta acusmática" é, por isso, a de livrar o som
musical de seu invólucro conceitual. Esta visa, em última instância, a impedir toda relação
sígnica que o som possa ativar, ou seja, algo que aja, na escuta, sob o predomínio do
visível, do táctil, do imaginário anedótico ou sentimental
78
.
Na concepção de Schaeffer, toda significação na música está vinculada à identificação, ao
reconhecimento de certa fonte produtora do som e, por conseqüência, à forma desse som.
Para a proposta da escuta acusmática, prossegue Schaeffer, qualquer forma gerada pela
música deve ser, portanto, eliminada, pois ela "significa". A "escuta concreta", ao contrário,
deve desconhecer a forma e qualquer significação anexa aos movimentos "puramente"
rítmicos e sonoros. (SCHAEFFER, 1968, p. 137). O compositor tomaria assim o sonoro
como ponto de partida, não mais pressupondo que haveria, para a escuta, nenhuma
musicalidade definida a priori. O que Schaeffer propõe, enfim, é um modo de escuta
liberado de relações previamente dadas, de perfis melódicos convencionados, de figurações
rítmicas padronizadas, de estruturas harmônicas estabelecidas etc.
79
.
78
O compositor François Bayle, seu amigo e parceiro, acrescenta algumas considerações sobre o termo
"comprendre" na escuta, ao afirmar que não existe compreensão que não aponte para fora da própria música:
"Quando se diz escutar, é forçosamente tentar compreender, porque nossa constituição é tal que em qualquer
coisa, desde que lhe prestemos atenção, achamos linguagem. Como se fôssemos uma máquina emissora de
linguagem e que só saibamos colher linguagem". (BAYLE, 1996, p. 135)
79
A "escuta reduzida" almeja alcançar, enfim, tanto essa desconexão do complexo audiovisual quanto a
adoção de uma escuta alheia a todo índice e a todo valor de referência e de sentido. Schaeffer irá nos explicar,
mais tarde, que este modo de escuta não busca negar absolutamente a aderência de significações na
95
É latente, nas idéias de Bayle e de Schaeffer, a intenção de implantar um tipo de pedagogia
da escuta, para bloquear a prevalência de qualquer conceito anexo ou explicativo na
audição musical. Tal exercício viria para tentar desarmar toda dramaturgia imaginária das
abstrações e das afecções. Este "descondicionamento da escuta" prescrevia um
investimento do ouvinte para se chegar a uma escuta pura, absoluta, concentrando-se
apenas em sonoridades concretas
80
. A escuta deveria então esquecer, deliberadamente,
quaisquer referências causais, imagens ligadas tanto às performances gestuais quanto às
fontes sonoras (instrumentos, informações históricas ou contextuais, bibliografias etc..).
Para tanto, seria necessário despir o ouvido de quaisquer significações ou valorações
musicais pré-determinadas. Vale a pena lembrar aqui esta idéia de Schaeffer, quando ele
diz que é por intermédio daquilo que o som musical tem de assemântico, muito antes da
transmissão do significado, que a música começa, real e plenamente.
Num outro momento de indagações, Schaeffer procurou decompor, conceitualmente, o
processo da escuta musical. Ele se obstinou em descobrir, no seu Traité des Objects
Musicaux, publicado em 1966, que desdobramentos seriam possíveis na performance da
escuta, em sua suposta pregnância perceptual. No Livro II do seu tratado Schaeffer
postulava, valendo-se de especificidades da língua francesa, quatro funções de escuta que,
quando combinadas, se desdobram em sete modos ou níveis de percepção. São,
respectivamente: ecouter, ouïr, entendre e comprendre
81
. E tudo aquilo que se urde entre
experiência musical, mas somente descondicionar a escuta da precedência das imagens episódicas, formadas,
simbólicas. (SCHAEFFER, 1968).
80
Certas dicotomias entre as escutas são focalizadas: a escuta tradicional, escuta "abstrata" (por exemplo:
escuta do nome do instrumento, do significado das notas, das melodias, das harmonias, estados imaginários
ou sentimentais etc..) e o seu inverso, a escuta que ele nomeia de "concreta", cujos desdobramentos serão os
de escutas transientes: sem imagens narrativas, apenas sensações, texturas e movimentos.
81
A primeira escuta - "ecouter" - é uma função que estabelece relações indiciais, de causalidade, entre
representamen (signo) e objeto, percebendo uma "história energética de um som". A segunda, "ouïr", são as
percepções brutas, os esboços do objeto sonoro bruto, estabelecendo relações icônicas ou de semelhança entre
representamen e objeto. Seria ouvir e, rapidamente, qualificar uma coisa sonora qualquer, distinguir um
timbre, por exemplo. A terceira função da escuta, "entendre", são as percepções para além do objeto sonoro
qualificado. Tal modo de escuta se afeiçoa mais a modelos para a catalogação de sons. A quarta escuta,
"comprendre", remete aos signos convencionais, aos valores (sentido e linguagem), à emergência de um
96
o "ouvir", o "escutar", o "entender" e o "compreender" precisa passar por estágios
necessários, tanto de apreciação de sonoridades quanto de nuances de sentido.
O entrave que torna, no entanto, o pensamento de Schaeffer insuficiente para apreender
diferentemente a escuta, é o fato de que ele não consegue esgarçar a individualidade
arbitrária da imagem do "fenômeno sonoro". Isso o leva a conceber a música antes como
uma cadeia complexa de sons a serem qualificados por um ouvinte percipiente. Tipificar,
porém, a escuta a partir de uma classificação a priori de seus supostos níveis e perímetros,
é reduzi-la a quadros de relações formais e a uma simples gradação de objetos sonoros. O
que era antes para ser uma liberação da escuta, acabou por se tornar uma sofisticada
estratificação dos seus modos, transfigurando, por sua vez, o som em "objeto sonoro", o
que nas observações de Ferraz, continuou a inibir a "potência de primazia da escuta frente
aos conceitos" (FERRAZ, 2005, p. 24).
Tal como detectou Rodolfo Caesar (2004), a questão não é a de apenas listar estes critérios
de percepção schaefferianos, para finalmente "compreender" o que se ouve. Isto porque já
sobrevive e subsiste, em qualquer suposta "experiência musical", uma imensa abrangência
do "extra-musical". O descondicionamento, o grau zero, a tábula rasa como ponto de
partida para a escuta acusmática seriam, no máximo, um exercício de aprendizado numa
dada atividade musical
82
. A escuta musical coexiste, portanto, com uma livre mistura de
conteúdo conotativo do som, a referência a, a comparação com, as noções extra-sonoras. Comprendre aponta
para uma "co-preensão", como a última e mais complexa etapa da experiência musical. Na condição de escuta
simbólica, compreender seria o mesmo que, segundo os exemplos dados por Ferraz (1998, p. 54): "...escutar a
morte, a matemática, os afetos, os povos distantes, tudo em código". De acordo com Schaeffer, à medida que
o entendre flui, o ouïr reflui, à medida que o ouïr flui, o entendre reflui e, à medida que fluxos e refluxos se
sucedem, as percepções captam coisas sonoras e passam a delinear objetos sonoros, cujas qualidades
intrínsecas falam de detalhes do evento produtor do som, dos seus contextos e ambientes. Quem encontrou
um modo sintético de exprimir estas quatro fases da escuta pensadas por Schaeffer foi ainda Ferraz, como ele
resume nessa frase: "...ouvir um instrumento (ouïr), a história de sua energia (écoute ), extrair seu quadro de
material composicional (entendre), escutar acordes, gestos, encadeamentos, melodias, sonoridades, toda uma
política (comprendre)" (FERRAZ, 1998, p. 54).
82
Vale também, neste ponto, citar algumas das ressalvas que Rodolfo Caesar faz a respeito das contribuições
e dos limites desta “pré-escuta”. Para o autor, esta seria algo como um exercício auditivo, nada mais do que
um portal de abertura para uma escuta generalizada e integradora, a saber, que não só "ouve e escuta", mas
que também "entende e compreende", ao final do processo. Em termos coloquiais, o autor acrescenta,
97
critérios e não pode haver fronteiras delimitadoras como aquelas da estrutura "ouvir,
escutar, entender e compreender".
As correntes teóricas que se seguiram a Schaeffer, ao se desapegarem do conceito da
percepção musical, defenderam a superação da idéia de que existe uma escuta acusmática
estrita. Filósofos da música, de um modo geral, concordam que não é possível haver uma
escuta "pura", e que todo o universo complexo e dinâmico da escuta não se restringe apenas
à atividade de ouvir sons.
Jean Molino chegou inclusive a defender uma idéia própria de
"fato musical", noção que corresponderia àquela escuta que deve inserir, propositadamente,
nos objetos sonoros e musicais puros, as suas impurezas decorrentes de toda a ação
musical.
Ademais, diz ainda Rodolfo Caesar (2004), não existe de fato o "especificamente musical".
No caso exemplar da música concreta, ocorre uma contradição que a leva, ironicamente,
para um destino extra-acusmático: quanto mais a música incorpora sons não-musicais, mais
ela se abre a outras possibilidades semânticas. Do que foi dito até aqui, pode-se aventar
que, dentre as infinitas escutas possíveis, existe uma que é a "escuta musical". A partir
deste ponto, já estamos dispostos a afirmar que todo empenho no pensamento que se
aproxime da escuta precisa, primeiramente, colocar em questão a própria noção de música.
Esta questão, com a qual muitos se preocupam, tem a ver com a de saber quando a escuta se
torna musical ou quando ela ganha existência musical
83
.
No que tange às contribuições do pensamento musical contemporâneo acerca das
possibilidades criativas da escuta, vale apresentar aqui uma definição conceitual para três
modalidades da escuta, desenvolvidas e entrecruzadas por Brian Ferneyrough e Silvio
condescendente, que a escuta acusmática é como "um exercício de aquecimento e de alongamento, para que
não entremos completamente despreparados nos horizontes elásticos da escuta". (CAESAR, 2004, p. 25).
83
Cf. Herman Parret, quando ele nos diz que Lipps nega o som como primordial na música. Para este, o
sonoro é antes acidental, no poder constitutivo da percepção auditiva. E o seu argumento é o de que a
experiência musical "toma forma" num nível muito mais profundo, o da "vida do espírito" (LIPPS apud
PARRET, 1997, p. 75).
98
Ferraz, a partir das suas leituras de Schaeffer: a figural, a gestual e a textural. Tal distinção
não segue uma separação categórica entre modos de escutar e sim a convivência de regimes
de imagens que fazem prevalescer nestas possíveis performances.
Primeiramente, a escuta figural remete a uma escuta de relações e de funções de elementos
musicais, dos pontos de referência para a memória anamnésica. De acordo com os autores
(1998) a escuta figural é aquela que conduz ao ponto de vista de um sujeito que se lança
sobre um objeto, conferindo uma lógica musical interna e externa, a partir de seus
formantes, de suas notas, intervalos, seqüências, encadeamentos, retornos, estruturas e
sintaxes etc.
84
. A escuta gestual, também denominada como "simbólica", se dá no
entrecruzamento semiótico entre sistemas de signos e linguagem (o gesto, o visual ou o
verbo) e que visa a construir um sentido para os sons, numa espécie de escuta
"dramatizante".Tal escuta pode ter assim uma espécie de compulsão para procurar, nos
movimentos sonoros, um certo jogo de linguagem, que passa, desse modo, a incluir nele o
gesto musical, atribuindo aos sons uma rede complexa de significados
85
.
O terceiro modo de escuta é aquele que os autores chamam de "textural" ou de "escuta
heterogênea". Esta se dirige diretamente rumo as sensações, sem trazer nenhum tipo de
representação ou reconhecimento mnemônico, almejando sobretudo a sensação singular, o
84
Ainda segundo Ferraz, tudo isso é pré-figurado por um determinado sistema (modal, tonal ou atonal) que
governa, há vários séculos, a prática musical do Ocidente. Trata-se de uma escuta meramente funcional, com
elementos que se relacionam de maneira fixa uns com os outros, numa seqüência hierárquica, lidando com
tipos-contrastes e perscrutando correspondências de proporções, com interpolação de ritmos, de acordes e de
estruturas melódicas. A escuta figural inter-relaciona, em última instância, objetos numa rede de signos que
são de ordem indicial. Esta escuta, também chamada pelo autor de "estrutural", mantém-se, portanto, atada às
qualidades do material, uma vez que a sua variabilidade desenrola-se no plano de escuta extensivo, recoberto
por figuras do tempo e do espaço, próprio da percepção e da atividade da representação (FERRAZ, 1998).
85
Este modo de escuta cria, por uma espécie de imitação e sugestionamento, uma dinâmica sonora favorável à
imaginação de paisagens mentais e estados emocionais, por associações icônicas, indiciais ou simbólicas. Um
outro exemplo pode ser chamado como "escuta filosófica", que evoca a gravidade trágica, o gáudio, o
profundo e o extático, a partir de um código repleto de simbolismos musicais instituídos.
99
afeto das sonoridades.
86
A sensação recusa, como veremos, a condição de ser tomada
como objeto de percepção sonora ou musical.
Os autores recorrem ao conceito de textura na escuta por uma razão apenas: para encontrar
na sua atividade não diferenças de grau, nem referências figurativas ou simbólicas, mas sim
diferenciações contínuas de natureza que pressupõem a idéia de que, ao deslocar, ao
subtrair algo da textura, o som não se torna uma variação do modelo original, mas
simplesmente modula-se numa outra textura (FERRAZ, 1998). O que a escuta textural
torna singular, não é o som, em si, mas a sensação, por meio da escuta
87
.
Os autores, no entanto, propõem que a performance criativa da escuta não se limita a um
único plano: o ouvido pode tanto distinguir formas, cores, paisagens, afecções, memórias e
sentidos musicais diferentes, quanto tatear texturas rítmicas ou entrecruzar reminiscências,
imagens e afetos. Uma escuta que se diz heterogênea, no entanto, é aquela que procede por
uma coexistência criativa de diversos planos de escuta, simultâneos uns aos outros, que se
deixam entrecruzar e que se interpenetram o tempo todo. Nesse modo de escutar, podemos
deixar um campo de escuta para entrar em outro, podemos muito bem emergir de um
território inesperado e migrar para outros. O ouvinte heterogêneo, segundo assinala Ferraz:
"...vagueia entre escutas texturais, figurais e gestuais, passando por territórios que são o
desdobramento infinitesimal de outros territórios." (FERRAZ, 1998, p. 163). O que
realmente importa na escuta musical é que os nossos centros de interesse estejam sempre
liberados para mudarem e saltarem de um plano a outro.
Uma vez que defendemos, no que diz respeito ao pensamento das hecceidades, as suas
possibilidades para abordarmos a realidade do devir na escuta, ainda há tempo para evocar
86
É preciso apenas definir aqui o conceito de textura, uma vez imaginado para se pensar uma dimensão
importante da música. Para Ferraz, textura é a sensação produzida pelo dinamismo dos elementos presentes
num determinado fluxo sonoro. A textura é "intensiva", ou seja, não há como subtraí-la ou dividi-la sem que
ela mude de natureza (FERRAZ, 1998).
87
A primeira modalidade da escuta cuida de buscar relações formais entre os elementos musicais, a segunda
faz jogos de associações entre imagens formadas ou gestuais; e a terceira, textural, é a escuta que se deixa
afetar por sensações singulares.
100
uma idéia também defendida por Ferraz e que nos diz assim: o que se entende por "som".
Sendo este já qualificado, só dirá respeito a uma coisa estanque, a um fenômeno, a uma
imagem conceitual arbitrária, espacializada. O que se movimenta na música é antes a
escuta, e não o som. E a escuta musical, assim pensada, pode ser muito mais do que aquilo
que soa. A questão é, afinal, a de ouvir não o som, nem o que está no som, e sim o que está
no ouvir, nas potências que nos afetam e que se movem, que se criam pela escuta. Em
suma, a música, tanto não repousa apenas no sonoro, quanto o sonoro não é, já o vimos,
uma ação puramente auditiva
88
.
Podemos pensar os tempos da escuta em termos de hecceidades, aceitando que nela
cooperam imagens pré-sensíveis, imagens sonoras e até imagens de música, às vezes, sem
nenhuma referência ao som (como nos sonhos, na escuta imaginária etc..). O conceito de
sonoridade começa agora a ganhar uma outra imagem, se considerarmos que tudo aquilo
que soa não é apenas o som, mas sim uma composição heterogênea, contingencial, efêmera,
mutante, de muitos tempos, durações "invivíveis" na condição de estados sentimentais ou
de fenômenos sonoros. O sufixo da palavra sonoridade denota, tradicionalmente, aspectos
qualitativos, abstratos, adjetivados, timbrísticos, dos sons, das obras musicais. O conceito
"individuado" de sonoridade irá descrever, ao contrário, o processo, a transiência imanente
e os desdobramentos não-musicais implicados na escuta – o devir-escuta - e não
simplesmente um objeto da escuta musical.
Uma nova idéia de sonoridade precisa ser então acolhida, porque ela expressa esse moto
contínuo que sempre se afirma à livre - e irresistível - vulnerabilidade da escuta musical. A
sonoridade é, para tal propósito, uma palavra desejável porque, no plano do pensamento
das hecceidades, ela expressa o que nos afeta quando escutamos, e que a escuta ultrapassa
os tempos psicofísicos da audição, os tempos mnemônicos das percepções e os tempos
sensório-motores das afecções. Em outras palavas, escutar não se circunscreve apenas aos
contextos de uma execução musical, à objetividade social da música, às referências
88
Ferraz arremata: “...escutamos tudo aquilo que vem com os sons...”, deixando ele claro que a escuta é
urdida por ritmos, explícitos ou secretos, que os sons tecem com as nossas vidas (FERRAZ, 2005, p. 76).
101
culturais anexas, aos universos da subjetividade etc.. A imagem conceitual da sonoridade
aponta antes para um plano de devires, para aquilo que se diferencia como devir-escuta.
São todos os ritmos, musicais e não-musicais, atuais ou virtuais que ela consegue maquinar,
sintetizar, contrair, contemplar, condensar ou catalisar. A escuta, sendo uma força
compositora de sonoridades, vive quando co-implica velocidades, fluxos, encontros,
cruzamentos de imagens, de intensidades e de modulações de toda natureza. Esta sim, seria
a imagem individuada da realidade da escuta, da sonoridade.
Sem simplesmente tentar inverter a perspectiva da análise, imputando a produção da escuta
a um ouvinte, sob a conhecida linha das teorias da recepção, recordemos que a música se
compõe como uma performance criativa da escuta. Por isso, todo atributo que apontamos
geralmente a um músico: o seu virtuosismo, a sua fecundidade criativa, a sua formação
musical, a sua performance técnica etc.., seriam subsidiários aos planos criativos da escuta.
Vale aqui afirmar, de início, este ponto crucial de nossa tese: a escuta como compositora de
sonoridades, é o movimento seminal de todas as realidades musicais.
3.2 – O limite e a liberdade na invenção da música: o plano de composição e o
diagrama
"Forças desconhecidas travavam uma batalha em que
meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate
incógnito."
F. Pessoa
O pensamento da composição da música nos endereça a um problema decisório: a imagem
de finito e de infinito. Para a concepção das hecceidades defendida por Deleuze e Guattari
(1997), a idéia de finitude-infinitude acena, em primeiro lugar, para aquém de qualquer
cronologia temporal ou representação espacial. Ou seja, os fluxos da realidade não se
deixam regrar pela tríade abstrata energia-espaço-tempo. O infinito, também na leitura dos
102
autores, não deve ser imaginado simplesmente como ausência de limite ou, ao contrário, de
um término, no sentido que nos dá o pensamento transcendental. O infinito é, por sua vez, a
imagem do movimento de imperceptíveis devires, absolutamente livres. A infinitude será
sempre afeita a um princípio de absoluta novidade, redistribuível e enriquecível enquanto a
face do passado puro se diferencia no encontro com a face iminente do futuro. Infinito é
todo o movimento, que não conhece nem começo nem fim, só recomeços. A imagem de
finito, de sua parte, são apenas as balizas protetoras que o pensamento e a imaginação
criam para enfrentar o caos.
Acontece que, continuamente apanhado por um turbilhão de sensações que assomam a
atividade da escuta, o compositor também precisa lidar com o finito e o infinito, ou melhor,
com imagens, sensações e memórias que emergem desta luta experimental. Para que haja
um início, uma gênese de sensações singulares e que uma composição comece a se realizar,
o criador deve, antes de tudo, erigir um chão instaurador, uma reiteração, um regime, tal
como, na expressão dos autores, "...um ponto-cinzento no meio do caos" (DELEUZE &
GUATTARI, 1997, p. 76). Para não ver com desespero as suas idéias pulverizarem-se, o
compositor necessita de uma certa disciplina marginal, de um certo parapeito de
preservação, de uma dose de normas e de estruturas, controladas e controláveis, que
possam evitar uma deriva pela absoluta proliferação incontrolável de elementos, idéias,
relações etc.. É o que não vai permitir que ele sucumba a um mero desfile de variações
desconexas, de sensações aleatórias. Para tanto, quem compõe precisa sempre levar
consigo, no devir, um pouco de extrato de significância, um pouco do extrato de
subjetivação, guardando assim, pequenas "rações de subjetividade", que durem o suficiente
para poder responder à realidade dominante. O criador, por este artifício, pode se tornar
capaz de garantir a unidade das sensações e pensamentos. A criação da música requer, por
tal necessidade, tanto a experimentação livre, quanto certas reservas e precauções no seu
processo (DELEUZE & GUATTARI, 1997).
Seria desejável, assim posto pelos autores, conciliar em certos momentos da criação, os
jorros da fantasia, a liberdade experimental, a espontaneidade e a idiossincrasia, na
103
condição de forças primeiras, eminentes, e um mínimo de constância, de formas, de
sentido, intrinsecamente segundos e relativos. O sentido, note-se bem, deve atuar não como
uma função estruturante na composição, e sim como um coadjuvante, no seu princípio
estável, para a instauração de um nomos, de um território de ritmos e de imagens, para se
iniciar – ou recomeçar - o embate da criação.
Em consonância com os autores, afirmamos que o compositor precisa, pelo menos, de um
pouco de ordem inicial, para proteger as sensações do caos, para resguardá-las de uma
transiência absoluta e sem ritmo. Deleuze e Guattari (1997), frisam, por meio do conceito
de "agenciamento", a idéia de uma economia do finito e do infinito, nos problemas de toda
a arte, ao asseverarem que só a instauração de um limite pode provocar a liberdade e tornar
possível que algo se abra, que se disponha, abertamente, ao ilimitado e ao impalpável. Sem
uma história, por exemplo, - devemos aceitar este imperativo - o porvir permaneceria
apenas um puro indeterminado, uma carência de devires, uma sopa estagnada, uma total
ausência de ritmos e a sensação, refém de movimentos ordinários gratuitos.
Na seqüência desta abordagem, a sua condução será inspirada, de ora em diante, no
conceito de “plano de composição”. Esta expressão foi desenvolvida por Deleuze e por
Guattari a fim de pensarem, por meio do pensamento das hecceidades, as forças imanentes,
intensivas e modulatórias que se implicam na criação da música. Um cuidado inicial deve
ser observado na construção da imagem desta concepção. É importante enfatizar, de início,
que o plano de composição, tal como o imagina o pensamento da imanência, não se
constitui por meio de estruturas formais nem de organização. Esta seria uma noção
transcendental de um plano, dimensionado por uma espacialidade abstrata. A abstração de
um plano não passaria, para os autores, da figuração de um todo finito que se articula em
partes funcionais, geralmente distintas por jogos de oposições "mecânicas". Deleuze e
Guattari, ao contrário, não falam jamais do plano na condição de um programa, de um
sistema, de uma estrutura ou de um projeto.
104
Uma distinção feita por S. Ferraz acerca de como seriam um plano de organização e um
plano de composição, torna-se uma explanação oportuna, neste momento. O autor explica
que a imagem gerada pelo pensamento transcendental quando este diz "plano de
organização" supõe a existência de um sistema fechado, que este se faz de elementos, de
partes conjuntas em um Todo, hierarquizados por relações de ordem funcional. Isso quer
dizer que, das funções dos órgãos devidamente articulados, o "organismo se organiza". Ou
seja, no processo de organização, as coisas só ficam juntas por uma coesão explicativa, por
associações de imagens espacializadas, como matérias formadas e suas mobilidades
coordenadas. A organização abstrata de um plano dependerá sempre de alguma dimensão
anexa explanatória. Esta imagem mecanicista de um plano apenas saberá lidar com espaços
homogêneos e relações que só conseguem funcionar a partir de movimentos pré-orientados,
aprisionados por uma série de regras fixas, por coercitivas leis de coerência e de repulsa ao
acaso, ao ruído e a pane.
Ainda há uma outra imagem de plano cuja premissa refutamos. É aquela orientação lógica
de um caminho previsível de múltiplas probabilidades. Porém esta representa uma falsa
multiplicidade, que multiplica somente o que o código e o sentido lhe determinam
previamente. Tal idéia é o que diferencia o plano de organização, que se faz para ser
reencontrado, do plano de composição, que sempre está para ser feito.
A adoção do plano de composição poderá, a partir de agora, nos ajudar a pensar a escuta
musical para além dos quadros fixos dos sistemas fechados, que se debruçam sobre o
fenômeno sonoro e a estrutura musical. O plano é, em sua imagem imanente, antes,
povoado por uma matéria-fluxo anônima, por ritmos infinitos de uma matéria impalpável,
entrando em conexões heterogêneas e redistribuições irrefreáveis. O plano de composição,
no sentido que Deleuze e Guattari (1997) lhe deram, deverá ser pensado como se ele fosse
um catalisador de virtualidades. Tratamos aqui de um plano que se movimenta, mas não é
um mover que se dá apenas em nossas temporalidades sensíveis ou cronológicas, cujas
105
dinâmicas se manifestam precisamente sob memórias, abstrações e afecções
89
. Os autores
imaginam o plano de composição como um imenso "tear de tempos", de ritmos
absolutamente circunstanciais. É por essa razão que há no plano um constante risco para a
dispersão, uma instabilidade inevitável e uma consistência que é sempre provisória. O
plano, mesmo criando limites protetores, está sempre sujeito a ativar conexões
imprevisíveis, irrupções improváveis.
Vale dizer, a respeito da invenção na música, que um compositor recorre, até mesmo sem o
saber, a meios inconfessáveis, inconscientes ou pouco razoáveis, ao traçar um plano para
compor. Em outras palavras: ele nunca encontrará meios seguros para saber sobre aquilo
que irá ou não povoar o seu plano, antes de o ter construído. Por esse motivo, o compositor
precisa, como parte inevitável da composição do plano, contar com o impensável, com o
insonoro, com aquilo que ele não sabe.
Não se pode mais esquecer, a partir daqui, o fato de que qualquer plano é, por definição,
um encontro de muitos planos. O compositor, de sua parte, não tem como saber,
previamente, a quais outros planos aquele que ele erigiu vai se superpor, se conectar, se
anexar, envolvendo e sendo envolvido. Ou ainda, que tais encontros irão acelerar,
desacelerar, precipitar ou desmontar novas junções de tempos e ritmos. É como se o plano
fosse folhado: limiar e fibra, mutuamente recoberto ou banhado por seus condensados
rítmicos heterogêneos, acavalando-se, re-distribuindo-se, numa superfície imanente, ubíqua
e contínua, de circulação das intensidades
90
. No plano, vale assinalar, nada se resolve como
uma questão fechada, com seu um fim pré-delimitado, apenas se persevera um ritmo que se
89
O plano, refrisamos, não é um fim nem é um meio, não tem superfície, não tem volume, é o solo absoluto,
imanente, informe, fractal, ilimitado. Um plano de composição comporta linhas de força de naturezas
diferentes, que se acoplam umas nas outras, em inimagináveis e sutis transições. O plano é uma espécie de
"respiração envolvente", uma consistência absoluta, um auto-sobrevôo sem distância, sem remeter a nenhum
ponto de vista exterior, subjetivo, transcendente. O plano de composição é, por fim, pura imanência, mas não
imanente a algo, e sim imanente em si mesmo. Ele é a realidade paradoxal, que se decide e se "indecide"
enquanto se move.
90
Os planos, de acordo com as forças e ritmos que nele perseveram, podem deslizar uns nos outros. Podem
escorregar sutilmente, em contágio recíproco: ora um a se destacar do precedente, ora outro se tecendo, nas
malhas do primeiro.
106
dissolve em bifurcações recomeçantes, que se consolida novamente, se densifica e se
rarefaz. O seu primeiro problema é um problema de consistência, de consolidação de
fluxos, de ritmos, de novas imagens do Tempo, de sensações rítmicas e de suas potências
criativas.
Há uma outra dedução muito importante dos autores: para um plano de organização, tudo o
que nos é dado, se apresenta sensivelmente em função deste plano. Mas o próprio plano não
nos é dado. Do mesmo modo, no caso da música, o plano, por assim dizer, não seria aquilo
que ressoaria para a nossa percepção. Ele somente seria concluído a partir dos seus efeitos,
"inferido" em função das formas perceptíveis que ele nos daria: as melodias e acordes,
arpejos e figuras rítmicas, os timbres, as performances musicais, as afecções, o pathos etc..
Para o pensamento da imanência, o plano é dado com o que se sente, porque ele é imagem-
movimento, imagem-Tempo. Não é uma estrutura transcendental que se esconde do
sensível, e sim uma composição de sensações, de uma respiração de ritmos que geram
imagens, memórias, futuros, intensidades afetivas.
Reafirmando: sempre que se pensa no plano de composição da música, deve-se pensar,
primeiramente, num plano de escutas. Este plano será um campo imanente, propulsionado
por seus amplexos de tempos, maquina fluxos de imagens e imagens
91
. Deleuze e Guattari
concluem que o plano é, por tudo isso, uma "máquina perplexa" cujas acoplagens e
acavalamentos nos dão formas e forças. Estas serão, respectivamente, contraídas, sentidas,
sintetizadas, atualizadas.
É plausível acenar, neste ponto, para o fato de que o plano de composição também precisa
contar com uma coexistência de vários níveis de limite. Estes podem ser os estereótipos, as
91
Cf. Em O que é a Filosofia?, os autores afirmam que, na música estruturada por um princípio de
organização, este plano estrutural não aparece, por si mesmo. Há um princípio transcendental, que não é
sonoro, que não é audível por si mesmo, mas nos dá o que ouvir. No plano de imanência, para os autores, é o
próprio princípio da composição que deve ser percebido, ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe ou dá.
Será, portanto, sempre dado com aquilo que ele dá. Esse plano imanente nos faz perceber, deste modo, o
imperceptível da música. Tudo é devir-imperceptível no plano de consistência, mas é por ele que o
imperceptível será ouvido. (DELEUZE & GUATTARI, 2005)
107
performances da memória: a matéria, a forma, o espaço, a lógica etc.
92
. Sabemos que, em
contrapartida, se negamos categoricamente a história, a medida, a cronometria, estamos
também a negar parte das ocasiões singulares que são decisivas para a prática da criação
musical. Pode haver singularidades, virtualidades, mesmo diante dos condicionamentos da
memória, de um conjunto de técnicas, de valores e sentidos embutidos nas práticas
musicais. A tarefa do compositor seria a de se valer do plano para enxertar limites em
velocidades passíveis de provocar dissolução, em sua variedade caótica absoluta de
movimentos. A partir deste recurso inicial, ele poderia liberar ritmos e imagens antes
repertoriados pela experiência social da escuta musical.
O compositor vai escolhendo, imaginando, de início, uma finitude sensível para nela
mergulhar e, daí em frente, tentar processar, produzir novos infinitos de devires, novas
singularidades afetivas para as sensações. A palavra "clausura" torna-se um conceito pelo
qual Deleuze e Guattari nos fazem imaginar os limites necessários impostos pelo trabalho
inicial de composição. Tal enclausuramento remete, bem entendido, à imagem das
hecceidades: vai emergir dele uma abertura ao infinito, às sensações livres, às virtualidades
da imaginação criativa
93
. Na ausência absoluta de certa estabilidade, de certa reiteração de
ritmos ou de sinais, de regimes de sentido, o criador corre o risco de ficar sem um terreno
para partir ou sem marcas iniciais para ultrapassá-las.
O problema é que, de um lado, ele se vê diante de um mundo caótico, fascinante,
enigmático e esquivo às reduções lingüísticas, de outro, ele precisa lutar contra a
representação, o clichê e as sobrecodificações persuasivas de sentido. O que lhe resta, com
92
A composição precisa, para o seu salto inicial, de um solo e de um modo de marcá-lo. Esse movimento
pede então que se conserve, num primeiro momento, um mínimo de ritmo e de sentido prévios. A realidade da
transiência absoluta seria apenas uma realidade do "incondicionado". As sensações, por sua vez, seriam
privadas do trabalho da imaginação, sem os anteparos da contigüidade, da semelhança, da
complementaridade, da causalidade, da lembrança etc..
93
Recapitulando: o plano de composição pede por uma moldura que não nos deixe naufragar na lama do
indiscernível, sem qualquer nomos que o estabilize. Dito de outro modo, o plano solicita do compositor certas
contenções de movimento, para que tudo ali não se desarme num mergulho indistinto, no puro neutro. Para
Deleuze e Guattari, nenhuma arte não poderia começar sem a pressuposição do sentido: "Se não formamos
uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos." (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p,
305).
108
efeito, para que ele não acabe por desistir da própria criação, será lutar, de um lado, contra
os regimes estáveis da significação e, de outro, se digladiar contra os traiçoeiros vácuos de
sentido e de ritmo.
Deleuze e Guattari, na apreensão do embate da invenção na arte, evocam uma de suas
principais recriações conceituais, intim
109
toda a atividade do compositor de desktop, uma vez que ele lida, na criação dos mash ups,
tanto com materiais altamente codificados da indústria musical quanto com forças
absolutamente incontroláveis que emergem dos ambientes digitalizados.
3.3 - Os ritornelos da escuta compositora
"Estou ligado a terra por laços mais que terrestres."
Van Gogh
Nestas últimas linhas do trabalho, iremos tratar de compreender a imagem da escuta
compositora a partir de um dos conceitos mais complexos que Deleuze e Guattari
reinventaram: o ritornelo. Esse tópico final terá por justificativa demonstrar que os fluxos
da vida sensível, do pensamento, da criatividade, da escuta se criam por muitos amplexos
de modulações do Tempo.
Como se sabe, o conhecido recurso tradicional do ritornelo, fundamental na forma da
música européia, tem a sua condição num tipo de mecanismo retroativo da chamada
memória "recente" ou anamnese, que pressupõe as re-apresentações de temas melódicos, de
encadeamentos rítmicos, de seqüências harmônicas ou de métricas textuais escandidas. O
ritornelo veio sendo estruturado por um sentido que se revela justamente através do retornar
de uma idéia musical que deverá ser reconhecida por uma memória anamnésica
condicionada culturalmente para exercer este trabalho. As notas musicais, os fraseados
melódicos, os incisos, os períodos musicais e os estribilhos vão injetando, por repetições
nuas de elementos já formados, os modos pré-orientados de "reconhecimento visual da
audição", performances próprias à da lembrança e do imaginário
95
. Todos esses recursos
95
O ritornelo, como símbolo recorrente nas partituras, trata-se, sabidamente, de uma figura que indica, na
performance da execução de uma peça musical, formas de voltar, fosse à introdução, aos temas, refrões,
estribilhos ou estrofes, chorus etc.. O ritornelo sinalizava, na performance musical, o retorno de uma seção da
obra que reenviaria o ouvinte ao trabalho, recognitivo, da memória anamnésica.
110
musicais também são normalmente encaixados, em variações ao redor de um eixo
magnético imaginário (a tônica, por exemplo), construindo um sentido que passa a edificar
um espaço abstrato homogêneo, delimitando um escopo para as performances da memória
musical.
O pensamento de Deleuze e de Guattari, no entanto, implodiu a imagem estritamente
musical do ritornelo e fez dele um dos conceitos mais instigantes para a filosofia
contemporânea. Diante da idéia nietzscheana do eterno retorno, os autores apontaram que a
dinâmica vital opera por uma única repetição possível: a das forças modulatórias do
Tempo, sendo que a cada oscilação tudo se diferencia e muda de velocidade, de
intensidade, de virtualidade. O verbo “retornar”, já o sabemos, assumiu desde então, uma
outra compreensão. A antiga figura musical do ritornelo foi assim re-modulada como um
conceito para se pensar os modos do perpétuo movimento de diferenciação virtual, o devir
mais o afeto, pelo qual o mundo se manifesta concretamente.
Já está claro que a imagem do ritornelo não corresponde ao simples vai-e-volta, que não se
trata da mera repetição de um elemento num eixo espacial. Ele compreende reiterações,
mas de repetições diferenciantes, de uma gênese contínua de novas imagens, de
intensidades novas do Tempo. (DELEUZE & GUATTARI, 1992)
96
. O ritornelo será, por
tudo isso, imaginado como um tipo de movimento próximo à idéia de um "nomos nômade",
na qual tudo só ganha consistência rítmica por meio de seu modo de se mover. São os
ritornelos que juntam planos, são eles que formam compostos de sensações e que têm uma
potência única de perseverar e de redistribuir devires. Ao engendrar o movimento numa
repetição recomeçante, o ritornelo entrelaça as suas linhas costumeiras às linhas erráticas
do futuro. É assim que nasce, nos micro-devires, a diferenciação imanente. É desse modo
que se encavalam, nos mínimos movimentos, ritornelos de todos os tipos, que não param de
96
O ritornelo, todavia, não é um looping. Ele nada tem a ver com interpolar ou ordenar sons, nem com
permutar ou colocar um elemento em loop. Os ritornelos, na música, não são apenas os temas recursivos, as
suas evidências catalogáveis, as seqüências harmônicas ou seriais, mas também são os pontos circulantes e
casuais que vivem dentro dessas evidências. (FERRAZ, 2005).
111
constituir novos modos imprevisíveis de retornar (DELEUZE & GUATTARI, 1992). É
graças a esse misterioso movimento que tudo perdura e, paradoxalmente, se renova
97
.
O ritornelo passa a ganhar, para o pensamento das hecceidades que os autores acolhem,
uma outra imagem conceitual: ele estará ligado, tanto à realidade não-humana ou mesmo à
vida não orgânica, quanto aos tempos humanizados do hábito, da memória e da
representação. O mundo se mantém consolidado e se recria sempre pelo movimento dos
seus ritornelos heterogêneos, como potências recomeçantes, rítmicas, do Tempo. Pode-se
aqui arriscar uma curta definição: o ritornelo é a repetição de um eterno recomeço. A
palavra "ritornelo" deve ser, por isso, imaginada para um regime de transiências ainda pré-
musicais, para aquém da música atualizada.
No pensamento da imanência, o ritornelo deixa de representar apenas um procedimento da
prática da memória musical para, em contrapartida, imaginar uma realidade não-formal,
sequer sonora, mas potencializadora de movimentos criativos do Tempo. A idéia de
ritornelo desliza, daí em diante, de uma função estruturante de durações formais para um
trabalho de força que gera um ritmo, e que este ritmo sempre irá se diferenciar em seu
modo de retornar. Qualquer ritmo, portanto, só é ritmo na condição de um retornar
diferenciado e diferenciante. Se o ritornelo, na sua imagem de ritmo seminal da força do
Tempo - daquilo que volta, mas sempre "diferentemente" -, será o conceito-mestre
empregado para sintetizar toda a gama de experimentações que a realidade criativa da
escuta pode assumir. O ritornelo seria justamente esta força vibrátil do Tempo que gera um
território estável, "direcional": o passado em andamento, a memória, o sentido etc.. Ao se
97
Ele se torna, para a concepção de Deleuze e de Guattari, um "monumento de sensações", porque é o seu
movimento que vai conservá-las, graças ao seu paradoxal poder, ao mesmo tempo, criativo e conservador, de
perceptos e de afetos. No que diz respeito ao ritornelo na a arte, é importante então dizer que ele tem o
estatuto de "monumento do futuro", por sua aptidão para conservar sensações, retirando-as da dimensão
fenomenal da entropia. Em nossa vida sensível, de pensamento e de criação, o ritornelo é o recurso
fundamental pelo qual desenhamos momentos que, sem esta máquina de apreensão, estariam perdidos para
sempre. É por esta razão que podemos chamar o ritornelo de "monumento", pois é ele que faz conservar as
intensidades rítmicas no tempo. A arte mesma é um monumento, por conservar a si mesma, por conservar
vibrações. Mas eis um monumento que não comemora o passado; ele é um bloco de sensações presentes que
só devem a si mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o composto de sensações que celebra
o futuro, que transmite, para o futuro, as sensações.
112
diferenciar, pela intrusão das forças do futuro – a fece futura do devir -, a escuta poderá se
tornar um plano imanente à eterna recriação.
Para conceber um ritornelo na realidade criativa da arte, Deleuze e Guattari dividiram-no
em três tempos singulares: a territorialização, a desterritorialização e a reterritorialização.
Criar seria começar, segundo a idéia do ritornelo, com o problema do território e com outro
problema imanente àquele: o de como dele sair e de como nele re-entrar
98
. Este é, para
Deleuze e Guattari, o problema do território (como estabilização pretextual), da
desterritorialização (como o deslocamento do regime estável em que se fez o território) e da
reterritorialização (como a re-apresentação diferenciada do território, que o tornará
estranho, mutante, criativo, singular). Significa dizer que ora o criador desterritorializa a si
mesmo, ora ele sai, deixa o seu território. Quem cria quer, ou tenta ao menos, voltar como
um estrangeiro para o seu território (os regimes de escuta preexistentes), num ziguezague
entre este, o que ele não tem mais (a memória e as percepções musicais), e o território ao
qual está tentando chegar outra vez (a sensação singularizada da realidade). É daí que nasce
o movimento criativo da reterritorialização. Finalmente, para o embate da criação musical,
não haveria qualquer territorialização sem que houvesse um vetor, uma força para deixar o
território - a desterritorialização dos regimes estáveis da música. Não haverá, todavia,
qualquer tal ejeção do território sem que também haja uma re-territorialização (afetos
singulares da escuta).
Em resumo, o movimento da criação na música pressupõe o seu princípio de ritornelo, que
corresponde ao conjunto complexo de devires e de gestos do territorializar a escuta por
meio de uma plano, com suas clausuras e seus diagramas (algumas notas, uma seqüência de
98
É válido assinalar aqui a importância que tiveram as leituras de Deleuze sobre os estudos da já citada
"etologia", de Spinoza, as quais foram criativamente re-imaginadas, pelo autor, no seu pensamento da arte e
da música. Para a vida animal, de modo geral, afirmam Deleuze e Guattari, os territórios são expressos e
delimitados por uma infindável emissão de certos sinais e por reações a tantos outros sinais, bem como por
limites e constâncias, hábitos e repetições. O bicho, sempre à espreita, nunca está totalmente tranqüilo e
sempre fica olhando por sobre os ombros. Nesta frase testemunhamos o poder do ritornelo, que começa com a
instauração de um solo: "...fazer um território não é simplesmente uma questão de marcas defecatórias e
urinárias, mas também de uma série de posturas (ficar ereto/sentar), uma série de cores (que um animal
assume), uma canção." (DELEUZE & GUATTARI, 1992, p. 124).
113
acordes, uma batida etc..), do desterritorializá-la implodindo as conexões de sentido e da
memória musical; e re-territorializá-la, indecidível em sua antiga progressão, irreconhecível
pelos condicionamentos da memória. A memória assim não seria mais convocada a
identificar uma forma, como um retorno do mesmo, ou a se repetir, de maneira figurativa,
como foi, historicamente, condicions((4t no cT18 106i4s)14m)84suraios(mmdE1só(é Tcsa. A m)8. f.emonvvc-TD0.0005 Tc0.00eTj/etg0õsa. A8.) re-ttomsdecos.s.s2v7 A8.s.o.o.o.o.oã(2an2.o.o.oã(2an2d008 T95. A m)8ro(e)]TJo10.i8.) 6o10Rvo0.src00e
114
um centro e, em torno dele, experimentar um giro, um volteio
99
. Dessa maquinação de
tempos e de imagens surgirão outros centros e outros giros, que podem levar a um novo
centro, a um novo giro. Por fim, o ritornelo não significa apenas voltar ao mesmo ponto,
retomar do início, mas ele é uma tarefa do compositor que escolhe um lugar, faz dele um
território, sai e retoma este lugar. Mas nem ele nem o lugar serão jamais os mesmos, uma
vez afetados pelos devires da criação.
A música também se compõe a partir desses jogos de fazer e de desfazer "territórios de
tempos": fazer com que a escuta viva um pouco neste lugar e que ela se sinta arrastada para
fora deste mesmo lugar. Mas, para tanto, o seu maior recurso é este de fazer reiterações de
elementos, de fazer com que as coisas girem, primeiro, como numa pequena roda de
tempos. O compositor escolhe um centro, seja ele um núcleo melódico-harmônico-rítmico-
timbrístico, sejam séries de figuras rítmicas, pequenas reiterações, reverberações, pequenos
jogos de ressonância etc.. Todos estes movimentos são o próprio material de que se vale o
criador para se desenhar, ritmicamente, um território (FERRAZ, 2005)
100
. O recurso do
ritornelo na criação musical poderá residir nesta estratégia de repetir e de depois alternar o
que se repete com alguma coisa que venha de outro lugar. Nesse delicado retornar criativo,
forçosamente algumas forças se perdem, outras persistem, ritmos são formados e formas
são dissolvidas, a realização de uma idéia deixa outras tantas irrealizadas.
Sabemos, de acordo com os autores, que a operação da composição musical começa a partir
de ritornelos. Também sabemos que tal operação não se liga, primeiramente, à matéria
sonora nem a busca de uma forma no espaço-tempo energético, vivido e histórico. O artista
da música compõe, mas não apenas com sons, e sim com devires-sons. A sua economia é
99
No dizer de Ferraz (2005, p.85): "...é com meus ritornelos que capto os ruídos à minha volta, alguém que
fala...". É esse o momento mais decisivo da composição: o artista escolhe um centro, gira em torno dele com
alguns elementos, é atraído por um outro centro e daí retoma o movimento. No momento de territorialização,
o ritornelo é ainda apenas funcional. É na desterritorialização e na reterritorialização que ele irá ganhar um
poder de catalisar as modulações em curso.
100
Os primeiros passos de uma peça musical são, para Ferraz, o desenho. É por meio dele que se deixa claro a
quem ouve que existe uma sonoridade em círculo, uma repetição inicial (um intervalo musical, algumas notas,
um som concreto, um tipo de ressonância, um gesto, uma figuração melódica ou harmônica) (FERRAZ,
2005).
115
de sonoridades. Por conseqüência, no ritornelo o que volta nunca é o elemento musical, não
é a forma nem o material. O que sempre volta, na composição, é a potência de fazer afetos
de música, de fazer escuta.
Para imaginarmos seu movimento na realidade da escuta, muito antes da música e do
sensível, do sentido e da subjetividade, tomamos o ritornelo como um tipo de afeto do
Tempo que funda ritmos. Os incontáveis ritornelos que compõem a escuta são, como
sabemos, ritmos recursivos, mas repetições imanentes, que potencializam a condição da
diferença íntima, nos encontros do passado em marcha com o futuro imediato, como modos
criativos do devir. Eles recriam ritmos que se entrelaçam, sempre "recomeçantes", aos
devires não-humanos e aos tempos das virtualidades, das sensibilidades, do pensamento e
das sonoridades.
O ritornelo preexiste, como já se sabe, não só à existência da música, mas à própria
dinâmica vital humana. Ele é o grande "giro caósmico". Os ritornelos, na realidade,
exprimem dinamismos poderosos que nunca param de se encavalar, ora ritmando-se, ora
descarrilando-se, em infinitos ritornelos. O ritornelo, em sua condição de "máquina de
devires", pode fazer entrecruzarem-se tanto potências e intensidades inomináveis quanto
extensões qualitativas, imagens já formadas ou significados. Pode-se também definir o
ritornelo como um tipo de interface maquínica entre regimes atualizados de discursividade
e ritmos não discursivos de virtualidades.
A escuta criativa precisa encontrar e recriar sobretudo ritornelos. Ele pode criar, graças à
escuta, algo prodigioso que ultrapassa a dimensão restrita do som ou da música. E não são
apenas ritornelos fenomenais que ele coloca um depois do outro, mas também ritornelos
intensivos que se encontram, se acoplam, se acavalam, se potencializam. A composição
vive de conjugar, de todas as maneiras possíveis, forças e formas heterogêneas, lidando,
simultaneamente, com elementos melódicos, finitos, e com um grande plano de
composição, infinito (DELEUZE & GUATTARI, 1992). Os ritornelos na escuta musical
podem ser muitos: as repetições virtuais que geram as intensidades, as reminiscências, as
116
reiterações recognitivas próprias da percepção, da linguagem e da história, as redundâncias
mecânicas do habitus etc.. É, por fim, a comunhão de pequenos ritornelos – musicais ou
não - com os grandes ritornelos do Tempo. Todo esse imenso giro vai aninhando milhões
de pequeninos giros, perfazendo um plano de sensações e de afetos que recompõem a
realidade sempre criativa da escuta musical
101
.
101
Esses giros do Tempo, se bifurcando indefinidamente, são a própria força criativa da repetição: o passado
do devir diferenciando-se no encontro com a sua face futura.
117
CAPÍTULO QUARTO
4- A montagem digital e a composição de virtualidades
"Como o chiste não possui equivalente sonoro,
chamar um músico de inteligente é denegri-lo. Se
fosse consciente de seu dom, de seu gênio,
sucumbiria ao orgulho; mas é irresponsável: nascido
no oráculo, não pode compreender-se a si mesmo.
Cabe aos estéreis interpretá-lo: ele não é crítico,
como Deus não é teólogo."
Cioran
Parece já não haver muitos desacordos a respeito do fato de que a nossa experiência com as
mídias contemporâneas vem sendo superpovoada por discursos fragmentados ou por
mesclas enunciativas. Isso se faz sentir, igualmente, em diversas modalidades de criação.
Muitos princípios de composição na arte são, como se sabe, rotulados com o trivial e
genérico termo "remix", palavra recorrente no vocabulário do marketing cultural e já
utilizado muito antes da arte digital assumir para si tal expressão. A despeito da banalização
que o rótulo carrega consigo, alguns "remixers de desktop" estão a reanimar estranhas
ressonâncias em nossa realidade da chamada escuta on line. Uma frase de Nick Hornby,
ainda que prosaica, pode nos ilustrar essa tendência criativa na prática da composição
musical na internet: "Este é o mundo musical contemporâneo – um mundo onde ninguém
toca ou canta uma nota, mas onde uma música nova é inequivocamente criada" (HORNBY,
2005, p. 143).
A pertinência deste problema reside numa disseminação vertiginosa ou num contágio de
práticas de criação musical possibilitadas pela informática e altamente potencializada pela
chegada da internet. Com os sofisticados e acessíveis softwares de áudio, instrumentos
"virtuais", plug ins, placas sonoras etc.., esta prática se potencializa com as arquiteturas de
freqüentação e trocas na rede. Por essa razão, a criação bootleg mash up reenvia também ao
118
pensamento da música a questão do "concreto" na composição, devido aos seus princípios e
recursos diversos de colagem, de montagem, de edição etc..
A arte de ajuntar coisas de naturezas heterogêneas é, de um modo geral, a base da criação
concreta. Esta prática antiga, em contato com as tecnologias contemporâneas, vislumbrou
infinitas possibilidades e velocidades para as suas operações experimentais de composição,
no cinema, nas artes plásticas, na literatura e na música
102
. A colagem na composição
sonora especificamente se define numa perspectiva genérica como a combinação de
elementos ou materiais sonoros recortados e colados (fragmentos melódicos, grooves,
células rítmicas, trechos musicais etc..). O usual termo "cut'n'paste", por exemplo, procura
denotar tudo o que designa edição e montagem, nomeando modos de compor pelos quais se
tecem diferentes conexões sonoras, antes impensáveis pelos meios tradicionais, “abstratos”,
de composição.
Há uma questão que podemos, contudo, levantar a respeito da idéia do concreto na música:
a imagem de uma dita arte concreta se refere a um novo tipo de arte oposto aos modos
abstratos de compor com elementos de um sistema pré-acolhido. No caso da composição
musical seriam, por exemplo, sistemas modais, tonais, atonais, sistematizações técnicas,
instrumentais, musicológicas etc..
Por esta via permanecemos, todavia, na imagem transcendental do pensamento, numa
descrição de colagem como uma combinação de coisas, elementos heterogêneos. Mas estes
são apenas recortes abstratos, individualizados por imagens espacializadas, mesmo
dizendo-se heteróclitas. Tais equívocos ainda seduzem, constantemente, comentaristas e
estudiosos da música concreta ao definirem-na como aquela música que remete a colagens
e edições sonoras, tais como os rótulos tape music, dub, cross-over, cut and paste,
concrete-pop, samplers, remixes, mash ups etc.
103
.
102
Cf. em La pensée sauvage, a idéia de "montagem" está próxima da prática ancestral que Levi-Strauss
nomeava como "pensamento bricoleur", atividade que surgiu, segundo ele, como um exercício de se compor
experimentalmente, por uma espécie de construção direta, empírica, de criação.
119
O cut'n'paste, por exemplo, em si mesmo não passa de uma atividade banal e, muitas vezes,
nem chega mesmo a se criar alguma arte com esta prática. Cortar e colar coisas é, afinal,
um jogo que qualquer um faz, a qualquer momento. Devemos, portanto, quando se diz que
o princípio poético de uma tal criação é “concreto”, ser cautelosos a respeito do seu
potencial inovador por si mesmo. Já dissemos que muitas vezes uma recombinação, não
importa quão prodigiosa e malgrado as intenções de um artista, pode não lograr disparar
nenhuma sensação singular. Frisemos que toda a amplitude e heterogeneidade de materiais
sonoros e de recursos técnicos digitais, por exemplo, não bastam para garantir alguma
novidade, ou qualquer singularidade para a escuta
104
.
Uma outra imagem conceitual comum no pensamento da música concreta é a aquela que a
explica do princípio da descontextualização de elementos, de signos, de formas, que
ganham sentidos novos quando separados do seu contexto "original". Estes procedimentos
chamados de "transcontextuais" ou "intercontextuais", definem um tipo de composição da
música pela qual uma paleta muito ampla de referências sonoras, semióticas, culturais pode
ser utilizada. O artista, seguindo esta linha de invenção, pode propor quais dos vários
elementos inseridos devem ser retirados ou não de sua ordem, instaurando, com isso, um
recorte novo das antigas unidades semânticas ou idéias musicais
105
.
103
Muitos desses autores se detêm apenas em descrições aparentes da composição: juntar grooves, intercalar
estrofes, amalgamar timbres, justapor camadas e texturas, fundir células rítmicas a uma atmosfera, destacar e
defasar batidas, sobrepor gêneros musicais, bricolar sons em looping, melodias, sincronizar canções,
interfoliar trechos de uma frase melódica, inverter uma célula rítmica, colocar samplers de uma voz em
reverso, duplicar o eco de um instrumento, desacelerar um groove extraído de uma batida funk, arpejar ondas
sintetizadas, contrapor ruídos urbanos etc..
104
É interessante notar, de início, que Van Gogh já percebia bem as dificuldades dos encontros desses
elementos e materiais na criação artística. Ele dizia que há vibrações misteriosas nos tons, quando
aproximados de um modo, que se exaltam pela sua justaposição, e que também podem se destruir, quando
misturadas de outras maneiras. Ele ilustrou tal situação, uma vez envolvido em seus problemas com as cores,
ao se perguntar a respeito da mistura entre dois tons: "...o que se ganhará com essa estranha aproximação?"
(VAN GOGH, 2002, p.153-283 passim).
105
Muito se fala também da transformação inerente que pressupõe toda modalidade de montagem, além de
como as colagens traçam sulcos antes desconhecidos, de como elas fazem rasgar o tecido sonoro, recolhendo
uma voz e tirando dela outra voz, de como um corpo, penetrando outro, coexiste com ele etc.. As idéias, por
120
Pode-se ainda dizer que as potencialidades, na colagem sonora, nascem da passagem de um
material a outro. Mas não se deve imaginar um material temático ou rítmico, unicamente
em seu estado formal. A montagem, o recorte ou a colagem precisam ser, antes, pensados
como algo mais do que deslocar idéias, misturar referências, contextos, memórias coletivas,
sobrepor amostras sonoras e mesclar conteúdos semânticos. Isso vai além, por exemplo, de
comparar duas batidas opostas, de sincronizar duas pulsações, de entrelaçar linhas
melódicas. As definições sobre tais misturas nos geram, contudo, imagens sedutoras. Estas
imagens são, quase sempre, meramente figurais ou metafóricas.
Se continuamos a imaginar a composição colagística como uma articulação de formas e
matérias, ficamos presos aos mesmos princípios conceituais do pensamento
fenomenológico. Permanecemos, portanto, no mesmo critério de combinação de coisas e de
recortes individualizados por imagens espacializadas da música.
A colagem na composição só se justifica se ela, antes de colar e de editar coisas, puder
acoplar diferentes regimes de ritmos, de signos e de materiais. Ela conecta, monta, recorta
sensações e afetos, redistribui ritmos e diferenças, provoca singularidades na escuta. Será
tal multiplicidade de movimentos e de velocidades que poderá provocar uma torrente de
intensidades, de acelerações, de tensões, como acavalamentos rítmicos de sensações e de
imagens novas no pensamento. Em suma, a montagem sonora, em vez de ser uma
articulação de matérias formadas (sons, células, compassos, frases, melodias etc..) deve ser
antes uma "mostragem" de potências não mensuráveis do Tempo, de ritmos "atratores", de
virtualidades singularizantes. O que se corta e se edita serão, afinal, forças, e não formas. E
o que deve se cindir, a cada corte e a cada colagem, são os fluxos já estabilizados, os ritmos
codificados, os condicionamentos perceptivos e de sentido.
Quando sofrem interferências criativas, esses fluxos poderão recomeçar novos movimentos
singulares no regime das sensações, irrompendo paradoxos na escuta. O que se corta e se
sua vez, são entidades problemáticas, são idealidades, nem abstratas nem preexistentes, mas sempre objeto de
criações especiais que põem em suspense o sentido.
121
cola não são coisas, por fim, mas antes ritmos heterogêneos: ritmos sensíveis, ritmos
convencionais, ritmos incorporais e as suas virtualidades. A escuta convive, por isso, com
uma realidade paradoxal, feita de sensações compostas.
Os movimentos criativos da composição musical precisam, de fato, ser pensados para além
do material e da técnica. É por isso que, apesar de menos ou nada aparentes, imaginamos
que há forças imprevisíveis e imateriais – as virtualidades - que são decisivas para que a
novidade recomece na composição, para além das distinções entre seus procedimentos
diversos de criação.
4.1 – O corte-maquínico e o material-força na criação
"Toda forma é um composto de forças."
Deleuze
O pensamento especulativo em torno da criação na arte se ressente, desde a Poética, de
Aristóteles, de uma certa impossibilidade diante da vida secreta e insondável dos seus
modos de elaboração. Há, obviamente, de se reconhecer a contribuição de vários artistas e
autores que se debruçaram sobre as questões do processo criativo. Abraçando, por vias
diferentes, a empresa aristotélica, Paul Valèry e Tzvedan Todorov, entre muitos pensadores
do século XIX e XX, também se dedicaram ao mundo de muitos problemas que povoam o
caminho daquele que mergulha na criatividade artística.
De antemão, é preciso, contudo, considerar espinhosa essa tarefa de observar
analiticamente movimentos impensáveis do processo de composição, uma vez que até
mesmo o artista quase sempre ignora os seus próprios segredos, as suas parcelas de
idiossincrasia e de acaso que afetam o destino da criação. As decisões mais sutis e fugazes,
122
as virtualidades que trespassam o processo, são por ele mesmo incaptáveis. Os movimentos
intervenientes no chamado processo criativo, sendo indevassáveis por meio de abordagens
analíticas, esbarrariam, desafortunadamente, no imponderável e em conjecturas arbitrárias,
em interpretações ingênuas ou, na melhor das hipóteses, numa heurística imaginária, mas
que muito pouco pode nos dizer do indecomponível ato de compor. Toda reconstituição de
um processo criativo corre o grande risco de, em vez de elucidar a experiência da arte,
ingenuamente anexar mais uma camada interpretativa, recobrindo-a com mais sentidos,
falseando ainda mais um percurso que se diz oblíquo e não rastreável por uma estética. O
mero interesse pela maneira como as obras são feitas, para Michel Blanchot (1997, p. 295)
levam o próprio criador a se afundar, irremediavelmente, no cadinho do mundo. O seu
motivo é simples: a obra também se faz "fora" da consciência das operações meditadas,
sendo o artista logo absorvido no jogo de uma contingência viva que ele não é capaz de
controlar ou sequer de perceber.
Do pouco que acreditamos poder especular sobre o processo de criação e as suas sutis
decisões, vale mencionar o que Stravinsky (1977, p. 57) nos diz, a este respeito: compor se
dá por uma espécie ignota de um ímpeto da vontade, de uma compulsão de procurar coisas,
ou de um tipo de capacidade de sempre encontrar, à sua volta, nas coisas mais simples e
comezinhas, detalhes “dignos de nota”. O compositor complementa que é preciso, em toda
vida da criação, fazer valer a irredutibilidade do contingencial. Isto de deve ao fato de ele
poder, no emaranhado de impasses, extrair vantagem de algo imprevisto, que um lapso
momentâneo lhe revelou. É certo que o artista também vai procurar determinar os
problemas que irão surgir a cada movimento e neles inscrever o seu poder decisório e
instaurador. É impossível, entretanto, que o artista imagine previamente aquilo que a sua
arte poderá ser, ou as sensações que ela alcançará deflagrar
106
.
106
Um aspecto da lida criativa que muito inquieta o compositor é o fato de ele saber que, desde o início de seu
trabalho, ao realizar uma possibilidade, ele está inelutavelmente deixando outras tantas irrealizadas. Ainda é
Stravinsky quem dirá que toda criação precisa contar com uma espécie de técnica de seleção que é, antes de
tudo, uma forma de extração, um procedimento que age por eliminação. Para o compositor, criar é saber como
e o que descartar, além do que os elementos combinados não devem se prejudicar
(STRAVINSKY, 1977, p.
59).
123
Voltamos-nos para as idéias de Blanchot que, tal como Stravinsky, declara que qualquer
obra é sempre uma obra das circunstâncias. Uma situação ocasional tem, segundo Blanchot
(1997), uma natureza que é eminentemente temporal e, por ter o seu início no tempo, esse
momento circunstancial passa a fazer parte da obra. Ele diz que, às vezes, é lícito supor, no
ponto de partida da criação, uma circunstância até mesmo "fútil", mas que, nem por isso,
em nada comprometerá o seu resultado. O mais importante seria definir os movimentos
pelos quais o artista cria, a partir do trivial, uma outra circunstância decisiva para esta
economia de sensações.
O artista se torna uma encruzilhada, uma passagem que redistribui
ritmos jamais comunicáveis. Tantos ritmos, imagens e sensações movem-se aninhadas
entre íntimas escolhas, mínimos gestos, história, reminiscências, impossibilidades
afirmativas, afetando-se no misterioso mundo criativo da arte.
Eis que ainda é preciso mencionar um outro aspecto da criação, especialmente, da
composição musical: a sua difícil relação com a comunicabilidade. A razão da nossa
preocupação reside no argumento de que recobrimos, pelo campo comunicacional e a sua
inevitável dimensão convencionada de signos, ao preço de fazê-lo sob a rubrica de uma
convergência explicativa. Isso implica, pelos princípios da ação comunicativa, que a música
corre o risco de ter de obedecer aos pressupostos semânticos da linguagem. Desse modo, a
escuta se submeteria a uma semiose ou a uma experiência auditiva definida por convenções
e leituras dadas de antemão. Isso se dá pela simples razão de que, ao pretendermos dar
coesão e sentido aos fluxos de sensações que nos afetam, alheios a qualquer semântica,
perigamos enrijecer a liberdade da escuta num repertório de percepções, simbolismos,
memorizações e sentimentos. Silvio Ferraz é quem ainda nos faz recordar, de uma vez por
todas, de que "...nem o som, nem as notas, ou as melodias constituem linguagem, no
sentido da linguagem verbal" (FERRAZ, 1998, p. 43).
O certo é que toda a realidade de modulações heterogêneas que fazem a escuta musical
efetiva-se por modos nem sempre desejáveis pelos regimes próprios à performance da
comunicação. Isto porque a esfera do simbólico é uma competência humana insuficiente
para capturar os tempos impensáveis da sensação, os ritmos, velozes, inapreensíveis por
124
meio de signos convencionados. Há, todavia, uma infinidade de manifestações e de forças
não-manifestas na escuta, com poderes sutis o bastante para nos afetarem, nos contagiarem
de modos simplesmente intensivos, indizíveis. Tal temporalidade intensiva de nossos
devires é algo de que o universo simbólico da comunicação se vê, por princípio, incapaz de
operar. A questão é que a linguagem, o comunicável, sendo mesmo importantes e vitais na
gestação criativa da música, não devem sobredeterminar a sua escuta. Antes de montar
significados, a música, ao contrário, vive de desfazê-los, de desfiar tudo em partículas do
Tempo, sem significado, até que tudo isso – memórias, afecções, sentimentos, estados - se
transforme em música, em puro jogo rítmico de devires, em sonoridades.
Ainda se faz tempo de citar outra noção de F. Pessoa (1998) que desenha o campo de
tensões entre a arte e a comunicação. Para o poeta, nos tempos de toda criação artística co-
habitam, simultaneamente, a idéia, a emoção e a imaginação: a idéia, primeiramente, deve
ser nítida; a emoção, vaga; e a imaginação, composta essencialmente de ambas, deve ser, ao
mesmo tempo, nítida e vaga. Para os sentimentos vagos, continua Pessoa, que não
comportam definição, quer dizer, para aquilo que a palavra não comporta, existe uma arte -
a música - cujo fim é sugerir, mas sem determinar
107
.
Deduz-se daí que o compositor vive arrancando, distribuindo e aproximando fluxos
rítmicos do Tempo, que só poderão ser sentidos, paradoxalmente, se incomunicáveis. Há, a
este respeito, uma idéia interessante de Michel Serres que ilustra, oportunamente, este
problema:
A música, sob a linguagem, suporte físico e condição, reside sob o sentido e antes
dele. O sentido a supõe e não emergiria sem ela. A linguagem precisa de música,
sua condição: a música não precisa absolutamente da linguagem. Numa mesma
frase durante, a mesma ação, reúnem-se a crepitação caótica do ruído, o ritmo e a
música, tudo o que precede a linguagem, e as transformações de um no outro. A
música canta antes da língua, antes do sentido. (SERRES, 2001, p. 120)
107
Cf. Obras em Prosa: "A poesia é a emoção expressa em ritmo através do pensamento, como a música é
essa mesma expressão, mas direta, sem o intermédio da idéia." (PESSOA, 2004, p. 276)
125
Em suma, o compositor maquina forças antes de apresentar formas, tampouco visa a
comunicar um sentido. Pelo contrário, a música nos afeta com maior intensidade quanto
mais se realizar como assignificante, como a-subjetiva, como a-formal, enfim, no que ela
tem de imperceptível. A composição se faz, antes de qualquer técnica, semiótica ou
material, por uma espécie de jogo de retenções e de liberações de velocidades, de
intensidades, de fluxos, no pensamento imaginativo de sensações.
A nossa apreensão da escuta compositora precisa, para prosseguir, atender a questões que
foram re-colocadas pela nova imagem dada por Gabriel Tarde e, mais recentemente, por
Félix Guattari à palavra "máquina". É mister aqui demonstrar que "máquina" pode ser uma
imagem conceitual proveitosa para retoma
126
compõe de outras máquinas, ao infinito. O Ser, igualmente, é também uma máquina em
conexão com outras máquinas
109
.
Guattari (1997) parte de uma acolhida à definição de máquina ligada, em igual importância,
aos seus avatares profissionais, axiológicos etc.. Os conjuntos sociais, em suas produções
de sentido, seriam também maquínicos. Há, para ele, ainda muitos outros modos de
produzir realidades, que merecem a mesma designação, tais como as máquinas científicas,
as máquinas teóricas, as máquinas informacionais etc.. O corpo, ele mesmo, seria, neste
sentido, uma máquina de sentir, que captura, modula e cria uma realidade de sensações
110
.
A nova imagem da palavra máquina não representa, de modo nenhum, maquinismos que
operam por articulações funcionais e binárias entre partes que têm papéis e
comportamentos previsíveis, justo porque são previamente programados. Uma outra
precaução que se deve tomar a respeito deste conceito é a de não remeter à dinâmica da
máquina a sua materialidade, nem de acreditar que o conjunto das interrelações de seus
componentes independem de seus próprios componentes. Tais componentes podem ser
materiais, fluxos energéticos, modulações de intensidade, traços diagramáticos,
conhecimentos algorítmicos etc.. Por esta via das hecceidades, re-imaginar o conceito de
máquina começa pela necessidade de se desfazer, antes de tudo, das suas concepções
mecanicistas. Só assim poderemos inscrever o movimento maquínico no pensamento e na
sensação, para pensar e sentir como maquinar vontades, imagens e ritmos.
Devemos, de ora em diante, apreender de que modos, em que circunstâncias e por que
movimentos os fluxos semióticos e discursivos que atravessam a música são postos em
conexão com os fluxos extra-semióticos, simplesmente maquínicos, que a fazem.
Comecemos pela frase de Deleuze e Guattari, exprimindo que o caráter incorporal ou
virtual toma uma parte vital nos "entre-tempos" de qualquer enunciação discursiva:
109
Paul Valèry também supunha haver dois "métodos" de mundo físico: a máquina e o acaso. (VALÈRY,
1991, p.103).
110
Estamos num terreno de questões que nos permite imaginar o próprio real como um imenso encaixe de
máquinas, num jogo de correspondências sistêmicas entre máquinas que operam em diferentes níveis, e que
atuam e reagem umas sobre as outras, em perpétua vibração (GUATTARI, 1998, p. 58).
127
A transversalidade entre substâncias enunciadoras podem ser, por um lado, de
ordem expressiva lingüística, mas, por outro lado, de ordem maquínica, se
desenvolvendo a partir de matérias não semioticamente formadas. (DELEUZE &
GUATTARI, 1997, p. 37)
Colocar em combate na criação da música procedimentos enunciativos e obscuros
movimentos extra-discursivos já é, deste modo, um gesto maquínico. Este gesto nos remete
ao pressuposto de que existe no processo de composição musical uma transversalidade
constante por entre as "substâncias enunciadoras" inapreensíveis por uma semiótica.
Compor uma canção, por exemplo, trata-se de uma modalidade peculiar de maquinar
tempos: enquanto se trabalha com uma "plataforma" repleta de herança lírica, anamnésica,
de vocalidades, melodias, escansões, sintaxes, história, regimes amplos de sentido, afecções
subjetivas, pathos, sentimentos catalogados, referências, imagens formadas, paisagens
musicais, narrativas, metáforas, simples associações de idéias etc.., opera-se também por
traços, cortes, interferências, desacelerações, arrancadas, retomadas, retenções, liberações,
fluxos e refluxos, ritmos intensivos e afetivos etc.. Assim pensado, o conceito de máquina
responde, na criação da música e da arte, por distintos modos, mas todos como gestos
paradoxais de se imaginar sensações, de acavalar devires e de desconectar percepções e
signos, maquinando virtualidades incorporais e atualizações sensíveis. A composição,
sendo maquínica, precisa encontrar meios de provocar, em seu movimento catalítico de
ritmos heterogêneos, uma fábrica multi-temporal de forças e de formas, de materiais e de
matéria-fluxos, de sensações e de percepções, de afecções e de afetos. Toda composição é
uma verdadeira maquinação criativa e criadora de realidades imagético-temporais. Ela
coloca em ritmos singulares os registros já atualizados da discursividade e os universos
não-discursivos, as virtualidades.
Do que se disse até agora, podemos concluir que os materiais sígnicos, sonoros e as forças
insonoras, já maquínicas, se co-implicam e geram outras pequenas máquinas, se
recompondo, transduzindo tempos mistos, pré-sonoros, sensoriais, auditivos, semióticos,
comunicacionais etc.. As máquinas são, por esta nova concepção, misturadoras de signos e
128
de velocidades. No sentido evocado por Guattari (1998), quando dizemos “maquinar” no
processo de criação da arte, estamos querendo dizer que significa inventar um movimento,
um ritmo, uma imagem singular a partir de outros movimentos, ritmos e imagens já em
curso
111
.
Não será, de agora em diante, muito difícil concordar com a idéia de que a escuta se faz,
decisivamente, como uma "máquina de tempos". São, por conseguinte, maquinações
coletivas, subjetivadas, não-humanas, semióticas e a-sígnicas; acoplamentos rítmicos,
vitais, mesmo inorgânicos, que podem se implicar nos tempos da escuta musical. Esta pode
ser pensada como uma máquina de fluxos-refluxos, tanto de intensidades rítmicas, de
sensações paradoxais, de imagens-tempo não formadas, de puros movimentos, quanto de
ritmos extensos, de percepções, de imagens formadas e de temporalidades da afecção. Ela
se faz de uma avalanche simultânea de estremecimentos, de tensões e de afrouxamentos, de
modulações que nos afetam para além de problemas discursivos e musicais "estritos". A
sonoridade será, deste modo, sempre o movimento criativo dos devires-sons, multiplicador,
imanente e intempestivo da escuta – tempestade de sensações -, sendo a sua imagem
sempre composta por desconhecidos afetos do Tempo.
Para se continuar a pensar a questão da criação musical, faz-se necessário explicar,
sucintamente, o conceito de "corte" e de que maneira ele pode, ao ser aproximado do
conceito de "máquina". A noção comum que se tem da palavra "corte" nos leva a imaginá-
lo, numa dada continuidade, como uma fissura, uma disjunção, como se fosse uma unidade
fendida por uma incisão ou uma fratura. Em termos tradicionais, imagina-se, deste modo, o
corte como uma figura negativa, como a interrupção de uma continuidade, um acidente, um
ruído na comunicação etc..
111
Há uma expressão conceitual derivada da idéia do plano, desenvolvida por Deleuze, e do conceito de
"máquina" reinventado por Guattari, que se acopla para gerar uma imagem mais complexa dos ritmos da
sensação: a de "plano maquínico". A idéia de "máquina" insufla, no conceito de plano, o seu auto-impulso
criativo, a sua novidade movente, o seu poder de mudar a rota dos afetos, de redistribuir, simultaneamente,
presentes, passados e futuros.
129
Estamos, não obstante, num estágio oportuno do problema para inserir a idéia do corte
como a imagem mesma do movimento. Vale dizer que foi também H. Bergson quem
antecipou uma noção "afirmativa" à imagem do corte. O autor se refere a uma lógica
imanente ao movimento: este só passa a existir, para nós, a partir dos cortes que a memória
e a percepção fazem sobre o escoamento, sobre os fluxos torrenciais dos ritmos da vida.
Todo corte maquina, destarte, o próprio regime de escoamento de um fluxo temporal.
Bergson argumenta que só obtemos imagens, a todo momento, praticando tais cortes
instantâneos nos incógnitos fluxos de devires.
O corte no trabalho da arte, a partir desta sua
concepção inédita não é, absolutamente, a interrupção de uma continuidade e sim um gesto
que maquina diferentes modos de temporalizar as sensações. O corte define, deste modo, o
movimento mesmo do Tempo. No pensamento da arte, o conceito de corte nos ajuda a
imaginar os modos singulares que o criador precisa inventar para interferir em seus fluxos.
O corte, que já pressupõe criação, é o que faz tudo co-implicar ou definir um movimento.
Em outros termos: o contínuo só se define como um movimento, precisamente, por uma
cisão das suas linhas anteriores, que já vinham carregadas de sentido e, por isso,
estabilizadas. Um corte inventado lhes dará um novo modo de se movimentarem. A cesura
ou a ruptura, cortando irrevogavelmente o regime do Tempo, poderá forçá-lo a um re-
começo. No processo da criação, um crivo, um corte, traçado pelo artista, será o que fará
cruzar algumas linhas do Tempo que antes não se notavam ao passarem por ali.
Como Ferraz (1998) exprime a respeito da criação na música: o que faz todo compositor é
ir, de um corte a outro, transformando o seu material temporal. O autor aponta o alcance da
cesura em duas dimensões, que ele chama, respectivamente, de grandes cortes e de micro-
cortes. Os primeiros são cortes notáveis pela percepção: seriam os acentos, as texturas, as
melodizações, as modulações tonais etc.. Neste tipo de corte o autor insere as cisões num
campo gramático já pré-delineado, num regime de significados musicais. Os segundos são
os cortes imperceptíveis, enigmaticamente realizados no secreto respirar da composição,
nas virtualidades do Tempo, nos ritmos incorporais, nas transiências singulares da
sensação. Uma composição da escuta deve ser pensada como uma verdadeira “máquina de
130
cortar tempos”. Cortes maquínicos que irão disparar novas conexões entre sonoridades ou
inibir redundâncias musicais, podendo criar novas potências rítmicas.
É importante que esta fase de nosso percurso seja, mesmo que brevemente, reservada para
expor o modo pelo qual a sensação e o material se relacionam com o processo de
composição na música. S. Ferraz nos assinala que o material é tudo o que está à mão do
compositor. Acontece que, quando se realiza uma composição, usa-se dizer que a obra é
feita a partir deste ou daquele material. É por isso que o autor assevera que, ao eleger o
material como tema de análise, o pensamento da poética musical passa a dar muita força a
ele. É importante, por isso, persistir em pensar, em termos de hecceidades, a realidade da
música independente da matéria sonora ou das formas musicais.
Uma das mais significativas contribuições do pensamento de Gilles Deleuze para o estudo
da sensação na arte foi abandonar a vetusta imagem do par conceitual "matéria-forma". Ao
invés deste, precisa-se adotar a imagem paradoxal do "material-força". Esta concepção,
como sabemos, não se preocupa com os limites fenomenológicos de uma essência formal,
nem com a matéria, na condição de um objeto substancializado.
O material, no limite, apenas participa como um regime inicial entre as muitas conexões
integrando a composição, podendo ele ser até mesmo o mais descartável de todos. O
compositor pode se valer, nesta via criativa, de coisas diversas: formas musicais, blocos
sonoros, acordes, nomes, melodias, ritmos, softwares, dispositivos informáticos,
instrumentos, o ouvido, o corpo, os hábitos de audiência, os traços de uma época, uma
técnica, um modo de misturar coisas, um groove, uma figura privilegiada (um ritmo, um
gesto, um rosto) etc.. (FERRAZ, 2005). Tudo isso já vem carregado de história e de
sentido, que são, em si mesmos, materiais. Ele também pode se servir de durações, de
métricas, de um sistema sintático musical, de um significado, de uma gama de timbres, de
uma célula rítmica, de uma batida de violão ou de uma seqüência de procedimentos
instituídos etc.. Todo material é, resumindo, tudo aquilo que se tem à disposição. Mas ele já
está atravessado de relações, tal como um ponto de cruzamento mutante, instável, mas
131
sempre investido de imensa experiência humana. Não é o mais importante a considerar, por
exemplo, o fato de tal música usar ou não usar certo suporte tecnológico, se ela será inscrita
ou não em tal gênero ou estilo, se é acadêmica ou composta por um autodidata, se é
eletrônica, regional, se é tonal ou atonal, se emprega princípios experimentais de sínteses
sonoras, se procede por colagem de sons, ruídos, falas etc.. Importa, ao contrário, cortar e
conectar ritmos, desarmar percepções e afecções, deixando nascerem sensações e afetos
singulares.
O que se deve ressaltar, para finalizar, é que o material na arte estará sempre em uma
relação paradoxal com a sua própria e necessária abolição. Ademais, pode se até dizer que
um material será sempre mais adequado quanto menor resistência ele tiver para
desaparecer. Todo esse processo de invenção, sem início nem fim, é o que capta e o que
redistribui forças imperceptíveis, virtualidades que o material acolhido vai, quem sabe,
torná-las sensíveis. É preciso, por tudo isso, contar com os infinitos esquemas mudos, os
devires que produzem a realidade da música - as sonoridades. Quer dizer que a escuta se
compõe, decerto, não somente por notas e sons, mas por sensações, que nos afetam, mesmo
na ausência do som.
Quem está a compor, a tatear, por exemplo, uma nova melodia, uma combinação
harmônica, antes de mais nada está a tentar fazer com que sejam sentidas, singularmente, a
partir de tudo o que concentra cada gesto, forças que antes eram insensíveis. Na
composição, o que se joga são, por fim, ritmos heterogêneos que o compositor tem de
tornar sensíveis, plásticos, audíveis, pensáveis etc..
112
.
112
Vale mencionar, em nota, uma idéia que Pessoa tenta desenvolver, muito próxima a de Nietzsche, no que
tange a questão da força na arte. Para eles, há uma arte que domina captando, outra que domina subjugando.
A primeira baseia-se na unidade artificial, apreciável e agradável; a segunda se baseia na idéia de força, na
sensibilidade. A idéia intelectual de beleza, para ele, não é força. Esta sim deve ser uma disposição sensível
do temperamento. Tornando a sua sensibilidade abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade),
a emissora como vontade, o artista precisa se tornar, na expressão de Pessoa, um "foco emissor abstrato
sensível" que force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força
inexplicável (PESSOA, 2004)
132
A composição visa a modular singularmente um material, que passa a variar de acordo com
as novas conexões que ele sofre. A materialidade do som e as formas que ele adquire,
mesmo estando já garantidas, serão sempre remoduláveis e poderão sofrer impensáveis
transduções. A garantia inicial é sempre aquela que se extrai dos modelos de composição já
aceitos de antemão. Mas isso pode concorrer ou não, para a sua eficácia na potência de
gerar singularidade ou de intensificar fluxos de sensações
113
. O que interessa na escuta
musical criativa é, nos assegura Ferraz (2005), aquilo que está nos entremeios da forma. A
escuta faz-se, enfim, de sonoridades, que não serão simplesmente apreendidas como
matéria nem como forma, tampouco como matéria formada
114
.
Do que já se disse até aqui, acerca de problemas da criação musical, pode-se afirmar que,
no caso da composição, "fazer música" trata-se de uma idéia inexistente. A exemplo do que
nos diz S. Ferraz (2005), compor não se trata meramente de organizar sons e notas, nem
gestos musicais, melodias e ritmos, tampouco é encadear amostras sonoras, signos
acústicos etc.. O processo de extrair música de uma sopa sonora ou de um amontoado de
sons é brincar com sonoridades, com reminiscências e lembranças, com jogos de força,
tamanhos, grandeza, cor, cheiro etc.. É também um tipo de operação diferencial sobre
aquilo que chamamos de cultura, de história, de vidas.. Já estamos refrisando que o mais
importante não é o material da arte, nem os códigos estruturantes, tampouco os sentidos
estáveis ali implicados, a sombra da história, os valores anexados etc.. Quem compõe
estará, na realidade, a compor com a principal matéria-prima da arte, por direito: as
sensações singulares e os afetos da vontade no pensamento. Ao compositor, finalmente,
caberá sempre compor sensações e disparar afetos.
113
No que concerne às distinções entre matéria e material, Ferraz nos explica: "...o material é o ponto de
cruzamento em que a matéria é ultrapassada. Cruzam-se, no material, indivíduos e coisas, idéias, lugares,
histórias, estratégias, cantos de pássaros, lembranças, fragmentos de objetos, saídas momentâneas etc.."
(FERRAZ, 2005, p. 88)
114
Se existir matéria-prima na música, ela só pode ser pensada na condição de matéria fluente, de matéria
nomos, nômade, numa combinação de um material sonoro elaborado e de forças não sonoras.
133
Novamente, vem à baila a questão de tudo o que entra na composição, mesmo não sendo
sonoro ou estritamente musical. Isto acontece porque o artista, na realidade da escuta, é
atraído por um efeito, ou por uma força sem nome, silenciosa. Essa realidade intensiva tem
uma potência que é "transdutora". Ou seja, tem o poder de tornar sensível, de tornar sonora,
uma situação não sonora, como um movimento, uma cena, uma sensação súbita, um clima,
uma atmosfera, uma temperatura, uma paisagem etc.. Ferraz nos lembra daquele jogo
sinestésico imaginado, muito recorrente nos meandros da sensação poética que imputa ao
criador uma vontade de, às vezes, querer visível o que é sonoro ou de querer sonoro o que é
visível. O compositor pode se valer de imagens, de pequenos relatos, de descrições ou de
idéias esparsas para "fazer soar o Tempo", a memória, os afetos, os pequenos fetiches. É tal
imagem conceitual que defendemos com a idéia de "transdução" (KLEE, apud FERRAZ:
1998). Daí que um composto de sensações nunca deverá ser confundido com as misturas do
material.
Para concluir: na afirmativa de Deleuze, com a qual concorda Ferraz, a música colocaria
ouvidos por toda parte. A escuta, porque ela "se faz", se cria na condição de espalhar
ouvidos em todo o corpo e por todos os lugares. Ela pode por ouvidos, por exemplo, em
uma estrutura, em uma narrativa, em uma imagem, em um poema, em uma sensação etc..
Isto se dá por uma forte razão: a música tanto está demasiadamente perto, quanto também
vive para além das performances musicais estritas, pois ela lida com potências que não se
limitam ao som. Por fim, Ferraz assinala que há uma grande distância entre algo que "nos
faça escutar" e algo que "nos faça escuta", que faça com que, também diria F. Pessoa: "se
escute em nós". E fazer escutas é tornar a escuta em "...um acontecimento, que se faz junto
à mudança da pressão de ar, que chamamos de som" (FERRAZ, 1998, p. 43). Em suma: a
música, qualquer que seja a sua natureza (técnica, simbólica, poética, social etc.), sempre
será, de início, um problema do se fazer escuta ou o fazer da escuta.
134
4.2 - O pensamento compositor de sensações
"Esculpi a minha vida com matéria alheia a meu ser."
F. Pessoa
Muitos pensadores, filósofos e artistas, no afã de tentarem apreender uma definição para a
obscura palavra "sensação", conceberam-na de vários modos: ora como um fenômeno
fisiológico, ora como uma inteligibilidade sensível, ora como um elemento psíquico, ora
como uma unidade parcial da percepção, ora como a correspondência psíquica às
excitações físicas etc.. Por estas leituras a sensação se injetou, na história do pensamento,
de atribuições subjetivas, orgânicas, perceptivas, impressivas, mnemônicas e mesmo
semióticas. Em conseqüência disso, ela veio se desenhando, nos dizia Merleau-Ponty: "...
na condição de uma superestrutura tardia da consciência" (MERLEAU-PONTY, 1996, p.
33).
Henri Bergson é que irá definir, de modo singular, uma outra realidade para a sensação. Em
sua concepção, a sensação, diferente do sensorial, seria uma excitação mecânica que se
torna química. As oscilações sensório-motoras do corpo se implicam noutras excitações
não humanas, donas de outras velocidades de vibrações
115
. Bergson (1999) afirma ser a
sensação o objeto mais simples com que obtemos, por composições, as nossas imagens
exteriores. Tal como ele a definiu, a realidade da sensação não passaria, obviamente, pelo
intermédio da consciência. A sensação será por ele pensada como um acontecimento
intensivo absolutamente inabarcável tanto pela percepção quanto pela representação
116
. Não
115
Cf. em Matéria e Memória: "O tocar é passivo e ativo ao mesmo tempo." (BERGSON, 1999, p. 28)
116
Cézanne concebia, em suas cartas, os três níveis da consciência: a sensitiva, a perceptiva e a cognitiva.
Para o artista, a consciência, no princípio, é sensibilidade, em suma, o que ele chama de uma "consciência
sensível". Em seguida, há uma consciência perceptiva, a segunda posição. Esta é uma consciência que, ao
entrar em contato com o mundo, percebe objetos como unidades com atributos e qualidades. A consciência
perceptiva se torna, portanto, aquela de um sujeito que entra em contato com um objeto sempre, por sua
própria existência, distanciado. Ao contrário desta, a consciência sensível – a terceira consciência - não entra
em contato com unidades objetivas, mas com as sensações puras e livres que independem de unidades
135
pertencendo a nenhum sistema discursivo, a sensação não obedece às performances da
memória e sequer se encontra nenhuma grandeza nos movimentos intensivos que a
compõem.
Isto levou o autor a concluir que as sensações são absolutamente
intransmissíveis e incógnitas. Em consonância com Bergson, Fernando Pessoa (1998: 210)
nos diz que as sensações são incomunicáveis, que não têm significado nem valor, muito
menos um sentido.
Um equívoco que Bergson trata de desfazer a respeito da natureza das sensações é a noção
de que elas são energéticas. A energia, já pertencente como expressão do dinamismo atual
do mundo fenomenal, tende inevitavelmente para a entropia. Para o autor, as sensações não
entropizam, simplesmente porque não estão no espaço-tempo do vivido, do fenômeno, da
física, da percepção, da lembrança, da sensorialidade. A sensação tem a realidade, pode-se
dizer, de uma ubiqüidade sem nenhum lugar. Do mesmo modo, no que diz respeito ao
corpo sensiente, este não concerne à carne fenomenológica, mas a uma espécie de matéria-
fluxo de síntese de devires.
Antes de passarmos a discutir a realidade da sensação na escuta musical, mais uma vez
recorremos ao pensamento de Gabriel Tarde. Em termos gerais, pode-se começar dizendo
que Tarde imaginava haver, na passagem de uma forma específica à outra, de um estado
vivido a outro, uma interposição mínima de formas e de estados a serem percorridos
(TARDE, 2003, p. 28). Esta noção de "passagem", entretanto, não se trata daquele tipo de
hiato que se dá como um intervalo entre dois instantes distintos, destacados pela percepção,
mas sim como forças de passagem que acoplam novos ritmos nas "dobras do devir".
significativas. Na consciência sensível não há uma diferença entre sujeito e objeto, eles se misturam em uma
coisa só. Isto implica que, nas relações com a arte, a consciência perceptiva precisa ser, de certo modo,
recalcada, para que as sensações apareçam, livremente. Em outros termos, a sensação artística seria a elevação
do momento da consciência sensível, que expulsaria a consciência perceptiva, colocando o homem não mais
como um sujeito, mas como já se disse, um bloco de sensações (ULPIANO, Cláudio A estética de Deleuze.
Palestra proferida na Oficina Três Rios, material não publicado, São Paulo, 1993).
136
Uma distinção necessária precisa ser evocada entre a sensação e o sentimento. Este, sendo
um estado vivido, extensivo, já vem atravessado por afecções convencionadas. Igualmente,
a palavra "emoção" designa uma realidade psíquica já tardia, sendo filtrada por muitas
imagens transcendentais. Essa questão de o sentimento, a comoção, serem tomados, por
exemplo, na condição de um estado, torna-os acorrentados à percepção de um tempo
fenomenológico. Todo pathos se reporta, afinal, a um dinamismo "dramático" de uma
chamada experiência subjetiva. Tais movimentos nada mais são do que cadências sensitivas
estereotipadas, insuflando imagens internas convencionais - as afecções
117
.
Ora, a música, assim como toda a arte, ao contrário do que é aceito pelo pensamento
tradicional, não vive somente para provocar determinados estados da experiência
perceptiva, nem dramas ou paisagens oníricas tampouco sentimentos catalogados. Ligar a
escuta musical aos problemas da sensação, pelo contrário, irá nos conduzir de ora em diante
a atravessar por dois importantes conceitos, o "percepto" e o "afeto", também
desenvolvidos por Deleuze e Guattari. A respeito dos perceptos, os autores nos esclarecem
que esses não podem ser confundidos com as percepções. O percepto é, antes de tudo, a
sensação mesma. Constituídos de variações sutis, imperceptíveis, os perceptos são enlaces
de forças imateriais. São independentes de um estado e daqueles que os sentem. Isto porque
o percepto é, note-se, tanto anterior ao homem quanto também subsiste na ausência do
homem. Os perceptos, sendo irredutíveis aos estados vividos, fenomenológicos,
lingüísticos, só operam "fora" dos nossos limiares temporais de percepção.
Os "afetos", por sua vez, são diferentes das nossas afecções e não são uma característica do
pathos. Como os nomeiam Deleuze e Guattari, os afetos são devires que modulam as
sensações, absolutamente alheios aos estados sentimentais. O afeto não é uma passagem
intervalar de um estado vivido a outro: ao contrário, é a parte não pessoal, invivível, destes
117
A sensação segundo Michel Serres, não sendo ativa por si própria, nunca será, por isso, pura. Ela tem o
estatuto da música. A natureza de seus dinamismos tem estreitas aproximações: sacudidelas do ar, pancadas,
vibrações. Para Serres, somos feitos de ligamentos sensíveis às ondas, como se reuníssemos, em nós mesmos,
orelha e som.
Escutar significa, para a sua concepção, vibrar, mas vibrar consiste em emitir! (SERRES, 2001,
p. 126).
137
estados (DELEUZE & GUATTARI, 1992). Os afetos, compostos-compositores de devires,
movem o desejo, impessoal, a potência da vontade, inorgânica, mas que poderá emancipar
o nosso corpo de seus impasses habituais e da percepção, arrancando-o dos bordões que
geram as suas afecções usuais, as suas supostas imagens interiores
118
. Tal como se dá com a
sensação, também o afeto só ganha consistência quando é sintetizado pelos movimentos
contraentes dos milhares de Eus contemplantes - as sínteses temporais que nos compõem.
Daí concluímos que, se houver algum compromisso na criação, esta será, tanto a de
arrancar o percepto às nossas percepções, quanto a de fazer com que os afetos transbordem
as afecções ordinárias (imagens internas). O compositor teria como um "compromisso"
primeiro, um gesto afirmativo de desmanchar as significações coladas às percepções e de
desarmar as percepções que impregnam os perceptos. E daí pode ser que algumas
percepções e afecções se desarmem. São os ritmos livres do percepto que poderão afetar, ou
seja, fazer variar as condições, as esperas e as divisões espontâneas, da percepção ordinária.
De acordo com Deleuze e Guattari, todo criador deve, portanto, eliminar tudo aquilo que
gruda em nossas percepções correntes e vividas, e delas guardar apenas o afeto que nos dá
um percepto: uma intensidade singularizada
119
. Compor com sensações é o mesmo que
revelar os perceptos que nos afetam: a explosão de devires que uma interferência nos ritmos
118
É notório o contágio que o pensamento de Spinoza, da questão do desejo como uma "ética vital", exerceu
sobre Nietzsche e Deleuze, principalmente. A "etologia" de Spinoza, longe de conservar a distinção dos seres
entre gêneros, considera somente o poder dos seres para afetarem e serem afetados: todo corpo afeta outros
corpos ou é afetado por eles. Este é o poder de afetar e de ser afetado que define um corpo na sua
individualidade. Como Deleuze explica, Spinoza definia as relações que compõem um indivíduo, que o
decompõem ou o modificam, correspondentes às intensidades que o afetam. Ele se une ao que convém à sua
natureza, compondo a sua relação com outras relações combináveis, num apetite ou numa avidez infinita de
aumentar a sua potência. Quando encontramos um corpo que convém à nossa natureza e cuja relação se
compõe com a nossa, sua potência se adiciona à nossa: nossa potência de agir é ampliada ou favorecida. Se
encontramos na experiência um corpo que não convém ao nosso, ele tem por efeito nos afetar, diminuindo a
nossa potência de agir. É o afeto que implica, por fim, um aumento ou uma diminuição da nossa potência de
agir (DELEUZE, 2002).
119
A arte, talvez, seja a única dimensão criativa do homem que teria esse poder, de provocar uma
desestabilização, temporária, dos nossos processos perceptivos.
A tarefa especial da arte supõe, de acordo
com os autores, traçar relações en
138
do Tempo pode, talvez, provocar. Por fim, vale dizer, toda arte é aquela que cria sensações
(perceptos) e dispara afetos, que são como "dobradiças" intensivas do devir.
Quando as sensações (os perceptos), por obra da criatividade, se condensam, estas disparam
imprevistas diferenças íntimas de intensidade (afetos) nos desdobramentos infinitesimais do
Tempo, fazendo renascer devires novos. A arte e a música têm esse poder de compor, a
partir das sensações, devires que excedem quem os vive, que excede a força de quem os
vive. É isto que também faz o criador: ainda que não o saiba claramente, ele constrói
agregados de sensações que sobrevivem a si e àqueles que os vivem. O artista, para
Deleuze e Guattari (1997), teria assim a tarefa de ser um "catalisador de sensações",
excedendo, por tal razão, os simples estados perceptivos e as passagens figurais entre tais
estados. Um compositor, antes de criar combinações entre notas, intervalos, cadências,
timbres etc.., ele compõe perceptos, transduzindo ritmos insensíveis em pulsações
sensíveis. Ele seria, por conseguinte, um real mostrador e inventor de afetos.
A partir das conversas e cartas trocadas entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, este
último passou a elaborar e a descrever, minuciosamente, uma instigante doutrina da
elaboração poética, a qual José Gil, estudioso de sua obra, apelidou de "metafísica das
sensações": o sensacionismo
120
. Para a base do Sensacionismo, a sensação assume a
condição de ser a força primordial da realidade. Tal como Pessoa afirmava, de real temos
unicamente as nossas sensações: nada existe, não existe a realidade, mas apenas sensações.
É nelas que nos abrigamos, são elas que exploramos e por meio delas fundamentamos uma
realidade para a nossa vida. Por isso, a única realidade da vida, para Pessoa, é a sensação:
"...eu sou apenas uma sensação minha, portanto, nem da minha própria existência estou
certo, e sim apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas" (PESSOA, 1998, p.
469)
121
.
120
O poeta nos esclarece, em seus manifestos dispersos, que o "Sensacionismo" é a mais radical corrente
literária que nasceu genuína em meio a tantos "ismos" de sua época. O sensacionismo prende-se, segundo ele,
a uma atitude poética vibrante, enérgica, cheia de admiração pela vida, pela matéria e pela força. (grifo nosso)
121
Pessoa, igualmente, se detém sobre o fato de que é impossível dizer onde começa e onde acaba a sensação.
Ele prossegue, ao dizer o quanto é difícil saber de onde ela vem e como ela se esvai, ou quando ela já é outra
139
Notamos, com as premissas do sensacionismo, um singular advento poético de um sentir e
de um pensamento que procuram se amalgamar, criativamente. Tal idéia supõe que todo
artista encontre, como base de sua arte, um modo de "pensar com as sensações" e um modo
de "sentir com o pensamento". Nos manifestos sobre o Sensacionismo, Fernando Pessoa
(2004) postula outras interessantes estratégias poéticas de criação. Ele dizia que, antes de
tudo, "sentir é criar". O artista, por definição, só passará a ver-se como tal, quando ele
compreender que criar é "sentir e agir". O labor criativo, do modo como o foi ilustrado por
Pessoa, se apresenta como um tipo de "terrível muscularidade", como uma "horrível
tendência para a ação" (PESSOA, 2004, p. 35)
122
. Esta poderia ser, para o poeta, uma ação
criativa e capaz de transformar, misteriosamente, a nossa performance do sentir, de fazer
com que nos sintamos sentindo-nos, que "sinta-se em nós"
123
.
O centro da atenção do poeta sensacionista, já o sabemos, se dirige para a sensação, e não
mais sobre um objeto exterior (percepção) ou interior (afecção). As sensações também têm
duas faces, tal como ele explica: a de serem sentidas e a de serem dadas como coisas
sentidas. Em outras palavras: a parte pela qual são nossas e a parte pela qual são de coisas.
Pessoa (2004, p. 441) sintetiza esta idéia com uma curiosa expressão: a "sensação-coisa"
124
.
coisa. Há, inclusive, sensações que não nos deixam pensar e que não nos deixam nem claramente ser aquilo
que supomos (PESSOA, 2004, p. 51).
122
O próprio Van Gogh confidenciava que o resultado da arte deve ser um ato, e não apenas uma idéia
abstrata. É essa natureza criativa que determina a atividade do artista e forma um conjunto, com os seus
diversos atos (VAN GOGH, 2002, p. 101).
123
Cf. o que F. Pessoa diz, a esse respeito: "A arte tem sim um destino social, mas o artista nunca sabe qual
ele é, porque a natureza o oculta no labirinto dos seus desígnios. Quanto mais ele queira dar um fim à sua arte,
mais ele se afasta do verdadeiro fim dela – que ele não sabe qual é, mas que a natureza escondeu dentro dele,
no mistério da sua personalidade espontânea, da sua inspiração instintiva." (PESSOA, 2004, p. 435)
124
O sujeito habitual da percepção encerra um Eu interior, que contém toda a parafernália da subjetividade –
sentimentos, emoções, volições, humores etc.. – e, uma vez que não se têm emoções subjetivas, como
imaginar algo absolutamente singular e, no entanto, objetivo? O sensacionismo pode alcançar uma
objetividade, mas ao mesmo tempo não objetiva (não-científica) e não subjetiva (no sentido de um eu-
empírico). Seria assim a imagem de uma subjetividade despojada de qualquer determinação empírica,
sentimental ou emocional. Significa que uma situação objetiva passa a se impregnar de toda a espécie de
sensações (PESSOA, 1998).
140
Fernando Pessoa (2004) assinala que igualmente na arte há somente sensações e nossa
consciência delas. A consciência da sensação, ou melhor, a consciência dessa consciência
da sensação será a única "realidade estética". Ele nomeou este processo de "meta-
consciência da sensação". Significa que, ao imaginar uma sensação, ele dará a esta um
valor artístico. Daí em diante Pessoa (1998) complementa que, sendo a sensação a base de
toda a arte, a tarefa do artista será, portanto, sintetizá-la, convertendo-a em um "objeto-
sensação", isto é, em uma outra sensação, virtualizada, singularizada.
125
Aqui se começam
os trabalhos do poeta do sensacionismo, porque o fato de haver consciência de uma
sensação já a transformará numa sensação de ordem diferente, numa sensação multiplicada,
em suas imagens e ritmos.
O poeta se volta para nos explicar que há, na vida ordinária, a sensação puramente como
tal. Mas, para a mera sensação sem sentido, passar à sensação artística, ela tem de ser
intelectualizada, ela tem de ser transformada, pela virtude do pensamento. O artista é, por
fim, aquele que sente e que se sente sentir. Ele se constitui, por esse atletismo de sensações,
o seu próprio espectador, ubíquo, imanente e ativo. (PESSOA, 1998). É como se, para
Pessoa (1998), todo artista se tornasse um personagem cultor de sensações "em estufa".
O processo criativo seria assim como um autêntico laboratório produtor de sensações, o que
permitiria, ao poeta sensacionista, modular, por experimentação, as intensidades do sentir.
A criação, para a doutrina de Pessoa, se faz como um tatear infinito de sensações, para o
artista encontrar o que lhe convém, para saber o que ele pode conectar, fazer durar,
desconstruir, intensificar os seus fluxos vitais. Mas, de que modo se pode cultivar uma
sensação? O criador, responde Pessoa, deve se tornar, antes de tudo, um verdadeiro
125
A sensação é nitidamente do exterior, mas, ao mesmo tempo, esse sentimento (ou sensação) do exterior, do
físico, é sempre acompanhada por uma obscura consciência do interior, do psíquico. A sensação do objeto
exterior como objeto; a sensação do objeto exterior como sensação; as idéias objetivas associadas a esta
sensação – o estado da mente por meio do qual o objeto é visto naquele momento; o temperamento e a atitude
mental fundamentalmente individual do observador; a consciência abstrata por trás desse temperamento
individual. É interessante notar a idéia pessoana do "cubo das sensações": linhas (idéias), imagens internas
(planos) e imagens de objetos (sólidos) (PESSOA, 2004, p. 442).
141
imaginador de sensações: os universos sensoriais compõem a matéria-prima do pensamento
e da sensação "artificial" a ser imaginada pelo artista.
O sensacionista precisa, por princípio, concentrar a sua atenção sobre os tempos
"infinitamente pequenos", que é onde flutuam, nos interstícios da percepção, as "sombras
das pequenas coisas...", perscrutando "...sensações de coisas mínimas, as sensações
mínimas, e de coisas pequeniníssimas." (PESSOA, 1998, p. 451). Toda a condição inicial
desta poética é, por isto, o sentir extraordinária e desmedidamente, as mínimas coisas. É
sentir tudo sutilmente, registrando, tal como uma "máquina de nervos", as impressões
mínimas da vida. O que Pessoa (2004) procura, por meio dessa transformação no pensar e
no sentir, é sempre viver intensamente os instantes ínfimos
126
. Isso também nos faz
conceber, na poética sensacionista, uma verdadeira economia dos fluxos da sensação.
Pessoa, de fato, julga todo artista como um "construtor de sensações". No exercício da
criação poética seria preciso, segundo pensava o poeta, revelar, ampliar as sensações mais
escondidas e torná-las exacerbadas, intensificá-las. Muitas vezes, uma linha de fluxo, ao ser
desviada ou modificada em sua velocidade pelo trabalho criativo, se atravessa de conjuntos
de sensações sem nenhuma ligação lógica entre si
127
.
A síntese do sensacionismo, em se tratando das suas táticas de criação, será sempre a
intensificação dos fluxos de sensação por meio do pensamento. Prosseguindo em sua
explanação, Pessoa nos reafirma que a criação da arte deve produzir um tipo diferente de
sensações, uma sensação distinta daquelas ordinárias, "naturais". Seria preciso,
primeiramente, separar a sensação criada das sensações espontaneamente sentidas. As
126
As pequenas emoções, para Van Gogh, eram "os grandes timoneiros" de nossas vidas, e que, mesmo delas
não nos déssemos conta, sempre as obedeceríamos. (VAN GOGH, 2002). No Livro do Desassossego, Pessoa
nos diz que, migrar para as pequenas sensações, para os rápidos instantes de afetos, deslocar-se do macro para
o "micro-mundo", do mundo bruto para o mundo do detalhe, das minúcias: a ocupação do criador (PESSOA:
1998). Pessoa aqui antecipou um importante momento da filosofia deleuziana, quando se referia à dimensão
macroscópica como neutralizadora, ao constranger, dissimilar e encobrir a prolixidade da vida, a sua infinita
variedade e profusão: a intensidade da vida sensível. Neutralizar a vida macroscópica, tarefa que, para ele,
cabe à criação estética, é a única ou mais eficaz atividade que nos conduz, da vida ordinária, ao infinitesimal.
127
Ao percorrerem um fluxo, elas se bifurcam e podem mudá-lo em seus ritmos. É isto que José Gil define
como um "movimento de cissiparidade da singularidade", nos fluxos de sensações (GIL, 1997, p. 169).
142
sensações, de modo genérico, sempre nascem de um indefinido. O que o artista precisa
fazer é captar, na origem, as sensações simples, apenas como unidades primeiras,
fornecendo apenas a matéria-prima para com elas experimentar (PESSOA, 1998). Deste
modo, o criador falseia uma sensação para tirar um efeito que nela antes não existia. Para
que isso aconteça, argumenta Pessoa, ele tem de intelectualizar a sensação e dela abstrair
alguma potência que re-singularize a sua realidade.
Por tal artifício de imaginação criadora, o artista buscará fazer com que as sensações
surjam, como que pela primeira vez e recomecem uma nova realidade, na "...fulguração de
um evento único" (PESSOA, 1998, p. 222).
A tal exercício Pessoa chama de "experiência
de ultra-sensação". Por meio desta experimentação, o poeta tentaria alcançar,
artificialmente, um aguçamento extremo do sentir. E ele deverá, no entanto, seguir uma
tática paradoxal: a de nunca deixar saber aos seus sentimentos o que realmente lhes vai
fazer sentir. O artista precisa fechar, subitamente, certas "portas" dentro de si, por onde
certas sensações ordinárias iriam passar. Criar, neste sentido, é o labor de filtrar, de
destrinçar, de conjugar e de refinar as sensações, sutilizadas, através da imaginação criativa
do personagem compositor
128
. É uma composição de imagens rítmicas que, ao interferir nas
sensações ordinárias, permitirá que outra ignota sensação surja, em toda a sua "nudez".
Em resumo: por meio de uma espécie de "alquimia de sensações", o artista perscruta as
próprias sensações e penetra em seus interstícios. Ele vive assim a espreitá-las, em seu jorro
torrencial, apanhando-as, de passagem, e extraindo de seu seio, outras sensações. Sendo
assim, as sensações podem ser esmiuçadas ou mesmo deslocadas, de uma sensação para
outras, sensações que estão por chegar, ainda em estado embrionário ou ainda "perdidas"
por entre experiências de outras espécies
129
. Seria, dito de modo figurado, algo como
128
Uma vez embrenhado na experimentação de sensações, o artista não poderá mais sentir "naturalmente",
pois o processo de abstração o conduzirá, da sensação trivial, à sensação paradoxal, singular. Ele deve se
tornar como um tipo de "foco emissor abstrato sensível", que captura ou que mesmo forja situações
favoráveis ao nascimento de sensações dotadas de outros ritmos. O criador transforma-se, de sua parte, em
uma máquina impessoal e múltipla de sentir.
143
desfiar uma sensação até às suas últimas possibilidades e poder, a partir dela, tecer uma
realidade "fora" dos tempos codificados da vida ordinária, dos regimes comuns das
percepções
130
.
Daí se pode pensar que todo processo composicional é um gesto que provoca, num jogo
difuso de sensações ordinárias, a tendência para elas se constituírem, ritmicamente, em uma
sensação singular: tempos ou ritmos singulares, nascidos da interseção de sensações
heterogêneas. O poeta ilustra cabalmente esta premissa que vale para sensação na arte:
"minhas lágrimas são lágrimas rítmicas" (PESSOA, 2004, p. 131).
4.3 – O clichê na internet: a fadiga e o singular na escuta criativa
"O tempo real, o vaivém das coisas, a mudança
contínua, o perecer bramante e impetuoso de tudo o
que é perecível, eis a única via do criador."
E. Fink
Obviamente, temos de concordar com um fato conhecido e incômodo que atravessa o nosso
contato com a internet: os tempos de fluxificação ostensiva de enunciados e de imagens,
velozmente simulados. Ocorre daí, inevitavelmente, uma certa "fadiga" das sensações e,
igualmente, da escuta. Esta saturação musical parece emergir, como vimos, tanto do
excesso e da velocidade de afluência informacional quanto dos mecanismos de
cadenciamentos previsíveis de imagens e de signos sobre nossas dinâmicas vitais. Não há
como discordar que tal regime de assédio à escuta musical na internet não se furta a reduzir
129
Confirma-o Pessoa, nestas palavras: "É na minha suposição de sentir que me magôo e angustio, e as
saudades, a cuja sensação se me mareiam os olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e
sinto." (PESSOA, 2004, p. 20).
130
É justamente por meio da dimensão abstrata da sensação que o artista pode intensificar e ritmar, à vontade,
as suas próprias sensações. As sensações trabalhadas pelo pensamento criativo passam a agir como obscuras
transmutações que serão sentidas, talvez, somente na condição dos "sentimentos abstratos". (PESSOA, 1998).
144
a meros repertórios de sentido o que há de idiossincrasia, de acaso e de singularidade na
sensação.
A fadiga é uma palavra oportuna e que pode se aproximar, resguardadas as devidas
proporções, do conhecido termo da cibernética: a entropia. Enquanto a entropia aponta, seja
em qualquer circunstância, natural ou social, para uma perda de "calor informacional", a
fadiga, tal como a empregam Deleuze e Guattari, se endereça à imagem de uma exaustão
processual, de uma inibição efetiva de nossas potências sensitivas. A fadiga marca o
momento em que, por assim dizer, as nossas "placas sensíveis", as nossas sínteses corporais
do Tempo, já não conseguem "contemplar" o que elas "contraem".
O cansaço da sensibilidade musical passa a manifestar-se na escuta como uma espécie de
embotamento dos sentidos e de um estreitamento redutor de suas (im)possíveis
singularidades e inibidor de potencialidades imaginativas. Dito de outro modo, é a fadiga
que faz com que os fluxos de sensações deixem escapar modulações novas, que
enfraqueçam os ritmos criativos e que mascarem, com os estereótipos cômodos da
memória, a novidade eternamente recomeçante do Tempo
131
.
Os argumentos críticos acerca da lógica da produção musical hegemônica, já bem antes do
advento da internet, são bastante notórios: a miscelânea de fatos nivelados pela estetização
corrente, a mixórdia cacofônica, a atual tirania da canção de consumo, minada pela
frivolidade e redundância etc.. Com a nova lógica de fluxos da internet, parece que a nossa
escuta musical, ainda mais saturada pelos clichês, se sente fatigada sob uma overdose
cadencial de imagens simuladas e de significações anexas
132
. Na internet também
prevalesce, resguardadas as diferenças performáticas com a indústria fonográfica anterior,
uma estandartização de hábitos de escuta musical fomentada pela racionalidade técnico-
131
Tal sintoma, no caso da música, pode se dar tanto pela carência quanto pelo excesso de conexões de
tempos, de ritmos, de idéias etc.., que a escuta realiza ou deixa irrealizados.
132
Nick Hornby, a este respeito, ironiza, com algum acerto: "Como é possível amar ou se conectar a uma
música que é tão onipresente?" (HORNBY, 2005, p. 140).
145
econômica, apenas sobrevive, ao que nos parece, às custas do tolhimento das potências
livres e das virtualidades do sensível.
Não há, portato, mais novidade em dizer que os modos tecnológicos de orientar a escuta
musical perigam alcançar muitos de seus intentos mercantis, ao preço de continuar
desencorajando-a, pela fadiga, de esforços experimentais de sensações. Conseqüentemente,
acredita-se que esse regime de fluxos extremamente excessivo, saturado de clichês, pode
levar a aptidão imaginativa da escuta musical a uma espécie de colapso improdutivo. Mas
será que tamanho congestionamento informacional poderá, em contrapartida, motivar a
escuta a se recriar, a se afirmar como experimentação?
Um ponto nevrálgico em nossa discussão aponta, portanto, para esta circunstância que
acomete a todo artista, no seu processo de criação: há sempre, de antemão, toda uma
categoria de percepções já feitas, de lembranças já figuradas, de sentidos já culturalmente
estabilizados, de estereótipos a povoarem a sua realidade. O fato é que, também na música,
nenhum compositor está diante de um pressuposto de silêncio. Na criação do mash up, por
exemplo, o dj precisa saber que o clichê já ocupa, previamente, o seu imaginário musical,
as afecções no seu pensamento, a tela luminosa diante de si, o desktop, o browser, os
softwares, as placas de sons, a lógica de funcionamento dos peer-to-peer etc.., antes mesmo
do começo do seu trabalho. Os materiais, os suportes, os dispositivos já estão recobertos de
clichês preestabelecidos. É preciso, de início, limpar, laminar ou mesmo estraçalhar certos
estereótipos para fazer passar entre eles uma corrente de ar. Talvez seja esta uma tarefa sine
qua non para a composição musical. Isto porque o onipresente e inesgotável mundo dos
clichês cria, explícita ou implicitamente, um "véu" semiótico que impede o compositor de
ser quase sempre afetado por modulação ainda sem imagem, sem signo, sem nome: as
virtualidades.
O estereótipo, contudo, não pode ser completamente eliminado, pois dele se conserva
sempre alguma coisa. Também não adianta ao compositor simplesmente maldizer ou
parodiar o clichê. Até mesmo as reações contra ele podem engendrar, irremediavelmente,
146
outros tantos clichês. Mas, se o clichê cria obstáculos, em contrapartida, ele pode se tornar,
paradoxalmente, uma grande ajuda, um ótimo pretexto "diagramático". O clichê se torna
recurso de criação quando o compositor se compraz em abandonar-se a ele,
momentaneamente, para logo, interferindo nos tempos recognitivos de sua apreensão,
desencaminhá-lo, deformá-lo, esvaziá-lo de suas forças ou transduzi-los em ritmos a-
significantes.
A luta do artista contra os clichês é também uma guerrilha contra a máquina que os produz.
Isso porque, sempre que nós criamos, imanentemente, nós resistimos. Mas ao quê,
exatamente, se resiste ao se criar? Talvez aos sistemas dominantes que aprisionam os
devires e fixam as singularidades, hoje estruturados nas tecnologias do simulacro digital.
Enquanto tais sistemas buscam coordenar regimes para a escuta musical, o embate da
composição, para além dos ambientes da internet, deve se comprometer com um
investimento micro-político de resistência criativa.
Implodir algo no clichê e dele extrair alguma sensação singular demanda que o compositor
se coloque em condição de embate com inescrutáveis forças hegemônicas de sentido
musical
133
. Por isso o crucial pressuposto da composição é o de borrar os clichês, de romper
com os comportamentos musicais hegemônicos, de superá-los a partir de sua própria força.
Deleuze (1998) conclui que a invenção de sensações será, por princípio e natureza de sua
força, uma atividade sempre da "ordem do menor". Entrar em tais práticas minoritárias se
dá, por exemplo, quando algo na criação recusa a se inscrever em formas dominantes, em
"linhas sedentárias" da existência. Contra estas linhas, também chamadas, por Deleuze, de
"linhas duras" ou " linhas molares", outras linhas devem resistir, se insurgir e se contagiar.
São as "linhas moleculares", fluxos nômades, migrantes, transversais, diagonais, oblíquos,
aberrantes, reativos
134
. Essas linhas extremamente cambiantes operam na realidade dos
133
Tais potências científicas, políticas, jurídicas, morais, tecnocráticas e informáticas, são instituídas por um
"modo maior" de controle na produção, na circulação e na manutenção de saberes, técnicas, discursos,
imagens, sentidos, valores, ritmos vitais etc.
134
Estas linhas de força chamadas de “duras” que atravessam da existência coletiva, foram imaginadas por
Gilles Deleuze para se apreenderem as sobrecodificações persistentes do capitalismo, contemporaneamente
147
pequenos devires, ou seja, nos afetos virtuais, para aquém e além da memória, das
percepções e das codificações
135
.
Estes fluxos de uma potência livre de vida são "linhas de fuga". Tais linhas, longe de
qualquer idéia de escapismo, são antes traços criativos, podendo anular certas forças das
linhas duras, molares do sentido. Fugir, pensado deste modo, é diferente de evadir; é antes
um salto experimental, de ruptura, de corte, que força as linhas estabilizadas pelo hábito a
desfazerem conexões da memória e excitar inesperadas imagens rítmicas
136
.
O combate entre as forças "molares" da escuta e as suas potências "moleculares" ganha
importância quando se alcança transmutar, de algum modo sempre por inventar, as nossas
relações habituais com a realidade. Se um fluxo torrencial de sensações me afeta, por uma
intensidade singular da criação, esse me força a mudar de ritmo, podendo me "des-ensinar"
sobre os condicionamentos recognitivos da realidade habitual
137
.
A criatividade na música não propõe, todavia, uma abolição radical ou um abandono literal
dos nossos hábitos de escuta já instalados. Ao contrário, ela deve mesmo pressupô-los. O
impulso da criação é que vai, imaginativamente, enxertar uma dose de indeterminação no
que já está sobredeterminado, inserindo distúrbios no cerne das estruturas estáveis das
assentadas na estruturação e na estriagem da experiência, por meio de regimes sutis de controle social.
(DELEUZE, 1998).
135
Neste ponto, nos voltamos às considerações de Deleuze acerca da luta da arte, que também se atira contra
o caos. Mas nesse inseguro percurso, ele enfrenta dois perigos extremos: ou de se reconduzir à opinião da
qual ele queria sair, ou se precipita no caos que queria, ironicamente, enfrentar. (DELEUZE & GUATTARI,
1997).
136
O criador precisa agir, enviando fluxos "moleculares", disparando sensações singulares, imagens da escuta
que escapam ao controle simplista das sobrecodificações, insensíveis que são à realidade não-codificável dos
nossos devires. (DELEUZE & GUATTARI: 2005, 112)
137
Em sua entrevista com Parnet, no Abecedário de Gilles Deleuze, o filósofo ressalta que toda criação da arte
consistiria em um impulso de libertar a vida, que os homens aprisionaram. O artista é aquele que liberta uma
vida poderosa, uma vida que é mais que a vida pessoal, individual ou subjetiva. A arte é, segundo esta idéia
de Deleuze, um tipo produção de exageros que leva ao estranhamento as amarras sub-reptícias do sentido
hegemônico no imaginário social. Em suma: não existe arte que não seja também uma resistência e uma
libertação das forças da vida. (DELEUZE: 2002 , 24)
148
codificações
138
. Afinal, toda criação introduz, no sentido hegemônico, um desequilíbrio,
uma instabilidade, uma dissimetria, uma ruptura de sentido, um corte, a separação de um
conteúdo semiótico. Toda arte parece viver disso: precisa transfigurar o habitual e dele
extrair o que ele tem de estranho - a arte de revelar velando. Como diria Deleuze: "Extrair o
duradouro do efêmero, ou o efêmero do duradouro, destacar o fugaz do permanente."
(DELEUZE, 1998, p.161).
A tarefa do compositor, que não se restringe aos ambientes digitalizados nem aos estilos e
idéias musicais, é a de tentar desestabilizar as tramas de redundâncias dominantes na
música e de desorganizar o regime de signos e imagens já estabelecido na escuta. Ele deve
então lutar para tentar neutralizar o sentido majoritário que recobre, aplaina e dissimula o
poder recomeçante do novo que tem a escuta.
O que fazem os compositores “booties”: podem fugir por aí: assaltando esse vasto
repertório da cultura pop mainstream, eles o tomam como uma fonte seminal para as suas
experimentações. Em outros termos, certos dj's de desktop tentam injetar certo movimento
transgressivo ou, ao menos, indecidível nos universos estereotipados da escuta, ao re-
modularem materiais e virtualidades latentes na cultura musical do mundo corporativo
139
.
Os movimentos inovativos que a composição bootleg nos propõe, podem motivar o a
escuta a se despir de uma condição perceptiva estereotipada. Isso acontece quando se
alcança desarmar certos pontos de apoio aos quais o ouvinte se apega, habitualmente a
138
Se aderirmos a uma outra idéia de Nietzsche que concerne à natureza das forças, basta dizermos que a
força de resistência, reativa, portanto, é aquela que somente sobrevive pedindo emprestado o "rosto" das
forças precedentes, ativas, contra as quais ela luta. O estandarte das forças hegemônicas (logos, valores,
regimes de controle coletivo etc..) é o que lhe servirá de motor, tornando-as, elas próprias, uma força reativa.
As forças da composição podem ser assim pensadas. O devir-reativo da criação separa as potências molares
daquilo que elas podem. (NIETZSCHE apud DELEUZE, 1999).
139
Para F. Zourabitchivili, seria preciso antes conceber a internet, em si mesma, com um nomos, um solo
rítmico: paradoxal, porque ao mesmo tempo, nomádica e sedentária. O princípio é justamente utilizar a
própria força deste meio. Significa que a distribuição "molar" pode se tornar uma condição para novos fluxos
moleculares que vão arrebatar-se e instaurar afetos livres em nossas composições da existência.
(ZOURABITCHIVILI, 2004).
149
escutar. Se o mash up logra encurralar a nossa escuta com alguns paradoxos, estes poderão
forçar os ritmos da escuta a um indiscernível modo de sentir, de pensar, de agir.
Já se disse antes que a fantasia criativa, na escuta, necessita do hábito e da memória, com
efeito, mas somente na condição de uma estabilidade que se marca, que se enclausura, mas
para ser ultrapassada. Por cortes oblíquos que o compositor fará em seus fluxos, sua
imagem será re-apresentada, mas diferente, indecidível, singularizada, "desconhecida". Na
escuta musical, vale ressaltar, a sensação, ao ser singularizada pela imaginação, também
poderá empurrá-lo para fímbrias impensáveis do pensamento ou para outras velocidades de
captura do Tempo. Decerto que também o eu subjetivo na escuta não será mais o mesmo:
arrebatado em um devir-outro, ele deslizará, misteriosamente, para além dos seus territórios
musicais familiares.
Não se deve se esquivar de dizer que a prática do mash up, como quase todas as
modalidades da música, pode também levar a escuta a recair muitas vezes em certa fadiga.
Esta saturação pode ocorrer quando os seus rasgos iniciais, que antes eram inovadores, vão
sendo estabilizados e legitimados por uma fórmula. Tal acontece porque a compulsão pela
codificação na música está sempre à espreita, sendo que certas conexões singulares tendem
a se acomodar em regimes estabilizados. Tal sistematização acaba por sedimentar aquilo
que dava a uma criação musical o seu poder diferenciante. Mas eis que outras
experimentações podem, precisam e devem surgir, para reanimar o sestro de resistência que
define o motor, a vontade da composição.
É, finalmente, no aspecto pré-orientado da produção musical contemporânea, que o
"compositor de desktop" irá, da realidade musical assentada nos hábitos, nas codificações e
nas repetições nuas, extrair uma potência afirmativa de criação. Cabe a ele transpor para a
escuta a sua paradoxal relação com a realidade saturada de clichês, traçando nela outros
sulcos, abrindo conexões, provocando novas sinapses, aproximando imagens e sensações
que antes eram díspares.
150
Compor em tais circunstâncias e condições seria, especialmente neste nosso caso, o mesmo
que encontrar um caminho através de destroços. Isto porque, ao fazer com que sensações
ordinárias se transduzam e, por assim dizer, revirginem a realidade. É precisamente a partir
dessas percepções sedimentadas pelos hábitos sociais, que essa escuta "bastarda" produz a
sua força inovadora. Buscando, por assim dizer, des-conotar a canção de uma pesada carga
de sentidos, da convivência coletiva que ela compactua com os seus estereótipos, uma outra
escuta poderá ser forçada a se recriar. Neste inescapável encontro com os e estereótipos da
cultura musical é que as modalidades de interferência criativa dos dj's-personagens do
bootleg mash ups poderão quiçá renovar, de um modo que será sempre imprevisto, a
potência singularizante da escuta compositora.
Como já nos dizia Paul Klee (2001, p. 37):
"Esse resto me serviu".
3.4 – A novidade e o futuro na música
"É preciso, na criação, partir de algo simples que,
pulverizado, nos conectaria ao cosmos, às forças que
estão no futuro e que desconhecemos."
Klee
Um ângulo muito fecundo em discussões que pode ser agora introduzido encontra-se na
necessária distinção entre as imagens que fazem do "novo" o pensamento fenomenológico e
o pensamento das hecceidades. Mas há certas perguntas que precisamos formular se
quisermos levantar a questão da novidade na música. Partindo da idéia comum de que toda
criação musical deve observar, como razão de sua suposta "legitimação" estética, o
princípio de trazer sempre algo de inovador, indagamos: quando como a novidade se
apresenta, para uma experiência subjetiva ou socialmente objetivada, para um grupo, para
todos, para uma época, para uma geração etc..? Afinal, o que há de novo - e para quem será
esse novo - em uma dada composição, em uma dada poética, em um certo gênero musical?
Por fim, o que nos leva a valorizar um certo compositor, quando ele nos faz ouvir algo que,
151
aparentemente, nunca ouvimos antes, e que nos toca, pela razão de isso ser inesperado?
Estas questões irão nos ocupar durante as próximas linhas.
A novidade, a qualidade de expressar o novo, para o pensamento tradicional sobre a criação
na arte, é a de fazer com que algo não se repita, não se assemelhe a algo que já se fez,
histórica e estiliticamente, antes. O problema é que esse algo feito, já se encontra
forçosamente pautado numa prescrição mnemônica convencionada para se "reconhecer"
uma similaridade aqui ou uma diferença ali etc.. Lembremos que além destes tais princípios
fenomenológicos da identidade sobrepõe-se certo conjunto de quesitos prévios no
repertório do imaginário e da memória. Pode se admitir, a partir deste argumento, que o
movimento de criação seria o de introduzir algo de diferente em relação ao que, por
exemplo, a geração precedente produziu.
Diz-se também que se inova sempre que se traz, sobre uma configuração estabilizada,
algum "frescor". Para o senso comum, tal noção de novidade passa, em parte, por uma idéia
de "criação" na condição de uma descoberta do artista que encontra um modo alternativo de
se jogar um código aceito, fornecido por uma realidade histórica, instituído por uma época,
difundido por uma escola, mantido por um grupo de artistas, estabilizados por hábitos de
uma coletividade etc. Ouve-se falar, por exemplo, de uma nova música, de uma nova obra,
de uma tendência inovadora, de um novo gênero. A lista se estende: uma nova melodia,
uma nova cadência harmônica, uma nova polifonia, uma nova temática, uma nova
combinação de timbres e texturas, uma nova interpretação, uma nova bricolagem sonora,
um novo modo de explorar uma técnica, um instrumento, a voz um aparelho, um novo
gênero, um novo remix etc..
Deduz-se disto que, quando se fala de uma produção do novo, remete-se logo a um gesto
diferenciado sobre aquilo que estava já consolidado por um certo consenso coletivo. No
exemplo da composição musical, o chamado valor estético de uma peça ou o talento de um
artista aufere-se pela desenvoltura com que combinações e articulações entre notas,
melodias, performances de interpretação instrumental, regras de harmonia, entoações do
152
canto, um traço lírico etc..são levadas a um bom termo, a um resultado "original". O
problema é que essa suposta nova origem se pauta numa escuta com identidade subjetiva
que projeta identidades objetivas, com base em garantias implícitas da cultura musical.
Esse "novo", uma vez que é mais ou menos esperado pelas pessoas, pode até vir a assumir
uma conotação que ironicamente acaba sendo a de um modo que será mais próximo aos
regimes da moda, dos modismos. Isso também acontece, por exemplo, quando ao invés de
optar por idéias já aceitas, o compositor procura a todo custo usar somente articulações
153
A idéia de que tudo se realiza por uma “criatividade universal”, por uma contínua e
irreversível renovação como o modo de o Tempo se mover, já tinha sido detectada pelo
pensamento de Schopenhauer, mais tarde re-imaginada por Nietzsche e por Gabriel Tarde.
Todos eles supunham como o motor da vida a prevalência de uma vontade anônima da
matéria. Transpondo esta premissa da inovação irrefreável da realidade para as tarefas da
criação na arte, esta não faria, segundo Nietzsche, mais do que revelar – ou potencializar - a
natureza criadora do mundo.
Podemos nos reorientar nesta questão, dizendo que a novidade na criação da arte está
comprometida com a sensação singular, a que sensação que singulariza a realidade. Mas
qual será esta imagem de singular e como ela pode ser pensada na escuta musical? É
preciso, primeiramente, ter certo cuidado na leitura desta concepção. Isso porque as
singularidades são reduzidas, pelo pensamento transcendental, ora a meros estados
identificáveis, atribuíveis a coisas, ora a variáções inesperadas de um modelo
141
. Para o
pensamento das hecceidades, ao contrário, toda singularidade renasce, em eterna
modulação íntima, esta mesma um afeto de outras modulações, re-modulando-se,
imprevisivelmente, ao passado-futuro infinito
142
.
Não se deve pensar o novo na arte sem antes se levar em conta que o seu problema a
resolver é o de sempre ir além de qualquer axioma: re-singularizar o singular, recriar o
criativo, reabrir a abertura, desfazer o sentido e tornar indecidíveis todos os clichês que
tentam repetir arbitrariamente a irrepetível dinâmica do devir. As idéias criativas na música
efetivam-se, por exemplo, apenas quando suspendem os tempos perceptivos e embaralham
o juízo das "coisas musicais". A composição sulca fendas por onde os hábitos de escuta
141
No dizer de François Zourabitchvili, é como se "...toda singularidade já fosse várias". Neste sentido, ele
diz que a sensação na arte deve ser uma sensação singular, e que tal singularidade seria sempre a sensação de
"um novo começo de um novo mundo" (ZOURABITCHVILI, 2004, p. 102).
142
A novidade, outro nome da singularidade, não terá jamais o mesmo ritmo, a mesma história, a mesma
forma. (LEVY, 2003).
154
colidem com um caos – o futuro - que vem desestabilizar toda a sua harmonia ou a
estabilidade anterior
143
.
Se a linguagem, a memória e a percepção tolhem as potencialidades criativas do Tempo, o
artista deve sempre acrescentar novas modulações à dinâmica da realidade já em marcha, o
que faz dele, em algum momento, um co-inovador, um catalisador da novidade. O motivo é
evidente: se é o domínio estável de signos codificados que encobre a contínua explosão do
novo, tornando-a um espaço de recognição, o domínio da arte desestabiliza estas formas
que aprisionam a novidade íntima do mundo. Os nossos sentidos, inevitavelmente
acostumados ao condicionamento perceptivo, são convocados, pela criação, a agir
diferentemente, uma vez forçados a disparar sinapses que se esquivam aos ritmos da
significação, do sentido e da comunicação
144
.
Quando falamos do problema da inovação no campo da produção musical e, mais
especificamente na composição do bootleg mash up, a já difícil questão do "novo" se dilui,
na prática, entre o acolhimento estratégico e a resistência criativa ao clichê. Lembre-se de
comuns exibicionismos técnicos ou de demonstrações inócuas de um conhecimento
subserviente à mera memorização de referências culturais, recendendo não mais do que a
um pretensioso cosmopolitismo
145
. Isso acontece quando o compositor é levado, pelo
excesso de variedades gratuitas, a desfilar elementos de recognição e não de sensação, pela
obediência deslumbrada aos procedimentos e fórmulas garantidas. Há novidade na música,
143
No encalço das idéias de Deleuze e de Guattari, S. Ferraz persevera em afirmar que uma linha de força,
quando se põe a ligar duas dimensões anteriormente desligadas (ou o inverso), faz acontecer a novidade.
(FERRAZ, 2005).
144
De sua parte, G. Tarde (2003) nega o trabalho da criação como a busca de uma ordem, afirmando que as
desordens são, precisamente, a força criadora do novo, por excelência.
145
Esse é um fetiche já conhecido, que a alardeada "apropriação criativa" instiga nos incautos. Muitos
remixers acabam mesmo por "profanar" certas idéias e composições das quais eles julgavam se apoderar. Os
muitíssimos casos não carecem sequer de ilustração e algumas dessas circunstâncias podem ser notadas
facilmente. Não é incomum ouvir, por exemplo, algum dj de desktop remixando avidamente, seus loops e
grooves, com um perfeito entusiasmo performático, demonstrando ter acesso a todas as novidades musicais.
Mas eis que ele acaba por recair num perfilamento inócuo, numa neutralização enfadonha do que poderia ser
uma singularidade para a sensação, não logrando mais do que um fastio da escuta.
155
enfim, sempre que alguma composição desenha uma linha que põe em fuga a proeminência
dos clichês, que nos retira da escuta trivial, recognitiva, nos ejetando de um território firme
e nos arrebatando a outros afetos livres, mas nem por isso deixando-a cair num vácuo
desconexo. O novo, por fim, corresponde a criar um plano, a partir dele conectar-se com
forças diferenciais do futuro e ser surpreendido por elas.
Acertadamente, Merleau-Ponty (2003) afirmou não haver como se dizer, de uma obra de
arte, que ela se dê por terminada, porque a sua força estaria, sempre, no futuro. A sua
justificativa oferece aqui uma resposta: a de que o futuro é o domínio próprio daquilo que
não é provável, não é reconhecível ou não é dedutível, nem do presente, tampouco do
passado. O mistério inerente à imagem que temos do futuro, na sensação da arte, foi uma
das razões que levaram também Paul Valèry a afirmar: "Quanto às idéias, são coisas
familiares, que sei observar, provocar, manobrar...mas não posso dizer o mesmo de meus
ritmos inesperados." (VALÈRY, 1991, p. 207).
Michel Blanchot (1997), por sua vez, dizia que, por meio do trabalho de elaboração
artística, com a transformação dos objetos preexistentes, o artista teria a chance de instaurar
um outro mundo, um novo futuro. Para o autor, todo artista afirmaria, no mundo, uma
realidade diferente dos elementos que a constituem. Ele assim o faria, negando-os,
destruindo-os e revelando-os pelo seu trabalho, instaurando a presença de algo que ainda ali
não se encontrava. O seu labor só se dará, no entanto, a partir de um certo estado da
linguagem, de uma certa forma de cultura, de certas canções, de vários materiais e sintaxes
que, sob a interferência criativa do artista, serão uma fonte infinita de novas realidades. O
que Blanchot (1997: 302) ressalta é que, tais elementos, ao serem transformados, terão o
poder de traçar o porvir de novos objetos. Tal devir permitirá que se fabriquem outros
tantos objetos que, pelos projetos que daí podem nascer, negarão o estado passado do
mundo e prepararão o seu futuro. É igualmente certo que o artista produz "sensações-
coisas" que podem modificar realidades, mas ele mesmo sofre, com as mudanças que
provoca, uma transformação irredutível.
156
Sim, a arte tem a ver com a invenção de um futuro, mas sabemos que não se trata somente
de um futuro abstrato nem de um futuro fenomenológico do presente. O futuro que elas
inventam é antes, nas palavras de Tatiana Levy (2003: 127), o "infinito agora", intensivo e
intempestivo. Estas idéias citadas acima nos fornecem um desejável começo para
interrogarmos acerca da irrupção imanente do futuro na composição.
Se a realidade da escuta for imaginada apenas como uma experiência perceptiva, o ouvinte,
neste caso, não irá ao futuro, porque ele, tomado como um sujeito fenomenológico, estará
no presente vivido, brincando com um passado mnemônico, histórico. A imagem do futuro
como um presente que se "passadiza" ainda é a que prevalece para uma escuta perceptiva,
para a memória anamnésica que se opera, por exemplo, nas partes internas de uma obra, ou
para a encenação de estados sentimentais, educadamente ligados a convenções e, no limite,
a esoterismos na apreciação musical. Falamos, afinal, de um futuro que é imediato,
iminente e irrefreável, em improvável devir, no seu paradoxal embate-acoplagem com o
passado puro do devir. Para o pensamento das hecceidades, o futuro é a face criativa do
Tempo: as virtualidades nascem desses embates dos movimentos caóticos com devires em
marcha. Os ritmos virtuais são infinitos futuros em acoplagens contínuas com as faces
perseverantes do passado puro.
O futuro imanente à música, afirma Ferraz (2005), é aquilo que se faz, ao mesmo tempo em
que se desfaz, é o acoplamento paradoxal, entre forças conservadas do puro passado e os
encontros imprevisíveis com forças do porvir. Escutar, antes de toda memória e recognição
é, por um esforço criativo, tornar sonora a livre potência do futuro, é tornar sonoro o futuro,
conservando forças do passado. A escuta é, de certo modo, algo como a potência de
"sonorizar" o devir, impossível de ser deduzido somente do presente ou do passado
fenomenológicos.
A escuta cruza, por isto, aquilo que não temos a menor idéia, com um pouco daquilo que já
supomos conhecer. O problema da escuta musical será sempre uma questão que se endereça
especialmente ao futuro, à sua potência criativa de provocar novos afetos, de novas
157
sensações, de novos pensamentos. É certo dizer também que nunca se sabe o que uma
música irá mover, porque aquilo que ela move são precisamente as potências do futuro.
Essas forças, como se disse, se movem paradoxalmente, por amplexos de devires, cada um
com uma de suas faces no passado e a outra, no futuro.
Para concluir: é nos entremeios das formas e da matéria, ou seja, em nossos ritmos
contraentes, dos fluxos e acoplamentos de sensações, que o compositor irá depositar todo o
seu trabalho. Deleuze e Guattari (1997: 108) assinalam que, ao invés de obedecer ao curso
estereotipado da temporalidade, o que o artista experimenta, nas suas estratégias criativas,
são certas interferências nos devires estáveis do Tempo. Na composição musical, para
poder extrair certos perfis particulares do Tempo, o compositor deve, antes, despossuir o
som e as suas combinatórias de significações espaciais ordinárias e de afecções
sentimentais. Por meio de um exercício criativo de escuta, afetos serão fabricados, ritmos
serão modulados, intensificados, dilatados etc.. O compositor irá, por meio de inevitáveis
experimentações, tateios, impasses, rasgos intuitivos, casualidades, conjugando, exibindo –
ou inibindo - fluxos de ritmos e de imagens do Tempo.
158
CONCLUSÃO
O investimento especial desta pesquisa foi problematizar o que se diferencia na escuta
musical, nas possibilidades de esta se experimentar criativamente face aos hábitos de
freqüentação dos sites peer-to-peer, a partir da lógica imanente do contágio, da resistência
da escuta experimental dos dj's de desktop, do surgimento dos bootleg mash ups. O curso
destas indagações não pôde, todavia, ser desenhado sem um amparo das idéias sobre a
imagem conceitual do Tempo construído pelo pensamento das hecceidades, da
individuação, da imanência.
No Capítulo Primeiro, discutimos a internet como um ambiente processual de contágios,
enfocando as performances criativas e contagiantes da escuta motivadas pela freqüentação
dos sites P2P. Explanamos acerca das imagens do Tempo no pensamento e como estas
compõem imagem mesma da escuta musical. Apresentamos a imagem paradoxal do Tempo
pautados nos conceitos de diferença e de repetição, de eterno retorno, de paradoxo e de
simulacro para pensarmos a música em sua potência de diferenciação criativa. Inserimos o
conceito bergsoniano de virtual e, apoiados na concepção deleuziana de virtualidade,
apontamos os fluxos imateriais que decidem os tempos sensíveis da escuta. No Capítulo
Segundo, assinalamos o problema dos ritmos cadenciais do virtual tecnológico e como
estes podem afetar os tempos da imaginação e do desejo na escuta. Demonstramos o
pensamento inovador de Bergson a respeito da imagem da subjetividade, das performances
da memória, da percepção e da consciência na escuta musical. Conectamos as idéias de
Bergson com a concepção deleuziana das "sínteses do Tempo" que nos fazem e que fazem
escutas. Aproximamo-nos da imagem poética pessoana do Eu ubíquo e, por ela amparados,
problematizamos as práticas heteronímicas e a criatividade na internet face aos axiomas
tecnológicos de subjetivação. No Capítulo Terceiro, apresentamos o personagem
compositor de desktop e o bootleg mash up. Defendemos, de acordo com Schaeffer,
Feneyrough e Ferraz, a composição como a "arte da escuta", reapresentando uma imagem
diferente para a palavra sonoridade.Tratamos da idéia que Deleuze e Guattari dão aos
159
termos limite e infinito, a partir das expressões criadas pelos autores, a saber, o plano de
composição, a clausura e o diagrama para perscrutá-los nos embates da criação da música.
A partir de uma nova imagem que os autores deram à palavra ritornelo, apontamos de que
modo ela pode ajudar no pensamento das hecceidades da escuta. No Capítulo Quarto,
redefinimos a imagem conceitual de montagem digital sonora, pensando-a antes como uma
composição de virtualidades imateriais. Para tanto nos apoiamos na idéia do corte-
maquínico, do incomunicável na música e do material-força na criação musical.
Procuramos diferenciar as noções de percepção, de afecção, de sensação e de afeto,
levando-os para a realidade dos devires da escuta. Demonstramos, calcados na doutrina
sensacionista de Pessoa, como o pensamento experimental, em toda música, parece se fazer
como um tipo de compositor de sensações e de afetos: as sonoridades. Por fim, discutimos
a questão do clichê na internet, da fadiga e do singular na música, além das imagens da
novidade e do futuro na composição da escuta musical.
Em resumo: a nossa pesquisa se ampara na idéia de que é preciso um empenho criativo para
reimaginar as imagens da escuta musical, da própria imagem do pensamento e como o
Tempo, a subjetividade e a sensação podem ser pensados a partir do problema da imagem
da palavra "imagem". O pretexto empírico dos hábitos de freqüência dos person-to-person
e das práticas de composição do bootleg mash up nos foi oportuno para repensarmos a
realidade das forças impensáveis, pré-subjetivas, incomunicáveis, imperceptíveis,
insonoras, porém decisivas na criação da novidade na sensação.
Um volver de olhos sobre o percurso deste trabalho nos deixa uma impressão ambígua: tal
como um dj compositor que descobre, no afã de aproximar idéias musicais, em cada
mínimo gesto, que ele também foi atravessado não só por afecções ou sentimentos, mas por
ritmos incógnitos da sensação, viu-se cortado por afetos inesperados e se sentiu arrebatado
por singulares destinos de pensamento. Sob a rubrica de leituras instigantes, a escrita ora
titubeia, ora ganha ritmo, algumas vezes é trespassada por especulações frustradas e outras,
por conexões revitalizantes. Aprendemos que, em muitos momentos tateantes do caminho,
160
é preciso recorrer a algum tipo de processo experimental que, por assim dizer, se aproxima
de algo como uma "empiria conceitual".
Tentamos de início criar certas conexões entre imagens que nasceram de uma gama
heterogênea de conceitos, interligados entre si e circulantes por entre as obras dos nossos
autores privilegiados na pesquisa. Seria como se cada palavra, tendo a sua antiga imagem
descosida, pedisse para ser reativada por imagens diferentes. É como se
experimentássemos, amiúde, alguma conexão ainda por imaginar ou algum problema
impensado ainda por ser formulado.
Vale declarar que a motivação primeira foi, ao início do trabalho, a de procurar conhecer
alguma correspondência entre dispositivos tecnológicos digitais de conexão, de composição
de áudio e o embate criativo da escuta. O processo culminou, de modo inesperado, com um
estudo mais detido acerca das possibilidades de pensamento defendidas pelos autores aqui
visitados. Tais experimentações conceituais são avessas ao dialético, ao transcendental e à
fenomenologia na imagem do pensamento. Nos meandros impostos pelas dificuldades do
processo de pesquisa, tal inquietação inicial, focada anteriormente em supostos fenômenos
criativos musicais da internet, a cada aproximação de idéias, passou a ser ocupada por
indagações de uma outra natureza. Da antiga preocupação em identificar e classificar
modalidades de composição sonora relacionadas aos suportes digitalizados, além de suas
ressonâncias históricas com as práticas colagísticas e das suas referências sócio-culturais,
migrou-se, aos poucos, para um movimento diverso de questionamentos. Afetados pela
imagem do pensamento da multiplicidade imanente, passamos então a investir no exercício
ostensivo de desmontagem de imagens espacializadas que estruturam o modo tradicional de
pensar a música, a escuta, a criação, a subjetividade, o tempo. Num percurso sempre
instável e assomado por incertezas, de passagens obscuras, de impasses produtivos, foram
tecendo-se outras conexões e outros ritmos inesperados. Uma imagem nova parecia, às
vezes, emergir para, rapidamente ou aos bocados, se dissipar. Mas também acontecia de ela
se reerguer, arrastando consigo outras imagens, algo que vai se desenhando como pequenos
recomeços de realidade.
161
A "escuta", esta pequena palavra, para nós antes revestida de contornos fenomenológicos
predefinidos, passou a mover, a arrastar, com os sobressaltos que a pesquisa lhe impôs,
toda uma gama de imagens novas, de movimentos ainda sem coordenadas estáveis e de
ritmos imateriais, de sensações impensáveis e de iconoclastias da imaginação criadora. Este
exercício de pensar teve, com isso, de se decompor e, com grandes dificuldades, de se
recompor, para que se desse à escuta da música outras realidades performáticas. Para tanto,
foi preciso também repensar a imagem dos conceitos que compõem o seu pensamento
mesmo. E a principal de todas as que se co-implicaram nos problemas da escuta,
obviamente, foi a imagem do Tempo. Esta sim, talvez, tenha sido a questão que passou a
ser privilegiada como o investimento primeiro do nosso trabalho: pensar imagens do
Tempo na realidade da escuta, livres das vestes rígidas do espaço, da forma, das relações
entre elementos isolados, do comunicável e dos condicionamentos mnemônicos da
percepção.
Por tal investimento, cremos ter feito jus ao conceito de sonoridade, desta imagem da
escuta que se reporta a todo um plano de potencialidades e que se compõe como uma
realidade de devires-sons. Recorde-se que, paradoxalmente, a sonoridade modula tanto som
quanto não-som, tanto atualidades quanto virtualidades, tanto forças quanto formas, tanto
memórias quanto esquecimentos. Na verdade, ela se compõe tanto de idéias musicais
quanto de forças silenciosas, de materiais sônicos e de virtualidades imateriais, de formas e
de intensidades não-formadas, de ritmos convencionais e de complexas modulações
insonoras. Serão nos ritmos intensivos (que constroem as sensações) e nos ritmos
extensivos (que organizam as percepções) que vamos nos compondo, não como uma
subjetividade que ouve música, mas antes como personagens criativos de uma escuta que se
compõe de sonoridades.
Finalmente, para tentar conciliar certa coerência epistemológica ao nosso plano de
construção da tese, pensando a imagem da escuta na realidade do pensamento e da
sensação, assumimos um tipo de horizonte problemático de indagações. Este foi o nosso
162
investimento primeiro e um gesto persistente: evocar todos os conceitos aqui trabalhados
como se fossem "atratores de imagens", buscando torná-los imagens de maquinações do
Tempo. Ao experimentarmos tais conceitos que tomamos de empréstimo, prestamos assim
reverência aos nossos autores, artistas da palavra e de idéias que ousaram, por um
compromisso com a experimentação, recriar a imagem mesma do pensamento. Foram eles
que nos afetaram a ponto de exercer em nós uma nova virtude, uma nova vontade, uma
nova potência de agir, exortando-nos ao exercício de uma sensibilidade criativa para re-
imaginar, diferentemente, o Tempo na escuta musical.
163
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Anexos:
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http://www.ccc.de
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http://www.dangermousesite.com
http://www.djbc.net/mashes
http://www.djchaos.nl
http://www.djdangermouse.com
http://www.djmuggs.comdykehouse
http://www.djzebra.free.fr
http://www.eclecticmethod.net
http://www.evolution-control.com
http://www.4trak.net/Dsico
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http://www.gohomeproductions.co.uk
http://www.hexstatic.pwp.blueyonder.co.uk/home.html
http://www.his-boy-elroy.com
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http://www.kleptones.com
http://www.lancelockarm.com
http://www.lionel.elektrobank.net
http://www.lpjz.com
http://www.looandplacido.com
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http://www.mattdarey.com
http://www.mcsleazybootleg.co.uk
http://www.missfrenchie.co.uk
http://www.mixomatosis.net
http://www.osymyso.com
http://www.partyben.com
http://www.pobox.com/~ecc
http://www.pojmasta.co.uk
http://www.pwodigy.tk.
http://www.skkatter.net
http://www.soulwax.com
http://www.soundhog.org.uk
http://www.steinski.com
http://www.thewhoboys.podomatic.com
http://www.twinkleboi.com
http://www.ultra396.co.uk
http://www.wetc.at.org
http://www.xfm.co.uk
Sites dedicados ao bootleg mash up:
http://www.arktikos.com
http://www.auraldelight.net/mashup.html
http://www.base 58.com
http://www.bass211.com/boots.html
http://www.bastardpop.co.uk
http://www.boomkat.com
http://www.boomselection.net
http://www.boot106.com
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http://www.ccmixter.org/media/people
http://www.contradict.co.uk/boot
http://www.culturedeluxe.com
http://www.discogs.com/artist
http://www.djhdd.servcom.com
http://www.edits.nl
http://www.eff.org
http://www.electrocd.com
http://www.epitonic.com/artists/dykehouse.html
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http://www.ghostly.com/1.0/artists/dykehouse/index.shtml
http://www.greytuesday.org
http://www.gybo.org
http://www.kuci.uci.edu/~brianm/lancelockarm/old_index.html
http://www.illegal-art.org
http://www.ireallylovemusic.co.uk/dance/the_freelance_hellraiser.html
http://www.last.fm/music
http://www.mashmix.com
http://www.members.aol.com/boardwalk7/goodman.html
http://www.musicishere.com/artists/Kilowatts_and_Vanek
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http://www.patrese4.valuehost.co.uk/download.htm
http://www.pfony.com
http://www.pitchforkmedia.com
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http://www.noneinc.com
http://www.spaceagepop.com
http://www.sickamongthepure.com
http://www.stervis.co.uk/eMS
http://www.sunday-in-the-park.com
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http://www.themilkfactory.co.uk
http://www.waxy.org
http://www.whitetown.co.uk/faq.php
http://www.yro.slashdot.org
http://www.webjay.org
http://www.stompy.com/Artist
Sites dedicados aos peer-to-peer services:
http://www.flstudio.com
http://www.freenetproject.org
http://www.gnu.org/software/GNUnet/
http://www.minitasking.com
http://www.slsknet.org
Livros Grátis
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