Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
LUCIANA BARROSO COSTA FRANÇA
CONTROLE E CANIBALISMO:
IMAGENS DA SOCIALIDADE NA GUIANA
Rio de Janeiro
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Luciana Barroso Costa França
CONTROLE E CANIBALISMO: IMAGENS DA SOCIALIDADE NA GUIANA
ads:
FOLHA DE APROVAÇÃO
Luciana Barroso Costa França
CONTROLE E CANIBALISMO: imagens da socialidade na Guiana
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos pré-
requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Aprovada por:
_________________________________
Prof. Eduardo Batalha Viveiros de Castro (PPGAS – MN/UFRJ – orientador)
________________________________
Profa. Aparecida Vilaça (PPGAS – MN/UFRJ)
________________________________
Profa. Tânia Stolze Lima (UFF)
Rio de Janeiro, 2006
Para Leandro, meu irmão.
Agradecimentos
À CAPES, que me concedeu por dois anos uma bolsa de estudos.
Aos professores e funcionários do PPGAS-Museu Nacional.
A Tânia Stolze Lima e Aparecida Vilaça, por examinarem esta dissertação.
Aos colegas do mestrado, do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) e da
Rede Abaeté de Antropologia Simétrica.
A Andrea Lacombe, pela amizade fiel. A Ingrid Weber, pelas acolhidas e pela força.
A Paula Siqueira, pelo cuidado. A Anne-Marie Colpron, Marina Vieira, Flávio Gordon,
Salvador Schavelzon e Paulo Maia, por terem lido e comentado esboços deste trabalho. A
Anne-Marie, também pela boemia. A Flávio e Salvador, também pela música e pelos
incentivos essenciais. A Julia Sauma, pela tradução. Também, a Alice Soares, André
Pessoa, Antonia Walford, Arthur Leal, Caroline Ausserer, Dirce França, Gustavo Vilela,
Marina Vanzolini, Michele Markowitz, Esther e Oswaldinho.
Aos amigos que, mesmo à distância, estiveram presentes, sobretudo, Clara, Carol,
Chris, Larissa e Vlad. A Felipe, pela cumplicidade sem igual.
A Renata Otto e Paulo Maia, por terem sido os melhores companheiros nessa
jornada. Pelo que temos partilhado, de antropologia e de tudo mais.
A Ruben Caixeta, pelo exemplo que sempre me deu e por ter, desde a graduação,
me ensinado as coisas mais importantes.
A meu orientador, Eduardo Viveiros de Castro, por tudo o que me inspiram suas
idéias, seus textos e suas aulas. E, também, pelo apoio fundamental para que eu pudesse
chegar ao fim deste percurso.
A Leandro, pelos sábios conselhos e pelo carinho.
A meus pais, Jadir e Geralda, por tudo e por algo mais.
Resumo
Esta dissertação tem como objetivo inter-relacionar duas imagens da socialidade tomadas a
partir de diferentes materiais bibliográficos referentes aos povos indígenas que habitam a
região norte da Améria do Sul, a área da Guiana. Ela apresenta, por um lado, a síntese
etnográfica produzida por Peter Rivière em Individual and Society in Guiana tentando
identificar alguns de seus pressupostos básicos relacionados à caracaterização das relações
sociais pela idéia de “controle”. Por outro lado, procura-se aqui fazer uma análise de um
conjunto de mitos provenientes da mesma região à luz dos trabalhos de Lévi-Strauss e
dos recentes desenvolvimentos da etnologia americanista, sobretudo daquela vertente que
foi chamada de economia simbólica da alteridade através da qual tenta-se oferecer uma
descrição alternativa das relações sociais pautada, sobretudo, na idéia do “canibalismo”. O
trabalho confronta essas duas ‘imagens’ procurando determinar os diferentes tipos de
problemas aos quais elas respondem.
Abstract
This dissertation has as its objective the inter-relation of two images of sociality taken from
different bibliographical sources that refer to the indigenous peoples who inhabit the
northernmost region of South America, in the area of Guyana. On the one hand, it presents
the ethnographic synthesis produced by Peter Rivière in Individual and Society in Guiana
in an attempt to identify some of the basic assumptions related to the characterisation of
social relations through the idea of “control”. On the other hand, this work aims to analyse
a combination of myths from the same region – in light of Lévi-Strauss’ writings and recent
developments in Americanist ethnology and above all the line called symbolic economy of
alterity through which an alternative description of the said social relations is offered,
especially in relation to the idea of “cannibalism”. This work confronts these two ‘images’
in order to determine the different problems to which they respond.
Sumário
1. Introdução___________________________________________________________ 01
I. O mito e seu contexto sociológico: possíveis aproximações _____________________ 06
II. O parentesco e seu contexto teórico: possíveis alterações _______________________11
III. Um panorama da Guiana _______________________________________________15
IV. Plano do trabalho______________________________________________________24
2. O modelo etnográfico da Guiana_________________________________________ 26
I. O grupo local e o padrão de assentamento____________________________________29
II. A composição da aldeia: parentesco, casamento e residência____________________ 35
III. Aspectos das relações de afinidade________________________________________ 45
IV. A economia política do controle__________________________________________ 51
V. Algumas imagens da socialidade__________________________________________ 57
3. O modelo mítico da socialidade__________________________________________ 61
I. Um mito pemon: a visita ao céu___________________________________________ 68
II. A terra redonda da mitologia_____________________________________________ 74
III. Predação versus produção_______________________________________________ 86
IV. O sogro-canibal: variações______________________________________________ 95
V. Outras margens da socialidade___________________________________________ 101
4. Conclusão___________________________________________________________ 103
5. Referências Bibliográficas _____________________________________________ 110
Si vous voulez apprendre de l’Indien, pourquoi les vautours
jouent toujours un rôle si remarquable et pourquoi toujours il
les font monter, il vous rèpond d’un ton naïf: “Là-haut se
trouve toute la science du vautour”.
P. C. van Coll
1
Introdução
A presente dissertação pretende ser um experimento entre antropologias. Uma
tentativa de inter-relacionar duas formas pelas quais certos temas da sociologia dos povos
indígenas da floresta amazônica em particular, da área da Guiana foram (ou podem ser)
tratados. Mais precisamente, o propósito fundamental é o de procurar extrair de um
conjunto de mitos provenientes da região uma imagem do nexo social e confrontá-la com o
modelo sociológico que configurou o “padrão guianês”, estabelecido principalmente a
partir da ntese bibliográfica regional feita por Peter Rivière (1984). Em outras palavras,
através da análise de um grupo de mitos, gostaria de tentar sugerir uma outra imagem para
as sociedades guianesas que não aquela caracterizada, segundo Rivière, do ponto de vista
dos “invariantes da estrutura social”. Não se trata, todavia, de propor que uma imagem seja
substituída pela outra ou de procurar encontrar uma semelhança de fundo entre elas, mas de
“pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente heterogêneos” (Viveiros
de Castro 2001), o que envolve uma dimensão essencial de ficção.
Tomo essa idéia de realizar um “exercício de ficção antropológica” de Viveiros de
Castro (2001). Para este autor, a noção de “experiência de pensamento” implicada nessa
ficção não tem o sentido usual de “entrada imaginária na experiência pelo (próprio)
pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real” (Ibid: 32). Ou
seja, trata-se, para ele, de experimentar uma imaginação de forma controlada, seja pela
experiência do etnógrafo, do leitor da bibliografia etnológica ou de ambos. No caso deste
ensaio, trata-se de procurar experimentar contrastivamente duas imaginações a do
antropólogo e a de seus nativos a partir da leitura de certos materiais bibliográficos que,
em geral, são tratados separadamente. Em última instância, a intenção é menos fazer uma
“análise” ou um “exame” destes materiais do que tentar estabelecer entre eles uma
“relação”.
O caráter ficcional também decorre de uma dupla decisão, tomada algo
arbitrariamente, de horizontalização dos dois discursos. No mínimo como um procedimento
heurístico, a intenção é recusar a suposta diferença epistemológica entre discurso nativo e
discurso antropológico e, mais ainda, entre mito e ciência. Estou ciente de que toda uma
antropologia se constituiu a partir destas diferenças e que muitas delas podem ser
consideradas como perfeitamente plausíveis. Não me parece ser o caso tentar demonstrar
que o que se passa, na verdade, pode ser outra coisa. Mais modestamente, apenas gostaria
de poder passar por cima de certos pressupostos comuns à disciplina e tentar imaginar o
que aconteceria caso pudéssemos deles prescindir. Se pudéssemos, por exemplo, ver nos
mitos uma sociologia propriamente indígena, um modo pelo qual os povos indígenas da
floresta amazônica compreendem e expressam aquilo que vem a ser o domínio de suas
relações sociais.
As duas imagens aqui consideradas descrevem o mundo utilizando-se de materiais
simbólicos muito diferentes. Os mitos falam de sangue, mel, tabaco, podridão, casamentos
interespecíficos, canibalismo, metamorfoses, e coisas do gênero. Falam de qualidades
sensíveis nas quais estão embutidos certos princípios cosmológicos; de uma economia
simbólica da alteridade inscrita no corpo e nos fluxos materiais; de um fundo de
socialidade virtual (cf. Viveiros de Castro 2002) e de um tempo “em que os homens e os
animais ainda não eram diferentes” (Lévi-Strauss e Eribon 1990: 178). O modelo de
Rivière, por sua vez, fala de “reprodução social”, “manipulação de recursos humanos”,
“regra positiva de casamento”, “endogamia prescritiva”, entre outras expressões típicas do
vocabulário antropológico. Fala de uma economia política do controle que se traduz em um
modo pelo qual, em algumas sociedades, a produção e a distribuição de riquezas é
ordenada
1
. Estas duas imagens pressupõem certos solos pré-conceituais e projetam certos
mundos possíveis (cf. Viveiros de Castro 2001). Meu intuito é justapor estas imagens para
assim tentar tornar explícitos e melhor avaliar os pressupostos subjacentes aos modos de
socialidade nelas implicados, bem como às antropologias que informam as maneiras pelas
quais estas imagens são desenhadas
2
.
Uma relação de parentesco em particular fará as vezes de termo comparativo
provisório entre estes dois conjuntos, a saber, a relação entre sogro e genro. A
provisoriedade do termo decorre justamente do fato de que esta “mesma” relação, num
1
As expressões “economia simbólica da alteridade” e “economia política do controle” foram cunhadas por
Viveiros de Castro (2002: 333-336) e dizem respeito a dois estilos analíticos nos estudos contemporâneos das
sociedades amazônicas. Como diz o autor, esta classificação corresponde a ênfases teóricas dentro de um
campo temático comum. A primeira delas é representada, entre outros e em causa própria, pelo próprio autor
que faz coincidir a ênfase dada por sua análise com a própria ênfase dada pelos povos indígenas sul-
americanos em seus modos de conceberem e se relacionarem com o mundo. A segunda tem como um de seus
principais representantes Peter Rivière que, diga-se de passagem, não parece recusar essa descrição para a sua
própria abordagem (cf. Rivière 2001a).
2
Nesse modo de formular a questão, tinha em mente a análise realizada por David Schneider, no seu A
critique of the study of kinship (1984). Pensava, particularmente, no seu objetivo de pensar como duas
descrições radicalmente diferentes podem ser desenhadas a partir do que parece ser o mesmo corpo de
materiais factuais. Para Schneider, isso é possível porque as próprias teorias, pressuposições e os propósitos
que informam cada descrição diferem. Sua primeira descrição das ilhas Yap apresenta o material concreto em
termos do conhecimento convencional dos estudos de parentesco. A segunda descrição tem uma proposta de
trazer os mesmos dados e reapresentá-los, na medida do possível, sem as pressuposições de parentesco da
primeira descrição. Isso me fez pensar que o modo como o “parentesco” é expresso nos mitos pode diferir
radicalmente do modo ele é tratado nas descrições antropológicas convencionais. Fez-me querer pensar nas
possíveis relações que esses dois “modos de descrição” (ou antropologias) podem ter entre si. Uma relação
que pode fazer ressaltar as diferenças, a despeito das eventuais semelhanças. Tratar-se-ia, portanto, de colocar
em ressonância duas “formas de antropologia” completamente heterogêneas.
sistema e noutro, pode significar coisas bastante diferentes. O aspecto genealógico que a
define será tomado apenas como um ponto de partida. O que aqui importa saber é sobre o
quê pode ser essa relação nos dois sistemas simbólicos considerados (cf. Schneider 1972).
As diferenças existentes parecem-me estar implicadas nas analogias nas quais esse nculo
de parentesco está, em cada caso, diversamente concernido.
Os mitos dos quais iremos tratar põem em cena casamentos interespecíficos que
envolvem genros humanos e sogros animais. Do ponto de vista das relações de parentesco,
a esposa de um é a filha de outro ou, melhor dizendo, o que um como um afim o outro
como um consangüíneo. Essa diferença é reforçada pelo problema perspectivista
3
implicado na interespecificidade das relações sociais, pois aquilo que um vê, por exemplo,
como vermes é visto pelo outro como peixe assado. No mundo dos mitos, estes dois modos
de comparar relações são combinados em uma analogia (cf. Viveiros de Castro 2002:
385). o modelo de Rivière apresenta sogros e genros não apenas como humanos, mas
como cognatos, de acordo com o ideal endogâmico que, segundo o autor, é comum na
região. Ou seja, ambos vêem a mulher que os une como um consangüíneo. A relação,
tomada a partir de seu aspecto genealógico, é comparada com certos aspectos da liderança
política a disputa pelo controle sobre os mesmos recursos escassos, no caso em questão,
as capacidades produtivas e reprodutivas das mulheres.
3
O conceito de “perspectivismo ameríndio” foi elaborado por Viveiros de Castro (2002) e vem sendo
desenvolvido em diversos estudos americanistas recentes. Ele traduz a concepção, bastante comum entre os
povos do continente, segundo a qual “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,
humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (Ibid.: 347). A idéia básica do
conceito é resumida pelo autor da seguinte maneira: “toda posição de realidade especifica um ponto de vista,
e [...] todo ponto de vista especifica um sujeito — nessa ordem” (Idem.2001: 8).
Nesse sentido ao menos, o que o antropólogo faz não difere muito do que faz o
nativo. Ambos tecem analogias entre diferentes domínios de seus mundos, embora estes
mundos possam, precisamente, não ser os mesmos. Essas comparações, elas próprias,
podem ser comparadas. Mas, como sugere Viveiros de Castro (2004), essa
comparatibilidade direta pode não significar uma tradutibilidade imediata. Diante disso, diz
ele, resta saber o que acontece com nossas comparações quando nós as comparamos com as
comparações indígenas. Ou, transpondo diretamente para o contexto deste trabalho, o que
acontece com a analogia implícita no modo pelo qual Rivière compreende a relação entre
sogro e genro entre os povos indígenas da Guiana se comparada com o modo pelo qual os
próprios nativos da região descrevem comparativamente esta mesma relação em seus
mitos?
A escolha de tomar essa relação de parentesco específica como ponto de partida
para a comparação é, em parte, arbitrária pois outros termos poderiam ser considerados e
talvez apontassem para diferenças semelhantes –, mas, em parte, é estratégica na medida
em que, por um lado, essa relação ocupa um lugar central no modelo descrito por Rivière e,
por outro, é um tema pregnante em um conjunto de mitos provenientes da região da
Guiana. No contexto descrito por Rivière, ela está associada a um controle uxorilocal dos
homens mais velhos sobre os mais jovens através das mulheres. Nos mitos ela aparece em
uma situação arquetípica em que um humano se casa com uma mulher-animal e tem que
realizar uma série de tarefas difíceis ou perigosas impostas por seu sogro que o ameaça
devorar em caso de fracasso, mas de quem obtém os bens culturais. Num caso, controle;
noutro, canibalismo.
I. O mito e seu contexto sociológico: possíveis aproximações
O que pretendemos fazer, portanto, é inter-relacionar dois “textos” e não o discurso
mítico e a realidade etnográfica de onde ele provém, que, de fato, não dispomos dela (se
é que seria possível dela dispor). Mas, de diferentes maneiras, este foi o caminho que vários
autores se propuseram a seguir no sentido de tentar compreender o que dizem os mitos. Em
sua monumental análise da mitologia ameríndia, Lévi-Strauss demonstra que “o mito é uma
metalinguagem, da qual a realidade etnográfica, dada como objeto, guarda a chave” (Lima
1995: 10). Mas, ao menos no caso deste autor, a relação entre o texto do mito e seu
contexto, não é simples ou mecânica. Para ele, o mito não reflete esta “realidade
etnográfica” e pode mesmo contradizê-la (podendo esta distorção, no entanto, fazer parte de
sua estrutura). Na análise lévi-straussiana, a relação entre estes dois planos é complexa. O
mito atualizaria, de uma só vez, algumas das infinitas possibilidades dadas tanto pelo
contexto empírico de sua enunciação (a infra-estrutura geográfica, ecológica ou
tecnológica; a sociedade; os eventos históricos; etc.), quanto pelas transformações de outros
mitos (mesmo que provenientes de outras sociedades, mesmo que as mais longínquas). Não
haveria, portanto, um referente último ou um código privilegiado capaz de decifrar-lhe a
significação, pois, em última instância, a unidade do mito seria projetada num foco virtual
(Lévi-Strauss 1964: 37).
Outros autores, contudo, encararam a relação entre mito e realidade etnográfica de
maneira bem mais direta. Terence Turner, por exemplo, critica Lévi-Strauss porque a
concepção de estrutura e o todo analítico deste teriam sido concebidos “comme des
moyens de contourner l’écheveau des associations contextuelles des éléments d’un récit
mythologique, dans le but de permettre l’elaboration d’um modèle de la structure du mythe
dans son ensemble qui serait basé sur l´intégration d’éléments de contextes différents et
largement séparés” (1980: 85). Para Turner, Lévi-Strauss estaria interessado em descobrir
uma “estrutura coerente” que poderia emergir a despeito das relações contextuais
concretas de onde a narrativa mítica teria sido constituída
4
. Contrapondo-se a este tipo de
abordagem, Turner sugere que
(…) dans le mythe, comme en poésie et dans d’autres formes complexes de discours,
l’association et la co-variation contextuelles sont les moyens principaux qu’il faut
exploiter pour lier l’interdépendance systématique (c’est-à-dire la “structure”) au
niveau de la signification. Autrement dit, la “structure” du mythe est transmisse à
travers les relations contextuelles entre les éléments symboliques du mythe.
L’“histoire” que raconte le mythe est, dans ces conditions, comprise comme une série
de “contextes”, c’est-à-dire de groupes juxtaposés de relations qui encoden eux-mêmes
la structure (1980: 86).
Para demonstrar a sua maneira de abordar os mitos, Turner reconta o mito
kayapó do desaninhador de pássaros e tenta articulá-lo com alguns elementos da
composição social desta sociedade. Ele sugere que o tema fundamental do mito é a
passagem brusca da residência na casa dos homens à residência no grupo doméstico da
mulher, situação essa que, segundo a descrição do próprio Turner, seria vivenciada
concretamente na sociedade kayapó. Tudo se passa como se por trás do mito estivessem o
que, para o autor, são “as concepções profundas sobre a natureza fundamental de toda
sociedade humana”, a saber, “a capacidade de reprodução das relações sociais de produção”
(1980: 109). Para Turner, os mitos se apresentam como formas reguladoras dos processos
4
Literalmente, diz Turner, referindo-se à análise lévi-straussiana: “une structure cohérente, si l’on pouvait en
découvrir une, devait par conséquent émerger pour ainsi dire en dépit des relations contextuelles dont le récit
est concrètement constitué – et codifié sous un angle différent du text – plutôt qu’à travers elle” (1980: 85-6).
de ação, e é essa função reguladora que exige que eles assumam as estruturas das categorias
próprias aos processos de ação dos quais participam.
A crítica feita por Turner a Lévi-Strauss parece-me algo exagerada. A análise
estrutural deste último acerca dos mitos jamais concebeu que se pudesse atingir qualquer
nível de significação sem que se levasse em conta elementos do contexto etnográfico. Diga-
se de passagem, Lévi-Strauss em diversos momentos insiste em dissipar quaisquer
confusões que reduzam o estruturalismo a um mero formalismo, o que parece ser o fundo
da crítica de Turner. Mas, de fato, o modo pelo qual os dois autores articulam o mito e a
situação empírica diverge bastante. Diferentemente de Turner, os “mitos lévi-straussianos”
não representam a realidade, embora mantenham com ela uma relação intrínseca
5
. Como
diz Lévi-Strauss:
Seria (...) ingênuo de nossa parte imaginar que existe sempre e por toda parte uma
correlação simples entre representações míticas e estruturas sociais, expressa por meio
das mesmas oposições; por exemplo, que mitos dioscúricos são o acompanhamento
normal de organizações dualistas, ou que, nas sociedades patrilineares, o céu deve ser
masculino e a terra feminina, ao passo que a relação inversa prevaleceria
automaticamente nas sociedades matrilineares (Lévi-Strauss 1964: 376).
Peter Rivière também interpreta um mito trio de uma maneira que, num certo
sentido, muito se assemelha à abordagem de Turner. Neste mito, o herói cultural recebe do
5
No que diz respeito a Turner, é preciso matizar essa colocação. O autor afirma explicitamente que “la pensée
mestre do mundo aquático subterrâneo uma esposa e uma vasta gama de conhecimentos e
objetos culturais, sem nada dar em troca. Para o autor, a relação não parece ser predatória
“todos os bens são oferecidos e não simplesmente tomados” (2001a: 43) embora pareça-
lhe unidirecional. Rivière é cauteloso ao fazer explorações quanto à natureza da economia
simbólica dos povos da Guiana, mas ele sugere que esse mito corroboraria a sua hipótese de
que, entre estes povos, as trocas são marcadas mais pela reciprocidade do que pela
predação, ao mesmo tempo em que se poderia reconhecer “uma ligeira indisposição em
cumprir sua parte da troca” (2001b: 17). Rivière, como Turner, acaba tomando o enredo do
mito como se nele se expressasse o modo pelo qual, empiricamente, se relacionam (ou
deveriam se relacionar) os atores e seus projetos de ação.
David Thomas, em sua etnografia sobre os Pemon, faz uma análise de três mitos,
onde pretende “to examine the tales as symbolic statements about the form and content of
social relations” (1982: 188). Ele conclui que estes mitos exprimem as noções nativas de
“hierarquia”, de “reciprocidade balanceada” e de “demandas individuais disruptivas”
(1982: 5). A análise dele, ainda que tomando o enredo dos mitos de maneira mais
paradigmática que Rivière e Turner, também parece fazer com que os mitos sejam uma
tradução algo imediata do contexto sociológico. Thomas segue a crítica de Burridge (1967)
a Lévi-Strauss, segundo a qual seria preciso enfatizar o conteúdo dos mitos, o que,
supostamente, não teria sido feito por este último.
6
6
O artigo de Burridge citado por Thomas, “Lévi-Strauss and Myth”, parece-me repousar sobre uma série de
mal-entendidos acerca dos princípios da análise estrutural. O problema fundamental, penso, poderia ser
resumido no modo pelo qual o autor do referido artigo compreende que Lévi-Strauss teria oposto conteúdo e
forma. Este último, entretanto, sempre procurou evitar tal oposição. Num artigo escrito para responder
particularmente às acusações de formalismo, ele dizia: “Ao inverso do formalismo, o estruturalismo recusa
opor o concreto ao abstrato, e não reconhece no segundo um valor privilegiado. A forma se define por
oposição a uma matéria que lhe é estranha, mas a estrutura não tem conteúdo distinto: ela é o próprio
Cada um à sua maneira, Turner, Rivière e Thomas se propõem a associar o que é
expresso pelos mitos com uma descrição antropológica das sociedades de onde eles
provêm. Mas essa “associação” tem uma direção clara. O discurso nativo é traduzido para
os termos do idioma do conhecimento convencional da antropologia e não o contrário. O
propósito deste trabalho é justamente tentar inverter esse jogo. Em vez de “sociologizar o
mito” (explicá-lo por seu contexto sociológico) trata-se de “mitologizar a sociologia”, ou
seja, imaginar como os pressupostos subjacentes ao mito podem complexificar os modelos
etnográficos. Procurar seguir as pistas do modo pelo qual os mitos poderiam contribuir para
a composição de uma imagem amazônica da Relação (cf. Viveiros de Castro 2001: 19).
Como talvez se possa divisar, o horizonte que inspira este trabalho é uma
confluência entre duas tendências teóricas, intrinsecamente relacionadas, da antropologia
contemporânea. Por um lado, a de “se insistir no caráter socialmente construído (...) do
nexo de parentesco” (Idem 2002: 404); por outro, a de “integrar os modos de descrição
nativos aos procedimentos descritivos empregados pelo antropólogo” (Gordon 2005).
Sobre estas duas tendências, parece-me, é preciso abrir um parêntese e dizer algumas
palavras.
conteúdo, apreendido numa organização lógica concebida como propriedade do real.” (Lévi-Strauss 1958:
121). Nas análises míticas propriamente ditas, o autor, várias vezes, quando faz especulações mais “abstratas”
II. O parentesco e seu contexto teórico: possíveis alterações
As críticas de Schneider (cf. 1972, 1984) aos estudos de parentesco abriram o
campo para que este domínio canônico da antropologia fosse reconsiderado de uma
maneira muito diferente do que havia sido até então. Um dos principais problemas
destacados pelo autor é que a maioria dos antropólogos, apesar de todas as suas estratégias,
não teria sido capaz de abandonar a grade genealógica para definir o parentesco. Desde
Morgan e em autores tão diferentes como Durkheim, Lévi-Strauss, Leach e Needham,
entre outros , a concepção dos laços biológicos como um domínio dado a priori teria
permitido a comparação entre os diferentes sistemas de parentesco e a própria consolidação
destes estudos. Segundo Schneider,
the assumption that Blood Is Thicker than Water says that whatever variable elements may
be grafted onto kinship relations, all kinship relations are essentially the same and share
universal features. Hence the genealogical grid can be used as an etic grid: comparable
things are being compared and analyzed by first establishing their identity and universality
and holding constant the components that make them comparable (1984: 174).
Mas o ponto de Schneider é que a segregação arbitrária de uma rubrica como
“parentesco”, tomado fora do contexto da cultura como um todo, não seria um bom
caminho para entender como uma cultura é estruturada. Para ele, o problema não poderia
ser colocado no modo pelo qual cada cultura formula respostas particulares a uma questão
universal (quem é o parente?), mas em conceber quais seriam as próprias perguntas
relevantes em cada sistema cultural (o que é um parente?). Em outras palavras, para
Schneider, o “parentesco” deveria ser esvaziado de quaisquer significados transcendentais
(as premissas bio-genéticas da grade genealógica) e tomado como um sistema de símbolos
e significados, que poderiam ser encontrados em domínios muito diferentes que aqueles
diretamente relacionados com os problemas da reprodução humana. Diz ele:
One must take the native’s own categories, the native’s units, the native’s organization, and
articulation of those categories and follow their definitions, their symbolic and meaningful
divisions wherever they may lead. When they lead across the lines of ‘kinship’ into politics,
economics, education, ritual, and religion, one must follow them there and include those
areas within the domains which the particular culture has laid out. One does not stop at the
anthropologist’s arbitrarily defined domains of ‘kinship’, ‘religion’, ‘ritual’, and ‘age-sets’,
etc., but instead draws a picture of the structure of a culture by means of the categories and
congeries of units which the culture defines as its parts; one interrelates these in terms
which, in that particular culture are symbolically defined as identical, drawing distinctions
among parts which that culture itself defines as different by their different symbolic
definition and designation (1972: 51).
A crítica schneideriana foi, direta ou indiretamente, absorvida pela nova safra de
trabalhos americanistas no domínio do parentesco que passou a procurar, não mais
comparar sistemas a partir de conexões biológicas, mas questionar o valor e o significado
destas conexões. Neste sentido, os estudos realizados nas terras baixas sul-americanas, a
partir da segunda metade dos anos 70, tenderam a reimergir “o parentesco em sistemas
mais amplos de classificação social e em concepções cosmológicas globais” (Viveiros de
Castro 2002: 106). Por um lado, as relações sociais internas ao grupo local passaram a ser
consideradas em seu caráter processual. As práticas cotidianas como a “fabricação” dos
corpos, a comensalidade ou as restrições impostas pela couvade capazes de fazer com
que, progressivamente, estranhos se tornassem parentes e, ao mesmo tempo, de evitar que
parentes se tornassem estranhos começaram a ser enfatizadas em contraponto com as
conexões supostamente dadas pelo nascimento (cf. p. ex. Vilaça 2002). Por outro lado, o
exame das relações de parentesco se expandiu para fora do grupo local, para vários outros
circuitos de troca simbólica como a guerra, o comércio, os rituais, o xamanismo ou os
mitos. Esse exterior (povoado por seres de humanidade duvidosa) passou a ser considerado,
não mais como pura negação da socialidade, mas em sua positividade, como o ambiente
mesmo que daria o tom de todas as relações sociais (Viveiros de Castro 2002: 413-418).
7
Para dentro e para fora do grupo local, fez-se vibrar o nosso conceito de parentesco com
diversos domínios do socius indígena no sentido de tentar estabelecer aquilo que se poderia
chamar de “parentesco” no contexto amazônico.
Se os laços bio-genéticos não deveriam mais ser tomados como o dado a priori que
conecta as pessoas, o que, no caso ameríndio, o faria? Pois, seguindo a formulação de
Wagner (1981), em toda cultura, um dado, seja ele qual for, é sempre pressuposto. Algum
domínio simbólico é sempre construído como se fosse a manifestação do inato, enquanto
outro é concebido como inteiramente construído. A tese defendida por Viveiros de Castro é
que o parentesco amazônico daria à afinidade “a função de dado na matriz relacional
cósmica” (2002: 406). Nesse sentido genérico, ela é chamada pelo autor de “afinidade
potencial”, distinguindo-se da manifestação particuar do nexo de parentesco. O processo de
atualização deste princípio constituiria assim a área própria da fabricação, da intervenção
humana na ordem das coisas.
Um desenvolvimento particularmente rico destas críticas contra a aplicação
mecânica das ferramentas analíticas antropológicas (universais) a contextos etnográficos
(particulares) foi feito por Roy Wagner, em seu The Invention of Culture. Neste livro, o
autor descreve o processo pelo qual o pesquisador em campo, da sua inadequação aos
7
Toda essa reviravolta nos estudos do parentesco amazônico colocou em questão a própria idéia do que viria
a ser o “interior” e o “exterior”, já que tudo indicava que um se constituía pelo outro.
novos contextos que experimenta, faz emergir o que vem a ser a “cultura” do povo
estudado
8
. Ou seja, para Wagner, o que chamamos de cultura é, antes de tudo, um efeito da
relação entre antropólogo e nativo. É a objetificação das diferenças entre os diferentes
mundos cujo elo é dado por aquele que se propõe a efetuar, entre eles, a passagem instável.
III. Um panorama da Guiana
A área referida como “região da Guiana” fica no nordeste das terras baixas sul-
americanas, entre o rio Amazonas, o Negro, o canal do Casiquiare, o Orinoco e o oceano
Atlântico
10
. Cercada de água por todos os lados, a região pode ser considerada como uma
enorme ilha marítimo-fluvial no norte da América do Sul. Politicamente, o território
abrange o leste e o sul da Venezuela, a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa e, do
Brasil, o Amapá, o norte do Pará, Roraima e parte do norte do estado do Amazonas.
potencializar essa capacidade de alteração do discurso convencional da antropologia pelos discursos dos
outros.
10
A maior parte das informações que se seguem, acerca dos aspectos físicos e etnográficos gerais da região,
estão baseadas na descrição de Gillin (1948) e Rivière (1984).
A geografia local é bastante variada. Em toda a área – que, em suas maiores
extensões, chega a ser de 1920 quilômetros (no sentido leste-oeste) e de 1280 (no sentido
norte-sul) –, as sociedades indígenas estão distribuídas em diferentes altitudes nas quais se
encontram diversos ambientes ecológicos. Segundo Gillin (1948: 799-800), a paisagem da
região pode ser caracterizada por quatro tipos: (1) as planícies costeiras e deltas que, como
as margens da maior parte do litoral atlântico, são terras baixas, às vezes alagadiças,
sujeitas a inundações sazonais e cobertas por uma densa floresta 1.08495(b)-9.20196t7(o)-4.05851(7r3 0 Td[(e)3.48087(n)1.08368(t)-4.8898()-4.05725(nr)3.81992(o)-4.05851(s)-1196t7(o)-74.0376(d)-4.05851(e)1.80604( )-3.48087(é0.253657(e)1.66258(dd)1.08495(id)1.08495(a)8.25766( )7(d)]T-235.955 -26.82 Td[(al0.253657(i)0.253657(t)0.253657()0.253657(r)-1.32898(;)1.66258(l)1.90368)-38.03057(2)1.08495(0)-4..08495(r)-1.05851(,a)1.66258(f)3.81992(l)5.39711(o)-9.20258()0.253657(e)1.66258(sn)1.08368(t)-4.8898(i)-4.8898(s)-1.90368)-43.1769(p)1.08495(u)5.39711(o)-3.48087(c)6.80604(o)-1.0588 )-248.915(m)6.48206(a)1.66604(i)-4.8898(s)-1.90368a-4.05851(e)-1.66321(i)0.253657(t)03.81992(a)1.66258(s)-1.90368quecoor emq
vai de setembro a março e outra, chuvosa, que vai de abril a agosto. Em alguns lugares,
uma breve estação chuvosa e outra seca permeiam as grandes estações.
De modo geral, o método agrícola consiste na derrubada e queima da mata [slash-
and-burn method].
13
A limpeza das roças é usualmente feita por homens, trabalhando
sozinhos ou assistidos por seus parentes. A exaustão do solo requer que novas roças sejam
constantemente utilizadas. A principal planta cultivada e consumida é, por todos os lugares,
a mandioca-brava. Os principais produtos obtidos da mandioca são o pão e a bebida. Outras
plantas cultivadas são a mandioca-doce, a batata-doce, o inhame, o amendoin, o milho, a
banana, a cana-de-açúcar, o abacaxi e a pimenta. A caça geralmente é uma tarefa realizada
por um ou dois homens com seus cachorros e vários tipos de armas o utilizadas. A pesca
e a coleta de produtos da floresta também possuem um papel importante na economia
total.
14
O consumo de tabaco, freqüentemente associado às práticas xamânicas, é bastante
generalizado.
As aldeias costumam ser pequenas, dispersas e impermanentes. Idealmente, uma
unidade social básica é formada por parentes. Ou seja, existe uma preferência pela
endogamia nas aldeias, mas seu pequeno porte raramente a permite. A regra de
descendência é cognática e a categoria prescrita de casamento inclui os primos cruzados
13
Algumas das técnicas utilizadas nas atividades de subsistência, certos padrões da cultura material e do
aldeamento, por várias razões, têm se alterado entre alguns dos grupos da região ao longo das últimas
décadas. As descrições destes aspectos nas quais me baseio dizem respeito a uma época específica e
provavelmente não traduzem bem o que se pode encontrar hoje em todas as sociedades indígenas guianesas
(embora, por outro lado, não haja maiores indícios de que tudo tenha se transformado completamente). Como
a intenção aqui é apenas panorâmica, peço apenas que se tenha em mente essas ressalvas.
14
Segundo Rivière, não é óbvio para um observador qual destas atividades é mais importante, mas um Trio
não teria dúvidas em dizer que poderia viver sem carne, mas que sem pão, morreria (1969: 42). Entre os
Piaroa, a escala de valores parece corresponder à dos Trio (cf. Overing, 1975: 37).
bilaterais (entre outros indivíduos genealogicamente definidos como, em alguns casos, a
filha da irmã (ZD) ou mesmo sem laços genealógicos). Ao menos durante o período que
sucede imediatamente o casamento, o mais comum é que a residência seja uxorilocal. É
quando o genro, ao receber sua mulher, deve realizar uma série de serviços para seu futuro
sogro. Politicamente, cada aldeia costuma ter um chefe que, em muitos casos, possui uma
autoridade bastante fraca e uma posição débil, dependente da rede de relações com seus
parentes próximos.
15
Alguns dos povos indígenas que habitam (ou habitaram) a região são conhecidos
pelos etnônimos de Aparai, Paravilhana, Wayana, Kalina, Trio, Akurio, Pianokoto, Waiwai,
Hiskariana, Karafawyana, Parukwoto, Tarumá, Mawayana, Xerew, Katuena, Tunayana,
Cikyana, Wapixana, Macuxi, Pemon, Kapon, Taurepang, Arekuna, Kamarakoto, Patamona,
Akawaio, Ingarikó, Yekuana, Marikitare, Maiongong, Guinau, Piaroa, Panare, Shiriana,
Yanomami, Waicá, Sanumá, Warao, Palikur, Karipuna, Waiãpi, Zo’é, Kaxuiana, Waimiri-
Atroari, Émerillon, Galibi
16
. Uma proporção significativa destes grupos fala línguas
predominantemente da família caribe, embora algumas pertençam a outras famílias
15
Esses traços serão mais bem desenvolvidos no segundo capítulo desta dissertação.
16
Estes são apenas alguns dos nomes de grupos indígenas que habitam a área da Guiana, mas a lista poderia
se estender ainda mais. Outros grupos da região podem não estar representados por nenhum destes nomes.
Acontece, por exemplo, que, em algumas línguas, existem sufixos que significam “habitantes de”. Vê-se
então uma proliferação de termos, formados por nomes de lugares mais o sufixo, que são usados na
designação de diversos grupos locais. Além disso, um mesmo etnônimo pode ser usado em referência a vários
grupos, ou, reversamente, os mesmos grupos podem ser reconhecidos por vários nomes. De modo geral, a
designação de etnônimos em todas a região da Guiana configura um quadro bastante complexo por várias
razões (cf. Farage 2002, Thomas, 1982). Entre elas, está o fato de que as autodenominações raramente
coincidem com os modos pelos quais cada grupo é denominado pelos outros, o que gera uma certa
discordância entre os autores quanto ao uso que fazem destes nomes. Para outros nomes de grupos indígenas
que habitam a região, ver Gillin (1948: 801-817).
lingüísticas. Gillin (1948) sugere que devem ter havido ao menos dez línguas indígenas, ao
longo da história, na região.
17
Vários destes grupos foram descritos por diversos autores – entre missionários,
viajantes, cronistas, funcionários coloniais, historiadores, antropólogos desde o fim do
século XVI. Mas, apesar disso, Gillin, no capítulo do Handbook of South American Indians
dedicado à área da Guiana, chamava a atenção para o fato de que “the ethnograpy of the
Guianas suffers from de lack of systematic modern studies of individual tribes” (1948:
818). Mesmo mais recentemente, no início da década de 70, Arvelo-Jimenez também
afirmava que “la selva tropical suramericana, y las Guayanas em particular, representan una
de las áreas etnográficas menos conocidas” (1971: 1-2). A autora diz que muito do que se
sabia sobre a região nesta época baseava-se em revisões da literatura escrita por
missionários, exploradores, viajantes e naturalistas e lamenta que “no se hayan sumado
posteriormente estudios intensivos sobre el sistema social y político de esas sociedades”
(Ibid.: 2). De fato, a quantidade e a qualidade das descrições disponíveis dos diferentes
povos e nos diferentes períodos históricos é bastante desigual. As imagens de sociedade
oriundas destas descrições também divergem consideravelmente. Os grupos formados por
assentamentos pequenos, dispersos, e endógamos, que correspondem a uma certa descrição
da região, contrastam com outras descrições em que se enfatiza assentamentos maiores,
densidades demográficas mais altas e níveis diferenciados de integração política. Os
significados dessas discrepâncias entre o que se apresenta nos materiais etnográficos
17
Essas famílias, segundo ele, são: “Arawakan, Auakéan, Cariban, Caliánan, Macúan, Muran, Salivan (or
Macúan), Shirianán, Tupian e Warrauan (or Guaraunan)” (Gillin 1948: 800).
recentes e nas fontes antigas sobre a região do escudo da Guiana têm sido investigados por
alguns autores (cf. p. ex. Gallois 2005, Costa 2000).
A etnografia das Guianas teve uma grande influência sobre a antropologia feita nas
terras baixas da América do Sul. Segundo Rivière (1984), as pesquisas de campo
antropológicas na região, com caráter intensivo, remontam à década de 30, ao estudo de
Gillin sobre os caribes do rio Barama, seguindo-se a ele os trabalhos de Butt, Fock e Yde.
O próprio livro de Rivière (1969), sobre o casamento entre os Trio, é considerado como a
primeira descrição etnográfica rigorosa de um sistema de parentesco amazônico e estaria na
origem de várias outras monografias regionais (Viveiros de Castro, 2002: 101). Também
crucial foi o trabalho de Joana Overing (1975) na formulação de problemas que iriam guiar
a antropologia sul-americana nas décadas seguintes. Na mesma época, também foram
publicadas as monografias de autores como Arvello-Jimenez, Jean-Paul Dumont, Paul
Henley e Jean Lapointe. No final da década de 70, estes trabalhos, entre outros, deram um
novo fôlego aos estudos de parentesco na Amazônia que passaram a questionar o uso de
modelos alógenos para descrever a estrutura social das populações indígenas sul-
americanas.
18
Na avaliação de Viveiros de Castro (2002), a Guiana acabou sendo palco
privilegiado de tais reformulações teóricas e o parentesco tornou-se o tema guianense por
excelência.
Apesar da área ter sido tratada por vários autores, desde o início do século, a partir
de um conjunto de problemáticas regionais, o “recorte guianense” consolidou-se de fato
18
Neste sentido, particularmente importante foi o simpósio do XLII Congresso de Americanistas (Overing
Kaplan [org.] 1977).
quando Rivière publicou seu livro, Individual and Society in Guiana (1984).
19
Nele, o autor
apresenta uma cuidadosa síntese bibliográfica das etnografias da região e traça, a partir
dela, um modelo de sociedade que enfatiza as relações internas ao grupo local e que
descreve, sob certo ponto de vista, grande parte dos grupos indígenas que ali se
encontram
20
. Os objetivos de seu estudo restringiam-se, sobretudo, à descoberta de traços
invariantes que teriam derivado, segundo o próprio autor, de uma concentração em aspectos
da estrutura e organização social. Por sua vez, os elementos culturais a língua, os adornos
corporais, os equipamentos técnicos, os métodos de processar o alimento, os ritos fúnebres,
etc. foram considerados pelo autor como o fator de variação e não foram diretamente
acompanhar por descrições e análises dos idiomas simbólicos
21
. Cisão muito difícil de se
fazer, sobretudo no contexto amazônico onde, como diversos autores argumentaram (p.
ex. Overing 1977, Seeger 1979), o plano da organização social não pode ser separado dos
modelos conceituais indígenas que definem o que é ser humano ou animal, vivo ou morto,
homem ou mulher, parente ou afim e que se expressam pelos processos de fabricação do
corpo, pelas instituições rituais, pela mitologia, etc
22
. Se de fato, como parece ser o caso, as
sociedades guianesas apresentam um alto grau de uniformidade sociológica, o que dizer da
cosmologia?
A (relativa) pouca atenção dispensada, por exemplo, à análise da mitologia local,
em contraponto às descrições sociológicas, é ainda mais notável se se considera que a
região possui um corpus mítico dos mais bem documentados do continente. Desde o final
do século XIX, viajantes e pesquisadores como Brett, Im Thurm, Coll, Roth e Koch-
Grünberg empenharam-se em registrar os mitos narrados nas diversas sociedades indígenas
por onde passaram. Outros autores, contemporâneos, como Armellada, Frikel, Fock,
21
Nessa época, não se pode dizer que a cosmologia, ou mesmo a “sociocosmologia”, tenha recebido na
etnologia das Guianas a mesma atenção, por exemplo, que nos estudos de povos de língua Tukano (p. ex.
Hugh-Jones 1979) ou Tupi (p. ex. Viveiros de Castro, 1986). Contudo, a marginalidade da cosmologia nas
etnografias da região até o início dos anos 80 também não é absoluta. Existem algumas exceções, entre as
quais os trabalhos de J-P. Dumont, Fock, Morton, Overing Kaplan, e Wilbert.
22
Recentemente, no Prefácio à edição brasileira de Individual and Society in Guiana, Rivière procurou
responder às críticas feitas por alguns resenhistas a este trabalho. Ele admite que pode ter “dado a impressão”
de efetuar um divórcio entre a sociedade e a cultura (ou a cosmologia), o que, diz ele, no contexto amazônico
não acontece de modo algum. Segundo o autor, “existe um ajuste notável entre os ideais sociológicos
caracterizados pela natureza consangüínea, endogâmica e autônoma das unidades residenciais e as idéias
metafísicas e cosmológicas dominadas por um relacionamento conceitual entre o dentro e o fora, associado
respectivamente à segurança e ao perigo, à similaridade e à diferença” (2001b: 11). Rivière diz que, se fosse
reescrever o livro, combinaria a apresentação das idéias sociais, cosmológicas e metafísicas recorrendo ao
conceito de “casa” formulado por Lévi-Strauss. Seja como for, nos últimos anos, o autor escreveu alguns
trabalhos mais voltados para tais combinações (cf. p. ex. Rivière 2001a, Koelewijn 1987).
Civrieux, Koelewijn, Jara e Farage também contribuíram para o enriquecimento deste vasto
conjunto mitológico.
Embora o foco de muitos antropólogos que realizaram suas pesquisas na região
tendeu a se voltar para os problemas relativos à organização social e o parentesco, um
antropólogo em particular cuidou de analisar a mitologia guianense e suas articulações com
a mitologia proveniente de outras partes do continente. Nas Mitológicas, sobretudo nos dois
primeiros volumes, Lévi-Strauss utiliza-se abundantemente dos mitos apresentados por
Roth (1915), Koch-Grünberg (1916) e por outros autores que ajudaram a inventariar a
mitologia da região. Mas o mito, sendo sempre a tradução de outro mito, não se
circunscreve(e)-3.48087(s)8.383233 -26.82 -176.907(à)1..48087(a)6.80634(-)(9)-4.08rv87(m)11.6255( )-22.60e8(i)0.253657.sc)en pmu1cearNap
que veio a ser chamado de metafísica da predação. A recorrência desses temas (em sua
gama de variações) entre as sociedades indígenas do continente sugere uma verdadeira
continuidade de um certo idioma simbólico que se expressa, entre outras instâncias, no
mito.
Se tomarmos as idéias desenvolvidas por esses autores, restaria saber como certos
aspectos da cosmologia ameríndia se apresentam nos mitos guianenses e como estes, por
sua vez, se relacionam com a sociologia local. De outro modo – tentando aplicar o modo de
articulação dos mitos à matéria deste ensaio –, como o tipo ideal que configurou o padrão
guianês também pode ser visto (se é que pode) como uma versão destes mitos? E, quais as
transformações implicadas nessa relação?
IV. Plano do trabalho
No segundo capítulo, apresentaremos a descrição geral das sociedades guianesas
feita por Peter Rivière em Individual and Society in Guiana, focalizando aquilo que o autor
identificou como os “invariantes da estrutura social”: o tamanho e a duração das aldeias, as
regras de casamento, os sistemas terminológicos e de atitudes e os padrões (ideais e
factuais) de residência. Esses invariantes, que constituem uma forma típica das sociedades
guianesas, serão apresentados sob o fundo do material etnográfico de três grupos indígenas
em particular: os Pemon, os Trio e os Piaroa. Tentaremos, enfim, explicitar algumas idéias
que nos parecem compor a imagem do vínculo social neste modelo etnográfico.
No terceiro capítulo, trataremos de um grupo de mitos guianenses que tem como
personagem uma figura típica da mitologia sul-americana, a saber, o sogro-canibal.
Procuraremos demonstrar como esses mitos formam, entre si e com diversos outros mitos
apresentados nas Mitológicas, um sistema de transformação. O propósito é tentar extrair
desses mitos os elementos que compõem um possível discurso sobre a natureza das
relações sociais.
Na conclusão, tentaremos sugerir algumas conexões entre os dois “discursos” e
pensar em como eles resultam de diferentes problemas, nos dois casos, antropológicos.
2
O modelo etnográfico da Guiana
O objetivo deste capítulo é apresentar o modelo que caracterizou as sociedades
indígenas guianesas a partir da análise feita por Peter Rivière em Individual and Society in
Guiana (1984)
23
. Através dele, procurarei explicitar aquilo que conforma uma certa
‘imagem da relação social’ vinculada à descrição de um laço de parentesco em particular, a
saber, entre sogros e genros. Por um lado, o foco nessa relação de parentesco deve-se à
centralidade do lugar que ela ocupa no modelo proposto, pois, nele, ela está
fundamentalmente associada a um componente essencial dos mecanismos de troca que
constituem estas sociedades: o controle. Por outro lado, o recorte sugerido se justifica pelo
artifício comparativo que este ensaio se propõe realizar: comparar as imagens da relação
social implicadas no modelo etnográfico, estabelecido pelo antropólogo a partir do que foi
considerado como o ‘plano da estrutura social’, e na mitologia destes povos. Estas últimas
serão apresentadas no próximo capítulo.
Trocando em miúdos, a relação entre sogros e genros nas sociedades indígenas
guianesas é, de modo geral, descrita por Rivière (1984) em termos de um controle exercido
pelos homens mais velhos sobre os mais jovens num contexto onde a residência tende a ser
uxorilocal. O cônjuge, muitas vezes, tem que praticar uma evitação quase total e submeter-
23
A expressão “modelo etnográfico da Guiana” tem um sentido fraco e deve ser entendida assim. Estou ciente
de que Rivière diz, explicitamente, não pretender circunscrever um “tipo” guianês. Em suas próprias palavras:
“(...) I am not trying to distill out a single type of Guiana social organization, but rather to reveal the
distinctive features of it, both what is variable as well as invariable” (1984: 5). Mas, parece-me que, como
sugere Viveiros de Castro (1987: 273), não como não reconhecer que Rivière estabelece as sociedades da
Guiana como um tipo estrutural.
se inteiramente às obrigações de prestar serviços ao sogro. A situação arquetípica do grupo
local é a de um líder que tem inúmeras filhas e genros que vieram de fora morar com ele.
Tudo se passa como se a relação deste líder-sogro com a rede social à sua volta
determinasse a própria existência da aldeia como unidade política autônoma. Como se a
“sociedade”, em sua forma mais estável, não passasse de um agregado de indivíduos
ligados por laços de parentesco em torno dessa figura central. Neste sentido, pode-se dizer
que o modelo de Rivière sugere uma continuidade entre os conceitos de aldeia como uma
unidade política autônoma e como uma rede de parentesco bilateral endogâmica e que
justamente o controle dos líderes-sogros sobre seus genros exerce, entre estes dois
conceitos, uma função mediadora. Tal controle, ao mesmo tempo em que não passa de um
mecanismo intrafamiliar, resultado de uma negociação individual, é o que assegura a
estabilidade (relativa) dos laços políticos que constituem a sociedade.
A imagem acima esboçada diz respeito a um “tipo ideal” e traduz, como pode, o que
me parecem ser os traços mais marcantes de um certo padrão de relação sociopolítica tal
como se depreende das descrições feitas sobre as sociedades indígenas da Guiana. Mas,
para realmente entendê-la, é preciso considerar uma série de outros aspectos pelos quais
foram, repetidas vezes, caracterizados os grupos da região. A típica aldeia guianesa é
pequena, instável, idealmente endogâmica, com uma tendência em subordinar o princípio
da consangüinidade à co-residência e com um sistema de parentesco que se distingue pela
filiação indiferenciada e pelas terminologias que representam variações do padrão
dravidiano. Todos esses traços configuram um sistema e um dos objetivos deste capítulo é
elucidar a maneira pela qual esses elementos se articulam entre si e como eles dão
significado a certos modos da relação social. Voltaremos a isso mais adiante.
Por hora, é preciso lembrar que o material bibliográfico de que aqui dispomos
encontra-se firmemente atrelado ao plano da estrutura social’ e que esta, por sua vez, se
manifesta no campo dos fenômenos tradicionais do parentesco: terminologia, atitudes,
formas de casamento e residência. Portanto, a maneira pela qual as relações sociais são
descritas está determinada por esse viés, o que, de alguma maneira, deve refletir as
concepções indígenas, mas, também, certos problemas antropológicos particulares. O jogo
aqui proposto pressupõe que os mitos, ao tratarem destas “mesmas” relações, colocam-se
problemas diversos e nossa questão está em determinar a equivocidade
24
possível entre os
dois sentidos.
Vejamos, pois, como este modelo é descrito por Rivière. Por motivos de exposição,
seguirei, por alto, as divisões temáticas feitas pelo autor. Mas, embora a organização de
Individual and Society in Guiana seja por tópicos e não por grupos, em alguns momentos,
recorrerei diretamente a algumas das principais etnografias que lhe serviram de base.
Entendo que a perspectiva horizontalizante adotada pelo autor tem um propósito
comparativo e disso depende o estabelecimento de seu “tipo guianês”
25
. Contudo, tendo ele
dado este primeiro passo, pareceu-me que seria proveitoso se pudéssemos verticalizar um
pouco tal perspectiva. Por isso, em alguns momentos, optei por tratar em conjunto temas
que haviam sido apresentados separadamente. Sob o fundo dos invariantes traçados por
Rivière, a intenção é reconstituir mais globalmente as descrições das sociedades de onde
24
Falo em “equivocidade” no sentido sugerido por Viveiros de Castro (2004), isto é, como o contrário de
“univocidade” e não, como se poderia imaginar, como o contrário de “erro” ou “engano”.
25
Como diz Rivière, “the ethnographers come from different countries, have been brought up in different
schools of anthropological thought, and have conducted their research with different aims and expectations.
This has led them to express themselves in various ways on what I have had to take to be the same point. To
achieve some degree of coherence in my presentation, I have had to translate their ways of putting things in
order to achieve a comparison.” (1984: 5).
estes traços foram extraídos. Como se cada uma delas pudesse ser tomada como uma
versão em um sentido semelhante ao que Lévi-Strauss às versões míticas do modelo
proposto pelo autor. Parece-me que, assim, o modo pelo qual Rivière “traduziu” os
diferentes materiais de pesquisa sejam eles “dados” etnográficos ou problemas teóricos
para o padrão composto pode se tornar mais claro
26
.
Uma descrição geral das sociedades guianesas será feita, sobretudo, na primeira e
segunda seção do capítulo. Peço desculpas ao leitor se os “dadoslhe parecerem muito
maçantes, mas julguei necessário apresentá-los para dar um certo corpo ao modelo proposto
por Rivière. Na terceira e quarta seção, procuraremos expor as sugestões analíticas feitas
pelo autor no que diz respeito, sobretudo, à natureza das relações de afinidade e sua relação
com a idéia dos grupos sociais enquanto unidades políticas autônomas
27
. Ao final,
retomarei os principais pontos apresentados tentando alinhavá-los ao vínculo de parentesco
que nos servirá de termo comparativo com os mitos que serão apresentados no próximo
capítulo.
I. O grupo local e o padrão de assentamento
A ausência de agrupamentos sociais formais foi exaltada por vários autores que
escreveram sobre as sociedades da Guiana. O próprio Rivière, em sua etnografia sobre os
26
Contudo, muitas vezes é difícil separar os componentes de um modelo geral das sociedades guianesas (os
invariantes) dos casos particulares que constituem suas variações, pois é como se eles fossem faces de uma
mesma moeda.
27
É evidente que as sugestões analíticas do autor fazem parte também da descrição que ele apresenta e vice-
versa. Espero que isso fique claro ao longo do capítulo. Mas façamos como se, nas duas primeiras seções, os
“fatos” estivessem em primeiro plano e, nas duas últimas, a “proposta analítica”.
Trio, admite que “in the absence of any formalized arrangements on one hand, and the
mobility of population and the temporary nature of villages on the other, it is hard to
describe what is in fact a very fluid situation without making it appear too rigid”
(1969:229). Thomas, por sua vez, diz que a sociedade Pemon “is but one example of a
whole range of societies which could concibably fall under this rubric, though it is more
amorphous than many such” (1982:1). Overing enfatiza que os Piaroa não possuem
instituições formais (tais como linhagens) e que se caracterizam por possuírem “the most
atomistic societal integration possible” (1975:2). Arvelo-Jimenez inicia sua definição do
grupo Ye’cuana dizendo que “no están constituidos en Estado y carecen de un sistema
político centralizado” (1971: 9).
Em Individual and society, Rivière reconhece a pertinência de tais descrições, mas
alerta para o risco de se assumir uma visão negativa dessa caracterização. Ele retoma a
crítica feita por Pierre Clastres (1974) segundo a qual o julgamento de que as sociedades
primitivas são sociedades sem Estado refletiria, na verdade, um juízo de valor que
pressupõe uma falta de algo que – tomando por base os nossos próprios padrões – lhes seria
necessário. Rivière admite que a suposta ausência de uma organização política ou de grupos
sociais formais na Guiana, da mesma forma, poderia ser apenas uma resultante de nossas
próprias expectativas. Mas, malgrado o fato das aldeias guianesas, de modo geral,
possuírem apenas uma presença transitória e sua composição estar sujeita a contínuas
mudanças, ele não outra escolha para lidar com os dados etnográficos de que dispõe que
não partir do conceito de grupo local. Segundo o autor,
ephemeral as settlements are, to focus on them is an approach that allows an initial glimpse of
fleeting stability in a fluid and relative worlds. It is in the formation, composition, and
dispersion of settlements, apparently so chaotic, that it is possible to observe the range of
choices that the social structure makes available to the individual, and beyond them to the
very principles by which the social structure itself is articulated (Rivière, 1984:15).
Para estabelecer seu modelo, Rivière assume a aldeia como o seu ponto de partida,
pois, segundo ele, seria ela o que mais se aproxima da identificação de um grupo social
com qualquer tipo de existência corporativa. Porém, é difícil dizer até que ponto, aquilo
que, a princípio, poderia ser visto apenas como uma solução heurística para uma
dificuldade de apresentação de dados empíricos também poderia responder por uma função
do entendimento antropológico daquilo que corresponde à prática das pessoas
28
. Diante dos
traços de atomismo e de fluidez pelos quais foram tantas vezes caracterizados os povos
indígenas da Guiana, tem-se a impressão que tudo se passa como se eles tivessem que ser
definidos como “sociedades” apenas para, logo em seguida, revelarem seus dispositivos
contra tal definição. Contudo, a questão de saber se, para explicar o modo pelo qual as
pessoas criam a socialidade, é preciso recorrer à noção de grupo passa ao largo da análise.
Mas feitas essas breves considerações, passemos à descrição de algumas variantes das
“sociedades” guianesas. Para estabelecer um certo padrão de assentamento dos grupos
locais, Rivière recorre a uma vasta gama de dados sobre os Waiyana, os Trio, os Waiwai,
os Ye’cuana, os Piaroa, os Akawaio, os Panare, os Pemon, os Macuxi e os Wapishana
28
Digo “também” porque não estou supondo, a priori, que a idéia de “grupo” não faça, absolutamente, parte
do ideário nativo, ou seja, que as pessoas não reconheçam unidades locais, ainda que provisórias. Contudo,
penso que Wagner (1974) está correto em dizer que a antropologia social baseia-se em alguns pressupostos
sobre a importância da sociedade e o que quero sugerir é que conceitos como “sociedade”, “aldeia”, “grupos
corporados”, etc. podem acabar determinando – ainda que, por vezes, em negativo – o próprio modelo
antropológico que ora nos ocupa.
(1984: 16-24). Dentre estes, tomemos três exemplos particulares e os traços mais gerais aos
quais chega o autor a partir de seus dados
29
.
Rivière observa que as aldeias possuem formas diversas. Entre os Waiwai, os
Ye’cuana, os Piaroa e os Panare, por exemplo, as aldeias consistem habitualmente em uma
única casa comunitária (1984:15). Overing (1975) descreve três formas típicas dessas casas
que, entre os Piaroa, geralmente “pertencem” a um homem que carrega o título de Ruwang
Itso’de. Segundo ela, a casa, Itso’de, em seu estilo e em seu tamanho, é uma clara
expressão do status deste homem, líder político e religioso da aldeia. O termo Itso’de
guardaria ainda um outro sentido que é o de unidade residencial, centro econômico,
político, cerimonial e de parentesco – no qual as atividades diárias são exercidas. Conjuntos
de seis ou sete Itso’de, separados uns dos outros por cerca de meio dia de caminhada,
formam os Itso’fha, a maior unidade política dos Piaroa com uma população que varia entre
100 e 350 pessoas. Os Piaroa que se autodenominam Tuha (termo que, segundo Overing,
poderia ser traduzido por ‘gente’) têm seu território dividido entre 12 e 15 Itso’fha
30
(1975: 16-33).
os Trio e os Waiyana vivem em aldeias nucleares compostas por um determinado
número de casas (Rivière 1984:15). Segundo Rivière (1969), evidências de que “Trio”
seja um termo genérico para um número de grupos que antigamente eram autônomos e
29
Rivière observa que, em sua análise, a maior ênfase dada a determinados povos em detrimento de outros se
deve à variação da quantidade e qualidade das etnografias disponíveis. Dentre eles, os Pemon, os Piaroa e os
Trio ocupam um lugar importante no “mosaico” (1984:7) traçado pelo autor. Coincidentemente, os mitos dos
quais iremos tratar no próximo capítulo provêm, sobretudo, destes três povos. Por isso, também aqui, daremos
maior atenção a eles.
30
O termo Itso’fha tem também uma conotação territorial, mas não denota uma terra definitivamente
circunscrita (Overing, 1975: 57).
dispersos. Mas ele previne que, na época em que realizou sua pesquisa de campo, esta
não era mais a situação. Frikel (apud Rivière 1969: 16-26), que esteve na região cerca de
duas décadas antes, descreveu os Trio como se constituídos por doze sub-grupos. Mas,
mesmo que outrora os Trio fossem compostos de grupos independentes, eles passaram a se
conceber como um único grupo com um nome, uma linguagem e uma cultura comum
(Rivière 1969: 27-8). Este grupo podia ser dividido em três grupos principais que Rivière
chama de “aglomerados”. Dentro dos aglomerados, as aldeias costumam estar separadas
por apenas algumas horas de caminhada enquanto que as aldeias mais próximas de
diferentes aglomerados estão normalmente afastadas por cerca de dois dias de distância
(Ibid.: 35-7).
Entre os Macuxi, Wapishana e Pemon, embora haja aldeias nucleares, o padrão mais
encontrado é o de casas dispersas (Rivière 1984: 15). Com efeito, de acordo com Thomas
(1982), os Pemon assemelham-se em muitos aspectos aos outros povos falantes de língua
caribe da região, mas se diferenciam pela vasta extensão que ocupam no território e pelo
grau de autonomia de suas unidades mínimas (os indivíduos, a família nuclear e o grupo de
irmãos). Essa autonomia, entretanto, é relativa e não significa que estas unidades
constituam sistemas sociais isolados. Ao contrário, segundo Thomas, os Pemon se
notabilizam por terem estabelecido extensas redes de relações sociais, principalmente no
que diz respeito ao comércio. Eles também são conhecidos na literatura como Arecuna,
Kamarakoto e Taurepan e podem ser, grosseiramente, divididos em três sub-grupos com
estes nomes, embora refiram-se a si mesmos como “Pemon”
31
que significa gente, ou
gente que fala língua pemon (Thomas 1982: 14-9).
De maneira geral, Rivière caracteriza os assentamentos por dois padrões básicos:
um associado à floresta, outro, à savana. No primeiro, as aldeias possuem em média 30
habitantes, sendo que vários exemplos apresentados pelo autor apontam para uma variação
entre 15 e 50 pessoas por aldeia. A distância mínima entre as aldeias costuma ser de,
aproximadamente, um dia de caminhada, embora possa também ser de vários dias de
viagem. As aldeias, geralmente, não permanecem por muito tempo em um mesmo local,
sendo a duração média de 6 a 7 anos. Os habitantes da savana compartilham destes traços
embora as aldeias contenham, normalmente, menos moradores (Rivière 1984: 25).
Em todos os casos examinados por Rivière, vê-se que a movimentação de pessoas
entre aldeias e a formação de novas aldeias podem resultar de uma série de fatores, sejam
sociais, políticos, rituais ou econômicos. As pessoas podem se mudar por diversas razões:
por causa da morte de alguém (sobretudo do líder da aldeia), pela ineficácia da liderança, a
freqüência das doenças, a deterioração das construções, a escassez de recursos, a exaustão
do solo, as hostilidades, o desejo de ver um parente em outra aldeia, etc. Quando uma nova
aldeia é construída, em geral, isso ocorre nas imediações da aldeia abandonada. Até certo
ponto, o tamanho de uma aldeia é o índice da eficiência de seu líder. Mas, quanto maior a
aldeia, mais facilmente poderá ocorrer disputas que ele não conseguirá resolver devido à
densidade de laços políticos que são intrinsecamente frágeis (Ibid.: 26-29). Voltaremos a
isso quando formos tratar da natureza das relações de afinidade interiores ao grupo local.
31
Os Macuxi, vizinhos dos Pemon ao sul, também se referem a si próprios como Pemon, embora todos os
grupos vizinhos se refiram a eles como Macuxi (Thomas, 1982: 18).
II. A composição da aldeia: parentesco, casamento e residência
Em Individual and society, Rivière reconhece que o problema de se saber, em
termos ideais e factuais, quem habita com quem e por quê envolve inúmeras esferas
convencionais da vida social (1984: 30). Mas, de fato, essa separação em “esferas” não
impede que os temas comuns a cada uma delas se fundam uns nos outros. Assim,
“parentesco”, “casamento” e “residência”, embora sejam habitualmente tratados por muitos
autores em separado, possuem claras implicações mútuas. A expectativa de como uma
aldeia deve se constituir socialmente (sua rede de parentesco) está intrinsecamente
relacionada com as expectativas de onde se deve encontrar um cônjuge e com quem se deve
habitar após o casamento. Por essa razão, procuraremos discutir estes aspectos
conjuntamente.
Um traço comum encontrado em diversas etnografias ameríndias, enfatizado por
Rivière, diz respeito à articulação das categorias sociais por um princípio de troca direta
prescritiva. No caso guianês, tal princípio associa-se a um ideal de endogamia na aldeia, à
concepção de que as aldeias deveriam ser constituídas por parentes próximos,
freqüentemente bilaterais, e, conseqüentemente, a um ideal de endogamia entre parentes.
Segundo o autor, tais preferências se traduzem, nas terminologias de parentesco, pelo
fracasso em se operar uma discriminação entre os fatores de consangüinidade e co-
residência o que, em alguns casos, responde pela quase inexistência de termos que
designem pessoas relacionadas exclusivamente por laços de afinidade. Entretanto, o que se
deduz dos dados apresentados por Rivière é que estes ideais não passam de uma “ficção”,
no sentido de que as terminologias são ajustadas de acordo com os acontecimentos a fim de
que eles se adéqüem à forma ideal. Quanto à residência pós-marital, geralmente não
regras explícitas posto que o que se supõe é que esposo e esposa pertencerão à mesma
aldeia e que, portanto, não terão que se decidir se vão viver com a família dele ou dela.
Além disso, Rivière menciona uma antipatia geral às regras e uma aparente aleatoriedade
na decisão de onde morar. Mas, embora tais escolhas mostrem-se de fato algo
indeterminadas, Rivière nota, de maneira geral, uma tendência estatística à uxorilocalidade
(Rivière 1984: 40-1).
No que diz respeito à composição da aldeia que, como vimos, é para onde se
dirige fundamentalmente o foco do argumento de Rivière em Individual and society –, o
parágrafo acima sintetiza os principais pontos que foram por ele destacados. Mas vejamos
como esses mesmos traços aparecem, particularmente transformados, nas etnografias de
Joanna Overing sobre os Piaroa, de David Thomas sobre os Pemon e do próprio Rivière
sobre os Trio.
O estudo de Overing (1975) sobre os Piaroa mostra que o Itso’de é um grupo local
estruturado em termos de parentesco e que, do ponto de vista indígena, ele é um grupo de
parentes próximos. O modelo da parentela [kindred] piaroa é articulado a partir do uso
polissêmico do conceito de chuwaruwang. Uma das traduções que a autora ao termo é
“consangüinidade”. Segundo Overing, os Piaroa concebem-se como se estivessem
consangüineamente relacionados pela descendência do primeiro homem e da primeira
mulher piaroa que foram criados pelo herói cultural Wahari. Mas chuwaruwang pode ter
ainda o sentido de “cognação” pois, no mito, os não-tuha que se casam com os piaroa são
convertidos em cognatos de todos os outros piaroa. Nas palavras da autora,
All Piaroa are cognates of one another through the intermarriages that occurred among the
first men and women. Here we are clearly introduced to the Piaroa notion that marriage and
consanguinity are not to be conceptually separated, that marriage leads to kinship. Indeed,
this Piaroa picture of Piaroa land is in macrocosm identical to the picture they have of their
local group, the Itso’de. Through intermarriages within it, the house becomes a unit
comprised of close cognates, and, as such reflects the idealized ordering of Piaroa land as a
whole. (Overing 1975: 70-1).
Chuwaruwang, também, é o conceito mais geral pelo qual os Piaroa discutem e
explicam as categorias de parentesco e as obrigações associadas a essas categorias. Ele
possui uma distinção crucial entre parentes ‘próximos’ (tuku) e ‘distantes’ (oto) (Overing
1975: 69). Os cônjuges ideais devem, do ponto de vista piaroa, ser encontrados na categoria
tuku chuwaruwang (a parentela imediata de cada indivíduo) e, ao mesmo tempo, dentro da
própria unidade residencial, o Itso’de. Deste modo, o ideal seria que a parentela próxima
por nascimento coincidisse com a parentela conjugal
32
. Entretanto, diz Overing, muitas
pessoas não se casam dentro do seu chuwaruwang imediato por contingências políticas e
demográficas que têm precedência sobre o ideal de casamento (Ibid.: 73-74).
No caso piaroa, esse ideal é expresso por uma regra de casamento que afirma que
um homem deve se casar com uma mulher a quem ele se dirige como ‘chirekwa’, categoria
que inclui, entre outras, as especificações de MBD e FZD. Se um homem não se casa
corretamente ou seja, com alguém a quem ele não chame de chirekwa –, ele corrigirá o
uso de seus termos de parentesco de modo que sua esposa e os parentes dela passem a ser
chamados pelos termos apropriados (Overing 1975: 128). Esse tipo de operação é um
32
Sendo assim, a aliança de casamento jamais se daria entre dois grupos, o que reforça aquela imagem do
suposto amorfismo típico das sociedades da Guiana.
aspecto fundamental dessa terminologia prescritiva que, como diz Rivière, “ensures, post
facto, that whatever happens is reinterpreted in terms of what should happen” (1984: 49).
A regra de casamento está implícita na terminologia de parentesco que, com
algumas variações, é um dos exemplos de uma terminologia dravidiana tal como
encontrada nas terras baixas sul-americanas. Ela também inclui, como princípios
ordenadores, o nível genealógico, o sexo, a idade e a distinção entre consangüíneos e afins.
Mas, embora os primos cruzados bilaterais estejam designados pela categoria prescrita de
casamento, terminologicamente, o mais apropriado seria dizer que a união correta é com
os(as) filhos(as) dos afins dos pais
33
. Ao expressar as coisas dessa forma, a ênfase recai
sobre o contraste entre consangüíneos e afins e não entre parentes paralelos e cruzados
(Overing 1975: 128-129). De acordo com Overing, essa distinção constitui uma
característica estrutural fundamental dos grupos locais, pois, idealmente, “in perpetuating
affinal ties made in the parental generation, the marriage exchange on this level also gives
the unit existence through time” (Ibid.: 197).
Segundo a descrição de Overing, tudo se passa como se os Piaroa levassem em
conta dois sistemas de categorização do parentesco e do casamento no modo de conceber a
composição do grupo local. Por um lado, ele é pensado como idealmente endogâmico,
centrado no uso do conceito de chuwaruwang, como se negasse a oposição entre ‘nós’ e
‘eles’. Por outro lado, o grupo local é concebido a partir da oposição entre consangüíneos e
afins, reconhecida pelos Piaroa. Em um certo nível, estes dois sistemas são contraditórios,
33
Assim, a MBD é a filha de um afim do pai, enquanto que a FZD é a filha de um afim da mãe.
mas através de um terceiro sistema, o sistema de tecnonímias
34
, os Piaroa tentariam assim
reconciliar os laços de consangüinidade com os laços de casamento. Como diz a autora,
one model stresses the unity of the group as a kinship unit; the second stresses the marriage
alliance, containing with it a certain dynamism which expresses the basis for fission and
fusion of groups; the third converts non-endogamous marriages into consanguineal ties
(Overing, 1975: 9).
Mas Overing sugere que nenhuma dessas três conceitualizações da unidade de
residência estaria mais perto da realidade do que outra. Elas seriam antes estratégias nativas
que, na ausência de regras de residência explícitas, poderiam ser usadas de acordo com as
circunstâncias. Circunstâncias essas muitas vezes políticas, localizadas no domínio do
Itso’fha, onde os Ruwang competem por poder e posição em um idioma de parentesco e
onde, neste sentido, a aliança de casamento é uma poderosa arma de estratégia política
(Ibid.: 10). Mas deixemos esse assunto para mais adiante e vejamos ainda como outros dois
grupos indígenas da Guiana concebem a composição de suas aldeias.
Como se disse, o padrão de assentamento dos Pemon é de aldeias pequenas e, em
muitos casos, consiste em apenas uma única família. Rivière sugere que, talvez por essa
razão, não tenha sido necessário criar uma ficção em torno da relação entre parentesco e co-
residência, já que, neste caso, devia se tratar de uma realidade. Para ele, o material sobre os
Pemon, embora valioso, não permite dizer que a equação entre estes dois domínios exista,
34
A aplicação de tecnonímias entre os Piaroa faz com que a ênfase nos laços de afinidade, necessários para
que haja alianças, lugar à ênfase nos laços de consangüinidade através do nascimento de uma criança.
Assim, por exemplo, se um homem se casa e tem um filho, pode passar a chamar seu sogro de “avô do meu
filho”. Uma posição apenas não pode ser expressa através deste sistema: a posição de cunhado (cf. Overing,
1975: 169-ss.).
ao menos não tão explicitamente como nos outros casos observados (Rivière 1984: 36)
35
.
Para Thomas (1982), o parentesco e o casamento entre os Pemon podem ser
compreendidos levando-se em consideração o padrão de dispersão dos assentamentos. Nas
palavras deste autor,
the Pemon system of kinship and marriage can be thought of as forming the principal lines
which link households and settlements together. The distribution of kinsmen over the land,
seen from a number of individual vantage points, forms a crucial part of the understanding
of Pemon society. (…) if we think of a series of overlapping networks, spread out in time as
well as space, connecting the various households and settlements over the Pemon
landscape, we have an accurate metaphor for much of Pemon social life. (Thomas 1982:52).
Nesta rede de relações dispersas ao longo do território, Thomas reconhece uma
tendência que os irmãos procurem viver próximos em uma mesma vizinhança. Ou, melhor
dizendo, o grupo de irmãos tende, primeiro, a se espalhar (porque se casam fora de sua
própria casa) e, depois, a tentar novamente se agrupar, em um processo que vai se repetindo
através das gerações (Ibid: 71-2). Thomas chama a atenção para o fato de que a existência
de parentes próximos em outras regiões pode significar possíveis opções de realinhamentos
no caso de disputas dentro da aldeia e em suas vizinhanças (Ibid.: 74). Todavia, dentro do
“aldeamento”, uma forte tendência de se viver com os afins de mesmo sexo e mesma
geração em vez de com os irmãos. Mas as relações entre os cunhados são frágeis e podem
se romper em favor do reestabelecimento dos laços entre os irmãos se não houver um sogro
a quem os genros devam obrigações. Isso se deve, diz Thomas, “to the asymmetrical
35
Note-se, entretanto, que a discussão sobre o conceito pemon de parentesco, uyomba, revela que ele possui
vários níveis de significação. No seu sentido mais amplo, refere-se ao parentesco que relaciona todos os
Pemon. Em um outro sentido, abrange o círculo de parentes definidos pela referência terminológica a partir
dos pais de Ego, com base na proximidade espacial e na freqüência e qualidade da interação social. Em um
terceiro sentido, o termo diz respeito a uma série genealogicamente definida de parentes (cf. Thomas 1982:
60-1). Ou seja, o conceito uyomba parece articular tal como o chuwaruwang piaroa co-residência e
parentesco.
quality of affinal obligation which binds individua
com o pai da esposa prospectiva
36
. Na verdade, Thomas sugere que, entre os Pemon, as
pessoas m um alto grau de autonomia em suas escolhas matrimoniais e são relativamente
pouco constrangidas pelas regras ideais (que são sempre post facto). O que, segundo ele,
efetivamente parece importar é a qualidade das relações de afinidade que decorrem do
casamento. A forma de residência pós-marital também não possui uma regra muito rígida e
a única expressão de algo que poderia ser tomado como tal diz que um homem deve cuidar
de seu sogro (Thomas 1982: 101).
Do ponto de vista conceitual, ainda um tipo de casamento nem proibido, nem
completamente aprovado que, pode nos fornecer algumas idéias acerca dos princípios
que, segundo a análise de Thomas, subjazem o comportamento matrimonial pemon. Trata-
se do casamento avuncular, com a ZD (real ou classificatória). Este tipo de união também
foi um tema importante para o estudo realizado por Rivière sobre os Trio. Mas, como os
dois autores enfatizaram aspectos significativamente diferentes, deixemos para discuti-lo
um pouco mais adiante, depois de apresentarmos uma caracterização geral deste outro
grupo.
Segundo Rivière (1969), os Trio organizam seu mundo social através três fatores
básicos: a conexão genealógica, a residência e a idade. Os dois primeiros fatores são
articulados pelo conceito imoiti que, nesse sentido, parece assemelhar-se ao conceito piaroa
chuwaruwang e ao conceito pemon uyomba. Essa inseparabilidade dos aspectos
genealógicos e residenciais possui implicações importantes também para o modo como é
36
Mas nenhuma vizinhança chega a formar uma unidade discreta capaz de tornar aplicável o termo
“endogamia” (Thomas, 1982: 106). Sobre isso, diz Rivière: “this is true throughout Guiana, and there is no
group in which marriage must take place within a given unit. Endogamy in the region is expressed as a
preference, ideal or fiction” (1984: 111).
concebido e praticado o casamento entre os Trio. Como entre os Piaroa, ele também
articula uma prescrição categorial com uma preferência de encontrar entre os co-residentes
o cônjuge ideal. A regra convencional de casamento é que um homem trio deve se casar
com uma mulher que possa ser por ele classificada como emerimpa, termo que cobre, entre
outros, os primos cruzados bilaterais
37
. Mas, além disso, segundo Rivière, a maioria de seus
informantes declara uma preferência por se casar com alguém da própria aldeia
38
. De fato, a
análise dos dados apresentados pelo autor demonstra que a maioria dos casamentos, se
considerados do ponto de vista de seus participantes, acontece entre pessoas que pertencem
às categorias prescritas. Entretanto, do ponto de vista de um único indivíduo, os casamentos
parecem menos convencionalmente ordenados, o que sugere que certos ajustes
terminológicos acontecem. Neste processo, a esposa potencial é normalmente transferida
para uma categoria no primeiro nível genealógico ascendente ou descendente de modo que
ela possa ser reconhecida pela categoria prescrita. Tudo se passa como se, entre os Trio o
casamento convencional fosse um casamento entre indivíduos de diferentes níveis
genealógicos (ainda que encontrados na mesma geração) (Rivière 1969: 141-158).
Certas equações terminológicas associadas à prescrição de casamento com a
emeripa sugerem ao autor uma ‘terminologia dravidiana’ ou, como ele prefere chamar, uma
37
Tudo se passa como se essa categoria, de fato, ocorresse apenas em um nível ideal, mas não em um nível
prático. Neste caso, a categoria emeripa aparece subsumida a outras categorias (emi e imama), que pertencem
a outros níveis genealógicos, e a forma dos primos cruzados bilaterais que ela contém desaparece. Geralmente
se descreve a categoria prescrita por referência à relação da pessoa com seus pais. Ou seja, um homem deve
se casar com a filha de uma nosi (FM, MM, entre outras especificações) ou de um ti, (MB, FZS). Um homem
pode se casar ainda com a filha de uma wei (Ez, MBW) ou de um tamu (FF, MF, entre ouros) (Rivière, 1969:
141).
38
Não há, entre os Trio, uma regra de residência pós-marital, mas Rivière nota que a maior proporção de
irmãos separados e a menor proporção de irmãs separadas oferecem uma imagem de uma residência
uxorilocal (1969: 110).
‘terminologia de duas seções’
39
. Mas, alguns traços da terminologia trio se distinguem do
modelo canônico dravidiano. Por exemplo, assim como a categoria para esposa potencial
acima descrita, certos termos apresentam especificações para mais de um nível
genealógico. Segundo Rivière, isso permite que haja uma considerável manipulação da
terminologia, “and this is futher enhanced by the absence of any formal groupings and by
the fact that relationships may be traced equally through men and women” (Rivière, 1984:
46)
40
. Especificamente, essa propriedade da terminologia que confere uma obliqüidade a
todas as formas de casamento reflete um tipo de casamento, parcialmente aceito, tanto entre
os Trio quanto entre os Pemon, que é a união com a filha da irmã (ZD)
41
.
Na verdade, a questão inicial de Rivière no seu estudo sobre os Trio era elucidar
esse tipo de casamento neste caso etnográfico específico e, a partir daí, propor uma
explicação potencialmente universal para tais uniões. Seu argumento, em suma, era que as
concepções trio do ‘dentro’ e do ‘fora’ a simbolização das fronteiras da sociedade se
expressavam através dessa forma de casamento
42
. Em suas próprias palavras, o autor sugere
39
Rivière prefere falar em um “sistema de duas linhas” (1984) ou “de duas seções” (1969) em vez de
“dravidiano”. Como sugere Viveiros de Castro, o uso destes conceitos implicam uma série de problemas. Por
um lado, falar em ‘linhas’ evoca a noção de descendência unilinear enquanto que falar em ‘seções’ evoca os
sistemas australianos. Por outro, falar em dravidiano’ “filia os fatos sul-americanos ao paradigma
interpretativo da matriz indiana” (Viveiros de Castro 2002: 92).
40
Outra característica problemática da terminologia trio é a indistinção entre os filhos do irmão e os filhos da
irmã no primeiro nível genealógico descendente, o que faz com que, terminologicamente, as “linhas” se
fundam (Rivière 1984: 46).
41
Diferentemente dos Trio e dos Pemon, os Piaroa não tem um ideal ou preferência de casamento pela ZD.
Ao contrário, os casamentos intergeracionais, que fundem numa mesma pessoa cunhado e sogro, cunhado e
genro, incomodam os Piaroa (Overing, 1984)
42
Na verdade, “casamento com a filha da irmã” ao qual se refere Rivière diz respeito à união com uma
mulher de uma categoria que inclui a ZD real, mas que abrange todos os casamentos oblíquos entre pessoas
em uma categoria específica de relação. Segundo o autor, genealogicamente, a minoria dos casamentos é de
fato com a filha da irmã. Mas a união é vista mais em termos de “categorias” do que de “genealogia”. Os
que “the presence of this marriage form will be directly related to the society’s belief that
not simply its boundaries but its existence is in jeopardy, whether the threat be from
extermination or pollution (1969: 282). Voltaremos a isso mais adiante, mas de maneira
geral, a descrição e análise de Rivière produzem uma imagem da sociedade trio como se ela
fosse constituída por uma série de aldeias isoladas e introvertidas.
III. Aspectos das relações de afinidade
É esta última a imagem do socius que parece prevalecer no modelo etnográfico
proposto por Rivière, em Individual and Society, para as sociedades guianesas de maneira
geral
43
. Embora, como vimos, diferentes grupos da região partilhem de muitos dos traços
comuns identificados pelo autor, as “imagens da sociedade” que se depreendem das
etnografias enfatizam aspectos significativamente diferentes. Para Thomas, por exemplo,
tudo se passa como se a “sociedade” Pemon existisse apenas para manter as pessoas a uma
distância razoável, espalhadas por um território cortado por redes de relações sociais que se
sobrepõem. Como se o problema durkheimiano da solidariedade como condição da ordem
e, conseqüentemente, do sistema social não se colocasse. Como se, os grupos locais, de tão
explicação. a ênfase dada por Overing em sua descrição da “sociedade” Piaroa recai
sobre a interação entre semelhança e diferença. Como se o interior do Itso’de se
constituísse por seu exterior. Para a autora, subjacente à estrutura social, estaria uma
filosofia da sociedade segundo a qual “the universe exists, life exists, society exists, only
insofar as there is contact and proper mixing among things that are different from one
another” (apud Rivière 1984: 102). o lugar conferido por Rivière, em sua etnografia
sobre os Trio, ao afim que vem de fora do grupo local configura uma outra imagem de
sociedade, uma imagem que, justamente, opõe interior e exterior.
O lugar que cada autor confere à afinidade parece ser a variável fundamental que
determina essas diferenças internas ao modelo guianês. Segundo Rivière, as etnografias da
região demonstram a existência de uma significativa variação no modo como se relacionam
cognatos e não-cognatos, parentes próximos e distantes. Uma clara expressão disso
encontra-se no fato de que, em cada sistema terminológico, existem ou inexistem certos
termos puramente afins, o que implica, não apenas o uso de um nome, mas, também, a
forma de certos conteúdos comportamentais
44
.
Rivière ressalta que, em um extremo destas variações, estariam as terminologias dos
Wayana, Macuxi, Akawaio e Pemon, que não possuem termos que conotam,
exclusivamente, a afinidade (1984: 47).
45
No caso Pemon, isso coincide com uma relativa
44
A maioria das terminologias dravidianas amazônicas apresenta termos separados para afins reais, o que
sugere que a passagem da virtualidade para a realidade possui um significado importante nestes contextos (cf.
Viveiros de Castro 2002, Fausto 1995).
45
Na verdade, os Pemon possuem um único termo exclusivamente de afinidade (além dos termos para marido
e esposa), que é payinu. Esse termo é livremente usado por pessoas da geração mais velha para se referirem
ao genro, na sua presença ou não, mas não para se dirigirem a ele. Para Thomas, isso indica que o sentido de
afinidade do termo o pode ser considerado como ameaçador, do ponto de vista da geração superior. Além
disso, os ‘sogros’ podem livremente referir-se a seus genros como afins, enquanto estes não possuem termos
indiferenciação entre os afins efetivos e afins cognáticos. O sogro equipara-se ao irmão da
mãe, a sogra à irmã do pai, os primos cruzados do sexo masculino aos cunhados, o filho da
irmã ao genro e a filha da irmã à nora.
46
No outro extremo, estariam os Trio, que possuem
termos desprovidos de quaisquer especificações consangüíneas para os seguintes parentes
por afinidade: sogro, sogra, cunhados, genro e nora
47
. Entre eles, os afins efetivos e
cognáticos podem ou não ser distinguidos. Tudo depende do desejo de enfatizar laços
consangüíneos ou afins nas relações anteriores ao casamento, ou seja, se o cônjuge se
tomado por um estrangeiro ou não. Mas, de acordo com o ideal endogâmico da região e
considerando-se a possibilidade de manipulação das terminologias de parentesco, o cônjuge
tende a ser um parente próximo e, na prática, os termos para afins efetivos são pouco
usados, pois tudo se passa como se no interior do grupo local só houvesse consangüíneos.
Para melhor analisar a natureza da afinidade em diferentes contextos, Rivière, em
Individual and society, propõe que se decomponha o conceito em quatro: “casamento”,
“matrimonialidade”, “afinabilidade” e “afinidade”. No sentido proposto por ele, o
“casamento” especificaria a relação entre dois cônjuges efetivos. O termo “afinidade”, por
sua vez, ficaria reservado para a relação entre um indivíduo e os parentes de seu cônjuge. A
de afinidade para se referirem àqueles. A assimetria destes usos seria, assim, uma faceta da assimetria de
obrigações entre um genro e seus sogros (Thomas, 1979: 65-66, 1982: 61).
46
Assim, por exemplo, os relacionamentos entre sogros, genros e noras não se caracterizam por evitações
formais ou comportamentos de especial respeito (cf. Thomas apud Rivière, 1984: 59).
47
Entre estes dois extremos, estariam, por exemplo, os Ye’cuana e os Panare. Os Ye’cuana, assim como os
Pemon, juntam na mesma classificação os irmãos do sexo oposto e os primos cruzados do sexo oposto, mas,
ao contrário deles, sua terminologia possui termos separados que designam sogros, genros e noras, embora
não exista um termo para cunhado. Associado a isto está o fato de que, entre os Ye’cuana, a afinidade efetiva,
sobretudo na relação entre sogro e genro, implica uma restrição maior. Os Panare, por sua vez, possuem uma
terminologia simétrica e inversa à dos Ye’cuana, do ponto de vista do lugar dos termos de afinidade. Entre
eles, os afins recebem termos específicos de afinidade se pertencerem ao mesmo nível genealógico que
Ego e não, se forem de níveis adjacentes (Rivière, 1984)
“matrimonialidade” denotaria uma relação entre indivíduos do sexo oposto que,
pertencentes às categorias prescritas pela regra de casamento ou não aparentadas, poderiam
vir a tornar-se cônjuges e, enfim, a “afinabilidade” referir-se-ia ao potencial de tornar-se
um parente por afinidade (Rivière 1984: 56)
48
.
O que importa destacar é que, para o autor, essas diferentes qualidades pelas quais a
afinidade se apresenta juntamente com os parâmetros de idade relativa, sexo e nível
genealógico
49
são determinantes no que diz respeito aos sistemas de atitudes
convencionais associados às terminologias de parentesco e as regras de casamento
apresentadas na última seção. Mas, além delas, Rivière acrescenta uma outra distinção,
entre afins aparentados e afins não-aparentados:
Related affines are those linked by consanguinity and/or co-residence prior to the marriage
that brought affinity into existence, whereas the latter are those unrelated prior to the union.
It is not implied that there are two classes of affines, but rather that there are fine gradations
between two extreme types, and that the forms of attitudes and behaviors vary depending
where on this continuum between related and unrelated any particular individual stands.
The unrelated in-marrying spouse, conventionally and usually a man, has to practice almost
total avoidance and submit to the full obligations of bride-service. On the other hand, the
related affine experiencies little change in attitudes to those prevailing before marriage, and
the requirements of bride-service represent little more than the expected forms of
cooperation between kin. The diference in the relationship between kin and that between
48
No prefácio à edição brasileira de Individual and Society in Guiana, Rivière faz um breve comentário
quanto à distinção entre “afinidade” e “afinabilidade”. Diz ele: “confesso que hoje estou menos convencido
do valor dessa distinção do que estive no passado, e considero a formulação de Viveiros de Castro, em termos
de afinidade virtual, atual e potencial, como sendo analiticamente mais útil” (Rivière, 2001b: 13).
49
Em toda a região, por exemplo, a atitude convencional dos jovens para com os velhos e para com os níveis
genealógicos mais avançados costuma ser de respeito. De maneira muito ampla, a relação entre indivíduos do
mesmo sexo tende a ser mais igualitária enquanto que, entre indivíduos de sexo oposto tende a ser assimétrico
(ocupando as mulheres a posição subordinada). Mas isso pode ser modificado pela diferença de idade. Os
relacionamentos entre membros do sexo oposto tendem a ser marcados pela reserva e os relacionamentos
entre os membros do mesmo sexo, pela intimidade (Rivière 1984: 54-56, 1969: 194).
unrelated affines may be summed up in the differences between cooperation and obligation
and between respect and avoidance (Rivière 1984: 57).
O parágrafo acima, ao identificar algumas diferenças entre os afins aparentados e os
afins não-aparentados, acaba por apresentar alguns aspectos importantes envolvidos no
conteúdo comportamental das relações sociais e, em particular, das relações de afinidade.
Os estrangeiros que se casam dentro da aldeia têm que se submeter aos parentes da esposa,
prestando serviços a eles e observando um padrão comportamental de evitação
50
. Aqueles
que se casam o mais proximamente possível mantêm quase inalteradas as formas de
cooperação e de atitudes pré-existentes ao casamento. Nestes casos, ao mesmo tempo em
que a convenção enfatiza o caráter de afinidade das trocas, na prática, elas também estão
marcadas pela relação entre cognatos.
É nesse sentido que, para Rivière, pode-se entender as vantagens do casamento com
a filha da irmã: os serviços, as dívidas, as obrigações continuam a fluir no mesmo sentido
que antes. A ênfase dada pelo autor para explicar este tipo de casamento recai sobre o
vínculo entre irmão e irmã, pois, neste tipo de união, a irassume o papel de mãe da
esposa e não rompimento no padrão de interdependência que existia anteriormente ao
casamento.
51
50
Segundo Rivière, entre os Trio, as razões dadas para a evitação entre afins relaciona-se com o conceito trio
de kutuma. Falar com a sogra, por exemplo, é kutuma, por isso não se fala com ela. Este conceito tem muitos
sentidos e, em certos contextos, quer dizer dor ou algo potencialmente doloroso. Um verbo formado por este
termo, ikutuma, tem o sentido geral de “responder com raiva” e pode significar também “evitar resmungar
quando uma pessoa fica enfurecida e se recusa a responder”. Ele pode ainda ser usado no caso em que uma
pessoa faz a mediação entre duas outras que são a ela relacionadas, mas que se evitam pela relação de
afinidade entre elas existente. É o que acontece, por exemplo, quando um homem pede algo a seu genro
através de sua filha (1969: 198-200).
51
Segundo Rivière (1969), o casamento avuncular foi interpretado (entre outros, por Kirchhoff e Guillin)
como um método de eliminar o serviço-da-noiva. Mas, para ele, o ponto é que, se isso é verdade, o casamento
com a ZD, ao mesmo tempo, reafirma, e mesmo duplica, as obrigações com a irmã.
Thomas (1979, 1982) também examinou o problema do casamento com a filha da
irmã, mas para ele tratava-se antes de uma questão de gradação entre diferentes posições
de afinidade e não de uma ênfase nos laços de consangüinidade. Nas palavras do autor,
we can think of the three types of unions (genealogically unrelated spouses, cross-cousins,
and “ZD” spouses) as representing a continuum of affinal obligation. This continuum
ranges from a maximum of a affinal obligation in the cases where the groom is unrelated, to
a middle point in those cases where the groom and his WF are related as “brother-in-law”.
These “ZD” unions are thus seen to be the interior end of a continuum manifesting
progressive reduction in the amount of obligation due his affines by the groom. The desire
to marry “close” and thus minimize the potential strain in the DH/WF tie by means of
emphasizing prior genealogical linkage between DH and WF is consistent with the
tendencies toward suppression of the quality of being an affine (Thomas, 1982: 104).
Thomas (1979) chama toda essa explicação das razões do casamento com a filha da
irmã de “elimination of the father-in-law”. O que se passa, neste caso, é que o sogro passa a
ser tratado como cunhado, a quem o cônjuge deve uma carga relativamente menor de
obrigações de afinidade. Para o autor, essa solução matrimonial acompanharia uma
tendência da terminologia de suprimir as relações de afinidade, em geral, e as relações de
afinidade assimétrica, em particular, nas quais as obrigações implicadas não podem nunca
ser completamente pagas
52
(Thomas 1979: 69).
Mas Rivière prefere enfatizar a consangüinidade e a co-residência, em vez da
supressão da afinidade, como um traço geral das sociedades guianesas
53
. Isso porque, diz
52
Thomas ressalta que não quer dizer com isso que a potencial redução das obrigações de afinidade seja
necessariamente um elemento consciente das escolhas matrimoniais pemon (Thomas, 1979: 67).
53
Em suas próprias palavras: “I would like to rephrase Thomas’s proposition in different terms, and then
consider whether the notion of affinity, as the term is generally understood, is applicable within the Guiana
region” (Rivière 1984: 69).
ele, em uma aldeia ideal, a afinidade não existe. Ela pode existir como o resultado do
casamento com um indivíduo que vem de fora. Segundo o autor, “throughout the region the
pervasive model of social space is based on a concentric dualism with us on the inside and
them on the outside” (Rivière, 1984: 70-1). Essa linha de demarcação, mesmo que relativa
e flexível, é o que guia os contornos da forma pela qual são descritas as relações de
afinidade na Guiana. Ou seja, dentro do grupo local, elas estão subsumidas ao ideal
endogâmico e, nesse sentido, tudo se passa como se a afinidade realmente não existisse,
como se as diferenças fossem expulsas para fora e os grupos se constituíssem como pura
interioridade.
IV. A economia política do controle
Rivière lembra que, em aldeias constituídas, em média, por 30 pessoas, a
organização política interna costuma ser um pouco mais que um reflexo do sistema de
parentesco. Novamente, mas em outra clave, o problema da unidade social é a chave mestra
para o exame da natureza das relações políticas no modelo analítico de Rivière.
A relação política fundamental que caracteriza o “tipo” guianense é aquela
existente entre o líder e a sua aldeia. Mas, mais uma vez, importantes variações nos
modos como essa relação é vista. Entre os Pemon, por exemplo, Thomas (1982) identifica
uma tendência a que a liderança seja dissolvida em vários domínios para que se mantenham
os traços de igualitarismo e autonomia que caracterizam as relações sociais. líderes no
domínio secular capitães e grandes comerciantes e no domínio sagrado xamãs, taren
esak (aquele que conhece muitas evocações mágicas), rezadoras e profetas (ligados ao
movimento religioso Hallelujah
54
) (Thomas 1982: 119-157). Neste caso, não é possível
definir precisamente a fronteira do grupo de seguidores ou os limites de influência de um
indivíduo em particular.
Overing (1975), por outro lado, enfatiza o fato de que os Piaroa vêem a residência
com um poderoso Ruwang como essencial para seu próprio bem-estar. Por várias razões:
ele é responsável por proteger os membros de sua comunidade dos perigos sobrenaturais,
por assegurar a fertilidade das plantas e animais de sua terra, por preconizar as categorias
morais que os Piaroa julgam corretas e por manter tranqüilas as relações entre os homens
(Overing, 1975: 53). O Ruwang piaroa é ao mesmo tempo líder político e religioso, ou, em
outras palavras, chefe e xamã, aquele que lida com o conhecido e com o desconhecido. De
acordo com Overing, o termo poderia ser traduzido, de acordo com o contexto, por “chefe”,
“xamã”, “feiticeiro”, “padre”, “ser especial”, ser de conhecimento” ou “ser de
pensamentos” (1975: 45). Em síntese, no caso Piaroa, viver endogamicamente em um
Itso’de sob os cuidados de um determinado Ruwang é, antes de tudo, uma decisão política
que envolve o todo mais amplo [the wider whole].
o líder trio (itamu) é descrito na etnografia de Rivière como um representante da
aldeia que lida com outras aldeias, visitantes estrangeiros e o mundo físico de fora. Seu
papel é complementado pelo xamã (piai), representante do grupo que lida com o
desconhecido sobrenatural. Rivière ressalta, entretanto, que, entre os Trio, o xamanismo
possui um rendimento fraco e, por isso, a ênfase de seu argumento recai sobre o líder
54
Uma combinação sincrética de elementos caribe e os ensinamentos dos missionários anglicanos que
chegaram na Guiana Britânica em meados do século XIX (Thomas, 1982: 23-4).
“leigo” da aldeia
55
. O autor localiza o poder político no controle que um homem pode
exercer sobre aquilo que, no contexto amazônico, considera como recurso escasso: pessoas
confiáveis que possam servir de “força de trabalho” para explorar os recursos naturais. Esse
dispositivo do controle utilizado pelo líder do grupo local sobre suas filhas e, através
delas, sobre seus genros é que seria capaz de garantir o tamanho e a estabilidade de uma
aldeia.
Como se pode entrever, essas três imagens das relações políticas afinam-se com
aquelas que foram esboçadas a partir de certos aspectos do parentesco, casamento e
residência destes povos, e diferem significativamente entre si, ao menos do ponto de vista
daquilo que cada uma quer enfatizar. A imagem do “controle”, que prevalece no “tipo”
guianês estabelecido por Rivière, agrega muitos dos traços identificados pelos outros
autores quanto à forma das relações políticas, mas está profundamente arraigada na
promoção de uma interioridade coesa. É para essa imagem, particularmente desenvolvida
em Individual and Society, que nos voltaremos agora.
Para Rivière, os laços de afinidade são responsáveis, ao mesmo tempo, pelo
tamanho e pela estabilidade do grupo. Tudo se passa como se a típica aldeia da Guiana
fosse tanto maior quanto mais pudesse assimilar afins, aqueles para os quais as mulheres do
grupo foram dadas e contra os quais, em função disso, abre-se um crédito de
contraprestações. Mas, por outro lado, quanto mais pessoas relacionadas por vínculos de
afinidade, que carregam consigo um inesgotável potencial de fissão, mais difícil manter a
55
Mas é difícil dizer até que ponto o rendimento do xamanismo trio identificado pelo autor é realmente fraco
ou resulta do empirismo de sua abordagem. Ele pode responder por uma preferência em destacar o domínio
macroscópico ou visível das relações sociais no grupo local.
coesão do grupo. Essa dificuldade ocorreria, sobretudo, enfatiza o autor, em sociedades
onde faltam quaisquer mecanismos formais para resolver conflitos que não aqueles capazes
de manter em harmonia a família extensa (Rivière, 1984: 74). Nestes casos, o único
dispositivo capaz de assegurar uma certa estabilidade do grupo resultaria de uma
negociação individual: o controle que os homens podem exercer sobre suas filhas e irmãs e,
através delas, sobre seus afins
56
.
Rivière então se pergunta sobre a natureza deste “controle”, próprio às relações de
afinidade, das quais dependeriam o tamanho e a estabilidade da aldeia
57
. Seu argumento,
em síntese, é que o controle faria parte de uma economia política da região e que esta
economia estaria preocupada com o gerenciamento dos recursos escassos
58
. De fato, a
economia política é descrita por Rivière em termos bastante convencionais: para ele, ela
poderia ser definida pelo modo que, em uma determinada sociedade, a produção e a
56
O argumento de Rivière baseia-se em uma contraposição ao modelo social jê, onde os grupos corporados
fazem essa mediação e asseguram a estabilidade do grupo.
57
O controle é exercido por doadores de mulheres sobre os tomadores de mulheres, sejam eles do mesmo
nível genealógico ou não. A assimetria entre eles está sempre aberta a favor dos primeiros. Mas parece que
tudo se passa como se a relação entre sogros e genros fosse mais hierárquica do que frágil e a relação entre
cunhados fosse mais frágil do que hierárquica. Overing e Thomas enfatizaram a debilidade das ligações entre
cunhados no que diz respeito à manutenção da estabilidade da aldeia. Ao mesmo tempo, ambos contrastaram
essas ligações com aquelas entre diferentes gerações: os relacionamentos políticos verticais, mais que os
horizontais, seriam capazes de assegurar a coesão aldeã.
58
Rivière retoma a caracterização feita por Turner sobre os povos e Bororo. Para este autor, a economia
política estaria baseada na produção e na reprodução social, através da exploração das mulheres e dos homens
jovens por parte dos homens mais velhos. Mas, no caso de Turner, um certo “marxismo” atravessa seu
argumento de forma bem pronunciada. Segundo ele, os homens mais velhos formariam uma “classe
dominante” em função do controle exercido sobre os meios fundamentais de produção, as unidades
residenciais (apud Rivière 1984: 87).
distribuição da riqueza são ordenadas. O problema estaria então em identificar a natureza
dessa riqueza
59
(Rivière 1984: 87-8).
Neste ponto, o argumento de Rivière é sinuoso, mas é preciso que nos detenhamos
sobre ele por um momento. Reportando-se a seu material sobre os Trio, o autor descreve
certos aspectos da caça, particularmente, a situação freqüente em que o jovem caçador
confia o que ele caçou a um sogro ou a um líder de uma aldeia. Neste caso, é este último
quem possui o controle sobre o produto para, depois, redistribuí-lo entre os outros membros
da comunidade (Rivière 1984:88-9). De um fato como esse que é apenas um exemplo de
outras situações que também seguem o mesmo princípio
60
, Rivière sugere que o controle
sobre o produto tem apenas uma importância secundária e que o que importa, de fato, é o
controle sobre o produtor. Em outras palavras, o autor sugere que
scarcity in the region is not of natural resources but of the labor with which to exploit them.
It’s people who are in short supply. This does not
são consideradas pelo autor como o recurso escasso
considera o que poderia vir a ser uma pessoa nas sociedades indígenas da Guiana
61
. A
noção, não raro, parece confundir-se com o conceito de indivíduo (cf. Viveiros de Castro
1987: 280). Outra conclusão é que não existe sociedade fora da aldeia (Rivière, 1984: 98),
sua existência “dentro da aldeia”, entretanto, é um ponto pacífico do argumento: é o que
parecem dizer a linha demarcatória entre interior e exterior e o dispositivo de controle que
existe para mediar esta oposição.
V. Algumas imagens da socialidade
A imagem prevalecente das sociedades guianesas, tal como descritas por Rivière, é
a da mônada, efeito da vontade de ficar “entre si”, da minimização das formas de troca
matrimonial, da supressão (ou mascaramento) da afinidade, entre outras coisas. A
“xenofobia típica” (Rivière 1984: 61) dos povos da Guiana coincide assim com o foco na
comunidade local. Para além desta haveria apenas pura negatividade. As relações de
afinidade dentro do grupo seriam menos pensadas como pontes com outros mundos
possíveis, do que como se existissem para constituir um interior idêntico a si próprio.
Ao longo do capítulo, procuramos seguir os passos da descrição geral das
sociedades guianesas feitas por Peter Rivière em Individual and Society in Guiana que
conforma essa imagem. As sociedades da Guiana parecem, de fato, partilhar de uma série
de traços comuns quanto ao tamanho e duração dos assentamentos, a composição da aldeia,
61
Sigo aqui a crítica de Viveiros de Castro segundo a qual a noção de uma economia política de pessoas é
interessante, mas “toma por dado (...) precisamente o que não poderia tomar: que se sabe de antemão quem
são as pessoas, isto é, que todos os povos do planeta entretêm mais ou menos as mesmas idéias sobre quem se
qualifica à condição de pessoa (e o que a qualifica)” (2002: 415).
os padrões de residência, as regras de casamento, as terminologias de parentesco e o
sistema de atitudes. É essa semelhança que faz com que o autor atribua à estrutura social o
lugar do invariante. Os exemplos Trio, Pemon e Piaroa, aqui examinados, de modo geral,
confirmam a uniformidade deste perfil sociológico. Mas, ao mesmo tempo, apresentam
variações significativas, no que diz respeito aos “fatos” e, até certo ponto, às interpretações
que lhes deram seus etnógrafos. A intenção foi tentar apresentar o modelo contra essas
variações para, assim, poder sugerir quais traços das etnografias teriam sido mais ou menos
enfatizados por Rivière em sua construção do “tipo guianês”.
Como vimos, as divergências parecem se concentrar no modo como as relações de
afinidade são concebidas. Rivière enfatiza o gradiente próximo/distante em detrimento do
contraste binário entre consangüíneos e afins. Quanto à importância deste gradiente para a
articulação das categorias sociais, Thomas e Overing, parecem estar de acordo. Dentro do
grupo local, os afins são assimilados aos cognatos co-residentes, o que deriva de uma
situação de “endogamia prescritiva”. Mas, para Rivière, a distinção entre estrangeiros e
cognatos vai mais longe: ela chegaria mesmo a fazer desaparecer a oposição entre afins e
consangüíneos. Dessa forma, em sua análise, tudo se passa como se, na Guiana, a afinidade
nada significasse.
Tal interpretação, entretanto, parece contrastar com o fato, pelo próprio autor
demonstrado, de que o casamento é um laço político crucial na dinâmica social guianense.
Se, por um lado, como propõe Rivière, os parentes por afinidade não se distinguem dos
parentes por consangüinidade (sendo todos considerados, antes, como cognatos), por outro
lado, o tamanho e a duração das aldeias dependem da relação que se estabelece
precisamente com aqueles. As potenciais linhas de fissão passam por e é que podem
surgir certas formas “hierárquicas”, como o controle exercido pelos sogros sobre seus
genros. A aldeia, enquanto unidade política autônoma, parece depender, precisamente, do
bem-sucedido deste exercício. As relações de afinidade (tipicamente, a relação entre o
líder-sogro e seu genro) efetuariam a mediação entre a ordem doméstica do parentesco e a
ordem política da sociedade global, entre indivíduo e sociedade.
No modelo de Rivière, o grupo local acaba se confundindo com um grupo total.
Mas, paradoxalmente, as estruturas de troca matrimonial guianesas não seriam suficientes
para formar grupos sociologicamente integrados. A ausência de regras de residência, a
possibilidade de manipulação da terminologia em face dos ideais endogâmicos, o tamanho
e a impermanência dos assentamentos, o desejo de autonomia, etc., tudo isso pareceria
apontar para uma dificuldade de se tratar os povos da Guiana de uma maneira demasiado
totalizante. É neste contexto que os laços de afinidade, em particular, entre sogros e genros,
são descritos como se carregassem algo que poderíamos chamar de um ‘dispositivo de
totalização do socius’, o controle. Para Rivière, esse controle é um instrumento utilizado em
negociações entre indivíduos para alocação de recursos escassos que na ausência de
agrupamentos sociais formais – acaba desembocando em sua contraface: a sociedade.
A socialidade indígena guianense parece assim ser concebida essencialmente em
termos da noção de Sociedade (sensu Strathern), como um modo de ordenar a experiência
que imagina um todo composto por partes. No caso do modelo de Rivière, essas partes são
indivíduos: identidades naturalmente pré-existentes cujas relações sociais lhes são
extrínsecas. O intercâmbio matrimonial e as relações de afinidade, de maneira geral,
estariam subsumidas aos problemas de alocação de indivíduos, considerados como recursos
produtivos. Mas, podemos então nos perguntar se outros discursos estariam preocupados
com o mesmo tipo de ‘problema de sociedade’. Se eles pressupõem igualmente os
indivíduos, as relações ou a socialidade. Imaginamos que não, mas vejamos como isso
acontece nos mitos que a partir de agora vamos examinar.
3
O modelo mítico da socialidade
O objetivo deste capítulo é analisar um mito, entendido da maneira como o concebe
Lévi-Strauss, ou seja, como o conjunto de suas versões, e tentar daí extrair elementos que
possam configurar uma outra imagem da socialidade, diferente daquela que esboçamos no
capítulo anterior. A armadura sociológica fundamental deste mito é a de um homem que se
casa com uma mulher-animal e tem de realizar uma série de tarefas difíceis ou perigosas
impostas por seu sogro que o ameaça devorar em caso de fracasso, mas de quem obtém os
bens culturais. Os mitos sobre os quais basearemos a análise provêm principalmente dos
três grupos indígenas guianenses cujas descrições etnográficas foram exploradas no
capítulo anterior: Trio, Piaroa e Pemon. Entretanto, esses mitos não se restringem
particularmente a estes grupos e sequer à região da Guiana. Outras versões, transformadas
de modo mais ou menos evidente, podem ser encontradas entre diversos povos da América.
De maneira mais ampla, poder-se-ia dizer que esse mito é, em última análise, aquele “mito
único” analisado por Lévi-Strauss ao longo das Mitológicas, cujas versões provêm de
povos que habitam desde o Alasca à Terra do Fogo.
Para examinar aspectos dessa mitologia, convém explicitar alguns dos pressupostos
teóricos e dos problemas relativos aos procedimentos metodológicos adotados. O fundo
sobre o qual tentaremos nos mover é uma conjunção entre, por um lado, as questões
apresentadas por Lévi-Strauss nas Mitológicas e, por outro, certas idéias desenvolvidas em
estudos americanistas recentes, a saber, que a socialidade indígena se caracterizaria por
qualidades particulares, associadas aos conceitos de “perspectivismo cosmológico” e de
“afinidade potencial” (cf. Viveiros de Castro 2002), entre outros. Abramos, pois, um
parênteses para tornar mais claros certos traços deste arcabouço que nos servirá de base.
As Mitológicas de Lévi-Strauss são, para o próprio autor, um estudo das
representações míticas ameríndias da passagem da natureza à cultura
62
. Desse ponto de
vista, poder-se-ia imaginar que tudo se passa como se, para ele, os mitos expressassem uma
teoria indígena da origem da cultura e, portanto, do vínculo social. Mas, de fato, a
possibilidade de que os mitos constituam uma teoria indígena não parece ser uma posição
inequívoca no argumento do autor. Lévi-Strauss sempre se manteve profundamente
ambivalente quanto ao estatuto do discurso indígena perante o seu. Em alguns momentos,
ele parece reconhecer uma certa equivalência entre seu discurso sobre os mitos e os mitos
eles próprios, dizendo, por exemplo, que não seria equivocado considerar sua análise como
um mito, “de certo modo o mito da mitologia”
(1964: 31). Mas, como na célebre passagem
de O totemismo hoje onde compara a fala de um índio Sioux com uma citação de Bergson,
é difícil saber se a intenção do autor é elevar o pensamento selvagem ao status do
pensamento domesticado (seja ele filosófico ou científico) ou reduzir ironicamente este
último à condição do primeiro. Em qualquer um dos casos, o que importa é que, na maioria
das vezes, as possíveis equivalências se constituem sobre uma assimetria de fundo que
parece ser, no pensamento de Lévi-Strauss, a chave desta relação.
62
As Mitológicas têm sua origem em um curso que começou a ser dado por Lévi-Strauss em 1961 no Collège
de France intitulado “Representações míticas da passagem da natureza à cultura” (cf. Lévi-Strauss, 1984: 51).
Penso, entretanto, que uma corrente subterrânea no pensamento deste autor permite
supor que essa assimetria não está dada definitivamente, na medida em que, em alguns
casos e sob certos aspectos, a diferença entre os dois discursos pode tender a zero. Não
seria o caso de empreender aqui uma exegese da obra lévi-straussiana para tentar
demonstrar tal abertura. Estou ciente de que, se o fizéssemos, provavelmente
encontraríamos muitos argumentos que afirmariam o contrário. Afinal, entre outras coisas,
é Lévi-Strauss quem diz que “o relativismo cultural seria uma infantilidade se, para
reconhecer a riqueza das civilizações diferentes da nossa (...), ele se acreditasse obrigado a
tratar com condescendência, senão com desdém, o saber científico que, quaisquer que
sejam os males que acarretou e aqueles ainda mais graves que se anunciam, não deixa de
constituir um modo de conhecimento do qual não se poderia contestar a absoluta
superioridade” (1971: 569).
A citação acima é taxativa, mas, em outros momentos, é o mesmo autor quem diz
que “a lógica do pensamento mítico nos pareceu tão exigente quanto aquela na qual repousa
o pensamento positivo, e, no fundo, pouco diferente” (Lévi-Strauss 1955: 265). E a isso,
acrescenta: “pois a diferença se deve menos à qualidade das operações que à natureza das
coisas sobre as quais se dirigem essas operações” (Ibid.: 265). Em outra passagem,
referindo-se mais diretamente aos modelos de parentesco e casamento, Lévi-Strauss
também diz que “muitas culturas ditas primitivas elaboram modelos (...) melhores que os
dos etnólogos profissionais” (1955: 319). Mas, para Lévi-Strauss, esses modelos seriam
interessantes para o “etnólogo profissional”, sobretudo, por serem objetos em continuidade
ontológica com os fatos a estudar
63
.
Ora, as duas observações feitas pelo autor quanto à relação dos modelos nativos
com os modelos do antropólogo i.e., de que a diferença entre eles repousa antes nas
coisas sobre as quais cada um se detém e de que os modelos dos primeiros estão em
continuidade com seu objeto – podem ser lidas dentro de um quadro mais complexo.
Quanto à primeira observação, ela ganharia ainda mais sentido se a pensássemos à luz dos
recentes esforços em se conceitualizar o “problema do dado” para a Amazônia indígena. A
tese desenvolvida por Viveiros de Castro (2002) distribui os dualismos natureza/cultura,
consangüinidade/afinidade (e seus correlatos) de acordo com o contraste entre o ‘dado’ e o
‘construído’, mas inverte a ordenação dos termos tal como, freqüentemente, foram
articulados ao longo da história da disciplina antropológica. Ou seja, para este autor, o
pensamento indígena atribuiria à afinidade e à cultura a função de dado sobre o qual se
construiria a consangüinidade e a natureza (os corpos, as substâncias, etc.). Nesses termos,
poderíamos sim postular que os mitos pensam igualmente bem seus mundos, mas estes,
com efeito, podem ser bastante diversos dos nossos.
64
O segundo reparo de Lévi-Strauss sugere que o discurso nativo compartilha da
mesma natureza do mundo que ele descreve. Parece-me que, na visão do autor, essa
63
Em suas palavras: “Há, pois, duas razões para respeitar estes modelos “feitos em casa”. Antes de tudo,
podem ser bons, ou, pelo menos, oferecer uma via de acesso à estrutura; cada cultura tem seus teóricos, cuja
obra merece tanta atenção como a que o etnólogo concede à dos colegas. Em seguida, mesmo se os modelos
são tendenciosos ou inexatos, a tendência e o gênero de erros que eles contêm fazem parte integrante d
proximidade, embora faça deste discurso um objeto interessante para o antropólogo (pois
ele estaria estruturalmente ligado às categorias do pensamento indígena), pode colocar
dificuldades para que o próprio modelo nativo se constitua como um discurso antropológico
propriamente dito. Isso porque, para Lévi-Strauss, a capacidade reflexiva depende de um
encontro, da ação de um pensamento sobre o outro, e os discursos nativos talvez estivessem
muito próximos do contexto de onde emergem e ao qual se referem para que fossem
capazes de “contribuir para um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus
mecanismos” (Lévi-Strauss 1964: 32). Mas, mesmo que os mitos não estejam exatamente
interessados em tal empresa, não seria precisamente a ação de um pensamento sobre o
outro o que eles não se cansam de efetuar? Ao menos quando se concebe que o mundo
indígena é habitado por diferentes espécies de pessoas, humanas e não-humanas, e que os
mitos, incessantemente, descrevem, especulam e teorizam sobre o jogo de perspectivas
entre sujeitos que estão sob um regime de constante metamorfose. Enfim, o que os mitos
relatam não seria justamente o pensamento humano (o Eu) se pensando em contraste com o
pensamento dos porcos-do-mato, dos jaguares, dos espíritos, dos inimigos, dos afins, de
todos os tipos de Outros possíveis e imagináveis? Uma especulação que, segundo o que
acabamos de dizer, considera que esses outros também pensam igualmente bem e que o
mundo deles é que varia?
Se pudermos ver as coisas assim, as análises míticas de Lévi-Strauss devem então
ser tratadas como uma espécie de meta-antropologia, um discurso sobre um discurso que
é ele próprio antropológico. As “Mitológicas de Lévi-Strauss seriam propriamente as
Sociológicasameríndias, a expressão de uma sociologia dos índios (concebida por eles e
não apenas sobre eles). Entretanto, esta é uma sociologia que, aparentemente, não está
preocupada em produzir nenhum discurso sobre a sociedade, no sentido durkheimiano do
termo, mas, em vez disso, articula uma imagem do socius a partir de um discurso sobre os
corpos e os fluxos materiais (cf. Viveiros de Castro, 1999: 147).
Tendo em mente essas questões é que examinaremos os mitos aqui reunidos,
tentando explorar as condições para que uma ‘estrutura social’ engendre esse discurso
mítico (e não outro) sobre o problema da aliança ou da origem da cultura, sem com isso
imaginar que ele poderia apenas estar a refleti-los. De maneira geral, no caso ameríndio,
estamos supondo que essa ‘estrutura social’ implica um englobamento das idéias de
“cultura” e de “sociedade” por uma dimensão de virtualidade jamais totalizável, onde a
afinidade opera como um princípio dominante das relações sociais, dentro das quais as
pessoas existem.
O que estamos chamando de “modelo mítico da socialidade” não poderia ser, sem
dúvida, observado diretamente, como se estivesse na superfície dos mitos. Ele depende de
uma certa mediação interpretativa que aqui se inspira, sobretudo, na conjunção dos
programas acima mencionados. A intenção é poder assim ser fiel ao espírito, que à letra
seria mesmo impossível, daquilo que está implicado nos mitos. Porém, em termos
metodológicos, algumas dificuldades de interpretação logo se impõem.
Por todas as demonstrações feitas por Lévi-Strauss, sabemos que, no mito, tudo é
motivado. Freqüentemente, a chave para se compreender a razão de um acontecimento
mítico pode se encontrar fora do domínio da linguagem, por exemplo, na etologia de um
animal, no uso que é feito de uma planta, nas regras de casamento ou residência adotadas
em um determinado grupo. Sob esse princípio, qualquer tentativa de análise mitológica
deveria, portanto, esforçar-se por determinar as propriedades concretas dos elementos que
constituem o mito. Não dispomos, entretanto, de conhecimento etnográfico suficiente
(menos ainda, zoológicos, botânicos, metereológicos, etc) para levar muito adiante esse
preceito, o que, por vezes, pode dar à análise ares demasiado formalistas. No entanto, como
diz Lévi-Strauss, as “análises formais são indispensáveis, pois somente elas permitem
expor a armação sociológica oculta sob narrativas de aparência esquisita e
incompreensível.” (1966: 146).
Portanto, se, verticalmente, o risco que corremos de não conseguir traçar certas
conexões pode ser o resultado de uma falta, horizontalmente, o problema pode ser o
excesso. Como demonstrou Lévi-Strauss ao longo das Mitológicas, duas cadeias
sintagmáticas ou fragmentos delas podem adquirir sentido pelo simples fato de se oporem.
A estrutura de um mito, freqüentemente, deriva de uma transformação de um outro mito
que, por sua vez, também responde a outro e assim por diante
65
. Portanto, se, por um lado, é
importante confrontar um mito com suas diferentes versões, por outro lado, tais associações
podem assim se desdobrar ao infinito. É preciso então saber conduzir a análise de modo a
não cair em algum tipo de associacionismo em que tudo está ligado a tudo, tentando manter
apenas um pequeno número de elementos dos mitos capazes de exprimir contrastes e
formar pares de oposição. Como diz Lévi-Strauss, “cada vez que se consegue reduzir uma
estrutura, não se perde sentido, como afirma com demasiada freqüência a crítica obtusa;
consegue-se um utensílio conceitual que, trabalhando sobre a matéria prima do mito,
65
Segundo Lévi-Strauss, “todo mito é por natureza uma tradução, tem sua origem em outro mito procedente
de uma população vizinha mas estranha, ou em um mito anterior da mesma população, ou bem
contemporâneo mas pertencente a outra subdivisão social clã, subclã, linha, família, irmandade –, que um
ouvinte procura demarcar traduzindo-o para a sua linguagem pessoal ou tribal, seja para se lhe apropriar, seja
para desmenti-lo – deformando-o sempre pois.” (1971: 576).
permite extrair-lhe mais sentido do que previamente se havia imaginado” (1971: 242). Será
preciso, então, deslocar o foco de algumas associações que, entretanto, não deixarão de
existir, pois “a totalidade virtualmente ilimitada dos elementos permanece sempre
disponível” (Lévi-Strauss 1964: 386).
A princípio, o que temos em mãos são apenas alguns mitos que, superpostos,
parecem guardar entre si uma relação de transformação. Temos também a cartografia
mitológica empreendida por Lévi-Strauss que nos servirá de guia, apontando no mito os
detalhes que, talvez, de outra forma, passassem despercebidos. Procuraremos então
identificar, nestes mitos, os aspectos redundantes, tentando determinar, ao menos a título de
hipótese de trabalho, uma imagem da socialidade tal como concebida por esse discurso
antropológico nativo. Mas, sem nos alongarmos mais neste preâmbulo de capítulo,
tomemos logo a matéria que vamos aqui examinar.
I. Um mito pemon: a visita ao céu
Partiremos de um mito colhido por Theodor Koch-Grünberg durante uma de suas
expedições ao norte amazônico no início do século XX. Este mito faz parte de um grupo
que é geralmente conhecido como “a visita ao céu” e possui diversas versões provenientes
de diferentes grupos da área da Guiana. Essa versão, em particular, foi narrada ao autor por
um índio taulipang (pemon) durante uma expedição que ele fez à região compreendida
entre o monte Roraima e o médio Orinoco, entre 1911 e 1913.
66
MI Taulipang: A visita ao céu
Antigamente houve uma guerra entre duas tribos. Uma aldeia foi incendiada e todos os
homens morreram. Apenas um homem, chamado Maitxaúle, sobreviveu. Ele deitou-se
ileso entre seus parentes mortos e untou o rosto e o corpo com sangue. Chegaram os
urubus e brigaram por causa dos cadáveres.
Então veio a filha do urubu-rei e sentou-se no peito de Maitxaúle. Quando ela quis
mordiscar o seu ventre com o bico, Maitxaúle a pegou. Os outros urubus fugiram. O
herói levou-a para uma casa abandonada e cuidou dela como se fosse um pássaro
domesticado. Maitxaúle saía para caçar e quando voltava encontrava tudo pronto
caxiri, milho, pão –, mas não sabia quem estava fazendo aquilo. Um dia, Maitxaúle
escondeu-se e descobriu que era a filha do urubu-rei que se transformava em uma linda
menina e fazia as tarefas de casa. Maitxaúle então pediu a ela que ficasse como sua
mulher. Ela aceitou.
Depois de um tempo, ela decidiu ir ver sua família e dizer ao pai que agora ele tinha
um genro. Deu alguns pulos, transformou-se em um urubu e voou para o céu. No dia
seguinte, voltaram três urubus: a filha do urubu-rei e seus dois irmãos. Os cunhados
ficaram mais dois dias, comeram carne cozida com Maitxaúle, deram a ele uma
vestimenta de penas dos urubus-reis e depois foram embora.
A filha do urubu-rei mandou que o homem vestisse a roupa: ele obedeceu e
transformou-se em um urubu. Maitxaúle, a mulher e os cunhados chegaram na entrada
do céu e entraram. O sogro-urubu, Kasána-pódole
67
, recebeu Maitxaúle muito bem. A
mulher disse ao índio que ele não precisava beber a bebida dos urubus, mas sim o caxiri
de milho dos papagaios e dos periquitos
Um dia, o urubu-rei disse à filha que mandasse seu marido secar o lago
Kapepiákupe dentro de dois dias! Era um lago muito grande. O urubu-rei queria matar
Maitxaúle para comê-lo. Se não cumprisse com sucesso a ordem, ele o comeria.
Maitxaúle não sabia o que fazer e contou a Pílumog, a libélula, que tinha sido submetido
a uma prova e que o sogro o queria comer. Pílumog disse ao cunhado que o ajudaria a
secar o lago. As libélulas tiraram muita água e o lago ficou seco. O velho ficou satisfeito
e convidou todo mundo para apanhar peixes.
Kasána-pódole então deu ao genro uma cavadeira e mandou que ele construísse uma
casa sobre o rochedo. Se ele fracassasse, o velho iria comê-lo. Mandou que ele fizesse
isso com a intenção de matá-lo. Maitxaúle chegou ao rochedo, mas não conseguiu fazer
buraco algum com a cavadeira. Veio então o verme Motó e ajudou-o a furar a pedra
66
Para tornar mais fluida a leitura, tentei resumir, na medida do possível, os mitos aqui apresentados. E, para
evitar confusões, optei por especificá-los por algarismos romanos, que Lévi-Strauss o faz por algarismos
arábicos. ‘Nosso’ MI corresponde, nas Mitológicas, a M113, brevemente mencionado nas páginas 170, 219 e
370-ss de O cru e o cozido (1964).
67
Segundo Koch-Grünberg, “Kasanág é, em taulipang e arekuna, a denominação do urubu-rei: Vultur papa
Lin, Sarcorhamphus papa Sw. Os Macuxi chamam-no Kasaná ou Ka’seni” (1916: 109).
para colocar os esteios. O pássaro Kasáu cobriu a casa. Maitxaúle disse ao sogro que a
casa nova estava pronta.
O velho, então, disse ao genro que fizesse um banco de pedra com duas cabeças
iguais às dele. Vieram Maidzape, as térmitas brancas e fizeram o banco em um instante.
O banco tinha as duas cabeças, mas andava como um jabuti quando era ordenado.
Maitxaúle foi para a casa do sogro. Kasána-pódole deu-lhe para beber o Payuá dos
urubus-reis, um caxiri feito de todos os animais apodrecidos do lago (peixes, jacarés,
cobras), os quais estavam cheios de vermes. Ao invés de bebê-lo, ele deu tudo para a sua
mulher. Ele bebeu caxiri de milho na casa dos periquitos, papagaios e araras. Maitxaúle
escondeu um grão de milho na boca e o carregou consigo quando voltou à terra.
Naqueles tempos a gente da terra ainda não tinha milho.
Maitxaúle colocou vespas no banco e disse ao sogro que ele estava pronto. Quando
Kasána-pódole sentou-se no banco, as vespas o picaram. Maitxaúle ordenou e o banco
correu, carregando o velho! Ele foi picado pelas vespas, bateu com a cabeça em uma
árvore e caiu. O velho ficou com a cabeça transtornada e começou a rolar pelo chão:
não podia andar.
Maitxaúle quis voltar de novo à Terra. Apareceu Murumurutá, o rouxinol, soprou
uma planta mágica em Maitxaúle e deu-lhe suas vestes. Ele ficou bem leve e voou. O
pássaro levou-o de volta para a casa dos seus parentes e Maitxaúle contou a eles o que
havia se passado. Eles tinham uma nova plantação. Ele plantou o milho que trouxera do
céu. Nasceu um pé de milho com duas espigas.
Os parentes queriam comer o milho, mas Maitxaúle queria usá-lo como semente
para que nascesse mais. Abriram um novo roçado e plantaram o milho. Os outros
parentes também souberam que ele tinha trazido o milho. Vieram e lhe pediram um
pouco. Mas ele deu logo apenas um grão. Trocou-o por uma rede. Então o milho se
espalhou. Todos plantaram muito milho e ele ficou também para nós. É o milho que
temos hoje. (Koch-Grünberg 1916 [2002]:105-115).
O principal movimento produzido no mito vai do céu à terra, da terra ao céu.
Maitxaúle captura a filha do urubu-rei quando esta desce à terra e passa a viver como sua
mulher. Ela então resolve ver seus parentes e retorna ao céu deixando o herói na terra.
Novamente, ela desce, dessa vez acompanhada por dois irmãos, e ficam na terra alguns
dias. Maitxaúle então, transformado em urubu (vestindo suas roupas) e acompanhado por
sua mulher e seus cunhados, sobe ao céu e encontra o sogro que lhe impõe algumas tarefas
sob a ameaça de devorá-lo. Finalmente, o herói volta à terra e encontra novamente seus
parentes.
A oposição céu/terra é fortemente marcada e, em uma das versões do mito, ela é
ainda mais acentuada. Na versão Tembé
68
, que Koch-Grünberg resumiu a partir do texto de
Nimuendaju, o herói e a esposa-urubu, em sua viagem para o céu, chegam “primeiro à casa
do Sol, em seguida à casa da Lua, depois à casa do vento e, finalmente, à residência do
velho urubu-rei” (1916: 200). Tudo se passa como se, em um plano vertical, os personagens
fossem de um extremo ao outro percorrendo um máximo de distância espacial. Esse
percurso é realizado pelo herói, por sua esposa e por seus cunhados-urubu. Apenas o sogro
não se desloca. Está sempre no alto, onde, segundo Coll (1907-08), os índios dizem que se
encontra toda a ciência dos urubus.
69
Esse jogo de posições pode também ser observado de um ponto de vista culinário e
perspectivista
70
. De início, uma disjunção absoluta entre céu e terra que se torna
conjunção quando a filha do urubu-rei (habitante do céu) passa a viver com Maitxaúle
(habitante da terra). Ela faz a mediação entre céu e terra: é urubu, mas pode despir-se de
suas penas (roupas) e transformar-se em mulher; come carne assada, mas pode beber do
caxiri podre dos urubus
71
.
68
Grupo tupi que habita o norte do Estado do Pará e Maranhão (fora da “área da Guiana”), também conhecido
como Tenetehara.
69
Coll faz esse comentário ao narrar um mito de um grupo indígena do Suriname (ele não especifica qual).
Esse mito, “L’histoire du Piay Macanaholo”, é uma versão muito próxima de “a visita ao céu”.
70
Desnecessário lembrar o lugar essencial que, segundo Lévi-Strauss, ocupa a culinária na filosofia indígena.
Segundo este autor, “ela não marca apenas a passagem da natureza à cultura; por ela e através dela, a
condição humana se define com todos os seus atributos, inclusive aqueles que – como a mortalidade podem
parecer os mais indiscutivelmente naturais” (Lévi-Strauss 1964: 197).
71
Não disponho de muitas informações sobre a cosmologia pemon, mas, não muito longe deles, seus vizinhos
Waiwai caracterizam o espaço por cinco níveis verticais: um ctônico, a superfície terrestre, onde vivem os
homens, e três níveis celestes, cada um com seus típicos habitantes. Segundo Howard (1991), cada criatura
encarna certas características e poderes do domínio de onde provém; cada uma pode ser um representante de
seu domínio em outros contextos e trazer consigo os poderes de seu lugar de origem. De acordo com a autora,
O mito não coloca as coisas exatamente nestes termos, mas poderíamos sugerir que,
no primeiro momento (disjuntivo), o que ela como um banquete (e não como carniça),
ele como os corpos de seus parentes mortos. Em seguida, o herói e a filha do urubu-rei
(transformada em mulher) passam a viver juntos na terra. Ele traz para a casa a caça (um
veado), assa-a em uma grelha e a oferece à mulher que come com ele. Ou seja, ambos vêem
a mesma coisa como comida (como alimento cozido). Novamente ela vai ao céu e logo
volta com os cunhados de Maitxaúle. Nova disjunção e nova conjunção que repete a
primeira seqüência do mito intensificando-a. Aqui, além da mulher, há mais dois cunhados
que pedem ao herói para alimentá-los. Ele então mata um veado, cozinha a carne e todos
comem. Ou seja, todos vêem a mesma coisa como comida (cozida). a terceira seqüência
é, do ponto de vista dos deslocamentos, uma inversão das duas primeiras. É o herói que
sobe ao céu, transformado em urubu junto com sua esposa e seus cunhados, e encontra-se
com o sogro. Lá, a filha do urubu-rei dispensa Maitxaúle de comer da mesma comida que
eles.
O herói, quando vai para o céu, não consegue ver como comida o mesmo que os
urubus vêem como tal. Ou seja, as conjunções que se dão na terra e no céu são desiguais.
Na terra, a conjunção tende a ser mais forte que os seres terrestres e celestes vêem da
mesma maneira o alimento: o cozido é visto por ambos como cozido. Mas, no u, a
conjunção implica também uma disjunção: o cozido é visto como cozido por uns e como
podre por outros. Em outros termos, na terra, a diferença entre os seres terrestres e celestes
pode ser extremamente reduzida, enquanto que, no céu, ela persiste em sua irredutibilidade.
os pássaros são, neste sentido, símbolos ou “fragmentos” dos céus e das florestas de onde eles vêm e, por
causa da sua habilidade de voar e atravessar os limiares entre estratos cosmológicos, são particularmente
aptos à comunicação entre estes estratos e fazem entre eles uma ligação conceitual.
Temos, portanto, em um plano vertical, dois pares de oposições (humanos/urubus;
terra/céu). Potencialmente, homens e urubus tanto na terra quanto no céu. No entanto, é
possível detectar um certo desequilíbrio na articulação desses quatro termos. Como se estes
dois dualismos pudessem ser pensados como um triadismo. Se definirmos a condição
humana e a condição urubu por suas respectivas dietas alimentares, tudo se passa como se,
na terra, houvesse homens e, no céu, urubus e homens. Isso porque aqueles, quando vêm
à terra, conseguem portar-se ao modo dos humanos, ainda que, frisemos, não deixem
completamente de ser urubus. Maitxaúle, por sua vez, quando vai ao céu, não consegue
portar-se ao modo dos urubus (não come a comida deles). Na terra, aqueles que se portam
como humanos podem ser, na realidade, urubus, ao passo que, no céu, resta uma instância
última da qual os seres terrestres não podem participar: comer o podre.
Da exclusão de certos traços urubus dos homens (que não podem atualizá-los), resta
sempre uma parcela irredutível da diferença. Na atitude alimentar de “comer o podre”
residiria uma afinidade pura, ou potencial, revestida de “um valor propriamente
transcendental” (Viveiros de Castro 2002: 159), de impossível atualização. Da extensão de
certos traços humanos aos urubus (tomada como uma possibilidade que estes podem ou não
atualizar), resta uma humanidade incerta de onde sempre é possível irromper a diferença.
Aparentemente, na atitude alimentar dos homens e urubus em “comer o cozido” residiria a
partilha de uma mesma condição humana, na qual, entretanto, existiria sempre, ainda que
em estado latente, algum aspecto de não-humanidade. Assim, no mito, da atualização do
modo de vida na terra poderíamos extrair uma “contra-efetuação urubu”. (c.f. Viveiros de
Castro 2002: 403-ss).
Os três momentos de conjunção em que seres terrestres (Maitxaúle) e seres celestes
(os urubus) vivem juntos podem ainda ser vistos de outra maneira. Traduzindo a oposição
entre seres terrestres e celestes em termos das relações sociais implicadas, temos: 1) o herói
e sua esposa, na terra; 2) o herói, sua esposa e seus cunhados, na terra, e 3) o herói, sua
esposa, seus cunhados e seu sogro, no céu. Há, portanto, uma gradação no que diz respeito
aos afins (do ponto de vista de Maitxaúle) envolvidos na relação. Esta gradação é, em um
primeiro plano, quantitativa (o número de afins vai aumentando), mas também é qualitativa
(em cada seqüência, os afins introduzidos são cada vez mais distantes – a esposa, o
cunhado e, finalmente, o sogro). No pólo mais fraco desta gradação está a esposa de
Maitxaúle que, no mito, convive com ele na terra de maneira intensa: dorme com ele,
cozinha com ele, come com ele. Os cunhados, intermediários, vêm à terra, comem com o
herói, mas voltam logo. No pólo mais forte está o sogro que não vem à terra e, mais ainda,
ameaça devorá-lo.
Momentaneamente, deixemos em suspenso as observações feitas a partir deste mito,
para trazer à cena outras versões provenientes da mesma sociedade e de sociedades
vizinhas, tentando, simultaneamente, lançá-lo contra o escopo mais geral das Mitológicas.
II. A terra redonda da mitologia
Uma outra versão deste mito foi colhida por Simpson no início da década de 40
entre os Pemon e é, de maneira geral, bastante semelhante àquela narrada por Koch-
Grünberg. Nela, o motivo inicial da guerra entre dois grupos desaparece e, em seu lugar, se
desenvolve uma trama onde, a partir de uma disputa entre cunhados, o herói se obrigado
a fugir e acaba, como no primeiro mito, vivendo sozinho.
MII Pemon: A visita ao céu
Maichak viajou com os cunhados. Alguém precisava fazer as prensas e as
peneiras para que as mulheres preparassem a mandioca enquanto os outros iam
caçar. Maichak se ofereceu, embora não soubesse como fazê-lo. Os cunhados
foram caçar e Maichak acabou não fazendo os utensílios. Os cunhados voltaram
com a caça e ficaram furiosos com ele. Amarraram as mãos e os pés de Maichak,
penduraram-no e mataram-no. Mas Maichak levantou-se e viveu novamente.
Todos resolveram voltar para casa.
Maichak disse aos cunhados que fossem na frente porque ele e a mulher iriam
caçar pecaris. Ele então resolveu se vingar dos cunhados e matou a mulher.
Maichak colocou seu corpo junto à carne dos pecaris que havia caçado e levou
tudo para a casa dos pais de sua esposa.
Enquanto Maichak foi se banhar, a mãe da esposa descobriu o corpo de sua
filha. Os cunhados correram atrás de Maichak para matá-lo. Maichak fugiu e era
sempre avisado pelos pássaros quando os cunhados estavam se aproximando. Ele
pegou um barco e remou por dias até a sua cabeceira. Parou na frente de uma
casa, plantou uma roça e passou a viver ali sozinho. Piaima, um homem-animal
que vive nas montanhas e nas florestas e que pode ser visto apenas por xamãs,
ensinou-lhe a fazer todos os utensílios. Então Maichak aprendeu a tecer as fibras
e fazer todos os tipos de trabalhos masculinos.
Ele vivia bem, mas sentia-se muito sozinho. Resolveu então capturar um
urubu-rei. Matou um tapir, lambuzou-se de uma graxa rançosa e, quando o
animal estava pútrido, deitou-se perto dele fingindo estar morto. Os urubus
vieram para comê-los. Maichak agarrou um deles e levou-o para casa. (Simpson
apud Thomas, 1982).
A partir desse ponto e em linhas gerais, a história se segue como em MI. Nesse
episódio inicial de MII, o herói, castigado e morto por seus cunhados, ressuscita, torna-se
algoz de seus afins, matando e oferecendo como comida a própria esposa, e acaba sendo
perseguido por eles. Como veremos, todo o mito apresenta uma série de possibilidades
lógicas envolvendo as relações de Maichak com seus afins, sempre articuladas pelo
esquema da predação e do canibalismo.
72
1. Origem dos porcos-do-mato
Aparentemente, o episódio nos remete aos mitos de origem dos porcos-do-mato
agrupados por Lévi-Strauss nas Mitológicas
73
.
Este conjunto de mitos traz à cena um
conflito entre cunhados que ocorre por causa dos maus tratos que um irmão de mulheres é
vítima por parte dos maridos de suas irmãs (que lhe negam alimento, dão pouco ou
insolentemente). Porque estes se comportam de maneira a-social, mostrando-se
“desumanos”, são transformados pelo demiurgo em porcos-do-mato. Em MII, o que se
passa é também um conflito entre cunhados que se desencadeia porque o marido da irmã,
Maichak, não faz os utensílios que lhe cabia fazer para alimentar os irmãos dela. Mais
ainda, quando o herói então resolve caçar, mata a esposa e oferece aos cunhados como
alimento a carne da própria irmã. Ou seja, ele também não provê convenientemente seus
cunhados.
72
Depois deste primeiro episódio, a “visita ao céu”, propriamente dita, transcorre de maneira muito
semelhante à de MI. Em seguida, o herói volta à terra, encontra duas irmãs e, com uma delas, passa por uma
situação incestuosa. Depois, ele volta para casa e é bem recebido por todos. Essa versão do mito narra
condenado a selar laços com seres cuja natureza lhe parece irredutível à sua” (Lévi-Strauss
1964: 124). De fato, em MII, os doadores de mulheres são humanos e o tomador, Maichak,
embora não se transforme em porco-do-mato, tem uma natureza ambígua. O herói, depois
que ressuscita, tem, com a própria esposa, uma atitude canibal. Ele não a come, mas faz
dela comida para seus cunhados. Ou seja, tudo se passa como se, em MII, a transformação
do tomador de mulheres em porco-do-mato fosse substituída por sua transformação em
cunhado-canibal.
76
A partir dos mitos de origem dos porcos-do-mato, Lévi-Strauss diz que “a relação
de aliança é concebida sob a forma de uma oposição, natureza/cultura, mas sempre
adotando o ponto de vista dos doadores de mulheres” (Lévi-Strauss 1964: 121). A título de
hipótese, poderíamos sugerir que o episódio inicial de MII, explora uma possibilidade
lógica dos mitos de origem dos porcos-do-mato: adota o ponto de vista do tomador (e não
dos doadores) de mulher e, ao fazê-lo, transforma-o não em porco, mas em cunhado-
canibal. No metassistema proposto por Lévi-Strauss (1964: 107-136), os cunhados se
dividem em duas categorias: jaguar, quando a natureza tende para a cultura, e porco-do-
mato, quando a cultura degenera em natureza. Mas, tudo se passa como se essa própria
degeneração da cultura em natureza pudesse acontecer de dois modos: um natural (quando
o mito assume o ponto de vista dos doadores e o tomador transforma-se em porco-do-mato,
i.e., presa) e outro cultural (quando o mito assume o ponto de vista do tomador e
transforma-o em cunhado-canibal, i.e., predador).
76
Note-se que as duas versões do outro mito pemon que também narra um conflito entre cunhados
apresentam dois desfechos que contemplam as duas transformações possíveis do mau cunhado: pai dos
porcos-do-mato ou glutão canibal.
Todo esse jogo de oposições entre doadores e tomadores, bons e maus cunhados,
canibais e porcos-do-mato pode ser expresso no seguinte diagrama:
[1] MII: Origem dos porcos-do-mato
doadores tomadores
bons maus
canibais porcos-do-mato
Segundo Lévi-Strauss, “os tomadores de mulheres têm a qualidade de homens
apenas quando os doadores são espíritos” (1964: 121). Essa inversão de perspectivas
acontece no episódio subseqüente a visita ao céu, propriamente dita quando,
diferentemente da primeira parte do mito, os doadores não são humanos. Maichak, depois
de revelar sua natureza “desumana” de mau cunhado e assassino de sua própria esposa, se
civiliza (aprende com Piaima as confeccionar seus utensílios, faz sua roça e vive bem em
sua casa). Na visita ao céu, o herói, apesar de continuar a ser um tomador de mulher, adota
uma perspectiva humana (e não de porco-do-mato ou de cunhado-canibal). Mas, dessa vez,
ele é que sofre ameaças de virar comida de seus afins. Quando seus aliados, doadores,
passam a ter uma conotação de espíritos, o herói passa de cunhado-canibal a genro-
canibalizado.
2. Origem do fogo
Como em MI, o herói, Maichak, após ter se afastado dos parentes, encontra-se como
que sozinho no mundo. Ele então se deita junto à carne apodrecida de um animal morto por
ele (e não dos parentes mortos pelos inimigos), fazendo-se de isca para capturar um urubu
carniceiro – de fato, uma mulher – que lhe faça companhia.
O detalhe desta técnica de caça talvez nos passasse despercebido, se não
soubéssemos do lugar fundamental que ela ocupa em diversos outros mitos, sobretudo nos
mitos tupi de origem do fogo apresentados por Lévi-Strauss (1964: 169-73).
77
Estes mitos
narram a aquisição do fogo, que até então pertencia aos urubus, pelos homens. Em todas as
versões, os urubus são atraídos pela carne podre do próprio herói ou pela carne de caça
apodrecida com a qual ele se mistura. Quando as aves vêm para comê-lo, o herói rouba-lhes
o fogo. Lévi-Strauss sugere que este mito pode ser encontrado, de forma modificada, em
várias regiões, desde a Guiana até as regiões setentrionais da América do Norte (1964:
170). Mas, na visita ao céu, o tema do fogo é substituído pela captura de uma filha de
urubus que o herói engana fingindo ser uma carniça. Nestes mitos, o fogo e a mulher
possuem uma função mediadora entre dois termos: enquanto aquele se interpõe entre o céu
e à terra mantendo-os à boa distância, esta faz o mesmo entre dois afins de espécies
diferentes e que se definem por condutas alimentares opostas. O tema tupi da origem do
fogo, que aparece de modo implícito na visita ao céu, é, portanto, uma transformação, em
código cosmológico, da origem da aliança interespecífica, a dimensão espacial do
parentesco.
77
Nos mitos guianenses, freqüentemente, o fogo surge de uma mulher que o tinha guardado em suas vísceras
e usava-o escondido de todos. (cf. Koch-Grünberg 1916: 100; Civrieux, 1997 e, nas Mitológicas, M259
(Warrau), M266 (Macuxi), M272 (Taulipang), respectivamente em Lévi-Strauss 1966: 199-201, 205 e 228).
O motivo também faz recordar a caça às águias entre os Hidatsa
78
que foi descrita
com minúcia por Lévi-Strauss. Segundo ele, esse povo atribui um caráter sagrado a essa
atividade, pois ela teria sido ensinada aos homens pelos animais sobrenaturais. Os Hidatsa
caçam águias escondendo-se em covas e colocando, por cima, iscas (de carne crua). A
águia é por elas atraída e, quando a ave se aproxima, o caçador a agarra. Lévi-Strauss
aponta para o caráter paradoxal desta cnica: “o homem é a armadilha, mas para cumprir
esse papel deve descer a uma cova, isto é, assumir a posição do animal preso na armadilha,
ele é, ao mesmo tempo, caça e caçador” (1962b: 66). Ainda segundo o autor, no caso dos
Hidatsa, a importância ritual da caça às águias estaria ligada “à adoção de uma posição
singularmente baixa pelo caçador (no sentido próprio e também no figurado (...)), para
capturar uma presa cuja posição é a mais alta, objetivamente falando (a águia voa alto) e
também do ponto de vista mítico (em que a águia é colocada no topo da hierarquia das
aves)” (Ibid.: 67). A técnica implica uma redução deste afastamento máximo para uma
situação de plena contigüidade. Caçador e caça estão de tal modo unidos que pode haver
uma certa ambigüidade entre quem ocupa uma posição e quem ocupa outra.
79
Do mesmo modo, nos mitos guianenses da visita ao céu e nos mitos tupi da origem
do fogo, poder-se-ia dizer que a captura do fogo ou da filha do urubu-rei expressam
78
Os Hidatsa são um grupo indígena norte-americano (de língua sioux) que vivem na confluência dos rios
Missouri e Knife.
79
A situação faz lembrar um mito Warrau (M238), em que o herói é perseguido por um jaguar e eles correm
em torno de uma árvore. Segundo Lévi-Strauss, “suas respectivas posições, antes precisamente definidas,
tornam-se relativas, pois já não se sabe mais quem corre atrás de quem, quem é o caçador e quem é o caçado.
(...) Embora o sistema esteja ainda reduzido a dois termos, não é mais um sistema polar, tornou-se cíclico e
reversível” (1966: 162).
aproximações e afastamentos máximos entre os dois pólos da ação
80
. Uma relação que
conjuga elementos naturalmente disjuntos parece implicar uma possibilidade latente de se
reverter as posições entre predador e presa. O herói de MI e MII faz-se de caça para ser um
caçador e, depois, diante do sogro, vê-se ameaçado a tornar-se caça novamente.
81
Mais uma
vez, podemos exprimir essas oposições através de um diagrama.
[2] MII: Origem do fogo
alto baixo
armadilha cova
caçador caça
O episódio central da visita ao céu de MII, ainda que possua algumas variações
significativas, de modo geral, apresenta uma semelhança de detalhes com o mesmo
episódio de MI. Maichak leva para sua casa a filha do urubu-rei que se transforma em
mulher e passa a viver com o rapaz. Um dia, ela o leva para conhecer o sogro (nesta versão,
a seqüência dos cunhados-urubu desaparece). O velho impõe ao genro as tarefas secar o
lago, construir uma casa sobre a rocha e fazer-lhe um grande banco de pedra com duas
cabeças sob a ameaça de, em caso de fracasso, ser devorado. Maichak, com a ajuda de
80
Nos mitos da visita ao céu que aqui estamos tratando, não se trata de águias, mas de urubus. Não tenho
dados mais explícitos quanto ao lugar que ocupam estas aves, do ponto de vista cosmológico, entre os Pemon.
Mas, para os Waiwai, o mais alto domínio espacial, no longínquo lado da morte e da putrefação, seria o do
povo das aves de rapina – comedores de carniça que tiram a vida das carcaças pútridas (Howard, 1991).
81
Viveiros de Castro transcreve um comentário de Erikson, segundo o qual “o caçador é por excelência um
genro”, e comenta: “com efeito, pois, em caso contrário, o genro será a caça por excelência” (Viveiros de
Castro 2002: 177).
alguns animais, consegue realizar todas as tarefas e foge de volta para a terra. É então que
um novo episódio é acrescido.
3. Os irmãos incestuosos
O herói retorna à casa de sua família, mas, antes de se apresentar aos parentes, fica
escondido por três dias: tem medo de se mostrar por haver matado sua mulher. Ele suas
duas irmãs descendo o rio para se banharem, transforma-se em peixe e toca sua irmã mais
velha intimamente. A outra irmã consegue agarrá-lo com uma peneira e ameaça assá-lo e
comê-lo. Maichak transforma-se novamente em homem, revela que é irmão delas e volta à
aldeia, onde é bem recebido por todos. Ele ensina aos Pemon tudo o que aprendera em suas
viagens, torna-se famoso e outros Pemon vêm de longe também aprender com ele
82
.
O episódio guarda notáveis simetrias e inversões com a abertura do mito. No início,
Maichak é castigado pelos cunhados porque não faz as prensas e peneiras. No fim,
transformado em peixe, ele é capturado pela irmã precisamente com uma peneira. Para
fugir dos cunhados, o herói sobe um rio. Para seguir as irmãs, ele desce um rio. Em um
caso, o herói mata a mulher e coloca seu corpo junto à carne de caça. Em outro, o herói
transforma-se em peixe e toca intimamente sua irmã. Como se, nos dois casos, o herói
realizasse uma espécie de canibalismo figurado.
Esse último episódio da versão de Simpson da visita ao céu é particularmente
significativo porque, dentre todas as transformações até aqui consideradas, ele é o único
82
Os episódios que abrem e fecham MI e MII são, aparentemente, homólogos. Ainda que em MI, eles sejam
bastante reduzidos, na abertura deste acontece uma guerra entre inimigos enquanto que a abertura de MII
envolve uma briga entre cunhados. No desfecho de MI e MII, o herói reencontra seus parentes. No primeiro
ele traz e distribui o milho, no segundo, o conhecimento de “como fazer as coisas”.
que põe em cena uma relação entre consangüíneos. Contudo, a relação possui uma
ambigüidade: as irmãs são tratadas como se fossem afins. O par incestuoso irmão/irmã
evoca outro grande tema mítico tratado por Lévi-Strauss, sobretudo em História de Lince
(1991), a saber, o dos gêmeos de mesmo sexo. Pode-se ver a análise que faz o autor sobre
este tema como se ela expressasse uma meta-teoria da diferença feita a partir da mitologia
ameríndia. Sem podermos desenvolver aqui este tema, lembro apenas que os gêmeos
ameríndios o sempre díspares e, com efeito, Lévi-Strauss os caracteriza como se
estivessem em um ‘desequilíbrio perpétuo’
83
. Na análise lévi-straussiana, tudo se passa
como se os gêmeos de mesmo sexo encarnassem o mais alto grau de semelhança entre dois
termos de uma relação que, no entanto, não deixam nunca de ser desiguais. Em clave
sociológica, pode-se dizer que os gêmeos míticos expressam o fato de que qualquer relação
de consangüinidade é, potencialmente, uma relação de afinidade.
O reencontro de Maichak com suas irmãs, no episódio final de MII, parece
justamente afirmar essa potencialidade da afinidade. Mas o mito tem o cuidado de fazer
com que o herói se encontre não com uma irmã, mas com duas, estabelecendo uma nova
diferenciação: ele toca uma irmã intimamente (ela é uma esposa) enquanto a outra ameaça
devorá-lo (ela é uma cunhada). Se dispusermos em um diagrama os elementos do mito a
partir de um critério de oposição entre predadores e presas (tal qual o fizemos nos
diagramas acima), teremos:
83
Makunaíma e Jigué (ou Piá) são dois gêmeos que aparecem em diversos mitos guianenses (cf. p. ex. Koch-
Grünberg 1916: 59-76 e Roth 1915: 130-33). Entre os Ye’cuana, estes ‘mesmos’ personagens chamam-se
Shikiemona e Iureke (Civrieux, 1997).
[3] MII: Os irmãos incestuosos
afins consangüíneos
irmão irmã
cunhada esposa
No mito, a definição de alguém como cunhada ou esposa, caçador ou caça, canibal
ou porco-do-mato não está dada de antemão. É na relação entre dois termos que cada um se
constitui. No primeiro episódio, o herói, mau cunhado, pode se tornar canibal ou porco-do-
mato, uma alternativa que se configura quando outras versões são levadas em
consideração. No segundo, a alternância é temporal: o herói primeiro faz-se de caça para
depois se tornar caçador (da filha do urubu-rei) e volta a ser caça e, novamente, caçador (do
sogro)
84
. Na terceira parte, as irmãs do herói encarnam, simultaneamente, as duas posições
possíveis de afinidade. Tudo se passa como se cada personagem do mito guardasse dentro
de si uma dupla valência de predador e de presa e que, dependendo das relações
contextuais, um valor se sobrepusesse ao outro, mas sem eliminar aquele que foi eclipsado.
A outra parte permanece latente como uma virtualidade que pode se atualizar de acordo
com as relações empreendidas, relações essas que têm sempre a forma da predação e do
canibalismo. O movimento do mito é, portanto, de uma inesgotável diferenciação interna.
84
O raciocínio aqui é esquemático. De fato, o herói não chega a tornar-se caçador de seu sogro. Nas duas
versões ele apenas o assusta com o banco que anda. Essa observação é importante porque parece-nos que nem
todas as relações entre duas posições são reversíveis.
Cada gesto canibal é um impulso para uma metamorfose que, no entanto, nunca se
completa
85
.
III. Predação
Na versão de Simpson, apenas ficamos sabendo que Maichak, quando volta à terra, ensina
aos Pemon tudo aquilo que havia aprendido em suas viagens. Sem que o mito explicite,
pode-se imaginar que o cultivo das plantas é um desses ensinamentos, mas eles parecem
estar mais diretamente vinculados à arte da cestaria que, no início do mito, o herói não
dominava e, por isso, é castigado. Lembremos que, quando Maichak foge de seus
cunhados, ele encontra Piaima que lhe ensina a tecer todas as fibras e fazer todos os tipos
de trabalhos masculinos. Talvez pudéssemos então postular que, nestes mitos, as plantas
cultivadas e a cestaria são termos permutáveis
88
. Mas, de qualquer o modo, em ambos é a
própria estrutura do mito e os elementos de que ele se utiliza que sugerem sua inserção
nesse conjunto mítico de ampla difusão nas duas Américas.
As versões dos mitos de origem das plantas cultivadas possuem variações
significativas, mas, de modo geral, elas contêm um episódio em que um homem que está
em alguma condição de solidão (seja porque é viúvo ou porque é feio e desprezado por
todos ou, simplesmente, porque é solteiro) apaixona-se por uma mulher-estrela. Eles se
casam e ela ensina os homens a cultivar as plantas, pois, até então, as pessoas alimentavam-
se de madeira podre. Em algumas versões, ela se transforma em uma sarigüéia (às vezes,
um ratinho) que mostra aos homens uma árvore carregada de espigas de milho. Em outras,
um sarigüê é morto e comido por pessoas que, ao fazerem-no, perdem a juventude. Mas,
em um caso ou noutro, um animal caracterizado pelo mal-cheiro e pela podridão introduz, a
um tempo, as plantas cultivadas e a mortalidade. Segundo Lévi-Strauss, esses mitos
possível resposta remete ao fato de que, nos mitos ameríndios, a ‘origem’ diz respeito antes ao roubo, à troca
e à circulação que à criação ex nihilo.
88
Com efeito, Lévi-Strauss menciona um mito apinayé (M87a) em que a esposa-estrela não apenas traz aos
homens as plantas cultivadas como também lhes ensina a cestaria (1964: 199).
afirmam que a velhice (ou a morte) se impõe à humanidade como se fosse o preço a pagar
pelas plantas cultivadas (1964: 203). Esse mesmo caráter ambígüo da estrela-sarigüéia
poderia ser atribuído à esposa-urubu deste grupo de mitos da “visita ao céu” (cf. vi-
Strauss, 1964: 370).
89
A origem da vida breve é evocada em “a visita ao céu” na medida em que ela é um
corolário dos mitos de origem das plantas cultivadas. O tema, entretanto, permanece
latente. A favor da pregnância dessa virtualidade está o fato de que o herói, na primeira
parte de MII, é claramente imortal (seus cunhados o matam, mas ele ressuscita) e, em MI,
sua ‘imortalidade’, digamos assim, é apenas uma sugestão (o herói não morre, embora
todos os outros parentes tenham morrido).
90
Essa é, ao menos, a situação inicial. Ele então
deseja uma mulher e a toma dos urubus, como se ouvisse o “doce chamado da podridão”,
tema que, segundo Lévi-Strauss, em diversos mitos, está associado ao encurtamento da vida
humana. Pode-se supor, então, que o herói torna-se mortal a partir daí.
Mas, além disso, que se lembrar que uma outra série mítica muito comum na
Guiana faz com que a origem das plantas cultivadas esteja associada ao tema da árvore dos
alimentos
91
. Uma das versões guianesas onde este tema aparece é, justamente, um mito de
89
Apesar das semelhanças, nos mitos de origem das plantas cultivadas, o tema do sogro antropófago
desaparece. Contudo, em uma versão xerente apresentada por Lévi-Strauss (M93), Estrela desce à terra para
se casar com um homem que havia se apaixonado por ela. O mito não menciona a revelação das plantas
cultivadas, mas faz com que Estrela leve ao céu seu marido. Lá, “o rapaz só carne humana defumada ou
assada; a água em que se banha está cheia de cadáveres mutilados e carcaças estripadas” (1964: 201).
90
Segundo Lévi-Strauss, o grupo de mitos relativos à vida breve encara-a sob dois aspectos: um prospectivo,
o outro retrospectivo. A imortalidade pode ser alcançada evitando que os homens morram ou ressuscitando os
mortos (1964: 193). As duas versões do mito pemon parecem apresentar precisamente esta alternativa.
91
Essa árvore, antigamente, era conhecida apenas pelo tapir ou pela cutia. Os homens a descobriram e
resolveram derrubá-la. Dela, jorrou uma água que se transformou em um dilúvio e destruiu a humanidade (cf.
Lévi-Strauss 1964: 219; Koch-Grünberg, 1916: 59-64; Roth, 1915: 148-49).
origem da vida breve. Essa versão foi narrada por Brett e, nela, uma oposição entre o
chamado da pedra e o chamado da água. Se os homens tivessem escutado o primeiro,
viveriam tanto quanto a rocha. Mas, ao dar ouvidos aos espíritos, liberaram as águas (apud
Lévi-Strauss 1964: 219). De fato, segundo Lévi-Strauss, o tema da vida breve está
associado ora à origem das plantas cultivadas, ora à origem do fogo. No primeiro caso, o
surgimento da vida civilizada seria concebido mais como cultura (conquista dos bens
culturais); no segundo, mais como sociedade (multiplicação dos povos, diversificação das
línguas e costumes). Referindo-se ao tema da árvore dos alimentos e do grande dilúvio,
Lévi-Strauss diz que, da Guiana ao Chaco, a origem da vida breve estaria ligada à origem
da água e à (destruição da) sociedade (1964: 222).
2. A anti-origem das plantas cultivadas e a imortalidade
Como procuramos demonstrar, na Guiana, o tema da mortalidade também se
encontra associado à origem das plantas cultivadas. Uma outra versão de “a visita ao céu”,
proveniente dos Trio, reforça ainda mais essa associação. Ela inverte em vários pontos as
versões que foram narradas por Koch-Grünberg e Simpson, mas acaba por expressar a
mesma mensagem: adquirir de outrem os bens culturais acarreta o fim da imortalidade. Este
mito foi comentado por Rivière em Marriage among the Trio (1969), no prefácio à edição
brasileira de Individual and Society in Guiana (2001b) e em um artigo recente (2001a).
MIII Trio: Përëpërëwa
Përëpërëwa vivia sozinho em um pequeno bosque de bambu. Sua comida era apenas as
folhas do bambu. Um dia ele foi pescar com um anzol feito de garra de águia. Ele
pegava casca de batata, inhame e abacaxi. Finalmente ele pegou um peixe. O peixe era
uma mulher, Waraku, que havia sido enviada por seu pai.
Ela pediu ao herói que lhe mostrasse sua aldeia, seus parentes e sua comida.
Përëpërëwa disse que não tinha aldeia, não tinha parentes e que a comida era apenas
aquelas folhagens. Waraku, então, foi buscar comida. Pulou na água e, logo depois,
reapareceu trazendo banana, abacaxi, batata doce, inhame, todos os tipos de comida. O
jovem não queria comer, não estava acostumado. Ela disse que o próprio pai havia lhe
dito que Përëpërëwa deveria tornar-se seu protetor e o protetor de seu pai. Përëpërëwa
riu e disse que não queria uma esposa.
Waraku disse ao herói que fizesse uma aldeia e construísse uma casa, que seu pai
havia dito que isto era a coisa própria a se fazer. Mas, ela acabou fazendo tudo sozinha.
Quando acabou, Waraku foi buscar uma rede, um banco, mais comida, fogo e barro para
fazer potes. Përëpërëwa ficou quieto apenas se perguntando o que estava acontecendo.
Waraku disse a Përëpërëwa que cortasse o campo, que era assim que o pai fazia nas
estações secas. Mas ela mesma fez tudo. Përëpërëwa não fazia nada.
Depois de um tempo, Përëpërëwa começou a comer pão de mandioca e banana (mas
não todos os alimentos). Eles foram, então, buscar mais comida com o pai de Waraku.
Ela disse a Përëpërëwa que se firmasse na canoa do pai, que o tivesse medo dos olhos
dele e que aceitasse rapidamente as coisas que ele lhe desse. Então, no meio do rio,
apareceu Ariwimë (jacaré). Ariwimë foi em direção ao genro, trazendo mandioca,
banana, tudo. Quando Përëpërëwa viu os olhos de Ariwimë, ele fugiu porque tinha medo
que o velho o agarrasse. Ariwimë levou embora as melhores plantas que davam muito
abacaxi, mandioca, banana.
Waraku, então, ficou grávida e deu a luz a um filho. Um dia, um espírito canibal de
voz esganiçada chamado Kaikë comeu Waraku e se filho. Quando Përëpërëwa chegou
em casa, falou com a mulher, mas, pela voz, desconfiou que não fosse ela. rëpërëwa
matou o menino e cozinhou seu corpo num pote de pimenta. Quando Kaikë voltou,
Përëpërëwa ofereceu-lhe a comida. Kaikë, sem saber, comeu o próprio filho e o.caldo,
que estava muito apimentado, queimou-lhe por dentro. Enquanto ela estava morrendo,
Përëpërëwa feriu-a algumas vezes para ter certeza que ela não se levantaria de novo.
Então, Përëpërëwa estava de novo pobre, como no início, sem mulher. Um dia ele foi
caçar e deixou uma pilha de batatas sem descascar em casa, quando voltou encontrou-as
descascadas e, no dia seguinte, prontas para comer. Përëpërëwa se escondeu para
descobrir quem estava fazendo aquelas coisas: era uma mulher-urubu vinda do céu.
Përëpërëwa agarrou-a, pegou suas roupas e atirou-as no fogo. Então, ela disse que iria
deixá-lo mais uma vez.Ela disse que se ele a tivesse recebido bem, eles tornariam a viver
juntos, teriam filhos e netos, disse que o pai dela é que a havia mandado, que ele o
queria bem. Mas ela foi embora.
Përëpërëwa novamente estava pobre e sozinho. O pai de Waraku havia fechado os
rios e Përëpërëwa teve que procurar por água. Ariwimë, encontrou o genro e perguntou
onde estava sua filha. Përëpërëwa tentou explicar o que havia acontecido. O sogro disse
que tinha tentado apenas ajudá-lo, mas que agora tinha acabado. Então, Ariwimë despiu
Përëpërëwa, amarrou-o e arrastou-o pela terra e pela água, mesmo nos rios profundos.
Seu único objetivo era matar seu antigo genro, mas Përëpërëwa não podia morrer.
Finalmente, Ariwimë levou Përëpërëwa para o céu, embora quisesse vingar sua filha.
(Koelewijn, 1987: 15-21).
As diferenças entre a história de Përëpërëwa e as versões da visita ao céu acima
comentadas revelam notáveis simetrias. Em todos os casos, a situação inicial é a mesma: o
herói está sozinho. Nas versões pemon, ele é destituído da sociedade e dos bens culturais
pela morte de seus parentes ou por fugir dos parentes de uma esposa terrestre. Ao começar
a reconstituir seu mundo social, Maitxaúle (ou Maichak) deseja uma mulher e captura a
filha do urubu-rei. Na versão trio, por sua vez, o herói vive em estado de natureza, não
possui parentes nem qualquer bem cultural e, sobretudo, não deseja uma esposa.
Acidentalmente, ele pesca Waraku, uma mulher-peixe, que não vem do céu, mas do mundo
aquático subterrâneo. Përëpërëwa não vai ao céu ter com o sogro, mas, inversamente, é o
sogro que sobe à terra para dar ao genro uma série de plantas cultivadas. O sogro-jacaré
(que em algumas versões, segundo Koelewijn e Rivière, é uma anaconda), do ponto de
vista espacial (baixo/alto) e das atitudes (benfeitor/canibal), inverte o sogro-urubu
92
. O
herói também tem que cumprir uma série de tarefas, mas, no mito trio, é Waraku, a esposa,
quem as realiza. Përëpërëwa, finalmente, não sofre ameaça alguma por parte de seu sogro,
mas sua mulher é devorada por um espírito-canibal. Este, entretanto, usa a pele de sua
vítima para se transvestir nela, mas é descoberto e morto por Përëpërëwa.
Como se não bastassem todas essas inversões sistemáticas, o mito reafirma seu
vínculo com “a visita ao céu” fazendo com que a esposa do herói ressurja como uma
mulher-urubu numa seqüência similar à das versões pemon: ela prepara os alimentos do
herói sem se deixar notar, mas é, enfim, descoberta por ele. Mas o episódio parece cravar-
se no mito apenas para tornar mais explícita essa relação, logo em seguida, a esposa-urubu
abandona o herói. No fim, o sogro-jacaré tenta matar o genro arrastando-o por todos os
lugares, mas Përëpërëwa é imortal.
92
Um detalhe importante: o céu trio é dividido em quatro níveis, cada um associado a diferentes animais. O
terceiro nível é o domínio, não apenas do urubu-rei, mas do jacaré gigante, em sua forma arco-íris de Mestre
das chuvas. Depois, só há o nível mais alto, no distante lado da lua (cf. Koelewijn, 1987: 11-2).
Do ponto de vista etiológico, o mito também articula às avessas uma série de temas
importantes que foram tratados por Lévi-Strauss nas Mitol9(t)-4.5658(s)-1.90243( )-58.6073(q)-4.05ass3880 1 1.67 T0.999598 055.8224-0.23858.-38.0334(o)8.96212(E)-3.48087lm(n)-4.05851(a3( )-58.a)-6.46699(i)0.253657(a)1.66258(u)-4.05851(o)8.96212(u)-4.05851(o)-4.05851(i)0.253657 mtipas-4.05851(a)-3.48087te oqes qqhra tnssoqenmqfimq( )-32.89(t)-4253(q)2(e)(s)]TJ249.1 -63.7507(n)264.345(pa)-3.4808758(s)-1.90ute1.66258( )-38.0334( )-32.89(u)-4253(q)2(u)-4.05851(l)]TJ245.07oov(s-38.0334(e)6.19945((s-38.0334( )-32.89(u)-0 Td67.19593.47836( )-3253657(a-1.32354(a)1.66258(u)-4.05851v))1.08495(és)-1.90368( )-32.89(u)-4253(q)2(e)-3.48087( )-32.89(t)-4253(q)2((m)6.48206(a)-3.48087( )-32.89(s)-1264.345(( )-32.89(sl))5.39711(o)1.66258( )-38.0334(t)0.253657ças)-32.89(s)-1264.345(()-3.49927(e1.66258( )-38.0334a)-3.48087b))1.08495(és)4.060734a oërtëor-38.0334( )-32.89(m)6.4.253657(a)1.66258(m)-38.0334csss-63.7507(r)-1.32354(t)-4.86507(t)27.74687 t9.592 -2656.3639[(i)0.91624(f)-3.48087lur(t)2238.58(u)-38.0334niss-1.32354(a)-3.48087el(s-38.0334l)1.66258((t)2238.58(de)1.66258(s))]TJ249.(t)21.25534ahe aq fdeossu su oléi( )-32.89(m)6.17.45087q
essas origens se ajuntam à das plantas cultivadas e da vida breve. De maneira mais ou
menos explícita, o mito da visita ao céu está associado a todos esses conjuntos míticos
95
.
Com efeito, Lévi-Strauss conclui que, em toda a extensão do continente americano e
num certo plano de abstração, não haveria mais que um único mito. Em escala cósmica, ele
sugere que esse mito narra um conflito de aliados entre um povo do céu e um povo da terra.
Na América do Sul, esse conflito poderia dar-se de duas maneiras: um primeiro ciclo
operaria de baixo para cima, onde o herói se eleva para obter o fogo, e o segundo ciclo, de
cima para baixo, sendo a descida de uma estrela à terra para casar com um mortal
responsável pela introdução das plantas cultivadas (1971: 502-ss). Ora, a “visita ao céu”
realiza esses dois movimentos articulando, a um tempo, a origem do fogo e das plantas
cultivadas e, portanto, a aliança e a mortalidade
96
, a dimensão espacial e temporal do
parentesco. O mito trio de Përëpërëwa efetua, ao contrário, a mesma demonstração, o que
nos faz lembrar a constatação de alguns autores segundo a qual, “a morte e a aliança são
condições conexas de possibilidade do socius, como atestam aquelas utopias ameríndias
que, negando uma, negam conjunta e necessariamente a outra” (Viveiros de Castro, 2002:
171).
95
Apenas não observamos as transformações que talvez nos levassem aos mitos de origem do tabaco. Estas
parece que demandariam mais operações do que aquelas que poderíamos tratar aqui.
96
De fato, na “visita ao céu”, enquanto a origem do fogo é apenas aludida, o problema da aliança é posto em
relevo. Ao mesmo tempo, enquanto a origem da mortalidade é algo que pode-se apenas entrever, a origem das
plantas cultivadas é, explicitamente, a função etiológica do mito.
IV. O sogro-canibal: variações
De maneira implícita ou explícita, a figura do sogro-canibal aparece em diversos
mitos tanto na área da Guiana, quanto em outras regiões. Um mito proveniente da costa
canadense do Pacífico, analisado por Lévi-Strauss, pode ser aqui evocado: trata-se da A
Gesta de Asdiwal. Nele, vemos mais uma vez um sogro (o Sol) que impõe a seu genro
(Asdiwal) uma série de provas difíceis que ele vence graças a seus objetos mágicos e à
intervenção de seu pai. O sogro aqui não é canibal, ao contrário, ele ressuscita Asdiwal
(Lévi-Strauss 1958: 156)
97
. Koch-Grünberg também menciona um mito dos Pehuenche
(Araucano), onde o velho Tatrapaí aceita dar suas duas filhas a seus dois sobrinhos caso
eles executem uma série de tarefas. Com a ajuda de forças sobrenaturais (o trovão) eles a
realizam e acabam matando o velho (1916: 201).
98
Um outro mito citado pelo autor é uma
variação Tembé da versão Taulipang que lhe é muito próxima (Idem: 200; Wagley &
Galvão, 1961: 154-5).
Na Guiana, também poderíamos mencionar uma série de exemplos. Em um mito
arawak narrado por Roth, a mulher do herói (Makanauro) é que lhe as três tarefas.
depois que ele consegue realizá-las, é que eles sobem ao céu e vão ter com o sogro. Este,
97
Em diversos mitos, o sogro é figurado pelo sol e não por um urubu. Essa transformação é interessante, pois
efetua uma inversão entre o podre e o queimado, estados máximos de disjunção ou conjunção do céu e da
terra. Em alguns casos, essa inversão se faz acompanhar por outra: o sogro, em vez de ser canibal, ressuscita
ou salva seu genro. Mas, na verdade, cada um deles pode possuir internamente essa dupla valência. Os urubus
podem ser salvadores e canibais (como no mito bororo do desaninhador de pássaros). Lévi-Strauss, ao
analisar a viagem de piroga (que, segundo o próprio autor, poderia ser vista como uma projeção no eixo
horizontal de uma estrutura vertical de mediação como a da visita ao céu), também atribui ao Sol duas
maneiras de ser: pai benfeitor ou monstro canibal (1967: 160).
98
Este mito, nas Mitológicas, corresponde a M413 (Lévi-Strauss, 1967: 127-8) e inverte o mito taulipang
M149 (Idem, 1964: 304-5, Koch-Grünberg, 1916: 76-7). No primeiro, o sogro é avaro, no segundo, é um
sogro [sol] generoso que ao herói uma de suas filhas em casamento, mas este a trai com uma filha dos
urubus.
por sua vez, submete o herói a novas provas (1915: 343). Um outro mito que o mesmo
autor apresenta vem dos Warrau e o Sol (Yar) é o genro que deve prestar serviços ao sogro
(1915: 130)
99
. Os 9
tal como a descreve Joanna Overing (1984, 1985a, 1985b). Embora não disponhamos dos
próprios mitos onde figura o sogro antropófago, essa mitologia parece guardar muitas
coincidências com aquilo que foi descrito até aqui
101
. Nela, o criador e dono original da
maior parte da cultura, Kuemoi, era um canibal de duas cabeças, uma das quais comia carne
cozida enquanto a outra comia carne crua. Segundo a autora, Kuemoi é sempre descrito
como um terrível homem mau cuja família é formada pelo crocodilo, o jacaré, os grandes
peixes, o gambá e o urubu. É também o avô do sono e o mestre da escuridão. Os traços
“diabólicos” desse personagem e Overing, ao descrevê-los, está particularmente
interessada em investigar os sistemas morais subjacentes ao mito (1985a: 245) estão
diretamente relacionados com os pormenores sobre a criação do mundo, segundo a
mitologia piaroa, que tentarei resumir abaixo.
Antes que os mundos terrestre e celeste fossem constituídos, todas as forças do
universo estavam contidas no mundo subterâneo, casa do ser mítico tapir/anaconda, Ofo
Da’ae. Este criou os dois demiurgos, Kuemoi (anaconda) e Wahari (tapir), cujos poderes
foram responsáveis pela criação de vários aspectos do mundo terrestre
102
. Wahari, o mestre
101
Segundo Lévi-Strauss, todas as versões de um mito devem ser consideradas ao mesmo título (1958: 250).
Mesmo as interpretações de um mito, como é o caso dos comentários feitos por Overing, deveriam ser
tomadas como se fossem versões dele. Mas, de fato, embora haja muitos pontos em comum entre a mitologia
dos Piaroa, dos Trio e dos Pemon, pareceu-nos muito mais difícil articular o material piaroa com os mitos
provenientes dos outros dois grupos. Não sabemos, todavia, se se trata de uma dificuldade intrínseca às
transformações entre os diferentes conjuntos míticos ou se ela se deve ao fato de que nosso acesso aos mitos
piaroa passam pela mediação interpretativa feita por Overing. A favor da primeira hipótese, chamo a atenção
para o fato de que as mitologias pemon e trio (ao menos tomando-as a partir das coletâneas que aqui nos
utilizamos) não parecem possuir um caráter tão marcadamente “cosmogônico” como entre os Piaroa. Nesse
sentido, mais próximos destes estariam os Ye’cuana, segundo o ciclo mítico apresentado por Civrieux (1987).
102
Wahari e Kuemoi, ambos criados por Ofo Da’ae, são, a princípio, irmãos, mas acabam se tornando genro e
sogro. Joanna Overing chama a atenção para esse caráter transformacional dos mitos, no que diz respeito às
categorias de classificação social. Segundo ela, “indeterminacy in the ordering of mythic relationships is
perhaps the hallmark of na Amerindian mythic past as a social system, where sisters become wives, fathers
become brothers, lovers become sons, fathers become father-in-law, husbands become fathers, and so on”
(1985b: 156).
da selva, criou a topografia da terra, suas montanhas, suas pedras, seu sistema de rios, suas
cachoeiras e seu céu com o sol e a lua. Ele também criou os Piaroa. Kuemoi, mestre das
águas, criou as plantas cultivadas, o curare, os artefatos e as capacidades para usá-los.
Segundo Overing, os dois demiurgos são fractalizações do primeiro genitor tapir/anaconda,
encarnações dos dois aspectos opostos de sua natureza. Em outras palavras, enquanto
Wahari foi o responsável pelos elementos naturais, Kuemoi foi o criador do conhecimento e
das capacidades culturais. As criações de Kuemoi, entretanto, são descritas como
‘venenosas’ e ‘selvagens’ e as de Wahari, como ‘neutras’ e ‘domesticadas’ (Overing,
1985a: 257-8).
Overing descreve Kuemoi como “o deus criador da cultura venenosa” (1985a).
Segundo a descrição da mitologia piaroa feita pela autora, o demiurgo não foi concebido
por meios naturais: cresceu de um alucinógeno poderoso e venenoso que seu pai
tapir/anaconda colocou dentro do útero de Isiri, a deusa do lago. Os poderes de Kuemoi
para criar todos os recursos culturais teriam sido dados a ele por drogas envenenadas.
Todos os meios através dos quais alguém pode adquirir e processar comida - a caça, a
pesca, as roças, a cozinha seriam aspectos da cultura piaroa envenenados pela força do
sol
103
. Wahari, por sua vez, chegou à terra sem o conhecimento para a aquisição e o
processamento da comida e sem o poder para criá-lo. Ele teria passado a maior parte do
tempo mítico roubando estes conhecimentos de Kuemoi e tentando transformá-los em um
conhecimento mais domesticado para que ele e os Piaroa pudessem dele se aproveitar. Mas,
103
Segundo Overing, para os Piaroa, é da luz do sol (ou do calor imoderado) que vêm os poderes maus:
“circles or rains of rust stained by the sun’s force fall from the sky and are filled with madness. Powerful
hunting poisons or charms can be taken from vulture down, sky rust, centre-of-the-sky down, all of which are
filled with the dangerous force of the sun down” (1985a: 254).
Wahari, ao roubar tais conhecimentos, muitas vezes era envenenado por eles e acabava
tornando-se mau, cometendo atos violentos. Ele passava a ter visões dos próprios
companheiros de casa em forma animal, comestível.
Kuemoi, portanto, foi o primeiro detentor dos conhecimentos culinários e, como ele
tivesse tais conhecimentos e estes conhecimentos fossem envenenados, isso fez com que
seus desejos se tornassem selvagens. Por isso ele se tornou um caçador canibal e, para
capturar jovens habitantes da floresta em armadilhas para comê-los, Kuemoi atraía-lhes
com sua filha, Kwaewáenyamu (milho), mas, dentro do útero dela havia piranhas e peixes
envenados.
104
Wahari capturou Kwaewáenyamu, conseguiu limpar o ventre da jovem,
casou-se com ela e tornou-se genro de Kuemoi. Foi através deste casamento, entre
domínios distintos do universo (a terra e a água), que as relações sociais passaram a existir.
Mas essa relação, não sendo recíproca (Kuemoi não recebe nada pela filha e pelos presentes
que deu), seria, segundo Overing, altamente precária. Por isso, Kuemoi teria passado a
maior parte do tempo mítico tentando comer seu genro e outras criaturas da floresta que
eram da família de Wahari (1984: 146).
O mesmo tipo de oposição assimétrica que observamos nas outras versões do mito
parece existir entre estes dois personagens. Kuemoi é sempre um terrível predador que
persegue sua presa, seu genro, Wahari. Mas este, por sua vez, pode também, contaminado
pelo veneno de Kuemoi, tornar-se predador.
104
Note-se que em um outro mito guianês, um sogro dá a seu genro uma mulher de madeira sem a abertura da
vagina. Os dois tipos de mulheres caracterizam-se por não cumprirem bem sua função de mediadoras da
aliança.
Os mitos pemon, trio e piaroa parecem situar a origem da cultura em uma relação de
afinidade entre um sogro animal (urubu, jacaré ou anaconda) e um genro humano. Kasána-
pódole, Ariwimë e Kuemoi são todos detentores dos bens culturais, originários de níveis
superiores ou inferiores à superfície terrestre onde vivem os homens. Os personagens
piaroa e pemon são ambos canibais de duas cabeças que ameaçam devorar seus genros,
cumpram eles as tarefas dadas pelo sogro (como Maitxaúle) ou não (como Wahari).
105
entre o mito Trio inverte os valores da ação e extrai as conseqüências dessa inversão: o
sogro é um benfeitor, mas o genro nega os benefícios da cultura permanecendo assim
imortal.
Esse jogo de simetrias e inversões corresponde, segundo Lévi-Strauss, a uma
necessidade própria ao pensamento mítico que, nem bem elabora um tema, procura
explorar sua estrutura lógica para construir inteiro o grupo de transformações. Por sua vez,
essas relações de transformação, diz o autor, “respondem à dupla necessidade de conciliar e
opor o que se conhece do outro e o que se afigura como próprio” (1971: 278). A questão de
se saber o que faz com que os Piaroa, os Trio ou os Pemon assumam uma versão e não
outra é algo que não poderíamos aqui querer determinar. Mas, no nível de abstração que
estamos considerando estes mitos e as imagens da socialidade que neles estão implicadas,
tanto faz que tomemos um ou outro como ponto de partida. O que importa é tentar
encontrar a estrutura que se constitui precisamente nas relações de transformação entre eles
e com outros conjuntos de mitos mais distantes.
105
As duas cabeças do sogro-canibal nos faz imaginar que o personagem é, ao mesmo tempo, o um e seu
outro, o que lembra aquela idéia de Clastres (1974: 187-ss), que aqui posso aludir, segundo a qual o Mal é
o Um e que o dois designa verdadeiramente os seres completos.
V. Outras margens da socialidade
Ao longo do capítulo, apresentamos alguns mitos Trio, Pemon e Piaroa onde
aparece, de modo direto ou transformado, um personagem típico da mitologia ameríndia: o
sogro-canibal. Nesses mitos, poderíamos dizer que sua imagem figura constantemente
como a expressão máxima da alteridade, o predador por excelência, a terceira margem que
confere dinamismo aos dualismos dos mitos. Os sogros-míticos possuem certos traços
comuns: geralmente, pertencem a patamares do mundo situados acima ou abaixo do mundo
dos homens e, muitas vezes, estão neles confinados. Sempre não-humanos, podem ser
urubus, guaribas, jacarés, anacondas ou mesmo o sol. Freqüentemente, estão associados a
dois estados extremos de disjunção ou conjunção: ora o queimado, ora a podridão.
Benfeitor ou canibal de duas cabeças, ele é uma virtualidade irredutível a qualquer
atualização.
106
É também o dono da cultura e os homens, para obtê-la, devem tornar-se
mortais e correr o risco da devoração.
Mas, o canibalismo não é apenas a conduta alimentar típica deste personagem com
relação aos homens. Ele está disseminado, como uma ameaça constante e implícita, por
todas as coisas e relações. Os mitos que aqui examinamos apresentam uma série de
possibilidades lógicas e sensíveis envolvendo as relações de afinidade, relações essas
sempre assimétricas e articuladas pelo esquema da predação. Os termos do mito se
constituem constantemente em relação a outros termos. Ou, melhor dizendo, os termos
podem ser interpretados “como resíduos das relações que os constituem, aquilo que surge e
106
Quanto a isso, há um detalhe sugestivo que aparece em algumas versões da “visita ao céu”: ninguém nunca
teria visto os rostos das duas cabeças do urubu-rei. E uma das tarefas impossíveis que o herói tem que realizar
é justamente esculpir um banco com as imagens das cabeças do sogro. O herói só consegue cumprir sua tarefa
com a ajuda de animais que, sorrateiramente, vêem as faces misteriosas do terrível canibal.
sobra quando estas se consumam e se consomem” (Viveiros de Castro 2001: 7). Nesse
regime de incessante metamorfose que caracteriza o que Viveiros de Castro chamou de
“fundo de socialidade virtual”, a questão de se saber quais blocos de afecções serão fundo
ou forma, parte ou todo, depende sempre do contexto, que, no caso do mito, pode
extrapolar a sua própria cadeia sintagmática. Aliás, o que é contexto em um plano, em
outro, pode bem constituir o texto de outro contexto. Lévi-Strauss já havia identificado essa
propriedade comum aos mitos caracterizando-a como um “desequilíbrio perpétuo”,
resultado da assimetria dos dualismos que os constitui.
O que vários autores têm sugerido para o contexto amazônico é que essa estrutura
fractal, que encontra plena expressão nos mitos, caracterizaria também a construção da
pessoa e, co-extensivamente, da própria socialidade. Haveria, portanto, uma continuidade
entre as relações interpessoais e intrapessoais, entre partes e todos, sendo o esquema da
predação e do canibalismo aquele a efetuar a passagem (cf. p. ex. Kelly 2001, Viveiros de
Castro 2002, Strathern 1994).
4
Conclusão
Para concluirmos este trabalho será preciso remontar às questões apresentadas na
introdução. Porque talvez esteja exposto de maneira mais clara o que foi o impulso que
nos fez percorrer o caminho até aqui. Mas, antes, gostaria de lembrar uma imagem usada
por Rivière no preâmbulo de um artigo recente. Nele, para caracterizar seu argumento, o
autor evoca aqueles rios que os geógrafos chamam de “dendríticos”. Estes, segundo ele, são
rios que correm para o interior das massas de terra, onde se perdem em ntanos. A partir
dessa imagem, e sobre as idéias desenvolvidas nesse artigo, Rivière diz, “espero [...] que
existam pontos de interesse ao longo de seu curso, e que ao menos sua nascente, se não sua
destinação, esteja bem definida” (Rivière 2001a: 31). Recupero aqui esta metáfora porque
penso não poder encontrar uma melhor forma para descrever o curso desta dissertação e
aquilo que podemos dela reter.
Nosso ponto de partida foi uma questão que muito desafia a antropologia
enquanto ciência comparativa: o problema de se saber o que deve ser comparado. Tínhamos
em mãos dois “objetos” totalmente heterogêneos: por um lado, várias etnografias da área da
Guiana e, por outro, um conjunto de mitos provenientes da mesma região. Ambos
pareciam-nos articular discursos particulares sobre o socius. Mas, então, como relacioná-
los? De antemão, pensávamos que nenhum dos dois termos poderia deter a primazia dessa
relação. Ou seja, embora as descrições etnográficas fossem mais facilmente identificáveis
aos ‘fatos’ que as histórias ‘absurdas’ narradas pelos mitos, era preciso desconsiderar essa
aparente vantagem das primeiras sobre as segundas. O primeiro ponto, portanto, foi recusar,
algo arbitrariamente, a diferença epistemológica entre os dois discursos.
107
Sendo assim, as
operações intelectuais (as comparações) implicadas em cada um deles é que seriam
diretamente comparáveis (cf. Viveiros de Castro 2004). Recusar a diferença não
significava, claro, supor que esses discursos fossem iguais. Mas, para que pudéssemos
seguir com nosso experimento, bastava que eles se assemelhassem enquanto procedimentos
analógicos e todo o resto poderia-deveria diferir (inclusive, ou talvez principalmente, os
objetivos destes procedimentos). A título de composição do artifício, tomamos uma relação
de parentesco que nos parecia epitomizar o sentido das relações sociais de maneira mais
ampla e que recebia tratamentos sugestivamente diversos nos dois contextos analisados. A
relação entre sogros e genros era descrita por uns em termos de “controle” e, por outros, em
temos de “canibalismo”. A questão de fundo era então a de estabelecer as “razões” dessas
diferenças.
Isso, ao menos, era o que pretendíamos fazer. Ao longo do trabalho, entretanto, a
questão se mostrou mais complexa do que havíamos previsto. Tratar os mitos como um
discurso antropológico ainda nos parece uma perspectiva fecunda e instigante, mas talvez
exija mais (ou outras) mediações do que aquelas que pudemos produzir. Desde o início
pensávamos que não gostaríamos de abordar os mitos pela superfície como se eles
estivessem a refletir mecanicamente a ‘realidade’ etnográfica. Tampouco queríamos tratá-
los como se constituíssem uma sintaxe que nada teria a dizer “sobre a ordem do mundo, a
natureza do real, a origem do homem ou o seu destino” (Lévi-Strauss 1971: 571). Entre
107
Aceitá-la também não deixaria de ser uma decisão arbitrária.
essas duas negativas, penso, corre um rio no fundo do qual os mitos poderiam ser vistos
como uma verdadeira teoria indígena do socius.
Mas, apesar das dificuldades intrínsecas à questão que nos colocamos, o contraste
entre controle e canibalismo pôde oferecer algumas pistas sobre os tipos de problemas
envolvidos nas duas “descrições da socialidade indígena”. Depois de passarmos pelas
descrições etnográficas de alguns povos indígenas da Guiana e por um emaranhado de
mitos das mais diversas regiões das duas Américas, podemos então tentar recolocar o
problema inicial de outro modo e ao menos esboçar uma maneira de olhar para os materiais
que aqui consideramos.
O problema, ele próprio, poderia ter sido traduzido de diversas outras maneiras. O
‘mesmo’ contraste está colocado, por exemplo, na relação entre dois dos principais estilos
nos estudos contemporâneos das sociedades amazônicas, tal como definidos por Viveiros
de Castro (2002: 333-ss). Uma dessas orientações é chamada por este autor de economia
política do controle e foi principalmente desenvolvida nos trabalhos de Terence Turner e
Peter Rivière. Este último, como vimos, propôs que o recurso crucialmente escasso na
Amazônia era o trabalho humano, o que seria responsável por uma ‘economia política de
pessoas’ fundada na distribuição e controle das mulheres. Na Guiana, esse controle (na
ausência de instituições supradomésticas) seria tipicamente um atributo de indivíduos: dos
pais sobre suas filhas e, através delas, sobre seus genros.
Outro desses estilos analíticos foi chamado por Viveiros de Castro de economia
simbólica da alteridade, que seria representada por vários etnólogos de inspiração
estruturalista, incluindo o próprio autor. A passagem abaixo traça, em linhas gerais, os
contornos que configuram essa vertente, que nos ofereceu elementos importantes para a
análise dos mitos apresentados.
Interessados nas inter-relações entre as sociologias e as cosmologias, estes pesquisadores
concentraram-se nos processos de troca simbólica (guerra e canibalismo, caça, xamanismo,
rituais funerários) que, ao atravessarem fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e
ontológicas, desempenham um papel constitutivo na definição das identidades coletivas.
Isso desembocou em uma crítica da noção de Sociedade como mônada fechada e auto-
subsistente, contraposta a mônadas análogas que lhe serviriam de espelho sociológico
[...], a uma Natureza com função de Outro transcendente [...] duas imagens conspícuas
na etnografia regional. Esta vertente explorou os significados ltiplos da categoria da
afinidade nas culturas amazônicas [...] sugerindo seu valor de operador sociocosmológico
central [...], e buscando determinar a tensão entre identidade e alteridade que estaria na base
dos regimes sociopolíticos amazônicos (2002: 336).
De maneira análoga, a oposição que nesta dissertação procuramos estabelecer
poderia nos remeter ainda aos desenvolvimentos de duas tradições distintas dentro do
campo mais amplo da antropologia social. Em uma leitura que faz Wagner (1974) da
“história” da disciplina, esses dois desenvolvimentos seriam o legado de Durkheim, através
dos desdobramentos que lhe deram Radcliffe-Brown e seus sucessores, de um lado, e
através Mauss e seus alunos (diretos ou indiretos), de outro. Aqueles, que foram geralmente
chamados de funcionalistas, estavam preocupados em identificar funções mais ou menos
centrais que fossem capazes de manter a sociedade unida. Segundo Wagner, essa
antropologia tornou-se uma ciência dos grupos de descendência e a constituição destes
passou a ser a questão fundamental para explicar as funções centrais da integração da
sociedade. De outro lado, o estruturalismo lévi-straussiano, herdeiro da apreensão mais
conceitualista de Mauss, não teria tanto se ocupado das “regularidades legais” e das
“harmonias integradas”, mas sim das oposições e contradições dentro da ordem social.
Wagner resume bem esse contraste no seguinte parágrafo:
A troca de dons, ou reciprocidade, é onde o estruturalismo começa. Ou melhor, é onde o
funcionalismo termina para os estruturalistas, porque a reciprocidade entre indivíduos e
entre grupos é a resposta estruturalista à questão funcionalista “o que integra a sociedade?”.
Assumindo a presença universal e o significado da reciprocidade, o estruturalismo tomou
como o seu maior problema aquele de como a sociedade e suas partes são conceitualizadas.
Então, isso inverteu completamente a orientação do funcionalismo que tomava como dado
essa conceitualização e focalizava sua atenção no problema da integração (Wagner 1974:
101).
À luz dessas observações, nossa questão talvez pudesse ser recolocada. O controle e
o canibalismo poderiam traduzir dois tipos de problemas diferentes: “o que integra a
sociedade?” e “como a sociedade e suas partes são conceitualizadas?”. No primeiro caso, as
unidades a serem integradas estariam dadas de antemão e restaria apenas determinar o que
faria delas partes da sociedade. No segundo caso, tratar-se-ia justamente de conceitualizar
essas partes. A torção entre os dois tipos de problemas sugere uma diferença fundamental
pois, nos termos de Strathern (1994), o que faz de uma parte uma pessoa não é o que faz a
pessoa uma parte da sociedade.
108
A imagem construída por Rivière da socialidade indígena, poderíamos dizer, baseia-
se no segundo trecho da sentença, ou seja, o que faz da pessoa uma parte da sociedade.
Mas, no caso, as “pessoas” são concretamente imaginadas como indivíduos, totalidades
auto-contidas que se relacionam entre si conformando a sociedade. Por outro lado, se esta é
108
Segundo a autora, “what gave the part (“the individual”) distinctiveness as a whole person was not what
made the person a part of the whole society” (1994: 207). A idéia parece ser uma reelaboração da idéia
schneideriana segundo a qual o que faz de um parente uma pessoa não é o mesmo que faz de uma pessoa um
parente.
geralmente concebida como uma outra totalidade que possui um nível de princípios de
organização diferente daqueles, o esforço de Rivière foi de demonstrar que, na Guiana, as
relações individuais e societais permanecem na mesma ordem de complexidade (Rivière
1984: 98). Mas, de todo o modo, a questão parece ainda se colocar nos mesmos termos:
sendo as “sociedades” da Guiana fluidas, amorfas, impermanente, etc., o que as integraria?
Se os dados apresentados pelo autor apontam sempre para o fantasma da dissolução, as
relações de controle entre os indivíduos parecem dar a garantia de que nem tudo está
perdido (ao menos para o antropólogo). Mesmo que frágeis, ainda há grupos porque,
supostamente, há indivíduos negociando suas relações sociais.
Quanto à primeira parte da sentença – o que faz de uma parte uma pessoa - Strathern
conclui, a partir de exemplos etnográficos particulares, que são antes de tudo relações que
constituem uma pessoa. Referindo-se mais diretamente ao contexto melanésio, a autora
propôs o conceito de “divíduo”, em contraposição a “indivíduo”, para traduzir o conceito
de pessoa. O alcance teórico dessas idéias foi tal que vários americanistas passaram a
considerá-las para pensar a pessoa no contexto amazônico. Tentando associar a teoria
perspectivista e essa visada stratherniana, Kelly, por exemplo, definiu as pessoas como
“seres duais sujeito/objeto a que se credita perspectiva e agência (participam da cultura e
têm uma alma imortal), mas que ao mesmo tempo são objeto de outra subjetividade (parte
da natureza de alguém)” (2001: 100). A idéia de Strathern é que as relações intrapessoais
poderiam servir de modelo para as relações sociais de maneira geral. Assim, como em uma
estrutura fractal, uma multidão de pessoas simplesmente aumentaria a imagem de uma
pessoa singular.
Ora, como vimos, essa operação de fractalidade é precisamente o que os mitos não
se cansam de efetuar em seu movimento “em desequilíbrio perpétuo”. Se a função do
controle é integrar as pessoas, a função do canibalismo e da predação é conceitualizá-las,
ou seja, definir em qual dos pólos do divisor canônico Eu/Outro ela se encontra (ainda que
provisoriamente). Embora haja também posições não reversíveis, como no caso dos sogros-
canibais, que mantêm a perspectiva de predadores e são “quase sujeitos puros” (cf. Kelly
2001:100).
Enquanto os sogros são caracterizados no modelo de Rivière como se encarnassem
a autoridade (o Estado, a Sociedade, etc), nos mitos, eles seriam, bem ao contrário, a
expressão máxima da alteridade. No primeiro caso, o problema é o controle das mulheres e
a (re)produção da vida. No segundo, o canibalismo e a morte. E a morte, como diz Viveiros
de Castro, é a janela da mônada matrimonial, que, descrita nos termos de uma economia
política do casamento, seria apenas a face local de uma economia simbólica da morte
(2002: 171).
Como adverti no início, o trabalho que ora finaliza não tem, de modo algum, um
caráter conclusivo. As questões levantadas serviram-nos, antes de tudo, de guia em meio a
diferentes tipos de problemas implicados nos conjuntos de etnografias e dos mitos
provenientes da área da Guiana. Mas era preciso limpar o campo e compor um horizonte a
partir dos materiais disponíveis. Certamente, ainda há muito por fazer. Muitos caminhos
foram deixados em aberto e, acredito, poderão ser mais bem trilhados com a realização de
um trabalho de campo a partir do qual seja possível refutar, confirmar e, sobretudo,
introduzir novas mediações nas formulações acima apresentadas.
Referências Bibliográficas
ARVELO-JIMENEZ, Nelly
1971 [1974]. Relaciones politicas en una sociedad tribal: estudio de los Ye’cuana,
indígenas del amazonas venezolano. México: Ediciones especiales.
BURRIDGE, Kenelm
1967. “Lévi-Strauss and Myth”, in: Edmund Leach (org.). The structural study of
myth and totemism, London: Tavistock, pp. 91-115.
CIVRIEUX, Marc de
1997. Watunna. An Orinoco creation cycle. Austin: Univ. of Texas Press.
CLASTRES, Pierre
1974 [2003]. A sociedade contra o Estado pesquisas de antropologia política. São
Paulo: Cosac & Naify.
COLL, P. C. van
1907-08. “Contes et légendes des Indians de Surinam”, Anthropos, v. 2 e v.3.
COSTA, Luiz A.
2000. Modelos do presente, narrativas do passado: por uma antropologia histórica
nas Guianas (1596-2000). Rio de Janeiro, Dissertação (Mestrado) Museu
Nacional/UFRJ.
DREYFUS, Simone
1993. “Os empreendimentos coloniais e os espaços políticos indígenas no interior da
Guiana ocidental (entre o Orinoco e o Corentino) de 1613 a 1796”, in: E. Viveiros de
Castro & M.Carneiro da Cunha (orgs.). Amazônia: etnologia e história indígena. São
Paulo: NHII-USP/FAPESP, pp. 19-41.
FARAGE, Nádia
1991. As muralhas dos sertões: os povos indígenas do Rio Branco e a colonização.
Rio de Janeiro: Paz e Terra/Anpocs.
FARAGE, Nádia e Paulo SANTILLI
2002. “Estado de sítio: territórios e identidades no vale do rio Branco”, in: Manuela
Carneiro da Cunha (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, pp. 267-278.
FAUSTO, Carlos
1995. “De primos e sobrinhas: terminologia e aliança entre os Parakanã (Tupi) do
Pará”. In: Eduardo Viveiros de Castro (org.) Antropologia do Parentesco: Estudos
Ameríndios. Rio de Janeiro: UFRJ, pp. 61-120.
GALLOIS, Dominique
2005. Redes de relações nas Guianas. São Paulo: Associação Editorial Humanitas,
Fapesp.
GILLIN, J.
1948. “Tribes of the Guianas”. Handbook of South American Indians. Julian Steward
(org.) Bulletin 143 of the Bureau of American Ethnology. Washington, DC.:
Smithsonian Institution. III:799-860.
GORDON, Flávio
2005. “O sexo dos caracóis”: nano-ensaio de antropologia reversa (onto-
epistemologia dos espíritos amazônicos sobre epistemo-ontologia nativa). (Inédito).
HOWARD, Catherine
1991. “Fragments of the heavens: feathers as ornament among the Waiwai”. In:
Reina, R. E.; Kesinger, M. K. (orgs.). The gift of birds: featherwork of native south
American people. Philadephia: University of Pensilvania.
1993. “Pawana: a farsa dos ‘visitantes’ entre os Waiwai da Amazônia setentrional”,
in: E. Viveiros de Castro & M. Carneiro da Cunha (orgs.). Amazônia: etnologia e
história indígena. São Paulo: NHII-USP/FAPESP, pp. 229-64.
HUGH-JONES, Stephen
1979. The palm and the pleiades: initiation and cosmology in Northwest Amazonia.
Cambridge: Cambridge Univ. Press.
IM THURN, Everard F.
1883. Among the Indias of Guiana. Londres.
INGOLD, Tim
1996. “The concept of society is theoretically obsolete”. In: Key Debates in
Anthropology. London: Routledge, pp. 57-96.
JARA, Fabíola
1996. El camino del kumu: ecología y ritual entre los Akuryó de Surinam. Quito:
Abya-Yala.
KELLY, José Antonio
2001. “Fractalidade e troca de perspectivas”. Mana, 7(2), pp. 95-132.
KOCH-GRÜNBERG, Theodor
1916 [2002]. “Mitos e Lendas dos Índios Taulipangue e Arekuna”. In. MEDEIROS,
Sérgio (org.) Makunaíma e Jurupari: cosmogonias ameríndias. São Paulo:
Perspectiva.
KOELEWIJN, Cees (with Peter Rivière)
1987. Oral literature of the Trio Indians of Surinam. Dordrecht: Foris.
LÉVI-STRAUSS, Claude
1955 [1996]. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
1958 [1976]. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
1962a [1986]. O totemismo hoje. Lisboa: Edições 70.
1962b [1997]. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus.
1964 [2004]. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify.
1966 [2004]. Do mel às cinzas. São Paulo: Cosac & Naify.
1967. L´Origine des manières de table. Paris: Plon.
1971. L’Homme un. Paris: Plon.
1984 [1986]. Minhas Palavras. São Paulo: Brasiliense.
1985 [1986]. A oleira ciumenta. São Paulo: Brasiliense.
1991 [1993]. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras.
LÉVI-STRAUSS, Claude & Didier ERIBON
1990. De perto e de longe. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
LIMA, Tânia Stolze
1995. A parte do cauim: etnografia juruna. Tese de doutorado. Rio de Janeiro:
PPGAS-Museu Nacional.
OVERING (KAPLAN), Joanna
1975. The Piaroa, a People of the Orinoco Basin: A study in kinship and marriage.
Oxford: Clarendon.
1977. “Comments (Symposium ‘Social time and social space in lowland South
American societies’). Actes du XLII Cngrès International des Américanistes, vol. II,
pp. 387-94.
1984. “Dualism as an expression of difference and danger: marriage exchange and
reciprocity among the Piaroa of Venezuela”, in: K. Kensinger (org.). Marriage
practices in lowland South American societies. Urbana: Univ. of Illinois Press, pp.
127-55.
1985a. “There is no end of evil: the guilty innocents and their fallible god”, in: D.
Parkin (org.). The Anthropology of evil. Londres: Basil Blackwell, pp. 244-78.
1985b. “Today I shall call him mummy: disorder in Piaroa systems of classification”.
In J. Overing (ed.) Rationality and rationales A.S.A. Monograph no. 23. London:
Tavistock Publications, pp. 152-179.
RIVIÈRE, Peter
1969. Marriage among the Trio: a principle of social organisation. Oxford:
Clarendon Press.
1984. Individual and Society in Guiana: a comparative study of Amerindian social
organization. Cambridge: Cambridge Univ. Press.
1987. “Of women, men and m88981.91624(o)-4c48206(e)1”.6255.20,20196(.)3.1142( )-1inH66258(O)-3.20196(.)O66258(O)-3.2-2.02925 k91624(o)-430.616(a)6r a48206(e)1l88981.91624(o)-435.759(m)6.91624(o)-4.80604(n)13.1142( )-1(.11.3235on.
a41624(o)-4t89231(v48206(e)1.48206(e)1s20123977)3.250]TJ-368.728 -20.22 653.5a80604(n)1.80604(n)1.08624(o)-4 20196(.)h.48206(e)1innnd 20196(.)innonOe88981c0.616(a)6a08495(7)-9.2250]TJ/Rm BT/R7 11159.904214.94[3 20196(.)G5.759(w)1.90604(n)1t88981.48206(e)135.759(m)6b08624(o)-4u90604(n)1r.11.3235no.onnnan0.2536576c48206(e)-3.28.2576-1M 7341u08495(d)-9s28.383231.48206(e)1u91624(o)-435.759(m)6,2-2.02925.dn.8o o-22722992(208495(8)1008495(8)1108495(7)-9.20196(1-3.2]TJ-159.9042-33.724.94[3208495(8)1008495(884008495(8)1108495(7)-9a48206(e)1.2-2.02925)3.0196(.)30.616(“)1A56258(O)-33.0196(.)p00604(n)1r.11.324791.48206(e)1d91624(o)-4308206(e)1ç48206(e)-3ã08206(e)1.91624(o)-4,20196(.)3.0196(.)a48206(e)-3.20196(.)r.11.324791.48206(e)1c48206(e)-3i)5.3T7111p91624(o)-4r.2722(f)3o08495(7)-9c0.616(a)6(0.2536576d91624(o)-4308206(e)1dh.48206(e)1.20196(.)e48206(e)-3.20196(.)o08624(o)-4 2-2.02925)c48206(e)1308206(e)1s20123977)o08624(o)-4 20196(.)d91624(o)-4308206(e)-3s20123977.w8898130.616(a)6.884929945130.616(a)6s.11.903683”.6255.20.20196(.)3.250]TJ/R18 BT/R7 1142(0541214.94[3M)629040a91624(o)-4.80604(n)1a91624(o)-4,2-2.029257.2722992(108495(8)1).11.3235)1,2-2.02925oo82031-22722992(508495(8)1391624(o)-4.2-2.029293.2]TJ-3( )76-2-33.6-2.94[3208495(8)1008495(8)1008495(8)1108624(o)-4b91624(o)-4.2-2.02925)3.-2127591“afeo 054(à48206(e)1.2-2127591)e0.616(a)6dh(88981ç0.616(a)6ã48206(e)-3o08624(725)3.-2127591)b806042441r.11.3235ee308206(e)1”.6255.20.20196(.)3.250]TJ/R18 BT/R7 11190.5178.3.94[3O56258(O)-33.-2127591nnenndeo 054(s20123977)o00604(n)1c48206(e)1ianendw0.2536576a80604(n)1.80604(n)1a91495(d)-9:.11.326059.20207n47
1982. Order without government: the society of the Pemon Indians of Venezuela.
Urbana: Univ. of Illinois Press.
TURNER, Terece
1980. “Le dénicheur d’oiseaux en context”, in: Anthropologie et Sociètés, 4(3), pp.85-
115.
VILAÇA, Aparecida
2002. “Making Kin out of Others in Amazonia”. Journal of the Royal
Anthropological Institute (N.S.) 8: 347-365.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
1986. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Anpocs.
1987. “Sociedades Minimalistas: A propósito de um livro de Peter Rivière”. Anuário
Antropológico, 85, pp. 265-82.
1999. “Etnologia Brasileira”, in: S. Miceli (org.). O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995), vol. I: Antropologia. São Paulo: Org. Sumaré/ANPOCS, pp.
109-223.
2001. “A propriedade do conceito”. Comunicação apresentada na ANPOCS/ST23:
“Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia indígena”.
2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify.
2004. “Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation”. Tipiti,
2(1):3-22
WAGNER, Roy
1974. “Are there social groups in the New Guinea Highlands?”. In: Leaf, M. J. (org.)
Frontiers of anthropology. New York: D. Van Nostrand.
1981. The invention of culture (2a edição modificada/1a ed.:1975). Chicago: Univ. of
Chicago Press.
WAGLEY, Charles e Eduardo GALVÃO
1961. Os índios Tenetehara: uma cultura em transição. Serviço de
Documentação/Ministério da Educação e da Cultura.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo