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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A ATUALIDADE DA LITERATURA DE CORDEL
Carlos Alberto de Assis Cavalcanti
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A ATUALIDADE DA LITERATURA DE CORDEL
Carlos Alberto de Assis Cavalcanti
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da
Universidade Federal de Pernambuco, sob a
orientação da Professora Drª. Lucila Nogueira como
requisito para obtenção do título de Mestre em
Teoria da Literatura.
Recife, fevereiro de 2007
2
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Agradecimentos
A Deus, fonte inesgotável de amor
À minha esposa Jaci Ferreira Lira Cavalcanti
À minha irmã Célia Maria de Assis Cavalcanti
À minha orientadora Prof. Drª Lucila Nogueira
À AESA-CESA pelo apoio e auxilio financeiro durante a
pesquisa
Aos professores e colegas da Pós-Graduação em
Letras da UFPE
Ao Prof. Dr. Roberto Benjamin
Ao Poeta Carlos Severiano Cavalcanti
Ao Poeta Paulo Nunes Batista
A Prof. José Rabelo de Vasconcelos, in memoriam
4
Aos Poetas Clássicos
Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.
No premêro livro havia
Belas figuras na capa,
E no começo se lia:
A pá — O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado,
Pua, o pote de melado,
Dá-me o dado, a fera é má
E tantas coisa bonita,
Qui o meu coração parpita
Quando eu pego a rescordá.
Foi os livro de valô
Mais maió que vi no mundo,
Apenas daquele autô
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tirô da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Filisberto.
Depois que os dois livro eu li,
Fiquei me sintindo bem,
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.
Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
5
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruí papé
Com poesia sem rima.
Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulô sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Não tem sabô a leitura,
Parece uma noite iscura
Sem istrela e sem luá.
Se um dotô me perguntá
Se o verso sem rima presta,
Calado eu não vou ficá,
A minha resposta é esta:
— Sem a rima, a poesia
Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Não merece munta parma,
É como o corpo sem arma
E o coração sem amô.
Meu caro amigo poeta,
Qui faz poesia branca,
Não me chame de pateta
Por esta opinião franca.
Nasci entre a natureza,
Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Uvindo o vento na serva
E vendo no campo a reva
Pintadinha de fulô.
Sou um caboco rocêro,
Sem letra e sem istrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
Vivo nesta solidade
Bem destante da cidade
Onde a ciença guverna.
Tudo meu é naturá,
Não sou capaz de gostá
Da poesia moderna.
Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
Ou ligêro como o vento
Ou divagá como a lêsma,
Tudo sofre a mesma prova,
Vai batê na fria cova;
Esta vida é sempre a mesma.
Antônio Gonçalves da Silva
6
(Patativa do Assaré)
Resumo
O presente trabalho se destina a demonstrar a permanente vitalidade da Literatura
de Cordel no Brasil. Desde as suas origens até à atualidade, são abordadas visões
diferenciadas de seu estudo, bem como é analisada a poesia de Leandro Gomes de
Barros e o repente de Louro do Pajeú, ao lado de autores fronteiriços com o erudito, no
caso Paulo Nunes Batista e Carlos Severiano Cavalcanti. Ao traçar este panorama,
busca-se resgatar o diálogo da universidade com essa manife0.0dadet5adet5adedi8mianh etos de
Abstract
The present work aims to demonstrate the permanent vitality of the Literature of
Cordel in Brazil. Since its origins until the present time, they are approached differentiated
views of its study, as well as Leandro Gomes de Barros’ poetry is analyzed and Louro do
Pajeú’s “repente”, beside authors frontiered with the scholar, as Pablo Nunes Batista and
Carlos Severiano Cavalcanti. When tracing this panorama, it is searched to rescue the
dialogue of the university with this manifestation of culture, object of constant interest of
the universal research.
Word-keys: cordel, culture, poetry
8
Resumen
El presente trabajo pretende demostrar la permanente vitalidad de la Literatura de
Cordel o de Pliego Suelto en Brasil. Desde sus orígenes hasta la actualidad, se abordan
diferentes visiones de su estudio, así como el análisis de la poesía de Leandro Gomes de
Barros y la versificación improvisada (versos forzados o de payador, de bertsolari,
huapanguero, o trovador) de Louro de Pajeú, junto a autores fronterizos con lo erudito,
Paulo Nunes Batista y Carlos Severiano Cavalcanti. Al trazar este panorama, se persigue
el rescate del diálogo de la universidad con esta manifestación de cultura, objeto del
interés constante de la pesquisa universal.
Palabras clave: Cordel, cultura, poesía.
9
Sumário:
APRESENTAÇÃO........................................................................................................................................... 11
1. CAPÍTULO PRIMEIRO: O CORDEL, UMA VISÃO HISTÓRICA............................................................... 15
1.1 O
RIGEM
E
UROPÉIA
.................................................................................................................................. 16
1.2 O
RIGEM
B
RASILEIRA
................................................................................................................................20
2. CAPÍTULO SEGUNDO: A LITERATURA DE CORDEL NO NORDESTE DO BRASIL........................... 23
2.1. O
CORDEL COMO SENTIMENTO DO POVO
N
ORDESTINO
............................................................................. 24
2.2. A V
ISÃO IDEOLÓGICA DE
I
VAN
C
AVALCANTI
P
ROENÇA
.............................................................................. 33
2.3. A
CONTRIBUIÇÃO DE
R
ENATO
C
ARNEIRO
C
AMPOS
................................................................................... 38
2.4. A C
OMUNICAÇÃO DO FOLHETO SEGUNDO
R
OBERTO
B
ENJAMIN
................................................................. 61
2.5. A
POESIA LENDÁRIA DE
L
EANDRO
G
OMES DE
B
ARROS
............................................................................. 65
2.6. A
LBERTO DA
C
UNHA
M
ELO E O REPENTE DE
L
OURO DO
P
AJEÚ
................................................................. 80
3. CAPÍTULO TERCEIRO: FRONTEIRAS DE CONVIVÊNCIA DO CORDEL COM O ERUDITO ............... 89
3.1. A
POESIA DE
P
AULO
N
UNES
B
ATISTA
....................................................................................................... 90
3.2. A
POESIA DE
C
ARLOS
S
EVERIANO
C
AVALCANTI
...................................................................................... 106
4. CAPÍTULO QUARTO: REPENTISTAS, VIOLEIROS, CANTADORES: OS MODOS DA POESIA
POPULAR..................................................................................................................................................... 120
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................... 136
6. BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................................... 138
7. ANEXOS.................................................................................................................................................... 142
10
APRESENTAÇÃO
11
Este trabalho tem por objetivo discutir a necessidade de um estudo mais detalhado
sobre a poesia popular com a finalidade de fortalecer a sua inclusão no âmbito
acadêmico. Trata-se de uma cobrança contemporânea dos estudos literários a presença
de abordagens analíticas do cordel na Universidade e o nosso trabalho tem por finalidade
seqüenciar esse resgate e atualização da oralidade mágica que caracteriza esse tipo de
manifestação poética.
Trataremos de discorrer sobre as muitas maneiras de serem ordenados os versos
de cordel, em suas especificidades, observando a questão estrutural e também a musical.
Nossa intenção é demonstrar a atualidade permanente desse tipo de produção poética,
inclusive resistindo à tônica de sofisticação presente na sociedade contemporânea.
Além disso, é nosso propósito discorrer sobre aspectos sócio-históricos dessa
produção literária bem como sua ideologia e fronteiras de convivência com a poesia
erudita. Na verdade a arte e sabedoria do cordel tem servido de guia não apenas para
comunicar os fatos da realidade como também para educar e estimular o povo,
especialmente o nosso povo brasileiro, ao ato da leitura.
São muitos os estudos que têm surgido sobre o cordel, uma das nossas mais
importantes heranças culturais da Península Ibérica. A afinidade existente entre cordéis
espanhóis, portugueses e nordestinos nos parece inequívoca. No entanto cuidaremos de
analisar objetivamente a linha de pensamento que pretende uma autonomia para o cordel
brasileiro. Para isso percorreremos o caminho que faz um contraponto entre essas linhas,
comentando o cordel tanto em sua origem como em seus desdobramentos.
Traçaremos um panorama da literatura de folhetos do Brasil, procurando
atravessar desde noções ligadas à sua fundação, até o seu apogeu, chegando à
atualidade, mostrando o seu vigor permanente.
Alguns autores serão convocados nessa tarefa, desde os mais tradicionais aos
mais recentes. Ou seja, de João Athayde e Leandro Gomes de Barros até o paraibano
Paulo Nunes Batista, fazendo uma ponte até a poesia erudita com base popular de Carlos
Severiano Cavalcanti e ao celebrado repente de Lourival Batista, O Louro do Pajeú.
A incursão na diversidade de manifestações tem como intuito expor esse leque tão
variado de temas que refletem a cultura do nosso povo, a poesia na rua, nas feiras livres,
na exposição dos folhetos, a excelência do mundo rural que atravessa o cenário urbano e
se converte em porta-voz duma classe sublime, ainda que sofredora. A ética e a
sabedoria dessa gente exposta ao louvor ou à crítica na boca de seus poetas e
12
cantadores, no interior e na capital, demonstra a reportagem síntese diversificada da
odisséia cotidiana do nosso povo simples, cuja oralidade não tem divórcio com a própria
experiência.
Muitos são os autores que revelam sua ligação com a literatura de cordel, tais
como João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Ariano Suassuna. No que diz
respeito a Cabral, este chegou a declarar que passou a infância lendo folhetos para os
trabalhadores da cana; quanto a Rosa e Suassuna, basta ler Grande Sertão e Veredas e
A Pedra do Reino para verificar a importância da poesia popular em seus famosos
romances. Portanto há uma relação entranhada entre as duas manifestações artísticas
que entretanto às vezes se torna esquecida. Antonio Callado a partir do cordel e de
reportagens sobre as ligas camponesas em Pernambuco escreveu a peça Forró no
Engenho Cananéia, utilizando a poesia popular com a finalidade de criar uma visão
panorâmica do Nordeste. Não foi diferente a atitude de Ferreira Goulart, que durante os
primeiros anos sessenta, também publicou dois poemas influenciados pela literatura do
cordel, no caso Quem Matou Aparecida e João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer.
A reivindicação social e política é um aspecto marcante no cordel, o poeta não é só
o repórter da realidade, mas interfere nela, tenta modificá-la com o seu discurso lírico –
avança diante das temáticas de cangaceiros, de bichos que falavam de princesas e
cavaleiros andantes.
Quanto à forma, se um bom cantador conhece cerca de vinte, pesquisadores têm
encontrado mais de cem, embora no cordel de sentido estrito, a grande maioria venha em
forma de sextilha, também usando-se o martelo agalopado, o quadrão e o mourão. O
desafio, disputa poética entre dois cantadores, representa uma parte eminentemente oral
da poesia popular, e é motivo de atração da platéia – quando reduzidas à escrita, tornam-
se recreações. É possível que tenhamos em nosso país cerca de vinte mil impressos a
que podemos chamar literatura de cordel. Na América Latina é o México onde ela se
destaca, com os chamados corridos, havendo, no entanto produções por toda a América
Central e também na Colômbia e na Venezuela, sendo que em países andinos irá se
confundir com a cultura ameríndia, acontecendo o mesmo no Paraguai; no Uruguai e na
Argentina o repente se assemelha à poesia popular do Rio Grande do Sul.
Sabe-se que o Nordeste é o espaço privilegiado da literatura de cordel e resulta
espantoso verificar a sucessividade dessas publicações, não se medindo esforços que
minimizem o custo da produção.
Literatura escrita pelo povo e para o povo, fala de personagens populares,
referencias da nossa cultura, dínamo estético da nossa sensibilidade anterior a qualquer
13
superficialização. As marcas da oralidade são o testemunho vivo que continuam com seu
público fiel, desautorizando a frieza mineral de quem proponha morte do cordel.
O espaço acadêmico, muito especialmente esta pós-graduação em Letras
representa o palco ideal para que articulemos a imaginação da poesia com as variações
lingüísticas, na construção analítica desta viagem ao centro da nossa própria origem.
14
1. Capítulo Primeiro: O Cordel, uma visão histórica
15
1.1 Origem Européia
Considerada como invenção Ibérica a expressão literatura de cordel se ramifica
com os estudos do folheto, surgido na Península Ibérica no século XVI e chamados
Piegos Sueltos na Espanha e Folhas Volantes em Portugal; muitos deles tratavam
inicialmente de assuntos históricos. Registra Candace Slater
1
que algumas dessas
histórias eram edições “piratas” de baladas de poetas e dramaturgos conhecidos como
Gongora ou Gil Vicente, sendo outras imitações de histórias mouras, aventuras de
malfeitores narradas de modo satírico, tornando-se rapidamente em Portugal associada a
uma ordem plebéia: chegaram a ser conhecidas como Literatura de Cego, após a
Irmandade do Menino Jesus dos Cegos de Lisboa ter obtido direitos exclusivos de venda
em 1789. Segundo Manuel Diegues Júnior
2
Literatura de Cordel vem de Portugal e se
refere a folhetos presos por um pequeno cordel ou barbante, que ficavam em exposição
para vendas; há quem relacione este tipo de poesia ao romanceiro, uma vez que se trata
de uma narrativa descritiva a surgir como romance em poesia. Essa arte de origem
peninsular também foi divulgada nos países de colonização espanhola das Américas, daí
irradiar-se pelos demais países latino-americanos.
As folhas soltas ou folhas volantes eram vendidas nas feiras, nas romarias, nas
praças ou nas ruas; tratava-se de um trabalho manuscrito a circular entre ouvintes/leitores
que tinham o hábito da leitura em grupo; contava-se os fatos ocorridos, com linhas
temáticas que formavam ciclos, criando um público adepto dessa forma poética.
Arnaldo Saraiva
3
destaca que no catálogo de Forjaz de Sampaio os folhetos vão
desde 1659 a 1912; no da Fundação Gulbenkian vão desde 1692 a 1886 – em seu
próprio catálogo o folheto mais antigo é de 1602, havendo folhas volantes editadas ou
vendidas em 1982. o mesmo estudioso menciona a dificuldade de identificação do folheto,
visto que este muitas vezes se confunde com outros: opúsculo, plaquete, livrinho, livreto,
separata, folha (solta, volante) e, como ocorria no século XVIII papel. Isto para esclarecer
1
SLATER, Candace. A Vida no Barbante / A literatura de Cordel no Brasil, Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira,
1984, pág. 10
2
Diegues Júnior, Manuel. In. A Literatura de Cordel do Nordeste In. Literatura Popular em Verso. Rio de Janeiro:
Mec/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973, pág. 5
3
SARAIVA, Arnaldo Folhetos de Cordel, e outros da minha colecção, Porto: Biblioteca Municipal Almeida Garrett,
2006, pág. 6
16
que não havia nada estabelecido quando aos limites do folheto, quer em relação ao seu
formato, ou número de páginas, ou tipo de papel. Invoca O Catalogo de Piegos Sueltos
Poéticos de la Biblioteca Nacional do século XVIII que considerou Piegos (Folhetos) todos
os impressos até 32 páginas ou 16 folhas – na atualidade há alguns folhetos que não
respeitam mais a regra de folha dobrada às vezes duplicada ou triplicada, sem capa, sem
lombada, sem encadernação: daí que as única coisa segura na idéia de folheto seria de
modo simples a sua diferença com relação à idéia de livro ou de volume, uma vez que
este é habitualmente mais extenso e mais grosso.
Arnaldo Saraiva enumera várias modalidades e títulos de folhetos populares
portugueses
4
:
Poesia, narrativa, teatro, crítica…; autos, dramas, tragédias,
farsas, entremezes, monólogos, desafios, comédias, sátiras,
invectivas, paródias, anedotas, cartas, crônicas, biografias, histórias,
contos, moralidades, dissertações, elogios, exemplos, testamentos,
orações, oráculos, hinos, canções, elegias, fados, décimas, odes,
coplas, aventuras, paixões, sonhos, viagens, suspiros, sucessos,
confissões, velhos e novos, príncipes, bandidos, soldados,
namorados, clérigos, criados, deputados, fanfarrões, fantasmas, Adão
e Eva, S. João e S. Pedro, Paulo e Virginia, Manuel e Maria,
Imperatriz Porcina, Carlos Magno, Bertoldo, A Padeira de Aljubarrota,
a Donzela Teodora, Magalona, João de Calais, Bocage, José do
Telhado, Deus e o Diabo…
A Professora Márcia Abreu
5
relata estar a primeira notícia sobre a literatura de
cordel lusitana vinculada ao nome de Gil Vicente que teria publicado sob esta forma,
algumas de suas peças: mesmo após a publicação de todas as suas obras em 1562,
continuaram correndo em folhetos as histórias de Gil Vicente – o Dom Duardos, ainda no
século XVIII, era vendido como folha volante em versão modificada e o Pranto de Maria
Parda também permaneceu por três séculos, vendido como literatura de cordel. Outros
autores da chamada escola vicentina também foram considerados pela crítica como
autores de cordel, tais como Baltazar Dias, Afonso Álvares e Ribeiro Chiado. De Baltazar
Dias sabe-se que era cego e natural da Ilha da Madeira; apesar de ser um homem pobre
revelou a sua importância ao conseguir um parecer real, em 1537 sobre o seu trabalho, a
Carta de Privilégio para impressão de livros concedida por D. João III. Conhecem-se dele
Conselhos para Bem Casar e Malícia das Mulheres, sátiras em quintilhas de sete silabas
nos quais o autor critica a sociedade da época; também se conhecem três romances
(rimances): A Tragédia do Marquês de Mântua, O Auto do Príncipe Claudiano e a História
da Imperatriz Porcina. Destaca Márcia Abreu ser considerado Baltazar Dias o
nacionalizador dos romances europeus, por ter feito versões portuguesas de histórias que
corriam pela Europa e eram conhecidas em Portugal apenas nas variantes castelhanas e
francesas – histórias maravilhosas em que aparecem personagens da lenda medieval e
do ciclo de Carlos Magno.
6
Ao seguir o padrão medieval, Baltazar Dias usava o verso de sete silabas
tradicional e colocava em cena figuras bíblicas, além de tipos vicentinos como escudeiros,
alcoviteiras e judeus.
Levando-se em conta que a igreja combatia a literatura e o teatro popular é bom
lembrar que esses elementos se misturam no mundo do cordel, já que os textos das
peças eram impressos em forma de folhetos. Há poucos registros no século XVII;
entretanto surge novamente no século XVIII um movimento editorial grande para os
recursos da época; é nesse século que as traduções vêm desempenhar um papel
importante, tais como História da Donzela Teodora (1712), História do Imperador Carlos
Magno (1728), Princesa Magalona (1732), História de Roberto do Diabo (1732). Amplia-
se, pois, o espectro da temática cordelista em Portugal no século XVIII e início do XIX,
produzindo-se textos sobre muitos assuntos.
Curiosamente o século XVIII revela ser a literatura de cordel produzida por
advogados, professores, padres, militares, médicos, desmistificando a possibilidade de
identificar-se o cordel como uma literatura produzida e consumida pelos setores ditos
populares. Esses autores, dedicados à produção de folhetos não eram de baixa condição
social e econômica e o público a que se destinavam as obras de cordel portuguesas nos
anos 800, conforme a pesquisa da Márcia Abreu, não era basicamente popular: ela
concorda que havia lavadeiras, carregadores, moleques de rua, reunidos em torno dos
cegos para ouvir as suas histórias e adquirir folhetos, mas a pesquisadora, citando
Manuel de Figueiredo, dá notícia de um público bastante diferente para as obras de
cordel, que incluiria fidalgos, senhoras da corte, parte da população “culta” da cidade – o
que não quer dizer naturalmente que a literatura de cordel fosse apenas a eles dedicada.
Na verdade, é preciso ter-se a compreensão de que o cordel é uma linha editorial: os
tradutores e editores dessa literatura selecionavam o que lhes parecia mais próprio para
divulgação; esses folhetos, vendidos a baixo preço nos logradouros públicos
Esse questionamento quanto ao fato de não representar a literatura de cordel
sinonímia exata com o popular é, naturalmente, polêmica. De qualquer forma, tem
validade, apesar de em sua continuidade ser permeada aos critérios de observação e
análise tanto do discurso escrito como do contexto da fala, da oralidade, através de
formas consideradas simples, no sentido de fiéis ao imaginário expressional da tradição.
O professor Arnaldo Saraiva, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto viu
sua coleção de folhetos ser editada, no passado de 2006, pela Biblioteca Municipal
Almeida Garrett. Reuniu 499 folhetos e 61 volantes, perfazendo um total de 560 títulos; as
folhas foram publicadas entre os anos 1950 e 1982, havendo predominância dos editores
do Porto, alguns deles vizinhos. Os folhetos nem sempre têm numeração de páginas e,
como catálogo que destina aos leitores em geral foi modernizada a grafia dos títulos e
citações. Arnaldo Saraiva descarta que dada a escassez de catálogos de folhetos
portugueses achou por bem assinalar elementos materiais que identificam cada folheto;
organizou-os por ordem alfabética, numerando-os para a edição. Esse trabalho minucioso
do professor português se constitui numa contribuição inestimável ao entendimento do
cordel em Portugal
19
1.2 Origem Brasileira
Se as origens da literatura de cordel são relacionadas ao hábito de contar histórias
sabe-se que, por outro lado pode não ser consensual a questão relativa à origem do
cordel em nosso país. Segundo Câmara Cascudo, a prática de conservar a memória de
episódios pelo canto poético é fórmula universal e milenar, sendo utilizada no Brasil já no
século XVI, pelos indígenas, como registraram Fernão Cardim, Gabriel Soares de Souza
e André Thevet – também os povos africanos, como os sudaneses e os bantos,
registraram suas traduções em poemas; Sílvio Romero, já em sua época, revelou
exemplos de romances, contos e versos que circulavam no Brasil oitocentista os quais
identifica como de origem, ora portuguesa, ora africana, ora indígena. De qualquer forma
os primórdios da literatura de cordel encontraram no Brasil podem estar relacionados ao
modelo português, trazido para o Brasil pelos colonizadores já nos séculos XVI e XVII.
Apesar disso, a filiação direta do cordel português e o folheto Brasileiro, como lembra Ana
Maria de Oliveira Galvão
7
não é consenso entre os autores. Veja-se que Manuel
Cavalcanti Proença afirma que os folhetos de cordel podem ter parentesco com os
bandos (pregões ou proclamações públicas) que percorriam a cavalo as ruas do Brasil
antigo com tambores e cornetas, até pararem em uma esquina onde um toque padrão se
encarregava de atrair e reunir o público; então, lia-se o Bando, em pergaminho, versos
que anunciavam um programa geral de festas populares, com críticas ferinas às
autoridades – essa banda era a “Folha Volante, Folheto, ou Pliego S 0zapsil podem estaa mf08.6511.9951Doo fdarid4m(Maria de Oliveira Galvão)TjETEMC /Sp>>BDC BT/TT0 112 Tc4175 TwTw 7.9768 0 0 7.98 202.2 399.0803 Tm(7)TjETEMC /43rdios d2os bantos,
literatura de cordel reduplicam os da classe dominante e fazem eco à moralidade
tradicional
9
.
Apesar das dificuldades e nebulosidade quanto à origem do cordel no Brasil,
muitos estudiosos atribuem a Silviano Piruá de Lima (1848-1913), paraibano, a idéia de
rimar as histórias tradicionais; essa é a opinião de Câmara Cascudo para quem o poeta
foi o primeiro a escrever os romances em verso
10
.
O inicio, contudo da impressão sistemática das histórias rimadas em folhetos é
atribuído a Leandro Gomes de Barros (1865-1918), paraibano de Pombal, que em 1893
imprimiu o primeiro folheto, em um momento em que se multiplicavam as tipografias em
todo o país; se Leandro tinha começado a escrever folhetos em 1889, começou a imprimi-
los nesse ano de 1893; posteriormente, já estabelecido no Recife passou a viver
exclusivamente da produção e venda dos folhetos, tornando-se ao mesmo tempo autor,
editor, e proprietário.
Conforme Manuel Diegues Júnior
11
o ambiente sócio-cultural do Nordeste
contribuiu para que surgisse com força a literatura de cordel, tornando-se de uma certa
forma uma característica da própria fisionomia cultural da região: a própria vida familiar
incluía o “serão”, no caso a reunião noturna em família – em torno de um candeeiro,
depois do jantar, na sala de visitas (fosse um engenho, uma fazenda, uma casa de cidade
ou um sítio) reuniam-se os membros da família e a leitura de poesia se tornava o motivo
da reunião.
Vou recordar que a eletricidade não chegou cedo ao Nordeste: foi nos primeiros
vinte anos do século XX que ela se espalhou pelas capitais, constituindo-se um fator de
dispersão das famílias pois com luz na sala de visita, de jantar e nos quartos, cada
membro da família passou a fazer o que queria; logo a seguir iria surgir o rádio e , a partir
da década de cinqüenta, a televisão, que veio se constituir um novo fator de
agrupamento.
Câmara Cascudo considera, além dos estados do Nordeste, centros irradiadores
de edições da literatura de cordel, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás e
Belém do Pará que tinha uma casa editora para toda a Amazônia.
O apogeu da literatura de cordel no Brasil iria ocorrer entre as décadas de trinta e
cinqüenta do século XX quando montaram-se redes de produção e distribuição dos
folhetos, centenas de títulos foram publicados e um público foi constituído deixando o
editor de ser exclusivamente o poeta. É quando vai surgir João Martins de Athayde vai
9
Idem, p. 32
10
Idem, ibidem.
11
Diegues Júnior, Manuel. Ob. Cit. p. 15
21
introduzir inovações na impressão dos folhetos, consolidando o formato no qual até hoje é
impresso – daí serem Leandro e Athayde considerados os fixadores das normas de
criação de folhetos. Afirma-se que em 1909, João Martins de Athayde se estabeleceu no
Recife com uma tipografia, mas não há registros de folhetos publicados por ele antes de
1918; em 1921 o poeta e editor compra a propriedade das obras de Leandro Gomes de
Barros, tornando-se editor também de diversos outros poetas, além de seus próprios
folhetos; ele criou uma verdadeira rede de distribuição desses impressos que passaram a
ser vendidos nas grandes cidades de vários estados – em 1949, já doente, Athayde
vendeu os direitos de proprietário de obras de vários autores a José Bernardo da Silva, de
Juazeiro do Norte, Ceará
12
. Nos anos sessenta o cordel vai passar por uma grande crise,
tornando-se novamente centro de interesse a partir dos anos setenta, motivando o
interesse dos estudantes, professores e intelectuais de um modo geral.
12
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira, Ob. Cit. p.33
22
2. Capítulo Segundo: A literatura de cordel no Nordeste
do Brasil
23
2.1. O cordel como sentimento do povo Nordestino
A Literatura de Cordel brasileira é, sem sombra de dúvidas, uma das nossas mais
importantes heranças culturais vindas das bandas ibéricas, e cuja projeção e
expressividade temática, tem dado suporte para a realização de uma variada gama de
pesquisas nos meios acadêmicos.
É do conhecimento geral que, a denominação “literatura de cordel”, já em Portugal,
associava-se ao procedimento para sua comercialização, com o uso de expor os folhetos
em barbantes, para melhor visualização por parte do público. Há registro deste fato em O
Bilhar – de Nicolau Tolentino, poeta satírico português (1740-1811). Assim é que, os
nossos folhetos de feira seguem o mesmo feitio português, na forma e na divulgação,
desde os primeiros registros de sua ocorrência em solo brasileiro que, conforme opina a
pesquisadora Francisca Neuma Fechine Borges, da UFPB, deu-se em fins do século XIX
para o início do século XX, sobretudo com a produção dos paraibanos Leandro Gomes de
Barros (1865-1918) e Francisco das Chagas Batista (1882-1930), tendo, portanto, o
Nordeste como epicentro dessa manifestação poética.
13
A despeito de divergências quanto à divisão temática dos folhetos, Francisca
Borges prefere adotar uma divisão em que contempla dois grandes grupos, para efeito de
sistematização e estudos: no primeiro, acomoda os folhetos que versam sobre temas
considerados antigos, vindos da tradição ocidental ou oriental; no segundo, encaixa
aqueles que tratam do contexto nacional, mais particularmente nordestino. Tomando por
base um corpus constituído por 8.000 exemplares de folhetos, Neuma Borges conclui que
o segundo grupo é seguramente mais numeroso - (cerca de 80%) – ainda mais quando se
concentra por temática as questões nordestinas, sejam econômicas, sociais ou políticas,
bem como temas ligados ao cangaço, à seca ou aspectos da religiosidade popular.
Contudo, no primeiro grupo, mesmo considerando um número mais reduzido de
folhetos, há que se destacar a importante contribuição aos temas mais tradicionais e para
além da fronteira nordestina, a exemplo da Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, Carlos
Magno e os Doze Pares da França, estórias impressionantes que põem em evidência
13
Borges, Francisca Neuman Fechine, Reflexões sobre a Pesquisa em Literatura de Cordel: Dos Métodos Tradicionais à
Informatização João Pessoa : UFPB/Fundação Casa de José Américo, p. 23 e seguintes
24
figuras ligadas à monarquia, à igreja, ou realçam objetos mágicos e aparições de fadas,
monstros etc. Aí ocorre uma interpenetração entre o erudito e o popular, quando muitas
obras clássicas se popularizaram pelo mundo afora, nas versões portuguesas, brasileiras,
espanholas, francesas, catalãs e alemãs que receberam sob o formato de cordel,
mantendo a estrutura profunda da narrativa, não obstante as diferentes formas de
expressão.
Vale a pena mencionar aqui, a preocupação da professora e pesquisadora Neuma
Borges em reunir um banco de dados o mais amplo possível, para deixar um registro
documental sobre a Literatura de Cordel, através do exame de coleções de folhetos
produzidos no Nordeste e Sul, bem assim em outros países, a exemplo de Portugal,
Espanha, França, Áustria e Estados Unidos, entre outros.
Sendo assim, e a partir de sua experiência de quase trinta anos de dedicação à
pesquisa, Neuma Borges liderou a criação do Programa de Pesquisas em Literatura
Popular (PPLP), na UFPB, em 1977, que veio consolidar o projeto de um centro de
documentação ligado a este tema, e com o qual os pesquisadores do Brasil e de outros
países pudessem contar como incentivo às futuras pesquisas, num intercâmbio cultural de
reconhecido valor para a universidade e para a comunidade, sobretudo em nossa região,
foco histórico da nacionalização das manifestações da poesia popular – cantada ou
escrita.
Sem dúvida, o valor informacional que se extrai do conjunto de estórias construídas
no imaginário popular, onde heróis e heroínas medievais ou renascentistas expressam
seu amor, crenças, luta e chegam a sofrer ou até mesmo a morrer por seus ideais, finda
por estabelecer um banco de dados na memória do povo que atravessa séculos e se
estabelece na atualidade, a despeito de um tempo marcado pelo excesso de refinada
tecnologia que, em parte, causa embaraços ao trânsito normal dos sonhos e do
encantamento com os acontecimentos mais centrados nas emoções e menos tecnicistas.
Assim que, o vasto e riquíssimo acervo constituído pelos “livrets de colportage”, “pliegos
sueltos” espanhóis, “livrinhos de cordel portugueses” e “folhetos de cordel brasileiros”,
bem como o artístico trabalho de xilogravuras, formam um conjunto de recursos icônico-
textuais, que resistem à passagem dos séculos.
Quanto ao início da Literatura de Cordel brasileira, considera-se sua proximidade
com o modelo português, o qual também se modelava pelo cordel de origem espanhola,
francesa ou italiana. Referências a “antecedentes”, “antepassados literários” – Slater, ou a
“origens européias” – Cantel, ou ainda a “primórdios” – Ruth Brito, não passam de
expressões que pouco acrescentam ao que já dissera Câmara Cascudo e Manuel
25
Diegues Júnior. Vale a pena ressaltar que só a partir dos anos 60 do século próximo
passado, quando a atenção de pesquisadores estrangeiros, a exemplo de Mark J. Curran,
Candace Slater, Raymond Cantel, Joseph M. Luyten, entre outros, se voltou mais
detidamente para o estudo da produção do cordel brasileiro, o assunto entrou na ordem
do dia de r2isaBvetidoreiCantectu ma, posei
um só tempo a arte de produzir os folhetos e a capacidade para sua divulgação, o que
abriu um canal bem mais dinâmico de aproximação entre o folheto e o povo, talvez por
isso merecendo o título de “fundador da popular literatura poética de cordel no Nordeste”.
Outro conjunto de indagações pertinentes ao tema Cordel, e que tem sido objeto de
estudo por parte dos estudiosos, contempla a investigação sobre o porquê da Literatura
de Cordel se fixar mais solidamente em território nordestino, fazendo desta terra o seu
habitat e daí alcançando outras áreas do Brasil. Manuel Diégues Júnior, ao prefaciar obra
de Mário Souto Maior (Nordeste: A Inventiva Popular, 1978) aponta como o autor
transforma em palavras o que os olhos captam com as lentes poéticas de quem conhece
o chão que vive, e talvez aí resida o traço que vincula a poesia popular ao solo
nordestino, mais do que ao solo, pois há como que uma mistura do barro-chão ao barro-
homem, cujo sopro de vida se caracteriza pelo canto que sai da boca e da viola, dueto
inseparável de experiências imorredouras no incansável duelo pela sobrevivência.
Diégues Júnior comenta:
“Inventiva Popular do Nordeste nos oferece traços
nordestinos de expressão cultural da gente regional; o Nordeste
em muitas de suas mais significativas características - a
xilogravura, os cantadores, os carnavais (será que os carnavais
ainda são os mesmos de nossos tempos?), as expansões
místicas, o trem (aquele bem lembrado por Ascenso: vou
danado pra Catende), o alfenim, enfim tantos e tão
caracterizados aspectos de nossa região que o pesquisador
Mário Souto Maior fixou com a nitidez de seu olhar observador e
o conhecimento de seu viver cotidiano na região.
Região, a do Nordeste - repita-se - que marca tão
nitidamente sua gente - que mesmo os que saem, não fogem de
sua presença, sentem permanentemente suas mãos presentes.
Presença no espírito, na criação, na maneira de ser. O que se
podia observar de um Juarez Távora, um José Lins do Rego, um
Jorge de Lima, um Graciliano Ramos; e até mesmo no
universalizado Gilberto Amado; e que se pode observar em
muitos dos que aqui, pelo Sul, vivemos neste corre-corre da vida
que nos trouxe para cá. Região, a do Nordeste, com esta força
de marcar cada um de seus filhos, definindo em cada um de nós
a sua presença permanente. Daí por que não esquecemos,
antes vivemos, aspectos desta vivência regional, através de
suas manifestações populares”.
14
O fato é que, no Nordeste, a própria característica das condições sociais e culturais
propiciam tal ocorrência, ao somar fatores como a organização da sociedade patriarcal,
14
DIÉGUES JÚNIOR, Manuel: Prefácio de Nordeste: A Inventiva Popular, de Maior, Mário Souto. Rio de Janeiro.
Livraria Editora Cátedra/Instituto Nacional do Livro. 1978
27
as manifestações messiânicas, o cangaço e, sobretudo, as questões ligadas aos flagelos
climáticos. Essas situações distintas, associadas ao sentimento do povo nordestino, são
mais do que inspiradoras do cantar e do dizer poético que emana do íntimo do repentista
e do cordelista, fazendo eco com a voz e o coração do pensamento coletivo.
Ora através da escrita, no Cordel, ora através do Repente, nas cantorias, a poesia
popular se manifesta e ecoa desde tempos passados até a atualidade. Nas duas
situações, prevalece uma harmoniosa conjunção de métrica, ritmo e rima, convergindo
para tornar mais assimilável pelo ouvido popular, a musicalidade do que é expresso
através da arte poética que sai da pena do cordelista, no folheto, ou da goela do
repentista, na peleja.
É correto concluir que a Literatura de Cordel tem suportado a pressão da
concorrência da mídia e de toda uma gama de apelos consumistas que ao poder midiático
se vinculam para massificar toda sorte de informações, não só nos grandes centros
urbanos, mas também no interior e, obviamente, nas áreas rurais. O Cordel das últimas
décadas do século XX, também fez uso do poder da mídia para a sua própria divulgação
e preservação, se bem que esse mecanismo jamais diminuirá o brilho que a força da voz
do cantador desempenha, ao ler o folheto ou enfrentar um desafio, valorizando a mística
popular através das sextilhas e outras modalidades de estruturação do seu verso, que a
um tempo encanta e diverte, provoca reflexão e remete à infância. Marcus Accioly, poeta
nordestinado, admirador da poesia popular, afirmou, em entrevista ao jornalista Mário
Hélio: “O Cordel foi a literatura da minha infância (...) Tudo o que consegui com a poesia
(e devo tudo a ela) foi encontrar o possível equilíbrio entre a lucidez e a loucura, entre a
tradição e a vanguarda, entre a inspiração e a transpiração e entre o popular e o erudito”.
A propósito da interpenetração que se dá entre o popular e o erudito no Cordel, há
que se registrar o valor da obra de Leandro Gomes de Barros, sobretudo a riqueza
temática e a linguagem popular presentes nos seus folhetos, fato esse que ultrapassa os
rótulos aplicados ao poeta cordelista de que nada mais seria do que simplesmente um
transmissor da tradição, repetidor de modelos já em uso e mero porta-voz da
comunidade.
A prevalecer tais rótulos, a questão se fecharia na desconsideração da influência
das fontes orais e escritas e na indiferença quanto à ação do poeta popular em variantes
de criação e recriação. A Literatura de Cordel aproxima o erudito e o popular, o coletivo e
o individual, à luz de um contexto que reúne cultura, sociedade e história dentro de uma
realidade que tanto pode atrair como gerar afastamento.
28
Folhetos escritos em sextilhas, setilhas ou décimas, tratando sobre vários temas
caracterizam a nossa literatura de cordel. Na verdade, o Cordel se constitui em um
verdadeiro jornal nordestino, cuja temática apresenta desde os “causos” ocorridos de fato
ou acrescidos da fantasia popular, passando pelos relatos relacionados com a política e a
religião. Ressalte-se, ainda, que se trata de um jornal em versos (e muito bem delimitados
no ritmo e na métrica), o que faz o jornal ainda mais característico. Isso torna, sem
dúvida, a literatura de cordel uma das mais curiosas e extraordinárias expressões da arte
nacional, seja pelo fazer poético assim como pela construção das capas que se
apresentam artisticamente elaboradas em xilogravura.
Alguns estudiosos indicam a literatura francesa de colportage, os romances e
pliegos sueltos ibéricos e a própria literatura de cordel portuguesa (séculos XVI e XVIII),
como a fonte de inspiração do Cordel que nasceu e se desenvolveu no Nordeste do
Brasil, divulgando a sabedoria e a história do povo sertanejo para todo o País e fora dele.
Os pesquisadores consideram o paraibano Leandro Gomes de Barros como o
pioneiro na elaboração do folheto de cordel brasileiro (em 1893), se bem que outros
apontem Silvino Pirauá de Lima. O certo é que, os poetas cordelistas contavam suas
histórias, de feira em feira, enquanto os folhetos, pendurados em barbantes, iam
chamando a atenção dos feirantes, pela atração das capas em xilogravura. Assim,
montava-se uma estratégia de superação da dificuldade de leitura da maior parte da
clientela. De um lado, a voz do poeta a contar os “causos” na leitura sistemática dos
folhetos, de outro, a curiosidade visual das capas. Com certeza, esta prática em muito
incentivou o interesse pela leitura em grande parte daqueles que adquiriam o folheto e o
levava para casa, na esperança de ser também o leitor da história contida no folheto.
Daí o folheto se constituir numa ferramenta que, de certo modo, combateu o
analfabetismo reinante na população. É claro que, hoje, muita coisa mudou, tanto entre o
nível cultural dos poetas quanto do público, bem como também na própria confecção do
folheto. A tipografia precária do passado deu lugar, hoje, a impressões em máquinas
modernas.
A propósito, é Raimundo Luiz do Nascimento, conhecido por Raimundo Santa
Helena, numa referência à sua terra natal, na Paraíba, ícone entre os grandes nomes do
Cordel brasileiro, comparado a Patativa do Assaré, e dono de nada menos do que 430
livretos de poesia de cordel, publicados em vários idiomas, quem estabelece uma
progressão nas fases da História do Cordel no Brasil. Há 100 anos, teria chegado ao
Brasil o cordel, com os portugueses. Diz ele haver entrado pelos portões da Paraíba, do
jeito mesmo que existe até hoje, vendido em livrinhos pendurados no cordel. A segunda
29
fase, Santa Helena demarca como ocorrendo por volta de 1979. Ele afirma que, à época,
em função da grande mídia, o cordel ficou sufocado em todo o mundo onde existia esta
forma de manifestação artística. Assim, para evitar que sucumbisse de vez, foi realizado,
na Bahia, um congresso internacional, para salvar o cordel. O próprio Santa Helena, no
final de 1979, revigorou e atualizou esta forma de poesia, ao lançar o cordel urbano, com
temática ecológica, inspirado em uma reportagem do Jornal do Brasil, que fazia matérias
contra a devastação da Amazônia. Inaugurava-se, assim, uma terceira fase da poesia de
cordel no Brasil.
Finalmente, um cordel direcionado para as crianças é o que os pesquisadores já
consideram a quarta fase. Santa Helena diz que, em 1984, teve esta idéia a partir de uma
palestra que deu para as crianças, as quais traziam folhas de papel para que o
palestrante autografasse. ''Meu Deus, porque ainda não fiz um cordel infantil.'' –
interrogava-se, então, Santa Helena. Daí a fazer foi um pulo. Concluído, ele mostrou os
originais datilografados a Carlos Drummond de Andrade. É costume que os cordéis só
tenham como ilustração uma xilogravura: a da capa. Drummond aconselhou Santa
Helena a publicar o livro com uma xilogravura por página, mantendo as imagens talhadas
em madeira, como tradicionalmente se faz. Havia um problema que retardava o
lançamento: o custo, já que se tratava de várias xilogravuras, e não apenas a da capa.
Mas a Editora Entrelinhas se prontificou a publicar a obra que, para atrair a criançada,
traz, junto ao livro, um CD e um estojo com lápis coloridos. Além de apresentar a história
de O Menino que Viajou num Cometa, a obra cita personagens históricos, como Joana
D'Arc ou Tiradentes, e fala de saúde, de astronomia e da igualdade entre homem e
mulher.
Independente do seu caráter didático, traz uma divertida história de Brasilenho,
menino que pega uma carona celeste e como ''anjo foguete'' chega à Lua. No livro, o
poeta também faz um apelo à paz:
''Pra que se fechem feridas
De velhos ressentimentos
Pra que se rasguem caminhos
De novos conhecimentos!
Pra que seja cada mão
Um elo de multidão
Nos desertos poeirentos.''
30
O livro foi lançado na Bienal (2003), no estande da Entrelinhas, onde dois
repentistas contavam a história do livrinho de Santa Helena, mas também cantavam
repentes para as crianças. Acontece que, em 1980, o poeta pernambucano Marcus
Accioly já publicara o seu Guriatã, um cordel para meninos. Este poeta inicia a publicação
de seus livros com fidelidade ao ritmo tradicional nordestino (Nordestinados); com o
passar do tempo irá formatando seus versos com a erudição das vanguardas culminando
com o seu manifesto em defesa do realismo épico, que irá consolidar em livros como
Sísifo e Latino América.
Vale a pena ressaltar que dois ilustres folcloristas nacionais, Luís da Câmara
Cascudo e Manuel Diégues Júnior, também abordaram a origem da nossa literatura de
cordel em suas obras. Este, sobretudo, em seu ensaio: Ciclos Temáticos na Literatura de
Cordel; aquele, em obras como: Vaqueiros e Cantadores e Cinco Livros do Povo. Ambos,
em suas obras, apontam a vinculação dos folhetos de feira, já a partir do século XVII, com
as chamadas “folhas volantes” ou “folhas soltas” em Portugal, comercializadas por cegos,
conforme dados de Teófilo Braga. Na Espanha, havia algo similar chamado de pliegos
sueltos, cuja denominação chegou à América Latina, paralelamente a hojas e corridos,
como é corrente na Argentina, México, Nicarágua e Peru. Diégues cita a folclorista
argentina Olga Fernandéz Lautor de Botas, a qual faz referência a estas narrativas
tradicionais que mantém certo paralelo com o modelo da literatura de cordel brasileira.
Há, também, informações de que na França, o fenômeno se dava através da
litèrature de colportage – literatura volante, com freqüência no meio rural. Na Inglaterra,
folhetos com o feitio dos nossos recebiam a denominação cocks ou catchpennies, quando
tratavam dos romances e estórias imaginárias; enquanto eram chamados de broadsides,
quando realçavam fatos históricos, equivalendo-se aos nossos folhetos de relatos
circunstanciais. Há, também, pesquisas que indicam a presença do folheto de cordel na
Holanda, século XVII, conforme pesquisa desenvolvida pelo professor José Antônio
Gonçalves de Mello, que chegou a examinar panfletos do século XVII, e na Alemanha,
séculos XV e XVI. Um ensaio da pesquisadora Marion Ehrhardt: Notícias Alemãs do
Século XVI sobre Portugal, que saiu na revista “Humboldt” (1966), confirma este fato, ao
comparar os velhos folhetos alemães e a literatura de cordel. Alguns dos folhetos
germânicos apareciam também em prosa.
Conclui-se destas informações que a literatura de cordel tem indicações bem mais
anteriores do que as fontes portuguesas, mantendo, sempre, o trinômio que melhor define
esta prática poética: poesia narrativa, popular, impressa, como bem disse o professor
31
Raymond Cantel, da Sorbonne, num ciclo de estudos sobre a literatura de cordel, em
Fortaleza – CE, em 1976.
A atualidade dos folhetos de cordel brasileiros, apresentando um leque
variadíssimo de temas, assinados por cordelistas de alto respeito entre o público, vem
respaldar que a literatura de cordel, no século XX, após fixar suas bases no Nordeste e
alcançar o País, através da divulgação realizada pela distribuição sistemática dos folhetos
pelos próprios autores, em feiras livres, e contando com a simpatia de folcloristas e
escritores tradicionais, tem significativa importância que se converte em estudos
acadêmicos sobre o assunto, a partir de vários aspectos, mas sobretudo se destaca a
importância de maior grau, se assim se pode referir, que é divulgar a cultura nordestina,
sertaneja, especialmente num período em que, distante da escola, a voz do cordelista
assumia este papel educativo, politizador, informativo, recreativo, enfim, era a escola que
ainda não havia chegado à vida de milhares, senão milhões de pessoas por este
Nordeste a fora.
Em artigo escrito por Francisca Neuma Fechine Borges, para o Jornal da Tarde,
edição de 20/02/1998, ela afirma que:
“os folhetos de cordel, com seus múltiplos temas e
expressiva forma de composição poética, têm sido objetos de
estudos para pesquisadores do nosso país e também
estrangeiros”. Segundo ela, “os textos de cordel poeticamente
estruturados, tendo a sextilha como estrofe básica, são
ilustrados com xilogravuras, chichês de cartões postais,
fotografias, desenho e outras formas de composição gráfica e
oferecem farto material para pesquisas, ensejando variadas
interpretações que remetem para o contexto sócio-cultural em
que se insere cada texto. Assim, os folhetos sobre os mais
diversos temas, tradicionais ou contemporâneos, são versejados
por inúmeros poetas populares, estabelecendo-se relações
icônico-textuais significativas, ou outras intratextuais. Vale
lembrar que nessa riquíssima literatura, de universo semiótico
multifacetado, aberto a várias isotopias (isossêmicas, isotáxicas,
isográficas, isofônicas) aqui entendidas nas concepções de
vários semanticistas como A. J. Greimas, F. Rastier, J. Adam e
J. Goldenstein, há uma grande variedade temática que reflete
bem a extraordinária vivência dos nossos vates populares,
desde o seu engagement com os problemas mais atuais,
contemporâneos a cada poeta, até a conservação e transmissão
de narrativas inspiradas no imaginário tradicional que nos
chegaram através da península ibérica”.
15
15
BORGES, Francisca Neuma Fechine; apud no Jornal da Tarde, 20-02-1998, Disponível em:
<revista.agulha.nom.br/1fneuma>.
32
2.2. A Visão ideológica de Ivan Cavalcanti Proença
Inspirada na literatura francesa de colportage, nos romances e pliegos sueltos
ibéricos e na própria literatura de cordel portuguesa, a Literatura de Folhetos (ou de
Cordel) desenvolveu-se no nordeste brasileiro, contando as sagas e a sabedoria do povo
sertanejo. Atualmente, esta manifestação popular pode ser encontrada em diversos
pontos do país, sempre incentivada pelas comunidades nordestinas. O primeiro folheto de
que se tem notícia foi publicado na Paraíba por Leandro Gomes de Barros, em 1893.
Acredita-se que outros poetas tenham publicado antes, como Silvino Pirauá de Lima, mas
a Literatura de Cordel começou mesmo a se popularizar no início deste século. As
primeiras tipografias se encontravam no Recife, e logo surgiram outras na Paraíba, na
capital e em Guarabira. João Melquíades da Silva, de Bananeiras, é um dos primeiros
poetas populares a publicar na tipografia Popular Editor, em João Pessoa.
A popularização da Literatura de Cordel no Nordeste se intensificou a partir do
trabalho dos poetas cordelistas, num contato direto com o povo, nas feiras livres, palco de
suas apresentações e exposição dos folhetos, criando um campo fértil para atrair os
curiosos que, geralmente em círculos, se postavam atentos à leitura das histórias, as
quais despertavam o interesse de todos, sobretudo quando o tema anunciado tinha a ver
com questões sociais, políticas, religiosas. Pode-se falar em Literatura de Cordel como
um conjunto de autores, obras e público. O poeta cordelista, em sua maioria oriundo do
interior, até mais ainda do meio rural, chegava aos grandes centros urbanos para
comercializar o seu produto, ali representado no folheto, fonte de expressão não apenas
cultural mas também de subsistência, daí porque se qualificava, assim, num verdadeiro
porta-voz da grande maioria das classes populares nordestinas, mediador, portanto, das
aspirações de uma vida digna e menos sofredora.
Desta forma, é possível ver/ler na Literatura de Cordel, como bem argumenta Ivan
Cavalcanti Proença em A Ideologia do Cordel,
16
uma vertente ideológica imbutida nos
textos, “por trás da aparente não-ideologia que envolve tais textos de Literatura de
Cordel”. Proença chega a afirmar que, “da mesma forma que as pessoas procuram ver
16
PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A Ideologia do Cordel. Rio de Janeiro: Imago Editora/MEC.
1976
33
nos ditos dos textos literários os não ditos será possível também, nos indícios de uma
não-ideologia, identificar-lhes exatamente a ideologia. Outro aspecto ressaltado por
Proença é que simultaneamente coexistem, no texto, uma ideologia interna e uma
ideologia externa (esta, resultante das estruturas também exteriores aos textos: meio,
sociedade, condições de vida, época etc”.
Contudo, em sua obra, Proença adverte que não se vale do “modelo extrínseco,
sociológico ou não, para encaixar ou moldar o texto”, fechando as narrativas e suas
possibilidades de leitura. Assim, e citando exemplos tirados dos clássicos da Literatura
Nacional, Proença deixa entrever que o texto não é menos literário pelo fato de não
trazer, nas entrelinhas, um recado explicitamente engajado. Cita, por exemplo, que um
poema romântico ou de exaltação à natureza poderá, até por se constituir num retrato de
uma mentalidade numa dada época, muito bem caracterizar as tensões ou distensões
então em voga. É o caso das personagens machadianas, as Capitus da vida, os
Bentinhos, que não só expõem o traço criativo do autor, expõem o reflexo de uma época.
Assim também o índio alencarino, que sai de sua tribo ou habitat para além das fronteiras
tribais. Em suma, o autor considera que a questão da comunicação no texto literário traz,
por certo e com muito mais pertinência do que alguns “discursos” intencionalmente
“comunicativos”, uma retomada crítica da realidade. Com esta compreensão, Proença se
propõe a examinar os traços ideológicos do Cordel, a partir de um viés em que se
preserva o relacionamento cordel/ideologia/comunicação, considerando as próprias
características dos folhetos: feitos para o povo. Qual o conceito deles em relação à arte e
ao artista, suas funções e finalidades, interroga o autor. Em resposta, Proença cita versos
de um folheto de Antônio Francisco Dias, que aponta que eles – artistas – crêem
firmemente na inspiração:
Nasce um pra ser feliz,
Outro pra viver a trote,
Somos iguais na matéria,
Não somos iguais no dote,
O destino traça a vida,
Quem quiser que escute e note.
.............................................
Nele se vê um pintor
Uma tela lapidada
Vai realmente brilhando
Se alargando sua estrada
Ele sonha, cria e tem
34
Não é Cultura Importada.
17
Nos versos a seguir, o poeta põe, em comum acordo, a inspiração e a transpiração,
o artesanato:
Como começou a pintar?
Respondeu sem embaraço:
- Há oito anos apenas
Fazendo o mesmo que faço,
Pintando os altos montes
Me baseio nessas fontes
Nunca perdi um só traço.
18
Os temas da Literatura de Cordel há muito são estudados por folcloristas,
sociólogos e antropólogos, os quais polemizam quanto à sua classificação. Discussões à
parte, os folhetos se dividem entre os de assuntos descritivos e os narrativos. No primeiro
grupo incluem-se os folhetos de conselho, eras, corrupção, profecias e de discussão, que
mantêm alguma identificação temático-moralista, decorrente de uma ética e sabedoria
sertanejas. São histórias que evidenciam a vida dura do campo, as pelejas entre
cantadores e poetas, as personalidades da cidade e da política, o louvor ou a crítica,
sobretudo em período de eleições, os temas religiosos, biografias ou milagres dos santos
e de figuras como Padre Cícero e Frei Damião. Há ainda os de gracejos, de
acontecimentos reais ou imaginários, de bravura e valentia como os feitos de Lampião,
Antônio Silvino, Pedro Malazarte, entre outros.
Todo este leque de características gráficas e temáticas dos folhetos está sujeito a
variar de acordo com a área de atuação do poeta e, evidentemente, o nível do público
alcançado. Uma coisa é uma feira livre num lugarejo interiorano, outra é um público
esclarecido, num grande centro urbano. Exemplo disso é o cordelista Raimundo Santa
Helena, tema de mestrado na UFRJ e um dos expoentes hoje da Literatura de Cordel.
Paraibano radicado no Rio de Janeiro, Santa Helena é fundador cultural da Feira
Nordestina de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, fundou a Cordelbrás e chegou a ser
indicado para concorrer a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras
No interior ou na capital, lá estão eles comunicando, em versos, a prosa que
en(canta), cantando, em prosa, os versos que disseminam a cultura. Proença chega a
registrar em sua obra:
17
Idem ob. cit., p. 13
18
Idem, ibidem
35
“levam ao povo, traduzidas na sua linguagem pitoresca e
humilde, as obras mais famosas de camadas literárias mais
elevadas: ‘O Amor de Perdição’, ‘O Guarani’, ‘Iracema’, ‘A
Virgem dos Lábios de Mel’, ‘O Corcunda de Notre Dame’ e até
‘Romeu e Julieta’, transpostos – diz o autor – em redondilha
maior”.
19
Há que se registrar que a literatura popular é tanto imaginação quanto observação.
Há, por assim dizer, um traço de jornalismo presente na construção da Literatura de
Cordel. Daí porque os acontecimentos de maior relevância social, sejam eles agradáveis
ou não, logo surgem na ordem do dia do poeta e se transforma num jornalismo
versificado.
Paralela à divulgação escrita presente na Literatura de Cordel, há também a
vertente cantada da poesia popular, construída ao sabor do improviso – o Repente – que,
com o Cordel, faz dobradinha no tocante ao que de mais extraordinário existe na
comunicação do povo simples do Nordeste. Proença registra que:
“o cantador é tido como o maior comunicador do
Nordeste. Viola nas costas e a facilidade de transmitir as coisas,
gozar a vida, explicar os fatos históricos, fazem dele o mais
antigo comunicador de massa do Nordeste”
20
.
Como os provençais da Espanha e Portugal, de quem descendem, os cantadores
cantam sempre em dupla, fazendo o tradicional desafio que termina em um trocadilho de
palavras”. No Cordel ou no Repente os recursos de paralelismos anafóricos, sintáticos,
semânticos, o aspecto da r 0.0o3ri803 nal
“tanto não há de ser por medo, que não são raros os
folhetos em que se ‘trituram’ autoridades eclesiásticas, e
outras”.
21
Na verdade, não dá para separar o real e o ideológico, haja vista que o real é, na
prática, representação ideológica com base nos papéis sociais. Tem a ver com
articulações de uma estrutura dada, com suas leis e princípios. Em Ideologia e Forma
Literária em Carlos Drummond de Andrade, a professoa Lucila Nogueira assim
argumenta:
“A ideologia funciona como representação da relação
imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de
existência, interpelando-os enquanto sujeitos, unificando-os de
modo a sentirem sua vivência ideológica como verdade. Sendo a
ideologia uma linguagem e, por conseguinte, um meio de
comunicação; ela relaciona dinamicamente os significados
coletivos, criando o consenso dos valores no seio do grupo; Daí
a importância da palavra, esse vasto universo dos vários
elementos ideológicos”.
22
Considerações assim indicam que, no que toca à poesia popular, a palavra traz o
traço mais fiel que une poesia – linguagem – e povo – comunicante, em torno de valores
que apontam para além do meramente artístico, posto que também linguagem social. Até
porque, por exemplo, Jean Duvignaud chega a dizer que há um parentesco evidente, que
incomoda, entre vida social e expressão artística; Herbert Read também considera arte e
sociedade conceitos inseparáveis
21
Idem, p. 105
22
NOGUEIRA, Lucila. Ideologia e Forma Literária em Carlos Drummond de Andrade. Recife.
37
2.3. A contribuição de Renato Carneiro Campos
Em trabalho inserido inicialmente no Boletim nº 4, do Instituto Joaquim Nabuco de
Pesquisas Sociais, e que mais tarde foi ampliado para um livro intitulado: Ideologia dos
Poetas Populares, editado pelo próprio Instituto em conjunto com o MEC/FUNARTE, em
1977, o sociólogo Renato Carneiro Campos tratou de expor suas considerações sobre a
importância dos folhetos populares como fonte de lazer dos trabalhadores de engenho,
sobretudo por abordarem temas centrados com o trabalho neste setor, em Pernambuco,
chegando a sugerir a existência de um ciclo formado por estas “estórias”.
Os folhetos pertencem à Literatura de Cordel e se constituem no jornal ou romance
da classe trabalhadora canavieira, apresentando-lhes narrativas de heróis espertos, de
“amarelinhos” que vencem empreitadas acima de suas possibilidades físicas; falam de
valentes sertanejos e de temíveis cangaceiros; relatam “estórias” de Trancoso; mostram o
final feliz de histórias de amor; registram fatos de destaque da região. Tais relatos,
segundo o pesquisador e sociólogo Renato Carneiro Campos, contribuem para minorar os
males causados pela solidão do trabalhador rural, bem como o ajuda a suportar a miséria
que o cerca, através da projeção que ele faz dos fatos heróicos, para os quais ele
assume, muitas vezes, o papel do herói em evidência naquele relato, cuja leitura é feita
por alguém da família ou mesmo um amigo. Na verdade, comenta Carneiro Campos:
“Esses livrinhos constituem verdadeiro documentário de
costumes da nossa gente rural. É a maneira de ver e analisar os
fatos sociais, políticos e religiosos, da gente rude do interior
nordestino, (...) valiosas informações de interesse histórico,
etnográfico e sociológico”.
23
, p. 10).
Outro aspecto a destacar, sem dúvida, é que a leitura dos folhetos também
contribuiu decisivamente para alfabetização de muitos trabalhadores que, de outra modo,
jamais aprenderiam a ler, se não fossem motivados por este instrumento didático tão
identificado com o seu estilo modesto de vida, já que os folhetos se apresentavam
23
CAMPOS, Renato Carneiro. Ideologia dos Poetas Populares. Recife: Centro Regional de Pesquisas
Educacionais do Recife/Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos- MEC. (1959), 2da. Edição 1977, p.10
38
impressos em papel simples, utilizados em gráficas de poucos recursos técnicos, tendo
por ilustração a xilogravura, diferentemente dos livros escolares ou de obras mais
arrojadas, caras e de difícil acesso para o trabalhador comum.
Não há como negar que, através do folheto e de uma variação temática adequada
a cada caso, a atividade escolar no meio rural, bem como em outras áreas mais sofridas
da vida urbana, obterá resultados bem mais expressivos do que os que aí são mostrados
pelas estatísticas disponíveis.
Um grupo de representativos poetas populares, a exemplo de Leandro Gomes de
Barros, Francisco das Chagas Batista, João Martins de Athayde e Pacífico Pacato
Cordeiro Manso, também chamados trovadores, impregnaram o Nordeste com o seu
talento extraordinário de cordelistas, recontando histórias européias com as devidas
adaptações para a nossa realidade, numa antecipação da técnica da intertextualidade. As
narrativas rigorosamente metrificadas, rimadas, dão ao folheto a cadência necessária
para que seja lido e cantado, facilitando a memorização do relato pelos ouvintes que,
mais tarde, passariam adiante os episódios que mais lhes impressionaram, posto que o
repertório dos folhetos é diversificado, até porque não são escritos apenas por poetas
populares sertanejos, os quais, evidentemente, constroem suas histórias tendo por
ambiente o sertão, daí referências ao cangaço, a seca, o messianismo; mas também
aparecem produções oriundas da zona do açúcar de Pernambuco: Carpina, Vitória de
Santo Antão, Paudalho, Timbaúba etc., daí o foco se concentrar em conflitos raciais entre
o sertanejo e o mestiço da zona da mata, ou até a substituição de reis das “estórias”
importadas por senhores de engenho, o que, para Carneiro Campos, já pode representar
um “novo ciclo na literatura popular brasileira”, a que ele denomina de Ciclo da Cana de
Açúcar.
A sextilha é o formato adotado para a elaboração dos folhetos, tendo os versos
sete sílabas. Os cantadores a tratam por “obra de seis pés”, forma tão antiga quanto a
quadra. Ambas, segundo ensino de Carolina Michaelis de Vasconcelos, (romancista e
professora universitária, nascida em Berlim e naturalizada portuguesa):
“Bastante populares – as sextilhas - no século XVI,
aparecendo, inclusive, no Romance do Rei Artur da Távola
Redonda”, como se vê no fragmento a seguir: “Como amigo que
as manhãs/ de Bretanha conheceste,/ Mas d’algum tempo ainda
Artur,/ Bom Rei que desmereceste,/ Bretanha virá a vingar-te/ da
traição que lhe fizeste”.
24
24
Idem, p. 12
39
Há, em alguns casos, um relaxamento na forma, o que chega a comprometer a
qualidade técnica do folheto, em função muitas vezes da limitação vocabular do poeta que
não amplia o seu nível de leitura ou de informação. Muitos se limitam à leitura de outros
folhetos. Na sextilha predomina a rima entre os versos pares. Assim: ABCBDB.
Renato Carneiro Campos apurou que, segundo informação do dono da Folhetaria
Luzeiro do Norte, João José da Silva, a Zona da Mata de Pernambuco concentrava,
então, o maior número de leitores de folhetos, à frente do agreste e do sertão. Tal
“estatística” tinha por base o fato da distribuição regional e até interestadual que pertencia
ao folheteiro citado. Quanto ao folheto, é bom registrar que a sua comercialização era
feita pela folhetaria, já que, na maioria das vezes, o autor do folheto vende os direitos
autorais ao editor, em alguns casos ficando sem a presença do próprio nome na capa do
folheto. Os preços estão associados ao número de páginas do folheto: com oito páginas,
considerado pequeno; o médio com dezesseis páginas e o grande chega a ter de vinte e
quatro a quarenta e oito páginas. O produto sai do folheteiro para o revendedor que, na
condição de “cantador de folheto”, chega às feiras interioranas e faz a leitura do texto
poético, tendo em vista motivar o freguês, sobretudo, em se tratando de uma clientela
analfabeta, tem que “cantar” o folheto com muita emoção e realismo, para que o fim
desejado – a venda – seja finalmente consumada. Em boa parte essa situação de
cantador é vivida pelo autor do folheto, cuja vida nômade (deixa família, casa, amigos) se
parece com a dos antigos trovadores que ganhavam o mundo à procura de ouvintes para
a sua arte.
Um dos aspectos também estudados por Renato é a questão das estórias de
bichos e superstições. Se Voltaire já inclui no seu romance Princesa da Babilônia a
ocorrência de um diálogo entre a princesa Formosante e um pássaro encantado, no qual
a jovem indaga sobre o fato de que os animais haviam deixado de falar, e obtém, do
pássaro, a resposta de que a culpa é da violência dos humanos “bárbaros”; se escritores
como Esopo, Fedro e La Fontaine atravessaram os tempos com obras sobre animais;
assim como outros grandes escritores e suas obras admiráveis, como: Mogly, O Menino
Lobo, de Rudyard Kipling; O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry; mesmo em
Dom Quixote, é Rocinante que mais se destaca, depois dele e de Sancho Pança.
O jogo do bicho e o folheto popular aproximaram o trabalhador rural dos bichos,
inclusive alguns estranhos à nossa fauna. Nos engenhos, os animais são incluídos no
compadrio familiar. É dito, geralmente: “vou arriscar no compadre leão ou no compadre
tigre”, em referência a jogar no bicho. O “bicheiro” tornava-se popular tanto quanto os
bichos que representava, pois do seu talão – a pule – poderia sair o prêmio esperado,
40
com que o trabalhador poderia desafogar suas dívidas. Para completar esse quadro
mágico, onde gente e bichos se enquadram no mesmo grau de importância, entra um
outro componente lúdico: os sonhos. Há intérpretes ocasionais que sugerem a ligação do
sonho com determinado bicho. Quanto à interpretação dos sonhos, Leandro Gomes de
Barros conta sobre o que ocorre em algumas situações, no folheto: O Testamento da
Cigana Esmeralda, uma edição de maio de 1974.
Quem sonha com macaco
É inimigo astucioso
Mas joga na loteria
Porque teu sonho é famoso
Sonhar com rato inimigo
Muito oculto é perigoso
Sonhar que mata uma cobra
É doença ou prisão
Serpente com rosto humano
Vai correr devassidão
Sobre mesa quer dizer
Terás boa proteção
25
E há quem, seguro do resultado do jogo de bicho, com base no sonho que teve,
finda por contar a alguém de confiança, para não perder o palpite.
O repertório de “estórias” sobre bichos é muito recorrente nos folhetos, a exemplo
do que conta João Martins de Athayde, quando escreve sobre “O casamento do bode
com a raposa”, de Firmino Teixeira do Amaral – muito lido – e que aqui transcrevemos
alguns versos:
Ouço os velhos dizerem
Que os bichos da antiguidade
Falavam como falamos
E tinha civilidade
Nesse tempo até os bichos
Casavam por amizade
Neste tempo o mestre burro
Lia, escrevia e contava
O cavalo era escrivão
O cachorro advogava
O carneiro era copeiro
E jaboti desenhava
Leão era o rei dos bichos
25
Idem, p.23
41
Onça era professora
Elefante era juiz
Raposa era agricultora
O camelo era correio
E aranha tecedoura
26
Ou o que se lê noutro folheto: As manhas de um Feiticeiro (1930), de Francisco das
Chagas Batista, no qual o autor trata das influências boas ou ruins decorrentes da
oferenda de animais nos cultos afro-brasileiros. Eis alguns versos:
Disse-lhe o moço: eu sinto
Minha cabeça pesada,
Vivo tonto, nada atino,
Ouço uma grande zuada;
Parecem sapos cantando
Numa buzina danada.
(...)
Durante a defumação
O feiticeiro dizia:
- Vinde Urubatan tirar-lhe
Da cabeça esta jia,
E tirar-lhe da barriga
Este bichinho que mia.
Se o feitiço for pouco,
Você tirou-o sem questão
Basta uma benzedura
E uma defumação
De bezouro, imboá,
Chifre queimado e açafrão.
27
Uma outra situação retratada nos folhetos tem a ver com a presença de sertanejos
nos engenhos, que para lá se deslocavam à procura de trabalho, fugindo da seca. Daí
surgem, nos folhetos, adaptações narrativas de filhas de rei que são conquistadas por
heróis valentes, no caso, a filha do senhor do engenho (o rei) encontra um herói, o
sertanejo valente (o filho mais moço). Ressalta-se que esse enredo é utilizado também
por escritores da região, que não relatam feitos de um herói “regional”, em razão de que o
mandatário é sempre o senhor do engenho que, absoluto, “reina” na área, sem ter
ameaçado o seu poder. Enquanto isso, sobre os sertanejos se divulga suas façanhas de
rebeldia contra fazendeiros e donos de engenho, sem temer nem mesmo a polícia, além
dos relatos sobre o cangaço. Assim, o sertanejo aparece nas narrativas poéticas como o
26
Idem, p. 20-21
27
Idem, p. 25-26
42
insubordinado, capaz de topar certos enfrentamentos. Sobre a ação severa do rei-senhor
do engenho, no folheto O Valente Sebastião, de Manoel Camilo, se lê:
“Era conhecido ali/ como a fera da ribeira/ se alguém no
seu engenho/ batesse alto a porteira/ ele mandava pegar/ e o
botar na caldeira”.
28
Há ainda o relato que faz José Vila Nova, no folheto: História de Zé Mendonça, O
Sertanejo Valente:
Era dono deste Engenho
O Coronel Piancó
Era um coração de Nero
Um gênio de Faraó
Ruim que só a desgraça
Malvado de fazer dó.
Se um sujeito tirasse
Uma cana do partido
Ele mandava açoitá-lo
Até deixá-lo moído
Ou jogava na fornalha
Para deixar derretido.
29
A chegada do sertanejo à zona canavieira motivava um certo despeito entre os
brejeiros e os corumbas – nome dado aos sertanejos retirantes, pois sua pretensão era
trabalhar nesse local enquanto a vida no sertão melhorasse e a seca fosse substituída
pelo período chuvoso e próspero. Tal despeito beirava ao preconceito racial,
considerando que o sertanejo apresentava uma cor branca – ou quase branca – e o
brejeiro era geralmente mestiço. Compreende-se que as raízes sociais aliadas às
histórias (algumas ao sabor da criação popular) alimentavam a crença da inferioridade do
negro. Contudo, entre os trabalhadores de engenho, onde predomina uma maioria
mestiça, o preconceito tem pouca força, tanto assim que, nas festas, brancos, negros e
mestiços dançam entre si, e ocorrem casamentos entre pessoas de cor diferente.
Havia uma diferença razoável de hábitos, uma vez que o trabalhador sertanejo
estava acostumado às andanças pela terra, a cavalo, tocando as reses, sem os
inconvenientes olhos dos vigias, como se dá nos engenhos, onde os “brejeiros” são
subordinados a um regime quase de escravidão.
28
Idem, p. 44
29
Idem, p. 44-45
43
Daí a dificuldade de fixação do sertanejo na zona do canavial. Amando Fontes, ao
escrever Os Corumbas (romance de 1933, publicado em 1946, pela José Olympio), no
qual o autor cita uma passagem, no final da obra, em que fala “na volta humilhante para
as senzalas da ‘Ribeira’”, numa refe28 T2ciam
a umafamaliam de sertanej
usa da astúcia para obter sucesso; e assim vai. A nossa literatura popular traz esse perfil
de um herói de múltiplas “estórias”, capaz de sair ileso de qualquer enrascada. Graça
Aranha foi o autor de uma peça de teatro chamada “Pedro Malasartes”. Na literatura
infantil, aparece As aventuras de Pedro Malasartes, edição de 1991, da Melhoramentos,
cujo autor é Hernani Donato. Na concepção de Érico Veríssimo, o seu Malasartes
“encarnaria todas as qualidades e defeitos do brasileiro de origem lusa e possivelmente
com um pouquinho de sangue índio”. E Mário de Andrade, em Macunaíma, não deixa de
estilizar um malasartes com o seu “herói sem caráter”.
O lendário personagem popular, que no fim do século XV, foi citado na Canção nº
1132 do Cancioneiro de Vaticana, com o título: “Chegou Payo de Maas Artes”. Esta figura
internacional é conhecida em Portugal como Malazarte, na Espanha, como Pedro de
Urdemales é também o Pedro de Urde Lamas da Lozana Andaluza do século XVI. Entre
tantos outros renomados escritores que escreveram histórias e desenvolveram enredos
em cima desse nosso personagem, podemos citar Miguel de Cervantes de Saavedra, que
nos deixou a comédia “Pedro de Urdemales”. Citam ainda esta figura astuciosa e alegre o
Spinel, Lopes de Veja, Quevedo, Salas Barbadilho, Montabón, Calderón de La Barca.
D. Francisco Manoel de Melo evoca-o na “Relógios Falantes” e o Prof. Aurélio M.
Espinosa estudou 68 versões hispânicas em cinco tipos, “Cuentos Populares Españoles”.
O Pedro Malazartes, com seus tantos outros nomes como é conhecido, é retratado como
uma figura legítima da novela picaresca castelhana como Lazarillo de Tormes, Gusmán
de Alfarache, El Buscon, Estepanillo Gonzales. Correspondendo ao Eulenspiegel europeu
ou Uhlakaniana Zulu, personagem humano determinando realmente um ciclo temático na
literatura oral e popular.
Chegou payo demaas artes
Com seu cerome de chartes
Enó leeu el nas partes
Que chegasse ahu mes
Edo lues ao marts
Ffoy comendados de crês
31
O paulista de Capivari, pesquisador Amadeu Amaral (1875-1929), autor, entre
tantas obras, de Tradições Populares, (edição de 1948), contendo pesquisas na área de
Folclore, afirma ter encontrado aproximações entre os contos de Mâchepied, da região de
Maine, e algumas versões brasileiras do famoso herói.
31
Idem, p. 52
45
Na Literatura de Cordel, o herói se apresenta no folheto de Francisco Sales: As
Presepadas de Pedro Malasarte, o que não é novidade, considerando a dimensão
folclórica que tomou o herói em todas as camadas sociais, garantindo sua presença
nesse veículo de interação com o povo, que é a Literatura de Cordel.
Eu vou contar uma história
Que vem de meus bisavós
Os meus pais já aprenderam
Com os velhos meus avós
Eu aprendi com meus pais
E vai servir para nós.
Era Pedro Malasarte
Um curioso ladino
Que viveu de presepadas
Desde muito pequenino
Nunca achou um caloteiro
Que lhe enrascasse o destino.
32
O autor do folheto citado, no qual estão incluídos os versos acima, chega a dizer,
na continuação do Cordel, que Pedro Malasartes nasceu no mês de agosto, no dia 24, e
que era “muito forte, inteligente e disposto”. A datação remete ao dia em que o diabo anda
solto, superstição que tem vigor no Nordeste, além do que o mês, por si só, já vem
carregado de maus presságios, pelo que se vê nos testemunhos do folclore mundial.
Monteiro Lobato dá vida ao Jeca Tatu, denominado de “o amarelinho brasileiro”,
pelos poetas populares, já mencionado nos meios rurais do Nordeste, talvez uma
nacionalização do malasartes, com o físico curvado e mirrado, semelhante ao do
trabalhador de engenho ou usina, cuja saúde afetada pela verminose e carência
alimentar, o deixa amarelinho. Por outro lado, alguns “amarelinhos”, ou seja, raquíticos,
magros, baixinhos, obtiveram significativo sucesso que chegaram a servir de parâmetro
para quem possui este perfil. Quem não lembra de Rui Barbosa, O Águia de Haia,
vencendo os gigantes nórdicos, louros, lá no outro lado do mundo? E Santos Dumont,
pequeno, franzino, voando com o seu 14-Bis, também em terras estrangeiras? Então,
serve de reforço o ditado: “Tamanho não é documento”, que é tão popular quanto os
amarelinhos citados.
João Ferreira de Lima teve um folheto editado por João Martins de Athayde,
intitulado Proezas de João Grilo, ao qual se considera o “rei” dos livros cômicos, tendo
chegado a mais de 100 mil cópias, o “amarelinho” está presente no decorrer das
descrições do poeta popular, para a admiração sobretudo do trabalhador de engenho, que
32
Idem, p. 53
46
se identifica com as características do jeca da narrativa poética, lhe faltando, contudo,
chegar ao domínio das peripécias que faz o herói do folheto apreciado e invejado pelos
jecas dos canaviais. Há ainda outro aspecto que reforça a preferência dos trabalhadores
dos canaviais pelo jeca, é a rejeição que eles têm pelas narrativas otimistas do chamado
valente sertanejo, que chega a desacatar o senhor do engenho, casa com a sua filha, não
teme os vigias, coisas que eles parecem não crer que poderiam acontecer, se se levar em
consideração as lamentações dos retirantes, calejados, alquebrados pelo sofrimento da
perda da lavoura, do êxodo rural etc.
João Ferreira de Lima, pernambucano de São José do Egito, nasceu a 3 de
novembro de 1902. Faleceu em Caruaru-PE, a 19 de agosto de 1972. Além de poeta, era
astrólogo. Foi autor do mais célebre almanaque popular nordestino, o Almanaque de
Pernambuco, lançado em 1936, cuja tiragem anual chegou a ultrapassar 70 mil
exemplares. A após a sua morte, o almanaque passou a ser editado por sua filha
Berenice. Sua obra não é muito extensa, porém tem qualidade, onde destacam-se, pelo
menos, dois grandes clássicos da Literatura de Cordel: Proezas de João Grilo e Romance
de Mariquinha e José de Sousa Leão.
Sobre o folheto As proezas de João Grilo convém ressaltar o seguinte: João
Ferreira de Lima o escreveu originalmente em sextilhas, num folheto de oito páginas,
intitulado As palhaçadas de João Grilo. Por volta de 1948, a obra foi ampliada para 32
páginas na tipografia de João Martins de Athayde, pelo poeta Delarme Monteiro. As
estrofes que foram acrescentadas são todas em setilhas, sendo fácil identificar quais são
as de autoria de João Ferreira de Lima.
João Grilo foi um cristão
Que nasceu antes do dia
Criou-se sem formosura
Mas tinha sabedoria
E morreu depois da hora
Pelas artes que fazia.
(...)
Na noite que João nasceu
Houve um eclipse na lua
Detonou grande vulcão
Que ainda continua
Naquela noite correu
Um lubis-somem na rua.
Porém o Grilo criou-se
Pequeno, magro e sambudo
47
As pernas tortas e finas
A boca grande e beiçudo
No sítio aonde morava
Dava notícia de tudo.
33
O que se sabe é que no repertório de anedotas populares que correm de boca em
boca pelo Nordeste, algumas mais picantes também incluem os “amarelinhos”, em
especial quanto ao desempenho sexual destes em comparação com o que rende os
gringos. E há, curiosamente, uma seqüência de anedotas desse gênero, cujo protagonista
é Camões. Talvez a divulgação de Os Lusíadas tenha popularizado o nome do poeta
português, a ponto de se atribuir a ele as versões apócrifas do anedotário que circula
paralelo aos eventos narrados em Os Lusíadas. Tanto assim que o povo o transformou
num herói de popularidade reconhecida nos mais distantes rincões, a ponto de fazê-lo
quase um malandro, um anti-herói, diferente do herói épico presente na sua obra poética.
É o que lemos no folheto da autoria do poeta e xilógrafo cearense Severino Gonçalves de
Oliveira, que trata de As Perguntas do Rei e as Respostas de Camões. Um Camões a la
Malasartes.
(...)
O rei disse pra Camões
Ouça o que vou dizer
Eu tenho trinta perguntas
Para você responder
Se falhar uma das tais
Sem recurso vai morrer.
Camões respondeu ao rei
Seu trabalho é complicado
Porém o senhor comigo
Vai tomar o bonde errado
Faça lá suas perguntas
Que sou um pouco vexado.
34
33
Idem, p. 57
34
Idem, p. 60
48
Ao enfocar a questão da educação em relação com a Literatura de Cordel, Renato
Carneiro Campos revela que os folhetos não incluem o interesse pela aprendizagem,
dentro do repertório de histórias povoadas de heróis bem-sucedidos. Quase nunca
mencionam nomes de escolas ou dos professores que nelas trabalham. Há um outro tipo
de sabedoria que parece atrair mais o poeta popular, a qual se sustenta na esperteza do
indivíduo dentro de um contexto adverso. Movido por este tipo de educação, o indivíduo
fica preparado para enfrentar situações difíceis. É uma forma de saber que independe dos
livros e dispensa os bancos escolares. O folheto O Sabido Sem Estudo (editado em
21/11/55), de Manoel Camilo dos Santos, vem a favor dessa idéia:
É o caso que me refiro
De quem pretendo contar
A vida de um homem pobre
Que mesmo sem estudar
Ganhou o nome de sábio
E por fim veio enricar.
Esse homem nunca achou
Nada que o enrascasse
Nem cilada que o pegasse
Quenguista que o iludiste
Questão que ele não ganhasse.
(...)
Não conhecia uma letra
(...)
O povo o denominou
O Sabido Sem Estudo.
35
Repete-se esse entendimento, no folheto: O Neto de Cancão de Fogo, de João
Martins de Athaíde:
Nunca deu despesa em casa
Com livros para escola
Vivia fazendo aposta
Deixando os outros de esmola
Livros, penas e tinteiros
Ganhava dos companheiros
Graças a sua cachola.
36
35
Idem, p. 62
36
Idem, p. 63
49
Outro folheto que reforça esse pensamento dissociativo entre o poeta popular e o
ensino escolarizado, também é da lavra de João Martins de Athayde, História da Donzela
Teodora, uma versão sertaneja do enredo árabe, divulgada na Penísula Ibérica, em 1537.
(...)
Mandou educá-la bem
Na melhor casa que havia
Em pouco tempo ela soube
O que ninguém mais sabia.
37
E Inácio da Catingueira, em Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho,
(Parahyba do Norte, 1928, p. 348), cuja 3ª edição saiu em 1967, pelo INL, comparece
com o seu exemplo:
Seu Romano já começa
Com os diabos das leituras
Eu nunca fui à escola
- Lettras p’ra mim são escuras.
38
Percebe-se, muitas vezes, um traço de orgulho naquele poeta que conseguiu
atingir um grau de alfabetização, pois assim ele se sente à frente de muitos do seu meio
social. A deficiência do sistema educacional, sobretudo no meio rural, há algumas
décadas, justifica essa postura, onde alguns cantadores envaidecidos até achavam que
tinham chegado á reta final no setor da educação.
Enquanto uma consciência voltada para o investimento cultural não aflora, o poeta
popular continua adepto de um sistema de saber, ao qual diz ele: já nasce com o
indivíduo, num ato quase de predestinação ou de determinismo, conforme Francisco
Sales Arêda expressa no folheto: O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna, que foi
adaptado por Ariano Suassuna, para o teatro, em 1958.
Tem pessoa neste mundo
Que já nasce afortunada
Embora passe tempos
Sem poder arranjar nada
Mas depois vem a fortuna
Lhe pegar de emboscada.
39
37
Idem, p. 63
38
Idem, ibidem
39
Idem, p. 64
50
O Encontro de Manoel Mole com o Negro Chico Duro, folheto editado por João
José da Silva, traz a seguinte sextilha:
Todo homem está sujeito
Cumprir a lei do destino
E faz o que a sorte manda
Seja grande ou pequenino
Porque nosso mestre mundo
A todos dá ensino.
40
E numa recorrência ao Velho Testamento, Luiz Gomes Lumerque conta As
Aventuras do Homem que Nunca Temeu a Nada:
Esse homem tinha força
Mais que o próprio Sansão
Porque ele veio ao mundo
Pela predestinação
Nunca enfrentou uma luta
Pra não vencer a questão.
41
Tais assertivas que projetam o sucesso associado ao acaso, talvez seja um escape
para justificar a impossibilidade real que muitos viveram de não ter outro recurso de
saber, que não fosse assim, vindo do além e se instalando em sua mente, como uma
experiência compensatória da ausência de oportunidades no mundo da realidade, onde o
trabalho começa cedo, ainda na infância, e longe da escola, para gerar o sustendo do dia-
a-dia, dentro de uma conjuntura de injustiça social.
Renato Carneiro Campos comenta que o quadro insere “uma lição de Antropologia
Cultural aplicada à Pedagogia”, e assegura que o educador nordestino deverá procurar
suporte nos costumes da região, onde está em atividade, dando a devida atenção aos
folhetos, não só porque está alfabetizando trabalhadores rurais, mas porque na área
urbana a mensagem poética contida nos folhetos também se colocam como instrumento
de libertação do analfabetismo e das amarras da tirania do poder.
Vale a pena registrar o depoimento do escritor Raimundo Nonato, no seu livro
Memórias de um Retirante (Rio, 1958), onde ele confessa ter aprendido a ler através dos
folhetos vendidos nas feiras interioranas.
“Na verdade – afirma Nonato – não me preocupava os
livros, de que não possuía a menor idéia, nem as bonitas
coleções. O que me prendia, sobretudo, na livraria de Tião Cruz,
40
Idem, p. 64
41
Idem, p.65
51
eram os impressos, as brochuras, os folhetos de cantadores. (...)
O nome de muitos não me sairia da cabeça”.
42
E aí vai listando alguns títulos que leu, entre os quais: Canção de Fogo (que ele diz
ter sido o primeiro que leu), Pedro Malasartes, A Imperatriz Porcina, A Donzela Teodora
etc.
O romancista José Lins do Rego, em declaração a um jornalista, confirma a grande
influência que recebera dos cegos cantadores da Paraíba e Pernambuco, influência
associada à maneira de dizer as coisas de improviso, com o apoio de uma memória
extraordinária.
E Ariano Suassuna, teatrólogo, levou o João Grilo para a sua peça O Auto da
Compadecida, personagem do folheto de João Ferreira Lima: As Aventuras de João Grilo.
Além deste, Ariano introduziu outros temas da Literatura de Cordel em suas peças, como
o batizado do cachorro e a história do gato, empréstimos vindos já da literatura européia
de algum tempo atrás. Estas adaptações tão bem sucedidas do cordel para o teatro,
levaram Hermílo Borba Filho a desejar um teatro brasileiro, dirigido ao povo, tendo as
cantorias dos poetas nordestinos adaptadas com a mesma dramaticidade e poesia para o
palco. E arremata:
“João Martins de Athayde, o maior poeta popular do
Brasil, segundo Mário de Andrade, é cantado em todo o Norte,
as suas histórias são conhecidas e recitadas pelo povo, da
Bahia ao Amazonas. Quem não conhece os versos de O
Retirante ou os da História do Valente Zé Garcia? O teatro
brasileiro precisa ter o seu João Martins de Athayde”.
43
Gilberto Freyre e o Padre Lebret, em épocas distintas, pensaram da mesma
maneira, quanto a fixar o trabalhador na zona rural, e assim evitar o êxodo para os
centros urbanos, nos quais este contingente populacional se sinta alienado de sua
identidade cultural e se tornem uma massa desajustada. Para que se consiga a sua
fixação, há que se investir não apenas em infra-estrutura urbana e rural das cidades do
interior, mas também é necessário que se tenha um projeto educacional onde os valores
culturais que unem as gerações sejam abundantemente utilizados, e aí se coloca como
instrumento competente o folheto de cordel, o repente, cujo valor instrumental é de fácil
assimilação e de baixo custo.
42
Idem, ibidem
43
Idem, p. 66
52
Renato Campos afirma que há um tipo de educação que vem de baixo para cima,
originária de autores sem nenhum aprimoramento de instrução, mas que possui quase
sempre um fundo ético de admirável simplicidade. Tal educação se sustenta nas histórias
contadas pelas amas e avós. José Lins do Rêgo insere em seu livro de memória uma
referência à velha Totônia, cuja única habilidade era ser contadora de histórias. E, além
das histórias contadas, há também a contribuição das histórias cantadas, os folhetos,
onde uma variada gama de fábulas, contos de fadas, são reinventadas para a literatura de
cordel, preservando um encanto mágico de inesgotáveis recursos. É curioso que este tipo
de literatura se adequa a diferentes faixas etárias. Adultos e crianças são envolvidos
pelos enredos onde príncipes, reis, fadas e bichos convivem no mesmo ambiente lúdico
que é o folheto. Basta notar os títulos: História do Gigante e a Princesa dos Cabelos de
Ouro, de Luiz Gomes Lumerque; O Príncipe João Sem Medo e a Princesa da Ilha dos
Diamantes, de F. Sales; O Romance da Princesa do Reino Mar-Sem-Fim etc. Sobre o
enredo que o poeta articula, Renato Campos diz: que são histórias que asseguram a
vitória do bem sobre o mal, a vitória do amor, a supremacia da honestidade sobre a
desonestidade. As histórias de amor são geralmente desprovidas de sensualismo, e os
mais velhos são admirados pelas qualidades morais que possuem.
Alguns folhetos abordam a questão relacional entre pai e filho, com um enfoque
educativo, como se lê em Os Martírios de uma Mãe ou a Desventura de um Filho Ingrato,
escrito por Joaquim Luiz Sobrinho:
Senhores neste romance
Provarei que o bom filho
Que estima pai e mãe
Não lhe aparece empecilho
Que nas horas trabalhosas
Jesus lhe manda um auxílio.
Também no mesmo romance
Provo que o filho ingrato
Que maltrata pai e mãe
Sempre cai em desacato
Que Jesus sempre castiga
Filho assim tão insensato.
44
Mesmo aqueles folhetos onde o enredo destaca o herói que ganha porque engana,
ou relatos de ações violentas e vingativas, ou ainda a inevitável história do cangaço,
ressalve-se, contudo, que, nesses casos, os poetas trazem à luz situações vivenciadas
44
Idem, p. 69
53
por pessoas/personagens que, no fundo, revelam suas fraquezas, o que um leitor comum
logo percebe, inclusive, quando o autor enriquece o seu relato com os artifícios ficcionais
possíveis. É o que mostra A Verdadeira História de Lampião e Maria Bonita, onde Manoel
Pereira Sobrinho, no texto poético, deixa margem a se pensar que Lampião continua vivo:
E quando surgiu a história
- Virgulino pereceu
Porém tem quem diga alto
Que Lampião não morreu
O que posso afirmar
É que desapareceu.
Não sei se foi vivo ou morto
Porque há contradição
Tem gente que afirma sim
Porém tem quem diga não
O que sei é que o mesmo
Nunca mais veio ao sertão.
45
Renato Carneiro Campos, é de opinião que os poetas populares não se vinculam a
uma ideologia política definida, pois se prendem mais ao indivíduo do que ao coletivo.
Chegam a esboçar alguma crítica ao sistema, mas sem uma postura político-ideológica
muito clara, de modo que o assunto passa pela superfície das idéias veiculadas. São
admiradores de ações heróicas feitas por um indivíduo que, nos seus versos, ganham
uma dimensão mítica. Daí as adversidades decorrentes da seca aparecem, nos versos,
pelo mal que causam e não pelos que causam o mal, no caso dos governantes omissos,
os quais preferem que o povo se ocupe em rezar ao Deus do céu, do que em reclamar
dos semideuses na terra. Assim, focados nessa visão individual, os poetas exaltam mais
a valentia de um ou de outro, e a tradição reforça:
O pai lhe disse: viaje
Mas vou lhe recomendar
Quero que mate um milhão
Se acontecer brigar,
Mas se chegar apanhado,
Torna de novo apanhar.
(In Arrebenta-Mundo, de João José da Silva)
46
45
Idem, p. 71
46
Idem, p. 35
54
Os folcloristas Câmara Cascudo e Gustavo Barroso já trabalharam o enfoque do
cangaço nos folhetos, onde o cangaceiro é um herói que combate as injustiças, sejam
elas patrocinadas pelos coronéis-fazendeiros ou pelos coronéis da polícia, e ele – o
cangaceiro – mesmo quando comete algum deslize, conta com a complacência dos
excluídos. Assim, aos olhos do sertanejo, a vida tirada numa luta causa menos indignação
do que quando alguém produz a desonra de uma pessoa, o que leva ao revide, se por
acaso o infrator não é punido pelas leis existentes.
Aparece um exemplo que dever pertencer a Chagas Batista, que Rodrigues de
Carvalho transcreve em Cancioneiro do Norte:
No bacamarte eu achei
Leis que decidem a questão
E que fazem melhor processo
Do que qualquer escrivão
As balas eram os soldados
Com eu fazia a prisão.
47
A saída dos cangaceiros do cenário sertanejo, pelas causas já de há muito
explicadas pelos histori539m.eos cierlogosevAparecito
lho1 dengen(l;ia ombrvaa5o tvirad, corao, a )Tc 072803 Tw 11.9951 0 0 12 56.70136c 0.7399 Tma polícle –zenueloa pi55cLei1 mur1ivezntuforejachamldadoenum bacosle passt p2maromAngr1ie dadosen(lhntes. )TjETEMC /P <<>>BDC BT/TT0 1 Tf-0.0001 Tc 030074 Tw 11.9951 0 0 12 92.701318.855398 TmC coudejonesst o trainaçã, sehnteCarde focom
Gonçalves de Oliveira; O Valente Sabastião, de Manuel Camilo; A Vingança de um
Sertanejo no Engenho Pirapama, de Luiz de Lira; o Valente Josué, de João Martins de
Athayde; entre outros que engrossam as fileiras dessa temática classista.
Vale ressaltar, ainda, que no tocante à luta de classes, não há registro de um poeta
popular declaradamente comunista, se bem que nas entrelinhas de muitas dessas
histórias escritas e/ou cantadas, traços de um ideário no qual se deseja superar um
estado de injustiça e exclusão a que se submete os pobres, não deixa de fazer uma
leitura se não comunista, pelo menos de denúncia e insatisfação contra o modelo
coronelesco de alguns mandatários “públicos”. Mas há uma citação a Carlos Prestes no
folheto: A Verdadeira História de Lampião e Maria Bonita, de Manoel Pereira Sobrinho,
onde o carismático comunista brasileiro, em sua investida pelo sertão, tem, pela frente, a
resistência das correntes tradicionais respaldadas pelo poder religioso e pela própria
ignorância do povo que, indefeso e abandonado à própria sorte (ou azar...), recorria a
Deus e ao Diabo, para ver se a vida melhorava.
Nessa época Carlos Prestes
Fez uma revolução
Reuniu um grande grupo
E saiu pelo sertão
Com nome de revoltosos
Foi até o maranhão.
Mas chegando em Piancó
Pegou um padre e matou
E a nosso Padre Cícero
Dessa vez ele jurou
Lampião sabendo disso
Outra atitude tomou.
Com 170 homens
Todos de armas na mão
Foi bater aonde estava
O Padre Cícero Romão
E ficou no Juazeiro
Do padre, à disposição.
O padre no mesmo dia
Arranjou uma patente
Promoveu a capitão
Lampião ligeiramente
Antônio como primeiro
Sabino 2º tenente.
E ficou Juazeiro
Por Lampião vigiado
56
(...)
Esperando Carlos Prestes
(...)
Porém os revoltosos
Fugiram pro Maranhão.
48
É curioso que do outro lado do mundo, o erudito Bertold Brecht, grande poeta
comunista, fez uso de elementos da poesia popular para escrever os seus poemas, com
os quais discutia os rumos da história política do seu tempo (primeira metade do século
XX). Do lado de lá, o erudito alemão vai buscar no popular o respaldo para expressar, em
linguagem poética, a sua relação com a história, daí a força das imagens, dos recursos
rítmicos, da sonoridade, das metáforas empregadas na constituição do verso, como bem
diz Otto Maria Carpeaux: “A poesia de Brecht se serve de elementos colhidos em canções
populares, (...) em ‘desafios’ de feiras e paródias”. (In História da Literatura Ocidental. Rio
de Janeiro. O Cruzeiro. 1966). Do lado de cá, no Nordeste, o poeta popular, mais ou
menos no mesmo período, vai à mesma fonte – o povo - para, também,
escrever/cantar/contar a história que aqui se passa, com o mesmo realismo que Brecht
colocou nos poemas e nas peças que escreveu, e cujo resultado lhe valeu o exílio e o
desprezo dos tiranos. Mas, a voz do poeta de lá ou de cá, as múltiplas vozes de tantos
lugares, fazem eco nos ouvidos e na mente que não se deixa entorpecer pela droga do
poder, que não teme o frio da neve ou o calor sertanejo. Brecht se dirige aos humildes,
deserdados, para alertá-los sobre a sua força interior de renascer na história, de lutar
juntos pelo bem comum. Num pequeno poema: Tempestade de Neve, o poeta alemão
reforça sua tese em favor do povo:
A tempestade nos gela.
Quem vai resistir a ela?
Quem fica? Vê se descobres:
A terra, as pedras e os pobres.
49
A Justiça Eleitoral criada em 1932, no Brasil, foi suspensa cinco anos depois, no
governo Vargas, e restabelecida em 1945, após um longo e tenebroso período de
turbulências políticas. Os poetas populares, por sua vez, não perderam tempo e fizeram
uso dos recursos criativos da poesia para expressarem, em versos, o descontentamento
com aquele quadro de autoritarismo e truculência que atingia o País. Então, a sátira era
48
Idem, p. 37
49
KONDER, Leandro. A Poesia de Brecht e a História. Rio de Janeiro: Zahar Editor. 1996, p. 34
57
um bom negócio nesse intento, como fez Delarme Monteiro Silva, ao escrever A Vitória do
Bode Cheiroso:
Com esse aperto de vida
O povo que nada pode
Pra se esquecer da fome
Leva tudo no pagode
Agora, na eleição,
Nas urnas de Jaboatão,
O povo votou num bode.
(...)
Por quase 500 votos
Ele saiu vencedor
Seus correligionários
Pra provarem seu valor
Votaram de coração
Pra Câmara de Jaboatão
No bode vereador.
50
Na atualidade da vida política brasileira, os folhetos são utilizados para a
divulgação de algumas candidaturas, especialmente quando o candidato tem boa
aceitação em áreas rurais, bairros pobres, onde se concentra uma significativa
representação do eleitorado de escolaridade precária. Renato Campos afirma que,
nesses casos, os poetas “fabricam” os versos de acordo com os interesses dos
candidatos, destacando suas “qualidades” e as promessas. Não há, como ocorre sob a
inspiração poética, um folheto artístico, mas apenas o uso da influência social que detêm
o cordel e o repente nas classes populares. Basta dizer que Louro do Pajeú construiu um
dos motes antológicos para uso na campanha de Miguel Arraes, em 1986, ao governo de
Pernambuco: “Volta Arraes ao Palácio da Princesa, Vai entrar pela porta em que saiu”.
Evidentemente, a mensagem publicitária (caríssima) das campanhas que utilizam a
computação gráfica como meio de comunicação, não traduzem o apelo que, com um
custo bem menor, o folheto pode realizar. Vale dizer, ainda, que a contribuição da poesia
popular no processo eleitoral, mesmo a serviço de candidaturas ligadas a correntes
políticas de ideologias conflitantes, cumpre um papel informativo que, de algum modo,
poético construído dentro dos parâmetros da poesia popular, no qual figura uma proposta
bastante ousada de independência regional, rompendo com o sistema federativo, e que
assumiu ares de hino regional do Nordeste, na voz de Elba Ramalho. O texto vem
respaldado pelas assinaturas de dois nordestinos, Ivanildo Vila Nova, pernambucano, e
Bráulio Tavares, paraibano.
Nordeste Independente
Já que existe no sul esse conceito
Que o nordeste é ruim, seco e ingrato
Já que existe a separação de fato
É preciso torná-la de direito
Quando umiano qu1 qr iscisforma reito
Carnaúba, laranja, babaçu
Abacaxi e o sal de cozinhar
O arroz, o agave do lugar
O petróleo, a cebola, o aguardente
O nordeste é auto-suficiente
O seu lucro seria garantido
Imagina o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente
Se isso aí se tornar realidade
E alguém do Brasil nos visitar
Nesse nosso país vai encontrar
Confiança, respeito e amizade
Tem o pão repartido na metade,
Temo prato na mesa, a cama quente
Brasileiro será irmão da gente
Vai pra lá que será bem recebido
Imagina o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente
Eu não quero, com isso, que vocês
Imaginem que eu tento ser grosseiro
Pois se lembrem que o povo brasileiro
É amigo do povo português
Se um dia a separação se fez
Todos os dois se respeitam no presente
Se isso aí já deu certo antigamente
Nesse exemplo concreto e conhecido
Imagina o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente
Povo do meu Brasil
Políticos brasileiros
Não pensem que vocês nos enganam
Porque nosso povo não é besta
(Disponível em <http://elba-ramalho.letras.terra.com.br/letras>
60
2.4. A Comunicação do folheto segundo Roberto Benjamin
Os meios de comunicação social provocam uma acentuada interferência nos
folhetos populares, considerando que os cantadores, enquanto líderes informais de
opinião, são pessoas que trabalham com uma faixa muito ampla de influências
comunicativas fora do seu “habitat” de atividades poéticas. Eles – os cantadores – estão
expostos mais diretamente ao conjunto de mensagens que circulam através da mídia e,
ao receberem esta bagagem, eles submetem os fatos a uma reinterpretação para, em
seguida, transmitirem ao público com que lidam artisticamente.
Sendo assim, a sua obra-prima, a literatura de cordel, chega a esse público com
uma mistura de elementos comunicantes, a exemplo do jornal, rádio, TV, cinema e
quadrinhos. O jornal, pela origem mais antiga, nesse processo midiático, é a fonte que
mais influencia e serve de modelo.
O professor e folclorista pernambucano Roberto Benjamin, foi presidente da
Comissão Nacional de Folclore, é um defensor do estudo das raízes africanas e sua
influência na identidade brasileira, zeloso pelo que há de referência histórico-documental
sobre a produção de poesia popular e suas manifestações na vida do povo brasileiro, seja
através da Literatura de Cordel, seja através do Repente, registra que um bom número de
folhetos tem a sua base informativa a partir do noticiário impresso. E aí exemplifica:
Da Vila Princesa Isabel
Chegou um caso anormal
De Josenildo Tenório
Enviado especial
Que vem servir de manchete
Nas colunas do jornal
51
Segundo informa o folclorista pernambucano, professor Roberto Benjamin, o
fragmento acima citado faz parte do folheto: O Cavalo com cara de gente e a inocência de
Dona Inocência, a mulher mais gorda do mundo, de José Soares, e o assunto foi objeto
de reportagens do Jornal do Commercio e do Diário de Pernambuco. Outro exemplo pode
ser visto no folheto de João Martins de Ataíde:
51
BENJAMIN, Roberto Emerson Câmara. Os Folhetos Populares e os Meios de Comunicação Social. Recife:
Universidade Católica de Pernambuco / Revista Simposyum, 1969, p. 47-54
61
Com toda sua família
Foram mortos afinal.
Um diz que foi Lampião
Porém eu li no jornal
Que foram assassinados
Pelas tropas de soldados
Da Força Policial
52
.
Mais um exemplo, agora no folheto: O Desastre de um Ônibus em Tacaimbó, de
Olegário Fernandes:
Era um Juiz de Direito
E homem de formatura
E depois dele morreu
38 criaturas
Diz o Jornal do Commercio
Que prova, sustenta e jura.
53
E assim se sucede o exemplário, como em outros casos de repercussão nacional e
política: A Morte de Getúlio, A Renúncia de Jânio Quadros, a Lamentável Morte do Ex-
Presidente Castelo Branco, e um outro tipo, de fundo religioso: O Caranguejo e a imagem,
de Olegário Fernandes, no qual é noticiado a aparição de uma imagem no casco de um
caranguejo, na Paraíba, que recebeu ampla divulgação da imprensa paraibana, à época.
Em Lajedo, cidade interiorana do agreste pernambucano, um folheto foi divulgado
na feira da cidade, ancorado nas páginas do Diário de Pernambuco, que havia noticiado
as conseqüências decorrentes das enchentes no vizinho estado de Alagoas. O assunto
veio com destaque, na primeira página daquela edição, e o folheto apresentava, por título:
Os Horrores da Enchente e o Afragelo do Povo.
O rádio se coloca como veículo de comunicação com maior aceitação nas
camadas populares, inclusive na zona rural, quer pelas características técnicas, quer pela
facilidade de comercialização. Ainda mais que, num país de dimensões continentais, a
mensagem radiofônica chega com maior velocidade aos mais distantes lugares, sem
maiores problemas, dispensando o uso de energia, que pode ser resolvido com o uso da
pilha, e até dispensando o pré-quesito da alfabetização, aspecto que não pode ser
dispensado quando o meio de comunicação é o jornal. Daí porque, o cantador/repentista
faz uso desse canal para chegar mais rápido ao público ouvinte, como afirma João José
52
Idem, ibidem
53
Idem, ibidem
62
da Silva, autor de: Jerônimo, o Herói do Sertão, em Laços de Sangue, ao concordar que o
rádio foi preponderante na divulgação da história-novela.
No episódio político da renúncia de Jânio Quadros, confessa José Soares, autor do
folheto: “Jânio renunciou! Agosto mês do Perigo”, que as primeiras informações que lhe
chegaram foi via rádio.
Quando a Rádio de Brasília
Dava notícias do fato
Muita gente duvidando
Pensou que fosse boato
Dizendo se for verdade
Em parte ele foi ingrato.
54
No tocante à televisão, o folclorista pernambucano Roberto Benjamin considera
que, não obstante ser um veículo posterior ao rádio, e que sua área de ação se dá mais
nos grandes centros urbanos, não deixa de influenciar os poetas populares, até porque
nas últimas décadas também tem chegado aos moradores de várias regiões e do País,
por conta do sistema de parabólicas e de outros recursos de ampliação do raio de
abrangência da programação televisiva. “A crítica de costumes – afirma o professor
Roberto Benjamin – dos novos usos divulgados pela TV, faz referências diretas a artistas
desse veículo”. E exemplifica com um fragmento tirado do folheto de Sebastião Silva: A
Marcha dos Cabeludos e os usos de hoje em dia:
Muitos deles pensarão
Que estou a maltratá-los
E dirão: se este uso
Está lhe ferindo os calos,
Por que não vai na carreira
Cortar logo a cabeleira
Do cantor Roberto Carlos.
55
No caso do cinema e das estórias em quadrinhos, há uma recorrência aos temas
que enfocam o velho oeste americano e seus caubóis. A partir das capas, os folhetos
mostram os heróis nordestinos com a roupa dos mocinhos do cinema, e as histórias são
adaptadas aos personagens e ambiente nordestinos. Há também uma versão romântica,
onde o ator Clark Gable (O Vento Levou e tantos outros famosos filmes) foi estampado
em várias capas de folhetos.
54
Idem, ibidem
55
Idem, ibidem
63
É plausível que, dentre em pouco, a interação do folheto com as alternativas da
computação gráfica, apresente um novo formato de folheto, com inovações técnicas e de
conteúdo, pela inclusão de elementos do mundo virtual, de onde emerge uma linguagem
icônica que ainda é restrita a uma elite de alguns poucos milhões de usuários, num país
de quase duzentos milhões de habitantes.
64
2.5. A poesia lendária de Leandro Gomes de Barros
Nascido em 19 de novembro de 1865, em Pombal, na Paraíba, Leandro Gomes de
Barros é um ícone na história do Cordel, não só no Nordeste, mas também em todo o
Brasil. Com ele, praticamente teve início, em forma de folheto impresso, a vida cultural
dos poetas populares que fizeram uso do talento criador da chamada Literatura de Cordel
em solo nacional. Se antes dele já existia alguma referência quanto a folhetos contendo
versos metrificados, é de se perguntar, então, quem foi que antecedeu a Leandro, de uma
lista de tantos cantadores famosos então em plena atividade, a exemplo de Silvino Pirauá,
Luís Dantas Quesado, Bernardo Nogueira, Francisco das Chagas Batista e o próprio João
Martins de Athaíde, que se tornaria proprietário da obra de Leandro, após sua morte, aos
53 anos, em 1918, em Recife. É certo que nenhum deles publicou qualquer coisa antes
de Leandro, pelo que Francisco das Chagas Batista não errou ao declarar ser Leandro o
fundador da popular literatura poética de cordel no Nordeste. Conta-se que algumas
dificuldades que o atingiram ainda na infância, mais tarde foram relatadas numa provável
autobiografia, quando da publicação de A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento:
"Fui um menino enjeitado
Fui triste logo ao nascer
Nem uma ave noturna
Tão triste não pode ser
Eu sou igual ao deserto
Onde ninguém quer viver.
Esse homem que me cria
Me maltrata em tal altura
Que nem um preso no cárcere
Sofrerá tanta amargura
Não foi Deus, é impossível
Que me deu tanta amargura”
56
.
Em Teixeira, na Paraíba, Leandro de Barros morou, ainda menino, até aos 15
anos, e pôde ver e ouvir cantadores como Ugolino Nunes da Costa, Bernardo Nogueira,
Josué Romano e Germano da Lagoa, que lá se apresentavam, bem como Francisco das
Chagas Batista. Daí ele se mudou para Pernambuco, onde, em Vitória de Santo Antão,
casou-se com dona Venustiniana Eulália de Barros, com quem teve quatro filhos,
56
BARROS, Leandro Gomes de. A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento. Rio de Janeiro. Fundação Casa de Rui
Barbosa. 1951
.
65
segundo registra a pesquisadora Ruth Brito Lemos Terra, em sua obra: Memórias de
Lutas: Literatura de Folhetos do Nordeste – 1893-1930, (São Paulo, Global Editora, 1983).
No decorrer de suas pesquisas, a autora entrevistou Julieta Gomes de Barros, filha de
Leandro, e também apurou que Esaú, filho de Leandro, assinou, com a mãe, em 1921, o
documento de venda da obra de Leandro para o poeta João Martins de Athaíde.
Calcula-se em mais de mil títulos a produção literária de Leandro, iniciada em
1889, em Pernambuco. Uma boa parte saiu de sua pequena gráfica, que dirigiu entre
1906 e 1917, tendo em vista divulgar a sua produção. Contudo, pouca coisa resta das
edições autênticas, tiradas pelo próprio autor, seja pela limitação gráfica dos folhetos, que
logo se estragavam, ao passar de mão em mão, de bolso em bolso, no uso que os
leitores faziam; seja até mesmo pelo emprego indevido de sua obra, feita por pessoas que
invejavam o sucesso do autor. Leandro chegou a fazer uso de uma advertência, a qual
era impressa nos folhetos, para tentar intimidar os possíveis fraudadores: “Com o fim de
evitar abusos constantes, resolvi dora em diante estampar em todas as minhas obras o
meu retrato em um clichê, sem lugar determinado”. (Literatura Popular em Versos,
antologia, Tomo II, MEC-Fundação Casa de Rui Barbosa, 1976, p. 10). Depois de sua
morte, em 1918, foi Pedro Batista (irmão de Chagas Batista e esposo de Rachel Aleixo de
Barros, filha de Leandro), quem deu continuidade à publicação dos folhetos de Leandro,
em Guarabira, PB. Já em 1919, ao publicar uma edição completa (a 3ª) de História do
Cachorro dos Mortos, um dos grandes trabalhos da produção de Leandro, Pedro Batista
antecipa, desde então, esta advertência:
"Tendo falecido o poeta Leandro Gomes de Barros
passou a me pertencer a propriedade material de toda a sua
obra literária. Só a mim, pois, cabe o direito de reprodução dos
folhetos do dito poeta, achando-me habilitado a agir dentro da lei
contra quem cometer o crime de reprodução dos ditos
folhetos."
57
Há exemplo de adulteração no poema Branca de Neve e o Soldado Guerreiro, no
qual Leandro conclui o trabalho com o acróstico:
Luziu o astro troiano
Esclareceu-se a verdade
Abriu-se a porta da vida
No mundo da liberdade,
Dando a conhecer que a sorte
Rolar faz por sobre a morte
57
Disponível em: www.camarabrasileira.com/cordel. Acesso em: jan. 2006.
66
No mesmo poema, agora tendo como autor João Martins de Athaíde, edição de
1944, o acróstico tomou outra feição:
Luziu o astro troiano
Esclareceu-se a verdade
Abriu-se a porta da vida
No mundo da liberdade,
Dando a conhecer que a sorte
É que tem felicidade
Leandro Gomes de Barros escreveu com base em várias situações que vivenciou,
em suas andanças. Daí que seus versos ora expressão um quadro de tempos difíceis na
vida do povo; ora satiriza a presença de estrangeiros que por aqui aportaram; ora põe em
evidência as contradições da vida política, da guerra; em outros versos o poeta recorre a
temas familiares, onde aparecem, além da figura feminina, do casamento, os inevitáveis
gracejos com a figura da sogra; há também a citação do jogo do bicho, talvez a mais
antiga “loteria” em uso no Brasil, apesar das proibições a ele imposta; a religião, sem
dúvida, pelo traço legalista e até místico que a igreja faz uso, aparece nos cordel de
Leandro, assim como o trágico e o cômico que simultaneamente acompanham e marcam
a vida dos bêbados, consumidores inveterados de cachaça e aguardente; e, como não
poderia deixar de ser, Leandro faz do Cordel um instrumento de informação sobre a vida
do cangaço e de cangaceiros, entre os quais se destaca Antônio Silvino.
Como se vê, a obra do poeta apresenta uma seqüência de ocorrências típicas da
Tudo hoje me faz crer
Que este mundo está mudado,
Porque têm se dado cousas
De que fico admirado.
Um dia deste um fiscal,
Queixou-se que foi multado
58
.
Ariano Suassuna faz uso da técnica de surpresa fingida no seu Auto da
Compadecida, é quando Chicó repete umas quatro vezes: “Não me admiro mais”. Em
Leandro, no poema acima, o poeta se queixa do cobrador público, o vilão do mercado
livre, sempre de talão em punho para subtrair o já minguado lucro do trabalhador, através
da cobrança de impostos. O mesmo grau de admiração factual – aquele ar de “eu já
sabia” – se faz presente num poemeto do poeta Dirceu Rabelo, no seu “Canto de Fim de
Tarde” (Auditoria - p.147), quando se refere a uma situação matematicamente improvável,
mas possível no mundo das equações políticas:
Uma auditoria dura
Descobriu essa mamata
Nas contas da prefeitura
De uma cidade da Mata:
Para quinze viaturas,
(nem todas funcionando),
Havia quarenta e oito
Motoristas “trabalhando”.
Como é que pode ser isso?
Com quinze carros somente,
Nem mesmo um experiente
E competente algebrista
Arranjaria serviço
Para tanto motorista.
Porque mesmo imaginando
Três motoristas guiando
Um só carro de uma vez,
Ainda assim faltaria
Ocupação para três.
59
Noutro mergulho de Leandro ao passado, o poeta traz à memória dias mais felizes,
e sai do campo das queixas e passa a fazer uso do lirismo, num tom nostálgico em que
58
BARROS, Leandro Gomes de. O Mundo às Avessas. Parahyba, F. C. Batista Irmão, Typ. De Popular Edição., s.d., p.
2-3
59
RABELO, Dirceu. Canto de Fim de Tarde: Recife. 2000 Comunigraf., p. 147.
68
ressalta a estética do poeta-comentarista, para falar de mudanças, como muito bem faz
no folheto: A Guerra, a Crise e o Imposto, onde se refere ao Brasil do antes-depois da
Primeira Guerra Mundial:
Era um mundo de delícias
Celeste, meigo e risonho
Porém passou como as nuvens
Como a ilusão de um sonho
Nos deixando em seu lugar
O pesadelo tritonho
60
.
Ao referir-se aos costumes da vida tradicional nordestina, Leandro usa um tom
nostálgico no folheto As Cousas Mudadas, quando emprega uma técnica satírica (talvez
inconscientemente) ao fazer comparações entre o confronto do tradicional e do moderno
e suas inevitáveis mudanças na vida do povo. É o que o escritor Ernst Robert Curtius
chama de impossibilia no seu livro: Literatura Européia e Idade Média Latina, no qual o
autor fala do “mundo virado”, cuja base temática é justamente se queixar dos tempos
exagerando os acontecimentos inverossímeis (impossibilia) que marcam a época. É o que
ocorre, por exemplo, quando Leandro diz que “as mulheres trabalham para manter os
homens, que ficam em casa fazendo serviço de mulher”. Outro exemplo nos vêm pelo
folheto Por que é que o Mundo está assim tão Atrapalhado?, de Manuel Camilo dos
Santos:
Mulheres imitando homens
Em o lugar de “chofés”
Homens em lugar de mulheres
Trabalhando nos hotéis,
Em lugar de cozinheiras
E as mulheres pelas feiras
De calças, blusas e bonés.
Ao concluir as ilustrações de poesias que apresentam os tempos difíceis como
tema, vale a pena citar o bom uso das figuras alegóricas que faz Leandro no folheto Os
Filhos do Rei Miséria, com o que aponta a fonte da miséria no mundo:
Os filhos do rei miséria
Foram: Azar e Desgraçado,
Depois nasceram mais dous.
Sem Sorte e Desconsolado,
60
BARROS, Leandro Gomes de. A Guerra, a Crise e o Imposto. 2ª ed. Recife, s.d., p. 8
69
Depois nasceu a Derrota
Casou com Mal Aditado.
Desse desditoso par
Foi que veio a geração
De oficial de justiça
Juiz de órfão e escrivão
Fiscal e condutor de trem
Coletor e sacristão
61
.
Vejamos alguns versos em que Leandro ridiculariza os estrangeiros no Nordeste,
sobretudo os ingleses responsáveis pela construção da estrada de ferro e os
portugueses. Estes, pelo uso do Português e a forma de negociar. Aqueles, por
considerá-los fonte do capital estrangeiro. Usuário do trem para suas viagens ao interior,
onde vendia os folhetos, Leandro não perdia a oportunidade de alfinetar os gringos da
Great Western:
Alerta rapaziada
Da margem da Great Western,
O inglês fez uma coisa,
Acho que queira Deus preste!
Botou coletor nos trens
Matou morcego por peste.
Eu nunca vi esta estrada
Como agora desta vez,
Outrora tinha um fiscal,
Agora tem dois ou três.
Não viaja mais no mole,
Nem mesmo a mãe do inglês.
(...)
E se alguém for se queixar,
Diz-lhe o inglês: o senhor
Deve agradecer a mim
Ter trem seja como for,
Mim bota trem em Brasil
Para fazer-lhe favor.
62
Sobressai-se a rigor a crítica de Leandro ao evidenciar o tropeço dos gringos no
uso dos pronomes e na colocação dos verbos, na ambição comercial em se colocar um
número exagerado de cobradores, impedindo assim que os morcegos (passageiros
clandestinos) viajassem sem pagar. Diz Leandro que nem o Papa escapava do rigor, ou
61
BARROS, Leandro Gomes de. Os Filhos do Rei Miséria, p. 1.
62
BARROS, Leandro Gomes de. Os Coletores da Great Western; s.d.; p.1,2-3,5
70
mesmo a mãe do inglês. Mas a ironia do poeta é ainda mais forte no último verso, posto
que a chegada do trem, no Brasil, seria motivada por qualquer outra coisa, menos um
favor do inglês ao brasileiro.
No caso do imigrante português, visto como trabalhador e cobiçoso, destacou-se,
na Literatura de Cordel, o seu interesse por dinheiro e a maneira para obtê-lo. Em O
Tempo de Hoje, Leandro expressa sua gozação com o comerciante português,
parodiando seu sotaque e seus métodos, numa época anterior à primeira Guerra Mundial,
quando havia preços razoáveis e vida cômoda:
No tempo passado
O freguês chegava
Tudo adulava
Muito interessado,
O português de um lado
Muito satisfeito,
Dizia com jeito:
Benha se sentare
Querendo mamare
Está aqui o peito.
63
O poeta, através de seus poemas, demonstra aguçada percepção crítica acerca
dos estrangeiros, realçando aqui-acolá padrões lingüísticos do imigrante, com uma boa
dose do humor brasileiro.
Uma temática que se faz presente nos versos de Leandro reúne elementos do
mundo da política, seja o comportamento dos governantes, seja os conflitos que
desencadearam a Guerra. Mais uma vez, o poeta recorre à sátira, se bem que num tom
mais duro, sobretudo ao apresentar os problemas do Nordeste. Era uma época em que
pairava sobre o povo um cartel de crises oriundas do descaso dos governantes, gerando
uma miséria que se agravava ainda mais com o fenômeno da seca. Em Panela que
Muitos Mexem, Leandro faz uso de metáforas para construir um excelente poema-
denúncia:
O mundo vai tão errado
E a cousa vai tão feia
A garantia do pobre
É pontapé e cadeia,
As creanças já não sabem
O que é barriga cheia.
A semana tem seis dias
63
BARROS, Leandro Gomes de. O Tempo de Hoje. Guanabara. Pedro Batista. 1918, p. 5
71
Quem quiser andar direito
Há de dar dous ao estado
E dois e meio ao prefeito,
E não há de se queixar
Nem ficar mal satisfeito.
(...)
Foi mesmo como a política
Desse governo atual:
O Brasil é a panela,
O estado bota sal,
O município tempera,
Quem come é o federal.
64
É o poeta como defensor do pobre, a denunciar as intrigas palacianas, onde os
estados mais desenvolvidos tentam concentrar as benesses do governo central, contra os
interesses dos menos desenvolvidos, para os quais a sobrecarga de impostos e a
corrupção desenfreada se transformam em uma tragédia social. Um outro poema de
Leandro: Um Pau com Formigas, contém ricas imagens poéticas, demonstrando o
contraste entre o que se chama de “século das luzes”, ao qual o poeta denomina de
“século das brigas”, em função das vaidades dos governantes da época.
Chamam este século das luzes
Eu chamo o século das brigas,
A época das ambições
O planeta das intrigas
Muitos cachorros num osso
Um pau com muitas formigas
65
.
Ainda sobre a seca no Nordeste e a Guerra no mundo, temas aos quais Leandro
recorreu para expressar o sentimento do povo, através da poesia e de sua veia satírica,
os dois fragmentos a seguir revelam com maestria a visão contextual que detinha o poeta
do quadro angustiante que, no Nordeste, representava a seca e, no mundo, a guerra,
sobretudo no tocante à convocação militar de jovens que eram sorteados para engrossar
as fileiras do combate.
Santo Deus! Quantas misérias
Contaminam nossa terra!
No Brasil ataca a seca
Na Europa assola a guerra
A Europa ainda diz
64
BARROS, Leandro Gomes de. Os Dez réis do Governo. Recife. Typ. Miranda. 1907, p. 4
65
BARROS, Leandro Gomes de. Um Pau com Formigas. Recife. L. G. Barros. 1912, p. 12
72
O governo do País
Trabalha para o nosso bem
O nosso em vez de nos dar
Manda logo nos tomar
O pouco que ainda se tem.
Rapaziada se aprontem
Para enfrentar a desgraça
A guerra,a crise, o imposto
Quase que não deixa raça
O resto que ainda ficou
Morre no pau da fumaça.
66
O que se depreende é que o poeta, mesmo não criticando nominalmente algum
político ou partido, ou não sugerindo uma solução para as mazelas por ele apontadas em
seus versos, contudo não deixa de ser uma voz que ressoa em defesa dos mais fracos,
oferecendo a sua indignação contra a indiferença da máquina estatal emperrada em suas
catracas de ambição e nepotismo. Os seus poemas evidenciam uma consciência social
que se manifesta artística e veementemente, através de uma técnica e de um estilo crítico
que qualificam o poeta, ao fazer uso da ironia, do sarcasmo, do humor, enfim, de um
aparato de imagens poéticas que sedimentam a estrutura dos seus versos inconfundíveis.
A mulher, o casamento e a sogra são, a um só tempo, temas recorrentes no
folclore e nos folhetos, e Leandro não escapou de enfocar nos seus versos tão excitante
munição. No folheto Gênios das Mulheres, o poeta descreve a mulher geniosa com
precisão de analista, que faz lembrar o texto bíblico de Provérbios, onde se lê: “melhor é
morar num canto do quintal, do que com a mulher rixosa numa casa ampla” (Prov. 21:9).
É sobre esta mulher que Leandro diz:
“Tem no pé da laringe uma válvula de amargura, por onde
dispede a ira e entra a maldade pura”.
67
E aconselha ao velho sobre casamento: “Carreira de velho é chouto, homem de 70
anos é engenho de fogo morto, seu barco é um ataúde, a sepultura é um porto”. E, quanto
às sogras, Leandro dispara:
Por que é que a medicina
Estuda tanto e não logra
Por exemplo um preparado
Que dê mais valor à droga?
Por que razão não inventa
66
BARROS, Leandro Gomes de. A Seca do Ceará. Guanabara. Pedro Batista. 1920, p. 41-42
67
BARROS, Leandro Gomes de. O Casamento do Velho e um Desastre na Festa. Recife. L. G. de Barros. 1913, p. 2.
73
Vacina pra não ter sogra?
68
Curiosamente, enquanto o inglês é uma figura abominável nos versos que tratam
da manipulação da via férrea no Brasil, o poeta até chega a manter com ele um breve e
amistoso diálogo, tendo em vista a descoberta de uma vacina assim. O inglês oferece
uma solução meio exótica, mas que, segundo ele, já foi testada e aprovada. E o poeta
não resiste:
Eu então lhe perguntei:
Como é essa vacina?
Disse o inglês: Oh! Tu pega
Uma sogra bem ferina
Bota o cuspo dela em ti,
Que sogra aí amofina.
Mim garante que botando,
Tu fica logo sem ela,
Bota pouco, só na unha,
Que a baba é uma mazela,
Com meia hora depois,
A velha estica a canela.
69
Otimista, então, com a fórmula mágica, o poeta filosofa sobre uma vida sem
sogras: “Com essa vacina agora, o mundo há de melhorar, a terra toma um impulso, tudo
há de prosperar”.
Quanto ao jogo do bicho, que teve a sua origem no Rio de Janeiro do século XIX e
que, já em 1905, estava espalhado pelo Brasil afora, não obstante a repressão policial
sofrida, responsável pela ampliação da clandestinidade, logo foi incluído na temática do
Cordel, até porque, tanto quanto a Literatura de Cordel, dirigida sobretudo às camadas
menos favorecidas, o jogo de bicho se estabeleceu inicialmente entre os excluídos e para
eles representava uma oportunidade de alcançar um outro patamar na escorregadia
pirâmide social, ao lograr prosperidade com os ganhos obtidos. Nem mesmo o clero, na
visão do poeta, deixava de fazer a sua fezinha nesse “santo” excomungado... Em A
Ausência dos Bichos, Leandro não economiza sua sátira: comenta que as viúvas mais
lamentam a proibição do jogo do que mesmo a perda dos maridos; idosos que fazem
promessas a São José para acertarem o milhar; o bêbado que ganha o pão por interpretar
os sonhos dos jogadores. No final do poema, o poeta arremata com uma oração-paródia
68
BARROS, Leandro Gomes de. Vacina para não ter Sogra. Recife, s.d., p. 9-10
69
BARROS, Leandro Gomes de. Vacina para não ter Sogra. Recife, s.d., p. 9-10
74
dirigida a um dos bichos que integram a roleta dos que são jogados, suplicando o retorno
do jogo, proibido pela justiça:
Avestruz, ave celeste,
Tem piedade de nós!
De que forma fica o mundo
Sem o auxílio de vós?
Desde que os bichos faltaram
O povo todo anda atroz.
70
Assim é que, o jogo do bicho, considerado vício por uma fatia da elite hipócrita, a
mesma que aprovava o jogo oficializado pelo governo, para o poeta, no entanto, era uma
diversão e um meio de ajudar aquela massa sem esperança. A paródia indica o bom
humor do poeta, ao mesmo tempo em que se coloca a favor do povo desvalido e contra
os interesses de uma sociedade maniqueísta e preconceituosa.
Na categoria Religião, se encontram vários e alguns dos melhores folhetos
satíricos, bem como o poema mais conhecido de Leandro Gomes de Barros que, mesmo
sendo católico, não compactuava com a cobiça de alguns clérigos. Para o poeta, um
padre forte na fé não poderia ser fraco nessa área. Um exemplo de sua luta contra a
corrupção no clero, aparece no folheto O Dinheiro. Abaixo segue um fragmento de outro
folheto, O Padre Jogador, no qual o poeta também aborda o problema:
Conheci muito essa alma
Um padre velho baiano,
Se fingia muito humilde,
Caritativo e humano,
(...)
Gordo como um suíno,
Preguiçosos em demasia,
Pidão como retirante,
Contava tudo o que via,
E para jogar dinheiro,
Não tinha noite nem dia.
71
Dentro do tema Religião, outro enfoque é o inevitável confronto entre posturas de
crenças, a católica e a protestante, já presente em solo nordestino. Esse choque de idéias
religiosas também é objeto do registro do poeta. Há um exemplo bastante curioso e
representativo do tema, quando Leandro Gomes de Barros descreve um possível Debate
dum Ministro Nova-Seita com um Urubu, no qual se desenrola uma discussão sobre a
70
BARROS, Leandro Gomes de. A Ausência dos Bichos. Belém. Ed. Guajanira. 1939, p. 3
71
BARROS, Leandro Gomes de. O Padre Jogador. Recife. L. G. de Barros. 1910, p. 7-8
75
Virgem Maria e outras crenças que naturalmente geraram muitos atritos entre os credos
divergentes. Esse não é o único folheto sobre o assunto, outros como: O Diabo na Nova-
Seita, O azar e a Feiticeira, O Diabo Confessando um Nova-Seita, por exemplo, trataram
do tema, mas é certo que o Debate foi o carro-chefe da relação, se tornando um clássico
na Literatura de Cordel.
Numa versão de Gustavo Barroso, a história do Debate tem início com a morte de
uma velha nova-seita e a chegada do Mestre Urubu e sua irmandade:
(...)
Mestre Urubu viu a véia,
Onde esticou a canela,
Disse aos outros urubus:
- Meus maninhos, vamos a ela!
Enquanto Deus não manda outra,
Vamos roendo naquela!
O Ministro aí chegou,
Dizendo: - Esta velha é minha,
Era uma nova-seita,
Que no nosso culto vinha.
O urubu respondeu – Votes!
Carregue, então, sua tinha!
Daí em diante, o foco se desloca para um confronto mais acirrado entre os
contendores, onde o urubu defende a divindade de Maria, ao dizer:
(...)
Que Maria nasceu pura,
Faz parte da Divindade,
Deu a luz a Jesus Cristo,
Conservando a virgindade!
Ao que o Ministro retruca:
(...)
- Urubu, estás enganado,
Eu estudei toda a Bíblia,
Estou nela baseado.
E assim o poema se constrói, carregado de jocosidade e de uma linguagem própria
da região, que realça vocábulos como “droga”, “tinha”, “demo”, equivalentes de diabo;
“esticar a canela” por morrer; numa recorrência ao pitoresco. Quando o Mestre Urubu
duvida da salvação do Ministro, o poeta emprega, mais uma vez, impossibilia para
exagerar o sentimento do Urubu:
76
(...)
Estou salvo por Jesus.
O Urubu lhe respondeu:
- Mais fácil água dar luz,
O sol ficar como gelo,
O demo andar com a cruz!
72
A ironia é o ponto forte nessa sátira, na qual o urubu - ave de pouca beleza
estética, porém muito astuta, que não se deixa enganar facilmente – espécie de anti-
herói, tal o pícaro e amarelinho João Grilo, um dos tipos mais conhecidos na Literatura de
Cordel. Ambos, por analogia, são tipos picarescos, feios, pitorescos na fala, contudo
mantêm uma astúcia singular e uma crença pueril, porém firme. Na verdade estamos
diante de empréstimos de formato folclórico muito utilizado na tradição cordelista.
O uso do álcool – cachaça – não chega a ser um tema de interesse histórico,
contudo são histórias que sempre oferecem algum fundo moral dentro dos costumes na
sociedade nordestina. Para Leandro, a cachaça é vista como um dos prazeres na vida e
não como vício. O poeta exalta as qualidades da bebida, usa de sua técnica de satirizar
para fazer pensar. Nos versos de O Adeus da Aguardente, Leandro parece associar a
cachaça a um caso de amor, e assim cria uma seqüência magistral de versos
improvisados, onde o poeta idealiza a cachaça e a transforma na esperança para o
bêbado.
(...)
Eu por ti louco,
Me vexava um pouco,
Dizia e havia
Mandrião rapaz.
Veja cerveja,
Aguardente quente,
Espere, quero
Esse copo e mais.
(...)
Ali bebia!
Satisfeito ia
Falar, cantar,
Na taverna ainda,
Beber, dizer:
Erga os pés seu Zé,
72
BARROS, Leandro Gomes de. Debate de um Ministro Nova-Seita com um Urubu, apud Barroso. Ao Som da Viola,
p. 430
77
Bote, encha o pote,
Que a aguardente é linda!
73
Concluindo esta passagem pelos ciclos que diferenciam os temas de que se
ocupou Leandro Gomes de Barros, na sua inventividade poética dentro da Literatura de
Cordel, vale ressaltar a questão do Cangaço e Antônio Silvino, com certeza uma larga e
difundida questão, objeto de estudos históricos, no folclore, teatro, cinema e obviamente
na Literatura de Cordel, da qual Leandro é um ícone nacional. Seja na literatura culta, seja
na literatura popular, o cangaço tem sido objeto de estudo e apreciação sociológica, ora
para expor as origens e o seu desenvolvimento no Nordeste, ora para avaliar o front de
combate levado a cabo pela área militar, com a conivência do poder dos donos de terras.
O poeta popular, então, diante do fogo cruzado das informações que chegavam ao
conhecimento público, muitas vezes folclorizadas pelo imaginário popular ou minimizadas
pela ala oficial, toma então uma atitude em se fazer, também, veículo informativo através
do cordel. Não só Leandro, mas também Francisco das Chagas Batista fizeram, por
exemplo, Antônio Silvino uma lenda no Nordeste. O mesmo ocorreu, posteriormente, com
Lampião, em trabalhos escritos por João Martins de Ataíde e outros poetas
contemporâneos. Mais modernamente, já aparecem folhetos que incluem os dois - Silvino
e Lampião – no mesmo relato, a reboque da imaginação dos poetas, não obstante as
características peculiares que definiram a entrada de ambos na vida do cangaço. Silvino,
por conta do assassinato de seu pai, se viu constrangido a entrar nessa vida, atuando à
semelhança de um Hobin Hood, ajudando a pobreza com suas proezas e atitudes de
rebeldia contra as injustiças no sertão. Lampião, por sua vez, abraçou o cangaço aos 18
anos, recebendo, mais tarde, a patente de capitão, dada pelo Padre Cícero, o Padim Ciço
do Juazeiro do Ceará. Daí em diante, projetou o seu temível nome – e bando – até
quando morreu, em 1938. Sobre o Hobin Hood do sertão, o folheto As Proezas de Antônio
Silvino, de Leandro Barros, apresenta as razões do candidato a cangaceiro:
Eu hoje podia ser
Um distinto cavalheiro
Mas a justiça faltou-me
Devido a não ter dinheiro,
Meu pai foi assassinado
Eu pra me ver vingado
Fiquei sendo cangaceiro.
Quanto ao papel de Robin Hood sertanejo, os versos seguintes assim divulgam:
73
BARROS, Leandro Gomes de. O Adeus do Aguardente.
78
Disse que sempre matei
Todos que me perseguiam,
Que nas vilas do sertão
Com festas me recebiam,
E o que eu tomava dos ricos
Dava aos que me pediam.
Por fim, no tocante ao confronto com a polícia, Silvino se diz respeitado e apoiado
pelo povo, o que reduz a ação dos macacos – como se denominava os policiais no meio
do cangaço – contra ele. Os versos a seguir – de belíssima feitura – atestam essa
situação:
Pergunta o vale ao outeiro,
O ímã à exalação,
O vento pergunta à terra,
E a brisa ao furacão,
Respondem todos em coro:
Esse é o rifle de ouro,
Governador do sertão.
Nos três fragmentos citados, salta aos olhos a habilidade de Leandro de Barros em
noticiar os fatos históricos com a qualidade poética que lhe era peculiar, e mais ainda,
uma atividade poética impregnada de uma tonalidade jornalístico-informacional, na
medida em que os seus comentários de valor social vêm confrontar, aos olhos do leitor,
uma realidade encoberta pela poeira do descaso com as questões sociais que afligiam a
população da época, cujo valor para os grandes mandatários se resumia ao serviço
prestado, num regime quase que de escravidão, sem qualquer chance de defesa, daí
porque o povo recorria às intervenções do imaginário religioso ou, por aqui mesmo, se
valendo da intervenção de justiceiros, mesmo que isso não lhes trouxesse a garantia do
resgate de sua cidadania plena.
79
2.6. Alberto da Cunha Melo e o repente de Louro do Pajeú
Durante o ano inteiro, sendo ou não época de festas, o visitante tem uma infinidade
de opções para curtir no interior do Estado. São cidades que abrigam importantes
parques ou museus; outras com áreas ideais para contatos com a natureza; municípios
com estruturas para a prática de esportes radicais; cidades com santuários ou romarias
que cativam multidões, além de outros atrativos.
Considerada a Capital nordestina da poesia popular, a cidade de São José do
Egito, a 402 km do Recife, é parada obrigatória para quem gosta do turismo cultural. Terra
de Antônio Marinho (que foi o mais respeitado violeiro-repentista nordestino), dali também
saíram artistas do porte dos irmãos Dimas, Otacílio e Lourival Batista (este último
consagrou-se como "o rei dos trocadilhos"); Rogaciano Leite; Mário Gomes; Cancão e
outros poetas e cantadores do repente. Atualmente, dezenas de poetas dão continuidade
a essa arte.
Por sua tradição de celeiro de grandes poetas populares, ainda hoje a cidade é um
dos maiores centros de realização de cantorias, no Nordeste. Ali, durante a Festa de Reis
(primeira semana de janeiro), anualmente acontece um Festival de Cantadores e Poesia
Popular. E em todas as festas tradicionais há sempre uma programação com violeiros. A
cidade também conta com uma espécie de museu para os cantadores, a Casa do Poeta,
construída em 1997 com recursos do Ministério da Cultura e que tem uma razoável
estrutura para realização de festivais.
São José do Egito é o que se pode chamar de um dos municípios sertanejos de
médio porte (tem uma população de pouco mais de 30 mil habitantes) e, na cidade, um
dos cumprimentos mais comuns entre os moradores está ligado à arte da terra. Ali, não
se diz apenas "bom dia", "boa tarde", "olá". Geralmente, o cumprimento vem seguido de
outra palavra: "bom dia, poeta", "boa tarde, poeta" e por aí vai. No verão, a cidade tem o
clima quente da área de seca do Nordeste, mas no período chuvoso a temperatura pode
baixar até 20 ou 15 graus.
Um dos maiores responsáveis pela projeção da cidade como centro da poesia
popular do Nordeste foi, sem dúvida, Lourival Batista, repentista imbatível no seu ofício,
80
cuja obra mereceu vários registros fonográficos e análises acadêmicas. Mas, além dessa
marcante tradição na arte da cantoria, São José do Egito também tem outras histórias a
mostrar. Uma delas está escondida numa velha casa em ruínas, onde o jornalista Assis
Chateaubrind aprendeu ler em jornais velhos, usando a queima de óleo para fazer suas
leituras noturnas.
A Capital dos Repentistas também guarda outras importantes lembranças da
história brasileira. Na Fazenda São Pedro, por exemplo, está o túmulo de João Dantas, o
assassino de João Pessoa, crime ocorrido no centro do Recife e que precipitou os
episódios que desencadearam a Revolução de 1930. A fazenda fica a 20 quilômetros do
centro da cidade e os atuais proprietários estão instalando ali um hotel-fazenda para dar
suporte às atividades recreativas típicas da região como pega-de-boi, vaquejadas e
outras.
Localizada no Sertão do Alto Pajeú, região onde nasceu o famoso cangaceiro
Antônio Silvino, São José do Egito esteve ligada a algumas investidas desses "justiceiros
da caatinga", muita delas ainda hoje lembradas por moradores mais antigos. Mas, o forte
do município é mesmo o repente, a cantiga de viola. Tanto que, na década de 1970,
compositores como Gilberto Gil e outros estiveram por ali pesquisando a arte dos violeiros
sertanejos. E foi também ali que a gravadora Marcus Pereira (RJ) colheu grande parte do
material para produzir o vol 2. da famosa coleção "Música Popular do Nordeste" (1973). A
cidade foi ainda uma das principais fontes de pesquisa para a cineasta Tânia Quaresma
produzir o filme "Nordeste, Repente e Canção", também da década de 70.
Alberto da Cunha Melo, poeta, sociólogo e jornalista também se dedica a pesquisar
e divulgar acontecimentos literários que nascem da experiência popular, através da
poesia cantada/escrita nos repentes e nos cordéis sertanejos, com a qualidade
incontestável de figuras humanas antológicas, a exemplo da que se ocupa o citado livro, o
Louro do Pajeú.
Ao realizar o que o autor trata como reportagem, na qual o foco é este cantador
extraordinário conhecido por Louro do Pajeú, Alberto da Cunha Melo inicia o seu trabalho
citando a Rua da Beleza, na Ilha do Leite, em Recife, como sendo o endereço “próprio de
países imaginários” como Shangri-La ou São Saruê, no qual morava o poeta Lourival
Batista, na década de 1930, ocasião em que concluía o único curso regular que
freqüentou – o primário – no Recife. Quando morreu, aos 77 anos, em dezembro de 1992,
Louro do Pajeú veio por fim a uma dinastia do Egito de cá, no sertão, que nada tinha com
as dinastias do Egito de lá, do outro lado do mundo. Era a dinastia dos “Faraós do
Repente” do “Reino dos Cantadores de São José do Egito”, como aparece na genealogia
81
do estudioso da Literatura Sertaneja, o professor José Rabelo de Vasconcelos, que
escreveu uma obra toda em versos focalizando a história desta cidade sertaneja, berço da
poesia popular, onde Louro nasceu, em 1915.
A propósito, Alberto da Cunha Melo registra que, à época em que escrevia esta
reportagem, o artista plástico Karoba Nunes estava elaborando um projeto para edificação
de um memorial, em São José do Egito, com o qual três grandes nomes do repente
seriam homenageados, os chamados três faraós da viola e do repente: Antônio Marinho,
Rogaciano Leite e Lourival Batista (este, o mais velho dos irmãos Batista, uma tríade de
cantadores formada por Dimas(falecido em 1986) e Otacílio, poeta e profissional liberal
em João Pessoa. Contudo, foi Lourival Batista, o Louro, quem projetou mais intensamente
a dinastia do Egito sertanejo, até pelo fato de se ter dedicado com exclusividade às
andanças com as quais melhor divulgava o seu talento, marcando assim a mitologia
poética de sua cidade – São José do Egito – e da conjunção familiar Batista/Patriota, que
deu uma centena de cantadores, segundo estimativa de Lúcia Assunção, no texto: “Meu
pai, sua vida e sua viola”.
Em sua reportagem, Alberto da Cunha Melo cita que, contrariando a regra pela
qual a maioria dos violeiros iniciam sua carreira artística em alguma cidadezinha
interiorana, ou mesmo numa fazenda ou sítio, Lourival Batista começou a se “mostrar” no
Recife da década de 1930, quando então detinha o título de terceira cidade do Brasil.
Na década de 1970, Louro dá entrevista aos jornalistas Marcos Cirano e Ricardo
Almeida, e lhes confidencia uma certa mágoa em relação ao curso primário no Juvenato
Dom Vital, no Recife, onde obteve notas máximas em todas as disciplinas, mas mesmo
assim não recebeu o diploma, por conta de “sua aversão à reza e a sua recusa de
responder à prova de Religião”. Conta Luís Wilson, em sua obra Roteiro de Velhos
Cantadores, que Louro estudou inicialmente em São José do Egito, tendo como
professora a Sra. Isnar Moura, “um dos nomes mais célebres do magistério
pernambucano”. Aos 17 anos, e decepcionado com a vida escolar, Louro tentou ingressar
– sem sucesso - num batalhão que fazia parte da Revolução Constitucionalista de São
Paulo, em 1932, mas sua mãe o demoveu da idéia. Daí em diante, afirma Louro aos
repórteres citados: “Resolvi mesmo sair cantando, saí direto já com a viola do Recife, em
02/09/1933, a pé, e cheguei a Itapetim (422Km do Recife) em 07/12 do mesmo ano,
atravessando a Paraíba e o Rio Grande do Norte, cantando com diversos cantadores, e
comecei a cantar pelo Pajeú e o povo achou bom e tal, e me chamaram para cantar com
Antônio Marinho, e não deixei mais...”. Antes dessa peregrinação poética rumo ao mundo
da viola, Louro foi “flagrado” pelo pai numa peleja com o cego Cesário José Pontes, ao
82
que o próprio Louro afirma ter sido a sua primeira “luta poética”. Contudo, atesta Luís
Wilson que Louro “cantou pela primeira vez em 1930, com o violeiro Pedro Ferreira”. E
agora, “com quem ficamos?” - interroga o poeta Alberto da Cunha Melo.
O fato de ter iniciado a sua vida de cantador no Recife, não desvincula Louro da
experiência com a vida da roça, do contato com a terra, que é o perfil da safra de violeiros
a que Louro está ligado. A safra dos mais novos, a exemplo de Ivanildo Vila Nova, já é
mais urbana, não necessariamente do ponto de vista geográfico, mas no sentido da
vivência sócio-cultural. Basta dizer que o Nordeste, da segunda metade do século XX,
apresentou uma elevação da população urbana da região na ordem de aproximadamente
23%, em 1940, para 57%, em 1991, em relação à população total. Alberto da Cunha Melo
comenta que estes dados implicam que, se não na área econômica, pelo menos uma
mudança sociocultural ocorreu, estimulada sobretudo pelos meios de comunicação, mais
diretamente os de massa, como a radiodifusão. A considerar que “os artistas são as
antenas da raça”, no dizer de Ezra Pound, foram então os violeiros as antenas que se
anteciparam a outras categorias sociais na percepção dessas mudanças, e dela fizeram o
mote e a glosa com que abrilhantaram suas atividades de arautos das aspirações
populares, pelas cidades a fora.
Lourival Batista, junto a outros nomes de igual relevância, a exemplo de Pinto do
Monteiro, Jó Patriota, e outros, integravam um fantástico elenco de violeiros. Ainda maias
que Louro, desde menino já se mostrava um cantador de múltiplos recursos, transitando
muito bem entre o rural e o urbano, ao que o sociólogo Gilberto Freyre denominava de
cantador “rurbano”. Sua arte de cantador apresentava uma faceta que o singularizava em
meio a tantos pares de destaque, que era a capacidade de fazer trocadilhos, a ponto de
se tornar conhecido nesse particular como “O Rei dos Trocadilhos”, o que deu suporte ao
folclorista e pesquisador Aleixo Leite Filho para escrever um opúsculo com este título, no
qual destaca: “O ponto alto da cantoria de Lourival foi o improviso de trocadilhos
impressionantes e esse estilo, pela sua raridade entre os cantadores, foi-lhe quase uma
constante”. Considera Alberto, em sua reportagem, ser esta característica de Louro uma
aproximação da proposta oswaldiana, pelo que apresenta de lúdico e do domínio da
expressividade, como ilustram as sextilhas a seguir:
Sextilha do Baralho
“Baralho tem 4 ases
4 duques 4 três
4 quatros 4 cincos
4 oitos 4 seis
83
4 noves 4 setes
4 dez 4 valetes
4 damas 4 reis”.
Sextilha Soletrada
“Lê-alá v-ê-m-vêm
O p-a-pá-d-r-e-dré
J-o-a-o-til-ão
Lê-é-i-lei-t-é-té
D-é-dé a-n-na
D-r-a-dra-d-é-dé”.
Louro participou da primeira e histórica cantoria que ocorreu no Teatro Santa
Isabel, sob o patrocínio de Ariano Suassuna, em 1946, e também do I Congresso de
Cantadores do Recife, em 1948, no mesmo local, dessa vez organizado por Rogaciano
Leite. Desenvolveu uma boa convivência com nomes de destaque da literatura
pernambucana, na primeira metade do século XX, como Ascenso Ferreira, Carlos Pena
Filho e Jaime Griz, além do que, já nos anos sessenta, foi primeiro lugar numa cantoria
onde Gilberto Freyre era um dos componentes do júri.
A partir dos anos 70, Louro e o Recife se abraçam ainda mais, numa relação de
afetividade com talentos literários das gerações mais recentes, à época, como Marcus
Accioly, Ângelo Monteiro, Dione Barreto, Almir de Castro Barros e outros. Com o autor da
reportagem, poeta Alberto da Cunha Melo, que ouviu Louro pela primeira vez em 1979, o
contato se deu no início dos anos 80, quando editava uma coluna no Commercio Cultural,
do JC, cujo título era: Recanto dos Violeiros. Mais tarde, ao assumir a Diretoria de
Assuntos Culturais da FUNDARPE, em 1987, Alberto aprofundou o seu relacionamento
com Lourival e outros representativos violeiros nordestinos, daí promovendo o II
Congresso de Cantadores do Recife, no Santa Isabel, e lá estavam Lourival Batista, Jó
Patriota e Pedro Amorim como convidados especiais.
Em 1987, a Síntese publicou o livreto: A Vitória de Arraes e o Grito de Alerta,
contendo versos de Louro para as campanhas vitoriosas (1962 e 1986) do seu amigo de
longas datas. Na última campanha, tornou-se antológicas as glosas sobre o mote do
próprio Louro: “Volta Arraes ao Palácio da Princesa/ Vai entrar pela porta em que saiu”.
Numa entrevista a Gildson de Oliveira, do Diário de Pernambuco, em 29/11/92, Louro
revelou o seu desencanto quanto ao apoio dos políticos para a cultura popular: “Acho que
todo artista popular é esquecido. Não há uma política cultural conseqüente em relação à
Cultura Popular. (...) Eles se lembram muito no tempo das campanhas”. Era o desabafo
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final de quem parecia saber que, seis dias depois, partiria numa caminhada rumo à
eternidade.
No entendimento de Alberto da Cunha Melo, num período em que a Nova
República introduziu as eleições bianuais, os violeiros passaram a ter mais presença nas
campanhas, se bem que, em relação à poesia “literária”, tenha sofrido uma redução de
prestígio e mercado. Enquanto isso, a poesia “literária”, dita erudita, no período ditatorial,
por mais de duas décadas teve um relativo crescimento. Talvez o hermetismo dos textos
poéticos não provocaram maiores preocupações ao regime militar. Comenta o poeta
Alberto da Cunha Melo que “num país quase analfabeto – apesar do MOBRAL ou por
causa dele – não é prioridade da repressão depois da tomada do poder, o público de
livros. A censura se ocupava mais com o teatro, a música discográfica, o jornalismo,
enquanto a poesia ‘literária’ ficava de lado”.
Por outro lado, o poeta Alberto reconhece que a habilidade do improviso assegura
ao repentista maior resistência aos percalços do desinteresse dos órgãos públicos pela
arte popular, uma vez que o folheto e o livro precisam do mercado gráfico, para a sua
sobrevivência, enquanto que de posse do talento e da viola, o violeiro promove a
divulgação de sua arte. Inclusive – comenta Alberto – algumas campanhas de
conscientização nacional (pólio, cólera, prevenção de acidentes etc.) muito bem poderiam
ser melhor assimiladas pela população através da arte do repente e do folheto de cordel,
mas não há sensibilidade dos órgão oficiais para este aspecto, gastando-se milhões em
comerciais de pouca clareza instrutiva, com as estrelas globais ou da mídia.
Alberto da Cunha Melo considera que ainda ronda algum preconceito contra a arte
popular, incluindo o repente. Diz Alberto: “Um violeiro, como Lourival Batista, é um grande
artista, assim como Capiba o é, na sua música, e Geninha Borges, no seu teatro”. O
poeta ainda reconhece que, no tocante aos livros didáticos, a lacuna em relação à
presença de textos da poesia popular cantada ou escrita (repente/cordel) é lamentável,
ainda mais porque tais livros são dirigidos ao ensino fundamental e médio. E nos
dicionários de literatura, verbetes indicativos de “cantador/cantoria” ou “viola/violeiro” são
raramente mencionados, como em O Pequeno Dicionário de Arte Poética, de Geir
Campos. Já Massaud Moisés, no seu freqüentadíssimo Dicionário de Termos Literários,
ignora o assunto. Há outro rastro de indiferença que o poeta registra ao consultar o
Almanaque Abril, de 1973, distribuído nacionalmente em bancas de revistas, que chega a
definir o termo “desafio” como “literatura oral” e informa que é “praticado por dois
cantadores”, mas acrescenta: “acompanhados por viola, sanfona ou violão, (que)
improvisam poemas em tom satírico ou jocoso”. Alberto conjectura que pode ser que no
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Sul isso ocorra, mas não é o que diz a bibliografia sobre o tema, onde se sabe que além
da viola ou violão, o uso recai sobre o pandeiro (Inácio da Catingueira) e a rabeca (Cego
Aderaldo), por exemplo. Quanto ao “tom satírico ou jocoso”, é uma informação lacônica,
pois o desafio também engloba outros tons e temas.
“Mas, confessa Alberto, o que revela maior grau de preconceito é uma espécie de
complacência com que a maioria dos intelectuais urbanos trata a cantoria e os
cantadores, a complacência própria com que são tratadas as coisas do folclore. O fato de
o folheto ser poesia escrita e vendida em mercados, feiras e algumas bancas de revista
possibilitou um melhor acesso e classificação por estudiosos da cultura popular”. Em sua
reportagem, Alberto considera que uma boa parte dos estudos dos folhetos é dirigida a
questões socioantropológicas, em busca de confirmar aspectos culturais, como valores,
normas, atitudes, crenças e outras características do homem nordestino. Não é que no
folheto vejam a arte literária em sua contextura estética. Ivanildo Vila Nova advoga que
“sobre o cantador o que se escreveu foi muito pouco, muito parcial na maioria das vezes.
Falta alguém escrever sobre o cantador”. Alberto afirma que “Joselito Nunes, paraibano,
nascido na cidade de Prata, que publicou na UFRPE diversos cantadores, tem o texto e a
experiência para escrever um livro marcante sobre a verdadeira história dos violeiros do
Nordeste”. E completa: “Enquanto eu viver, cobrarei dele esse livro”. E mais: “está na hora
de se estudar o repente seriamente, como se faz com outras manifestações artísticas,
erudita ou popular, até porque erudito/popular se interpenetram na história da arte”, diz o
poeta pernambucano.
Esta visão também estava presente nas idéias do professor José Rabelo de
Vasconcelos, cuja experiência nesta área da poesia popular, o fez pioneiro no Estado,
quem sabe, talvez no Nordeste, ao criar a cadeira de Literatura Sertaneja na Faculdade
de Arcoverde – PE, com a qual procurou sedimentar o seu apreço por este formato da
manifestação do saber popular, até porque, oriundo de Tuparetama, São José do Egito,
cresceu ouvindo cantadores e especializou-se, já na docência, como um canal de
divulgação permanente dos valores advindos da cultura que lhe serviu de iniciação nas
primeiras letras e por toda a vida, seja no exercício do magistério, o que fez com
incansável dedicação, seja na atividade jurídica, que tanto brilho trouxe, através do
domínio da oratória forense somada ao cabedal de conhecimentos da cultura regional,
sempre citadas em suas intervenções.
Alberto da Cunha Melo fala em “ampliar a abrangência desse estudo para que não
se torne um gueto disciplinar encravado no sertão”. E completa: “É tempo de alguém
ousar uma análise literária da produção do repente e do folheto”. E dá algumas
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sugestões, enfatizando que um foco dos estudos poderia ser o da textualidade, numa
análise comparativa do material que se tem sobre cantorias, “preservado desde a metade
do século XX, pelos apologistas, e as escolas literárias brasileiras”. Outro campo de
estudo, segundo sugere o poeta Alberto, passaria pela verificação do grau de
tradicionalismo presente na estética do repente, considerando o seu vínculo com a cultura
popular, e daí se faria uma aproximação com a poesia atual, a partir da análise de seus
elementos textuais. Ou, ainda, a predominância no repente (e no folheto) do substantivo,
da ordem direta e do coloquialismo, predominância esta que faz do repente “ao mesmo
tempo antecessor e contemporâneo da poesia moderna”.
Enquanto predomina alguns resquícios de preconceitos na área acadêmica, o
repente segue o seu caminho, sob a vista dos apologistas, fiéis guardiões da memória
histórica deste filão de cultura popular – o repente e o cordel – admiradores discretos que
colecionam e incentivam a preservação do acervo cantado e escrito de figuras
extraordinárias como Louro do Pajeú, um dos poucos que souberam conviver entre o rural
e o urbano, sem que este o fizesse esquecer aquele, mas com os dois mantendo uma
convivência saudável, abrindo assim o caminho para as novas gerações de cantadores.
Um dos apologistas que tem sua marca registrada em favor da poesia popular é Joselito
Nunes, sobretudo no período em que foi diretor da Imprensa Universitária da UFRPE,
onde publicou muitos trabalhos de grande nomes da poesia popular. Ao falar sobre
Lourival Batista, Joselito Nunes traz, à memória, um rápido diálogo que ocorreu entre
Ainda sobre Lourival, vale registrar o depoimento de Urbano Lima (engenheiro
civil), também defensor e usuário do mundo dos violeiros, tendo entrado nesse reino em
1975, e conhecido Louro no ano seguinte, em São José do Egito, por ocasião do
aniversário do Faraó da poesia sertaneja. Alberto da Cunha Melo afirma que onde estiver
Urbano, a cantoria está presente: “tem sempre uma sextilha de um grande violeiro para
explicar as Coisas que Acontecem (título do seu livro de 1992)”. Pois bem, assim se
refere Urbano sobre Louro: Foi uma das melhores pessoas que conheci (...) nunca vi
Louro ofender a ninguém. Sempre elogiava e, no máximo, se permitia uma sátira, um
chiste”. Para exemplificar, Urbano recorda de um festival que Louro participou, em
Petrolina – PE, : “Subiu no palco um violeiro da Bahia e ele perguntou: ‘- Quem é esse
cara?’, ao que responderam: Dadinho. E Louro: ‘Ainda é caro...’
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3. Capítulo Terceiro: Fronteiras de convivência do
cordel com o erudito
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3.1. A poesia de Paulo Nunes Batista
Paulo Nunes Batista (1924), paraibano de João Pessoa, poeta popular e erudito,
deixou sua terra em 1938 e percorreu 20 cidades brasileiras. Exerceu o jornalismo.
Formou-se em Direito em 1977. Professor, contista, membro da Academia Goiana de
Letras, da Academia Anapolina de Letras e Artes, da Academia Anapolina de Filosofia,
Ciências e Letras, entre outras entidades culturais. Neto do cantador Ugolino Nunes da
Costa, de Teixeira – PB, e filho do poeta popular Francisco das Chagas Batista. Tem uma
variada obra escrita em cordel, 120 folhetos, 160 ABCs e folhas volantes. Em 1978,
obteve o 1º lugar com o trabalho: “Eu, Paraíba e Brasília”. Paulo Nunes afirma que o seu
primeiro folheto data de 1949, o que dá 57 anos de atividades cordelistas em Goiás e em
vários estados do Brasil. Mesmo assim, diz Paulo, “existem ‘folcloristas’, estudiosos,
pesquisadores de literatura de cordel no Nordeste que me desconhecem... ou será que
não me consideram do ‘ramo’?” – indaga o poeta. Em outro depoimento, Paulo Nunes
afirma com convicção: “Sempre apoiei os temas por mim versados em dois pontos
fundamentais: o social e o espiritual. Nunca vendi minha poesia para qualquer fim, jamais
escrevi contra os meus princípios ideológicos e filosóficos, por dinheiro nenhum. Poesia
está na minha alma, cordel está no meu sangue”.
Segundo o folclorista Francisco de Vasconcelos, do Rio, Paulo Nunes é também
um poeta de circunstância, fazendo uso de ocasiões especiais para criar os seus
repentes. E é o maior autor de ABCs do Brasil, entre os quais se destaca o ontológico
ABC para mim mesmo, em sextilhas. É um dos melhores poetas populares do Brasil, bom
na poesia erudita e na poesia popular. Na vertente erudita publicou: Canto Presente
(poemas e sonetos, 1969, Goiânia), Cantigas da Paz (Trovas, 1971, idem), A Caminho do
Azul (sonetos, 1979, Anápolis) De Mãos Acesas (sonetos, 1981, idem), ABC de Luz
(1981, Goiânia), O Sal do Tempo (poemas, 1996, Goiânia), O Vôo Inverso (poemas,
2001, João Pessoa), Sonetos Seletos (sonetos, 2005, Petrolina) e Chamego, o urubu
(contos, 1997). Ao prefaciar o livro Canto Presente, o escritor goiano Bernardo Ellis diz
que a poesia de Paulo Nunes é “a grande e verdadeira poesia: simples, legítima,
arraigada no mais sincero e profundo sentimento humano”. O respeitável trovador
Aparício Fernandes registrou, no prefácio de “Cantigas da Paz”, que “estão de parabéns
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os amantes da trova, porque atraído pelo fascínio das trovas de Paulo Nunes Batista,
poderão tomar conhecimento de sadios ensinamentos”.
No livro da professora Maria do Socorro Cardoso Xavier: Tesouro Redescoberto
(Editora Universitária – UFPB, 2003), ela diz que “Paulo Nunes Batista é um poeta realista
e transcendental ao mesmo tempo”. E completa a professora pernambucana radicada na
Paraíba: “Importa a síntese enriquecida do seu caráter através do tempo e da sua poesia
mágica e maravilhosa, seu trabalho por demais versátil, índice de sua brilhante
inteligência, complementada pela sua rica experiência de vida e de sua persistência”.
Falando sobre poesia popular, Paulo Nunes assim se expressa: “Poesia popular bem
pode ser canto do povo ao embalo do cordel, no balanço do sonho, no batepé do coco, ao
vaivém do ganzá, batecum do zabumba, dançar de cordas bambas de viola repentista, na
boca abrindo o verso (...) é cor del pueblo, cor d’alma – sofrer da gente (...) pode ser
denúncia/protesto bem mais que amenidades de castelos, princesas (...) é resistência
contra o sistema perverso que deixa o povo com fome”. Quando se refere à interferência
da cultura americana na cultura nacional, através dos gibis, Paulo afirma que “o gibi vem
nos americanizar nos quadrinhos do seu plano para nele nos enquadrar, sufocando o
cordel, magna expressão da cultura popular”.
Ao tratar das origens históricas do cordel, o poeta paraibano destaca em prosa e
verso que o cordel vem do “verso de Nicandro, do folheto de Leandro, Chagas Batista e
Manoel D’ Almeida, (...) veio de Portugal em forma de ABC, como folha volante, já no
século XVIII, onde nomes consagrados como Bocage, sob o pseudônimo de Elmano,
construía glosas em décimas”, e por aí vai citando os primeiros registros do cordel no
Brasil, mais precisamente no Nordeste, através do seu bisavô Agostinho Nunes da Costa
(1797) , a quem Paulo Nunes afirma ter escrito a primeira poesia de cordel, lá na Serra do
Teixeira, na Paraíba. Daí em diante, no século XIX, vem Gonçalves Dias com os
“Segundos Cantos”, no qual se faz presente As Sextilhas de Frei Antão, no formato de
cantoria, Castro Alves e Tobias Barreto, por sua vez, encantaram os colegas com seus
discursos abolicionistas em pura improvisação, na Faculdade de Direito, em Recife.
Perguntado sobre o início de sua atividade poética e que motivação o inspira,
Paulo Nunes explica que tudo começou em janeiro de 1949, em Anápolis, Goiás, onde
publicou o seu primeiro folheto: “A Vida Atrapalhada de Zé Bico Doce”, no qual conta a
história de um malandro. Por ser descendente de cantadores repentistas e cordelistas,
findou seguindo a tradição familiar, afirma. Quanto à motivação, Paulo Nunes comenta
que, à época, “quis publicar cordel para viver de cordel e melhorar o ganho, pois o que
ganhava era pouco”. Foi quando, em 1950, mudou-se para Anápolis – morava em Ceres
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– e trabalhou com dos fundadores de Brasília, Dr. Sayão. Em Anápolis, juntou-se ao
pernambucano Francisco Guerra Vascurato, também poeta, e passaram a comercializar o
cordel, como se faz no Nordeste, o que, segundo Paulo, era um fato inédito por lá. No
“Largo de Bom Jesus”, os dois expunham os folhetos numa mesa e os lia para o povo
ouvir. A partir daí, os poetas Paulo Nunes e Francisco Guerra passaram a editar pela
Editora “A Luta” e também a comprar folhetos produzidos no Nordeste, eas1 icr 2c-0.0001 Tc 0.1725 Tw 11.9491.998293.9intensifico Nordsta ativialhe em Goi ins.este,ETEM/0 g1 i /GS0 gsBTar pela0326-0.0001 Tc 0.1725 T9 0 1629.2998293.9Opartiruma mib002 afir2.1z nesaber in712.o Corste, eas1 icr 30-0.0005 Tc 0.1278 Tw37.14951 29.2998293.9 73 A Lu etos produzi Tm01 levo Nordmeste, eas4 povo
romarias, enfim, locais onde pudesse reunir certo número de pessoas para ouvirem a
leitura dos folhetos. Assim, muitos ouviram “O Pavão Misterioso”, as “Proezas de João
Grilo”, que Paulo lia em voz alta, conseguindo despertar a atenção do povo e criar um
ambiente favorável ao consumo dos folhetos em Goiás, nos idos de 1950, quando iniciou
a venda dos folhetos em Anápolis, experiência que repetiu no Rio de Janeiro, em 1958,
quando de sua estada por lá, freqüentando o Largo do Machado, o Campo de São
Cristóvão, a Central do Brasil, locais de maior concentração de público, com boa
representação do povo nordestino, o que favorecia a comercialização e audição dos
folhetos, apesar da perseguição que os poetas sofriam por parte dos fiscais da Prefeitura,
que queriam cobrar caro pelo “ponto”, no Largo do Machado, onde muitas vezes os
cantadores eram presos pela polícia. Por outro lado, o poeta cita também a dificuldade
surgida a partir da divulgação dos “gibis”, revistinhas ilustradas que, diferentemente do
folheto, não provocava o exercício de pensar, até porque as figuras já faziam isto pelo
leitor. O advento da TV, do radinho de pilha, com mais freqüência nas casas, e o alto
custo das gráficas existentes, também se constituíram em elementos geradores de
obstáculos para a disseminação dos folhetos.
O poeta Paulo Nunes diz, com muita propriedade, que poesia é poesia, em
qualquer estágio social ou intelectual onde seja produzida. Para ele, poesia erudita e
poesia popular são irmãs siamesas. A respeito desse aspecto, a professora Maria do
Socorro Cardoso Xavier, em sua obra: Tesouro Redescoberto (Editora Universitária –
UFPB, 2003) tece o seguinte comentário: “costuma-se apontar a dicotomia entre a poesia
popular e a clássica. Acontece que foram os eruditos que definiram a cultura popular.
Cultura popular e erudita se permeiam, se completam”. No seu caso, Paulo Nunes afirma
que se identifica mais com o cordel, em virtude da tradição familiar. O cordel é a
linguagem do povo, arremata. A propósito, o poeta reconhece que as dificuldades
pessoais que enfrentou, inclusive, a fome, o ter que trabalhar cedo, sair de casa para o
mundo, entre outras, só fortaleceram a sua paixão pelo cordel, muito embora tenha sido
premiado em concursos de poesia erudita. Daí o poeta defender a difusão do cordel na
escola, na Faculdade, como forma de preservar o valor cultural que tem suas raízes
fincadas na própria história do povo e com ela se mistura nas várias experiências
contadas/cantadas. Ao poeta cantador/cordelista, Paulo Nunes lembra que há
necessidade de resistir e inovar, fazendo uso dos recursos que a comunicação põe ao
alcance de todos, até para que o cordel não saia de circulação. É necessário acompanhar
os passos da história, da realidade. Hoje, talvez mais do que ontem, o quadro social se
agravou muito mais. Não dá para sair por aí, contando histórias de fadas, princesas
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encantadas e castelos misteriosos, quando o que se vê é o desencanto do povo diante da
miséria, da criança sujeita ao trabalho forçado, da corrupção desenfreada e sem punição.
Diz Paulo Nunes: “como é que eu vou dormir tranqüilo, fazendo versinhos líricos,
românticos sobre estrelas, se o quadro aí fora é de terror social, com a violência
assumindo a dianteira do dia-a-dia do povo, num processo sistemático de terrorismo”. E
completa: “os poetas populares têm um dever – como qualquer artista – que é transmitir a
verdade, se identificar com a sua terra e o seu tempo”.
É verdade, diz o poeta paraibano Paulo Nunes, que o mercado do folheto de cordel
está um tanto precário. Em sua passagem por Juazeiro do Norte, ele andou na feira e não
viu uma só banca vendendo folhetos, justo numa terra onde havia os maiores editores de
folhetos, a exemplo do Zé Bernardo, que adquiriu todo o acervo de Leandro Gomes de
Barros e João Martins de Ataíde (de Recife). Ainda existe pelo menos a tipografia das
filhas do Zé Bernardo. Para Paulo Nunes, isso se configura num desestímulo, ainda mais
quando há uma invasão de publicidade estrangeira no País, arrastando com ela o povo a
aderir a novos hábitos e até a novas linguagens, deixando a Língua Pátria de lado ou dela
fazendo uso inadequado. É a febre do consumismo a reboque do Capitalismo que, até a
algum tempo, se dizia “selvagem’, mas o que se vê é que se trata de um mal “urbano”.
Por isso, o poeta já não vive só do cordel, tem que correr atrás de outras atividades, para
sobreviver.
Em meio a esses desafios que se interpõem no caminho do poeta popular, Paulo
Nunes lembra o nome de alguns grandes da poesia popular que se constituem em ícones
para o movimento de resistência da poesia popular escrita e cantada, no Brasil. Ele cita,
entre outros, o nome do poeta José Alves Sobrinho, poeta e cantador marcante, cordelista
de mão cheia, autor de: Cantadores, Repentistas e Poetas Populares, (Bagagem, 2003),
obra documental que reúne um trabalho muito bem feito em defesa da história da poesia
popular brasileira, na qual o autor se propõe “esclarecer alguns enganos deixados por
inadvertência ou mesmo falta de informação de certos pesquisadores que vêem muito
mas não enxergam determinadas questões intrínsecas à matéria” (in Cantadores...,
Bagagem, 2003).
Do livro pode se dizer que se trata de uma “obra-arte” na qual o poeta ensina o
zelo pelas tradições orais recebidas do ontem e que devem ser preservadas no hoje,
como fonte memorial do coletivo que permeia a experiência do poeta popular. Tal postura
que acompanha o poeta oferece credibilidade ao relato, seja pelo rigor e brilho com que
sempre produziu os seus próprios versos, seja, agora, quando traz à lume o resultado de
suas pesquisas, numa linguagem repleta de conteúdo e pertinência face ao tema. Assim é
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que se dá o percurso que José Alves Sobrinho empresta a esta obra, sobretudo o
enfoque bio-bibliográfico que apresenta sobre os poetas populares das décadas de 30/40
e 50.
Outro aspecto referencial nesta obra é a riqueza e a precisão das informações
coligidas pelo autor, o que assegura ao leitor uma fonte segura de pesquisa. Sem dúvida,
um importante avanço em relação ao procedimento adotado no início do século passado,
por folcloristas como Rodrigues de Carvalho (1867-1935), autor de uma significativa obra
sobre assuntos do folclore nacional, “Cancioneiro do Norte”, que teve duas edições
publicadas, uma em Fortaleza (1903) e a outra na Paraíba (1928). Nesta, Rodrigues
Carvalho faz uma análise não só do folclore brasileiro, mas vai explicando diferentes
manifestações, como orações, festejos de São João, literatura infantil, diferentes danças
dramáticas, como os caboclinhos, manifestações do carnaval de rua etc. Outro aspecto
abordado pelo autor nessa obra é quando se refere aos cantadores, mostrando a
importância do gênero, tendo realizado partes de suas pesquisas na capital paraibana; e
Pereira da Costa (1851-1923), personagem marcante na história de Pernambuco,
historiador, folclorista e escritor, publicou 192 trabalhos, entre livros, periódicos e artigos.
Anais de Pernambuco, seu principal livro, foi publicado em 1951 e conta com mais de 11
volumes - cerca de cinco mil páginas que narra a história pernambucana de 1493 a 1850
e “Folk-Lore Pernambucano”, editado em 1974, e “Vocábulos Pernambucanos”, de 1976.
Todos eles com edições esgotadas. Há diversas definições sobre Pereira da Costa,
entretanto, a mais brilhante veio do punho do poeta João Cabral de Melo Neto, em seu
poema “A Pereira da Costa”: "Quando no barco a linha da água era baixa, quase
naufrágio, ele foi que mais ajudou o Pernambuco necessário, porque com sua aplicação,
não de artista, mas de operário, foi reunindo tudo, salvando tanto o perdido quanto o
achado. Sem o sotaque de escritor, nem o demônio do missionário, só quis de
pernambucania, ser simples professor primário". Ambos se conduziram pelo sistema de
documentação folclórica posto em prática pelos estudiosos e defensores da cultura
popular: Varnhagen Basílio de Magalhães,Sílvio Romero etc., cuja tônica era anotar o
produto e menos o produtor. Logo, se recorria à memória do povo que, na maioria das
vezes, sabia de cor a obra, mas desconhecia o autor, o que favorecia a ocorrência de
falhas nas informações coletadas.
Na mesma linha de pesquisa, pelo menos dois livros vieram à luz em 1921: Ao
Som Da Viola, de Gustavo Barroso, e Cantadores, de Leonardo Mota, sendo este bem
mais apurado no conteúdo do que o primeiro, valorizando o poeta popular diante do
público. Leonardo ainda publicou outra obra: Violeiros d Norte, em 1925, ampliando a
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pesquisa do primeiro livro. A propósito, na terceira edição de Cantadores, Luís da Câmara
Cascudo escreve no prefácio: “Leonardo Mota divulgou a figura do produtor da poesia
sertaneja, o cantador estava escondido detrás da cantoria, (...) de modo geral ninguém
sabia a história dele, (...) Leonardo arranca-o do anonimato”. Em 1929, aparece a obra de
Francisco das Chagas Batista: Cantadores e Poetas Populares, a qual também contribuiu
para apresentar ao público mais de uma dezena de poetas populares paraibanos. Em
1935, Repentistas e Glosadores, de F. Coutinho Filho, divulgou grandes valores da poesia
popular nordestina. Na década de 50, Coutinho publica Violas e Repentes, obra inferior à
primeira. Em 1970, com o apoio da UFCE, sai Antologia Ilustrada dos Cantadores, do
professor Francisco Linhares e do cantador Otacílio Batista. E, em 1977, com as
assinaturas de José Alves Sobrinho e Átila Almeida, outra significativa obra vem ao
público: Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, editada pela
UFPB, na qual consta criterioso trabalho de informações sobre literatura popular em
verso. Já em 1979, o pesquisador Luís Wilson contribui com Roteiro de Velhos
Cantadores e Poetas Populares do Sertão e, em 1995, o cantador Geraldo Amâncio e o
escritor Vanderley Pereira publicam uma coletânea de poesia popular sob o título: De
Repente Cantoria. No ano seguinte, Otacílio Batista publica: Os Três Irmãos Cantadores,
com o apoio da prefeitura de João Pessoa. Todas estas obras elencadas precederam
Cantadores, Repentistas e Poetas Populares, de José Alves Sobrinho, que é o resultado
da soma entre a pesquisa e a vida, já que o autor – também exímio cantador - viveu entre
cantadores.
A propósito, fazendo um comparativo de épocas na vida dos cantadores, José
Alves Sobrinho reconhece que os de hoje desfrutam de um ambiente bem mais atraente,
com o rádio, a TV, os festivais, o acesso à universidade, enfim, alternativas de divulgação
que podem servir de canais para a socialização do poeta popular em todas as camadas
da população, diferentemente dos cantadores e poetas de algumas décadas passadas, os
quais sofriam discriminação de toda sorte, inclusive sendo muitas vezes tratados como
desordeiros. Este era o perfil traçado para o porta-voz dos anseios populares, o cantador,
o poeta popular, no início do século XX, o que, evidentemente, era uma impressão
distorcida, pois se tratava de pessoas simples, alfabetizadas, excluídas do rol da
sociedade elitista. Manoel de Almeida Filho, outro famoso cordelista brasileiro, um dos
sócios da Editora Prelúdio, que substituiu a Editora Luzeiro. Manoel d'Almeida Filho
(Alagoa Grande PB, 1914 - Aracaju SE, 1995). Publicou em João Pessoa PB, em 1936, A
Menina que Nasceu Pintada com as Unhas de Ponta e as Sobrancelhas Raspadas, seu
primeiro folheto. Entre 1965 e 1995 trabalhou como selecionador de folhetos de
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cordel para a Luzeiro Editora Ltda., em São Paulo SP, o que lhe conferiu grande
importância no mercado editorial do gênero. Em 1995 tornou-se membro da Academia
Brasileira de Literatura de Cordel, no Rio de Janeiro RJ. Escreveu dezenas de folhetos ,
entre os quais Vicente, o Rei dos Ladrões (1957), Peleja de Zé do Caixão com o Diabo
(1972), Vida, Vingança e Morte de Corisco (1986 ), Briga de São Pedro com Jesus por
Causa do Inverno. O Milagre da Apolo 13 (1986), Como Ser Feliz no Casamento (1988),
Os Amigos do Barulho e o Bandido Carne Frita (1991), A Afilhada da Virgem da
Conceição (1995); Francisco das Chagas Batista (pai de Paulo Nunes batista); João
Melquíades e Antônio Batista Guedes (tio de Paulo Nunes), foram cantadores e
cordelistas.
Na idéia do poeta Paulo Nunes Batista, já é tempo de se criar o Museu do Cordel,
para se somar às Casas do Cantador, à Fundação Casa de Rui Barbosa, onde há um
setor de estudos de literatura de cordel, do qual Sebastião Nunes Batista, irmão do poeta,
faz parte, e a tantos outros centros de pesquisa literária, a fim de permitir o resgate de um
vasto material histórico e objetos representativos da literatura popular.
Quanto aos trabalhos mais recentes produzidos pelo poeta, Paulo Nunes comenta
que foram publicados em Juazeiro do Norte – CE. Um deles, pelo amigo pessoal do autor,
professor Aldenor Benevides; outro, patrocinado por uma firma de Juazeiro – A Casa do
Pintor – com a colaboração da escritora Fátima Meneses. Em um dos folhetos o poeta
descreve a cidade de Juazeiro; e no outro trata da vida do beato José Lourenço e o “Boi
Mansinho”. Trata-se de um enfoque que registra uma das primeiras experiências
socialistas em solo nacional, tendo Juazeiro como palco, onde o povo recebia, de José
Lourenço, terra que lhe foi doada pelo Padre Cícero. Assim registra o poeta: “Ali tudo era
de todos/ não existia patrão/ reinava um socialismo/ espiritual cristão/ todos ali
trabalhavam/ e uns aos outros se ajudavam/ nas terras do caldeirão/ (...) Não havia
safadeza/ fome... latifúndio.../ a fama do Caldeirão/ se espalhou sertão afora/ (...) A inveja
dos coronéis/ contra o Caldeirão cresceu. Nas estrofes seguintes, o poeta descreve o
genocídio que se abateu sobre o Caldeirão, por força da intervenção brutal contra os
trabalhadores.
Afora estes folhetos, há que se registrar, também, a publicação de Sonetos Seletos
(2005), que reúne um bom número de sonetos do poeta Paulo Nunes Batista, sempre
com o brilho de sua verve. Na apresentação do livro, feita pelo professor, jornalista,
dramaturgo, folclorista e membro da Academia Paraibana de Letras, Altimar de Alencar
Pimentel, há o registro de sua apreciação sobre mais esta obra do poeta paraibano, e
mais um livro de sonetos. Assim comenta Altimar: “o soneto de Paulo Nunes nasce
97
espontâneo, livre, natural, com beleza imagética e conteúdo. Em boa parte de sua poesia
está o sentimento religioso, a busca do diálogo com Deus. Em outros, está a exaltação da
terra, o telurismo, a busca da infância perdida na contemplação da paisagem prenhe de
recordações. É esse lirismo o ponto mais alto da poesia de Paulo Nunes Batista”. Em “De
Mãos Acesas” (1981), consta um belo soneto, escrito em 1962, cujo título é:
Transfiguração, que aqui vem ilustrar o domínio do autor na elaboração deste formato de
poesia e atestar a sua criatividade no uso das palavras e no arranjo das idéias poéticas.
Mesmo que Paulo Nunes a si mesmo se coloque como “o menor dos figurantes na seara
cordelista”, não há como ignorar o seu potencial, no cordel ou no poema erudito, coisa
que ele não alardeia, mas também não nega ter certeza disso: “Faço poesia erudita e o
cordel do povo faço, tecendo o verso que brota nas asas do tempo-espaço em que respiro
e me movo”.
Sinto, na essência íntima da célula
no fundo da alma, no âm
A flor do lótus, na matéria imunda,
no milagre da flor, põe luz a rodo.
Transmuta, pois, a escuridão do engodo,
na Verdade – que é Deus, e a tudo inunda.
Às trevas, como o lótus, não maldigas.
Acende a tua humílima velinha
e aguarda a ajuda de outras mãos amigas.
Em vez de blasfemares, vai, caminha.
Ama e serve, que um lótus, na alma, abrigas
e o Amor de Deus não deixa a alma sozinha...
75
Certo é que, a fronteira entre o popular e o erudito, em poesia, é muito tênue e
chega a se misturar no poder criativo de vários poetas que, a exemplo de Paulo Nunes,
transitam entre as duas vertentes que, em última análise, partem da mesma inesgotável
fonte: a veia poética que alimenta o mundo maravilhoso da literatura, com beleza e
histórias e relatos impressionantes, a desafiar a imaginação de gerações e gerações. Sim,
esse é um mundo incrível e apaixonante que tem suas raízes na própria história da
humanidade, através dos séculos. Ainda hoje o fenômeno da capacidade de improviso
presente na memória do poeta popular que escreve ou canta e, às vezes, escreve-canta e
conta histórias fantásticas e fatos reais ocorridos na realidade social do povo ou no
imaginário popular, impressiona e atrai pesquisadores do mundo inteiro, como ocorreu
com pesquisadores do quilate de um Raymond Cantel, Mark Curran, Joseph M. Luyten,
entre outros que, junto aos pesquisadores e folcloristas brasileiros, desenvolveram
pesquisas e escreveram valiosos trabalhos que enfocam a temática da poesia popular e
sua importância na vida e na cultura do povo brasileiro, obras que atualmente são objeto
de estudo por parte de outras personalidades do mundo literário que se ocupam em dar
continuidade às análises do tema, sob os mais diferentes enfoques.
Há que se notar também que, em decorrência da repercussão da voz do repentista
e do varal de folhetos, vitrine maior do cordel, a poesia popular cantada e escrita
sensibilizou a setores da vida cultural do País, na literatura, música, artes plásticas e
cinema, a exemplo de José de Alencar (O Sertanejo), Jorge Amado (Jubiabá), Graciliano
Ramos (Vidas Secas), Zé Lins do Rêgo (Menino do Engenho), Ariano Suassuna (que, em
1947, com: Uma Mulher Vestida de Sol, fazia a sua estréia no teatro com uma peça
inspirada em folhetos), João Cabral de Melo Neto (Morte e Vida Severina); Villa-Lobos,
75
BATISTA, Paulo Nunes. Sonetos Seletos. Petrolina. Editora e Gráfica Franciscana. 2005.
99
Capiba, Cussy de Almeida; Gláuber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol); Dias Gomes
(O Pagador de Promessas); Ciro Fernandes, Gilvan Samico e Miguel dos Santos (artistas
plásticos), só para elencar alguns que, de uma forma ou de outra, incluíram em suas
obras a temática do cordel, e reconheceram sobretudo que o poeta, cantando o que o
povo sente, sentiram mais de perto a difícil vida difícil daqueles que, à margem das
regalias sociais, vivem (e viveram) excluídos das riquezas do seu País e de sua terra,
mas não se dobraram (nem se dobram) à servidão consentida. Viver, para eles, é um ato
de ousadia permanente, tal faz a flor do lótus que não se prende ao lodo, mas se alteia
acima das águas e desabrocha em beleza inigualável, tal o verso do poeta paraibano
Ascendino Alves dos Santos (1903-1946), que diz:
O poeta e a cigarra
Não nasceram pra chorar,
Cantam, cantam a vida inteira
Até a morte os levar
Ele canta pra viver
Ela vive pra cantar.
E o que dizer de versos assim, de um encantamento auditivo capaz de levar o leitor
a levitar “cum zói abertos”? Foram escritos por outro paraibano, José Martins, de Campina
Grande:
Lua bonita
Si tu num fosse casada
Eu perparava uma iscada
Mode i no céu te bejá
E si imbeiçasse
Teu frio cum meu calô
Pidia a nosso Sinhô
Mode cuntigo casá.
100
Ao voltar no tempo, em busca das raízes geradoras da arte de contar histórias em
versos – e de cantá-las também – para que se tenha um fio condutor que reúna passado
e presente no fazer poético da poesia popular, logo se vê que os registros mais antigos de
que se têm notícias e nos quais constam escritos de histórias heróico-cavaleirescas em
língua romance – ou derivado do latim dos romanos, daí o gênero “romance” – são
datadas do século XI. Há temas de romances narrativos do século XVI que se referem a
fatos acontecidos até no século VI. É certo que, com o advento da imprensa de
Guttenberg, em meados do século XV, os folhetos ganharam letra de forma e maior
facilidade de circulação nas feiras de rua. Já em 1475, apareceram os primeiros folhetos
na Espanha – os pliegos sueltos – e, no início do século XVI, em Portugal, sobretudo com
o sinal verde do Rei para que os cegos vendessem os papéis avulsos pelas ruas.
Considera-se, portanto, que ao tempo de Gil Vicente, é atribuída ao cego Baltazar
Dias, da Ilha da Madeira, a função de primeiro folheteiro de cordel em língua portuguesa,
posto que, em 1537, dom João III lhe concedeu direito de exclusividade para imprimir os
seus versos.
Baltazar Dias foi autor de inúmeras obras dramáticas: Auto de Santo Aleixo,
Auto de Santa Catarina, Auto do Nascimento de Cristo, Tragédia do Marquês de Mântua,
entre outros textos, o que o fez um dos autores mais publicados – e representados – do
século XVI, e um dos mais bem-sucedidos autores daquela literatura de cordel. No século
XVII, em Portugal, o hábito de dependurar os folhetos em barbantes, em locais públicos,
para chamar a atenção das pessoas, valeu a denominação de cordel aos folhetos
contendo as histórias romaceadas, mas a expressão só se dicionarizou com Aulete, em
1881, no seu Dicionário Contemporâneo. Claro que Portugal não foi o epicentro da
literatura de cordel, pelo menos não o único, pois há diversas fontes, a partir da Penísula
Ibérica – região localizada entre Portugal e a velha Espanha. Contudo, em Camões
(1524-1580) há elementos dessa cultura, assim como em Cervantes (1547-1616) e, no
Brasil, na obra do poeta baiano Castro Alves (1847-1871), e daí em vários países
hispano-europeus e da América do Sul.
É interessante registrar que, enquanto no Brasil o cordel sofreu restrições para se
estabelecer, por conta da indiferença de setores da cultura elitista, o Museu de
Etnografiade Neuchâtel, que é referência na Suiça e destaque no mundo, realizou uma
grande exposição: Literatura de Cordel, o Brasil dos Poetas, em 1995, organizada pelo
professor Jean-Louis Christinat, para mostrar a importância da poesia popular.
Promoções dessa natureza neutralizam comportamentos egoístas e tomados de desprezo
pelo que a inteligência popular produz, como se viu numa edição do Pequeno Dicionário
da Língua Portuguesa (1924), de Cândido de Figueiredo, impressa em Lisboa, no qual a
definição de cordel aparece de maneira desrespeitosa: “Cordel, m. Cordão, guita,
barbante (...) Livraria de Cordel, conjunto de publicações de pouco ou nenhum valor”. É
claro que tal definição não representa a opinião de outros grandes estudiosos das
manifestações populares na cultura de cada povo. Basta citar que, por influência do
professor Raymond Cantel, a figura legendária do Patativa do Assaré teve sua obra
estudada na Cadeira de Literatura Popular Universal da Sorbonne, em Paris, nos anos 80.
101
Não há como negar que o papel da informação na construção do conhecimento
tem uma importância fundamental, seja para manter uma cultura ou modificá-la. Assim é
que, na literatura de cordel, tal processo se dá através da inserção de conhecimentos
reproduzidos no seio da comunidade, permitindo a construção do saber dentro de uma
realidade cultural. Na medida em que as informações vão se sucedendo, até que se
estabeleça um sistema de valores cujo resultado é a própria identidade cultural da
comunidade. É sabido que uma nova informação pode aprovar a que já existe,
complementá-la ou mesmo alterá-la, o que é relevante, uma vez que os itens culturais
influenciam diretamente o processo construtivo da identidade cultural do indivíduo.
Logo, o saber pode ser alvo de questionamentos, desde que haja um fato novo
inquietante. Daí que a nova informação interfere no ambiente cultural já construído, e a
ele se acrescenta, inovando em cima do já conhecido, o que resulta na formação cultural,
tornando as questões históricas indispensáveis à compreensão da experiência cultural.
Nesta perspectiva, é preciso saber o que de fato é uma identidade cultural e a
abrangência de sua ação sobre o ser, o que provoca uma avaliação dos saberes em uso
e sua relevância no meio cultural.
Mas só se dá tal processo discursivo se se tem acesso à informação e, de posse
dela, se for capaz de compreender a sua ligação como elemento de sua cultura. É o que
se pretende buscar no decorrer desse texto, ao se proceder a análise dos conteúdos
presentes na literatura de cordel e as suas implicações no processo de construção e
manutenção da identidade cultural de um povo, sabendo que existem muitas outras
alternativas para tal empreitada.
No confronto entre os saberes adquiridos no decorrer da experiência individual e
aqueles que emergem da comunidade, dá-se a amalgamação do coletivo-cultural ao
indivíduo e assim a soma de conhecimentos que caracterizarão uma identidade cultural,
posto que a cultura expressa representativamente o pensar de um povo, espelhando suas
idéias sobre o mundo que o cerca
O valor conceitual pode advir dos bens culturais, porém o acesso às informações
que originaram tais valores é que vão assegurar, ao homem, a construção do seu próprio
juízo de valor. Daí que a identidade cultural se forma na vivência entre o passado e o
presente, o histórico e o moderno. Portanto, é fundamental a informação no bojo desse
processo de conhecimento. É, como já se disse, a dialética entre o conhecido e o
desconhecido, propiciando uma nova visão de mundo, numa ocorrência permanente que
se estende por toda a vida.
102
Depreende-se, portanto, que a comunidade sempre irá se deparar com novos
contextos e, a partir daí, terá que lidar com o inevitável confronto de valores, para
desaguar na construção de sua identidade, que é uma busca constante do homem face a
seu papel social, preservadas as diferenças individuais.
No tocante à literatura de cordel, a variedade de informações e temáticas aponta a
riqueza e a versatilidade dos assuntos tratados, sendo então real fonte de pesquisa para
muitas áreas do saber. Está presente no cordel, sobretudo no cordel nordestino, uma
variedade de misturas culturais, o que favorece a diversidade de temas abordados, sob a
ótica das variantes predominantes. Os relatos ora são apresentados literalmente, ora
sofrem acréscimos ficcionais de acordo com o nível emocional do poeta e o perfil cultural
em que se enquadra. Proença (1982, p. 43) informa que a literatura popular não é apenas
imaginação. É também observação, o comentário, a crítica da vida cotidiana. E sob esse
aspecto ela se aproxima, vivamente do jornalismo. Nesse contexto, a criatividade do
poeta é dirigida a tornar o texto atrativo pela presença de sua bagagem cultural que soma,
ao real, o imaginário. Lopes (1983) enfatiza que, ainda que se inclua numa categoria
menos refinada de erudição, no tocante ao léxico, contudo em nada isso diminui o caráter
informacional que situa o homem em relação ao meio. Então, exatamente pela dinâmica
cultural que rege os ambientes em que se encontra o poeta, assim também a sua
produção será tomada dessa influência, por isso ora se apresenta conservadora, ora
contestadora, o que contribui diretamente para a riqueza histórica, artística e musical,
entre outras manifestações da cultura nordestina, onde o cordel floresceu e fincou suas
raízes. Em “A Invenção do Cotidiano” (Vozes, 1994), Certeau deixa claro que um povo só
se mantém vivo quando suas crenças chegam às novas gerações. A Literatura de Cordel
tem cumprido exemplarmente este papel ao longo do tempo. Sendo, então, o Nordeste o
terreno fértil onde a “muda” do cordel, vinda da Europa, foi plantada e vingou, se
transformando numa frondosa árvore cheia de belos frutos que é esta manifestação
artístico-cultural de inegável significação para o povo nordestino e, por extensão, para o
Brasil, na medida em que enfoca múltiplas questões pertinentes à sociedade brasileira,
seja de ordem econômica, social, religiosa, histórica e científica, é fundamental que se
divulgue a sua importância sócio-informacional, realçando o seu valor histórico. A partir do
pioneirismo de Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista na impressão
dos folhetos, o cordel toma corpo, mesmo não sendo eles cantadores, que era a função
de outros poetas do mesmo período, mesmo fora da serra do Teixeira, epicentro do cordel
nordestino.
103
As características estruturais do Nordeste, com o quadro de separatismo que
colocava, de um lado, os senhores de engenho, os coronéis, políticos e seus familiares; e
do outro, os excluídos dos bens produzidos, sujeitos a toda sorte de descaso, marcados
pela seca, favorecia manifestações messiânicas, quase como uma espécie de ascese,
bem como também o eco da voz que gritava por livramento daquele estado de miséria,
seca, e foi a voz do poeta popular que serviu de porta-voz desse grito, ora através do
repente, ora do cordel, numa linguagem musical de indelével beleza artística, o que veio
consolidar já no final do século XIX e princípios do século XX, a distribuição do cordel no
Nordeste e, em seguida, pelo Brasil. Curiosamente, não obstante a sua entrada via
colonização européia, mais precisamente, via Portugal, no solo brasileiro do nordeste, o
cordel cedo alcançou sua maturidade ou sua nordestinidade, tratando quase que
exclusivamente dos assuntos ligados à realidade local, pelo que se fez presente na
literatura dita elaborada, como ocorre no Auto da Compadecida, de Suassuna,
Macunaíma, de Mário de Andrade, Jeca Tatuzinho, de Lobato, Morte e Vida Severina, de
Cabral de Melo Neto, num intercâmbio saudável entre o popular e o erudito, o que
confirma o poder informático de que se alimenta o cordel. Sem dúvida, há no cordel uma
iniciação à instrução, ao lúdico, na medida em que o imaginário se alimenta de sua fonte-
base, as camadas populares.
Decorrente deste papel informacional, a linguagem do cordel é, por assim dizer,
narrativa, pois recria, em versos, a memória cultural de que se acerca, quando põe em
evidência os “causos”, as lendas, envolvendo o narrador-contador com o leitor-ouvinte, o
que torna relevante a escritura dos poetas populares, mesmo que não seja este um jogo
lingüístico exclusivo do cordel. O certo é que a voz do cordel recupera – e mantém - um
discurso comunitário, cujo eco secular se espalha nos cânions do tempo histórico. Essa é
uma das características presentes na poesia popular: a capacidade de imprimir oralidade
à escrita, sem que tal implique em perda de qualidade em relação ao artístico, pois “os
narradores populares, em qualquer época e em qualquer povo, são detentores de uma
técnica altamente sofisticada, aprendida oralmente no seio da própria família ou em
corporações de cantadores. Esta linguagem, no caso da época oral, por exemplo, possui
uma verdadeira gramática cujas regras são capazes de imprimir ao relato uma
organicidade perfeita” (José Carlos Leal, 1985, p. 15).
O cordel, desse modo, chega a ter uma escritura bem próxima da narrativa
artesanal a que se refere Walter Benjamin (vide O Narrador, 1985, p. 121-197). É que, na
antiga sociedade artesanal – não industrializada – se sobressai o narrador da tradição
oral, fonte de repasse da tradição vigente na memória da comunidade, onde a própria
104
lentidão dos relatos e a sua incompletude, favoreciam a inclusão de novos fragmentos.
Assim, de pai para filho, tais relatos eram preservados, por gerações a fora. Na
modernidade, período que sucedeu o anterior, o narrador do romance – do qual também
se ocupa Benjamin – agora dentro de uma sociedade industrial competitiva, marca a sua
presença por um processo de registro individual, onde o texto chega ao leitor solitário,
isolado no ato da recepção. A narrativa aqui é desprovida da ação de passar sabedoria,
perde aquela dimensão utilitária vista no narrador artesanal, até porque no atual contexto
o sujeito se exime dessa responsabilidade, uma vez que as nossas impressões sobre o
mundo estão atreladas aos sistemas de comunicação que operam de forma vulcânica, e
quase nada de observações pessoais, seja como indivíduos ou no cerne da comunidade.
O narrador pós-moderno, atropelado pela rapidez – e descontinuidade – das experiências
vividas, finda narrando apenas informações.
Daí que, pelo formato assemelhado à tradição oral, contendo narrativas curtas, o
cordel se apresenta como foco de resistência em defesa da narrativa artesanal, contra a
corrente que deságua uma enxurrada de informações que afogam as relações de
reciprocidade entre as pessoas, e subtraem o oxigênio da consciência histórica,
apagando a memória individual e coletiva.
É bom esclarecer que há dois tipos de narrativas: as orais, que se apresentam em
verso, cujo representante é o aedo ou cantor grego; e as orais em prosa, cujo
representante é o contador de histórias das sociedades ágrafas. O pesquisador José
Carlos Leal assim diferencia esses dois tipos de narrador comunitário:
“(...) o narrador tradicional do conto popular não possui
como o narrador épico um grau de formalização que tenha de
conscientemente seguir. Enquanto narra, ele não está
preocupado com o número de sílabas, com a divisão dos
períodos ou com o tipo de oração que está sendo usado
76
A considerar tal fato, parece lícito que se veja no cordel um certo hibridismo capaz
de juntar, a um tempo, aspectos da linguagem dos aedos, a exemplo dos padrões
rítmicos e de versificação, e a linguagem do contador de histórias, com sua vibração
característica, um jeito sensacionalista de usar a voz e a gesticulação.
76
LEAL, José Carlos. A Natureza do Conto Popular. Rio de Janeiro: Conquista, 1985
105
3.2. A poesia de Carlos Severiano Cavalcanti
O poeta Carlos Severiano Cavalcanti, atualmente domiciliado em Recife – PE,
onde mora com a família, é uma daquelas pessoas de uma amabilidade extraordinária,
capaz de dedicar uma tarde inteira a contar a sua história de vida – e que História! –
relembrando pontos importantes de sua vida pessoal, de sua luta para alcançar um
equilíbrio entre o ser e o ter, sem jamais se descuidar dos ensinamentos paternos de sua
infância e juventude, muito bem vividas no vizinho estado da Paraíba, na Fazenda Monte,
de propriedade da família, onde o menino Carlos ouvia o pai Joca, como era chamado
Seu João Severiano Cavalcanti, a lhe contar histórias que mais tarde iriam sedimentar a
formação intelectual do futuro poeta, sempre atento aos relatos de assuntos um tanto
estranhos para a sua idade, mas que o Pai achava oportuno informá-lo, já pensando na
formação educacional e solidez de caráter do guri. Lá estava Seu João a torcer pela
vitória das forças aliadas, temendo pelas idéias fascistas de Getúlio Vargas. O menino
Carlos realmente teria que ser esse guerreiro que é, afinal de contas nasceu num período
em que se colhia os frutos amargos da Primeira Grande Guerra e às portas de um novo
conflito, a Segunda Grande Guerra, nascia mais exatamente um ano após a chamada
Intentona Comunista de 1935.
A propriedade da família, a Fazenda Monte, que chegou a integrar a relação das 10
maiores produtoras de algodão da Paraíba, ficava no então Distrito de Queimadas – hoje
município, com uma população em torno de 38.500 habitantes. O garoto Carlos já iniciara
sua vida com uma herança paterna: o gosto pelas letras e o interesse em aprender a
utilizá-las. Além disso, a natureza – que o poeta denomina de “O Livro da Sabedoria”, se
constituiu num impressionante marco de indeléveis lembranças e ensinamentos que hoje
povoam o perfil poético de que estão impregnados os seus versos. Vivendo no campo e
convivendo com o camponês e a realidade dura e irredutível das intempéries climáticas,
além das dificuldades advindas da falta de apoio estatal para quem vive do e para o
campo, impedido de desenvolver os estudos, muitas vezes sujeito ao êxodo rural, entre
outros desafios; é claro que o jovem Carlos Severiano Cavalcanti haveria de absorver
estas experiências e sedimentá-las em sua memória pelo resto da vida.
106
Ao descobrir o caminho da capital pernambucana, em busca de um lugar ao sol,
veio o jovem Carlos para Recife, mas um infortúnio o levou de volta ao torrão natal: a
morte do pai, em 1954. A fazenda passou a outras mãos. A genitora, Dona Adélia, veio
para Recife. Agora, era vez de Carlos prover a subsistência da família. E o fez, aos 17
anos de idade, com extremada dedicação, pondo em prática os preciosos ensinamentos
de Seu genitor. Teria que conciliar sua obstinação pelos estudos com o trabalho.
Conheceu aquela que se tornaria sua esposa, em 1958, com ela contraindo núpcias em
1961. Vieram os filhos: Valéria, Carlos André e Sonaly. Em 1960, trabalhou em Guarabira,
onde residiu por uma década, tendo a cidade o acolhido como Cidadão Guarabirense,
título que fazia jus ao mérito do seu tino comercial e suas incursões pela vida cultural da
cidade. Em 1970, de volta a Recife, continua suas atividades comerciais, mas o lado
intelectual aflorava cada vez mais, decorrente de sua inclinação para a leitura, daí que
logo chegou à Escola Superior de Relações Públicas, em 1972, obtendo um honroso 5º
lugar e se tornando um aluno destaque, exercendo, inclusive, a monitoria do Prof. Jomard
Muniz de Brito, na cadeira de Comunicação Social. Em 1976, concluía, laureado, e
escolhido para orador da turma. Mais tarde, fez pós-graduação em Pedagogia da
Comunicação e ensinou onde havia estudado, na ESURP.
Cedo o poeta começa a despontar na vida do cidadão Carlos Severiano, quando já
participava de momentos poéticos em ocasiões sociais, e sua produção recebia a
acolhida entusiasta dos ouvintes. Assim ocorreu, em 1967, com um poema em
homenagem a Guarabira (Manhãs de Guarabira) lido pelo então deputado Sílvio Porto e
em seguida publicado no Informativo do Clube Cabo Branco de João Pessoa. Dois anos
depois, o crítico literário Virgínius Gama e Melo, ouvindo depoimento do já citado
deputado Sílvio Porto, sobre os trabalhos poéticos de Carlos Severiano, assim se refere
ao poeta: “E o que vem é literatura, literatura da boa, cristalina (...) e vou me dando por
feliz, nessa hora, em que ganho mais esse nome para admirar: Carlos Cavalcanti”.
(Correio da Paraíba, 26/09/68). O também paraibano Antônio Freire, jornalista, intelectual,
reconheceu o talento do poeta, ao destacar trechos de um soneto que Carlos escrevera
sobre a Revolta do Quebra-Quilos.
Assim é que, em 1997, o poeta reúne uma série de poemas sob o título geral de
Caminhos da Vida (Bagaço), livro que lhe abriu as portas de novas amizades, sobretudo
no mundo acadêmico, e trouxe para o grande público aquilo que já era sabido: o trabalho
poético construído com firmeza, sentimento e qualidade. Ao prefaciar a obra, Ronaldo
Cunha Lima assim se expressou:
107
“A poesia de Carlos Severiano Cavalcanti, reunida neste
Caminhos da Vida, é profusa e fluente, confidencial de vivências
e de sentimentos experimentados, evocadora de acontecimentos
e de leituras, marcada sempre pela efusão verbal de um canto
preciso e claro”.
77
Em outra obra, que recebeu o título: A Terra e o Sol Refletidos no Caminho
(Bagaço, 2000), Carlos Severiano volta a trazer para a nossa leitura, novos e ritmados
poemas, cheios da claridade própria de quem conhece a região por onde anda, seja
geográfica, seja a poética. Até porque, em Carlos, o termo melhor seria geopoética, pois
ele caminha pelas veredas que levam a mil lugares e temas, sob a batuta de um maestro
da rima e da métrica, do arranjo musical que faz dos seus versos parte de uma melodia
solfejada pela alma adentro, cujo eco se espalha nos corações e no intelecto. Flávio
Chaves, no prefácio, comenta:
“É interessante notar que tanto em Caminhos da Vida,
como em Reflexos de Terra e Sol, o poeta, um Severino às
avessas, refaz o caminho da volta partindo do mar em direção
ao Sertão. Inicia os dois volumes com sonetos, passa pela
poética dos violeiros até os Zé de Bius da vida”. Continua Flávio
Chaves: “Ele canta o amor, o Nordeste, os temas bucólicos, tudo
em sonetos, glosas, martelos”.
78
E mais recentemente, o poeta vem a público com outra obra: Sertanidade (edição
do autor, 2004), na qual sua veia poético-telúrica se mostra ainda mais afinada com a
região, quando reúne um grupo de poemas que expressa um nível de emoção lírica, mas
acima desse aspecto, revela o seu poder de evocação em perfeita harmonia com a
criação que consubstancia o conjunto poético presente nesta obra. Outro poeta de
qualidades excepcionais, que a pouco nos deixou órfãos de sua companhia querida e de
seus versos inspiradíssimos, o saudoso poeta Waldemar Lopes, escreve um texto que faz
parte de Sertanidade, com o qual se dedica a elencar valores da poesia de Carlos
Severiano, diz:
“O que é notável, (falando sobre a tonalidade da
evocação presente na obra) sob esse aspecto, em que, decerto,
bem poucos superarão Carlos Cavalcanti, é a fidelidade, a
exatidão, o poder de memória com que ele reconstitui, em seus
versos, o ido e nunca esquecido. Tudo está vivo e gravado, seja
imagem ou som, no mais fundo do seu ser, e são
77
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Caminhos da Vida. Bagaço. Recife. 1997
78
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Reflexos de Terra e Sol. Bagaço. Recife. 2000
108
impressionantes a rapidez e espontaneidade com que é
transformado em textos poéticos”
79
.
Carlos Cavalcanti afirma que, de posse das imagens e reflexões da infância-
juventude, acrescentando-se as lutas pessoais pela vida afora, em busca de se
estabelecer no trabalho e nos estudos, todo esse cabedal de influências firmaram, em sua
vida, a base do que seria mais tarde o nascedouro de suas inspirações poéticas. Há
também o fato de que nunca se descuidou da leitura. Por isso o poeta dedica um dos
seus poemas à sua primeira professora, Sinhá, que lhe iluminou o caminho do saber:
(...)
“Porém Quando tu chegaste,
A luz verde se acendeu,
Pela chama do saber,
Pela luz dos olhos teus,
De repente iluminaste
O meu sonho de menino,
Deste rumo ao meu destino,
(...)
Transmitiste o teu saber
Para a minha inteligência,
(...)
Despertaste o humanismo
Neste jovem camponês;
Co’a riqueza da temática,
Nas aulas de matemática,
De história e português,
Com ditados e leituras,
Noções de literatura,
(...)
E paciente ensinavas
(...)
Porque tu iluminavas
Os meus “Caminhos da Vida”.
80
Quando interrogado sobre o aspecto estrutural dos seus poemas, a versatilidade
das rimas, a segurança da métrica, que se encaixam tão bem à diversidade temática,
sobretudo em defesa da terra, da natureza, do homem trabalhador da roça, do engenho,
enfim, da vida que pulsa no ritmo da poesia, Carlos responde que, além das leituras que
fazia espontaneamente, num contato com bons autores da Literatura Brasileira, não deixa
de citar, também, o aprendizado de técnicas de metrificação com o poeta paraibano
Abdon Miranda, que recentemente foi homenageado (in memoriam) pela família e amigos,
79
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Sertanidade. Recife: Edição do Autor, 2004
80
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Caminhos da Vida. Bagaço. Recife. 1997, p. 166
109
com o lançamento de um livro biográfico, contendo poemas e informações sobre a sua
vida, obra que recebeu o título: O Poeta de Curimataú. Deste contato com Abdon
Miranda, Carlos Severiano muito aprendeu sobre a disciplina métrica da poesia clássica,
assim como da poesia popular, o que representa um fato relevante, pois Carlos
Cavalcanti é erudito e produz, também, poesia popular, com a mesma competência de um
cordelista ou repentista, como se verifica, por exemplo, em alguns dos seus poemas em
Sertanidade, os quais são a um só tempo, clássicos e populares, numa demonstração de
domínio da técnica e do fazer poético. Numa declaração de humildade, Carlos afirma que
o binômio: Natureza e Leitura representam o suporte cultural de sua existência. Diz o
poeta: “A natureza - O Livro da Sabedoria - e os demais livros são a fonte onde bebi os
meus parcos conhecimentos”. Por isso, diz ainda o poeta: “Vivo em função da palavra”.
De fato, foi com o uso da palavra poetizada que Carlos Severiano Cavalcanti cruzou os
umbrais acadêmicos, inicialmente na UBE e depois nas academias espalhadas pela
cidade que o recebeu de braços abertos, Recife. Membro, entre outras instituições
literárias, da UBE (União Brasileira de Ecritores); UBT (União Brasileira de Trovadores),
Academia Recifense de Letras; ALANB (Academia de Letras e Artes do Nordeste
Brasileiro), além de detentor do prêmio literário: “De Lyra e César” de poesia (APL, 2001),
e Menção Honrosa em concurso promovido pela SOBRAMES da Bahia e prêmio
“Valdemar de Oliveira”, pela SOBRAMES-PE, em 2002. Autor de várias obras, entre as
quais: Caminhos da Vida (Bagaço, 1997), Reflexos de Terra e Sol (CEPE, 2001),
Sertanidade (2004). Falando sobre o autor, o também poeta Dirceu Rabelo assim se
expressa:
“Fluência de imaginação, consciente manejo do verso e
invulgar conhecimento de um vocabulário próprio do linguajar
nordestino, (...) completo domínio das técnicas de expressão
formal com que constrói os versos, seja nas trovas ou nas
glosas, seja nos sonetos ou nos poemas longos, (...) numa feliz
simbiose entre o ritmo e a metáfora, componentes sem os quais
não se pode falar de poesia”.
81
Corroborando com as sábias palavras do poeta Dirceu Rabelo, outros nomes da
cultura literária juntam suas opiniões sobre o poeta Carlos Cavalcanti: Paulo Camelo
assim se expressa:
81
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Sertanidade. Recife: Edição do Autor, 2004, p. 23
110
“Os ritmos familiares do galope e do trote dos cavalos, o
som da roda e do rodete da casa-de-farinha, o pio do guariatã
impregnaram sua mente e seus ouvidos e, quando deu por si,
era um poeta, a fazer glosas (relembrando o som dos
cantadores), enveredando pela estrutura e pelos caminhos da
poesia, ao compor sonetos e outros poemas metrificados.”
82
Outro acadêmico, Olímpio Bonald Neto, poeta olindense, assim se expressa:
“Poeta erudito privilegiado por ser igualmente
espontâneo, repentista nato, de alma plena da poesia da vida,
como bom sertanejo que é, sabe domar o metro e com isto
alcança sucesso navegando com grande versatilidade por
muitas formas poéticas, desde o soneto alexandrino ao metro de
sete sílabas”.
83
Sobre novas obras, o poeta confirma a existência de três livros inéditos:
Trovalizando a Redondilha, A Gênese do Tempo (poesias) e um de contos.
Vale a pena verificar a aplicação do formato de poesia popular dentro da poesia
clássica, um uso senão exclusivo, pelo menos inusitado, que o poeta inclui no seu
trabalho Sertanidade, em alguns textos. Vejamos: No soneto Memórias do Campo, o
poeta usa a forma clássica – o soneto – mas lhe imprime o ritmo do Galope à Beira Mar,
como ilustra a primeira estrofe abaixo transcrita:
Retalhos de nuvens galopam no espaço
Tangendo o luzeiro de estrelas brilhantes.
Nas tardes de abril os poltrões esquipantes
Levantam poeira nos treinos do passo.
84
Assim ocorre também no soneto: Poema da Chuva (Sertanidade, p. 159) e
Sequidão, (Sertanidade, p.160), nos quais a cadência rítmica segue a acentuação
adequada ao Galope à Beira Mar: na 2ª, 5ª, 8ª e 11ª sílaba, como se vê na primeira
estrofe de cada um deles, nas transcrições abaixo, conforme a ordem das citações aqui
referidas:
Moedas de prata caídas na rua,
São pingos da chuva no asfalto a brilhar,
82
Idem, p. 169
83
Idem, p. 167-168
84
Idem, p. 158
111
Peneira de nuvens nas brumas do mar,
Cortinas de sóis e farrapos de lua.
85
Ó chuva que chove no meu coração
Cavalga no vento levando saudade.
Neblina volátil, calor, soledade
Guardando lembrança da voz do trovão.
86
Há também o ritmo do Martelo Agalopado (dez pés, com acentuação na 3ª, 6ª e
10ª sílaba de cada verso, e os dois últimos versos encaixando o mote combinado), tal
ocorre com: No Castelo das Pedras Sertanejas Brilha o Sonho do Povo Brasileiro
(Sertanidade, p. 49):
Nos lajedos das serras nordestinas
Fulge o sol com maior intensidade,
Procurando acordar a humanidade
Para ver a importância das neblinas
Quando a relva ressurge em pequeninas
Folhas verdes por sobre o tabuleiro.
Reverdece a jurema, o marmeleiro,
Caroçudos, lembrando brotoejas.
No castelo das pedras sertanejas
Brilha o sonho do povo brasileiro.
87
Já em A Fala do Povo (Sertanidade, p. 83) o poeta faz uso da redondilha menor
para construir um longo poema de curiosa associação de rimas, além de um vocabulário
de uso popular. Deste, citaremos um fragmento, com o qual é possível a comprovação do
que aqui é mencionado:
85
Idem, p. 159
86
Idem, p. 160
87
Idem, p. 49
112
Um galo com gogo
Um papa-capim,
Piolho, mucuim,
Lagarta-de-fogo.
Fugir do lacrau,
Caçar bacurau,
Fazer o cigarro.
Cachimbo de barro,
Purgante de azeite,
A nata do leite,
A serra cinzenta,
Montar na jumenta,
Pegar serra-pau.
88
Sertanidade, portanto, oferece toda uma variedade temática e estrutural, que vai do
erudito ao popular, como ocorre num texto em que o poeta louva os 90 anos de idade de
sua inesquecível professora Sinhá, a quem ele dedica: Eu Canto em Galope na Beira do
Mar, e aí faz uso integral da forma e do ritmo dessa modalidade poética, com a qualidade
técnica de um especialista e erudito que é, quando se debruça na elaboração de um
decassilábico soneto, com acentuação na sexta e décima sílaba. Ele mesmo cuida de
trazer a explicação:
Quando me inspiro e escrevo versos, quando
Busco na mente a forma de expressão
Que o pensamento impõe, de supetão
Sinto na alma um peso formidando,
Um iceberg oculto, pressionando
O raciocínio, a arte, a intuiçõ
E o conhecimento vai se resvalando,
Ora carente, ora em profusão.
89
A poesia de Carlos Severiano Cavalcanti vem mostrar, também, que a vida do
trabalhador sertanejo, a vida do trabalhador da cana de açúcar, enfim, a vida do homem
que luta para obter o seu sustento, a sua subsistência, tema retratado com tanta precisão
pelos poetas populares, também é suporte temático na poesia erudita dos poetas que se
88
Idem, p. 83
89
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Caminhos da Vida. Bagaço. Recife. 1997
113
dedicam a divulgar as agruras da vida do trabalhador rural, na roça ou nos engenhos
pernambucanos. Ainda mais quando se sabe que o poeta Carlos Severiano Cavalcanti, é
homem de experiência rural, vivida com a sua família, desde a infância, em terras
paraibanas do então Distrito de Queimadas, hoje município, onde estava fincada a
Fazenda Monte, propriedade da família, uma das dez maiores produtoras de algodão da
Paraíba. O futuro poeta, à época o menino Carlos, aprendia com o seu genitor, Seu João
Severiano Cavalcanti, ou simplesmente pai Joca, a gostar da leitura e a querer saber
sobre o mundo. E foi convivendo com os moradores da região que o poeta Carlos
Severiano Cavalcanti conheceu a dureza da vida agrária, as adversidades que se
colocam entre o trabalho e o estudo, o descaso para com o fruto do trabalho exaustivo da
lavoura e da criação de animais, determinante do êxodo rural.
Assim, sua poesia resgata a memória dessas experiências vividas e projeta-se
como um raio de anunciação às novas gerações, talvez para que, nos tempos atuais, a
vida ofereça mais oportunidades para todos, seja o trabalhador da roça, seja o
trabalhador do corte de cana. E é para este trabalhador que o poeta dedica o poema
Quinguingu, incluído no seu livro Reflexos de Terra e Sol, publicado em 2000, pela CEPE,
e encenado por um grupo de Teatro do SESC-SP, que além de apresentações no sul-
sudeste, já levou este trabalho para Portugal, apresentando-se em Lisboa e na cidade do
Porto. No Nordeste, o poeta teve o privilégio de ver o seu texto encenado em João
Pessoa, por este grupo teatral, diante de um grande público que aplaudiu, de pé, o autor
do poema.
A Zona da Mata é cana,
A zona da cana mata,
Essa vida essa cana
Que me fazem bóia-fria,
Que me causam todo dia
Nessa zona, nessa mata.
Eu não tenho um quinguingu,
Não consigo um caititu
Com mandioca e cevadeira
Para tirar manipueira,
Juntar goma do beiju.
Só me resta a bagaceira
Nesse gume dessa palha,
Afiada qual navalha
Na batalha dessa cana.
É sacana essa cana
Que me traz a bóia pura,
Sem sustança, sem mistura,
Até mesmo a rapadura
114
Não me chega todo dia.
É sina do bóia-fria
Que nessa monocultura
Mata a fome com angu
E dança maracatu
Esquecendo a triste sorte.
Sou caboclo deste Norte,
Aguardando um quinguingu,
Um roçado de foreiro.
Sou da foice, sou enxadeiro,
Pago foro na semana,
Procuro vida pacata.
A Zona da Mata é cana,
A zona da cana mata,
É sanana essa cana.
A Zona da Mata mata,
A Zona da Mata é cana.
90
Para quem “vive em função da palavra”, como ele mesmo diz a seu respeito,
Carlos Severiano não poderia ser melhor homenageado, pois ele afirma que a sua
inspiração poética é a soma desse aprendizado com a natureza – o livro da sabedoria – e
a leitura, que aprendeu a amar, ouvindo e lendo, e lendo muito pela vida afora. Em outro
poema, elaborado em redondilha menor, Cavalcanti chega a dizer:
“Na terra da Mata,
sem mata na terra,
a cana retrata
o verde da serra
(...)
A cana germina
após o caboje.
Fartura no alforge
do rico patrão
(...)
Na terra da Mata
a cana tremula,
a fome pulula
o açúcar se exporta”.
91
E assim vai o poeta traçando o perfil canavieiro que não deixa de ser ambíguo, pois
atende aos interesses de uns, que da cana tiram (e bebem) o caldo e o saldo, enquanto
outros, apesar do trabalho, continuam a vida mais para bagaço do que mel.
É de se compreender que a obra do poeta Carlos Cavalcanti não brilha só no
arranjo e na versatilidade dos versos que se apresentam harmonizados por uma
90
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Reflexos de Terra e Sol. Bagaço. Recife. 2000, p. 104
91
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Sertanidade. Recife: Edição do Autor, 2004, p. 111-112
115
habilidade de rendeira com os bilros, onde cada ponto do bordado, marcado com os
alfinetes, vai se firmando na tira que toma forma, na medida em que suas hábeis mãos
manipula os bilros e mantém a linha sob o comando de sua inteligência – e paciência.
Assim faz o poeta, bordando versos com os bilros das rimas e o desenho imagético do
ritmo, conduzindo as palavras numa cadência impressionante, sobretudo quando faz uso
de um vocabulário inteiramente afeito às lides nordestinas, com uma característica que
vai além da referência meramente telúrica para se deter, também, numa visão documental
dos falares regionais, com uma precisão antropológica de pesquisador. Há, na poesia
desse paraibano-pernambucanizado - expressão ao gosto do mestre Gilberto Freire –,
uma espontaneidade de memória, onde a evocação se faz até mais forte do que a
criação, sem que uma dispense a outra. Salta, do seu vocabulário, a palavra afeita ao uso
rural, que retoma a vida adolescente fixada na experiência do poeta, comprovando que a
vida que dá vida aos versos nasce bem mais além do manejo semiótico das palavras,
posto que é a vida do próprio poeta. Waldemar Lopes, poeta pernambucano de grande
sensibilidade, diz, falando sobre a criação poética de Carlos Cavalcanti:
“Os contatos mais diretos e constantes com a fauna e a
flora, nos múltiplos valores de sua insuperável riqueza, dão
contribuições inexcedíveis para o patrimônio subjetivo de
lembranças e memórias em que se abastece a inspiração para
conceber e elaborar a boa poesia”. E conclui: “É o caso de
Carlos Cavalcanti, com os seus poemas espontâneos e
descritivos, nos quais é tão forte e autêntica a presença de sua
terra e de sua gente sertaneja”.
92
Em outro texto: Poema, o poeta se interroga:
“Que mais posso eu falar sobre o poema?” e conclui: “O
poema tem tanta inspiração, que chega a começar quando
termina!”
93
A propósito do que aqui se expõe, convém fundamentar tais assertivas com o apoio
de alguns textos adicionais, para que se proceda a análise e se demonstre a analogia
com as narrativas artesanais, tendo em vista a presença de traços narrativos
impregnados no texto de cordel, a revelar aspectos da cultura tradicional, a partir dos
temas abordados. Sejam tradicionais – aqueles “conservados inicialmente na memória e
hoje transmitidos pelos próprios folhetos” - ou circunstanciais, “acontecimentos
92
Idem, p. 35
93
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Caminhos da Vida. Bagaço. Recife. 1997, p. 84
116
contemporâneos ocorridos em dado instante e que tiveram repercussão na população
respectiva” – conforme assim os classifica Sebastião Nunes Batista em sua obra:
Antologia da Literatura de Cordel (1977, VII). É o que se lê, por exemplo, no texto do
poeta Carlos Severiano Cavalcanti, onde adota uma postura narrativa para anunciar a
morte de Patativa de Assaré:
Bastante cansado, depois dos noventa,
morreu Patativa na sua Assaré.
Um homem da terra, poeta de fé,
a morte do mestre o seu povo lamenta.
Na “triste partida”, vestiu-se cinzenta
a página inteira do verso matuto.
O povo sentindo lhe rende um tributo
chorando e cantando de forma expressiva.
Nas asas do tempo voou Patativa
deixando Assaré mergulhada no luto.
Vestida de preto se encontra a peleja
peleja do verso do nosso sertão.
Morreu Patativa, o grande artesão
da língua da terra, da voz sertaneja.
Cá dentro do peito minha alma lateja,
lateja e procura sair do reduto
sentindo a influência que vem do produto
daquela linguagem tão persuasiva.
Nas asas do tempo voou Patativa
deixando Assaré mergulhada no luto.
94
(Texto construídos tendo por tema o mote expresso nos
dois últimos versos)
Ou ainda, quando o poeta, incitado pelo mote sugerido por Ariano Suassuna,
responde sobre o sonho do povo brasileiro, sobretudo o povo nordestino (Sertanidade,
2004, p. 49-51):
Ó sertão, renitente e lutador,
teu exemplo de garra e otimismo
faz do sonho um concreto realismo
(...)
O domínio das forças emergentes
não sufoca o poder da maioria,
não consegue afogar a poesia,
nem destoa a cadência dos repentes.
(...)
94
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Sertanidade. Recife: Edição do Autor, 2004, p. 73
117
No teu solo chumboso e ressacado,
onde a lua desponta feito tocha,
o sonho do teu povo é igual à rocha,
resistente, tenaz, determinado.
Ó sertão, fortalece esse teu brado
euclidiano, forte e verdadeiro,
quanto à saga de Antônio Conselheiro
destruída por forças malfazejas.
No castelo das pedras sertanejas
Brilha o sonho do povo brasileiro.
95
Nos textos acima citados, mesmo em se tratando de fragmentos, percebe-se a
linguagem do narrador a buscar o leitor/ouvinte com emotividade, para lhe contar algo. Os
mecanismos de que faz uso na articulação da narrativa – a preparação da notícia,
metáforas, e até mesmo a antecipação da notícia já no início do relato – estabelece uma
ligação direta com o leitor, como se o que se conta ocorresse no ato da narrativa.
Não obstante os entraves advindos da vida moderna, na qual a cultura também
virou objeto de venda/consumo, sufocando o seu papel mais memorial, a literatura de
cordel se torna importante exatamente por se fazer resistente ao canto da sereia da
industrialização, resguardando os valores do saber popular. Com um olho no passado e
outro no presente, mantém a configuração original de sua escritura e de sua mensagem,
sem abdicar de sua postura poética vinculada à narrativa artesanal, que retoma o tempo
do passado sem perder o bonde da história.
No cordel, a metalingüística segue o caminho do reconto da realidade e não da
ruptura com esta, considerando que o narrador, através do seu discurso, atualiza a
história para os ouvintes, e a transforma em fonte de sabedoria e não só de recorrência
ao passado, assegurando um efeito de realidade que o credencia, mesmo que o relato
apresente traços ficcionais implícitos. Como diz Benjamin: “o narrador é um homem que
sabe dar conselhos” (1985, p. 200), ao se referir à utilidade para além do aspecto
meramente artístico do texto narrado, mas antevendo no intertexto elementos instrutivos,
carregados de normas de vida, provérbios e ensinamentos, a exemplo do que se lê no
desabafo que o poeta faz, para condenar a desatenção dos governantes para com as
terras sertanejas, com a visão poética de um sertanejo apaixonado por sua terra, mas
sobretudo com a visão realista de um cidadão indignado com a repetição secular de um
quadro de miséria e fome, situação que já foi denunciada em prosa e verso, aí estão os
valiosos trabalhos de Gilberto Freyre, Josué de Castro, Graciliano Ramos, João Cabral de
Melo Neto, Luís Gonzaga, entre tantas outras vozes às quais o poeta acrescenta o seu
95
Idem, p. 49-51
118
lamento, com a convicção de quem tem dados técnicos em mão, para confrontar com a
assistência oportunista da máquina estatal. Quando o poeta afirma: “A água salvadora
deste solo é abundante neste subsolo”, não só enriquece o seu poema com a qualidade
métrica e a rima oportuna, mas vai além da estrutura imagética do verso e adentra na
estrutura social, com a constatação que já faz parte dos estudos especializados, quanto à
existência de água em abundância no subsolo sertanejo, esperando um trabalho sério de
perfuração, sem o que jamais se terá acesso aos sete trilhões de litros d’água ali
guardados.
Oh! Meu sertão querido, oh! Meu sertão,
A seca que te aflige é tão antiga,
Cuja verdade impõe-nos que te diga
Que é imensa tua dor, tua aflição.
E nos comove olhar a região
De terra fértil e gente tão amiga,
A batalhar em vão, sem que consiga
O trivial, o lar, o leito, o pão.
A água salvadora deste solo,
É abundante neste subsolo,
O que lhe falta é garra e decisão.
Dos governos, de hoje e de antanho,
Ampliando teu valor e teu tamanho,
Oh!, meu sertão querido, oh! Meu sertão!
96
Sons e cores se juntam na poesia de Carlos Severiano. As rimas e os versos
mantêm, unidas, a fauna e a flora que ambientalizam o sertão, a mata, em comum acordo
com o poeta e com a vida. O escritor e professor Lucilo Varejão Neto, em comentário
inserido nas orelhas de Sertanidade, confere que cedros, ipês, angicos, jacarandás,
aroeiras, e uma infinidade de árvores povoam e oxigenam a inspiração poética do autor,
“árvores – diz Lucilo – que o homem da capital só conhece a madeira de algumas delas
em móveis de museu”. O homem urbano aos poucos vai perdendo a capacidade de
convivência com a natureza, cercado que está pelas muralhas de concreto dos edifícios
que esbanjam engenhosidade arquitetônica, mas jamais suprirão o prazer da vida
campesina, do contato direto com a natureza. Por isso, Lucilo Varejão Melo Filho afirma
que Sertanidade há de causar “inveja àqueles que não desfrutaram da vida sertaneja”.
96
CAVALCANTI, Carlos Severiano. Caminhos da Vida. Ba
4. Capítulo Quarto: Repentistas, violeiros, cantadores:
os modos da poesia popular.
120
Produto de um exaustivo trabalho de pesquisa, dois estudiosos da poesia popular
lançaram, em 1976, a obra Antologia Ilustrada dos Cantadores, numa publicação da
Universidade Federal do Ceará. São eles: o Dr. Francisco Linhares, folclorista; e do
escritor e repentista Otacílio Batista. Ao se referirem aos gêneros da poesia popular, eles
informam que há pelo menos trinta e seis modalidades estruturais do fazer poético na
área popular, atestando o poder criativo do poeta popular e a variedade com que ele se
manifesta através da elaboração dos seus versos.
Vale ressaltar que, nas primeiras obras e nos improvisos feitos pelos repentistas
sertanejos, inicialmente se fez uso da Quadra. Com a ampliação do fenômeno da
Cantoria, adotou-se estrofes de cinco versos, modalidade de curta duração, posto que
caiu em desuso rapidamente. Mas foi Silvino Pirauá Lima (1842-1913), Patos das
Espinharas – PB, que começou a fazer uso da estrofe de seis versos, tendo em vista
encontrar mais espaço para a manifestação poética, iniciativa que logo recebeu a
simpatia dos cantadores e cordelistas.
Assim, das criações clássicas adotadas pelos nossos poetas populares, à Quadra
seguiu-se a estrofe de cinco versos, a Décima e, em maior simpatia, a Sextilha, musa
inspiradora dos repentistas. Relaciona-se, a seguir, alguns exemplos das variedades em
uso na produção poética de nossos cantadores e cordelistas.
SEXTILHA
Associada ao grupo dos versos setissilábicos (redondilha maior), a Sextilha
apresenta-se estruturada num conjunto de seis versos, com rimas entre os versos pares,
e versos brancos no restante da estrofe. Há que se dizer também que a sextilha permite a
construção de um silogismo, sendo os dois primeiros versos a primeira premissa, os dois
segundos, a segunda premissa, e os dois últimos, a conclusão. A propósito, vale lembrar
aqui, exemplos citados pelo professor José Rabelo de Vasconcelos (1932-2003), em
palestra realizada na SOBRAMES, Recife, PE, 2000, quando, na oportunidade, tratava do
tema Poesia Popular, ao ensejo do lançamento do livro: Canto no Fim da Tarde, de
Dirceu Rabelo. Na ocasião, Rabelo se refere a uma cantoria em Teixeira, PB, na década
de 40, à qual estava presente Lourival Batista (1915-1995), o Louro do Pajeú. Entre os
ouvintes, havia dois sargentos do exército, que foram elogiados pelos cantadores.
Considerando que o elogio equivale à venda de ingresso para a apresentação,
121
prontamente os dois sargentos pagaram aos cantadores. Ao ver expostas as cédulas no
receptáculo, Louro não perdeu tempo, e se saiu com esta sextilha:
As notas desses sargentos
Eu gosto de recebê-las.
Deus permita que as três fitas
Se transformem em três estrelas;
Dos braços subam pros ombros
E eu seja vivo pra vê-las.
97
Já em outra ocasião, com a mesma dupla de repentistas, deu-se um fato inusitado:
estava, entre os presentes, um sargento da Polícia Militar, o qual nem pagou e ainda
criticava quem o fazia. Louro do Pajeú não perdoou a indelicadeza:
Esse daí não será
Nem capitão nem tenente.
O galão que ele merece
É um galão diferente:
É um pau com duas latas,
Uma atrás, outra na frente.
98
O poeta Geraldo Amâncio, numa peleja ocorrida em João Pessoa, PB, em 2004,
cujo tema era justamente essa modalidade, arrematou, com a elegância que a memória
lhe concedia:
A minha cantiga brilha,
porque eu sou sextilheiro,
eu canto sempre ligeiro,
repentista não me humilha,
um cantador sem sextilha
é como um pagão sem pia,
é como um cego sem guia,
como xícara sem café.
A sextilha ainda é
o melhor da cantoria.
99
97
VASCONCELOS, José Rabelo de. Sertão Versus Poesia. Recife; COMUNIGRAF Editora, 2001, p.27
98
Ibidem, p. 28
99
<disponível em:www.ulsinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=7240&cat=cordel >
122
SETE LINHAS OU SETE PÉS
A sétima ou setilha, também chamada de mourão de sete pés ou sete versos, tem
muita acolhida entre os poetas populares. Sua origem, do início do século XX, é atribuída
ao cantador alagoano Manoel Leopoldino de Mendonça (Serrador), de Bom Conselho,
PE. O mourão de sete pés (versos) envolve dois cantadores, onde um deles faz uma
estrofe com dois versos (dístico) e o outro, em seguida, responde ao primeiro, também
com um dístico. Por fim, o primeiro cantador conclui o mourão com um terceto.
Aproveitando o cenário rural, explica-se os dois dísticos como sendo os moirões, duas
estacas de madeira grossa, fincadas à beira da passagem de um cercado, emparelhadas;
e o terceto representa a porteira, montada entre os moirões. Quanto às rimas, a setilha ou
mourão mantém certa semelhança com a sextilha, posto que, em relação a esta, dá-se o
acréscimo de mais um verso (o sétimo), entre o quinto e o sexto da sextilha. Desse modo,
ocorre rima na seguinte ordem: ABCBDDB, como ilustra o exemplo a seguir, citado pelo
professor José Rabelo de Vasconcelos, em palestra na SOBRAMES-Recife, PE, em
2000. O mourão foi produzido pelos irmãos Lourival (Louro do Pajeú) e Dimas, quando de
uma cantoria em casa de um amigo (José de Beija), em cujo terreiro um bode fazia a
corte às cabras ali próximas.
Lourival:
Que diabo tem esse bode
Que desde cedo bodeja.
Dimas:
Por certo ele está achando
Bonita a nossa peleja.
Lourival:
Bode acha nada bonito,
Ele quer fazer cabrito
Nas cabras de Zé de Beija
100
.
100
VASCONCELOS, José Rabelo de. Sertão Versus Poesia. Recife; COMUNIGRAF Editora; 2001, p. 33
123
MOIRÃO TROCADO
Em relação ao já citado mourão de sete pés, este gênero se diferencia apenas na
introdução de palavras alternadas nos quatro primeiros versos, mantendo a mesma
estrutura da setilha. Trata-se de uma mudança no formato da narrativa, que ocorre em
trocadilho, conforme o exemplo abaixo:
Da madeira faço a peça
Da peça faço a madeira
Da esteira faço a palha
Da palha faço a esteira
Mas isso é grande defeito
Mudar o feito em desfeito
Só termina em brincadeira.
101
MOIRÃO QUE VOCÊ CAI
Criação de Henrique Ferreira Dias (Xixó), Alagoa Nova, PB, o “Mourão que você
cai” ou também “Dez pés lá vai” é composto de doze linhas, e cantado em revezamento,
no qual o primeiro cantador, após dizer os dois primeiros versos, acrescenta o refrão: “Lá
vai um, dois, três”. Ao segundo cantador compete criar mais dois versos, seguidos da
contagem; “Lá vai quatro, cinco, seis”. O primeiro cantador cria mais dois versos, ao que o
segundo cantador responde com uma advertência: “Cuidado que você cai”. Então, o
primeiro conclui com mais dois versos e o refrão: “Se for por dez pés lá vai”. Ou seja, do
total de doze versos, eles contam dez pés, desprezando aqueles que apenas indicam
numeração. O professor Aleixo Leite Filho, (Cartilha do Cantador, p. 30), indica a ordem
das rimas: ABCBACADDEED, e dá um exemplo:
Se agarre meu camarada
101
LEITE FILHO, Aleixo. Cartilha do Cantador. Recife. Companhia Editora de Pernambuco; 1985; p. 28-29
124
Pra no mourão não cair
Lá vai um, dois, três
Eu já vi você sair
Pode seguir na toada
Lá vai quatro, cinco, seis
A coisa é desmantelada
Não quero ouvir dizer ai
Cuidado que você cai
Se cair, caio de pé
Mas é tomando rapé
Se for por dez pés lá vai
102
MOIRÃO VOLTADO
Uma criação de Manoel Noé da Silveira (1922-1971), pernambucano de Nazaré da
Mata, é uma modalidade considerada nova, composta de treze versos setissilábicos,
cantados alternadamente até o oitavo verso. Em seguida, os dois cantadores dizem o
refrão: “Isso é que é mourão voltado, isso é que é voltar mourão”. E, por fim, repetem a
oitava linha, seguida do refrão já citado, conforme se vê no exemplo abaixo, que consta
da obra Antologia Ilustrada dos Cantadores (Edição da UFC, 1976), que leva o nome de
dois representativos estudiosos da poesia popular: Dr. Francisco Linhares e Otacílio
Batista (1923-2003):
Tudo, neste mundo, volta.
Com você, combino eu!
Volta o rico e o plebeu;
Volta quem prende e quem solta ...
Volta a paz e a revolta;
Volta o sim e volta o não!
Volta até Napoleão
Que há tempo está sepultado...
Isso é que é Mourão voltado,
Isso é que é voltar Mourão!
102
ibidem
125
Que há tempo está sepultado...
Isso é que é Mourão voltado,
Isso é que é voltar Mourão!
103
QUADRÃO
Há, também, a modalidade que faz uso dos oito pés ou versos, denominada
popularmente Quadrão. Se presta a melhor expressar a poesia vinda do povo, sobretudo
no cantar os sentimentos, a afetividade, como acontece com as décimas, no tocante ao
lírico. O quadrão, pelo que se depreende do nome, é aumentativo de quadra. Termina
sempre com o verso: “nos oito pés em quadrão”. Foi Vicente Granjeiro Landim (1901-
1984), Mata Grande, AL, quem introduziu o quadrão na cantoria popular. O professor
José Rabelo de Vasconcelos ensinava como construir o quadrão de oito pés, em suas
aulas de Literatura Sertaneja, disciplina que ele criou e lutou bravamente para incluí-la na
grade curricular da Faculdade de Formação de Professores de Arcoverde, PE, da qual foi
diretor e professor, hoje CESA – Centro de Ensino Superior de Arcoverde.
Outra construção usada
Com rima seqüenciada
É a construção chamada
DOS OITO PÉS EM QUADRÃO
Tem rimas como se vê
Três vezes A e um B
E três vezes C mais B
Com que se faz conclusão.
104
Da Cartilha do Cantador, p. 35, há um exemplo de Quadrão de oito pés, mas com a
singularidade de apresentar, a partir da terceira linha, a inversão da ordem das palavras,
e concluindo com o estribilho que ocupa as duas últimas linhas do verso:
103
LINHARES, Francisco & BATISTA, Otacílio. Antologia Ilustrada dos Cantadores. Fortaleza. Universidade Federal
do Ceará; 1976
104
VASCONCELOS, José Rabelo de. Sertão Versus Poesia. Recife; COMUNIGRAF Editora; 2001; p. 37
126
É no padre, é na missa, é no sino, é no vinho,
É no braço, é na corda, é na prima, é no pinho,
É no vão, é no galho, é na cerca, é no ninho,
É no ninho, é na cerca, é no galho, é no vão,
É no lado, é na frente, é no alto, é no chão,
É no chão, é no alto, é na frente, é no lado,
É quadrão, é quadrinha, é quadrilha, é quadrado,
É quadrado, é quadrilha, é quadrinha, é quadrão.
105
Ainda, na linha de quadrão, é do professor Rabelo a ilustração que explica como
chegar ao Quadrão em Dez Pés, que é uma modalidade de décima, com o encadeamento
das rimas na seguinte ordem: ABBAACCDDC.
Estilo dialogado
É o QUADRÃO DE DEZ PÉS
Ou GRANDE QUADRÃO EM DEZ,
Que só em dupla é cantado.
Tem que ser improvisado
Como exige a tradição.
Para encanto do baião
Deve ser feito com brilho
E termina no estrebilho:
NESTES DEZ PÉS EM QUADRÃO.
106
DÉCIMA
Muito utilizada para motes, pelejas, desafios, glosas, a Décima, de origem clássica,
cujo verso é estruturado em sete sílabas, tem grande freqüência nas apresentações de
repentistas. No caso dos motes, são utilizados nos dois últimos versos da estrofe,
expondo a sentença previamente publicada no início da cantoria. A distribuição dos
versos, quanto à rima, fica assim: o primeiro, rima com o quarto e o quinto; o segundo,
com o terceiro; o sexto, com o sétimo e o décimo, e o oitavo, com o nono:
105
LEITE FILHO, Aleixo. Cartilha do Cantador. Recife; Companhia Editora de Pernambuco; 1985; p. 35
106
VASCONCELOS, José Rabelo de. Sertão Versus Poesia. Recife. COMUNIGRAF Editora; 2001; p. 37
127
ABBAACCDDC. No tocante ao mote, convém esclarecer que se trata de uma sentença
composta por dois versos, a serem repetidos ao final de cada estrofe. Já houve, também,
outras experiências de mote, como o formado por um único verso; por dois, separados,
um na quarta linha e o outro na décima; e até por quatro versos, o que implicava a
construção de quatro décimas para acomodar, no final de cada uma, um dos versos da
quadra-mote. Abaixo, a partir do mote: “Foi com dor no coração/ que deixei o meu lugar”,
segue um exemplo de décima, de autoria do poeta ceararense Rubênio Marcelo, da
Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, que se encontra em seu livro: O Reino
Encantado do Cordel: a Cultura Popular na Educação (TCM-Editora, Sorocaba, SP,
2006).
Era manhã, brisa mansa,
Quando deixei Fortaleza,
Com um misto de tristeza,
Calma, fé e esperança...
Trago tudo na lembrança,
Jamais eu pude apagar
Três faces a acenar:
Meu pai, minha mãe, meu irmão.
Foi com dor no coração
Que deixei o meu lugar.
107
MARTELO AGALOPADO
O paraibano Silvino Pirauá Lima (1842-1913), genial violeiro, criou o Martelo atual,
uma estrofe de dez versos, em decassílabos, que segue o modelo da Décima. Esta
denominação está associada ao nome de um diplomata francês que atendia por Pedro
Jaime Martelo (1665-1727), e que foi professor de Literatura na Universidade de Bolonha,
a quem se atribui a primeira versão do Martelo, que partia da supressão das duas linhas
finais do que se chamava de “oitava de Ariosto” (ou oitava camoniana), daí chegando a
uma sextilha de doze sílabas, na qual havia a seguinte combinação rítmica: ABABAB, ao
que se denominou de Martelo cruzado. Em seguida, apareceu uma variante desse
Martelo, intitulado de martelo solto ou de sextilha em decassílabo. O diplomata brasileiro
Francisco Otaviano de Almeida Rosa, um dos Patronos da Academia Brasileira de Letras
107
MARCELO, Rubênio. O Reino Encantado do Cordel A Cultura Popular na Educação. Sorocaba; TCM-Editora, 2006
128
(cadeira XIII), autor de inúmeros poemas, fez uso de um inspirativo Martelo, quando
assim se expressou:
Quem passou pela vida em branca nuvem,
Num plácido repouso, adormeceu;
Quem não sentiu o trio da desgraça,
Passou pela vida e não sofreu:
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida e não viveu.
108
Visto o formato do Martelo em sextilha, vamos, agora, ao modelo atual do Martelo
Agalopado, que evidentemente trata-se de um gênero variante da Décima, tanto quanto o
é, também, o Galope à Beira-Mar e a Parcela. Vale ressaltar que, diferentemente de sua
função mais agressiva no desafio, hoje o Martelo se presta mais a favorecer a narrativa
fundamentada no mote. É o que se vê, por exemplo, na feitura desses versos do
pernambucano Olegário Mariano (1889-1958), citados pelo professor Aleixo Leite Filho,
em seu livro: Cartilha de Cantador, cujo mote diz: “Se eu deixar de cantar, morro de fome;
que a cantiga é meu pão de cada dia”:
Quando pego no braço da viola
Sinto a força que vem da inspiração
E é por isto que digo com razão
Que meu verso alimenta e me consola
Pelo menos, não peço por esmola
Porque vivo a vender minha poesia
Sou cigarra que, aos poucos, se atrofia
Na cantiga que a vida lhe consome
Se eu deixar de cantar, morro de fome
Que a cantiga é meu pão de cada dia.
109
O poeta Carlos Severiano Cavalcanti, da Academia de Letras e Artes do Recife,
em sua obra SERTANIDADE, inclui um Martelo Agalopado que, a começar pelo mote: “Eu
deixei minha rede lá na sala, e parti com vontade de voltar”, deve ter dado muitas
108
Disponível em: <copacaba.com/r-franci.shtml>
109
LEITE FILHO, Aleixo. Cartilha do Cantador. Recife; Companhia Editora de Pernambuco; 1985; p. 38
129
marteladas em seu coração, quando teve de galopar até outras plagas, em busca de
trabalho e estudo:
Quando o trem apitou lá estação
Eu fiquei debruçado na janela
Com meus olhos molhados, pois aquela
Despedida era feita de emoção;
Disparou no meu peito o coração:
Minha mãe se acabando de chorar
E meu pai cabisbaixo a meditar
Despediu-se de mim, tremendo a fala,
Eu deixei minha rede lá na sala
E parti com vontade de voltar.
110
GALOPE À BEIRA-MAR
Uma associação entre o impulso do galope do cavalo e a oscilação dos picos das
ondas do mar serviu de inspiração ao cantador José Pretinho (Crato, CE), para criar o
Galope à Beira-Mar, mais tarde aperfeiçoado por outros dois cantadores: João Siqueira
de Amorim (1913-1995) e José Virgolino de Souza. Há relatos que tal modalidade veio à
inspiração de José Pretinho, enquanto observava as ondulações das águas da praia
cearense de Iracema. Ele então assemelhou esse movimento ao galope dos cavalos e,
então, tratou de dar corpo ao imaginado: criou o estilo Galope à Beira-Mar, com que se
valeu para descontar uma derrota sofrida para um cantador do Piauí, por nome Manoel
Vieira Machado, numa peleja em Martelo. Predomina, nesta modalidade, temas praieiros,
e tem uma constituição de estrofes de dez versos de onze sílabas, com o refrão “na beira
do mar” concluindo o último verso. A tonicidade é distribuída mantendo a acentuação na
segunda, quinta, oitava e décima primeira sílabas do verso. Outro cearense, Simplício
Pereira da Silva, adaptou a temas sertanejos o Galope, acrescentando-lhe a expressão:
“por dentro do mato”, mas não obteve a mesma popularidade do “na beira do mar”. Ainda
em Sertanidade, o poeta Carlos Severiano Cavalcanti, elabora uma construção poética
que segue esquema do Galope à Beira-Mar, com o que o poeta presta uma homenagem
à sua primeira professora, por ocasião dos noventas anos de idade daquela que lhe
ensinou as primeiras letras.
110
CAVALCANTI, Carlos Severiano. SERTANIDADE. Recife; Edição do Autor; 2004; p. 42
130
Ó mestra querida, plural, competente,
Nunca esquecerei tuas belas lições:
Leituras, Ditados, Pronomes, Frações,
O giz trabalhando no quadro da frente.
O teu vozerio, enérgico e potente,
Ditando com pausa, buscando explicar
A fonte tão rica do nosso falar,
Querendo incutir o melhor Português,
Não posso esquecer tua rara altivez
Ao som do galope na beira do mar.
111
PARCELA
Invenção do pernambucano de Itambé, Joaquim Francisco de Santana (1877-
1918), conhecido por Sem Fim, a Parcela, também denominada Galope miudinho ou
Carretilha, apresenta estrofes com versos de quatro ou cinco sílabas. Está praticamente
em desuso, mas vale o exemplo citado pelo professor Aleixo Leite Filho:
Quero provar
Nesta parcela
Minha querela
Para rimar
Pode prestar
Sua atenção
Para a lição
Não esquecer
Cuide em saber
Sua feição.
112
111
Ibidem; p. 127-128
112
LEITE FILHO, Aleixo. Cartilha do Cantador. Recife; Companhia Editora de Pernambuco; 1985; p. 52-53
131
GABINETE
Há uma variedade de Gabinete, desde um em sextilha ABABAB, conhecido
também por Galope Gabinete, passando pelo modelo adotado por Manoel Ferreira de
Lima (Manoel Chelé), chamado Gabinete Repetido, associado ao Coco, chegando a vinte
e um pés, até um outro que tem, por idealizador, o cearense Alberto Porfírio da Silva,
formato considerado sofisticado, no qual há treze pés de sete e de dez ou onze sílabas,
concluindo com o refrão: “Quem não canta gabinete/ Não se diz que canta bem”. Os treze
versos são assim distribuídos: começa por uma quadra (ABAB), em seguida, uma sextilha
de dez ou onze sílabas cada verso, cuja terminação “em” rima com o segundo verso do
refrão. E, por fim, mais três versos de sete sílabas: o primeiro rimando com o verso:
“Quem não canta Gabinete”, do refrão, e o terceiro com a mesma terminação “em” da
sextilha. Sabe-se que o cantador Aderaldo Ferreira de Araújo (1878-1967), mais
conhecido por “Cego Aderaldo”, fazia uso freqüente do Gabinete em suas apreciadas
cantorias. Vale ressaltar que a sensibilidade poética deste famoso repentista foi talvez
uma compensação da natureza, por haver perdido a visão ainda na juventude, aos
dezoito anos, num acidente de trabalho. Munido de muita fé e disposição, Aderaldo não
se deixou vencer pelo infortúnio, mas se transformou num arauto da poesia popular,
impressionando a tantos que o ouviam em encontros antológicos. O pesquisador
Leona6abiboriai 50ontr e em sua obra, um desses momentos de pura inventividade do
Cego Aderaldo que, após ouvir de Leona6abia leitura de alguns versos de Luís Dantas
Quesado, nos quais se falava de coisas difíceis de virem a acontecer, Aderaldo
improvisou as sextilhas abaixo:
Só nos falta vê agora
Dá carrapato em farinha
Cobra com bicho-de-pé
Foice metida em bainha
Caçote criá bigode
Tarrafa feita sem linha.
Muito breve há de se vê
Pisá-se vento em pilão
Botá freio em caranguejo
132
Fazê de gelo carvão
Carregá água em balaio
Burro subi em balão.
113
E, voltando ao Gabinete, o exemplo abaixo é de Alberto Porfírio da Silva, na
modalidade que chega a treze pés. Tanto este como outros modelos de Gabinete, já se
encontram em franco desuso nas cantorias.
Quem é forte não se gaba,
Não se altera nem se agita,
Mas qualquer homem se acaba
Por uma mulher bonita!
Amei uma jovem que me queria bem,
Eu gostava dela mais do que ninguém;
Chegou lá um cabra mexendo xerém,
Mas eu tendo raiva, não temo a quem vem!
De faca e de bala, eu brigo com cem...
Quebramos cadeira, víramos um trem!
Resolvi foi no cacete;
Quem não canta Gabinete,
Não se diz que canta bem.
114
TOADA ALAGOANA
A orientação que é dada para esta modalidade, também chamada de Nonilha,
serve para uma outra, denominada Nove Palavras por Seis, invenção do paraibano
Antônio Ferreira da Cruz (1874-1969). Nos dois casos, trata-se de uma estrofe de nove
pés: seis de sete sílabas (1º, 3º, 4º, 6º, 7º, 9º); três de três sílabas (2º, 5º, 8º), em rimas:
AABCCBDDB. O exemplo consta na obra Cantadores, Repentistas e Poetas Populares,
113
MOTA, Leonardo. Cantadores. Rio de Janeiro; Editora Cátedra; 1978
114
LINHARES, Francisco & BATISTA, Otacílio. Antologia Ilustrada dos Cantadores; Fortaleza; UFC; 1976
133
de José Alves Sobrinho (Bagagem, Campina Grande, PB, 2003, p. 45). Assim também
ocorre uma duplicidade esquemática quanto ao chamado Martelo Alagoano, criação de
Manoel Ferreira de Lima (Manoel Chelé), que, em relação ao conhecido Martelo
Agalopado, acrescenta ao décimo verso: “Nos dez pés do martelo alagoano”. São
acréscimos e variantes que demonstram a criatividade do cantador nordestino.
Lá vou cantando contente
No ambiente,
O meu verso desta vez,
Porque com todo o cuidado,
Tenho dado
Prazer a vossas mercês,
Vou cantando neste rumo
Com aprumo
Nove palavras por seis.
115
MEIA QUADRA
Há quem considere uma modalidade que se apresenta difícil em sua realização,
seja porque não tem um número determinado de versos, seja pelo constante trocadilho da
ordem das palavras, no decorrer da cantoria. Entretanto, o escritor paraibano Bráulio
Tavares, chega a afirmar que a Meia Quadra não passa de uma maneira do cantador “se
amostrar” diante de ouvintes leigos. Diz Bráulio
116
: “Já tirei muita onda, cantando de
improviso este tipo de verso, porque, na verdade, não tem o que inventar, é só essa
cantilena de meio-isso-meio-aquilo, substituindo as palavras-chave para encaixar as rimas
obrigatórias, e pronto”. O poeta, escritor e compositor paraibano, reconhece ser a Meia
Quadra um estilo marcante, mas considera a sextilha muito mais difícil, posto que o poeta
cria os seis versos a partir do ponto zero. Não há um gancho para dar início. Tem que
possuir boa memória para dar sentido ao que vai inventar no improviso.
115
ALVES SOBRINHO, José. Cantadores, Repentistas e Poetas Populares. Campina Grande; Editora Bagagem; 2003
116
disponível em :<overmundo.com.br/blogs/1216-o-facil-e-o-dificil-422007-braulio-tavares>
134
Quando eu disser vida e meia,
Você diga meia vida;
Quando eu disser ida e meia,
Você diga meia ida,
Quando eu disser lida e meia,
Você diga meia lida.
Diga coração e meio.
Se eu disser meio coração;
Se eu disser meia baleia,
Você diga meio cação,
Se eu disser meio cação,
Você diga meia baleia;
Quando eu disser Meia Quadra,
Você diz que é Quadra e Meia,
Quando eu disser Quadra e Meia,
Você diz que é Meio Quadrão!
117
117
LINHARES, Francisco & BATISTA, Otacílio. Antologia Ilustrada dos Cantadores. Fortaleza; UFC; 1976
135
5. Considerações Finais
136
O percurso por onde caminhamos demonstra de modo inequívoco o papel do
cordel na formação da nossa cultura. Quer desde o século XVI, na França, Espanha, ou
Portuga, quer na atualidade, sente-se perfeitamente a força da poesia popular,
atravessando os séculos com o espelho da nossa própria identidade.
A universidade tem acompanhado de perto a produção cordelista, muito
especialmente o período em que esteve à frente do Departamento de Extensão Cultural,
na UFPE, o professor e escritor Ariano Suassuna. Seu trabalho a partir das matrizes mais
fundas da nossa lírica popular até hoje produz seus frutos, irradiando-se para a música e
as artes plásticas.
O cordel representa, assim um passaporte de eternidade e uma prova inconteste
da falsa dicotomia entre a cultura erudita e a popular que às vezes é feita, em detrimento
da segunda.
O respeito e a prática das nossas formas poéticas tradicionais vem demonstrar que
não nos fragmentamos tanto como dizem os teóricos atingidos pela sofisticação da pós-
modernidade. Ao contrário, quanto mais pareça que nos dirigimos ao futuro incerto, maior
é nossa fidelidade ao pacto de raiz da nossa cultura.
Continuam sendo muitos os poetas de cordel, assim como escritores que utilizam
as fontes do cordel, assim como estudiosos incansáveis na decifração da trajetória do
cordel.
As várias etapas deste trabalho vem-nos confirmar a atualidade do cordel,
respaldada por uma efervescência que não nos permite imaginar esteja ele em crise ou
coisa que o valha.
Também o diálogo entre as várias culturas autoriza a que possamos reconhecer a
literatura de cordel como uma das manifestações mais autênticas, mais genuínas para a
nossa comunidade brasileira e nordestina, a partir de uma Lusofonia contextualizada na
cultura ocidental.
Que se estude mais os nossos cantadores, os nossos repentistas, muito
especialmente em sua forma escrita, no caso a Literatura de Cordel. Isso na crença de
que um novo desnorteia, é certo, mas é na tradição que nos revemos emocionados e nos
lembramos, sem nenhum remorso, da nossa face original.
137
6. Bibliografia
138
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141
7. Anexos
142
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