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UNIVESDIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara
Programa de Pós Graduação em Estudos Literários
Vanessa Sivolani Miziara
ALMADA NEGREIROS E A TRAGÉDIA DA UNIDADE
Araraquara – SP
2007
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1
Vanessa Sivolani Miziara
ALMADA NEGREIROS E A TRAGÉDIA DA UNIDADE
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Araraquara, como requisito
para obtenção do título de Mestre em
Estudos Literários.
Linha de Pesquisa: Teoria e
Crítica do Drama
Orientadora: Professora
Doutora Renata Soares Junqueira
Bolsa: Bolsa-Mestrado da
Secretária da Educação do Governo
de São Paulo
Araraquara – SP
2007
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Vanessa Sivolani Miziara
ALMADA NEGREIROS E A TRAGÉDIA DA UNIDADE
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Araraquara, como requisito
para obtenção do título de Mestre em
Estudos Literários.
Linha de Pesquisa: Teoria e
Crítica do Drama
Bolsa: Bolsa-Mestrado da
Secretária da Educação do Governo
de São Paulo
Data de aprovação: 07/03/2007
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Profa. Dra. Renata Soares Junqueira
Faculdade de Ciências e Letras / UNESP - Araraquara
__________________________________________________________
Profa. Dra. Flávia Corradin
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas / USP
– São Paulo
__________________________________________________________
Prof. Dr. Gilberto Figueiredo Martins
Faculdade de Ciências e Letras / UNESP - Assis
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
3
Aos meus pais, Dieb e Vanda, que me ensinaram
não ceder nos momentos de fraquezas, mas sim
enfrentá-los com coragem.
Aos meus irmãos, Milena e Elias José, que, com
a simples presença, fazem com que eu me sinta
mais forte.
Ao Marcelo Góes pelo companheirismo, pela
paciência e por me incentivar a buscar sempre o
melhor.
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AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da vida.
À Renata Soares Junqueira, mestra e orientadora, que possib ilitou,
com dedicação, exigência e paciência a elaboração deste trabalho, assim como
todo o caminho para se chegar até ele.
Ao professor Alcides Cardoso dos Santos pela atenção e pelas
sugestões de caminhos e textos.
À minha família de Sousa Góes – Mauro, Maria do Céu, Marcos
Lúcio, Márcio e Suheide – pela acolhida e pelo amor e carinho.
À minha amiga-irmã, Carla Renata Segatelli, pela amizade.
À minha amiga e my angel, Marcia Elis de Lima Françoso, pelo
estímulo constante.
À minha amiga e colega Suilei Monteiro Giavara pela confiança.
Aos meus amigos e colegas Andreza Mapelli, Samanta Ravazzi,
Bianca de Campos, Aislan Maciera e Cristiano Bosco, pelos inesquecíveis
momentos de harmonia, descontração.
Aos funcionários do Departamento de Pós-graduação e aos da
Biblioteca da FCL - Campus Araraquara.
Ao Programa Bolsa-Mestrado do Governo de São Paulo pelo apoio
financeiro.
5
By far the greater number of those who went
by had a satisfied, business-like demeanor,
and seemed to be thinking only of making
their way through the press.
(POE, 1983, p. 642-654)
necessito de multidões para me encontrar
sozinho sou multidõe s
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 245)
6
MIZIARA, V.S. Almada Negreiros e a tragédia da unidade.
RESUMO
Partindo da idéia de que “unidade” é o resultado da união entre os interesses
coletivos e os interesses individuais, Almada Negreiros reitera, ao longo da sua
produção artística, que essa junção é uma necessidade do homem, mesmo
que isso crie uma atmosfera de dis puta constante entre os seres humanos.
Assim, o conceito almadiano de tragédia da unidade é derivado da constatação
da impossibilidade de conciliar, no ser humano, as suas necessidades
particulares e as necessidades coletivas. Tendo como corpus as peças Deseja-
se Mulher e S.O.S., pretendemos apresentar as nossas reflexões a respeit o da
tragédia da unidade e de como ela se expressa, formalmente, no teatro de
Almada Negreiros. Ao longo desse percurso, constatamos dois princípios
fundamentais à tragédia da unidade: a repetição e a fragmentação. Elementos
básicos de nossa análise.
Palavras-chave: Tragédia. Unidade. Repetição. Fragmentação. Contradição.
Impossibilidade.
7
ASTRACT
Considering "unity" as the result of the union between the collective interests
and the individual interests, Almada Negreiros reiterates, along his artist ic
production, that this junction is a necessity of the man, even if this creates an
atmosphere of constant dispute among the human beings. T hus, Almada
Negreiros’ concept of the tragedy of the unity is derived from the evidence of
the impossibility of reconciling, in the human being, his own necessities and the
necessities of the collectivity. Having as corpus the plays Deseja-se Mulher and
S.O.S, we intended to present our reflections about the tragedy of the unity and
how it expresses itself, formally, in Almada Negreiros’ drama. During this study,
we observed two fundamental principles of the tragedy of the unity: the
repetition and the fragmentation. Basic elements of our analysis.
Keywords: Tragedy. Unit. Repetition. Fragmentation. Contradiction.
Impossibility.
9
1 BREVE APRESENTAÇÃO
Tragédia da unidade é uma expressão cunhada pelo autor português
Almada Negreiros para designar a crise do indivíduo moderno, que se sente
cindido, fragmentado, duplo. Para Almada, esses sentimentos fazem com que
o homem acabe por buscar uma unidade que os superaria. Essa unidade,
entretanto, é inviável, utópica e, por isso, é classificada como trágica.
O objetivo do presente trabalho é investigar o conceito almadiano de
tragédia da unidade aplicado a duas peças do autor: Deseja-se mulher: 1+1=1
(1928) e S.O.S. (1929).
A temática da quimérica procura pela integração não é apenas
recorrente em toda a obra de Almada Negreiros, mas também, em geral, nas
obras literárias do Modernismo português.
Uma das marcas da modernidade é, com efeito, a busca do novo e a
aceleração do progresso tecnológico. Este tipo de desenvolvimento gera dois
fatores antagônicos, ambos condicionantes da vida nas modernas sociedades
humanas: o bem, atrelado ao desenvolvimento científico e tecnológico; e o mal,
vinculado a problemas de ordem social – como a miséria e a exploração no
sistema capitalista de produção – e também de ordem pessoal – como a
solidão e a angústia, provenientes da diluição das relações intersubjetivas no
mundo supercivilizado. Como asseveram Adorno e Horkheimer
(1985, p. 14-5):
A naturalização dos homens hoje em dia não é dissociável do
progresso social. O aumento da produtividade econômica, que por
um lado produz as condições para um mundo mais justo, confere por
outro lado ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam
uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se
vê completamente anulado em face dos poderes econômicos Ao
mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza
a um nível jamais imaginado.
A dualidade natureza X cultura está na origem da dissociação
psíquica do homem moderno. Aliás, a multiplicidade humana é um f ator
fundamental para que o indivíduo conquiste o seu espaço na sociedade. De
fato, assumimos o papel de trabalhador, de cidadão, de pai, de mãe, de filho,
10
etc. As máscaras sociais são, deste ponto de vista, essenciais para a
organização do meio social. Todavia, muitos indivíduos, de tanto assumirem
alguns papéis e se submeterem a eles, acabam deixando em algum palco a
sua essência e passam a viver o que se costuma chamar de crise de
identidade. Ao afastar-se de si mesmo, o indivíduo passa a viver
automaticamente, ou seja, vive tentando modelar-se segu ndo as exigências do
sistema. Nesse ambiente automático, as relações entre sujeitos deixam de ser
naturais para serem intencionais.
Ao se analisar a obra de Almada Negreiros, percebe-se que ela
engloba os dois lados da modernidade. Ao mesmo tempo em que condena o
saudosismo e exalta o progresso, – quando, por exemplo, se autodenom ina
“poeta-futurista” –, Almada detecta a tragédia da impossibilidade de integr ação
entre o particular e o universal no mundo moderno.
Evidentemente nos temas artísticos e literários, a busca da unidade
dá-se também no próprio modo de criação. A arte não pode ser dirigida a um
único grupo ou país, ela deve representar uma situação universal, ser dirigida a
todos os povos, deve, enfim, ser uma produção sem fronteiras. Esta idéia,
defendida por grande parte dos autores modernos, é explícita na resposta que
Fernando Pessoa (1966, p.113) dá à sua própria pergunta, em Páginas
íntimas e de auto-interpretação, sobre as intenções da revista Orpheu, da
qual Almada Negreiros foi um dos principais colaboradores:
O que quer Orpheu?
Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é
aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca e
pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um
[...]
Em seus manifestos e ensaios, a preocupação de Almada em
defender a idéia de uma arte cosmopolita, uma arte que retrate os novos rumos
da sociedade, é explícita e muitas vezes até agressiva, como ocorre, por
exemplo, no “Manifesto Anti-Dantas”:
1
1
Julio Dantas foi um político e escritor de renome no Portugal republicano. A sua produção
literária, formalmente convencional, revela um nacionalismo e um patriotismo de matiz
histórica. Esta postura foi o motivo que levou Almada Negreiros a publicar o polêmico
11
UMA GERAÇÃO, que consente deixar-se representar por um Dantas
é uma geração que nunca o foi. É um coió d’indigentes, d’indignos e
de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir
abaixo de zero!
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
[...]
Se o Dantas é português eu quero ser e spa nhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é
meta da decadência mental!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do
país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais
selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degregados e dos
indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das
desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um
dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo,
a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de
asseado! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 641, 642, 645)
Em sua produção escrita, especif icamente na dramática, a utópica
integração, ou seja, a tragédia da unidade configura-se sutilm ente num jogo
entre a camada visível e a camada subjac ente do texto e do espetáculo. Trata-
se de um jogo de impossibilidades e contradições que imprime ao texto uma
ausência de nexo. Todavia, é nesta sobreposição de imagens desconexas que
podemos detectar a metáfora da fragmentação que nada mais é do que o
retrato da falta de coerência da realidade, uma vez que os fatos ocorrem
rápidos e simultaneamente. Este jogo revela, ainda, a identidade fragmentada
do homem moderno.
O jogo duplo, sobre o qual as peças Deseja-se mulher e S.O.S. são
construídas, está presente na própria estrutura do teatro – na medida em que
neste se mesclam a ficção e a realidade –, no próprio gênero tragédia – que é
proveniente de um impasse trágico – e ainda na gên ese das peças. Esta última
afirmação faz-se pertinente devido ao propósito segundo o qual as peças foram
escritas: afinal, Almada Negreiros reconhecia a tragédia da unidade em dois
planos: o mundo natural – composto pelo homem e pela mulher –, e o mundo
social – composto pelo indivíduo e pela coletividade.
Manifesto Anti-Dantas que, aliás, fez o autor ficar mais conhecido do público. Neste
manifesto Almada Negreiros não critica apenas Julio Dantas, mas toda uma “classe” de autores
que representavam o que havia de mais estagnado na literatura portuguesa.
12
Em Deseja-se mulher, o autor aborda a tragédia do mundo natural;
em S.O.S., a tragédia do mundo social:
Numa tratei do indivíduo separadamente da colectividade; isto é, a
pessoa humana colocada exactamente diante do seu próprio caso
pessoal, o indivíduo encarando individualmente o seu problema
pessoal da Ordem; na outra, a colectividade sofre o inevitável atrito
de cada um dos seus indivíduos, até que por desespero geral ou
chamemos-lhe necessidade fatal, todos os indivíduos se submetem
ao comum imediato e acabando esse movimento colectivo, imperioso
e tirânico, por estabelecer o novo ritmo da sociedade e seus
indivíduos. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 528)
Assim sendo, quando o autor escreveu estas peças, deu-lhes um
título geral – El uno, Tragédia de la unidad ou Tragédia documental de la
colectividad y el individuo
2
– e revelou – em uma nota explicativa que
antecede S.O.S: “Notícia sobre um acto de teatro que a seguir se publica” a
sua vontade de que as peças fossem representadas em noites consecutivas:
“Se houvesse um público capaz de aguardar curioso o que o artista se meteu a
decifrar, estas duas peças deviam ser-lhes apresentadas em noites
consecutivas”. (1997, p. 528).
Deseja-se mulher e S.O.S. constituem, portanto, um díptico teatral
já que abordam o mesmo tema – o da tragédia da unidade – visto de ângulos
diferentes.
Falar em tragédia é tocar numa questão delicada, pois que se trata
de um assunto muito explorado, abalizado por conceitos específicos em
diversas linhas de pensamentos. Não é de nosso interesse, contudo, abordar a
teoria da tragédia em si, mas sim analisar especificamente o conceito de
tragédia da unidade em Almada Negreiros, recorrendo à teoria geral da
tragédia apenas quando isto se fizer necessário na nossa análise.
Com tal finalidade, estruturamos este trabalho em três capítulos e
uma conclusão.
No Primeiro Capítulo, abordaremos o conceito de tragédia da
unidade, procurando esclarecer como se estrutura a tragédia almadiana e a
que ela se refere. Para isso, deter-nos-emos nos dois aspectos fundamentais
2
Os originais das peças foram escritos e m castelhano.
13
da sua estrutura – o mundo natural e o mundo social –, avaliando
especialmente a conseqüência da sua desin tegração – a “morte” do indivíduo e
da coletividade; a representação algébric a da tragédia da unidade – 1+1=1
3
; a
repetição e a fragmentação, características que configuram o jogo de
impossibilidades e contradições em que a tragédia da unidade está
estruturada.
No Segundo Capítulo abordaremos, de forma mais aprofundada, a
tragédia do mundo natural tal como Almada a concebe na peça Deseja-se
mulher.
No Terceiro Capítulo, trataremos, também de forma mais
aprofundada, da tragédia do mundo social tal como ela se configura na peça
S.O.S.
Na Conclusão, finalmente, apresentaremos as nossas
considerações a respeito do jogo de impossibilidades e de contradições que
sustenta a tragédia da unidade no teatro de Almada Negreiros.
3
1+1=1 é também o subtítulo da peça Deseja-se mulher.
14
2 A TRAGÉDIA DA UNIDADE: ESTRUTURA E FUNDAMENTOS
É preciso juntar as gentes no maior número
e entretanto o universo que espere por nós
todos.
Os três únicos personagens do mundo:
o universo
nós todos
e cada um de nós.
O universo é autêntico e abstracto
nós todos é concreto e autêntico.
e cada um de vós vai-vem autêntico entre o
abstracto e o concreto.
(Almada Negreiros, “O Caçador”)
Quando se estuda tragédia, logo se pensa na Grécia antiga, mais
precisamente no V século a.C., tempo em que a tragédia surgiu e no qual teve
também o seu apogeu. As marcas deixadas pela “tragédia grega” são
profundas e, por isso, os mais significativos estudos e teorias sobre tragédia
fazem-lhe sempre referência.
Dentre as várias definições do gênero, a pioneira é a concepção de
Aristóteles (1966, p. 74) que define a tragédia como:
[...] imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa
extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de
ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação
que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que,
suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas
emoções.
A consagrada teoria aristotélica gerou e gera intermináveis
discussões. Uma delas deve-se ao fato da definição do filósofo grego ser
apenas estrutural, uma vez que não alcança o fenômeno trágico responsáv el
pela tragédia:
Aristóteles, porém, não nos diz o que é a tragédia; delimita, sim, o
seu objeto, e nos diz, sobretudo, como a tragédia se estrutura, quais
são as suas partes constituintes e qual é o lugar destas partes. De
algumas delas define mesmo qual é a sua natureza ou como elas
devem ser. (BORNHEIM, 1975, p. 70)
15
Para Bornheim, a principal dificuldade para uma mais profunda
compreensão do trágico deve-se ao fato de este ser um assunto “[...] rebelde a
qualquer tipo de definição”. (1975, p. 71). Na tragédia, deparamo-nos “[...] com
uma situação humana limite, que habita regiões impossíveis de serem
decodificadas. As interpretações permanecem aquém do trágico, e lutam com
uma realidade que não pode ser reduzida a conceitos.” (1975, p. 71).
Em um aspecto, porém, os estudiosos de tragédia e do trágico
concordam: a ação trágica é proveniente da tensão entre dois pólos, o homem
e o mundo em que ele está inserido, como conclui Bornheim (1975, p. 73-4):
Portanto: se o homem é um dos pressupostos fundamentais do
trágico, outro pressuposto não menos importante é constituído pela
ordem ou pelo sentido que forma o horizonte existencial do homem.
Evidentemente, a natureza da ordem varia: pode ser o cosmo, os
deuses, a justiça, o bem ou outros valores morais, o amor e até
mesmo (e sobretudo) o sentido último da realidade. Mas só a partir
desses dois pressupostos se torna compreensível o conflito que
caracteriza a ação trágica. Estar em situação trágica remete àqueles
dois pressupostos, e a partir da bipolaridade da situação faz-se
possível o conflito.
A polaridade dos pressupostos é uma exigência indispensável, é ela
que torna viável a ação trágica.
Cientes da definição clássica e das mais significativas concepções
de tragédia, partiremos, contudo, numa tentativa de compreender melhor a
expressão de Almada Negreiros – “tragédia da unidade” – do seguinte part pris:
tragédia, no seu sentido amplo, representa uma ação humana infeliz com um
desfecho que é, na maioria das vezes, também infeliz, e que deriva de uma
irreparável tensão entre dois pólos opostos.
Desta perspectiva, é possível entender tragédia da unidade como
uma expressão auto-explicativa e tensa. Tal constatação decorre do significado
das duas palavras que compõem a expressão: tragédia implica uma situação
sem solução; unidade pressupõe algo uniforme e completo. Trata-se, portanto,
de duas palavras contraditórias que imprimem à expressão almadiana u m
conflito de significados.
Ao dizer que é uma “tragédia da unidade”, Almada Negreiros joga
com as palavras e revela o jogo de impossibilidades e contradições que
16
sugerem a fragmentação do indivíduo e do meio em que ele está inserido.
Teatralmente, essas impossibilidades e contradições promovem a ruptura da
“coerência” do texto e do espetáculo, configurando não mais que uma
constelação de imagens significativas.
Deseja-se mulher e S.O.S., embora abordem o mesmo assunto
geral, tratam separadamente das duas contradições centrais que perfazem a
tragédia da unidade: homem versus mulher (representantes do mundo natural);
indivíduo versus coletividade (representantes do mundo social). O “sucesso”
destes mundos está, segundo Almada Negreiros, relacionado à direção que os
seus integrantes escolherem. Esta direção pode ser a única ou a proibida
4
.
As direções, explica Almada, datam da criação do mundo. Quando
Deus criou o homem, percebeu que todas as riquezas do mundo não lhe eram
suficientes para compensar a sua solidão; por isso, criou também a mulher
para que lhe fizesse companhia. A mulher, logicamente, possui características
distintas das do homem, pois se homem e mulher fossem exatamente iguais,
não seriam duas pessoas e não se completariam mutuamente. Sendo assim,
homem e mulher foram criados para viver em união, uma vez que “[...] os seres
isolados não participam da vida” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 754). E
como Deus criou os seres humanos para viverem unidos, indicou também a
direção única como o caminho por onde todos deveriam seguir: “DIRECÇÃO
ÚNICA são duas palavras postas ao lado uma da outra para indicar o único
caminho por onde deve seguir toda a gente” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
752) Porém, Deus também deu ao homem o livre arbítrio, e, por isso, alertou-o
sobre a existência da direção proibida e pediu-lhe que “[...] tivesse muito
cuidadinho com ela” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 753).
A direção proibida – ao contrário da única – é a trilha em que o
homem se separa da coletividade. Seguindo por ela, o indivíduo fecha-se no
isolamento, deixa de perceber sentido na vida e pas sa a habitar o nada: um
lugar onde nada importa nem faz sentido. Um exemplo de seguir pela direção
proibida é o que acontece com a personagem Vampa de Deseja-se mulher.
4
A definição destas direções, assim como as de mundo natural e mundo social, estão expostas
em um manifesto, de 1932, intitulado Direcção única. É interessante ressaltar que o fato de
Almada Negreiros apresentar duas direções e apontar uma única por onde deveria seguir toda
a gente, lhe rendeu muitas críticas que o classifi caram como adepto de idéias nazi-fa s cistas.
17
Ela, após o fracasso do seu relacionamento com o pr otagonista, deixa-o partir
para outros sítios e, sozinha, passa a viver como sonâmbula no nada em que
se transforma a sua vida, como ela mesma relata: “ELA – [...] P’ra onde querem
que eu vá fugindo de mim sozinha?” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 502).
Vampa reconhece que não tem para onde ir, pois está completamente perdida
dentro de si mesma.
A direção proibida funciona como uma tentação para o indivíduo.
Este, seduzido pela plena realização de seu próprio ser, separa-se do todo que
dá sentido à sua vida.
Foram dados ao indivíduo, portanto, dois caminhos a seguir: a
direção única, que o levaria a compartilhar a vida com os demais seres, e a
proibida, que o levaria a mais amarga solidão.
Expressando-se dessa forma, o autor aponta a direção única como a
mais viável porque é somente por ela que o indivíduo consegue ver-se como
parte da humanidade: “Ora a direcção é única porque é para todos. É a única
coisa que é comum a toda a humanidade, é a própria vida, é o próprio mundo”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 760).
2.1 O MUNDO NATURAL
Antes de o indivíduo lutar pela conquista do mundo social, onde ele
deve se entender como parte de um grande organismo que é a humanidade, é
necessário que ele se integre ao mundo natural, o qual é composto pelo
homem e pela mulher.
Para Almada Negreiros, a união masculino/feminino faz-s e
necessária porque as suas diferenças são complementares entre si. Sendo
assim, “[...] uma mulher e um homem só são duas pessoas quando não têm
nada a ver um com o outro. Por conseguinte, é mais verdadeiro dizer que os
dois são uma coisa só, única, um par” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 754).
Nesse caso, se aparentemente se trata de duas pessoas com caracteres
distintos, essencialmente as suas diferenças, postas lado a lado, anulam-se
porque se integram na constituição do par conjugal.
18
Na prática da convivência de ambos, homem e mulher, porém,
comportam-se como rivais e mantêm entre si uma relação que é sempre
conflituosa. Dessa forma, a integração que os levaria à unidade primordial,
leva-os a compartilhar de uma relação dolorosa e ambígua, de raiva e de
desejo:
E assim foi que Deus fez o homem e a mulher semelhantes um ao
outro, mas de caracteres opostos, antagônicos; de naturezas
independentíssimas cada um deles, acérrimos disputadores da
igualdade no par, inimigos do sexo alheio mas irresistivelmente
atraídos um pelo outro, inseparáveis de verdade, e condenados para
sempre à fatalidade de sua única unidade comum. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 754)
A disputa entre homem e mulher torna tentadora a direção proibida,
aquela em que os indivíduos vivem isoladamente. Mas, como a solidão é ainda
mais amarga do que o convívio, restará apenas, a cada indivíduo, a via de
direção única, que Almada define como um caminho necessário:
Por outras palavras, fez Deus do homem e da mulher dois animais
selvagens que não podem ser domados isoladamente. Fez o
isolamento ainda pior do que era, tornou a solidão ainda mais amarga
do que devia ser e indicou a direção única da colaboração entre
ambos: 1+1=1. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 754-5)
Estamos, desta maneira, diante de uma fatalidade porque, nessa
relação que mantêm entre si, o homem e a mulher não conseguem perfazer,
juntos, uma unidade. A fórmula 1+1=1 não se realiza. A direção única que
parecia o caminho da igualdade e da felicid ade é, pois, um rumo doloroso que
atrai os indivíduos mais como uma espécie de vício do que como opção. Trata-
se da tragédia da unidade natural: as diferenças não formam um, visto que, ao
invés de se mesclarem, vibram e continuam, portanto, duas e distintas.
2.2 O MUNDO SOCIAL
A frustração da unidade ideal no mundo natural impossibilit a, de
certa forma, a integralização social. Dizemos de certa forma porque para se
19
entender um dentro de um conjunto maior, e para trabalhar em favor de todos
os outros que ocupam o mesmo conjunto, é necessário que o indivíduo tenha
superado todas as suas necessidades própr ias. Preso, contudo, às suas
misérias, o ser humano não se enxerga como parte de um todo. Aliás, ele nem
lembra que existe um todo; pois não vê nada além de si mesmo.
Desta forma, o mundo está habitado por milhares de indivíduos que
vivem isolados dentro dos seus casos particulares: “O mundo inteiro está divido
em tantos mundozinhos individuais, pequeníssimos, microscópicos, quantos
são os seus habitantes” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 766).
O mundo funciona justamente ao contrário da forma como Almada
Negreiros acredita que ele deveria funcionar. Para o autor, o mundo deveria ser
entendido como um organismo e as pessoas que nele habitam como os órgãos
que o compõem. Sendo assim, é fundamental para o bom funcionamento
desse organismo que todos os seus integrantes trabalhem em conjunto:
Pois o indivíduo no mundo é exactamente como um dos nossos
órgãos no nosso próprio corpo. Nós não temos vida própria.
Dependemos da vida total e unânime do organismo colectivo, e de
cuja unidade fazemos apenas parte; o que não é pouco nem muito,
senão o justo para cada um de nós. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
765)
Todavia, os seres humanos não se comportam como componentes
de um organismo; cada um trabalha à sua maneira, cada um está sintonizado
num assunto que diz respeito apenas a si próprio. Ess a falta de
correspondência e de harmonia dentro desse sistema compromete todo o seu
funcionamento e gera uma grande discrepância entre os indiví duos. Como
conseqüência do egoísmo de cada um, tem-se a indiferença de cada indivíduo
em relação à humanidade. Tais sentimentos proporcionam grande disputa de
poder, de interesses particulares entre os homens. O produto dessas disputas
é a desigualdade, a miséria e a solidão.
2.3 O IMPASSE TRÁGICO: A “MORTE” DO INDIVÍDUO E DA COLETIVIDADE
20
O elo entre o indivíduo e a coletividade constitui uma relação de
dependência, uma vez que a existência de um deixa subentend ida a existência
do outro. Como se trata de uma ligação fundamental, o rompimento do elo
implica a “morte” de cada uma dessas partes:
O indivíduo não existe. É um resto do que ficou ainda de ontem. Já
não há nada mais do que o espaço que ele ontem ocupava no seu
lugar. E a coletividade? Também. É um resto que ficou ainda de
ontem. Já não existe nada mais do que o lugar que ela ontem
ocupava.
[...]
Não existe nenhum deles por causa do outro. São inseparáveis de
verdade.
[...]
E é esta, minhas senhoras e meus senhores,
a grande tragédia da
unidade. Não há indivíduos porque não existe a colectividade e não
há colectividade porque não existem os indivíduos. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 766)
Logo, o que resta no mundo são multidões formadas por indivíduos
isolados uns dos outros, que se cruzam, mas não se vêem, que se olham, mas
não se enxergam, que convivem, mas não se conhecem. Isso ocorre porque o
homem optou por refugiar-se dentro de si, caminhar pela direção proibida na
qual todos estão sozinhos, na qual “[...] as palavras caem perdidas no chão.
Sozinhos todos. Ninguém se entende. A humanidade inteira está reduzida à
solidão de cada um dos seus indivíduos” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
766).
Indivíduo e coletividade não são partes distintas, mas coexistem na
mesma pessoa. Separados, vivem perambulando pelo mundo como se fossem
“fantasmas” que não enxergam nada além do próprio ego. Fantasmas que
desconhecem a palavra reciprocidade e, por isso, não estendem a mão par a o
próximo e muito menos pegam na mão do outro que ampararia o seu ser.
A tragédia do indivíduo sozinho lhe é imposta assim que nasce, uma
vez que já surge num mundo onde o interesse particular impera e não permite
o funcionamento do organismo. A ascensão de um indivíduo implica a
derrocada de um outro.
21
Priorizar os interesses coletivos não quer dizer sufocar os interess es
individuais, mas sim harmonizá-los com os da coletividade. Esta tarefa requer
do indivíduo um minucioso trabalho de autoconhecimento que ele só
conseguirá realizar em contato com o outro e não sozinho. Sozinho, ao invés
do ser humano se conhecer, ele encontrará o próprio isolamento:
E todo aquele que queira encontrar dentro de si a sua própria
personalidade, ficará romanticamente sozinho no meio das multidões,
na mais terrível solidão de todos os tempos, uma solidão onde o
próprio deserto está cheio de arranha-céus e as ruas inundadas de
gente! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 763)
Na verdade, existe apenas uma conquista, que cabe a cada
indivíduo separadamente: é aquela em que ele se entende como parte da
coletividade. Esta, para Almada Negreiros, é a conquista heróica, como ele
esclarece em “Arte e artistas”:
Essa passagem do indivíduo desde a natureza até à colectividade é
uma desadaptação contínua do indivíduo entre uma e a outra. É a
conquista da sua segunda natureza: a colectiva. É a conquista
heróica. A única que cabe a cada indivíduo separadamente.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 777)
Eis a “[...] própria tragédia humana: a impossibilidade de pôr a
vontade de cada um onde há outras, onde estão todas as vontades do mundo”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 757).
Ao afirmar a inexistência do indivíduo e, conseqüentemente, também
da coletividade, Almada Negreiros most ra a impossibilidade da unidade. Nas
entrelinhas, é anunciada a “morte” dessas partes. Trata-se da morte em vida,
que nada mais é do que a experiência trágica.
Desta forma, separado da coletividade, afirma Almada Negreiros, o
ser humano não participa da vida por inteiro; estará sempre em busca da parte
que o complete e o que lhe resta, portanto, é viver às margens da vida,
somando apenas mais um número na multidão vazia.
22
2.4 A FÓRMULA 1+1=1
A busca pela unidade é descrita matematicamente por Almada
Negreiros através da fórmula 1+1=1. Os algarismos a serem somados
representariam ora o homem e a mulher, ora o indivíduo e a coletividade; a
soma, 1, representaria a plena integração dos dois lados, a unidade primordial.
Ao recorrer a uma ciência lógica para expressar a unidade e ao
mudar o resultado de uma soma exata, Almada Negreiros subverte a própria
lógica, pois que, matematicamente falando, um mais um sempre são dois e não
um.
Mas, ainda que isto pese a Almada, o indivíduo e co letividade, no
mundo das suas personagens, são sempre indivíduo e coletividade, assim
como homem e mulher são sempre homem e mulher, desintegrados apesar de
todos os seus esforços de integração. Daí, naturalmente, a tragédia. Revela-se
inviável, na prática, a fórmula 1+1=1. Mesmo assim, o nosso autor não deixa
de especular, na sua obra, sobre como deveria ser o mundo se os indivíduos
fossem perfeitamente integrados uns aos outros.
Nos seus manifestos, as propostas de Almada Negreiros (1997, p.
653-4) são evidentes. Um ótimo exemplo é o “Ultimatum futurista às gerações
portuguesas do século XX”, onde o autor enumera diversas providências
necessárias no âmbito cultural, patriótico, econômico, social português:
É preciso criar o espírito de aventura contra o sentimentalismo
literário dos passadistas.
É preciso criar as aptidões pro heroísmo moderno: o heroísmo
quotidiano.
É preciso destruir este nosso atavismo alcoólico e sebastianista de
beira-mar.
É preciso destruir sistematicamente todo o espírito pessimista
proveniente das inevitáveis desilusões das velhas civilizações do
sentimentalismo. [...]
É preciso saber que sois Europeus e Europeus do século XX.
É preciso criar e desenvolver a actividade cosmopolita das nossas
cidades e dos no ssos portos.
É absolutamente necessário resolver o maravilhoso citadino da nossa
capital até ser a maior ambição dos nossos dialectos e das nossas
províncias.
É preciso explicar à nossa gente o que é a democracia para que não
torne a cair em tentação.
23
É preciso violentar todo o sentimento de igualdade que sob o aspecto
de justiça ideal tem paralisado tantas vontades e tantos gênios, e que
aparentando salvaguardar a liberdade, é a maior das injustiças e a
pior das tiranias.
É preciso ter a consciência exacta da Actualidade.[...]
FINALMENTE: É preciso criar a pátria portug uesa do século XX.
É da natureza do manifesto propor, declarar, manifestar a opinião
daquele que o escreve. Por isso, não é difícil notar neste tipo de text o as
propostas do autor sobre o que deveria ser a realidade.
O teatro não compartilha da mesma natureza do manifesto. Teatro é,
em síntese, a arte de representar os mais diversos assuntos e situações.
Entretanto, assim como nos manifestos, nas encenações o espec tador torna-se
ciente da opinião do dramaturgo sobre o tema em causa. Esta opinião pode ser
tanto de proposta quanto de protesto ou, ainda, um a forma de retratar uma
possível realidade
5
.
É, pois, consensual que a arte tem uma função social: ao mesmo
tempo em que entretém, distrai e diverte, ela deve também educar, como já
advertia Horácio (1997, p. 65) nos anos 14-13 a.C., na sua Arte poética:
“Arrebata todos os sufrágios quem mistura o útil e o agradável, deleitando e ao
mesmo tempo instruindo o leitor; esse livro, sim, rende lucro aos Sósias; esse
transpõe os mares e dilata a longa permanência do escritor de nomeada” Por
isso, torna-se complicado afirmar que uma obra, especificamente teatral,
apenas retrata a realidade. Normalmente, subjacente ao retrato há uma crítica,
ou um ponto de vista diferente do convencional.
Dessa forma, acreditamos que o teatro, de forma mais velada e
diversificada do que o manifesto, também expressa as propostas e os protestos
do dramaturgo. Ainda mais quando o dramaturgo em questão é Almada
Negreiros, que reconhecia o teatro como a forma artística mais comprometida
com o público, como é claro no seu ensaio sobre “Teatro”:
5
É importante ressaltar que além do teatro compartilhar de alguns aspectos do manifesto, este
também compartilha de alguns aspectos comuns ao teatro. O Manifesto requer, também, uma
postura teatral daquele que o lê para um público espectador. Durante a leitura, assim como o
ator, o orador precisa convencer aquele que o escuta. Em última análise, podemos dizer que
quem lê um manifesto está desempenh ando um papel.
24
NENHUMA Arte tem de falar a todos a não ser o teatro.
Grandes e pequenos, instruídos e analfabetos, sábios e ignorantes,
no teatro todos são Um, e, por conseguinte só o que interessa o
Único pode ser agradável a todos. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
697)
O teatro tem o poder de congregar todos num mesmo sentimento,
pois como usa de todos os sentidos humanos, qualquer indivíduo, mesmo que
com alguma deficiência auditiva ou visual, por exemplo, não estaria privado de
desfrutar de um espetáculo:
E dizia-me o pintor, não é pelo assunto que gosto da obra, é por uma
ligação de tudo o que põem em cena diante dos meus sentidos. Se
fosse surdo e seguisse a acção só vendo, gostava da obra. Em
pintura e nas artes plásticas a acção é só vendo. Na música é só
ouvindo. No teatro é com todos os sentidos. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p.1059)
Deseja-se mulher e S.O.S. retratam a necessidade que o homem
tem de encontrar-se consigo mesmo e com a sociedade em que vive. Trata-se
de uma denúncia do sistema que, para se manter forte, transforma o homem
em fantoche. Por isso, as falas repetidas, os gestos mecânicos das
personagens. Juntamente com a denúncia, é possível reconhecermos,
principalmente nas falas dos protagonistas de ambos os textos, a voz do autor
propondo à humanidade uma postura diferente.
A voz se faz notável, por exemplo, no s exto quadro de Deseja-se
mulher, quando o protagonista viaja para o estrangeiro (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 518-9), e no segundo quadro de S.O.S., na resposta do
protagonista ao Diretor do jornal (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 535-41). Em
outras peças do autor, as propostas para uma realidade diferente nos parecem
mais explícitas. Trata-se das peças estruturadas em um único ato como, por
exemplo, O público em cena (1931). Este tipo de peça expõe todo o drama de
uma só vez, visto que parte da situação central sem se preocupar em
descrever em atos os acontecimentos que culminaram na intriga, como
esclarece Peter Szondi (2001, p. 110):
25
A peça de um ato só moderna não é um drama em miniatura, mas
uma parte do drama que se erige em totalidade. Seu modelo é a cena
dramática. O que significa que a peça de um só ato partilha com o
drama o seu ponto de partida, a situação, mas não a ação, na qual as
decisões das dramatis personae modificam continuamente a situação
de origem e tendem ao ponto final do desenlace. Visto que a peça de
um só ato já não extrai mais a tensão do fato intersubjetivo, esta deve
já estar ancorada na situação. E não como mera tensão virtual a ser
realizada por cada fala dramática (como a tensão constituída no
drama); antes, a própria situação tem de dar tudo. Uma vez que a
peça de um só ato não renuncia de todo à tensão, ela procura
sempre a situação limite, a situação anterior à catástrofe, iminente no
momento em que a cortina se levanta e inelutável na seqüência.
Como a própria situação tem que dar conta de tudo, em meio à
representação crítica dos fatos é possível detectar as propostas do dramaturgo.
Em O público em cena, tem-se a tentativa da Diretora de uma casa
de espetáculos que, preocupada com as cadeiras vazias do auditório, convida
o Público para se apresentar a uma platéia, constituída unicamente por autores
dramáticos, a fim de revelar quais são os assuntos que mais lhe apeteceria ver
em cena. A Diretora e os atores decepcionam-se, pois o Público revela-se
apático, sem preferências e reclama que há algum tempo vem sendo vetado
nas entradas do teatro devido a um público impostor ter tomado o seu lugar.
A crítica é visível na inversão de papéis entre público e autores
dramáticos, e nas falas do Público que se mostra i ndignado com a postura da
diretora, que pretendia direcionar a imaginação dos autores.
Infiltrada na crítica do Público está a voz do autor, clamando que a
imaginação dos autores possa fluir livremente:
PÚBLICO – Pois nem como directora de companhia nem como
primeira actriz a senhora tem necessidade de estar a falar com o
público. É engano seu. Comigo ninguém tem nada que falar.
Entendam-se com os autores: são eles que falam por mim. E mais
uma vez lhe digo: não julgue que em Arte se podem substituir os
autores. Pelo contrário, se querem Arte, se querem dinheiro, mais
dinheiro ainda do que cabe na vossa própria ambição, dinheiro tão
certo que não necessitem de pensar em dinheiro, eu digo-lhes o
segredo: deixem os autores levar intacta até o público a sua
imaginação de autores! O filão de oiro da Arte, da Arte que vale oiro,
e que todo o oiro do mundo não será bastante para a servir, está em
cima da mesa de trabalho de cada autor! Deixem que os autores
encham de oiro metálico, oiro-dinheiro, oiro-sonante, as vossas mãos,
pelo processo deles e no qual vós não acreditais! A imaginação dos
autores é o único segredo do mundo que faz nascer, correr e sem
26
perigo de secar a fonte de oiro! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
574-5)
O Público, figura fictícia e alegórica, é descrito como a personagem
mais apagada em cena:
[...] uma personagem cujo aspecto não indica nenhuma classe social,
e é mais apagada que a de qualquer outra em cena. [...] O público
veste-se de escuro, e quando se volta, traz marcada a claro nas
costas uma cadeira com o assento no seu respectivo lugar. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 569-70
)
Entretanto, é justamente esta personagem apagada, de
comportamento simples e até um pouco ingênuo, quem mais tem consciência
da realidade:
Caracteriza-o em todos os seus gestos e palavras, a simplicidade, a
ingenuidade, e o não sair nunca do seu lugar moral de público, esteja
onde estiver. Em vez de entrar, procura em todos os seus bolsos
qualquer coisa que não há meio de encontrar.
O PÚBLICO – [...] Mas espera: a mim não entregaram nenhum
bilhete! Desculpe, caio agora em mim. É o costume. É o costume de
nunca confiarem na minha pessoa, e pedirem sempre o papelinho
para verem se eu paguei a entrada. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
569)
A aparência do Público destoa das outras personagens. A Diretora é
“[...] uma mulher que se distingue de todos pela sua imperiosidade” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p.567). Os atores e atrizes fazem comentários vazios e
têm comportamentos fúteis como, por exemplo, A Atriz Mais Jovem que levou
bombons e uma almofadinha para o Público:
A ACTRIZ MAIS JOVEM: Eu trouxe-lhe bombons. Foi uma idéia
absolutamente minha, não a li em parte nenhuma [...] Ai, ainda não,
ainda não! Falta isto. É a tal segunda idéia absolutamente minha.
(Tira um pequeno embrulho que traz guardado entre os seios,
desembrulha-o, e é uma pequena almofadinha que ela mesmo lhe
põe debaixo do rabo para o público se sentar em cima. Aplausos de
toda a companhia, sensivelmente comovida.) (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 571).
27
O comportamento da Atriz Mais Jovem é ridículo. Parece-nos uma
crítica às atrizes e aos atores que bajulam os seus superiores para se
promoverem. A ironia do autor revela-se ainda no fato de a atriz afirmar que
aquelas idéias, de levar bombons e almofadinhas, são absolutamente dela.
Esta atitude mostra a sua incapacidade de ter uma idéia mais útil. Os aplausos
da companhia comovida revelam que os colegas compartilham da mesma
ignorância.
O luxo do teatro é outro aspecto que contrasta com a aparência do
Público:
Temos feito por nossa parte todo o possível para trazer de novo o
público ao teatro. Mandamos limpar a casa toda de alto a baixo. Por
dentro e por fora tudo minuciosamente modernizado. [...] Um dos
mais famosos barmen da Europa civilizada
foi por nós contratado à
custa de incalculáveis sacrifícios. [...] E, quanto a conforto, não
tivemos mãos a medir: ele foi cortinas, reposteiros, camarotes,
camarins [...] Substituímos por fofos elegantes e elegantes assentos
modernos as velhas cadeiras [...] E por último as faus tosas librés dos
nossos porteiros e demais empregados, desenhadas lá fora pela
maior sumidade mundial em figurinos, e executadas também lá fora,
donde vieram por via aérea para não faltarem à inauguração da
remodelação deste glorioso teatro. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
568, grifos nossos)
Nota-se, na descrição da reforma do teatro, que os apetrechos foram
importados. Ao dizer “Europa civilizada”, a Diretora revela o seu espírito fútil de
valorizar a mercadoria estrangeira e a ironia do autor apontando o atraso de
Portugal comparado com o restante da Europa. A indignaç ão de Almada
Negreiros com o atraso do seu país é explícita em alguns dos seus manifestos
como, por exemplo, em “Primeira descoberta de Portugal na Europa do s éculo
XX”: “A Raça Portuguesa [...] precisa é de nascer pro século em que vive a
terra”.
Ao usar o próprio teatro como cenário e levar ao palco assuntos que
fazem parte do universo teatral, Almada Negreiros faz metateatro:
Não é necessário – como para o teatro dentro do teatro – que esses
elementos teatrais formem uma peça interna contida na primeira.
Basta que a realidade pintada apareça como já teatralizada: será o
caso de peças onde a metáfora da vida como teatro constitui o tema
principal (CALDERÓN, SHAKESPEARE; hoje, PIRANDELLO,
28
BECKETT e GENET). Assim definido, o metateatro torna-se uma
forma de antiteatro onde a fronteira entre obra e vida se esfuma.
(PAVIS, 1999, p. 240).
O metateatro é, para o dramaturgo, um meio de avaliar e criticar os
próprios meios de constituição do espetáculo. No caso desta peça, trata-se de
denunciar aqueles que estão transformando arte em ofício, como o próprio
autor ressalta em “Arte e artistas”:
A Arte diz respeito ao indivíduo e nunca, por nunca ser, à sua
profissão.
Ser artista é uma aplicação dos cinco sentidos do indivíduo
completamente à parte e além de toda a probidade do seu ofício. Ser
artista é uma determinada visualidade a par de toda e qualquer
profissão ou ciência. Ser artista é o que há de vital e paralelo a
qualquer técnica ou ofício, isso mesmo que um dia é o único que
libertará o indivíduo profissional da fria mestria e tirania da técnica do
seu ofício particular, ou do conhecimento unilateral da ciência que
pratica. (1997, p.778-9)
Ao especializar-se em um ofício, o indivíduo acaba voltando toda a
sua atenção para aquele determinado assunto. A arte tem o poder de revelar
ao trabalhador coisas que vão além da técnica diária. É o meio de fazer o
indivíduo repensar a realidade e não agir automaticamente:
A Arte não tem por limites a probidade profissional. É já a dignidade
dos próprios sentidos do indivíduo. O artista não é apenas o indivíduo
profissional, é incomparavelmente mais do que isso, é já o indivíduo
enciclopédico. Conclusão: nenhuma profissão, ofício ou ciência tem
vantagem sobre outra em capítulo de Arte. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p.779)
À medida que a arte passa a ser um ofício especializado em dominar
as massas, ela perde a sua função de instruir e deleitar e passa a ser
alienadora. É como asseveram Adorno e Horkheimer
(1985, p.114) ao discutir o
domínio da indústria cultural:
De fato o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade
retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais
coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista
seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais
fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a
29
racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da
sociedade alienad a de si mesma.
O público, à medida que aceita o que é posto diante dos seus olhos
sem contestar, colabora com a substituição da arte pela técnica. Este é o tipo
de público que tomou o lugar do Público da peça de Almada Negreiros, como
afirma este autor em “Arte e artistas”(1997, p. 780):
Uma estranha personagem chamada o público foi o grande
atrapalhador de toda esta questão. O aparecimento do público neste
mundo é relativamente recente e deve datar aí por Molière. O público
é uma autêntica personagem, completamente falsa, criação perfeita
de empresários e negociantes.
O novo público é uma irrisória parte da população que detém o
poder econômico e que só se interessa por aquilo que pode aumentar os seus
lucros:
Antes do aparecimento do público era directamente à humanidade, a
essa generalidade máxima, que o artista, seu intérprete e guia,
mostrava os achados que os seus sentidos faziam nas próprias mãos
da natureza e do mundo. [...]
Todavia, se o público é isso mesmo que aqui apontamos, uma
personagem falsa, não porque minta mas porque não tem sequer
razão de existência, o facto é que ele existe; intruso mas existe,
confuso e inexplicável, atrapalhador e injustíssimo mas real, presente
e tirano. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 780-1)
O universo do teatro é cenário de outro ato único de Almada
Negreiros, Antes de começar (1919). Nesta peça, o autor serve-se da ilusão
do teatro para apontar a vantagem da fantasia em relação à realidade ao
imaginar um diálogo entre duas marionetes de teatro infantil que conseguem a
humanamente impossível façanha de integr arem-se um no outro – os bonecos
desfrutam, portanto, da unidade primordial.
A ação se passa, minutos antes de principiar uma apresentação
infantil, em um palco de teatro no qual Boneco e Boneca descobrem
mutuamente que o outro também pode mover-se e falar. A partir dessa
descoberta, os bonecos começam um diálogo aparentemente simples, mas
30
com forte densidade filosófica e simbólica, que os leva a superarem-se
enquanto indivíduos e reconhecerem-se Um. Inicialmente, as diferenças entre
eles são visíveis (justamente como acontece com o homem e a mulher reais).
A Boneca, aparentemente, se mostra mais medrosa do que o Boneco, pois, ao
contrário dele, ela nunca se mexe da posição que seus donos a deixam por
medo deles descobrirem que ela possui vida. Depois, revelam uma grande
capacidade de comunicação que os leva a reunirem o espírito corajoso dele à
sensibilidade dela, tornando-se, portanto, integrados.
O reconhecimento dos bonecos principia-se no momento em que a
Boneca conta ao companheiro como fora feita. O Boneco reconhece na história
da boneca a voz do seu próprio coração:
A BONECA – [...] Se o que sai do coração fosse igual ao que está por
dentro... não era uma simples boneca vestida de seda... era outra
coisa! Era o próprio coração por dentro! Nunca viste o coração por
dentro?
O BONECO – (Devagar.) Vi! É uma boneca vestida de seda...
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 435-6)
Assim, se num primeiro momento a Boneca se mostra mais ingênua
que o Boneco, num segundo percebemos que é a experiência emotiva dela
que desperta o coração do colega.
O símbolo da união entre os bonecos transparece em algumas
atitudes dos dois, como no ato de se darem as mãos e escutarem o mar. O
laço entre as mãos simboliza um elo entre eles:
A BONECA – Dá-me a tua mão!... que eu saiba da tua mão... Que as
tuas mãos não sejam as minhas!... que sejam outras mãos como as
minhas... As minhas mãos não me bastam... faltam-me outras mãos
como as minhas!
O BONECO – É assim que bate o coração...
A BONECA – Dá-me a tua mão!.. que os nossos corações sejam a
repetição um do outro como é justo!... que as tuas mãos me tragam
festas, me tragam paz... paz que se ganha!... [...] (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p.437 -8)
31
O mar simboliza o lugar que os dois habitam, pois, se imaginarmos
cada boneco como um rio diferente desaguando no mar, podemos dizer que
eles se transformaram num único líquido:
A BONECA – [...] Dá-me as tuas palavras!... essas que tu guardas...
essas palavras que não morrem, nem se matam!... essas que
lembram o mar... o mar que nunca pára... o mar que não se cansa... o
mar que insiste... o mar que não se gasta. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p.438).
Nesse momento do diálogo, as forças opostas que se confrontavam
no começo da peça (coragem e ousadia versus medo e timidez), estão em
harmonia. Trata-se da unidade primordial almadiana.
Ao propor que a unidade seja possível no âmbito da fantasia,
Almada Negreiros revela que concebe este plano com vantagem sobre o plano
da realidade, ironizando e contestando a razão: “BONECO – As pessoas é que
se enganam! Nós os bonecos, nunca nos enganamos!!!....” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 430).
Assim, se em O público em cena Almada Negreiros serve-se da
figura apagada e excluída do Público para protestar cont ra a transformação da
arte em comércio, em Antes de começar ele se serve de duas marionetes de
teatro, figuras mecânicas e controladas, para revelar que a unidade só é
possível no plano da fantasia.
2.5 A REPETIÇÃO E A FRAGMENTAÇÃO
Na leitura que fazemos da obra dramática de Almada Negreiros,
mais especificamente das duas peças que nos propomos analisar, observamos
duas características fundamentais: a repetição e a fragmentação. A primeira
relaciona-se à descrição de uma sistemática e, muitas vezes, exaustiva busca
de unidade; a segunda é a conseqüência da angústia provocada pela ausência
de unidade e revela-se, paradoxalmente, na expressão formal dessa busca de
unidade.
32
A ação de Deseja-se mulher envolve um homem que busca a
mulher que o faria sentir-se completo. Em sua saga, ele relaciona-se com duas
mulheres, e com nenhuma delas atinge a unidade desejada. S.O.S mostra a
luta de um homem para conseguir um emprego. A s ua tentativa é fracassada
uma vez que não consegue nem mesmo terminar sua entrevista devido a uma
descontrolada e infindável troca de diretores do jornal onde estava sendo
entrevistado.
Descritos em itinerários distintos, os enredos das peças são
repetitivos na medida em que desenvolvem o mesmo mote: a insatisfação
humana, a necessidade de ser inteiro, a incessante e exaustiva busca da
plenitude pessoal e social. Como se trata de buscas intermináveis, estas peças
não têm um final convencional – pode-se dizer que o espetáculo simplesmente
é interrompido. Em S.O.S. isto é bem explícito na fala do Árbitro quando diz
que a cortina já pode descer uma vez que a cena da troca de diretores do
jornal não terminará:
O ÁRBITRO (Avançando até o mais perto que possa do público.) –
Respeitável público. Minhas senhoras e meus senhores. Este quadro
ainda não acabou. Fui eu quem mandou parar. Porque esta cena
nunca mais tem fim. [...] Sinto muitíssimo ter que dar esta
desagradável notícia a V. Exas., mas, como árbitro, não posso deixar
de participar-lhes que é inteiramente impossível seguir com esta peça
para diante. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 545)
Em Deseja-se mulher, a ausência de um final bem marcado não é
assim tão explícita. A foto da família, que precede a queda do pano,
representaria a unidade procurada.
Na foto da “família feliz”, Almada Negreiros põe, no lugar de uma
mulher, uma sereia, e no lugar de um homem comum, um marinheiro. A sereia
atrai, com seu canto sedutor, os homens para o fundo do mar e, portanto, à
morte. A sereia – figura folclórica e irreal – representaria a utópica unidade. O
marinheiro, aquele que está sempre viajando, representaria a necessidade
humana de desbravar novos territórios. A foto, além de ser construída por
figuras simbólicas, é uma representação estática da união entre o masculino e
o feminino. A foto é o retrato de uma situação fixa, igual, repetida. A foto revela,
em última análise, uma visão irônica da busca da unidade perdida.
33
Os finais dessas peças são encenados por personagens alheias ao
quadro fixo de personagens e identificadas pela função que sua figura
representa: o árbitro tem a função de mediar uma disputa; a sereia é a figura
sedutora e irreal que leva o homem à morte; o marinheiro é o explorador dos
mares. Trata-se de personagens “de fora” que “invadem” a cena para
interromper os intermináveis acontecimentos.
A repetição indica formalmente, portanto, uma ação que progride,
mas não avança. Em Deseja-se mulher, o protagonista vive a buscar; em
S.O.S., a esperar.
A angustiante busca de unidade, que leva o indivíduo a andar em
círculos, faz com ele se sinta fragmentado. Repetição e fragmentação são,
deste ponto de vista, inseparáveis, visto que a existência de uma implica a
existência da outra.
Mais do que um fenômeno psíquico, a fragmentação revela-se nas
peças como uma modalidade estética. As cenas, principalmente em Deseja-se
mulher, nos parecem uma cadeia aleatória de imagens sem qualquer
possibilidade de serem agrupadas num sistema coerente em que se é possí vel
identificar um começo, um meio e um fim. Não se deve confundir, porém, a
ausência de nexo com ausência de sentido. As imagens aleatórias são
metáforas da fragmentação. Imagens que se ligam por serem recortes da
mesma realidade que, por sua vez, é fragmentada. A fragmentação denota,
desse modo, a angústia do ser humano e a maneira como esta angústia se
expressa. É, ainda, o fiel registro de como os fatos (a)parecem aos olhos do
artista: flashes rápidos e simultâneos da vida cotidiana.
A simultaneidade, o dinamismo e a velocidade, que caracterizam o
estilo fragmentado das peças em questão, são algumas das características das
Vanguardas – em especial do Futurismo, movimento artístico de que Almada
Negreiros foi um dos principais representantes em Portugal.
Foi, com efeito, nas propostas do Futurismo de Marinetti que Almada
encontrou um campo fértil para provocar a sociedade da época, como ele
mesmo declarou na sua “Primeira Conferência Futurista” (1997: 649):
34
Consegui, inspirado na revelação de Marinetti e apoiado no genial
optimismo da minha juventude, transpor essa bitola de insipidez em
que se gasta Lisboa inteira, e atingir ante a curiosidade da platéia a
expressão da intensidade da vida moderna, sem dúvida de todas as
revelações a que é mais distante de Portugal.
Embora partidária das idéias de Marinetti, a postura futurista de
Almada Negreiros difere daquela do artista italiano na medida em que se revela
mais como uma rejeição do saudosismo português do que como adepta de
uma política nacionalista, como explica Ernesto Manuel de Melo e Castro
(1980, p. 43) ao diferenciar o futurismo português do italiano:
Propósito que revela muito mais a rejeição do obsoletismo da
vida portuguesa do momento do que um programa político
nacionalista. Programa que os Futuristas Portugueses de fato não
tiveram (contrariamente aos Futuristas Italianos), sendo necessário
distinguir entre uma “política-nacionalista-fascista” e uma profunda
preocupação com a qualidade de ser P ortuguês.
As tendências futuristas de Almada Negreiros fazem-se notáveis
nas suas propostas de uma revolução artística. Trata-se de clamar por uma
arte que retrate “[...] o século em que vive a terra” (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 647), que se inspire nos feitos modernos e não nas glórias do
passado:
Porque os poetas portugueses só cantam a tradição histórica e não a
sabem distinguir da tradição-pátria. Isto é: os poetas portugueses têm
a inspiração na história e são portanto absolutamente insensíveis às
expressões do heroísmo moderno. Donde resulta toda a impotência
pra criação do novo sentido de pátria.
[...]
Portugal a dormir desde Camões ainda não sabe o novo significado
das palavras. Exemplo: pátria hoje em dia quer dizer o equilíbrio dos
interesses comerciais, industriais e artísticos. Em Portugal este
equilíbrio não existe porque o comércio, a indústria e a arte não só
não se relacionam como até se isolam por completo receosos da
desordem dos governos. A palavra aventura perdeu todo o seu
sentido romântico, e ganhou em valor efectivo. Aventura hoje em dia,
quer dizer: O Mérito de tentativa industrial, comercial e artística.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 651 e 653)
O ancoramento no passado deixa Portugal atrasado em relação aos
outros países da Europa. Considerando essa “desarmonia” portuguesa,
35
detectada por Almada Negreiros em relação ao resto da Europa, podemos
36
3 A TRAGÉDIA DO MUNDO NATURAL EM DESEJA-SE MULHER
Cada um tem o destino universal de fazer
consigo mesmo o modelo de mais uma
estátua humana. (Almada Negreiros, “Nome
de Guerra”)
Escrita em 1928 e publicada em 1959 pela revista Tempo Presente
nº. 1 e 3, Deseja-se mulher descreve em seus três atos e sete quadros a
trajetória de uma personagem masculina em busca da sua integralização, que,
nesta peça, deveria ser alcançada no mundo natural, ou seja, entre o homem e
a mulher. Essa personagem é identificada de diversas formas: no primeiro
quadro é o Freguês e o Noivo, nos demais – com exceção do sexto em que ele
é chamado de Protagonista – é Ele.
Na busca da outra parte integrante da fórmula da unidade (1+1=1), o
protagonista se relaciona com duas mulheres que também são identificadas de
diversas maneiras ao longo da peça. Contudo, na maioria das vezes, a primeira
é Vampa; e a segunda, Ela.
É importante destacar que a generalização na identificação das
personagens confere um valor universal ao assunto: não importa qual é o
homem que procura a unidade, uma vez que todos compartilham da mesma
ânsia.
A única personagem nomeada da peça é Vampa. Entretanto, este
não é o seu nome de fato. Trata-se de uma alcunha pela qual ela é conhecida
no trabalho:O CRIADO – A Vampa. Chamam-lhe Vampa. É a mascote de nós
todos” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 497).
Além da multiplicidade de identidades, há em Deseja-se mulher
uma multiplicidade cênica. Esta, carregada de símbolos muito sugestivos, dá
forma à repetitiva busca do protagonista. As rápidas e diversas mudanças do
cenário, associadas às mudanças de comportamento das personagens,
contribuem com a não linearidade dos acontecimentos. Esta característica
proporciona certa “independência” a cada quadro, o que, muitas vezes, causa
algumas confusões. Um exemplo disso está na identificação das personage ns:
em alguns quadros, Vampa e a outra mulher são identificadas como Ela e, por
37
isso, num primeiro momento, é fácil confundir as figuras femininas achando que
se trata da mesma pessoa
6
. Devido a essa aparente independência – que
denota o que chamamos no primeiro capítulo de metáfora da fragmentação –
dos quadros de Deseja-se mulher, optamos, por uma questão de organização,
por fazer a análise de cada quadro separadamente, destacando sempre o jogo
de impossibilidades e contradições do qual deriva a tragédia da unidade
almadiana.
3.1 PRIMEIRO QUADRO
No primeiro quadro, a ação se passa numa luxuosa Boîte de nuit:
(Boîte de nuit. Pequenas mesas redondas com os baldes do
gelo. Um grupo de girls o mais despidas possível dança um número
de variedades avançando entre as mesas. / Um criado de cabelo
branco empastado de cosmético, farda vermelha e galões de ouro,
atende o freguês que está só a uma mesa.) (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 497)
Os termos estrangeiros boîte de nuit e girls sugerem, logo na
primeira rubrica, a universalidade do tema explorado: a busca da unidade. Vale
lembrar que o original da peça também não foi escrito em português, mas sim
em castelhano – fato que reforça a hipótese de globalização da questão
7
.
É neste lugar sofisticado e mundano que Vampa, a primeira mulher
com quem o protagonista se relaciona na peça, trabalha. Vampa é a
personagem com o destino mais trágico da peça, pois, depois de v iver uma
relação frustrada com o protagonista, ela se vê obrigada a caminhar pela
direção proibida.
A sina de Vampa parece estar estampada nesta primeira cena.
Afinal, a atmosfera que a envolve é artificial, assim como o seu
comportamento, que muda de freguês para freguês: “A Vampa que fala em
público não é a mesma com um particular. O seu tique pessoal, quando fala a
6
Vale ressaltar que tal confusão, provavelmente, não ocorreria na encenação d a peça, a não
ser que o diretor tivesse a intenção de confundir o seu espectador.
7
Os estrangeirismos voltam a aparecer no sexto quadro (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
516).
38
uma só pessoa, é confidencial, amaneirado à fadista, dando a cada palavra
importância que por vezes não tem” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 498). O
seu nome também muda de acordo com o cliente, por isso, quando ela
conhece o protagonista, e este lhe pergunta o seu nome, ela diz ter um para
cada pessoa:
FREGUÊS – O teu nome?
VAMPA – Já o ouviste.
FREGUÊS – Esse, não. Outro.
VAMPA – Tenho vários nomes.
FREGUÊS – Basta-me um.
VAMPA – O meu nome p’ra ti hás de pô-lo tu. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p.498)
O protagonista dá a Vampa o nome de Fata. Quando ela pergunta
de onde vem este nome ele diz que o inventou especialmente para ela. É
possível nesta cena, verificar um laivo de ciúmes por parte dela:
VAMPA – Não há outra mulher com esse nome?
FREGUÊS – Impossível: Inventei-o agora mesmo pr’a ti.
VAMPA – Juras?
FREGUÊS – Juro! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 499)
O ciúme de Vampa fica ainda mais explícito quando ela “ameaça”
matar o Protagonista caso descubra a existência de uma outra mulher com
esse nome:
VAMPA – Então ficas sabendo: se eu ouvir outra com esse nome...
FREGUÊS – Diz, diz.
VAMPA (Com a mão em pistola contra ele.) – Mato-te. (Dá um estalo
com os dedos.)
FREGUÊS – Sim, sim! Gosto, gosto! Quero, quero! (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 499)
A declaração de Vampa parece deixar o Protagonista excitado, o
que é claro na repetição das mesmas palavras várias vezes com certo
entusiasmo.
39
O fato de o Protagonista ter inventado um nome especialmente para
Vampa é o suficiente para que ela anuncie a todos a sua própria “morte” até
segunda ordem; agora ela é apenas Fata: “VAMPA (Inesperada e
repentinamente, ela sobe para a cadeira e depois para a mesa abrindo muito
os braços a pedir silêncio.) – Atenção! Muita atenção! Até nova ordem a Vampa
morreu.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.499).
No primeiro quadro de uma outra peça de Almada Negreiros,
Protagonistas
8
, temos a encenação de um encontro parecidíssimo com o de
Deseja-se mulher. Na peça, o protagonista está sentado em uma mesa cheia
de réguas, compassos, esquadros e livros, de frente para uma janela. Ele está
entretido com terminar a construção de uma casinha de brinquedo para os
filhos, quando resolve ouvir um disco no gramofone. Ao som de um jazz, com o
que atraídas pela música, aparecem dançando seis garotas numeradas e
pouco vestidas. Ao terminar a música, elas ficam em fila para que o
Protagonista escolha uma delas. Das seis, ele escolhe a sexta garota e,
quando lhe pergunta qual é o seu nome, ela lhe responde como a Vampa de
Deseja-se mulher:
LA 6ª GIRL – Yo tengo varios nombres. Dipiende de quien me lhama.
El PROTAGONISTA – Pero dime uno.
LA 6ª GIRL – Mi nombre para tí tienes que inventarlo tú.
El PROTAGONISTA – Ah bueno. (La mira deternidamente y después
entusiamase por haberle inventado el nombre) Mitú!
LA 6ª GIRL – Mitú?
El PROTAGONISTA – Sí. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 550)
Para esse nome, Mitú, ao contrário de Fata, o Protagonista dá uma
explicação: Mi refere-se a ele, e , a ela:
LA 6ª GIRL – (Saborea mentalmente el sonido de la palabra.) Me
gusta. No lo he oído nunca. Y lo que quiere decir Mitú?
El PROTAGONISTA – Muy sencillo. (Explica indicando-se primero a
sí:) Mí... (Y después a ella.)... Mí-tú. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
551)
8
Protagonista é uma peça de 1930 escrita em espanhol que, de tão semelhante a Deseja-se
mulher, principalmente, e a S.O.S, nos parece uma n ova versão das peças.
40
Mitú é a junção de dois seres em um único nome. Em Deseja-se
mulher, o Protagonista não dá uma explicação plausível para o nome Fata, por
ele inventado. Mas é possível fazer algumas sugestões sobre o seu possível
significado: Fata pode ser proveniente de fatal, o que significaria que foi uma
atração fatal que o Protagonista sentiu por Vampa quando a viu pela primeira
vez:
[...] Ao passar pela mesa onde o criado atende o freguês, ela senta-
se presa por um braço. É o freguês que a segura pelo pulso. Passiva,
encara-o longamente, inclinando por fim a cabeça a um lado e outro,
olhando-o sempre a buscar entre recordações.)
VAMPA – Nunca te vi.
FREGUÊS – Nem eu.
VAMPA – Sabias que eu existia?
FREGUÊS – Não.
VAMPA – E agarraste-me logo d’entrada.
FREGUÊS – Logo.
VAMPA – E eu deixo-me agarrar.
FREGUÊS – Fica na minha mesa.
VAMPA – Queres que eu fique contigo?
FREGUÊS – Quero, quero! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 498)
A atitude do Protagonista, que segura Vampa pelo br aço, e as suas
falas, limitadas a responder ao que ela lhe pergunta, denotam o seu
encantamento por ela.
Neste primeiro quadro, Vampa desperta no protagonista, de fato,
uma atração fatal. Contudo, no quadro seguinte – quando o casal se separa – a
situação parece se inverter, pois quem parece ter sofrido a atração fatal
verdadeiramente é a própria Vampa, uma vez que é ela quem é abandonada e
que se revela incapaz de superar a separação. A atração fatal que Vampa
provoca no Protagonista não é, portanto, uma atração verdadeira, é uma
atração momentânea, artificial, assim como a atmosfera que a envolve.
A operação que deixou Vampa estéril também é tratada de uma
maneira que reforça a sua artificialidade: “O CRIADO – [...] Fizeram-lhe uma
operação. Correu tudo muito bem. Deixou de ser mulher. Dizem que deixou de
ser mulher. Tiraram-lhe tudo, tudo, tudo. Vazia como uma casca d’ostra.”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 497). A fala do criado contrasta com a
41
descrição inicial de Vampa: “ Mas o grande êxito é para uma mulher
estilizadíssima em grandes decotes no vestido de prata reluzente.” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 497). O contraste entre a sua bela aparência e a sua
essência “vazia” evidencia a artificialidade da personagem que, por sua vez,
também se refere à sua operação cirúrgica de modo pejorativo: “VAMPA – [...]
Eh gajada! Obrigado. Obrigado por tudo. Ainda não foi desta. Tiraram-me todos
os parafusos a mais. Vamos lá ver como se aguenta a caranguejola”.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 497).
Consciente de que é só aparência, Vampa faz pouco da sua
esterilidade e anuncia-se disponív el aos seus habituais clientes:
[...] Recomeço o serviço. Aqui me têm. Estou mais levezinha sem
contrapesos. Vamos levar isto com genica até ao fim. Tive alta e
venho mais baixa. (Faz com os dedos gestos de dinheiro.) Não dá
nem p’ra enterro de terceira classe. Obrigado, gajada! Cá estamos
p’ràs curvas Fixe! Olé, olé! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 497)
O preconceito em relação à esterilidade de Vampa é evidente. Agor a
que já não pode mais gerar filhos, ela simplesmente “deixou de ser mulher”, é
tão “vazia como uma casca d’ostra” e, por isso, custa menos
9
.
A própria alcunha, Vampa, evoca artificialidade. Isso se faz
pertinente se pensarmos que Vampa é derivado de vampiro que, por sua vez, é
uma figura lendária, irreal e ainda dúbia. A imagem do vampiro associa-se à
beleza, ao mistério, ao charme, à elegância e ao erotismo. Porém, por traz
dessa imagem sedutora há uma criatura horripilante que, além de sugerir o
prazer, sugere destruição e morte:
Na sua prática, o Vampiro situa-se no rol das criaturas cuja ação o
nosso desejo rejeita. Se, para nós, ele caminha em pleno domínio do
negativo, é preciso considerar que essa negatividade se revela, na
9
Neste trecho fica explícito um tom misógino, pois o papel da mulher seria apenas o de ter
filhos, cumprir com a sua tarefa de continuar a raça humana. A misoginia também fica clara na
questão da unidade; afinal, a busca não é da mulher e sim do homem. Ao longo da peça,
veremos que para ele é dada uma nova oportunidade com uma outra mulher; já o mesmo não
acontece com Vampa. Todavia, sabemos que a peça, assim como quase toda a produção
artística de Almada Negreiros, é crítica em relação ao comportamento anacrônico da sociedade
da época. Sendo assim, acreditamos que a misoginia explícita em Deseja-se mulher é uma
ironia ao pensamento obsoleto em relação ao papel da mulher na sociedade: uma reprodutora
que deve ser submissa aos homens e estar sempre dispo sta a servi-los.
42
atuação vampiresca, como o prazer. Instrumento erótico, embora de
um erotismo não genital, o Vampiro reúne em si as pulsões sexuais
que são as autênticas pulsões de vida, e, ainda, as pulsões de
destruição e morte. (WALDMAN, 1989, p. 5-6)
A atmosfera que envolve o vampiro é, pois, composta de desejos
conflitantes: vida versus morte; Eros versus Thanatos; fascinante versus
terrível.
10
A característica vampírica de Vampa neste quadro parece suscitar
um outro contraste: antes da operação que a deixou estéril, Vampa
representava apenas a vampira que seduz os homens e suga o dinheiro deles;
depois da operação, o vampirismo denota, além da sua aparênc ia sedutora, a
sua impossibilidade de reprodução, o que, na peça, a desvaloriz a: “VAMPA –
[...] Tive alta e venho mais baixa. (Faz com os dedos gestos de dinheiro.)”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p.497).
O artificialismo da cena estende-se também ao diálogo entre Vampa
e o Freguês. A conversa, assim como o cenário, também indica símbolos
sugestivos como, por exemplo, a corda imaginária que o Freguês oferece a ela:
FREGUÊS – Sim. Ouve. Tenho um segredo p’ra te contar: tenho uma
corda.
VAMPA – Uma corda?
FREGUÊS – Uma corda feita por mim.
VAMPA – Feita por ti?
FREGUÊS – Fi-la eu p’ra ti.
VAMPA – P’ra mim?
FREGUÊS – Eu passo a corda p’la tua cintura.
VAMPA – P’la minha cintura?
FREGUÊS – Dou um nó.
VAMPA – Um nó.
FREGUÊS – E tu ficas minha.
10
É importante ressaltar que a figura do vampiro, no campo social, está associada ao
sanguessuga, ou seja, aquele que explora o outro. Para nós, a imagem do “parasita” pode ser
associada a Vampa antes da cirurgia e do seu relacionamento com o Protagonista. Tal
hipótese faz-se pertinente em alguns momentos como, por exemplo, no segundo quadro
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 503 e 504), quando uma ex-companheira de trabalho de
Vampa vai visitá-la, tem-se esta conotação de vampiro explorador do outro. Trata-se do
momento em que a Mulher sugere que Vampa deveria retornar ao trabalho, pois um banqueiro
muito rico daria tudo o que tem para ficar com ela. Vampa, entretanto, renuncia ao seu caráter
de sanguessuga ao asseverar à amiga que aquela Vampa morreu. Esta afirmação nos leva a
desconsiderar em nossa análise a conotação que a figura do vampiro recebe no campo social
à personagem Vampa.
43
VAMPA – Tua?
FREGUÊS – Sim. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.499)
A corda simboliza um elo entre as duas personagens. Com o laço,
Vampa passa a ser do Freguês:
FREGUÊS – E agora... vais ver, vais ver. (O mesmo jogo de ir buscar
o cordel nas mãos dela.) Passo aqui p’la tua cintura... (Jogo de
passar à roda do corpo dela.) Dou um nó... (jogo de dar nó.) E pronto!
Já está.
VAMPA – Sou tua.
FREGUÊS – És minha. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 500)
Entretanto, em nenhum momento ele diz que passa a ser dela. Este
fato é muito importante porque, quando o nó é “desfeito”, no quadro seguinte,
apenas a figura feminina passa a habitar o nada, enquanto o protagonista
continua a sua busca da mulher que o completaria:
VAMPA – E se eu desatar o nó?
FREGUÊS – Se o desatares não és mi nha.
VAMPA – (com a mão em pistola contra ele.) – E não me matas?
FREGUÊS – Não é preciso. É muito pior do que matar-te.
VAMPA – Pior do que matar?
FREGUÊS – Sim.
VAMPA – O que será?
FREGUÊS – É nem vida nem morte.
VAMPA – Nem vida nem morte?
FREGUÊS – É pior que a morte. Estar vivo e não ter vida. Viver em
branco. Nada. Absolutamente nada. Nem a morte. O que há mais
neste mundo: nada! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p . 499-500)
Desatar o nó é o mesmo que caminhar pela direção proibida e
conviver com a mais amarga solidão. Neste rumo, o ser humano não vive;
divaga, porque no mundo não há mais nada.
Nos diálogos transcritos acima, são notáveis a fragmentação e a
repetição das falas das personagens. Esta característica confere à cena uma
dinâmica mecânica, como se as personagens fossem bonecos. O automatismo
44
da cena ganha maior intensidade com a brusca mudança de cenário que
ocorre assim que Vampa passa a ser do freguês:
(Ficam a olhar um para o outro. As suas caras vão-se aproximando
uma da outra até ficarem com as pontas dos narizes encostadas. /
Vem o criado com o menu. Faz correr um biombo que os encobre do
público. O biombo vai-se tornando transparente e através fica uma
única luz em cena e na montra da loja de modas com dois manequins
de comércio em traje de bodas. O seu único movimento consiste em
voltar-se cada um levemente enquanto fala para o outro. Ouve-se
uma caixa de música.) (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 500)
Nesta cena simultânea, que se sobrepõe à outra, atinge o seu
clímax o caráter mecanicista que as personagens, agora manequins,
assumem. Por trás do biombo, as particularidades na aparência das pessoas,
que as diferem uma da outra, não são notadas, nem importam. O máximo que
se consegue ver na sombra através do biombo é a forma das pessoas que, no
caso, se mexem como marionetes.
A caixa de música que se ouve acentua ainda mais os gestos
automáticos das personagens/manequins, pois podemos pensar o casal como
aqueles noivinhos em miniatura fixados sobre porta-jóias musicais. Talvez a
aparência de bonecos, que as personagens passam a ter, deva-se ao fato de
os noivos serem sempre muito parecidos, desde a indumentária até as juras de
amor eterno:
NOIVO – Até que enfim chegou o nosso dia!
NOIVA – O dia que sempre esperamos!
NOIVO – Já hoje ficamos em nossa casa!
NOIVA – A nossa querida casinha!
NOIVA –De manhã dá-lhe o sol de lado. Do outro lado dá-lhe o sol de
tarde!
NOIVA –É nosso o sol todo o dia.
NOIVO –Todo o dia e toda a noite! Todos os dias e todas as noites!
P’ra sempre!
NOIVA – P’ra sempre! São as palavras de que mais gosto nas nossas
bocas! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 500-1)
Depois da introdução do biombo em cena, as personagens passam
a ser identificadas como Noivo e Noiva. Essa “mudança”, ou melhor,
45
sobreposição de identidades, dá um caráter genérico ao assunto, uma vez que
não importa quem são os noivos, já que todos são muito parecidos. Essa cena
retrata a mesmice da vida cotidiana: as pessoas até são outras, mas o
comportamento não. O casamento seria, portanto, o símbolo da tentativa do
casal para consumar a integração sonhada. Essa constatação fica bem clara
no uso dos pronomes e dos verbos na pr imeira pessoa do plural: há o reforço
do conjunto, da unidade.
Como se nota, há neste quadro mais abertamente uma valorização
do externo, do material e do artificial que apontam para o problema do
indivíduo que, ao prender-se no plano da aparência, ignora o plano da
essência.
3.2 SEGUNDO QUADRO
As personagens do 2º quadro são as mesmas do anterior, mas
agora elas são identificadas de forma diferente: Ela e Ele – outra vez
identificações muito abrangentes. Ambos representam um casal como qualquer
outro que vive uma crise no casamento.
Ao contrário do quadro anterior, o cenário é muito simples. A
animada e sofisticada Boîte de nuit cedeu lugar a uma “casita isolada no
campo” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 501). A primeira impressão desta
cena é a de representação do desejo dos apaixonados: uma casinha simples
onde eles poderiam viver felizes. Entretanto, subjacente a esta, nota-se a
solidão sugerida pela descrição apenas externa do ambiente: “Mesa e duas
cadeiras diante da casa. Árvore ao lado” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
501).
Se pensarmos a casa como um símbolo da relação amorosa,
podemos sugerir que o fato de a sua descrição ser somente externa, visto que
não temos indícios nenhuns do que possa haver dentro da casa, sugere um
interior vazio. Desta maneira, a atmosfera deste quadro, apesar de ser oposta
à do antecedente, implica o mesmo artificialismo.
46
A solidão é reforçada pelo comportamento das personagens depois
do fracasso do relacionamento. A sedutora Vampa, depois de ouvir por s eis
meses o companheiro sonhando alto com a fórmula da unidade (1 + 1= 1),
cedeu lugar a uma Ela deprimida que se entregou a alguém que não
corresponde aos seus sentimentos: “ELA – Se consinto, não me querem. Se
não consinto, querem-me. Consenti. Dei-me. Estou dada. Dada a quem não me
recebe. P’ra onde querem que eu vá fugindo de mim sozinha?” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 502). É como se o desejo dela anulasse o sentimento
alheio, isto é, basta que ela queira amar para não ser amada. A atitude das
personagens, ao abraçarem-se, demonstra claramente que Ele já não está
mais ali ao lado dela: “Ela faz-se abraçar mais do que ele a abraça. Ele vê pela
primeira vez escrito na parede 1+1=1. Ela ajuda com as mãos para os braços
dele a abraçarem mais forte.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 502). Vampa,
no fundo, está destinada à sua tragédia de amar sem ser correspondida: uma
solidão emaranhada em sua vida. E agora, como “profetizou” o protagonista no
primeiro quadro quando lhe ofereceu a corda, a sua vida é pior do que a morte,
porque é uma vida vazia: “VOZ – Diz lá: aconteceu alguma coisa? ELA – Nada.
O que há mais neste mundo: nada.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 501).
Com o fim do relacionamento, Vampa torna-se sonâmbula. A mulher
fadada a habitar o “nada” – é o que ela mesma diz à mulher que vai visitá-la em
sua casa com a esperança de levá-la de volta ao seu antigo trabalho:
“MULHER – [...] Que queres que eu lhe diga? ELA – Diz a todos que a Vampa
morreu. Para sempre.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 504). Se para cada
um ela tinha um nome, aqui ela torna-se ninguém: “MULHER: Também tu?
Enamorada?! Pobre Vampa, o que fizeram de ti. Juro-te que esta não esperava
eu. A Vampa! A mascote de nós todas.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 504).
Segundo a Mulher, o amor liga-se, afinal, à miséria e à solidão.
A materialidade da Mulher contrasta com a indiferença de Vampa
que, a partir deste momento, deixa de ser a sedutora vampírica, que usava o
seu charme para tirar dinheiro dos homens, para viver a tragédia da morto-vivo.
Afinal, além de o vampiro ser uma criatura dúbia – à medida que representa
prazer e morte – e artificial – à medida que é uma figura mítica , ele apresenta
47
um aspecto trágico que deriva do fato de não ser morto, nem vivo, de ter uma
existência de “almada penada”, como explica Berta Waldman (1989, p. 6-7):
Enquanto figura mítica, pode-se enxergar, entre outras, uma
face trágica no Vampiro. Sem repouso nem satisfação, é
impulsionado a prosseguir perpetuamente por um caminho que não
escolheu. Porque morto-vivo, nem verdadeiramente morto nem
realmente vivo, o objeto de seu desejo é igualmente ambíguo: querer
viver, querer morrer. Para sobreviver, tem que beber o sangue dos
vivos, mas a opção de não sobreviver lhe é vedada
É justamente essa face trágica do vampiro que se faz mais visível
em Vampa: abandonada pelo Protagonista, ela vive a tragédia “vampiresca” de
perambular sem destino pela vida. Há, portanto, nesta peça uma inversão: o
vampiro, criatura que faz vítimas e causa medo, é a vítima.
Vampa seria uma representante dos marginalizados d o meio social
burguês. A glória só lhe era possível no ambiente mundano e artificial da boîte
de nuit, onde os freqüentadores buscavam pur amente divertimento e prazer.
Fora dele, na sociedade burguesa, a mulher, além de c uidar e ser submissa ao
marido, deve lhe dar filhos. Este segundo papel da mulher, Vampa não pode
desempenhar. A sua relação com o Protagonista, como não ultrapassa os
limites do convencional, parece de antemão condenada pela sua esterilidad e.
Aqui o vampiro, aquele que assombra o mundo dos vivos, não é
morto por uma estaca no coração, como reza a lenda; nesta peça a
possibilidade da morte verdadeira lhe é negada, a morte de Va mpa é a morte
por exclusão, é, de fato, a morte em vida.
3.3 TERCEIRO QUADRO
O protagonista continua na sua busca e acaba encontrando a
segunda mulher com quem se relaciona. O espaço aqui continua oposto àquele
mundano e luxuoso da Boîte de nuit. Trata-se de um ambiente rústico e isolado
no campo: “As quatro paredes mestras de uma casa ao centro da cena. O seu
material batido pelo tempo. Nasceu uma árvore no meio da edificação. A árvore
é exuberante e frondosa.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 505). Pensando no
48
“pedaço” de edificação e na árvore, vemos um contraste entre a simbologia
destes elementos: as quatro paredes mestras apontam para uma construção
inacabada que não deu certo, representando mais a instabilidade do que a
incompletude física do lugar; a árvore, também símbolo da fer tilidade, exprime
a esperança de que agora se terá um relacionamento que dará certo.
Analisando um pouco mais demoradamente, é possível ver a
invasão da árvore, embora símbolo de vida e esperança, como o elemento que
potencializa o aspecto trágico do quadro. Isto se deve ao fato de que, para
terminar a casa, é necessário retirar a árvore e, conseqüentemente, a vida. A
árvore impede a concretização da casa e esta implica a morte da primeira.
Assim, ao invés de simbolizar a possibilidade do suce sso do relacionamento, a
árvore denota justamente o contrário, a impossibilidade do sucesso.
O que se tem neste quadro, embora retratado em um ambiente
oposto ao primeiro, é a repetição da mesma história: o princípio de um
envolvimento afetivo.
No primeiro quadro, o destino trágico de Vampa podia ser previsto
na atmosfera artificial que a envolvia; neste, o destino trágico da nova mulher
está estampado na estaticidade dos elementos que a cercam. Esses indícios
estão presentes na invasão da árvore, na construção inacabada e no diálogo
entre Ela e o Protagonista.
O diálogo dos dois é bastante enigmático; eles falam do lugar em
que estão, mas é como se o lugar não existisse:
Ele – Bom dia.
Ela – (Bastante depois) – Bom dia. (Sorri-se.)
Ele – Faz-me o favor. Sabes dizer-me o nome deste sítio?
Ela – Aqui não é sítio nenhum.
Ele – É a primeira vez que estou em sí tio nenhum.
Ela – Para onde é que o senhor deseja ir?
Ele – Para sítio nenhum. Vou de passeio. Ao acaso. Gosto de saber
os nomes por onde ando.
Ela – Aqui não tem nenhum nome. (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p.505)
O protagonista caminhava ao acaso, o lugar em que encontra a
mulher não tem nome. A parte da edificação onde ele encontra a segunda
49
mulher também não é uma casa, é algo que ficou por fazer. Todos estes
elementos conduzem a um impasse: o homem está sempre em busca da sua
plena realização – que, neste caso especificamente, se daria junto com a
mulher –; no seu percurso, ele tem a primeira decepção e passa a caminhar ao
acaso para, com o intuito de encontrar-se, até que chega, finalmente, a um
lugar que não é propriamente uma casa: o lugar não tem nome, é identificado
simplesmente como sítio nenhum. Trata-se de um conjunto de elementos
incertos que, de certa forma, soam como um presságio de que a sua tentativa
outra vez está fadada ao fracasso. A soma destes elementos configura, por fim,
a incerteza da vida e dos relacionamentos.
O protagonista conclui que a não concretização da casa deve-se ao
veto da fatalidade:
ELA – Não foi. Não foi uma casa.
ELE – O veto da fatalidade.
ELA – Sim. Exactamente. Ainda não tinham encontrado as palavras:
veto da fatalidade.
ELE – Onde seria a casa nasceu a árvore.
ELA – Bela árvore!
ELE – Uma bela árvore e o fantasma do que fico u por fazer.
ELA – Sim. Exactamente. E nunca mais se faz. Nunca mais. Para
sempre. Outras se farão. Mas não esta: de alguém determinado. Já
lhe disse que esteve p’ra ser aqui um sítio qualquer que teria um
nome.
ELE – E ficou sítio nenhum. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 506)
A impressão que temos é a de que a árvore bela e frondosa, embora
represente o natural, a esperança e a vida, impõe-se, nesta situação, como a
mão que impede algo de se concretizar. Em cada palavra deste diálogo é
possível entender a árvore como a mão “castradora” do convencionalismo, e a
edificação inacabada como um projeto vetado por ela.
O Protagonista, primeiramente, chama as ruínas de uma casa: “Ele
– (Olhando a cena) – Uma casa. Não se faz uma casa em sítio nenhum.”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 505). A mulher o corrige dizendo que aquilo
não chegou a ser uma casa: “Ela – Isto esteve para ser um sítio com um nome.
O senhor viu aqui uma casa. Chama isto uma casa?” (ALMADA NEGREIROS,
50
1997, p. 505). Juntos, eles concluem que os “pedaços” de construção não
chegaram a ser nada: “Ele – Os restos de uma casa. Ela – Nem isso. Também
não. Não chegou a ser uma casa. Ficou a meio. Ele – Não passou das
paredes. Ela – Ficou parada à nascença. Para sempre”. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 505).
Primeiramente, o protagonista assevera que a construção não é
recente: “Ele – Não parece obra recente.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
505). Em seguida, Ela pondera – “Nem antiga. O que é velho parece antigo.
Mas o antigo não envelhece.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 505) – e
conclui: “Bastante modernas.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 506). É
possível verificar neste trecho uma rápida reflexão sobre o velho, o antigo e o
moderno. O antigo é aquilo que carrega a sabedoria dos anos. O velho, algo
que já pode ser descartado. O moderno é característica daquilo que está além
do convencional. Ora, as ruínas, que o Protagonista assevera não serem
recentes, somadas à consideração d’Ela de que o antigo não envelhece, nos
levam a considerar a obra inacabada como símbolo de um projeto moderno,
que se destaca do comum e que, precisamente por isso, é vetado, logo à
nascença, pela dura, injusta e castradora mão do convencionalismo,
representado aqui pela figura da árvore.
A impossibilidade de criação fez daquele lugar sítio nenhum: “ELE –
O mundo imenso em sítio nenhum: o inferno. Nada. Absolutamente nada. O
que há mais neste Mundo: nada. Nem vida nem morte. Acontece tudo e não há
lugar p’ra nada.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 506).
Apesar da tragédia configurada no cenário, há um elemento que
realmente representa a esperança. Trata-se da luzinha, percebida
primeiramente por Ela, que faz com que Ele veja também:
ELE – E aqui? O que se sabe do que aconteceu aqui? Porque foi?
ELA – Não importa o que tenha acontecido depois da luzinha que
nasceu p’ra sempre.
ELE – Que bem que o disse: vi a luzinha. Estou a vê-la.
ELA – Conheço bem esta luzinha que ficou aqui parada no ar p’ra
sempre. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 506
)
51
A Luzinha representa o desejo d’Ele e d’Ela, que têm a esperança
de se completarem mutuamente. A mulher percebe a presença da luzinha
primeiro porque estava sentada esperando por aquele que a fizesse acender.
O homem só a vê depois, pois ele não esperava que a hora de reacendê-la
chegaria tão rápido:
ELE – E o homem viu uma luzinha. Foi a mulher que a mostrou ao
homem.
ELA – Era uma luzinha de gente. E a outra luzinha que era da mulher.
O homem parecia que trazia a dele ap agada.
ELE – E não estava apagada, era mal ensaiada. Não esperava que a
hora fosse antes do que esperava.
ELA – Há tanto, tanto que a hora tardava. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 508)
A luzinha é mais importante do que as histórias, pois que a
tragicidade destas podem apagar a ingênua e destemida luzinha da esperança:
ELE – Conhece a história?
ELA – Não. Nem eu nem ninguém conhece. Não importa. A história é
com ela. Ninguém sabe nada. Inventam histórias. Tudo aconteceu
aqui antes que dessem por isso.
ELE – O que importa é ter nascido a luzinha.
ELA – A luzinha amiga sem história.
ELE – As histórias apagam as luzinhas?
ELA – As luzinhas chegam ao fim das histórias?
ELE – Responda você!
ELA – Aqui esta luzinha disse-me: pode vir fatalidade com seu veto,
quando quiser. Quando for, encontra-me sempre luzinha sem outra
coerência.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 506-7)
O fato de a luzinha ser sempre encontrada pelo veto da fatalidade,
nos faz vê-la como representante da incansável busca da unidade perdida. A
luzinha representa o desejo, a esperança e, por mais desilusões que haja,
estará sempre lá, incoerente e como um fado maldito.
Sustentado pela dialética de “realidade” e “irrealidade”, o diálogo
deste quadro, assim como o do primeiro, desenvolve-se como um jogo de
sedução numa linguagem fragmentada e repetitiva, ambientado em um cenário
52
composto por elementos que, contraditórios, sugerem a impossibilidade de um
relacionamento bem sucedido.
Há, todavia, uma diferença entre este quadro e o primeiro: as
mulheres. Vampa representa a mulher vampira do mundo mundano. Ela
representa a mulher prendada: “Uma jovem sentada a um canto do parapeito
ao fundo. Entretém-se numa costura”. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 505).
Mas, apesar das diferenças, ambas buscam a felicidade no casamento.
O quadro termina com a descrição da despedida entre Ela e o
Protagonista. Nesta se pode notar mais uma vez um oferecimento total por
parte dela:
(Desde quase o princípio do diálogo os gestos da mulher têm vindo
num crescendo de coqueterie à sedução e até à fascinação. Esta
iniciativa por ela tomada de ser ir insinuando fisicamente com atitudes
que a descrevem nua não tem limites de sinceridade na mímica da
oferta que ela lhe faz. Mímica magistral como o sabe a mulher
quando pela primeira vez. A fascinação provocada no homem é
evidente, mas não lhe permite acção nem corresponde à da mulher.
Fascinado, radiante, mas sem corresponder precisamente às atitudes
da mulher cujos gestos persistentes são evidentemente para que o
homem a siga. Esta persistência da mulher prolonga-se sem
esmorecimento. Também é sem esmorecimento o entusiasmo do
homem enamorado. Ambos atingem o auge do desejo cada um na
sua respectiva característica neste quadro. Ela sai absolutamente
segura de que ele a segue. Ele parece achar bastante ser desejado.
[...]). (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.509).
O desejo dela, como o de Vampa, manifesta-se de maneira total,
enquanto o dele é parcial, mais como um bem-estar do seu próprio ego. Afinal,
ele não segue o amor oferecido. Novamente, o protagonista apenas consegue
ver a sua própria necessidade de alcançar a unidade.
3.4 QUARTO QUADRO
As personagens femininas se encontram. Vampa é a manequim de
uma loja de roupas luxuosas, e Ela é a freguesa que vai comprar um vestido de
noiva.
O cenário lembra um palco de teatro:
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(Uma sala com a metade para o fundo elevada em estrado. /
Cadeiras no primeiro plano, de costas para o público. Entre o estrado
e as cadeiras uma personagem de costas para o público. Uma
varinha na mão, à laia de batuta de chefe da orquestra. Bate com a
varinha no estrado as três pancadas de Molière. / Aparece sobre o
estrado uma linda mulher com imponente vestido de gala. Avança
solene até ao fim do estrado e do mesmo modo volta a sair de cena. /
A personagem bate repetidamente com a varinha no estrado.)
(ALMADA NEGREIROS
, 1997, p. 509-10)
A cena metateatral põe ainda mais em evidênc ia os conflitos
internos das personagens femininas. O artifício do teatro permite que, dentro
dele mesmo, ocorra um afastamento para analisar a questão discutida – neste
caso, a busca da unidade.
Ambas as mulheres sofrem com a distância do protagonista. Vampa
usa uma máscara fantasmagórica desde quando se separou dele. Assim,
quando o Personagem deste quadro pede que ela imagine toda a pompa de
um casamento para desfilar com a maior elegância possível, Vampa,
prisioneira do seu drama pessoal, anda pela passarela, fixa um ponto no ar e
exclama: 1+1=1. A freguesa (Ela), que assistia a tudo, desmaia ao ouvir as
palavras de Vampa – pois, provavelmente, identifica-se com ela.
Enquanto desfila perante a noiva, Vampa imagina a festividade de
um casamento e, por um instante, chega a acreditar que tudo o que imaginou é
verdade:
Começa uma música solene. Entra uma mulher vestida de noiva.
Anjos seguram-lhe a cauda e o véu. Outros grupos de anjos atiram ao
ar pétalas brancas. Bandos de pombos brancos esvoaçam a cena.
Tudo é branco. Com a música ouve-se um carrilhão festivo de sinos e
um coro de vozes de crianças subindo aos falsetes. Vozes de
multidão aos vivas aos noivos. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 512)
A ilusão de Vampa é desfeita no momento em que ela se lembra da
fórmula da unidade repetida pelo Protagonista.
[...] Quando a mulher vestida de noiva chega ao fim do estrado e
acaba-se de repente a música, os sinos e o coro, e já não há em
cena anjos nem pombos.)
54
A MULHER VESTIDA DE NOIVA (Fixando um ponto no ar, fala
consigo mesma.) – “Um mais um igual a um”. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 512)
A realidade interrompe o devaneio de Vampa. No lugar da
festividade do casamento com anjos e pombas, tem-se a fria c omercialização
de um vestido de noiva. Vampa custa a acreditar que os pombos e os anjos
eram apenas frutos da sua imaginação:
A MULHER VESTIDA DE NOIVA (A quem lhe está mais perto.) – E
os anjinhos? E as pombas?
UMA MULHER – Quais anj inhos? Quais pombas?
OUTRA MULHER – Aqui nunca houve anjinhos nem pombas.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 512)
A mecanicidade dos movimentos do Personagem, ao olhar
alternadamente para a Mulher vestida de noiva e para a freguesa desmaiada,
contrasta com a naturalidade da cena imaginada por Vampa:
PERSONAGEM – Um copo d’água! (Fixando a mulher vestida de
noiva.) O que é que a menina disse? (Fixando a freguesa.) Um copo
d’água!! (Fixando a mulher vestida de noiva.) O que é que a menina
disse? (Fixando a freguesa.) Um copo d’água!!! (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 512)
A realidade neste quadro parece mais artificial do que a fantasia.
Aliás, os limites entre fantasia e realidade, que se confundem durante todos os
sete quadros, atingem neste quarto uma dimensão diferente porque aqui o
cenário lembra um palco de teatro. Dizemos isso porque nesta cena, ao
contrário das outras, tem-se a figura do diretor, representado pelo Personagem,
que exige da manequim uma postura premeditada que deixe transparecer toda
a pompa que o traje que ela veste simboliza:
Elegância: um, dois, três.
Distinção: um, dois, três.
Aristocracia: um, dois, três.
Não pense agora em si menina. Tem todo o resto do dia e a noite
toda p’ràs suas misérias. Agora a menina é uma grande senhora. A
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senhora do maior homem do Mundo. A quinta essência da mulher!
Um minuto, caramba! Um minutinho só. Adiante.
Festa: um, dois, três.
Pompa: um, dois, três.
Milionária: um, dois, três.
Grande gala: um, dois, três.
Triunfo: um, dois, três.
Glória: um, dois, três. (ALMADA NEGREIROS
, 1997, p. 511)
Para conseguir chegar a este grau de artificialidade, é necessário
assumir um papel, comportar-se como outra pessoa. Todavia, Vampa, a mestra
de ser uma para cada um, não consegue esquecer-se das suas “misérias”:
“VAMPA – Sou manequim, não sou actriz”. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
510). A distinção entre manequim e atriz é muito sutil: am bas estão ligadas
pela artificialidade; porém, uma atriz veste uma máscara com o dever de fazer
o público acreditar que ela é aquela que diz ser – a atriz tem que transmitir
sentimentos como ódio, amor, tristeza; já uma manequim precisa apenas ter as
formas perfeitas para dar elegância e estilo ao modelo que expõe. É um a
boneca. É um suporte para o que realmente importa: a roupa, o externo.
Vampa é apenas manequim, não importam os seus sentimentos, mas apenas a
sua aparência, o seu físico perfeito:
PERSONAGEM – Fo i aprovada p or ter as propor ções cláss icas.
Nada mais. Mas o manequim é p’ra dar vida aos modelos que se lhes
põem em cima. A menina tem um corpo estupendo. O corpo de
mulher mais estupendo que vi em minha vida. Proporções clássicas.
Perfeitas. Perfeitíssimas. Uma raridade de séculos a séculos. A
menina não fez nada por isso. Saiu assim. Com um corpo fenomenal
que vale mais do que a menina. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
510-1)
A artificialidade, que envolve e caracteriza Vampa, confirma-se mais
uma vez nesta cena, na observação do Personagem ao dizer que o corpo vale
mais do que ela mesma. O Personagem não compreende o drama de Vampa
e, por isso, a impressão que tem é a de que ela está bêbada ou doida. Isto
provoca nela uma revolta que a leva a rasgar todo o vestido. Este
procedimento parece chocar as personagens a ponto de deixá-las sem ação,
amarradas, impotentes e só conseguindo repetir as suas falas e gestos,
56
confirmando assim o caráter mecanicista evidente em todos os quadros da
peça:
PERSONAGEM – Selvagem!!
A MULHER VESTIDA DE NOIVA – Estrangeiro!! (Avançam um para o
outro.)
PERSONAGEM – Selvagem!!
A MULHER VESTIDA DE NOIVA – Estrangeiro!!
PERSONAGEM – Sel-va-gem!!!
A MULHER VESTIDA DE NOIVA – Es-tran-ge-iro!!!
(Cospe no chão na direção dele. Ele imita-lhe o gesto. De modos
diferentes ambos começam a dirigir-se para as saídas de cena e não
saem nunca.) (ALMADA NEGREIROS
, 1997, p. 513)
Diante de situações que pedem ação, as personagens sentem-se
impotentes. A cena é pura expressão da necessidade – necessidade de
unidade.
3.5 QUINTO QUADRO
No quinto quadro, o protagonista e a segunda mulher discutem. A
cena é estática como nos outros quadros; os gestos são repetitivos e
mecânicos, mesmo porque esta não é a primeira vez que a cris e aparece na
peça.
O espaço é o Hall de uma modesta pensão. Desta vez, o casal não
chegou nem a ter uma casa só sua, como acontecera no primeiro
relacionamento do protagonista. A expressão das per sonagens é a mesma do
segundo quadro, quando aquelas figuras descobrem que a unidade entre um
homem e uma mulher é conflituosa e sofrível: “As duas personagens do
terceiro quadro sentadas à mesa. Paradas como estátuas [...]” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 513). A postura do casal é tensa: “Ele fixa-a com o olhar
sem pestanejar. Ela não o olha senão quando responde. No longo silêncio
ouve-se por vezes a respiração um do outro.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
513).
57
É na impossibilidade de conciliação entre o homem e a mulher que
se revela a ação trágica de Deseja-se mulher. Aliás “[...] a polaridade dos
pressupostos é uma exigência indispensável, é ela que torna possível a ação
trágica.” (BORNHEIM, 1969, p.74).
Embora com elementos distintos, a ação deste quadro repete, de
certa forma, a do segundo quadro. Naquele o Protagonista abandonava
Vampa; neste, abandona Ela.
A incessante busca da integração dos sexos é exposta nesta cena,
no momento em que um casal de apaixonados entra na pensão:
Entra um jovem casal. Vêm abraçados. Ele furta-lhe beijos e diz-lhe
segredos ao ouvido. Ela aceita tudo mas faz-lhe sinal de estar ali
gente. Ele de nada se importa. Sobem a escada. Ele a furtar-lhe
beijos e com segredos ao ouvido, ela deixando-o fazer, mas com o
pudor de estar gente ali. Saem. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
515)
Esta cena, que num primeiro momento nos parece solta, mostra que
a busca da unidade se dá a todo o momento: enquanto uns relacionamentos
são desfeitos, outros estão surgindo.
Apesar das repetições, há neste quadro alguns pontos divergentes
do segundo. Um deles é a postura da mulher que, ao contrário da Vampa, briga
com o protagonista, ameaça abandoná-lo e decide, no final do quadro, procurá-
lo:
[...] Deixou-me ir embora. Não perdoo. Se tem experiência que o
mostre: não se deixa fugir a mulher que se deseja. Vou. Vou fazer o
papel do homem. Vou buscá-lo. Foi longe demais. Disse o que não se
diz. Nada ficou por dizer. Não se me apaga dos ouvidos o que se diz
e ele disse. Eu também sou difícil. Não podemos nada. Já, já não.
Amanhã. Que ele sofra também. Apanho-o ao sair de casa. Amanhã.
Sabe bem que é ele quem amo. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
516)
Outra divergência é a postura do protagonista que, embora esteja
disposto a abandoná-la, hesita em fazê-lo: “ELE – Não sei qual seja a minha
cobardia: se deva deixar-te, se deva matar-te” (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p. 514). “(Ela faz o gesto de forçar passagem. Ele insiste em impedi-la)”
58
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 515). O protagonista não consegue
abandonar a mulher porque não consegue libertar-se da sua sina que é a de
sentir-se atraído por ela. Além disso, o isolamento é ainda mais insuportável do
que a união conflituosa – como explica Almada Negreiros ao dissertar sobre as
relações do mundo natural em “Direcção única”. O relacionamento amoroso
parece, neste caso, uma espécie de “condenação”.
O Protagonista compreende a impossibilidade de fugir à sua sina – à
necessidade da busca – e, por isso, assevera a Ela:
ELE – Verás: serei vingado. A vingança será para sempre o teu novo
amor. Quando vier não o destrinçarás do amor que mataste. Queres
singular e encontrarás plural. Sempre meio vivo e meio morto, nada
que satisfaça. Tu mesma capaste em ti a tua perfectibilidade.
Castrada de amor, não de sexo. A ânsia de amor morrerá em ti, e em
ti o amor ficará sempre adiado. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
515, grifo nosso.)
Ela não o compreende bem, entende as suas palavras como
ameaças e pragas. Ele tenta mostrar-lhe a impossibilidade da fórmula com que
sempre sonhou (1+1=1): “queres singular e encontrarás plural”.
ELE – Verás: não sou eu que me vingo. Nem to desejo. É a
susceptibilidade mesma do sentimento que se chama amor. Nem
susceptibilidade minha nem tua. Do sentimento. Do amor. Há no
amor uma virgindade mais susceptível do que a nossa. Que tem veto.
O veto da fatalidade: quem não é vassalo d’amor, menos será seu
juiz. Em amor não há senão vassalos. (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p. 515)
A submissão ao amor e a impossibilid ade de o par conjugal tornar-se
uno provoca no indivíduo uma amarga solidão: a angústia de ser só tanto na
vida pública, quanto na vida íntima:
ELE – Não há já encontro possível, nem comigo nem com ninguém. É
a ti que a tua intransigência não deixará viver. Ficarás eternamente
sozinha na vida e na morte, condenada a estranhos, a
desconhecidos, a intrusos, a mortos que mataste. Ficarás
eternamente sozinha com todos, pública e in-ti-ma-mente! (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 514)
59
É possível verificar na palavra intimamente, grafada com as sílabas
separadas, a mesma separação que há na vida dos indiví duos. Não há
conjunto, o que há são aglomerações de indivíduos sozinhos: in-ti-ma-mente.
As palavras do protagonista nesta cena são parecidas com as de Almada
Negreiros no seu manifesto “Direção única” (1997, p. 766):
Vós, indivíduos das cidades, e dos campos, vós, indivíduos de todas
as partes e que fazeis parte de todas as multidões, respondei todos
por um:
Com quem comunicas tu?
Não te perguntamos com quem trata todos os dias, nem com quem
falas, nem com quem vives, nem com quem dormes. Perguntamos-te
unicamente com quem te entendes?
Com ninguém!
Estás tão sozinho no meio de toda gente ou ainda mais do que se
não houvesse no mundo mais ninguém do que tu.
Nas falas do Protagonista, especialmente neste e nos quadros
seguintes, é possível reconhecer a voz do próprio autor. Nestes momentos, a
peça deixa de ser apenas uma constatação crítica da realidade para ser
também uma proposta de como ela deveria ser.
A impossibilidade de homem e mulher fugirem à sua sina de querer
um ao outro é estampada na dificuldade, que tanto o Protagonista quanto Ela
têm, de sair de cena definitivamente:
Força e consegue passagem. Sobe a escada e sai. Ele imóvel. /
Entra um jovem casal. Vêm abraçados. Ele furta-lhe beijos e diz lhe
segredos ao ouvido. [...] Subitamente, a personagem que ficou imóvel
[...] sai. [...] aparece ao cimo da escada a mulher do princípio deste
quadro. Desce precipitadamente e pára a meio de repente. Depois
desce um degrau, e outro, e mais outro, e depois precipitadamente de
novo até ao fim da escada. Pára no fim da escada. Sobe uns degraus
lentamente. Pára e volta-se para onde a escada desce. Desce um
degrau, volta-se e sobe três. Volta-se, desce uns degraus depressa,
volta-se e sobe-os devagar. Agarra o corrimão com ambas as mãos.
Deita a cabeça para trás. Depois atira-a para adiante. Cai-lhe sobre
as costas das mãos. Levanta-a com um gesto de recuperar-se. Com
ambas as mãos no corrimão ora sobe ora desce os degraus com
ânimos opos tos. Está a meio da esca da. Entra em choro compulsivo,
tapa os olhos com as mãos, sobe precipitadamente e sai. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 515-6)
60
A felicidade do outro casal em cena contrasta com a dor do casal
que se separa. As situações concomitantes e inversas indicam a repetição dos
relacionamentos: princípio e crise, num movimento cíclico e perpétuo.
3.6 SEXTO QUADRO
O sexto quadro é o mais “independente” da peça. Trata-se de uma
cena surreal em que o protagonista discursa sobre a fórmula com a qual
sonhava nos quadros anteriores.
O cenário é uma rua de um país estrangeiro. Contudo, ao contrário
do que se pode imaginar, não se trata de uma pátria específica – o que fica
sugerido pelas diversas bandeiras expostas no sinaleiro:
(Um poste de viação com os três olhos: amarelo, vermelho e verde. /
Polícia sinaleiro com bandeiras de várias nações no peito e nos
antebraços. / O protagonista, de gabardina e maleta, dirige-se ao
sinaleiro com um cartãozinho.) (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 516-
7)
Esse espaço multinacional prova que a “perda” da unidade não é
problema de uma única nação, mas sim de todas. Essa universalidade é clara
também na figura do Sinaleiro, que indica as direções em diversas línguas:
SINALEIRO – Knorr. On écrit knorr. On pronnonce Pfaff. Devant vous.
Em frente. Primera a la derecha. All right. Depois a la esquierda,
sinistra, gauche. Em marchant toujours devant vous, en face: C’est-à
– dire: Knorr. On pronnonce PFAFF, on écrit Knorr. (ALAMDA
NEGREIROS, 1997, p. 516)
Neste cenário “global”, atravessa a cena grupos de transeuntes com
um comportamento nada convencional:
(Toca o apito e faz o sinal de trânsito. Atravessam a cena em
sentidos contrários dois grupos de transeuntes, todos de pé-coxinho,
segurando um pé com a mão [...] Aparece o sinaleiro que faz o sinal
de passagem. Atravessam em sentidos contrários a cena dois grupos
nos quais cada um vem lendo o seu livro). (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 516)
61
O comportamento em série dessas personagens leva-nos a
pensar que elas representam pessoas que caminham pela “direção única”:
aquela que Almada Negreiros afirmava ser o sentido ideal por onde todas as
pessoas deviam seguir.
Outra figura nada convencional que atua nesta cena é o Anjo da
guarda do protagonista, que resolve abandoná-lo porque está cansado de v ê-lo
empenhado em uma busca que ele, anjo, entende como uma fuga:
ANJO DA GUARDA – Triste idéia: sair de sua terra p’ra sítio nenhum
no estrangeiro! Quanto mais longe mais perto ficas do que queres
fugir. E eu que ando aqui numa dobadoira a ver o que o menino
resolve. Tão certo quanto um e um serem dois, tu já não mudas, vais
direitinho assim até ao fim. E eu sempre a dizer-te, tintin por tintin,
como hás-de fazer. Tão simples! Sempre tiveste a tua vontadinha. Lá
uma coisa que tu só é que sabes. Ora sozinho ninguém vive. E eu
pr’aqui sozinho atrás de ti: nem confidente, nem secretário, nem
gerente, nadinha! Bem se sabe que o segredo é alma do negócio,
mas comigo, caramba!... Encheram-se as medidas. Já li dez vezes o
resto da tua vida. Não te sirvo p’ra nada. Não sou enfermeiro nem
sentimental. Digo-te agora o que ando por dizer-te desde a tua
maioridade: adeus! Governa-te sozinho. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 517)
É essa figura do irreal, o Anjo, quem responde pela realidade que a
personagem masculina questiona. O que se tem na fala do Anjo é uma
explicação do comportamento do protagonista e, mesmo que t enha decidido
abandoná-lo, não há mudança de conduta do protagonista:
(Finge dar passos que se vão afastando. O protagonista impassível.
Em face disto, o anjo da guarda decide, destroçado, sair pelo fundo.
Antes de sair olha atrás. Pé ante pé volta ao protagonista e dá-lhe um
beijo na cabeça sem a tocar. Sai chorando convulsivamente. [...]).
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 517)
A dificuldade do anjo para partir de fato se parece com a mesma
dificuldade que Ela teve no quinto quadro para se separar do Protagonista.
Ambas as personagens parecem acreditar até o último segundo que o
Protagonista vai desistir da sua busca.
62
Quando o Protagonista chega ao lugar est rangeiro, também hesita
quanto ao qual caminho a seguir:
[...] Faz com enfado os mesmos movimentos do protagonista. Este
decide-se por onde disse o sinaleiro, mas antes de sair pára. Hesita
um passo. Hesita outro. Decide-se pelo lado oposto. Antes de sair
pára. Hesita um passo. Hesita outro. Fica a dar voltas em cena. Umas
rápidas, outras lentas. Pára desolado. (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p. 517)
A dúvida quanto ao caminho a ser seguido e a hesitação perante
situações inesperadas ou novas constituem um comportamento recorrente que
marca quase todas as figuras da peça. Um exemplo é o que acontece com a
Personagem do quarto quadro no momento em que a freguesa desmaia: o
Personagem não sabe se olha para Vampa ou para a freguesa desfalecida no
chão. Ainda no quarto quadro, Vampa e o Personagem discutem, mas nenhum
dos dois consegue tomar qualquer atitude além de chamarem-se, em tom de
ofensa, de estrangeiro e selvagem.
O protagonista desloca-se para um país imaginário, ou melhor, “sítio
nenhum no estrangeiro” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.517). Trata-se de
uma cena em que a fantasia suplanta a realidade e, por isso, num primeiro
momento, a impressão que temos é a de que ela é independente das outras.
Esta impressão é natural, pois nos parece claro que Deseja-se mulher é
composta por recortes como se fossem quadros postos um ao lado do outro.
Marjorie Perlof (1993, p. 104)f, em O momento futurista, considera
que o recorte, a que chama de colagem, dá um aspecto inesperado,
aparentemente alheio ao contexto circunscrito, visto que possibilita um jogo em
que os participantes devem reconhecer neste fato inusitado a relação com o
todo: “Pois cada elemento na colagem tem uma função dual: refere-se a uma
realidade externa, ainda que o seu impulso composicional seja o de socavar a
própria referencialidade que parece afirmar”.
São justamente esses recortes, ou melhor, essa simultaneidade
plástica que dá sentido à peça. Afinal, é nos fatos aparentemente bizarros –
como no biombo que deixa transparecer o casamento, na aparição do casal,
nos transeuntes de pés-coxinhos, na aparição da Vampa neste sexto quadro e
63
na figura do marinheiro e da sereia do último quadro – que reconhecemos a
relação com o todo que é a expressão da necessidade em cena e da
impossibilidade de saciar tal necessidade. O casamento representa a
esperança do homem e da mulher em integrarem-se, o que é acentuado com a
introdução do biombo que, ao transformar os noivos em sombra, mostra como
esse ato é comum e repetitivo. O caráter cíclico da busca do indivíduo pelo
outro é também visível na entrada do casal de apaixonados na pens ão. A
aparição de Vampa carregando os restos do vestido de noiva nas mãos
demonstra a quebra de um sonho e o vazio que a ausência dele deixou em sua
vida. O marinheiro e a sereia representam a união conflituosa entre o homem e
a mulher – visto que em seu pequeno diálogo parecem estar sempre brigando
– e, quando “posam” para a foto junto com a sereiazinha, realizam uma
alegoria da união dos contrários: macho e fêmea, homem e mulher, racional e
irracional, humano e animal.
Por último, os “recortes coerentes” indica m, simplesmente, que não
há unidade, uma vez que a realidade é fragmentada. Os acontecimentos são
muito rápidos e nós os contemplamos por meio de flashes, cenas colhidas
sucessivamente e que não estabelecem, necessariamente, relações entre si.
Este é o efeito provocado pela modernidade que impõe ao mundo velocidade.
A fragmentação é o motivo que leva o protagonista a discursar:
“PROTAGONISTA- [...] Um dia acontecerá à humanidade o mesmo que já
acontece a cada um, que estamos sozinhos em nossos sonhos, sozinhos entre
empregados do mundo!” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 518). Nesta fala há
uma clara crítica à sociedade moderna em que o indivíduo, preso às suas
necessidades particulares, não consegue ver o outro.
Nesse meio, em que as pessoas trabalham apenas para lucrar,
findou a vocação. Ela foi sufocada e no seu lugar surgiram operários, escravos
da profissão:
PROTAGONISTA – [...] P’ra subsistir temos que pagar profissão a
troco de vocação. Um dia a humanidade será toda de profissionais,
de especialistas, de funcionários, e já a ninguém nascerá vocação. Já
não será necessária. Não há sítio nem ocasião p’ra ela.
Hoje já não resta da vida senão a avidez de viver. Viver a todo o
custo. Viver não importa como. Todos voltados p’ra humanidade.
64
Todos de costas voltadas à vocação. (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p. 518)
A sociedade, portanto, é formada por uma legião de profissionais,
máquinas de servir ao mundo e aos seus desejos concretos; em outras
palavras, o indivíduo afastou-se da humanidade:
PROTAGONISTA – [...] A palavra humanidade ressoa estremecida
nas bocas sentimentais. Como se da humanidade dependessem
vocações. Como se não fosse das vocações que depende a
humanidade. A avidez de viver a todo o custo, não importa como, é
própria de empregados do mundo, é própria da humanidade. Não é
própria da vocação. Esta palavra que não se usa, que ninguém
entende, que não tem sentido. Esta palavra única da colaboração.
Entende-se colaboração de profissionais, de especialistas. Já não se
entende a de vocações. Hoje é de mentecaptos pronunciar a palavra
vocação.
Pois bem, minhas senhoras e meus senhores, a humanidade não é
unidade senão com cada vocação: um igual a um mais um. Unidade
igual a humanidade mais cada vocação.
Minhas senhoras e meus senhores, é humanidade que pedem? Pois
aí têm: o deserto inundado de arranha-céus e as ruas transbordando
de gente fugida de sítio nenhum. Não é gente que cresceu e se
multiplicou. São contas multiplicadas e das quais sobra gente. A
maior catástrofe da História: mataram o homem! (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 518-9)
11
“O deserto inundado de arranha-céus” a que o protagonista se refere
é a sociedade tecnológica e desenvolvida que provocou a mecanização do ser
humano, que se sente cindido.
Em meio ao discurso engajado do Protagonista surge Vampa,
sonâmbula, levando nos braços os restos do vestido de noiva que rasgara no
quarto quadro. Ela atravessa o palco repetindo o seu drama:
VAMPA – Tu sonhas alto. Quando dormes, tu dizes coisas que nunca
me disseste cara a cara. Dizes sempre a mesma coisa. Tu
consentiste que eu te quisesse. E eu quis. Para sempre. Eu não me
enganei. Tu sim. E nem sequer o ponto final. Pegaste-me o sonhar
11
O discurso do Protagonista lembra muito um trecho do manifesto “Arte e Artistas” (1997, p.
778-779), precisamente na segunda parte, onde Almada Negreiros discute as diferenças entre
vocação e profissão. A semelhança entre os textos permite-nos sugerir que, nesse momento, o
Protagonista exerce o papel do próprio autor, ou melhor, é na voz desta personagem que
podemos reconhecer a voz do autor criticando e propondo uma realidade diferente, mesmo que
esta lhe pareça impossível.
65
alto. Digo sempre a mesma coisa. Sem ponto final. Para sempre.
(1997: 518)
A aparição de Vampa rompe, de certo modo, com o andamento da
cena. A sua passagem, aparentemente sem nexo, mostra-nos, de forma
artística, que a vida real é feita de situações e imagens sobrepostas. Os fatos
nem sempre se sucedem linearmente.
Outro acontecimento notável durante o discurso do Protagonista é a
pergunta de uma personagem, o 1º Curioso. Esta destoa em meio à multidão
diferenciada que escuta, compreende e aplaude freneticamente o Protagonista,
devido a não compreender as palavras do orador:
1º CURIOSO – Que disse ele que todos gostaram?
2º CURIOSO – Disse, e muito bem, que mataram o homem.
1º CURIOSO – Ah! coitadinho. E quem era o homem?
2º CURIOSO – Dizes muito bem: quem era. (Importante.) Não é
homem nenhum. Eu, tu, ele, nós, vós, eles, todos somos o homem.
Mataram todos! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 521)
O Curioso desentendido confere certa comicidade à cena.
Comicidade que contrasta com o trágico acontecimento relatado pelo
protagonista: a “morte” do homem. Essa personagem é representante daqueles
que escutam, mas não entendem.
A pergunta do Curioso revela uma inversão, visto que, normalmente,
em meio a uma platéia, há um ou outro que compreende o que está sendo dito
e não o contrário, como acontece neste quadro. Pode-se constatar, desse
modo, a inversão como uma ironia e uma proposta de um público ideal:
espectadores que param, escutam e se interessam por uma personagem que
discursa sobre o caso da humanidade.
Na sociedade moderna e capitalista, os indivíduos estão
preocupados demais com os seus casos particulares e nã o percebem que o
problema da humanidade diz respeito também a cada indivíduo que compõe
essa humanidade.
66
3.7 SÉTIMO QUADRO
O protagonista e a segunda mulher, neste último quadro, voltam ao
mesmo lugar onde se conheceram. Entretanto, há um diferencial entre este e
aquele cenário: a ausência da exuberante e frondosa árvore que havia entre as
quatro paredes mestras da casa que ficou por fazer.
No terceiro quadro, chegamos à conclusão de que a árvore tinha um
dúbio significado: positivo, ao passo que representava esperança, fertilidade e
vida, e negativo, pois simbolizava as imposições e repressões das convenções.
Entretanto, a ausência da árvore neste quadro só pode significar
uma coisa: a carência de esperança de que aquele relacionamento se refaça.
Desse modo, o que permanece em cena é o insucesso da construção
simbolizando o fracasso da relação.
Se no terceiro quadro, quando Ele e Ela se conheceram, o diálogo
deles era carregado de símbolos que sugeriam a insinuação e a seduç ão,
neste sétimo quadro o diálogo expõe as dores e as amarguras que o fracasso
da união causou.
Ainda que cientes da impossibilidade de entenderem-se novamente,
o Protagonista e Ela voltam ao mesmo lugar onde se conheceram:
ELE – Voltaste aqui?
ELA – A primeira vez hoje desde que ambos e stive mos.
ELE – Eu também. Cheguei de madrugada.
ELA – Já estavas quando eu ch eguei?
ELE (Afirma com a cabeça.) – Parece-me que espe ravas alguém.
ELA – Bem vês que não.
ELE – E vieste.
ELA – Assombra-me ver-me aqui. Nada decidi. E vim. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 520)
É como se as personagens fossem atraídas por uma força maior que
vai contra a sua razão e os seus princípios. O retorno sugere a falta de
mudança no curso da história, a insistente necessidade de reencontrar a
perdida unidade primordial. Trata-se mais uma vez da repetição do mes mo
mote, como se as personagens fossem, misteriosa e inevitavelmente, atraídas
67
entre si. Atraídas fatalmente, como que condenadas a uma sina dolorosa, a
sina que Almada Negreiros explica em “Direção Única” (1997, p. 754).
As diferenças entre homem e mulher resultarão sempre num
relacionamento conflituoso. Contudo, a dor da solidão parece pior do que os
conflitos da convivência, e é esta dor que faz homem e mulher procurarem-se:
“ELA – Que poderes ocultos me raptam? ELE – Poderes ocultos que tu mesma
levantas” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 520). Os poderes ocultos a que
eles se referem é a fatalidade da insaciável busca da integração, física e
psicológica.
A necessidade é, portanto, o que faz Ela e o Protagonista voltarem
àquele lugar. Para Ela, a necessidade é a expressão da sua fragilidade: “ELA –
Não vim eu. Veio a minha fragilidade. A que me fez desmaiar um dia. A que me
fez buscar-te depois de despedidos. Não são brasas em cinzas que quero”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 521). E defende-se ao dizer que a única
coisa que busca ali é o ponto final: “Daqui não quero senão ponto final”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 521).
Pôr o ponto final parece mais um impasse, assim como aquele do
sexto quadro quando o Protagonista não sabia para que lado seguir, ou quando
o Anjo tem dificuldade em abandoná-lo:
ELE – Está na tua mão o ponto final. Também eu não tenho paz.
Também vim hoje aqui. Deixa morrer o que mataste. Não tragas tu na
que fegarDe3(ixssimebé)5.3(m)0.7tixa moa o
68
nunca terá o Protagonista por inteiro – e o desejo – pois que está “fatalmente
condenada” a querê-lo; ele está entre a estabilidade– na medida em que quer
unir-se à mulher por reconhecer que a união conjugal é necessária à sua vida –
e a aventura – já que, mesmo junto dela, não consegue sa ciar o desejo
expresso na fórmula 1+1=1.
A diferença de conflitos deve-se à diferença entre os sexos
justamente a diferença que os atrai. O Protagonista parece, ao contrário dela,
ter consciência deste fato:
Não lhe acarretes enganos mal cumpridos. Desejo-te, fêmea, que
tenhas por fim nascido mulher. Sê tu as tuas próprias palavras. Mas
dá-me a minha paz. Mata-me, de verdade, para ti, para sempre. Não
guardes contas que não se fecham, quando é fechadas que desejas
as tuas. Não mandes fantasmas ao fim do mundo convidar para dia
certo em sítio nenhum. Eu deixei-me matar lealmente, como é morte,
para sempre. A minha vida com a tua ficou por aí. Nunca te mandei
fantasmas com recados que assustam. Deixei-te livre. Sem
sentimentos póstumos. Mas também tenho fragilidade. Fragilidade
d’homem. Fragilidade de mulher é relativo a homem. Fragilidade
d’homem é sempre cobardia. Vim hoje aqui. Não para fogo que
recomeça sempre mal. Mas por minha paz. A minha paz, mulher, será
a tua. Vim por certeza que já não me diz interesseiramente respeito: a
tua paz. A tua paz será a minha. Quando tudo te corra bem, alguém
vive a tua paz para sempre. Abnegadamente. Sem a intrusa
presença. Sem a imprevisível presença. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 521)
Nesta fala, o Protagonista revela que a mulher cobra do homem um
comportamento que não é natural dele. Ela parece ser mais transparente nos
seus sentimentos; o Protagonista, mais discreto. “Fragilidade de mulher é
relativo a homem. Fragilidade d’homem é sempre cobardia”. Talvez esta
afirmação não se refira simplesmente às diferenças entre os sexos, mas sim às
imposições da sociedade machista, que cobra do homem uma postura firme, o
que não deixa de ser uma forma de repressão. Naturalmente, as diferenças
entre homem e mulher chocam-se; socialmente as diferenças tomam uma
dimensão maior, geram padrões e aqueles que fogem desses padrões – por
exemplo, um homem que deixa transparecer as suas fragilidades – são, de
alguma forma, punidos.
69
São precisamente as diferenças naturais, entre o homem e a mulher,
que conduzem à separação do casal. Ela fica angustiada e, até mesmo,
amargurada:
[...] Deixa-me passar! Tira-te da minha vida! Sai da minha vista!
Deixa-me passar! Já viram isto?! Sentinela à vista! Toda a vida
sentinela à vista! O meu íntimo devassado![...]
Estavas ausente quando eu me dava a ti. Escrevias números na Lua.
Sim. Ausente, Estavas ausente quando me despedia de ti. Como um
desconhecido, como um estranho, deixaste-me ir embora. Deixaste
que eu te fugisse. Consentisse que eu te deixasse. Estavas ausente
nos dois momentos mais decisivos da vida: quando eu me dava e
quando eu te fugia. Deixa-me passar! [...] Chegas sempre antes ou
depois dos teus momentos decisivos. Deixa-me passar! Deixa-me
passar, fantasma! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 522)
Embora a mulher diga sentinela à vista, a impressão que temos é a
de que, no fundo, é da vontade dela que ele não a deixe partir. Talvez, o que
Ela queira, por trás do seu discurso sobre o abandono, é uma prova do amor
dele por ela.
O Protagonista, inerte durante a demonstração da amargura dela,
fica só em cena e reflete sobre a impossibilidade de se alcançar a unidade:
ELE: (A meio da cena, encontra os seus pensamentos para explicar-
se.) – Buscava mulher, a fêmea inspiradora. Encontrei o que gostava.
A tua presença provocou em mim o sentimento inédito que buscava.
Fiquei transposto. Outro. Como desejava. Senti logo que não me
sentia. Já não era só mundo o que havia em mim. Todo o meu ser se
multiplicava até os confins do universo. Eu já escapava às leis de
tempo e espaço. Sonho e realidade era tudo um.
Senti-me sem inimigo, para sempre. Fiquei seduzido por sentimento
que buscava e afinal excedia em muito o melhor do meu desejo.
Fiquei possuído por aquele sentimento que liga todas as coisas e
todas as pessoas, e não talvez duas pessoas apenas.
O que eu buscava e tu mo inspiraste não foram contas hereditárias
que não se saldam, animais conflitos milenários que impedem fêmea
e macho de serem mulher e homem. Fiquei logo isento de lutas de
sexo. Tu, mulher, não reconheces que tu mesma me inspiraste.
70
Do solilóquio do Protagonista entendemos que a sua busca deve
continuar: ele tem consciência de que a integralização pessoal não basta para
atingir a unidade ideal, que requer também a integralização social, ou seja,
aquela que se dá com a coletividade.
A tragédia do mundo natural deve-se à impossibilidade de
transformar em convergências as divergênc ias entre ho mem e mulher. Trata-se
do infindável conflito que configura o elemento trágico, como observa Peter
Szondi (2004, p. 84-5):
O trágico é um modus, um modo determinado de aniquilamento
iminente ou consumado, é justamente o modo dialético. É trágico
apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir
da transformação de algo em seu oposto, a partir da autodivisão.
Mas também só é trág ico o declínio de algo que não pode dec linar,
algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável. Pois a
contradição trágica não pode ser suprimida em uma esfera de ordem
superior – seja imanente ou transcendente. Se for esse o caso, ou o
aniquilamento tem como objeto algo de insignificante, que como tal
escapa à tragicidade e se manifesta no cômico, ou a tragicidade é
superada no humor, suplantada na ironia, ultrapassa da na crença.
A cena final resume, de forma inusitada, toda a peça num
interessante quadro:
[...] Entra uma rapariga com sobretudo de homem, trombeta de varas
e velha caixa de rufo a tiracolo sobre as costas. Segue-a um homem
de gasta peliça, coco e um gramofone de campânula em corola
vegetal. Observam a cena. O homem deixa o gramofone no primeiro
plano voltado para o público. / Uma cortina vem coincidir com a
suposta parede da edificação mais próxima do público. / A rapariga, o
homem e a edificação desaparecem por detrás deste pano. Música
de abertura de espetáculo de circo com pratos, tambor, bombo e
cornetim. À transparência deste pano é um mar de ondas
rudimentarmente articuladas em movimento inquieto. Por um sistema
de várias cortinas transparentes subindo sucessivamente, torna-se
cada vez mais nítida a visão por transparência. Cessa, extinguindo-
se, a música de abertura e começa no gramofone a valsa alemã
Sobre as Ondas. Aparece navegando um barco que pára no meio do
mar. O barco chama-se à proa 1+1=1. Traz um marinheiro. Bigodes
retorcidos, grossas suíças, cabelo negro encaracolado a sair em
cacho do boné com o nome do barco na fita, camisola às riscas
vermelhas horizontais, grosso casaco de bordo com divisas e
cachimbo que fuma como chaminé de indústria. O marinheiro deita ao
fundo do mar uma âncora de prata reluzente enroscada pela palavra
Esperança. Tira de dentro do barco um embrulho de papel de seda
verde. Desata-lhe os cordéis. Desembrulha com carinho e
conhecimento. É uma rede de pescar semeada de estrelas de Natal.
Lança a rede pela borda e espera sentado. Começam os empuxões
71
na rede. Levanta-se e iça a rede. / Vem nela uma sereia. Cabelos de
oiro compridos, soutien para os grandes seios, corpo de escamas
verde-escuro e duas caudas de peixe com as barbatanas.) (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 523)
Este cenário circense e até surreal mostra-nos que a busca da
integralização é infinda: o barco onde está escrito 1+1=1 aponta para a
necessidade de se atingir a unidade; a ancora enroscada na palavra esperança
dá um sentido de continuidade, de busca infinita.
As personagens híbridas a sereia e a sereiazinha representam a
mistura de identidades, ou seja, identidades fragmentadas que se desdobram
em outras, mas que buscam o mesmo fim: a unidade. O marinheiro é a figura
masculina que navega pelos mares, representa o viajante.
Nesta cena, assim como no sexto quadro em que o Protagonista
está em um país estrangeiro, tem-se a sobreposição do plano da ficção sobre o
da realidade. Lá o comportamento das personagens destoava do comum, aqui
o incomum é a presença da figura fictícia da sereia.
Em toda a peça há um emaranhado de cenas fragmentadas,
repetidas e confusas que expressam a necessidade em cena. Embutida na
descrição da busca do protagonista está uma crítica à mecanização do ser
humano e ao comportamento rígido, estereotipado, da sociedade.
Deseja-se mulher mistura o cômico e o trágico. Assim, se o
espectador tiver vontade de rir, não o far á porque a peça também provoca,
além do riso, a agonia de andar, andar e não se mover. Se no primeiro quadro
alguém pudesse pensar em rir quando o Criado conta ao Freguês que Vampa
é “vazia como uma casca de ostra”, estacaria horrorizado com o preconceito da
frase. O mesmo ocorre no quarto quadro, quando o Personagem e a Vampa
brigam, mas mal conseguem mexer-se, como se fossem fantoches.
A pequena participação da Sereia e do Marinheiro também provoca
o riso. Mas aqui temos um riso irônico, debochado, que desdenha da utopia da
unidade.
A Sereia, como já vimos, é um ser híbrido que seduz o homem com
o seu canto sedutor: “Cabelos de oiro compridos, soutien para os grandes
72
seios, corpo de escamas verde-escuro e duas caudas de peixe com
barbatanas.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 523).
A nada convencional relação entre Sereia e Marinheiro é uma
mistura de desejo e raiva, pois não sabemos ao certo se eles estão brigando
ou amando-se:
(Por cima da rede faz carinhosas festas na sereia. Ela defende-se
como fera e acaba por agarrá-lo. Pouco a pouco a rede vai cobrindo
também o marinheiro. Ambos lutam encarniçadamente dentro da
rede. Depois de grande balbúrdia só o marinheiro está dentro da
rede. Livre, a sereia espreguiça-se animalmente e vai dirigir-se à
proa.) (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 524)
Trata-se de uma relação meio sadomasoquista, característica visível
nos pedidos do Marinheiro: “MARINHEIRO – E a tapona? SEREIA – Ah, é
verdade. Esquecia-me. (Volta atrás e bate desalmadamente no marinheiro.)
MARINHEIRO – Com mais força” (ALMADA NEGREIROS,1997, p. 524). Mas
subjacente a esse sadomasoquismo fictício ou simbólico está o real
sadomasoquismo da relação entre homem e mulher.
Enfim, Deseja-se mulher não é uma peça convencional, com
começo, meio e fim bem definidos. É uma peça que leva à cena a necessidade,
a falta, o ser cindido, carente de um Outro que ele busca como a um espelho
que lhe revelasse ele mesmo. E ainda que a união com esse Outro seja
sempre dolorosa, o indivíduo – as personagens do teatro de Almada – a
persegue incansavelmente.
Em um ensaio intitulado “O meu teatro”, Almada Negreiros revela
que esperou em vão que a crítica notasse que em Deseja-se mulher não há
ação. O que há em cena é expressão da pura necessidade:
Considero em “O meu teatro” o meu melhor exemplo no exercício da
peça Deseja-se mulher, como o desnudamento da necessidade em
cena. Sobre o mais simples dos sueltos jornalísticos, não passa neste
nenhuma intriga. Deste modo fica mais evidente que toda a acção
está constantemente negada. Se não estivesse constantemente
negada a acção, não permitiria apurar a necessidade. Ora Deseja-se
mulher é exclusivamente necessidade. Nenhuma das personagens
entra em intriga, o que em cada um faz mais flagrante a necessidade
ser mais ou menos digni dade.
73
Esperei em vão que a crítica anotasse: não há competição em
Deseja-se mulher. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 1102).
Além da expressão da necessidade, Deseja-se mulher leva ao
palco uma crítica à sociedade fútil e preconceituosa da época, e à
mecanização dos seres humanos.
O Protagonista nos parece a personagem menos automática da
peça. Dizemos isso porque em alguns quadros – quinto, sexto e sétimo – é
possível reconhecer nas suas falas a voz do autor clamando por uma realidade
diferente (como é o caso do seu discurso no estrangeiro) e, ao mesmo tempo,
constatando que não há como modificar esta realidade (o que fica claro quando
anuncia a morte do homem). Nos outros quadros da peça – primeiro, segundo
e terceiro –, o protagonista apenas é o representante do homem comum em
busca da sua integração pessoal e social. Por isso, nestes quadros
especificamente, notamos os seus gestos e as suas falas mais repetitivas e
automáticas.
São assim as personagens de Deseja-se Mulher: movidas por uma
necessidade infinda, complexa, avassaladora, insolúvel trágica, enfim.
74
4 A TRAGÉDIA DO MUNDO SOCIAL EM S.O.S
Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
até reparo que só tenho espera nça
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.
(Almada Negreiros, “Esperança”)
Concebida para ser representada na seqüênc ia de Deseja-se
mulher, S.O.S (1929) aborda a busca da unidade no mundo social: aquela que
se dá entre o indivíduo e a coletividade, portanto.
As personagens da peça são daquelas que aguardam nas salas de
espera da vida uma oportunidade para viverem dignamente, desempenhando
uma função profissional. O cenário representa a minúscula recepção de um
grande jornal: “O Estado, diário nacional”. Dentre as várias pessoas que, à
procura de um emprego, estão ali com a esperança de serem recebidas pelo
Diretor, destacam-se o Protagonista e a sua Noiva. Ele, beneficiado por uma
carta de recomendação assinada por um amigo do Diretor, consegue uma
entrevista durante a qual o jornal é atacado por um grupo revolucionário que
mata o Diretor e assume a direção. Assim que o novo Diretor toma posse do
cargo, ocorre outra invasão de um outro grupo que depõe o Diretor atual e
elege um novo. Em meio às mudanças, um Árbitro entra em cena e interrompe
os acontecimentos para avisar os espectadores que a peça tem que terminar,
ainda que as revoluções e as trocas de diretores sejam intermináveis.
Como em Deseja-se mulher, as personagens de S.O.S não são
identificadas por um nome próprio, mas sim pela função que desempenham
tão-somente: O Contínuo, O Protagonista, Sua Noiva, Pessoas que estão na
sala de espera, O Diretor, A Datilógrafa, Outro Diretor, 3ºDiretor, O Árbitro,
Partidos armados de várias cores. A substituição do nome próprio pela função
sugere a universalidade do problema explorado. Cada personagem revela-se
simplesmente uma célula da coletividade: é do ser humano e da sua inserção
social que se trata, afinal.
75
A peça está estruturada em um ato de dois quadros. Trata-se do
segundo e terceiro quadro do segundo ato. O primeiro ato e o primeiro quadro
do segundo ato não foram publicados. Não se sabe ao certo se Almada
Negreiros não publicou a parte que falta ou se simplesmente não a escreveu.
Afigura-se-nos, todavia, plausível que a peça seja deliberadamente
fragmentária. Depois da leitura de Deseja-se Mulher, não é difícil entender que
Almada quisesse encenar também a fragmentação do meio social e a angústia
do ser humano inserido nesse meio.
Com efeito, S.O.S. explora, tanto quanto Deseja-se Mulher, a
situação caótica e complexa em que os indivíduos modernos se encontram. Se
o caos, em Deseja-se mulher, se expressa formalmente através das bruscas e
diversas mudanças de cenário, em S.O.S. é precisamente o aspecto
fragmentário do texto (a falta aparente de um primeiro at o e do primeiro quadro
do segundo ato) que o sugere. Todavia, enquanto em Deseja-se Mulher
ficávamos com a impressão inicial de que a peça não tinha propriamente
princípio, meio e fim, S.O.S. deixa-nos pensar precisamente o contrário, apesar
da sua aparente incompletude.
É evidente, de resto, que as duas peças tratam do mesmo problema:
a tragédia da unidade. E como o próprio Almada desejava que ambas fossem
representadas seqüencialmente, não conseguimos resistir à tentação de s upor
que o Protagonista de S.O.S. é o mesmo de Deseja-se mulher, que lá era
focalizado de uma perspectiva que salientava o seu caso pessoal e que agora
se mostra envolvido num caso que é também da coletividade. Noutros termos,
enquanto Deseja-se mulher apresenta o protagonista em busca da sua
realização pessoal – a que se dá juntamente com a mulher –, S.O.S. o
apresenta em busca da sua realização social – a que se dá juntamente com os
outros indivíduos.
4.1 SEGUNDO QUADRO
S.O.S. é a abreviação do sinal de telegrafia para pedir socorro
(“save our souls”), mas também é “sós”. Almada Negreiros (1997, p. 767)
explora a ambigüidade do termo: “SOS perdidos, desencontrados, sozinhos!
76
SOS estamos todos sozinhos, perdidos todos! SOS sozinhos! SOS
descontrolados! SOS perdidos! SOS sós! SOS sós! SOS”. O jogo de
significados impele-nos à conclusão: socorrei-nos, pois estamos sós.
São estas três letras que estão na boca das pessoas que estão na
sala de espera do grande jornal “O Estado, diário nacional”, cenário do
segundo quadro da peça. Trata-se de “Uma pequeníssima sala de espera de
um grande jornal” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 531). As pessoas que
estão nesta sala aguardam a possibilidade de pedir um emprego. Mais do que
um emprego, estas personagens têm a esperança de encontrar uma
oportunidade de participação na vida: “O PROTAGONISTA (À noiva) – Esta é a
porta de entrada para a vida” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 532). A
expectativa do Protagonista leva-nos a considerar a sua busca, diferentemente
de Deseja-se mulher, mais como uma espera.
O Protagonista de Deseja-se mulher tem liberdade para procurar
outra mulher; o de S.O.S. não dispõe da mesma liberdade: afinal, para
conseguir um lugar na coletividade – que para ele só pode ser alcançado por
via de um trabalho que sirva a interesses coletivos –, ele necessita de um
emprego. A necessidade representada em S.O.S envolve todo um conjunto de
pessoas e não duas pessoas apenas. Assim, se em Deseja-se mulher há a
dificuldade de harmonizar os interesses de dois seres, em S.O.S. a dificuldade
continua, pois harmonizar os interesses de todos os indivíduos de uma
coletividade parece ainda mais difícil.
A probabilidade de participar da suposta coletiv idade
12
é muito
pequena, o que fica claro na descrição da sala de espera e na preocupação do
autor ao sugerir, na didascália, que a recepção do j ornal deveria ocupar só
meio palco para acentuar a sua pequenez:
Para dar melhor impressão de sua pequenez, o cenário ocupará
apenas um lado do palco. Uma única porta ao fundo. Um cartaz na
parede representando um arauto anunciando com uma corneta “O
12
A coletividade a que o protagonista da peça teria acesso pela porta da recepção do Jornal
não é a coletividade verdadeira. Trata-se apenas da coletividade servida pelo partido político
do Diretor do jornal. Isto é claro nas perguntas do Diretor quando entrevista o Protagonista e na
interminável disputa dos partidos políticos que desejam o controle do jornal. Nenhuma das
pessoas que chegam a ocupar o lugar do diretor daquele jornal representa o interesse da
coletividade, mas sim o do partido que cada qual apoia.
77
Estado, diário nacional” [...] A sala está literalmente cheia de fumo de
tabaco.
Várias cadeiras muito juntas umas às outras aproveitam todo
o espaço junto das paredes. / Todas as cadeiras estão ocupadas
pelas mais distintas personagens das mais variadas educações e
todas esperam com mais ou menos paciência que lhes chegue a sua
vez de serem atendidas. De vez em quando abre-se a porta e
aparece o contínuo fardado procurando com os olhos alguém dos
presentes. A ansiedade de cada um destes é geral e, quase sempre,
o contínuo não encontra quem procura. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 531)
As pessoas que estão nesta sala, assim como o Protagonista,
aguardam a possibilidade de pedir um emprego. Provavelmente, a pequenez
da sala sugere a minúscula possibilidade de uma oportunidade de conseguir
um emprego naquele local. A única porta, além de representar a esperança de
uma vida melhor, representa um único caminho por onde procurar a
coletividade. A sala abarrotada de gente e a fumaça de cigarro agravam o
estado de ansiedade daqueles que esperam.
As pessoas que estão na sala experimentam uma sensação
contraditória de esperança, angústia e desespero: esperança de conseguirem
uma colocação, angústia e desespero por nunca chegar a sua vez de serem
entrevistadas. Mas além desses sentimentos há um outro que parece impedir
qualquer ação das personagens: é o medo. Isso é claro no princípio da peça,
quando uma personagem, identificada como o Senhor, fica indignada ao
perceber que não querem atendê-la:
O CONTÍNUO (Entregando-lhe a carta.) – Não está!
O SENHOR (De cabeça perdida.) – Não está?!...
O CONTÍNUO (Como antes.) – Não senhor, não está!
O SENHOR – Está, sim senhor!
O CONTÍNUO – O que quer o senhor que eu lhe faça? A ordem que
me deram é que este senhor não está. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 531)
O Senhor, que num primeiro momento parecia demonstrar a sua
raiva, imediatamente hesita e contém-se, pois sabe que as chances de
conseguir um emprego são mínimas e, por isso, é incapaz de demonstrar a sua
indignação de fato: “O SENHOR (Recebendo bruscamente a carta.) – Está
78
bem. Faça o favor de lhe dizer da minha parte... muito obrigado! (Sai
esforçando dignidade.)” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 531).
O medo de não ter a oportunidade de ser entrevistado é
compartilhado por todos na sala de espera. Por isso, embora indignados,
cansados e estressados, eles mostram-se amáveis e educados com o
Contínuo:
OUTRO SENHOR (Ao contínuo, antes que saia.) – Então já? (Cada
vez mais amável.) Já con seguiu falar com ele?
O CONTÍNUO – Tenha paciência, tenha paciência. O Senhor não é
mais do que os outros. Já chegará a sua vez. (Fecha a porta.)
O SENHOR (Sempre amável.) – Eu espero, eu espero. (Torna a
sentar-se.) É a única coisa que eu sei fazer: esperar. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 531-2)
Ao afirmar que só sabe esperar, a personagem demonstra a sua
resignação. Além disso, essa afirmação fortalece a nossa suposição de que,
mais do que uma busca, S.O.S. representa uma espera. O próprio título da
peça confirma tal hipótese: socorro. A resolução não depende da ação própria,
mas sim de que outro(s) faça(m), resolva(m), salve(m) a existência daquele
que aguarda.
Ninguém reage, todos são subservientes: “O HOMEM – Por hoje
não posso esperar mais, tenho que ir atender às minhas coisas, mas amanhã
volto à mesma hora” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 534, grifo nosso). A
certa altura, a passividade das personagens revela-se automatismo:
[...] todas as personagens acabam por cair em tão grande
passividade que no meio do aborrecido silêncio ouve-se distintamente
a respiração de cada um. Subitamente todos, sem excepção, em um
único movimento como numa fotografia começam a recitar em coro:
TODOS – Somos aqueles que esperam nas salas de espera da vida
e assim sempre a esperar temos a esperança de um dia deixarmos
de esperar para sempre. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 532)
Paradoxalmente, a esperança parece ser a responsável pela falta de
ação das personagens em S.O.S. e também em Deseja-se mulher. Nesta, é
justamente a esperança, representada pela luzinha, que não permite que a
79
segunda mulher esqueça o Protagonista definitivamente. Em S.O.S, a
esperança – associada ao medo e à submissão ao sistema – é o que mantém
as personagens passivas na sala de espera do Jornal.
Apesar de também estar à espera, a Noiva julga que a situação dela
e do Protagonista é melhor do que a das outras personagens:
A NOIVA (Ao protagonista) – Pobre gente!
O PROTAGONIS TA – Referes-te a t o dos menos a nós doi s?
A NOIVA – Sim.
O PROTAGONISTA – Pois eles têm essa mesma impressão de nós
também.
A NOIVA – Mas eu não trocava a minha sorte com a deles. (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 532-3)
O Protagonista, que parece ter uma visão mais ampla da situação,
explica-lhe que a esperança particular do indivíduo faz com que cada um que
está naquela sala pense exatamente como ela:
O PROTAGONISTA – Eles também não trocavam a deles com a
nossa. E sabes porquê? Porque a esperança que cada um tem na
vida vale mais do que tudo. Somos todos iguais, todos. Estamos
todos à espera da mesma coisa: viver! (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p. 533)
O protagonista reconhece que é a esperança que mantém aquela s
personagens vivas porque a ausência deste sentimento faz com que o ser
humano desista da vida: “A NOIVA – Achas que podem ser atendidos todos? O
PROTAGONISTA – Felizmente nós morremos todos primeiro do que as nossas
esperanças” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 533). A esperança é, pois, um
sentimento muito particular de cada um, é ela que faz o indivíduo levantar-se
todos os dias, ainda que seja para enfrentar uma situação impossível. A Noiva,
porém, parece não se convencer de que a situação deles é a mesma de todos
os outros ali presentes. Ela não se dá conta de que a sua confiança em uma
sorte melhor deve-se justamente à sua esperança.
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Assim como em Deseja-se mulher, o Protagonista de S.O.S.
diferencia-se das outras personagens em cena. Ele parece ser o mais lúcido,
mais realista e mais crítico.
Ciente da necessidade, que qualquer indivíduo tem, de ver um
sentido em sua vida, o Protagonista explica à sua Noiva que aquela sala de
espera é igual a qualquer outra sala de espera em qualquer outro lugar. Não s e
trata de escolher um caminho, trata-se de não haver caminhos, uma vez que
todos levam ao mesmo destino: a solidão. Esse problema não é específico de
uma nação, ele é universal; por isso, de nada adianta mudar de cidade, país ou
continente:
O PROTAGONISTA – O mundo é do tamanho do mundo. Em
qualquer parte é igual a toda parte. É impossível fugir da realidade.
Ela é sempre a mesma em todos os sítios onde estivermos. A
realidade depende de nós. Somos nós a realidade. Aqui a temos
nesta sala diante dos nossos olhos. O único que pode salvar esta
realidade é a esperança que cada um tenha de melhores dias. Não é
preciso irmos pelos caminhos como os vagabundos. Já somos nós
todos os vagabundos. O que nos falta, o que já não há são os
caminhos. Acabaram-se os que havia. Agora, o mundo inteiro anda à
procura do novo caminho. É um caso de vida ou de morte para todos
os vagabundos. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 533)
A única coisa que pode mudar o destino daquelas personagens é a
esperança que cada um traz consigo. A sala de espera abarrotada de gente
significa que a oportunidade de participar da vida é dada a poucos. Isto porque
a coletividade, simbolicamente guardada no interior da sala do Diretor do jornal,
não representa o coletivo integral, mas um grupo apenas: o dos que estão no
mesmo partido político do Diretor.
A sala de espera está cheia de pessoas diferentes que compartilham
da mesma angústia. São, portanto, histórias iguais de personagens diferent es.
A busca agora é por um novo caminho. Os caminhos, como num movimento
mais uma vez cíclico, acabam-se e renovam-se. A esperança reside
exatamente no fato de que não há o fim definitivo, mas apenas,
paradoxalmente, o fim que conduz de novo ao começo.
A repetição é acentuada no final do quadro, que termina com a
chegada da numerosa família que faz encher ainda mais a recepção do jornal.
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Trata-se de um final nada convencional, visto que, normalmente, as cortinas
descem com a saída das personagens e não com a entrada delas. A chegada
da família representa, além da repetição, que os indivíduos que não participam
do sistema são mais numerosos do que aqueles que participam.
4.2 TERCEIRO QUADRO
No Terceiro Quadro, a cena se passa no gabinete do Diretor do
jornal. Este ambiente é bem diferente do anterior. Enquanto a recepção é
apertada e abafada, a sala da direção é ampla, moderna e arejada: “Uma porta
ao abrir-se deixa ver a palavra ‘Direcção’. Uma janela que dá para a rua. / O
gosto moderno. Uma grande secretária para o Director. Cadeiras para as
visitas” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 534-5)
A sala é decorada com o mapa e a bandeira do país que representa.
Todavia, este mapa e esta bandeira, assim como os outros que os substituirão,
não devem fazer alusão a nenhuma pátria ou facção política específica:
A parede do fundo decorada com o mapa de uma nação imaginária
com as suas províncias e fronteiras entre os quatro pontos cardeais. /
No centro deste mapa destaca-se um círculo negro que representa a
capital deste país. Espetada no círculo uma bandeira. Esta bandeira e
as outras que a substituam neste mesmo sítio durante este quadro,
devem ser escolhidas de maneira que as suas cores não façam
alusão nem a países nem a opiniões como também que não deixem
lugar a dúvidas ou a suposições. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
534)
A indefinição da bandeira e do país, assim como a das personagens,
sugere que a situação em cena não se reporta a uma única nação, mas sim a
todas.
O gabinete do Diretor representa, para o Protagonista e para todas
as pessoas que estão na recepção, o lugar onde eles podem adquirir um vis to
para a vida. É o local onde supostamente são defendidos os interesses da
coletividade.
Quando o Protagonista e a sua noiva entram na sala, o Diretor está
ocupado, assinando alguns papéis, e demora a atendê-los. Finalmente ele
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dirige-se aos recém chegados e, imediatamente, o Protagonista lhe entrega a
carta de recomendação. A impressão que temos é a de que somente por meio
da carta o Protagonista tem a oportunidade de ser entrevistado, pois o Diret or
não parece nem um pouco disposto a perder o seu tempo com os dois
desconhecidos: “O DIRECTOR (Começa a ler a carta para si e acaba por ler
em voz alta este pedaço:) – ... e tenho o maior prazer em apresentar-te este
meu amigo que é um jovem que começa hoje a vida cheio de entusiasmo.
(Fala.) Está muito bem. (Consulta o relógio e faz um cálculo mental) Muito
bem.” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 535)
A indiferença do Diretor para com o casal é acentuada quando ele
consulta o relógio: o tempo, afinal, é sempre um condicionante das relações
humanas. Durante a entrevista, o Diretor chega a admitir que só atende o
Protagonista por causa da carta:
DIRECTOR – É que estamos perdendo um tempo precioso. Daqui a
pouco é a hora de eu sair e com o senhor a discutir as respostas não
o poderei atender nem satisfazer o pedido do meu amigo que mo
apresenta nesta carta, apesar de toda a minha boa vontade.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 538)
A diferença entre o Diretor e o Protagonista é visível: o primeiro
representa o coletivo, as exigências burocráticas do sistema; o segundo o
indivíduo, as inquietações dos que almejam muito mais. Para o Diretor as
perguntas (Qual é a sua religião? Qual é a sua política? É ambicioso? O que
deseja no futuro? Tem alguma razão de queixa da vida?) são objetivas; para o
Protagonista elas são perguntas reflexivas e, por isso, não é possível
respondê-las somente com um “sim” ou com um “não” como deseja o
questionador.
É possível verificar no diálogo destas personagens um duelo de
opiniões. A diferença de interpretação das perguntas sugere a dificuldade de
conciliação dos interesses pessoais com os interesses sociais:
O DIRECTOR – Que religi ão tem o senhor?
O PROTAGONISTA - Religião... e na verdade não tenho nenhuma.
O DIRECTOR – É ateu?
83
O PROTAGONISTA – Não, não senhor. Os me us pais eram católicos.
O DIRECTOR – Eu pergunto o senhor. (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 535)
Para o Diretor, não pertencer a nenhuma das religiões
institucionalizadas é o mesmo que ser ateu. Para o Protagonista, a religião é
uma escolha muito particular de cada indivíduo e, por isso, não interessa à
coletividade. Além do mais, as doutrinas religiosas dividem os indivíduos em
grupos e, de certa forma, instigam uma concorrência que não é positiva para o
bem-estar da humanidade:
O PROTAGONISTA – Eu creio que a religião é um assunto que
pertence a cada qual e que é alheio aos interesses da colectividade.
O DIRECTOR – Nós não temos nada que ver com a opinião de cada
um.
O PROTAGONISTA – Mas não é tal uma opinião, é um facto.
O DIRECTOR – Um facto?
O PROTAGONISTA – Sim senhor. Nenhuma religião é universal!
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 535)
O Diretor não quer perder tempo com o Protagonista. Este não sabe
responder às perguntas de forma objetiva, como gostaria o Diretor:
O DIRECTOR – Bem, bem. Vamos à pergunta. O que nos interessa é
a sua resposta. Que religião tem o senhor?
O PROTAGONISTA – Não sei.
O DIRECTOR – Não sabe?
O PROTAGONISTA – Não sei respo nder.
O DIRECTOR – Mas faça a pergunta a si mesmo e responda a si
próprio.
O PROTAGONISTA – Mas isso não é a mesma coisa. O que eu
respondo em público não é o mesmo que eu sei responder a mim
próprio.
O DIRECTOR – Ah é diferente?
O PROTAGONISTA – É a mesma coisa mas de maneiras diferentes.
O DIRECTOR – Pois se é a mesma coisa...
O PROTAGONISTA – Eu, para mim, tenho uma religião, mas esta
religião não está feita dentro de mim, não tem nome sequer, é religião
apenas; se me perguntarem qual é...
O DIRECTOR – Mas no papel eu não posso pôr que o senhor é
religioso, tenho que escre v er qual é a sua religião.
[...]
84
O PROTAGONISTA – Neste caso eu não tenho religião nenhuma
oficialmente.
O DIRECTOR – Ora até que enfim. Muit o bem: Nenhuma.
[...]
O PROTAGONISTA – Mas eu não disse nenhuma, eu disse nenhuma
oficialmente. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 535-6)
O Diretor e o Protagonista não conseguem chegar a um
entendimento. Por fim, o que prevalece é a voz do primeiro, uma vez que ele
representa o lado determinante, ou melhor, o lado que detém o poder.
A pergunta seguinte – “qual é a sua política?” – gera a mesma
divergência de opiniões. Para o Diretor, o entrevistado deveria responder quais
partidos políticos apóia: os de direita, ou os de esquerda. O Protagonista,
entretanto, compreende política de uma forma diferente. Para ele, a política é
um sistema de regras que atendem aos interesses do Estado:
O PROTAGONISTA – Evidentemente que sim. Nenhuma
colectividade se governa sem política. Mas não é Estado a própria
política da colectividade? Todo o Estado que se deixa atingir pelas
facções políticas das direit as ou das esquerdas é um Estado fraco.
[...]
Perdão! Perdão Sr. Director. O que não está claro de maneira
nenhuma é que eu responda apenas sim ou não. Eu tenho
efectivamente uma política, a política do Estado, enfim a única
política própria do Estado que representa uma colectividade. Contudo
se eu disser que tenho a política do Estado, ninguém me entenderá e
muito menos oficialmente. Ao passo que se eu pertencesse a
quaisquer facções políticas das direitas ou das esquerdas já podia
ficar arquivada pública e oficialmente a minha própria opinião
pessoal.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 537)
A coletividade, como observa o Protagonista, necessita de uma
política que a governe. Entretanto, o governo é feito por homens – seres
humanos que são atraídos pelo poder. A possibilidade de satisfazer as suas
próprias vontades ao invés de priorizar as vontades de toda a gente é
tentadora para o indivíduo e fatal para o coletivo.
Já as três últimas perguntas do Diretor (É ambicioso? O que deseja
ser no futuro? Tem alguma razão de queixa da vida?) estão concatenadas.
85
Novamente, para entender à exigência de “sim” ou “não”, as respostas do
Protagonista acabam ficando num duvidoso “não”.
Como representante da humanidade, o Protagonista encara a
ambição como um sentimento particular que leva o indivíduo a afastar-se dos
outros. Trata-se do caminho mais rápido para encontrar a solidão: “O
PROTAGONISTA – [...] Não me atrai a glória de espécie nenhuma.
Precisamente o meu caminho é o oposto a esse: eu fujo da solidão” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 537). O protagonista busca, portanto, seguir pela via
que congrega todos os indivíduos: a direção única.
Para alguém que almeja encontrar a sua função no âmbito do corpo
coletivo, viver é colaborar para o bem-estar da humanidade:
O PROTAGONISTA – [...] O meu único desejo é colaborar com a
minha parte no único que existe no mundo ou seja a própria vida. E
isto não é ter uma especialidade, creio eu: viver. Viver é colaborar
com todos na própria vida. Colaborar, colaborar e colaborar e nada
mais que colaborar. Dêem-me ordens às quais eu possa e deva
obedecer. Ordens perfeitas, justas, vitais. A colectividade é
mobilização geral de todos os seus indivíduos e eu sou um deles,
recebo ordens. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 538).
Esta fala é semelhante à do Protagonista de Deseja-se mulher, no
sexto quadro da peça, quando ele disserta sobre as diferenças entre profissão
e vocação (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 518-9). Naquela peça, o orador
alertava para o fato de a vocação ser sufocada pela técnica, pelo ofício; nesta,
o entrevistado alega que o indivíduo não precisa ter uma especialidade e que
necessita apenas de colaborar da melhor forma possível para o bem-estar do
conjunto, da humanidade.
O Protagonista concebe, com as suas respostas, uma sociedade
ideal, muito distinta da sociedade capitalista real. Nesta, quem determina os
percursos é o capital, de maneira que quem não o possui fica inevitavelmente
excluído. Na corrida pela posse, os indivíduos tornam-se especialistas e,
conseqüentemente, autômatos. A especialidade de cada ser é colaboradora
para fazer vigorar e progredir a sociedade competitiva. O cenário competitivo e
excludente em que se transformou a sociedade é o motivo que leva o
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Protagonista a considerar que “hoje em dia tornou-se perigoso viver” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 539).
Todavia, ao longo da entrevista a postura do Diretor parece
modificar-se. Embora ele continue apressado e não processe as respostas
como o Protagonista gostaria, ele ouve as suas reflexões e podemos até
pensar que concorda com elas: “O DIRECTOR – Ó meu caro senhor. Eu
compreendo-o perfeitamente. O meu amigo tem carradas de razão. Mas faça-
me esse favor a mim, pessoalmente, responda à pergunta apenas com um sim
ou um não” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 537).
A impressão que fica, no final da entrevista, é a de que o Diretor já
teve, outrora, uma postura parecida com a do Protagonista, mas afinal deixou-
se “corromper” pelo sistema. Ele também já fora um poeta – como se as
reflexões pertinentes fossem as dos poetas e daqueles que têm entusiasm o
pela vida:
O DIRECTOR – [...] Ah! pois eu também fui poeta. Também andei
assim pelos andares a querer começar a minha vida cheio de
entusiasmo. Também a mim me perguntaram sempre: qual é a sua
religião, qual é a sua política. Nunca mais me há-de esquecer em
dias da minha vida a impressão que me fez ouvir pela primeira vez
esta pergunta: (Imitando alguém superior a ele.) “O senhor é judeu,
maçônico ou jesuíta?...” E sabe o que eu era afinal, de verdade?
(Pega na carta que lhe trouxe o protagonista e lê outra vez o
pedaço.)... um jovem que começa vida hoje cheio de entusiasmo.
(Fala.) É assim mesmo que se começa, meu amigo. Ah, antes que
esqueça: gostei muito das suas respostas. Não importa o que fica no
papel. Acabo de demitir um colaborador, aqui tem uma ocasião.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 540)
O entusiasmo dos que começam se apaga à medida que percebem
que o sistema não se importa com a sua vontade, mas apenas com aquilo que
se pode ser feito para que ele funcione. Isto fica claro na conversa que o
Diretor desenvolve, por telefone, com um dos colaboradores do jornal:
O DIRECTOR – [...] Ah é o senhor? Até que enfim. Andaram toda a
manhã à sua procura. – Sim, sim, isso mesmo: Por causa do seu
artigo. – O que tem o seu artigo?! E ainda o pergunta? O senhor sabe
tão bem como eu. – Pois a mim desagradou-me em absoluto. A
ponto, oiça, a ponto de eu ter ordenado que de hoje em diante todo o
original passe pela minha mesa e que não entre nas máquinas sem
ter o meu visto. Eu preferia poder confiar em todos os meus
87
colaboradores, mas precisamente por causa do seu artigo mudei de
parecer. – Como diz o senhor? – As suas idéias!?... mas o que é que
temos nós que ver aqui com as idéias de cada qual!?! Aqui as idéias
são de todos e de mais ninguém. – O Estado é uma empresa
perfeitamente organizada e onde tudo funciona tecnicamente. Aqui
não se pode puxar para a direita ou para a esquerda. Isso de
esquerdas e de direitas são assuntos particulares. E eu não estou
disposto a consentir, seja a quem for, que venha cada qual mostrar
em público como anda dos fígados. Ouviu? – E outra vez as suas
idéias! Ó homem de Deus, mas o que é que eu tenho que ver com as
idéias de cada um!? O que me importa a mim as suas idéias! – Pois
que fique-se lá com as suas idéias, ou morra para aí com elas que é
o que se costumam fazer os que têm idéias! – Hã!? – Diga lá, diga lá!
– Sim senhor! Aceito. Aceito imediatamente. Está demitido. O senhor
manda lá em sua casa, cavalheiro, e aqui o Estado! (ALMADA
NEGREIROS, 1997, 539-40)
O Diretor ataca o jornalista com o intuito de defender o Estado, que
não admite “direitas” nem “esquerdas”. Contudo, o que se nota de fato, na sua
postura, é uma direção autoritária e repressora. A maior prova de repressão do
Diretor está na sua atitude de vetar a liberdade de imprensa. Em última
instância, o Diretor se vale do estatuto de representante do Estado e da
coletividade para, na verdade, fazer valer os seus interesses particulares.
Assim, o que chama a atenção do Diretor no Protagonista são as
suas afirmações de que não tem um partido político nem uma religião
específica, bem como a sua vontade de ser apenas um fiel colaborador do
Estado: “Colaborar, colaborar e colaborar e nada mais que colaborar”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 538).
O Diretor, que só se interessa por manter o poder, não compreende
as palavras do Protagonista e as entende como uma declaração de submissão:
“O DIRECTOR – Gosto muito de falar com os novos. Falais de deveres
,
pergunto: está ou não o Estado representado por uma autoridade?” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 541, grifo nosso) O Diretor gosta de ouvir falar em
deveres para com o Estado, uma vez que se julga o próprio Estado e, por isso,
não é difícil adivinhar que a resposta que ele espera para a sua pergunta é
“sim”. Contudo, o Protagonista, ao invés de responder, pergunta: “E quando
essa autoridade não for a própria autoridade?” (ALMADA NEGREIROS, 1997,
p. 541). O Diretor, mais uma vez, não compreende e pergunta: “Mas quem é o
juiz? A NOIVA – Os nossos deveres são para com o Estado. O
PROTAGONISTA – Sempre só o Estado”. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p.
88
541). O que o Protagonista e a sua Noiva querem dizer é que o Diretor, ao
contrário do que pensa, não é um representante do Estado, mas apenas um
colaborador:
O DIRECTOR – Neste momento ocorre-me uma pergunta: o que faria
o senhor em meu lugar?
O PROTAGONISTA – Não sei nem me compete sabê-lo. Ao passo
que a V. Exa., Sr. Director, não lhe compete ignorar nem hesitar
nestas coisas.
O DIRECTOR – Não lhe parece que isto será exigir demasiado do
meu cargo?
O PROTAGONISTA – V. Exa. Saberá melhor do que eu, Sr. Director;
é demasiado o que lhe compete e se lhe exige aí no seu lugar?
O DIRECTOR – Pergunta-me a mim?
O PROTAGONISTA – Sim senhor. Exactamente como se eu
representasse agora aqui neste momento a humanidade inteira.
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 541-2)
O Protagonista acaba por incorporar uma autoridade superior: a
humanidade inteira. A sua pergunta exige uma reflexão daquele que alimenta o
movimento do sistema. O Diretor não chega a responder à pergunta do
Protagonista, pois a entrevista é interrompida pela invasão de guerrilheiros que
depõem o diretor e elegem um outro.
O novo Diretor, assim como os que o sucedem, limita-se as mesmas
ações do se antecessor, revelando que não há mudança de cunho social, mas
sim partidária.
A repetição do ato revolucionário e a repetição da post ura dos novos
diretores e combatentes revela a disputa pelo poder como algo contínuo e
perpétuo. Por isso, a peça não tem fim: é simplesmente interrompida por uma
personagem identificada pela sua função de árbitro. Este entra em cena par a
avisar o público que aquele quadro não terminou, mas como aquela troca de
poder é interminável, ele achou conveniente parar a encenação:
O ÁRBITRO – Podíamos estar aqui a vida toda e a única coisa que
mudava era a cor daquela bandeira. De modo que esta obra que aqui
está a representar-se não pode sair do mesmo sítio. Sinto muitíssimo
ter que dar esta desagradável notícia a V. Exas., mas, como árbitro,
não posso deixar de participar-lhes que é inteiramente impossível
seguir com esta peça para diante. Passa-se aqui o mesmo que nos
discos de gramofone, quando a agulha não pode continuar o seu
89
caminho na espiral porque ficou encalhada na mesma volta e repete
sempre a mesma coisa.
(Todas as pessoas que estão em cena com as máscaras postas
dizem alternadamente, conforme as suas cores: – Direita! –
Esquerda! – Direita! – Esquerda! – Direita! – Esquerda!... / O árbitro
apita e faz-se silêncio.) (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 545)
O Árbitro cumprimenta o Protagonista e a sua Noiva porque tem
consciência de que eles são as únicas personagens que estão cientes da
verdade, isto é, que sabem que o importante são os interesses da coletividade.
Os que optam por viver de acordo com a humanidade não têm religião oficial,
não pertencem a nenhuma facção política oficial e não possuem especialidade
oficial. Isso deve mesmo acontecer porque, afinal, est as opções implicam uma
preferência individual que,
Entretanto, tomar conhecimesto de ssa verdade, isoladamest
O ÁRBITRO – [...] Tem isto de terrível a verdade. Se uma pessoa a
encontrar7não lhe serve para nada. Porque a verdade não serve só
para um, nem só para dois, nem só para três, nem só para quatro,
nem só para cinco, nem que seja para seis milhões e meio! A
verdade é para todos ou para nenhum. Portanto, se um dia alguém
de V.Exas. encontrar a verdade, dou-lhe de conselho que a deixe
quietinha onde a vir. Não lhe toque. É o melhor que pode fazer.
Porque se a leva para casa e deseja ficar com ela só para si... pode
estar seguro de ter conseguido o caminho mais curto para o suicídio
ou para o manicómio, ou para a glória... sim, ia-me esquecendo: para
a glória! para a glória também. Ou para o suicídio, ou para o
manicómio ou para a glória! (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 546)
Para que a verdade não tenha um destino trágico, ela precisa ser
conhecida e adotada por todos os indivíduos, pois
se fazer valer.
Ora, esta reflexão sobre a verdade e sobre revoluções, que a peça
de Almada estimula, traz-nos à memória uma observação de Raymond
Williams (2002, p. 106), que também se interessa por tragédia moderna:
Uma sociedade para qual a revolução é necessária é uma sociedade
na qual a incorporação de todas as pessoas, como seres humanos
completos, é, na prática impossível sem que haja uma mudança nas
suas formas fundamentais de relação. As muitas formas de
90
“incorporação” parcial – como tornar-se eleitor, empregado, ter direito
a educação, proteção legal, serviços sociais, e assim por diante – são
conquistas humanas reais, mas que não são capazes, por si
mesmas, de se elevar àquele completo pertencimento à sociedade
que constitui o fim das classes. O inteiro pertencimento à sociedade é
a capacidade de conduzir uma determinada sociedade por meio de
mútua e ativa responsabilidade e cooperação, tendo como elemento
básico uma igualdade social completa. E, ao passo que esse é o
objetivo da revolução, ele se faz necessário em todas as sociedades
nas quais haja, por exemplo, grupos raciais subordinados,
trabalhadores rurais sem terra, mãos assalariadas – as minorias
desempregadas e oprimidas ou discriminadas de todos os tipos. A
revolução é necessária, nessas circunstâncias, não apenas porque
alguns homens a desejam, mas porque não pode haver nenhuma
ordem humana aceitável enquanto a completa dimensão humana de
qualquer classe de homens for, na prática, negada.
Vista da perspectiva de Williams, a revolução é um movimento que
implica sensíveis mudanças sociais e que envolve todo um pov o. Trata-se de
um sentido de revolução distinto daquele que S.O.S leva à cena. As revoluções
desta peça são esvaziadas de senti do, visto que são sustentadas por
interesses particulares, de grupos particulares e não da humanidade como um
todo.
A banalidade das revoluções de S.O.S. é enfatizada nas suas
insistentes repetições. O comportamento dos revolucionários é sempre o
mesmo. Assim, tem-se a impressão de que o primeiro Diretor também chegou
ao poder por meio de uma trivial revolução.
A repetição que “encerra” a peça mostra a impossibilidade de
mudança daquele cenário de opressão e submissão. Além disso, a repetição
aponta a impotência do ser humano diante da desgovernada busca pelo poder.
Embora a cena final seja mais movimentada do que a primeira, ela
tem a mesma atmosfera tensa. Na sala de espera, a demora que corroia as
personagens intimamente era reprimida pelo medo de não serem atendidas.
No final, a tensão continua e algumas posições se invertem: a Datilógrafa tira a
máscara de simples funcionária e mata aquele que parecia ser o comandante
de tudo:
(Neste momento entram em grande quantidade indivíduos, todos
armados com espingardas e que têm nos braços uns laços de cor
igual ao da dactilógrafa. Um deles traz uma bandeira desta cor, tira a
que estava no mapa e põe a nova no lugar dela. Então é indescritível
91
a alegria de toda esta gente e a raiva com que pisam na antiga
bandeira. Abraçam-se uns aos outros e cantam em coro o hino à
bandeira, à morte dos inimigos e à glória dos vencedores. Um deles,
em vez de laço, tem uma faixa da mesma cor passada na diagonal
desde o ombro até à cintura. Foi ocupar o lugar do outro Director. Vê
os papéis em cima da secretária e lê uma carta.) (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 544)
O Diretor, que durante a entrevista controlava tudo e todos, vê-se
desarmado e inoperante. As pessoas que se continham na recepção, invadem
a sala da direção na esperança de encontrar um meio de fugir. Todavia, a porta
que os levaria à vida é transformada na porta que os levará à morte, uma vez
que aquela sala é o foco dos revolucionários.
As revoluções, que em princípio causam espanto, são ridicularizadas
pelas didascálias finais e pelo Árbitro. Os temidos revolucionários armados
comportam-se como autômatos ao gritarem alternadamente “– Direita! –
Esquerda! –” (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 545).
Na rubrica final, quando o Árbitro levanta a mão do Protagonista e
da sua Noiva como se fossem os vencedores de uma luta de boxe, tem-se a
mesma impressão de um possível riso contido pelo horror verificado em
Deseja-se mulher. Afinal, não é aquela cena particular que parece uma luta,
mas sim o cotidiano real: a humanidade inteira está inserida num ringue e
comporta-se exatamente como os lutadores que o freqüentam.
A cena final de S.O.S., assim como a de Deseja-se mulher, é um
resumo de uma incessante busca, ou melhor, uma volta ao começo, uma vez
que continua retratando o mesmo que no início: a desarmonia da sociedade
configurada em cenas fragmentadas e repetidas que figuram o caos onde não
há comunicação nem consenso; há apenas a demonstração das vaidades, do
egoísmo, da opressão, da angústia e da solidão.
92
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na leitura de Deseja-se mulher e S.O.S. ou do El Uno, tragedia de
la unidad – já que este é o título geral das peças –, atentamos para os
componentes formais que participam da expressão almadiana tragédia da
unidade: as repetições, a fragmentação, as contradições e as impossibilidades.
No teatro de Almada Negreiros, estes elementos interligam-se, uma vez que a
existência de um subentende a do outro: a repetição é decorrente da
fragmentação, que gera as contradições que, por sua vez, tecem uma teia de
impossibilidades que impede a ação das personagens. Assim, o que se tem em
cena é a representação da necessidade de ser uno e da inércia que impede as
personagens de saciarem as suas necessidades. A tragédia da unidade é,
portanto, uma expressão que traduz o impasse do homem preso a essa inércia.
Assim, a expressão de Almada Negreiros não pode ser
rigorosamente compreendida sob o prisma da teoria da tragédia enquanto
gênero literário, pois que o termo “tragédia” assu miu, naturalmente, um
significado mais amplo, adquirido com o passar do tempo. Trata-se, afinal, da
tragédia do cotidiano em que as desigualdades, as explorações, as misérias –
a social e a cultural – roubam a cena. Neste quadro, o ser humano vive um
paradoxo: sente-se desgostoso com as injustiças do sistema, mas, à medida
que não faz nada para mudá-lo, colabora com a sua manutenção. Em suma, ao
mesmo tempo em que se revolta, cala-se, como esclarece Raymond Williams.
(2002, p. 29-30):
Conheci a tragédia na vida de um homem reduzido ao silêncio, em
uma banal vida de trabalhos. Na sua morte comum e sem
repercussão vi uma aterradora perda de conexão entre os homens, e
mesmo entre pai e filho; uma perda de conexão que era, no entanto,
um fato social e histórico determinado: uma distância mensurável
entre o desejo desse homem e a sua resistência ao sofrimento, e
entre estes dois e os objetivos e sentidos que uma vida comum lhe
ofereceu. A partir daí, tomei conhecimento dessa tragédia de forma
mais ampla. Vi a perda de conexão que se erguia entre a comissão
de operários e a cidade, e homens e mulheres esmagados tanto pela
pressão de aceitar essa perda como normal quanto pelo adiamento e
corrosão da esperança e do desejo.
93
O próprio princípio de desenvolvimento é contraditório, pois ao
mesmo tempo em que proporciona conforto e praticidade ao homem moderno,
“escraviza-o”. Afinal, no intento de usufruir das vantagens viabilizadas pelo
progresso, o ser humano empenha-se quase exclusivamente em adquirir
recursos que as possibilitem e que as mantenham. Na corrida pelo t er, o
indivíduo reprime os seus ideais em favor do lucro imediato, adapta-se às
exigências do sistema – pois teme ser excluído por ele – e, por fim, tem-se uma
grande inversão: ao invés de o homem ter o domínio sobre o sistema, é este
quem controla aquele. O ser humano torna-se, portanto, um autômato e já não
tem tempo para si e muito menos para o out ro. As relações intersubjetivas, que
deveriam ser naturais, tornam-se esporádicas e/ou forçosas, isto é, os homens,
na maioria das vezes, interagem apenas com um fim determinado: o da
produção e do lucro.
O distanciamento entre os sujeitos abre as portas para a solidão.
Assim, mesmo que rodeado de gente o ser humano sente-se sozinho, já que o
outro deixa de ser seu semelhante para ser um concorrente, um estranho.
Trata-se de mais um paradoxo: o da multidão vazia.
O caos do distanciamento é entendido por Almada Negreiros como a
morte da coletividade e – como esta é formada por indivíduos – a conseqüente
morte do ser humano: “Não é só o indivíduo que não existe, hoje também não
existe a coletividade. São apenas dois restos que ficaram de ontem. Não existe
nenhum deles por causa do outro. São inseparáveis de verdade” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 766).
Para conciliar indivíduo e coletividade, é neces sário que os
interesses de ambos estejam concatenados – o que parece impossível num
meio onde ninguém se entende. Assim, neste cenário de grande disputa e falta
de ligação, nota-se a ausência de dois fatores: a comunicação e o consenso.
Comunicação deveria ser o meio pelo qual as pessoas expõem as suas
opiniões e tomam ciência do pensamento alheio; o consenso deveria ser, numa
relação intersubjetiva, o mediador das opiniões. Um depende do outro: sem
comunicação não há consenso.
Em Antes de começar, verifica-se o poder de comunicação dos
bonecos de teatro que conseguem superar-se enquanto indivíduos e entender-
94
se enquanto corpo coletivo. A unidade dos bonecos não demons tra a
possibilidade de unidade, mas sim o inverso, visto que a unidade só é possível
no plano da fantasia, da imaginação, da crença – o plano dos bonecos, enfim,
das marionetes de Almada. É por isso que, em Deseja-se mulher e S.O.S.,
peças em que as personagens principais são seres humanos reais, a unidade
não ocorre.
No plano da fantasia, é possível a unidade porque alguém imaginou
a história. As personagens têm uma vida fechada, pronta. Na vida real, o ser
humano escreve um pouco da sua história a cada dia. Ele está, portanto,
exposto às surpresas que podem fazê-lo mudar de opinião, de posição e de
vontade. A mutabilidade humana é um dos motivos que leva o in divíduo a não
querer a mesma coisa todos os dias. Partindo deste princípio, necessitar e
buscar são impulsos naturais e permanentes no Homem. É essa necessidade
de ser inteiro que Deseja-se mulher e S.O.S. põem em cena.
Na primeira destas peças, vemos a representação das necessidades
do mundo natural; na segunda, as do mundo social
13
. Nesse quadro, chama-
nos atenção um aspecto cênico específico: o da construção do cenário em
cada uma das peças. Em Deseja-se mulher as cenas se passam ora em
ambientes fechados, ora em ambientes abertos; em S.O.S. a ação decorre, nos
dois quadros, apenas em espaços fechados. A diferença cênica nos parece
apontar para uma tênue diferença entre as necessidades particulares e as
sociais. A primeira, como é um caso pessoal, é uma busca livre. A segunda,
como é um caso social, só pode ser encontrada num espaço circunscrito que
representaria o organismo coletivo. Todavia, o ar livre de Deseja-se mulher é
sempre sítio nenhum – já que a sua busca é infinita – e os ambientes fechados
de S.O.S. representam respectivamente a maioria oprimida – inserida numa
sala tão pequena onde falta oxigênio – e a minoria comandando – inserida
numa sala espaçosa.
A necessidade de unidade é expressa por todas as personagens das
peças, mas é na figura dos protagonistas que ela se faz mais evidente – daí
que seja importante ressaltar uma diferença entre os dois protagonistas em
13
É muito interessante, todavia, esta ressalva: ainda que Deseja-se mulher aborde
basicamente a tragédia do mundo natural, são evidentes no discurso do Protagonista, no sexto
quadro da peça (ALMADA NEGREIROS, 1997, p, 16-9), alusões a o mundo social.
95
questão: o Protagonista de Deseja-se mulher nos parece mais consciente da
impossibilidade da unidade do que o de S.O.S. Se considerarmos que as peças
constituem um díptico teatral, é razoável pensar que os protagonistas podem
ser a mesma personagem, ou melhor, desdobramentos da mesma personagem
representando necessidades diferentes – numa a necessidade particular e, na
outra, a coletiva.
Em Deseja-se mulher, o Protagonista parece ter consciência de que
a convivência entre homem e mulher será sempre conflituosa, porém,
inevitável. A sua consciência é evidente no quinto quadro (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 513-6), nas respostas que dá à noiva no sétimo quadro
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 519-22) e, principalmente, no seu solilóquio
antes de deixar o palco no último quadro da peça (ALMADA NEGREIROS,
1997, p. 522-3).
Em S.O.S., ao contrário, não há nenhum solilóquio e nenhuma fala
do Protagonista que revele a sua consciência da impossibilidade de conciliar a
vontade individual com a coletiva. O que há nesta personagem é um outro tipo
de consciência: a da impossibilidade de haver vida particular separada da vida
coletiva, o que fica claro no momento em que afirma, dirigindo-se à sua noiva,
que já não há caminhos (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 533). Talvez a
esperança deste Protagonista, que quer encontrar o seu lugar no seio da
coletividade, relacione-se com o fato de ele representar alguém que ainda não
conhece o lado corruptor do poder, um jovem cheio de entusiasmo, como dizia
a carta que o apresentava ao diretor do Jornal: “[…] apresentar-te este meu
amigo que é um jovem que começa hoje a vida cheio de entusiasmo”
(ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 535).
A impressão que temos é de que o Protagonista de S.O.S. situa-se,
de certa forma, num plano diferente do real. Se o comparamos, por exemplo,
com a personagem do Diretor, vemos que este, ao contrário daquele,
representa alguém seduzido pelo poder: “[…] também andei assim pelos
andares a querer começar a minha vida cheio de entusiasmo” (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 540). Esse Protagonista, crente de que pode trabalhar
somente em favor dos interesses da coletividade, vive um devaneio – situa-se,
96
portanto, no plano ideal. O Diretor, em contrapartida, situa-se no plano real,
onde o significado de humanidade se perdeu.
A diferença, que há entre os dois protagonistas, quanto ao
entendimento da necessidade, aponta ainda para uma outra diferença, que tem
que ver com o seu (possível) estatuto de porta-vozes do dramaturgo.
Com efeito, reconhecemos nas falas destas personagens os
mesmos ideais expostos nos manifestos e ensaios de Almada Negreiros. Só
que em Deseja-se mulher – onde a tragédia decorre da impossibilidade de
conciliar as diferenças entre os sexos – não nos é nítida, nas falas do
Protagonista, uma proposta do autor para reverter a situação trágica, mas
apenas uma constatação da impossibilidade de harmonizar as divergentes
opiniões entre o homem e a mulher, e da fatalidade de desejarem um ao outro.
No sexto quadro da peça, entretanto, podemos entrever algo como uma
proposta de sociedade ideal: no país imaginário, o Protagonista encontra uma
platéia disposta a ouvir as suas constatações e críticas acerca do sistema
vigente. Causa estranheza, contudo, a descrição do comportamento dos
habitantes desse lugar: primeiramente, todos os transeuntes atravessam a rua
ao mesmo tempo, segurando um pé com a mão. Depois, atravessam a rua
lendo um livro. (ALMADA NEGREIROS, 1997, p. 516-7). O comportamento
idêntico dos transeuntes leva a crer que, naquele país imaginário, as pessoas
estão em sintonia, visto que se comportam da mesma maneira, andam todos
pelo mesmo caminho, ou seja, seguem a direção única. Mas, flagrar o grupo
social em atos banais ou irrisórios é uma maneira de ridicularizar a sintonia
desses figurantes. É provável, pois, que haja aqui o olhar irônico de Almada,
que vê criticamente o automatismo do ser humano submetido ao sistema sócio-
econômico vigente. A direção única, que ele propunha, seria a via pela qual os
indivíduos desfrutariam da plena integração na medida em que as suas
necessidades pessoais fossem harmonizadas com as da humanidade inteira –
e não sufocadas, uma pela outra.
Parece-nos claro que, além de constatar a tragédia do mundo
natural, a peça retrata a realidade fragmentada do indivíduo moderno e,
juntamente com esse retrato, há uma critica ao convencionalismo e à
submissão do ser humano ao sistema repressor – como, por exemplo, na
97
forma como as personagens vêem a Vampa: vazia como uma casca de ostra,
uma mulher de pura aparência (primeiro e quarto quadro, p. 497); na árvore
que representa a mão que impediu a realização de um projeto (terceiro quadr o,
p. 505-6); no comportamento automático e nas falas repetidas dos noivos
(primeiro quadro, p. 500-1); na incapacidade de ação do Personagem quando a
Vampa, enfurecida, rasga o vestido que ele produzira (quarto quadro, p.512-3);
na súbita aparição do casal de apaixonados (quinto quadro, p.515).
Em S.O.S., ao contrário, a posição do Protagonista, evidente nas
suas respostas ao Diretor do Jornal, deixa-nos entrever uma proposta de
sociedade ideal: uma sociedade em que os interesses individuais e os coletivos
estivessem em harmonia. É evidente que, para a consecução da sociedade
ideal, é preciso romper com a sociedade real que S.O.S. disseca
implacavelmente ao apontar a diferença entre o desconforto da recepção do
Jornal e o conforto da sala da Direção, a incapacidade das personagens de
protestar contra o modo humilhante como são tratadas na sala de espera
(ALMADA NGEREIROS, 1997, p. 531-4), a frieza da Datilógrafa ao matar o
Diretor, uma vez que ele era um empecilho para a obtenção dos seus
interesses pessoais e dos interesses do seu partido político (ALMADA
NEGREIROS, 1997, p. 543), a aleatória e infinita disputa pela direção do
Jornal.
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