Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
BÁRBARA LEBARBENCHON MOURA THOMASELLI
A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DO
DIREITO CONSTITUCIONAL
FLORIANÓPOLIS
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
BÁRBARA LEBARBENCHON MOURA THOMASELLI
A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DO
DIREITO CONSTITUCIONAL
Dissertação submetida ao Curso de Pós-Gradução em
Direito da Universidade Federal de Santa Catarina para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor Sérgio Cademartori
FLORIANÓPOLIS
2007
ads:
Para João, com amor.
AGRADECIMENTOS
Mesmo sabendo que as palavras são coisas imperfeitas, soam sempre como metáforas
imprecisas do que se queria dizer, não posso deixar de externar minha profunda gratidão
àqueles que foram fundamentais nesta empreitada:
Ao meu orientador, Doutor Sérgio Urquhart Cademartori, brilhante professor, exemplo de
força e competência, pela confiança depositada e sabedoria dos ensinamentos;
Aos meu pais, Elizabeth Lebarbenchon Moura e Léo Cezar Thomaselli, pelo apoio,
confiança, educação, amor e especialmente por sempre acreditarem em mim;
À minha querida e amada avó, Magali Lebarbenchon Moura, por todo amor e carinho e à
minha adorável tia-avó, Ariana Lebarbenchon Polli, que sempre me abençoaram com suas
orações;
Aos meus queridos irmãos, Carolina Lebarbenchon Moura Thomaselli, colega de
profissão, e Guilherme Moura Thomaselli, futuro colega de profissão, pela fraternidade
que nos une;
Às minhas amigas e colegas Procuradoras do Estado, Elusa Mara de Meirelles Wolff
Cardoso, Flávia Dreher de Araujo e Queila de Araújo Duarte Vahl, pela convivência e
companheirismo;
À minha amiga Carla Paula Tavares de Azevedo, que me incentivou a ingressar no
programa de mestrado;
E por fim, mas não menos importante, quero expressar minha profunda gratidão a João dos
Passos Martins Neto, que compartilhou todas as dificuldades e alegrias desta dissertação e
contribuiu decisivamente para sua realização.
A aprovação da presente dissertação não
significará o endosso do Professor
Orientador, da Banca Examinadora e da
Universidade Federal de Santa Catarina à
ideologia que a fundamenta ou que nela é
exposta.
RESUMO
A presente Dissertação trata da construção judicial do conteúdo das normas constitucionais
no processo de julgamento de controvérsias afetas à jurisdição constitucional no marco do
Estado Constitucional de Direito. Consiste no relato final dos resultados de pesquisa
efetuada com o escopo de examinar o modo de ser das normas constitucionais no plano do
texto legislativo, bem como o modo de sua aplicação no plano da decisão judicial. A
pesquisa teve como objeto de observação, predominantemente, os enunciados textuais da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a prática jurisdicional do
Supremo Tribunal Federal. A conclusão fundamental é a de que, em conseqüência de ser a
Constituição uma ordem aberta, a aplicação do direito constitucional por juízes e tribunais
constitucionais, longe de revelar-se como uma atividade mecânica de revelação, consiste
numa atividade dinâmica e política de construção de sentido.
Palavras-chave: Estado Constitucional. Constituição Aberta. Jurisdição Constitucional.
Construção Judicial do Direito.
ABSTRACT
The present Dissertation subject is the judicial construction of constitutional provisions in
the controversies judgment process under constitutional jurisdiction on the ground of the
Constitutional State. It consists of the results final report of a research made with the
purpose of examining constitutional norms way of being in legislative text plane as well as
the way of their implementation in judicial decision plane. The research mostly focuses on
the text of the 1988 Constitution of the Federative Republic of Brazil and the judicial
practice of the Federal Supreme Court. The fundamental conclusion is that Constitution is
an opening order and thus constitutional law implementation by constitutional judges and
courts far from just appears as a mechanical activity of revelation, consists of a political
and dynamical activity of meaning construction.
Key words: Constitucional State. Opening Constitution. Constitutional Jurisdiction. Law
Judicial Construction.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... I
1. ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E
CONSTITUIÇÃO ABERTA .......................................................................................... 01
1.1. O ESTADO LEGAL DE DIREITO ........................................................................... 01
1.2. O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO ...................................................... 07
1.3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................................................... 16
1.4. A TEXTURA ABERTA DA CONSTITUIÇÃO........................................................ 25
2. MODOS DE APLICAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL NO PROCESSO
DE DECISÃO JUDICIAL ............................................................................................... 32
2.1. NORMAS JURÍDICAS E FUNÇÕES NORMATIVAS ............................................ 32
2.2. O SILOGISMO DE SUBSUNÇÃO ............................................................................ 34
2.3. A PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS ........................................................................ 45
2.4. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE .................................................... 58
2.5. A INTEGRAÇÃO DE DIREITOS IMPLÍCITOS ..................................................... 63
3. A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DOS CONTEÚDOS NORMATIVOS E A
FUNÇÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ............................... 68
3.1. A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DOS CONTEÚDOS NORMATIVOS ..................... 68
3.1.1. Casos de construção mediante subsunção................................................................ 70
3.1.2. Casos de construção mediante ponderação .............................................................. 75
3.1.3. Casos de construção mediante controle de lei .......................................................... 80
3.1.4. Casos de construção mediante integração ................................................................ 86
3.2. A FUNÇÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL .......................... 90
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 100
REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS ........................................................................ 103
INTRODUÇÃO
A presente Dissertação trata da construção judicial do conteúdo das
normas constitucionais no processo de julgamento de controvérsias afetas à jurisdição
constitucional no marco do Estado Constitucional de Direito. Consiste no relato final dos
resultados de pesquisa efetuada com o escopo de examinar o modo de ser das normas
constitucionais no plano do texto legislativo, bem como o modo de sua aplicação no plano
da decisão judicial.
O objetivo institucional da pesquisa dirige-se à obtenção do Título de
Mestre em Direito junto ao Programa de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Direito
do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.
A pesquisa foi idealizada a partir da hipótese de que o texto
constitucional, na generalidade das vezes, revela-se insuficiente para por si só resolver as
situações de direito constitucional controvertido, demandando dos órgãos de jurisdição
constitucional, em vez do desempenho de uma atividade mecânica de interpretação e
revelação, o exercício de uma atividade politicamente dinâmica de construção ou
atribuição de sentido normativo.
Com efeito, partiu-se da suposição de que, diante de controvérsias de
dimensão constitucional, as cortes constitucionais são normalmente provocadas a encontrar
uma solução que não pode ser diretamente extraída do texto constitucional em si mesmo e
que, por isso, é construída problematicamente no processo de resolução do caso submetido
a julgamento. Entre tantos outros possíveis, exemplo emblemático encontrava-se na
decisão proferida no Habeas Corpus nº 71373-4-RS, em que o Supremo Tribunal Federal,
por maioria de votos, entendeu inadmissível que, em ação de investigação de paternidade
ajuizada por menor, fosse o réu submetido, contra a sua vontade e sob constrangimento
físico, à coleta do material indispensável ao exame de DNA. Tal decisão, ao menos em sua
especificidade, não correspondia a qualquer enunciado textual da Constituição, o que
sugeria a plausibilidade de idéia de construção judicial do direito constitucional.
II
Sob tal premissa, a pesquisa foi assim problematizada:
1) Quanto ao modo de ser no plano do texto legislativo:
Quais são as causas ou razões pelas quais as normas constitucionais,
sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, não contêm uma solução óbvia ou
previamente determinada para a maior parte das controvérsias constitucionais?
2) Quando ao modo de aplicação no plano da decisão judicial:
Quais são os efeitos dessa limitada autonomia regulativa das normas
constitucionais, sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, no que concerne à
tarefa da jurisdição constitucional que compete aos tribunais constitucionais?
Em relação a tais questões, a pesquisa teve como objeto de observação,
predominantemente, os enunciados textuais da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 e a prática jurisdicional do Supremo Tribunal Federal.
A resposta a ambas as questões encontra-se ao longo da exposição,
estruturada em três capítulos cujos conteúdos são, resumidamente, os seguintes:
a) o Capítulo 1 discorre sobre as notas distintivas do Estado
Constitucional de Direito em relação ao Estado Legal de Direito, bem como sobre o
conceito e a função dos direitos e garantias fundamentais e a textura aberta das normas
constitucionais;
b) o Capítulo 2 expõe o modo de ser e de aplicação das normas
constitucionais conforme as distintas estruturas que apresentam, dando ênfase aos
III
mecanismos de subsunção de fatos a regras, ponderação de princípios em casos de colisão,
controle de constitucionalidade e integração de direitos não enumerados;
c) o Capítulo 3 ilustra o fenômeno da construção judicial do direito
constitucional através da análise de julgados do Supremo Tribunal Federal, destacando o
caráter político da função que compete à jurisdição constitucional.
Em arremate, as Considerações Finais selecionam, em um texto breve e
sistemático, as idéias essenciais que integram a totalidade da Dissertação.
O campo de conhecimento científico em que a pesquisa se insere é o da
Teoria Geral do Direito, mais especificamente o da Teoria Geral do Direito Constitucional.
A abordagem é descritiva em vez de prescritiva. A pesquisa não
envolveu a pretensão de examinar o modo como devem os órgãos da jurisdição
constitucional proceder a fim de encontrar a solução justa para as controvérsias que
decidem, nem discutir os parâmetros de racionalidade e legitimidade a serem observados
no exercício da atividade, menos ainda questionar sobre a correção ou incorreção das
decisões examinadas. Procurou-se, apenas, constatar e evidenciar o aspecto fático da
construção judicial do direito constitucional no processo de julgamento das controvérsias
constitucionais.
As motivações da pesquisa relacionam-se com a convicção pessoal
quanto à sua relevância teórica e prática. No plano da teoria, importa conhecer as
singularidades do discurso constitucional para, a partir de então, atribuir à noção de
interpretação constitucional um significado coerente e adequado, que supere a idéia mítica
de uma atividade simplesmente reveladora de um sentido normativo pré-existente e que
permita identificar a dimensão e a gravidade do poder conferido à jurisdição
constitucional. No plano da prática política, releva estar advertido quanto à importância de
se tratar dos assuntos relativos à jurisdição constitucional com prudência e seriedade,
evidenciando-se, por exemplo, o senso de responsabilidade e rigor que deve presidir a
IV
indicação e aprovação de juristas para uma cadeira dos tribunais constitucionais, porquanto
deles dependem decisões capitais sobre os limites do poder estatal e o estatuto jurídico dos
cidadãos.
Para efeitos da presente Dissertação, entende-se:
a) por jurisdição constitucional, o conjunto de autoridades investidas do
poder de decidir em definitivo sobre controvérsias cuja solução depende da aplicação de
normas constitucionais; nesse sentido, considerando a República Federativa do Brasil, a
jurisdição constitucional é exercida pelo Supremo Tribunal Federal e seus juízes;
b) por Estado Constitucional, um modo particular de organização das
relações entre governantes e governados no âmbito das comunidades nacionais,
essencialmente caracterizado pela aceitação de uma Constituição escrita ou não, que
funciona como a lei mais alta do ordenamento jurídico e que garante, através de um poder
judiciário independente e mesmo contra os poderes públicos, certos direitos fundamentais
que, de acordo com o consenso histórico, não podem ser negados nem abolidos em
desfavor dos indivíduos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a igualdade e o voto;
c) por construção judicial do direito, a atribuição ou adjudicação de
conteúdos ou significados normativos específicos aos textos legislativos (cujo sentido é
indeterminado) por meio de juízes e tribunais no julgamento de controvérsias.
Finalmente, quanto à metodologia, registre-se que a pesquisa adotou, na
fase de investigação, o método indutivo; na fase de tratamento dos dados, o método
cartesiano; e, relativamente ao relatório dos resultados, a base lógica indutiva.
1
1. ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E
CONSTITUIÇÃO ABERTA
1.1. O ESTADO LEGAL DE DIREITO
A expressão Estado de Direito possui, habitualmente, dois significados
diferentes. De acordo com Ferrajoli (2003, p. 13), em sentido amplo, Estado de Direito
designa qualquer “ordenamento em que os poderes públicos são conferidos pela lei e
exercitados nas formas e com os procedimentos legalmente estabelecidos
1
”. Por outro lado,
Ferrajoli assevera que existe outro sentido, forte ou substancial, para este Estado de
Direito, que designa aqueles “ordenamentos nos quais todos os poderes públicos estão
sujeitos à lei, não apenas com relação às formas, mas também com relação aos
conteúdos
2
”, ou seja, nesta acepção mais restrita, apenas são considerados Estados de
Direito aqueles ordenamentos em que todos os poderes, incluindo o legislativo, estão
vinculados em face de princípios substanciais, estabelecidos por normas constitucionais,
com divisão de poderes e garantia de direitos fundamentais
3
.
Desta forma, Ferrajoli (2003) sustenta que estes dois significados de
Estado de Direito
2
Além disso, Ferrajoli (2003) estabelece que estes dois modelos de Estado
refletem diferentes experiências históricas, ocorridas no continente europeu
4
, decorrentes
da alteração de paradigmas da estrutura do direito, da ciência jurídica e da jurisdição. A
primeira transformação, relativa à estrutura do direito, decorreu da afirmação do
monopólio estatal da produção jurídica, e, portanto, do princípio da legalidade como norma
de reconhecimento do direito válido, caracterizando a formação do Estado legislativo de
Direito.
Com efeito, como ensina Ferrajoli (2003, p.15), no direito anterior, ou
pré-moderno, não havia tradição ou formação legislativa, mas apenas jurisprudencial e
doutrinária, ou seja, “inexistia um sistema unitário e formalizado de fontes positivas, mas,
ao contrário, uma pluralidade de fontes e ordenamentos procedentes de instituições
diferentes e concorrentes - do Império, da Igreja, dos príncipes, dos municípios, das
corporações - nenhuma delas com o monopólio da produção jurídica
5
”. Desta forma, neste
momento histórico, o reconhecimento de uma norma como jurídica não dependia da sua
fonte de produção, mas de sua racionalidade intrínseca ou da justiça dos seus conteúdos.
Portanto, a partir da superação do paradigma jusnaturalista do direito pela
teoria positivista, nasce o Estado de Direito moderno, precisamente com a afirmação do
princípio da legalidade como critério exclusivo de identificação do direito válido e
existente, independentemente de sua valoração como justo, de modo que uma norma
jurídica não seria mais considerada válida por ser justa, senão, exclusivamente por ter sido
“posta” por uma autoridade dotada de competência normativa. Há, neste momento
histórico, uma inversão do princípio jusnaturalista, até então vigente, veritas, non
auctoritas facit iudicium para outro oposto, auctoritas, non veritas facit legem, princípio
convencional do positivismo jurídico, característico do Estado de Direito legalista.
4
A este respeito, Ferrajoli (2003) adverte que esta análise não contempla a experiência inglesa da rule of law,
que ainda que represente a primeira experiência de Estado de Direito em sentido forte, permaneceu sempre
ligada a tradição da common law e a inexistência de uma Constituição formal e por isso não pode ser
enquadrada em nenhum dos modelos que foram por ele apresentados.
5
En el Derecho premoderno, de formación no legislativa, sino jurisprudencial y doctrinal, no existía un
sistema unitario e formalizado de fuentes positivas, sino una pluralidade de fuentes y ordenamientos
procedentes de instituciones diferentes y concurrentes – el Imperio, la Iglesia, los príncipes, los municipios,
las corporaciones – ninguma de las cuales tenía el monopolio de la producción jurídica.” Cfe. Ferrajoli
2003, p. 15, tradução livre.
3
Hespanha (2005, p. 341) assinala que esta nova ordem política
estadualista chega à sua fase de institucionalização depois do período “programático e
experimental” correspondente à metodologia jusnaturalista da sociedade política medieval.
Ele registra, a propósito, que, no plano jurídico, “esta fase caracteriza-se pelo movimento
legalista e, sobretudo, pela tendência codificadora”, concluindo:
Os novos códigos, se, por um lado, procediam a um novo desenho das
instituições, correspondente à ordem social burguesa liberal, instituíam, por
outro, uma tecnologia normativa fundada na generalidade e na sistematicidade e,
logo, adequada a uma aplicação do direito mais cotidiana e mais controlável pelo
novo centro do poder – o Estado.
O Estado qualifica-se então como uma organização na qual o direito é
reduzido à lei, que passa a ser considerada, de acordo com Goyard-Fabre (2002), em seu
componente formal e não em seu componente material. Nas palavras da filósofa francesa:
Assim, em seu formalismo, o positivismo legal apresenta-se como um dos
maiores trunfos do Estado moderno e costuma ser apresentado pelos autores
como uma aquisição definitiva da ciência do direito. Por influência da
racionalidade cuja lógica intrínseca tende para a sistematização da ordem
jurídica, a natureza do direito acaba se confundindo com a forma estatutária da
lei. Desse princípio decorrem todas as características do positivismo: o estatismo
centralizador, a organização dedutivista do direito e, portanto, a coerência do
aparelho jurídico, a separação entre legalidade jurídica e legalidade moral, a
autonomização do direito que deve evitar, em seu formalismo, qualquer
referência a um horizonte de valor. (GOYARD-FABRE, 2002, p. 76)
Para Ferrajoli (1999), o Estado de Direito possui o princípio positivista
da superioridade da lei, equivalente ao princípio jacobino da onipotência do legislador, e,
portanto, do parlamento como órgão de soberania popular, que não encontra nenhum
limite, senão os de natureza formal, para produção de normas jurídicas.
De fato, com as leis ocupando a posição mais alta no ordenamento
jurídico do Estado de Direito, inexistia qualquer outra regra jurídica superior que fosse
capaz de estabelecer limites. Para Zagrebelsky (2002), contudo, isto não era necessário, na
medida em que a lei, que tudo podia, estava materialmente vinculada a um contexto
político-social ideal, definido e homogêneo, que continha as razões dos limites e da ordem,
sem a necessidade de prever nenhuma medida jurídica para assegurá-los, porquanto a
4
sociedade liberal do século XIX incorporava em si as regras de sua própria ordem, ou seja,
naquele panorama histórico, o monopólio político legislativo de uma classe social
relativamente homogênea determinava, por si mesmo, as condições de unidade da
legislação, fundadas nos princípios e valores do Estado nacional-liberal.
Da mesma forma, Canotilho (1999) ressalta que neste Estado de Direito,
afirma-se a soberania ou o primado da lei, com base na doutrina da soberania nacional
representada pela assembléia legislativa. Neste caso, o princípio da primazia da lei servia
para a submissão do direito ao poder político, sob um duplo ponto de vista: os cidadãos
têm a garantia de que a lei só pode ser editada pelo órgão legislativo, isto é, o órgão
representativo da vontade geral; e esta lei constitui a fonte de direito hierarquicamente
superior e, por isso, todas as medidas adotadas pelo poder executivo deviam estar em
conformidade com ela.
Entretanto, neste modelo estatal existe, tão-somente, uma vinculação
formal à lei, porquanto ainda que o direito estabeleça a forma de produção jurídica, não
reconhece qualquer limitação de conteúdo, de modo que inexistem âmbitos de exclusão da
atividade legislativa. Desta forma, o direito, nesta estrutura política, apresenta-se, de
acordo com Cademartori (1999, p. 25) “esvaziado de qualquer referente substancial ou
material e passa a ser uma forma vazia a ser preenchida por qualquer conteúdo”.
De acordo com Ferrajoli (2003), a formação do Estado de Direito foi
acompanhada de uma alteração de paradigma com relação à ciência jurídica. A partir da
afirmação do princípio de legalidade como norma de reconhecimento do direito existente,
a ciência jurídica deixa de ser uma ciência imediatamente normativa para converter-se em
uma disciplina tendencialmente cognitiva, ou seja, explicativa de um objeto, o direito
positivo, autônomo e separado dela.
Ferrajoli (2003, p. 16-17) sublinha, todavia, que essa mudança é mais de
forma do que de conteúdo da experiência jurídica. Com efeito, para esse autor, uma
comparação entre o Código Civil Napoleônico e as Instituições de Gaio não apontam
5
diferenças substanciais, mas, “o que deve ser ressaltado como a grande alteração é o título
de legitimação, que deixa de ser a autoridade dos doutores, para ser da autoridade da fonte
de produção
6
”. Enfim, somente a lei e o princípio da legalidade são as fontes de
legitimação e de produção de normas jurídicas no Estado de Direito. Ocorre, assim,
alteração do paradigma da jurisdição, porquanto a produção jurisprudencial é superada,
submetendo-se o direito à lei e ao princípio da legalidade como fontes únicas de
legitimação.
No mesmo sentido, Zagrebelsky (2002) assinala que neste modelo
político, o Estado de Direito era um Estado legislativo que se afirmava através do princípio
da legalidade, que, em geral, expressa a idéia da lei como ato normativo supremo e
irresistível ao qual, em linha de princípio, não é oponível nenhum direito mais forte,
qualquer que fosse sua forma e seu fundamento, nem o poder de exceção do rei e de sua
administração, em nome de uma superior “razão do Estado”, nem a aplicação, por parte
dos juízes ou a resistência dos particulares, em nome de um direito mais alto, o direito
natural, ou de direitos especiais, concluindo que o Estado de Direito e o princípio da
legalidade supõem a redução do direito à lei e a exclusão, ou pelo menos, a submissão de
todas as demais fontes do direito à lei.
Além disso, para Zagrebelsky (2002), a generalidade é a essência da lei
no Estado de Direito, ou seja, é um postulado fundamental deste Estado que a norma
legislativa atinja todos os sujeitos de direito, sem distinção, como garantia da
imparcialidade do Estado e da igualdade jurídica. O autor registra, ainda, que vinculada a
essa generalidade estava a idéia de abstração das leis, que atendia a uma exigência da
sociedade liberal ao garantir a estabilidade do ordenamento jurídico, e, por conseqüência, a
certeza e previsibilidade do direito.
Enfim, a concepção de direito própria do Estado de Direito, centrada no
princípio da legalidade, era a idéia do positivismo jurídico, como ciência da legislação
positiva, que pressupõe a concentração da produção jurídica em uma única instância
6
Lo que cambia es el título de legitimación, que ya no es la autoridade de los doctores, sino la autoridade
de la fuente de producción”. Cfe. Ferrajoli, 2003, p. 17, tradução livre.
6
legislativa, que significa a redução de tudo o que pertence ao mundo do direito ao disposto
pela lei, simplificação essa que leva a conceber a atividade dos juristas como um mero
serviço à lei. Justamente por essa razão, Kelsen (1987, p. 334) estabelece a unidade do
Estado e do direito, afirmando que “o Estado pode ser juridicamente apreendido como
sendo o próprio Direito – nada mais, nada menos”.
Com efeito, de acordo com Barroso (2003), o positivismo jurídico,
característico do Estado de Direito, correspondeu à importação do positivismo filosófico
para o mundo do direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características
análogas às ciências exatas e naturais. Neste contexto, o direito é norma, ato emanado do
Estado com caráter imperativo e força coativa, de modo que a ciência do direito deveria
fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em juízos de
valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade. Neste cenário, não é no
âmbito do direito que se deveria travar a discussão acerca de questões como legitimidade e
justiça, devendo separar-se o direito e a moral.
Entretanto, como registra Barroso (2003, p. 25), tal ambição positivista
de certeza jurídica” custou caro à humanidade, porquanto jamais foi possível uma
transposição totalmente satisfatória dos métodos das ciências naturais para a área de
humanidades, e o positivismo jurídico acabou se transformando em uma ideologia, movida
por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o direito, como
também de querer o direito. Enfim, a idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava
quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador de qualquer ordem
estabelecida, de modo que o “fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do
positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados”
(BARROSO, 2003, p.26).
De fato, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à
derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, porquanto esses movimentos
políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e
promoveram a barbárie em nome da lei. Como destaca Barroso (2003), os principais
acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a normas
7
emanadas da autoridade competente, o que determinou a rejeição da idéia até então
cristalizada de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma
estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto.
4(s ative).m
8
Uma coisa ficou clara. O formalismo da pandectística, com o relativismo
axiológico que lhe andava ligado, não armava suficientemente os juristas para,
enquanto juristas, se oporem a projetos políticos e jurídicos que negassem os
valores fundamentais da cultura européia. (HESPANHA, 2005, p. 49)
Até aquele momento histórico, como afirma Hespanha (2005), a
legitimidade do direito fundava-se exclusivamente no fato de ser estabelecido de acordo
com os processos constitucionalmente prescritos. Os seus valores de referência eram
desprovidos de conteúdo e apontavam apenas para a necessidade de observar uma forma, e
foi nestas circunstâncias que o nacional-socialismo subiu ao poder e, uma vez no poder,
pode instaurar uma nova forma que, por sua vez, legitimava a sua ação política, concluindo
assim que no “fim da Guerra, gerou-se, portanto, um movimento espontâneo de
refundamentação do direito em valores supra-positivos, indisponíveis para o legislador”
(HESPANHA, 2005, p. 470).
A crise do Estado de Direito de perfil meramente formalista ou legalista
encontra-se diretamente vinculada à crise da lei como mecanismo de regulação social do
Estado liberal. Segundo Prieto (1998), a crise provocou o deslocamento do Estado
legislador para o Estado Constitucional, ou seja, o império da Constituição sobre a lei,
como forma de assegurar a máxima vinculação de todos os poderes do Estado e a garantia
dos direitos fundamentais, deslocamento esse, que mais uma vez, proporciona alteração
nos paradigmas da estrutura do direito, da ciência jurídica e da jurisdição.
Com efeito, o resultado desta crise será o reconhecimento de uma norma
superior e o caráter plenamente normativo das Constituições como forma de assegurar a
máxima vinculação de todos os poderes do Estado e da produção normativa. De fato, uma
das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi atribuir à norma
constitucional o status de norma jurídica, superando-se o modelo jurídico no qual a
Constituição era vista como um documento essencialmente político e a concretização das
suas propostas ficava, invariavelmente, condicionada à liberdade de conformação do
legislador ou à discricionariedade do administrador, sem se reconhecer ao poder judiciário
um papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.
9
De acordo com Barroso (2005), a reconstitucionalização da Europa,
imediatamente após a Segunda Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século
XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do Direito Constitucional sobre as
instituições contemporâneas, e assim a aproximação das idéias de constitucionalismo e de
democracia “produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes
diversos: Estado Democrático de Direito, Estado Constitucional de Direito, Estado
Constitucional Democrático” (BARROSO, 2005, p.23).
Prieto (1998) acredita que a lenta e custosa evolução da justiça
constitucional na Europa é, de certo modo, a história que proporciona a substituição do
Estado Liberal de Direito pelo atual Estado Constitucional, cuja característica fundamental
é o controle de poder, e, antes de tudo, em primeiro lugar, o controle substantivo, a partir
dos direitos fundamentais.
Assim, se a primeira mudança de paradigma do direito se deu com o
nascimento do Estado Moderno e com a afirmação do princípio de legalidade como norma
de reconhecimento do direito positivo existente, uma segunda mudança, não menos radical,
é a produzida na segunda metade do século XIX, com a subordinação da legalidade às
Constituições rígidas, hierarquicamente supraordenadas às leis, como normas de
reconhecimento de sua validade.
Portanto, a partir do Estado Constitucional de Direito, a validade das
normas jurídicas não depende apenas da sua forma de produção, como ocorria no Estado
de Direito, senão também da coerência de seus conteúdos com as normas constitucionais.
A vigência das normas, que no paradigma positivista havia se dissociado da idéia de
justiça, dissocia-se agora da idéia de validez formal, sendo possível que uma norma
formalmente válida, e, por conseguinte vigente, seja substancialmente inválida pelo
contraste de seu significado com as normas constitucionais. Ocorre a superação do
paradigma típico do Estado de Direito, referente à estrutura do direito, porquanto neste
10
Altera-se, também, de acordo com Ferrajoli (2003, p. 18), o estatuto
epistemológico da ciência jurídica, porquanto no Estado Constitucional de Direito a
Constituição “não apenas disciplina as formas de produção legislativa, senão impõe
também proibições e obrigações de conteúdo, com relação aos direitos de liberdade e
outros direitos sociais, cuja violação gera antinomias ou lacunas que a ciência jurídica tem
o dever de eliminar ou corrigir
7
”.
Há, no Estado Constitucional de Direito, a afirmação do caráter
plenamente normativo das Constituições como forma de assegurar a máxima vinculação de
todos os poderes do Estado e a garantia dos direitos fundamentais, ou como assevera
Ferrajoli (1999), o rasgo distintivo do Estado Constitucional de Direito é, justamente, o
papel garantista da Constituição em relação à legislação.
Goyard-Fabre (2002, p. 112) assinala que a idéia-força que domina esta
concepção jurídica é a afirmação da supremacia do texto constitucional, que é visto como o
fundamento de toda ordem jurídica, de modo que sob a Constituição “a catedral jurídica se
organiza em sistema”, sendo este sistema a “expressão jurídica de uma racionalidade
lógico-formal”, ou seja, “a ordem constitucional é portadora de normatividade, de modo
que as regras de direito ganham figura, no âmbito estatal, de modelos de diretividade”.
Segundo Goyard-Fabre (2002, p. 117), para a “teoria constitucionalista, o critério da
legalidade não é outro senão a inscrição de uma regra ou a inserção de um comportamento
no edifício jurídico que tem como pedra angular a Constituição”.
A Constituição, nesta perspectiva política do Estado Constitucional de
Direito, é, verdadeiramente, a regra superior, “o estatuto matricial da institucionalização”
(GOYARD-FABRE, 2002, p. 126), de modo que qualquer lei ou enunciado de direito só
serão válidos se congruentes com a norma constitucional, ou seja, a Constituição é o
critério de validade da ordem jurídica.
7
“En efeto, en el Estado constitucional de Derecho la Constitución no sólo disciplina las formas de
producción legislativa sino que impone también a ésta prohibiciones y obligaciones de contenido,
correlativas unas a los derechos de liberdad y las otras a los derechos sociales, cuja vilación genera
antinomias o lagunas que la ciencia jurídica tiene el deber de constatar para que sean eliminadas o
corregidas”. Cfe. Ferrajoli, 2003, p. 18, tradução livre.
11
Zagrebelsky (2002, p. 34), por seu turno, estabelece que a principal
novidade da fórmula do Estado Constitucional é que a lei, pela primeira vez na época
moderna, vem submetida a uma relação de adequação, portanto, de subordinação a uma
categoria mais alta do direito, a Constituição. Neste cenário, há previsão de um direito
mais alto, dotado de força obrigatória, inclusive para o legislador, ou seja, “a lei, que antes
fora medida exclusiva de todas as coisas no campo do direito, cede espaço para a
Constituição e se converte, ela mesma, em objeto de medição
8
”.
Nesta nova perspectiva, o legislador já não é mais soberano para editar
lei com qualquer conteúdo, mas tem que ajustar sua política às exigências constitucionais.
Como assinala Prieto (1998), o Estado Constitucional tem como característica principal a
existência de um procedimento efetivo de controle de constitucionalidade das leis, bem
como, um controle sobre o exercício do poder em geral, a partir dos direitos fundamentais.
Nesta perspectiva, quaisquer leis, regulamentos administrativos ou decisões jurisdicionais
que estejam em desacordo com a norma constitucional, serão anulados através dos
procedimentos previstos no próprio texto constitucional.
Paralelamente, nesta perspectiva do Estado Constitucional de Direito,
altera-se o papel da jurisdição, que a
12
do ‘ser’ do Direito, ou seja, das suas condições de existência, mas também de seu ‘dever
ser’, ou seja, das opções que presidem a sua produção e, portanto, de suas condições de
validade
9
”.
Portanto, o Estado Constitucional de Direito decorre do reconhecimento
de determinados direitos como um patrimônio subjetivo individual, isto é, de uma
constitucionalização dos direitos, ou como esclarece Pozzolo (2003, p. 188), “o argumento
neoconstitucionalista parte do dado positivo da constitucionalização da carta de direitos –
bill of rights - ou seja, um catálogo mais ou menos detalhado de direitos fundamentais
10
”.
De acordo com Prieto (1998), o decisivo no Estado Constitucional de
Direito é a idéia de que a Constituição encarna uma ordem de valores ou uma unidade
material, concluindo que o papel que antes desempenhava o direito natural a respeito do
soberano, é desempenhado, agora, pela Constituição em face do legislador.
A este respeito, Ferrajoli (1999) sustenta que os direitos fundamentais
não devem ser vistos como limites externos, senão como autolimitações da soberania do
Estado, que não pode, por conseguinte, dispor sobre eles, ou seja, os direitos fundamentais
são barreiras à extensão do supremo poder legislativo, como defendia Locke (1973, p.
269), ao dispor que o pacto de fundação do Estado não implica jamais a alienação dos bens
outorgados a cada homem pela lei da natureza, contra a qual “não há sanção humana que
se mostre válida ou aceitável”.
Cademartori (1999) reforça este posicionamento, asseverando que no
Estado Constitucional de Direito, as Constituições passam a integrar um plano de
juridicidade superior, vinculante e indisponível, em linha de princípio, para todos os
poderes do Estado, os quais não podem, igualmente, dispor do sentido e conteúdo das
9
Por la sujeción a la ley incluso del poder legislativo, antes absoluto, y por la positivación no sólo ya del
ser del Derecho, es decir, de sus condiciones de ‘existencia’, sino también de su deber ser, o sea, de las
opciones que presiden su producción y, por tanto, de sus condiciones de ‘validez’”. Tradução livre. Cfe.
Ferrajoli, 2003, p. 19, tradução livre.
10
“[...] el argumento neoconstitucionalista parte del dato positivo de la constitucionalización del bill of
rights, o sea, de un catálogo más o menos detallado de derechos fundamentales”. Cfe Pozzolo, 2003.p. 187,
tradução livre.
13
normas constitucionais. Nesta nova estrutura política, as normas constitucionais são
vinculantes e estarão situadas acima dos poderes do Estado e fora do campo de ação e
conflito políticos, conquanto os poderes do Estado não podem dispor do sentido e conteúdo
das normas constitucionais.
Com efeito, Zagrebelsky (2002) sustenta que o direito constitucional
contemporâneo reconhece aos indivíduos um “patrimônio de direitos”, originário,
independente e protegido frente à lei, situação que se afasta da concepção revolucionária
francesa e se aproxima da tradição constitucional norte-americana. Realmente, a principal
característica das declarações americanas é a fundamentação dos direitos em uma esfera
jurídica que precede o direito que o legislador pode estabelecer, onde os direitos são
entendidos como patrimônio subjetivo dos cidadãos, anteriores à formação do próprio
Estado.
Analisando o contrato social defendido por Locke, Martins Neto (2003)
conclui que se trata de uma concepção de contrato que compreende nítida reserva de
conteúdos vinculantes, justamente uma Constituição de tipo material, com determinados
direitos naturais como limites ao legislador, ou seja, “Locke projeta uma idéia reforçada de
Estado de Direito, à medida em que submete o poder estatal a valores superiores, ou seja,
normas substantivas que ele próprio não poderá jamais revogar”, concluindo, mais à frente,
que a “estrutura lógica deste modelo é, pois, a de um Estado Material de Direito” em face
das “matérias tornadas indisponíveis ao legislador sob a forma de direitos fundamentais”
(MARTINS NETO, 2003, p. 105-106).
Para Peña (2003), a finalidade do Estado Constitucional é realizar ou
satisfazer os direitos básicos que estabelecem um marco fechado e tal objetivo se pretende
alcançar fundamentalmente assegurando a primazia da Constituição, na qual os direitos
ficam atrincheirados mediante dois instrumentos ou garantias: a rigidez constitucional e o
caráter normativo das Constituições. Miranda (1998), a propósito, registra que não se trata
de proclamar solenemente direitos subjetivos do homem, mas de afirmá-los como
princípios objetivos e institucionais do Estado, porquanto os direitos fundamentais são as
bases do Estado e a sociedade em que falte sua garantia não tem Constituição.
14
Como observa Andrade (1998, p. 27-28), a limitação efetiva do poder se
alcança através da consagração constitucional dos direitos, de modo que os direitos
fundamentais tornam-se, assim, direitos constitucionais, reunindo, por força da sua
dignidade formal, “as condições para que lhes seja reconhecida relevância jurídica positiva
com um valor superior ao da própria lei”, concluindo que “o caráter constitucional dos
direitos acabou sempre por gerar a garantia jurídica efectiva deles perante todos os poderes
públicos, incluindo o poder legislativo”.
Com efeito, é de suma importância para a caracterização do Estado
Constitucional de Direito não apenas a existência de uma Constituição como norma
superior e vinculante à produção normativa ordinária, mas também que esta Constituição
seja rígida, isto é, que possua normas específicas e qualificadas para sua alteração, e, além
disso, previsão de direitos fundamentais garantidos por cláusulas pétreas, imunes a
qualquer tipo de alteração legislativa.
Canotilho (1999, p. 91) aponta que a rigidez “traduz-se
fundamentalmente na atribuição às normas constitucionais de uma capacidade de
resistência à derrogação superior a qualquer lei ordinária”, ou seja, a Constituição possui
determinadas cláusulas que só podem ser modificadas através de um procedimento de
revisão específico e agravado com relação às outras leis do ordenamento, e mais, possui
determinadas cláusulas referentes aos direitos fundamentais que não podem, jamais,
mesmo através de procedimento especial, sofrer qualquer tipo de alteração, porquanto são
consideradas “referentes indisponíveis”.
De fato, Cademartori (1999, p. 29) sustenta que o constitucionalismo é
uma tentativa de superar a debilidade estrutural do âmbito jurídico e que a afirmação do
caráter jurídico e imediatamente vinculante da Constituição, sua rigidez e os direitos
fundamentais são signos deste processo, como conseqüência a forma constitucional cria
um “referente indisponível de legitimidade para o exercício do poder político (que Ferrajoli
chama de esfera do indecidível): a sua própria forma e exercício – submetida ao Direito,
democrática, de garantia – e os âmbitos de exclusão, como é o caso dos direitos
fundamentais”.
15
Para Guastini (2003, p. 49), um ordenamento jurídico constitucionalizado
se caracteriza por uma Constituição “extremamente invasora, intrometida”, capaz de
condicionar tanto a legislação como a jurisprudência e a doutrina e as relações sociais.
Analisando o modelo constitucional italiano, este autor aponta sete “condições necessárias
de constitucionalização
11
”, quais sejam: 1) uma Constituição rígida; 2) a garantia
jurisdicional da Constituição, isto é, a previsão de um sistema de controle de
constitucionalidade; 3) a força vinculante da Constituição; 4) uma “interpretação aberta
12
da Constituição por parte dos intérpretes oficiais; 5) aplicação direta das normas
constitucionais; 6) uma interpretação das leis infraconstitucionais em harmonia com a
Constituição; 7) a influência da Constituição sobre as relações políticas.
Zagrebelsky (2002), por outro lado, defende, ainda, como outro traço
característico do constitucionalismo do nosso tempo, a fixação, mediante normas
constitucionais, de princípios de justiça material destinados a informar todo o ordenamento
jurídico, ou seja, estabelece que os princípios de justiça são previstos na Constituição como
objetivos que os poderes públicos devem perseguir.
Em suma, em razão de todo o exposto, pode-se concluir que o Estado
Constitucional de Direito se caracteriza pela subordinação de todos os poderes constituídos
não apenas a limites formais, como aqueles impostos por normas de competência e
procedimento, mas também a limites materiais ou substantivos, como aqueles decorrentes
das normas de direitos fundamentais inscritas na Constituição, cuja validade superior e
rigidez absoluta impedem, sob pena de invalidade, a adoção de quaisquer leis ou atos que
contrariem o conteúdo das estatuições constitucionais.
11
Un ordenamiento jurídico constitucionalizado se caracteriza por una Constitución extremamente
invasora, entrometida (persuasiva, invadente, capaz de condicionar tanto la legislación como la
jurisprudencia y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos, así como las ralciones sociales.” Cfe.
Guastini, 2003, p. 49, tradução livre.
12
O que Guastini (2001, p. 51) chama de ‘sobreinterpetación de la Constitución”.
17
As normas de direitos fundamentais, como quaisquer normas atributivas
de direitos subjetivos, reconhecem aos seus titulares determinados poderes de agir e/ou de
exigir, que são correlativos de deveres de respeito por parte das demais pessoas, quer
públicas ou privadas, físicas ou jurídicas. Nesse sentido, Miranda (1998, p. 8) assevera que
“deve ter-se por direito fundamental toda a posição jurídica subjectiva das pessoas
enquanto consagrada na Lei Fundamental”, porquanto não existem direitos fundamentais
sem o reconhecimento de uma esfera própria das pessoas, na medida em que a noção de
direitos fundamentais abrange “verdadeiros e próprios direitos subjectivos, expectativas,
pretensões e, porventura mesmo, interesses legítimos”.
Para Alexy (1997b, p.25), a positivação desses direitos em uma Carta
Constitucional, com vinculação de todos os poderes do Estado, constitui “uma abertura do
sistema jurídico frente ao sistema moral, abertura que é razoável e pode ser levada a cabo
com meios racionais
13
”. Binenbojm (2004) corrobora este posicionamento, para concluir,
em conformidade com o entendimento de Dworkin, que os direitos fundamentais são
direitos morais, reconhecidos no seio de uma comunidade política, cujos integrantes são
tratados com igual respeito e consideração. Para Andrade (1998, p.27), os direitos
fundamentais “tornam-se, assim, direitos constitucionais, reunindo, por força dessa sua
dignidade formal, as condições para que lhes seja reconhecida relevância jurídica positiva
com um valor superior ao da própria lei”.
Segundo Ferrajoli (1999, p. 37), “são direitos fundamentais todos aqueles
direitos subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto
dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade”
14
. Assim, entende-
se por direito subjetivo “qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não
sofrer lesões) adstrita a um sujeito por uma norma jurídica” e associada a um dado status,
“a condição de sujeito prevista por uma norma jurídica positiva com pressuposto de sua
13
una apertura del sistema jurídico frente al sistema de la moral, apertura que es razonable y que puede ser
llevada a cabo con medios racionales”. Cfe. Alexy, 1997b, p. 25, tradução livre.
14
Son ‘derechos fundamentales’ todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a
‘todos’ los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con
capacidade de obrar.” Cfe. Ferrajoli, 1999, p. 37, tradução livre.
18
idoneidade para ser titular de situações jurídicas
15
”.
Martins Neto (2003, p.77), por sua vez, também compreende cada direito
fundamental como uma espécie de direito subjetivo
16
, ou seja, como uma prerrogativa,
“reconhecida a alguém e correlativa de um dever alheio suscetível de imposição coativa, de
dispor do dono, dentro de certos limites, de um bem atribuído segundo uma norma jurídica
positiva”. E observa que os direitos subjetivos podem ser divididos em direitos
fundamentais e direitos não-fundamentais ou direitos subjetivos comuns, diferenciando-se
uns dos outros, a nosso ver, por uma série de predicados que deles são privativos e que
estão associados ao valor excepcional que lhes é conferido, porquanto entendidos como
pressupostos jurídicos da dignidade da pessoa humana.
Em primeiro lugar, em função do princípio da supremacia da
Constituição, os direitos fundamentais caracterizam-se como imunes em face do legislador
ordinário, que está proibido de editar leis com eles desconformes. Nessa medida, por
desfrutarem de posição hierárquica, os direitos fundamentais produzem, nos casos de
incompatibilidade material com os conteúdos constitucionais, efeitos invalidatórios em
relação ao direito ordinário pós-constitucional e efeitos derrogatórios em relação ao direito
ordinário pré-constitucional. Produzem ainda, quando não houver incompatibilidade
irremediável, um importante efeito hermenêutico, que impõe seja o direito ordinário
interpretado de modo tal que não lhes contrarie o sentido.
Além disso, os direitos fundamentais gozam de proteção processual
diferenciada. São defensáveis por mecanismos processuais de argüição de
inconstitucionalidade, quer sob o modelo de controle concentrado ou abstrato, quer sob o
modelo de controle difuso ou concreto. Determinados direitos fundamentais gozam ainda,
para sua proteção, de ações ou remédios constitucionais específicos, como por exemplo, no
caso da Constituição do Brasil, o habeas corpus em relação à liberdade de locomoção, a
15
“[...] derecho subjetivo cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones)
adscrita a un sujeto por una norma jurídica; e por status la condición de un sujeto, prevista asimismo por
una norma jurídica positiva, como presupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas”.
Cfe. Ferrajoli, 1999, p. 37, tradução livre.
16
Do mesmo modo Robles (1995, p. 22) registra que os “derechos fundamentales son derechos subjetivos
privilegiados”.
19
ação popular em relação aos direitos políticos, o mandado de injunção em relação às
liberdades constitucionais e prerrogativas inerentes à soberania, cidadania e nacionalidade,
o habeas data em relação ao direito de informação e retificação sobre registros pessoais
constantes de bancos de dados de caráter público, ou ainda o mandado de segurança
individual ou coletivo para tutela de qualquer direito violado ou ameaçado por abuso de
autoridade.
Por fim, os direitos fundamentais – ou ao menos aqueles que se pretenda
reconhecer como verdadeiramente fundamentais - são dotados de rigidez absoluta. Nesse
sentido, são direitos insuscetíveis de revogação mesmo por meio de emendas
constitucionais. Como anota Martins Neto (2003, p. 87), os direitos fundamentais são
direitos subjetivos pétreos, que compõem o “rol dos conteúdos normativos declarados
insuscetíveis de abolição”. Do contrário, tais direitos não cumpririam a função de limitar
seriamente os poderes constituídos. A simples previsão de um procedimento legislativo
agravado para fins de alteração constitucional, constituindo mero limite formal, não seria
um obstáculo intransponível à sua revogação pelos governos. Conforme ensina Canotilho
(1999), são considerados limites absolutos de revisão todos aqueles que não possam ser
superados pelo exercício de um poder de revisão, e que são limites apenas relativos os que
se destinam a condicionar o exercício do poder de revisão, mas sem impedir a modificação
das normas constitucionais. Por isso, segundo Andrade (1998), os direitos fundamentais
dão unidade de sentido à Constituição, constituindo limites materiais ao poder de revisão
constitucional.
Ferrajoli (1999, p. 51) sustenta, a este propósito, que os direitos
fundamentais estão circunscritos dentro de uma “esfera do indecidível
17
”, imunes contra as
decisões da maioria e constituem núcleo da democracia substancial de um determinado
Estado. Portanto, conclui que os direitos fundamentais sancionados nas Constituições,
devem ser considerados muito mais como fontes de invalidação e deslegitimação do que
como fontes de legitimação, porquanto é certo que tais direitos existem como situações de
direito positivo estabelecidas nas constituições, e, evidentemente, por isso, “representam
17
De acordo com esse autor os direitos fundamentais “circunscriben la que podemos llamar esfera de lo
indecibible: de lo no decidible que, y de lo no decidible que no, es dicer, de las obligaciones públicas
determinadas por derechos sociales”. Cfe Ferrajoli, 1999, p. 51.
20
não uma autolimitação sempre revogável do poder soberano, senão, ao contrário, um
sistema de vínculos supraordenados a ele
18
”.
Para Peña (2003) os mecanismos como a rigidez constitucional ou o
controle de constitucionalidade podem ser entendidos como limitações que os indivíduos
titulares de direitos se impuseram, conquanto sabedores da possibilidade de que suas
decisões poderiam ser contrárias aos seus próprios direitos. Tal imposição, entretanto, foi
auto-imposta deliberada e democraticamente e assim a rigidez não pode ser considerada
como mecanismo autoritário ou anti-majoritário, senão, pelo contrário, como uma garantia
dos direitos constitucionalmente assegurados.
Em resumo, o que diferencia os direitos fundamentais dos direitos
subjetivos comuns são, efetivamente, a posição hierárquica, a proteção diferenciada e a
rigidez absoluta. Note-se, para ilustrar com o exemplo de um direito subjetivo comum, que
o direito de arrependimento contratual no prazo de sete dias nos casos de venda a
domicílio, previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei F. nº 8.078/90),
não apresenta nenhuma dessas características. E, justamente por essa razão, trata-se de
direito que, revogável a qualquer tempo, não constitui qualquer limite material à ação do
legislador, nem se qualifica como pressuposto da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, segundo Canotilho (1999, p. 353- 354), a positivação dos
direitos fundamentais significa a incorporação dos direitos subjetivos do homem,
considerados naturais e inalienáveis, no ápice da ordem jurídica positiva, isto é, na
Constituição, de modo que constitucionalização significa a incorporação dos direitos
humanos em normas formalmente básicas, “subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia
à disponibilidade do legislador ordinário”, e tem como conseqüência “mais notória a
protecção dos direitos fundamentais mediante o controlo jurisdicional da
constitucionalidade dos actos normativos reguladores destes direitos”. Além disso, e do
mesmo modo, para o autor, a fundamentalidade “aponta para a especial dignidade de
protecção dos direitos num sentido formal e num sentido material”, registrando acerca da
18
“[…] representam no una autolimitación siempre revocable del poder soberano, sino, al contrario, un
sistema de límites y de vínculos supraordenado a él.” Cfe. Ferrajoli, 1999, p. 53, tradução livre.
21
diferenciação entre essas fundamentalidades:
A fundamentalidade formal, geralmente associada à constitucionalização,
assinala quatro dimensões relevantes: (1) as normas consagradoras de direitos
fundamentais, enquanto normas fundamentais, são normas colocadas no grau
superior da ordem jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-se
submetidas aos procedimentos agravados de revisão; (3) como normas
incorporadoras de direitos fundamentais passam, muitas vezes, a constituir
limites materiais da própria revisão (cfr. CRP, art. 288. d e e); (4) como normas
dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos constituem parâmetros
materiais de escolhas, decisões, acções e controlo, dos órgãos legislativos,
administrativos e jurisdicionais.
[...]
A ideia de fundamentalidade material insinua que o conteúdo dos direitos
fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da
sociedade. (CANOTILHO, 1999, p. 355, grifos do autor).
Importa destacar, ainda, a importância da distinção entre direitos
fundamentais e não-fundamentais, que se efetiva em decorrência da positivação de
determinados direitos dotados de rigidez absoluta. Como esclarece Martins Neto (2003, p.
86), estar “ou não fora do alcance do poder de supressão na via da emenda constitucional é,
para um direito, tão diferente como seria, para um homem, ser ou não imortal”. Verifica-
se, assim, que a definição dos direitos fundamentais envolve uma opção política do poder
constituinte originário, porquanto a inclusão de determinado direito subjetivo neste grupo
envolve “uma escolha e um julgamento prévios quanto a quais são aqueles, em meio à
multidão heterogênea dos direitos previstos, que merecem ser ou não reconhecidos como
tais” (MARTINS NETO, 2003, p. 87).
Robles (1995) enfatiza que a decisão acerca de quais os direitos serão
considerados fundamentais é uma questão que cada ordenamento jurídico deve resolver,
especificando tais direitos na Constituição e garantindo-lhes um tratamento especial.
Assim, os direitos definidos em determinado ordenamento jurídico como fundamentais são
aqueles positivados na Constituição e protegidos de forma especial. Afinal, se não fosse
assim, não existiria forma de distinguir os direitos fundamentais daqueles outros que são,
por assim dizer, direitos correntes ou comuns.
A propósito, este entendimento está em afinidade com a idéia da
22
vinculação entre os direitos fundamentais e o princípio da dignidade humana, ou seja, de
que os direitos fundamentais integram um conjunto de prerrogativas imaginadas, de acordo
com Hesse (1998, p. 290), como “pressupostos jurídicos elementares da existência digna
de um ser humano”. Realmente, de acordo com Miranda (1998, p. 167), os direitos
fundamentais têm sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”, porquanto
mesmo aqueles direitos “projectados em instituições, remontam também à ideia de
protecção e desenvolvimento das pessoas.”. Os direitos fundamentais são pétreos
justamente porque imprescindíveis à dignidade humana.
Também para Andrade (1998) a positivação dos direitos e garantias
fundamentais no texto constitucional representa a concretização e o reconhecimento do
princípio da dignidade da pessoa humana. Sarlet (2001), do mesmo modo, registra, acerca
desta questão, que todos os direitos fundamentais encontram sua vertente no princípio da
dignidade humana. Robles (1995) destaca, a este respeito, com fundamento em Kant, que a
dignidade do ser humano não consiste, ao contrário do que é usualmente sustentado, no
fato de cada um poder exigir seus próprios direitos, senão, sobretudo que os direitos devem
ser os canais institucionais que permitam a realização dos deveres. Para este autor, a
dignidade da pessoa humana possui dois aspectos que não podem ser separados: um
interno: da pessoa como valor, reconhecendo-se e respeitando-se; outro externo, que deriva
do primeiro e consiste no reconhecimento pelos outros da dignidade que é inerente a todo
homem.
Como assinala Cittadino (1999, p. 156) o ideal de igualdade e dignidade
da pessoa humana que sustenta o reconhecimento positivo dos direitos fundamentais
pressupõe os indivíduos como agentes morais independentes, e, além disso, exige que os
“direitos fundamentais lhe sejam atribuídos para que tenham a oportunidade de influenciar
a vida política, realizar seus projetos pessoais e assumir as responsabilidades pelas
decisões que sua autonomia lhes assegura.” Na mesma esteira, Binenbojm (2004, p. 76)
sustenta que a idéia de dignidade da pessoa humana, “traduzida no postulado kantiano de
que cada homem é um fim em si mesmo, eleva-se à condição de princípio, valor-fonte do
qual decorrem direitos fundamentais do homem que não podem ser relativizados em prol
de qualquer projeto coletivo de bem comum”.
23
Por outro lado, esta concepção de direitos fundamentais se harmoniza
“com a tradição filosófica à qual mais diretamente se liga o longo processo de positivação
constitucional dos chamados direitos humanos” (MARTINS NETO, 2003, p.88). A
propósito, Perez Luño (1995, p. 43) registra que, ainda que a expressão direitos
fundamentais e sua formulação jurídico-positiva como direitos constitucionais seja um
fenômeno recente, suas raízes filosóficas remontam e estão intimamente ligadas aos
fundamentos históricos do pensamento humanista. Para este autor, os direitos fundamentais
representam o encontro da tradição filosófica humanista com as técnicas de positivação e
proteção reforçadas próprias do movimento constitucionalista e aparecem, portanto, como
“a fase mais avançada do processo de positivação dos direitos naturais nos textos
constitucionais do Estado de Direito
19
”.
Também para Prieto (1998), o reconhecimento dos direitos fundamentais
representa a transladação ao direito positivo da teoria dos direitos naturais elaborada pelo
jusnaturalismo racionalista desde o começo do século precedente: seu objeto, sua
finalidade, seus titulares e seu conteúdo resultam coincidentes. O objeto era, em ambos os
casos, preservar certos valores ou bens morais que se consideravam inatos, inalienáveis e
universais, como a vida, a propriedade e a liberdade.
E, na mesma linha, Ferrajoli (1999) destaca que o paradigma da atual
democracia constitucional é filho da filosofia contratualista, num duplo sentido: tanto no
sentido de que as Constituições são contratos sociais escritos e positivos, pactos fundantes
da convivência civil, como também no sentido de que a idéia do contrato é uma metáfora
da democracia, tanto da democracia política, que alude ao consenso dos contratantes e, por
conseguinte, vale para fundar, pela primeira vez na história, uma legitimação de poder
político de baixo para cima, como da democracia substancial, pois o contrato “não é um
acordo vazio, senão tem como cláusulas e a sua vez como causa, precisamente a tutela dos
direitos fundamentais, cuja violação por parte do soberano legitima a ruptura do pacto e o
19
“Los derechos fundamentales aparecen, por tanto, como la fase más avanzada del processo de positivación
de los derechos naturales en los textos constitucionales del Estado de Derecho” Cfe. Perez Luño, 1995, p.
43-44, tradução livre.
24
exercício do direito de resistência
20
”.
Para Ferrajoli (1999), a configuração do Estado como esfera pública
instituída e garantia de paz e dos direitos fundamentais, nasceu com Hobbes, ao consignar
o direito à vida como direito inviolável de todos, justificador da criação do Estado como
superação do estado de natureza. O referido autor consigna que “esta esfera pública e este
papel garantista do Estado, limitados por Hobbes de maneira exclusiva a tutela do direito à
vida, se estenderam historicamente, ampliando-se a outros direitos que em ocasiões
distintas foram se afirmando como fundamentais
21
”, desde os direitos civis e de liberdade,
passando pelos direitos políticos, até os direitos sociais e difusos. Nessa medida, conclui
que os “direitos fundamentais se afirmam sempre como leis do mais fraco em
contraposição à lei do mais forte
22
”, e que a história do constitucionalismo é a história da
progressiva ampliação da esfera pública dos direitos.
Além disso, importa destacar, como adverte Hesse (1998, p. 228), que os
direitos fundamentais, ainda quando organizados sob a forma de direitos subjetivos,
possuem um caráter duplo, não apenas determinando e assegurando a posição jurídica do
particular, mas funcionando, igualmente como “elementos fundamentais da ordem objetiva
da coletividade”. De acordo com Guerra Filho (1999, p. 39), os direitos fundamentais não
têm apenas uma dimensão subjetiva, mas também outra, objetiva, onde “os direitos
fundamentais se mostram como princípios conformadores do modo como o Estado que os
consagra deve organizar-se e atuar.”
No mesmo sentido, Perez Luño (1995, p.20-21) aduz que os direitos
fundamentais “se apresentam na normativa constitucional como um conjunto de valores
20
“[...] este contrato no es un acuerdo vacío, sino que tiene como cláusulas y a la vez como causa,
precisamente la tutela de los derechos fundamentales, cuya violación por parte del soberano legitima la
ruptura del pacto y el ejercicio del derecho de resistencia” Cfe. Ferrajoli, 1999, p. 53-54, tradução livre.
21
Esta esfera pública y este papel garantista del Estado, limitados por Hobbes de manera exclusiva a la
tutela del derecho a la vida, se extendieron históricamente, ampliándose a otros derechos que en distintas
ocasiones fueron afirmándose como fundamentales.” Cfe. Ferrajoli, 1999, p. 54, tradução livre.
22
“Los derechos fundamentales se afirman siempre como leyes do más débil en alternativa a la ley del más
fuerte que regía y regiría en su ausencia.” Cfe. Ferrajoli, 1999, p. 54, tradução livre.
25
básicos
23
”, e assim têm, igualmente, a função de “sistematizar o conteúdo axiológico
objetivo do ordenamento democrático a que a maioria dos cidadãos presta o seu
consentimento
24
”, representando, desta forma, um ponto de mediação e síntese entre as
exigências das liberdades tradicionais individualistas com o sistema de necessidades de
caráter econômico, cultural e coletivo tutelados pelos direitos sociais.
A propósito, Sarlet (2001, p.142-143) sustenta que os direitos
fundamentais não se limitam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do
indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões
“valorativas de natureza jurídica-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o
ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e
executivos”. Para o autor, os direitos fundamentais funcionam no âmbito da ordem
constitucional “como um conjunto de valores básicos e fins diretivos da ação positiva dos
poderes públicos”. Em função desta dimensão objetiva, os direitos fundamentais poderiam
extrapolar sua condição de direitos subjetivos, funcionando como diretrizes aptas a
condicionar a interpretação do direito infraconstitucional, repercutir nas relações jurídicas
privadas e impor o dever de promoção por parte dos poderes públicos.
1.4. A TEXTURA ABERTA DA CONSTITUIÇÃO
De acordo com as considerações precedentes, o Estado Constitucional de
Direito funda-se, em geral, em uma Constituição escrita, à qual se reconhece o status de lei
mais alta do ordenamento jurídico e cuja principal função normativa consiste em organizar
o poder político (seus órgãos, competências e procedimentos) e, por meio de disposições
dotadas de rigidez absoluta (cláusulas pétreas), declarar os direitos fundamentais e suas
garantias. Contudo, na generalidade das nações contemporâneas do mundo ocidental, a
Constituição dá-se a conhecer por meio de um discurso cujo sentido normativo é
acentuadamente problemático e normalmente duvidoso em função de uma característica
muito peculiar: a textura aberta das normas constitucionais.
23
“Los derechos fundamentales se presentan en la normativa constitucional como un conjunto de valores
objetivos básicos”. Tradução livre. Cfe. Perez Luño, 1995, p. 20, tradução livre.
24
Su función es la de sistematizar el contenido axiológico objetivo del ordenamiento democrático, al que la
mayoría de los ciudadanos prestan su consentimento.” Cfe. Perez Luño, 1995, p. 21, tradução livre.
26
A Constituição diz-se aberta à medida que se compõe, em grande
número, de preceitos que, como os relativos aos direitos fundamentais, no dizer de
Andrade (1998, p. 120):
Formam apenas uma ordem-quadro: não contêm uma regulamentação detalhada
e completa das relações indivíduo-Estado; estabelecem apenas, através de
fórmulas concisas e lapidares, os princípios e os valores fundamentais do
estatuto das pessoas na comunidade, que hão de ser concretizados
problematicamente no momento da sua aplicação.
Com efeito, por ser a Constituição uma ordem jurídica fundamental,
destinada a fixar não mais que uma disciplina de base para as relações entre o poder estatal
e os indivíduos, suas normas tendem a ser enunciadas com mais concisão e menos
desenvolvimento no comparativo com as disposições do direito ordinário.
No mesmo sentido, Canotilho (1999, p. 1331-1332) identifica na
Constituição uma “ordem-aberta”, que decorre da sua “pretensão de dinamicidade tendo
em conta a necessidade de ela fornecer aberturas para as mudanças no seio político”. O
autor consigna, ainda que, para ser uma ordem aberta, a Constituição terá de ser também
uma “ordem-quadro, uma ordem fundamental e não um código constitucional
exaustivamente regulador”, concluindo, assim, que a “ordem-quadro fixada pela
constituição é necessariamente uma ordem parcial e fragmentária, carecida de uma
actualização concretizante”.
Zagrebelsky (2002, p. 12-15) destaca que essa visão aberta da
Constituição se afirmou progressivamente como resultado das sociedades pluralistas, nas
quais a lei maior “não é um ponto de chegada, mas ponto de partida
25
”, o que lhe confere
uma característica dúctil
26
. Ele registra, a propósito, que o direito constitucional é “um
25
“[...] más bien como centro a alcanzar que como centro del que partir”. Cfe. Zagrebelsky, 2002, p. 14,
tradução livre.
26
Mite, no original em italiano. A tradução desta expressão é justificada pela tradutora da obra de
Zagrebelsky, Marina Gascón, em nota de rodapé, de número 11, presente às folhas 19, onde esclarece: “He
escogido, sin embargo, el término “ductilidad” para traducir el original italiano mitezza. Dúctil, en la
lengua castellana, además, de su significado original, se utiliza en sentido figurado para indicar que algo o
alguien es acomodadizo, dócil, condescendiente, por lo que me parece que se ajusta bien al significado que
el autor há querido transmitir con el término mite. [...] Desde luego, la elección no es incontestable, pues no
27
conjunto de materiais em construção, mas o edifício concreto não é obra da Constituição
enquanto tal, senão de uma política constitucional que versa sobre as possíveis
combinações desses materiais
27
”.
A textura aberta do discurso constitucional implica que as normas
constitucionais, notadamente as jusfundamentais, desfrutem de uma limitada autonomia
regulativa, no sentido de que, em inúmeras situações controvertidas, não veiculam uma
solução que possa ser direta ou obviamente extraída do texto constitucional em si mesmo.
Com efeito, e apenas para ilustrar, quando a Constituição proclama, em
poucas palavras, que todos são iguais perante a lei ou que a liberdade de expressão não
pode ser restringida, parece manifesto que o texto é pouco esclarecedor sobre inúmeras
questões pontuais que podem surgir com respeito ao seu alcance. Será discutível, por
exemplo, se a cláusula da igualdade proíbe o governo de implementar um programa
assegurando a grupos tidos por desfavorecidos privilégios na admissão a universidades
públicas, ou se a cláusula da liberdade de expressão é compatível com a defesa de idéias
racistas.
Por isso, da textura aberta da Constituição, decorre o seu inevitável
dinamismo. Como anota Fallon (2004, p. 01), o direito constitucional é uma complexa
prática social, cultural e política que inclui muito mais do que a Constituição escrita. E
ressalta:
Muito comumente, entretanto, a ‘interpretação’ da Constituição depende de uma
série de considerações externas ao texto. Essas incluem as práticas históricas do
Congresso, do Presidente, decisões judiciais prévias ou ‘precedentes’,
expectativas públicas, considerações práticas, e valores morais e políticos. Ao
falar da lei constitucional como uma ‘prática’, eu tenciono demonstrar que
fatores como estes são elementos do processo do qual a lei constitucional
emerge
28
.
deja de ser heterodoxo en el contexto jurídico llamar “dúctil” al derecho, pero lo mismo se sucede con la
utilización del término mite en la cultura jurídica italiana”.
27
“[...] es un conjunto de materiales de construcción, pero el edificio concreto no es obra de la Constitución
en cuanto tal, sino de una política constitucional que versa sobre las posibles combinaciones de esos
materiales”. Cfe. Zagrebelsky, 2002, p. 13, tradução livre.
28
Very commonly, however ‘interpretation’ of the Constitution depends on a variety of considerations
external to the text. These include the historic practices of Congress, and the President, previous judicial
decisions or ‘precedents’, public expectations, practical considerations, and moral and political
values. By
28
Com efeito, caracterizando-se a Constituição como um sistema aberto de
normas, parece correto admitir que os seus conteúdos de regulação, uma vez que não se
encontram previamente fixados com exatidão, sejam gerados e reelaborados no curso do
tempo e sob a pressão dos eventos através de procedimentos constitucionais integradores,
os quais fazem a Constituição passar, como diz Canotilho (1999, p. 1089), “de uma law in
the books para uma law in action, para uma living constitution”.
Dentre os instrumentos de concretização e atualização da Constituição,
tem papel de relevo a jurisdição constitucional, exercida, no caso do Brasil, pelo Supremo
Tribunal Federal. De acordo com Hesse (1998), a tarefa da jurisdição constitucional é a de
decidir os casos de direito constitucional controvertido.
Nas nações cujo direito se formou sob a base da tradição romano-
germânica, é ainda forte a idéia de que tribunais e juízes decidem controvérsias
constitucionais simplesmente aplicando o texto constitucional de forma mecânica.
Entretanto, não poucas vezes as cortes constitucionais são compelidas a encontrar uma
regra decisória que não pode ser diretamente extraída do texto constitucional em si mesmo
e que, por isso, é originariamente elaborada na resolução do caso submetido a julgamento,
uma vez que jamais havia sido antes estabelecida em seu conteúdo específico.
Mencione-se, por exemplo, no caso do Brasil, a decisão proferida no
Habeas Corpus nº 71373-4-RS
29
, em que o Supremo Tribunal Federal, por maioria,
entendeu inadmissível que, em ação de investigação de paternidade, seja o réu submetido,
contra a sua vontade e sob constrangimento físico, à coleta do material indispensável ao
exame de DNA. Tal decisão, em sua especificidade, e ainda que possa parecer a alguns
talking about constitutional law as a ‘practice’, I mean to signal that factors such as these are elements of
the process from witch constitutional law emerges”. Cfe. Fallon, 2004, p.01, tradução livre.
29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Habeas Corpus n. 71373-4. Rio Grande do Sul.
Paciente: José Antônio Gomes Pinheiro Machado. Impetrante: José Antônio Gomes Pinheiro Machado.
Coator: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Francisco Rezek. 10 de
novembro de 1994. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=HC&processo=71373&recurs
o=0&tip_julgamento=M>, acesso em 12 março de 2007.
29
justa e correta, não corresponde a uma solução constitucional previamente dada, ou que se
pudesse deduzir sem razoáveis objeções de algum enunciado textual da Constituição.
Em situações assim, os tribunais constitucionais participam ativamente
do processo de implementação do sentido das normas constitucionais, segundo motivações
muitas vezes externas ao próprio texto. Por isso, as decisões dos tribunais acabam por
inovar o sistema jurídico através da construção de conteúdos normativo-constitucionais
sobre questões capitais – como aquelas respeitantes aos direitos fundamentais -,
evidenciando que o exercício da jurisdição constitucional compreende mais que uma
função meramente interpretativa, tal como normalmente atribuída ao Poder Judiciário.
A propósito do assunto, examinando a experiência norte-americana,
Fallon (2004, p. 194) constatou que o exercício da jurisdição constitucional pela Suprema
Corte daquele país resultou inúmeras vezes em decisões que seriam melhor designadas
como implementações de valores constitucionais do que como interpretações da linguagem
constitucional. Segundo ele, a Suprema Corte elaborou as decisões judiciais “a fim de
implementar valores constitucionais, mas elas não surgiram da Constituição através de um
processo que poderia ser naturalmente descrito como interpretação
30
”. Discorrendo sobre o
caso Gore x Bush – “o tipo de um “grande caso” que só aparece uma vez a cada
geração
31
” -, Fallon (2004, Prólogo) argumentou que a decisão da Suprema Corte refletiu,
mais do que uma solução ditada claramente pela Constituição e apurável pela mera
interpretação, o sentimento de justiça dos juízes que perfilaram a posição vencedora. Por
isso que, para Fallon (2004), a imagem de que tribunais e juízes decidem casos
constitucionais simplesmente aplicando o texto constitucional de forma mecânica é com
freqüência dramaticamente enganosa (“dramatically misleading”).
30
“[…] the Supreme Court has devised them in order to implement constitutional values, but they do not
emerge from the Constitution through a process that would naturally be described as one of interpretation”.
Cfe. Fallon, 2004, p. 194, tradução livre.
31
“[…] the kind of ‘great case’ that comes along no more than once in a generation”. Cfe. Fallon, 2004,
Prólogo, tradução livre.
30
Entendendo no mesmo sentido, Alexy (2003, p. 35), após ressaltar “o
caráter extremamente sucinto, lapidário e vazio das declarações do texto constitucional
32
”,
corretamente observa que, atualmente, não se pode deduzir o que representam os direitos
fundamentais a partir do sucinto texto da Lei Fundamental, senão através das decisões dos
tribunais constitucionais
33
. Para Alexy (2003), a expansão das idéias do Estado
Constitucional de Direito corresponde, pelo menos na Europa, ao desenvolvimento de uma
teoria e uma praxis constitucionais, segundo as quais, hoje em dia, não se pode
compreender o que representam os direitos fundamentais a partir do sucinto texto da
Constituição Alemã, senão apenas a partir dos 94 (noventa e quatro) volumes de sentenças
do Tribunal Constitucional Federal, ou seja, os direitos fundamentais são o que são,
sobretudo, através da interpretação.
Em função do caráter aberto e dinâmico das normas constitucionais, a
jurisdição constitucional constitui uma atividade que, segundo as lições de Andrade
(1998), transcende a mera interpretação, qualificando-se antes como judicialmente
criadora. Em suas palavras:
Não pode pretender-se que aqui a interpretação seja a procura de uma vontade
preexistente, à qual o intérprete deve obediência, pois as normas não contêm
uma regulamentação concreta definitiva ou inequívoca: não há uma vontade pré-
determinada, há sim um problema normativo a resolver. Poder-se-á dizer, com
HESSE, que, na maior parte dos casos, a decisão jurídico-constitucional ainda
não está tomada, que a aplicação das normas pressupõe uma actividade
interpretativa não meramente lógica [‘derivatio’], mas verdadeiramente criativa
[‘inventio’]. (ANDRADE, 1998, p. 121).
A textura aberta da Constituição parece estar associada a importantes
fenômenos normativos, tais como, a abstração dos conceitos, as colisões de princípios, a
não-tipicidade dos direitos fundamentais, entre outros. Fatores dessa ordem revelam-se
especialmente problemáticos no que concerne à aplicação das normas constitucionais por
juízes e tribunais quando, diante de controvérsias reais, deparam com a incumbência de
decidir com fundamento na Constituição. O próximo capítulo será dedicado ao exame
pormenorizado dos vários modos de aplicação do direito constitucional no processo de
32
“[...] el carácter sumamente sucinto y desde luego lapidario y vacío de las declaraciones del texto
constitucional”. Cfe. Alexy, 2003, p. 35, tradução livre.
33
No mesmo sentido: Hesse (1998, p. 45-52), Haberle (1997, p. 33-35), Capelletti (1999, p. 89), Barroso
(2004, p. 345-347), Guastini (2003, p. 53) e Sastre Ariza (2003, p. 239-241).
31
decisão judicial, de modo a apontar as causas pelas quais as normas constitucionais,
sobretudo as de direitos fundamentais, não contêm uma solução prévia ou óbvia para a
maior parte das controvérsias constitucionais, reclamando uma intervenção de natureza
criativa por parte dos órgãos encarregados de exercer a jurisdição constitucional.
32
2. MODOS DE APLICAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL NO PROCESSO
DE DECISÃO JUDICIAL
2.1. NORMAS JURÍDICAS E FUNÇÕES NORMATIVAS
Em Teoria e Filosofia do Direito é acirrada a disputa em torno do
conceito de norma jurídica. Em que pese, contudo, a variedade das formulações, parece
haver relativo consenso no sentido de que as normas jurídicas estatuem ao menos três tipos
elementares de conseqüências jurídicas, que podem ser expressas pelas modalidades
deônticas da proibição, do mandamento e da permissão
34
.
A rigor, como ensina Kelsen (1986, p. 120-121), proibição e
mandamento (ou imposição) “não são duas diferentes funções, mas uma e a mesma função
com referência à conduta diferente: uma ação e uma omissão desta ação”. Com efeito, a
proibição equivale à imposição de um não-fazer, e o mandamento, à imposição de um
fazer. A permissão, por sua vez, implica uma faculdade de agir ou um poder de exigir
35
.
Considerando-se a Constituição do Brasil de 1988, verifica-se, por
exemplo, que: a) a norma constitucional segundo a qual não haverá penas de morte, de
caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis (art. 5º, XLVII, a, b, c, d, e
34
De acordo com Vilanova (1976, p. 86-89) “a partícula operatória do deôntico é o dever-ser. Esta partícula
não enuncia um predicado de um sujeito, conotando-o ou incluindo-o (extensionalmente), como indivíduo
pertencente a um conjunto”. Trata-se de um termo relacional, que estatui relação entre os sujeitos do direito e
os tipos de ações ou condutas, “decorrentes da verificação de pressupostos fáticos, que tomam o papel
sintático de proposições antecedentes de uma relação hipotética”. Neste sentido, os antecedentes funcionam
como pressupostos que descrevem uma ocorrência ligando à verificação desse pressuposto, na ordem dos
fatos, a conseqüência, esta sim, normativa. Portanto, o deôntico não reside no antecedente (pressuposto), mas
no conseqüente. Na mesma linha, posiciona-se Ferraz Jr. (1999, p. 53-56) asseverando que a “lógica deôntica
costuma definir as ‘proposições normativas como prescrições, isto é, proposições construídas mediante os
operadores ou funtores ‘obrigatório/ proibido e ‘permitido’, aplicados a ações. Naturalmente, não às ações
mesmas (plano empírico), mas à sua expressão lingüística”. Ou seja, a lógica deôntica trata tais fórmulas
como operadores deônticos, através dos quais, os comportamentos expressos na norma adquirem um status
deôntico.
35
Segundo Bobbio (1995) o significado da expressão normas permissivas é ambíguo. Para o autor, existem
duas categorias diferentes de tais normas: as normas permissivas em sentido próprio, que atribuem uma
faculdade ou licitude, e as normas atributivas, que conferem um poder. Estas duas categorias de normas são
geralmente indicadas com o mesmo termo de permissivas, porque ambas são formuladas usando o mesmo
verbo “poder”, que, porém, assume dois significados diferentes: nas normas permissivas stricto sensu, poder
significa ser lícito, enquanto nas atributivas significa, em vez disso, deter o poder.
33
e), estatui uma proibição, impondo ao legislador o dever de não produzir leis penais
instituindo sanções desse tipo; b) a norma constitucional segundo a qual o dever do poder
público em matéria de educação compreende a oferta de ensino fundamental obrigatório e
gratuito (art. 208, I) estatui um mandamento, impondo ao administrador a obrigação de
prestar o serviço público especificado; c) a norma constitucional que assegura a liberdade
de manifestação do pensamento estatui uma permissão (art. 5º, IV), consentindo aos
indivíduos a exteriorização de suas idéias e opiniões.
Alexy (1997b) adverte que, no marco da construção escalonada do
ordenamento jurídico, as normas jusfundamentais permissivas têm a função enormemente
importante de fixar os limites do dever-ser com relação às normas de grau inferior,
proibindo ao legislador infraconstitucional impor condutas diversas daquelas desde logo
constitucionalmente autorizadas. Além disso, Alexy observa que:
Desde a perspectiva do titular do direito fundamental, as normas jusfundamentais
se apresentam, entre outras coisas, como normas que conferem permissões.
Desde uma perspectiva orientada pela concepção de uso da linguagem geral, isso
torna plausível a suposição de normas
34
norma em questão assume a natureza de um mandamento. Assim, em virtude do caráter
bilateral das regulações jurídicas, e dependendo da perspectiva que se adote, proibição,
mandamento e permissão podem ser relacionados a uma mesma norma jurídica.
A este propósito, Bobbio (1995, p. 188) esclarece:
Enquanto na norma permissiva encontramos a faculdade que é oposta ao dever,
na norma atributiva encontramos o poder que é correlato ao dever. A norma
atributiva, portanto, confere a um dado sujeito um poder, mas tal poder por parte
do sujeito comporta sempre e necessariamente um dever por parte do outro
sujeito; por exemplo, enquanto o credor tem o poder de exigir o pagamento da
soma emprestada, o devedor tem o dever de restituir tal soma. Esta correlação é
recíproca, no sentido de que, como o poder implica o dever, assim também o
dever implica o poder. Se a norma atribui um dever a um sujeito, atribui um
poder a um outro sujeito.
Nada disso invalida a conclusão de que proibir, ordenar e permitir são
funções ou conseqüências jurídico-normativas, compatíveis, inclusive, com as normas de
dimensão constitucional, especialmente as jusfundamentais. Ocorre que saber quais são as
condutas especificamente proibidas, ordenadas ou permitidas, ou sob quais situações e
circunstâncias específicas haverá de incidir uma dada proibição, mandamento ou
permissão, é algo que nem sempre se pode facilmente estabelecer a partir da simples
leitura do texto constitucional carente de aplicação judicial, mas algo que, ao contrário,
reclama operações de raciocínio de bastante complexidade, conforme se examina a seguir.
2.2. O SILOGISMO DE SUBSUNÇÃO
Segundo uma concepção tradicional, da qual Larenz (1997) é um dos
maiores expoentes, as normas jurídicas, ao menos quando completas, se compõem de
pressuposto de fato e conseqüência jurídica. Larenz (1997, p. 351) sustenta que a norma
ou a proposição jurídica
38
associa à situação de fato circunscrita de modo geral, isto é, à
previsão normativa, uma conseqüência jurídica, também ela circunscrita de modo geral, e,
38
Para Larenz (1997, p. 349-350) o termo proposição jurídica é empregado com significado idêntico ao de
norma jurídica, aduzindo para tanto que “a norma jurídica só pode ser expressa como proposição (ou nexo
de proposições)”.
35
assim, tal associação determina que “sempre que se verifique a situação de facto indicada
na previsão normativa, entra em cena a conseqüência jurídica, quer dizer, vale para o caso
concreto”. Por isso, segundo Larenz, a norma jurídica contém a ligação de um evento
fático, tal como está descrito na previsão normativa, a uma conseqüência jurídica que se
situa no âmbito do juridicamente vigente e que, por isso, “entra em vigor com a realização
do pressuposto de facto”.
Expressando tais idéias sob um modelo lógico, Larenz (1997, p.358)
explica que a norma jurídica completa constitui uma proposição hipotética, que quer dizer:
“sempre que uma situação de facto concreta S realiza a previsão P, vigora para essa
situação de facto a conseqüência jurídica C; mais concisamente: para cada caso P vigora
C”. Desse modo, a “estatuição de normas é um acto constitutivo, mediante o qual factos e
relações são conformados no plano do juridicamente vigente”.
Muito embora a teoria jurídica contemporânea (ver item 2.3., a seguir)
defenda a existência de espécies normativas – os chamados princípios - que não
reproduzem esse modelo hipotético clássico, é fora de dúvida que a Constituição do Brasil
de 1988 contém, inclusive em seu catálogo de direitos fundamentais, normas com esse
exato perfil estrutural. Mencione-se, por exemplo, a norma segundo a qual “no caso de
iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular,
assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” (art. 5º, XXV), ou a
norma segundo a qual “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o
que ficar preso além do tempo fixado na sentença” (art. 5º, LXXV).
Por isso, sem prejuízo do reconhecimento de eventuais singularidades
distintivas do direito constitucional, parece correto sustentar que a aplicação das normas
constitucionais de tipo hipotético, inclusive as jusfundamentais por esse modo estruturadas,
acaba por reclamar a adoção de procedimentos metodológicos análogos àqueles que desde
há muito são reconhecidos como adequados ao direito ordinário nos sistemas de direito
escrito, bem como suscita semelhantes dificuldades. Daí porque é importante examinar tais
procedimentos e dificuldades, a fim de melhor compreender uma parteé
36
De acordo com a concepção descrita
39
, a estrutura lógica de uma norma
jurídica completa compreende o pressuposto de fato mais a conseqüência jurídica, ou seja,
a enunciação abstrata do pressuposto fático de incidência da conseqüência jurídica
normativamente imputada para o caso de verificação concreta do fato descrito. Por isso,
para efeitos de determinar, no processo de aplicação de normas de tal natureza, se a
conseqüência jurídica nela prevista incide em determinada situação de fato real, impõe-se
verificar se esta corresponde ou se enquadra no âmbito da previsão fática abstrata.
Por exemplo: diante da norma do art. 927 do Código Civil brasileiro,
segundo a qual “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a o75 0dano d o75 ejadanüênhecia
37
Como se observa, diante de normas hipotéticas, a determinação da
incidência da conseqüência jurídica se realiza através de um silogismo, composto de três
partes: a premissa maior é a norma, que descreve a situação de fato abstrata e a liga à
conseqüência jurídica; a premissa menor é o juízo quanto à absorção de uma situação de
fato concreta na situação de fato abstrata; a conclusão é a afirmação de que, se a situação
de fato concreta cabe na situação de fato abstrata, então a conseqüência jurídica prevista na
norma incide ou vale para aquela situação de fato concreta. Larenz (1997) representa esse
silogismo com a seguinte fórmula: P – C (quer dizer, para todo caso de P vale C); S = P (S
é um caso de P); então para S vigora C.
Em termos análogos, Engisch (1972, p. 68-69) exemplifica o silogismo:
O juiz começa por estabelecer, com base no Código Penal, uma proposição
enunciativa geral do tipo: “O assassino deve, segundo o § 211 do Código Penal,
ser punido com prisão perpétua”. Com esta “premissa maior”, que é um genuíno
juízo normativo no sentido lógico (com pretensão de verdade), ele combina a
“menor”: M é assassino, para obter a partir daí a conclusão: “M deve, segundo o
§ 211 do Código Penal, ser punido com prisão perpétua”, que também é um juízo
em sentido lógico.
A aplicação do direito, pelo procedimento silogístico, pressupõe a correta
constituição das premissas. Para Larenz (1997), embora a premissa maior nem sempre
resulte evidente do texto da lei, o que propõe sérios problemas interpretativos, o ponto
fulcral da aplicação da lei diz respeito à premissa menor, ou mais precisamente, ao
julgamento quanto à correspondência ou não da situação de fato concreta em relação à
situação de fato abstratamente enunciada na norma. A obtenção da premissa menor, diz
Larenz (1997, p. 383), “ou seja, do enunciado de que S é um caso de P, denomina-se
comumente de processo de ‘subsunção’ ”, cujo esquema lógico de representação, proposto
por Larenz, é o seguinte: “P está caracterizada de modo pleno pelas notas N1, N2, N3. S
apresenta as notas N1, N2 e N3. Logo, S é um caso de P”.
Sobre a subsunção, discorrem inúmeros autores e, em que pese eventuais
e sutis diferenças conceituais que possam ser identificadas, o núcleo da idéia é recorrente.
Para Engisch (1972, p. 79), por exemplo, a subsunção pode ser entendida como o
38
enquadramento da situação de fato concreta e real, isto é, do caso, “na classe dos casos
designados pelo conceito jurídico ou pela hipótese abstracta da norma jurídica”. Para
Schapp (1985, p. 13), fundamental, no modelo de subsunção para aplicação da lei, é “a
idéia de que a lei é algo universal e que o caso a ser decidido pelo juiz, pelo contrário, seria
algo particular que poderia ser subsumido sob este universal”.
Entre nós, Ataliba (1992, p. 62) leciona que a subsunção “é o fenômeno
de um fato configurar rigorosamente a previsão hipotética da lei”, de modo que se diz que
“um fato se subsume à hipótese legal quando corresponde completa e rigorosamente à
descrição que dele faz a lei”. Grau (2003, p. 64) descreve a subsunção como um exercício
de “comprovação de que, em determinada situação de fato, efetivamente se dão as
condições de uma conseqüência jurídica”. Por sua vez, Lopes (2000, p. 142) anota que o
método pelo qual o juiz torna efetiva a aplicação do direito é o lógico”, procedendo “à
subsunção da norma jurídica exata aos fatos que lhe são presentes, conhecido previamente
o sentido da primeira”. Para Diniz (1981), denomina-se subsunção a superação do hiato
entre normas jurídicas e fatos, quando esses são enquadrados nos conceitos normativos
estabelecidos naquelas.
O processo de subsunção, contudo, é mais complexo do que parece. Os
pressupostos de fato das normas hipotéticas são geralmente concebidos com apoio em
conceitos abstratos, de modo que não fazem referência a acontecimentos específicos,
descritos a partir de características rigorosamente individualizadoras. O art. 927 do Código
Civil brasileiro, por exemplo, apela ao conceito abstrato de “ato ilícito” para estabelecer o
pressuposto de fato da incidência da obrigação de indenizar. Por sua vez, e para semelhante
efeito, o art. 5º, LXXV, da Constituição do Brasil de 1988, recorre ao conceito abstrato de
“erro judiciário”. Nenhuma dessas normas, como se pode perceber, desce ao ponto de
especificar situações, descrevendo-as em pormenores
40
.
40
É fato que o próprio Código Civil brasileiro, em seu art. 186, conceitua o ato ilícito como sendo a ação ou a
omissão voluntárias que, praticadas com negligência ou imprudência, violarem direito alheio e causarem
dano. Contudo, tal definição é ela mesma composta de uma série de conceitos abstratos, como os de “ação
ou omissão voluntárias”, “negligência”, “imprudência”, etc.
39
Assim, ao valer-se de conceitos abstratos na formulação do pressuposto
de fato, as normas hipotéticas não descrevem um caso singular, mas um universo de casos,
indicados por características gerais. O conceito de “ato ilícito”, por exemplo, abrange um
número indeterminado de acontecimentos possíveis, desde o atropelamento sobre a faixa
de segurança provocado por um motorista embriagado até o homicídio involuntário em
razão do disparo acidental de arma de fogo por um policial. Nesse sentido, “ato ilícito” é
um conceito abstrato à medida que se refere a um universo de situações que, embora
distintas, possam conter as características gerais do conceito. O mesmo pode-se dizer dos
conceitos de “erro judiciário” ou de “iminente perigo público”, entre tantos outros
constantes da Constituição do Brasil de 1988.
Entretanto, importa destacar que o universo de casos a que se refere um
dado conceito abstrato não é fixo, isto é, não está previamente delimitado, ainda que o
legislador pudesse ter tido em mente, ao adotar a norma, um certo número deles. Na
verdade, tal característica, no que concerne ao conteúdo lógico-formal do direito, é mesmo
da essência do estilo legal abstrato-generalizador, o qual, segundo Larenz, (1978)
justamente se aparta do estilo legal casuísta por não compartilhar da convicção de que seja
possível prever e regular adequadamente todos os casos futuros. Por isso, existem inúmeras
situações da vida real cuja pertinência a um dado conceito abstrato não está prévia ou, ao
menos, claramente configurada pela norma legislada.
De acordo com Larenz (1997), essa indefinição quanto ao alcance dos
conceitos explica-se em função da natureza dos meios de expressão lingüística e da
inevitável discrepância entre a regulação projetada para uma determinada realidade e a
variabilidade desta realidade, ou seja, o caráter fluído da maior parte dos fatos regulados.
Afinal, a linguagem ordinária, da qual na maior parte se serve à lei, não utiliza conceitos
estabelecidos exatamente em sua abrangência, mas expressões mais ou menos flexíveis,
cujo significado possível oscila numa ampla freqüência.
A este respeito, Carrió (2006) ressalta que a linguagem humana é
formada por “palavras gerais”, que servem para indicar grupos ou famílias de objetos,
fatos ou propriedades, e nesta característica da linguagem repousa a raiz das incertezas,
40
decorrentes da ambigüidade ou da vagueza, que podem gerar diversas perplexidades
capazes de frustrar a comunicação lingüística. Carrió (2006, p. 49) observa, ainda, que essa
não é uma característica apenas da linguagem comum, mas também da linguagem jurídica,
porquanto as normas jurídicas, enquanto autorizam, proíbem ou fazem obrigatórias certas
ações humanas, e “enquanto fornecem aos súditos e às autoridades pautas de
comportamento, estão compostas por palavras que têm as características próprias das
linguagens naturais ou são definíveis nos termos dessas
41
.
De fato, a linguagem normativa não é diferente da linguagem corrente.
Ambas compartilham características comuns, como o emprego de palavras vagas, isto é,
palavras cujo emprego suscita dúvida quanto à inclusão ou não de determinados fatos
concretos em seu campo de aplicação. De acordo com Ross (2003, p. 157), um texto é
sempre afetado pela “inevitável imprecisão de significado das palavras e nessa medida
jamais é claro ou isento de ambigüidade”. Deste modo, na interpretação de qualquer texto,
podem surgir situações atípicas diante das quais fica dúbio se o texto é aplicável ou não,
ainda que existam outras situações, de caráter típico, que não gerem tal perplexidade.
Afinal, de acordo com esse autor, a certeza da aplicação do texto em algumas situações não
justifica a afirmação geral de que o texto não é ambíguo.
Ross (2003, p.142) sustenta, ainda, que a referência semântica da palavra
possui uma zona central sólida, em que sua aplicação é predominante e certa, e um
nebuloso círculo exterior de incerteza, no qual a sua aplicação é menos usual, de modo que
se torna duvidoso saber se a palavra pode ser aplicada ou não. No seu entender, as palavras
têm significado vago, ou seu campo de referência é indefinido, “consistindo numa zona
central de aplicações acumuladas que se transforma gradualmente num círculo de incerteza
que abarca possíveis usos da palavra sob condições especiais não típicas”.
Para Carrió (2006), a vagueza ocorre sempre que uma palavra tem como
critério relevante de aplicação a presença de uma característica ou propriedade. Nestas
situações, existem casos claros, que estão evidentemente compreendidos ou não
41
“[…] en cuanto suministram a los súbditos y a las autoridades pautas de comportamento, están compuestas
por palabras que tienen las características propias de los lenguajes naturales o son definibles en téminos de
ellas.” Cfe.Carrió, 2006, p. 49, tradução livre.
41
compreendidos pela palavra, mas existem casos atípicos ou marginais, que não estão
claramente incluídos, nem excluídos. Estes casos, de aplicação duvidosa, estão situados em
uma “zona de penumbra”, que Carrió ilustra nos seguintes termos:
Todas as palavras que são utilizadas para falar do mundo, para aludir aos
fenômenos da realidade, têm as mesmas características.
A respeito de todas elas vale a seguinte metáfora esclarecedora. Existe um foco
de intensidade luminosa onde se agrupam os exemplos típicos, aqueles frente aos
quais não se duvida que a palavra seja aplicável. Há uma mediata zona de
obscuridade circundante onde estão todos os casos em que não se duvida que não
é aplicável. O trânsito de uma zona para outra é gradual; entre a total
luminosidade e a obscuridade total há uma zona de penumbra sem limites
precisos. Paradoxalmente ela não começa nem termina em nenhuma parte, e sem
embargo, existe
42
.
O fenômeno da “textura aberta da linguagem normativa” foi apontado
igualmente por Hart (1961, p. 140-143), ao observar que a linguagem geral em que a
norma jurídica é expressa “pode guiar apenas de um modo incerto”, ou seja, tão-somente
nos “casos de aplicação facilmente recognoscíveis”, mas não além disto. Por isso, Ross
(2003) afirma que a crença na interpretação literal é uma ilusão. Para o autor dinamarquês,
é errôneo crer que um texto legal possa ser tão claro a ponto de ser impossível suscitar
dúvidas quanto à sua interpretação. Desta forma, sempre que se faz a transição do mundo
das palavras ao mundo das coisas, defronta-se com uma “incerteza fundante insuperável”,
de modo que “tampouco a interpretação semântica é um processo mecânico”, conquanto,
com exceção dos casos de “referência clara e óbvia, o juiz tem que tomar uma decisão que
não é motivada pelo mero respeito à letra da lei” (ROSS, 2003, p. 164-165).
No mesmo sentido, Carrió (2006) observa que todas as palavras que
utilizamos para falar do mundo são potencialmente vagas, conquanto suas condições de
aplicação não estão determinadas em todas as direções possíveis; sempre podem existir
casos frente aos quais o uso não dita a aplicação do termo. Para Carrió (2006), o direito
42
“Todas las palabras que se usan para hablar del mundo, para aludir a los fenómenos de la realidad,
participan de las miesmas características. Respecto de todas ellas vale la siguiente metáfora esclarecedora.
Hay un foco de intensidad luminosa donde se agrupan los ejemplos típicos, aquelles frente a los cuales no se
duda que la palavra es aplicable. Hay una mediata zona de oscuridad circundante donde caen todos los
casos en los que no se duda que no lo es. El tránsito de una zona a outra es gradual; entre la total
luminosidad e la oscuridad total hay una zona de penumbra sin límites precisos. Paradójicamente ella no
empieza ni termina en ninguna parte, y sin embargo, existe”. Cfe. Carrió, 2006, p. 33-34, tradução livre.
42
legislado não resolve, em todas as circunstâncias, se um dado fato concreto está ou não
compreendido nas palavras que expressam a norma jurídica. Ainda que os casos típicos
não ofereçam maior dificuldade, os casos duvidosos reclamam um procedimento que vai
além da mera subsunção, uma vez que os esquemas normativos não os solucionam
previamente. Para considerar o caso como incluído ou excluído, o juiz se vê forçado a
adjudicar à norma um sentido que até então ela não tinha segundo os hábitos lingüísticos
estabelecidos, ou seja, deverá tomar uma “genuína decisão”.
Um breve relato de Engisch ilustra com precisão a afirmação de Carrió:
O § 243, nº 2, do Código Penal define o conceito e a hipótese do chamado furto
com arrombamento, dizendo que é aquele que se pratica quando “se furta de
dentro de um edifício ou espaço fechado, por meio de arrombamento...”. Ora
hoje sucede não raras vezes que alguém rasga a capota de um automóvel de
passageiros e furta lá de dentro objectos que aí se encontram, e.g., uma gabardine
ou uma pasta. Este furto deve ser subsumido à hipótese do § 243, nº 2? E que
significa aqui a “subsunção”? O Tribunal do Reich rejeitou outrora essa
subsunção. O § 243, nº 2, “não respeita ao caso”, pois o agente não furtou de
dentro de um edifício ou de um espaço fechado; edifícios e espaços fechados
seriam sempre partes delimitadas da superfície do solo ou da água...
Inversamente, o Tribunal Federal, ao fazer a nova “subsunção”, entendeu que um
automóvel fechado de passageiros é um “espaço fechado” no sentido (e para os
efeitos) do § 243, nº 2, do Código Penal. (ENGISH, 1972, p. 77).
Entretanto, Carrió (2006) ressalta que esta “genuína decisão”, isto é, esta
“adjudicação de sentido” à palavra, até então inexistente, não precisa ser arbitrária,
devendo estar fundamentada em outros critérios de justificação que não a norma em si
mesma. Nesta tarefa, o julgador será guiado por standards valorativos (sociais,
econômicos, políticos, etc.) à luz dos quais serão sopesadas e apreciadas as conseqüências
da inclusão ou da exclusão do fato no âmbito da norma jurídica.
Ross (2003) destaca que o processo de subsunção, ao contrário do que
defendia a teoria positivista-mecanicista, não é uma tarefa teórico-empírica, na qual o juiz
é tido como um autômato. Muito pelo contrário, para esse autor, trata-se de um ato de
vontade, um ato de decisão, porquanto a interpretação, no sentido de determinação do
significado como fato empírico, não conduz a qualquer resultado certo. Afinal de contas,
nenhum caso é óbvio, porquanto a “inevitável imprecisão das palavras e a inevitável
43
limitação da profundidade intencional fazem com que, freqüentemente, seja impossível
estabelecer se o caso é abarcado ou não pelo significado da lei” (ROSS, 2003, p. 166-167).
Todavia, o referido autor prossegue advertindo que, como o juiz não pode deixar de
cumprir sua tarefa de aplicar a lei ao caso concreto, “deverá escolher e esta escolha terá sua
origem, qualquer que seja o conteúdo, numa valoração” (ROSS, 2003, p. 167-168).
Desta forma, de acordo com Ross (2003, p. 168-169), a interpretação da
lei pelo juiz é “nesta medida, um ato de natureza construtiva, não um ato de puro
conhecimento”; revela-se, nesta atividade, a função criadora do juiz, que se cristaliza em
uma “interpretação construtiva, a qual é, simultaneamente, conhecimento e valoração,
passividade e atividade”. Ou seja, trata-se de “atividade emotivo-volitiva, fundada em
valorações sociais e em observações sociológico-jurídicas”. Nas palavras do autor:
O juiz é um ser humano. Por trás da decisão tomada encontra-se toda sua
personalidade. Mesmo quando a obediência ao direito (a consciência jurídica
formal) esteja profundamente enraizada na mente do juiz como postura moral e
profissional, ver nesta o único fator móvel é aceitar uma ficção. O juiz não é um
autômato que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões. É um
ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social, tomando decisões
que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural.
Seu respeito pela lei não é absoluto. A obediência a esta não constitui o único
motivo. Aos seus olhos a lei não é uma fórmula mágica, mas uma manifestação
dos ideais, posturas, padrões e valorações que denominamos tradição cultural.
[...] Em todos os casos, essas atitudes atuam participativamente na mente do juiz,
como um fator que motiva sua decisão. Na medida do possível, o juiz
compreende e interpreta a lei à luz da sua consciência jurídica material, a fim de
que sua decisão possa ser aceita não só como correta mas também como justa ou
socialmente desejável. [...] A decisão obtida é determinada pelo efeito
combinado da interpretação cognoscitiva da lei e da atitude valorativa da
consciência jurídica. (ROSS, 2003, p. 168).
No mesmo sentido, Correas (1995, p. 196), ao considerar que a tarefa de
interpretar é estabelecer o significado das palavras que descrevem as condutas obrigatórias,
proibidas ou autorizadas, cujo significado é arbitrário, conclui que “a certeza absoluta está
excluída por definição
43
”. Para o autor, não há “nenhuma possibilidade de dizer que uma
interpretação é a única correta, e muito menos a única possível
44
”.
43
“[...] la certeza absoluta está excluida por definición”. Cfe. Correas, 1995, p. 196, tradução livre.
44
“[...] no hay ninguna posibilidad de decir que una interpretación es la única correcta, y mucho menos la
única posible”. Cfe. Correas, 1995, p. 196, tradução livre.
44
Hart (1961, p.148-149) também reconhece que existem “na verdade,
áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos
tribunais [...] à luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que variam em peso, de
caso para caso”. É justamente neste espaço, ou seja, “nas franjas das regras” que os
“tribunais preenchem uma função criadora de regras”.
Por todas essas razões, o processo de subsunção não consiste numa
atividade meramente cognitiva, em que o juiz apenas constata a correspondência ou não
entre fatos e normas, tal como prévia ou nitidamente fixado pelo legislador. Na verdade,
por meio da subsunção, mais do que simplesmente constatar, o juiz estabelece a
correspondência ou não entre fatos e normas, intervindo ativamente no processo de
determinação do conteúdo do direito legislado. Isso vale, sobretudo, para os fatos ou casos
cuja inclusão no campo de significação do conceito normativo é duvidosa, porquanto a
respeito ainda não se formou uma convenção lingüística segura.
Assim, se é verdade que, em face de normas de tipo hipotético, a
incidência da conseqüência jurídica pressupõe a subsunção do caso singular aos conceitos
abstratos que compõem o pressuposto de fato, também parece certo que, nessa operação, os
juízes não atuam como meros descobridores de um sentido dado de antemão. Antes, eles
constroem, por meio de autênticas decisões, especialmente nos casos sem precedentes, o
próprio conteúdo de sentido da hipótese de incidência da norma, especificando as situações
que estão pela mesma abarcadas e aquelas que não estão nela compreendidas.
Decerto, as presentes considerações valem para as normas jurídicas em
geral, bem como para todos os ramos do direito, do civil ao penal, do empresarial ao
tributário. Porém, dado o excepcional grau de abertura do direito constitucional, parece
correto sublinhar por enquanto que, neste domínio, a demanda por uma intervenção
construtiva dos conteúdos normativos através dos tribunais constitucionais é muito mais
intensa, bem como maior é o ensejo ao surgimento de incertezas e controvérsias quanto à
abrangência dos conceitos e sua correspondência com a realidade factual.
45
2.3. A PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS
Juízes e tribunais não são chamados a compor conteúdos normativos
apenas por meio do processo de subsunção de casos singulares aos conceitos abstratos que
exprimem o pressuposto de fato de normas hipotéticas. Isso ocorre também através da
ponderação de princípios e, neste particular, a intervenção construtiva do poder judicial,
especialmente dos órgãos de jurisdição constitucional, se verifica num grau ainda mais
acentuado. Para examinar e demonstrar esse fenômeno, é importante partir da
caracterização das normas estruturadas sob a forma de princípios.
Em teoria constitucional, desfruta atualmente de grande prestígio a
distinção entre regras e princípios elaborada por Alexy a partir de Esser e Dworkin
45
.
Segundo essa concepção, tanto as regras como os princípios podem ser concebidos como
normas, de modo que a distinção se qualifica como uma distinção dentro da classe das
normas. Nesse sentido, regras e princípios constituem espécies do gênero norma. Alexy
aponta os critérios fundamentais da distinção nos seguintes termos (1997a, p. 162):
O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios
são mandados de otimização enquanto as regras têm o caráter de mandados
definitivos. Enquanto mandados de otimização, os princípios são normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as
possibilidades jurídicas e fáticas. Isto significa que podem ser satisfeitos em
graus diferentes e que a medida ordenada de sua satisfação depende não só das
possibilidades fáticas como jurídicas, que estão determinadas não só por regras
como também, essencialmente, pelos princípios opostos. Isto implica que os
princípios são suscetíveis de ponderação e, ademais, a necessitam. A ponderação
é a forma de aplicação do direito que caracteriza os princípios. Por outro lado, as
regras são normas que sempre ou bemo satisfeitas ou não o são. Se uma regra
vale e é aplicável, então está ordenado fazer exatamente o que ela exige; nada
mais nada menos. Neste sentido, as regras contém determinações no âmbito do
fática e juridicamente possível. Sua aplicação é uma questão de tudo ou nada.
Não são suscetíveis de ponderação e tampouco a necessitam. A subsunção é para
elas a forma característica de aplicação do direito
46
.
45
O próprio Alexy reconhece quela teoría de los principios aquí sostenida se vincula con la distinción de
Esser entre principio y norma y con la dicotomía de reglas y principios de Dworkin” (1997a, p. 185).
46
El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son mandatos de
optimización mientras que las regras tienen el carácter de mandatos definitivos. En tanto mandatos de
optimización, los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, de
acuerdo con las possibilidades jurídicas y fácticas. Esto significa que pueden ser satisfechos en grados
diferentes y que la medida ordenada de su satisfacción depende no solo de las possibilidades fácticas sino
jurídicas, que están determinadas no solo por reglas sino también, esencialmente, por los principios
opuestos. Esto último implica que los principios son susceptibles de ponderación y, además, la necesitan. La
46
A propósito, Dworkin (2002, p. 39-42) registra que a diferença entre
princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica, porquanto os “dois conjuntos de
padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias
específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem”. Neste
particular, ressalta que as regras “são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada”. Os
princípios, por outro lado, não funcionam deste modo, porquanto “mesmo aqueles que
mais se assemelham a regras não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem
automaticamente quando as condições são dadas”. Neste caso, o princípio “enuncia uma
razão que conduz ao argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita uma
decisão particular”. Desta forma, apenas na análise de um caso concreto é que se poderá
avaliar se cabe a aplicação de um determinado princípio. Contudo, podem existir outros
princípios que argumentem em outra direção, e tenham prevalência naquele caso concreto.
Mesmo assim, mesmo que um princípio tenha sua aplicação afastada em um determinado
caso concreto, em função da aplicação de outro princípio que argumente em outra direção,
“isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em
outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor
força, o princípio poderá ser decisivo”.
Segundo Alexy (1997b) a distinção entre regras e princípios se mostra
claríssima na forma diversa como são resolvidos os conflitos de regras e as colisões de
princípios. Nos dois casos, verifica-se a existência de normas que estatuem conseqüências
jurídicas contraditórias, como ocorre quando uma regra proíbe o que outra permite, ou
quando um princípio permite o que outro proíbe. Contudo, as duas situações divergem
quanto ao modo de solução da contradição, a saber:
Um conflito de regras só pode ser solucionado ou bem introduzindo em uma das
regras uma cláusula de exceção que elimina o conflito ou declarando inválida, ao
menos, uma das regras.[....] As colisões de princípios devem ser solucionadas de
maneira totalmente distinta. Quando dois princípios entram em colisão [....] um
ponderación es la forma de aplicación del derecho que caracteriza a los principios. En cambio, las reglas
son normas que siempre o bien son satisfechas ou no lo son. Si una regla vale y es aplicable, entonces está
ordenado hacer exactamente lo que ella exige; nada más y nada menos. En este sentido, las reglas contienen
determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible.
Su aplicación es una cuestión de todo o
nada. No son susceptibles de ponderación y tampoco la necesitan. La subsunción es para ellas la forma
característica de aplicación del derecho”. Cfe. Alexy, 1997a, p.162, tradução livre.
47
dos princípios tem que ceder ante o outro. Porém, isto não significa declarar
inválido o princípio deslocado nem que no princípio deslocado haja que
introduzir uma cláusula de exceção. Mais corretamente o que sucede é que, sob
certas circunstâncias um dos princípios precede ao outro. Sob outras
circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira
inversa. Isto é o que se quer dizer quando se afirma que nos casos concretos os
princípios têm diferente peso e que prevalece o princípio com maior peso. Os
conflitos de regras se levam a cabo na dimensão da validade; a colisão de
princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar
mais além da dimensão da validade, na dimensão do peso
47
(ALEXY, 1997b, 88-
89).
Em resumo, segundo Alexy (1997a e 1997b), a distinção entre regras e
princípios assenta sobre o seguinte: a) quanto à natureza das conseqüências jurídicas: as
regras estabelecem conseqüências jurídicas definitivas, ou seja, proibições, mandamentos
48
suplanta a outra em virtude de sua importância maior”. Tal não ocorre com os princípios,
pois “eles inclinam a decisão em uma direção, embora de maneira não conclusiva. E
sobrevivem intactos quando não prevalecem” (DWORKIN, 2002, p.57).
A partir de tais critérios, parece correto sustentar que as normas
constitucionais de tipo hipotético, examinadas no tópico anterior, caracterizam-se como
regras. Com efeito, e como antes observado, há normas que, além de estatuir uma
conseqüência jurídica (proibição, mandamento ou permissão), descrevem uma hipótese de
incidência dessa conseqüência, ou seja, descrevem uma situação de fato hipotética que,
uma vez considerada realizada no plano factual, faz a conseqüência jurídica incidir
concretamente. Normas desse tipo estabelecem conseqüências jurídicas definitivas ou
absolutas, que incidem na base do tudo ou nada, são aplicáveis por meio de subsunção e,
em caso de conflito com outra regra, ou uma delas será declarada inválida (em sentido
amplo, ou seja, no sentido, inclusive, de não vigente) ou será considerada inaplicável em
virtude do reconhecimento de uma cláusula de exceção.
É o caso, por exemplo, da norma do art. 5º, LXXV, da Constituição do
Brasil de 1988, segundo a qual “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário [....]”.
Tal norma se compõe de: a) uma conseqüência jurídica, a obrigação de indenizar (que
equivale a um mandamento), e; b) uma hipótese de incidência (a condenação por erro
judiciário), fato que, uma vez considerado realizado, fará incidir a obrigação de indenizar,
ou seja, a conseqüência jurídica. Esta, por óbvio, caracteriza-se como definitiva no sentido
de que, uma vez considerada realizada a hipótese normativa no caso concreto, não há como
recusar a incidência da conseqüência jurídica. Por outro lado, não realizada a hipótese, a
conseqüência não incide, razão pela qual se trata de norma que incide justamente em
termos de tudo ou nada, de sim ou de não.
Além disso, o modo de aplicação da referida norma é a subsunção,
entendida como a operação intelectual por meio da qual o juiz estabelece a
correspondência entre o fato singular e a hipótese de incidência (ver item 2.2.). É que a
subsunção, entendida em sentido estrito, sempre diz respeito à parte da norma legislada
relativa ao pressuposto de fato (a hipótese de incidência) e, nesse sentido, só é concebível
49
seu exercício em face de normas de caráter hipotético. Por isso, imaginando que, na vida
real, alguém tenha sido punido por crime de furto em decorrência de testemunhos
comprovadamente falsos, a incidência da obrigação de indenizar dependerá de subsumir-se
tal fato (ou o caso concreto) no conceito abstrato que descreve a hipótese de incidência,
isto é, no conceito de “condenação por erro judiciário”.
Por último, supondo a existência de outra norma de nível constitucional
que dispusesse no sentido de que “a responsabilidade do Estado fica excluída quando o
erro judiciário não decorrer de atos ou omissões de autoridades ou servidores públicos”,
estaria configurado um conflito de regras, ou seja, entre a regra do art. 5º, LXXV, que
impõe a indenização, e a regra fictícia que a dispensa. A superação desse conflito dar-se-á
pela admissão de que a regra do art. 5º, LXXV, comporta uma exceção, qual seja, a de que,
em razão da regra fictícia, a obrigação estatal de indenizar não existe quando o erro
judiciário decorrer de fato de terceiros estranhos ao serviço judiciário. Por outro lado, se a
regra fictícia fosse de grau inferior (do posterior Código Penal, por exemplo), o conflito
seria resolvido ou pela declaração de sua invalidade, sob o fundamento de ter previsto uma
exceção restritiva do direito à reparação não concebida no nível constitucional, ou, desde
que se entendesse a restrição do direito ordinário como admissível sob o fundamento de
meramente explicitar um limite constitucional imanente, pela simples incorporação da
cláusula de exceção na regra do art. 5º, LXXV da Constituição.
Com os princípios, no entanto, tudo se passa de modo diverso. Os
princípios são normas que se limitam a estatuir uma conseqüência jurídica (uma proibição,
uma permissão ou um mandamento), sem descrever uma hipótese de incidência, ou seja,
sem ligar à conseqüência jurídica qualquer situação de fato hipotética. Por exemplo: a
norma do art. 5º, IV, da Constituição do Brasil de 1988, que assegura a liberdade de
manifestação do pensamento, estatui uma permissão, mas não descreve quais são as
condições de fato para sua incidência. Em quais situações, sob quais circunstâncias, a
exteriorização do pensamento estará realmente permitida é algo indefinido.
Assim, uma vez que os princípios são normas sem hipótese de incidência
de antemão fixada pelo legislador, a conseqüência jurídica que estabelecem é meramente
50
provisória ou prima facie. Equivale a dizer que, em princípio, a conseqüência jurídica está
preordenada a incidir no maior número possível de situações da vida real, mas apesar desse
ideal de otimização, eventualmente esse efeito por ser recusado, sobretudo no caso de
colisão com normas de sentido contrário. Prima facie, a liberdade de manifestação do
pensamento está permitida, mas, dependendo do caso, pode restar proibida em favor, por
exemplo, da inviolabilidade da intimidade. É que, sob determinadas circunstâncias, poder-
se-á entender no sentido da sua prevalência, mas, sob outras circunstâncias, poder-se-á
entender pela prevalência do princípio oposto.
Por isso, Sarmento (2001, p. 39) tem razão quando observa que “os
princípios, segundo a lição de Gustavo Zagrebelsky, não possuem uma fattispecie definida,
razão pela qual, contrariamente às regras, não se prestam à subsunção”. A subsunção, em
sentido estrito, pressupõe normas com previsão de uma hipótese de fato conectada a uma
conseqüência jurídica, porquanto justamente consiste no ato de correlacionar o caso
concreto à hipótese normativa. Tal correlação é logicamente impossível no caso dos
princípios, se entendidos como normas carentes de hipótese de incidência. Daí porque é
diverso o modo de aplicação dos princípios nas situações de contradição normativa.
Havendo colisão de princípios, a solução terá de ser buscada mediante a ponderação do
peso de cada qual, realizada em função das circunstâncias do caso concreto.
Zagrebelsky (2002, p. 109-118), ao defender a idéia de que os princípios
constitucionais representam a confluência do positivismo e do jusnaturalismo
48
, ressalta
que eles, diferentemente das regras, não possuem um suposto de fato, de modo que não
podem ser aplicados através do processo de subsunção. Para o autor, os princípios não
impõem uma ação conforme o suposto normativo, como ocorre com as regras, senão uma
tomada de posição, conforme seu ethos em todas as não precisadas nem previsíveis
eventualidades concretas da vida. Assim, conclui que os “princípios, por isso, não esgotam
48
Posição também defendida por Cappelletti (1999, p. 129-131). Em suas palavras:
A norma constitucional, sendo também norma positiva, traz, em si, uma reaproximação do direito à justiça.
[...] Na verdade, na concepção moderna, a norma constitucional outra coisa não é senão a tentativa – talvez
impossível, talvez ‘faustiana’, mas profundamente humana – de transformar em direito escrito os supremos
valores, a tentativa de recolher, de ‘definir’, em suma em uma norma positiva, o que, por sua natureza, não
se pode recolher, não se pode definir – o Absoluto. A justiça constitucional é a garantia desta ‘definição’;
mas é também, ao mesmo tempo, o instrumento para torná-la aceitável, adaptando-se às concretas
exigências de um destino de perene mutabilidade”.
51
em absoluto sua eficácia como apoio das regras jurídicas, senão que possuem uma
autônoma razão de ser frente a realidade” (tradução livre
49
). Além disso, apenas quando o
princípio entra em contato com a realidade é que adquire valor. No lugar de se apresentar
como matéria inerte, objeto meramente passivo da aplicação das regras, caso concreto a
enquadrar no suposto de fato normativo previsto na regra, “a realidade iluminada pelos
princípios aparece revestida de qualidades jurídicas próprias. O valor se incorpora ao fato e
impõe a adoção de ‘tomada de posição’ jurídica em conformidade com ele
50
”. Para
Zagrebelsky (2002, p. 133), no processo de interpretação do direito, “o caso é o motor que
impulsiona o intérprete e marca a direção
51
”. Segundo o autor, a pluralidade de princípios e
a ausência de uma hierarquia formal entre eles fazem com que não possa existir uma
ciência sobre sua articulação, senão uma “prudência em sua ponderação”.
Binenbojm (2004, p. 87) aponta que os princípios, em face de sua
estrutura aberta e maior grau de abstração, podem, freqüentemente, entrar em conflito com
outros. Assevera que é “juridicamente possível que dois ou mais princípios conflitantes
entre si sejam aplicáveis a uma mesma situação concreta, não podendo o intérprete optar
pela incidência exclusiva de um em detrimento de outro”. Neste caso, só através do método
hermenêutico da ponderação é que o intérprete poderá aferir, diante de um caso concreto,
qual o peso específico que, naquela hipótese, deve ter cada um dos princípios aplicáveis.
Por isso, conclui o referido autor que é preciso, “portanto, buscar uma otimização na
aplicação dos princípios, de forma a permitir uma máxima incidência de cada um deles,
com prejuízo mínimo dos demais”.
Na mesma direção, Figueroa (2003) entende que os princípios
constitucionais reclamam uma forma distinta de aplicar o Direito, que é o método da
ponderação, a qual remete necessariamente a um raciocínio jurídico complexo, cuja
aplicação não responde propriamente ao esquema subsuntivo tradicional de aplicação do
direito. Para ele, a teoria dos princípios remete, em última instância, a uma teoria da
49
Los principios, por ello, no agotan en absoluto su eficacia como apoyo de las reglas jurídicas, sino que
poseen una autónoma rázon de ser frente a la realidad”. Cfe. Zagrebelsky, 2002, p. 118, tradução livre.
50
“[...] la realidad iluminada por los principios aparece revestida de cualidades jurídicas proprias. El valor
se incorpora al hecho e impone la adoción de “tomas de posición” jurídica conformes con él”. Cfe.
Zagrebelsky, 2002, p. 118, tradução livre.
51
En el processo de interpretación del derecho, el caso es el motor que impulsa al intérprete y marca la
dirección”. Cfe. Zagrebelsky, 2002, p. 133, tradução livre.
52
argumentação jurídica, cujo núcleo é a chamada “teoria padrão da argumentação jurídica”,
a conhecida “tese do caso especial”, segundo a qual o raciocínio jurídico é um caso
especial de um raciocínio prático geral.
Para Moreso (2003), a ponderação se realiza entre dois princípios em
conflito e consiste no estabelecimento de uma hierarquia axiológica entre ambos, ou seja,
uma relação valorativa estabelecida pelo intérprete, mediante um juízo de valor. Todavia,
essa hierarquia não é realizada abstratamente, senão em consideração de um caso concreto,
e como resultado desta valoração, um princípio (considerado superior nessa hierarquia
valorativa) desloca outro e resulta determinado como aplicável.
Segundo Alexy (1997b, p. 92) a solução das colisões de princípios
depende da fixação de uma relação de precedência condicionada, em face das
circunstâncias do caso concreto. Ou seja, a ponderação é, para o autor, uma operação de
determinação das preferências condicionadas, e uma vez estabelecida a relação no caso
concreto, pode-se obter a regra que irá resolver o caso e determinar o princípio aplicável.
Ao tratar das condições de precedência, Alexy (1997b, p. 90-91) analisa
uma decisão proferida pelo Tribunal Constitucional alemão, num caso em que o réu de um
processo penal alegava sua incapacidade processual em participar de uma audiência oral
em seu desfavor, porquanto corria o risco de sofrer um enfarte. Inicialmente, o Tribunal
constatou a existência de “uma relação de tensão entre o dever do Estado em garantir uma
aplicação adequada do direito penal e o interesse do acusado na salvaguarda dos direitos
constitucionalmente garantidos, a cuja proteção o Estado está igualmente obrigado pela Lei
Fundamental
52
”. Contudo, esta colisão entre dois princípios consagrados na Lei
Fundamental, foi solucionada em prol da integridade física do acusado, registrando o
Tribunal que havia “um perigo provável e concreto de que o acusado no caso de se realizar
a audiência oral, perca sua vida ou sofra graves danos a sua saúde” (ALEXY, 1997a, p.
52
El Tribunal constata que en tales casos existe ‘una relación de tensión entre el deber del Estado de
garantizar una aplicación adecuada del derecho penal y el interés del acusado en la salvaguardia de los
derechos constitucionalmente garantizados, a cuya protección el Estado está igualmente obligado por la Ley
Fundamental”. Cfe. Alexy, 1997b, p. 90, tradução livre.
53
171
53
), de modo que foi estabelecida uma precedência de um direito fundamental no caso
concreto, na espécie, a prevalência do direito à vida e à integridade física em relação à
aplicação adequada do direito penal. Isto significa que, sob a mencionada condição, vale a
conseqüência jurídica do princípio precedente, ou seja, é vedada a realização da audiência
oral. Ou seja, nesta operação de determinação das preferências condicionadas consiste a
ponderação, segundo Alexy.
Além disso, tratando dos critérios que devem guiar a decisão judicial,
Alexy (1997a, p. 171) formula uma lei de ponderação, que reza: “quanto maior for o grau
de não realização ou afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da
satisfação do outro
54
”. Para o autor, desta regra decorrem três conseqüências que apresenta
através de um exemplo de colisão entre o direito individual de liberdade de expressão e o
princípio da segurança nacional. Nas suas palavras:
Duas [conseqüências] se referem à relativização com respeito às possibilidades
fáticas, contida na definição do mandato de otimização. A primeira diz que se
uma ação não é adequada para promover a realização de um princípio – no
exemplo, o da segurança exterior – porém o é para impedir a realização de outro
principio, ou seja, o direito de liberdade de expressão, está então proibida com
relação a ambos os princípios. A segunda diz que uma ação, com respeito a qual
existe uma alternativa que, pelo menos, promove a realização de um dos
princípios, por exemplo o de segurança, e inibe menos o outro princípio, por
exemplo, o direito de liberdade de expressão, está então proibida em relação a
ambos os princípios. Em ambos os casos, o âmbito das possibilidades fáticas
contém alternativas de ação que satisfazem melhor as exigências normativas dos
princípios que devem ser tomados em consideração [...] Com referência às
possibilidades jurídicas, do caráter de princípios, segue a terceira máxima parcial
da proporcionalidade, a máxima de proporcionalidade em sentido estrito, Ela é
relevante quando – diferente do que ocorre com as duas outras máximas parciais
referidas a possibilidades fáticas – o cumprimento de um dos princípios não é
possível sem o descumprimento ou afetação do outro. Para estes casos pode se
formular a seguinte regra como lei da ponderação: Quanto maior é o grau de
descumprimento ou de afetação de um princípio, tanto maior tem que ser a
importância do cumprimento do outro
55
. (ALEXY, 1997a, p. 205-206)
53
“[...] un peligro probable y concreto de que el acusado en caso de realizarse la audiencia oral, pierda su
vida o sufra graves daños en su salude”. Cfe. Alexy, 1997a, p. 171, tradução livre.
54
Cuanto mayor sea el grado de no realización o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la
importancia de la satisfacción del outro”. Cfe. Alexy, 1997a, p. 171, tradução livre.
55
Dos se referem a la relativización con respecto a las posibilidades fácticas, contenida en la definición del
mandato de otimización. La primeira dice que si una acción no es adecuada para promover la realización
um principio – en el exemplo, el de la seguridad exterior – pero lo es para inhibir la realización de outro
principio, es decir, el derecho a la liberdad de expresión, está entonces prohibida en relación con ambos
principios. La segunda dice que una acción, con respecto a la qual existe una alternativa que, por lo menos,
promueve la realización de uno dos principios, por ejemplo, el de la seguidad exterior , e inhibe menos el
otro principio, por ejemplo, el derecho a la liberdad de expresión, está entonces prohibida en relación con
54
Neste aspecto, Velloso (2003, p. 349-350) apresenta uma decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 219.780-PE
56
, por
ele relatado, no qual havia uma colisão de dois princípios constitucionais, o direito à
privacidade e o interesse público, social e da justiça. Tratava-se de uma questão referente à
possibilidade de quebra do sigilo bancário, para fins de instrução de processo judicial.
Restou sedimentado no acórdão que o sigilo bancário, espécie de direito à privacidade que
a Constituição protege, não é um direito absoluto, mesmo porque não há direitos absolutos,
e assim, deve “ceder, portanto, diante do interesse público, do interesse social e do
interesse da justiça. Há de ceder, todavia, na forma e com observância de procedimento
estabelecido em lei e com respeito ao princípio da razoabilidade”.
Prieto (1998, p. 49-52), ao apresentar dez argumentos favoráveis à
adoção dos princípios nos ordenamentos jurídicos, destaca que os princípios são normas
abertas, que carecem ou que apresentam de forma fragmentada a determinação fática, e
mesmo superados os problemas de imprecisão ou vagueza, não estabelecem
definitivamente em que situações devem ser aplicadas. Para o autor, uma norma é aberta
“quando carece de um catálogo exaustivo de supostos em que se procede ou se exclui a sua
aplicação, por exemplo, a luz do art. 14 C.E., é impossível saber quando vem exigido um
tratamento igual nem quando se autoriza um tratamento desigual
57
”.
Prieto (1998), a propósito, afirma a importância da ponderação no direito
atual, em face do caráter do constitucionalismo pós-guerra, que possibilitou a incorporação
ambos os principios. En ambos casos, el ámbito de las posibilidades fácticas contiene alternativas de acción
que satisfacen mejor las exigencias normativas de los principios que deben ser tenidos en cuenta.[...]
Referido a las posibilidades jurídicas, del carácter de principios se sigue la tercera máxima parcial de
proporcionalidad en sentido estricto. Ella es relevante cuando – a diferencia de lo que sucede con las outras
máximas parciales referidas a posibilidades fácticas – el cumplimento de uno de los principios no es posible
sin el incumplimento o la afectación del outro. Para estes casos puede formularse la siguinte regla como ley
dela ponderación: Cuanto mayor es el grado de incumplimento o de afectación de un principio, tanto mayor
tiene que ser la importancia del cumplimento del outro”. Tradução livre. Cfe. Alexy, 1997a, p. 205- 206,
tradução livre.
56
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma Recurso Extraordinário n. 219-780. Pernambuco.
Recorrente: União Federal. Recorrida: Credicard Administradora de Cartões de Crédito. Relator: Ministro
Carlos Velloso. 13 abril de 1999. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=RE&processo=219780&recurs
o=0&tip_julgamento=M>, acesso em 18 março de 2007.
57
“[...] cuando carece de un catálogo exhaustivo de supuestos en que procede o queda excluida su
aplicación, por ejemplo, la luz del art. 14 C.E., es imposible saber cuando viene exigido un tratamiento
igual ni cuando se autoriza un tratamiento desigual” Cfe.Prieto, 1998, p. 52, tradução livre.
55
de princípios e direitos fundamentais tendencialmente contraditórios no ordenamento
jurídico, situação na qual o modelo tradicional de solução de colisões entre regras resulta
inservível, exigindo, assim, uma forma de aplicação diferente da subsunção. Para o autor,
ainda que a aplicação da norma através do processo subsuntivo nunca tenha sido tarefa
fácil, em face da inevitável vagueza da linguagem legal, entre outras dificuldades, os
problemas aumentam na hipótese de aplicação de normas constitucionais principiológicas,
as quais são desprovidas de suposto de fato para sua aplicação, o que significa que na
prática, é o juiz quem decide, mediante um exercício de razoabilidade não isento de
discricionariedade, quando procede dita aplicação. Da mesma forma, o referido autor
destaca que esse “protagonismo judicial” é patente nos conflitos entre direitos
fundamentais, como entre o direito à honra e à liberdade de expressão, os quais só poderão
ser resolvidos diante do caso concreto, assim, impõe-se uma ponderação necessária e
casuística, que no caso concreto dará preferência a uma ou outra norma, de modo que é o
juiz quem, ponderando, determina qual dos direitos fundamentais deverá prevalecer no
julgamento do caso concreto.
Por sua vez, ainda no sentido das lições precedentes, Barroso (2004, p.
356-359) define a técnica da ponderação como um raciocínio de natureza diversa da
subsunção, mais complexo, destinado a produzir a regra concreta que vai reger a hipótese a
partir de uma síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto
de fatos. Para o autor, de alguma forma, cada um desses elementos deverá ser considerado
“na medida de sua importância e pertinência para o caso concreto, de modo que na solução
final, tal qual um quadro bem pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, ainda que
uma ou alguma delas venham a se destacar sobre as demais”. E conclui:
A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a
casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente,
especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas da
mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas. A estrutura interna do
raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja sempre
associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens,
valores ou normas. A importância que o tema ganhou no dia-a-dia da atividade
jurisdicional, entretanto tem levado a estudá-lo mais cuidadosamente. De forma
simplificada, é possível descrever a ponderação como um processo em três
etapas, relatadas a seguir.
Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes
para solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas. Como se viu, a
56
existência dessa espécie de conflito – insuperável pela subsunção- é o ambiente
próprio de trabalho da ponderação. [...]
Na segunda etapa, cabe examinar os fatos, as circunstâncias concretas do caso e
sua interação com os elementos normativos. [...] Embora os princípios e regras
tenham uma existência autônoma em tese, no mundo abstrato dos enunciados
normativos, é no momento em que entram em contato com as situações concretas
que seu conteúdo se preencherá de real sentido. Assim, o exame dos fatos e os
reflexos sobre eles das normas identificadas na primeira fase poderão apontar
com mais clareza o papel de cada uma delas e a extensão de sua influência.
Até aqui, na verdade, nada foi solucionado e nem sequer há maior novidade.
Identificação das normas aplicáveis e compreensão dos fatos relevantes fazem
parte de todo e qualquer processo interpretativo, sejam os casos fáceis ou
difíceis. É na terceira etapa que a ponderação irá singularizar-se, em oposição à
subsunção. Relembre-se, como já assentado, que os princípios, por sua estrutura
e natureza, e observados determinados limites, podem ser aplicados com maior
ou menor intensidade, à vista de circunstâncias jurídicas ou fáticas, sem que isso
afete sua validade. Pois bem: nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos
de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados
de uma forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos
diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve
preponderar no caso. Em seguida, é preciso ainda decidir quão intensamente esse
grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento
dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida,
cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser
aplicada. [....]
De toda exposição apresentada extrai-se que a ponderação ingressou no universo
da interpretação constitucional como uma necessidade antes que como uma
opção filosófica ou ideológica. É certo, no entanto, que cada uma das três etapas
descritas acima – identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos
relevantes e atribuição geral de pesos, com a produção de uma conclusão –
envolve avaliações de caráter subjetivo, que poderão variar em função das
circunstâncias pessoais do intérprete e de outras tantas influências. (BARROSO,
2004, p. 357-360).
Para Grau (2003), inexiste no sistema jurídico qualquer regra ou
princípio que possa orientar o intérprete a propósito de qual dos princípios deve ser
aplicado, no caso de um eventual conflito entre eles estabelecido. Isto somente se pode
saber no contexto de cada caso, no âmbito do qual se verifique o conflito. Em cada caso,
pois, em cada situação a dimensão do peso ou importância dos princípios há de ser
ponderada. Entretanto, o referido autor ressalta que a atribuição de peso aos princípios não
é discricionária, porquanto o intérprete está vinculado pelos princípios, e, ademais, não se
interpreta o “direito em tiras, aos pedaços”. Neste sentido, leciona:
O momento de atribuição de peso maior a um determinado princípio é
extremamente rico, porque nele – desde que se esteja a perseguir a definição de
uma das soluções corretas a que a interpretação jurídica pode conduzir –
pondera-se o direito em seu todo, desde o texto da Constituição aos mais
singelos ato normativos, como totalidade. Variáveis múltiplas, de fato – as
circunstâncias peculiares ao problema considerado – e jurídicas – lingüísticas,
57
sistêmicas e funcionais -, são então descortinadas. E, paradoxalmente, é
precisamente o fato de o intérprete estar vinculado, retido, pelos princípios que
torna mais criativa a prudência que pratica. (GRAU, 2003, p. 49-50)
Do quanto exposto, importa sobremodo perceber que, nos casos de
colisões de princípios, que são normas carentes de hipótese de incidência, o resultado da
ponderação levada a efeito por juízes e tribunais constitucionais resulta, justamente, na
prolação de uma decisão judicial constitutiva de uma regra, ou seja, no sentido de uma
norma hipotética. É que, nesse caso, como dirá Alexy (1997a, p. 171), “as condições sob as
quais um princípio precede a outro constituem o suposto de fato de uma regra que expressa
a conseqüência jurídica do princípio precedente
58
”. Com efeito, ao decidir que sob tal
situação de fato prevalece um dado princípio, juízes e tribunais constitucionais menos não
fazem do que estabelecer uma específica hipótese de incidência para a conseqüência
jurídica do princípio preponderante ao cabo do processo de ponderação.
Assim, enquanto no caso de aplicação das regras, juízes e tribunais
operam pelo método da subsunção, procurando estabelecer a correspondência entre o caso
real e a hipótese fática de incidência prévia e abstratamente prevista, no caso de aplicação
dos princípios nas situações de colisão, juízes e tribunais atuam por meio de ponderação,
determinando eles próprios as condições de fato que justificam a incidência da
conseqüência jurídica do princípio prevalente. Vale dizer que, conquanto em ambas as
situações se perceba a participação judicial no processo de construção dos conteúdos
normativos, o modo como isso ocorre é diverso: enquanto na aplicação das regras juízes e
tribunais procedem sob a forma de um enquadramento do fato concreto no suporte fático
abstrato, na aplicação dos princípios – e em razão da peculiar estrutura destes - eles são
levados a constituir o próprio suporte fático normativo antes inexistente.
58
Las condiciones bajo las cuales un principio precede a outro constituyen el supuesto de hecho de una
regla que expresa la consecuencia jurídica del principio precedente”. Cfe Alexy, 1997a, p. 171, tradução
livre.
58
2.4. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Nos tópicos anteriores, tratou-se de modos de aplicação do direito
constitucional em situações, normalmente de conflitos intersubjetivos, para cuja decisão se
prescinde da discussão quanto à constitucionalidade ou não de uma lei ou ato normativo
situados num plano de validade inferior ao das normas constitucionais. Nestes casos, ou
trata-se de decidir o caso por meio do processo de subsunção, quando se discute se um fato
singular se enquadra na hipótese normativa para fins de incidência da conseqüência
jurídica, ou por meio do processo de ponderação, quando há colisão de princípios. Há,
contudo, conflitos cuja decisão se põe em torno de uma questão de constitucionalidade,
situação que, por sua singularidade, reclama consideração autônoma.
De fato, um terceiro modo de aplicação do direito constitucional, através
do qual juízes e tribunais determinam o conteúdo da Constituição, consiste no controle de
constitucionalidade dos atos legislativos inferiores, entendendo-se por tais, no caso
brasileiro, as emendas constitucionais introduzidas pelo poder constituinte derivado, as leis
produzidas pelo poder legislativo ordinário (federal, estadual e municipal), as medidas
provisórias adotadas pelo Presidente da República, as leis delegadas e os atos normativos
editados por órgãos no desempenho de função administrativa e no exercício de
competência regulamentar (tais como decretos, portarias, resoluções, etc.).
No âmbito do controle de constitucionalidade, o que se põe em discussão,
principalmente
59
, é a questão da compatibilidade ou não de determinada norma de ato
legislativo inferior com determinada norma constitucional. Entre nós, e na generalidade
dos ordenamentos constitucionais ocidentais contemporâneos, a relação de compatibilidade
ou não pode ser aferida tanto sob o ponto de vista formal, como do ponto de vista material,
vale dizer, tanto no que diz respeito à observância das normas constitucionais de
59
“Principalmente”, mas não “exclusivamente”. No âmbito do controle de constitucionalidade, são de fato
predominantes as controvérsias em torno de transgressões positivas da Constituição, ou seja, de atos
legislativos editados em suposto antagonismo com as normas constitucionais. Mas são também possíveis,
dependendo do ordenamento constitucional que se considere, controvérsias em torno de transgressões
negativas da Constituição, vale dizer, decorrentes da omissão do legislador e dos poderes públicos em geral
no seu dever de produzir normas em atendimento a imposições constitucionais de caráter legiferante. Nesse
sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 concebe os institutos do mandado de
injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
59
competência e procedimento no processo de pr
60
referentes à constitucionalidade das leis, por intermédio de ação especial, proposta por
órgão político. Ao fazê-lo, o direito austríaco se opôs ao sistema norte-americano, em que
o controle de constitucionalidade sempre estivera vinculado ao julgamento de casos
concretos, no curso de processos comuns. Neste sentido, anota Cappelletti (1999, p. 104):
Em oposição diametralmente oposta ao sistema americano, colocou-se o sistema
austríaco de controle de constitucionalidade das leis, especialmente na
formulação originária que este sistema teve na Bundesverfassung austríaca de 1º
de outubro de 1920. De fato, esta Constituição não só criou uma especial Corte
Constitucional – o Verfassungsgerichtshof – na qual ‘concentrou’ a competência
exclusiva para decidir as questões de constitucionalidade, mas além disso, a
Constituição austríaca confiou a esta Corte um poder de controle que, para ser
exercido, necessitava de um pedido especial (‘Antrag’), isto é, do exercício de
uma ação especial por parte de alguns órgãos políticos. Desta sorte, o controle
de legitimidade das leis vinha a ser, na Áustria, diversamente dos Estados
Unidos da América, inteiramente desvinculado dos casos concretos, vale dizer,
dos processos comuns (civis, penais, administrativos); ele, por conseguinte, em
vez de ser exercido, como na América, tão-só ‘em via incidental’, isto é, (como,
também, com certa impropriedade se diz) ‘em via de exceção’, deveria ser
exercido, na Áustria, sempre ‘em via principal’, ou seja, ‘em via de ação’,
mediante um adequado e autônomo recurso e com a instauração de adequado e
autônomo processo ad hoc perante a Corte Constitucional.
O controle jurisdicional de constitucionalidade opera no Brasil das duas
maneiras: através do sistema concentrado e através do sistema difuso. No primeiro caso,
independentemente da existência de conflito intersubjetivo, a questão é suscitada
diretamente perante o Supremo Tribunal Federal por meio de ações especiais
60
,
necessariamente propostas pelas autoridades e entidades legitimadas, a fim de que seja
declarada a inconstitucionalidade ou constitucionalidade. A declaração de
inconstitucionalidade ou constitucionalidade, nesse caso, é feita em processo objetivo, e a
decisão produz efeitos erga omnes. No segundo caso, a questão pode ser argüida perante
qualquer juiz, em qualquer processo, seja de que natureza for, e o magistrado, ao
reconhecer a divergência entre a norma inferior e a norma constitucional, deixará de
aplicar a primeira ao caso concreto. A decisão judicial tem efeito somente entre as partes
do processo e com relação ao caso concreto levado a juízo, salvo se a decisão tiver sido
proferida pelo Supremo Tribunal Federal, e o Senado Federal, uma vez notificado, editar
resolução suspendendo a vigência da norma, com efeitos erga omnes.
60
No âmbito federal, de acordo com a Constituição do Brasil de 1988, o controle concentrado de
constitucionalidade é realizado por meio de: ação direta de inconstitucionalidade por ação; ação direta de
inconstitucionalidade por omissão; ação declaratória de constitucionalidade; argüição de descumprimento de
preceito fundamental; e das chamadas ações interventivas. Sobre o controle abstrato de normas, ver Mendes,
2005, p. 146-249.
61
As questões relativas à constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos
atos legislativos inferiores não traduzem situações de colisões de princípios e, portanto,
não se revolvem por meio de ponderação, na dimensão do peso. Com efeito, as colisões de
princípios constitucionais, por óbvio, compreendem o choque entre normas de mesma
hierarquia, ou seja, que pertencem ao mesmo plano de validade, o nível constitucional. Por
isso, resolvem-se na dimensão do peso, isto é, por meio de uma ponderação, feita à luz das
contingências do caso concreto, em torno das razões que justificam a prevalência
circunstancial de uma em detrimento da outra, mas sem que se negue, na decisão, vigência
ou validade
61
a qualquer delas, ou que se impossibilite que, em diverso contexto, o
princípio deslocado venha a preponderar sobre o princípio agora prevalente.
Diferentemente, quando está em causa decidir uma questão de
constitucionalidade ou inconstitucionalidade, pelo modo difuso ou concentrado, são
consideradas normas de diferente hierarquia, uma de nível superior, outra de nível inferior,
de modo que a solução da controvérsia só é concebível na dimensão da vigência ou da
validade. Nesse caso, não há margem para ponderação, no sentido de uma consideração
quanto a qual das normas deve ter momentânea preferência em função de um cenário fático
determinado. Havendo contradição, é óbvio que a norma constitucional prevalece sempre e
incondicionalmente. As colisões de princípios ocorrem, por isso, no âmbito de conflitos
intersubjetivos, nos quais as partes defendem o respectivo interesse cada qual com
fundamento em normas válidas, mas que se opõem entre si naquilo que comandam.
Quando, diversamente, no âmbito do controle difuso, o conflito intersubjetivo se verifica
entre oponentes que suscitam uma questão de constitucionalidade ou inconstitucionalidade,
um deles defendendo sua posição com fundamento em norma do direito ordinário,
reputada constitucional, e o outro com fundamento em norma constitucional, supostamente
violada por aquela, ou ainda quando, no âmbito do controle concentrado, semelhante
contradição resulta colocada, o problema já não é mais de colisão de princípios.
61
Entendendo vigência e validade como dois predicados distintos da norma jurídica positiva, Cademartori
(1999, p. 79-80) registra que “uma norma é ‘vigente’ quando é despida de vícios formais; ou seja, se foi
emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo com o procedimento prescrito; [...]
uma norma é ‘válida’ quando está imunizada contra vícios materiais; ou seja, não está em contradição com
uma norma hierarquicamente superior”. No mesmo sentido, Ferrajoli (1999), p. 21.
62
A especificidade da aplicação do direito constitucional por meio do
controle de constitucionalidade reside em que, por tal via, o poder judicial fixa o conteúdo
dos limites formais e materiais da atuação legislativa, isto é, no que concerne a quem e
sobre como se pode legislar (competência e procedimento) e, ainda, sobre o que pode a
legislação proibir, permitir ou ordenar do ponto de vista substantivo. Ocorre que, ao
declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de um ato legislativo, fixando os
limites da atuação legislativa, e à medida que o faz a partir do parâmetro da norma
constitucional, o poder judicial atribui conteúdo à própria Constituição, especificando o
sentido de regras e princípios constitucionais para além da declaração textual.
Por exemplo: se um determinado Estado edita lei dispondo sobre a
instalação de radares em vias públicas para fiscalização do excesso de velocidade dos
automóveis, e a lei é invalidada sob o fundamento de que a mesma, regulando matéria
sobre trânsito, não se compreende na competência legislativa do Estado, o poder judicial
especifica o conteúdo da norma constitucional segundo a qual compete à União legislar
sobre trânsito. De um lado, o poder judicial especificou o conceito de legislação de
trânsito, nele incluindo a legislação sobre fiscalização por radares do excesso de
velocidade em via pública; de outro, especificou que só a União está autorizada a legislar a
respeito.
Considere-se outro exemplo. A Constituição do Brasil de 1988 incluiu a
“livre concorrência” entre os princípios da ordem econômica. Imagine-se, agora, uma lei
estadual proibindo a instalação de farmácias e drogarias a menos de 500 metros de
distância umas das outras. Contestada essa lei em face do princípio da livre concorrência, a
declaração de inconstitucionalidade implicará, indiretamente, a atribuição de um conteúdo
de sentido específico à norma constitucional. Foi o que ocorreu quando o Supremo
Tribunal Federal, julgando essa exata questão, consolidou o entendimento de que “ofende
o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de
estabelecimentos comerciais do mesmo ramo em determinada área” (Súmula 646).
A aplicação do direito constitucional por meio de controle de
constitucionalidade tem uma importante particularidade. Enquanto as regras e princípios
63
constitucionais caracterizam-se pelo elevado grau de indeterminação de seu conteúdo, as
normas do direito ordinário tendem a ser mais precisas ou detalhistas. Assim, quando se
discute sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma determinada lei,
normalmente verifica-se o confronto entre os comandos genéricos da norma constitucional
e os comandos específicos da norma infraconstitucional. E, por essa razão, ao declarar a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, juízes e tribunais constitucionais
inevitável e indiretamente, como visto, acabam por melhor especificar o conteúdo da
norma constitucional, seja pela absorção do conteúdo da lei, seja pelo seu descarte. Por
isso, o confronto entre regras e princípios constitucionais com as normas da legislação
infraconstitucional, no âmbito do controle da lei, favorece a delimitação clara do alcance
das proibições, mandamentos e permissões substantivas das normas jusfundamentais, bem
como a fixação da extensão e dos limites das competências legislativas.
2.5. A INTEGRAÇÃO DE DIREITOS IMPLÍCITOS
Conforme visto até aqui, o poder judicial exerce função construtiva dos
conteúdos normativos da Constituição quando subsume fatos a regras, pondera princípios e
controla a constitucionalidade de atos legislativos de nível inferior. Porém, existe ainda
uma quarta situação que, embora podendo ocorrer no âmbito do controle de
constitucionalidade, merece tratamento autônomo. Tal situação diz respeito à possibilidade
de que juízes e tribunais constitucionais venham a reconhecer ou declarar como
fundamentais direitos que não foram expressamente enumerados na Constituição, ou seja,
que não foram relacionados pelo legislador constitucional no catálogo jusfundamental.
A 9ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada
no ano de 1791, tacitamente atribui essa prerrogativa em favor do poder judiciário ao
dispor que “a especificação de certos direitos na Constituição não deve ser entendida como
uma negação ou depreciação de outros direitos conservados pelo povo
62
”. O mesmo ocorre
com a Constituição do Brasil de 1988, quando na primeira parte do § 2º do art. 5º
62
No original: “The enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or
disparage others retained by the people”. A tradução está de acordo com aquela efetuada por Comparato
(1999), p. 109.
64
estabelece que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.
Com base em preceitos de tal ordem, tem se reconhecido que, tanto no
caso norte-americano como no brasileiro, as declarações jusfundamentais não são taxativas
ou exaustivas, legitimando o poder judiciário a admitir, no julgamento de controvérsias
constitucionais, a existência de determinados direitos implícitos ou pressupostos. Nessa
situação, a função construtiva do direito constitucional por juízes e tribunais parece que
alcança seu nível mais alto, porquanto, agora, não se trata mais de subsumir ou ponderar
em torno de normas legisladas, mas de suprir o silêncio do legislador, integrando à ordem
jurídica normas a respeito das quais não houve uma expressa deliberação legislativa.
Conforme ensina Miranda (1998, p. 152), direitos fundamentais “não são
apenas os que as normas formalmente constitucionais enunciam; são ou podem ser também
direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da Constituição
material”. Segundo o autor, o texto constitucional não contém um elenco taxativo de
direitos fundamentais. Trata-se de “uma enumeração aberta, sempre pronta a ser
preenchida ou completada através de novas faculdades para lá daquelas que se encontrem
definidas ou especificadas em cada momento”, função à qual justamente se prestam as
chamadas cláusulas de não tipicidade dos direitos fundamentais.
A propósito da experiência constitucional norte-americana, Fallon
(2004), menciona e comenta os casos mais significativos na história da afirmação da
doutrina dos direitos fundamentais implícitos. Em Skinner v. Oklahoma
63
(1942), por
exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos impediu a esterilização de Jack Skinner,
que havia sido condenado uma vez por “torpeza moral” e duas vezes por roubo, um destes
de galinhas. O Estado de Oklahoma pretendia aplicar a medida sobre Skinner com base em
lei local que admitia a esterilização de reincidentes, a fim de impedir a transmissão de
manifesta tendência criminosa a gerações futuras. Embora não previsto expressamente na
Constituição, ou ao menos nesses termos, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu
o direito de procriar como um direito fundamental e invalidando a legislação do Estado deu
63
Caso relatado por Fallon (2004) p. 138-143.
65
ganho de causa a Skinner. Note-se que, à época desse julgado, embora a 8ª Emenda à
Constituição dos Estados Unidos proibisse o emprego de penas cruéis e insólitas, a
Suprema Corte não pôde aplicá-la, uma vez que não havia ainda decidido que a mesma se
aplicava também aos Estados federados, e não apenas ao governo federal.
Em Roe v. Wade
64
(1973), a Suprema Corte dos Estados Unidos
reconheceu o direito de aborto como um direito fundamental, ressalvando que a restrição
estatal a tal direito somente seria justificável quando o feto já tivesse alcançado o estágio
de viabilidade. Assim, embora a Constituição dos Estados Unidos não contenha qualquer
norma específica sobre a matéria, a Suprema Corte decidiu que qualquer mulher tem o
direito constitucionalmente protegido de interromper uma gravidez não desejada, exceto a
partir do momento em que o feto se torne viável. Segundo os fundamentos da decisão da
Suprema Corte dos Estados Unidos, o direito de aborto é uma decorrência do direito de
estar livre de intromissões governamentais em assuntos que tão fundamentalmente afetam
a pessoa, como no caso da decisão sobre quando ter ou gerar uma criança. Roe v. Wade
permanece como uma das decisões mais controvertidas da Suprema Corte, mas
independentemente de seu mérito, ilustra, como talvez nenhuma outra, a elasticidade
constitucional subjacente à aceitação dos direitos fundamentais implícitos.
A partir dos casos mencionados, duas observações parecem oportunas.
De um lado, o instituto dos direitos fundamentais implícitos revela-se como uma
necessidade, porquanto se destina a assegurar, para usar a terminologia de Bobbio (1999),
a unidade, a coerência e a plenitude do ordenamento jurídico constitucional. A liberdade de
contratar, por exemplo, não está expressamente referida na Constituição do Brasil de 1988,
mas dificilmente seria possível deixar de admiti-la como um direito fundamental
logicamente decorrente dos princípios que disciplinam a ordem econômica, em especial a
livre iniciativa e o direito de propriedade. Por outro lado, como em Roe v. Wade, a relação
de decorrência lógica entre um suposto direito não expresso e as normas explícitas da
Constituição nem sempre é óbvio, o que pode gerar perplexidades e ansiedade acerca do
poder conferido aos órgãos de jurisdição constitucional.
64
Caso relatado por Fallon (2004) p. 144-154.
66
Decerto, no caso brasileiro, a relevância da categoria dos direitos
constitucionais implícitos é menor. A Constituição do Brasil de 1988 é reconhecidamente
prolixa em matéria de direitos e garantias fundamentais. Só o art. 5º e o art. 7º somam
juntos, em seus incisos, em torno de 100 normas jusfundamentais, ao mesmo tempo em
que o art. 6º, relativo aos direitos sociais, encontra amplo desenvolvimento no Título VIII,
destinado à Ordem Social. Também os direitos econômicos e as garantias dos contribuintes
são disciplinados minuciosamente em seções próprias, os Títulos VII e VI. Além disso, por
força de expressa dicção do § 2º do art. 5º, os direitos humanos internacionais constantes
dos tratados de que o Brasil seja signatário igualmente aderem à ordem jurídica interna, o
que compreende a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Convenção
Americana de Direitos Humanos de 1969. Assim, a abrangência do catálogo
jusfundamental reduz ou tende a reduzir, entre nós, o efeito prático da categoria dos
direitos fundamentais implícitos enquanto direitos não enumerados.
Ainda assim, é certo que, relativamente às liberdades, temas capitais não
foram diretamente enfrentados pela Constituição do Brasil de 1988, como o aborto, a
eutanásia e o porte de armas. Em que pese o Supremo Tribunal Federal possa entender que,
nesses casos, o silêncio da Constituição é intencional, implicando a transferência da
decisão a respeito ao legislador ordinário, por outro lado, nada impediria que a Corte viesse
a deduzir o direito ao aborto do direito de liberdade, o direito de portar armas do direito à
vida e o direito de eutanásia do princípio da dignidade da pessoa humana, do que
decorreria a invalidação ou derrogação da legislação penal ordinária restritiva. Nesse caso,
o Supremo Tribunal Federal estaria certamente exposto a objeções de importantes setores
da Sociedade, como a Igreja Católica, e sua legitimidade talvez restasse seriamente
ameaçada, mas o fato é que sua decisão, no plano jurídico, seria incontrolável.
Como quer que seja, o que importa assinalar é que a incorporação da
categoria dos direitos fundamentais implícitos expande o espaço de abertura constitucional
e atribui inegavelmente ao poder judiciário a possibilidade de integrar à ordem jurídica
normas jusfundamentais não declaradas originariamente de modo expresso. Trata-se de
prerrogativa que, no plano prático, envolve um nítido poder de construção judicial do
direito depositado em mãos dos juízes e tribunais constitucionais, ainda que, no plano
67
argumentativo, tais direitos devam e possam ser sempre apresentados como logicamente
decorrentes do regime democrático ou de outros princípios constitucionais.
68
3. A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DOS CONTEÚDOS NORMATIVOS E A
FUNÇÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1. A CONSTRUÇÃO JUDICIAL DOS CONTEÚDOS NORMATIVOS
A exposição antecedente procurou sustentar que, em razão de uma
característica geral, a textura aberta das normas constitucionais, e de outros importantes
fenômenos específicos, tais como a abstração e vagueza dos conceitos normativos, as
colisões de princípios e a não-tipicidade dos direitos fundamentais, o processo de aplicação
do direito constitucional nos casos controvertidos impõe aos juízes e tribunais
constitucionais uma tarefa que, mais do que meramente reveladora, qualifica-se como
construtiva do próprio conteúdo normativo da Constituição e seus preceitos.
Com efeito, o processo de aplicação do direito constitucional nos casos
controvertidos resulta em geral, por meio da prolação da decisão judicial, na adoção de
uma solução normativa que, ao menos em seu conteúdo específico, não havia sido prévia
ou obviamente estabelecida no nível legislativo. Daí porque se trata, no que concerne à
tarefa que se impõe aos juízes e tribunais constitucionais, de uma atividade construtiva dos
conteúdos constitucionais, porquanto é por meio dela que se desenvolve o sentido
normativo da Constituição para além do plano legislativo inicial.
A propósito, Zagrebelsky (2002) destaca que a principal novidade da
fórmula do Estado Constitucional é que a lei fica submetida a uma relação de adequação,
portanto, de subordinação a uma categoria mais alta do direito, a Constituição. Neste
cenário, a lei, que antes fora medida exclusiva de todas as coisas, cede espaço para a
Constituição e se converte, ela mesma, em objeto de medição. Neste sentido, a unidade do
direito, segundo as exigências do Estado Constitucional, fez com que se reconhecesse a
excepcional importância da função jurisdicional, bem como o deslocamento das fontes,
pois enquanto no Estado de Direito vigorava o império da lei, no Estado Constitucional os
juízes são os senhores do direito. Contudo, adverte que “os juízes não são os senhores do
direito no mesmo sentido em que o era o legislador no século passado. São, mais
69
exatamente os garantidores da complexidade estrutural do direito no Estado
Constitucional, isto é, os que garantem a necessária e dúctil coexistência entre lei, direitos
e justiça
65
”.
Assim, a construção judicial dos conteúdos constitucionais é uma
decorrência necessária da própria estrutura normativa da Constituição. Conforme visto, no
caso de normas hipotéticas, a conseqüência jurídica está ligada a uma hipótese de
incidência expressa por meio de conceitos abstratos e de linguagem vaga, o que leva a
suscitação de freqüentes controvérsias quanto à inclusão ou não de uma determinada
situação particular no âmbito da regulação normativa. Ao decidir tais questões por meio do
procedimento de subsunção, juízes e tribunais estabelecem a correspondência ou não entre
o fato concreto e a hipótese abstrata, adjudicando à norma um sentido específico e, desse
modo, dotando-lhe de uma precisão de conteúdo da qual se ressentia.
No caso de colisões de princípios constitucionais, que são normas sem
hipótese de incidência definida, juízes e tribunais procedem por meio de ponderação, a fim
de decidir qual deles há de prevalecer à vista das circunstâncias do caso concreto. O
resultado da ponderação equivale à declaração de que a conseqüência jurídica do princípio
prevalente incide naquela situação particular, bem como de que, em contrapartida, não
incide a conseqüência jurídica do princípio deslocado. Assim, a ponderação conduz ao
estabelecimento da própria hipótese de incidência do princípio prevalente, ou seja, de uma
regra só formulada no plano da decisão judicial.
Além disso, no exercício do controle de constitucionalidade dos atos
legislativos inferiores, seja pelo sistema difuso, seja pelo sistema concentrado, quando têm
de confrontar as regras e princípios constitucionais, em sua abertura textual, com as
normas mais precisas e detalhadas do direito ordinário, juízes e tribunais delimitam
proibições, mandamentos e permissões substantivas da Constituição, bem como as
65
Pero los jueces no son los señores del derecho en el miesmo sentido en que lo era el legislador en el
pasado siglo. Son más exactamente los garantes de la complejidade estructural del derecho en el Estado
constitucional, es decir, los garantes de la necesaria y dúctil coexistencia entre ley, derechos y justicia”. Cfe.
Zagrebelsky, 2002, p. 153, tradução livre.
70
competências legislativas dos poderes públicos, outra vez especificando conteúdos que não
tinham uma correspondência exata no texto constitucional em si mesmo.
Finalmente, em razão da cláusula de não-tipicidade dos direitos
fundamentais, nos ordenamentos constitucionais que a consagram, juízes e tribunais
constitucionais estão autorizados a integrar à ordem jurídica normas jusfundamentais que
não foram objeto de expressa enumeração, mas que estariam implícitas ou pressupostas na
Constituição. Pelo procedimento de integração, incorporam-se direitos que, em seu
conteúdo particular, não constavam expressamente do catálogo jusfundamental.
A construção judicial dos conteúdos normativos da Constituição por
meio dos procedimentos de subsunção, ponderação, controle da lei e integração é
suscetível de demonstração, entre nós, através da análise de decisões proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal. A este assunto serão, por isso, dedicados os próximos tópicos.
3.1.1. Casos de construção mediante subsunção
Por fatos ocorridos entre os anos de 1991 e 1992, Maurício Fernandez
Noranbuena
66
foi condenado, no Chile, a duas penas de prisão perpétua, pelos crimes de
homicídio do Senador Jaime Guzmán Errázuriz, extorsão mediante seqüestro de Cristián
Edwards Del Rio, filho de um jornalista, e de formação de quadrilha armada. Tendo o
condenado se evadido para o Brasil, a República do Chile requereu, com base em tratado
bilateral, a sua extradição (EXT nº 855
67
). As sentenças penais chilenas, contudo, haviam
qualificado os crimes pelos quais Noranbuena fora condenado como delitos de natureza
“terrorista”, em razão do que dispunha a legislação do país, nomeadamente a Lei nº
18.314/84. Diante disso, o Supremo Tribunal Federal colocou-se a questão de saber, como
consta do voto do Ministro Celso de Mello, “se a atribuição de caráter terrorista aos delitos
66
Ou Maurício Fernández Norambuena, ou Maurício Hernández Norambuena, ou Maurício Hernandez
Norambuena. A grafia exata do nome do extraditando não era certa.
67
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Extradição 855-2. República do Chile. Requerente:
Governo do Chile. Extraditando: Mauricio Fernandez Norambuena. Relator: Ministro Celso de Mello. 26 de
agosto de 2004. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=Ext&processo=855&recurso=
0&tip_julgamento=M>, acesso em 12 março de 2007.
71
subjacentes a este pedido extradicional teria o condão de fazer incidir, na espécie, a
cláusula de vedação inscrita no art. 5º, LII, da Constituição Federal”, segundo o qual “não
será concedida a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”.
A controvérsia, neste particular, certamente girava em torno de uma
norma hipotética. O art. 5º, inc. LII, da Constituição da República do Brasil de 1988,
claramente liga uma conseqüência jurídica, a proibição de extraditar o estrangeiro, a uma
hipótese de incidência, qual seja, a prática de “crime político ou de opinião”, expressões
que correspondem a conceitos abstratos e vagos. Abstratos porque se referem a classes ou
universos de situações (crimes políticos ou crimes de opinião); vagos porque tais conceitos
abstratos são imprecisos quanto à abrangência ou não de certos casos singulares. Assim
sendo, a incidência ou não da limitação ao poder de extraditar depende de subsumir-se ou
não, à luz do caso concreto, o fato delituoso praticado pelo extraditando no conceito de
crime político ou de opinião. Na situação específica, a decisão a ser proferida na
Extradição nº 855, dada a polêmica proposta pelo próprio relator da ação, entre outros
tantos pressupostos, exigia o exame da correspondência ou não entre os crimes cometidos
por Norambuena (homicídio, seqüestro e quadrilha armada), que haviam recebido a
qualificação de atos terroristas pela Justiça Chilena, e a idéia de crime político.
Em um acórdão longo e rico em debates, o Supremo Tribunal Federal
deferiu a extradição
68
, assentando, nos termos da ementa do julgado, que “os atos
delituosos de natureza terrorista [...] não se subsumem à noção de criminalidade política”.
De acordo com a decisão, a Constituição do Brasil “proclamou o repúdio ao terrorismo
como um dos princípios essenciais que devem reger o Estado brasileiro em suas relações
internacionais (CF, art. 4º, VIII)” e, não bastante, qualificou “o terrorismo, para efeito de
repressão interna, como crime equiparável aos delitos hediondos [...], tornando-o
inafiançável e insuscetível da clemência soberana do Estado e reduzindo-o, ainda, à
dimensão ordinária dos crimes meramente comuns (CF, art. 5º, XLIII)”. Por isso, “o
estatuto da criminalidade política não se revela aplicável, nem se mostra extensível, em sua
projeção jurídico-constitucional, aos atos delituosos que traduzam práticas terroristas”.
68
Como Norambuena fora condenado no Chile a duas penas de prisão perpétua, e a Constituição do Brasil de
1988 não admite tais penas, a extradição foi deferida sob a condição de comutação, pelo Estado Chileno, das
penas de prisão perpétua em prisão temporária (máximo de 30 anos).
72
Pesou na decisão do Supremo Tribunal o fato de os crimes de
Noranbuena terem sido cometidos após o ocaso da ditadura do general Augusto Pinochet,
quando a República do Chile experimentava situação de normalidade democrática.
Segundo anota o julgado, os partidos políticos, inclusive os de esquerda, já se encontravam
em situação de legalidade, e o povo chileno, em eleições livres, abertas e democráticas,
havia escolhido, em 1989, Patrício Aylwin Azócar como novo Presidente da República.
Além disso, mereceu destaque o fato de Noranbuena ter sido condenado por tribunal
integrante da estrutura permanente do Poder Judiciário do Chile, não se cuidando, portanto,
de tribunal de exceção, ou instituído ex post facto ou organizado ad hoc para o julgamento
de uma causa penal específica ou de um réu determinado. Assim, ainda que se tratassem de
atos terroristas com alegada motivação política, o ambiente em que praticados não permitia
seu enquadramento como crimes políticos, mas meramente comuns.
É bem verdade que, no caso, os crimes praticados por Noranbuena não
chegaram a ser identificados pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal concretamente
como atos de terrorismo. O debate em torno da matéria se deu, apenas, sob a perspectiva
de que, ainda que se admitisse tais crimes como atos de terrorismo, conforme a designação
que lhes havia emprestado a Justiça Chilena no julgamento, de qualquer modo não seria
admissível, dado o contexto social e político em que cometidos e ainda a ausência da nota
de dignidade que muitas vezes caracteriza a criminalidade política, estender aos terroristas
o regime benéfico relacionado às limitações do poder estatal de extraditar. É também
importante registrar que o Ministro Sepúlveda Pertence expressamente ressalvou, em uma
de suas intervenções na sessão de julgamento que “é preciso levar em conta o ambiente em
que praticado o dito ato terrorista”, porque dependendo do cenário histórico pode não
restar “à oposição ao regime de força dominante nenhuma alternativa à ação violenta”.
Mas o que interessa destacar, para efeitos ilustrativos, é que a decisão do
Supremo Tribunal Federal excluiu do conceito de crime político, ao menos em linha de
princípio, os atos de terrorismo, subsumindo estes, diversamente, no conceito de crime
comum. Ao assim decidir, o Supremo Tribunal Federal adjudicou à norma do art. 5º, inc.
LII, um conteúdo de sentido que, na sua especificidade, não correspondia a uma prévia e
acabada formulação legislativa. Segundo o Supremo Tribunal Federal, os atos de
terrorismo, sobretudo se praticados no contexto de um regime democrático e mesmo
73
quando cometidos sob o pretexto da motivação política, não impedem a extradição do
estrangeiro à Justiça do Estado que o reclama.
Outro caso decidido pelo Supremo Tribunal Federal é igualmente
ilustrativo. No dia 23 de agosto de 1993, um grupo de auditores fiscais da receita federal,
acompanhado de policiais federais, realizou operação de busca e apreensão nos dois
escritórios contábeis da empresa S.A Organização Excelsior Contabilidade e
Administração, na cidade do Rio de Janeiro, sem autorização
74
consentimento, e a menos que seja caso de flagrante delito ou desastre, ou de socorro que
tenha de ser prestado, ou que exista determinação judicial de ingresso durante o dia
(hipótese de incidência), ninguém pode nela penetrar (conseqüência jurídica). E, de acordo
com o inciso LVI, se as provas que fundamentam a acusação foram obtidas por meios
ilícitos (hipótese de incidência), seu uso é inadmissível no processo (conseqüência
jurídica).
Observa-se que as hipóteses de incidência das normas referidas são
compostas de conceitos abstratas e vagos, tais como “casa” e “meios ilícitos”. Desse modo,
a solução da controvérsia dependia de subsumir-se ou não os escritórios de contabilidade
em que realizadas as operações no conceito normativo de “casa”, bem como de subsumir-
se ou não o material apreendido pela fiscalização tributária, nas circunstâncias em que o
foram, ou seja, no estabelecimento profissional e sem mandado judicial, no conceito de
“provas obtidas por meios ilícitos”. Nestes exatos termos, o Ministro Celso de Mello,
Relator, preliminarmente situou a questão:
A presente impetração suscita duas questões básicas de cuja resolução depende o
julgamento da controvérsia instaurada nesta sede processual. A primeira questão
consiste em saber se os agentes da Administração Tributária, ainda que
acompanhados de policiais federais, podem ou não, sem autorização judicial
ingressar, de modo legítimo, em escritório de contabilidade, em espaço privado
não aberto ao público, contra vontade do seu titular que nele desempenhe
atividade profissional, com o objetivo de apreender documentos ali existentes,
como livros, registros contábeis e fiscais e ‘memória’ de computadores (‘hard
disk’). A outra questão, por sua vez, para ser adequadamente definida, exige
resposta a uma indagação, que assim pode ser formulada: revestem-se ou não de
legitimidade jurídica, para efeito de válida instauração de ‘persecutio criminis’ ,
por suposta prática de delito contra a ordem tributária, os dados probatórios
resultantes de diligência fazendária executada sem mandado judicial e no interior
de compartimento não aberto ao público, localizado em escritório de
contabilidade?
O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, decidiu que: 1)
escritório de contabilidade, como espaço privado, não aberto ao público, subsume-se ao
conceito normativo de casa, portanto, desfruta da proteção constitucional de
inviolabilidade domiciliar, prevista no art. 5º, XI, da Constituição; 2) a prova obtida em
transgressão à inviolabilidade domiciliar é prova obtida por meio ilícito, nos termos do art.
5º, LVI, da Constituição, e não pode ser utilizada em qualquer processo.
75
No julgamento
70
, o Supremo Tribunal ressaltou que o conceito de “casa”,
para o fim de proteção jurídico-constitucional a que se refere o inciso XI do art. 5º da
Constituição, reveste-se de caráter amplo, pois compreende na abrangência de sua
designação tutelar, “(a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado
de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde
alguém exerce profissão ou atividade”, e que este “amplo sentido conceitual da noção
jurídica de ‘casa’ revela-se plenamente consentâneo com a exigência constitucional de
proteção à esfera de liberdade individual e de privacidade pessoal”. Assim, a apreensão de
livros contábeis e outros documentos por agentes fiscais, sem prévia autorização judicial,
no interior de um escritório de contabilidade, em área não aberta ao público, teria
configurado desrespeito à cláusula constitucional de inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º,
XI), “daí resultando a conseqüente ilicitude material da prova penal colhida na questionada
diligência estatal”. Trata-se, aí, como também no caso anterior, de exemplo bastante nítido
de construção de conteúdo normativo da Constituição por meio do procedimento de
subsunção.
3.1.2. Casos de construção mediante ponderação
Em 19 de novembro de 1990, Heloísa Maria Marques da Rosa deu a luz
às gêmeas Thais Marques Rosa e Lívia Marques Rosa, na cidade de Porto Alegre. De
acordo com Heloísa, o pai das meninas era José Antônio Gomes Pinheiro Machado.
Todavia, como José Antônio contestava o fato, foi proposta uma ação de investigação de
paternidade em seu desfavor. Ordenada a prova pericial específica, mediante análise de
grupos sangüíneos e outras investigações, José Antônio Gomes Pinheiro Machado
comunicou que não se submeteria a exames, e a juíza de primeira instância, em decisão
confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado, determinou que o réu comparecesse à
realização dos exames, sob pena de “condução sob vara”.
70
De acordo com o voto do Relator, Ministro Celso de Mello.
76
Em face da decisão, José Antônio impetrou junto ao Supremo Tribunal
Federal um Habeas Corpus (HC nº 71373-4
71
), alegando que a determinação judicial
consistia em coação ilegítima, ofensiva de seu direito constitucionalmente garantido de
inviolabilidade da integridade física, bem como de sua liberdade de locomoção. Além
disso, sustentou existir na ordem ilegalidade e abuso de poder, porque haveria prática de
violência equivalente a prisão sem configuração delituosa, configurando violação aos
princípios constitucionais do art. 5º, incisos II, X e LXI, da Constituição do Brasil de 1988.
Configurava-se, assim, uma colisão entre dois bens constitucionalmente
protegidos, o direito da criança à sua real identidade (art. 227 da Constituição) e o direito à
intangibilidade física da pessoa (art. 5º, incisos II, X e LXI), de modo que caberia ao
Supremo Tribunal Federal definir, no caso concreto, qual dos dois princípios deveria
preponderar - o direito fundamental à determinação da paternidade genética ou o direito do
suposto pai à sua intangibilidade física -, porquanto ambos estavam situados no mesmo
nível hierárquico normativo, isto é, na Constituição, além de carecerem da definição das
respectivas hipóteses de incidência.
O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, mas em votação
apertada, vencidos os Ministros Francisco Rezeck, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e
Sepúlveda Pertence, deferiu o pedido do Habeas Corpus, sedimentando que, na espécie,
deve prevalecer o princípio que protege a intangibilidade do corpo humano e da dignidade
da pessoa humana. Para o Tribunal, a recusa do suposto pai há de ser resolvida não no
campo da violência física (ainda que se tratasse de uma simples espetadela
72
), mas no
plano instrumental, de acordo com as normas infraconstitucionais que regulamentam o
processo civil (parágrafos 2º e 3º do art. 343 do Código de Processo Civil), que
determinam que a recusa do réu implica presunção de reconhecimento do fato da
paternidade e a procedência da respectiva ação.
71
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Habeas Corpus n. 71373-4. Rio Grande do Sul.
Paciente: José Antônio Gomes Pinheiro Machado. Impetrante: José Antônio Gomes Pinheiro Machado.
Coator: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Francisco Rezek; Relator para
Acórdão: Ministro Marco Aurélio. 10 de novembro de 1994. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=HC&processo=71373&recurs
o=0&tip_julgamento=M>, acesso em 12 março de 2007.
72
Expressão utilizada no voto do Relator, Ministro Marco Aurélio.
77
No caso, um argumento de peso para a concessão do habeas corpus
decorreu do entendimento da maioria dos ministros de que o interesse do menor na
definição da paternidade genética é meramente pessoal e de fundo patrimonial. Segundo os
dissidentes, especialmente o Ministro Ilmar Galvão, tratava-se de “interesse que ultrapassa
os limites estritos da patrimonialidade, possuindo nítida conotação de ordem pública,
aspecto suficiente para suplantar, em favor do pretenso filho, o egoístico direito à recusa,
fundado na incolumidade física”. Mas segundo o Ministro Marco Aurélio, designado
Relator para o acórdão, não se trata de hipótese em “que o interesse público sobrepõe-se ao
interesse individual, como a das vacinações obrigatórias em época de epidemias, ou
mesmo o da busca da preservação da vida humana”.
Conforme se observa, o Supremo Tribunal Federal, ressalvadas as
divergências, deu prevalência ao direito à intangibilidade física da pessoa em detrimento
do direito da criança em conhecer sua origem genética. Assim, construiu uma hipótese de
incidência relativamente ao princípio da inviolabilidade do corpo ou da integridade física,
formulando uma regra não constante do plano textual da Constituição em seu conteúdo
particular, e segundo a qual em ação de investigação de paternidade, havendo recusa do réu
(hipótese de incidência), é proibido o uso de coação física oficial para realizar a coleta do
material para exame de DNA (conseqüência jurídica).
As colisões de princípios constitucionais são normalmente pensadas
como contradições entre direitos individuais, mas podem ocorrer também entre direitos
individuais e prerrogativas estatais ou bens coletivos. Desse tipo foi o caso decidido pelo
Supremo Tribunal Federal na Reclamação n. 2040-1
73
. Glória de Los Ángeles Treviño
Ruiz, mexicana, teve sua prisão preventiva decretada pela autoridade judiciária do seu país,
por crime de corrupção de menores, no ano de 1999, ocasião em que se encontrava no
73
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Reclamação n. 2.040-1. Distrito Federal. Reclamante:
Glória de Los Ángeles Treviño Ruiz. Reclamado: Juiz Federal da 10ª Vara da Seção Judiciária do Distrito
Federal. Relator: Ministro Néri da Silveira. 21 fevereiro de 2002. disponível
em:<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=Rcl&processo=2040&recu
rso=0&tip_julgamento=M>, acesso em 18 março de 2007.
78
Brasil. Assim, foi inaugurado processo de extradição (EXT n. 783
74
) em face a existência
de tratado celebrado entre o México e o Brasil.
Enquanto aguardava a tramitação do processo na carceragem da Polícia
Federal em Brasília, a extraditanda denunciou estar grávida em decorrência de estupro, que
teria sido praticado pelos servidores responsáveis por sua custódia. Tais fatos provocaram
a instauração do Inquérito Policial n. 2001.33722-4, objetivando apurar as
responsabilidades dos policiais. Em 16 de janeiro de 2002, o Delegado de Polícia
responsável pelas investigações requereu a realização de exame de DNA, como único meio
de esclarecer as circunstâncias da gravidez de Glória e, com isso, apurar as possíveis
responsabilidades administrativas e penais dos aludidos funcionários públicos.
Todos os policiais que se encontravam trabalhando no plantão e na
custódia da extraditanda se comprometeram, espontaneamente, a fornecer material
genético para exame. Entretanto, Glória se recusou a fazer o mesmo, bem como em
declarar quem seria o pai do nascituro, vindo a postular ao Supremo Tribunal Federal que
impedisse a realização de exames do seu material genético e do nascituro, com base no art.
5º, X e XLIX, da Constituição do Brasil de 1988. Glória alegou serem invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, bem assim ser assegurado aos presos o
respeito à integridade física e moral. Consignou, ainda, que a coleta de qualquer material
genético seu ou de seu filho dependia da sua expressa autorização, como mãe, alegando o
direito constitucional de não ter sua intimidade violada.
Novamente, a hipótese era de colisão entre princípios constitucionais. De
um lado, o direito à integridade física e à preservação da intimidade, protegidos pela
Constituição do Brasil e invocados pela reclamante como fundamento para não realização
compulsória dos exames. De outra parte, em confronto com esses bens, estavam o direito à
honra e imagem dos policiais federais acusados do estupro da extraditanda, bem como os
74
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Extradição n. 783. México. Requerente: Governo dos
Estados Unidos Mexicanos. Extraditanda: Glória de Los Ángeles Treviño Ruiz. Relator: Ministro Néri da
Silveira. 07 dezembro 2000. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=Ext&processo=783&recurso=
0&tip_julgamento=M>, acesso em 18 março de 2007.
79
bens jurídicos da coletividade, tais como a moralidade e a segurança pública, também
protegidos constitucionalmente, invocados pela Polícia Federal como fundamentos da
realização do exame do material genético.
Assim, a controvérsia que se estabeleceu envolvia a colisão de direitos
individuais da reclamante, especialmente o de guardar sob segredo o nome do pai do
nascituro, com direitos individuais dos agentes da polícia federal acusados de estupro,
especialmente o direito à proteção da honra pela revelação da verdade, e com o interesse
do Estado em apurar eventuais responsabilidades penais e administrativas dos seus agentes,
em observância ao princípio da moralidade administrativa e visando preservar instituições
como a Polícia Federal, a Justiça e o próprio Governo Brasileiros.
O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, vencido apenas o
Ministro Marco Aurélio, não deu provimento à Reclamação. Ponderando os valores
constitucionais em conflito, entendeu pela prevalência tanto do direito fundamental à honra
e à dignidade dos policiais acusados do crime, como do interesse público de preservação
da moralidade administrativa, da persecução penal estatal e da segurança pública, bens
jurídicos da comunidade, em detrimento do interesse meramente privado da reclamante.
Em função dos elementos do caso concreto, o Tribunal entendeu ser razoável a restrição ao
invocado direito à intimidade da reclamante. Para tanto, levou em conta que a coleta para o
exame de DNA compreenderia material da placenta de Glória, o que caracterizaria uma
“mínima invasão da intimidade da parturiente”. Segundo o Tribunal registrou, a placenta é,
no pós-parto, corpo alheio ao organismo tanto da mãe como da criança, sendo por isso
considerado pela perícia médica como “refugo hospitalar
75
”.
Ao decidir assim, o Supremo Tribunal Federal outra vez construiu uma
regra que, em seu conteúdo específico, situa-se para além do plano textual originário da
Constituição, determinando uma situação fática de incidência da prerrogativa estatal
relativa à persecução penal. Com efeito, a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal,
tem-se que: é permitida (conseqüência jurídica) a coleta de material genético da placenta
75
Conforme esclarecimento do Ministério Público Federal, mencionado no voto do Relator Ministro Néri da
Silveira.
80
no pós-parto, sem consentimento da parturiente e mesmo contra a sua vontade, por
determinação de autoridade policial, a fim de, no curso de inquérito policial, apurar a
prática e a autoria relativamente a alegado crime de estupro do qual decorreria a gravidez,
que teria sido praticado por policial contra a detenta no interior da carceragem, segundo
denúncia dela própria (hipótese de incidência).
3.1.3. Casos de construção mediante controle da lei
Em 27 de março de 1993, as Mesas da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal promulgaram a Emenda Constitucional nº 3, que em seu art. 2º autorizava
a União a instituir imposto sobre a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e
direitos de natureza financeira. O parágrafo 2º do dispositivo acrescentou que o imposto
referido não estava sujeito ao disposto no art. 150, III, b, e VI, da Constituição do Brasil de
1988, ou seja, que era inaplicável em relação ao mesmo a norma constitucional segundo a
qual são vedadas a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido
publicada a lei que os instituiu (princípio da anterioridade) e a instituição de tributos sobre
o patrimônio, rendas e serviços de outros entes federados (imunidade recíproca entre
União, Estados e Municípios), sobre templos de qualquer culto, patrimônio, renda ou
serviços de partidos políticos, entidades sindicais de trabalhadores, instituições de
educação e de assistência social sem fins lucrativos, livros, jornais, periódicos e o papel
destinado a sua impressão (imunidades tributárias). A Emenda nº 3, portanto, pretendia
subtrair o novo imposto federal aos limites ao poder de tributação estatuídos no art. 150,
III, b e IV, de modo que a cobrança da exação fiscal fosse possível no mesmo ano de sua
instituição por lei e pudesse desconsiderar as imunidades estabelecidas.
Em conseqüência, a Lei Complementar nº 77, de 13 de julho de 1993,
instituiu o Imposto Provisório Sobre Movimentação Financeira (IPMF), determinou a
incidência do tributo no mesmo ano de sua instituição (art. 28) e deixou de reconhecer, em
prejuízo dos beneficiários (igrejas, partidos, sindicatos, imprensa, estados, municípios,
etc.), as imunidades constitucionalmente previstas (arts. 3º, 4º e 8º). Diante disso, a
Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio – CNTC ajuizou ação direta de
81
inconstitucionalidade (ADI nº 939
76
), e a questão central em torno da controvérsia dizia
respeito a saber se o princípio da anterioridade tributária (art. 150, III, b) e as imunidades
tributárias (art. 150, VI, a, b, c e d) consistiam ou não em normas dotadas de rigidez
absoluta, ou seja, imunes ao poder de reforma do poder constituinte derivado pela via de
emenda constitucional. Tratava-se, sobretudo, de saber se a Emenda nº 3/93 colidia ou não
com a norma do art. 60, § 4º, I e IV, da Constituição do Brasil de 1988, segundo a qual não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa do
Estado (em relação à imunidade recíproca) e os direitos e garantias individuais (em relação
ao princípio da anterioridade e demais imunidades tributárias).
O art. 60, § 4º, I e IV, da Constituição do Brasil de 1988, estatui uma
proibição. Com efeito, proíbe emendas constitucionais tendentes a abolir a forma
federativa do Estado ou os direitos e garantias individuais. Por sua vez, a Emenda
Constitucional nº 3/93 estabelecia uma permissão, qual seja, a de que a União cobrasse o
IPMF no ano de sua instituição e de entes imunes para fins tributários. Assim sendo, a
decisão a ser proferida na ADI nº 939 no sentido da inconstitucionalidade ou não da
Emenda nº 3/93 dependia, essencialmente, de decidir-se se as permissões dadas à União
eram compatíveis ou não com as proibições impostas pela norma constitucional. Tratava-
se, pois, delimitar a extensão de uma proibição constitucional enunciada em termos amplos
(vedação de abolição da forma federativa do Estado ou dos direitos e garantias individuais)
no confronto com permissões mais específicas da emenda (possibilidade de excepcionar o
princípio da anterioridade e as imunidades tributárias em relação ao IPMF).
Por maioria, ao cabo de um processo que envolveu a apresentação por
advogados, procuradores e juízes de pontos de vista os mais variados e divergentes, o
Supremo Tribunal Federal decidiu que: 1) o princípio da anterioridade tributária é garantia
individual do contribuinte e, embora não constante da declaração jusfundamental do art. 5º,
qualifica-se como direito imune ao poder de reforma pelo poder constituinte derivado; 2)
ao possibilitar a tributação pela União de Estados e Municípios relativamente ao novo
76
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939-7.
Distrito Federal. Requerente: Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio. Requeridos:
Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Sydney Sanches. 15 de dezembro de 1993.
disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=ADI&processo=939&recurso
=0&tip_julgamento=M>, acesso em 12 março de 2007.
82
imposto, a emenda impugnada violou o princípio federativo, isto é, revelou-se tendente a
abolir a forma federativa do Estado; 3) as demais imunidades tributárias, embora não
constituindo direitos individuais em sentido próprio, visam a garantir o exercício de
liberdades fundamentais (religiosa, política, sindical, de expressão), razão pela qual estão
também protegidas contra a abolição. Em conseqüência, o Supremo Tribunal Federal
declarou a inconstitucionalidade da emenda e da legislação complementar correlata.
Como se percebe, ao assim decidir, o Supremo Tribunal Federal fixou a
extensão das proibições substantivas constantes do art. 60, § 4º, I e IV, da Constituição do
Brasil de 1988, sustentando que as mesmas eram abrangentes da edição de atos legislativos
inferiores que procurassem excepcionar a incidência do princípio da anterioridade e das
imunidades tributárias, ainda que se trate de imposto novo. Desse modo, o Supremo
Tribunal Federal adjudicou à norma do art. 60, § 4º, I e IV, da Constituição do Brasil de
1988, um conteúdo específico de sentido que não havia sido fixado, ao menos com tal
precisão, no nível legislativo, ou seja, no plano do texto constitucional originário.
Outros dois casos ilustram bem a construção judicial do direito
constitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, no controle das leis infraconstitucionais.
No Estado do Mato Grosso do Sul, a Lei Complementar nº 38/89 estabeleceu a altura
mínima de 1 metro e 60 centímetros como condição para investidura no cargo de Delegado
de Polícia. Aprovada no concurso público então realizado em 12º lugar e já contando com
14 anos de experiência como Escrivã de Polícia, Ubertina Lopes Brandão foi impedida de
assumir como Delegada de Polícia em razão de não satisfazer a exigência. Por isso, em
recurso extraordinário (RE 140.889-8
77
) interposto contra decisão do Tribunal de Justiça
do Mato Grosso do Sul que não lhe reconhecera o direito de ingresso, Ubertina alegou
perante o Supremo Tribunal Federal que a legislação local era inconstitucional, por violar a
igualdade. Segundo as razões do recurso, a discriminação era “fundada em critério de
tipologia física, insustentável na finalidade, até porque não se excluem os gordos e os
obesos, não reclamando a investidura garbo e porte atlético”, principalmente porque o
77
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso Extraordinário n. 140.889-8. Mato Grosso
do Sul. Recorrente: Ubertina Lopes Brandão. Recorrido: Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro
Marco Aurélio. 30 de maio de 2000. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=RE&processo=140889&recurs
o=0&tip_julgamento=M>, acesso em 12 março de 2007.
83
requisito exigido não seria indispensável ao exercício do cargo. A exigência da Lei
Complementar nº 38/89, do Estado do Mato Grosso do Sul, alcançava outros cargos do
quadro da polícia civil local, de modo que a altura mínima de 1 metro e 60 centímetros era
também requisito para investidura no cargo de Escrivão de Polícia. Aprovada na fase de
provas de concurso público para referido cargo, Oleide Gomes Katsuragi foi, no entanto,
declarada reprovada na fase de investigação social, pelo fato de possuir, apenas, 1 metro e
59 centímetros, restando também impedida de assumir. Contra decisão do Tribunal de
Justiça do Mato Grosso do Sul que não lhe fora favorável, Oleide interpôs recurso
extraordinário (RE 150-455-2
78
) ao Supremo Tribunal Federal, argumentando, como no
caso anterior, que a legislação local era inconstitucional, porquanto estabelecia critério de
admissão de natureza discriminatória, o que seria vedado por diversos dispositivos
constitucionais concernentes ao postulado da igualdade.
O Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa a Oleide Katsuragi,
garantindo-lhe a posse como Escrivã de Polícia, mas o mesmo não ocorreu em relação a
Ubertina Brandão, cuja negativa de investidura no cargo de Delegado de Polícia foi
mantida. Independentemente de um juízo de mérito quanto à correção ou incorreção de
uma ou outra das decisões, o que interessa perceber é que a divergência de soluções, a
princípio surpreendente, torna-se concebível a partir de uma dupla constatação.
A primeira é a de que o princípio constitucional da igualdade desdobra-
se, na verdade, em dois: de um lado, há o princípio da igualdade em sentido negativo, ou
seja, no sentido de uma norma que estatui a proibição de que o legislador dê tratamento
jurídico diferenciado a grupos ou pessoas em consideração a fatores ou situações que não
justificam a discriminação; de outro lado, há o princípio da igualdade em sentido positivo,
isto é, no sentido de uma norma que estatui, ao contrário, a permissão de que o legislador
dê tratamento jurídico diferenciado a grupos ou pessoas em consideração a fatores ou
situações que justificam a discriminação. Com efeito, de acordo com o entendimento do
Supremo Tribunal Federal, pressuposto explícita ou implicitamente nas decisões referidas,
78
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso Extraordinário n. 150.455-2. Mato Grosso
do Sul. Recorrente: Oleide Goems Katsuragi. Recorrido: Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro
Marco Aurélio. 15 de dezembro de 1998. disponível em:
http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=RE&processo=150455&recurso
=0&tip_julgamento=M>, acesso em 12 março de 2007.
84
diante do princípio constitucional da igualdade, algumas diferenciações produzidas pelo
direito ordinário serão intoleráveis, mas outras poderão ser justificadas. E, justamente por
isso, não se mostra acertado extrair do princípio constitucional da igualdade uma função
meramente de interdição, mas também de autorização, de modo que saber se a diferença de
tratamento jurídico é aceitável ou não depende da análise de cada situação normativa
particular, sob o controle, por assim dizer, do teste de razoabilidade. A segunda é a de que
não há delimitação precisa, na Constituição, quando à extensão das conseqüências jurídicas
do princípio da igualdade, quer das proibições, quer das permissões.
Nos dois casos, por isso, tratava-se de saber se a legislação estadual que
condicionava o acesso aos cargos ao fator altura mínima colidia com o princípio da
igualdade em sentido negativo, enquanto proibição, ou se, ao contrário, conciliava-se com
o princípio da igualdade em sentido positivo, enquanto permissão. Em resumo, no caso do
RE nº 140.889-8, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a natureza das atribuições do
cargo de Delegado de Polícia, que expunha os seus ocupantes à confrontação com
criminosos e exigia porte físico capaz de intimidar, justificava razoavelmente a legislação
que discriminava os candidatos segundo o fator altura. Mas no caso do RE nº 150-455-2, o
Supremo Tribunal Federal, considerando a natureza das atribuições do cargo de Escrivão
de Polícia, de cunho essencialmente burocrático e administrativo, concluiu em sentido
contrário. Em ambos os casos, porém, o Supremo Tribunal Federal construiu conteúdos
normativos que, em sua especificidade, não se encontravam no plano legislativo originário
da Constituição, delimitando o sentido das proibições e permissões substantivas
decorrentes do princípio constitucional da igualdade. De um lado, assentou que a lei que
condiciona a investidura em cargo de Delegado de Polícia à altura mínima de 1 metro e 60
centímetros é permitida; de outro, que a lei que condiciona a investidura em cargo de
Escrivão de Polícia à altura mínima de 1 metro e 60 centímetros é proibida.
Por fim, apresenta-se um último caso de controle de constitucionalidade
exercido pelo Supremo Tribunal Federal. No ano de 1984, na vigência da Constituição do
Brasil de 1967, o Supremo Tribunal Federal deparou-se (Representação nº 1054
79
) com a
79
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Representação n. 1054. Distrito Federal.
Representante: Procurador-Geral da República. Representados: Congresso Nacional e Senhor Presidente da
República. Assistente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Relator: Ministro Moreira
85
argüição de inconstitucionalidade do art. 86 do hoje revogado Estatuto da Ordem dos
Advogados do Brasil (Lei Federal nº 4.215, de 27 de abril de 1963). Tal dispositivo legal
estabelecia que magistrados, membros do Ministério Público, servidores públicos,
inclusive de suas autarquias e entidades paraestatais e os funcionários de sociedade de
economia mista, definitivamente aposentados ou em disponibilidade, bem como os
militares transferidos para a reserva remunerada ou reformados, “não terão qualquer
incompatibilidade ou impedimento para o exercício da advocacia, decorridos dois anos do
ato que os afastou da função”. Segundo o Procurador-Geral da República, autor da
representação, a lei era, nesta parte, incompatível com norma segundo a qual “é livre o
exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade
que a lei estabelecer” (art. 153, § 23, da Constituição do Brasil de 1967, na redação da
Emenda Constitucional nº 1/69, previsão idêntica consta no art. 5º, XIII da Constituição
atual).
Ao debruçar-se sobre a controvérsia, o Ministro Néri da Silveira, relator
originário, situou os antagonismos em jogo. Primeiro, observou que a Constituição
assegura a liberdade de profissão, mas em seguida ressalvou que a mesma “não é absoluta,
excludente de qualquer limitação por via de lei ordinária”. Tanto é verdade, prosseguiu,
“que a cláusula final (‘observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer’) já
revela, de maneira insofismável, a possibilidade de restrições ao exercício de certas
atividades”. Contudo, disse ainda, também não ficou ao livre critério e alvitre do legislador
criar as restrições que bem entenda, impondo-se “um exame aprofundado da espécie, para
fixar os limites a que a lei ordinária tem de ater-se, ao indicar as condições de capacidade”.
Segundo o Ministro, ainda que a disciplina de atividades e profissões esteja compreendida
no poder de polícia, “vale frisar [...] que essa regulamentação não pode ser arbitrária ou
desarrazoada, cabendo ao Judiciário a apreciação de sua legitimidade”.
A abordagem da controvérsia, nesses termos, indica no sentido de que,
segundo o Supremo Tribunal Federal, mesmo nos casos em que a Constituição atribui ao
poder legislativo ordinário a competência para restringir direitos fundamentais, ainda assim
o poder judicial não está limitado a controlar meramente a observância dos requisitos de
Alves. 4 abril de 1984. Revista Trimestral de Jurisprudência. v. 110. Brasília: Supremo Tribunal Federal,
dezembro de 1984, p.937-978.
86
competência e procedimento na produção da lei, mas também para controlar a própria
substância da lei, a sua validade material. Por isso que, no caso, tratava-se de sindicar a
respeito da constitucionalidade ou não do art. 86 do Estatuto da Ordem dos Advogados do
Brasil, que proibia temporariamente o exercício da advocacia, a fim de decidir se ele
excedia ou não, pelo seu conteúdo, os limites do poder de restrição da liberdade de
profissão conferido constitucionalmente ao legislador ordinário.
Por maioria, restando vencido o Ministro Néri da Silveira, que não via o
comando da lei como expressão de uso abusivo da prerrogativa estatal, e sendo vencedor o
voto divergente do Ministro Moreira Alves, a Representação nº 1054 foi julgada
procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da norma impugnada, em razão de ter
sido considerada injustificadamente discriminatória, franqueando-se a magistrados,
membros do Ministério Público e servidores públicos aposentados o livre exercício da
advocacia, independentemente do lapso temporal. Fixou-se, então, o entendimento de que,
no amplo universo das pessoas com instrução superior em direito, é proibido ao legislador
restringir a liberdade de profissão, ainda que temporariamente, apenas em relação a
determinados grupos, tais como magistrados e membros do Ministério Público
aposentados, sem que tal diferenciação de tratamento se revele razoável. Mais que isso, o
Supremo Federal especificou a extensão do próprio poder judicial, ao reconhecer-lhe a
prerrogativa de invalidar lei de competência do legislativo por falta de razoabilidade.
3.1.4. Casos de construção mediante integração
Carlos da Silva Gurgel foi envolvido em ação penal sob a imputação de
mandante de crime de homicídio. Marcado o Tribunal do Júri para o dia 09 de junho de
1992, o advogado constituído por Carlos, Clóvis Sahione, pleiteou a transferência do pleito
para o mês subseqüente, alegando ser defensor em outro processo rumoroso, “Caso
Baumgarten”, cujo julgamento, pelo Primeiro Tribunal do Júri, já estava marcado para o
mesmo mês, revelando complexidade ímpar retratada em vinte e dois volumes e dois
apensos. Alterada a data do júri para 16 de julho de 1992, o advogado do réu solicitou
novo adiamento, alegando sofrer seqüelas de caráter físico decorrentes do julgamento
anterior, que teve longa duração, conquanto iniciada no dia 30 de junho, a sessão do júri
87
estendeu-se por mais de quarenta e oito horas, sendo que o veredicto, no sentido da
absolvição só foi proclamado na madrugada de 02 de julho. Todavia, o novo pedido de
adiamento não foi deferido pelo Presidente do Tribunal de Júri, que, em face do não
comparecimento do advogado do réu na data marcada para o julgamento, em 16 de julho,
nomeou defensor dativo para o acusado. Durante o julgamento, o réu, Carlos da Silva,
recusou-se a responder as perguntas relativas ao interrogatório, por não estar assistido por
profissional de advocacia que credenciara e acabou condenado a 18 (dezoito) anos de
reclusão.
Desta forma, alegando cerceamento e prejuízo da sua defesa o réu
impetrou Habeas Corpus n. 71408
80
, perante o Supremo Tribunal Federal, que deferiu a
ordem, anulando o julgamento e determinando fosse o réu submetido a novo júri. Na
decisão, nos termos do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, o Tribunal registrou que
“consubstancia garantia constitucional implícita o direito do acusado de ser defendido por
profissional livremente escolhido e no qual, portanto, deposita confiança, a ponto de
entregar-lhe a sorte da ação a que responda e cujo desfecho poderá custar-lhe a perda da
própria liberdade”.
No mesmo sentido, a manifestação do Ministro Néri da Silveira, que
sustentou que a “ordem constitucional pretende que todos os réus sejam devidamente
assistidos e defendidos por advogados competentes, que tenham não só acompanhado o
processo, mas pelo menos hajam tido condições de estudá-lo”. Tanto é assim, que a Carta
Constitucional tornou a Defensoria Pública uma instituição constitucional, “em
demonstração desse espírito do nosso sistema”.
Assim, ainda que o direito do acusado de ser defendido por profissional
livremente escolhido não estivesse explicitamente disposto na Constituição, nem pudesse
ser facilmente extraído como decorrência da garantia estabelecida no art. 5º LV da
80
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Habeas Corpus n. 71.408-1. Rio de Janeiro. Paciente:
Carlos da Silva Gurgel. Coator: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator: Ministro Marco
Aurélio. 16 agosto 1994. disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=HC&processo=71408&recurs
o=0&tip_julgamento=M>, acesso em 22 março de 2007.
88
Constituição, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, consagrou-o como
princípio constitucional implícito do nosso sistema jurídico.
Outro caso ilustra bem a hipótese de integração e o reconhecimento de
princípios constitucionais implícitos, não obstante a inexistência de previsão expressa na
Constituição. A Receita Federal determinou que a empresa Credicard S/A Administradora
de Cartões de Crédito lhe prestasse informações sobre o movimento econômico dos seus
clientes. Diante deste fato, a empresa interpôs medida judicial, acolhida pelos juízos de
primeira e segunda instâncias, os quais entenderam que a administradora de cartões de
crédito poderia se recusar a prestar estas informações ao Fisco.
Inconformada com a decisão, a União apresentou Recurso Extraordinário
ao Supremo Tribunal Federal, autuado sob número 219.780-5
81
, alegando ofensa ao art. 5º,
X, XII e XIV, sustentando que os agentes fiscais, no desempenho de suas funções,
necessitam examinar livros, contas e outros documentos, mas que as informações
fornecidas continuam resguardadas, em relação a terceiros, pelo sigilo fiscal, o que esvazia
a assertiva do comprometimento da garantia da privacidade.
Neste caso, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos,
reconheceu o sigilo bancário como espécie de direito à privacidade, previsto no art. 5º, X
da Constitu o0ç.725 reuampdadasua6a adms6 TwCsurolhuc Mgilo .18Silva VelolhucNes“ como 3]TJ-18.495 -1.7255 TD0.0049 Tc0.4nheceu o sigilo pro Twm.3(o)0..(da). unani3[(clie3)5.7(-13s de)-5X
89
Igualmente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito
constitucional do condenado em processo penal de progredir no regime, no julgamento do
Habeas Corpus n. 82.957-7
82
. Neste caso, o Tribunal registrou a existência do direito ao
sistema progressivo da pena, a impossibilidade de que o condenado cumpra integralmente
sua pena em regime fechado, bem como o princípio da “humanidade da pena”, como
decorrências da garantia de que ninguém será submetido a tratamento desumano e do
princípio constitucional de individualização da pena, fixados no art. 5º, incisos III e XLVI
da Constituição.
A propósito da integração e do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal
Federal, de princípios implícitos, o Ministro Celso de Mello registrou em seu voto, em
recente decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 595
83
, a pretexto de
discutir a extensão do parâmetro para controle de constitucionalidade dos atos normativos
(bloco de constitucionalidade), a extensão do próprio conceito de Constituição e também
da jurisdição constitucional, nestes termos:
[...] cabe ter presente que a construção do significado de Constituição permite, na
elaboração deste conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de
índole positiva expressamente proclamados em documento formal (que
consubstancia o texto da Constituição), mas sobretudo, que sejam havidos
igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de
caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e
no próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado.
(Informativo, STF n. 258, in: SARMENTO, 2003, p.274)
Enfim, o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu sua competência
em declarar como fundamentais direitos que não foram expressamente enumerados na
Constituição, os quais considera valores de caráter suprapositivo, como forma de garantir
uma justiça efetivamente material.
82
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Habeas Corpus n. 82.959-7. São Paulo. Paciente: Oseas
de Campos. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Marco Aurélio. 23 fevereiro 2006.
disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/in_processo.asp?origem=IT&classe=HC&processo=82959&recurs
o=0&tip_julgamento=M>, acesso em 22 março de 2007.
83
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 595. Espírito
Santo. Requerente: Governador do Estado do Espírito Santo. Requerido: Assembléia Legislativa do Estado
do Espírito Santo. Relator: Ministro Celso de Mello. Informativo do Supremo Tribunal Federal n. 258.
90
3.2. A FUNÇÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
O antecedente exame de algumas decisões do Supremo Tribunal Federal,
realizado sem a intenção de discutir-lhes o mérito, mas de apenas descrever a sua
funcionalidade, sustenta duas afirmações cruciais da presente pesquisa.
De um lado, as normas constitucionais, notadamente as jusfundamentais,
possuem uma limitada autonomia regulativa, no sentido de que não contêm uma solução
previa ou obviamente determinada para a maior parte das controvérsias de dimensão
constitucional, o que decorre em essência da “textura aberta” da Constituição,
especialmente de alguns correlatos fenômenos normativos de maior especificidade, tais
como: a abstração e vagueza dos conceitos que enunciam as hipóteses de incidência das
normas hipotéticas, a existência de normas sem hipótese de incidência definida (os
princípios) e cujas conseqüências jurídicas com freqüência colidem entre si, a ausência de
delimitação da extensão das proibições, mandamentos e permissões tanto das regras quanto
dos princípios constitucionais e, ainda, a falta de exaustividade do catálogo de direitos, do
que resulta a abertura para o reconhecimento dos direitos implícitos.
Por outro lado, em conseqüência de ser a Constituição uma ordem
normativa aberta, impõe-se que os seus específicos conteúdos de regulação sejam
elaborados e atualizados no momento da aplicação do direito constitucional. Por isso, na
maior parte das vezes em que se defrontam com uma controvérsia de dimensão
constitucional, juízes e tribunais constitucionais não exercem uma atividade puramente
mecânica de revelação de sentido. Mais precisamente, trata-se antes de uma atividade
dinâmica de construção (ou atribuição) de sentido, identificável indistintamente nas
situações em que se procede por meio de subsunção de fatos a regras, ponderação de
princípios em casos de colisão, controle da constitucionalidade de atos legislativos
inferiores e da integração de direitos não expressos à ordem constitucional. Em qualquer
caso, cuida-se invariavelmente de construção judicial de conteúdos normativos.
91
Acresce destacar agora que a tarefa dos juízes e tribunais encarregados de
exercer a jurisdição constitucional se realiza com referência não a uma lei qualquer, mas, o
que é óbvio, com referência à Constituição, precisamente a lei que, na sua qualidade de
fundante, cumpre a função de instituir os poderes estatais e, ao mesmo tempo e mais
importante, de estatuir os seus limites materiais e formais, isto é, tanto no que respeita aos
modos de produção do direito como no que concerne aos seus conteúdos possíveis em face
das normas de direitos fundamentais, na exata perspectiva de um Estado Constitucional de
Direito. Segue daí ser de suma importância perceber que a construção judicial do direito
constitucional por meio dos órgãos da jurisdição constitucional não diz respeito a questões
triviais, mas à decisiva conformação da relação entre governantes e governados no marco
da organização estatal.
Assim sendo, tanto em razão caráter construtivo do direito que marca a
sua atuação, o que a identifica em certa medida com a tarefa legislativa, como em razão da
matéria a que tal atuação se refere, ou seja, os limites do poder estatal, a jurisdição
constitucional exerce, reconhecidamente, uma função de natureza política. Uma farta
doutrina ressalta esse aspecto frisante da jurisdição constitucional, relacionando o seu
caráter político tanto à sua qualidade de instância constitutiva do direito, quanto à
gravidade dos assuntos a respeito dos quais delibera enquanto atua.
Nesse sentido, Cappelletti (1999, p. 88-90) defende ser a atividade de
interpretação e atuação da norma constitucional uma atividade necessária e
acentuadamente discricionária e, lato sensu, eqüitativa. Para ele, a jurisdição constitucional
é “atividade mais próxima, às vezes – pela vastidão de suas repercussões e pela coragem e
responsabilidade das escolhas que ela necessariamente implica – da atividade do legislador
e do homem do governo que da dos juízes comuns”, de modo que o aspecto mais sedutor,
audaz e problemático estaria justamente “neste encontro entre os dois poderes e as duas
funções: o encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e o julgamento, entre o
legislador e o juiz” (CAPELLETTI, 1999, p. 26).
De fato, a natureza política da jurisdição constitucional é indiscutível
para Cappelletti (1999, p. 114). O autor aduz que o controle judicial de constitucionalidade
92
é sempre destinado, por sua própria natureza, a ter também “uma coloração ‘política’ mais
ou menos evidente, mais ou menos acentuada, vale dizer, a comportar uma ativa, criativa
intervenção das Cortes, investidas daquela função de controle, na dialética das forças
políticas do Estado”. Após analisar os sistemas de controle de constitucionalidade de
diversos países, conclui o referido autor que o fenômeno do controle judicial de
constitucionalidade das leis foi ampliado, de maneira impressionante no mundo
contemporâneo e se manifesta, “de fato, naquele que, certamente, é um dos mais
fascinantes institutos jurídicos que foram criados pelo engenho do homem e, com certeza,
um dos mais significativos da época em que vivemos”. Para o mestre italiano, a partir deste
“fenômeno”, o homem tem procurado conciliar a “antiga, profunda e sempre reemergente
contraposição entre o direito natural e o direito positivo, entre justiça e o direito, cuja
relação dialética sempre se tem constituído em um fator vital da evolução jurídica”.
(CAPPELLETTI, 1999, p. 128-130)
Canotilho (1999, p. 632) defende, do mesmo modo, que a função política
da jurisdição constitucional é indiscutível, ressaltando:
À jurisdição constitucional atribui-se também um papel político-jurídico,
conformador da vida constitucional, chegando alguns sectores da doutrina a
assinalar-lhe uma função de conformação política em tudo semelhante à
desenvolvida pelos órgãos da direcção política. As decisões do Tribunal
Constitucional acabam efectivamente por ter força política, não só porque a ele
cabe resolver, em última instância, problemas constitucionais de especial
sensibilidade política, mas também porque a sua jurisprudência produz, de facto
ou de direito, uma influência determinante junto dos outros tribunais e exerce um
papel condicionante do comportamento dos órgãos de direcção política. (...) Por
outras palavras, o Tribunal Constitucional assume, ele próprio, uma dimensão
normativo-constrututiva do compromisso pluralístico plasmado na Constituição
.
Hesse (1998, p. 420-421) não destoa deste entendimento, ponderando
acerca do caráter político da jurisdição constitucional nos seguintes termos:
A jurisdição constitucional tem de decidir questões mais numerosas com toque
político e de alcance político do que outras jurisdições. Suas próprias decisões
podem desdobrar efeitos políticos de alcance considerável. Elas podem
avizinhar-se de uma decisão política, tanto mais que elas regularmente podem
ser obtidas não sobre a base de normalizações detalhadas, senão somente com
base nos critérios amplos e indeterminados da Constituição. A realização dessas
decisões, finalmente, está sujeita a condições completamente diferentes do que
aquelas de outras decisões judiciais.
93
De acordo com Hesse (1998), a Constituição deixa, propositadamente,
espaço para a atividade das forças políticas, porquanto a ausência de regulamentação de
numerosas questões da vida estatal, ou somente em traços, não caracteriza apenas uma
“renúncia à normalização determinante ou uma remissão à atualização concretizadora,
mas, muitas vezes, também uma garantia com força constitucional de discussão livre e
decisão livre dessas questões” (HESSE, 1998, p. 42). Nas palavras do autor:
Sob o aspecto das condições de realização do Direito Constitucional,
Constituição e “realidade”, portanto não podem ser isoladas uma da outra. O
mesmo vale para o próprio procedimento de realização. O conteúdo de uma
norma constitucional não se deixa geralmente realizar sobre a base das
exigências – que se expressam, sobretudo, na forma de um texto lingüístico - que
estão contidas na norma, e precisamente tanto menos quanto mais geral,
incompleto, indeterminado é formulado o texto da norma. Para poder dirigir
conduta humana na situação respectiva carece, por isso, a norma, em geral, mais
ou menos fragmentária, de concretização. Essa só é possível ao, do lado do
contexto normativo, as particularidades das condições de vida concretas, com as
quais a norma está relacionada, ser incluídas no procedimento: a atividade
realizadora da norma constitucional não pode passar por cima dessas
particularidades se ela não quer desacertar a situação problemática, cujo
vencimento é importante para a Constituição.
[...]
A concretização do conteúdo de uma norma constitucional e sua realização são,
por conseguinte, somente possíveis com o emprego das condições da
“realidade”, que essa norma está determinada a ordenar. (HESSE, 1998, p. 49-
50).
Para Hesse (1998, p.52), a consideração e a argumentação jurídica, que
estão vinculadas à normatividade da Constituição, carecem “do complemento por
considerações político-constitucionais que visam a produzir os pressupostos de realização
regular da Constituição, ou então, a modificar a Constituição”. Portanto, o autor conclui
que a interpretação constitucional é concretização e, nesse aspecto, “a interpretação
jurídica tem caráter criador” (HESSE, 1998, p. 61).
Bonavides (2004), ao asseverar que a Constituição é a mais importante
fonte de conhecimento para o jurista moderno, também registra que em face do caráter
aberto das normas constitucionais, abre-se espaço para sua conformação através da função
concretizadora exercida pela interpretação judicial da constituição. Segundo Grau (2003, p.
197), de modo algum isso ocorre sob a perspectiva da neutralidade política do intérprete,
94
que “só existe nos livros, nos discursos jurídicos”. Por isso que, para Barroso (2004, p.
279), “é falsa a crença de que o direito seja um domínio politicamente neutro e
cientificamente puro”. Segundo o autor:
A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da difusão de uma
constatação que, além de singela, sequer era original: não é verdadeira a crença
de que as normas jurídicas em geral - e as normas constitucionais em particular -
tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações
sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de
mera revelação do conteúdo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer
papel criativo na sua concretização.
A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição:
as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e
extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido
unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato
da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se
desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do
caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é
que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução
constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido. (BARROSO,
2004, p. 345-346).
Com efeito, para Barroso (2004, p. 112), não se pode pretender
“objetividade plena ou total distanciamento das paixões em um domínio onde se cuida da
partilha do poder”, de modo que “a jurisdição constitucional, por mais técnica e apegada ao
direito que possa e deva, jamais se libertará de uma dimensão política”. Conforme seu
pensamento, “não é possível neutralizar inteiramente a interferência de fatores políticos na
interpretação constitucional”, uma vez que a “racionalidade total, como bem percebeu
Hesse, não é atingível no direito constitucional”.
Zagrebelsky (2002, p. 143-148), invocando um trecho do Mercador de
Veneza de Shakespeare, afirma que “quando ex
95
filosofia do direito
85
”. Assim, Zagrebelsky reconhece a excepcional importância da função
jurisdicional e considera os juízes como os atuais “senhores do direito”.
Na mesma linha, ao tratar dos conceitos essencialmente controvertidos
presentes na Constituição Espanhola, Iglesias Vila (2000, p. 77-102) destaca que o
Tribunal Constitucional espanhol enfrenta, diariamente, um texto de “caráter abstrato e
claramente controvertido
86
”, de modo que as sua decisões na elucidação destes conceitos
“não são genuínas interpretações, senão expressões de suas convicções particulares
87
”.
Sastre Ariza (2003, p. 241-245) aduz, igualmente, que a função jurisdicional já não pode
responder a um modelo cognicista de aplicação da lei, porquanto os preceitos
constitucionais deixam uma ampla margem de atuação ao juiz, que desempenha, neste
contexto, uma função fortemente política. Para o autor, a incorporação dos juízos de valor
no direito e a prioridade do caráter prático na solução de casos concretos supõem que a
teoria jurídica deva incluir também a política do Direito. No mesmo sentido é o
entendimento de Pozzolo (2003, p. 190), para quem a constitucionalização dos princípios e
a vinculação entre moral e direito que caracterizam o neoconstitucionalismo, demandam
uma atuação política e volitiva na sua aplicação, ou seja, tais direitos e valores, para serem
interpretados e aplicados, demandam do julgador “uma tomada de posição moral destinada
a lhes dar concreção
88
”.
Nas palavras de Binenbojm (2004, p. 66), o intérprete constitucional
possui um significativo espaço de conformação, razão pela qual se pode dizer que “tanto o
legislador como o juiz criam o Direito, embora o primeiro disponha de maior margem de
conformação que o segundo”. Para o autor, a atividade jurisdicional não se reduz, portanto,
à mera aplicação de uma vontade preexistente, ou seja, é constituída, simultaneamente,
“por um ato cognitivo (de definição das possibilidades abertas pela moldura da norma) e
por um ato volitivo (de escolha de uma dessas possibilidades)”.
85
“[…] la interpretación de la Constituición adquiere cada vez más el aspecto de una filosofia del derecho”.
Cfe. Zagrebelsky, 2002, p. 116, tradução livre.
86
“Un texto de carácter abstracto y claramente controvertido”. Cfe. Iglesias Vila, 2000, p. 77, tradução livre.
87
“[...] las decisiones del Tribunal Constitucional en la dilucidación de estos conceptos no son genuinas
interpretaciones, sino expresiones de sus convicciones particulares”. Cfe. Iglesias Vila, 2000, p. 101,
tradução livre.
88
“[...] tendrián necesidad de una toma de posición moral destinada a darles concreción”. Cfe. Pozzolo,
2003, p. 190, tradução livre.
96
Sarmento (2003, p.284) destaca a importante função da jurisdição
constitucional como um “centro unificador da Constituição” no que concerne à
interpretação e aplicação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. A
jurisdição constitucional assume, para além de sua supremacia formal, “também uma
superioridade material, por condensar, sobretudo na estatuição dos direitos fundamentais,
os princípios e valores básicos da comunidade política”. Para o autor, os conceitos
abstratos da Constituição se abrem, pela sua plasticidade, a uma verdadeira reconstrução,
edificada à luz dos direitos e garantias fundamentais.
Sarmento (2001, p. 38-39) ressalta, ainda, que na tarefa de interpretar as
normas constitucionais há um amplo espaço para o exercício da subjetividade do
intérprete, em função do caráter aberto e principiológico que costuma caracterizar as
normas constitucionais, seja pela natureza eminentemente política das questões que surgem
nesta seara. Por isso, conclui que “na prestação da jurisdição constitucional, um certo grau
de politização da justiça e de judicialização da política é natural e inevitável”. Além disso,
o autor acredita que esta complexidade hermenêutica constitucional é mais acentuada, em
países como o Brasil, que adotaram constituições compromissórias, as quais, “pela sua
origem, acabam abrigando normas, diretrizes e valores não convergentes, já que
decorrentes de cosmovisões e ideologias muito heterogêneas, o que tende a gerar a eclosão
de conflitos na resolução de certas controvérsias”.
Brindeiro (2003, p. 433) enfatiza que a função judicial deve ser uma
oportunidade para prática da atividade criativa pela qual o direito é moldado a fim de
preencher as necessidades de uma ordem social em mudança, e, ainda, que o juiz,
principalmente o juiz que realiza a justiça constitucional, deve moldar suas decisões “de
modo a refletir os valores e idéias subjacentes ao sistema jurídico”.
Häberle (1997, p. 24-27) destaca a importância e a influência política da
interpretação constitucional, especialmente no que diz respeito à realização dos direitos
fundamentais, e, além disso, registra que “a interpretação constitucional é uma atividade
que, potencialmente, diz respeito a todos”, e não apenas “evento exclusivamente estatal”.
Defende, assim, uma democratização da interpretação constitucional, pois quando se cuida
97
da Constituição enquanto processo público, mais amplo deve ser o círculo daqueles que
podem participar da sua interpretação, inclusive, como meios legitimadores das decisões
adotadas pelos tribunais.
Para Streck (2001, p. 251), a jurisdição constitucional, mais do que um
mecanismo de controle dos poderes, é condição de possibilidade do Estado Democrático
de Direito, onde o Direito deve ser visto e entendido como instrumento de transformação
social. Cittadino (2000, p. 10), analisando o posicionamento ideológico das decisões
emanadas pelos tribunais constitucionais, destaca que o constitucionalismo brasileiro
“atribui papel preponderantemente político ao Supremo Tribunal Federal, que deve
recorrer a ‘procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações sociais’ e orientar a
interpretação constitucional pelos valores éticos compartilhados”. E Lima (2005, p. 209),
destacando o caráter político das decisões emanadas da jurisdição constitucional, adverte
que “embora se afirme que a Constituição é suprema, tudo dependerá da interpretação do
Supremo Tribunal Federal”. E conclui:
A Constituição será aquilo que a jurisprudência do Supremo determinar. Em
suma: a maioria, ou seja, seis Ministros do Supremo Tribunal Federal, poderão
dizer o seu significado, qualquer que ele seja e sem possibilidade de recurso. O
Supremo Tribunal Federal se transforma, conseqüentemente, em uma
constituinte permanente. (LIMA, 2005, p. 210).
A propósito, Oliveira (2001, p. 68-69) sustenta que a jurisdição
constitucional assumiu o papel de um legislador concorrente “no sentido da realização de
uma suposta ‘ordem concreta de valores’, subjacente à ordem constitucional, que
desenvolveria as convicções axiológicas”. Conclui, assim, que a jurisdição constitucional
teria o papel “de corrigir ou até mesmo de antecipar-se ao Legislativo, compreendendo o
Direito no sentido da realização do que a nação corporificada no Estado entendesse como o
bem-comum”, de modo que “a jurisdição constitucional assumiria o lugar de um poder
constituinte permanente de desenvolvimento de valores pressupostos à Constituição,
limitando, dirigindo e antecipando-se ao Legislativo”.
Costa (2003, p. 97) ressalva, na mesma esteira de pensamento, que o
controle de constitucionalidade exercido pelos tribunais constitucionais, como forma de
98
zelar pela supremacia da Constituição, tem “natureza eminentemente política”. E Appio
(2005, p. 96-97) reforça este posicionamento, aduzindo que o “modelo de controle de
constitucionalidade se caracteriza, basicamente, pela natureza política do seu conteúdo”.
Para o autor, o “processo de controle concentrado é de natureza política”, e reafirma que o
Brasil “confere ao Supremo Tribunal Federal uma função política da mais alta importância,
na medida em que as normas constitucionais terão seu sentido definido pelas decisões
adotadas em sede de jurisdição constitucional” (APPIO, 2005, p.203).
Também para Cruz (2004, p.191), as Cortes Constitucionais assumem
um caráter “incondicionalmente político na condução de suas práticas hermenêuticas”.
Esta característica é ressaltada no controle de constitucionalidade, que, de acordo com o
autor, “recebe o influxo da atividade política e passa a ter esta natureza quando aja para
criar o Direito”. Carvalho Netto (2003, p. 154-161) destaca o caráter político da jurisdição
constitucional como garantia da evolução do constitucionalismo, sustentando que a
“identidade constitucional não pode se fechar, a não ser ao preço de trair o próprio
constitucionalismo como demonstra Michel Rosenfeld”. E completa, aduzindo que os
direitos fundamentais só poderão continuar como uma “tensão constitutiva da sociedade
moderna que sempre conduzirá à luta por novas inclusões” se a própria Constituição se
apresentar como moldura de um processo permanente de aquisição de novos direitos
sociais, aquisições essas que serão, na verdade, decorrentes das “redefinições integrais dos
nossos conceitos de liberdade e de igualdade, requerendo uma nova leitura de todo o
ordenamento à luz das novas concepções dos direitos fundamentais” (CARVALHO
NETO, 2003, p. 160-161).
Por fim, demonstrando a mesma percepção doutrinária, Prieto (1998, p.
39-44) pondera que sendo a Constituição característica do atual Estado Democrático de
Direito “não apenas uma ‘super-lei’, senão algo distinto, onde podemos encontrar diretivas
de atuação em sentido contraditório
89
”, a sua aplicação por parte dos juízes implica uma
transformação no modo de julgar que conduz ao incremento da margem de
discricionariedade judicial. Para o autor, esse protagonismo judicial não é uma moda
passageira, mas conseqüência da supremacia constitucional, e assim, “a manutenção de um
89
“[...] la Constituición no es sólo una ‘super ley’, sino algo distinto donde podemos encontrar directivas de
actuación de sentido contradictorio”. Cfe. Prieto, 1998, p. 39, tradução livre.
99
sistema jurídico coroado por uma Constituição, como a descrita, tem que pagar este
preço
90
”, que supõe confiar aos juízes a última palavra sobre a lei e, em geral, sobre a
legitimidade de toda norma ou decisão.
90
El mantenimiento de un sistema jurídico coronado por una Constituición como la descrita tiene que pagar
ese precio”. Cfe. Prieto, 1998, p. 43, tradução livre.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme foi mencionado na Introdução, a presente Dissertação de
Mestrado foi idealizada a partir da premissa de que, no marco do Estado Constitucional de
Direito, o texto constitucional mostra-se geralmente insuficiente para, por si só, resolver as
situações de direito constitucional controvertido, demandando dos órgãos de jurisdição
constitucional mais do que uma atividade mecânica de revelação de sentido. Seguiu-se daí
a instauração de pesquisa com o escopo de examinar o modo de ser das normas
constitucionais no plano do texto legislativo (em especial, da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988), bem como o modo de sua aplicação no plano da prática
judicial (em especial, do Supremo Tribunal Federal), a fim de confirmar (ou refutar) a
validade da hipótese. Para otimizar a investigação, duas questões foram então
objetivamente formuladas:
1) Quanto ao modo de ser no plano do texto legislativo:
Quais são as causas ou razões pelas quais as normas constitucionais,
sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, não contêm uma solução óbvia ou
previamente determinada para a maior parte das controvérsias constitucionais?
2) Quando ao modo de aplicação no plano da decisão judicial:
Quais são os efeitos dessa limitada autonomia regulativa das normas
constitucionais, sobretudo aquelas relativas aos direitos fundamentais, no que concerne à
tarefa da jurisdição constitucional que compete aos tribunais constitucionais?
Do conjunto da exposição constante dos capítulos antecedentes, pode-se
afirmar agora que as respostas encontradas são, em essência, as seguintes:
101
1) A falta de autonomia regulativa das normas constitucionais decorre da
“textura aberta” da Constituição, especialmente de alguns correlatos fenômenos de maior
especificidade, tais como: a abstração e vagueza dos conceitos que enunciam as hipóteses
de incidência das normas hipotéticas, a existência de normas sem hipótese de incidência
definida (os princípios) e cujas conseqüências jurídicas com freqüência colidem entre si, a
ausência de delimitação da extensão das proibições, mandamentos e permissões tanto das
regras quanto dos princípios constitucionais e, ainda, a falta de exaustividade do catálogo
de direitos, do que resulta a abertura para o reconhecimento dos direitos implícitos.
2) Em conseqüência de ser a Constituição uma ordem aberta, impõe-se
que os seus específicos conteúdos de regulação sejam elaborados e atualizados no
momento da aplicação do direito constitucional. Por isso, na maior parte das vezes em que
se defrontam com uma controvérsia de dimensão constitucional, juízes e tribunais
constitucionais exercem uma atividade dinâmica de construção (ou atribuição) de sentido,
identificável indistintamente nas situações em que se procede por meio de subsunção de
fatos a regras, ponderação de princípios em casos de colisão, controle da
constitucionalidade de atos legislativos inferiores ou da integração de direitos não
expressos à ordem constitucional.
3) A construção judicial do direito constitucional por meio dos órgãos da
jurisdição constitucional, uma vez que se realiza com referência à Constituição, repercute
decisivamente sobre a conformação da relação entre governantes e governados no marco
da organização estatal. Assim sendo, tanto em razão do caráter atributivo de conteúdos
normativos que marca a sua atuação, como em razão da gravidade da matéria a que tal
atuação se refere, ou seja, os limites do poder estatal e a extensão dos direitos
fundamentais, a jurisdição constitucional exerce, reconhecidamente, uma função de
natureza política.
Assim articuladas, as respostas encontradas confirmam a hipótese inicial,
qual seja, a de que a atividade realizada no âmbito da jurisdição constitucional não se reduz
a um modo de proceder segundo o modelo clássico da interpretação, entendida no sentido
de descobrimento de um sentido normativo pré-existente, conquanto oculto ou encoberto.
102
Juízes e tribunais constitucionais constroem o próprio conteúdo normativo do direito
constitucional no momento da decisão, quando problematicamente se defrontam com
controvérsias reais, seja no âmbito de conflitos intersubjetivos, seja em sede de processos
objetivos.
Para finalizar, duas ressalvas parecem oportunas.
Muito embora a presente pesquisa tenha se concentrado, de modo
predominante, no texto normativo da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 e na experiência jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, acredita-se que as
conclusões ventiladas expressam um fenômeno de bem mais larga incidência, comum à
experiência contemporânea de muitas nações ocidentais, de modo que os resultados
obtidos podem constituir elementos úteis à estruturação de uma teoria geral a respeito da
construção judicial do direito constitucional e da função política da jurisdição
constitucional.
E, conquanto a pesquisa tenha deliberadamente optado por uma
abordagem descritiva, não mais do que pretendendo demonstrar que a jurisdição
constitucional é efetivamente construtora dos conteúdos constitucionais, tal não deve fazer
supor que se esteja a subestimar a relevância do debate em torno do dever-ser da prática
judicial, isto é, dos modos pelos quais juízes e tribunais constitucionais devem proceder a
fim de que suas decisões se mantenham nos limites da racionalidade e não careçam de
legitimidade. Trata-se, sem dúvida, de questão capital para a teoria constitucional, mas
que, por escapar aos estreitos limites da presente pesquisa, tem de ficar para uma futura
empreitada.
103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Tradução de Jorge M. Seña. 2 ed.
Barcelona: Gedisa, 1997. (ref. 1997a). 208 p.
__________. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto G. Valdés.
Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. (ref. 1997b). 607 p.
__________. Los derechos fundamentales em el Estado Constitucional Democrático.
Tradução de Alfonso García Figueroa. In: CARBONELL, Miguel (Org).
Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 31-47.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa
de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. 350 p.
ATALIBA, GERALDO. Hipótese de incidência tributária. 5 ed. São Paulo: Malheiros,
1992. 252 p.
APPIO, Eduardo. Controle de Constitucionalidade no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005. 222 p.
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito
constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In:
BARROSO, Luís Roberto. (Org). A nova interpretação constitucional. Ponderação,
Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 01-48.
__________ Interpretação e Aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
427 p.
104
__________. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio
do Direito Constitucional no Brasil). Revista Brasileira de Direito Público, 11, out.-dez.
2005, p. 21-65.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3 ed. São Paulo: Lejus,
2002.690 p.
BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade
democrática e instrumentos de realização. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 282 p.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 8 ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992. 217 p.
__________. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. Tradução de Márcio
Pugliesi, Edson Bini e Carlos E.Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. 240 p.
__________. Teoría General del Derecho. Tradução de Jorge Guerrero R. Santa Fé de
Bogotá: Editorial Temis S.A., 1999. 269 p.
BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta. 3 ed. São Paulo:Malheiros, 2005. 526 p.
BRINDEIRO, Geraldo. Jurisdição constitucional e o devido processo legal. In: SAMPAIO,
José Adércio Leite (Org). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p. 423-433.
CADEMARTORI. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999. 188 p.
105
CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito
Comparado. 2 ed. Tradução de Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1999. 142 p.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed.
Coimbra: Almedida, 1999. 1414 p.
CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguaje. 5 ed. Buenos Aires, Abeledo-Perrot,
2006. 416 p.
CARVALHO NETO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos
direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org). Jurisdição constitucional
e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 141-164.
CORREAS, Óscar. Teoría del Derecho. Barcelona: M.J.Bosh, S.L., 1995. 309 p.
COSTA, Maria Isabel Pereira da. Jurisdição Constitucional no Estado Democrático de
Direito. Porto Alegre: Síntese, 2003. 120 p.
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. 2 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000. 246 p.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo:
Saraiva, 1999. 421 p.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte:
Del Rey, 2004. 475 p.
106
DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. 272
p.
__________. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1989. 276 p.
DWORKIN, J. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. Martins Fontes,
2002. 568 p.
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Tradução de J. Batista Machado. 6 ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972. 333 p.
FALLON, Richard. The dynamic constitution: an introduction to American constitutional
law. Cambridge: University Press, 2004. 336 p.
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. Tradução de Perfecto
Andrés Ilbañez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 1999. 180 p.
__________. Pasado y futuro del Estado de Derecho. Tradução de Pilar Allegue. In:
CARBONELL, Miguel (Org). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 13-29.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999. 181 p.
FIGUEROA, Alfonso García. La teoría del Derecho en tiempos del constitucionalismo. In:
CARBONELL, Miguel (Org). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 159-
185.
107
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Tradução de Claudia
Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 376 p.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2 ed.
São Paulo: Malheiros, 2003. 240 p.
GUASTINI, Riccardo. La “constitucionalización” del ordenamento jurídico: el caso
italiano. Tradução de José María Lujambio. In: CARBONELL, Miguel (Org).
Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p.49-73.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. São
Paulo: Celso Bastos, 1999. 172 p.
HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. 306 p.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da
Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1997. 65 p.
HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura Jurídica Européia. Síntese de um novo milênio.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. 551 p.
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha.
Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998. 576 p.
IGLESIAS VILA, Marisa. Los conceptos essencialmente controvertidos en la
interpretación constiticional. Doxa n. 23, ano 2000, p. 77-104.
108
KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1986. 506 p.
__________. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1987. 377 p.
LARENZ, Karl. Derecho Civil. Parte General. Tradução de Miguel Izquierdo y Macías-
Picavea. Madri: Editoreales de Derecho Reunidas, 1978. 872 p.
__________. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Tradução de José Lamego. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 727 p.
LIMA, Fernando Machado da Silva. Jurisdição Constitucional e Controle de Poder. É
efetiva a Constituição Brasileira? Porto Alegre:Sérgio Antônio Fabris, 2005. 296 p.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. In: Os
pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 213-313.
LOPES. Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. v.1. 9 ed. São Paulo: Freitas
Bastos, 2000. 627 p.
MARTINS NETO, João dos Passos. Direitos fundamentais. Conceito, funções e tipos. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 208 p.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. O controle abstrato de normas no
Brasil e na Alemanha. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 446 p.
109
MEZZAROBA, Orides e MONTEIRO, Cláudia Sevilha. Manual de Metodologia da
Pesquisa. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 329 p.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 2
ed. Coimbra: Coimbra, 1993. 485 p.
MORESO, José Juan. Conflictos entre principios constitucionales. In: CARBONELL,
Miguel (Org). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 99-121.
PEÑA, Antonio Manuel. Constitucionalismo Garantista y Democracia. Revista Crítica
Jurídica, n.22, 2003. p. 33-51.
OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Jurisdição Constitucional: Poder Constituinte
Permanente? In: CRUZ & SAMPAIO, Alvaro Ricardo de Souza e José Adércio Leite
(Org.). Hermenêutica e Jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.67-
91.
PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica: idéias e ferramentas úteis para o
pesquisador do direito. 10 ed. Florianópolis:OAB/SC, 2001. 208 p.
PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. 6 ed. Madrid:Tecnos, 1995. 231
p.
PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. 308 p.
POZZOLO, Suzana. Un constitucionalismo ambiguo. Tradução de Miguel Carbonell. In:
CARBONELL, Miguel (Org). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 187-
210.
110
PRIETO SANCHÍS, Luis. Ley, Principios, Derechos. Madrid: Dykinson,1998. 127 p.
REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA.v. 110. Brasília: Supremo Tribunal
Federal, dez. 1984. Trimestral. p. 925-1500. 576 p.
ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid:
Civitas, 1995. 211 p.
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003. 432 p.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001. 386 p.
SARMENTO, Daniel. A eficácia temporal das decisões no controle de constitucionalidade.
In: CRUZ & SAMPAIO, Alvaro Ricardo de Souza e José Adércio Leite (Org.).
Hermenêutica e Jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 09-43.
__________. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria.
In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org). Jurisdição constitucional e direitos
fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 251-314.
SASTRE ARIZA, Santiago. La ciencia jurídica ante el neoconstitucionalismo. In:
CARBONELL, Miguel (Org). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 239-
258.
STRECK, Lenio Luiz. Os meios de acesso do cidadão à jurisdição constitucional, a
argüição de descumprimento de preceito fundamental e a crise de efetividade da
constituição brasileira. In: CRUZ & SAMPAIO, Alvaro Ricardo de Souza e José Adércio
111
Leite (Org.). Hermenêutica e Jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001,
p. 249-291.
SCHAPP, Jan. Problemas Fundamentais da Metodologia Jurídica. Tradução de Ernildo
Stein. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1985. 136 p.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13 ed. São Paulo:
Malheiros, 1997. 816 p.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A evolução da interpretação dos direitos fundamentais
no Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org). Jurisdição
constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 347-383.
VILANOVA, Lourival. Lógica Jurídica. São Paulo: Bushatsky, 1976. 112 p.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Tradução de Marina Gascón. 4 ed. Madrid:
Trotta, 2002. 156 p.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo