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Marina Marcondes Machado
A FLOR DA VIDA /
Sementeira para a fenomenologia da pequena infância
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
Psicologia da Educação
PUC-SP
São Paulo
2007
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Marina Marcondes Machado
A FLOR DA VIDA /
Sementeira para a fenomenologia da pequena infância
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo como exigência parcial
à obtenção do título de doutor em
Psicologia da Educação sob orientação da
Profa. Dra. Heloisa Szymanski
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
Psicologia da Educação
PUC-SP
São Paulo
2007
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Aprovação da Banca Examinadora
…………………………………………………
…………………………………………………
…………………………………………………
…………………………………………………
…………………………………………………
Agradecimentos
A professora Heloísa, pela orientação
Ao Domingos e ao Paulo César, pelo holding
Ao Jonas, pelo amor e pelo humor
A Fabíola e Luciana, pelo testemunho
Ao Floriano e Maria Alice, pela companhia e generosidade nos debates em Leme
Aos amigos pacienciosos
A CAPES, pela concessão da bolsa flexibilizada, auxílio precioso que permite ao aluno
trabalhar e estudar concomitantemente
Para a professora Maria Fernanda S. F. Beirão Dichtchekenian –
pequena homenagem póstuma,
recordação de sua boa-vontade e sabedoria
A FLOR DA VIDA/
Sementeira para a fenomenologia da pequena infância
Resumo
Esta tese procura perscrutar as relações adulto-criança do modo como proposto pelo
filósofo Maurice Merleau-Ponty em seus cursos na Sorbonne sobre pedagogia e
psicologia da criança. Discute minuciosamente os existenciais outridade, corporalidade,
lingüisticidade, temporalidade, espacialidade, mundaneidade e culpabilidade na infância
e registra o processo da autora de produção de sentidos para a “pequena infância” (a
criança de zero a seis anos de idade), na forma de relato de experiência.
A autora cria uma imagem em desenho que denomina “A flor da vida”: imagem onde os
existenciais aparecem como pétalas, e a mundandeidade como cabo da flor; seu objetivo
é mostrar uma visão da infância onde o modo de ser e estar no mundo da criança pequena
é sempre totalizado e compreendido na coexistência com seu corpo, com os outros, com o
tempo e com o espaço vividos, com sua língua mãe e a culpabilidade.
A autora propõe uma hermenêutica da infância a partir de seu trabalho junto a crianças
como professora de teatro, psicoterapeuta e estudiosa de Fenomenologia, e conclui que os
existenciais podem ser cuidadosamente cultivados pelos adultos, de modo a propiciar às
crianças pequenas o conhecimento de si, do Outro e da Cultura humana. Nessa chave, à
luz da lingüisticidade, as crianças estarão, desde a mais tenra idade, livres para expressar
o sentido de suas experiências de vida.
Palavras-chave: Fenomenologia da Infância; Psicologia Fenomenológica; Infância e
Existenciais; Relação Adulto-Criança; Hermenêutica da Primeira Infância.
LIFE FLOWER/
A garden of seedlings in early childhood phenomenology
Abstract
The thesis seeks to examine the adult-child relationship according to the precepts the
philosopher Maurice Merleau-Ponty expounded in his Sorbonne lectures on child
psychology and pedagogy. The thesis’s author discusses in detail the concepts of
otherness, corporeality, linguisticity, temporality, spaciality, mundaneity, and culpability
in childhood and presents a register of the process of production of meaning in early
childhood (from birth to six years of age).
The author offers a drawn image which she calls “The flower of life,” in which the
existentials appear as petals and mundaneity as the stem. The purpose is to show a
conception of childhood in which the child’s manner of being in the world is always
holistic and understood as the child’s coexistence with her body, with other people, with
the time and space in which she lives, with her mother tongue, and with culpability.
The author proposes a hermeneutics of childhood based on her work with children as
theater teacher and psychotherapist. She concludes that the existencials ought to be
carefully cultivated by adults, so that young children may acquire self-knowledge,
knowledge of the other and of human culture. In this manner, under the guiding light of
linguisticity, children from the earliest age on may acquire the capacity to express the
meaning of their life experiences.
Key words: Phenomenology of Childhood; Phenomenological Psychology; Childhood
and Existentials; Adult-Child Relationship; Hermeneutics of Early Childhood.
A FLOR DA VIDA /
Sementeira para a fenomenologia da pequena infância
Sumário
Prólogo
Sementes de flores /
Percurso de meu pensamento sobre a infância e a criança
Primeiro momento: busco, e encontro uma teoria……………………………….1
• Segundo momento: afasto-me da teoria, para “olhar com os olhos”……………5
• Terceiro momento: procuro formação acadêmica……………………………….7
• Quarto momento: meu pensamento hoje………………………………………... 20
Primeiro Ato
A Flor da Vida /
A condição da criança humana: os existenciais na infância
I- Outridade
• De onde viemos………………………………………………………………...31
• O outro sou eu………………………………………………………………….36
• Quem sou eu? O Outro dos Outros…………………………………………….37
• A outridade da criança pequena tornada visível………………………………..39
• Interfaces entre os existenciais…………………………………………………45
II-Corporalidade
• Unidade do corpo próprio………………………………………………………50
• Os sentidos……………………………………………………………………...55
• Os lugares do corpo…………………………………………………………….62
• O corpo sexuado: ser menino, ser menina……………………………………...66
• A corporalidade da criança pequena tornada visível…………………………...87
• Interfaces entre os existenciais…………………………………………………73
III-Lingüisticidade
• Ser linguageiro………………………………………………………………….76
• A fala dos adultos “diz” a infância……………………………………………..83
• A lingüisticidade da criança pequena tornada visível………………………….87
• Interfaces entre os existenciais…………………………………………………92
IV-Temporalidade e Espacialidade
• Tempo-espaço da infância: um “tempo” e um “espaço” povoados……………94
• A espacialidade da criança pequena tornada visível…………………………..97
• A temporalidade da criança pequena tornada visível…………………………101
• Interfaces entre os existenciais………………………………………………..103
V-Mundaneidade
• Infância e ser-no-mundo: mundocentrismo…………………………………...106
• O Outro é narrador do mundo………………………………………………...110
• A mundaneidade da criança pequena tornada visível…………………………112
• Interfaces entre os existenciais………………………………………………..113
VI-Culpabilidade
• Co-existir: culpabilidade……………………………………………………...116
• Co-existir: responsabilidade…………………………………………………..118
• Co-existir: o sentimento de pertença…………………………………………121
• A culpabilidade da criança pequena tornada visível………………………….123
II Entreato
Prenúncio de uma colheita …………………………………………………………125
Segundo Ato
Cultivar a Flor da Vida: desdobramentos
• Psicologia fenomenológica e sua serventia…………………………………………132
• Antropologia e Psicologia fenomenológica como campos do saber humano……….134
• Definir “cultura” para fazer aproximações a uma psicologia cultural………………136
• A Psicologia cultural de Gerome Bruner…………………………………………….137
• Fenomenologia da pequena infância: interpretação compreensiva das relações adulto-
criança…………………………………………………………………………………141
• Retomada da aproximação infância-poesia: busca da lingüisticidade na relação adulto-
criança em um exercício criativo……………………………………………………..145
• Pequena hermenêutica do poema Cantos de infância………………………………..148
• Contar “histórias comestíveis” para crianças de cinco anos: outra forma de presença da
lingüisticidade entre adultos e crianças………………………………………………152
• Pequena hermenêutica das “Histórias Comestíveis”………………………………….157
• Para além da sala de aula……………………………………………………………...162
• De volta às coisas mesmas……………………………………………………………164
Epílogo
Propor à criança conhecer a sí mesma, ao outro e à cultura:
liberdade para expressar o sentido da experiência de viver
• Penúltimo momento: unidade e sentido da fenomenologia…………………………..169
• Último momento: re-visito a teoria…………………………………………………...170
• Próximo momento: falar uma nova linguagem……………………………………….173
Referências Bibliográficas………………………………………………178
Quando se está na idade de imaginar,
não se sabe dizer como e por que se imagina.
Quando se pode dizer como se imagina,
já não se imagina.
Seria preciso, então, desamadurecer.
Gaston Bachelard
Prólogo
Sementes de flores/
Percurso de meu pensamento sobre a infância e a criança
• Primeiro momento:
busco, e encontro uma teoria
Esta reflexão inicial vai revelar ao leitor o percurso do meu pensamento sobre a criança e
a infância. Este caminho inicia-se 27 anos atrás, mais precisamente em 1980, quando
conheci o diretor teatral e dramaturgo Ilo Krugli, criador do Grupo Ventoforte. Eu tinha
19 anos de idade – e pouco sabia sobre o que era uma criança.
A partir das memórias de infância de cada ator, Ilo trabalha a maneira de atuar, algo
bastante próximo da criança que cada um foi, o que inclui dados biográficos bem como
imaginativos. Fui atriz e arte-educadora na Casa do Ventoforte por dois anos e meio.
Pouco tempo depois, ao me casar, empreguei-me em pré-escolas, como professora de
classe. Foi por meio de um grupo de estudos junto a professores de crianças pré-escolares
que entrei em contato com a obra do psicanalista inglês D. W. Winnicott (1896-1971).
Quando engravidei, precisei ficar alguns meses de repouso e, junto com a experiência da
gestação, iniciei um fazer, artesanal e artístico, de construção de brinquedos a partir de
materiais de sucata de madeira, tecido, lata e papel. Criei um espaço chamado
Brinquinharia – Oficina de Brinquedos; ali fazia bazares de brinquedos e dava cursos
para adultos, ensinando como trabalhar criativamente com materiais de sucata, restos ou
refugos.
Quando meu filho fez três anos de idade, voltei a trabalhar como arte-educadora:
ingressei para o corpo docente da Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo
(EMIA/SP). Entusiasmada com esta escola, que funciona dentro de um parque público, e
com o contato renovado com crianças pequenas, escrevi meu primeiro livro: O
brinquedo-sucata e a criança / A importância do brincar * Atividades e materiais (São
Paulo: Edições Loyola, 1994). Este livro, hoje, encontra-se em revisão para a sexta
edição.
1
Um livro em sexta edição indica sucesso e excelente sobrevida editorial. Este trabalho,
por tematizar a utilização da sucata como material para a transformação artística,
encontra-se hoje afinado com as práticas ecológicas de reciclagem do lixo e dos refugos.
Mas certamente seu sucesso deu-se também por divulgar noções psicológicas importantes
acerca do brincar, em linguagem acessível. Além da beleza da capa!
No momento em que escrevia o livro, estava apaixonada pela obra de Winnicott,
estudioso da infância que, no final de sua vida, desenvolveu uma teoria sobre a
brincadeira; propôs que o brincar é a primeira atividade cultural das crianças. Essa teoria,
concretizada no conceito de “espaço potencial”, foi criada por Winnicott a partir da sua
experiência clínica com crianças. Winnicott foi pediatra, depois psiquiatra infantil, e mais
tarde, psicanalista. Minha reflexão nesta tese partirá muitas vezes da teoria winnicottiana
e conversará com o posterior desdobramento de meu próprio pensamento sobre o brincar,
a criança e a infância, a partir de meus estudos da psicologia fenomenológica e descritiva.
Para o psicanalista inglês, brincar é uma linguagem universal entre mães e bebês. Ele
argumenta que os adultos precisam fornecer um bom ambiente inicial para as crianças, de
modo que a liberdade para brincar e para imaginar surjam na vida do bebê. A esse bom
ambiente, Winnicott dá o nome de “ambiente facilitador”.
O ambiente facilitador não é um ambiente físico concreto: o ambiente facilitador é feito
de uma atitude, uma maneira de fornecer cuidados aos bebês e às crianças pequenas, de
modo a apresentar a elas a realidade em pequenas doses. A atitude que os adultos
deveriam adotar é de concomitantes presença e ausência, proteção e liberdade. O foco da
teoria winnicottiana não está, portanto, no ambiente físico, e sim, nos laços afetivos. Um
bom ambiente é aquele onde os adultos que cuidam das crianças o fazem de maneira
dedicada, receptiva, aconchegante.
Aos poucos os adultos apresentam o mundo à criança: seria interessante que isso se desse
sem atropelamentos, em busca de um modo de ser relaxado e tranqüilo para acompanhar
seu crescimento. Para Winnicott, não importam os objetos chamados “brinquedos”, mas
2
antes, os “objetos de amor” que brinquem conosco: as pessoas. São os “objetos de amor”
iniciais: a mãe, o pai e outros adultos-cuidadores. Antes de brincar com brinquedos,
brinca-se com pessoas – e consigo mesmo. Brincar é portanto forma de conhecer e
experienciar nosso contato com as pessoas e com o mundo: um modo de relacionar-se.
Trata-se também, para Winnicott, de fazer uso dos símbolos, que transitam entre “o de
dentro” e “o de fora” de cada um de nós. Chamo atenção para o meu uso de aspas para “o
de dentro” e “o de fora” pois esta separação é, em certa medida, artificial – isso será
discutido, na tese, a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty -- mas a própria noção de
“espaço pontencial” winnicottiana aponta para esta artificialidade. Digamos que o
“espaço potencial” está entre você e eu; é um lugar vivo, afetivo, de inter-relação. No
início da vida humana, o “espaço potencial” está entre cada mãe e seu bebê.
Segundo Winnicott, o “espaço potencial” surge numa idade muito tenra: acontece entre
mães e bebês que vivem suas primeiras experiências de separação. Os bebês fazem uma
espécie de “auto-consolo” e elegem um brinquedo, uma manta, um pedaço de fralda ou
xale para brincar: segurar, lamber, cheirar… Para Winnicott, o fiozinho de manta, a
fralda, o urso de pelúcia, ou outro brinquedo preferido, são aquilo que ele denomina
“objetos transicionais”. Eles são “transicionais” pois transitam entre o “eu” e o “outro”,
fazem trânsito entre a saudade e a pessoa mesma, entre um sentimento e o mundo
compartilhado. O uso destes objetos pelos nenês é, para o autor, o primeiro uso de um
símbolo.
Estar apto a eleger um brinquedo favorito, estar apto a auto-consolar-se segurando uma
manta ou enrolando um fiozinho de lã, para o psicanalista, é um avanço enorme rumo à
individuação
1
. Brincar de faz-de-conta é um desdobramento deste fenômeno. Mais tarde
as artes, a religião, a ciência, os ritos serão “brinquedos de adulto” – formas culturais de
compartilhar a vida, a solidão, e até mesmo a noção de que tudo que nasce, morre. (Estou
aqui, debruçada nesta tese de doutoramento, vivenciando justamente uma destas formas
de brincar do adulto…)
1
“Individuação” é um termo próprio da psicanálise winnicottiana; ao longo da tese, vou
trabalhar com a noção existencial de “corporalidade” , que designará o si mesmo.
3
O livro O brinquedo-sucata e a criança foi escrito por mim entre 1990 e 1991, há
dezessete anos, aproximadamente. A partir da teoria do “espaço potencial” criei o
conceito de “brinquedo-sucata”, algo que difere bastante do fazer-brinquedos-com-
sucata.
O “brinquedo-sucata” designa um brinquedo não-estruturado, sem forma de brinquedo
convencional, e portanto passível de ser modelado, moldado e significado pela criança,
da maneira que bem entender. São exemplos de “brinquedos-sucata”: rolhas, caixas de
papelão, retalhos de pano, conchas, e assim por diante. Quando brinca com esses objetos,
a criança dá a sua forma a eles: única, singular. Assim ela cria e recria natureza, cidade e
cultura. Meu pensamento, neste sentido, já estava voltando-se para a compreensão
fenomenológica da infância, ainda que apenas intuitivamente: pelo desdobramento do
que é um “brinquedo não-estruturado”, aquele que não possui uma estrutura dada a priori
para que a criança brinque com ele.
Mas também está lá escrito em meu primeiro livro que devemos “usar” as teorias, como
crianças usam seus brinquedos: esburacando, amassando, explorando outros modos…
desmistificando enfim – reflexão a partir de uma propositiva do psicanalista argentino
Ricardo Rodulfo; desmistificar um autor é humanizá-lo, contextualizar o momento
histórico do seu pensamento, procurar saber mais sobre sua teoria e interessar-se por
contrapontos – outros modos de olhar para o mesmo tema; neste caso, o brincar, o
brinquedo, a infância.
Buscar contrapontos foi o que fiz ao entrar para o curso de graduação em Psicologia,
depois de ter escrito meu primeiro livro. Sonhava em ser psicanalista de crianças, e fui
atrás desse projeto de futuro: um projeto de uma jovem profissional, para a qual o apego
à teoria psicanalítica significou um porto seguro.
*
4
• Segundo momento:
afasto-me da teoria, para “olhar com os olhos”
Foi durante o curso de graduação em Psicologia que entrei em contato com o olhar
fenomenológico e seu método analítico. A Fenomenologia é um método filosófico (o que
equivale dizer, uma maneira de pensar) concebido pelo filósofo alemão Edmund Husserl
(1859-1938) e adotado por psicólogos e psiquiatras que iniciaram a chamada Psicologia
Existencial (também sinônimo de Psicologia Compreensiva ou Psicologia
Fenomenológica).
Este método filosófico ou maneira de pensar, quando inserido em uma prática
profissional, propõe o afastamento de técnicas e teorias, e a aproximação de seu “objeto
de estudo” tal como ele se apresenta: é preciso ir de encontro à coisa mesma. No caso da
Psicologia e das outras ciências humanas, nosso “objeto de estudo” é o homem, e será
necessário olhar para esse objeto-sujeito -- uma pessoa -- tal como ela se mostra, de modo
a interpretar compreensivamente seus modos de ser e estar no mundo.
O lema ou palavra de ordem dos estudiosos da Fenomenologia é: De volta às coisas
mesmas. Este lema justifica-se pois, em curto espaço de tempo, os pesquisadores das
recém-nascidas ciências do homem enclausuraram-se de tal modo em suas teorias…
incorrendo em psicologismos, historicismos, sociologismos… que terminaram por deixar
de lado a vida mesma dos seus pesquisados; deixou-se de olhar com os olhos para o ser
humano, passando-se a olhar, sempre, para o “objeto de estudo” a partir do viés das
teorias.
Assim, o método fenomenológico, ao ser trazido para as ciências do homem, seja em
pesquisa ou nas profissões, modifica o horizonte, dá novo foco ao trabalho a ser
realizado: coloca entre parênteses noções teóricas como fio condutor a priori, e leva-nos
a um contato direto e vivencial com as pessoas.
5
Meu segundo livro, intitulado A Poética do Brincar (São Paulo: Edições Loyola, 1998) é
uma espécie de “resposta a mim mesma”: trata-se justamente de um desdobramento de
meu estudo em Psicologia Fenomenológica, e também, uma homenagem ao filósofo
Gaston Bachelard. “Resposta a mim mesma” pois já não me satisfazia mais com a teoria
winnicottiana acerca do brincar, e meu sonho de me tornar psicanalista de crianças foi
abalado pela frase pronunciada em sala de aula pelo professor Carlos Eduardo Freire: “A
Fenomenologia prescinde de uma teoria do desenvolvimento”.
O abalo para mim relacionava-se diretamente com a descoberta de uma outra possível
leitura sobre a infância, a criança e o brincar. Esta “outra leitura” é poética e existencial –
não é teórica, e possui o rigor do método observacional e descritivo. Surgiu assim um
novo horizonte, um novo panorama, uma nova visada. Este olhar está esboçado ou
rabiscado em meu segundo livro.
O livro é pequenino como um livro de bolso e quer mostrar aos leitores adultos “uma
ética e uma estética do brincar”. Como campo da “ética do brincar” entendo a busca de
uma modo de ser que propicie a coexistência ética dos adultos em relação às crianças que
brincam, de modo que brincar seja um direito. Esta atitude é muito próxima da noção de
“ambiente facilitador” da teoria winnicottiana: é uma maneira de ser e estar no mundo
que se encontra nas relações adulto-criança. A maneira de ser ética tem como valores o
amor e o humor, e implica em um adulto que cuida porque se importa com as crianças no
mundo. Essa atitude propicia às crianças uma ação estetizante do mundo: ou seja, a partir
desta maneira de ser dos adultos com as crianças, elas poderão brincar e viver
criativamente suas vidas, dando colorido a elas. Pensar a atitude ética dos adultos frente
às crianças é também um dos fios condutores desta tese de doutorado – uma maneira de
ser que, por meio das trocas intersubjetivas, leva adultos e crianças a crescerem juntos.
O brincar, a meu ver, não é parte do que se costuma chamar de “animação cultural”. É
muito importante desenvolver junto às crianças quietude e capacidade contemplativa. O
brincar poderá, assim, ser uma experiência estética: algumas brincadeiras intuem a
essência e beleza da poesia. O brincar é um saber do corpo, não é apenas algo que se
6
aprende e se ensina. E a infância permanece em cada um de nós: conectada a experiências
sensoriais e a uma outra temporalidade, que não a do relógio nem a do calendário. Pensar
assim tem raízes no modo bachelardiano e identifica-se com o teatro proposto por Ilo
Krugli. Ao estudar Fenomenologia e a obra de Bachelard, iniciei minha apropriação dessa
visada como linguagem, como discurso, como um dizer possível acerca da criança e da
infância -- maneira que faz contraponto com as visões desenvolvimentistas da Psicologia
infantil.
A concepção de um discurso, publicado em livro, nomeado A poética do brincar,
defendeu o direito das crianças àquilo que eu chamei de “infância vivida” – algo que
contrapõe-se às muitas e muitas “infâncias morridas”, infâncias mortas por querelas
tipicamente adultas: guerras, abusos, fome, atentados, doenças, etc.
*
Terceiro momento:
Procuro ampliar a formação acadêmica
Afastada da Psicanálise e procurando estar mais próxima das crianças mesmas, terminada
a graduação em Psicologia, ingressei no Mestrado em Artes, na Escola de Comunicação e
Artes da USP. Sob orientação da professora Dra. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo,
desenvolví uma pesquisa cujo tema foi o teatro e a infância – mais precisamente, a
“representação” da personagem criança.
Minha dissertação procurou novas maneiras de conversar sobre a infância e foi publicada
em forma de livro em 2004, com o título Cacos de infância/ Teatro da solidão
compartilhada (São Paulo: Fapesp/Annablume). Trata-se de meu terceiro livro; a partir
dele inicio uma pesquisa acadêmica própria, embasada nas noções de psicologia da
criança como esboçadas por Merleau-Ponty (1990a e 1990b) em seus Cursos na
Sorbonne, cujos apontamentos de alunos foram publicados em livros, traduzidos e
editados no Brasil pela Papirus. Foi plantada a semente de um terceiro momento de meu
7
pensamento sobre a infância, onde converso e faço interlocução com minha prática como
professora de teatro de crianças, bem como com minha formação como psicóloga.
Poderia dizer que meu caminho, na pesquisa de mestrado, foi de Winnicott a Merleau-
Ponty: em busca de uma espécie de síntese, prática e reflexiva, que aconteceu a partir da
criação de um espetáculo teatral que tematizou nascimento, vida e morte.
O trabalho teatral, cujo título é também Cacos de infância, foi pensado de uma maneira
processual, ou seja, não escrevi de antemão uma peça para ser encenada a posteriori:
trabalhei com uma atriz e dois músicos a construção das cenas, durante alguns meses de
encontros vivenciais. Aos poucos escrevi um texto dramatúrgico em processo (maneira
de dizer da metodologia de criação denominada work in process), fazendo surgir um
espetáculo de cerca de meia hora que foi encenado por apenas quatro vezes, em espaços
não-convencionais (isto é, fora do teatro). A experiência em Cacos de infância fala sobre
os temas existenciais do nascimento, vida e morte para uma platéia “de todas as idades” –
inclusive crianças – e fazê-lo foi revisitar e criticar, em ação teatral, o chamado teatro
“infanto-juvenil”.
O trabalho em Cacos de infância, desenvolvido entre 1999 e 2000, deve muito ao Grupo
Ventoforte, onde aprendi, entre 1980 e 1983, o princípio do “teatro para todas as idades”.
Está aí embutida uma noção de infância, afinada com a noção proposta pelo poeta
William Blake: a criança é uma pessoa de pouca experiência. Pessoa, desde a mais tenra
idade: ser completo, ser vivente no mundo humano.
O desafio que enfrentei em meu mestrado foi o de trabalhar com o método
fenomenológico em uma pesquisa inter-disciplinar, entre Psicologia, Artes e Teatro-
educação. O processo está registrado no livro, cujo título remete a mosaicos e ladrilhos, e
também a cacos de vidro, restos, sucatas e refugos. Aprendi, ao estudar a Fenomenologia,
que o pensamento humano é ricamente circular, e vejo hoje o desenho de um “círculo
hermenêutico” entre minha vida e meus escritos, círculo traçado a partir do conhecimento
vivido e suas múltiplas facetas e significações. Durante a escritura da dissertação, vivi
8
uma difícil experiência de luto, o que concomitantemente dificultou e enriqueceu a
reflexão acerca do sentido da vida.
O tempo e o espaço do brincar estão também presentes no livro Cacos de infância: de
forma poética e circular, ou espiral, apresenta novas constelações de sentido, e novos
mistérios também. Sempre restará um mistério.
*
• Quarto momento:
meu pensamento hoje
É em nós próprios que encontraremos a unidade da
fenomenologia e seu verdadeiro sentido.
Maurice Merleau-Ponty
Hoje estou debruçada sobre esta tese de doutoramento, em defesa de uma
Fenomenologia da infância. Trata-se de ir além do senso comum, do conhecimento do
cotidiano, da descrição ingênua da vida e das relações entre adultos e crianças, por meio
do pensamento fenomenológico: mas ir também aquém, lá onde estão as crianças
mesmas; sua experiência de vida é anterior a qualquer reflexão que adultos possam fazer,
por exemplo, acerca das suas brincadeiras!
Quinze anos depois da escritura do manuscrito de O brinquedo-sucata e a criança,
escrevo minha tese de doutorado; ainda trabalho como professora de teatro para crianças
e, desde 2003, também sou professora de Psicologia Fenomenológica em um Centro
Universitário de São Paulo, e atuo como psicoterapeuta, afinada com a Psicologia
Fenomenológica.
Meu projeto é mergulhar na escritura de um texto, na criação de um dizer acerca da
infância e da criança em coexistência com o adulto. Pretendo criar algo que, a partir de
9
meus estudos sobre o pensamento merleau-pontiano, busca uma linguagem nova que
descreva e situe a criança e sua coexistência no mundo. Quero propor, por meio deste
pensamento, um olhar para além e aquém das teorias – especialmente das teorias do
desenvolvimento humano. Persigo, desde o momento do Trabalho de Conclusão de
Curso, elaborado em 1997, o mistério contido na afirmação do professor da graduação
em Psicologia (a Psicologia Fenomenológica prescinde de uma teoria do
desenvolvimento) – mistério que causou em mim estranhamento e curiosidade, uma vez
que desconhecia esta maneira de compreender o modo humano.
Esta será minha quarta obra, quarta reflexão sobre a criança. A comunicação que
pretendo fazer será em nome do bem-estar e do bem-viver das crianças no mundo. Para
que isso ocorra, proponho que os adultos leitores visitem suas maneiras de ser com as
crianças. Gostaria que minha pesquisa pudesse significar uma contribuição política, no
sentido que Hannahh Arendt dá à palavra “política”: todo discurso, toda palavra pensada
e registrada é política, por tratar-se de linguagem humana, comunicação entre humanos, e
portanto propositiva.
A minha propositiva é semear o olhar fenomenológico voltado para a vida das crianças,
na comunidade leitora desta tese. Com isso tentarei levá-los de volta às coisas mesmas,
e, pelo afastamento da técnica e do saber teórico, realizar uma aproximação antropológica
às crianças, como elas se apresentam: quem são elas? O que vivem, como vivem? O
que nos dizem, e como dizem? Como brincam? Como silenciam? Há que explorar
um “saber afetivo” e suas possibilidades; a partir do método fenomenológico, surge um
modo de ver, sentir e compreender a criança no mundo.
Para tal, há que se ouvir as crianças
A Psicologia clássica, aponta Merleau-Ponty, com suas explicações e causalidades,
afastou o adulto estudioso da infância mesma, ao criar teorias e propor contextos
disciplinares sobre quem são as crianças, como devem ser criadas, como se apresentam
em cada “etapa da vida”.
Pela simplicidade contida na expressão “olhar com os olhos” (olhar adulto para a criança)
proponho, neste doutoramento, uma forma de comunicação da experiência infantil a
partir do método descritivo e compreensivo. Isto se dará a partir da apropriação da
concepção merleau-pontiana sobre a psicologia da criança.
Por meio de noções relacionais
2
, quero provocar algo no leitor para que, ele mesmo,
sinta-se desafiado para desenvolver uma fenomenologia própria acerca das crianças com
quem convive e trabalha: pela conversa, pelo diálogo, pela capacidade de descrever sem
julgamento de antemão, ou procurando superar noções dadas a priori do que é uma
criança. Em “julgamento de antemão” podemos incluir teorias e grades disciplinares;
como “conversa e diálogo” entenda-se: criar modos de ser acolhedores e repletos de
sentido.
Meu projeto é buscar de uma nova linguagem para falar dos pequenos seres linguajeiros
que são as crianças de zero a seis anos. Quiçá um novo modo de dizer a infância possa
trazer conforto, e propiciar, às crianças e aos adultos, novos jeitos de habitar o mundo.
Novas propositivas existenciais podem, também, dar contorno a políticas públicas e a
projetos educativos e culturais na área da infância.
*
2
Não estaríamos “em relação com”, maneira de dizer que traduziria uma dicotomia ou
separação entre eu e o outro, eu e o mundo, mas, antes, estamos mergulhados em
relações – somos seres relacionais, no sentido daquele que estabelece vínculo, daquilo
que diz respeito a.
11
• Minha questão repensa um pensamento
“Eu vou alí, volto…” – Miguilim disse. Miguilim tinha pegado um
pensamento, quase que com suas mãos. (…) Repensava aquele
pensamento, de muitas maneiras amarguras. Era um pensamento enorme,
aí Miguilim tinha de rodear de todos os lados, em beira dele (…)
João Guimarães Rosa
Re-inicio o meu próprio repensar de um pensamento com a seguinte recordação: quando
eu era estudante de Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
vivenciei meus primeiros estudos em Fenomenologia com a professora Maria Fernanda
S. F. Beirão Dichtchekenian. Em 1993, no meu segundo ano da graduação do curso de
Psicologia, perguntei à professora: Existe uma educação ‘fenomenológica’ a ser dada às
crianças?
Era grande o meu desejo para encontrar um novo jeito de pensar a infância. Eu já
trabalhava com crianças, no âmbito da arte-educação, desde 1981. A professora
certamente percebeu minha voracidade e começou a responder, como aliás respondia a
todas as perguntas “equivocadas” de seus alunos: Então… A professora nunca nomeava
diretamente nossos equívocos – que eram muitos! – nunca se indignava com nossos erros,
e sempre esperava pela experiência vivida por parte do aluno, de modo que ele se abrisse,
por meio do estudo, da cotidianeidade e da convivência com ela no semestre, para a
clareira do conhecimento fenomenológico.
A professora Maria Fernanda faleceu; outros professores continuaram (e continuam) a
lecionar Fenomenologia na graduação em Psicologia da PUC/SP: são excelentes
psicólogos clínicos. O curso, ao privilegiar o olhar clínico, acaba por negligenciar o
âmbito da pesquisa em Psicologia Fenomenológica. Essa negligência gera nos alunos que
pretendem continuar seus estudos acadêmicos em Fenomenologia uma lacuna, e busco o
preenchimento desta lacuna desde 1999, quando ingressei no Mestrado. Estudei em
12
minha dissertação as noções de infância de Gaston Bachelard e Maurice Merleau-Ponty,
e criei uma dramaturgia a partir destas noções, com base em temas existenciais. Com o
passar do tempo, alcancei a compreensão do “erro metodológico” que minha pergunta à
professora continha, pois… Como atingir uma pedagogia fenomenológica? Existiria a
possibilidade de uma pedagogia sem pressupostos teóricos iniciais – traçada
simplesmente no caminho da criança tal qual ela se apresenta? Decifrar este enigma é a
minha brincadeira de adulto, brincada aqui, nesta tese de doutoramento.
Surge, a partir destes “repensamentos”, um paradoxo, uma dificuldade de fato: se
quisermos adentrar o campo antropológico e buscar compreender a criança “do ponto de
vista do pesquisado”, e não do pesquisador… e se, no entanto, somos adultos, com tantos
e tantos pontos de vista já arraigados sobre o que é a infância -- quem é, então, a criança?
Visitei uma primeira clareira ao recorrer à literatura e à poesia para chegar perto da
criança mesma. Fiz isso em meus livros: a aproximação entre infância e poesia é a
primeira chave para o repensar do meu pensamento acerca da criança e de sua existência.
Agora, na tese de doutoramento, procuro um outro modo de repensar a mesma questão
(Existe uma educação ‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?). Este outro modo
pretende-se científico, no que diz respeito às Ciências do Homem; pretende-se científico
e insere-se no percurso acadêmico, no contexto do programa em Psicologia da Educação
da PUC/SP. E o desenho deste percurso é iniciado pela leitura cuidadosa dos dois
volumes dos Resumos de Cursos na Sorbonne, registro da fenomenologia da infância tal
como proposta por Merleau-Ponty.
*
13
• Para desenvolver “uma nova linguagem”:
Método da psicologia da criança
Minha tese fará especial interlocução com os cursos de Merleau-Ponty na Sorbonne
(1990a e 1990b), mas conversarei também com outras reflexões suas sobre a criança e a
infância, feitas ao longo de sua obra. Está registrado no volume 2 dos Resumos dos
Cursos na Sorbonne como o filósofo propôs a maneira de realizar uma psicologia
científica sobre a criança – uma psicologia que a enxergue do seu próprio ponto de vista:
“do ponto de vista do pesquisado”. Esta maneira antropológica será alcançada quando o
adulto puder olhar para a criança a partir das relações adulto-criança. Essa será,
sempre, uma relação assimétrica
3
– sendo esta assimetria a dificuldade inicial para se
realizar uma psicologia científica da criança.
Para Merleau-Ponty, não existe uma “natureza infantil”: conceber uma natureza
infantil a priori foi um dos grandes erros, segundo ele, daquilo que o filósofo nomeia “a
psicologia clássica”. O grande objetivo de uma “nova psicologia” será “reintegrar a
criança ao conjunto do meio social e histórico no qual ela vive e diante do qual ela
reage”. (1990b:221). Para tal será necessário compreender que a criança é polimorfa,
pois não encontra-se ainda “assumida pela sua futura formação cultural”. Essa
característica de polimorfismo permite, na criança, a coexistência de possibilidades, e
Esse polimorfismo é acompanhado de prematuração: a criança
leva, já de início, uma vida cultural; ela entra muito cedo em relação com
seus semelhantes. Ela manifesta interesse pelos fenômenos mais
complexos que a envolvem; por exemplo, pelos rostos para os quais ela
adquire uma verdadeira ciência da decifração, numa época em que se
poderia pensar que ela só tem uma vida sensorial. (idem ibidem)
3
A relação adulto-criança é assimétrica do ponto de vista dos saberes e da necessária
responsabilidade dos adultos frente às crianças; mas aponta para a horizontalidade, pelo
ponto de vista ético.
14
Já se vê esboçada, nesta breve citação, uma contraposição à noção de “inteligência
sensório-motora”. Esta “verdadeira ciência da decifração” é uma espécie de hermenêutica
pré-reflexiva, realizada pelo bebê, em suas inter-relações.
Merleau-Ponty ensinou seus cursos na Sorbonne no final da década de 40 do século XX;
ele também conversava, naquele momento, com as “novas” pedagogias que inferem que
o adulto deva ser “retirado” da educação:
A criança não pode adquirir as técnicas da vida se é deixada a si
mesma ou submetida a seus educadores. Nos sistemas escolares, onde a
criança está sempre diante da criança, o puerilismo desenvolve-se e reina
um certo aborrecimento. Podemos nos perguntar se a presença do adulto
e até certos conflitos com ele não têm valor formador. (1990b:218)
O que está em jogo é, sempre, a relação da criança com os adultos:
Urdimos, portanto, a cada momento, nas nossas relações com a
criança, a sua atitude.
Como conseqüência, pode-se dizer que na psicologia da criança,
antes mesmo que haja uma ciência psicológica, os fatos são sempre
interpretados, porque eles são a expressão de uma relação estabelecida
entre o adulto e a criança. Também o fato é sempre uma concepção que
atesta o que a criança é, mas ao mesmo tempo como o adulto pensa a
respeito dela e a trata. /grifos meus/ (1990b:222)
Merleau-Ponty aponta o caminho interpretativo para se realizar uma psicologia científica,
e nova, acerca da criança. E é este caminho hermenêutico que pretendo trilhar na tese –
seja por exemplo para alcançar a via da “arte de decifração de rostos” do ponto de vista
do bebê, quanto para desvelar a troca de intersubjetividades entre bebês e adultos. Esta
maneira de olhar está afinada com o que Geertz (2001) vai definir como uma
“antropologia interpretativa”, algo a ser discutido mais tarde (“Segundo Ato” da tese).
15
O filósofo ensina que, para que haja rigor, “a ciência psicológica não poderá ser, em
nenhum caso, uma simples notação dos fatos”. (idem ibidem) E segue afirmando que
A psicologia não é uma simples notação de tudo o que a criança
diz e faz; são apenas traços de uma dinâmica do desenvolvimento que
resulta da constelação familiar do ambiente social. O fato histórico não é
nada, somente a significação é válida. O fato qualitativo é original e
reconstruído. /grifo meu/ (1990b: 223)
Serão princípios essenciais para “um conhecimento científico rigoroso acerca da
criança”: a reconstituição de uma dinâmica interpessoal, com base na recusa do
pesquisador em “dispor os traços de uma natureza infantil”. É extremamente necessário
levar em conta o organismo em situação, de modo a nunca separar o campo perceptivo
do campo motor. E não se deve fazer “mau uso” na noção de objetividade: a vida da
criança é vivida numa conexão com um pensamento pseudo-objetivo, e cabe ao adulto
recusar olhá-la de modo estritamente objetivo/objetivante.
Outra prerrogativa para se fazer ciência humana acerca da vivência infantil reside em que
o adulto não realize dicotomias – colocando entre parênteses a discussão entre o que é
inato e o que é adquirido; entre o que é fisiológico e o que é psicológico; entre o que é
maturação e o que é aprendizagem. Merleau-Ponty afirma que esta recusa a dicotomias é
necessária pois tudo é relativo ao contexto, às situações: “Ora, se a criança constitui um
momento numa dinâmica de conjunto, é impossível repartir a conduta infantil” /grifo
meu/ (1990b:226). Nenhum dualismo cabe na constituição de uma psicologia
fenomenológica da criança: faz-se premente a busca de totalidades.
Outra discussão importante que Merleau-Ponty realiza em suas reflexões acerca do
método da psicologia da criança gira em torno da noção de realismo. É o adulto que
possui visão de mundo e pensamento na perspectiva realista; a criança vive um corpo
fenomênico, indiviso, anterior à unidade intelectual e ao realismo. É como se ela
habitasse uma zona híbrida, a “zona da ambigüidade do onirismo” (1990a:223).
16
Assim Merleau-Ponty aponta um dos erros da psicologia clássica: a criança está de fato
“aquém do lógico”, vive imersa numa experiência pré-objetiva, e as formulações das
pesquisas tradicionais tiveram como pressuposto, sempre, a noção de representação de
mundo. No entanto, a criança pequena não é representacional: ela não representa a si
nem ao mundo, ela vive imersa no mundo e na cultura, ela é a sua experiência – não a
representação dela. Ela realiza, em sua atitude, vivência e linguagem uma espécie de
unidade anterior à unidade intelectual: vive “uma ordem que não é uma ordem
racional mas que também não é o caos” (1990b:229). Sua vivência é de uma unidade
vivida, pré-lógica – trata-se de uma primeira organização dos dados; a capacidade de re-
estruturação destas vivências é que revelará desenvolvimento e maturação.
Como, então, abordar a criança?
Reconhecendo, sempre, a ambigüidade de uma “tensão particular entre aquele que não
pode viver ainda segundo o modelo e o modelo” (1990b:220) dos pais, e o polimorfismo
de sua experiência. E, para podermos fazer acontecer conhecimento científico do “outro”,
“é preciso que o que era fundo se torne figura. É necessário que deixemos de ver como
fatum o que provém de nós mesmos.” (1990b:223) Merleau-Ponty cita Moreno na
argumentação da técnica do psicodrama: “É preciso que deixemos de nos ver como o
reflexo do outro. Devemos nos ver como o outro nos vê”. (1990b:224). Nessa chave,
devemos observar a percepção que a criança possui de si, das coisas, do mundo… e dos
adultos. Será necessário “despertar nossa própria espontaneidade”, e olhar para a
experiência relacional da criança no mundo.
Enfim, Merleau-Ponty explicita “precauções metodológicas” a serem tomadas para a
concretização de um projeto científico para uma psicologia da criança:
1. Não há algo denominado “mentalidade infantil”, nem tampouco existe uma
criança não-participante da vida humana adulta, sendo impossível “retirar o adulto” da
sua vida;
2. A criança é polimorfa – inclusive do ponto de vista cultural;
17
3. Inteligência e imitação possibilitam “uma relação singular de identificação”,
que introduz a criança na herança cultural;
4. Há um fenômeno de prematuração: a vida da criança está sempre, desde o
início, definida relativamente a pessoas e instituições.
Isso posto, a concretização de um projeto de psicologia da criança há que pautar-se no
esforço de criação de uma nova linguagem; descritiva, detalhista, relacional e que
perscrute os âmbitos existenciais da mundaneidade (pela observação da relação criança-
mundo); da corporalidade (pela observação da relação criança-corpo); da espacialidade
(pela observação da relação criança-espaço); da temporalidade (pela observação da
relação criança-tempo); da outridade (pela observação da relação criança-outro); da
lingüisticidade (pela observação da relação criança-discursividade, o que implicará na
relação criança-cultura) – sendo este o resumo de meu projeto de tese.
A esses modos relacionais acrescentei a culpabilidade, de maneira a pensar um projeto
onde a criança cresça lançada na experiência de responsabilizar-se, do cuidado e dos
laços sociais.
*
• Infância e Poesia
No decorrer da tese, o leitor vai deparar-se com vários excertos poéticos: José Paulo Paes,
Chico Buarque, Clarice Lispector. Poetas e canções da música popular brasileira são
referências presentes em meus textos desde a escritura de A poética do brincar. Fernando
Pessoa, pelo heterônimo Alberto Caeiro, referiu-se à criança como um ser sábio,
essencial, capaz do olhar de ver. Ao adulto cabe o olhar de conhecer – sendo este, o
“mal de adulto”.
Longe de idealizar ou colorir artificialmente a infância e a criança, procurarei, no
decorrer do texto, interlocução lúdica e crítica com a linguagem poética – e comigo
18
mesma, junto à minha pretensão de provocar no leitor o desejo de concretizar comigo a
fenomenologia da experiência relacional infantil.
Busco maneiras de dizer, a partir da ciência humana que é a psicologia fenomenológica,
as relações da criança no mundo. Este dizer, em sintonia com a metodologia proposta por
Merleau-Ponty, não deve ser lapidado ou construído por minha racionalidade: não há
como “mediatizar”, pelo pensamento formal e pela linguagem adulta, experiências
originárias da vida humana, tal como as apreende a criança pequena. Trata-se, portanto,
de um enorme desafio.
*
• A Flor da Vida
Um dia…
Num eixo espaço-temporal
dois Outros me concebem –
Pelo corpo vivo e pela palavra,
Pelo encontro do eixo tempo-espaço com
O eixo corpo-língua,
Me torno um ser-no-mundo, uma criança humana.
A expressão Flor da vida sintetiza meu projeto de doutoramento: essa síntese está
concretizada em uma imagem, um diagrama, um traçado ou esboço de flor; alusão,
paráfrase e brincadeira com a expressão “Jardim de Infância”. Neste diagrama, o cabo da
flor tem a “legenda” mundaneidade; os âmbitos existenciais estão distribuídos nas
pétalas: outridade, corporeidade, lingüisticidade, temporalidade, espacialidade e
culpabilidade. A imagem da Flor da vida encontra-se na página a seguir.
19
20
Entrechos correponderão à discussão dos âmbitos existenciais – ou a uma existenciália,
como quer o tradutor de Medard Boss (1976). Estes âmbitos não se separam, constituem
um todo, daí o desenho da imagem total da Flor; inicialmente quero dar aos leitores uma
visão panorâmica de como realizar uma fenomenologia do modo de ser criança: modo
essencialmente relacional, e especialmente voltado, desde o início da vida, para as
relações com os outros. Cada abertura de capítulo traz uma imagem, composta por mim,
que conversa com aquele existencial, e com as possibilidades da Flor.
Interpretar fenomenologicamente as relações adulto-criança é o horizonte, é a forma de
realização de uma psicologia verdadeiramente científica acerca da experiência de ser
criança – em sintonia com Merleau-Ponty:
A única atitude científica em psicologia da criança é aquela que visa
obter, por uma exploração exata dos fenômenos infantis e dos fenômenos adultos,
um resumo fiel das relações entre a criança e o adulto, tais como se estabelecem
efetivamente na própria pesquisa psicológica. (1990a:246)
Como moldura que delimita este trabalho, pergunto: Como pode um adulto dizer o ver da
criança pequena? “Dizer o ver” é uma expressão poética que empresto de Ferreira
Gullar (2003); “criança pequena” é a criança dos zero aos seis anos de idade, à maneira
de Merleau-Ponty, que refere-se sempre à criança pequena em seus Cursos na Sorbonne:
propositalmente, penso eu, como contraposição à psicologia clássica, que dividiu o
desenvolvimento infantil em fases, etapas, faixas etárias. Adoto no subtítulo da tese a
expressão “pequena infância”, dizer em voga no circuito acadêmico daqueles que
estudam a criança de zero a seis anos.
Comentarei agora a estrutura do sumário da tese. Como estudiosa de teatro, optei por uma
nomenclatura que remete à estrutura dramatúrgica: um prólogo, dois atos, dois entreatos e
um epílogo. O prólogo está dado aqui; o primeiro ato discute os existenciais na infância,
e retoma, sempre, a cada pétala, o todo da flor. Os entreatos comentam a realização do
texto mesmo, distanciam o leitor, convidando-o a pensar mais e melhor sobre o corpo do
texto. O segundo ato comunica o que pode ser feito, como ação ética e política, a partir da
21
propositiva existencial da infância; e, finalmente, o epílogo fecha a “dramaturgia”, e
busca projetos de futuro.
Há uma espécie de circularidade no texto, em especial no “primeiro ato”, que comenta os
existenciais na infância. A cada fim de entrecho, escrevo um comentário com o subtítulo
“Interfaces entre os existenciais”, como forma de relembrar o leitor da unidade da Flor
da vida, e para explicitar, sempre, que separar os existenciais é algo que cumpre uma
necessidade de organização de texto, e de noções que compõem o doutoramento como
um todo. A circularidade é, também, um recurso dramatúrgico.
Minha experiência vivida nas artes cênicas me leva a escrever, algumas vezes, uma
espécie de meta-texto: ou seja, textos sobre os textos, maneiras metalingüísticas que
revelam a tessitura da tese.
Imaginei como interlocutor possível um leitor ávido, como eu, 13 anos atrás, nas aulas da
professora Maria Fernanda, em busca de novas formas de ver a psicologia da criança e a
infância. Por isso que converso com ele, com este leitor imaginário, especialmente nas
sugestões de formas de registro da fenomenologia da infância – e proponho a ele que
organize o “Diário de Bordo”, sua caderneta de observações, recurso metodológico tão
caro às pesquisas antropológicas.
Pois então… Mãos à obra!
* * *
22
I Entreato
Sobre um fazer: das leituras para a escritura da tese
23
Quando eu procuro demais um ‘sentido’ – é aí que não o
encontro. O sentido é tão pouco meu como aquilo que existisse no
além. O sentido me vem através da respiração, e não em palavras.
É um sopro.
Clarice Lispector
A partir de um dizer da Profa. Marina Célia Dias, no exame de qualificação, que pedia
que eu cuidasse da não-dicotomia entre pensamento e sentimento -- pois a professora
enxergou uma certa sobrevalorização da palavra “pensamento” em meu texto -- tive a
idéia de escrever dois entreatos no decorrer da tese: um deles inicia-se aqui-agora, entre
minha auto-apresentação e a discussão dos existenciais na infância; o outro entreato
acontecerá entre a discussão dos existenciais e a hipótese de prerrogativas, a partir deles,
para a fenomenologia da infância.
Segundo Pavis, em seu Dicionário de Teatro,
O entreato é o lapso de tempo entre os atos durante o qual o jogo é
interrompido e o público deixa provisoriamente a sala de espetáculo. Ruptura
que provoca a volta do tempo social, da desilusão e da reflexão. (1999:129)
Este primeiro entreato interrompe o texto que revela a narrativa de minha experiência
vivida até chegar a desenvolver este doutoramento, para comentar algo acerca da
metodologia para atingir a fenomenologia da infância, ou atingir a criança tal como ela se
apresenta. Este entreato conversa acerca da metodologia da escritura da tese: mas não se
trata de um texto “sobre” a metodologia de trabalho. A metodologia de trabalho revela-se
na maneira mesma como a pesquisa está tecida, do início ao fim; imbricada, colada,
bordada em cada momento do texto.
Brinco aqui com Clarice Lispector que pensa e sente ter desenvolvido uma
“antimetodologia” para escrever. A “antimetodologia” não conhece a si mesma; disse
Clarice:
24
A coisa vai-se fazendo em mim.
Não escolho o momento, é ele que me escolhe. Inspiração? Não existe. A gente
tem é que estar preparada para o momento que escolhe a gente. O meu método de
trabalho é estar com a ponta do lápis feita. O resto é quase orgânico, fora da
minha deliberação, da minha alçada (…) (2004:78)
“Estar com a ponta do lápis feita” para a realização da fenomenologia da infância é estar
afiado para a observação fenomenológica da criança no mundo. Obviamente existem
diferenças entre o trabalho da escritora e o trabalho da psicóloga fenomenóloga; as
semelhanças convergem no uso da palavra, na busca de registro escrito de existências.
A partir de meus estudos dos Cursos na Sorbonne de Merleau-Ponty, apreendi que uma
“nova psicologia”, tal como proposta pelo filósofo, surgirá com uma “nova linguagem”,
criada para descrever a criança do ponto de vista dela mesma – e não a partir de uma
teoria do desenvolvimento. Cerca de dez anos atrás, realizei uma primeira aproximação a
essa nova linguagem, em meu Trabalho de Conclusão de Curso, escrito no último ano de
graduação em psicologia na PUC-SP. Era meu título: Esboço de uma fenomenologia da
criancice da criança. Naquele momento, de maneira absolutamente intuitiva, registrei em
minha monografia observações de cenas do cotidiano da criança na cidade de São Paulo,
e, em seguida, procurei um percurso possível de análise das relações adulto-criança.
Hoje espero, sinceramente, não ter perdido um grau de ingenuidade necessária para falar
antropologicamente acerca da criança e da infância – mas percebo que meus estudos
avançaram, e que uma “metodologia” precisa amadurecer, dar frutos. Conto com o olhar
merleau-pontiano para isso; também evoco, neste Entreato, a escritora Clarice Lispector,
de modo a dialogar com uma espécie de frescor e encantamento pela palavra -- e pelo
pensamento criador, que, do meu ponto de vista, concretizam uma fala falante (algo
discutido por mim no existencial Lingüisticidade, a seguir, no corpo da tese) que retrate a
criança e suas relações no mundo, com os outros e com a cultura humana.
25
Convido meu leitor a encontrar-se, “no corredor do teatro”, com Clarice e seu
“antimétodo” – convite paralelo à renovação da “cena do infantil” e do discurso do adulto
acerca da infância, a ser renovado, distante de qualquer perspectiva racionalista.
*
O entreato tornou-se necessário pela renovação do cenário, no decorrer de
uma longa pausa, de black-outs ou de mutações à vista. Mas sua função é
sobretudo social. Ele generalizou-se assim para o teatro de corte do
Renascimento, pois permite o encontro dos espectadores e a exposição das
toaletes (daí o ritual do foyer na Ópera ou na Comédie-Française, no século
XIX). (idem ibidem)
A partir da propositiva d’A Flor da Vida, pretendo semear a mudança de cenário, em
conexão com o modo de ser e de estar da criança pequena. Esse modo de ser e estar
encontra-se numa dimensão de vida pré-reflexiva, dimensão que revela um tipo de
pensamento bem diverso do pensamento usual do adulto. É esse modo de pensar e de
viver a vida que associo à “antimetodologia” de Clarice Lispector, que afirma em um
depoimento:
Descobri que eu preciso não saber o que penso. Se eu ficar consciente do que
penso passo a não poder mais pensar. Quando digo ‘pensar’ quer dizer sonhar
palavras. Ou melhor: passo a só me ver pensar. Meu pensamento tem que ser um
sentir. Penso tão depressa que não sei o que penso. Penso por imagens mais
rápidas que as palavras do pensamento pudessem captar. O vazio, e o não
pensar, é o melhor estado mental para que as imagens se façam.
/grifo meu/ (2004:80)
A imagem do vazio, de um pensamento conectado à imagem e ao sentimento, é muito
própria como fagulha inicial para escrever sobre a criança e a infância, do ponto de vista
fenomenológico: em busca de uma “nova linguagem”, como evoca Merleau-Ponty. O
26
vazio pode ser a ausência de pressupostos ou noções prévias, convite do método
fenomenológico.
*
A dramaturgia clássica aceita os entreatos, esforçando-se para motivá-los
e fazê-los servir à ilusão: “Nos intervalos dos atos, o teatro fica vazio, mas a
ação não deixa de continuar fora do lugar da cena”, ou ainda: “O entreato é um
repouso apenas para os espectadores, e não o é para a ação. Supõe-se que as
personagens ajam no intervalo de um ato a outro” (Marmontel, 1763). Pouco
importa a duração do entreato, se ela é motivada pela ação que se prolonga nos
bastidores: “Já que a ação não pára de jeito nenhum, é preciso que, quando o
movimento cessa no palco, continue por trás dele. Não há repouso, não há
suspensão” (Diderot).
(... )
Este retorno à realidade convida o espectador, quer ele queira ou não, a
pensar globalmente no que acaba de ver, a julgar o trabalho, a totalizar e a
estruturar a massa das impressões. É o despertar do espírito crítico, e não é de se
espantar que uma dramaturgia épica favoreça, até mesmo multiplique essas
pausas no espetáculo, obrigando o público a “intervir” nesses momentos de
desilusões. (idem ibidem)
Esta “pausa” para o entreato não pára, de m
Como escreveu Bachelard, citado na epígrafe de abertura desta tese, será preciso
desamadurecer para compreender a capacidade imaginativa da criança pequena, seu
modo de ser e estar no mundo. As prerrogativas estão na vida cotidiana: no olhar
cuidadoso para o brincar e o silenciar da criança, na possibilidade de escuta do adulto que
“cria” a criança, que a “assiste” durante seu tempo de primeira infância.
Termino o primeiro entreato respondendo carinhosamente à Profa. Marina Célia: ela
estava certa ao destacar a importância da não-sobrevalorização da função intelectual do
pensamento, especialmente para conversar com crianças; é preciso perseguir a não-
dicotomia entre pensar e sentir, entre criança e adulto, entre ser e mundo:
É que o mundo de fora também tem o seu ‘dentro’, daí a pergunta, daí os
equívocos. O mundo de fora também é íntimo. Quem o trata com cerimônia e não
o mistura a si mesmo não o vive, e é quem realmente o considera ‘estranho’ e ‘de
fora’. A palavra ‘dicotomia’ é uma das mais secas do dicionário.
Clarice Lispector (2004:83)
* * *
28
Primeiro Ato
A Flor da Vida /
a condição da criança humana e os existenciais na infância
30
Até o momento em que estou escrevendo esta tese, absolutamente todos os seres
humanos vivos estiveram alojados em um útero feminino. Contextualizo assim pois já
existem bebês fecundados in vitro; há crianças vivendo em lares de casais homossexuais,
crianças adotivas ou concebidas de modo que óvulo ou espermatozóide foram doados
para fecundação e gestação em outro corpo que não o da “mãe de criação”. A nova-velha
pergunta “De onde vêm os bebês?” tende, portanto, neste século que se inicia, a ser
respondida de diferentes formas, a partir de uma dimensão nova e anteriormente
inusitada. Mas, de fato, todas as crianças passaram pelo período gestacional: total
dependência de um Outro, alojadas no corpo de uma mulher.
O texto a seguir conversa com esse período inicial e nossa relação com o cordão
umbilical. Essa vivência parece ser marcante e o autor do texto foi capaz de fazer ver
uma dimensão poética extremamente fenomenológica:
O umbigo e seus mistérios
O umbigo é o vértice das curvas da vida. O óvulo fecundado, uma vez
determinada sua maneira de ser, ele se cola aderido na parede uterina. Envia,
como uma verruma, raízes que caminham em torção rosqueada, penetrando
ferroado na musculatura, chão a dentro, buscando o sustento e o alento. O útero
é forno da vida.
O óvulo fecundado traz dentro de si a partitura completa da sinfonia de
sua vida, espermatografada devidamente pela graça divina. Duplica, triplica,
decuplica. É quando, de repente, a gente mais envelhece. E, pela membrana
translúcida, uma poesia líquida que vem como o sangue, transita pelo coração,
em espantosas ternuras, pelo esplendor de suas raízes seletivas. E absorve o que
quer.
Em pouco tempo já é uma gelatina ancorada ao útero materno com um
funil alimentar fincado em sua musculatura. Suga pelas raízes, que convergem
em ruas, que viram avenidas, que viram estradas. Então essa massa gelatinosa
vai crescendo e dobrando, tomando forma e adquirindo funções. Plugada no
32
tempo, revive magicamente toda a evolução das espécies. Da alga ao peixe, do
peixe ao mamífero, daí para nós. E todo esse crescimento especificado, pré-
determinado, só pode acontecer por ter sido alimentado pelo cordão umbilical.
E esse retorno ancestral, repetindo a gênese e corrigindo defeitos, passa a
limpo a história da evolução, a cada gestação. Tudo isso vem pelo cordão, esse
canudinho que traz todos os elementos, que mergulham em vôos circulares,
espirais e redemoinhos: o cálcio, o fósforo, o potássio, o nitrogênio, o carbono, o
hidrogênio, a partir dos quais o mistério da vida produz aminoácidos. E eles nos
produzem, de acordo com o que está escrito em nossas partituras. Por isso tem
gente que é apenas ruído, tem gente que é rock, tem gente que é samba, tango,
bolero ou forró. Mas tem gente que é sinfonia. E todos nós, durante trinta e seis
semanas, ficamos imersos num líquido quente, virando cambotas ao compasso de
nossa música, como um astronauta ensandecido dançando no espaço em torno do
cordão umbilical que o liga à nave. Não é a gravidade que nos diferencia dele; é
a gravidez.
Após o nascimento, o novo ser, ao contato com seu novo mundo, chora e
grita, aspirando golfadas cada vez maiores de ar. Pega no tranco. E o cordão
umbilical, exaurido de tanto trabalho, tem a instantânea percepção da inutilidade
de continuar sua função. E, como uma concha, se fecha e se lacra numa cicatriz
enigmática que serve de taça ao brindar o dever cumprido. Murcha, seca e cai.
Alimentou tudo. Alimentou a evolução das espécies. E, na espécie, a evolução da
estirpe. Por isso podemos fugir de tudo na vida; menos de nós mesmos. É a nossa
sina.
O umbigo dorme o seu descanso, enrodilhado de si mesmo, ponto sem
ânsia, enovelado, lacrado. Quase desabitado de carícias, permanece discreto –
mas orgulhoso – como a haste de uma flor já colhida. E, sob esse aspecto, cada
filho é uma flor colhida. Cercado de poros dourados, o umbigo tem, ao norte, os
seios que irão continuar a sua função; e ao sul, seu encaracolado jardim onde,
oportunamente, nova semente será plantada.
E essa cicatriz, lacrada e centrada no abdome com a graça do toque
divino, todos nós, nascidos de mulher, devemos render nossas homenagens, com
33
um beijo. Um beijo de língua no chão do umbigo. Com mel ou doce de leite; com
morango e chantilly; com vinho branco ou champanhe. Mas o que é melhor de
tudo, pra quem é do ramo, puro e simples, só com os odores do corpo.
Naturalmente. (Toledo,1997: 21-24) /grifos meus/
O autor de “O umbigo e seus mistérios” é médico, poeta e fotógrafo -- Marcelo de
Almeida Toledo; seu texto encontra-se no livro Anatomia Topográfica. Apelidei o texto
de “Fenomenologia do umbigo”. Sua poética revela algo sobre aquilo que a psicologia
clássica nomeou a “simbiose mãe-bebê”, e o faz de uma maneira extremamente concreta
e humana; integra e sintetiza, no umbigo, o que cada um de nós viveu originariamente. A
vivência do encontro dos nossos pais, e da multiplicação celular do encontro do óvulo
com o espermatozóide que, poetizada, dá sentido a esse “pedaço do todo” de nosso corpo
-- o umbigo. Destaco a imagem do filho como “flor colhida”, pertinente e bem casada
com a Flor da vida.
Depois de cortado o cordão no parto, experienciamos outros cordões, cordas, cordinhas:
apegos aos outros, que nos dão lugar no mundo. O psicanalista Winnicott observou, em
sua prática profissional, inúmeras crianças apegadas a cordões, tanto em sessões de
análise quanto em situações cotidianas.
É curioso pensar na expressão popular para designar pessoas egoístas ou auto-centradas:
tudo parece girar ao redor do próprio umbigo. Isso também me remete a um comentário
do filósofo Merleau-Ponty sobre a noção piagetiana de “egocentrismo”; ele interpreta
esta condição de modo diferente, e diz que a criança encontra-se, originariamente,
mundocentrada – uma vez que, em idade tenra, suas “estruturas egóicas” não se
definiram. Retomarei essa discussão no entrecho do existencial “Mundaneidade”, mais
adiante.
É muito interessante olhar a partir deste ponto de vista: a criança de colo sem um
contorno definido, entregue, misturada ao corpo da mãe e ao mundo – mundo ao qual ela
lhe apresenta. Portanto a noção de ser-no-mundo é extremamente apropriada para falar
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sobre a vida da primeira infância: estou no mundo, que me é apresentado inicialmente
pelos adultos, que só pode ser apreendido a partir de meu corpo:
O meio humano parental é o mediador, na primeira infância, de
todas as relações com o mundo e com o ser. O que se chama de
inteligência é um nome para designar o tipo de relações com o outro, o
modo de intersubjetividade na qual a criança chega. (…) /grifo meu/
Merleau-Ponty (1990b:69)
Reside justamente nos “modos de intersubjetividade” a chave da compreensão
fenomenológica da vida humana e das relações, fundante para a compreensão da
realidade. Para o professor Guimarães Lopes, “a essência do fenômeno psíquico reside na
disponibilidade relacional” (1993:86). Está na capacidade humana de relacionar-se,
especialmente por meio da linguagem, a possibilidade da descoberta do outro e do
mundo. Escreve também o professor Guimarães: “Outridade é a constitucionalidade
própria do outro não simples carta de alforria por nós consentida ou tolerada” (idem
ibidem).
Nossa existência está destinada à convivência, a um existir social. O modo de ser criança
acontece, sempre, em intersecção com o modo adulto: a dupla criança-adulto (e portanto
eu-outro) é indissociável, no processo de hominização.
4
*
4
Uso essa palavra em conexão com o pensamento e a linguagem de Michel Serres,
filósofo francês contemporâneo que criou o neologismo “hominiscência” – algo que
designa a “emergência hominiana” para ir em direção a “uma outra humanidade”. (vide
Hominiscência/O começo de uma outra humanidade?; RJ: Bertrand Brasil, 2003).
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• O outro sou eu
Como o ‘eu penso’ poderia migrar para
fora de mim, se o outro sou eu mesmo?
Merleau-Ponty
O outro “sou eu mesmo” para o fenomenólogo pois, na experiência existencial de ser-no-
mundo, não é possível conceber qualquer pessoa ou coisa no mundo “por si só”,
isoladamente. Estamos mergulhados em situações relacionais, em contextos vividos, de
tal maneira que qualquer ato de isolamento ou busca por “objetividade pura” torna-se
impossível. Merleau-Ponty nos diz que a ciência tradicional, ao buscar neutralidade e
categorizações, realizou “o sobrevôo” do pensamento; e, para pensar
fenomenologicamente, o filósofo propõe a imagem do “mergulho da gaivota”.
Pensamento e existência são mergulhos humanos indissociáveis, tal qual eu-outro, eu-
mundo, eu-cultura são unidades relacionais.
As crianças estiveram mergulhadas no líquido amniótico; ao sair do ambiente intra-
uterino, mergulham na vida humana. O útero: imagem da primeira casa, meditou Gaston
Bachelard. Experiência aquática e simbiótica, de dependência total, avaliada por
psicólogos e psicanalistas como momento de extrema importância na gênese psíquica
individual. Na experiência de nascimento, no trabalho de parto, cada criança vive um
primeiro rito de passagem. Alguns místicos comparam a experiência intra-uterina àquilo
que nomeiam Nirvana: termo sânscrito para “supremo apaziguamento”.
Adultos costumavam fazer “trouxinhas” de seus bebês, amarrando-os em mantas ou
cobertores: isso era também uma maneira de propiciar apaziguamento ao recém-nascido,
reproduzindo a maneira de ser apertada de estar em um útero a termo. Quando uma mãe
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faz de seu bebê um pacotinho, ela mesma revive a situação do holding
5
intra-uterino,
lembrança de um segurar firme, longe das novas sensações de frio, calor, fome, susto
com barulhos, estranhamento do mundo enfim.
Em questão de dias o próprio bebê se incomodará ao ser contido na “trouxinha”. Sua
jornada em direção ao que Merleau-Ponty nomeia corpo próprio iniciou-se: busca sem
fim. No entanto a fusão entre ele e sua mãe -- e vice-versa! – ficará como marca indelével
da condição humana, revivida na situação amorosa, do apaixonamento, bem como na
experiência da cólera e da desilusão. É ou não o outro um eu-mesmo? Uma pergunta
filosófica que não cessará, ao longo da nossa existência.
*
• Quem sou eu? O Outro dos Outros
(…) eu antes tinha querido ser os outros para conhecer
o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os
outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria
ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.
Clarice Lispector
O psicanalista Winnicott comparou bebês a filósofos, e o fez, em certo sentido, na
contramão das propositivas piagetianas para o desenvolvimento humano. Para Winnicott,
5
“Holding” é um termo tipicamente winnicottiano e na maior parte das vezes traduzido
por “segurar”: (…) “minha tendência é pensar em termos de “segurar”. Isso vale para o
“segurar” físico na vida intra-uterina, e gradualmente amplia seu alcance, adquirindo o
significado da globalidade do cuidado adaptativo em relação à infância, incluindo a
forma de manuseio. (…) Num ambiente que propicia um “segurar” satisfatório, o bebê é
capaz de realizar o desenvolvimento pessoal de acordo com suas tendências herdadas. O
resultado é uma continuidade da existência, que se transforma num senso de existir, num
senso de self, e finalmente resulta em autonomia.” (In Tudo começa em casa. São Paulo:
Martins Fontes, 1996:22).
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desde tenra idade as crianças são efetivamente capazes de “simbolizar” – enquanto que,
para Piaget, a maneira de pensar da criança de tenra idade é “sensório-motora”, modo de
ser onde não é possível, ainda, simbolização. Mas Winnicott afirma que os bebês
“simbolizam” quando utilizam um brinquedo ou pedaço de fralda como “objeto
transicional”: objeto carregado de significação que apazigüa, rememora a mãe e as boas
experiências vividas com ela.
Ao afirmar que os bebês realizam uma pesquisa filosófica, Winnicott deu à criança
humana status de “pensador existencialista”: disse o psicanalista inglês que o bebê pensa
e pergunta quem sou eu?, por meio de vivências de aproximação e afastamento do Outro,
especialmente todos aqueles que exercem cuidados de maternagem. Vive-se,
inicialmente, sob o desígnio da vontade dos cuidadores, o tempo todo; com o passar
tempo, a criança pequena amadurece, modifica-se e impõe seu desejo: muitas vezes
dizemos que um bebê “já possui temperamento próprio”.
Penso que Clarice Lispector comenta, no texto da epígrafe, ser fácil “ser o outro” por
tratar-se de uma existência pautada naquilo que o outro “lê” em nós, tal qual a mãe que
agasalha os pés gelados de seu filho recém-nascido; difícil mesmo é trilhar o caminho de
separação, entre “Eu” e o “Outro”, caminho longo, e que entretanto nunca se completa;
poderemos vestir nossas meias, com independência, um dia, mas estar no mundo
“escrevendo” nosso percurso – em contraponto a “ser lido por um outro” -- é algo que
requer maturidade, tempo e capacidade para responsabilizar-se por uma existência. De
qualquer maneira, a compreensão fenomenológica do humano nunca fará separação entre
o percurso que eu escrevo e desenho daquilo que o outro lê e vê em mim.
*
38
• A outridade da criança pequena tornada visível
A análise da percepção segundo Merleau-Ponty permite
compreender melhor a questão do outro, logo colocar melhor esta
questão da comunicação. Ela situa-se entre a consciência íntima de si e o
anonimato da vida corporal, da qual é condição de existência.
(Dosse apud Heleno, 2001:22)
Inicio aqui meu convite ao leitor que deseje, ele mesmo, realizar uma fenomenologia das
crianças no mundo. Narrar de onde viemos e para onde vamos é algo que pode tornar a
relação criança-outro visível. Descrever e registrar a história pregressa das crianças,
realizar um Diário de Bordo -- não à maneira dos prototípicos “álbuns do bebê”, mas
antes com o colorido existencial que o dizer algo em palavra revela, sobre a relação dos
adultos com a criança que vai chegar. E que as palavras já possam ser, como quer
Merleau-Ponty, uma fala autêntica e significativa sobre a nova vida a caminho.
Merleau-Ponty dedicou aulas de seus Cursos na Sorbonne para discutir “As relações com
o outro na criança” (1990b / 63-149). É no registro escrito destas aulas que o filósofo
discute o “meio humano e parental” como mediador -- a fenomenologia da outridade na
infância, necessariamente, contará com a observação minuciosa do meio humano
mediador. Isso nos remete a uma espécie de culturalismo: “A relação criança-outro e a
relação criança e sua cultura estão profundamente ligadas” (1990b:131). Esse
“culturalismo” será retomado e discutido no Segundo Ato desta tese.
Anterior ao estudo das relações da criança com seus pais, irmãos e irmãs, o meio escolar,
etc., Merleau-Ponty nos apresenta um problema teórico a ser resolvido: “Em que
condições a criança entra em relação com o outro? Qual é a natureza dessa relação?
Como ela se estabelece?” (1990b:69)
Merleau-Ponty critica a maneira de resolver o problema pela “psicologia clássica”, que
utiliza-se das noções de psiquismo (‘o que está dado a um só”) e de representação do
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corpo do outro. Ora, se “o psiquismo do outro é inapreensível na sua própria essência, é
incomunicável” – isso dificultará enormemente o estudo do estabelecimento de um “eu” e
um “outro”. O corpo do outro, para a psicologia clássica, é passível de um psiquismo
conhecido pela sinestesia (“meu corpo seria apreendido por mim por meio de uma massa
de sensações brutas que me ensinam a respeito do estado de meus diferentes órgãos, de
minhas diferentes funções”). Mas, se só posso adquirir consciência de meu corpo pela
sinestesia, “ela permanece impenetrável ao outro, e o conhecimento do outro torna-se,
então, impossível” (1990b:69).
A reforma proposta pelo projeto de psicologia fenomenológica de Merleau-Ponty inicia-
se com a substituição da noção de psiquismo pela noção de conduta, e a noção de
sinestesia pela noção de esquema de postura. Será assim que se constiuirá um “sistema
de dois termos”: “meu comportamento, o comportamento do outro – que constituem um
todo”. E nos remete a Husserl:
Para Husserl, por exemplo, a percepção do outro é como um fenômeno de
acoplamento (termo tomado ao mesmo tempo no sentido fisiológico e no sentido
mais geral de par): percebo o corpo do outro e sinto nele as mesmas intenções
que as que animam meu próprio corpo, e reciprocamente. Não se pode perceber
o outro se se faz a distinção entre um ego e outro; ao contrário, isto se torna
impossível se a psicogênese começa por um estado em que a criança se ignora
como diferente.
Tomo, pouco a pouco, consciência de que meu corpo é fechado em mim.
Correlativamente, produz-se uma modificação da imagem do outro, que aparece
na sua insularidade. (1990b:71)
Na criança recém-nascida, não haveria real percepção do corpo ou do outro: “até três
meses, há não noção de seu corpo mas somente uma impressão de falta de completude”.
Seu corpo é bucal e respiratório; e apenas entre o terceiro e o sexto mês, pelo processo de
mielinização, que a criança vivencia “a soldagem entre o externo e o interno”. (…) “Não
há esquema corporal total (…). Inicialmente a consciência do próprio corpo é
fragmentada” (1990b:73).
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Entre dois e três meses de vida, podem acontecer as primeiras relações com outras
crianças – por meio de um “contágio de gritos”. Quando completar cerca de seis meses,
será possível a criança fixar o rosto de outra criança
6
. Depois dos seis meses, a criança
adquire uma representação visual do próprio corpo, graças ao espelho e à imagem
especular: aparecem na criança condutas referindo-se à imagem – e não apenas mímicas;
ela “começa a tomar consciência de algo”, inicialmente pela imagem especular de outro
(seu pai, sua mãe). Em um primeiro momento, a imagem e o modelo pssuem existência
próprias: “a imagem especular é um fantasma do pai” /grifo do autor/. A criança nesse
momento disporia de “duas imagens visuais: seu pai e a imagem especular dele”
(1990b:75). No entanto, de si mesma, a criança tem somente uma imagem visual
completa de seu corpo – a do espelho.
Merleau-Ponty trabalha com um tripé entre a consciência introspectiva do corpo próprio,
a percepção do corpo visto do exterior e a percepção do outro. A evolução desta tríplice
relação acontece a partir da noção de espacialidade
7
: “a criança pode pensar que uma
pessoa pode estar em muitos lugares onde já viu essa pessoa”, como acontece para nós,
adultos, em sonhos ou estados hipnóticos.
Apenas perto de um ano de idade que a criança realiza uma “redução a uma imagem sem
realidade”:É porque nossa inteligência redistribui os valores espaciais, corrige os dados
de nossa experiência, que chegaríamos a reconhecer nossa imagem especular
como não real, a superar essa espacialidade aderente às imagens e as substituí-
las por um espaço ideal, com redistribuição dos valores espaciais.
(Merleau-Ponty, 1990b:76)
6
Trata-se do modo como Merleau-Ponty estuda e concebe a psicologia e a infância,
estudo situado no final da década de 40 do século XX. Observa-se hoje uma verdadeira
precocidade em alguns bebês, que não se “encaixariam” neste dizer – da mesma maneira
que a dentição ou a fala, bem como outros processos maturacionais, podem ter-se
transformado (evolução da alfabetização, primeira menstruação, etc.).
7
Isso confirma a necessidade de pensar, aqui nesta tese, os existenciais como um todo (A
Flor da vida mesma). É o que eu discuto e retomo a cada entrecho dos existenciais, sob o
recorrente título “Interfaces entre os existenciais”.
41
No entanto “esse sistema de correspondência entre imagem e corpo” não estará
“perfeitamente adquirido com um ano” de idade sem falhas: restarão traços do fenômeno
primitivo. De fato, para Merleau-Ponty, mesmo o adulto apresentará “dois modos de se
perceber: um, analítico, refletido, e o outro, global, direto, que implica a própria presença
de um ser animado” (1990b:76). A imagem “é de certo modo uma encarnação”, “é algo
de misterioso, de habitado”.
Merleau-Ponty nos ensina o ponto de vista de Wallon, que “critica vivamente a noção de
sinestesia: esse conhecimento do corpo por si mesmo é um fato da psicologia adulta”. A
criança vivencia de modo indistinto o que é visual e o que é introceptivo: “para Wallon, o
corpo introperceptivo, o corpo visual e o outro formam um sistema” (idem ibidem). Seria
impossível que a vida de uma criança se limitasse a si própria.
O filósofo também acrescenta o ponto de vista do psicanalista Lacan – afirmando que a
psicanálise procurou “dar a esse problema um sentido mais concreto”. O júbilo da criança
muito pequena diante do espelho (“criança que ainda não atingiu a maturidade motriz
nem a maturidade das conexões nervosas e em quem subsistem reminiscências de
humores maternos”) revela o início do fenômeno de “identificação”: “a transformação
produzida no sujeito assume uma imagem”. Desse momento em diante, a criança será
capaz de ser “espectador de si mesma” – não é mais apenas um “eu sentido”, mas agora é
“um espetáculo” – “alguém que se pode ver”. Surge uma nova aquisição: a contemplação
de si (“atitude narcísica”, como quer o psicanalista). E ao mesmo tempo, a partir desta
aquisição, torna-se possível um outro estado: de “alienação, de captação do eu por uma
imagem espacial. A imagem me prepara para uma outra alienação, a do eu pelo outro
/grifo do autor/ (1990b:78).
Penso que existe uma conduta infantil exemplar, a ser visitada, para compreendermos a
gênese de separação e de descoberta do “si mesmo”: a birra. A birra, vista no senso
comum como teimosia ou má-criação, é, do ponto de vista psicológico, uma
“manifestação de desagrado pelo impasse entre o querer e o não poder” (Matos & Nunes,
1984:40). Ou seja, trata-se de um conflito da criança com ela mesma: sendo este o
42
enigma a ser decifrado, e a dificuldade dos adultos frente a este modo de ser da criança.
Usualmente os adultos tendem a “bater” ou a “ceder”: desesperados com a força da cólera
infantil, tomam ou o caminho da atitude punitiva, ou o caminho da atitude permissiva.
Proponho pensar uma terceira via para compreender as crises de birra. Se esta conduta
revela a manifestação de um impasse, da criança com ela mesma… esse momento de
fúria pode ser enfrentado pelo adulto de maneira a permitir seu acontecimento. Pois
“expressar tais sentimentos e sonhos não determina a obrigatoriedade de sua realização”
(idem ibidem, p. 46).
Merleau-Ponty também comenta esses acessos infantis, e utiliza-se do termo cólera. Para
fazer reflexão sobre esta conduta, o filósofo recorre ao fenômeno de “identificação”:
A relação entre a criança e o adulto é uma relação singular de
identificação. A criança se vê nos outros (como os outros se vêem nela). A
criança vê nos seus pais seu destino, ela será como eles. Há nela essa tensão
particular entre aquele que não pode viver ainda segundo o modelo e o modelo.
/grifo meu/ (1990b:220)
Merleau-Ponty comenta a existência de uma “crise dos três anos” na primeira infância;
isso comunica-se com o que Françoise Dolto (1984) formula como um “ciclo de alegria-
luto”. Há, na criança pequena, caminhos tortuosos a percorrer, que revelam “frutos
descriadores”; esses caminhos estão presentes em uma estranha maneira, um estranho
querer da criança: “querer ser um nada” – contraponto ao “êxito de uma fecundidade
engajada, carnal, afetiva e social, na dignidade das trocas éticas e inter-humanas”(1984:
78).
Para Merleau-Ponty, a cólera engendra “um princípio demoníaco”:
Deve-se admitir que existe em nós um princípio demoníaco, tendência
para a estagnação, força de movimento e contramovimento. Está presente em
toda parte. O si é habitado por tal potência de negação. Toda busca de prazer
tende à distensão, ao repouso. Em suma, nos nossos próprios instintos existe uma
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vontade de morrer, de cessar; simplesmente o organismo só quer morrer à sua
maneira. Assim, há, no interior de si, aspectos negativos, um instinto de morte, e
no eu, aspectos positivos. /grifos do autor/ (1990b:95)
Argumenta portanto o filósofo que a conduta de agressividade em relação ao outro é
“uma espécie de defesa do indivíduo contra si mesmo; é uma maneira de ignorar seus
próprios perigos interiores” (1990b:94). O filósofo equaciona, em termos freudianos: “eu,
si, superego” (…) “não são três realidades exteriores uma à outra, mas três aspectos de
uma só dialética, a da vida pessoal” /grifo meu/. De maneira interessante, Merleau-
Ponty nomeia um sistema de três termos:
O eu consciente (minhas “técnicas” de vida, o que eu aceito ser).
• O si (minha espontaneidade).
Os outros e seu representante em mim. /grifos do autor/
Assim “a criança a cada minuto está orientada em direção a uma vida da qual não tem a
técnica e é, pois, inevitável que queira “ser” aqueles que não pode “ter”. A identificação
ameaça todas as nossas relações com os outros.” (idem ibidem)
A outridade, ou a relação criança-outro, é um fenômeno extremamente complexo, rico e
estruturante – a ponto de Françoise Dolto chegar ao radicalismo de, ironicamente, afirmar
que “infelizmente, nós as influenciamos também, mesmo sem o saber” (2005:325). Do
ponto de vista da psicologia fenomenológica, será preciso cuidar e observar atentamente
essas relações – e cuidar, em especial, da linguagem, de tudo aquilo que se diz, bem
como do que não se diz!, às crianças pequenas.
Voltando à conduta da birra, tantas vezes associada ao ciúme, à inveja, e portanto a coisas
que os adultos costumam ter dificuldade de tolerar nas crianças, proponho mudar o foco:
aceitar que a criança é uma pessoa, um ser de emoções e condutas diversificadas, bem
como ambíguas e complexas, desde a mais tenra idade.
*
44
• Interfaces entre os existenciais
Parece clara a intersecção entre as noções de corpo próprio e de outridade, na vida
humana em geral, e particularmente na vida inicial da criança. Faz sentido pensar na
grande importância que o psicanalista Winnicott deu à maternagem: à maneira de ser
segurado (holding, noção comentada em rodapé, pg.37), amparado e cuidado pelo adulto.
As discussões a seguir ampliarão este leque de compreensão na tríade proposta por
Wallon e comentada por Merleau-Ponty: o corpo que sinto, o corpo que vejo e o outro
que me cuida e ampara, vistos não como entidades separadas, e sim uma unidade na
experiência inicial da infância.
Também fica transparente a inter-relação entre percepção da outridade com a noção de
espacialidade: é preciso que haja um espaço, uma distância percorrida entre eu-e-você,
de modo que eu realize quem sou eu? E onde está você? Inúmeras brincadeiras de criança
vão revelar esta pesquisa existencial e este jogo espacial – seja o bebê jogar algo do alto
do cadeirão para que alguém pegue de volta, seja a brincadeira de esconde-esconde, onde
ser achado é fundamental.
Poder proporcionar a experiência da imagem especular, levando a criança pequena ao
espelho; buscar conversar e brincar muito com ela, respeitando seu ponto de vista –
revelado em atitude corporal antes da fala – é o caminho existencial e relacional para
trazer a relação criança-outro à tona. A fenomenologia da outridade depende portanto de
que esse Outro ali esteja: paciente, conversador, cuidadoso e observador dos modos de
ser do bebê e da criança um pouco maior. A convivência com outras crianças amplia o
leque de possibilidades de descoberta e de acolhimento nos braços do amigo…e de
resistência, por assim dizer, às hostilidades do irmão maior, ou do desejo hostil na relação
com o irmão ou com o amigo. Trata-se de algo de responsabilidade dos adultos que
convivem e trabalham com crianças, nesses primeiros anos constitutivos do ser-no-
mundo, ou do ser-com-o-outro. A chegada de um irmão certamente rompe a atitude
anterior e provoca uma reestruturação diante da noção de outridade: “Depois de ter-se
mantido no seu presente, que considerava absoluto, a criança muda sua atitude: ‘Tomam
45
meu lugar’. A criança reestrutura suas relações com o outro, reestrutura seu universo.”
(1990b:68). Por meio da chegada na família de um recém-nascido, a criança “aprende a
relativizar as ações de mais novo, mais velho” (idem ibidem). Essa experiência é rica e
propõe também novas relações de tempo e de espaço. A conversa e o diálogo francos
com a criança podem, ao longo dos meses, propor à criança “deixar sua posição de objeto
privilegiado e assumir uma atitude maternal quanto ao recém-nascido”. Isso possibiltará
novos desígnios, novas percepções e apreensões de si, do outro e do mundo.
Mas bem sabemos da existência do Outro que não ouve, que não olha, que não ampara a
criança com palavras… A lingüisticidade, condição existencial do humano, transmitida à
criança pelo adulto de modo que ela possa estar-com-o-outro e inserida na cultura, pode
revelar-se também por maneiras cruéis, de maltratos. Por vezes adultos cuidadores
“agem”, ao invés de falar à criança: imprimem assim uma espécie de modelo – modelo
que parte, inclusive, da condição intelectual de quem cuida. Há que realizar a
fenomenologia destas relações nem tão felizes. Como pensar a capacidade do próprio
adulto para condutas como a birra, a inveja, o ciúme… ciclos de alegria-luto?
O caminho da linguagem, especialmente da linguagem poética, abre e amplia o horizonte
comunicativo das situações terríveis, e, por vezes, insondáveis. Proponho, como exemplo,
visitarmos “Uma canção desnaturada”, de Chico Buarque:
Por que cresceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo
De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
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Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinqüenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins
Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído.
Para o leitor que desconhece a canção, ela faz parte do libreto de A Ópera do Malandro
(1979), e é cantada em forma de acalanto. Ouví-la é sempre paradoxal e nos leva a um
lugar desconfortável, e faz pensar sobre como e por que as crianças vêm ao mundo.
Quando foi composta e gravada pela primeira vez, eu era muito jovem, e fiquei muito
impressionada. Fico ainda.
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A canção traz um enigma a ser decifrado: Curuminha já “nasceu pronta”, maquiada,
vinda de um lugar “de onde nunca deveria ter saído”. O enigma é carregado pelo mistério
da crueldade humana – especialmente a crueldade possível entre mãe e filha, relação
bastante discutida, e tantas vezes idealizada, na história do conhecimento psicológico.
Talvez Chico Buarque provoque em seu ouvinte a desconstrução de noções pré-
concebidas acerca do “amor materno”; noções com fortes raízes românticas, e que se
alimentam de concepções religiosas, místicas e imaginárias, sobre a feminilidade
inclusive; o compositor e poeta traz à tona a “sombra” da maternidade, seu avesso: o
cansaço, o desprazer, o desejo de estar em outra condição. Não é fácil descolar ou
“arrancar do chão” as raízes do assim chamado “amor materno” -- raízes que incluem um
pensamento sobre a infância, com forte marca do que se costuma chamar “natureza
humana”.
A reflexão de Merleau-Ponty nos Cursos na Sorbonne ensina que natureza e cultura não
se separam – trata-se de uma separação artificial. Portanto, o sentimento da mãe por seus
filhos revela, sempre, aspectos culturais e antropológicos, bem como dados vivenciais
daquela mulher em particular (como engravidou, como viveu a gravidez, com quem
compartilha esta experiência, se compartilha, etc).
A questão do “amor materno” insere-se, portanto, em um tempo e um espaço, e para
compreendê-la fenomenologicamente, nossa pergunta inicial será: em que tempo e em
que espaço estão as mães e os bebês em relação? Quem são eles? É necessário pensar de
maneira contextualizada, no sentido cultural e antropológico, sempre.
* * *
48
49
Não ter nascido bicho parece ser uma de
minhas secretas nostalgias. Eles às vezes
clamam do longe de minhas gerações e
eu não posso responder senão ficando
desassossegada. É o chamado.
Clarice Lispector
• Unidade do corpo próprio
A noção fenomenológica de “corpo humano” difere do corpo biológico bem como do
corpo da física, corpo-massa ou corpo-coisa: daí a definição do existencial
corporalidade. Talvez não haja algo mais precioso para compreender as três facetas
simultâneas da vida humana
8
– o mundo circundante, partilhado, ou o ambiente
(“umwelt”), o mundo das inter-relações (“mitwelt”) e o mundo próprio (“eigenwelt”)
– que a noção fenomenológica do corpo, pois a corporalidade abarca, necessariamente, as
três dimensões daquilo que Ludwig Binswanger desdobra como “nível ôntico-
antropológico” do existir humano (in Existencia, org. May, 1977).
Corporalidade, portanto, não é sinônimo de corpo biológico, mas o contêm e está contido
nele; corporalidade não é pura e simplesmente minha relação corporal com o mundo, mas
a contém e está contida nela; e finalmente, a corporalidade não é o “para mim”, mas o
8
Segundo Rollo May: “Los analistas existenciales distinguen tres tipos de mundo, es
decir, tres aspectos simultáneos del mundo que caracterizan la existencia de cada ser-en-
el-mundo. Está primero el Umwelt, que significa literalmente “el mundo alrededor”; éste
es el mundo biológico, llamado generalmente ambiente. El segundo es el Mitwelt
literalmente el “co-mundo” – que designa el mundo de los seres de nuestra misma
especie, el mundo de nuestros semejantes. El tercero se llama Eingenwelt – o “mundo
propio” --, y compreende las relaciones personales del individuo consigo mismo.” (In
Existencia/Nueva Dimension en Psiquiatria y Psicologia, Madrid: Editorial Gredos,
1977, p. 86-87).
50
contém e está contido nele, e portanto é também desvelado nas noções psicológicas
clássicas de propriocepção, auto-consciência, auto-imagem e esquema corporal.
O mundo biológico expressa-se e conversa com a criança por meio do sono, da fome, do
calor, do frio, dos movimentos peristálticos, da coceira, dor e tantos outros fenômenos. O
mundo das relações contagia a criança com aquilo que lhe vem dos contextos, das
situações e do outro. O mundo próprio é a faceta mais misteriosa e assombrosa, onde a
corporalidade pode ser considerada, inicialmente, um rabisco de si: mais tarde acontecerá
um contorno, limite-e-espaço, algo que surge com o passar do tempo e das inúmeras
experiências relacionais com os adultos, especialmente as vivências de cuidado com
continuidade.
O dizer do adulto conversa com a criança, traz palavras que nomeiam estados corporais:
Como você é lindo! Está gordinho! Ficou febril… arde em febre! Não dormiu bem.
Tenho medo que João fique manco… e assim por diante. Portanto nossa corporalidade
está envolta numa rede de significações tramada pela lingüisticidade, ou seja, tramada
pelas relações das pessoas ao redor com a língua mãe, com sua cultura.
A corporalidade é uma noção central para compreender e concretizar a fenomenologia
das relações da criança consigo mesma, com o outro e com o mundo: implica em estar
vivo, ter um eu, e ser este eu; algo vivenciado e a ser completado, processualmente; algo
nunca plenamente situado ou satisfeito; algo inúmeras vezes sitiado e limitado,
especialmente pela dependência total do outro que o bebê e a criança pequena
apresentam.
Merleau-Ponty afirma que há em nós uma “natureza primordial”: situada aquém de toda e
qualquer cultura, aquém de toda e qualquer humanidade. Talvez seja esta “natureza
inumana” a que se refere Clarice Lispector em sua lembrança de não ser bicho
9
. O
filósofo afirma que, nesta chave, não há divisão entre “sentidos” e “inteligência”. Esta
9
Talvez “natureza primordial” também seja aquilo a que Lyotard (1997) referiu como “o
inumano” (em obra homônima), uma dimensão “não-dominável” do ser -- mistério e
enigma para todo processo educativo.
51
porção inumana certamente encontra-se no corpo próprio da criança pequena. Esta
“natureza primordial” permite a concepção de uma unidade: “a coisa intersensorial” –
algo que não se explica intelectualmente nem tampouco de modo empírico “puro”.
Apenas a unidade do corpo próprio compreende esse evento. Nossos sentidos operam
em conjunto e nos dão a experiência da realidade, uma realidade intersensorial. O
filósofo também postula que o todo, no corpo, é anterior às suas partes.
O corpo é o sujeito da percepção: e não um intermediador! O corpo, define Merleau-
Ponty: “um entrelaçado de visão e movimento” (1980:88).
O corpo é veículo do ser-no-mundo, é veículo de nossa existência. Existe, para Merleau-
Ponty, “um comércio anterior e originário com o mundo”: anterior à
representacionalidade e às questões do conhecimento; anterior às partes e possuidor de
um todo, cujos dados se entre-exprimem. Isso define um “espaço nosso corpo” –
diferente da espacialidade de posição.
A noção de corporalidade é central na crítica fenomenológica a um aspecto do
cartesianismo, o aspecto que define o ser humano: por meio do corpo vivido, por meio
desta maneira de ver e de dizer o corpo humano-humanizado, a Fenomenologia rompe
com a clássica dicotomia cartesiana entre corpo e alma, matéria e espírito. Ao traduzir a
humanidade do corpo humano pela corporalidade, os fenomenólogos libertam o corpo de
sua “velha” cisão com a mente, e prometem inaugurar uma “nova era”, um novo modo de
encarar os fenômenos humanos; algo que possibilitará um outro discurso acerca do
“Eu” – algo que poderá implicar também em uma nova Psicologia.
Se não há separação entre eu e o outro, se não há tampouco separação entre eu, o outro e
o mundo… a Fenomenologia merleau-pontiana propõe também a não-dicotomia entre
pensamento e mundo sensível, separação decorrente de uma herança filosófica da
Psicologia como ciência; a partir desta concepção de “Eu”, ser-no-mundo, poderá ser
traçada uma outra via para pensar o corpo e o espírito humano: surge a possibilidade de
concretizar um projeto, uma outra forma de estudar e de praticar Ciências Humanas.
52
Na chave fenomenológica, eu estou no mundo tanto quanto o mundo está em mim.
Portanto o corpo pertence, simultameamente, à ordem do “sujeito” e à ordem do
“objeto”: “os corpos pertencem à ordem das coisas assim como o mundo é carne
universal” (Merleau-Ponty,1984:133-34). O corpo está tanto “dentro” de mim quanto
“fora” de mim, simultameamente. Quando me olho no espelho e entro em relação com
minha imagem, vejo meu corpo e sou visto por ele. Eu o sinto e sou sentido por ele,
especialmente no contato da pele com o outro. Vidente e visível, tangente e tangível, o
corpo é “móvel movente para si mesmo. O corpo é um enigma.” (Chauí, 2002: 177-78).
E qual é este enigma? Tal como formulado por Merleau-Ponty,
O enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível.
Ele, que olha todas as coisas, também pode olhar a si e reconhecer no que está
vendo então o “outro lado” do seu poder vidente. Ele se vê vidente, se toca
tateante, é visível e sensível por si mesmo. É um si, mas não por transparência,
como o pensamento, que só pensa o que quer que seja assimilando-o,
constituindo-o, transformando em pensamento – mas um si por confusão, por
narcisismo, por inerência daquele que vê naquilo que ele vê, daquele que toca
naquilo que ele toca, do senciente no sentido – um si, portanto, que é tomado
entre coisas, que tem uma face e um dorso, um passado e um futuro…
Este primeiro paradoxo não cessará de produzir outros. Visível e móvel,
meu corpo está no número das coisas, é uma delas; é captado na contextura do
mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas já que vê e se move, ele mantém as
coisas em um círculo à volta de si; elas são um anexo ou um prolongamento dele
mesmo, estão incrustradas na sua carne, fazem parte da sua definição plena, e o
mundo é feito do próprio estofo do corpo. (…) /grifo meu/
(1980: 88-89)
*
A experiência da corporalidade propicia às crianças vivências únicas, próprias: o sol, a
lua e as estrelas também fazem parte de mim! Também estão em mim a cultura de meus
pais e a cultura dos povos do lugar de onde vim: incluindo religiosidade e não-
religiosidade. Sem nunca esquecer o aspecto inumano, algo intraduzível em palavras,
53
algo que me põe em marcha para tornar-me humano, a partir da cultura dos adultos ao
redor, a partir de meu amor por eles, e de sua solicitude; como negativo, sombra ou o
“avesso do avesso”, precisamos olhar para a crueldade possível entre pessoas, em palavra
e em ação -- crueldade que, quando estabelecida entre adulto e criança, gera um estrago
imenso, pela marca indelével de uma relação de poder injusta e abusiva.
Penso que há algo sagrado
10
na experiência da corporalidade: a vivência de contato
significativo com a vida – e com a morte; comigo, com a cultura e com a natureza, no
mundo. Isso aconteceu inicial e especialmente na experiência do parto: passagem. A
mulher dá à luz. O bebê recebe o sopro da vida, e eis que os pulmões enchem-se de ar:
respiram. Como início de muitas outras travessias e viagens, a passagem de dentro do
corpo da mãe para fora dele, em direção ao mundo, deu início à sacralização da
experiência corporal. Sacralização certamente profanada por meio da cotidianeidade da
vida: “Lugar sacralizado é profanado pela contingência, que rói toda a expectativa
existencialmente projetada, corrói a capacidade humana, destrói o escolhido” (Guimarães
Lopes, 1993:77).
A sacralização (“a categoria mais meticulosamente destruída pelas luzes da ciência”,
segundo o filósofo Hans Jonas (apud Heleno, 2001) ) passará a ser ritualizada pelo
cuidado do adulto: alimentar, limpar, dar colo, segurar a mão, acolher… Sacralização
rompida, abortada pelo descuido do adulto: maltratos, perversões, impossibilidade de
contato…
10
Digo “sagrado” no sentido de “estado de graça”, como formulado por Clarice
Lispector: “O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas
para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado, além da tranqüila felicidade
que irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça
tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe. (…) E
há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma em um
dom. E se sente que é um dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando,
numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.(…)” /grifo meu/
(fragmento da Crônica “Estado de graça” in Cadernos de Literatura Brasileira/Clarice
Lispector, São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004, p.84)
54
Na disponibilidade relacional, afirma Guimarães Lopes, reside a essência dos fenômenos
psíquicos; o autor nos propõe como questão fundamental da Fenomenologia : “Como se
constitui a relação comigo próprio, com o Outro e com as coisas que me rodeiam
como horizonte?” (1993:32) Pois está no corpo vivido a chave deste enigma: o corpo,
instrumento primeiro que apreende a mim, ao outro e às coisas do mundo. Corpo, sujeito
da percepção; percepção de um sujeito situado, inseparável do outro e do mundo.
*
• Os sentidos
A Fenomenologia parece privilegiar o lugar da visão -- o olhar -- ao descrever a
sensibilidade corpórea, bem como para caracterizar seu método. A Fenomenologia é um
método descritivo daquilo que vejo, do que é visível do fenômeno. Mais tarde, os
desdobramentos da Fenomenologia merleau-pontiana nos convidarão a descrever também
o que nos é invisível. Costuma-se dizer: “o olhar fenomenológico”; “uma visada
fenomenológica”; “nesta perspectiva”, ou ainda, “do ponto de vista da
Fenomenologia…”.
No cotidiano também, inúmeras vezes, privilegiamos o sentido da visão em nosso contato
com crianças pequenas. Por exemplo ao colocar móbiles (“brinquedos de olhar”) em
cima do berço ou da cômoda, no teto do quarto ou no visor do carrinho de bebê. Esses
brinquedos de olhar propõem ao bebê uma primeira experiência imaginativa -- mesmo
que rudimentar, do ponto de vista do adulto.
Também a palavra “olhar” é utilizada freqüentemente, na nossa língua, como sinônimo
de cuidar – e perguntamos: Quem está olhando as crianças?
Mas para falar da maneira própria de ser e de conhecer a si mesmo, ao outro e ao mundo,
típica dos bebês e das crianças pequenas… podemos escolher e dar destaque à
importância de outro órgão do sentido: o tato -- e o contato da pele.
55
Proponho visitarmos em especial o papel das mãos. Mas não devemos esquecer da noção
trazida da psicologia da forma, a Gestalt: os nossos órgãos dos sentidos são estrutura de
totalidade indivisa, totalidade contida no corpo próprio, quando o corpo encontra-se
neurologicamente saudável, ou com o cérebro intacto, como gosta de dizer Winnicott.
A pele é entorno, contorno, envelope, minha primeiríssima “roupa”, mas que, no entanto,
não “me separa” do mundo. Ensinam Boss & Condrau (1976) que “o existir não cessa
nos limites da pele do homem e nela não está contido”: estou mergulhado no mundo,
desde sempre.
As mãos do adulto que seguram a criança dão a ela a sensação daquilo que Winnicott
nomeoou holding: ser segurado, estar seguro; assegurado de não cair, não machucar, não
torcer o pescoço (ainda sem tônus) para trás… As mãos da mãe que segura o peito para
não sufocar o bebê amamentado; as mãos dos adultos que seguram a mamadeira que
alimenta o bebê. A mão do papai, na qual cabe a cabeça inteira do bebê; a enorme mão
que segura a pequeníssima mão do recém-nascido que chora. A mão do adulto que cuida
e traz, dia após dia, a experiência do contato.
Subitamente a mão do bebê começa a segurar, ela mesma: e dizemos, Ele já segura! Ou,
já sabe segurar. Saber segurar é um conhecimento inicial do poder das mãos, e do toque,
e do que é passivo e do que é ativo deste poder: conter, segurar ou atingir as coisas do
mundo – e soltá-las, lançá-las para longe, desistir delas.
Para Merleau-Ponty, há uma intimidade intrínseca entre visão e tato; uma aderência entre
vidente e visível, entre visível e tangível:
(…) Há visão, tato, quando certo visível, certo tangível se volta sobre todo
o visível, todo o tangível de que faz parte, ou quando de repente se encontra por
ele envolvido, ou quando, entre ele e eles, por seu intercâmbio, se forma uma
Visibilidade, uma Tangibilidade em si, que propriamente não pertence nem ao
corpo como fato nem ao mundo como fato – tal como dois espelhos postos um
diante do outro criam duas séries indefinidas de imagens encaixadas (…).
(2003:135)
56
Existe portanto um saber inicial não conhece a si mesmo, saber que é parte daquilo que
Merleau-Ponty denomina experiência pré-reflexiva, algo que se dá no corpo próprio:
vivenciado como totalidade e mergulhado no mundo. É certo que as crianças pequenas
olham com as mãos
11
, pensam com seu corpo. Antes da constituição do pensamento e da
linguagem, lá está o corpo vivido:
(…) que uma criança perceba antes de pensar, que comece a colocar seus
sonhos nas coisas, seus pensamentos nos outros, formando com eles um bloco de
vida em comum, onde as perspectivas de cada um ainda não se distingüem, tais
fatos de gênese não podem ser ignorados pelo filósofo (…).
Em todo caso, já que se trata aqui de tomar um primeiro contato com
nossas certezas naturais, não há dúvida de que elas repousam, no que respeita ao
espírito e à verdade, sobre a primeira camada do mundo sensível, e que nossa
segurança de estar na verdade e estar no mundo é uma só. /grifo meu/
(Merleau-Ponty, 2003: 23-24)
O filósofo estabeleceu esta discussão em sua última obra, O visível e o invisível,
publicada postumamente. Dez anos depois dos Cursos na Sorbonne, que tinham como
foco a psicologia infantil, o autor reafirma a extrema importância da percepção inicial da
criança para o filósofo que pensa a gênese do conhecimento humano. Reside no modo
espontâneo da criança pequena a experiência pré-reflexiva, a experiência do corpo
vivido, a crença ingênua da existência do mundo. Reside nesta “natureza primordial”,
também, a possibilidade da palavra criadora.
*
11
Lembro-me bem da conduta de minha mãe quando levava seus cinco filhos pequenos
para uma “visita de Natal” para o tio-de-casa-chique: durante toda a visita, deveríamos
manter nossas mãos voltadas para trás, de preferência uma mão segurando a outra, nas
costas: desse modo não cederíamos ao impulso de “olhar com as mãos” os lindos enfeites
daquela casa, uma casa tão diferente das usuais!
57
O verbo manifestar tem a mesma raiz que a palavra mão: se o fenomenólogo da
psicologia do adulto usa, até o exagero, as imagens da visão, aquele que busca a
fenomenologia da infância pode brincar exaustivamente com as imagens daquilo que se
manifesta: na pele, pela pele, no contato interpessoal, pelo tocar com as mãos; pela
apreensão, o bebê atinge um grande novo poder. Manifesta-se assim a trajetória que
ampliará sua vida, quando der passos para fora do berço! Em pouco tempo o bebê poderá
andar, quiçá segurando a mão generosa de um adulto hospitaleiro e acolhedor. Em
contato com sua espacialidade corporal (“espaço nosso corpo”) ele irá ao encontro da
espacialidade do mundo percebido (“espaço do mundo”).
Proponho ampliar a imagem da caminhada em direção ao mundo compartilhado, junto
com o leitor, meditando sobre os pés. O pé, “orgulho da arquitetura anatômica”; “um
alicerce que anda”. (…) “São milhares de pés, ilustres ou descalços, cheios de condição
humana” (Toledo, 1997:31-32).
Quando meu filho estava ainda na barriga, a obstetra conseguia segurar seu pezinho do
lado de fora, pela pele da minha barriga esticada; segurava e dizia: Olha aqui o pezinho
dele! Mesmo antes de nascer, os pés de cada bebê lá estão: ativos, dando chutes,
movimentando-se, expressando a vitalidade possível no espaço inicialmente folgado -- e
em poucos meses apertado -- do útero. Em um ou dois anos a criança poderá chutar uma
almofada, parede ou bola, e, logo depois, aprender a fazer o movimento de pedalar em
seu velocípede, em uso pleno do corpo e expressividade de seu ser-no-mundo. A mão do
adulto comunica-se cotidianamente com os pés da criança pequena: “o arco, aquela parte
lisinha da sola, é extremamente sensível e adora brincadeiras. Lá também mora a
cócega.” (Toledo, idem ibidem).
Na constituição de uma fenomenologia da primeira infância, não devemos esquecer
nunca que este curto espaço de tempo cronológico permite a manifestação do ser criança
numa velocidade incrível. O tempo e o espaço vividos pela criança pequena serão
discutidos a seguir, em momentos próprios da tese, desdobramentos acerca da
temporalidade e da espacialidade.
58
Cabe lembrar, para retomar as reflexões acerca da corporalidade, como a criança pequena
é “mínima”: cabia na barriga da mamãe!, -- e como ela fica “máxima” em apenas seis ou
sete anos, tempo comumente chamado de “primeira infância”, ou “pequena infância”,
expressão que emprestei dos pesquisadores acadêmicos estudiosos da infância hoje.
Na conclusão do livro A criança no mundo dos adultos, Delahaie-Ponderoux e Leprince-
Ringuet (1996) nos convidam ao pensamento-centímetro. Escreveram o livro buscando
ver o mundo do ponto de vista da criança; as fotos são todas tiradas “na perspectiva dos
bebês e das crianças” até seis anos de idade. O pensamento-centímetro
consiste em inclinar-se sobre as atitudes e os gritos do pequeno mundo,
perguntando-se a si mesmo: e se tudo isso pudesse ser explicado pelo fato de que
elas são pequenas e nós somos grandes? Muito, muito grandes!
(1996:136).
Pois será fundamental, para desenhar a fenomenologia da criança, lembrar sempre desta
proporcionalidade – ou diríamos, lembrar a des-proporcionalidade entre nossa casa,
utensílios, objetos do cotidiano, ruas, carros, ônibus, etc etc etc, diante do tamanho da
criança de zero a seis anos!
Volto às extremidades: falava das mãos e dos pés. Cabe agora chegar ao nariz, à boca,
aos ouvidos… Vovó, para que estes olhos tão grandes?, perguntava Chapeuzinho
Vermelho ao lobo vestido de vovozinha. É para te enxergar melhor, minha netinha!, o
lobo respondia. A menina não foi capaz de enxergar o lobo dentro da roupa de
vovozinha.
Os psicanalistas dão grande importância ao rosto e à comunicação entre-rostos,
espelhamento do ser. Winnicott recomenda às mães que, ao alimentarem seus bebês, seja
no peito ou na mamadeira, foquem sempre o rosto e o corpo de seus bebês. Para ele, este
contato íntimo e direto, olhos nos olhos, é parte inestimável da comunicação humana,
estabelecida e constituída originariamente na dupla mãe-bebê. Escreveu Françoise Dolto
sobre a mamada:
59
O ser humano que sobreviveu à ruptura umbilical do cordão vital em sua
forma de feto procura às cegas fora de sua forma própria, estendendo a boca em
todos os sentidos, a fonte do líquido quente que apaziguará o vazio que ele
contém em suas entranhas. O ciclo de alegria-luto está iniciado, sinônimo de
vida e trazendo seu fruto. /grifo meu/ (1984:55)
A boca do bebê estabelece com o seio da mãe, assim, uma comunicação primordial.
Disse Bachelard (1998): “A psicologia dos lábios mereceria, por si só, um longo estudo”.
(…) “A boca, os lábios – eis o terreno da primeira felicidade positiva e precisa, o terreno
da sensualidade permitida”. O discurso poético torna a noção de “oralidade” colorida,
apetitosa. De fato o recém-nascido é “um corpo bucal” e “um corpo respiratório”; “um
corpo introcepctivo”, como diz Merleau-Ponty, cujo primeiro contato exterior é a voz
humana. Daí o enorme valor dos acalantos! E da voz da mãe, da conversa humana: a
presença e o calor da voz que faz o bebê sentir-se intelocutor para alguém. Pelo olhar,
pelo ouvir, pelo cheirar e balbuciar, a criança desenvolve “os lugares da percepção da
alegria, do desejo compartilhado” (Dolto, 1998).
Os cheiros, os sabores, as tessituras da infância são propiciadas às crianças pelos adultos.
Sabe-se que o cheiro da mãe é um conhecimento anterior ao da visão definida de seu
rosto; apegar-se a um paninho com cheiro de mãe demonstra bem isso. O gosto do leite
também – o leite, segundo Bachelard, “o primeiro substantivo, ou, mais precisamente, o
primeiro substantivo bucal”, “na ordem da expressão das realidades líquidas”. Depois,
aos poucos, um mundo maior vai ser apresentado: sucos, frutas, bolachas… Novos
sabores.
Novos cheiros também: cheiro de almoço, jantar ou lanche; cheiro de cidade ou campo;
cheiros de dentro ou de fora de casa, passando por aquilo que sai de dentro da criança
mesma: lágrimas, suor, urina, regurgito, fezes, vômito… cheiros que o adulto vai dizer,
nomear como fortes ou “fedorentos”; até que, perto dos dois anos de idade, a criança tira
as fraldas, de modo a usar penico ou privada, quando ela mesma passará a nomear, a seu
modo, seu contato com o que sai de si.
60
O contato com a água (contato originário: viemos da água!) vai limpar as lágrimas, o
suor, a urina (existindo, para o bebê, “a ‘pequena orgia’ de fazer xixi”, segundo
Winnicott); o som da água, o cheiro do sabonete ou xampu, a pele sadia ou a pele ardida
por acidez demasiada… enfim, o banho -- e depois o mar e a piscina -- são oportunidades
maravilhosas para que a corporalidade da criança se manifeste. Esses contatos revelam
momentos únicos e preciosos para o adulto que deseja registrar a fenomenologia da
infância. Ensinou Bachelard: “A criança é um materialista nato. Seus primeiros sonhos
são os sonhos das substâncias orgânicas” (1998:9).
A relação corpo-água se ampliará quando a criança puder nadar. A relação corpo-ar
poderá ser observada também nas maneiras de brincar de corda, de bola, de balanço;
como se dança, como se pula. A relação corpo-terra vai enriquecer-se num momento
onde a criança não tenha mais o impulso de experimentar a areia e o barro com sua boca:
e, desse modo, surgirão castelos e bolinhos de terra ou argila. A relação corpo-fogo
também é possível, não em idade muito tenra. No entanto um bebê poderá contemplar a
chama da vela do sítio ou da fazenda, a fogueira de São João do ponto de vista espacial
do colo de um adulto, e, mesmo a temperatura do dia e o sol de primavera ou de outono,
são maneiras de experienciar o fogo do Sol. A criança com cinco ou seis anos pode
desenhar com o pirógrafo – “caneta de fogo” que desenha em superfícies de papel e de
madeira.
O adulto que refletir sobre os elementos da natureza, e sua relação com a vida da criança,
pratica uma fenomenologia da infância. Cada adulto que propiciar à criança contato com
os elementos da natureza, faz a ela um convite para enriquecer e humanizar a sua
sensorialidade, algo realizado especialmente pelo diálogo, pela conversação entre o
adulto e a criança pequena.
*
61
• Os lugares do corpo
Aquilo que Freud nomeia como “zonas erógenas” do corpo, Françoise Dolto
12
(1984)
prefere chamar de “lugar genital” ou “lugares do corpo”. Françoise Dolto realiza uma
fenomenologia da psicanálise infantil, e propõe para seu leitor uma nova maneira de
pensar nas “fases do desenvolvimento libidinal”, cerne da leitura freudiana sobre a
gênese da sexualidade infantil. Esses lugares do corpo são lugares erógenos, zonas de
prazer a serem descobertas por cada um, em relação com seu corpo, algo vivido
inicialmente na “díade simbiótica visível mãe-filho”.
Coube a Freud designar etapas do desenvolvimento do prazer corporal e da descoberta do
corpo, a partir do que denominou as fases da libido: estágio oral, estágio anal, estágio
fálico ou “exibicionista”, acontecendo, a seguir, um período de latência: latência da
curiosidade e do conhecimento corporal da sexualidade de maneira explícita. Em seguida,
a partir da puberdade, o desenvolvimento da libido caminha na direção da realização de
uma sexualidade adulta, ampliada e vivenciada em formas de amor e de trabalho.
Observo que os estudiosos da psicanálise da criança, tanto a psicanálise inglesa, cujo
ótimo exemplo é Winnicott, tanto a psicanálise francesa, especialmente na figura de
Françoise Dolto, trabalharam no sentido de olhar para as “fases da libido” como maneiras
de ser dos indivíduos -- contextualizados, “em situação”. Surge assim a hipótese de
realização de uma fenomenologia da sexualidade humana, a partir da descrição do modo
de ser da oralidade, do modo de ser da analidade, e assim por diante. Isso vai de
encontro com a “psicologia cultural” que Merleau-Ponty esboça em seus Cursos na
Sorbonne:
12
Faço especial referência a seu texto “Personalogia e imagem do corpo” in No Jogo do
Desejo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1984.
62
É preciso construir uma psicanálise e uma sociologia que não sejam
concebidas em termos de causalidade; é a orientação de uma nova psicanálise
antropológica, o culturalismo, que tende para uma síntese dos dados clássicos.
(1990a:133)
Portanto, a psicanálise contemporânea aproxima-se da fenomenologia descritiva ao narrar
os estados da oralidade, da analidade, da genitalidade, da chamada “latência”, e da
sexualidade humana da puberdade em diante. Sem esquecermos do importante estado
amoroso (e raivoso!) do momento chamado edípico, estado de apaixonamento vivido
pelas crianças pequenas por seus progenitores.
Winnicott parece ser pioneiro nesta chave, algo que implica em uma mudança de
linguagem. Originalmente psicanalista kleiniano, ao longo do tempo, em suas inúmeras
conferências e palestras para leigos, soube como ninguém poetizar a linguagem técnica
até então utilizada pela psicanálise ortodoxa. A partir de uma leitura cuidadosa de sua
obra, é possível enxergar uma “fenomenologia do bebê”: Winnicott está sempre em
busca do “ponto de vista do bebê” em sua relação consigo mesmo, com o adulto e com o
mundo. Exemplo disso: para falar para pais sobre a oralidade, ele nos diz, sobre o ato de
babar:
(…) os bebês não engolem a saliva – mostram ao mundo,
babando-se, que têm interesse nas coisas de que possam apoderar-se pela
boca. (…) A boca está preparada. O almofadado dos lábios, nessa época,
é muito sensível e ajuda a fornecer um elevado grau de sensação de
prazer oral que o bebê nunca mais voltará a ter em sua vida ulterior. (…)
Poderíamos dizer que o bebê sabe muito a respeito do leite até o momento
que é engolido. Entrou pela boca, provocando uma sensação definida e
tendo um sabor característico. Isso sem dúvida é muito satisfatório. E
depois é engolido, o que significa, do ponto de vista do bebê, que está
praticamente perdido. Os punhos e os dedos são melhores, a tal respeito,
porque ficam sempre no mesmo lugar e permanecem à disposição. Mas o
alimento engolido não está inteiramente perdido, pelo menos enquanto se
conservar no estômago. Daqui o alimento ainda pode ser devolvido. Os
63
bebês parece que são capazes de reconhecer o estado dos respectivos
estômagos.
(Winnicott, 1982:37-38)
*
O filósofo Bachelard também pensou a noção de libido infantil de modo fenomenológico:
(…) É na carne, nos órgãos, que nascem as imagens materiais
primordiais. Essas primeiras imagens primordiais são dinâmicas, ativas;
estão ligadas a vontades simples, espantosamente rudimentares. A
psicanálise provocou muitas revoltas quando falou da libido infantil.
Talvez se compreendesse melhor a ação desta libido se lhe devolvêssemos
sua forma confusa e geral, se a ligássemos a todas as funções orgânicas.
A libido surgiria então solidária com todos os desejos, todas as
necessidades. Seria considerada uma dinâmica do apetite e encontraria
seu apaziguamento em todas as impressões de bem-estar. (…)
/grifo do autor/ (1998:9)
Nesta “dinâmica do apetite” mora a oralidade; reside aí uma maneira de ser do humano
que concentra, na boca e nas possiblidades de uso da boca – isso o que inclui balbuciar,
morder, gritar, falar, cantar! -- a sensação de estar vivo.
Dia após dia, no trato adulto com a criança recém-nascida, a comunicação oral primoridal
com a mãe, e da mãe com seu filho, torna-se mais rica e colorida pela comunicação total
do corpo. Ser trocado, viver o trânsito intestinal e o processo digestivo em seu começo-
meio-e-fim, permitem à criança outra maneira de ser: a da analidade. E também a partir
desta cotidianeidade, da continuidade da vida corporal e do trato que a mãe e outros
adultos lhe dispensam, a criança de fraldas vivencia, na hora das trocas e do banho, o
prazer do toque de seus órgãos genitais e de sua região pélvica como um todo.
Quando da tirada de fraldas, ao usar “calcinhas” ou “cuecas”, outro lugar do corpo
tomará importância em grande proporção; considera-se a idade de dois anos e meio ou
três anos um momento de “exibicionismo” por parte da criança pequena: ela terá enorme
64
prazer em mostrar sua descoberta de ser “menina” ou “menino” para si, para o outro e
para o mundo. Como um outro lado do modo exibicionista, surge uma mudança de
perspectiva, que se mostra pelo “constrangimento de ser olhado”, algo presente na
criança perto dos três anos de idade: “O olhar do outro provoca na criança a consciência
de ser não somente o que é a seus próprios olhos mas também o que é aos olhos dos
outros”. (Merleau-Ponty, 1990b:84).
*
Merleau-Ponty conversa bastante com as bases do conhecimento psicanalítico da infância
nos seus Cursos na Sorbonne, e propõe ao leitor um modo de entender a psicanálise, que
traduz as atitudes primárias -- orais, de recepção -- e as atitudes secundárias -- anais,
de conservação -- como condutas: “Essas condutas estão ligadas pela presença
discerinível de um mesmo sentido, de um mesmo significado na vida humana, a
existência; são uma maneira de existir” (1990b:106). Para o filósofo, a boca, por
exemplo, é um “veículo” de um tipo de afetividade, que estará no adulto mais ou menos
genital. Nosso corpo e seu aparelho digestivo “só exercem um papel explicativo como
portadores de uma atitude típica do homem”.
Merleau-Ponty, ao discutir no segundo volume dos Cursos na Sorbonne as relações da
criança com o outro, na perspectiva freudiana, afirma que a “fase de sucção” (relação
criança-mãe que a nutre), é um modo de relacionar-se que não faz a criança “sair de
si”; o prazer a invade – daí dizer-se uma fase de auto-erotismo.
Haverá, em um momento posterior, uma fase caracterizada pela mordida:
O sentido das condutas de mordida torna-se compreensível graças ao
estudo dos primitivos: repasto totêmico, relação com o objeto sagrado pela
absorção, pelo consumo. A relação com o objeto é uma relação de destruição:
amar é destruir. /grifo meu/ (1990b:90)
65
Esse momento inicial da maneira de ser da oralidade, envolve elementos de sadismo, de
crueldade e uma espécie de instinto de poder. Mais tarde, a criança aprenderá a amar sem
sadismo.
Com a retirada das fraldas, a criança terá sua espontaneidade rompida: será necessário
controlar-se, por amor aos pais. “A retenção e a expulsão não parecem à primeira vista
reportarem-se às relações parentais. Mas é sob o controle dos pais que a criança aprende a
dominar seus esfíncteres” (idem ibidem). Isso explicaria o sentido freudiano ao ato de
defecar – “o sentido de dom e, mais tarde, o sentido de “pôr no mundo”. Esse ato torna-se
um meio, uma afirmação de poder” (idem ibidem).
Mas essa “ ‘libido inicial’”, no olhar do fenomenólogo, “nada se assemelha ao que é
denominado ordinariamente ‘instinto sexual’ ”. O filósofo então pergunta-se por que
então Freud chamou de sexual a atividade pré-genital, e responde que o psicanalista
(…) quer dizer que há conduta em relação às diferenças dos sexos, com o
pai e a mãe, enquanto são diferentes, sem que haja conhecimento do como ou do
mecanismo genital. Há sexualidade no sentido de uma antecipação de uma
discriminação dos sexos, anterior ao funcionamento total do aparelho genital, de
uma sexualidade prematura. (1990b:91)
*
• O corpo sexuado: ser menino, ser menina
Nasceu o bebê. Menino ou menina? Antes ainda, os pais souberam ou não o sexo do bebê
antes do parto? Antes antes ainda… buscaram propositalmente engravidar de “um
menino” ou de “uma menina” por meio de procedimentos tecnológicos?
E depois: seria o bebê “perfeito”?
66
Se menino ou menina, é preciso buscar a significação do sexo do filho para aquele casal,
para aquela família, na comunidade em que vivem, na cidade, estado e país… Não
haveria como dizer, de antemão, como uma criança vai concretizar sua existência no
âmbito da sexualidade.
A sexualidade está contida na noção de corporalidade. É próprio da Psicologia
Fenomenológica descentralizar o lugar privilegiado da sexualidade humana como posto
desde Freud, propondo um novo olhar: agora centralizado, justamente, na noção de
corporalidade. Para o pensamento fenomenológico,
o sexual não existe em si. É um sentido que dou a minha vida e, se a
história sexual de um homem fornece a chave de sua vida, é porque na
sexualidade se projeta a sua maneira de ser em relação ao mundo, ou seja, em
relação ao tempo e aos outros homens.
(Merleau-Ponty apud Lyotard, 1999: 70)
A região genital, junto com a boca e a região pélvica, do ânus e da uretra, são especial
fonte de prazer; desde muito cedo, as crianças se tocam, colocam as mãos no pênis,
exploram o botão do clitóris, brincam e buscam prazer no exercício da curiosidade e da
apropriação da geografia do seu corpo; desenham, assim, cartografias dos espaços de
prazer. Para Merleau-Ponty, “trata-se pois de uma sexualidade difusa, anônima” – daí a
sexualidade da criança pequena ser ambígüa: “um corpo que ainda não é genital é,
contudo, capaz de comportar caracteres sexuais” (1990b:92).
Novas conotações para os prazeres corporais se desdobram na criança pela imitação da
atitude dos outros: sua observação do cotidiano de outras crianças, de adolescentes e de
adultos, observados, desde sempre: na casa, no quarto, no chuveiro, na praia ou na
piscina, em festas, em discussões, em todo tipo de momentos de intimidade enfim. E
surgirão conotações e significações pela resplandência das relações de encontro:
(…) toda relação humana é resplandescente, ela “transborda” do seu
círculo imediato. Não há relações a dois: mesmo as relações entre marido e
67
mulher englobam todo um conjunto de dados que influi sobre seus sentimentos
recíprocos. (Merleau-Ponty, 1990a:103)
Como os adultos ao redor se comunicam, por diálogo e por atitude, com a criança que ao
descobrir seu corpo busca os prazeres do toque de seu sexo, é algo passível de observação
fenomenológica – bem como a resposta, em atitude, palavra ou silêncio, da criança
mesma. Para Merleau-Ponty,
A relação com o outro pode determinar uma certa identificação com ele
(…). Esse fato mostra-nos que o lado “relações com o outro” sobrepuja o lado
“sexual” individual. Assim, a “corporalidade” supera a “sexualidade”, que pode
ser considerada um caso maior; a sexualidade é importante enquanto é o
espelho de nossas relações com o corpo.
Vemos pois que a sexualidade intervém a título de componente em relação
à corporalidade; ora, a conduta não pode ser explicável por ela só.
/grifo meu/ (1990a:102)
Merleau-Ponty realiza uma bela e generosa leitura da psicanálise, isentando-nos de uma
“fatalidade imperiosa” relativa ao passado, à história pregressa ou às fases da libido:
A psicanálise refere-se às funções do corpo e à maneira total de existir. O
corpo, por sua própria estrutura, superacentua certas atitudes. (…) Para
a psicanálise, original é a estutura do corpo como emblema da vida.
/grifo meu/ (1990b:106)
Haveria então que compreender a psicanálise no ponto de vista que olhe para sua leitura
da sexualidade infantil como conduta, que abarca certas atitudes: “no estádio oral,
atitude de recepção; no estádio anal, atitude de posse; na fase genital, atitude de dom.
Um desenvolvimento bem sucedido supõe uma integração dessas três atitudes” . Só
haveria sentido em interpretar o corpo ou o aparelho digestivo sob uma ótica explicativa,
se “portadores de uma atitude típica do homem”. (idem ibidem)
Até perto dos três anos de idade, a criança não se saberia menino ou menina; ela
68
(…) considera sua pertença à raça humana como um caso particular de sua
relação com seus pais, o que não a impede, na vida imaginária, a superposição
de sua pertença ao mundo das coisas, dos vegetais e dos animais.
(Dolto, 1984:64)
Portanto, é na convivência com o meio parental, com liberdade e riqueza, que a vida
imaginativa poderá proporcionar à criança experiências corporais que integrem recepção,
posse e dom, de maneira que as condutas sexuais sejam vividas como continuidade da
vida mesma. Com base na autonomia “vegetativa e cinestésica do corpo da criança em
relação ao corpo da mãe”, a criança caminha, corre, pula, deita e levanta… rumo à
independência e em direção ao seu êxito de fecundidade, nas palavras de Françoise
Dolto.
*
• A corporalidade da criança pequena tornada visível
(…) a verdadeira essência da corporeidade escapa sempre e
imediatamente no momento exato em que se faz uso da
possibilidade de vê-la como qualquer objeto inanimado e
mensurável.
Medard Boss
A questão da corporalidade humana complexifica-se da mesma maneira que as formas de
reprodução: inseminação artificial, possível gravidez gemelar, e, numa gravidez múltipla,
possível escolha de remover um dos embriões… Questões, hoje, existenciais e ético-
religiosas também.
Do ponto de vista fenomenológico, todos estes temas são convites a discussões sócio-
culturais, históricas, antropológicas, que podem ser levadas em conta para compreender
69
quem é a criança -- da qual se fala, com a qual se relaciona. O modo como os pais
conceberam o filho é parte do fenômeno familiar e relacional; trata-se também de um
importante dado biográfico da criança. Há que lembrar sempre das crianças adotadas e
das crianças que vivem hoje em lares constituídos por casais homossexuais: questão
social e antropológica emergente.
Merleau-Ponty nos ensina que somente a análise da situação infantil e da situação adulta
pode fundamentar a pesquisa fenomenológica. Nos anos 50, em seus Cursos na
Sorbonne, Merleau-Ponty criticava o excesso de “racionalismo dogmático” na Psicologia
da criança, propondo, em contrapartida, um saber afetivo. É este saber advindo da
pesquisa fenomenológica que busco neste doutoramento e compartilho com o leitor.
Este saber necessita de uma novidade: a criação de uma linguagem acerca das relações
adulto-criança. Uma linguagem a ser criada com rigor, rigor fenomenológico que requer
atitude científica:
(…) a única atitude científica em psicologia da criança é aquela
que visa obter, por uma exploração exata dos fenômenos infantis e dos
fenômenos adultos, um resumo fiel das relações entre a criança e o
adulto tais como se estabelecem efetivamente na própria pesquisa
psicológica. /grifo meu/ (Merleau-Ponty, 1990a: 246).
É preciso não esquecer do necessário “não-objetivismo” -- e também “não-
introspeccionismo” -- para observar e registrar fenomenologicamente o resumo fiel das
relações, desafio merleau-pontiano para a elaboração de uma psicologia da criança.
Portanto, não se trata de olhar para o corpo da criança como olha o pediatra, nem
tampouco falar de emoções suscitadas e sentimentos acerca daquela criança e sua
infância apenas, e sim, procurar o olhar situado, contextualizado, antropológico.
Por não se tratar de uma “abstração” nem de um “conceito”, tornar visível a
corporalidade da criança pequena é permitir-se mergulhar, como pesquisadores,
educadores, psicólogos, na atitude descritiva proposta pelo método fenomenológico. Para
saber a corporalidade, é preciso vivê-la, compartilhá-la, observá-la: em mim, no outro,
70
no mundo, e descrevê-la em palavras – e silenciar também, quando não couberem
palavras.
A fenomenologia da corporalidade da criança, passível de ser descrita por um adulto,
partirá da observação de situações cotidianas e relacionais, entre adultos e crianças,
sempre. Aquele que observa está aqui convidado a criar seu próprio pensamento
centímetro. Isso podemos atingir, inicialmente, pela memória reavivada da nossa própria
infância. Aquele que já teve filhos, sobrinhos, crianças dos vizinhos por perto, pode estar
alguns passos adiante. No entanto muitas vezes esse contato “adulto” nos impede de
observar a criança tal como ela se apresenta.
Então, como fazê-lo?
Pensar com os cinco sentidos. E também com a memória e a imaginação. Evitar
inicialmente a racionalidade das teorias e interpretações de antemão acerca da infância.
Será sempre nosso passo zero: possuir um caderno, caderneta ou “Diário de Bordo”. É
pelo registro de cenas cotidianas, que o pesquisador em Fenomenologia vai apreender o
fenômeno humano; neste caso, apreenderá algo essencial da corporalidade da criança
pequena – sempre em relação com o adulto e no mundo.
O registro das cenas é narrativo e descritivo: são necessárias atenção e quietude,
concomitantes distanciamento e envolvimento, de modo a registrar em palavras o que se
vê – e, na impossibilidade de dizer, descreve-se a impossiblidade mesma
13
. Como
percebemos o que sente a criança na pele; como ouve, como enxerga, como cheira, como
tateia, como experimenta com a boca, como balbucia, como fala ou silencia? Na busca
do “como”, e menos do “porquê”, reside a compreensão fenomenológica: na chave não-
explicativa.
13
Disse Eni Orlandi: “Escrever é uma relação particular com o silêncio”. (1997:85)
71
Não será necessário selecionar “onde vamos” para observar o fenômeno da
corporalidade, pois somos corporalidade; ela estará sempre presente, onde existirem
pessoas.
Seria interessante que o pesquisador não buscasse normas ou regras prévias do que é um
“bom adulto”. Isso atrapalharia o andamento do registro em palavras, no “Diário de
Bordo”, daquilo que se observa. Inicia-se a fenomenologia da infância por um olhar
ingênuo. No entanto, “olhar ingênuo” não significa “infantil” -- portanto não se arme
também da noção de “boa criança”. (Nem de “bom pesquisador”! )
Trata-se de fazer valer o recurso do método fenomenológico do distanciamento ou
“époché”. Trata-se de uma prática cotidiana para ir de volta às coisas mesmas, procurar
olhar com os olhos, cheirar com o nariz, tocar com as mãos e os pés, ouvir com os
ouvidos, e saborear com a boca. A boca é capaz de falar, as mãos são capazes de
escrever, e, em algum momento, o pesquisador cria discursividade acerca daquilo que
observou. O discurso é registrado, por escrito, em um caderno ou caderneta que nomeio
“Diário de Bordo” – registro feito no momento vivido, e também depois, aguçando a
memória da experiência vivida.
Pela linguagem, pelo registro em palavras, o pesquisador faz da sua observação um texto.
Este texto será passível da análise compreensiva ou hermenêutica. A descrição
fenomenológica é uma interpretação inicial. Conforme o pesquisador obtém diferentes
observações de relações criança-adulto, com foco na relação criança-corpo, ele procurará
ler seu “Diário de Bordo” inúmeras vezes para olhar:
• no que se assemelha e difere a corporalidade da criança e do adulto?
• no que se assemelha e difere a corporalidade das crianças entre si?
Pouco a pouco, a análise das observações, a leitura e re-leitura minuciosa e atenta das
anotações do “Diário de Bordo” permitirá àquele que escreve a aproximação a algo que
emerge em comum a todas as crianças observadas. Este “algo comum” pode ser nomeado
a essência da corporalidade da criança pequena.
72
Para iniciar a fenomenologia da corporalidade da criança, o adulto cria intimidade com a
noção fenomenológica do corpo; trabalha com sua memória sobre sua própria infância, e
sobre as crianças pequenas que o rodeiam; volta-se para uma observação existencial,
vivencial, de crianças em relação com seu corpo, em situações que também revelam a
relação da criança com os adultos; esta observação é registrada detalhadamente. Aos
poucos o adulto pesquisador vai buscar semelhanças e diferenças entre-corporalidades. E,
para concretizar seu discurso próprio acerca da corporalidade da criança, o adulto tece
uma rede de remetimentos, busca referências possíveis na cultura, na história, na
antropologia, situando tudo aquilo que observou em um tempo e um espaço, para buscar
e fazer ver também o invisível daquele momento registrado.
Escrever um texto fenomenológico acerca da corporalidade da criança pequena… Um
texto fenomenológico nunca é definitivo. É algo em movimento, mosaico ou
caleidoscópio dos remetimentos possíveis, naquele momento e a partir das situações
observadas. Certamente este “último passo” será “passo zero” novamente, pois a
fenomenologia é circular, abrangente, convida à revisão e à crítica, e seu desdobramento
é olhar novamente para aquilo que se apresenta. Neste caso, olhar para a
corporalidade da criança pequena, admirada a partir das relações e das situações vividas
por ela, testemunhadas e registradas por um adulto.
*
• Interfaces entre os existenciais
Boa notícia para uma criança
Em tudo, em tudo você terá a favor o corpo. O corpo está
sempre ao lado da gente. É o único que, até o fim, não nos
abandona.
Clarice Lispector
73
O existencial “corporalidade” nunca se separa dos existenciais da espacialidade, da
outridade, da lingüisticidade, da temporalidade! A separação feita nesta tese é recurso
didático, de modo a “escrever em capítulos”. No entanto, a vivência dos existenciais é
próxima à imagem de um grafismo espiral; somos uma cartografia inter-planetária, por
assim dizer. Daí a totalidade da imagem que procurei, ao desenhar a Flor da vida:
nenhum âmbito existencial “é” isoladamente, não existe “em si”, ou “por si só”. Cada
pétala, cada existencial compõe o todo da flor.
O âmbito existencial da lingüisticidade, por exemplo: é o que nos une, doutoranda e leitor
da tese; pesquisador da fenomenologia da infância e a criança observada; e não há
comunicação pela fala se não existir o âmbito da outridade – falo e comunico algo a
alguém. O veículo de minha fala é minha expressividade, algo que mora em meu corpo
próprio.
* * *
74
75
(…) A criança compreende muito além do que sabe dizer,
responde muito além do que poderia definir, e, aliás, com o adulto,
as coisas não se passam de modo diferente. Um autêntico diálogo
me conduz a pensamentos de que eu não me acreditava,
de que eu não era capaz, e às vezes sinto-me seguindo num caminho
que eu próprio desenhava e que meu discurso, relançado por outrem,
está abrindo para mim. (…)
Merleau-Ponty
(…) ao pensar sua língua, o homem está essencialmente
pensando sobre si próprio.
Clarice Lispector
• Ser linguajeiro
14
A lingüisticidade é o âmbito existencial do dizer, da linguagem falada e escrita; é modo
que sofistica as trocas, intercâmbio, diálogo e comunicação entre crianças e adultos;
permite fazer uso de intermediação -- dos sons, das palavras, do canto, do grito, e do
silêncio – para fazer ver a expressão do mundo vivido. A lingüisticidade está ancorada na
“língua mãe” de cada um, na língua-pátria, e é portanto algo próprio do universo da
cultura humana.
Como se dá concretamente a gênese da fala e da comunicação pela palavra foi e é objeto
de estudo de psicólogos, lingüistas, fonoaudiólogos, neurologistas e muitos outros
14
Adoto este modo de dizer a partir de parte da obra de Françoise Dolto, traduzida para o
português, especialmente na obra Tudo é linguagem (São Paulo: Martins Fontes, 2002).
76
profissionais. Aqui o foco da discussão não será a discussão clássica, por exemplo, do
que veio antes… pensamento ou linguagem?, debate que ocupou estudiosos do mundo
inteiro. Aqui, o foco é observacional, descritivo, relacional – delimita-se assim e vai em
busca da fenomenologia de como o falar, dizer coisas, emitir sons, cantar, gritar, sussurar,
cantarolar, balbuciar, silenciar também, revela formas humanas de relação entre adultos
e crianças. Isso se dará a partir da interlocução e sintonia com os textos dos Cursos na
Sorbonne, de Merleau-Ponty, eixo central das discussões desta tese.
*
Merleau-Ponty separou a linguagem em duas vias: a linguagem falada e a linguagem
falante, ou ainda, fala comum e fala autêntica. Talvez a “linguagem falada”, corriqueira e
empírica, se aproxime daquilo que Heidegger (1995) nomeou “falatório” – conotação
para o uso da palavra com “excesso, superficialidade e descompromisso com o que se
fala”, mas que “corresponde a uma tendência constitutiva do exercício concreto da
existência”. “Falatório” é tradução para o português a forma derivada do alemão “das
Geredete”, utilizada por Heidegger na obra Ser e Tempo. Nas suas últimas produções,
Heidegger interessou-se pela lingüisticidade do ser; ficou famosa sua frase: A linguagem
é a casa do ser.
A “linguagem falante”, para Merleau-Ponty, é originária e inédita; é aquela que causa
estranhamento e surpresa; não pretende simplesmente dar nome às coisas -- trata-se de
um dizer criador. Encontra-se neste âmbito o revelar-se ao outro, a compreensão e a
comunicação: “Comunico quando há algo de comum entre mim e o Outro” (Guimarães,
1993:86).
Lê-se nas Notas de Trabalho de Merleau-Ponty editadas em O Visível e o Invisível:
(…) Sabe-se simplesmente que a fala não pode mais ser enunciado
(…) se deve permanecer dialética, é preciso que seja uma fala falante,
(…) fala e não linguagem (e, com efeito, é precisamente a fala, não a
língua, que visa a outrem como comportamento, não como “psiquismo”
77
que responde a outrem antes que se compreenda como “psiquismo”, num
afrontamento que rejeita ou aceita suas falas como falas, como
acontecimentos – É ela precisamente que constitui em frente a mim como
significação e sujeito de significação, um meio de comunicação, um
sistema diacrítico que é a língua no presente, não universo “humano”,
espírito objetivo). – Trata-se de reconstituir tudo isso, no presente e no
passado, história do Lebenswelt
15
, de reconstituir a própria presença de
uma cultura. (…) /grifos do autor/ (2003:171)
E no final da nota, cujo título é “Cogito tacito e sujeito falante”, Merleau-Ponty escreve:
“Trata-se de apreender aquilo que, através da comunidade sucessiva e simultânea dos
sujeitos falantes, quer, fala e, finalmente, pensa.” Nessa mesma nota, Merleau-Ponty
também reflete sobre a linguagem do silêncio: “O silêncio continua a envolver a
linguagem; silêncio da linguagem absoluta, da linguagem pensante.”
*
O Visível e o Invisível é um livro editado postumamente, e uma leitura cuidadosa nos faz
perceber o autor conversando com desdobramentos de seu pensamento anterior. Quando
ensinou Psicologia da Criança e Pedagogia na Sorbonne, Merleau-Ponty estava numa
espécie de tempo-espaço intermediário entre as suas obras iniciais e esta obra póstuma.
O primeiro volume dos Resumos de Cursos tem como subtítulo “Filosofia e Linguagem”.
A linguagem merleau-pontiana, sua maneira de escrever enuncia pensamentos, dúvidas,
incertezas, reflexões e transforma-se, ao longo de sua obra. Nos Cursos na Sorbonne,
Merleau-Ponty inicia sua discussão acerca da linguagem, afirmando que a tradição
filosófica cartesiana trata deste problema como algo meramente técnico – “Nessa
perspectiva, chega-se a desvalorizar a linguagem, considerando-a como roupagem da
consciência, revestimento do pensamento.” /grifo meu/ É como se o pensamento não
devessse nada à palavra. Para ele, este modo de ver “é cúmplice da ciência positiva: dá
15
“Mundo vivido” ou “Mundo da vida”, como querem os tradutores portugueses.
78
plena licença à psicologia para tratar a linguagem como objeto.” (1990a:18). /grifos
meus/ Neste ponto de vista, “o outro é apenas projeção daquilo que sabemos de nós
mesmos”.
O filósofo vai colocar o problema da linguagem a partir de uma nova posição. Faz
menção à literatura, onde as palavras não são, absolutamente, “um revestimento do
pensamento”: “A palavra realiza a idéia e faz-se esquecer: linguagem e pensamento
expressos são um.” /grifo meu/ (1990a: 19). Para Merleau-Ponty, é a própria palavra
que se recusa a converter-se em “objeto”.
Como, então, estudar compreensivamente a fala humana?
Merleau-Ponty nos convida a estudar a linguagem a partir de uma “terceira
possibilidade”: terceira via entre empirismo e intelectualismo, a partir do método
fenomenológico. Nesse caminho, “É preciso pois ser subjetivo, posto que a subjetividade
está na situação; mas isto não quer dizer arbitrário”. Nesse caminho,
Será preciso variar o fenômeno a fim de extrair dessas variações um
significado comum. E o critério deste método não será a multiplicidade dos fatos
que serve de provas para as hipóteses avançadas; constiuirá prova a fidelidade
dos fenômenos, a consideração estrita que obteremos a respeito dos materiais
empregados e, de certo modo, a “proximidade” da descrição. (1990a: 21)
É próprio do método fenomenológico utilizar-se de “descrições qualitativas”: “Esse
saber qualitativo não é subjetivo, é intersubjetivo; ele descreve o que é observável
por todos”. /grifo meu/ (1990a: 22)
Delimitado o território metodológico, Merleau-Ponty seguirá sua análise “para
compreender o ser da linguagem”. O primeiro espaço revisitado deste território é o
balbucio dos bebês. A atividade do bebê é inicialmente de gritos e movimentos
expressivos, para mais tarde balbuciar. Diz Merleau-Ponty: “O problema é saber como se
passou de uma atividade quase biológica a uma atividade não-biológica mas que supõe
79
um movimento, uma atividade, para integrar-se no diálogo.” O balbucio é “uma língua
polimorfa” que busca o falar “em geral”. /grifo meu/ (1990a:23)
As primeiras “maneiras de dizer” de um bebê não são palavras – são atitudes, fenômenos
de pré-comunicação. Os primeiros sorrisos já supõem uma relação com o outro e
precedem à linguagem. Vem do meio “a ‘direção’ da linguagem”:
A presença da linguagem do adulto, porém, excita a criança de
modo geral: desde que acorda a criança ouve falar; a maior parte do
tempo a linguagem dirige-se diretamente à ela, e essa sensação acústica
provoca a excitação primeiro de seus membros e em seguida dos órgãos
fonadores (assimiláveis aos membros). (1990a:25)
Merleau-Ponty afirma que não há algo preestabelecido no organismo para que se fale: o
que incita uma criança à linguagem é rumar a “um objetivo definido pelo exterior”, isto é,
definido pelo Outro que fala com ela. As matizes surgem da linguagem dos adultos, mas
mesmo um bebê já possui “uma variação de energia e de humor” em seu modo de
apropriar-se dos sons, suas modulações, variação de acento e duração: “Bem antes de
falar a criança apropria-se do ritmo e da acentuação de sua língua” (idem ibidem).
Entre quatro e dez meses de idade, as crianças “realizam emissões vocais de uma riqueza
extraordinária, emitindo sons que se tornam em seguida incapazes de reproduzir; haverá
uma seleção, um certo empobrecimento”. Perto dos sete meses, “é como se sua intenção
de falar ficasse cada vez mais forte”. E será perto do oitavo mês de vida que surgirá uma
pseudolinguagem: uma espécie de frase, imitada em seus aspectos rítmicos. Por volta de
completar um ano de vida, aparece “a primeira palavra”. Esta primeira palavra “traduz
principalmente um estado afetivo, tem uma pluralidade de sentidos: é a palavra-
frase”./grifos meus/ (1990a:26).
Da mesma maneira que, ao dar seus primeiros passos, a criança não “descarta” outras
formas de locomoção, como o engatinhar, também a aquisição da palavra não descarta a
atividade do balbucio: “De um lado, desde o começo da vida, antecipações do que será a
linguagem; de outro, persistência até a idade adulta daquilo que foi o balbucio.” Haveria
80
no adulto aspectos de uma “linguagem interior freqüentemente não formulada”, que se
assemelharia ao balbucio. Mas é próprio da criança pequena assimilar coisas
diferentemente: ela possui “uma visão sincrética da situação” e “está longe de possuir a
noção de signo como o entende o adulto.” (1990a:28) A criança possui outro modo de
apreender o mundo, diverso do modo adulto.
*
Merleau-Ponty agrupa as aquisições das crianças entre um ano e meio e três anos de
idade, em um local entre “imitação imediata” e “imitação diferenciada”. A criança está
agora dedicada “à aquisição cada vez mais perfeita de sua língua materna”. Muitas
crianças passam por longos períodos sem aumentar seu vocabulário, e a “imitação
diferenciada” consiste em incorporar modelos que muitas vezes serão utilizados bem
mais tarde. Aos três anos de idade a criança tem um domínio de vocabulário menor do
que o que compreende, e até mesmo saberia empregar: aliás, isso se dá com os adultos
também (exemplo: quando estamos diante de tudo o que cabe nos Dicionários e
Enciclopédias!…).
A criança aos poucos se apropria não de uma “palavra”, mas, antes, de “uma nova
significação”. Para Merleau-Ponty, o “equipamento lingüístico” não é uma soma de
palavras – é “um sistema de variações que tornam possível uma série aberta de palavras”
(1990a:29).
O filósofo diz que podemos adotar, como fez Piaget, um novo patamar quando a criança
atingir cinco anos de idade, quando se revela a busca do diálogo, culminando com uma
vida social maior e mais serena por volta dos sete ou oito anos. No entanto, destaca que
em sistemas escolares mais centrados nas atividades sociais e de grupo, como se viu em
pesquisas em Hamburgo, as crianças conversam significativamente entre si bem antes dos
cinco anos de idade (e não apenas “monologam”, como delimitaram as pesquisas
piagetianas, realizadas com crianças educadas no método Montessori). Trata-se de um
importante ensinamento fenomenológico: um alerta “contra toda divisão artificial em
81
‘estádios sucessivos’” /grifo meu/ (1990a:30). Para compreender o existencial
lingüisticidade na infância, o foco está sempre no contexto, na situação vivida pelas
crianças e com os adultos ao seu redor.
Nos diz Merleau-Ponty:
Parece que desde o início todas as possibilidades estão inscritas nas
manifestações expressivas da criança; nunca há nada de absolutamente novo,
mas antecipações, regressões, permanência de elementos arcaicos em formas
novas. Esse desenvolvimento – em que, de um lado, tudo está esboçado
previamente, e, de outro, tudo procede por uma série de progressos descontínuos
– desmente tanto as teorias intelectualistas quanto as empiristas. Os gestaltistas
fazem-nos compreender o problema explicando como nos períodos decisivos do
desenvolvimento a criança apropria-se das Gestalten lingüísticas, das estruturas
gerais, não por um esforço intelectual nem por imitação imediata. (…)
/grifos meus/ (1990a:30)
O desdobramento do uso da palavra como “linguagem falante”, o surgimento de uma
“fala autêntica”, não é algo que surge ou vem “de dentro” da criança (esforço intelectual)
nem é ensinado nem vem “de fora” dela (imitação). É algo intersubjetivo, relacional,
situacional e contextualizado na vida mesma da criança. Daí o estudo fenomenológico da
lingüisticidade das crianças pequenas não ser possível a priori: não é um conhecimento
generalizado, técnico ou teórico; é algo a ser vivido, observado, cultivado e colhido a
partir das relações entre crianças e os outros falantes no mundo.
*
82
• A fala dos adultos “diz” a infância
A relação criança-outro e a relação criança e sua
cultura estão profundamente ligadas.
Merleau-Ponty
As crianças neste início de século XXI encontram-se imersas em uma maneira de ser do
adulto que implica em “especializações”: médicos, terapeutas, educadores, escritores de
literatura infantil, cineastas, modistas… enfim, as crianças vêem ao mundo, e esse mundo
está cheio de técnicas e tecnologia para recebê-las. Parto normal ou cesariana? Leite de
peito ou mamadeira?
É importante salientar que a compreensão fenomenológica da infância não negligencia
nenhum aspecto cultural, tal como a influência das mídias hoje: criações dos adultos para
a informação, o entretenimento, a comunicação -- e poderíamos afirmar também, algumas
invenções dos adultos para tentar combater sua própria solidão e infelicidade. E como
conversar sobre tudo isso com as crianças?
Os produtos culturais criados para crianças conversam com elas de diferentes maneiras.
Nos anos 50 do século XX
16
, os norte-americanos criaram uma Enciclopédia para
crianças, intitulada O Mundo da Criança. Eu e meus irmãos líamos bastante esses
volumes editados no Brasil, com maior intensidade nas férias, e lembro-me bem de gostar
do volume de poesias.
Nesse volume de poesias encontra-se o seguinte poema:
16
Um momento muito próximo do tempo em que Merleau-Ponty está, na França,
pensando a pedagogia e a psicologia da criança, ao lecionar seus Cursos na Sorbonne.
83
De Que São Feitos?
De que são feitos os meninos?
De que são feitos os meninos?
Rãs, caracóis, rabinhos pequeninos.
Disto são feitos os meninos.
De que são feitas as meninas?
De que são feitas as meninas?
Açúcar, perfumes e outras coisas finas
Disto são feitas as meninas.
Na página do poema encontramos a seguinte ilustração: duas crianças, um menino e uma
menina; no alto da página, o menino veste uma camisa listrada, tem uma bola nas mãos e
observa, em uma mesa, dois sapos, dois caracóis, dois filhotes de cachorro que tomam
leite em uma vasilha também posta em cima da mesa; abaixo da ilustração do menino,
vemos a menina: bem penteada em seu vestido vestido azul e branco, e sua mesa tem três
pratos de doces – ela faz menção de pegar um doce com uma das mãos, enquanto a outra
mão apóia seu rosto.
Seria fácil imaginar que algumas feministas gostariam de banir esta página da coleção O
Mundo da Criança: uma leitura possível para esse poema seria a de conter o germe de
estigmatização das mulheres – feitas de doces e “outras coisas finas”. E se pensarmos
também do ponto de vista dos tempos do “politicamente correto”, outros poderão dizer,
que para o pequeno homem diante do livro, ser feito de rãs e caracóis tende a
estigmatizá-lo, do mesmo modo também. A ilustração, ao fazer ver dois pequenos
cachorros tomando mingau em cima da mesa, pode ser vista como de mau gosto… dando
um péssimo exemplo para o leitor.
Prefiro trilhar aqui o caminho fenomenológico, buscando compreender o poema a partir
de um contexto: décadas de 40 e 50, cultura norte-americana, boom inicial da infância
84
como “mercado consumidor” – daí também a criação de uma Enciclopédia para crianças.
Penso poder afirmar que, hoje, o poema revela um adulto, criador de cultura, em busca da
noção de infância cuja marca ou ícone é a ingenuidade: pois foi um adulto criou os
versinhos! Buscava-se uma “infância de ouro”, ou a preservação – a qualquer custo -- de
um tempo de inocência: ao mesmo tempo em que, de fato, os adultos americanos viviam
o drama da Guerra da Coréia, gravíssimos conflitos raciais, etc. O adulto, portanto,
engendra na criança a inocência, inocência que ele mesmo perdeu. Cinqüenta anos mais
tarde… ao mostrar para meu filho o poema, ele ria – simples assim.
Meu filho e sua geração inteira ri também dos programas da Vila Césamo, pioneiros na
indústria cultural televisiva para crianças – programa educativo “importado” dos Estados
Unidos para a televisão brasileira, que minha geração quase inteira assistiu na década de
70, co-produção entre a Rede Globo de Televisão e a Fundação Padre Anchieta.
Meu filho e seus amigos leram A Morte do Super-homem
17
em gibi. Aos dez anos de
idade! Lembro bem de olhar para o gibi e dizer, Mataram a infância! Ao que meu filho
sabiamente respondeu: Mataram a sua infância, mãe!, ensinando-me algo naquele
momento sobre mim, minha própria infância e minha adultícia.
Mostrar para meu filho o que eu mesma lia na infância, e permitir que usufrua da cultura
dos quadrinhos (indústria que “matou” o Super-homem em um esperto golpe de
marketing, pois logo em seguida ele renasceu mais forte!), são formas de conversa. Cinco
anos antes da “morte do Super-homem”, as crianças da cidade de São Paulo começaram a
assistir programas importados do México, tais como o seriado “Chaves” e a novela para
crianças “Carrossel”. Esses eram, do meu ponto de vista, produtos culturais que
veiculavam uma noção de infância muito pobre, estereotipada e naíve (em um mau
sentido: “idiotizante”, por assim dizer) – e não permiti que meu filho os assistisse. Alguns
pais, na reunião de pais da pré-escola que meu filho freqüentou, me recriminaram muito
por isso, julgando-me uma mãe extremamente autoritária; eu ainda não era psicóloga
formada, mas não penso diferente hoje em dia. Sei que fui coerente em meu diálogo com
17
Gibi editado em 1995 pela Abril Jovem / DC Comics.
85
ele, em meu discurso acerca de como e porquê eu não gostaria que ele assistisse a aqueles
programas.
As crianças convivem com um grande número de adultos; vivem em cidades grandes ou
pequenas, ou em aldeias e vilarejos distantes; quase todas assistem à televisão, muitas
têm acesso a computadores e jogos eletrônicos, nem todas possuem uma biblioteca por
perto. Para buscar, como eu mesma quis junto à Profa. Maria Fenanda, uma educação
‘fenomenológica’ a ser dada às crianças, precisamos estar a par do tipo de vida que a
criança leva. Conversar é um ótimo caminho para conhecê-la. Por meio de um modo de
dizer, o adulto revela também muito de si mesmo: temperamento, valores, afeto e
desafeto, visão de mundo e de infância. Os adultos também se fazem conhecer pelo
diálogo.
Adultos educadores, para não incorrerem, eles mesmos, em ingenuidade, precisam ficar
atentos ao “modo de dizer” tanto dos objetos da cultura, quanto das teorias acerca da
infância. Precisamos contextualizar no tempo as pesquisas sobre a criança e a infância.
Nossas leituras, cotidianas (jornais, revistas, gibis, sites de Internet) ou acadêmicas,
fazem jus ao tempo histórico em que foram escritas; que se procure a real dimensão
daquilo tudo que está sendo dito: sem nunca esquecer que a “real dimensão” não se
descola da dimensão imaginária – dom humano para sonhar, criar, inventar, revelar e
esconder seus desejos.
Para realizar a fenomenologia das mídias e de outras formas culturais produzidas por
adultos para o usufruto das crianças, podemos realizar descrições detalhadas desses
objetos da cultura. Pensar e descrever o modo como são produzidos; pensar e descrever,
a partir de uma observação cuidadosa, como a criança “consome” o produto cultural:
reproduz? Cria? Re-cria?
Não haverá nunca uma criança “pura”, ou seja, isenta da cultura dos adultos ao seu
redor. O adulto “faz” produtos culturais, é produtor, e também “faz consumir”, num leva-
86
e-traz de uma rede de comunicação dinâmica, móvel, intertextual e bastante determinada
por fatores econômicos: não há como fugir deste determinante, e negá-lo é iludir-se.
Desde sempre, a realidade é vivenciada no âmbito das relações: o modo adulto está
sempre presente na vida e na existência das crianças. Para pensar fenomenologicamente,
é importante não colocar a criança em uma posição de “consumidor passivo” da cultura
dos pais, professores, educadores e criadores de mídia. Seu modo de ser pode revelar-se
ativo, atuante, participativo – desde que convidada a exercer sua capacidade de
expressão, sua discursividade, imersa naquilo que Winnicott nomeou “ambiente
facilitador”.
*
• A lingüisticidade da criança pequena tornada visível
Toda linguagem é, de certo modo, materna. Como
as relações da criança com sua mãe, a aquisição da
linguagem é um fenômeno de identificação. Aprender a
falar é aprender a representar um certo número de papéis,
a assumir condutas das quais se é inicialmente espectador.
Merleau-Ponty
O estudo fenomenológico da lingüisticidade e da discursividade é realizado a partir da
concretude observacional da vida cotidiana das crianças pequenas, em relação com outros
seres linguajeiros. É tradição das pesquisas em psicanálise de crianças incentivar os
pesquisadores à observação meticulosa e contínua de bebês em seu primeiro ano de vida.
O estudo fenomenológico não se respalda em técnica ou teoria -- observar o dizer da mãe
com o seu bebê não terá, como obrigatoriedade, o viés das noções de maternagem ou de
vínculo afetivo, mas irá perscrutar (palavra querida por Merleau-Ponty!) relações e
87
documentá-las, testemunhá-las, por meio de descrição cuidadosa, tudo aquilo que foi
visto e ouvido.
O próprio pesquisador encontra-se em “estado observacional”, e vai, ele mesmo, dar-se
conta da existência de uma maneira de dizer falante, viva, criadora e criativa. Qual é essa
via discursiva, não sabemos de antemão.
Analogamente a tudo o que foi explicitado e proposto nos existenciais discutidos antes, a
pesquisa fenomenológica da relação discursiva entre adultos e crianças pode, por bem,
partir da narrativa, escrita em uma espécie de Diário de Bordo, de cenas cotidianas da
vida infantil compartilhada com outras crianças e adultos.
Pode ser fértil um trabalho junto a pais que se disponham a, eles mesmos, relatar e
também, por que não?, registrar vivências entre os balbucios, as primeiras palavras, as
“frases-chave” e assim por diante. Esta seria um modo de realizar uma pesquisa
processual, com continuidade, de acompanhamento de uma mesma criança.
Outro modo de realizar a fenomenologia da relação criança-língua é freqüentar locais
onde crianças vão: praça, lanchonete, creche ou pré-escola, etc. O importante é olhar cada
criança como uma pessoa em seu contexto social e cultural: parte de algo
compartilhado e com situação familiar própria e única. Nunca se proporá uma
generalização do tipo: “O discurso das crianças de 5 anos na cidade de São Paulo”.
Sempre estaremos procurando por quem discursa: Pedro, Jorge ou Eleonora… e como o
faz. A partir de qual contexto? Em que situação Pedro disse isso ou aquilo? Como Jorge
se relaciona, ele mesmo, com sua possibilidade de dizer em palavras? E Eleonora, faz
distinção entre “um dizer de meninos” e seu “dizer de menina”? Os adultos que cuidam
de Pedro, Jorge e Eleonora também serão observados, e seu discurso narrado e apontado
no Diário de Bordo. São também valiosíssimos os momentos de silêncio.
88
Ritmos, tonalidades, timbres dos cuidadores de bebês, do ponto de vista fenomenológico,
são tão marcantes e importantes quanto a significação do que dizem, como dizem, do que
cantam, se cantam, da emoção vivida no cuidar (Quando cuido estou triste? Cansado?
Esfomeado? Com dor de dente? E assim por diante).
Outra rica maneira de observar a lingüisticidade das crianças, é no momento em que o
adulto lhe conta histórias. A literatura dita “infanto-juvenil” é um setor da indústria
cultural hoje já consolidado, e existem muitos e muitos livros de ficção, prosa e poesia
para serem lidos para e compartilhados com as crianças. Existem também, em várias
cidades do Brasil, Bibliotecas Infanto-Juvenis, de modo que o pesquisador poderá
realizar sua observação em espaços públicos também. Destaco os eventos de “contação
de histórias”, uma vertente do teatro de tradição oral que está muito desenvolvida entre
nós, com apresentações de contadores em bibliotecas, centro culturais, livrarias, etc.
Comento a existência de um pequeno e precioso livro, cujo instigante título é Prefácio
para uma personagem só (Lisboa: Vega, 1993), de autoria de Pedro Barbosa. É epígrafe
inicial deste livrinho:
Tocata para quatro mãos:
Como num piano, esta história foi escrita a quatro mãos. Ou antes: duas
mãos e uma voz. As mãos eram as minhas, no teclado da máquina de escrever; a
voz era duma criança que, como todas as crianças, foi pequenina antes de ser
grande – e desaprendeu de falar.
Por cerca de oitenta páginas, Pedro Barbosa comenta a convivência de sua pequena
heroína – Migalhinha – com o narrador da novela. A menina, de idade entre três e quatro
anos, cria expressões, faz neologismos, dialoga criativamente com seu pai e com sua
mãe. O autor -- escritor, lingüista e dramaturgo -- nos convida a perceber como é rica,
interessante e criativa a fala da criança pequena; transcrevo aqui apenas um pequeno
entrecho que narra uma crise de birra da personagem Migui, que não queria ser tirada do
seu banho de banheira:
-- Mamã, não desengulas a água! O meu barquinho está ali, à espera do mar!
89
Amuou, chorou, berrou. Temporal de pouca dura. Porque daí a pouco estava
quase feliz outra vez, à beira do pai, os últimos soluços espaçando-se como se
fossem os pingos finais de uma trovoada de Verão.
-- Deixa sentar aqui-me, pai – dizia ela na sua pronominação sempre trocada. –
A Migui não está mais berrenta.
-- Berrenta? – interroga o pai, ignorante daquele novo étimo.
-- Sim, a Migui já parou de berrar. Já não está mais burrugenta – dicionarizou
ela novamente, tentando exprimir em miglês a palavra “rabugenta”.
E deixou-se ficar no sofá ao lado do pai, muito compenetrada nos soluços que
passavam, e sentadinha em ângulo tão reto, que nem um esquadro se sentaria
melhor. Tentava portar-se bem. Porém, cansada de olhar a parede e de ver o pai
sempre a trabalhar, chegou-lhe o desejo de fazer alguma coisa com caneta e com
papel. /grifos do autor/ (1993:17-18)
*
Trata-se, novamente, de perscrutar quem são: a criança e seu cuidador. O trabalho
observacional requer paciência e cuidado. Não se julga a criança que “não sabe” falar –
mesmo porque há que observar também os fenômenos de pré-comunicação. Um belo
exemplo disso é a palestra, proferida na Rádio BBC de Londres por Winnicott, intitulada
“Por que Choram os Bebês?”. Chorar, para Winnicott, é um “método próprio” dos bebês
para “lidar com suas dificuldades”:
Digamos que existem quatro tipos de choro, porque é mais ou menos
verdade, e podemos pendurar tudo o que pretendemos dizer nestes quatro
cabides: satisfação, dor, raiva e pesar. (…) O que estou afirmando resume-se
nisto: o choro suscita no bebê uma sensação de que está exercitando os pulmões
(satisfação) ou, então, uma canção de tristeza (pesar). (1982:66)
Nesta palestra para mães, Winnicott positiva a experiência do chorar, dando um
significado existencial para tal: chorar é dar-se conta “da sua capacidade total para fazer
90
ruídos”. E convida as mães a meditarem sobre um percurso traçado pelas crianças
pequenas, em direção a outras formas de expressão:
O que quero dizer é que qualquer exercício do corpo é bom, do ponto de
vista da criança. A própria respiração, uma nova proeza do recém-nascido,
poderá ser muito interessante até que se transforme em hábito, e os gritos e o
alarido de todas as formas de choro devem ser definitivamente excitantes. (…) Os
bebês choram porque se sentem ansiosos ou inseguros, e o recurso funciona; o
choro ajuda bastante, e devemos, portanto, concordar que há nele algo de bom.
Mais tarde vem a fala, e, com o tempo, a criança dará os primeiros passos e
tocará o primeiro tambor. /grifos meus/ (idem ibidem)
A maneira fenomenológica de descrever aquilo que se observou é de positivação da
experiência vivida com as palavras, seja a criança que for, com a dificuldade que for. Não
se parte nunca “daquilo que não se tem”, não se espera como ponto de chegada o “dizer
certo”, nem como ponto de partida o “deixar de chorar” para falar e tocar tambor! Esse
modo de olhar, com afastamento de pré-conceitos, julgamentos de valor, noções teóricas
e técnicas a priori, faz os adultos mais próximos da experiência mesma da criança que se
expressa: chora, ri, fala – e silencia. Poderão captar a vivência das crianças, com sua
força autêntica, de maneira total, tão próxima de sua verdade quanto for possível. E, pela
escuta e pelo diálogo, proporcionarão a elas abertura para a compreensão e para o
acolhimento.
18
*
18
Clarice Lispector convida a própria criança-leitora a buscar diálogo, compreensão e
acolhimento, em seu livro A mulher que matou os peixes:
“Vocês ficaram tristes com esta história? Vou fazer um pedido para vocês: todas as vezes
que se sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar.
Escolham uma pessoa grande que seja muito boa para crianças e que entenda que às
vezes um menino ou uma menina estão sofrendo. Às vezes por pura saudade, como os
periquitos australianos. (…)” (1999:19-20)
91
• Interfaces entre os existenciais
Estar atento àquilo que outros dizem faz parte da
“abertura” ontológica que me caracteriza como ser
humano.
José Manuel Morgado Heleno
Relembro novamente o leitor do uso da circularidade como recurso de escrita desta tese --
e espero sinceramente fazer ver um círculo virtuoso, antes que um redundante ou
entediante círculo vicioso, no uso recorrente do subtítulo “interfaces entre os
existenciais”.
Não se pode “estudar” a relação criança-língua separando esta relação da corporalidade,
ou da outridade, nem tampouco de nenhum outro âmbito existencial. Nossa fala é um
gesto inscrito no corpo que percebe. O gesto da fala aponta ao “objeto intencional” – e eu
posso compreendê-lo no reencontro dos pontos em comum dos caminhos e condutas de
mim no outro. A “coisa percebida” – que encontra-se no mundo -- é o correlato do
corpo próprio: e é essa dimensão humana da coisa percebida (cujo sentido não é inferido
por mim!, pertence a ela mesma) que permite a existência daquilo que Merleau-Ponty,
poeticamente, nomeia “o milagre da expressão”. Aqui, no âmbito da expressão criadora,
o pensamento não está situado no sentido comum das palavras, mas, antes, naquilo que
existe de originalidade e modificação; aqui não é preciso passar pela idéia, e nem por
intérpretes: é meu corpo que mediatiza e cria as relações de significações dadas nos
objetos.
Mas o “sentido” não estará nem em mim, nem nas coisas. Ele encontra-se como que
“preso” na fala. E a fala é a existência exterior do sentido. A fala é presença do
pensamento no sensível, algo que pode acontecer porque sou corporalidade e estou
imerso em uma cultura falante; sou-com-o-outro, no mundo. Discursividade, outridade,
mundaneidade: aspectos e interfaces de nossa existência, situada em um tempo e em um
espaço.
92
93
Convém olhar para (e pela) a criança no seu “agora”
como síntese de sua experiência e da nossa esperança.
Raul Guimarães Lopes
(…) O espaço de um ser humano, desde o nascimento,
precisa ser povoado pela presença psíquica de outro ser
para o qual ele existe.
Françoise Dolto
• Tempo-espaço da infância
19
: um “tempo” e um “espaço” povoados
Está justamente na noção de polimorfismo infantil a compreensão dos existenciais
temporalidade e espacialidade na primeira infância, o tempo da “criança pequena”, como
quer Merleau-Ponty. O tempo dividido em etapas, o dia dividido em 24 horas, mesmo o
ano dividido em quatro estações, não é retrato da temporalidade infantil. Merleau-Ponty
afirma: “A criança é incapaz de consentir em não ter sido sempre” (1990a:245).
O que está em jogo é a percepção infantil do tempo, do espaço, do mundo e de si. A
chave para compreendê-la é a recusa do caminho representacional – pois não há “uma
organização conceitual” de sua experiência – e há aceitação de uma espécie de “estado
19
Sobre as noções merleau-pontianas acerca da temporalidade e da espacialidade infantis,
ou seja, os modos relacionais criança-tempo e criança-espaço, já discorri em minha
dissertação de mestrado, agora publicada em livro, os Cacos de infância/teatro da solidão
compartilhada (São Paulo: FAPESP/Annablume, 2004).
94
onírico” de vida: “A criança não vive num mundo com dois pólos do adulto despertado,
ela habita uma zona híbrida, que é a zona da ambigüidade do onirismo” /grifo meu/
(1990a:223).
Merleau-Ponty em nenhum momento realiza uma correlação entre a “zona de
ambigüidade do onirismo” com o espaço potencial, conceito winnicottiano comentado na
abertura desta tese; no entanto, a semelhança dos postulados é evidente. Do ponto de
vista adulto, a vida da criança é vivida entre realidade e fantasia – entre o que se
habituou nomear o “mundo interno”, psíquico, e o “mundo externo”, compartilhado. Este
espaço “entre”: nem dentro de si, nem tampouco fora, é o espaço potencial.
Merleau-Ponty afirma que existe, na criança, grande facilidade para as formas simples: a
criança as vê realmente. Pois as crianças não apreendem o mundo tal como os adultos: é
como se “duas línguas de estruturas diferentes” convivessem. A estrutura espaço-
temporal da criança é bastante diferente da nossa, e, para compreedê-la, devemos aceitar
seu “contato polimorfo com o mundo”, o que significa, segundo o filósofo, que seu modo
de experienciar o mundo, em termos adultos, é de crença em uma “quase pluralidade
simultânea de imagens”. Isso leva a uma noção de “tempo-atemporal” e de “não-
espacialidade” (1990a:245) nas palavras como percebe, define e concebe o adulto.
Não há, para a criança pequena, uma dualidade entre os espaços visual (a imagem) e o
cinestésico (onde reside seu corpo). A noção de dualidade pertence ao modo de pensar
adulto. Sua experiência é, portanto, se comparada à do adulto, pré-objetiva e pré-lógica.
O pensamento da criança não é “nem tético, nem categorial, mas polimorfo”. A diferença
entre o adulto e a criança
(…) é a que existe entre o que ainda é confuso, polimorfo e o que é definido pela
cultura. Porém esta diferença não é tal que o adulto seja impermeável à criança,
ou vice-versa. A criança antecipa a condição do adulto. (1990b:255)
Adultos “realistas” estrito senso embutiram na psicologia clássica um “racionalismo
dogmático” difícil de desconstruir. Para fazê-lo Merleau-Ponty nos propõe “um saber
95
afetivo” de modo a compreender aquilo que a criança nos comunica. Ela realiza “uma
outra síntese”, onde diversos tempos e espaços convivem. Nessa chave afeto e percepto
não se separam:
A percepção infantil (e mesmo a do adulto, quando ele pode despojar-se
das atitudes convencionais), consiste em encontrar as coisas como estimulantes
para nossa afetividade como objetos do conhecimento. (1990a:222)
A criança adere às situações; os objetos para ela possuem, sempre, “caracteres afetivos”.
Por estar sempre inserida, implicada, por não distanciar-se, a criança “concilia-se com
uma espécie de pré-existência”: tudo lhe diz respeito. Não se trata de ignorar o tempo
objetivo, e sim de vivenciar “uma outra estrutura de tempo”. Para Merleau-Ponty, tanto
o tempo quanto o espaço “objetivos” são aqueles em que “eu não estou inserido”. Mas a
criança ainda não tem esse pensamento objetivo: nas palavras do filósofo, “o de um
limite-espaço vazio”. É próprio da estrutura adulta, da organização perceptiva do adulto,
ver as coisas em termos de pontos de vista; a criança apresenta apenas um ponto de vista:
o dela.
Desse modo, para exercer o olhar fenomenológico à temporalidade e à espacialidade
infantis, será preciso partir da positivação da experiência infantil de onirismo e de
pensamento polimorfo. A criança está no mundo de modo “fenomênico e indiviso”, e sua
aderência às coisas a impede de ser “representacional”: Merleau-Ponty afirma que a
noção de “representação de mundo”, conceituação adulta, é o grande erro das pesquisas
clássicas que tematizam a psicologia da infância.
*
Na temática do tempo-espaço da infância encontramos abertura para a poesia, para a
experimentação da linguagem poética, de modo a compreender as crianças pequenas. Os
escritores sabem disso: um grande exemplo encontra-se nas fábulas; o coelho apressado
em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, nos lembra remete a caricatura da
96
pressa dos adultos. Não é próprio da criança ter pressa: ela costuma ser apressada por
alguém. (É tarde até que arde!)
Para deixar fluir a temporalidade da criança, há que deixá-la ser
20
--permitindo que
experiencie o mundo a seu tempo, dando espaço para o seu modo de ser vir à tona, em
seu ritmo. O espaço vivencial que se abre para a relação com a criança, diante da
aceitação desta outra temporalidade, é imenso, vivo, repleto de sentido. Proponho
“agüentarmos” a lentidão do olhar da criança para o mundo no qual ela está imersa… As
crianças pequenas adoram a repetição, sendo esse um traço marcante da sua noção
espaço-temporal.
“Lentidão” ou “rapidez” são modos de ser e estar. Françoise Dolto nos ensina que, do
ponto de vista existencial, mesmo os adultos não se situam no tempo tal como objetivado
por uma linha do tempo cronológica, ou pelo desenvolvimento biológico; perguntaram a
ela:
Poderia explicar melhor, “A criança não sabe que é criança, ela não
sabe quem é”? Isso é negativo para o desenvolvimento futuro da criança?,
Ao que Françoise Dolto respondeu:
Não, todo mundo é assim. Isso não é negativo, é muito positivo. O sujeito
que quis nascer encontra-se em um corpo que se desenvolve fisiologicamente, que
é marcado pelo tempo. Quanto ao próprio sujeito, ele não se situa no tempo. A
linguagem não se situa no tempo. (…). /grifo meu/ (2002:52-53).
*
• A espacialidade da criança pequena tornada visível
Para observar fenomenologicamente a noção de espacialidade infantil, Merleau-Ponty
aponta, nos Cursos na Sorbonne, um caminho fértil e rico: o desenho. Desde tenra idade,
com um ano e poucos meses, a criança já pode usufruir da atividade expressiva do
20
Disse, em canção, Caetano Veloso: “O seu amor/ ame-o e deixe-o/ ser o que ele é/ ser o
que ele é/ ser o que ele é (…)”
97
desenho, em papéis de grande superfície, com lápis cera e canetas grossas, fabricadas
para o modo próprio de segurar da criança bem pequena.
A experiência do desenho, do ponto de vista merleau-pontiano, é canal aberto para
observarmos a lógica infantil: revela como a criança apreende o mundo. Está já no
rabisco e na garatuja uma forma expressiva, que requer um olhar atento do adulto para
que positive esta experiência. Ao invés de afirmar: Antônio ainda não desenha, só
rabisca, negativando a experiência do traço no papel das crianças muito pequenas, pode-
se realizar a fenomenologia do rabisco e da garatuja, algo que desenvolverá nossa
capacidade adulta para a observação da experiência mesma, do ato expressivo da criança
que desenha.
Rabiscar é colocar em marcha algo que se encontra no corpo, corpo vivo, atento e em
movimento, corpo que encontrou no mundo lápis e papel tal como um chamado. A
criança sente-se chamada para entrar em contato com as coisas do mundo, e o faz de
forma própria, se deixada à vontade pelo adulto; observar a sua forma de rabiscar é
enxergar formas de ser e estar no mundo.
O olhar fenomenológico não parte de teorias, como por exemplo a divulgada teoria do
pesquisador Luquet (apud Merleau-Ponty, 1990a: 215), que levantou quatro estádios do
desenho; Luquet dá foco ao último estádio, aquele que apresentaria o “desenho
verdadeiro”: estádio do “realismo visual”. A questão que o filósofo levanta não está
centrada nestas fases do desenho infantil -- algo que ele constata como fato -- mas antes,
na interpretação das etapas: como o adulto pesquisador lê o desenho.
O olhar merleau-pontiano também não focaliza o modo da psicologia clássica de
compreender a “representação de mundo” que a criança registraria na sua comunicação
por meio do lápis e do papel: sem questionar os fatos da psicologia do desenvolvimento,
o filósofo nos convida a rever a interpretação destes fatos. Nesta chave, falar sobre
aquilo que não se apresenta no desenho… é negativá-lo. Para positivar a experiência
infantil, há que partir daquilo que os desenhos apresentam, e não do que não está lá. É
esta a “volta às coisas mesmas” proposta pelo método fenomenológico.
98
Ao utilizar-se de recursos não-convencionais (do ponto de vista do adulto), como por
exemplo a convivência de espaços e a transparência das figuras desenhadas, a criança
está, apenas, utilizando-se de “um outro procedimento de representação”. Trata-se da
busca de realização de uma outra síntese: isto é, a criança não pretende transpor – como o
desenho adulto ou da criança maior – para um único plano o que vemos em profundidade.
O desenho infantil é, para Merleau-Ponty, um “ensaio de expressão
21
”, e não uma cópia
do mundo que lhe é oferecido.
Para exercitar a fenomenologia da espacialidade infantil (relação criança-espaço) e do seu
desenho (relação criança-papel-e-lápis), não é necessário fazer uso das possibilidades
projetivas. A proposta merleau-pontiana, explicitada nos seus Cursos na Sorbonne, é de,
a partir do olhar atento, da observação cuidadosa, chegar a estruturas comuns em
termos de linhas, traços, pontos e cores: “O estudo do papel do desenho leva-nos à
função que está em sua base: a percepção”.
A análise fenomenológica do desenho, portanto, nos dará pistas da maneira da criança
apreender o mundo. Se seu desenho é “falho”, não é por falta de atenção, como teorizou
Luquet: a “falha” (palavra adulta) revela seu modo de ver o mundo e sua capacidade de
síntese, diversas do adulto. Descrever o que ali se apresenta concretamente é a abertura
para a positividade do desenho – e da leitura que um adulto faz de uma criança. É o
adulto que vê “falhas” na percepção e no desenho infantil, negativando-o; e seu olhar é
passível de positivação
22
: o que de fato a criança nos comunica pelo desenho?
21
O filósofo chama atenção para aquilo que ele quer significar com a palavra
“expressão”: “devemos tomar o termo “expressão” em seu sentido pleno, de junção entre
aquele que percebe e a coisa percebida; não confundí-lo com a fabricação de uma simples
cópia. Aliás, a lei de todo desenho é exprimir as coisas e não assemelhar-se a elas. (…)”
(1990a:220)
22
“É a atitude desejável: reconhecer no desenho um sentido positivo. Por exemplo, um
adulto, ao desenhar um cubo, desenha-o em perspectiva. A criança desenha quatro ou
cinco quadrados justapostos. Se se insiste e se diz: “Não é o que você vê”, encontra-se
uma grande resistência. A criança sustenta que ela realmente vê assim (é, aliás, uma
atitude que se encontra também nos adultos pouco instruídos). Seria preciso falar aqui
unicamente de “insuficiências motoras e perceptivas”? Ou se trata verdadeiramente de
uma outra maneira de ver? (…)” (Merleau-Ponty, 1990a:176).
99
Merleau-Ponty afirma que “o desenho da criança é uma primeira maneira de estruturar as
coisas”. Ao desenhar, a criança vive uma “relação total e global com o objeto”. Diz que
devemos responder à seguinte questão:
Visto que a criança tem sentidos como nós, a relação da criança com o
mundo não seria como a nossa, relação do contemplador com o contemplado? É
preciso responder: não. /grifo meu/ (1990b:269)
Pouco a pouco o filósofo desconstrói a visão de que a criança realiza uma “representação
do mundo”: especialmente a criança pequena, pré-escolar, não-letrada, não o representa
– ela vive. Realizar uma rigorosa leitura psicológica e científica de suas vivências é
aceitar sua maneira não-representacional, e descrevê-la em detalhes. Para tal precisamos
trabalhar a partir de sua chave, antropologicamente; atingir um dizer, um discurso, um
modo de falar também não-representacional: sem conceber a priori um distanciamento
do mundo. A criança está no mundo tanto quanto o mundo está nela. Sua percepção
tempo-espacial é vivencial, e sua experiência é polimorfa, flexível, maleável, mutante:
percepção diversa daquela do adulto realista estrito senso.
Quando aceitarmos o polimorfismo infantil e nos afastarmos da noção de “representação
de mundo” é que chegaremos a compreender o modo de pensar e sentir da criança
mesma. É preciso retomar a imagem de onirismo: para o adulto transpor-se para a
“lógica pré-lógica” das crianças, é fundamental lembrar da linguagem do sonho. O sonho
é carregado de “restos diurnos”, de desejos e fantasias, outros tempos e espaços. A
criança pequena circula por esse âmbito, acordada… sem maiores problemas.
Outra dimensão para compreender a espacialidade e a temporalidade das crianças, algo
que nos transpõe para esta outra lógica é a produção cultural adulta: literatura, poesia,
desenhos animados; o uso no nonsense, a mistura de tempos nos roteiros de cinema, a
possibilidade de convivência de espaços em cenários no teatro, performances e
instalações nas artes plásticas. Talvez por tudo isso Picasso (apud de Mèredieu,1997)
tenha afirmado:
100
Antes eu desenhava como Rafael, mas precisei de toda uma
existência para poder aprender a desenhar como as
crianças.
*
• A temporalidade da criança pequena tornada visível
Se relação da criança com o tempo não é de uma ignorância do tempo objetivo, mas
antes a experiência de uma “outra estrutura” do tempo, isso se dá também para a sua
relação com o espaço:
Nós concebemos uma série indefinida de grandezas. Para a criança há um
absoluto de grandeza; passado esse grau, nada é maior. Existe como que uma
espécie de soleira. Ultrapassada a soleira, estamos no “grande” absoluto. (…)
Merleau-Ponty (1990b:261)
Desenvolver-se, poder mudar de ponto de vista acerca do tempo e do espaço, é, para
Merleau-Ponty, algo que ocorrerá a partir daquilo que ele denomina “emergência de
formas novas”. Os processos de maturação e de aprendizagem são, segundo ele,
inseparáveis. Recorre, para pensar assim, aos gestaltistas, e propõe fazer da Gestalt não
uma coisa, mas um “fenômeno de organização”, um tipo de estrutura. Desse ponto de
vista, “crescer é estruturar-se em novas bases” (1990a:197). Essa é uma enorme
contribuição de Merleau-Ponty: pensar as teorias desenvolvimentistas em seus Cursos na
Sorbonne de maneira inteligente e crítica, a partir da concepção gestaltista da percepção
da criança e da infância.
A noção de situação contextualiza as percepções: toda percepção tem um sentido. Cabe
ao adulto compreender o sentido da percepção tempo-espacial das crianças pequenas, a
partir da observação das crianças em situação. O sentido percebido não é intelectual,
“podendo-se descrevê-lo naquilo que ele tem de original”. Buscar a mais completa
101
descrição dos fenômenos da infância é a maneira de chegar à apreensão da organização
perceptiva alí implícita: a consciência infantil percebe o mundo diferentemente do adulto.
A criança pequena prescinde de uma organização tempo-espacial “aristotélica”, que
implica em uma estrutura de tipo começo-meio-e-fim, em sua maneira de ser e estar. Isso
está dado e revelado em seu cotidiano: vejo especialmente esta característica em meus
alunos de 5 e 6 anos de idade, iniciantes na atividade teatral. Quando nós, adultos
educadores, lhes contamos histórias, inúmeras vezes insistimos na narrativa composta por
começo-meio-e-fim. Na vez das crianças contarem suas próprias narrativas, quase sempre
os tempos convivem -- e se a atividade é prazerosa para ela, costuma ser uma espécie de
faz-de-conta sem fim: e seus professores precisam sempre chamar atenção para “o
tempo do relógio”, pois a aula de teatro tem sim uma hora certa para acabar!
Também percebo que “histórias malucas”, narrativas que se repetem e se re-iniciam,
histórias em capítulos e que portanto ficam “sem final”, são, assim, na maior parte das
vezes, aceitas de modo lúdico e humorado. Em uma linguagem mais adulta e sofisiticada,
encontrei em um depoimento de Clarice Lispector algo acerca da essência desta
temporalidade, diversa da cronológica:
(…)
Minha vida começa pelo meio como eu sempre começo pelo meio, aí vai o
meio. Depois o princípio aparecerá ou não. (…) No que precede um
acontecimento – é lá que eu vivo. Espero viver sempre às vésperas. E não no dia.
O presente só existe quando ele é lembrança e só existe quando vai ser.
Estive à beira de compreender o tempo, eu senti que sim. Mas logo em
seguida ao leve vislumbre, tive uma espécie de medo de penetrar sem nenhuma
lógica na matéria que me pareceu de súbito sagrada:
Não esquecer: hoje é agora. Ressoam os tambores anunciando o sem-
começo e o sem-fim. Abrem-se as cortinas. Eu sinto que a realidade é
tridimensional. Por quê? Não consigo explicar. O que sinto é no sem-tempo e no
sem-espaço. O tempo no futuro já passou. (…) (2004:93)
102
Enxergo essa dimensão profunda do tempo vivido em pequenas cenas, jogos e
dramatizações das crianças com as quais trabalho. O faz-de-conta, desdobrado em teatro,
permite a formulação do tempo tal como dito em: agora eu era… E as crianças brincam
de nascer e de morrer, corporificam velhos e anjos, demônios e serpentes…
Também encontrei em Françoise Dolto aval e aceite para o caminho do exercício do
teatro, do desenho e das outras artes junto a crianças:
(…) A criatividade, a inventividade, aí está o desejo, não é a satisfação na
própria coisa; é a evolução cultural desse desejo na linguagem, na
representação, na inventividade, na criação. (2002:50)
Retomo o aspecto existencial da lingüisticidade e da corporalidade, caminhos expressivos
da criança, que, se deixada viver, inventa espaços e re-inventa o tempo, tal como cantou
Caetano Veloso:
És um senhor tão bonito
quanto a cara do meu filho
Tempo, Tempo, Tempo, Tempo
és um dos deuses mais lindos (…)
*
• Interfaces entre os existenciais
Na medida em que a discussão avança, parece ficar mais evidente a íntima conexão entre
os existenciais: a relação da criança com seu corpo depende do cuidado e do
relacionamento com o outro, que se utiliza da fala, da palavra, da conversa para entrar em
contato com ela; nesses diálogos, o adulto pressente diferenças entre ele e a criança com a
qual convive, na medida em que observa, primeiro em gesto e atitude, depois pela palavra
falada, que a criança tem um modo peculiar de ser e estar no mundo – sua temporalidade
“não-aristotélica”, não formula começo-meio-e-fim; sua espacialidade é onírica e lúdica
(cantou também Caetano Veloso: o Haiti é aqui): para a criança os espaços convivem de
103
fato. Como dado na discussão acerca do espelho, inicialmente o pai real e o pai espelhado
são, para ela, dois pais que convivem no mesmo tempo-espaço.
A seguir será discutida a mundaneidade: o contato da criança com o mundo, mundo que
já lá se encontrava, quando nasceu. A história pregressa de seus pais e de seu país, sua
cultura, sua forma de ser criada, fecha o círculo hermenêutico dos existenciais na
infância, abertura para outro momento da reflexão: existe uma educação
‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?
* * *
104
105
Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo,
deve-se introduzí-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova,
deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue à fruição
em relação ao mundo como ele é.
Hannah Arendt
(…)
Vem a criança humana ao folguedo;
Para as águas e para o arvoredo.
Uma fada a conduz pela mão;
Vem de um mundo que é triste demais para sua compreensão.
W. B. Yeats
• Infância e ser-no-mundo: mundocentrismo
Cada criança, mesmo antes de nascer, está banhada pela cultura: no modo de vida de seus
pais, suas escolhas e determinações, sonhos, projetos passados e futuros. Não há como
separar sua inserção no mundo das relações com o outro (outridade) e das relações com a
cultura: “uma cultura deveria ser vista como uma concepção de mundo que se inscreve
até nos utensílios ou nas palavras mais usuais” (Merleau-Ponty, 1990b:135). Daí,
certamente, a lingüisticidade ser fundamental para revelar as relações criança-mundo,
criança-cultura, criança-outro. Mundaneidade sintetizará, aqui, a noção merleau-pontiana
de ser-em-situação.
A criança, segundo o filósofo, entra na herança cultural por meio de sua inteligência e
também por “meios quase dramáticos da imitação do adulto”. Sua expressividade, sua
106
capacidade para a fala por exemplo, são formas de “coexistência com o meio”; e nossa
compreensão acerca da criança e do fenômeno da infância, será conhecida a partir de
“como essa situação concretiza-se no meio”—“É preciso determinar um medium, um
meio (o que os culturalistas americanos exploram, por exemplo), meio de utensílios, de
instrumentos, de instituições que modelam seus modos de pensar.” (1990b: 191-92)
Cada bebê será apresentado ao mundo cultural pelos adultos ao seu redor; como disse
Winnicott, eles precisam de “pequenas doses de realidade”, doses fornecidas por adultos
– a condição de dependência total faz com que a relação criança-adulto se revele,
necessariamente, assimétrica, e o adulto deve cultivar, de um modo que o psicanalista
nomeou “suficientemente bom” (nem perfeito, nem desastroso!), a apresentação gradual
do mundo.
É, portanto, o adulto que introduz a criança ao “mundo”. Segundo Hannah Arendt (1972):
“Face à criança, é como se ele [o adulto] fosse um representante de todos os habitantes
adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: -- Isso é o nosso mundo.” (1972:239).
*
O escritor Gianni Rodari
23
(1996) manteve uma coluna em um jornal italiano onde
respondia a cartas de crianças; certa vez, em resposta à seguinte pergunta existencial de
uma criança: -- “Por que nascemos?” , Rodari respondeu: “Responderei com outros
versinhos”, e prosseguiu:
Esta é uma história verdadeira:
uma vez você não era
e agora é.
Como? Por quê?
Você veio a este mundo
para ver como ele é lindo,
23
Certamente um adulto que pesquisou uma “fala falante” para conversar com as
crianças.
107
assim grande, assim redondo,
e, ao invés, o que descobriu?
Que ele é velho, encurvado
e até mal organizado:
dá pena até de olhar…
Arregace todas as mangas
é preciso consertar…
(1996:13)
Seria interessante se todo adulto pudesse dizer à criança que ela veio ao mundo “para
consertá-lo”, como brincou Gianni Rodari. A partir dessa forma de dizer, a criança ganha
poder, e alguma autonomia para “mudar as coisas”. Dizer, claramente, como o mundo
está feio! E convidá-la à experiência estética de fazer o mundo mais bonito; convidar à
esperança, e à noção de utopia. Isso insere a criança no nosso mundo, ultrapassando a
noção tão criticada por Merleau-Ponty de “mundo infantil”: algo que Hannah Arendt
(1972) também nos faz pensar, a partir de seu clássico texto “A crise na educação” .
Para Hannah Arendt, por detrás da crise norte-americana no ensino e na educação -- crise
vivida nos anos 60 do século XX – há um pressuposto errôneo: de que “existe um mundo
da criança e uma sociedade formada entre crianças, autônomos, e que se deve, na medida
do possível, permitir que elas governem.” (1972:230)
Hannah Arendt procurou dizer aos adultos que são eles os responsáveis por suas crianças,
e que sempre, diante do novo, da novidade e do frescor da infância e da juventude, os
adultos serão “velhos” -- e responderão pela “tradição”. As crianças são a novidade no
mundo, e seria preciso que cada adulto encarasse este fato com naturalidade e
generosidade. Fazê-lo é zelar pela criança que trouxe ao mundo. Não há, tampouco, como
“emancipar” uma criança, deixando de responsabilizar-se por ela.
24
24
Ao pensar a hipótese de emancipação das crianças, tal como Hannah Arendt enxerga a
educação nos Estados Unidos dos anos 60, a autora afirma que “ao emancipar-se da
autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito
108
Por ser a criança pré-lógica e pré-objetiva, ela está mergulhada, entregue, imersa na
experiência de conhecer e viver o mundo. O mundo lá está: para ser encontrado por ela.
Assim, Merleau-Ponty nos propõe uma inversão: as crianças não seriam “egocentradas”,
como propôs a psicologia desenvolvimentista clássica; ela são mundocentradas. Estão
mais próximas que os adultos da proposição fenomenológica de não-dicotomizar eu-
mundo: por possuir uma noção de “corpo fenomênico e indiviso”, não há, a priori, um
‘ego’ ou uma estrutura de “Eu”, para que a criança se centre nele! A aquisição do
pronome “Eu” pode até mesmo demorar três anos de vida. Isso remete de volta à
significação das “crises de birra”, conduta que, muitas vezes, perto dos três anos de idade,
fica acirrada: como se o conflito entre “o que se é” e “o que se quer ser” ficasse, naquele
momento da vida, insuportável.
*
Outra criança perguntou a Rodari: --“Eu queria saber no que consiste a felicidade e se
podemos ser felizes para toda vida”. Ao que ele respondeu:
Para ter certeza de não errar a resposta, fui procurar num grosso
dicionário a palavra felicidade e encontrei que significa “estar plenamente
contente, para sempre e por longo tempo”. Mas como é possível estar
“plenamente contente”, com todas as coisas feias que estão acontecendo no
mundo e com todos os erros que nós também fazemos, cada dia do ano?
Fechei o dicionário e o coloquei novamente na prateleira, com muito
respeito porque é um velho livro e custa caro, mas totalmente decidido a não
ligar para ele.
A felicidade tem que ser, sem dúvida, alguma outra coisa, uma coisa que
não nos obrigue a estar sempre contentes e satisfeitos (e um pouco imbecilizados)
como uma galinha que encheu o bucho.
mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria.” (1972:230) Fiz um
paralelo entre essa afirmação e a vida levada pelas crianças brasileiras moradoras de
condomínios fechados em meu livro A poética do brincar (1998).
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Talvez a felicidade esteja em fazer as coisas que possam enriquecer a
vida de todos os homens; ou estar em harmonia com aqueles que querem e fazem
as coisas certas e necessárias. Então, a felicidade não é simples e fácil como uma
musiquinha: é uma luta.
Não a aprendemos nos livros, mas na vida, e não são todos os que
conseguem; aqueles que nunca se cansam de procurar, de lutar e de fazer,
conseguem, e acredito que podem ser felizes por toda a vida.
/grifo do autor/ (1996:68)
Sempre que releio este entrecho, lembro de uma canção de propaganda (jingle) da minha
puberdade: “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada…” Era a canção da primeira
marca brasileira de calças jeans. Poder dizer a uma criança que de fato a felicidade nada
tem a ver com “musiquinhas”, é corajoso e instrutivo. Rodari faz aos seus leitores um
convite ao mergulho no mundo vivido.
*
• O Outro é narrador do mundo
A psicanalista Françoise Dolto pede aos adultos que conversem com suas crianças,
“desde sempre”: da concepção, gestação e parto em diante. Comenta que muitos adultos
não falam com suas crianças pressupondo que “não entendem” a palavra falada; ela
garante que a criança compreende e apreende a verdade do adulto em sua palavra e
gestualidade, desde a mais tenra idade. A psicanalista afirma que aqueles que não
conversam com seus filhos, e a sociedade que não dialoga com as crianças, as trata como
“animais de estimação”. Dar status de gente às crianças, é lhes dar o direito de receber,
dos adultos, a sua verdade, por meio da linguagem. Conversar, procurar o diálogo e a
expressão da palavra é humanizante e situa a criança no mundo: mesmo que um adulto
precise dizer da sua dificuldade de conversar, pedindo à criança um tempo para pensar na
resposta que pode dar à sua pergunta, intrigante ou desconcertante.
110
Também sobre isso respondeu Gianni Rodari, quando seu leitor perguntou:
--“Por que falamos?”
A resposta é muito comprida e começa há centenas de milhares de anos,
quando os primeiros homens começaram a viver juntos, a defender-se juntos dos
outros animais, a caçar juntos. Foi naquele tempo que inventaram, quase sem
perceber, a linguagem, uma palavra de cada vez, para se comunicarem uns com
os outros. Se cada homem vivesse por sua conta, seria mudo, como uma planta.
As primeiras palavras devem ter sido muito simples: um murmúrio que
queria dizer “Estou contente!”, um outro que queria dizer “Perigo! Perigo!”, um
outro que queria dizer “Ai que dor!”.
Agora temos os dicionários cheios de palavras para dizer tudo o que
queremos. Mas a coisa importante é ainda muito simples: dizer sempre a
verdade.
Seguindo suas palavras
como rastros no caminho
entrei na sua cabeça
e vi, por um momento,
todo seu pensamento,
vi que estavam passando
as coisas que você diz
e fiquei muito feliz.
Sinal que você é sincero,
leal e bom companheiro.
Então meus pensamentos
e os seus deram-se as mãos
e muito longe eles irão. (1996:58)
A apresentação do mundo, tal qual o pequeno poema, escrito por um adulto em resposta a
uma criança, tem portas e janelas desenhadas pela lingüisticidade. A fenomenologia da
descoberta do mundo é complementar à fenomenologia da descoberta das palavras, e da
possibilidade de diálogo, conversa, comunicação – e acolhimento, companherismo.
111
Por meio de narrativas os adultos me contam que existem outros países; por meio da
palavra os adultos me tranqüilizam (ou me assustam mais ainda!) sobre fenômenos que
não compreendo, tais como uma barulhenta tempestade, ou uma ruidosa dor de barriga.
Esse mundo não é o globo terrestre: do mesmo modo que o corpo não é o corpo
biológico, também o mundo é muito mais do que o planeta Terra, e o Universo!, mas
obviamente o engloba e o contém.
Toda vivência da corporalidade, da outridade, da lingüisticidade, da temporalidade e da
espacialidade da criança, constituem sua mundaneidade. Há que dar atenção ao que é
comum a muitas crianças, e ao que é muito próprio daquela criança específica. Medos,
por exemplo: estranhar um rosto desconhecido é algo próprio a um determinado
momento da vida dos bebês, momento que coincide, às vezes, com seu desmame, com a
amplitude de mundo que uma nova alimentação lhe apresenta. Chorar muito diante de
uma novidade -- pessoa, coisa ou animal -- é, como ensinou Winnicott, uma tentativa de
“solucionar o problema” – e “funciona!”, pois costuma mobilizar os adultos.
*
• A mundaneidade da criança pequena tornada visível
Observar as características “gerais” ou dos bebês, particularizadas em Joana ou Luís, é
perceber como eles vivem os estranhamentos e as surpresas do mundo, é tornar visível a
mundaneidade. A observação do contexto e da situação, seu registro em palavras, para ser
fenomenológica, dialoga com as duas coisas: o que é “geral” e o que é “particular” na
relação Joana-mundo, na relação Luís-mundo: relação íntima, delicada e privada, a ser
preservada pelo modo de ser dos adultos.
A fenomenologia da mundaneidade da criança pequena aí está -- passível de ser
observada e registrada a partir do momento em que crianças são “filhotes” humanos. Esse
fato perpetua e historiciza o registro em palavra, e em imagem (pintura, fotografia,
112
televisão, cinema, cartazes, outdoors), das relações adulto-criança, das relações
sociedade-cidadãos “filhotes”. Inserir-se e ser inserida no mundo – não no “mundinho da
criança”, nem tampouco no “mundo mágico da criança” – pois trata-se do mesmo mundo,
o mundo constituído pela comunidade humana, ao longo das civilizações – é ser aceito
como pessoa, cidadão da comunidade à qual se pertence.
Conhecer o mundo em pequenas doses é um direito da criança pequena. Ela será
conduzida pelos adultos: familiares e educadores. A escola é “a instituição que
interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer que seja
possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo.” (Arendt, 1972:238).
É, portanto, extremamente relevante o papel da família e da escola para essa inserção da
criança no mundo, convivência a partir da qual ela se apropria do existencial
mundaneidade. As instituições família e escola são âmbitos privados que protegem a
criança de um âmbito público maior: “Por precisar ser protegida do mundo, o lugar
tradicional da criança é a família” – ou seja, a criança pequena pertence ao domínio da
vida privada: “O mundo não lhe pode dar atenção, e ela deve ser oculta e protegida do
mundo.” (1972:236). Tristemente nas grandes cidades vemos o escancaramento da vida
em “doses maçiças” diante de crianças muito pequenas: moradoras de rua, pedintes, às
vezes prostituídas; a isso nomeei “infância morrida”.
Argumenta Hannah Arendt que “também o mundo precisa de proteção” – o que torna o
conservadorismo uma obrigatoriedade do modo do adulto no mundo.
*
• Interfaces entre os existenciais
A relação criança-mundo, ou a mundaneidade da criança pequena, está dada pela
espacialidade – distância entre ela e o outro – pela corporalidade – sempre em relação
com outros corpos, especialmente o da mãe: “o corpo da mãe está aí sob a forma de
113
presença e não de lembrança” (Merleau-Ponty, 1990b:125), e pela outridade: o mundo,
para ser descoberto pela criança, implica em um adulto para transportá-la.
Especialmente na fase da dependência total dos cuidados do adulto, o “mergulho no
mundo” dependerá de um colo seguro e aconchegante. E, a partir da relação criança-
adulto, o mundo poderá ficar cada vez mais acessível: interessante, instigante, e
traduzível em palavras, como Rodari faz e ensina. Se as palavras forem falantes,
carregadas de sentido, as narrativas do Outro acerca do mundo serão um convite a habitá-
lo, e a começar uma pesquisa de formas de narrá-lo também, ampliando o desenho de um
círculo de significações e remetimentos. Mais tarde, por meio da leitura, a criança mesma
poderá ler inúmeras narrativas, e escrever suas próprias experiências, o que ampliará sua
relação consigo, com os outros e com o mundo.
* * *
114
115
Ai me dá um abraço
atitude pacienciosa -- como aquela atitude que precisamos ter ao acompanhar a criança
que começa a dar laço no sapato! É também uma atitude solene, que reconhece o que há
de sagrado e de mistério na vida humana: esperar que a flor desabroche.
A partir de meu encontro com o autor e a obra, a partir da expressão “antropologia
fenomenológica e existencial”, e muitos preciosos detalhes do livro, retomei meu projeto
de esboçar uma “fenomenologia da infância” – iniciado, de forma muito rudimentar, no
meu Trabalho de Conclusão de Curso, no último ano da graduação no curso de Psicologia
da PUC-SP, em 1997.
Guimarães pensa o existencial culpabilidade a partir de Kierkegaard. Sören Kierkegaard é
considerado por muitos estudiosos o primeiro filósofo da existência. Nascido na
Dinamarca em 1813, sua influência na filosofia alemã será perceptível apenas no final do
século XIX; “de todos os filósofos, (…) é um dos que melhor sentiram qual a distância
intransponível que sempre existe entre as certezas dispensadas por um sistema e a
realidade do homem” (Beaufret, 1976).
Jaspers e Heidegger reconheceram sua dívida com Kierkegaard; é ele que retoma “o
problema do ser” na filosofia, e o retoma “no sentido do existir”; Jean Beafret (1976)
comenta seu pensamento:
O homem se faz, pois, presença humana, fazendo irromper no mundo algo
como a inteligência do existir. Notemos que esta inteligência do existir, captada
assim, em estado nascente, como ruptura com as trevas, nada tem ainda de
determinação rigorosa do conceito. Resta precisá-la, elaborá-la, abrí-la a seus
vastos horizontes, apreender todas as perspectivas que, no fundo de si, ela
comporta. Então, ela nos surge menos como um dado que como a promessa de
uma possibilidade. /grifo do autor/ (1976:16).
O Prof. Guimarães situa o existencial culpabilidade no contexto das “possibilidades”:
“Qualquer que seja a decisão prendemo-nos na teia do ter-podido-ser-diferente
(1993:86). A culpalbilidade “tem o sentido de previsão como diz Kierkegaard: sou
117
culpável porque deixo de prever. Previsão das possiblidades da alternativa humana.
Ou…ou.” /grifos do autor/ (id. ibidem).
Ensina o professor Guimarães que “culpabilidade existencial” nada tem a ver com o
conceito psicológico ou normativo-jurídico; ela é “intrínseca à existência”: “A
culpabilidade existencial está aquém do que psicologicamente é sentido (depois de) ou
judicialmente avaliado”. O desdobramento deste existencial (“Existencialen
respeitantes a esse ente lançado no seu mundo significativo”) é a noção de
responsabilidade:
(…) Acercamo-nos do sol e damo-nos conta, quando caímos em falso, que
as nossas asas eram de cera. A experiência da queda, na tentativa de
existir plenamente, autenticamente, transforma o primitivo estado da
ignorância. A partir de então não mais deixamos de responder por isso
(responsabilidade), pelo que se é e pelo que se poderia ser – conforme a
liberdade dada e retomada pelo conhecimento que leva em si a
consideração do sentido. (…) /grifos do autor/ (idem ibidem)
Esse modo de conceber a vida humana nos leva a uma noção própria de amadurecimento:
crescer implica na transformação do “primitivo estado de ignorância”.
*
• Co-existir: responsabilidade
A partir da noção de “culpabilidade existencial” e de “responsabilidade” desenharei
minha contribuição, em busca de uma resposta para a reflexão acerca da possibilidade de
uma “pedagogia fenomenológica”. Parto de algo aparentemente simples: uma atitude por
parte do adulto. Cultivar um modo de ser que revela uma conduta desejável frente às
crianças é minha prerrogativa – à qual darei um apelido: a pedagogia do laço (e das
andorinhas…como diz a quadrinha da epígrafe anteriormente escolhida).
118
Esta conduta é extremamete simples na aparência; no entanto, a responsabilidade que
advém do laço e do cuidar é algo que nos angustia. Estar a par da escolha feita é saber de
todas as outras possibilidades deixadas de lado; daí também a intimidade entre
culpabilidade, responsabilidade, angústia e ansiedade, como bem formulou Kierkegaard.
Mas para realizar a análise fenomenológica das relações adulto-criança não basta a
prerrogativa do amor e do laço social. Será preciso compreender existencialmente quem
são as crianças, seus pais, sua comunidade; quem são os professores e educadores; quem
são os governantes que pensam e executam políticas públicas educacionais da cidade,
estado e país; quem são os produtores culturais que programam a televisão, criam jogos
eletrônicos, desenham brinquedos, indústria cultural da qual crianças e jovens usufruem
horas por dia – e assim por diante.
O caminho a ser percorrido tenta decifrar: quem escolheu o quê, e como foi feita esta
escolha? Esta tese de doutoramento propõe uma reflexão acerca da responsabilidade da
sociedade adulta frente às suas crianças.
Tomo como exemplo a responsabilidade de adolescentes que se tornam pais. Quando o
jovem casal iniciou sua vida sexual ativa, pôde escolher entre os métodos concepcionais
existentes, de modo a não gerar um filho indesejado? Se não, optaram assim por
ignorância? E, se ignorantes, isso deve-se a quem? Família, escola, sociedade? Pensar
desse modo é não incorrer em psicologismos, e colar o fenômeno analisado em seu
contexto, sua significação situacional. Os âmbitos existenciais não são descolados do
modo de vida daqueles de quem estamos analisando fenomenologicamente.
*
Outro ensinamento do Prof. Guimarães, a partir de seu estudo do pensamento
kierkegaardiano, é a noção de nobre reserva, tal como pensada pelo filósofo
dinamarquês. Esta noção carrega uma proposta educacional:
119
A ‘nobre reserva’ não fala por falar, evita ‘mal interpretar’, concluir
apressadamente, mas antes guarda no coração o que vê por dentro e abre-se às
manifestações do peculiar no silêncio criativo do espírito. A arte de educar é
‘estar sempre lá sem parecer e deixar a criança desenvolver-se por si
própria’”(1993: 63).
O ideal educativo do filósofo dinamarquês, segundo Guimarães, tem “expressão na arte
do ‘co-estar’ independente da presença física ou dum tempo quantitativo”. A prerrogativa
do psicanalista Winnicott propõe, quanto à convivência entre adultos e crianças, de
maneira análoga à de Kierkegaard, que o adulto precisa estar “presente e ausente” ao
mesmo tempo, na lida com as crianças. Presente, de modo que a criança se veja assistida
e acolhida; ausente para que ela possa descobrir o mundo: por ela mesma, com a
autonomia possível que sua existência permita.
Chego assim bem perto de uma resposta à pergunta que fiz à professora Maria Fernanda.
Não há conselhos, fórmulas ou “maneiras de fazer” para educar uma criança –uma
atitude possível, com foco no olhar antropológico e pensar reflexivo para o
fenômeno da infância. Há também, como indicou Merleau-Ponty, um discurso a ser
criado, uma linguagem por vir; busca por um dizer que instaure a “palavra falante” nas
relações adulto-criança. Uma vez incumbidos da tarefa de educar crianças, podemos
desenvolver em nós a “nobre reserva”, bem como a capacidade para diálogo e
acolhimento.
Hannah Arendt afirmou que “qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade
coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibí-la de tomar parte em sua
educação.” (1972:239) É uma assertiva firme, categórica; Merleau-Ponty tem um ponto
de vista semelhante, expresso em outros termos:
Seria bom que os educadores não gostassem da pedagogia com essa
paixão sofredora que encontramos às vezes (a criança é pelo próprio fato
colocada numa situação anormal). Precisaria ser educador por gosto pela vida,
não por ressentimento contra ela. /grifo meu/ (1990b:217)
120
É importante pensar na capacidade do educador desenvolver, ele mesmo, o olhar
compreensivo – de verdadeira aceitação do modo de ser e de estar da criança, e não de
“tolerância” – se se quiser responder à pergunta que fiz à professora Maria Fernanda.
• Co-existir: o sentimento de pertença
(…) Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a
de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo
devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de
graça.
Se no berço experimentei essa fome humana, ela continua a me
acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. (…)
Então porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou
alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto
preciso e como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e
uma alma. E preciso mais do que isso. Quem sabe comecei a escrever tão
cedo na vida porque, escrevendo, eu pertencia um pouco a mim mesma.
(…) Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em
mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. (…)
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me
dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube:
pertencer é viver. (…) /grifo da autora/
Clarice Lispector
Clarice Lispector nos torna permeáveis, nos sensibiliza em sua reflexão existencial para o
sentimento de pertença. Proponho que o par complementar à fome de pertencer sentida
pelas crianças seja a capacidade de acolhimento -- capacidade humana da qual o adulto
cuidador apropria-se ou não.
121
Quando o filósofo Lévinas faleceu, Jacques Derrida prestou homenagens ao mestre e
amigo; algumas destas homenagens foram publicadas no livro Adeus a Emmanuel
Lévinas (São Paulo: Perspectiva, 2004). Derrida discorre sobre a obra de Lévinas e
introduz o leitor a conceitos-chave da obra do filósofo, e chamo aqui atenção especial ao
ensaio “A palavra acolhimento”. Derrida nos diz que, “para Lévinas, o acolhimento do
ensinamento dá e recebe outra coisa, mais do que eu e mais que uma outra coisa”. E cita
Lévinas em nota de rodapé: “Receber o dado – é já recebê-lo como ensinado – como
expressão do Outro.” (2004:35).
Derrida nos diz que Lévinas formulou “uma ética da hospitalidade”; hospitalidade e
acolhimento são as maneiras de pensar “a abertura em geral”. A hospitalidade é “a
eticidade propriamente dita, o todo e o princípio da ética” (2004:66). Assim, Lévinas
definirá consciência e intencionalidade humanas como “hospitalidade”:
Ato sem atividade, razão como receptividade, experiência sensível e
racional do receber, gesto de acolhimento, boas-vindas oferecidas ao outro como
estrangeiro, a hospitalidade abre-se como intecionalidade mas ela não saberia
tornar-se objeto, coisa ou tema. A tematização, ao contrário, já supõe a
hospitalidade, o acolhimento, a intencionalidade, o rosto. (…) /grifo do autor/
(idem ibidem)
Proponho pensar aqui, junto com Lévinas, as noções de acolhimento e hospitalidade entre
adultos e crianças
25
: trata-se de pensar eticamente a convivência, assimétrica por
definição, instaurada no relacionamento entre quem cuida, o adulto portanto, e a criança
que está a seus cuidados: o cuidador e aquele que é cuidado. Para Lévinas, “o cogito é
hospitalidade oferecida ou dada” (idem ibidem).
25
Relembro aqui mais uma interessante canção de Caetano Veloso, composta no
momento próximo à chegada de seu filho do segundo casamento, Zeca: “Sua mãe e eu/
seu irmão e eu/ e o pai da sua mãe/ lhe damos as boas vindas, boas vindas, boas vindas/
venha conhecer a vida/ e eu digo que ela é gostosa (…)”.
122
Lévinas concebe o “acolhimento do rosto”; esta expressão é algo que remete ao pedido
do psicanalista D. W. Winnicott para que as mães alimentem seus bebês, seja por
aleitamento ou mamadeira, olhando para eles. Para o psicanalista, o rosto amoroso é
espelho de aceitação e humanização da experiência de existir para o bebê, ao ser
alimentado e cuidado.
Para o filósofo, comentado por Derrida, não há intencionalidade sem hospitalidade: (…)
“a intencionalidade abre-se, desde o seu próprio limiar, na sua estrutura mais geral, como
hospitalidade, acolhimento do rosto, ética da hospitalidade, portanto ética em geral.”
(2004:67).
*
No exame de qualificação desta tese de doutoramento, ouvi das professoras o comentário
de que meu projeto poderia ser visto como “um projeto ético” para pensar a infância.
Entendo esse comentário, hoje, como convite a uma propositiva da fenomenologia da
infância que contribua para que os adultos, leitores, acolham suas crianças -- como
“flores da vida”. Proponho ao leitor pensar, como disse Clarice Lispector, que pertencer é
viver; pensar, como faz Françoise Dolto, que as crianças escolheram aqui estar, nessas
famílias, nestas situações, tais quais elas se apresentam, com dificuldades e percalços,
mas vivas!
No “Segundo Ato” da tese, tecerei significações para este “projeto ético” de uma
fenomenologia da infância, e partirei, justamente, da propositiva de Merleau-Ponty:
criação de uma “nova linguagem” que revele a psicologia da criança – e que essa nova
linguagem, como exercício de discursividade, possa ser lida e compreendida pelo leitor
como propositiva ético-política.
26
*
26
Sobre isso sugiro ao leitor que visite o texto de Paul Ricouer na epígrafe do “Epílogo”
da tese.
123
• A culpabilidade da criança pequena tornada visível
Está na criança e em suas ações, dizeres e reflexões acerca do outro a potencialidade para
este existencial. Está portanto em sua corporalidade, lingüisticidade e na outridade a
revelação da culpabilidade. Mas está especialmente na sua relação com os outros o germe
do cuidador, nela mesma, modo de tornar-se responsável pelo aspecto sagrado da vida.
É visível nas brincadeiras de faz-de-conta, nos cuidados com bonecas e nos jogos com
regras, a possiblidade de contenção de seus modos de ser agressivos, por exemplo – ao
dar de comer para suas bonecas, ao preocupar-se com outra criança que machucou-se.
Também a lida com animais de estimação evidencia modos de tratar e acolher, dar colo
ou ser cruel, maltratar…; e é especialmente na convivência com o Outro que está dada,
desde a mais tenra idade, a responsabilidade conjunta: frente a si mesma, ao outro e ao
mundo.
Nesse sentido nossa reflexão anterior sobre os eixos existenciais que compõem a Flor da
vida apontam para maturidade e crescimento: sair do “estado de ignorância”, como diz o
professor Guimarães, e conviver, acolher e responsabilizar-se cada vez mais por si
mesmo, pelo outro, pelo mundo; a cultura humana tem potencialidade para semear esta
atitude, cultivada na convivência cotidiana.
Diante do acolhimento do adulto e da sentimento de pertença das crianças pode surgir o
“nós” – ou a nostricidade
27
, como ensinou o professor Guimarães; caminho do laço
social e da significação da culpabilidade.
* * *
27
Existencial discutido no “Epílogo” da tese.
124
II Entreato
Prenúncio de uma colheita
125
Sei lá, a vida tem sempre razão
Vinícius de Moraes e Toquinho
Tem dias que eu fico
Pensando na vida
E sinceramente não vejo saída
Como é, por exemplo
Que dá prá entender
A gente mal nasce
Começa a morrer
Depois da chegada
Vem sempre a partida
Porque não há nada
Sem separação
Sei lá, sei lá
A vida é uma grande ilusão
Sei lá, sei lá
Só sei que ela está com a razão
(…)
Para olhar fenomenologicamente para a canção de Vinícius e Toquinho, além de
sintonizarmos com o dizer “a gente mal nasce começa a morrer” – que revela,
poeticamente, a noção de existente, aquele que sabe de sua finitude – também é
importante chamar atenção do leitor para o título, frase que é parte tamm do segundo
refrão: Sei lá, a vida tem sempre razão. E afirmo, no início deste segundo entreato, a
126
partir desta canção: a razão da fenomenologia da infância está na vida – ou ainda, na
continuidade dela.
A Flor da vida é a imagem que criei para contar algo ao leitor e interlocutor sobre a
criança pequena, semente que desabrocha em flor; é também uma forma de expresssar
algo sobre mim – a autora da tese. Percebo que muitos anos de estudo em fenomenologia
marcam meu texto, de modo que estou inevitavelmente implicada, e não haveria outro
modo de escrever uma tese senão pelo caminho que, em linguagem acadêmica, nomeia-se
“relato de experiência”.
A Flor da vida é síntese de meu trabalho com crianças, iniciado como arte-educadora em
1981. É também, de alguma forma, depoimento de alguém nascido em São Paulo no ano
de 1961, três anos antes da revolução militar no Brasil; aluna de uma das primeiras
“escolas experimentais” da cidade de São Paulo, o “Quá-Quá”. Adolescente, em 1977,
morei nos Estados Unidos por um ano, como estudante de intercâmbio, quando meu
interesse voltou-se para as Ciências Humanas; e o texto aqui escrito é feito por uma mãe
de primeira viagem na segunda década de 80, e esposa, por dez anos, de um artista
plástico e arte-educador que manteve por muitos anos um “Atelier Livre” onde ensinava
artes plásticas. Professora, quando adulta jovem, de pré-escolas que propunham uma
pedagogia embasada nas noções filosóficas e educacionais de Paulo Freire; ex-atriz do
Grupo Ventoforte, psicóloga formada em 1997 e mestre em Artes; por fim -- ou de volta
ao começo – quem aqui escreve é doutoranda em Psicologia da Educação na PUC-SP.
Sou, portanto, parte de uma geração que quando criança “cantava os Beatles e os Rolling
Stones”; geração de filhos de uma classe média bem-sucedida, que viveu o chamado
“milagre econômico” brasileiro e o surgimento da indústria cultural para crianças, com a
televisão educativa e um enorme boom da literatura infanto-juvenil; adulta jovem quando
o vírus do HIV começou a exigir novos cuidados e reflexão acerca da liberdade sexual
conquistada pela geração anterior; mulher jovem que encontrava-se grávida quando o
candidato à presidência do Brasil Tancredo Neves morreu. Voltei a estudar aos trinta
anos de idade, na graduação em Psicologia da PUC-SP, a partir de meu interesse, como
auto-didata, pela obra do psicanalista inglês D. W. Winnicott. Hoje sou psicoterapeuta,
127
ensino teatro para crianças em uma escola municipal de iniciação artística e psicologia
fenomenológica em um centro universitário, em São Paulo.
Todas estas referências são “figuras” e “fundos”, eixos dos meus questionamentos desta
pesquisa de doutorado, que desemboca em um enorme interesse por outra ciência
humana, irmã da psicologia fenomenológica: a antropologia. Também é “figura-e-fundo”
para os próximos desdobramentos do meu texto, pois no “Segundo ato” vou comentar
minha prática como professora de teatro para crianças pequenas, e farei ver, por meio de
meu trabalho cotidiano, minha pesquisa diante da palavra falante.
*
Gostaria que o leitor pensasse, junto comigo, a partir da vida mesma: flores nascem na
secura do sertão; flores muitas vezes sobrevivem a intempéries que ninguém diria; flores
saturadas de água podem morrer ainda botões. Disse Clarice Lispector (2004): “Muito
elogio é como colocar água demais na flor. Ela apodrece. (…) Morre.”
Esta tese de doutoramento não pretende ensinar “como fazer a jardinagem”! Assim como
a canção – sei lá, a vida tem sempre razão – a razão da fenomenologia da infância não
estará em prerrogativas para fazer florescer bem um jardim: como seres-no-mundo, as
crianças já estão aí, vivendo suas vidas; vidas já dadas, já contextualizadas, mergulhadas
em suas culturas e situações. A prerrogativa maior está na abertura para o outro, na
possibilidade de co-existência, nas noções de acolhimento e pertença.
Pensar em jardins harmoniosos requer pensar uma coletividade de flores; ampliar a
leitura fenonenológica da criança é pensar, antropologicamente, como estão as crianças
em tal e qual sociedade hoje? Como vivem, como morrem – quando morrem? Como são
olhadas pelos adultos? E ainda, deveriam ser “harmoniosos” os jardins das crianças que
vivem nesta ou naquela situação dificultosa?
Este doutoramento propõe reflexão não sobre uma teoria, mas sobre a vida mesma, vida
das crianças, compartilhadas com os adultos. Está na cotidianeidade da vida a chave para
128
a compreensão fenomenológica – e não em perspectivas técnicas ou teóricas. E está na
capacidade adulta para falar e comunicar algo às crianças a hipótese de uma “nova
linguagem”.
No entanto, há sim um pressuposto inicial para a flor vingar: laço. Raiz, terra fértil para
colorir jardins a partir da vida humana; laço do adulto com a criança, que a faz “ser de
linguagem”, como diz Françoise Dolto. Laço do adulto com a criança que lhe permite
exercer seu direito à verdade, por meio da conversa, pelo acolhimento em palavras e pelo
silêncio significativo.
E a flora é magnífica; tantos e tantos jeitos de ser flor!
O propósito deste doutoramento não está na colheita de flores perfeitas: o propósito
maior é retomar a pergunta por mim formulada há mais de dez anos -- Existe uma
educação ‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?
Brinco um pouco com a canção da epígrafe: sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão…
Por ser a fenomenologia um método, um modo de praticar as ciências humanas e uma
maneira de ser e estar no mundo, seria a educação fenomenológica aquela que meramente
“realiza descrições”, a partir de um afastamento de pré-juízos e julgamentos de valor?
Seria essa, então, uma “pedagogia do distanciamento” – ou, ainda, retomada da velha
fórmula “Deixa estar para ver como é que fica”?
Volto a brincar: não haveria como ser meramente “descritivo” perante uma criança -- o
que é fenomenológico é o modo de relacionar-se com ela! A partir daí talvez se possa,
sim, criar uma “educação” ou “pedagogia” com bases fenomenológicas – posso agora
reformular a pergunta inicial da seguinte maneira: Existe um olhar fenomenológico para
as maneiras de ser e estar das crianças no mundo? E no que esse olhar modifica nossa
convivência com elas, nossa coexistência?
129
E, diante desta reformulação, podemos começar a positivar o fenômeno da infância e
responder: Sim, existe um modo de olhar fenomenologicamente para as crianças, bem
como para as pedagogias dos adultos – e, para exercer este olhar, é preciso desenvolver
uma linguagem descritiva que se aproxime da criança pequena, cuja vivência é,
essencialmente, de polimorfismo e de não-representacionalidade, como nos ensinou
Merleau-Ponty; e pesquisar e criar um discurso que, ao mesmo tempo, faça ver a criança
mesma: de quem estamos falando? Onde vive, como vive? Quem a cuida, e como cuida?
E assim por diante. Dessa maneira abrimos uma perspectiva antropológica da infância e
da criança e nos aproximamos de uma nova visada.
Michel Foucault, em sua obra As palavras e as coisas, alerta para um grave risco do
pensamento fenomenológico: uma espécie de sono antropológico que as Ciências
Humanas dormiriam… Procurarei conversar e responder criticamente a isso, em ação
discursiva, no segundo ato da tese A Flor da Vida. Minha busca será concretizar uma
pesquisa de linguagem em psicologia fenomenológica, e elaboração de um discurso, de
modo a sintonizar com a propositiva merleau-pontiana:
Em certo sentido, como diz Husserl, a filosofia consiste em reconstituir
uma potência de significar, um nascimento do sentido ou um sentido selvagem,
uma expressão de experiência pela experiência que ilumina (…) o caminho da
linguagem. E num sentido, como diz Valéry, a linguagem é tudo, pois não é a voz
de ninguém, é a própria voz das coisas, ondas e florestas. E o que temos que
compreender é que, de um a outro modo de encarar a linguagem, não há inversão
dialética, não precisamos reuní-los numa síntese: ambos são dois aspectos da
reversibilidade que é verdade última. (2003:150)
* * *
130
Segundo Ato
Cultivar a Flor da Vida: desdobramentos
131
• Psicologia fenomenológica da infância e sua “serventia”
Pensar em termos de “serventia” é uma espécie de ironia que faço neste momento da tese:
ironia comigo mesma, lembrando minha atuação como professora universitária, pois
tantas e tantas vezes os alunos iniciantes no estudo da Fenomenologia perguntam à sua
professora, “Mas para que serve a Fenomenologia?” Inicialmente, nos cursos, respondo
aos alunos com a leitura do belíssimo trecho de Marilena Chauí, publicado em seu livro
Convite à Filosofia:
Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se
não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes
estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da
cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas
artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à sociedade os
meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a
liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia
é o mais útil de todos os saberes que os seres humanos são capazes. /grifo meu/
(Chauí, 1995:18)
Então, no “segundo ato” desta tese de doutoramento, pretendo, de certa maneira,
demonstrar “para que serve” olhar fenomenologicamente a vida das crianças: serventia já
no sentido de saber filosófico. Serventia aparente, ou inicial: pensar a infância de modo
contextualizado e antropológico, buscando um novo discurso sobre a criança. Mas
como isso se dá? Isso modifica a vida mesma das crianças e suas relações com os
adultos? Interessaria à comunidade adulta novos modos de dizer a infância?
Com os existenciais já explicitados no “primeiro ato”, sigo agora para outro desafio, que
parte do subtítulo da obra do Prof. Raul Guimarães Lopes: para o título “Clínica
Psicopedagógica”, o professor elege o subtítulo “perspectiva da antropologia
fenomenológica e existencial”. E delimita o campo de seu estudo, nas primeiras páginas
de sua obra:
132
A via fenomenológico-existencial da Antropologia pretende alcançar a
compreensão do Homem no seu todo. (…) Para isso aprofundaremos o que se
entende por atitude fenomenológica ante o acontecer humano e iremos aos
fundamentos kierkegaardianos do que se entende por Existente procurando a
compreensão hermenêutica sob esta dupla perspectiva, enraizada na
Antropologia Integral, de quem se apresenta como Homem. /grifos meus/
(1993:21)
Historicamente, o estabelecimento do campo da “psiquiatria existencial” aconteceu a
partir do recorte antropológico. A propositiva de Rollo May (1977) e de seus
colaboradores, explicitada no importante livro Existência (que inclui textos clássicos de
Ludwig Binswanger), realiza um descentramento da teoria psicanalítica, e aproxima-se de
um novo eixo do pensar e do agir: inserção histórico-cultural no discurso da prática
clínica. Os “psiquiatras existenciais” procuram, de um modo antropológico, modificar
seu discurso: o discurso dos psicoterapeutas passará a centrar-se “no observado”, no
paciente mesmo.
Proponho, para pensar a infância, uma maneira que, igualmente, perpassa questões
antropológicas: como vivem as crianças? O que fazem em seu cotidiano? Do que
brincam, quando brincam? Como conversam com os adultos, e os adultos com elas?
Quais os seus pontos de vista sobre suas existências? E assim por diante.
Para melhor situar o valor desta contribuição, neste momento da tese, comentarei uma
definição mais geral do que é próprio da antropologia, bem como o esclarecimento de
quais são as propositivas de uma antropologia interpretativa.
Em seguida caberá situar meu percurso neste estudo, que se desdobra na prática de uma
leitura da criança e da infância, habitada entre campos irmãos: a psicologia
fenomenológica e a antropologia, inserida na concretude de minha prática profissional
junto a crianças como professora de teatro e psicoterapeuta. Finalmente, gostaria de
responder, também de modo irônico e brincante… algo como “que vantagem Maria
133
leva?”, como diz o dito popular – e, aqui, procurarei responder: que ‘vantagem’ a criança
leva? quando olhada por esta perspectiva.
*
• Antropologia e psicologia fenomenológica como campos do saber humano
Pelo recorte enciclopédico, a Antropologia tem como definição mais geral, “aquilo que
trata do homem” :
Em sentido amplo, é entendida como a ciência que se propõe estudar o
Homem, em sua totalidade física e sócio-cultural. Situa-se, assim conceituada,
como a mais inclusiva da ciências voltadas para o conhecimento da espécie
humana, uma vez que engloba extenso universo de especulação: desde os
aspectos físicos, até a gama de componentes sócio culturais, como a linguagem,
a expressão estética, a organização econômica, social e política, o sistema de
crenças, em suma, a trama complexa das relações sociais estabelecidas de uma
dada sociedade, segundo um código de normas e valores denominado cultura.
/grifos meus/ (Enciclopédia Britânica, 1983:639)
Trata-se de uma definição ampla do conceito, que já nos dá o que pensar; fica claro, a
partir deste verbete, que será preciso situar, sempre, de qual noção de “cultura” se parte,
ao estudar qualquer aspecto da antropologia humana.
O Dicionário de Filosofia (Abbagnano,1970) traz outra maneira de definir o conceito de
Antropologia, e faz referência a Claude Lévi-Strauss:
Segundo Lévi-Strauss a Antropologia se distingüe da Sociologia enquanto
tende a ser uma ciência social do observado ao passo que a Sociologia tende a
ser a ciência social do observador. (1970:63)
Quando o Prof. Guimarães Lopes propõe ao seu leitor o recorte antropológico para a
clínica psicopedagógica, ele evidencia o método fenomenológico, afasta-se das noções a
134
priori de o que é a infância, e aproxima-se da vida das crianças mesmas: em busca de
quem são elas (o uso da palavra “quem” é o seu modo próprio de expresssar esse olhar).
Guimarães enriquece as noções sobre a criança e a infância, contextualiza e dá sentido à
vida infantil a partir das possibilidades reveladas pelo olhar antropológico: em busca de
uma ciência psicológica que parta “ do observado”.
Essas possibilidades estão também dadas no pensamento de Merleau-Ponty sobre a
criança e a infância, registrado em seus Cursos na Sorbonne. Merleau-Ponty afirma que o
grande erro da psicologia infantil clássica foi justamente fazer sua ciência “do ponto de
vista do observador”, isto é, do ponto de vista de um adulto pesquisador; e também
afirma que tentar separar “natureza” e “cultura” é uma questão artificial, fazendo ver a
inserção das crianças na cultura dos adultos, sempre. Somos todos, adultos e crianças,
seres-em-situação. E o filósofo aponta a “vantagem” da tomada de posição culturalista:
(…) a “cultura”, considerada em seu aspecto de sedimentação das
atividades humanas (…) impregna o recém-nascido desde o primeiro dia;
constantemente, o meio onde vive o indivíduo solicita-o a tomar as atitudes que
cotribuíram para formar esse meio.
(…) Vista deste ângulo, a influência do social sobre o individual tem como
vantagem não ser uma hipótese; ela é uma concepção intersubjetiva
(identificação de cada indivíduo com os outros), permite fundar uma sociologia
positiva sem criar uma “consciência coletiva”, uma espécie de fatum onde o
indivíduo perde toda sua autonomia. /grifos do autor/ (1990a:135)
Cabe lembrar o leitor que Merleau-Ponty está lecionando os Cursos na Sorbonne no
início da década de 50; sessenta anos atrás, portanto, o filósofo já propunha pensar a
psicologia da criança de uma maneira “culturalista”. Quando Gerome Bruner funda uma
Psicologia Cultural, nos Estados Unidos, na década de 90, seu amigo e comentarista, o
antropólogo Clifford Geertz, afirmará que ele está adotando uma posição “radical, para
não dizer subversiva” (2001:174).
135
Será interessante visitar a obra de Bruner de modo a fazer ver como se revela essa
posição, comum aos dois autores, de inserção antropológica para pensar a psicologia da
criança: Merleau-Ponty, em termos filosóficos; Bruner, a partir de uma prática
educacional e reflexiva.
*
• Definir “cultura” e fazer aproximações a uma “psicologia cultural”
Cliford Geertz (2001), em conferência proferida em 1999, afirmou existirem ao menos
“171 versões da mesma idéia” – idéia de como os antropólogos definem a cultura e seu
processo. O antropólogo realiza uma crítica bem-humorada acerca das inúmeras
definições, tanto da prática da antropologia, quanto do que é cultura. Ele afirma que
estudar a cultura de outros povos,
(…) implica descrever quem eles pensam que são, o que pensam que estão
fazendo – algo bem mais direto do que sugerem os cânones usuais da etnografia
feita de notas e indagações, ou, a rigor, o impressionismo exuberante dos
“estudos culturais” da pop art. Para descobrir quem as pessoas pensam que são,
o que pensam o que estão fazendo, é necessário adquirir uma familiaridade
operacional com os conjuntos de significados em meio aos quais eles levam suas
vidas. Isso não requer sentir como os outros ou pensar como eles, que é
simplesmente impossível
28
. Nem virar nativo, o que é uma idéia impraticável e
inevitavelmente falsa. Requer aprender como viver com eles, sendo de outro
lugar e tendo um mundo próprio diferente. /grifo do autor/ (2001:26)
Geertz também situa seu pensamento hoje, sua profissão, a partir da “Antropologia
interpretativa”; trata-se de uma “virada para o sentido” que “alterou tanto o assunto
investigado quanto o sujeito da investigação”. A questão, para ele, da profissão do
28
Também sentir como as crianças, ou pensar como elas, não é mais possível: agora nos
adultizamos.
136
antropólogo, desde os anos que passou em Modjokuto pesquisando “fragmentos da
cultura javanesa”, é de
adquirir uma certa familiaridade (…) com os recursos simbólicos por
meio dos quais os indivíduos se viam como pessoas, atores, sofredores,
conhecedores e juízes – enfim, para introduzir a expressão expositiva de praxe,
como participantes de uma forma de vida. (…) O que havia começado com uma
investigação “do papel ritual e da crença na sociedade” (isso só pode ser escrito
entre aspas), como uma espécie de mecânica comparada, transformou-se, ao se
adensar a trama e me enredar, no estudo de um exemplo particular da produção
do sentido e suas complexidades. /grifos meus/ (2001:25)
Esta atualização da antropologia, nomeada por Geertz de “Antropologia interpretativa”,
vem ao encontro de meu projeto para a “fenomenologia da infância”. Minha tese de
doutoramento propõe um projeto, um desenho, um traçado para este percurso: busca da
produção de sentido para o modo de ser criança, suas “formas de vida” – na direção
da noção de “infância” situada, contextualizada.
Foi por meio da leitura de Geertz que conhecí parte da obra de Gerome Bruner. Pretendo
propor algumas correlações entre aquilo que Merleau-Ponty discutiu em seus Cursos na
Sorbonne e algo próprio da psicologia cultural de Bruner (1997), cuja atualidade está
sintetizada na expressão “atos de significação” (acts of meaning) – expressão homônima
de um livro seu.
*
• A Psicologia cultural de Gerome Bruner
Jerome Bruner é um psicólogo americano que há decadas estuda a Psicologia da
aprendizagem humana, e que construiu, ao longo de sua obra, o que nomeia “uma teoria
do ensino”, a partir de sua experiência em sala de aula com crianças, elaboração de
currículos, produção de filmes e dedicação à formação de professores. Na década de 60
137
publicou Uma nova teoria da aprendizagem, em nome de pensar “várias maneiras de
auxiliar o desenvolvimento e crescimento”. Foi fundador, em Harvard, do “Centro de
Estudos Cognitivos”, juntamente com o psicolingüista George Miller.
Também na década de 60, Jerome Bruner publicou O processo da educação, onde
defende uma tese aparentemente simples – a de que as crianças “podem aprender os
conceitos básicos, tanto de ciências quanto de humanidades, bem mais cedo do que se
julgou possível”. Uma tese aparentemente simples; quando olhada mais de perto, é
complexa e revolucionária, por colocar em questão a teoria de desenvolvimento clássica,
especialmente as noções de estágios cognitivos sucessivos.
Bruner dá grande importância ao uso da linguagem nas interações entre adultos e
crianças: “A nova ênfase nos aspectos universais da linguagem sugere um bom ponto de
partida: quais as conseqüências que decorrem das propriedades mais gerais da
linguagem?” (1976:29). E destaca o diálogo como um poderosíssimo instrumento
relacional, foco primordial da interação professor-aluno:
Aprendemos com Sócrates que o diálogo pode levar as pessoas a
descobrir coisas profundas e sábias. Pena que saibamos tão pouco da
aprendizagem através do diálogo, apenas que o escravo deveria ter recebido
previamente instrução em casa, para poder ter qualquer resultado útil com
Sócrates. Não poderia ter padecido de “privação cultural”, para usar um termo
corrente. Tanto Vygotsky quanto George Herbert Mead sugeriram que o segundo
pensamento é, comumente, uma versão íntima da arte do diálogo entre o
pensador e suas palavras escritas. Nessa reflexão, a notação se torna de
extraordinária importância, seja por modelos, ilustrações, palavras ou símbolos
matemáticos. Temos então um novo hiato, pouco sabendo sobre a utilização do
caderno de notas
29
, dos esquemas e dos esboços no trabalho da reflexão.
(1976:28)
29
É justamente o que chamei, no corpo da tese, de “Diário de Bordo”. Inúmeras vezes,
tanto na escritura do mestrado quanto deste doutorado, tive a sensação de que minhas
138
Durante décadas Bruner estudou o desenvolvimento das crianças nos Estados Unidos,
tornando-se uma referência neste campo. A partir dos anos 90, seu trabalho abre-se para
um campo que ele vai denominar “Psicologia Cultural”. É importante comentar que
Bruner é nascido em 1915.
Antes de formular seu trabalho desta maneira, Bruner passou por um momento de
construção de sua obra que, junto a seus colaboradores, nomeou-a “Revolução
Cognitiva”. Bruner teria formulado a “Psicologia Cultural” de modo a “salvar a
Revolução Cognitiva de si mesma” (apud Geertz, 2001:168); o domínio técnico, bem
como os espantosos recursos financeiros investidos neste âmbito de pesquisa, fizeram do
seu famoso projeto algo passível de duras críticas:
(…) chegaram a afirmar que a nova ciência cognitiva, filha da revolução,
alcançou seus sucessos técnicos ao preço de desumanizar o próprio conceito de
mente que havia procurado estabelecer na psicologia, e que por isso afastou
grande parte da psicologia das outras ciências humanas e das humanidades.
(Bruner apud Geertz, idem ibidem)
Bruner foi consultor de um programa de política pública norte-americana, voltado à
primeira infância, que chamava-se “Head Start”. Seu olhar para a criança pequena, nos
anos 90, propunha
Considerar até o bebê e a criança pré-escolar como agentes ativos,
determinados a dominar uma forma particular de vida, a desenvolver um modo
operacional de ser/estar no mundo, /algo que/ exige que se repense todo o
processo educacional. Trata-se menos de dar à criança algo que lhe falta do que
facilitar algo que ela já tem: o desejo de dar sentido ao self e aos outros, o
impulso de compreender que diabo está acontecendo. /grifo meu/
(Geertz, 2001:170).
anotações no “Diário de Bordo” eram mais instigantes e interessantes do que o texto
“pronto”.
139
Inicia-se no pensamento e na ação político-educacional de Gerome Bruner uma
(…) guinada para o interesse pelas maneiras como os entendimentos da
sociedade mais ampla são usados pela criança em idade escolar, para tomar pé,
para construir um sentido interno de quem ela é, do que os outros pretendem, do
que tende a acontecer e do que é possível fazer a respeito das coisas (…).
/grifo meu/ (Geertz, idem ibidem)
Essa “guinada” se mostra na propositiva de que os adultos olhem para a criança “como
um epistemólogo e um aprendiz”. A atenção dos teóricos da educação, nessa nova etapa
do pensamento de Bruner, deverá estar toda voltada para “treinar sua atenção na
produção social do sentido”. Isso levará as pesquisas de Bruner para o campo da
narrativa; ele começará a desenvolver projetos e pesquisa em torno daquilo que, no
Brasil, estamos habituados a nomear como contação de histórias. Nesta perspectiva
insere-se a noção de que “os seres humanos dão sentido ao mundo contando histórias
sobre ele – usando o modo narrativo para construir a realidade.” (Bruner apud Geertz,
2001: 171-172).
Segundo Geertz, o que é revolucionário nesta maneira de olhar a infância é conceber que
(…) todos somos, desde o nascimento, “criadores de sentido”, ativos e
apaixonados, à procura de histórias plausíveis, e que a “mente não pode ser
considerada ‘natural’ ou nua em nenhum sentido, pensando-se na cultura como
um acréscimo”, toda essa visão corresponde a bem mais do que uma correção no
meio do caminho. Considerada em conjunto, equivale a adotar uma postura que
bem pode ser chamada de radical, para não dizer subversiva. (…) Se a
“psicologia cultural” vier a ganhar ascendência, ou mesmo uma parcela
significativa do mercado, irá perturbar bem mais do que a pedagogia.
(2001:173-174)
Penso que o que pode ser “perturbador”, por assim dizer, é a virada dialógica e
compreensiva que Bruner realiza, para aproximar-se das crianças pequenas. Muda, assim,
o panorama do que é ser educador; será necessário rever o papel do adulto, de modo
que, ele mesmo, se instrumentalize para ser um narrador, um contador de histórias,
140
apaixonado pela vida e pela linguagem, e crente das capacidades de significar a vida que
crianças muito pequenas, até mesmo os bebês, possuem.
Esse foco na linguagem e na comunicação plena de sentido que a “psicologia cultural”
da infância proposta por Gerome Bruner, convida os adultos a desenvolverem sua própria
capacidade para a linguagem falante. O olhar antropológico, a observação
fenomenológica, também atualiza-se, e nesta tese de doutoramento, proponho foco na
produção de sentido de nossas práticas educativas e de nossa convivência com as
crianças.
*
• Fenomenologia da pequena infância:
interpretação compreensiva das relações adulto-criança
Trago, como idéia inicial, a importância de positivar a observação e o registro dos modos
de ser das crianças -- suas relações, afetos, querelas, brigas, aconchegos, trocas, silêncios
e conversas – propondo que passe a fazer parte do cotidiano dos adultos, especialmente
daqueles que trabalham junto a crianças pequenas, o hábito de manter Diários de Bordo.
O Diário de Bordo, quando escrito, já é uma prática de produção de sentido, de narrativa.
Em seguida proponho o trabalho interpretativo das anotações; é a partir de uma rede de
significações, tecida em sintonia com os existenciais, que o adulto cria um discurso --
uma constelação de remetimentos sobre o modo de ser criança. Assim, o estudo
fenomenológico das observações gera uma hermenêutica da infância. Esta idéia
redesenha o que pretendi, de modo ingênuo, em meu Trabalho de Conclusão de Curso,
escrito no último ano da graduação (1997). Meu trabalho intitulou-se Esboço de uma
fenomenologia da criancice da criança e trazia algumas observações de crianças em
situações cotidianas na cidade de São Paulo; meu texto procurava contextualizar e
interpretar as histórias vividas por crianças e observadas por mim à luz dos existenciais
da mundaneidade, outridade, corporalidade, etc.
141
As anotações são compilações de textos descritivos, bastante detalhados, de situações
vividas por crianças pequenas – observadas e transcritas por adultos. Este tipo de
trabalho, anotar em cadernos situações e contextos, nomeio “Diário de Bordo” (Machado,
2003): um procedimento tradicional das pesquisas antropológicas.
A descrição fenomenológica é ferramenta do método fenomenológico e é,
necessarimente, interpretativa. Difere da descrição cotidiana ou “ingênua” por perseguir a
noção de époché
30
ou redução fenomenológica: a descrição procura colocar entre
parênteses pré-juízos e julgamentos de valor. Afastar-se ou “colocar entre parênteses”
julgamentos e pré-conceitos é saber discernir e reconhecer, no discurso falado ou escrito,
o que é próprio daquele que descreve.
Assim, partimos da observação atenta de algo que se mostra a nós – o fenômeno
relacional da criança com situações vividas; ao descrever o que vimos, realizamos um
discurso – isto é, um dizer por escrito daquilo que foi visto, aquilo que a nós foi
apresentado. Como fazê-lo? No Diário de Bordo escrevo, com riqueza de detalhes, tudo o
que vi. Contextualizo a situação observada; registro por escrito referências de tempo,
referências de espaço, aparência física e maneira de ser e estar das pessoas (vestuário,
possível faixa etária, evidências no corpo que demonstrem algo sobre: quem são?, como
vivem?, etc); e, muito especialmente, busco os verbos: procuro palavras que nomeiam as
ações destas pessoas observadas -- o que fazem? Como pensam as significações para
aquilo que fazem?
Pela memória da situação vivida na observação bem como por meio das referências
culturais, sociais, filosóficas, históricas, lingüísticas, etc. que remetem àquele fenômeno,
enriqueço a interpretação descritiva, e teço uma rede de significações; produz-se, por
meio da narrativa, um sentido para o fenômeno observado. A interpretação
30
Ensina Merleau-Ponty nos Cursos na Sorbonne: “Na realidade, segundo a
fenomenologia, o “pôr entre parênteses” ou “redução” só interrompe minha relação
ordinária e imediata com o mundo, e a interrompe para vê-la e revelá-la. O objetivo da
redução é ensinar-me essa tese constante do mundo que pratico.” /grifo meu/
(1990b:195)
142
fenomenológica é desdobramento de um ponto de vista possível: o ponto de vista do
momento vivido naquela reflexão do autor do texto fenomenológico, em
intercomunicação com aquele que observou (reflexão que constitui-se, assim, um
discurso). Esse ponto de vista modifica-se no continuum temporal; posso re-ver, re-
visitar minhas anotações, repensá-las, na medida em que faço novas reflexões sobre as
situações, na medida em que a experiência do pesquisador amplia-se e modifica-se. Neste
segundo momento, passo a ver o invisível anteriormente.
Para nos aproximar do modo plástico e polimorfo da criança pequena, é interessante que,
em nós, também se manifeste “plasticidade” e “polimorfismo” – seja pelas nossas
memórias de infância, pela nossa atenção a esse outro modo de apreender o mundo, pela
nossa abertura para os dizeres da criança mesma, bem como pela posse plena de nossa
capacidade imaginativa. Essa abertura nos permitirá, também, mergulhos no mundo da
ficção: por exemplo, da criação de histórias que comuniquem às crianças nossa
interpretação do seu modo de ver o mundo, longe de cientificismos e perto do coração da
criança.
Uma vez que esta maneira de exercer a psicologia não adota uma teoria do
desenvolvimento, está na lingüisticidade do adulto-em-relação-com-a-criança o ponto
de partida – e talvez também um ponto de chegada. Presumo que aquilo que Merleau-
Ponty propôs como uma “nova linguagem” seja, simplesmente, a aproximação possível
do discurso do adulto ao modo de ser e estar da criança pequena; algo que possibilite às
crianças produção de sentido para suas experiências.
E para enriquecer nossa interpretação, lemos inúmeras vezes, mais e mais, nossa própria
descrição; buscamos ir além, por meio de conversas, fontes e referências sobre o
fenômeno observado, fontes que ampliarão nosso olhar, e quiçá nos permitirão revelar o
invisível da situação também. Adentrar o universo cultural da criança, onde vive e como
vive, se imersa ou não no uso de objetos da cultura
31
-- como se veste, o que come, como
31
Segundo Roberto Barberena Graña, “Os objetos da cultura são (…) produtos refinados
do exercício da criatividade (…) que contribuem criativamente na sedimentação do
143
fala, que maneiras revela em gesto, desenho, palavra -- é perscrutar seu modo de ser e
estar no mundo. Comunicar a elas o que enxergamos é o desafio interpretativo.
Portanto, para interpretar a criança-em-situação, o método fenomenológico não parte de
uma teoria prévia: é o meu olhar e, ao mesmo tempo, quem eu olhei, que me levam à
criação de um contexto de remetimentos; um contexto de remetimentos passível de ser
enriquecido pelo estudo de outras ciências humanas, tais como a sociologia, a história, a
lingüística, a antropologia. Preciso estar atento e aberto à compreensão da cultura das
crianças, revelada em suas brincadeiras, dizeres, roupas, brinquedos, atitudes – cultura
que não se separa da cultura dos adultos.
Todas descrições são interpretativas: mostram, na escolha das palavras daquele que
descreve, organização das frases, sintaxe e semântica, o reconhecimento do modo de ser
do outro que está sendo observado, no modo do observado revelado ao observador: e que
se faça um mergulho na intersubjetividade, no contato com o modo de ser daquele que
observa e descreve um “quem” observado, por meio da linguagem falada ou escrita, da
linguagem não-verbal, e de tudo o mais que pode acontecer entre as palavras e o silêncio.
A fenomenologia da pequena infância aqui proposta faz interlocução com os existenciais:
busco um retrato, falado ou escrito, o mais próximo da criança mesma, a partir da
observação atenta da outridade; da corporalidade; da lingüisticidade; da temporalidade;
da espacialidade; da mundaneidade; da culpabilidade. E, se o modo de ser criança é
brincante, polimorfo, onírico, também meus dizeres e atitudes junto a elas pode, pela
comunicação autêntica, desenhar novas paisagens de sonhos e brincadeiras – em gesto e
palavra.
patrimônio de realizações e experiências humanas. A experiência cultural criativa
propicia uma totalização do sentimento de ser; é não só a de quem escreve como a de
quem emocionalmente lê, não só a de quem compõe como a de quem se deixa
inebriadamente envolver pela melodia, enfim, de quem consegue, sem esquivar-se às
exigências e responsabilidades que a vida e a realidade (…) impõem, preservar em si a
possibilidade de surpresa, de encantamento e de ilusão.” (1991:92)
144
• Retomada da aproximação infância-poesia:
busca da lingüisticidade revelada na relação adulto-criança
por meio de um exercício criativo
Em 1998, já graduada em Psicologia, criei o seguinte texto poético, que hoje penso
resumir, na linguagem falante, um possível olhar fenomenológico e existencial para a
infância. Transcrevo, aqui, este exercício:
Cantos de Infância
Eu
Depois que eu cresci,
percebi que a vida era
uma figura de vários lados...
Mas quando eu era pequeno,
depois do círculo,
via, basicamente, quatro cantos:
num canto, minha mãe;
no outro, meu pai;
num terceiro, minha irmã
e no quarto, meu cachorro
(Apesar que minha mãe
não queria o cachorro no quarto,
de jeito nenhum!).
Minha mãe
Me faz lembrar
cheiro de aconchego e saudade --
no tempo do círculo fomos um,
e antes desse dia,
145
um dia
(em que eu era projeto...)
-- não, parece que foi de noite...--
meu pai penetrou fundo minha mãe
e a semente se fez fruto: Eu.
Meu pai
Quando eu fiz três anos
ele me deu um cavalinho de pau;
com mais ou menos quatro
me levou num Carrossel,
e quando eu tinha cinco
me pôs para cavalgar num pônei.
Ele me falava de muitas coisas
sobre homens e cavalos.
Ele fazia coisas
de homens e cavalos.
Trepou na minha mãe
e assim engravidaram da minha irmã.
Ele me levou a pensar nisso:
éguas e potrancas...
águas, alfafas, barrancas...
Minha irmã
Puseram um cesto
no cantinho do quarto deles
e ela chorava, e mamava, e dormia,
e gritava, e peidava, e arrotava e fedia...
e ainda assim os agradava muito!...
-- Como podia?
146
Ela usa brincos, ela sabe cantar;
ela é redondinha mas não é prá chutar...
Aos pouquinhos fui acostumando
com a sua companhia:
lenta ou barulhenta,
sedenta de leite e papinha
e chocalho e risadinha.
Meu cachorro
Eu não consigo entender
-- por que não
cemitério de animais?
Minha avó respondeu
que é porque cachorro não tem alma.
Acontece que o meu tinha:
Tinha nome -- Floresto
32
--
tinha corpo, alma, espírito e felicidade.
Ele era meu grande amigo.
Minha vizinha
Floresto morreu atropelado,
e a única coisa que me consolou...
foi o sol brilhando
nos cabelos da vizinha.
Humm... A vizinha!
32
Floresto é nome emprestado da obra de Guimarães Rosa (1964): é o nome de um dos
cachorros do personagem Miguilim.
147
Cheiro de mato
(olha o retrato!)
quase me mato
por um beijo seu.
Fato novo:
“Eu e a vizinha no cantinho escuro do cinema”:
eu te conto,
quando você fizer catorze anos...
Este texto escrevi dramaturgicamente, na hipótese de que fosse apresentado a pessoas de
todas as idades, na forma de “contação de história”, de modo que dialogasse com o
público, provocando visitas aos temas existenciais: nascimento, vida e morte, o amor
pelos pais, a descoberta da sexualidade, dentre tantas questões acerca do modo de ser
criança.
*
• Pequena hermenêutica dos Cantos de Infância
33
Tomo como prerrogativa de que o exercício de escrita poética, ou ainda, a criação de
ficção, é produção de sentido. Conforme meus estudos avançam, acerca da proposta de
uma “nova psicologia” contida nos Cursos na Sorbonne ensinados por Merleau-Ponty,
percebo que sou livre para buscar, à minha maneira, um diálogo falante com o
polimorfismo infantil, com temas existenciais, bem como com as maneiras de pensar
revisitadas na leitura das teorias clássicas sobre a psicologia da criança.
33
Quero deixar claro para o leitor que este “exercício interpretativo” ou esta pequena
hermenêutica está sendo realizada anos depois da criação do texto; trata-se de pensar
reflexivamente, na tese de doutoramento, sobre um processo criativo -- processo onde
não foi a teoria que me guiou, nem tampouco o desejo de “praticar” fenomenologia.
Sobre a criação mesma, concordo com a maneira “antimetodológica” de Clarice
Lispector citada no “Primeiro entreato”.
148
Vou buscar tornar visível tudo isso – minha inspiração, fontes de referência, minha
articulação própria da minha convivência com crianças, meu “uso” da liberdade de
expressão e interpretação – afinada seja com os Cursos na Sorbonne, seja com a
psicologia cultural de Bruner -- e tudo aquilo que trago como bagagem nesta tese.
Procuro uma aproximação, em ação, com aquilo que Geertz nomeou “antropologia
interpretativa”.
O primeiro entrecho de meu poema discorre sobre um “Eu”. Aprendi com Winnicott que
alguns bebês tentam “falar” de si mesmos com a imagem do círculo, desenhada no ar
com seus dedos indicadores. Winnicott não “inventa” essa imagem: ele a descreve a
partir de sua atenta e contínua observação de bebês, realizada em sua prática profissional.
Tratei de falar do círculo como imagem de um primeiro momento vivencial; uma
“redondeza” que também Gaston Bachelard (1993) enxerga na experiência da infância e
no contato feliz com a mãe. Como comentado no texto do existencial “corporalidade”,
por cerca de três anos cada criança experiencia fusão e separação (da mãe, de si, do
mundo), limite e espaço, delimitação e expansão… até dizer de si: “Eu”.
E, “depois do círculo”, sugeri, como narrador, a imagem da vida familiar como um
quadrado – figura de quatro lados, cujos cantos se dão entre a mãe, o pai, a irmã e o
cachorro. Daí também a expressão do título “cantos de infância”: para além e aquém do
“canto” poético. O uso de figuras geométricas quer remeter o leitor a algo próprio do
existencial “espacialidade” : o espaço vivido, humanizado.
O segundo entrecho tematiza o vínculo com a mãe: houve um tempo uno, de “fusão” ou
“simbiose”… daí “aconchego e saudade”. Também a mãe remete à origem (“De onde
viemos?”) e ao desejo: um dia ela foi “penetrada fundo” pelo pai, e o “Eu” foi concebido.
Escolhi palavras cortantes, fortes; usei-as de maneira brincante, para colorir o entrecho de
fisicalidade, concretude de algo que as crianças muito pequenas não são capazes de
traduzir em palavras, mas intuem, sentem, vivem em sua corporalidade.
149
O terceiro entrecho temporaliza a primeira infância, localizando uma presença maior do
pai, a partir dos três anos de idade. Proponho as imagens do pônei, do carrossel e dos
cavalos livres e selvagens, de modo a levar o leitor/ouvinte a um universo masculino
imagético rico, que contenha mistérios e boa agressividade, par complementar da
redondeza do círculo vivido junto à mãe. O pai faz “coisas de homens e cavalos” – trepa
na mãe e concebem uma outra criança. Dizer “trepar na mãe” é dizer para o leitor/ouvinte
que uma criança faz a leitura do mundo, dos seus desejos e do exercício da sexualidade
adulta dos pais, à sua maneira. Crianças brincam no trepa-trepa; e quando ouvirem o
verbo “trepar”, se ouvem, seria de se esperar que dessem o sentido da brincadeira, de
subir e descer das coisas… Trata-se, é claro, de um jogo de palavras, que busca revelar a
“criancice” da criança, talvez ocupada em imaginar a cena primária, diria o psicanalista.
Trata-se de uma licença poética – que me permito reproduzir aqui nesta tese de
doutoramento.
A sexualidade e amorosidade dos pais como casal traz ao mundo uma menina, uma irmã.
Um bebê que a princípio chora, e mama, e dorme, e grita, e peida, e arrota e fede... e
ainda assim consegue agradar muito aos adultos!... Como pode? E o privilégio de dormir
em um cantinho do lado da cama dos pais?? Inúmeros filhos primogênitos, na chegada de
um irmão, viveram essa sensação, esse sentimento. E quiçá, lentamente, foram
encantando-se com a bebezisse daquele novo ser no mundo; “é redondinha mas não é
para chutar!” – busquei traduzir em palavras a maneira com que os adultos olham o
contato dos irmãos ainda crianças pequenas perto de nenês: concomitante encanto e
temor de que um gesto hostil fale, em ação, sobre a experiência do ciúme e da rivalidade.
Todas essas emoções, percepções e sentimentos enriquecem a noção existencial de
“outridade”, como discuti no “primeiro ato” da tese.
O salto para fora do “quadrado familiar” acontecerá depois da morte do animal de
estimação, o cachorro Floresto, que morre atropelado. Contar ao leitor que as crianças
estranham não existir cemitério de animais, é um dado de humanização das coisas do
mundo, à maneira animista de ser (o animismo é algo que comentarei mais adiante, ao
narrar a experiência de contar “histórias comestíveis”). E a avó traz em seu discurso a
150
religiosidade, ao argumentar que “cachorro não tem alma” (daí não ter o direito de ser
enterrado). Mas o garoto, personagem dos “cantos de infância”, tem certeza absoluta de
que Floresto tinha alma sim!
Se a avó não consola, existe uma vizinha: há algo na casa ao lado que chama o menino
para ser rapaz; “Humm... A vizinha! / Cheiro de mato/ (olha o retrato!)/ quase me mato/
por um beijo seu.” Como apontou o poeta William Blake
34
, por meio do desabrochar da
sexualidade adulta, bem como por meio da compreensão da finitude, de que somos
mortais, amadurecemos; saímos de um estado de inocência para outro estado, de
experiência. Também o personagem de “cantos de infância” amadurece com a vinda ao
mundo de uma irmã -- e com a morte de seu cachorro. Tenho também, neste entrecho,
como precisosa referência o filme “Minha Vida de Cachorro”, filme sueco cujo
personagem principal é um garoto que vai viver com tios depois da morte de sua mãe. Ele
tem uma cachorra que não pôde ser levada junto; a cachorra vai para um canil e termina
por morrer; mas o tio, por pena, demora muito tempo para lhe contar, e ele acaba sabendo
da notícia por meio de uma garota, que é, aliás, quem lhe desperta o interesse pelo
namoro, pela feminilidade e redondeza da amiga púbere.
Terminei o texto fazendo algum mistério, e pressupondo que o ouvinte da história narrada
não tem ainda 14 anos: “eu te conto quando você fizer 14 anos!” Retomo o círculo e
imagino que o garoto está contando sua história para sua própria irmã, que ainda é
pequena para ouvir “detalhes picantes” sobre o “escurinho do cinema”. Ao mesmo tempo
em que escancaro as questões sexuais advindas da convivência com os pais e com o
nascimento da irmã, proponho, no encerramento do texto poético, que se dê tempo ao
tempo, que se explicite os prazeres da convivência com o sexo oposto num momento
oportuno: talvez depois dos 14 anos… um tempo e um espaço para amadurecer e exercer
a sexualidade genital em sua plenitude.
*
34
Meu livro A poética do brincar discute esta referência da poesia de William Blake que,
cem anos antes de formulada a psicanálise freudiana, valorou a descoberta da sexualidade
como rito de passagem das crianças.
151
• Contar “histórias comestíveis” para crianças de cinco anos:
outra forma de presença da lingüisticidade entre adultos e crianças
Nos dias de ventura, o mundo é comestível.
Gaston Bachelard
Como disse no “prólogo” da tese, trabalho como professora de teatro para crianças e
jovens desde 1981; leciono desde 1989
35
na Escola Municipal de Iniciação Artística de
São Paulo, onde os alunos iniciam-se nas artes do teatro, da dança, da música e das artes
plásticas, ao freqüentar semanalmente aulas com práticas integrativas entre as linguagens
artísticas, desde os 5 até os 13 anos de idade. Na faixa etária dos 5 e 6 anos, trabalhamos
sempre em dupla de professores, com grupos de cerca de doze alunos.
Durante o primeiro semestre do ano de 2005, desenvolvi um trabalho junto a doze
crianças de 5 e 6 anos que partiu da idéia de contar histórias no final do horário de lanche
-- algo que, neste grupo, acontecia sempre no final do período de aula.
Vou relatar parte de minha experiência no grupo em que trabalhei com um colega
professor da área de música, parceiro na aventura de iniciar artisticamente as crianças
pequenas desta escola; em dupla, desenvolvemos um trabalho afinado por vários anos.
Seu nome é Glauco Silva.
A idéia inicial das “histórias comestíveis” me ocorreu a partir de um belíssimo presente
que ganhei de um irmão que mora fora do Brasil: uma escultura feita de chocolate.
Tratava-se de um pequeno pato, de cerca de 10 cm de altura e esculpido em três
dimensões (e que portanto ficava “em pé”, sem ajuda de nossa mão). Ao receber o
inusitado presente, pensei comigo mesma: Não posso comer este patinho sozinha!
35
Estive fora da escola por dois anos, no período do Mestrado, quando fui bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP.
152
Enxerguei, naquele presente, uma oportunidade para comunicar algo a meus alunos. E
decidi levá-lo para a sala de aula, de modo a compartilhar, com as crianças de 5 e 6 anos
de idade, sua degustação.
Um dia, no final do período da aula destinado ao lanche, arrumei o patinho de chocolate
na beirada da mesa, mesa ao redor da qual as crianças sentam-se para comer. Fiz um
círculo de fita crepe ao redor do personagem, delimitando, assim, o “espaço cênico”.
Disse em seguida aos alunos que iria contar uma história para eles.
Preparei o animalzinho de chocolate com uma cordinha no pescoço, uma espécie de
arame, de modo a deixá-lo livre para ser manipulado feito um boneco, sem que fosse
preciso, portanto, colocar as mãos diretamente em seu corpo. A história foi improvisada e
tinha mais ou menos a seguinte estrutura:
Era uma vez um patinho de chocolate. Ele foi fabricado na França, e, como foi
feito em uma fábrica, não tinha nem pai nem mãe: isso o entristecia.
Quando cresceu percebeu que foi feito para ser comido por alguém, por algum
humano. E saiu pelo mundo para ser comido, que era a finalidade da vida dele.
No entanto, ele era tão bonitinho, tão bonitinho, que as pessoas tinham dó de
comê-lo.
Como o leitor pode perceber, a introdução à história é “auto-referente”, fala do meu
próprio conflito: eu mesma não consegui morder e degustar aquela “escultura”,
simplemente comê-la, desmanchando a obra de arte que recebi de presente de meu
irmão… Mas, se não o fizesse, ele simplesmente iria estragar-se – além do mais, foi feito
para ser comido!
Já diante dos primeiros dizeres as crianças ficaram extremamente envolvidas e
sensibilizadas. Continuei a narrativa, naquele momento, sem fazer planos para estruturá-
153
la previamente: contei algo para elas a partir de minha intuição no momento e de minha
experiência vivida
36
.
Há muitos anos possuo uma caixa onde guardo uma série de miniaturas que utilizo para
contar histórias para crianças pequenas, e também, para ensinar crianças maiores a contar
suas próprias histórias. Surgiam dessa caixa os personagens que contracenaram com o
patinho, personagem que saiu pelo mundo em busca de seu destino e sua felicidade: ser
comido por alguém. Segui a narrativa, mais ou menos da seguinte forma:
E então o patinho encontrou vários personagens pelo seu caminho.
Chegou perto da vaca e perguntou: Você pode me comer?
E a vaca respondeu: Não, sou vegetariana, só como capim!
Chegou perto da árvore e perguntou: Você pode me comer?
Ao que a árvore respondeu: Não! Você é tão bonitinho…! Não poderia.
Sempre que possível, quando estou contando histórias, faço pausas para falar como
narradora: distancio-me, de modo a dizer algo sobre o que está acontecendo na história,
para/com as crianças -- foi então na posição de distanciamento que fiz o seguinte
comentário:
Mas isso entristecia muito o patinho! Pois ele nasceu na fábrica de chocolates
para ser comido!
Minha pequena platéia, a essa altura, encontrava-se enebriada e totalmente entregue
àquele conflito existencial. Seus olhos, rostos, atitude corporal e silêncio revelavam essa
entrega. Continuei:
Chegou perto de uma meninazinha e perguntou: Você pode me comer?
36
Estavam também implícitos meus conhecimentos sobre psicologia da infância, sob a
perspectiva fenomenológica; encontrava-me em conexão com aquilo que Merleau-Ponty
nomeia pensamento pré-reflexivo, no uso da metodologia de trabalho work in
process/trabalho em processo para a atividade criativa, modo que me é familiar desde
minha pesquisa de mestrado em Artes Cênicas (Machado, 2004). Esta metodologia
permite ao encenador/ator grande liberdade de criação, por não pressupor um roteiro
dramatúrgico elaborado de antemão (daí a expressão trabalho em processo).
Ao que ela respondeu: Não! Minha mãe não deixa – não posso comer doces.
Chegou perto de um porquinho e perguntou: Você pode me comer?
Ao que ele respondeu: Não! Só como de garfo e faca!
Desse modo a frustração do patinho de chocolate crescia; e, com ela, cresciam também a
ansiedade e a expectativa das crianças que ouviam a história. Foi quando percebi, como
adulta condutora daquela atividade artística e poética, que estava na hora de buscar
solucionar o conflito. Assim o patinho encontrará um caçador (uma miniatura de plástico,
um brinquedo barato e bem menor que o próprio patinho):
O patinho pergunta ao caçador: Você pode me comer?
Ao que o caçador, homem adulto, responde: Tem certeza de que é isso que você
quer?
E o patinho: Sim! Sim! Sim! -- quase aliviado, por sentir-se escutado.
E o caçador: Você sabe que se for comido não vai existir mais?
Patinho: Sei! Mas essa é a razão da minha vida. Eu sou de chocolate, eu nasci
numa fábrica, nasci para ser comido por alguém que que queira muito me comer
também.
Caçador: Então está mesmo certo disso?
Patinho: Sim!
Nesta altura ritualizei a cena de tal modo que eu mesma, a contadora da história,
transformou-se no caçador: parto o patinho, com muito cuidado e delicadeza (para não
sangrar?), em pequenos pedaços, e, com a ajuda do meu parceiro de trabalho (que está
muito, muito comovido – algo que me surpreende!), dou um pedacinho do corpo do
patinho de chocolate para cada criança comer. Supresa boa: dentro do patinho, que era
“oco”, havia pequenos doces, em forma de peixinhos e ovos. Guardei esses chocolates,
para fazer o gancho com uma próxima história, na aula seguinte, e para dar um novo
sopro de vida ao próprio patinho, por meio de seus “filhotes”.
As crianças comem.
155
Alguns com voracidade, alguns com um cuidado que remete ao receber uma hóstia na
primeira comunhão. Detalhe: o chocolate era de excelente qualidade, mas do tipo meio-
amargo, e isso causou estranheza em algumas crianças, que fizeram “caras e bocas”,
ruídos e grunhidos, afirmando que comeriam “patinho de chocolate” pela primeira e
última vez. Nenhuma criança não quis comer o seu pedacinho.
Obviamente, a estranheza não veio apenas do fato de o patinho ser de chocolate meio-
amargo: estava em jogo um prazer relativo à oralidade em cada um, e a ritualização da
divisão do patinho pode ter trazido à tona aquilo que a psicanalista inglesa Melanie Klein
chama de fantasia devoradora -- algo primitivo e ligado aos primeiros estados de ser, dos
bebês em relação com suas mães, especialmente na vivência da alimentação ao seio. O
efeito nas crianças desta espécie de “ritual antropofágico” foi tão intenso, dando-nos uma
tal cumplicidade entre adultos e crianças, que posso, nesta narrativa, chamar o momento
vivido de epifania.
As atividades artísticas junto a crianças, como desenhar, ouvir música, cantar, dançar,
têm, às vezes, um poder sacralizador da experiência humana. Afirmo isso a partir dos
muitos anos de prática do ensino de arte junto a crianças pequenas
37
.
Depois desse dia, iniciei um projeto: contar uma série de outras “histórias comestíveis”,
histórias criadas por mim a partir, primeiramente, dos peixes que estavam na barriga do
patinho; depois, de balas de goma, que colocadas em palitos de dentes transformaram-se
em pequenos bonecos; noutra ocasião pelo uso de confeitos do tipo “Confeti” e outras
guloseimas, que compunham um “cenário comestível”, bem ao estilo da casa da bruxa do
conto de fadas “João e Maria”.
37
Também Clarice Lispector (1999) está de acordo com a importância das atividades
artísticas para as crianças – e expressou isso nos seguintes termos: “Se vocês gostam de
escrever ou desenhar ou dançar ou cantar, façam porque é ótimo: enquanto a gente brinca
assim, não se sente mais sozinha, e fica de coração quente” (“receita” de Clarice para o
leitor de A Mulher que Matou os Peixes).
156
Encerrei o ciclo quando as férias de julho chegaram, retomando o trabalho com o grupo
de crianças em agosto com outro tipo de contação de história, desta vez com bonecos de
madeira; mudança importante pois, no final do semestre, parecia haver um certo hábito
ou “condicionamento” por parte das crianças, na expectativa de “ganhar doces da
professora” – o que de certo modo banalizaria as situações vividas anteriormente com
intensa comunicação e ritualização de uma experiência estética.
As crianças esperavam por esse momento da aula em um estado misto de expansão e
contração de energia; isso revelava estarem, concomitantemente, alegres e temerosas,
felizes e conscientes de que os personagens seriam provocativos e tocantes. Pareciam
perceber que, na maior parte das vezes, eram encenados conflitos muito próximos àqueles
de suas vidas de pessoas de cinco anos: conteúdos próprios desta idade que foram
expressos por meio das histórias inventadas, para cada pequeno ouvinte. Foram temas
que considerei próprios desta idade: capacidade imaginativa; apego aos pais;
comunicação com animais, especialmente animais de estimação; novos irmãos na
família; dificuldade para ficar na escola; medos. O “escancaramento” de conteúdos
próprios das crianças pequenas foi realizado, sempre, em sintonia com a busca de
acolhimento, delicadeza e cuidado.
*
• Pequena hermenêutica das “Histórias Comestíveis”
(…) A dessacralização incessante do homem moderno
alterou o conteúdo da vida espiritual; ela não rompeu com as
matizes de sua imaginação: todo um refugo mitológico sobrevive
nas zonas mal controladas.
(…) Que não nos digam que todo esse refugo não
interessa mais ao homem moderno, que pertence a um
“passado supersticioso”, felizmente eliminado pelo século XIX;
que só serve para os poetas, para as crianças,
157
para as pessoas no metrô se saciarem de imagens e nostalgias,
mas que (por favor!) deixem as pessoas sérias pensar,
a “fazer história”: uma tal separação entre o que é
“sério na vida” e os “sonhos” não corresponde à realidade. (…)
Mircea Eliade
O principal desdobramento do momento de ouvir “histórias comestíveis” foi a
experiência vivida do rito, experiência encarnada pelos pequenos.
Minha experiência como professora de teatro para crianças, ao longo dos anos, me levou
à seguinte propositiva: de que a “primeira lição” sobre o fazer teatral é a demarcação das
semelhanças e diferenças entre brincar de faz-de-conta e fazer teatro.
Pesquisei, ao longo dos anos, diferentes formas para ensinar isso às crianças; algumas
atividades realizam-se em um semi-círculo, espaço delimitador do lugar de
“espectadores”; no centro desse semi-círculo, é posta uma mesa, onde a contação de
história acontecerá – a mesa delimita o “espaço cênico” (onde vai acontecer a cena), bem
como o lugar próprio dos “atores”. Com o passar das semanas, na rotina das aulas de
teatro, as crianças mesmas costumam organizar este semi-círculo
38
, com prazer e boa-
vontade -- apesar da bagunça, alegria e energia de sobra, na expectativa da história que
será contada aquele dia.
Também foi importante ritualizar o final de cada história, da seguinte maneira: dando os
“personagens comestíveis” para as crianças em copinhos plásticos, pedindo-lhes para que
só comessem seu doce em casa, depois do jantar (as aulas desse grupo eram no início da
tarde). Propunha que eles mesmos contassem, no final do jantar, uma história inventada
por eles para sua família. Isso era quase uma “lição de casa”, que alguns faziam, outros
não -- soube na reunião de pais no final do semestre; alguns “me enganavam” e comiam
suas balas de goma, ou dentaduras feitas de açúcar, no corredor da saída da classe! De
38
O que me parece exemplar para conversar com a noção de espacialidade: o adulto
organiza as crianças e elas usufruem da delimitação do espaço de maneira vivencial.
158
todo modo as crianças levavam consigo uma bagagem de sentido – e isso, por si só, era
de grande valor.
“Fazer a lição de casa” não é o que está em jogo: o foco trabalhado é a compreensão das
crianças sobre o dizer da professora, durante a contação de histórias, compreensão que
compartilha processos de comunicação significativa e poética, entre adultos e crianças –
o que nada mais é do que um trabalho acerca da lingüisticidade.
Por mais que soubessem que as narrativas eram “invencionices” minhas, ficavam de tal
forma envolvidos, que tinham sim, naquele instante, dúvida se o patinho estava ou não
sendo manipulado como um boneco por mim. Relaciono essa sensação de dúvida das
crianças, com a noção de animismo, noção psicológica que será visitada a seguir.
Os desdobramentos de meu trabalho como narradora junto aos pequenos relacionam-se
diretamente com a noção merleau-pontiana de linguagem falante, algo que já foi
comentado e será retomado mais adiante, e que conversa com meus remetimentos como
pesquisadora da fenomenologia da infância.
E se na visão da psicologia fenomenológica somos existentes -- seres que sabem de sua
finitude, que sabem que um dia nasceram e que morrerão – somos, portanto, situados no
tempo; realizamos rituais funerais, construímos cemitérios e crematórios. Encenar a
morte do patinho de chocolate é dizer algo sobre isso para as crianças espectadoras.
Os existentes, os seres humanos, podem ser pensados a partir dos existenciais:
corporalidade, temporalidade, espacialidade, mundaneidade, outridade, lingüisticidade –
como situou o “primeiro ato” desta tese. A história do patinho de chocolate tematizou sua
existência: ele
nasceu para “ser comido”: um destino certo, que não conseguiu cumprir a
princípio. A história conta sua busca pelo sentido da sua vida.
A contação de “histórias comestíveis” trabalhou, em ação, o âmbito existencial da
lingüisticidade: trabalhou a relação da professora com sua língua mãe, trabalhou com a
159
escuta das crianças de um dizer da professora. Este tipo de discurso, advindo de
processos criativos e poéticos, modo de dizer próprio do ato criador é a “linguagem
falante”, dizer que Merleau-Ponty contrapôs à “linguagem falada” (discurso da
objetividade, da técnica e dos manuais de instrução). A linguagem falante tem poder de
instaurar “um autêntico diálogo”.
Por “autêntico diálogo” compreenda-se: digo algo a alguém; utilizo-me da palavra falada
de tal forma que o outro penetra em meu mundo, o outro compreende algo sobre mim,
algo que às vezes nem eu mesma sabia, de antemão, que ali estava. Isso leva a um
terceiro espaço, a um terceiro modo de compreender o que foi dito, intersubjetivamente.
A emoção de meu colega de trabalho, quando parti o patinho de chocolate e dei um
pedaço para cada criança, revelava algo sobre o momento, algo que eu mesma não
saberia ver nem dizer: ele enxergou o invisível. O silêncio das crianças durante minha
narrativa, o silêncio carregado de significatividade, também comunicava aos adultos uma
dimensão invisível da infância em sua cotidianeidade.
Merleau-Ponty nos ensinou que a criança habita uma espécie de zona de onirismo; ela
está, do ponto de vista do adulto, imersa entre sonho e realidade; noção análoga à noção
de espaço potencial, como sintetizado no “prólogo” deste texto. O espaço potencial (um
lugar conceitual) está entre você e eu; está entre o que é “de dentro” e o que é “de fora”
das pessoas – entre subjetividade e mundo compartilhado. Situo o modo de ser, estar e
pensar nomeado animismo como pertencente àquela zona de onirismo, espaço potencial
entre as crianças e o mundo, algo que não deveria ser “objetivizado” nunca pelo
educador, pois, se ele revelar-se um “realista estrito senso”, quebrará o encanto da
experiência vivencial e do rito.
O animismo esteve presente durante as contações de histórias, o tempo todo: provocado,
estimulado, re-inventado. Um cone de bala de goma espetado num palito tranforma-se em
boneco que fala, pensa, sonha, ri e chora. Um patinho de chocolate lamenta não ser
comido. Sei que as crianças sabem que se trata de um adulto contando histórias; e sei que
160
as crianças sabem que eu sei que às vezes elas duvidam da realidade, que sua capacidade
para animar o mundo, para “dar alma às coisas” do mundo, está ali presentificada, ativa,
radiante durante as aulas de artes: aulas que lidam, o tempo todo, com suas capacidades
expressivas e imaginativas.
Duas educadoras portuguesas (Isabel Costa e Filipa Baganha), autoras do livro O
Fantoche que ajuda a crescer, afirmam que “o animismo não é algo que desapareça com
a idade”. Para elas,
Falar de animismo é falar de afetividade, pois o animismo é um laço
(afetivo) que se cria entre o homem e o mundo. Tal laço não desaparece com a
idade e é ele que possibilita que o imaginário de cada um se construa. (…)
Pelo animismo o mundo transforma-se, ou melhor, é outro desde o início,
pois o animismo guia-se pela afetividade e esta “não pensa o ser como objeto, ela
vive-o”. (1989:41)
Digamos então que as “histórias comestíveis” eram convites às crianças para exercitarem
seu dom de imaginar. Lembremos com Mircea Eliade (2001) algo sobre essa capacidade
humana:
(…) Toda essa porção essencial e imprescritível do homem -- que se
chama imaginação – está imersa em pleno simbolismo e continua a viver dos
mitos e das teologias arcaicas.
(…) Ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade; pois as imagens têm
o poder e a missão de mostrar tudo que permanece refratário ao conceito.
*
Para poder conversar com essa capacidade de imaginar das crianças pequenas, convido o
leitor a uma espécie de distanciamento, como educador, do realismo estrito senso. Por
realismo estrito senso compreendo: as horas do relógio, a faixa etária e estatura dos
alunos, os limites de um papel sulfite em sua dimensão A-4, o dinheiro sobrando ou
faltando no banco…
161
Para entrar em sintonia com a criança pequena, é fundamental dedicar-se à zona de
onirismo, habitar o “espaço potencial” tal como proposto por Winnicott, e ampliar os
valores da realidade, por meio do exercício da imaginação humana. Imaginar é um dom
humano. Para mim, ensinar teatro é imaginar um mundo melhor. Se fizermos planos
demais, (ah! Os famosos “planos de ensino”!) conectados apenas com a “realidade
estrito senso”, esses planos ficarão carentes de utopia e sonho. Como poderia um
educador de crianças pequenas empobrecer assim sua vida cotidiana, sua prática
profissional e seu projeto de futuro?
*
• Para além da sala de aula
Meus dois exemplos são auto-biográficos e inserem-se em um cotidiano de prática
artístico-pedagógica, como professora de teatro e como pesquisadora dramatúrgica.
Gostaria agora de poder ser mais conclusiva – aproximação com o completar do círculo
hermenêutico desenhado e re-desenhado por mim na tese, de Winnicott a Merleau-Ponty,
da semeadura à colheita da flor da vida.
Pretendo, para ser “conclusiva”, revisitar a metodologia proposta nos Cursos na
Sorbonne por Merleau-Ponty, e pensar como lí seu texto e como o trouxe para minha
vida cotidiana; e sentir como tudo isso me modificou, ou não, e imaginar um projeto de
futuro: projeto que me leve a compartilhar com mais e mais pessoas o modo do olhar
antropológico para trabalhar com crianças pequenas. Esse modo que se centra na
criança mesma, e não em uma teoria do desenvolvimento; esse modo é feito de uma
atitude de co-presença, acolhimento e cuidado.
Pretendo, para ser “conclusiva”, pensar, sentir e imaginar a presença da professora Maria
Fernanda em mim, de maneira que eu agradeça, e celebre o fato dela não ter respondido à
minha questão de maneira direta e objetiva, em conexão com a palavra falada! Caso
contrário eu não passaria 12 anos cultivando em mim o jardim desta tese de
162
doutoramento. A professora agiu como um “mestre zen”, que nos aponta caminhos, mas
não nos leva pela mão.
E relembro ao leitor: eu perguntei à minha professora,
Existe uma educação ‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?
E hoje respondo assim: Não, não existe uma “educação fenomenológica”, uma vez que a
fenomenologia é um campo do saber filosófico, um método para pensar, ser e agir, uma
atitude, um modo de ser; portanto, todas as “educações” são passíveis de serem
pensadas fenomenologicamente.
Doze anos depois, Maria Fernanda, reformulo meu discurso; e lhe pergunto, em sonho e
homenagem: Existe um olhar fenomenológico para os modos de ser e estar da criança
pequena? E farei as vezes da Professora, e responderei a mim mesma, e a resposta é
“sim” -- resposta que autentica e positiva estas páginas -- e desdobra-se em novas
perguntas. Perguntas agora situadas no método, perguntas acerca do “como”:
Como o olhar fenomenológico para o modo de ser e estar da criança pequena pode ser
compartilhado?
O olhar fenomenológico será sempre compartilhado: na palavra, no corpo, no gesto, nas
possibilidades de tempo e espaço, na continuidade de cuidado e acolhimento que os
adultos propiciam às crianças com as quais convivem. Esta tese de doutoramento é,
também, uma das formas possíveis deste compartilhar.
A atitude fenomenológica pode ser difundida por inúmeros outros meios, e gosto de um
em particular: o cinema. Filmar a personagem criança; registrar em imagem uma infância
própria, única e situada em um tempo e um espaço; filmar e fazer o espectador imaginar
o que é “atemporal” da experiência de nascer e encontrar-se lançado no mundo; registrar,
em diálogo, o gigantesco papel do adulto na vida de cada criança que depende de seus
cuidados.
163
O olhar fenomenológico pode “estar dado” em maneiras de filmar; quando o
documentarista Eduardo Coutinho
39
entrevista pessoas, procura meios e modos de deixar
que o entrevistado expresse, como narrador, sua existência. Depoimentos, nos filmes de
Eduardo Coutinho, são contações de histórias, registros inestimáveis da vida das pessoas:
de como elas estavam ali, das significações para seus dramas, alegrias e conflitos,
significações dadas por meio de seu discurso falante, sua corporalidade, seus ritmos e
entonações, que revelam noções de tempo e espaço.
O espectador dos documentários de Eduardo Coutinho não precisa ser letrado, por assim
dizer, para usufruir do método fenomenológico que seu modo de filmar possui: sem
julgamentos de valor, sem noções a priori do que é a comunidade que será filmada, nem
de quem são as pessoas que ali vivem. E a compreensão fenomenológica não está,
simplesmente, na atitude do cineasta: está na intersubjetividade que se põe em jogo,
entre cineasta e equipe que realiza o projeto, entre pessoas que dão depoimentos e o
espectador sentado na sala de cinema.
*
• De volta às coisas mesmas
E na saída do cinema, está a cotidianeidade da vida!
A apropriação de nossa própria narrativa, ou seja, a liberdade possível de produzir
sentidos para o modo como vivemos, e para quem somos nós, é o maior valor da atenção
fenomenológica para a pequena infância. Pois se as crianças forem criadas como seres
linguajeiros, inseridas em sua cultura, capazes de circular bem pelos modos de ser e estar
39
Tenho especial apreço pelo documentário “Babilônia 2000”, filmado no último dia do
ano de 1999; neste filme o cineasta registrou sonhos, desejos, frustrações, utopias, em
depoimentos de moradores dos morros Babilônia e Chapéu Mangueira, comunidades do
Rio de Janeiro. Penso ser uma pequena obra-prima.
164
das outras crianças e dos adultos ao redor, e se puderem sentir-se livres para falar e
perguntar (um dia eu me senti livre para perguntar, Existe uma educação
‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?), pois será então neste momento que a
fenomenologia estará dada em modos de ser e estar entre pessoas humanas.
* * *
165
166
Epílogo
Propor à criança conhecer a si mesma, ao outro e à cultura:
liberdade para expressar o sentido da experiência de viver
167
(…)
Era aliás em Hannah Arendt que eu pensava quando falava de
querer viver juntos e dessa reiteração, essa repetição do querer viver
juntos num contrato social. Assim, permita-me complementar. Disse no
início: a aposta, não sei ainda… Não é um prognóstico, que é impossível.
Mas continuo a deixar um lugar para a esperança. Uma esperança
construída sobre o que? Sobre uma filosofia da história? Creio que somos
obrigados, talvez condenados, a desvincular completamente a esperança
de uma filosofia da história, do sentido da história. Então, ao que
vincular? Volto ao meu quadro de Rembrandt: haverá sempre uma
palavra poética, haverá sempre uma reflexão filosófica sobre essa palavra
poética, e um pensamento político capaz de reuní-las.
Em outras palavras, minha esperança está na linguagem, a
esperança de que haverá sempre poetas, de que haverá sempre pessoas
para refletir sobre eles e para querer politicamente que essa palavra, que
essa filosofia da poesia, produza uma política.
Aí, diria que minha aposta tem a cara da esperança.
Paul Ricouer,
em entrevista para Edmond Blattchen
concedida em março de 1993
168
• Penúltimo momento:
unidade e sentido da fenomenologia
Como aponta Paul Ricouer na epígrafe deste “Epílogo”, filosofia, poesia e política podem
ter “a cara da esperança”. E minha esperança é a de que, a partir de um trabalho
cuidadoso junto à palavra falante, os adultos enriqueçam a vida das crianças, e que isso
se transforme em bagagem, remetimentos e significações existenciais: para si mesmas,
para sua convivência com o outro, para sua inserção na cultura humana. Por meio do
querer dos adultos, em suas relações com as crianças, todos poderão “viver juntos num
contrato social”. Por meio do acolhimento dado às crianças pelos adultos, adultos e
crianças imersos nas contingências da vida humana, a Flor da vida vingará – e se
compreenderá o valor da co-existência.
Se “é em nós próprios que encontraremos a unidade da fenomenologia e seu verdadeiro
sentido” (conforme citação de Merleau-Ponty na pg. 9 da tese), meu trabalho de
doutoramento desdobra, rabisca, desenha, projeta meu percurso nessa direção: modo de
olhar a criança e a infância. Procurei comunicar ao leitor, a partir de algo geral -- a
convivência entre adultos e crianças no mundo -- meu encontro particular com a
fenomenologia, com ponto de partida em meus estudos e vivências como professora de
teatro, psicoterapeuta e professora universitária. E o ponto de chegada, neste momento, é
a conclusão da tese, escrita por quem perguntou um dia à sua professora, Existe uma
educação ‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?
E agora, treze anos mais tarde, atualizo a questão formulada à professora Maria Fernanda,
para pensar seus desdobramentos:
- Existe um olhar fenomenológico para os modos de ser e estar da criança pequena?
- Se sim, essa maneira “constitui” uma pedagogia?
- Como esse olhar pode ser compartilhado? Esse ponto de vista muda a coexistência
entre adultos e crianças?
169
E concluo, momentaneamente: seriam as crianças mesmas que nos propiciariam a
“pedagogia fenomenológica” – no sentido de abertura para a educação sob um ponto de
vista fenomenológico; no sentido do contato com elas na vida cotidiana, das experiências
vividas entre adultos e crianças. Isso é, metaforicamente, a jardinagem da Flor da vida.
Isso acontece quando pais e educadores afastam-se, ao menos um pouco, de seu desejo de
“acertar”, da sua ansiedade de “dar certo” como pais para aqueles filhos, como
professores daquelas crianças pequenas… Proponho que se considere “dar certo” , doar-
se, sem perder a adultice, sem perder de vista a responsabilidade e o laço social – laço
necessariamente dado, amarrado pelo adulto.
*
• Último momento:
re-visito a teoria
Seja a que nível for da educação, o psiquismo
humano deve ser permanentemente remetido para a sua
tarefa essencial de invenção, de atividade de abertura.
Gaston Bachelard
Nunca se está pronto, mas este doutoramento está por terminar, e me arrumo para a
pertença do meu texto: algo se esvazia, e se preenche, e busco os caminhos descritivos, e
teóricos também. Revisitar a teoria winnicottiana é perceber, novamente, a frase
enigmática do professor: A fenomenologia prescinde de uma teoria do desenvolvimento;
neste momento, nesse ponto de meu caminho pessoal e profissional, olho, ouço, leio e
compreendo o enigma por um outro ponto de vista.
Foi a professora Vitória Esposito que apontou essa maneira de olhar, no momento do
exame de qualificação: para compreender fenomenologicamente as crianças, não
“negamos” as teorias desenvolvimentistas, nem tampouco “jogamos fora” o lastro de
referências teóricas, ou de erudição; podemos desenhar de um círculo virtuoso, um
170
traçado que contém as referências pessoais daquele que está exercitando pensar
fenomenologicamente a criança e a infância, e que está, ao mesmo tempo, contido em
algo mais amplo: a cultura humana acerca da infância. Winnicott possui uma frase que
resume esse modo de ver: “em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto
numa base de tradição” (1975:138).
A contribuição de Winnicott permanece em mim e em meu trabalho: acontece, reaparece,
e gira em torno daquilo que o psicanalista nomeou de “terceira área”, ou “espaço
potencial” -- lugar humanizado onde mora nossa capacidade criativa e brincante. Por este
lugar não pertencer nem àquilo que é de “dentro”, nem àquilo que é de “fora” de nós, por
preencher uma espécie de intersecção entre a vida e a pessoa, entre o eu o o outro, é um
conceito que aproxima-se muito da noção existencial do ser-no-mundo, e que conversa
com as discussões da corporalidade, mundaneidade, outridade, feitas no “primeiro ato”.
São as mais preciosas contribuições de Winnicott para o meu projeto de realizar a
fenomenologia da pequena infância: a certeza de que o holding, o ambiente facilitador, a
maternagem dos cuidados e o brincar estabelecem, para as crianças, a continuidade da
vida; e está na continuidade da vida, o sentimento de sentir-se real. Brincar, imaginar,
criar saídas para os labirintos e conflitos do enfrentamento de si, do outro e do mundo,
levam a criança à pertença: belonging, na língua inglesa. Também sua linguagem poética
para descrever os bebês e as crianças pequenas constitui-se valiosa leitura
fenomenológica da infância.
*
O professor Guimarães nos convida a pensar mais um existencial, a partir de Pedro
Entralgo, autor que colheu o termo “nostricidade” de Ortega y Gasset – termo que nos
remete ao encontro. Para Entralgo,
171
a vivência súbita, imediata, irredutível, falível e específica que
inicialmente nos outorga o momento físico do encontro – seja esse afetante ou
não afetante, intramundano ou dilectivo – é a nostricidade.
(apud Guimarães Lopes, 1993:89)
Encontramos as crianças quando nossas experiências infantis, rememoradas, revisitadas,
religam-se àquilo que observamos nelas no aqui-agora; encontramos com as crianças no
colo, no abraço, na cumplicidade do dar a mão
40
: “só através do Encontro conseguimos a
intuição do global a partir da sua condensação no fenômeno, sentido como mensageiro do
todo” (Guimarães Lopes, idem ibidem).
A pertença e o acolhimento, propostos no decorrer da escritura da tese, cabem no espaço
potencial, e, se mergulhados nas possibilidades da criação e da brincadeira, nos levam ao
encontro com a criança mesma. Um caminho interessante para esse encontro é a
aproximação entre infância e poesia, de modo que, para rever a linguagem da psicologia
da criança, em direção a outras maneiras de dizer, convido o adulto a desamadurecer para
compreender as crianças no mundo. Fazê-lo remete a um tripé bachelardiano, cujos
alicerces são memória, imaginação e poesia. Proponho a cada adulto que rememore sua
infância; e imagine, projete, rabisque, brinque com o ponto de vista da criança com a qual
convive hoje, em busca da linguagem falante: diálogo autêntico e cheio de novidade.
A capacidade para imaginar, para inventar, para sonhar, é algo que os adultos, muitas
vezes, enxergam como algo a ser “modelado”, “educado”; ví muito essa atitude diante
das atividades artísticas, propostas por arte-educadores, no desenho, no teatro, na música:
muitos professores realizam suas atividades em sintonia com um realismo simplista, uma
exigência sempre do ponto de vista do adulto. Gaston Bachelard (1996) nos ensina que
todo realista é uma espécie de avarento. Faz-se necessária uma abertura por parte do
adulto para ser generoso com o modo de ser e de estar da criança pequena.
40
No documentário “Babilônia 2000” Eduardo Coutinho também filma depoimentos de
crianças, e uma delas diz, como um de seus “desejos de ano novo”: “Que as crianças não
soltem da mão das mães”. É uma menina de quatro ou cinco anos que dá esse conselho
sábio a todas as crianças da sua comunidade.
172
Ser generoso com a criança é olhá-la como propôs Merleau-Ponty: a criança pequena é
polimorfa, coexistem nela diversas possibilidades; ela percebe o mundo de maneira
própria, não-representacional: ela é a sua experiência, e, para compreendê-la
fenomenologicamente, precisaremos desenvolver uma nova linguagem.
*
• Próximo momento:
falar uma nova linguagem
-- “Chegamos afinal” – o Tio falou.
-- “Ah, não. Ainda não…” – respondeu o Menino.
Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus,
E vinha a vida.
Guimarães Rosa
Talvez o gosto das crianças pequenas pela repetição tenha a ver com esta citação do
conto “Os Cimos” de Guimarães Rosa (1964); namorados vivem algo semelhante quando
sentem dificuldade para desligar o telefone, para dar o último beijo nas escadas do
metrô... Quem é que convive com crianças pequenas e que nunca ouviu um pedido como:
Só mais um pouquinho!?
O texto deste doutoramento acabará, mas a fenomenologia da infância não: permance
como possibilidade, tal qual uma “obra aberta”. A imagem de obra aberta, tão cara aos
estudiosos de semiótica e de literatura contemporânea, sintetiza algo da noção de infância
aqui proposta: busca de afastamento de modelos, seja o modelo médico ou o modelo
desenvolvimentista e evolucionista, que pensa a criança por faixas etárias objetivamente
bem definidas -- e aproximação de noções filosóficas para pensar a experiência vivida de
tempo e espaço da criança pequena. Proponho, tal como Bruner, mergulharmos em uma
173
perspectiva cultural: olhar narrativo, traduzido por um dizer poético, ou, como quer
Merleau-Ponty, exercício da linguagem falante.
A obra é sempre aberta, também, por só se completar na maneira de ler o texto por você,
leitor. Desafiado para pensar a infância e a criança a partir deste ponto de vista, poderá
ser meu cúmplice na criação de uma hermenêutica da infância: trabalho de escuta e
acolhimento da criança, e da cultura infantil. As relações adulto-criança, imersas na
cultura em que vivem, perscrutadas em detalhe e rigor fenomenológico, podem
transformar a maneira de criar as crianças.
Estará na pesquisa da nova linguagem a “cara da esperança”. O modo da fenomenologia
pode trazer uma espécie de libertação para o exercício da psicologia da criança e da
pedagogia, na medida em que nós, adultos, possamos convidar crianças, já em tenra
idade, a apropriarem-se do sentido de suas vidas. Isso acontecerá ao transformarmos o
“papel” dos adultos; isso nos afasta de prerrogativas do tipo “Eu sei o que é bom prá
você”, e nos aproxima da maneira mesma de ser da criança: leva-nos para o chão, por
assim dizer – ou para o quintal, ou ainda, para cima das árvores.
Na copa de uma árvore plantada nesses quatro anos de estudo para o doutorado está uma
casa ou cabana. Alí projeto construir um Centro de Estudos da Fenomenologia da
Infância. Por ora trata-se de um plano, um mapa do tesouro ou devaneio; mas, como
projeto de futuro, desenho uma organização tempo-espacial adulta (um lugar que
concentre estudos: um Centro de Estudos) que proponha o exercício do olhar
fenomenológico para as relações criança-adulto, inseridas na mundaneidade, na
temporalidade, contextualizadas na outridade, e assim por diante.
Neste Centro de Estudos podem existir muitos lugares, espaços para a reflexão sobre
cinema, teatro, televisão; um lugar para pensar sobre como realizar novas obras nestas
linguagens, voltadas a pessoas de todas as idades; enfim, espaço para re-unir tudo aquilo
que trago em minha bagagem, como ex-atriz, mãe, arte-educadora, psicóloga e professora
universitária.
174
Jovens estudantes de diferentes graduações em ciências humanas e interessados em
estudar a infância precisam, eles mesmos, de espaços potenciais: laboratórios de reflexão
e criação, lugares propícios para compreender o ser criança, para semear a Flor da vida.
Lugares onde pessoas pensem, traduzam e registrem noções “oficiais” ou midiáticas do
que é uma criança; espaços de arejamento para entrar em contato com a vida tal como ela
se apresenta, dimensões de alegria e dor. Acontecerá por meio do discurso
fenomenológico da cultura produzida por adultos para as crianças: estudo da literatura
dita infanto-juvenil, de programas de auditório gravados em estúdios de televisão,
pesquisa de espetáculos teatrais infantis clássicos ou datados, e muitas outras mídias.
Nesse Centro de Estudos imagino a necessidade de montar uma equipe junto a outros
pensadores da infância, e concretizar um projeto antropológico: sociólogos, escritores,
pediatras, enfermeiros, psicólogos, etnólogos, legistas, historiadores, todos serão bem-
vindos se compartilharem de um desejo em comum: testemunhar aquilo que os adultos
propiciam hoje às crianças em seus primeiros anos de vida -- assim como o que os
adultos propiciaram a elas no passado, e refletir sobre aquilo que poderá ser propiciado,
em um tempo futuro. Historicizar as noções de infância e do que é uma criança, parece-
me uma boa maneira de acordar do possível sono fenomenológico que o método
acalantaria. Também a interdisciplinariedade pode ser curativa para quaisquer
antropologismos, respondendo a Michel Foucault.
E, tendo em vista que se trata de uma relação assimétrica e de grande vínculo de
dependência, entre adultos e crianças, há necessidade de cuidado: holding, é o termo
winnicottiano. Pensar de forma responsável as maneiras de cuidar, contribuir para
desenhar políticas públicas para a pequena infância
41
, procurar o exercício da criatividade
e da generosidade humanas para positivar as dificuldades relacionais, e, se preciso, trazer
a criança de volta à vida mesma, livre para ser o que ela é, é o que esta tese e sua autora
imaginam como projeto de futuro.
41
Escreveu Françoise Dolto: “Eu teria apenas uma coisa a dizer aos homens políticos: É
de zero a seis anos que o legislador deveria ocupar-se mais dos cidadãos”. (2005:326)
175
No momento em que termina o prazo de entrega do texto, inicia-se uma nova
temporalidade para quem o escreve. Em torno da possibilidade do encontro, giram as
idéias de balanço e comparação; de contradição e conflito; de combate e luta; de achado e
descoberta; de conciliação e reunião; de comunhão (Guimarães Lopes, op. cit.).
Está lançada aqui minha anti-batalha contra moínhos de vento… cujas hélices são feitas
de teorias (de que são feitas as psicologias? De que são feitas as psicologias?,
parafraseando o poema…); em consonância com o professor Guimarães,
(…) não há vencedores nem vencidos. Cansados de terçar armas contra
moínhos de vento, aproximamo-nos mais e vamos à descoberta. E só quando
descobrimos em nós o Outro nos conciliamos. Acontece o sentimento do nós, a
nostricidade. /grifos do autor/ (1993:89)
E somente o adulto é capaz de reconhecer a criança como um outro; e, exemplarmente,
em atitude, ensinar a comunhão. Come pipocas e ri. Suporta a crise de birra e depois
conversa. Acolhe, por meio da corporalidade e da linguagem falante. Silencia quando é
hora de colocar as crianças para dormir:
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
176
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Este belo poema de Carlos Drummond de Andrade, musicado e tornado popular por
Milton Nascimento, foi lido por mim em minha defesa de mestrado, nos momentos finais,
algo assim como um “último suspiro”. Retomo esse texto – “Canção Amiga”, é o título
do poema – nas últimas páginas de minha tese de doutorado, por encontrar nele a mim
mesma, e a criança que fui; encontro minha mãe, meus alunos, meu filho, meus amigos.
E suspiro novamente a esperança de ver meu estudo ampliado e referendado pelos
leitores. Procuro, pela palavra escrita, provocar no leitor adulto a escuta da palavra dita
pela criança pequena. E que essa palavra faça acordar os homens.
* * *
177
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* * *
182
O ouvido,
também ele, quer nomear com flores;
quer que aquilo que ele ouve floresça,
floresça diretamente,
floresça na linguagem.
Gaston Bachelard
183
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