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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
TERESA MARIA GRUBISICH
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ARARAQUARA SÃO PAULO
2007
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TERESA MARIA GRUBISICH
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Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras –
Unesp/Araraquara, para a obtenção do
título de Doutor em Letras.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa
Orientadora: Profª. Drª. Wilma Patrícia
Marzari Dinardo Maas
ARARAQUARA SÃO PAULO
2007
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TERESA MARIA GRUBISICH
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Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da
Faculdade de Ciências e Letras –
Unesp/Araraquara, para a obtenção do
título de Doutor em Letras.
Linha de pesquisa: Teorias e crítica da
narrativa
Data de aprovação: 13/04/2007
M
EMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
PROFª. DRª. WILMA PATRÍCIA MARZARI DINARDO MAAS (UNESP)
ORIENTADORA
PROF ª. DRª. MARIA CELESTE CONSOLIN DEZOTTI (UNESP)
PROF ª. DR ª. RENATA SOARES JUNQUEIRA (UNESP)
PROF. DR. JORGE MATTOS BRITO DE ALMEIDA (USP)
PROF. DR. MARCUS VINICIUS MAZZARI (USP)
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
Para
José Luís Vieira de Almeida (meu maior achado)
Evaldo Grubisich de Almeida (minha síntese)
João Grubisich (meu pai)
AGRADECIMENTOS
a Wilma Patrícia M. D. Maas, pela orientação precisa, pela autonomia concedida e
fundamentalmente pela confiança depositada;
a Maria Celeste Consolin Dezotti, pela sugestão da tese, pelo incentivo, pela
amizade e pela carinhosa acolhida;
às professoras Renata S. Junqueira e Márcia V. Z. Gobbi do Programa de Pós-
Graduação, pela oportunidade de freqüentar seus cursos e pela troca de idéias;
a Lídia Fachin, pessoa muito especial, pelas sugestões bibliográficas e pelas teorias
discutidas;
ao José Ls Vieira de Almeida, por, nos últimos quinze anos,
estar a me “ensinar”
o processo dialético do pensamento; agradeço-lhe também pela leitura atenta
deste trabalho, pelas críticas, pelo apoio essencial;
ao intelectual admirável Joaquim Alves Aguiar, um dos grandes responsáveis por
minha trajetória acadêmica;
aos funcionários da biblioteca e aos da secretaria de Pós-Graduação; em especial,
a Maria Clara Bombarda de Brito pela competência e pela dedicação;
ao meu filho Evaldo pelo carinho e paciência nesta etapa tão solitária própria do
trabalho intelectual;
a Simone A. Alves Lima e Agda Adriana Zanela, companheiras de tantas viagens,
nas quais discutíamos leituras, projetos... trocávamos idéias que, retrabalhadas,
com certeza, estão presentes neste trabalho;
a Cláudia Neli B. A. de Oliveira, pelo apoio, amizade e incentivo que tornaram mais
leves muitas fases desse processo;
a Marcela Lopes Gomes pelas trocas sobre Bakhtin e pelas sugestões de leitura;
A Luciane Urvaneja Nazareth pela gentileza e pela competência na confecção do
abstract;
a Sandra Márcia Grubisich e Maria de Lourdes Lavandeira, duas almas boas;
a Isabel Cristina, Norma, Emmanuel e Rodrigo
à Comissão Permanente do Magistério da Aeronáutica (COPEMA), da Academia da
Força Aérea, pela concessão de dois dias semanais de afastamento para participar
do programa de Pós-Graduação da UNESP e, assim, realizar esta pesquisa.
Vocês, porém, aprendam como se vê em vez de olhar fixo, e como
agir em vez de falar e falar. Uma coisa dessas chegou quase a
governar o mundo! Os povos conseguiram dominá-lo, porém, que
ninguém saia por aí triunfando precipitadamente – é fértil ainda o
colo que o criou!
Bertolt Brecht (1992, v. 8, p. 213)
RESUMO
Ao lermos as peças brechtianas, deparamo-nos com algumas, denominadas pelo
dramaturgo, parábolas, seja no título das mesmas, como A alma boa de Setsuan
parábola e A resistível ascensão de Arturo Ui
parábola, seja no corpo do texto,
como é o caso de Os cabeças redondas e os cabeças pontudas, Quanto custa o
ferro? e O preceptor, nas quais essa denominação aparece no prólogo ou no
epílogo. Procuramos então pela especificidade do gênero que nasce no contexto
do Novo Testamento e constatamos tratar-se de uma metanarrativa, de uma
narrativa encaixada em um texto maior com o qual mantém uma relação
exemplar, de reafirmação do discurso enunciado, prova da verdade da sua
Palavra/Parábola. A parábola funciona, então, como demonstração desta verdade.
Por assim configurar-se, revela-se como um poderoso instrumento didático e
doutrinário; ela não só veicula idéias a serem incorporadas pelo receptor, mas
também, por estar dotada de estratégias persuasivas e dissuasivas, induz o
interlocutor a uma mudança de estado, a uma conversão. A história na parábola
fala do homem presente, coloca-o em perspectiva, porém travestindo-o e ao seu
contexto por meio da alegoria. E à decifração desse artifício conduzem vários
elementos construídos em torno da narrativa. Colocada, então, a questão
ideológica do gênero, investigamos como, na forma parábola teatral, estão
tensionados os pressupostos brechtianos, cuja base se funda em uma visão
dialética do mundo. Nossa preocupação aqui, então, é discutir a coerência desses
pressupostos em sua
práxis
; analisando em cada uma dessas peças indicadas a
dinâmica instaurada na confluência dos gêneros – parábola e teatro épico.
Palavras-chave: Estudos literários. Teatro épico. Parábola. Bertolt Brecht.
Representações. Polifonia.
ABSTRACT
When we read the Brecht’s plays we fall across some entitled by the dramatist,
parables, either in its title, as Der gute Mensch von Setzuan
parable and Der
aufhatsame Aufsteig des Arturo Ui
parable, or in its body text as in Die
Rundkoepfe und die Spitzkoepfe, Was kosted das eisen? and Der Hofmeister, in
which this denomination appears in the prologue or in the epilogue. In this case
we looked for the specificity of the gender which is born in the context of the New
Testament and we verified it is a metanarrative, a narrative embedded in a bigger
text with which it maintains an exemplar relation of restatement of the discourse
enunciated, which proves the truth of this Word/Parable. The parable works then
as a demonstration of this truth. Thus it takes shape, reveals itself, as a powerful
didactical and doctrinaire document, it not only transmits ideas to be incorporated
by the receptor but also, as it is endowed of persuasive and dissuasive strategies,
it leads the interlocutor to a state change, a conversion. The story in the parable
tells about the present man, puts him in perspective but disguising him and his
context by the allegory. And to the deciphering of this artifice conduct the various
elements built around the narrative. Placed then the ideological question of
gender, we investigated how, in theatrical parable pattern, are involved the Becht’s
presuppositions which base establishes itself in a dialectical vision of the world.
Our concern here then is to discuss the coherence of these presupposed in its
praxis
, analyzing in each of these indicated plays the dynamical instituted in the
confluence of the genders – parable and epic theater.
Key words: Literary studies. Epic theater. Parable. Bertold Brecht.
Representations. Polyphony.
SUMÁRIO
1 APRESENTA
Ç
ÃO
11
2 INTRODUÇÃO
15
3 A PARÁBOLA
21
4 A PAR
Á
BOLA TEATRAL
37
5 O TEATRO
É
PICO E A PAR
Á
BOLA
48
6 O PRECEPTOR: UM JOGO DE ESPELHOS
67
6.1 Um caso nada exemplar 67
6.2 Do caso à parábola 70
6.3 Da interpreta
ç
ão à a
ç
ão 82
6.4 A meta do metadiscurso 84
7 UM CONTO DE FADAS ÀS AVESSAS 87
7.1 A história de Chen Te 87
7.2 O problema na parábola 92
7.3 Das dobras quebradas 102
8 DA FARSA HISTÓRICA À PARÁBOLA 105
8.1 A teatralidade do real 106
8.2 A trama das representa
ç
ões no universo da
representação
114
8.3 Um universo polifônico 126
9 QUANTO CUSTA O FERRO? AS RELAÇÕES DE PODER E
AS LEIS DE MERCADO
130
9.1 A questão retórica e a retórica da questão 130
9.2 O império do terror ou o terror do império 132
9.3 Aceita charutos??? 137
9.4 A subversão da forma na forma do cômico 140
9.5 O descaminho, caminho da ironia 141
10 MEDIDA POR MEDIDA: DE SHAKESPEARE A BRECHT 143
10.1 O teatro do mundo e o mundo no teatro 150
10.2 Uma parábola de terror 154
10.3 Rico se dá com rico 157
10.4 Divertir, informar, formar 161
11 CONSIDERA
Ç
ÕES FINAIS 166
REFER
NCIAS 170
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 176
ANEXOS 182
ANEXO A 183
11
1 APRESENTAÇÃO
Em 1984, no estado do Mato Grosso, assumíamos, em uma escola
pública, a nossa primeira sala de aula. Euforia. Enfim colocaríamos em prática,
aplicaríamos, aquilo que, durante quatro anos de universidade, fora-nos
ensinado. Desafio. Luta. Fracasso. Deparávamos com as contradições, com a
miséria material e, infelizmente, também intelectual. A escola não era aquele
espaço ideal, politizado e politizador, era o seu avesso. Angústia. A realidade
era-nos adversa. Percebíamos então que a emancipação popular não se daria
por meio da educação escolar; essa era um engodo. Como professores,
vivíamos também a opressão do Estado, cuja precariedade material refletia o
descaso com que tratava a educação; nos seus prédios, tudo faltava:
iluminação, ventilação e, o que era mais grave, bibliotecas e laboratórios.
Vivíamos ainda a ameaça permanente de nossa própria miséria; os salários
baixíssimos e atrasos periódicos que nos faziam devedores, e assim uma classe
mal vista pelo mercado.
Nessa época líamos Clarice Lispector e nos identificávamos com o estado
de náusea, estado de angústia ante a impossibilidade de exprimir pela
linguagem sígnica a nossa condição – perdíamos o sentido, os nossos
referentes. Ficávamos perplexos ante a parábola de G.H. e, diante das
experiências diárias, vivíamos também os transes epifânicos. Depois veio
Sartre, Camus e O estrangeiro. Interessante que era na literatura para crianças
e adolescentes, Ruth Rocha, Luís Fernando Veríssimo, a instância na qual
começávamos a vislumbrar a possibilidade formativa que poderia ser oferecida
ao aluno. Começamos a pensar a educação como instrumento de luta, cuja
arma infalível seria a leitura.
De O estrangeiro, passamos para Estado de sítio e nos vimos provocados
por Camus. Daí, vieram as tragédias gregas, e éramos Édipo buscando o
culpado e nos reconhecendo impotentes ante o nosso destino. Assim éramos
leitores solitários, pois era inviável levar essa leitura para a sala de aula: além
de ser sinônimo de mero entretenimento, os alunos não tinham tempo, nem
12
dinheiro, para os livros, apesar de trabalharem. Dessa forma, os projetos de
leitura das delegacias de ensino ficavam, comodamente, no papel. O projeto
emancipatório do país também se revelava, à época, um engodo com a morte
de Tancredo Neves. Todos nos tornávamos “órfãos” e parece que as perdas
desde então se acumularam e têm uma aparência de irreversíveis.
Nesse período, deram-nos para ler as peças de Oswald de Andrade.
Dessas, a que mais nos “chocou” foi A morta. Líamos, engavetávamos,
relíamos. Desafiados, não pudemos deixar que continuasse na nossa gaveta,
apesar de o estar na do palco nacional devido à censura sofrida em 1937. Era
hora de partirmos para o mestrado. Foi então que conhecemos também Bertolt
Brecht.
E assim começou o nosso interesse por uma arte que, além do estético,
contivesse o projeto político; uma arte que, em uma sociedade na qual impera
o individualismo, e a “abstração” toma o lugar do ato conseqüente, a vivência
do lúdico, do estético, desencadeasse o processo da desalienação.
Em A morta, examinamos o drama do Poeta – personagem da peça –
face à sociedade e sua hostilidade à arte, mas também o seu drama face à
mulher amada, Beatriz, e à poesia alegorizada por ela. Sua impotência ante a
criação poética estende-se à impossibilidade de se relacionar como ser humano
com outra pessoa. Assim o Poeta segue Beatriz pelos países do “indivíduo", "da
gramática" e "da anestesia", travando nesses três quadros uma luta interior
entre o amor e a criação artística. Na condição de emparedado, no limite do
conflito entre a vida e a morte, acaba por atear fogo à sua amada, na tentativa
de pôr um termo à ordem representada por ela, Beatriz, que personifica as
amarras do artista. Porém, o canto desconexo do poeta, numa sociedade que
lhe é hostil, é ainda poesia que se manifesta numa tentativa desesperada de
resistência; o poeta busca impor a sua voz, negando a negação que lhe é
imposta. A poesia acadêmica, em A morta, é carnavalizada, destronada e
incinerada para forçá-la a renovar-se, numa (re) interpretação de sua dimensão
estética e histórica.
Oswald constrói, nessa peça, um palco alegórico no qual desconstrói e
autopsia o signo estético, incluindo nesse processo o seu projeto cultural. A
13
relação espectador/personagem é dialetizada: o espectador assiste à sua
própria autópsia e, num procedimento metalingüístico, o próprio teatro é
autopsiado. Em A morta, a Poesia metamorfoseada em personagem, Beatriz,
encena a sua crise, num ritual de sedução e devoração, de morte e vida do
universo do sentido. Nessa operação alegórica, o próprio teatro como forma
artística que engendra conteúdos sócio-culturais passa a ser, como um cadáver,
autopsiado, questionado e revisto. Assim Oswald procede com os grandes
temas da estética universal e com as obras clássicas, parodiando-os e
representando um "mundo às avessas". Essa dialética vida/morte, palco/platéia,
vanguarda/tradição, nutre-se de um questionamento radical da linguagem
estética como também do signo lógico-reflexivo e do divórcio entre pensamento
e ação ou entre pensamento e realidade, quando este é transformado em coisa,
mercadoria, desumanizando o homem e aprisionando-o através de mistificações
e tabus. Oswald transpõe para o palco a carnavalização, cujo princípio, segundo
Bakhtin (1991), é a liberação do homem por meio da instauração de uma
linguagem ambivalente e destronante que o leva a superar o medo, os tabus, a
morte e toda hierarquia. Entre os homens, por meio do livre contato familiar
que se instaura, passa a existir uma relação concreta, pois eles não assistem,
mas sim vivem, participam ativamente do ritual festivo.
À época, buscamos as formulações do teatro épico de Bertolt Brecht para
entender e analisar muitos dos procedimentos de Oswald. Foi nessa ocasião
que percebemos a proximidade entre a proposta estética e ideológica,
revolucionária, de ambos e entre uma concepção de arte atrelada à concepção
dialética da realidade que os dois dramaturgos defendem.
Com o intuito de dar continuidade às nossas pesquisas iniciadas no
mestrado, propomos aqui o estudo da parábola como um recurso construtivo,
estilístico e retórico, do método teatral de Bertolt Brecht. Investigamos, então,
como se tece a trama argumentativa em suas peças que têm como fio um caso,
uma anedota alegórica.
Partindo do pressuposto de que o resgate do pensamento dialético, em
nossa época, ainda é viável por meio do oferecimento de vivências
transformadoras, de experiências nas quais as contradições próprias da
14
realidade histórica se exponham e forcem o homem, como um ser coletivo, a
posicionar-se ante elas, defendemos a necessidade da retomada permanente
de obras como as de Bertolt Brecht. Obras por meio das quais compreendemos
melhor a nossa época e o contexto em que estamos inseridos para que melhor
possamos nos posicionar, por intermédio do pensamento dialético, e levar
outros, no processo de formação pelo qual somos responsáveis, a fazê-lo.
15
2 INTRODUÇÃO
As formulações de Brecht têm sido bastante estudadas no Brasil. Um dos
precursores dessa tarefa foi Fernando Peixoto, que se dedicou a pesquisas
sobre o autor – sua vida e sua obra – ao lado de Anatol Rosenfeld, cujos
trabalhos sobre o teatro épico são fundamentais a todo pesquisador do gênero.
Também Augusto Boal embasou a sua teoria do teatro do oprimido nas
experiências brechtianas. Atualmente, encontram-se principalmente na
Universidade de São Paulo, trabalhos sobre o autor e a influência de seu teatro
épico na dramaturgia nacional, como os desenvolvidos ou orientados por Iná
Camargo Costa.
A obra de Brecht, observa Wolfgang Bader (1987), por ser um meio
eficaz para se compreender as relações dialéticas entre teatro e realidade,
funciona como um rito de iniciação para aqueles que pretendem introduzir-se
no trabalho com a dramaturgia; além disso, constitui-se num “rito de desafio
permanente para quem, já na posição de profissional consagrado, procura
acompanhar as tendências da realidade com novas perspectivas teatrais
adequadas” (p. 19). Podemos acrescentar a isso que o trabalho de Brecht
constitui-se num rito de iniciação também para aquele que pretende
compreender os processos representativos implicados na dinâmica entre
discurso e referencialidade, afinal, como pontua Peixoto (1987, p. 25) “[...] o
teatro é um instrumento poderoso para a reflexão crítica: uma manifestação do
homem em sua historicidade concreta, espaço de discussão de
comportamentos e atitudes vinculados às relações de produção”. Foi dessa
forma que Brecht passou a ser discutido, já no período da ditadura militar, no
caso brasileiro, não apenas nos teatros, nos estúdios de cinema ou de música,
mas seus pressupostos integram, hoje, currículos de cursos universitários, como
das faculdades de Letras, de Artes Cênicas, de Cinema; assim como, embasam
projetos na área da Educação, da Filosofia, da Comunicação, entre outras
ciências humanas e sociais.
16
Assim, da teoria das peças didáticas, discutida e posta em
experimentação prática por pesquisadores entre os quais se destaca Ingrid
Dormien Koudela, nasceram dissertações, teses e projetos vinculando o teatro à
educação – arte-educação – e ao aprimoramento lingüístico por meio do
exercício do pensamento dialético. Uma vez que esse exercício constitui a base
das experiências e propostas teóricas de Brecht que se materializam no teatro
como
práxis
, como palco em que o político se “trans-forma” em estético.
Em alguns desses estudos, a parábola teatral ou a linguagem de
parábola
como Garcia e Guinsburg (1992) caracterizam a linguagem das
obras didáticas em contraposição à das óperas brechtianas – tem sido citada,
porém a sua análise, nas peças de Brecht, como um recurso narrativo e
argumentativo – retórico e estilístico – carece de investigação.
A publicação no Brasil de um estudo de Jameson (1999) sobre o método
Brecht, defende a atualidade dos pressupostos que embasam esse teatro
dialético assim como a sua “utilidade” no contexto sócio-político que hoje se
configura. Jameson discute a especificidade da obra do dramaturgo e constata
que o método Brecht só pode ser explicado na apreensão das relações
fundantes de todo ato, pacto, decisão. Assim como para Brecht são menos os
fatos que precisam ser discutidos, mas sim as relações que os articulam – e daí
suas experiências no exercício do pensamento dialético para historicizar a
própria forma, o material estético em seu teatro – para Jameson, a obra de
Brecht, para ser apreendida em toda sua complexidade, deve ser investigada
em sua triangulação: linguagem, modo de pensar e narrativa
concomitantemente. Isso significa que não somente a história – narrativa – mas
o pensamento que a engendra e a linguagem que a realiza devem ser
apreendidos também em sua articulação dialética, como processo.
Ou seja, para Jameson, tal dinâmica só pode ser expressa pelo
pesquisador da obra brechtiana, convertida em linguagem, se cada dimensão
do triângulo for analisada em sua relação com uma segunda e assim por diante,
ciclicamente. Constata-se assim que as idéias em Brecht estão em suas práticas
discursivas e, ao mesmo tempo em que estas idéias estão em suas práticas,
17
estas não podem ser desvinculadas daquelas, que, por seu turno, incluem-nas
todo o tempo.
O que para nós é importante assinalar, nesse momento, no estudo sobre
o método – dialética – em Brecht, desenvolvido por Jameson, é que este
aponta a fábula, a parábola e os provérbios como recursos retóricos na obra
brechtiana e como germes anedóticos das narrativas em sua dramaturgia.
Temos, dessa forma, na recente obra do crítico, a indicação da parábola,
acompanhada de uma investigação mais produtiva. Contudo não há ainda em
seu texto uma análise do mecanismo desse gênero nem de sua eficácia em
peças engendradas por esse recurso.
Diante da observação da recorrência da parábola no teatro brechtiano e
da carência de sua análise, como já indicamos, sentimo-nos incitados a essa
tarefa. Dessa forma, este trabalho pretende ser uma contribuição àqueles que
procuram ainda elucidar o projeto brechtiano, sobretudo no que concerne ao
exame da narrativa em sua dramaturgia. Também pretende contribuir com as
pesquisas que buscam alternativas formais para o aprimoramento da linguagem
e do pensamento de seus interlocutores.
Escolhemos, entre a obra de Brecht, traduzida no Brasil, cinco peças
denominadas pelo dramaturgo parábolas, seja no título das mesmas, como A
alma boa de Setsuan
parábola e A resistível ascensão de Arturo Ui
parábola,
seja no corpo do texto, como é o caso de Os cabeças redondas e os cabeças
pontudas, Quanto custa o ferro? e O preceptor, nas quais essa denominação
aparece no prólogo ou no epílogo. É, então, nesse
corpus
que investigamos a
dinâmica do gênero e os efeitos de sentido gerados por essa dinâmica.
Esse objetivo nos exige a análise da parábola como recurso narrativo,
retórico e estilístico que se presta à representação de uma concepção de
realidade e de arte, pois a escolha do gênero determina um posicionamento, de
acordo com o pensamento bakhtiniano “tudo que se diz é determinado pelo
lugar de onde se diz” (MACHADO, 1997, p.149). Procuramos, dessa forma,
investigar, nas peças parábolas, que não se confundem com as peças
cognominadas didáticas, a coerência dos pressupostos brechtianos em sua
18
práxis; ou seja, procuramos averiguar como na forma parábola teatral estão
tensionados estes pressupostos de base dialética.
Iniciamos, assim, nossa pesquisa pela investigação do mecanismo e da
eficácia da parábola como gênero, buscando sua gênese e sua especificidade. A
parábola nasce no contexto do Novo Testamento e aí se configura como uma
metanarrativa, no sentido de ser uma narrativa encaixada em uma outra
narrativa com a qual mantém uma relação exemplar: a parábola reafirma o
discurso enunciado, constituindo-se como prova de sua verdade essencial. Daí
seu fundamento retórico, persuasivo: a parábola funciona como argumento
dirigido a um público, por um retor, que no caso é o Mestre, Jesus. Por assim
configurar-se, revela-se como um poderoso instrumento didático; não só
veicula idéias a serem incorporadas pelo receptor e assumidas por ele como
verdade, mas também, por estar dotada de estratégias persuasivas e
dissuasivas, próprias ao gênero, promove uma mudança de estado, uma
conversão.
Dessa forma, investigamos, em cada uma das parábolas brechtianas
constituintes de nosso corpus, se a maneira como a trama argumentativa é
tecida produz um discurso dialético de efeito desalienador, ou um discurso
monológico, com traços autoritários, traduzido em lições de doutrina. Em última
instância, averiguamos se, na transposição do gênero – parábola – para o
teatro, algo não se perde ou extrapola – estética e/ou ideologicamente –,
ficando fora de lugar na dinâmica instaurada.
Para realizarmos este estudo, levantamos, na fortuna crítica brechtiana,
as discussões pertinentes à nossa investigação. Tomamos por base, também, o
arsenal crítico do próprio Brecht, cujas formulações são fundamentais para a
análise do corpus em questão e para a defesa de nosso objeto. Em Walter
Benjamin, fundamentamos as discussões sobre a alegoria e a filosofia da
história. Buscamos, nas teorias da análise do discurso de Mikhail Bakhtin e
naquelas atreladas a ele, subsídios para investigar as estratégias discursivas
geradoras de sentido, como a intertextualidade, a polifonia e a monologia, o
dialogismo, a paródia e a ironia.
19
Partindo sempre de Brecht, fomos a Marx e Lukács para buscarmos as
categorias do método dialético e dessa forma chegarmos a Henry Lefebvre,
cujo estudo das representações ideológicas nos será fundamental para o
entendimento da presença e conseqüentes implicações dessas representações
no contexto sócio-político assim como da alienação delas decorrente; por
intermédio desses pensadores, buscamos também compreender melhor os
mecanismos de produção sócio-econômicos e culturais mantenedores do Estado
capitalista. Em busca ainda de subsídios para a análise de nosso corpus,
procedemos a uma pesquisa sobre o contexto nacional socialista – nazista –
alemão, seu ideário, as ações calcadas ou motivadas por esse ideário e o
discurso que as justificava dentro e fora da Alemanha.
Quanto à metodologia empregada, analisamos a configuração de cada
uma das parábolas teatrais levantando também aspectos da encenação
essenciais para a apreensão e discussão da dinâmica nelas instaurada e sua
conformidade com o pensamento do dramaturgo. Dessa forma, examinamos os
elementos discursivos utilizados na construção textual, assim como suas
estratégias produtoras de sentido. Ao final, entrelaçamos os dados, atrelando-
os à dinâmica dos gêneros em pauta e ao objeto de nossa investigação.
A organização da seqüência dos capítulos em que as parábolas são aqui
analisadas rompe com o critério cronológico da produção dessas peças por
Brecht; invertemo-lo, numa opção que pretende apontar para a historicidade
das questões articuladas desde O preceptor de Lenz até Brecht. O pacto
ideológico estabelecido pelo jovem preceptor por meio de sua castração ao final
da peça é um fio que nos conduz a outros pactos, contratos de classe, Alma
boa, Arturo Ui, Quanto custa o Ferro?, contratos econômicos, contratos
políticos. Em Os cabeças redondas, última peça de nossa análise, o
travestimento das personagens aponta para a inversão entre forma e conteúdo,
entre representante e representado e assim para o escamoteamento das
contradições cuja compreensão só pode ser alcançada a partir do resgate
daquelas alianças travadas e tramadas historicamente desde “há cento e
cinqüenta anos atrás” (O preceptor). É para o comprometimento dos homens
20
no movimento da história, comprometimento com e entre os homens, que essa
organização, de acordo com nosso aprendizado brechtiano, visa remeter.
21
3 A PARÁBOLA
Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais
estáveis, “perenes” da evolução da literatura. O gênero sempre
conserva os elementos imorredouros da
archaica
. É verdade que nele
essa
archaica
só se conserva graças à sua permanente
renovação
,
vale dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo,
sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se
renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em
cada obra individual de um dado gênero. Nisto consiste a vida do
gênero. Por isso, não é morta nem a
archaica
que se conserva no
gênero; ela é eternamente viva, ou seja, é uma
archaica
com
capacidade de renovar-se. O gênero vive do presente mas sempre
recorda
o seu passado, o seu começo. É o representante da memória
criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por
isto que tem a capacidade de assegurar a
unidade
e a
continuidade
desse desenvolvimento.
Mikhail Bakhtin (2002, p. 106)
Consultando Larousse (1995), encontramos em uma de suas definições
para o verbete “parábola” o seguinte: “narração alegórica, comparação que
serve de véu a uma verdade”. Dessa formulação, podemos intuir a semelhança
que há entre essa prática discursiva e a fábula. Ambas são constituídas pela
alegoria, na qual imagens concretas são usadas para representar idéias
abstratas. Já Pavis (1999, p. 276), em sua definição, coloca que na parábola os
fatos concretos se convertem no exemplo, do qual, relacionando-o à nossa
situação atual, tiramos uma lição: “Em sentido estrito, parábola (bíblica) é uma
narrativa que contém em si, quando se lhe aprofundam a aparência e o
sentido, uma verdade, um preceito moral ou religioso”.
Os retores clássicos serviam-se das fábulas e parábolas para desenvolver
a competência argumentativa em seus alunos. Aristóteles, no livro segundo da
Arte Retórica, cita a fábula e a parábola como
paradeigma
, exemplos
inventados pelo orador, de efeito persuasivo, pois “como demonstrações
contribuem para estabelecer a prova”. Essa espécie de prova, segundo o
filósofo, assemelha-se à indução, que é um princípio de raciocínio, e funda-se
na analogia: “As fábulas convêm ao discurso [...] para imaginá-las, assim como
as parábolas, basta reparar nas analogias, tarefa facilitada pela Filosofia”
22
(ARISTÓTELES, [19--], p. 168). Dessa forma, a parábola era usada como uma
estratégia argumentativa.
Também na Bíblia Jesus fala aos seus discípulos e ao povo por parábolas
e será, segundo Sant’Anna (1998), o Novo Testamento o espaço de
constituição da parábola como gênero literário. Ainda esse pesquisador, em sua
busca do universo em que essa modalidade adquire especificidade como forma
literária, observa que a diferença entre a parábola clássica e a do Novo
Testamento reside na construção da narrativa, que não chega a se configurar
tanto nas parábolas gregas como nas latinas, sendo que, nestas últimas, há
mesmo uma rejeição à construção ficcional; ambas, no entanto, servem-se de
comparações:
Assim, nesse
corpus
da Retórica clássica, devemos ter claro que a
parábola constitui definitivamente a instalação de um processo
comparativo, expresso por ilustrações que não chegam a configurar
uma narrativa, e que tem finalidade comprovadamente persuasiva, no
interior de um discurso. Diante disso, nesse contexto, parece-nos
mais apropriado, então, tomar a
parábola
, não como gênero literário,
mas como uma figura, ao lado de várias outras, que contribuem para
o enriquecimento de um discurso persuasivo. (SANT’ANNA, 1998, p.
20).
Se buscarmos as análises de Suleiman (1977) e a sua afirmação de que
a narrativa, no texto de parábola, fornece um elemento essencial ao gênero,
que é o nascimento de uma interpretação (a história é o único elemento que
uma parábola não poderia ‘calar’, sem tornar-se, por isso mesmo, outra coisa
1
),
constataremos que a tese de Sant’Anna de que, na Retórica clássica, a parábola
ainda não se configura como gênero literário, por não conter a narrativa, se
fundamenta.
Jesus, no Novo Testamento, fala por parábolas como um meio de
ensinar, doutrinar. Contudo, nas parábolas de Cristo, havia a delimitação do
âmbito de ensino; basta, para o constatarmos, ler a sentença com a qual Jesus
concluía a maioria de suas parábolas: “Quem tem ouvidos, ouça!”. Esse dito, ao
mesmo tempo que induz os ouvintes à interpretação, pois todos têm ouvidos,
1
[...] l’histoire est seul élément qu’une parabole ne saurait “taire”sans devenir, de ce fait même,
autre chose (Suleiman, 1977, p. 475).
23
restringe o alcance da mesma, pois, nessa sentença, está implícito que somente
os que aguçarem os sentidos, a percepção, chegarão a tal resultado.
As parábolas de Jesus eram dirigidas ao povo, intencionalmente
construídas como forma, como meio promovedor da conversão desse povo. É,
nesse contexto, um modo especial de ato de fala indutivo pelo qual é proferida,
ensinada, a Palavra/Parábola, a doutrina cristã.
A felicidade de compreender
– Os discípulos aproximaram-se, e
perguntaram a Jesus: “Por que usas parábolas para falar com eles?”
Jesus respondeu: “Porque a vocês foi dado os mistérios do Reino do
Céu, mas a eles não. Pois a quem tem será dado ainda mais,
será dado em abundância; mas daquele que não tem, será
tirado até o pouco que tem. É por isso que eu uso parábolas para
falar com eles: assim eles olham e não vêem, ouvem e não escutam
nem compreendem. Desse modo se cumpre para eles a profecia de
Isaías: ‘É certo que vocês ouvirão, porém nada compreenderão. É
certo que vocês enxergarão, porém nada verão. Porque o coração
desse povo se tornou insensível. Eles são duros de ouvido e fecharam
os olhos, para não ver com os olhos, e não ouvir com os ouvidos, não
compreender com o coração e não se converter. Assim eles não
podem ser curados’. Vocês, porém, são felizes, porque seus olhos
vêem e seus ouvidos ouvem. (Mateus, 13: 10-16. grifo nosso)
2
.
Bakhtin, em “Gêneros do discurso”, afirma que o estilo depende do modo
como o locutor percebe e compreende seu destinatário e do modo como ele
pressupõe uma compreensão responsiva ativa desse destinatário. E essa é uma
particularidade constitutiva que determina a escolha do gênero “Cada um dos
gêneros do discurso, em cada uma das áreas da comunicação verbal, tem sua
concepção padrão do destinatário que o determina como gênero” (BAKHTIN,
2000, p. 321).
Assim, temos que Jesus, nessa passagem, revela o modo como concebe
o seu ouvinte: como um ser alienado “olham e não vêem, ouvem e não
escutam nem compreendem
”;
não como um interlocutor, mas como um
receptor passivo, salvo alguns casos “Quem tem ouvidos, ouça!”. Esse ouvir,
então, torna-se relativo ao campo de compreensão subjetiva desse receptor,
que se encontra, segundo Jesus, comprometido “Eles são duros de ouvido e
fecharam os olhos, para não ver com os olhos, e não ouvir com os ouvidos, não
compreender com o coração e não se converter”. Jesus então fala por
2
Todas as parábolas bíblicas presentes nesta pesquisa foram transpostas de A Bíblia Sagrada (1990).
24
parábolas para fazer com que compreendam com o coração, pelo
e
n
tranhamento dessa palavra/parábola e, a partir dessa palavra, agora
e
n
tranhada, incorporada, convertam-se. Ao mesmo tempo ameaça, por meio
do mote que se repetirá em muitas de suas parábolas: “Pois a quem tem será
dado ainda mais, será dado em abundância, mas daquele que não tem, se
tirado até o pouco que tem. É por isso que eu uso parábolas para falar com
eles”
.
Dessa forma, Jesus afirma a necessidade da conversão, pois os que não
apreenderem/aprenderem a Palavra/Parábola estarão fadados à danação. Aí a
ambigüidade da sentença “Quem tem ouvidos, ouça!”;
ela incita, convida ao
jogo da decifração, mas intimida, ameaça, simultaneamente
.
No entanto, esse
argumento está sendo dirigido aos discípulos, que são nesse momento os
interlocutores de Jesus. Ou seja, a eles se dirige a intimidação, como forma de
mantê-los alerta, “vigilantes”, quanto ao seu papel de interpretar e retransmitir
a Palavra divina.
A história de parábola exerce uma função extremamente significativa no
efeito da conversão, pois, como afirma Sant’Anna (1998), o contar estórias
pode rapidamente anular defesas imediatas dos ouvintes e introduzir visões de
mundo que, de outra maneira, teriam sido rejeitadas antes que pudessem
estimular neles um auto-exame. Dessa forma se explica a escolha do gênero
por Jesus, de um gênero em que a narrativa tem em essência a função de
argumento, de persuasão e dissuasão simultaneamente, visando a uma
mudança de conduta, daí sua especificidade e eficácia didática. Uma didática
que alia o lúdico – contido no jogo da decifração do alegórico – ao ensino; mas
que, na configuração de seu instrumento de ensino – na história exemplar –,
apela também, pelo arranjo especial dos elementos construtivos do texto, para
a comoção do receptor, que, dessa forma, assimila, de modo mais eficaz, a sua
lição – idéia – convertendo-se.
Segundo Bertrand (2000), o discurso da parábola é um exemplo notável
de racionalidade figurativa, cuja forma de argumentação funciona por analogia
direta, lateralmente, pois a argumentação que se enuncia nesse discurso só
pode ser dita em termos concretos e sensíveis. Na parábola, a adesão dos
ouvintes se dá sem que haja o trânsito pelo raciocínio lógico, sem a
25
necessidade de se adotar seus códigos nem suas estratégias de persuasão. A
verdade que se supõe no discurso parabólico não pode ser compreendida, no
sentido racional da palavra, ela tem de ser literalmente incorporada pelos
ouvintes que a assumem e assimilam.
Bertrand, em sua análise, remete ao processo de conversão do receptor,
destinatário, próprio ao discurso parabólico. Processo que é pormenorizado por
Trigo (1986, p. 45); segundo a pesquisadora, a persuasão e/ou a dissuasão
têm em mira instalar o receptor no espaço de um novo querer (um dever), um
novo saber, (um crer), um novo poder (= um poder delegado), provocando,
dessa forma, a sua conversão. O ponto de partida da argumentação na
parábola não tem em mira meras opiniões do ouvinte, ele busca atingir
fundamentalmente o próprio ser do destinatário, através da alteração de sua
vontade, de seu pensamento e, como efeito posterior, de sua ação. Enfim,
Trigo afirma que o argumento atinge a competência do interlocutor, e isso se
dá também nos casos de argumentação reflexiva (do sujeito consigo mesmo);
casos esses que, apesar de raros não são ausentes das parábolas.
Esse mecanismo de conversão também é descrito por Suleiman (1977),
para quem todo texto de parábola se articula segundo três níveis
hierarquicamente ligados: o nível narrativo, o nível interpretativo e o nível
pragmático. A cada um desses níveis corresponde um discurso específico: o
próprio do discurso narrativo é apresentar – contar – uma história; o próprio do
discurso interpretativo é comentar a história, para tirar dela o sentido; o próprio
do discurso pragmático é derivar, assim, desse sentido uma regra de ação, que
terá a forma de um imperativo, verbo presente no epílogo, dirigido ao receptor
do texto, como podemos observar nesse trecho final da Parábola do Bom
Samaritano: “, e faça a mesma coisa” (Lucas, 10: 25-37. grifo nosso). Dessa
forma, os enunciados – introdução e conclusão – que estão em torno da
narrativa, comentam o mundo narrado e contêm elementos de sua
interpretação, assim como também comportam mecanismos de convencimento
e adesão:
13 Urgência da conversão – Nesse tempo, chegaram algumas
pessoas levando notícias a Jesus sobre os galileus que Pilatos tinha
26
matado, enquanto ofereciam sacrifícios. Jesus respondeu-lhes:
Pensam vocês que estes galileus, por terem sofrido tal sorte, eram
mais pecadores que todos os outros galileus? De modo algum, lhes
digo eu. E se vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo
modo. E aqueles dezoito que morreram quando a torre de Siloé caiu
em cima deles? Pensam que eram mais culpados do que todos os
outros moradores de Jerusalém? De modo algum, lhes digo eu. E se
vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo modo.” Então
Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma figueira
plantada no meio da vinha. Foi até ela procurar figos e não
encontrou. Então disse ao agricultor: Olhe! Hoje faz três anos que
venho buscar figos nesta figueira, e não encontro nada! Corte-a. Ela
só fica aí esgotando a terra. Mas o agricultor respondeu: Senhor,
deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e pôr adubo.
Quem sabe, no futuro ela dará fruto! Se não der, então a cortarás.
(Lucas, 13: 1-9).
A autora ressalva que esses enunciados interpretativos e/ou os
pragmáticos – ainda que em raros casos – podem não estar explícitos; neste
caso, se concretizarão por meio da competência do recebedor, que irá deduzi-
los dos enunciados narrativos, segundo as regras inscritas, de modo implícito,
na própria história. Na parábola da figueira, por exemplo, está implícita, no final
da parábola “Se não der, então a cortarás”, a seguinte conclusão: “portanto
convertam-se!”. Tal conclusão se adequa ao mote repetido por Jesus: “E se
vocês não se converterem, vão morrer todos do mesmo modo”.
Às vezes, são os próprios personagens que interpretam/comentam suas
ações, o que gera a economia do enunciado interpretativo do narrador. Nesse
caso, esses personagens exercem uma dupla função, sendo, a um só tempo,
atores e intérpretes de sua história, como é o caso que encontramos na
Parábola do Filho Pródigo, quando este retorna à casa paterna e, arrependido,
declara ao pai: “Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me
chamem teu filho. Mas o pai disse aos empregados: Depressa, tragam a melhor
túnica para vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e sandálias nos
pés. Peguem o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete. Porque
este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi
encontrado” (Lucas, 15: 21-24. grifo nosso).
É preciso observar, contudo, que essa parábola é a terceira da tríade que
principia com A ovelha perdida e tem, na seqüência, a parábola da Moeda
perdida. Três parábolas que Jesus utiliza para responder à crítica feita pelos
27
fariseus e pelos doutores da Lei sobre o fato de ele acolher pecadores e com
eles comer (ver ANEXO A). Lidas na seqüência, o sentido dessas parábolas é
facilmente alcançado, pois uma vem reafirmar a outra, ou seja, elas contêm o
argumento de Jesus, claramente explicitado no comentário feito por ele na
conclusão da primeira delas A ovelha perdida quando esta é encontrada: “[...] E
eu lhes declaro: assim, haverá no céu mais alegria por um só pecador que se
converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”
(Lucas, 15: 7). Dessa forma, a redundância presente nesse encadeamento
impõe o sentido pretendido, ou seja, funciona como elemento coesivo que
relaciona os diferentes casos narrados; estabelecendo entre eles uma conexão
lógica, deste modo conferindo-lhes unidade de sentido. Também é importante
dizer que, explicitado o preceito doutrinário da alegria pela conversão do
pecador, na parábola da Ovelha perdida, tornou-se desnecessário repeti-lo na
do Filho pródigo, ou na da Moeda perdida; afinal, como textos encadeados,
estes reafirmam o primeiro e ao reafirmá-lo prolongam-no, potencializando o
seu poder de convencimento. Assim, discordamos de Suleiman quando esta
afirma que, em algumas parábolas bíblicas, a interpretação pode ficar a cargo
da competência do recebedor, que irá deduzi-la apenas da história contada,
porque, como demonstramos, o contexto de inserção da doutrina enunciada
não concede autonomia ao receptor.
Outra especificidade do gênero, apontada por Suleiman, que reforça o
nosso argumento anterior, é que todo texto de parábola implica a presença de
um emissor e de um destinatário, aquele sendo responsável pela história,
enquanto este ocupa uma posição de paciente: “é quem recebe o texto, sobre
quem o texto
age
3
. É importante salientarmos que a autora está analisando a
recepção do romance de tese como um gênero narrativo didático, “que se faz
ler” de um certo modo, retórico, portanto, no sentido mais literal desta palavra:
arte de persuadir. Suleiman restringe seu enfoque da parábola àquelas
inseridas no contexto do Novo Testamento, cujo sentido, segundo ela, suscita
uma interpretação “unívoca”, porquanto este sentido só é alcançado na relação
com o conjunto de enunciados doutrinários entre os quais ela está inserida,
3
“[...] il est celui qui reçoit le texte, sur qui le texte ‘agit’.” (SULEIMAN, 1977, p. 475).
28
como metanarrativa, ou seja, ela só está colocada ali, num espaço intertextual,
para “afirmar” o discurso presente, como
exemplum
.
Ainda para ilustrarmos essas afirmações, usaremos o episódio em que
Jesus fala sobre a necessidade de estarem os discípulos e o povo “vigilantes”,
pois, segundo ele, “no fim dos tempos”, o Filho do Homem virá na hora em que
menos se esperar. Para afirmar a necessidade dessa vigilância, Jesus utiliza-se
de uma seqüência de parábolas e entre uma e outra repete a fórmula da
necessidade de se estar agindo conforme os preceitos, ou seja, alerta sobre a
necessidade de se estar vigilante “Portanto, fiquem vigiando! Porque vocês não
sabem em que dia virá o Senhor de vocês.” (Mateus, 24: 42-43).
Qual é o empregado fiel e prudente? É aquele que o Senhor colocou
como responsável pelos outros empregados, para dar comida a eles
na hora certa. Feliz o empregado cujo senhor o encontrar fazendo
assim quando voltar. Eu garanto a vocês: ele colocará esse
empregado à frente de todos os seus bens. Mas, se for mau
empregado, pensará: ‘Meu senhor está demorando’. Então começará
a bater nos companheiros, a comer e a beber com os bêbados. O
senhor desse empregado virá num dia em que ele não espera,
e numa hora que ele não conhece. Então o senhor o cortará
em pedaços, e o fará participar da mesma sorte dos
hipócritas. Aí haverá choro e ranger de dentes. (Mateus, 24: 45-
51. grifo nosso).
Na seqüência (ver ANEXO A), Jesus encadeia outra parábola, a das Dez
virgens, para com ela reafirmar a importância da constante observação da
conduta cristã. Novamente, será por meio da redundância que Jesus promoverá
unidade de sentido às parábolas encadeadas; entre uma parábola e outra
novamente repete a sentença da necessidade de se estar permanentemente
vigilante, pois não se sabe qual será o dia nem a hora, no entanto, devido à
sua extensão, reproduziremos apenas a das Dez virgens:
Naquele dia, o Reino do Céu será como dez virgens que pegaram suas
lâmpadas de óleo, e saíram ao encontro do noivo. Cinco delas não
tinham juízo, e as outras cinco eram prudentes. Aquelas sem juízo
pegaram suas lâmpadas, mas não levaram óleo consigo. As
prudentes, porém, levaram vasilhas com óleo, junto com as
lâmpadas. O noivo estava demorando, e todas elas acabaram
cochilando e dormiram. No meio da noite, ouviu-se um grito: ‘O noivo
está chegando. Saiam ao seu encontro’. Então as dez virgens se
levantaram, e prepararam as lâmpadas. Aquelas que eram sem juízo
disseram às prudentes: ‘Dêem um pouco de óleo para nós, porque
29
nossas lâmpadas estão se apagando’. As prudentes responderam: ‘De
modo nenhum, porque o óleo pode faltar para nós e para vocês. É
melhor vocês irem aos vendedores e comprar’. Enquanto elas foram
comprar óleo, o noivo chegou, e as que estavam preparadas entraram
com ele para a festa de casamento. E a porta se fechou. Por fim,
chegaram também as outras virgens, e disseram: ‘Senhor, senhor,
abre a porta para nós’. Ele, porém, respondeu: ‘Eu garanto a vocês
que não as conheço’. Portanto, fiquem vigiando, pois vocês não
sabem qual será o dia, nem a hora. (Mateus, 25: 1-13. grifo
nosso).
Segundo Suleiman, o contexto de inserção da parábola acaba por gerar
uma competência específica de interpretação e leitura da história contada;
contexto esse que a reveste de intencionalidade. Enfim, a pesquisadora afirma
que, dado esse contexto, o ensinamento das parábolas está fundado sobre uma
doutrina absoluta, totalitária.
Na mesma direção das colocações de Suleiman, temos a seguinte
observação de Sant’Anna:
Segundo nos parece, uma das razões que torna as parábolas mais
acessíveis aos seus destinatários é a própria estrutura interna da
maioria de seus exemplares. [...] ao redor do corpo narrativo da
parábola em si, existe um grupo de verbos que são responsáveis por
marcar os limites da introdução e da conclusão da mesma. São
exatamente esses fragmentos os responsáveis por indicar, no
contexto da metanarrativa, o sentido próprio da parábola, tanto no
seu início quanto no seu fim, sem contar com as declarações
hermenêuticas oferecidas pelos evangelistas, na parte que lhes cabe
na introdução e na conclusão que eles mesmos providenciam para o
material parabólico. (SANT’ANNA, 1998, p. 217).
Ao discutir a parábola como narrativa alegórica, Sant’Anna (1998) aponta
um aspecto importante em sua configuração que é a presença de outros
códigos, como os históricos, sociais, dialetais, da ciência e da tecnologia
encravados no corpo da narrativa. Chama atenção para a cumplicidade entre
narrador e ouvintes/leitores, os quais dominavam tais códigos por lhes serem
familiares, cotidianos.
Segundo Hansen (1986), será a mistura do próprio ao figurado que
conferirá clareza a esse subgênero alegórico que é a parábola. Daí
entendermos que será essa mistura da qual fala Hansen a responsável pela
cumplicidade apontada por Sant’Anna. Conforme Hansen, nessa modalidade
30
alegórica, denominada
permixta allegoria,
ao menos uma parte do enunciado
se encontra lexicalmente ao nível do sentido próprio, além disso, ela
caracteriza-se pela verossimilhança e pela brevidade.
Sant’Anna (1998) afirma que essas especificidades – clareza,
verossimilhança e brevidade – correspondem ao caráter funcional do gênero,
afinal, como metanarrativa, a parábola está a serviço da narrativa maior na
qual se insere, caso contrário poderia ser considerada uma digressão. Ainda
sobre sua brevidade, o estudioso constata seu efeito impactante sobre o
receptor, pois este sai do discurso maior e, na seqüência, adentra o universo da
parábola, retornando àquele discurso de uma forma rápida, o que potencializa
sua eficácia.
Sant’Anna aponta também a tipificação das personagens, ou
generalização do espaço e do tempo como um elemento característico,
particularizador, desse gênero discursivo. Essa generalização será responsável
pela universalidade dos princípios veiculados. As personagens, por exemplo,
não têm nome próprio, nem descrição física, mas quando são denominadas
“fariseu” ou “publicano” passam a significar instâncias que extrapolam o mero
cognome, passam a ser tipos sociais portadores de significação político-cultural:
os publicanos, por exemplo, constituíam uma força – política – dominante na
Roma antiga, eram os coletores de impostos que, abusando de seu poder de
classe, usurpavam o Estado e exploravam os cidadãos.
Segundo o pesquisador, a tipificação funciona como uma estratégia
persuasiva, pois o interlocutor, devido à generalidade das personagens que não
recebem nomes, espaço e tempo que não são marcados, distancia-se da
realidade sensível e não percebe que ele próprio é o alvo do processo como um
todo.
A cumplicidade entre os interlocutores da parábola se dá, então,
conforme Sant’Anna (1998), por meio da vinculação dos seres estereotipados
que protagonizam a narrativa a determinados grupos; a caracterização destes
personagens é possível por meio dos dados inferidos em seu discurso, pelo seu
proceder e por alguns elementos culturais presentes no interior do texto.
31
A universalidade das instâncias narrativas nas parábolas do Novo
Testamento não anula a monologia do discurso parabólico, de seu conteúdo, ao
contrário, atende ao seu propósito de universalizar uma doutrina, propagar a
Palavra/Parábola divina. A Palavra é direcionada. Há uma voz que a manipula
conforme manipula o modo de formar textual e o insere em um contexto
dogmático
4
. Daí as redundâncias na fala de Jesus serem fundamentais para a
constituição de uma visão circular do mundo, que se fecha. O sentido
produzido, nesse contexto, é o autorizado, conforme os indícios assinalados no
texto para o receptor que, em cumplicidade com o autor desse discurso, aceita
suas regras delimitadas pelo próprio gênero e passa a fazer o jogo – pré-
estabelecido – da procura pelo sentido, absorvendo e assumindo então as falas
repetidas e os preceitos que nelas estão subjacentes.
No entanto, devemos observar que, se considerada a relação analógica
entre as narrativas – entre os dois discursos, o alegórico e o referencial – que
constituem o plano da história de parábola (ou o caso contado), essa relação é
dialógica. Porém, se observarmos a parábola em sua relação ideológica com a
narrativa maior na qual está inserida (ou seja, a parábola como
exemplum
do
discurso doutrinário, como demonstração das idéias pregadas nesse discurso
maior), o que se estabelece aí é a confirmação do dito, afirmação da “palavra”,
prova da “Verdade”, do dogma, então ela é monológica. Também os
enunciados (como os diálogos das personagens) na parábola são objetos
subordinados à autoria: há um autor que manipula e domina todas as vozes e
as subordina à sua, pois que sua é a última palavra, a sentença final é sua,
sentença que entrelaça, costura cada parábola/Palavra dita por Jesus, o Mestre.
O discurso parabólico nesse sentido é monovocal. A Palavra é a verdade
4
Esse processo é análogo ao descrito por Bakhtin ao explicar a conversão do dialogismo ao
monologismo no diálogo socrático, quando este passa a servir a concepções dogmáticas do
mundo já acabadas de diversas escolas filosóficas e doutrinas religiosas: “A verdade não nasce
nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a
procuram no processo de sua comunicação dialógica. [...] Nos diálogos do primeiro e do
segundo período da obra de Platão, o reconhecimento da natureza dialógica da verdade ainda
se mantém na própria cosmovisão filosófica, se bem que de forma atenuada. Por isso, os
diálogos desse período ainda não se convertem em método simples de exposição das idéias
acabadas (com fins pedagógicos) e Sócrates ainda não se torna o ‘mestre’. Mas o último
período da obra de Platão isso já se verifica: o monologismo do conteúdo começa a destruir a
forma do ‘diálogo socrático’.” (BAKHTIN, 2002, p. 110).
32
essencial, dogmática, que deve ser assimilada, entranhada, sem polêmicas, seu
conteúdo é monológico.
Essa nossa reflexão se justifica pela complexidade desse tipo de
construção e porque, coerentes com o pensamento de Bakhtin,
compreendemos a necessidade de não reduzir o dialogismo ao diálogo
comunicativo ou à comunicação extraliterária (da vida cotidiana, por exemplo);
pois, conforme ele, as relações dialógicas são um fenômeno quase universal,
que penetra toda a linguagem humana. No entanto, essas relações dialógicas
não podem ser confundidas com as falas dialógicas
(falas de pessoas ou
personagens), além do que, dependendo do contexto comunicativo criado, elas
podem ser mais ou menos dialógicas. A dialogia depende de fatores como:
intencionalidade, estilo, visão de mundo – valores implicados e réplicas –
entoação, posição assumida pelos interlocutores que se expressará na utilização
de recursos expressivos, etc. “O enunciado, seu estilo e sua composição são
determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela
relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado” (BAKHTIN, 2000,
315).
No caso do texto literário que é a matéria de nossa análise, devemos
explicitar que o compreendemos como um construto, no qual há uma seleção e
organização do material para representar, em essência, relações humanas, e as
representa a partir de um ponto de vista e de um lugar determinado; pensamos
então o dialogismo nesse espaço como confronto entre vozes e idéias e a
monologia como afirmação de uma voz e de uma idéia. Da mesma forma que
um diálogo pode tender à monologia e um monólogo atingir o grau máximo da
dialogia, as relações que se configuram nos ou entre outros elementos do
universo criado pelo autor tendem a esse mesmo processo. Conforme afirma
Faraco (2005, p. 38), interpretando o pensamento bakhtiniano, “o objeto
estético materializa escolhas composicionais e de linguagem que resultam
também de um posicionamento axiológico”.
Não é tarefa simples definir o dialogismo bakhtiniano, Machado (1997),
contudo, faz uma síntese que, a nosso ver, expressa claramente a sua
abrangência:
33
Ora Bakhtin situa o conceito [de dialogismo] no campo do diálogo
socrático, definindo-o como um debate tenso de idéias em que as
palavras de um se confrontam com as palavras do outro no interior de
um único discurso; ora entende o dialogismo como sincretismo das
formas carnavalizadas presentes no discurso citado, na paródia, na
mistura de línguas e de linguagens, enfim, em todas as formas do
discurso dentro do discurso. Também por implicar fenômenos de bi e
multivocalidade, o dialogismo pode ser focalizado como uma
manifestação de oralidade, de onde Bakhtin derivou seu conceito de
polifonia. Assim, o que define a dialogia é menos a oposição imediata
ao monologismo e sim o confronto das entoações e dos sistemas de
valores que posicionam as mais variadas visões de mundo dentro de
um dado campo de visão. (MACHADO, 1997, p. 145).
Parece que aí reside mesmo o fundamento do dialogismo como apontou
Machado: confronto das entoações e dos sistemas de valores que posicionam
as mais variadas visões de mundo dentro de um dado campo de visão. O que
também não podemos perder de vista é o fato de estarmos, no caso da
parábola, tratando de um gênero retórico que, segundo afirma o próprio
Bakhtin, ao tratar do caráter responsivo ativo do interlocutor, é uma
modalidade que simula situações de interlocução e as manipula:
Nos gêneros secundários do discurso [gênero complexo; aparece em
circunstâncias de uma comunicação cultural, principalmente escrita:
romance, teatro, discurso científico, discurso ideológico, etc],
sobretudo nos gêneros retóricos, encontramos fenômenos que
parecem contradizer o princípio que colocamos [o do caráter
responsivo ativo do interlocutor presente em todo enunciado].
Observa-se de fato que, nos limites de um enunciado, o locutor (ou o
escritor) formula perguntas, responde-as, opõe objeções que ele
mesmo refuta, etc. Porém esses fenômenos não são mais que
simulação convencional da comunicação verbal e dos gêneros
primários do discurso [gênero simples; comunicação verbal
espontânea, do diálogo oral: linguagem das reuniões sociais, dos
círculos, linguagem familiar, cotidiana,, linguagem sociopolítica,
filosófica, etc]. É um jogo característico dos gêneros retóricos (que
incluem certos modos de vulgarização científica); aliás, todos os
gêneros secundários (nas artes e nas ciências) incorporam
diversamente os gêneros primários do discurso na construção do
enunciado, assim como a relação existente entre estes (os quais se
transformam, em maior ou menor grau, devido à ausência de uma
alternância dos sujeitos falantes). (BAKHTIN, 2000, p. 295).
Ou seja, nos gêneros retóricos, o diálogo não passa de dissimulação,
pois o outro é um artifício do retor, não há, afinal, alternância de sujeitos
falantes; o que há é uma voz que indaga, responde, refuta as objeções que ela
34
mesma formula. Ainda para fundamentarmos nossa argumentação, Bakhtin, em
Problemas da poética de Dostoiévski (2002, p. 68), afirma que o dogmatismo
exclui qualquer discussão, todo diálogo autêntico, inviabilizando-o. Ao que
acrescentamos, apesar da obviedade da afirmação: a função da parábola no
Novo Testamento não é senão afirmar o dogma religioso. Daí na Palavra estar
toda a verdade, ela é única e aqueles que não a alcançarem estarão mesmo
fadados à danação: “Pois a quem tem será dado ainda mais, será dado em
abundância; mas daquele que não tem, será tirado até o pouco que tem”.
Assim se construiu a lógica do pensamento indo-europeu, em torno de um
centro, de uma verdade, de uma palavra, de um autor, de um mestre, de um
herói, de um senhor – patrão –, de um Deus. O que temos no Novo
Testamento é apenas um dos exemplos dessa lógica e que acaba por afirmá-la
na sua pretensão, implícita, de perpetuá-la.
Para fundamentarmos nossos pressupostos, torna-se importante
discurtirmos a origem do termo parábola: do grego parabolé > paraballein,
significa colocar em paralelo, comparar. Segundo Trigo a parábola pertence à
classe dos discursos orais, é a palavra edificante:
A parábola é, assim, “a palavra” (< palavra < parabla <parábola): do
ponto de vista doutrinário [...] a palavra de Jesus, a elocução divina
[...] [a palavra] inspirada pelo sopro vivificador do Espírito, a palavra
viva que [...] dá a vida, a crer no que assegura o provérbio bíblico
acerca da letra e do espírito da Lei (que é a Lei do Espírito); e,
finalmente, do ponto de vista dos espaços de origem e de destinação,
do lugar de dentro do qual é proferida e escutada, a parábola do
Novo Testamento é a palavra da narrativa oral, de tradição popular,
transmitida no diálogo, feito uma conversação edificante – isto é, que
visa a conver – (sa) – são – do ouvinte. (TRIGO, 1986, p. 74. grifo do
autor).
Constatamos que está explicitada, na origem do termo, a base de nosso
argumento. Essa conver-(sa)-são de que nos fala Trigo, não é uma conversa
palavra – com o outro, mas uma palavra para o outro, para aquele que precisa
ser convertido, tido ou transformado em um, por meio da assimilação dessa
fala. O que implica dizer que não há contraponto e nem mesmo fusão de vozes
e verdades; há na realidade a anulação da voz do ouvinte e com ela a de suas
contradições e a assimilação da voz do enunciador e de sua verdade única ou
35
essencial. Enfim, há um apagamento do sujeito, da subjetividade e diversidade
desse ser em sua singularidade que se objetifica quando sua palavra se
objetifica, volta-se exclusivamente para o objeto que é objeto da orientação do
enunciador/autor. Assim o receptor passa a pensar o que lhe for delegado e a
agir de acordo com esta delegação. Faz parte inclusive desse discurso
manipulador a intimidação ou ameaça de punição aos que se desviarem ou não
agirem conforme a Palavra pela perda do direito ao Reino divino ou prestação
de contas no Juízo final.
Segundo Trigo (1986), é por meio dos enunciados argumentativos e
contra-argumentativos que o discurso manipulador da doutrinação se realiza na
parábola. Os argumentativos persuadem ao se construir sobre o fundamento de
uma promessa, recompensa futura, visando a promover uma intervenção:
“Faze isso e viverás” (Parábola do Bom Samaritano, Lucas, 10: 25-28); “Jesus
respondeu: Eu lhes garanto: se vocês tiverem fé, e não duvidarem, vocês farão
não só o que eu fiz com a figueira, mas também poderão dizer a essa
montanha: ‘Levante-se, e jogue-se no mar’, e isso acontecerá. E tudo o que
vocês na oração pedirem com fé, vocês receberão” (Mateus, 21: 21-22) (ver
ANEXO A). Os contra-argumentativos dissuadem uma ação que se realizaria
antes de o receptor ouvir a parábola/parabla/Palavra, e o faz por meio do
exemplo negativo ilustrado pela parábola, ou seja, do exemplar castigo que
recai sobre o que agiu contrariamente aos dogmas, construindo-se ao final
sobre o fundamento de uma intimidação “Em seguida o patrão ordenou: ‘Tirem
dele o talento, e dêem ao que tem dez. Porque, a todo aquele que tem
será dado mais, e terá em abundância. Mas daquele que não tem, até
o que tem lhe será tirado. Quanto a esse empregado inútil, joguem-no lá
fora, na escuridão. Aí haverá choro e ranger de dentes” (Parábola dos
Talentos, Mateus, 25: 28-30) (ver ANEXO A). Assim, temos também na
Parábola do Credor Incompassivo:
O patrão mandou chamar o empregado, e disse: ‘Empregado
miserável! Eu lhe perdoei toda a sua dívida, porque você me suplicou.
E você, não devia também ter compaixão do seu companheiro, como
eu tive de você?’ O patrão indignou-se, e mandou entregar esse
empregado aos torturadores, até que pagasse toda a sua
36
dívida. É assim que fará com vocês o meu Pai que está no céu,
se cada um não perdoar de coração ao seu irmão. (Mateus 18:
32-35. grifo nosso) (ver ANEXO A).
Dada essa configuração do gênero e considerando os pressupostos do
teatro brechtiano e seu projeto político, cabe formularmos aqui uma questão
crucial: por que Brecht opta por esse gênero, construindo parábolas teatrais?
No intuito de responder a esse questionamento, buscamos entre
formulações críticas sobre o gênero dramático e sobre o teatro épico aquelas
que indicassem a manifestação de parábolas no teatro, para, a partir daí,
tentarmos compreender a sua motivação no contexto em que essas
manifestações vigoraram, relacionando-as, então, ao teatro épico – dialético –
brechtiano e às suas parábolas teatrais.
37
4 A PARÁBOLA TEATRAL
A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe
certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a atitude
exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-
se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face
do mundo.
Anatol Rosenfeld (1965, p. 5)
Patrice Pavis (1999), em seu Dicionário de Teatro
,
observa que
freqüentemente as peças possuem cenas de parábola. O que não é o objeto de
nosso estudo. Ainda que, no teatro de Brecht, encontremos parábolas curtas
dentro de suas peças, nosso enfoque são as peças denominadas parábolas,
conforme já apontamos.
Dessa forma, buscamos, nesse momento de nossa pesquisa, a
configuração da parábola teatral e as suas motivações. Conforme Pavis, a
parábola é um modelo reduzido do mundo, no entanto, para o crítico, o
paralelo entre o caso narrado e a nossa situação é estabelecido no nível mais
profundo ou no plano da moral. Pavis compreende o gênero como portador de
um duplo fundo: o da anedota ou narração e o da moral ou lição. Ele defende
ainda que a opção pela parábola no teatro se explica muitas vezes pelo fato de
o dramaturgo recusar-se à descrição naturalista do presente que acaba por
mascarar a dinâmica dos fatos e, assim, o mecanismo ideológico neles
implicado:
[...] muitas vezes o dramaturgo recusa a solução imediata, que
consistiria em descrever o presente com fortes detalhes naturalistas;
pois poderia então mascarar o essencial, e deixar de evidenciar o
mecanismo ideológico que o subtende e que subentende a aparência
verista (PAVIS, 1999, p. 276).
O que para nós sintetiza e desta forma norteará nosso pensamento
nesta discussão é a seguinte afirmação de Pavis (1999, p.276): “a parábola é
um meio de falar do presente, colocando-o em perspectiva e travestindo-o
numa história e num quadro imaginários”. Bem, isso significa que a parábola é
38
mesmo um discurso que remete, por analogia, à História, à realidade concreta,
ao homem e seu contexto, colocando-os, contudo, em perspectiva, ou seja,
distanciando-os. Daí inferirmos a sua dimensão épica. Mas o que precisa ficar
claro é que esse distanciamento ocorre quando o receptor da parábola, no
plano da narrativa ou do caso contado pelo locutor, é transportado (não nos
referimos ainda à parábola teatral brechtiana) para um espaço alegórico. Após
isso, ele é trazido novamente para o plano da objetividade, pela recepção de
um discurso que comenta a situação ou condutas postas em cena, e, pela
relação, analogia, neste momento estabelecida entre a situação narrada e a
sua, o receptor identifica-se e incorpora a idéia aí contida, sendo induzido, por
meio dos verbos no imperativo presentes nessa instância pragmática do texto,
à mudança de estado, à ação/conversão, como já descreveram Suleiman e
Sant’Anna.
Já Anatol Rosenfeld, analisando os elementos épicos no teatro de Gil
Vicente, observa que o Auto de Inês Pereira é uma parábola. A peça ilustra o
provérbio popular: Antes quero asno que me leve que cavalo que me derrube.
E o crítico faz uma observação muito importante para o desenrolar de nossa
investigação: segundo ele, a parábola em si é “épica”, por referir a peça a algo
exterior a ela, fato esse que lhe tira a atualidade dramática absoluta e a
relativiza pela referência a algo precedente. “É o narrador que ‘ilustra’ um
provérbio contando um caso” (ROSENFELD, 1965, p. 48).
Dada sua dimensão histórica e política, o discurso da parábola é, então,
ideológico; mas, isso posto, o que se impõe é saber a que ideologia ela se filia.
Pavis (1999) observa que a parábola teatral não pode ser um simples disfarce
de uma mensagem unívoca, sob a pena de perder o seu encanto: “Deve
preservar sempre uma certa autonomia e opacidade para significar por si
própria, nunca ser totalmente traduzível em uma lição, mas prestar-se ao jogo
da significância e aos reflexos da teatralidade” (p. 276). A questão é, pois,
averiguar como isso se dá; e, quando isso acontece, em que contexto de
produção teatral se viabiliza. A partir disso, quais estratégias construtivas são
acionadas nesse jogo da significância do qual nos fala Pavis. O crítico observa
também que a parábola teatral historicamente surge em épocas de profundas
39
discussões ideológicas e marcadas pelo desejo de usar a literatura para fins
didáticos e cita as épocas da Reforma e Contra-Reforma, o século XVIII e o XX
como os de vigência do gênero.
Então, a transposição da parábola para o palco não foi tarefa inédita de
Bertolt Brecht; já o teatro barroco fazia uso do gênero. Calderón de la Barca,
por exemplo, utiliza-se de lendas, sagas, símbolos e parábolas em seu teatro. A
peça O grande teatro do mundo é a ilustração – demonstração – de uma tese:
a vida é sonho, no sentido de que tem a duração e a consistência dos sonhos,
assim é um bem ilusório. As personagens, por meio de sua coreografia,
apresentam um ritual que confirma essa tese. E o contexto em que o
exemplum
se constrói é, aqui, em conformidade com nossa análise inicial,
monológico. Os intertextos que se impõem à narrativa linear são os da retórica
evangélica. Há então dois planos a serem lidos, o literal e o alegórico, assim
temos Autor = Deus; Mundo = Teatro; representação humana = Aparência e
ilusão; Deus = Essência e Verdade. Dessa forma, o discurso que embasa e
deve ser interpretado é o do dogma cristão.
MUNDO
O que me mandas, pois? Tens-me a teus pés.
AUTOR
Pois sou o Autor e tu minha obra és,
hoje, de meu conceito
a execução em tuas mãos eu deito.
Que festa fazer quero
a meu próprio poder, se considero
que só por ostentar minha grandeza
festas fará minha obra, a natureza;
e como sempre há sido
o que de mais alegre e divertido
de representação bem aplaudida,
e é representação a humana vida,
uma comédia seja
a que hoje o céu em teu teatro veja.
Se sou Autor e se é minha a festa,
a companhia minha encargo desta.
E já que eu escolhi entre os primeiros
os homens, e eles são meus companheiros,
eles, já no teatro
do mundo, que contém de partes quatro,
com estilo adequado
hão de representar. E será dado,
pois, o papel que a cada um convenha;
e porque em festa igual sua parte tenha
40
o formoso aparato
de cenários, de trajes o ornato,
prevenido hoje quero
que, alegre e liberal, tal como espero,
fabriques aparências
que de dúvidas passem a evidências.
Seremos, eu, o Autor, pois, neste instante,
Tu, o teatro, e o homem, recitante.
(CALDERÓN DE LA BARCA, 1988, p. 2, 3).
Como podemos observar, pelo próprio comentário colocado nesse
prólogo da peça, o Mundo é comandado pela vontade divina, vontade de seu
criador, o Autor; e os homens neste Mundo, equivalente ao teatro, ao ilusório,
devem representar os papéis que lhes forem determinados. Ao Mundo cabe
fornecer a indumentária adequada a cada papel a ser representado e despojar
dela os homens assim que estes encerrarem tais papéis, ou seja, assim que
forem retirados da peça por meio de sua morte. Cabe comentar ainda que as
personagens em cena são típicas: Rei, Lavrador, Pobre, Criança, Rico, Lei.
LAVRADOR
Autor soberano meu,
a quem por tal grato sou,
a teu mandamento estou
como obra de um gesto teu;
e pois tu sabes, não eu
que a Deus ignorar não vem,
que papel a mim convém,
se este papel eu errar,
dele não vou me queixar
mas de mim, de mais ninguém.
AUTOR
Já sei que se para ser
o homem escolher pudera,
ninguém o papel quisera
do sofrer e padecer;
todos quiseram fazer
o de mandar e reger,
sem advertir ou sem ver
que, em ato tão singular,
aquilo é representar
mesmo ao pensar que é viver.
Como autor soberano, eu
sei bem que papel fará
melhor cada um; e assim vá
a mão dando a quem o seu.
Faze tu o Rei.
41
REI
Honras eu!
[...]
AUTOR
Faze o mísero, o mendigo.
POBRE
Pois este papel me dás?
[...]
(CALDERÓN DE LA BARCA, 1988, p. 11 - 13).
Por meio do
exemplum
, ou da história, o espectador deve
assimilar/incorporar a “verdade”, que foi demonstrada pela encenação, de que
este Mundo é ilusão; o Mundo é análogo a um palco/Teatro e deve ser
comandado pela vontade do Autor, Criador/Deus. O mundo é trazido para o
palco para que se apreenda/aprenda isso. Esse mundo demonstrado é acabado
e nele o homem não interfere, devendo apenas, sem questionar, representar, e
bem, o papel que lhe cabe. Será cada ator/homem, após sua morte, julgado
pela qualidade de sua representação, por sua capacidade de despojar-se do
que for alheio ao seu papel – portanto, somente pela capacidade de resignação
o homem alcançará a salvação de sua alma.
VOZ
Canta
Lavrador, o teu trabalho
a ponto final chegou.
Já o serás de outra terra.
E onde é? Sabe o Senhor!...
LAVRADOR
Eu, voz, se de tal sentença
apelar possível for,
recorro, pois eis que apelo
a tribunal superior.
Não morra eu por agora,
aguarda estação melhor,
ao menos que minhas terras
deixe-as eu em ponto bom;
e porque, como já disse,
sou maldito lavrador,
como dizem minhas vinhas,
cardo a cardo, flor a flor,
pois tão alto está o capim
que duvida quem olhou
42
[...]
Dirá, sei, quem isso ouvir,
que até que o momento é bom,
estando o campo sem fruto
morrer eu, e a isso vou
responder: - Se muitos frutos
deixa um, mas não respeitou
testamento de seus pais,
que faz sem frutos, Senhor?
Mas já não é tempo de graças,
pois ali disse uma voz
que o fim chega, e já o sepulcro
abriu sua boca de horror.
Se meu papel não cumpri
conforme o que dito foi,
pesa-me que não me pese
sentir uma grande dor.
Retira-se
(CALDERÓN DE LA BARCA, 1988, p. 44, 45).
Conforme analisa Benjamim (1984), no drama barroco, a morte do
homem é apenas a prova mais extrema da impotência e do desamparo da
criatura; mas esta é conduzida à morte pelo destino, forma natural da
necessidade histórica, e não por suas ações; é a fatalidade que entra em causa
e não o determinismo. A vida do homem como a de toda a natureza é
transitória, a morte é fatal a todas as criaturas; assim, a história para o homem
barroco corresponde à história natural. Mas a ela se conjuga a história do
pecado original:
O núcleo da noção do destino é a convicção de que a culpa (nesse
contexto, sempre a culpa da criatura, o pecado original, em termos
cristãos, e não a transgressão moral) desencadeia, através de uma
manifestação mesmo fugidia, a causalidade como instrumento de uma
fatalidade inexorável. (BENJAMIN, 1984, p. 153).
No drama barroco, a morte não é um destino individual, mas da criatura
humana, e muitas vezes ela aparece como um destino coletivo, como se todos
fossem convocados ao juízo supremo. É o que acontece em O grande teatro do
mundo, em que a morte não tira a força dos papéis representados pelas
personagens, elas continuam atuantes:
MUNDO
É tarde já, que após a morte vem
43
não poder méritos ganhar ninguém.
já que hei cobrado augustas majestades,
já que hei desfeito belas perfeições,
já que hei frustrado assim tão vãs vaidades,
já que igualado hei cetros e enxadões,
ao teatro ide agora das verdades,
que este aqui é o teatro das ficções.
(CALDERÓN DE LA BARCA, 1988, p. 57, 58).
Segundo Benjamin (1984), a morte não exprime nenhum desafio, nem
anuncia uma ordem nova, porque qualquer transcendência é alheia ao Barroco,
e sua utopia é a utopia conservadora da Contra-Reforma; só compreendendo o
papel do pecado original, da culpa da criatura dentro deste contexto, pode-se
compreender o drama do destino típico do Barroco.
Não podemos nos esquecer de que o homem tinha, nessa época, uma
visão de mundo sem movimento; não havia ainda a noção de historicidade
numa perspectiva dialética. A história é pensada pelo homem barroco, segundo
Benjamin, como natureza cega, desprovida de fins. Daí, talvez, podermos dizer
que a parábola é aqui transposta em sua forma arquetípica, como um
instrumento didático que, nesse contexto da representação teatral, dota-se do
mais alto grau de persuasão, pois promove a incorporação, pelos sentidos, da
tese de que a vida é sonho, ilusão. Os personagens são então aqueles que
demonstram essa tese por meio de uma coreografia, de um ritual que confirma
o argumento fundamental de que o mundo é um espetáculo dirigido por Deus.
Conforme Rosenfeld:
o teatro, na sua íntegra, passa a ser símbolo do mundo. [...] Todo o
Barroco ecoa o sermão deste mundo enganador. Tudo é máscara e
disfarce [...] o mundo dos sentidos é irreal como o teatro. Face ao
44
da ilusão da vida profana, [...] também os personagens entregam-se ao
disfarce e ao equívoco” (p. 50). Porém, nesse ponto, observamos que, em O
grande teatro do mundo, as personagens revelam consciência de sua
dramaticidade, o que é um traço que será bastante explorado pelos teatrólogos
modernos.
Outro fator explicitado por Rosenfeld é que, por ser o teatro barroco
desenfreado devido a seu excesso, ele desmascara-se como teatro e ficção,
pondo-se a si próprio em questão:a cortina sobe cedo demais enquanto no
palco ainda se montam cenários e se provam as máquinas; a peça começa
antes da peça, desenrola-se no próprio ensaio” (p. 51) – procedimento que se
repete, por exemplo, em Wilder, Pirandello e Brecht, os quais se inspiram no
Barroco. E quanto a essa “inspiração”, Rosa (1998, 1999, p. 193) é
esclarecedor em relação à importância que a obra de Calderón tem em Brecht:
“O processo de alegorização medievo-barroca da personagem teatral, que toma
consciência da convenção que representa como nO grande teatro do mundo
calderoniano – pode assim considerar-se a proto-história do estranhamento
épico defendido por Brecht”.
Rosenfeld também assinala a influência do teatro da Reforma, dando
relevo ao de Gil Vicente, sobre Brecht. E Saraiva (apud. ROSENFELD, 1965, p.
48) assim compara os dois teatrólogos: “a analogia entre Gil Vicente e Brecht
resulta não apenas de uma intenção de crítica social mas principalmente de
uma idêntica concepção do espetáculo teatral”.
E serão manifestações desse período – Idade Média e Barroco – que
influenciarão, dada a profusão de elementos épicos, a construção das peças
parábolas que compõem o nosso objeto de estudo:
Na época que vai dos fins da Idade Média ao Barroco mutiplicam-se
as formas dramáticas e teatrais caracterizadas por forte influxo épico
em conseqüência do uso amplo de prólogos, epílogos e alocuções
intermediários ao público, com fito didático, de interpretação e
comentário [...]. Na Alemanha se tornam queridos os
“Fastnachtsspiele” (peças de trote e farra) aparentados com a “sotie”
(sot=bobo) francesa. [...] Pequenas farsas, quadros de costumes em
forma de revista, apresentam com freqüência cenas de tribunais em
que há sempre um elemento de direção para o público, visto este ser
solicitado a participar do julgamento, tendo de julgar por vezes os
próprios julgamentos cênicos. A forma “aberta” dessas peças –
45
abertas por não se fecharem no palco e por serem dirigidas
explicitamente ao público – realça-se por vezes pela ausência de
sentença ou desfecho de modo que o público é forçado a concorrer
com a sua própria opinião. (ROSENFELD, 1965, p. 46).
Essa dinâmica de abertura, de inacabamento da história, de falta de
soluções, as quais serão delegadas ao público, assim como o forte influxo épico
em conseqüência do uso amplo de prólogos, epílogos e alocuções
intermediários ao público, com fito didático de interpretação e comentário,
descrita por Rosenfeld, é a mesma dinâmica das parábolas teatrais brechtianas,
com seus prólogos e epílogos, julgamentos e ausência de sentença e de
desfecho. Esses elementos épicos, destacados por Rosenfeld no teatro da Idade
Média ao Barroco, como a presença de um enunciador que se dirige ao
ouvinte/público nos prólogos e epílogos, são também elementos constituintes
da estrutura do texto parabólico, conforme a descrevem os críticos por nós já
comentados como Sant’Anna, Trigo e Suleiman. Inclusive, aproximando os
gêneros, Sant’Anna (1998) aponta a apropriação de recursos e efeitos cênicos
como a tensão e dramatismo pelo discurso parabólico, recursos estes de efeito
altamente persuasivo. Cabe observar, então, que, nas peças acima referidas, a
forma da parábola é também apropriada por elas, convertendo-se, ao mesmo
tempo, em recurso épico e didático. Há, dessa forma, confluência de recursos
de um gênero em outro e parece ser o resultado dessa confluência, resultado
este mediado pela intenção do autor, a qual se configura e materializa na
escolha do material artístico, a medida que delimitará essa escolha.
Do mesmo modo, temos, nas cinco peças/parábolas de Brecht (O
preceptor, A alma boa de Setsuan, A resistível ascensão de Arturo Ui, Os
cabeças redondas e os cabeças pontudas, Quanto custa o ferro?) constituintes
de nossa análise, a presença formal do narrador/retor/autor que conta uma
história alegórica – enunciado narrativo, portanto –, apresentando-se, no
prólogo da peça, a seus ouvintes/público e com este comentando a situação
vigente – enunciado interpretativo. Cabe ressaltar que essa postura do
personagem que se desdobra em narrador/ator, comentando a história, será
uma dinâmica constante em vários momentos das peças de Brecht, como
demonstraremos no próximo capítulo. A história –
exemplum
–, demonstrada
46
pelos atores – personagens –, por sua vez, precisa ser decifrada. O público
deve buscar o seu sentido subjacente, inferindo dele, ao fim da peça – epílogo
– uma regra de ação – enunciado pragmático.
Os enunciados interpretativo e pragmático estão explícitos em forma de
prólogo e de epílogo em peças como
O preceptor e A resistível ascensão de
Arturo Ui. Em A Alma boa de Setsuan,
temos apenas o epílogo após a narrativa,
contudo nele se apresentam comentários à história e se explicitam os verbos no
imperativo. Nas outras parábolas teatrais, Os cabeças redondas e os cabeças
pontudas e Quanto custa o ferro?, temos a presença apenas do prólogo.
Fechando o balanço das influências desse período em Brecht, o que
retomaremos mais adiante, principalmente quanto à peça O grande teatro do
mundo, de Calderón, reproduzimos a síntese feita por Chiarini:
Do espetáculo medieval Brecht tirou o ritmo largo e despreocupado
(... cada cena vive por conta própria), o alternar-se da ação e da
narração, os comentários e “sermões” convidando o público a extrair
do texto a “lição” competente; da dramaturgia elisabetana e barroca,
ao invés, uma concepção mais desembaraçada e elástica da
estruturação dramática, e uma intervenção mais acentuada do tema
“cômico” no complexo de uma orquestração fundamentalmente séria
(do teatro elisabetano, em particular, o princípio – racionalista – da
iluminação sempre total do palco); do teatro oriental, sobretudo
indicações para recitação, para o guarda roupa, para o uso, por vezes,
de máscaras e da música em função alienante, pelo caráter alusivo e
simbólico do “contra-regra”. (CHIARINI, 1967, p. 133).
Acreditamos que o modo de ordenar o material estético revela uma
concepção de homem e de mundo, mas fundamentalmente revela uma
concepção da própria arte. A seleção e organização dos recursos expressivos,
do gênero composicional, do estilo, enfim do meio de expressão da idéia
refratam o pensamento e posicionamentos do autor. Brecht, nesse sentido é
muito lúcido e prático. Construiu, ao lado de sua obra literária, teatral e poética,
um significativo texto teórico que reflete sobre elas e reflete em essência sobre
as experimentações que não se cansava de fazer na procura do aprimoramento
do pensamento dialético e dos recursos expressivos que o implicassem; assim
reflete sobre o mundo, a história e o papel do homem e do artista na
construção dessa história.
47
É nesse ponto, então, que pretendemos investigar, em consonância com
a discussão feita por Jameson, como se tensionam pensamento e
práxis
em
suas parábolas teatrais, como já explicitamos. Dessa forma, passaremos a
discutir os pressupostos que fundamentam a construção artística do
dramaturgo, relacionando-os ao contexto sócio-político no qual afloraram, ao
mesmo tempo que procuraremos em suas parábolas teatrais exemplos da
materialização desses pressupostos, para, dessa forma, não extrapolarmos o
propósito de nosso estudo e o objeto de nossa investigação.
48
5 O TEATRO ÉPICO E A PARÁBOLA
As “condições históricas” não devem, evidentemente, ser imaginadas
(nem tampouco construídas), como poderes misteriosos (como pano
de fundo); pelo contrário, elas são criadas e mantidas pelos homens
(e serão, quando for o caso, modificadas por eles). É a ação se
desenrolando em nossa frente que nos permite ver essas condições
históricas como elas são.
Bertolt Brecht (1967, p. 198)
Colocada a questão da parábola como um subtexto ideológico, como a
denomina Pavis (1999), discutiremos o teatro épico brechtiano para, a partir
daí, examinarmos como o dramaturgo articula a parábola ao seu projeto
teatral. Buscaremos sempre que possível, nas parábolas teatrais, elementos
que venham ilustrar as estratégias discursivas próprias do exercício dialético
pesquisado, posto em cena e teorizado por Bertolt Brecht, dessa forma,
utilizaremos outras peças somente quando se fizer necessário.
Cabe reafirmarmos que as cinco parábolas constituintes do
corpus
de
nossa investigação não podem ser confundidas com as peças didáticas,
Lehrstück
, uma tipologia específica, segundo Koudela (1991), cuja configuração
atende a um outro projeto de trabalho. A metodologia das peças didáticas tem
sido pesquisada e discutida no Brasil pela pesquisadora, encontrando-se
descrita em diversas de suas obras, dessa forma não nos ateremos aqui à sua
discussão.
Fica patente que o espírito científico, de pesquisa, experimentação e
relato era próprio do dramaturgo, que assim procedeu até sua última obra. Seu
teatro deve ser visto como ele o concebia: em processo, aberto a novas
alternativas, a sugestões do público, dos atores e de seus colaboradores, o que
nos leva a ressalvar que todo exemplo aqui colocado remeterá a uma
possibilidade de leitura, pois Brecht repensava cada montagem, reelaborava,
numa posição análoga à sua visão de mundo, de homem e de História em seu
vir-a-ser. Dessa forma, o próprio teatro se historiciza, a ação que nele se conta,
49
a H/história demonstrada, é desencadeada pelas relações que se estabelecem
no movimento histórico, no tempo e no espaço fundados pela
práxis
humana.
A proposta do teatro épico ou dialético, como Brecht passou a denominá-
lo posteriormente, funda-se em sua experiência como dramaturgo, ator e
diretor de teatro numa época conturbada – entre duas guerras mundiais e,
entre elas, o craque da bolsa de Nova Iorque – época de intensa crise
econômica; mas, fundamentalmente, as
50
Nessas palavras de Brecht, temos o sentido de seu teatro denominar-se
épico: ele pretende abarcar os acontecimentos do mundo, em processo, pois
assim nele caberá o homem, tomado, pois, como expressão do “conjunto de
todas as condições sociais”.
Também o homem, ou melhor, ‘o homem de carne e osso’, só pode
ser concebido agora em função dos acontecimentos em que se
enquadra e que o determinam. A nova arte dramática tem de incluir
metodologicamente, na sua forma, a experiência. Tem de poder
servir-se de conexões estabelecidas em todos os sentidos; necessita
de estatismo e possui, além disso, uma tensão que é nota dominante
entre todas as partes distintas de que se compõe e que as “carrega”
reciprocamente. Essa forma é, assim, tudo menos um conjunto de
fatos simplesmente alinhados em seqüência. (BRECHT, 1964, p. 42).
Brecht, então, investe na construção de um teatro narrativo,
metanarrativo, cujo fundamento não está tão somente na história contada, mas
no modo de apreendê-la, daí a preocupação e a pesquisa incessante sobre o
modo de contar ou re-apresentar essa história em suas “conexões”. O interesse
maior desse teatro é o de destramar a própria história, daí essa forma ser “tudo
menos um conjunto de fatos simplesmente alinhados em seqüência”: é pela
tensão “que é nota dominante entre todas as partes distintas de que se compõe
e que as ‘carrega’ reciprocamente” que se revela a trama discursiva
desencadeadora – ou criadora – dos fatos/mitos/ficções.
OS ATORES
Agora vamos contar
A história de uma viagem
Feita por dois explorados e por um explorador.
Vejam bem o procedimento dessa gente:
Estranhável, conquanto não pareça estranho
Difícil de explicar, embora tão comum
Difícil de entender, embora seja a regra.
Até o mínimo gesto, simples na aparência,
Olhem desconfiados! Perguntem
Se é necessário, a começar do mais comum!
E, por favor, não achem natural
O que acontece e torna a acontecer
Não se deve dizer que é natural!
Numa época de confusão e sangue,
Desordem ordenada, arbítrio de propósito,
Humanidade desumanizada
Para que imutável não se considere
Nada.
51
(A exceção e a regra /Peça didática, 1929-1930: BRECHT, 1990, p.
132).
O exercício do pensamento dialético “numa época de confusão e sangue,
desordem ordenada, arbítrio de propósito, humanidade desumanizada”,
explicitado neste prólogo, começa pelo aguçar da observação do público,
própria de uma postura científica, de distanciamento diante dos fatos: “vejam
bem o procedimento dessa gente: estranhável, conquanto não pareça
estranho, difícil de explicar, embora tão comum, difícil de entender, embora
seja a regra. Até o mínimo gesto, simples na aparência, olhem desconfiados!
Perguntem se é necessário [...]”. Essa postura de estranhamento, de
indagação permanente, de indignação, é adotada também por Brecht que a
assume diante do mundo e de sua obra, como já defendemos. Porém, é
fundamental que nos atenhamos ainda sobre a orientação contida nos versos
finais “Para que imutável não se considere nada”, por que ela é o ponto de
saída e chegada do método Brecht.
Dessa forma, o dramaturgo explicita os mecanismos discursivos –
sígnicos – ao espectador, os mecanismos que permitem construir as
representações – teatrais e ideológicas – para que o receptor possa – por meio
de analogias, ou por meio da parábola – perceber, interpretar a dinâmica
mesma dessas representações – discursivas –, que são históricas. Usamos aqui
o termo representação, propositadamente, em suas duas acepções possíveis,
que, em Brecht, devem ser mesmo vistas em sua simultaneidade de uso e
geração de sentido: representação como linguagem teatral em sua encenação,
pelo diálogo entre personagens, de um conflito, utilizando-se de recursos tais
como máscaras, indumentária, gestualística, cenário, etc, e representação como
discurso ideológico, tal qual o descreveu Henri Lefebvre (1983). Segundo o
filósofo francês, com o propósito de escamotear as contradições presentes na
realidade histórica, criam-se representações ideológicas
5
para justificar a
necessidade de práticas ou intervenções que, na realidade, não passam de
abstrações: o real não necessita delas, pois elas não atuam nas problemáticas
5
Para o aprofundamento da queso das representações ver: LEFEBVRE, Henry. (
La
)
presencia
y la ausência.
Tradução Fondo Nacional de Cultura. México: 1983.
52
de forma concreta, pelo contrário, simulam ou criam outras questões, que até
existem, mas são acessórias. Dessa forma, perde-se o sentido real da
práxis
,
camuflam-se as relações pertinentes aos fatos, as quais seriam essenciais para
explicá-los, e, assim, distorce-se o foco das discussões.
Almeida (2001), numa interpretação das representações, é esclarecedor
quanto às suas implicações ideológicas:
As representações não transformam o real, não o alteram: ao
contrário, dificultam ou impedem a ocorrência de mudanças, pois
distorcem a compreensão dos fatos, das circunstâncias em que
ocorreram e das relações que se estabelecem entre eles. Deste modo,
elaboram explicações parciais que, do mesmo modo como omitem
alguns dados, evidenciam outros, no sentido de justificar ou condenar
atitudes ou condutas, dissimulando, assim, as contradições presentes
na realidade. [As representações, em decorrência dos interesses dos
grupos que as geram, possuem mobilidade e, dessa forma, têm]
capacidade de adequar-se às condições históricas. Estas
características estão vinculadas à sua habilidade em dissimular, em
esconder uma parte do real. (ALMEIDA, 2001, p. 25, 26).
Brecht, em seu teatro épico, desnuda os elementos da composição –
cênicos – para que o receptor apreenda o mundo ou a realidade construída
como discurso, como representação ideológica – como objeto observável e
passível de nova intervenção. O importante é que o espectador reconheça que
há outra(s) possibilidade(s) para os fatos e outras possibilidades para explicar
as relações entre eles, que tudo aquilo que se demonstrou contou em cena
poderia ter acontecido de forma diferente. Daí o distanciamento, o olhar
estrangeiro é fundamental como processo e no processo.
Nossa própria era, que vai transformando a natureza em tantas e tão
variadas formas, tem o prazer em compreender as coisas de modo
que nelas possam intervir. Há muita coisa no homem, dizemos, muito
se poderá fazer dele. No estado em que se encontra é que não pode
ficar, nem deve ser encarado como ele é agora, mas também como
poderá ser um dia. Não se trata de partir dele, mas tê-lo como
objetivo. O que significa que não devo simplesmente ocupar o seu
lugar, mas pôr-me perante ele, representando todos nós. É esse o
motivo por que o teatro tem de distanciar tudo o que apresenta.
(BRECHT, 1967, p. 202).
Já em 1924, iniciando a sua tarefa de demolição do conceito de herói,
Brecht adapta o drama histórico A vida de Eduardo II da Inglaterra, de Marlowe
53
(escrita em 1592). Segundo Peixoto (1979, p. 57), este é o primeiro exercício
de Brecht “na busca de um teatro narrativo, destinado à reflexão do
espectador, a prática de suas teorias sobre a possibilidade e a necessidade de
atualizar os clássicos, repensar o teatro como estrutura e significado, na busca
de uma comunicação mais efetiva com o público, através do uso de processos
de distanciamento”. O que interessa
a Brecht nesse momento não é a figura
histórica – monstruosa – ou a tragédia de um indivíduo; mas já aí se delineia o
seu interesse pela constituição sócio-econômica e política em que os indivíduos
estão inseridos e a forma como nela atuam; e nisso, cumpre dizer, temos uma
concepção de teatro que exige a delimitação entre as formas “épica” e
“dramática”:
Brecht opõe a
forma dramática
legada pelo aristotelismo à
forma
épica
por ele [Brecht] preconizada. A primeira [aristotélica] é uma
forma fechada. Repousa em uma ação desencadeada por um ou
vários conflitos entre os protagonistas. Desemboca em um desenlace
que é a instauração ou restauração de uma harmonia social, de uma
ordem política. Proclama portanto uma verdade à qual o espectador
só pode aderir através da participação e da identificação. Tal teatro
afirma o primado do indivíduo. A ação nasce do conflito que opõe um
herói solitário, digamos Horácio e Tito, Alceste e Tartufo, Ruy Blas e
Lorenzaccio, à sociedade. Para um conflito desse tipo só há duas
saídas possíveis: ou a sociedade elimina o herói para assegurar sua
perenidade (
O misantropo, Tartufo
) ou o herói triunfa sobre ela (
O
Cid
). (ROUBINE, 2003, p. 151).
A forma épica brechtiana interessa-se pelas relações implicadas nos
fatos, pelas contradições inerentes a eles; pelos contrapontos, coloca o
espectador numa posição de confronto, de estranhamento desses fatos e dos
homens neles envolvidos, dos homens vistos como articuladores desses fatos:
O teatro épico se apóia na idéia da
contradição
. [...] evita o
fechamento da representação. Prescinde de um desenlace
conclusivo.O personagem épico não morre
in fine
, realizando assim
um destino trágico. Ele se perpetua para além do horizonte do palco.
Ricardo III se apossa do poder, comete inumeráveis crimes antes de
ser, ele próprio, morto. Mas Arturo Ui prenuncia futuros problemas e é
ao espectador que incumbe se mobilizar para pôr fim à sua “resistível
ascensão”. (ROUBINE, 2003, p. 151).
54
O que interessa a Brecht é a crônica histórica, a sua interpretação. Aliás,
como observam Willi Bolle e Paulo César de Souza (BRECHT, 2000), o
dramaturgo e poeta Bertolt Brecht é um cronista de sua época; sua obra é
penetrada pelos acontecimentos e constitui um comentário e uma resposta
radicais a eles.
Como veremos mais detidamente, em suas parábolas Os cabeças
redondas e os cabeças pontudas, Quanto custa o ferro? e A resistível ascensão
de Arturo Ui, Brecht constrói uma crônica de seu tempo, interpretando e
respondendo a ele de maneira radical e precisa, transformando a tragédia
histórica da ascensão de Hitler e do nazismo em uma farsa histórica, como ele
mesmo classifica essa última peça em seu Diário de trabalho (BRECHT, 2002, p.
187). Aqui podemos resgatar o pensamento de Marx – uma, ou talvez a
principal, de suas referências
6
– num comentário que o pensador alemão, autor
de O capital, faz a Hegel:
Hegel observa algures que todos os fatos e personagens de grande
importância da história universal ocorrem, por assim dizer, duas
vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a
segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luis Blanc por
Robespierre, a
Montagne
do 1848-51 pela
Montagne
de 1793-95, o
sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que
acompanharam a segunda edição do 18 Brumário![Em 18 Brumário
(mês do calendário republicano francês que corresponde a novembro)
de 1799, Napoleão Bonaparte levou a cabo um golpe de Estado e
estabeleceu uma ditadura militar. Por “segunda edição do 18
Brumário” Marx entende o golpe de Estado de 2 de dezembro de
1851] (MARX, 1987, p. 15).
Assim, Brecht constrói o seu “grande teatro do mundo”, épico, portanto,
como farsa:
6
Brecht deixa registrado o impacto que as idéias de Marx tiveram sobre ele: “Quando li
O
capital
de Marx, compreendi minhas peças teatrais. De minha parte, desejo a mais ampla
difusão deste livro. Claro que não descobri que sem saber estivera até agora escrevendo peças
marxistas. Mas Marx era o único espectador que eu imaginava para as minhas obras. Somente
um homem que tinha interesse por semelhantes temas, poderia se interessar em peças como
as minhas. Não porque fossem inteligentes, mas porque ele era. Elas lhe forneceriam material
para a observação. E isso aconteceu porque eu tinha tão poucos pontos de vista como dinheiro.
E porque, sobre tais pontos de vista, eu tinha a mesma opinião que sobre o dinheiro, isto é: é
preciso ter para gastar, não para guardá-los.” (apud PEIXOTO, 1979, p. 81).
55
O Diretor
conferindo mais uma vez –
Cabeças redondas e pontudas: nós temos.
A diferença entre pobre e rico: está aí.
Então mostremos bastidores e tablado
E o mundo na parábola será mostrado!
Esperamos aos senhores poder mostrar
Com que diferenças que se deve contar.
Todos vão para trás da pequena cortina.
(Os cabeças redondas e os cabeças pontudas, p. 18. grifo nosso).
As figuras trágicas ou titânicas em Brecht (Läuffer, Chen Te, Iberin,
Arturo Ui, o cliente) transformam-se numa irônica desmistificação quando ele
lhes transtorna a tonalidade; não somente a forma – a enunciação – mas
também o conteúdo – o enunciado – é posto em questão. O que é apresentado
e colocado em pauta é a engrenagem do poder, suas contradições, seu
significado, enfim a própria construção discursiva desse poder. Brecht não está
preocupado com o efeito de real, como o denominou Barthes (1988); muito
pelo contrário: por querer revelar o poder de representação desse real, acaba
por criar o efeito inverso, que é o do distanciamento, do estranhamento, por
meio, fundamentalmente, da ironia – recurso que desmonta as artimanhas do
poder por minar-lhe a base mesma, ou seja, a sua forma, como trama
discursiva, como representação.
A obra de Brecht visa a elaborar uma prática do abalo (não da
subversão: o abalo é muito mais “realista” do que a subversão); a
arte crítica é aquela que abre uma crise: que rasga, que fissura a
camada envolvente, fende a crosta das linguagens, desliga e dilui a
pegajosidade da logosfera; é uma arte épica: que quebra a
continuidade da trama das palavras, afasta a representação sem
anulá-la.(BARTHES, 1988, p. 227).
Criticado pelo tratamento humorístico dado ao tema do horror nazista
em A resistível ascensão de Arturo Ui, Brecht responde que é necessário acabar
com o respeito aos assassinos, aosgrandes mortos, e a peça de Arturo Ui /
Hitler tem essa intenção. Segundo o dramaturgo, é preciso esmagar os grandes
criminosos políticos; expô-los, principalmente, ao ridículo. Pois não são
sobretudo grandes criminosos políticos, mas sim autores de grandes crimes
políticos, o que é muito diferente.
56
Brecht acredita no potencial revolucionário do riso que carnavaliza – e
aqui usamos o termo com a força que imprimiu a ele Mikhail Bakhtin –, do riso
que rebaixa, traz ao plano do humano as crises que parecem fugir ao controle
do homem, assumindo o estágio do mito, do inquestionável ou do absoluto.
Segundo Bakhtin (1993), o riso supõe que o medo foi dominado; o riso não
impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a violência, a
autoridade empregam a linguagem do riso. Ao derrotar o medo, o terror
místico, o medo moral, o medo do sagrado e interdito, o riso esclarece a
consciência do homem, revelando-lhe um novo mundo.
Em Arturo Ui o que nós temos é a história se repetindo como farsa,
Henrique III, Hitler, George Bush (numa antecipação histórica, afinal a obra
remete ao homem inserido no tempo e no espaço que se constrói e reconstrói
incessantemente, aí a atualidade e utilidade de Brecht) são os duplos de Arturo
Ui, duplos que são destronados na peça. O que era disfarce nesses
personagens históricos – sua covardia, seus medos, seus trejeitos, sua
artificialidade – se potencializa em Ui, e passa a constituir seu caráter (Em
George Bush, esse caráter é delineado por Michel Moore no documentário
Fahrenheit – 11 de setembro, só para darmos um exemplo)
.
Assim seu
autoritarismo passa a ser visto como um acabamento formal e, portanto, risível.
Suas ações não passam de artimanhas para alcançar a qualquer custo o poder,
o qual é degenerado ao ter como alvo, no caso de Ui, o domínio do mercado da
couve-flor.
Um outro recurso que, segundo Bornheim, se presta muito bem à
dramaturgia brechtiana é a parábola:
É o caso de
A alma boa de Setsuan
e
O círculo de giz caucasiano
. São
peças que contam parábolas, isto é, apresentam uma imagem, um
símile – toda a peça é um símile, que estabelece uma analogia entre
dois termos, o comparante e o comparado: o que se ouve na parábola
é comparado a uma situação real. Na medida em que se estabelece
um símile, ele se refere àquilo que dá origem a este símile, e por aí a
ação permanece relativa a essa origem. Desse modo, a parábola
perde em valor próprio, mas impõe-se na medida em que se refere a
outro que não ela e que está fora dela. (BORNHEIM, 1992, p. 319).
57
Bornheim (1992) na realidade está sintetizando o inventário feito por
Walter Hinck, em um ensaio denominado A dramaturgia do Brecht tardio, dos
procedimentos que fazem do teatro brechtiano uma dramaturgia aberta em
oposiçào à aristotélica, que seria uma dramaturgia fechada, organicamente
acabada, perfeita. Daí a parábola estar entre um desses recursos. Em outro
momento, analisando a A alma boa de Setsuan
,
Bornheim coloca o fato de a
parábola em si, com seus mecanismos de comentários da ação dirigidos ao
público, constituir-se em um fator de distanciamento épico:
O distanciamento [na peça
A alma boa de Setsuan
] é conseguido por
diversos recursos, tais como: 1. já o fato de tratar-se de uma
parábola, cenicamente exposta e que se passa no extremo Oriente,
funciona como elemento distanciador; 2. os comentários que são
feitos dentro da própria parábola e dirigidos diretamente ao público;
3. outro comentário particularmente persuasivo está nas canções (há
duas instigantemente belas: “O oitavo elefante” e “O carregador de
água sob a chuva”; 4. finalmente, há as entrecenas, nas quais o
carregador de água Wang comenta com os deuses o que vem
acontecendo. (BORNHEIM, 1992, p. 313).
De fato, quando Brecht transporta a ação de A alma boa de Setsuan
para um espaço distante – a China pré-capitalista, urbano mercantil –, o faz
estrategicamente. Assim, o espectador vê com distanciamento crítico: por não
se identificar com esse espaço estrangeiro [China], observa criticamente as
suas condições e, por analogia, confronta-as com as suas, com a sua própria
realidade; então, devido a esse olhar marginal, percebe que essas condições
podem ser alteradas. Como coloca Rosenfeld:
não identificada com o mundo cênico, a platéia vê como de fora a sua
própria situação social, refletida no palco. Pois o experimento da
China se aplica também a ele, espectador. Este então observa a sua
própria situação como um imigrante recém-chegado que estranha os
estranhos costumes com olhos de estrangeiros. Assim, alheio a si
mesmo e às suas próprias condições sociais, nota-lhes as
peculiaridades. Ante seu olhar surpreendido, elas deixam de ser
familiares, habituais e por isso definitivas e imutáveis. Admirado,
chega à conclusão de que certas condições tidas como eternas
quando vistas de dentro, não o são quando vistas de fora, a partir do
ângulo do ‘marginal’. Tais condições, portanto, podem e, sendo más,
devem ser modificadas. É esta a lição. (ROSENFELD, 1985, p. 155).
58
Cabe ressaltar que as colocações de Bornheim sobre a parábola no
teatro de Brecht se resumem nas observações transcritas e se referem apenas
às duas peças por ele citadas como transcrevemos. De fato, O círculo de giz
Caucasiano é um interessante caso de parábola utilizada como um recurso
épico.
“O círculo de giz”
é um espetáculo teatral montado dentro de O círculo
de giz Caucasiano, a peça de Brecht, ambientada no Cáucaso. A peça
brechtiana tem início com uma contenda por terras entre camponeses:
CAMPONESA À ESQUERDA –
Camaradas: em homenagem aos representantes do colcós “Galinsk” e
ao Delegado, foi programado um espetáculo de teatro, que tem muita
relação com a nossa disputa, e nele toma parte o cantor Arkadi
Tscheidzê.
Aplausos
A moça tratorista corre a buscar o Cantor
CAMPONESA À DIREITA –
Camaradas, o espetáculo de vocês tem de ser muito bom: nós
estamos pagando por ele um vale inteiro!
[...]
CANTOR –
Desta vez é uma peça com canções, e nela toma parte o colcós quase
inteiro. Trouxemos também máscaras, como antigamente.
VELHO À DIREITA –
Será uma daquelas velhas lendas?
CANTOR –
É uma bem velha, intitulada “O círculo de giz”, e é de origem chinesa.
Mas nós vamos apresentar uma adaptação livre. – Iúri, mostre as
máscaras! – Camaradas, é uma honra para nós podermos dar a vocês
algum divertimento, depois de uma discussão tão difícil. Esperamos
que sintam a voz do velho poeta ecoando também à sombra dos
tratores soviéticos. Talvez não seja muito certo misturar vinhos
diferentes, mas a sabedoria antiga e a nova combinam perfeitamente.
E agora espero também que a gente possa comer alguma coisa, antes
de começar o espetáculo: isso ajuda muito.
(p. 188, 189).
Esse trecho permite a discussão do próprio conceito de parábola: história
que será contada para servir de exemplo, de argumento; será por meio das
relações estabelecidas entre os referentes que compõem o caso contado e os
referentes da situação presente que se deverá, pela reflexão suscitada pelo
59
raciocínio analógico, decidir por uma causa. Somente pela interação dialética,
pela atualização da história na história, esta poderá ser superada em suas
representações. Assim espera-se converter, convencer,
os camponeses do
colcós Galisk, e em especial o Velho à Direita, da validade de sua decisão:
DELEGADO –
Agora vamos ao meu relatório: “Compareceram a Nukha os
representantes do colcós ‘Galinsk’, especializado na criação de cabras,
que, por determinação das autoridades, ante o avanço dos exércitos
de Hitler, foi deslocado para leste com seus rebanhos, e que pretende
agora voltar a instalar-se neste mesmo vale. Seus representantes
inspecionaram a aldeia, e os pastos, e comprovaram um alto grau de
destruição.
Os representantes à direita fazem sinais afirmativos com a
cabeça.
O colcós ‘Rosa Luxemburgo’, vizinho especializado na
produção de frutas –
dirige-se aos da esquerda
–, propõe que as
antigas terras de pastoreio do colcós ‘Galinsk’, um vale onde o capim
é ralo, sejam dedicadas, na reconstrução, à plantação de vinhedos e
árvores frutíferas”. Eu, como Delegado da Comissão Estatal de
Reconstrução, peço aos representantes desses dois colcoses para
decidirem, de comum acordo, se o colcós “Galinsk” deve ou não voltar
para este lugar...
(p. 183).
Após o delegado expor a questão, representantes dos colcoses tecem
seus argumentos e, assim, a lenda do “Círculo de giz servirá como um recurso
retórico para a demonstração do argumento de que a terra deve antes
pertencer aos que mais bem souberem trabalhá-la. Esse argumento será
explicitado no nível da moral da história, quando o Cantor, narrador da lenda,
diz à platéia da peça, ao Delegado e aos camaradas camponeses:
CANTOR –
E vocês, que escutaram bem a história
Do círculo de giz,
Escutem sempre com todo respeito
O que mais um velho diz:
As coisas devem antes pertencer
A quem cuidar bem delas,
As crianças às mulheres mais ternas
Para crescerem belas,
A carruagem ao melhor cocheiro
Para bem viajar,
E o vale aos que o souberem irrigar para bons frutos dar.
(p. 296).
60
Na primeira parte da peça, temos a vitória da fraternidade; nela a
relação entre os homens é colocada como uma relação madura, assim qualquer
intransigência é vencida pelo diálogo franco, honesto, que permite que se
explicitem os argumentos, dos quais se acatará apenas o mais bem construído,
ou seja, plantado sobre a prática dos homens, tomando-os, contudo, como
fundamento. Já na ‘segunda parte, composta pela encenação da lenda, há a
subversão da lei fundamental da sociedade, o princípio do sangue, da
hereditariedade, da sucessão pela estirpe. O juiz Azdak subverte o mundo do
direito feito para atender aos interesses dos poderosos e para servi-los. Como
resultado tem-se a própria vitória do pensamento marxista, de sua utopia numa
história,
práxis
humana, que se realiza como positividade. E em nenhum
momento se deve confundir tal vitória com a exposição doutrinária de uma
idéia. Afinal, o que se demonstra é que nada deve ser cristalizado, retomando a
formulação já exposta: “para que imutável não se considere nada”, “nada
existe em si. A história não se fixa no Terror” nada é “desde sempre” ou nada
pertence “desde sempre” a alguém. Como afirma Peixoto sobre a peça:
Na verdade é uma reflexão sobre o sentido da História, a passagem
do poder de uma mão para outra. As conseqüências e reflexos da vida
política no comportamento dos indivíduos, pobres e ricos. Escrita com
uma lucidez incisiva. Dort insiste em que nesta obra Brecht evidencia
que nada existe em si. A história não se fixa no Terror. O mundo está
aberto à transformação. E entre utopia e História existe um
movimento incessante, assim como o esboço de uma reconciliação: as
contradições objetivas não remetem exclusivamente a uma alienação
subjetiva nossa, mas são fontes de mudanças. (PEIXOTO, 1979, p.
240).
Se nas parábolas teatrais, devido à sua extensão, há a ruptura do
princípio da brevidade, que é uma especificidade do gênero, como descreveu
Sant’Anna; nas parábolas dentro dessas peças, esse princípio se conserva, o
que as torna promovedoras de efeitos diversos e altamente eficazes como
distanciamento crítico, comentário de condutas ou exemplo de argumentos em
torno destas condutas. Em O círculo de giz caucasiano, esse princípio da
brevidade é rompido, devido à confluência de narração e encenação, afinal a
parábola, adaptada por Brecht, já era uma peça chinesa, escrita por Li Hsing-
61
Tao (século XIII ou XIV), assim também se somam os mecanismos necessários
para a adaptação da história.
DELEGADO –
Quanto tempo essa história vai durar, Arkadi? Eu preciso voltar para
Tiflis ainda esta noite!
CANTOR
sem se afobar
São só dois episódios; duas horas.
DELEGADO
muito confidencialmente
Você não podia dar um jeito de encurtar um pouquinho?
CANTOR –
Não mesmo.
(O círculo de giz caucasiano,
p. 190).
Como ocorre em A alma boa de Setsuan, também em O círculo de giz os
fatos pertencem a um tempo passado, a “um tempo de muito sangue”.
Semelhante processo encontramos em O preceptor, em que se assiste a
acontecimentos ocorridos no passado, “cento e cinqüenta anos atrás”, numa
Alemanha pré-capitalista. Esse distanciamento no tempo, como já comentamos,
leva à não identificação com o mundo cênico, o público vê do exterior, como
estrangeiro, a realidade refletida no palco. Percebe que aquilo que parecia
imutável, quando visto de dentro – o mecanismo das relações político-
econômicas e sociais – pode ser modificado, transformado, quando visto de
fora. Assim, o efeito de (des)alienação começa a funcionar a partir do
mecanismo estruturador da própria peça. Também os contrastes estridentes
formulados em O preceptor, a mistura do trágico e do cômico engendrada em
toda a peça, o grotesco, acionam esse mesmo mecanismo.
Outra dinâmica responsável pelo distanciamento épico é a ruptura da
continuidade da ação. A peça A alma boa de Setsuan, por exemplo, é dividida
em 10 quadros, apenas numerados, um prólogo, um epílogo e 7 entreatos nos
quais o aguadeiro Wang relata aos Deuses o que vem acontecendo com Chen
Te. Há também na peça seis canções, ora cantadas por um grupo ora por um
único personagem. Essas intromissões de canções e de episódios narrativos
provocam a descontinuidade e dessa forma o distanciamento do espectador
62
que se coloca então como um analista, relacionando os episódios e situações as
quais os comentam de modo a conferir-lhes sentido, analogamente.
É interessante o episódio – quadro 8 – em que a senhora Yang Sun
interrompe a ação que se desenvolvia e passa a narrar ao público a
transformação de seu filho em um trabalhador que coloca o seu “dever” acima
de todas as coisas. Ela narra, no entanto, sem indicar-lhe a alienação, ou o
processo de desumanização que o moço passa a reproduzir – porque ela não
tem, devido à sua condição marginal diante das relações de produção, meios
para discernir tal processo.
Ao relatar o que ocorreu há três meses, a senhora Yang distancia-se da
ação dramática e, assumindo o papel de narradora, passa a mostrar, por meio
de outros atores/personagens que também entram em cena, como se deu a
ascensão do jovem dentro da fábrica de fumo de Chui Ta. Por meio da
demonstração da conduta do jovem em relação aos seus companheiros de
trabalho principalmente, o espectador é levado a destramar-lhe, pelo
estranhamento, a estratégia e a perceber-lhe a astúcia. Temos, então, nesse
“aparte”, a peça dentro da peça, numa ruptura de tempo e espaço que se
desdobram: há o tempo dramático e o tempo do comentário; o espaço
dramático e o espaço do comentário. Na realidade, nesse episódio, temos ações
simultâneas, conforme analisa Bornheim (1992), duas ações no palco: a ação é
demonstrada pelos atores/personagens em cena, situados um pouco mais à
frente do espaço habitual no qual se vinha desenvolvendo a outra ação.
Assim, em A alma boa de Setsuan
,
os atores se dirigem ao público em
várias cenas da peça:
SUN
gritando atrás delas
[as prostitutas]
Urubus!
Ao público
– Até num lugar afastado como este, elas parecem
que não se cansam de andar à caça de vítimas: dentro do bosque,
debaixo da chuva, elas só pensam em se vender! Que desespero!
(BRECHT, 1992, p. 94).
O público torna-se um interlocutor; e, assim, não é mais o personagem,
instância fictícia, que se dirige a esse público, mas o ator que se separa, se
distancia, da personagem e o faz. Dirige-se ao espectador ora para tornar-se
63
narrador, contador de sua própria história ou comentador das relações entre as
personagens, ou comentador das relações entre elas e os meios de produção
na sociedade instituída. Ora, também, o ator torna-se crítico das ações da
própria sociedade; assim, diferentes vozes coexistem, instaurando um universo
polifônico:
CHEN TE –
[...]
Põe no colo o Menino, e exprime numa fala o seu horror pelo
destino das crianças pobres, mostrando ao público a boquinha suja. E
toma a resolução de não deixar seu próprio filho exposto a
semelhante falta de caridade.
Ó filho meu! Ó aviador! A que mundo
Vens chegar? Nalguma lata de lixo
Te deixarão ciscar assim também?
Olhai bem para essa boquinha imunda!
Exibe o Menino.
Como tratais os vossos semelhantes?
Misericórdia alguma pelo fruto
Do vosso ventre? Compaixão alguma
Por uma carne que é igual à vossa?
Meu filho, ao menos, eu defenderei,
Ainda que tenha que ser como a onça!
Desde o momento em que eu assisto a isso,
Fico longe de vós, e não descanso
Até ver a salvo o meu filho – ao menos ele!
[...]
(BRECHT, 1992, p. 148).
Na peça, além de os vários personagens se dirigirem ao público, um
outro recurso gerador da desfamiliarização ou estranhamento épico, como já o
apontou Bornheim (1992), é a presença das canções as quais, consoante
Rosenfeld (1965), constituem-se em um dos recursos mais importantes de
distanciamento, pois, ao invés de intensificarem a ação, neutralizam-lhe a força
encantatória. O canto da personagem tem a função de comentar o texto,
posicionando-se face às ações apresentadas, acrescentando-lhes outras
perspectivas, daí equivalerem ao nível interpretativo do discurso parabólico.
Para Roubine, elas intervêm rompendo a continuidade da ação, a identificação
com a personagem pela quebra da naturalidade de uma interpretação:
64
Ruptura, em primeiro lugar, entre o personagem e o ator: o
song
é
cantado pelo ator, “de frente para o público”, e o personagem que
esse ator encarna é provisoriamente relegado a um segundo plano.
Ele não é anulado, pois o intérprete se parece ainda com o
personagem, mas fica, digamos, como que
suspenso
. O que tem
como resultado lembrar que o personagem não é uma imitação do
real, mas uma simulação, um objeto fictício. (ROUBINE, 1998, p. 66).
Retomando a questão da representação do ator, esta consiste num fator
importante para a consolidação da proposta brechtiana, pois a representação
será também responsável por gerar o efeito de estranhamento. O ator deve
fazer o público ver que está no teatro diante de seres reais, atores a
representar personagens de papel; eles deverão mostrá-las e não encarná-las:
O ator brechtiano, no fundo, tem algo de comum com o corifeu do
coro antigo: ele participa da ação (interpelando, criticando,
prevenindo... o protagonista), mas não é absolutamente um
personagem. É antes uma projeção do espectador, um pensamento e
uma voz que ajudam este último a formar um juízo lúcido sobre o que
está em jogo no drama e o debate que o sustenta. (ROUBINE, 2003,
p. 154).
O teatro épico, então, necessita de atores engajados ao seu tempo,
politizados, que atualizam a peça no momento da sua montagem, ou seja, que
se transformam em fabuladores, encontrando caminhos próprios conforme as
implicações do contexto em que estão inseridos. Conforme Girard (1980, p.
214), “as peças de Brecht exigiam do comediante um conhecimento sério da
época, uma educação política que devia levar a uma tomada de posição precisa
e a uma participação ativa na luta de classes”. De acordo com essa afirmação,
tomamos as próprias palavras do dramaturgo:
Sem opiniões e objetivos, nada se pode representar. Sem
conhecimento, nada se pode mostrar: como alguém poderá discernir
o que é que vale a pena saber? A menos que o ator se satisfaça em
parecer um papagaio ou macaco, ele tem de adquirir conhecimento
sobre convívio humano, patrimônio de sua época, através de sua
participação na luta de classes. (BRECHT, 1967, p. 207).
Além dessa participação ativa, singular, dos atores, a viabilização de seu
projeto se funda na criação de um texto plural
como o denomina Roubine
(1998) –, onde concorrem contrapontos de iluminação; contrapontos entre fala
65
falada e fala cantada, ou
songs
, que comentam de modo irônico o discurso ou o
comportamento da personagem; entre fala e texto das tabuletas ou das
projeções; contrapontos entre as máximas enunciadas pelas personagens e
suas ações ou relações estabelecidas por elas; ou entre o prosaico da situação
e a linguagem utilizada para expressar essa situação:
As diversas partes da história devem ser cuidadosamente
contrapostas, dando-lhes uma estrutura própria, a de uma pequena
peça dentro da peça. Para tanto, o melhor é adotarmos títulos [...] Os
títulos devem englobar um sentido social, dizendo ao mesmo tempo
algo a respeito da forma de representação desejável, isto é, devem
imitar o estilo de título de uma crônica ou uma balada, de um jornal
ou de um quadro de costumes. (BRECHT, 1967, p. 68).
Brecht utiliza diversos materiais gráficos como projeções, inscrições,
diagramas,
slogans
, tabuletas, que consistem em modos concomitantes de
teatralização do texto e funcionam como instrumentos de distanciamento na
medida em que sua intervenção na ação quebra-lhe a continuidade e, assim,
qualquer possibilidade de identificação. Como afirma Roubine (1998, p. 67), “a
novidade da prática brechtiana tem a ver com a invenção de um texto plural,
cuja heterogeneidade reforça as possibilidades significantes, através da
dialética semiológica que introduz”.
Temos aqui que fazer referência ao universo polifônico construído por
Brecht em suas peças, consoante já indicamos anteriormente, pois, nesse
momento de nossa análise, ele se explicita conforme o concebeu Bakhtin: como
contraponto, contraposição dialógica (BAKHTIN, 2002). Em Brecht o
contraponto dialógico se materializa também nos gestos das personagens, ou
mais especificamente
gestus
, e em torno dessas relações de sentido entre
discurso da personagem e seu comportamento corporal há toda uma
formulação e discussão teórica elaborada pelo dramaturgo e por críticos de sua
obra.
A atitude que os personagens assumem em relação uns aos outros é
o que chamamos esfera do
Gestus
. Atitude física, tom de voz e
expressão facial são determinadas por um
Gestus
social: os
personagens injuriam-se, cumprimentam-se, esclarecem-se uns aos
outros, etc. As atitudes tomadas de pessoa para pessoa pertencem
mesmo às que, na aparência, são de ordem privada, tal como a
66
exteriorização da dor física, na doença, ou na fé religiosa. Estas
expressões do
Gestus
são geralmente altamente complicadas e
contraditórias, de modo que não é possível transmiti-las em uma
única palavra; ao mesmo tempo, o ator, ao realizar uma
representação necessariamente reforçada, terá de fazê-lo com
cuidado, de modo a nada perder, reforçando, pelo contrário, todo o
complexo expressivo. (BRECHT, 1967, p. 209, 210).
O ator deve apoderar-se antes da história do que de seu personagem,
história que, em suas relações implicadas, reflete e refrata as contradições
humanas; essas contradições que passam a constituir o caráter da personagem
devem também ser apreendidas e apoderadas pelo ator. Assim “são os
acontecimentos que ocorrem entre os homens que fornecem material para
uma discussão e crítica, visando uma modificação” (BRECHT, 1967, p. 213).
Dessa forma, no
Gestus
estão associados esses aspectos contraditórios das
ações do homem em sua relação dialógica e dialética com o todo histórico:
Nem todos os
Gestus
são sociais. A atitude de espantar uma mosca
não é um
Gestus
social, ainda que a atitude de espantar um cachorro
possa sê-lo, por exemplo, se representar a batalha incessante de um
homem maltrapilho contra os cães de guarda. [...] O “olhar de um
animal caçado” só se torna um
Gestus
social se revela as manobras
particulares, através das quais o homem individual é degradado ao
nível da besta; o
Gestus
social é o gesto relevante para a sociedade, o
gesto que permite conclusões sobre as circunstâncias sociais.
(BRECHT, 1967, p. 78, 79).
O ator, então, deve assumir uma atitude crítica frente às múltiplas
exteriorizações de seu personagem em cena, assim como em relação às
exteriorizações daqueles personagens que com ele contracenam para que o
público se surpreenda com as atitudes diversas e contraditórias. É, conforme o
exposto, o enredo a mola mestra desse teatro, e como ainda afirma Brecht “o
enredo é a grande operação do teatro: todo o complexo de incidentes, com
Gestus diferente, incluindo comunicações e impulsos – tudo isso deve constituir
o material recreativo apresentado ao público” (p. 213).
Passaremos agora a examinar, nas peças parábolas constituintes de
nosso corpus, as implicações do método – dialética – brechtiano em
decorrência da escolha do gênero – parábola – transposto pelo dramaturgo
para o seu teatro.
67
6 O PRECEPTOR: UM JOGO DE ESPELHOS
Entre a harmonia, a continuidade e a durabilidade que supõe um
projeto clássico, e as radicais alterações e rupturas que implica a
postura dialética (necessárias, no plano da organização social, à
criação de condições para o próprio surgimento de um Classicismo
autêntico!), o trabalho de Brecht vai produzir a grande contradição
que sem dúvida lhe é constitutiva e talvez seja a sua própria essência.
Em outras palavras, assim como seu trabalho produz essa
contradição, é também por ela produzido. Constituindo-se no seu
mais íntimo núcleo, esta contradição lhe comunica, ao seu conjunto,
aquela dinamicidade irredutível que o transforma num trabalho
radicalmente e por definição em
progresso
, trabalho que não sabe
‘acabar-se’ senão como auto-ultrapassamento contínuo, em interna,
digamos, revolução permanente.
Pasta Júnior (1986, p. 175)
6.1 UM CASO NADA EXEMPLAR
Em 1950, Brecht adapta O preceptor ou Vantagens da Educação
Particular de Jacob Michael Reinhold Lenz (1751–1792), um expoente do
Sturm
und Drang
(Tempestade e Ímpeto) alemão. Sua intenção, como diz Peixoto
(1979, p. 268), é “satirizar os intelectuais alemães que se curvaram diante de
Hitler. Brecht simplifica a narrativa (da comédia de Lenz), acentuando seu
conteúdo político e desenvolvendo-o”.
De entrada, Brecht suprime o subtítulo que delimitava o âmbito da peça.
Consoante as observações de Pasta Júnior (1986, p. 207), Brecht atualiza os
clássicos alemães, contrapondo à matéria, enquanto conteúdo da obra, a
matéria histórica da própria época, que a ultrapassa e inclui, “ele trabalha com
dados históricos performados esteticamente” e sobre essa dinâmica, incluindo-
se a performação do espectador, recai a observação do dramaturgo.
Observação que a tudo distancia: Brecht submete os clássicos, no seu rigor
dialético, a um processo deflagrador da alteridade, “da historicização por
‘emersão’ da matéria histórica”.
68
O procedimento de Brecht, como vimos para o caso de Lenz, é o de
oferecer, pelo gesto de recuperação e adaptação, uma alteridade
flagrante à identidade da regra clássica, tanto no plano da obra
“harmônica” quanto no plano da “grande individualidade” à Goethe e
Schiller, o que resulta em contrapor à matéria, enquanto “conteúdo”
da obra, a matéria histórica da própria época, que a ultrapassa e
inclui, e em cuja amplitude transbordante a “totalidade” da primeira
aparece como o que é – como
recorte
cuja relativa, porém necessária,
arbitrariedade se evidencia em seus contornos específicos. (PASTA
JÚNIOR, 1986, p. 206, 207).
A isso podemos acrescentar que em O preceptor Brecht “trans-forma” o
que era comédia em parábola, sobretudo conferindo-lhe a configuração do
gênero, com seus enunciados narrativo, interpretativo – prólogo – e pragmático
– epílogo. A partir dessa “trans-formação”, configura-se o teatro dialético
brechtiano que contrapõe à matéria de Lenz a matéria histórica da própria
época – a de Lenz e a de Brecht – as inclui e ultrapassa.
Nessa parábola, então, o caso nos é contado pelo narrador –
personagem – Läuffer, que com as demais personagens irão demonstrá-lo.
Temos, na peça, a história do jovem preceptor, Läuffer, cujo pai, um pastor,
não pôde, por falta de dinheiro, custear-lhe as provas finais, o que o impede de
graduar-se. Dessa forma, o jovem sai de casa, tendo que viver humilhado,
prestando seus serviços de preceptor, inicialmente ao menino Leopold e
posteriormente à sua irmã Gustchen a essa, forçosamente, em nome de uma
suposta gratidão ao major Von Berg, por tê-lo contratado e acolhido em sua
casa, no vilarejo de Insterburg.
Läuffer é submisso, a tudo se curva sem queixas, até que começa a
necessitar ir à cidade para suprir os seus desejos sexuais. Para isso solicita,
numa insistência obsessiva que se torna cômica, um cavalo emprestado ao
major. A tragédia se dá pela falta do cavalo: Läuffer sucumbe aos seus desejos
relacionando-se com a jovem Gustchen menina dos olhos do seu senhor, o
major Von Berg.
A partir disso, o professor começa a ser perseguido e refugia-se numa
escola de uma aldeia próxima a Insterburg, passando a viver sob a proteção do
mestre-escola Wenzeslaus, que tem uma sobrinha, Lise.
69
Após algum tempo na casa do mestre, passa a ser assediado por Lise.
Com medo de que tudo volte a acontecer, castra-se, em nome de sua
profissão. Ato que é louvado por Wenzeslaus típico representante das idéias
de Lutero que passa a reverenciá-lo por ter “sufocado em si mesmo toda a
rebeldia”. Com esse ato, Läuffer se reconcilia com a ordem vigente, pode voltar
a ministrar aulas, passa a ser também referendado pelo major Von Berg que
antes o queria morto como um “pedagogo inspirado por Deus”, recebendo,
então, do major o seu certificado.
Como a peça vai do cômico ao trágico e vice-versa, tudo termina bem.
Läuffer casa-se com Lise, que se declara muito feliz por desposar um homem
espiritual. Gustchen que, após o flagrante, tentara suicídio, é perdoada pelo
pai, tem seu filho e, ao final, reencontra seu derradeiro amor, Fritz, seu primo,
mantendo, então, um relacionamento consangüíneo, típico entre os nobres.
Fritz era filho do Conselheiro Titular Von Berg e fora por este mandado
estudar Direito na Universidade de Halle. Lá, convive com dois jovens
estudantes, Pätus e Bollwerk. Pätus, discípulo de Kant, vive um amor platônico
pela donzela Rehhaar, que sequer conhece. No dia marcado para se
conhecerem, o moço, por ter penhorado o seu casaco, não pode ir ao encontro,
que seria no teatro, então Bollwerk a leva para ver a peça Minna von Barnhelm
de Lessing
12
, e, para a tragédia de Pätus, aquele a engravida. Aplicando uma
fórmula da teoria do conhecimento de Kant, Pätus constrói o seguinte
raciocínio: o interesse filosófico surge quando a mulher ama um indivíduo
masculino que chamaremos de A, e deseja ou satisfaz com o corpo a um
indivíduo masculino que chamaremos de B. O que vale não é o corpo, mas o
espírito. Assim Pätus tudo perdoa e doa-lhes o dinheiro, emprestado de Fritz,
para o aborto.
12
“LESSING, Gotthold Ephraim (1729 – 1781) É o maior representante da Ilustração alemã no
terreno da literatura, um dos maiores prosaístas da língua, dramaturgo que abriu o caminho
para a fase clássica da literatura alemã. Seu empenho em favor de Shakespeare teve
repercussão incalculável. Entre suas obras crítico-teóricas as mais importantes são: Laocoonte e
a Dramaturgia de Hamburgo.” (ROSENFELD, 1993, p. 349). Sobre esta peça, Minna von
Barnhelm, há um artigo de Roberto Schwarz em A sereia e o desconfiado, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1981, p. 109 - 131.
70
Ao final, contudo, Pätus casa-se com a donzela Carolina assumindo mais
uma entre as suas inúmeras contradições na peça unindo o útil ao agradável,
pois a moça é filha do Reitor, cuja proteção é fundamental para o jovem ser
aprovado nos exames finais. Lendo mais uma vez Kant, o moço encontra a
justificativa para o seu ato o casamento é, para o filósofo, um contrato que
legaliza o relacionamento sexual “é a união de duas pessoas para o recíproco
uso vitalício dos órgãos sexuais [...] porque esta necessidade se impõe pela lei
da razão” (p. 61).
Fritz tira da fórmula de Pätus uma grande lição para a sua vida e, dessa
forma, assume Gustchen e a seu filho. Temos na peça a ironia ao pensamento
idealista de Kant, à falta de historicidade da sua teoria do conhecimento que
localiza as condições
a priori
do conhecimento objetivo nas faculdades do
espírito e não nas práticas sociais humanas que têm, conforme o materialismo
histórico, aspectos tanto materiais quanto intelectuais e espirituais. E é essa
Alemanha idealista, conservadora e contraditória, presa às idéias de Lutero,
cujos intelectuais se resignam e renunciam a participação política, legando a
cada nova geração apenas o cultivo do espírito, que é criticada na peça.
6.2 DO CASO À PARÁBOLA
A parábola é um meio de falar do presente, colocando-o em
perspectiva e travestindo-o numa história e num quadro imaginários.
Pavis (1999, p. 276)
Em O preceptor, o destino de Läuffer, que nos é apresentado de forma
hilariante e grotesca, remete ao destino de toda uma classe, de uma
coletividade, que se acha alienada em sua condição de subserviência, de
resignação. Condição essa gerada pela paralisia e pelo imobilismo de um
discurso autoritário e monológico que a manipula e subjuga.
71
Vejamos, então, como do caso trazido à cena, como
exemplum
, que tem
como eixo o percurso de um jovem em formação a quem é atribuída a tarefa e
a competência de formar outros à sua imagem e semelhança, constrói-se outra
subjacente, a de um povo e dos seus percalços históricos.
O percurso que seguiremos, então, para a construção do sentido será
inicialmente o do jovem mestre, enquanto personagem da história
demonstrada. Veremos, a partir disso, como se realiza a sua passagem de
figura individual à expressão de um coletivo.
Läuffer, para ser aceito, reintegrado (considerado moralmente íntegro)
na ordem social vigente, com ecos ainda feudais, precisa sujeitar-se ao limite
máximo que um homem pode chegar, dispondo da sua individualidade, de seu
poder criador, por meio da castração – autocastração. Cúmulo do paradoxo –
para ser íntegro, tem que ser mutilado – com isso, denuncia-se, num nível mais
profundo, a perversidade de uma ética aestética que prega a morte do corpo, a
morte do sujeito para transformá-lo em um objeto utilitário. Para os jovens do
Sturm und Drang
, movimento pré-romântico do qual Lenz, autor da peça O
preceptor, escrita em 1774, era expoente,
o absolutismo era a grande prisão,
cadeia eterna, absoluta. Para Brecht, o nazismo tolhia a inteligência, cooptando
muitos intelectuais da época que se resignaram. E é essa resignação a um
regime, a uma ordem, sinônimo de castração, que é satirizada na peça de
Brecht. Mas Brecht também satiriza a Alemanha desses jovens pré-românticos –
já eles próprios idealistas e contraditórios.
LÄUFFER –
Padrinho, não sei se fiz bem. Eu me castrei...
WENZESLAUS –
O quê? Castrou? Mas isso...
Läuffer-
Espero que permita que eu fique alguns dias mais aqui, debaixo do
seu teto maculado.
WENZESLAUS –
Pare de falar. Não precisava fazer isso. É um segundo Orígines!
Deixe-me abraçá-lo, precioso instrumento da vontade divina! Siga
esse caminho e algum dia o senhor será um lumiar da Igreja, uma
estrela de primeira grandeza da pedagogia. Eu vos felicito, eu vos
72
aclamo com um
jubilate
e um
evoe
wenzeslauniano, meu filho
espiritual
(p. 59).
O mestre-escola Wenzeslaus protege Läuffer do major Von Berg que o
perseguia por ter deflorado sua filha Gustchen, ironicamente, quando lhe
ensinava religião. Wenzeslaus passa a ser o mentor de Läuffer que, sob o seu
teto e proteção, colabora na confecção de material escolar e na correção de
tarefas dos alunos daquele, pois lhe fica vetado o exercício de sua profissão.
WENZESLAUS –
Então como é? Não gostou do tabaco? Eu aposto... Só mais uns dias
na companhia do velho Wenzeslaus e o senhor vai estar fumando
feito chaminé. Vou educá-lo do meu modo até que nem o senhor se
reconheça. A carreira de preceptor está encerrada para o senhor meu
jovem, já que não tem referências. [isso antes da castração que irá
reabilitá-lo] Também não deve achar que consiga um posto na escola
pública; agora que a guerra terminou, o rei ocupa os cargos de
professor com os oficiais inválidos [...] Penso que poderia me dar uma
mão à noite, e escrever umas frases para os meus alunos copiarem...
(p. 49).
Digno de nota nessa fala de Wenzeslaus é o fato de o rei estar ocupando
os cargos de professores das escolas públicas com os oficiais inválidos, ou seja
com as “ruínas” da guerra. Não tendo mais serventia como guerreiros, esses
inválidos vão formar, à sua imagem e semelhança – lema da época –, os jovens
alemães, “verdadeiros germanos”, como diz Wenzeslaus. Como aqui, fala e
situações de toda a peça estão cheias de contrastes estridentes que desatinam
a perspectiva do espectador. Assim é o caso da castração de Läuffer que é
aplaudida pelo seu mentor, Wenzeslaus, que ironicamente é o paradigma do
mestre perfeito que a tudo sacrifica pelo seu mister, que não conhece
necessidades, apenas o exercício moral o sustenta.
LÄUFFER –
O senhor deve ter um bom ganho.
WENZESLAUS –
Ganho? Que pergunta tola [...] Ganho a recompensa divina, uma
consciência limpa! O senhor tem idéia do que quer dizer ser mestre
escola? Formar homens à minha imagem e semelhança. Verdadeiros
73
germanos. Um espírito são e um corpo são, não uns macacos
daqueles. Em outras palavras, um espírito de gigante e um corpo
sujeito a suas obrigações. Um espírito que alça vôo cada vez mais
alto, mas cuidado para não cair e espatifar-se contra o chão! Não
quer mesmo fumar um cachimbo? Vamos lá, anime-se. O principal é
vencer a si mesmo, não me refiro a você, me refiro ao verdadeiro
germano, antes de vencer o universo.
(p. 49).
As incoerências são explícitas: “um corpo são, vencer a si mesmo” prega
o mestre escola, paradigma no qual os discípulos têm que se espelhar – mas
não Läuffer, ele é descartado da categoria de “verdadeiro germano”, é colocado
à margem – e logo em seguida Wenzeslaus oferece um cachimbo ao jovem,
vício do qual, outra ironia, o mestre parece se orgulhar, consciente do dano que
ele provoca à saúde.
WENZESLAUS –
(…) Isso acaba com os dentes, não é? E estraga a cor, não é?
Comecei a fumar mal havia desmamado; confundi o bico do peito com
o bocal do cachimbo.
(p. 48).
Läuffer torna-se um discípulo de Wenzeslaus, escuta os seus
“ensinamentos”, toma-o por benfeitor e vive agregado em sua casa. Quando
Lise, sobrinha de Wenzeslaus, começa a assediá-lo, ele se desespera:
LÄUFFER –
Será que perdi a razão? [...] Em poucos minutos me transformo em
presa dos mais baixos desejos? [...] e debaixo do teto do meu
benfeitor [...] Justo ele, que me ensinou o que é ensinar!
(p. 55).
Esse ensinamento de Wenzeslaus a Läuffer resume-se na seguinte
reflexão didática, feita no dia em que os dois se conheceram.
WENZESLAUS –
(…) Por favor, passe-me o frasquinho de areia. Vê, eu mesmo tenho
que traçar as linhas para os meus alunos; não há nada mais difícil de
aprender do que escrever reto, uniforme. Não enfeitado nem rápido
74
demais, é o que sempre digo, mas escrever em linha reta, pois isso
influi em tudo, nos costumes, nas ciências, em tudo, meu caro senhor
preceptor. Quem não sabe escrever em linha reta, eu sempre digo,
não sabe agir em linha reta
(p. 46).
Como podemos observar, ao ato de escrever, Wenzeslaus atribui um
qualificativo moral, escrever reto equivale a viver reto, aquele que for
desprovido dessa coordenação – motora – logo será discriminado por constituir-
se um perigo para os costumes e para as “ciências”. É importante assinalar que
aquilo que Wenzeslaus entende como ciência não se relaciona ao exame de
fatos ou fenômenos encontrados na natureza ou na sociedade, passíveis,
portanto, de observação e análise, mas é a ciência que, dotada de um poderio
ilimitado, age sobre as coisas e os homens, como na magia: os fenômenos são
colocados como miraculosos e são conhecidos por intuição. Só os “sábios” ou
os “eleitos” têm acesso a essa ciência, e, assim, estes deverão comandar os
ignorantes; os desprovidos de inteligência = coordenação motora; estes
deverão servir.
ESCOLA DA VILA
Wenzeslaus, Läuffer.
Ambos em trajes pretos.
Lise.
WENZESLAUS –
Agradou-lhe o sermão, colega? Sente-se reconfortado?
LÄUFFER –
Sim, agradou-me muito.
Suspira.
WENZESLAUS –
[...] Quero saber que parte do sermão tocou mais de perto o seu
coração. [...] Terá ouvido o que preguei? Pode repetir uma só palavra
do meu sermão.[...]
LÄUFFER –
Agradou-me muito a idéia de que existe muita semelhança entre a
nossa alma e o seu renascimento e o cânhamo, e que assim como o
cânhamo deve passar na tábua de corte por vários golpes para se
livrar de sua casca, também a nossa alma deve passar por diversos
martírios, e sofrimentos, e pela morte para ser preparada para o céu.
WENZESLAUS –
Era casuística, meu amigo.
75
LÄUFFER –
Porém não devo esconder que a sua lista de demônios que foram
expulsos do paraíso e toda aquela história daquela revolução, porque
Lúcifer se considerava o mais belo... hoje em dia esta superstição já
está superada!
WENZESLAUS –
É por isso que também todo esse mundo racional de hoje irá para o
diabo. Tire do camponês a sua crença nos demônios e ele próprio
tornar-se-á o demônio contra o seu senhorio até provar-lhe que eles
existem.
(p. 67, 68).
A peça de Brecht nos remete a uma Alemanha que ainda não havia
conhecido o Racionalismo, cujo luteranismo colocava como único caminho
válido a fé, cujas concessões feitas à cultura, como a criação de escolas,
objetivavam o ensino bíblico, religioso. Assim, a educação formava homens cujo
mister era atender ao chamado divino, às ordens de Deus, portanto homens
subservientes. Wenzeslaus é a caricatura do mestre dessas escolas: ministra
aulas e na igreja prega os sermões.
Retomando o tema da castração, auto-castração, de Läuffer como
resignação do intelectual, compreendemos o comentário de Fernando Peixoto
sobre ser a peça uma sátira aos intelectuais alemães que “subservientes” se
curvaram diante de Hitler. Mas a castração está também colocada como o
cultivo absoluto do espírito e morte do corpo, que podemos entender como um
viver da e na abstração, despregado de qualquer prática. Em outras palavras,
representa o processo da alienação – outro paradoxo, pois, na medida em que
o jovem se concilia com a ordem social, se reintegra, simultaneamente ele se
aliena, marginaliza-se como reprodutor para essa ordem, serve e não serve a
ela. Serve como objeto intelectual – pura abstração – mas não serve como
classe social, conforme fica claro nesta fala do major Von Berg, após a tentativa
de suicídio de Gustchen:
MAJOR –
Pronto!
Coloca-a no chão e ajoelha-se ao seu lado.
Gustel! O que está
faltando a você? Bastava dizer uma palavra e eu teria comprado um
título de nobreza ao mariola. Aí vocês podiam se esfregar à vontade.
Valha-me Deus! Acudam logo, ela desmaiou!
(p. 53).
76
Além da vulgarização do título nobiliárquico que podia ser forjado,
comprado consoante o interesse da nobreza, há nessa fala do major a
vulgarização do relacionamento entre os jovens. Aliás, essa relação se dá
devido à carência da moça que se sente esquecida pelo jovem Fritz a quem
prometera fidelidade e amor eternos – numa traição “leviana” aos ideais
românticos, os quais são ironizados na cena em que se estabelece o pacto
entre os dois, antes de o jovem partir para a Universidade:
QUARTO DE GUSTCHEN
Gustchen –
Fritz ! Halle fica muito longe daqui?
Fritz –
Trezentas milhas ou três, o que importa? Se não posso estar aqui ao
teu lado, Gustchen, então trezentas milhas não são mais longe do que
três, não é?
[...]
Gustchen –
Você devia... não, não posso pedir isso a você.
Fritz –
Peça a minha vida, minha última gota de sangue.
Gustchen –
Vamos fazer um juramento.
Fritz –
[...] o que eu devo jurar?
Gustchen –
Que durante as férias você vai correr para os braços da sua Gustchen,
e que depois dos três anos de universidade irá voltar para casar-se
comigo. Não importa o que o seu pai fale.
Fritz –
E o que você vai jurar em troca, meu anjo inglês, minha...
Beija-a
.
Gustchen –
Juro que em toda minha vida não serei mulher de mais ninguém, só
sua, nem do próprio imperador da Rússia.
(p. 16-18).
O caso entre a jovem e o seu preceptor se dá também pela “fraqueza”
deste que não encontra como saciar seus desejos, preso ao vilarejo de
77
Insterburg – apesar das insistentes, mas ignoradas, súplicas ao Major para que
lhe emprestasse um cavalo para ir de três em três meses à cidade.
MAJOR –
[...] Onde está a minha filha?
LÄUFFER –
Se o senhor major me tivesse dado o cavalo para ir a Konigsberg,
como me havia prometido...
MAJOR –
O que o cavalo tem a ver com isso, seu canalha! [...]
LÄUFFER
amargo
O que o cavalo tem a ver com isso! E onde é que fica a minha
vita
sexualis
?
(p. 51).
Temos aí a sátira à moral e à educação da época. O jovem a dc
78
LÄUFFER –
E ainda
GUSTCHEN –
E ainda os conserva. E providenciou roupas e sapatos, comida e
bebida, casa e jardim, mulher e filho, arado, gado e todos os bens...
LÄUFFER –
Suprindo-lhes todas as necessidades...
GUSTCHEN –
E alimento...
LÄUFFER –
Do corpo...
GUSTCHEN –
E da vida...
LÄUFFER –
Do corpo e diariamente...
[...]
(p. 32).
Observe-se aí a fixação do jovem na palavra corpo. Em outras falas, ele
está fixado no cavalo que é o símbolo da impetuosidade do desejo, da
juventude do homem, com tudo o que ela tem de ardor, de fecundidade. Negar
o cavalo a Läuffer é subjugar a sua potencialidade, sua energia vital, sua
natureza humana, seu ímpeto juvenil que o leva a transgredir as convenções
sociais e religiosas. Mas é devido à sua condição de classe que o major o
subjuga.
Cabe mencionar que Läuffer não tinha diploma, não se graduou, pois seu
pai não conseguiu pagar os exames finais, assim, torna-se um súdito, presa
fácil dos abusos dos preconceitos de casta; facilmente manipulável como um
objeto sem necessidades e sem valor algum. Vejamos como o major Von Berg
promove a persuasão do jovem, sem nenhuma dificuldade, para que ensine
Gustchen, aumentando, dessa forma, sua jornada de trabalho, sem, contudo,
pagar-lhe mais por isso; pelo contrário, o moço deverá se dar por satisfeito,
recebendo ainda menos que o combinado inicialmente.
79
MAJOR –
[...] Mas escute: eu o considero um homem bem-apessoado e cortês,
temente a Deus e obediente, caso contrário não faria o que faço pelo
senhor. Prometi 140 ducados anuais ao senhor, não é mesmo?
LÄUFFER –
Cento e cinqüenta, prezado senhor.
MAJOR –
Cento e quarenta.
LÄUFFER –
Mas com a gentil permissão de Vossa Graça, a senhora me prometeu
cento e cinqüenta ducados.
MAJOR –
Ah, o que sabem as mulheres!...cento e quarenta ducados em
táleres... deixe ver... três vezes cento e quarenta quanto dá?
LÄUFER –
Quatrocentos e vinte.
MAJOR –
Tem certeza? É tanto assim? Bem, para pôr a coisa em números
redondos, determinei como seu salário anual quatrocentos táleres.
Veja, é mais do que se costuma pagar em toda a redondeza.
Quatrocentos táleres.
LÄUFFER –
Mas cento e cinqüenta ducados são exatamente quatrocentos e
cinqüenta táleres, e foram estas as minhas condições.
MAJOR –
Quatrocentos táleres, monsieur, mais não pode exigir em sã
consciência. O anterior ganhou duzentos e cinqüenta e ficou satisfeito
como um deus. E eu juro que era um homem muito instruído. Você
ainda tem muito pela frente até chegar lá. O que faço por você é só
por amizade ao senhor seu pai e também pelo seu próprio bem, se for
dedicado. Mas escute: tenho uma filha que sabe o seu catecismo de
cor e salteado, mas como logo logo deverá fazer a primeira
comunhão, e eu bem sei como são os padres, toda manhã você
deverá tomar dela o catecismo.
LÄUFFER –
Está certo, senhor major.
MAJOR –
Pagarei quatrocentos, mas você também terá de ensinar religião a
minha filha. Toda manhã uma aula, e, para isso, vá ao quarto dela.
(p. 24, 25).
A fala e a atitude do major diante de Läufffer, além de expor o modo
como o primeiro, por sua condição de casta, pode explorar o trabalho alheio,
expõe a decadência do modo de produção feudal e da nobreza com o advento
80
do capitalismo. Assistimos em O preceptor ao ruir de um velho mundo que, no
entanto, nega-se a morrer, contudo já não se sustenta; suas bases estão
corroídas pelas contradições que já não se podem abafar – daí os contrastes
flagrantes entre as atitudes e o discurso das personagens – e pelas próprias
limitações de uma ordem social degenerada.
MAJORA –
[...] Desde que a guerra terminou, o meu marido anda obcecado
pelos negócios. O dia inteiro na lavoura, de sol a sol, e quando vem
para casa fica mudo como um peixe. [...] Outro dia [...] saltou da
cama...
CONDE WERMUTH –
E…
MAJORA –
E se pôs a revisar os livros de contabilidade. Estava no escritório e
gemia de tal modo que fiquei arrepiada. [...] Ele que vire pietista [...]
Olha maliciosamente para o Conde
CONDE WERMUTH
segura o queixo dela
Malvada! [...]
Entra Major Von Berg de camisolão e chapéu de palha
MAJORA –
[...] Então como vai? [...] Não se consegue mais vê-lo o dia todo.
[...]
MAJOR –
Por Deus, mulher, esqueceu que eu tenho que pagar uma guerra?
(p. 43, 44).
Conforme afirma Hauser (1982), entre o século XVII e o XVIII, a
classe média degenerava nos principados alemães
13
. As igrejas e as
escolas, que eram extensão daquelas pregavam a obediência ao governo,
confirmavam o direito divino dos ilustres senhores:
13
Para entendermos o uso da expressão “classe média” nesse contexto, recorremos a
Bottomore (1988, p. 65) que afirma ser ela usada por Marx e Engels em várias acepções: “Marx
usou a expressão mais no sentido de ‘pequena burguesia’, para designar a classe ou camada
social que está entre a burguesia e a classe operária. [...] Nem Marx nem Engels estabeleceram
uma distinção sistemática entre diferentes setores da classe média ou, em particular, entre a
‘velha classe média’ de pequenos produtores, artesãos, profissionais independentes,
agricultores e camponeses, e a ‘nova classe média’ formada pelos trabalhadores em escritórios,
supervisores, técnicos, professores, funcionários do governo, etc”.
81
A debilidade da classe média, sua exclusão do governo do país e,
praticamente de toda a espécie de atividade política, fomentava uma
mentalidade passiva que afetava toda a vida cultural da época. A
classe intelectual, que era constituída por funcionários de segunda
categoria, professores de graus inferiores e poetas devaneadores,
habituava-se a distinguir a sua vida privada, do mundo da política, e a
renunciar a qualquer espécie de intervenção efetiva nas questões
públicas. E tal renúncia, e tal afastamento ela compensava-os com um
excesso de idealismo, uma afetação de desinteresse prático nas suas
idéias, e com o abandono da direção dos negócios nas mãos dos
detentores do Poder. (HAUSER, 1982, p. 755).
Nessa Alemanha, a fidelidade do exército e do funcionalismo alicerçava
um novo feudalismo que oprimia o povo, tanto a burguesia quanto o
campesinato. É bom lembrar que os príncipes alemães possuíam grandes
extensões de terra, daí seus interesses feudais. Houve, assim, um atraso do
progresso do comércio e da indústria na Alemanha; a burguesia só se fortalece
mais tarde, ainda assim desdenhando as tradições nacionais pelos ideais
franceses. A intelectualidade alemã, como diz Hauser:
luta contra o racionalismo que involuntariamente apóia, e torna-se,
até certo ponto, a pioneira do conservantismo contra o qual imagina
que se bate. Deste modo, por toda parte, se associam tendências
progressistas e liberais com outras conservadoras e reacionárias.
(HAUSER, op cit).
Nesse processo, situam-se os representantes do movimento
Sturm und
Drang
e entre eles Lenz. O idealismo alemão encontra seu fundamento na
teoria antimetafísica do conhecimento de Kant, cujas raízes estavam no
idealismo, mas o seu subjetivismo implicava uma renúncia total da realidade
objetiva e assumia uma postura de contundente oposição ao realismo próprio
do Iluminismo. Aos olhos do
Sturm und Drang
, bem ao contrário do Iluminismo,
o mundo se apresentava como misterioso, incompreensível e sem significado,
no qual se está perdido e desamparado. Essa visão apontava para a classe
média o conformismo com o
status quo
, pois, se havia alguma solução, essa
residia no plano ideológico e não no prático.
É esse mundo “caduco”, despregado da realidade, e é esse homem posto
à margem, alheado e oprimido, preso às abstrações, que, contudo, foi e é real
se fazendo história e a história da Alemanha, que nos são apresentados em O
82
preceptor de Brecht. Contudo esse homem alemão deixa de ser restrito a um
território e a uma etnia – germânica – para ser o homem que vive o conflito
entre os valores medievais pré-capitalistas e os valores burgueses, entre a
formação de cunho abstrato e universal e a pragmática voltada à especialização
e ao mercado de trabalho. A condição ocupacional de Läuffer como preceptor é
pré-capitalista. Tal condição é ainda hoje a que vivem os professores, pois
trabalham com o conhecimento universal abstrato que não tem aplicação direta
no modo de produção, a maior parte deles é composta de funcionários públicos
– que por sinal era a aspiração de Läuffer, deixando assim de servir a um
senhor – o coronel Von Berg, para servir a um Estado, que passaria a ser
igualmente o seu senhor.
E é a essa interpretação, obtida por uma leitura de um discurso
subjacente, que o receptor dessa parábola é estimulado a chegar. Ajudam-no,
nessa tarefa, as diversas marcas textuais, interpretativas, presentes na peça,
principalmente no prólogo e epílogo. E é nesse terceiro nível discursivo que o
espectador é impelido à ação, após o desvelamento do sentido contido na
história exemplar.
6.3 DA INTERPRETAÇÃO À AÇÃO
No prólogo e no epílogo da peça, o discurso do personagem Läuffer tira o
receptor da passividade, força-o ao estabelecimento das relações necessárias
para a construção do sentido. O público, já no início da peça, deixa de ser
contemplativo e passa a compor a cena; assim, com ele Läuffer dialoga,
rompendo o ilusionismo da quarta parede que isolava os espaços – espetáculo
e espectador – no teatro clássico.
PRÓLOGO
O PRECEPTOR se apresenta ao público
Honorável público, a peça que hoje aqui me traz
Foi concebida cento e cinqüenta anos atrás.
83
Nela, abrindo as portas do passado
Eu, o antepassado do mestre alemão, sou ressaltado.
Estou ainda a cargo da nobreza
Ensinando os seus rebentos com escassos proventos.
Ensino a eles a Bíblia e alguns modos:
Torcer o nariz, cagar regras e comandar.
Domino todas as ciências elevadas
Eu mesmo sou de origem rebaixada.
Todavia, os tempos estão mudando:
O burguês agora está mandando.
E eu estou pensando noite e dia
Que vou ser-lhe de serventia.
Ele teria em mim como se diz
A qualquer hora um espírito servil:
A nobreza treinou-me bem
Aparando-me e exercitando
Para que eu só ensine o que convém
E nada irá mudar nesse sentido.
Vou revelar-lhes o que ensino:
O abc da miséria alemã.
(p. 14).
Brecht utiliza-se de um recurso retórico adequado à persuasão: coloca o
público na posição de um ouvinte com o qual Läuffer dialoga conforme um
retor, preceptor – que irá demonstrar uma verdade; esta será dita utilizando-se
de uma narrativa, da sua história, que servirá de exemplo –
exemplum
– para a
demonstração da tese que deverá ser interpretada pelos espectadores. Cabe ao
público de O preceptor “ler” os intertextos, os discursos com os quais o texto de
Brecht dialoga, estilizando-os – como é o caso da peça de Lenz, e dos
subtextos A nova Heloísa, de Rousseau, e o romance Abelardo e Heloísa –; ou
parodiando-os, virando-os do avesso para revelar, desvelar, a sua lógica –
como é o caso do discurso dos personagens que caricaturizam o próprio ideário
da época.
Brecht com sua parábola teatral cria um espaço didático e político para
contra-argumentar o discurso do poder, o discurso opressor e alienante, cujo
jogo consiste no velamento de suas intenções. Para além da decifração de sua
trama, ao estabelecer as relações, dialéticas, necessárias para a construção do
sentido, o receptor passa a situar-se face à história demonstrada, de Lenz e de
Brecht (“vou revelar-lhes o que ensino / o abc da miséria alemã”). O receptor
passa a situar-se face à realidade, apreendida então em suas representações,
“contradicções” históricas. Passado e presente se tensionam, são estranhados;
84
ele identifica, de fora da cena, devido ao distanciamento provocado nessa
dinâmica teatral épica, dialética, a voz do outro, do recalcado pela história, a
sua própria voz. Insitam-no nesse momento à ação os verbos no imperativo,
com sua força persuasiva, proferidos por Läuffer no epílogo da peça:
Apresentamos a comédia até o fim.
Na fé de não ter divertido tanto assim.
Assistiram à miséria do povo alemão
E cada qual em sua resignação.
Passaram-se cem anos, coisa e tal.
Mas hoje ainda continua igual.
Viram o professor alemão
Subir ao calvário da gozação.
Um pobre diabo tão desfolado
Para quem frente e trás é o mesmo lado.
Nesta parábola sobrenatural
Caça-se a si próprio no final.
Extermina seu poder de procriação
Que só lhe trouxe tormento e confusão.
Entregando-se aos prazeres da natureza
É mal-visto e desagrada à nobreza.
Por mais que se esforce pelo ganha-pão
Mais os senhores lhe pedem a mão.
E só depois de mutilado e capado
É reconhecido pelo abastado.
Agora sua missão é castrar
Ao pobre aluno que for ensinar.
Saiba sempre: o mestre alemão
É produto e produtor de humilhação!
Alunos e professores da nova era,
Observem a subserviência e livrem-se dela!
(p. 70, 71, grifo nosso).
6.4 A META DO METADISCURSO
Essa parábola brechtiana, como num jogo de espelhos, contém um
discurso dentro do outro, qual o quadro As meninas
de Velázquez – o pintor
que se pinta pintando a cena, o olhar que se olha e é olhado, olhando a cena –;
o preceptor é refratado no texto, contexto, e no discurso que se debruça sobre
si mesmo, metadiscurso, “Nesta parábola sobrenatural / Caça-se a si próprio no
final”. Cabe aduzir que o discurso didático é metalingüístico; mas Brecht utiliza
a metalinguagem ludicamente: o espaço teatral é análogo ao espaço escolar,
85
onde há o receptor – espectador – de um lado e o mestre –
personagem/narrador – em sua tribuna – palco – do outro; contudo, para que
se alcance a interação, deve-se estabelecer a interlocução. E essa se viabiliza
por meio da relação direta entre narrador e ouvintes, do diálogo entre textos,
das várias vozes neles presentes postas em confronto. Afinal como diz Brecht:
Onde encontrar o homem, próprio e inconfundível, aquele que não é
absolutamente semelhante ao seu semelhante? É claro que sua
imagem teatral deve trazê-lo à luz e que esta particular contradição é
recriada na imagem. A imagem que dá definição histórica deverá reter
algo de um esboço, que indicará traços e movimentos em torno da
figura em questão. Ou, imagine-se um homem discursando num vale
e que, de vez em quando, muda de opinião ou diz frases que se
contradizem, de modo que o eco, acompanhando-o, põe as frases em
confronto. (BRECHT, 1967, p. 199).
Somente pelo confronto de vozes, de idéias, a realidade ocultada pode
ser interpretada pelo receptor, pelo “homem que pensa e sente o mundo, o
mundo dos homens”, para que submetam essa realidade à sua
práxis.
Apenas
na relação dialética entre universalidade e singularidade, que tem como síntese
a particularidade, podemos encontrar o homem “próprio e inconfundível, aquele
que não é absolutamente semelhante ao seu semelhante”. Contudo, é na
dialética do “semelhante” que encontramos o homem; é esta semelhança com
o seu “semelhante” que o caracteriza como ser humano e, ao mesmo tempo, o
distingue dos semelhantes, pois é ele e são eles seres históricos, produtores de
cultura, que vivem no movimento da história, que é, ela também, ao mesmo
tempo, geral e singular e, portanto, particular. Brecht, pelo confronto instalado
no discurso, ataca as condições sob as quais a potencialidade humana é
atrofiada, desperdiçada, pois acredita na superação desse estágio, na
transformação dessas condições, porque, por mais que haja opressão, o
homem preserva sempre um potencial de emancipação e criatividade.
Essa dinâmica se materializa na peça e pode ser conferida no prólogo e
no epílogo com a transfiguração da personagem Läuffer. Este deixa de
representar seu papel de personagem da história, um ser individualizado,
submisso e oprimido pela ordem social vigente, para assumir o papel, o
discurso, de narrador, conhecedor e crítico dessa história que “foi concebida
86
cento e cinqüenta anos atrás” e que tem como cerne a “formação” do povo
alemão. De um ser individualizado, Läuffer passa a sujeito coletivo e histórico
na medida em que assume a condição do mestre, intelectual, alemão e faz a
crítica dessa condição. Läuffer é a um só tempo ator e intérprete de sua
história. É então na tensão, “contradicção”, “Ou, imagine-se um homem
discursando num vale e que, de vez em quando, muda de opinião ou diz frases
que se contradizem, de modo que o eco, acompanhando-o, põe as frases em
confronto” que se encontra o sentido dessa parábola teatral brechtiana.
Somente no confronto entre os níveis narrativo, interpretativo e pragmático a
realidade ocultada na parábola brechtiana pode ser apreendida e assim
superada. Diferente da parábola bíblica, não há aqui uma moral, uma palavra à
qual o receptor será convertido. A alegoria brechtiana é de outra ordem,
remete para o outro, o que fora recalcado; o outro como relação de outros
possíveis; remete para a história em suas relações, contratos, pactos humanos;
história em processo. A lição que fica ao receptor é a de que, nesse processo, a
realidade só será alterada pelo reconhecimento da necessidade de tal alteração;
e ela se efetivará somente pela intervenção dos próprios homens. A concepção
didática que enforma esta parábola brechtiana e se acha nela enformada é a da
praxis
dialética, o gestus que aponta todo o tempo para as contradições visa ao
exercício do pensamento do espectador.
E Brecht reafirma no epílogo da peça a importância desse exercício,
apelando para a urgência da observação do público, própria de uma postura
científica, de estranhamento, de indignação: “Para que imutável não se
considere nada”, por que ela, como já afirmamos, é o ponto de saída e chegada
do método Brecht. Somente a partir dessa postura crítica, surgirá a necessidade
e a possibilidade de transformação da situação, histórica, que se apresenta:
Alunos e professores da nova era,
Observem a subserviência e livrem-se dela!
(p. 70, 71, grifo nosso).
87
7 UM CONTO DE FADAS ÀS AVESSAS
Dizer que os bons são vencidos, não porque sejam bons, mas porque
são fracos, isto requer coragem.
Naturalmente, a verdade deve ser
dita na luta contra a mentira e não cabe disfarçá-la em algo
generalizado, sublime, sujeito a múltiplas interpretações. A inverdade
é feita precisamente desse caráter genérico, sublime e ambíguo.
Bertolt Brecht (1967, p. 21)
7.1 A HISTÓRIA DE CHEN TE
Compõem o repertório da peça A alma boa de Setsuan, escrita entre
1938 - 1941, além do texto bíblico – com o qual é estabelecida uma relação
paródica –, alguns provérbios, canções populares e pequenas fábulas. A história
de ChenTe é um conto de fadas às avessas: os Deuses retribuem a moça por
uma boa ação – a hospitalidade – dando-lhe a oportunidade de, com essa
recompensa – objeto mágico –, superar a sua situação inicial de penúria e
opressão. Acontece que o sonho ou encanto vivido pela protagonista logo se
quebra ao esbarrar na realidade, uma realidade cruel, que não faz concessões;
assim, como se enuncia no epílogo da peça: o que era para ser uma “lenda cor
de ouro” assume um “tom de agouro”.
Numa analogia à história de Abraão que recebe os três anjos com a
missão de inspecionar as ações dos homens em Sodoma e Gomorra, dispondo-
se a poupar as duas cidades, caso encontrem nelas ao menos dez homens
justos (Cf.
Gênesis
18, 22-32), no pequeno vilarejo de Setsuan, no prólogo da
peça, é anunciada a vinda de três Deuses altíssimos à procura de uma alma
boa, para justificar a permanência desse mundo de lamentações, de injustiças e
corrupção conforme se configura.
TERCEIRO DEUS –
Nosso trato dizia: “O mundo poderá continuar como está, se forem
encontradas almas suficientemente boas que possam levar uma
88
existência condigna”. Esse aguadeiro, mesmo, é uma dessas almas,
se não me engano.[...]
SEGUNDO DEUS –
Ele se engana. Quando o aguadeiro estava nos dando água, eu
reparei uma coisa no copo dele, que serve de medida: aqui está o
copo.
Mostra o copo ao Primeiro Deus.
PRIMEIRO DEUS –
O fundo é falso...
SEGUNDO DEUS –
É um trapaceiro!
PRIMEIRO DEUS –
Esse, então risca-se. [...]
(p. 62).
Wang, o vendedor de água de Setsuan, passa a esperá-los, tal qual Ló
(Cf. Gênesis 19, 1), na entrada da cidade. Ao reconhecê-los, procura para eles
pousada. Diante de muitas recusas, já pronto a abandonar sua missão, recorre
à prostituta Chen Te, que, mesmo tendo que dispensar um freguês o qual lhe
garantiria o dinheiro do aluguel, atende ao pedido do aguadeiro, abrigando, por
uma noite, os Deuses celestiais – a hospitalidade é uma das mais importantes
leis do mundo oriental; por sua hospitalidade aos deuses, Ló e sua família
foram salvos da morte na destruição de Sodoma (Cf. Gênesis 19, 1-29). Então,
em gratidão pela hospitalidade de Chen Te, os Deuses dão a ela dinheiro e
pedem-lhe para que “antes de tudo, seja sempre boa” (p. 68).
Chen Te, com essa recompensa, abre uma pequena tabacaria e passa a
ser explorada pelos parasitas, credores e miseráveis, a quem tenta estender a
mão, a qual, conforme lamenta a protagonista aos deuses, no final da peça,
estes miseráveis tentam arrancar de uma vez só:
CHEN TE: [...]
Quem procura ajudar a um desgraçado,
Acaba se desgraçando também!
Quem é que pode resistir assim
À tentação de ser também ruim,
Se, para não morrer,
A carne alheia se tem de comer?
(p. 180, 181).
89
Assim, para poder sobreviver, Chen Te cria, metamorfoseia-se, trocando
de roupa e usando uma máscara, no primo Chui Ta: um homem impiedoso que
mantém os exploradores à distância da loja de sua prima.
Chen Te encontra um aviador desempregado, Yang Sun, no momento
em que este tentava pôr um termo à sua vida. Impede, então, o suicídio do
jovem e por ele se apaixona, ficando noivos. No entanto, o moço tem a
intenção de abandoná-la assim que ela financie sua ida a Pequim, onde, por
meio do suborno, será empregado do Correio Aéreo.
SUN – [...]
O gerente do hangar lá de Pequim, meu ex-colega da escola de
aviação, está podendo me dar um emprego, se eu espichar nas mãos
dele quinhentos dólares.
CHUI TA –
Essa quantia não é muito alta?
SUN –
Não. Ele tem de descobrir algum descuido no trabalho de outro
aviador, que é chefe de família numerosa e que por isso é muito
cuidadoso. O senhor compreende... Isso eu digo ao senhor em
confiança, mas Chen Te não precisa saber.
CHUI TA –
É possível que não. Mais uma coisa: e esse gerente do hangar não vai
vender também o emprego do senhor, no mês que vem?
(p. 115).
Após saber dos interesses do aviador, que os revelara a Chui Ta, e de
sua intenção de abandoná-la, a protagonista, já em vias de perder sua loja,
resolve negociar, por intermédio do primo, com o barbeiro, o qual nutria por ela
grande admiração e desejo de esposá-la. Mas, nesse momento, Chen Te
descobre-se grávida do aviador.
Para poupar o filho das malhas da miséria e da fome, Chui Ta inventa
uma viagem para a prima e passa a conduzir os negócios com o barbeiro, que
lhe dá um cheque em branco e coloca à sua disposição os seus galpões para
que Chen Te possa abrigar os necessitados. Chui Ta, então, instala uma
pequena fábrica de fumo nessas dependências – atrás de gradis, como em
horríveis estrebarias, algumas famílias aparecem de cócoras, principalmente
90
mulheres e crianças [...] (p. 153) – e emprega, em condições subumanas, os
miseráveis e parentes que viviam da caridade de Chen Te:
CHUI TA,
encolhendo os ombros
Pelo que eu sei da senhorita Chen Te, que precisou viajar, ela não
tinha a intenção de deixar vocês na mão. Mas, daqui para o futuro,
tudo se há de fazer em bases mais razoáveis. A distribuição de
alimentos sem prestação de serviços será abolida: em vez disso, cada
um terá de ganhar honestamente a própria subsistência. A senhorita
Chen Te achou melhor dar emprego a todos vocês: os que estiverem
dispostos a ir comigo aos galpões do senhor Chu Fu não terão nada a
perder.
(p. 149, 150).
Em pouco tempo, Chui Ta é cognominado o rei do fumo de Setsuan, e
Sun, por sua disposição em prosperar, ainda que às custas da exploração de
seus companheiros, passa a ser seu capataz.
Diante do desaparecimento de Chen Te que, com a desculpa da viagem,
fica meses ausente, Wang levanta a suspeita de o primo tê-la assassinado para
ficar com os seus bens. Unindo-se ao povo e a Sun, a quem o aguadeiro revela
a gravidez da moça, conseguem que Chui Ta seja preso e levado ao tribunal:
WANG –
Santíssimos, enfim apareceis! Coisas horríveis têm acontecido lá na
tabacaria de Chen Te! Ela foi viajar, mais uma vez, já faz três meses!
O primo ficou com tudo na mão, até que hoje foi preso! Ele teria
assassinado a moça, pelo que dizem, para ficar com a loja dela: mas
nisso eu não acredito, porque num dos meus sonhos Chen Te me
apareceu e me disse que estava presa pelo primo. Oh, meus
santíssimos Deuses, vós precisais voltar lá depressa e ver se a
encontrais!
PRIMEIRO DEUS –
É de espantar! Toda a nossa pesquisa fracassou. Nós encontramos
pouquíssimas almas boas, e as que encontramos nunca tinham uma
vida digna de um ser humano. Nós já tínhamos mesmo decidido
depositar toda a nossa fé em Chen Te!
SEGUNDO DEUS –
Ah, se ela pudesse continuar a ser uma alma boa!
WANG –
Isso naturalmente ela ainda é, mas desapareceu!
PRIMEIRO DEUS –
Então tudo está perdido...
(p. 171).
91
Após as lamentações de Wang e de seus pedidos de ajuda aos Deuses,
esses se colocam como juízes de Chui Ta que, então, tirando a máscara, revela
a eles sua identidade. Após verem que Chen Te está viva, os Deuses – tolos e
inoperantes, como os qualifica Martin Essler (1979, p. 307) – sentem-se
aliviados e resolvem partir. Ao expor o conflito em que se encontra, a jovem
suplica aos Deuses celestiais que lhe dêem uma solução; como ser boa num
mundo degenerado? De acusada, Chen te passa a acusar e expor as mazelas
sociais. Os Deuses, então, negando que seus mandamentos são funestos e
afirmando, cegamente, que está tudo em ordem, como consolo, admitem que
ela continue a metamorfosear-se no primo uma vez por semana, pelo menos!,
não, Basta uma vez por mês!” (p. 183) e partem numa nuvem cor-de-rosa,
cantado:
OS TRÊS DEUSES
cantam
Pena não ficarmos mais
Do que um instante fugaz:
Muito visto e examinado,
Perde o encanto o belo achado!
Vossos corpos lançam sombras
No jato de luz dourada:
Deveis deixar-nos agora
Retornar ao nosso Nada!
CHEN TE –
Me ajudem!
[...]
(p. 183, 184).
Nesse momento, a história é interrompida, um personagem se dirige à
platéia, no epílogo da peça, e lamenta por este final sem respostas; aconselha,
então, o público a pensar, a dar “trato ao pensamento até descobrir-se um jeito
pelo qual pudesse a gente ajudar uma alma boa a acabar decentemente...” (p.
185).
92
7.2 O PROBLEMA NA PARÁBOLA
Aqui e além puseram um véu, a encobrir certas coisas. É preciso
arrancá-lo!
Bertolt Brecht (1964, p. 180)
A história de parábola, ou o caso da alma boa
,
ilustra para o espectador
um problema que deverá ser resolvido por ele em seu final: como é possível ao
homem ser bom na sociedade instituída? O que Brecht faz, então, nessa peça é
explicitar os mecanismos das relações que estão na ordem de tal sociedade, e o
que acaba revelando é o caráter de alienação, gerado por essa ordem. Tal
explicitação se objetifica mesmo na peça, materializa-se em seus personagens,
e a alienação alcança sua expressão máxima na própria configuração da
protagonista Chen Te.
Numa radicalização do efeito de estranhamento, Brecht introduz a
descontinuidade na própria personagem: Chen Te, em sua tentativa de ser boa
para si e para os outros, vê-se dividida em duas, assim demonstrando a
contradição imanente a essa sociedade:
CHEN TE –
Pois sou eu mesma: Chui Ta e Chen Te!
A vossa antiga recomendação
De ser boa e viver conforme o bem,
Me dividiu em duas, como um raio...
[...]
Como é difícil este Vosso mundo!
A fome é tanta, é tanto o sofrimento!
[...]
O contrapeso da boa intenção
Ia fazendo eu me enterrar no chão!
Eu precisava bancar o patife
Para poder andar mais à vontade
E vez por outra mastigar um bife!
Alguma coisa deve estar errada
Em vosso mundo: por que é que o mal
É premiado e o bem não ganha nada,
Quando por sorte não é castigado?
(p. 180, 181).
93
Então está na sociedade, nas relações travadas entre os homens, a
motivação do desdobramento e metamorfose da personagem. Ao longo da
peça, nessas circunstâncias sociais apresentadas, não será a condição social de
miséria da protagonista expressa na prostituição – aliás esta não é posta em
questão nem pelos Deuses, por não ser essencial em seu caráter – mas será a
bondade que se constituirá numa tentação para Chen Te; tentação que,
paradoxalmente, poderá levá-la à danação de sua alma e à perda do prêmio
recebido por ela dos Deuses altíssimos.
Para sobreviver nessa sociedade, Chen Te precisa reproduzir o modo de
produção capitalista; mas, quando o faz, ela aliena-se de si mesma: ao criar
Chui Ta, aliena-se de sua humanidade, de sua essência. Essa alienação se
concretiza no palco, toma forma, materializa-se. A partir do momento que Chen
Te veste a indumentária e a máscara, passa a ser Chui Ta, um homem
enérgico, agressivo ante a exploração da prima, mas que, em seguida, passa a
explorar e subjugar a força produtiva daqueles que a assediavam
financeiramente.
SUN –
Seu criado, obrigado! Mas não me tente driblar outra vez: o senhor
hoje precisa acertar com o barbeiro o novo plano...
CHUI TA –
As condições que esse barbeiro quer impor, eu não posso aceitar.
SUN –
Se o senhor ao menos me dissesse que condições são essas...
CHUI TA
esquivando-se
Os galpões dele já nos servem muito bem.
SUN –
É, servem muito bem para a gentalha que trabalha lá dentro, mas
para o fumo mesmo não servem: cria bolor! Eu ainda vou falar mais
uma vez com a senhora Mi Tsu, sobre os locais de que ela pode
dispor, antes da nossa reunião! Se pudermos fazer o negócio, aí então
vamos poder mandar às favas aquele nosso bando de mendigos,
cretinos e aleijados: eles também já não nos sevem mais! Com umas
palmadinhas nos joelhos da senhora Mi Tsu, à beira de uma xícara de
chá, os locais que ela tem vão nos custar a metade do preço.
CHUI TA –
Nada disso! Eu quero que o senhor, no interesse do bom nome da
firma, atenha-se à reserva funcional e à frieza de um homem de
negócios!
94
(p. 162).
Chui Ta é uma alegoria do capitalismo, um mal que degenera e aliena a
alma humana, mas Sun, que é o protegido de Chui Ta e que estabelece com
este uma aliança de fidelidade às causas da empresa, alegoriza o nazi-fascismo,
como a expressão mais funesta dessa alienação – não podemos nos esquecer
de que, no momento da produção desta peça, o nazismo, financiado pelo
capitalismo, alastrava-se, contaminando grande parte da Europa. Brecht, em “A
arte de tornar a verdade manejável como uma arma”, é esclarecedor quanto a
esta relação – entre o modo de produção capitalista e tal processo político:
O fascismo é uma fase histórica em que o capitalismo entrou – nesse
sentido, é uma coisa nova, porém ao mesmo tempo velha. O
capitalismo existe nos países fascistas somente como fascismo, e este
pode então ser combatido em seu conteúdo capitalista,
capitalismo da
maneira mais desnuda, mais descarada, mais sufocadora, mais
fraudulenta.
Como poderá alguém dizer a verdade sobre o fascismo,
ao qual é contrário, sem querer falar do capitalismo que o produz?
Que aspecto prático poderá ter essa “verdade”? Os que são contra o
fascismo, sem tomar posição contra o capitalismo, os que lastimam a
barbárie como resultado da barbárie, parecem pessoas que querem
comer sua porção de vitela sem abatê-la. Querem comer a vitela, mas
não querem ver o sangue. Contentam-se em saber que o açougueiro
lava as mãos antes de trazer a carne. Não são contra as relações de
propriedade que produzem a barbárie. São apenas contra a barbárie.
Levantam a voz contra ela e fazem isso em países onde existem
perniciosas relações de propriedade, mas onde os açougueiros ainda
costumam lavar as mãos antes de servir a carne. (BRECHT, 1967, p.
21, 22).
Num momento, então, de amarga constatação da impotência dos Deuses
e da solidão dos homens, a protagonista invoca na peça a revolta desses
Deuses e sua intervenção por meio da luta armada:
CHEN TE –
Em nossa terra,
Quem presta, mesmo, precisa ter muita sorte:
Só quando encontra a ajuda do mais forte
É que os seus préstimos pode mostrar.
Os bons não sabem amparar-se mutuamente
E os deuses são impotentes.
Por que é que os Deuses não têm tanques e canhões,
Barcos de guerra e minas e aviões,
Para atacarem os maus e protegerem os bons?
Seria muito melhor para eles e para nós.
95
Chen Te veste o terno de Chui Ta e dá alguns passos imitando a
maneira masculina de andar.
Os bons não podem
Ser bons por muito tempo, em nossa terra:
Quando o prato está vazio, quem está com fome berra.
Ah, nada valem os mandamentos divinos
Quando a pessoa está morrendo à mingua!
Por que é que os Deuses não vêm aos nossos mercados
Distribuir fartura, regalados
Fazendo assim os que tiveram pão e vinho
Tratarem-se com amor e carinho?
Chen Te põe a máscara de Chui Ta e continua a cantar, com voz de
homem.
Para arranjar um almoço, é preciso
Ter-se a dureza do fundador de um império:
Salvar alguém da fome não podemos
Sem antes derrubar uns doze, pelo menos!
Porque é que os Deuses não gritam lá das alturas
Por que não dão ajuda aos bons com tanques e com canhões
E não dão ordem de “fogo!” logo, sem contemplações?
(p. 112, 113).
Chen Te é aquela que, por sua condição de miséria, é obrigada a vender
seu próprio corpo para poder sobreviver, mas que, mesmo após superar essa
condição, tornando-se proprietária da fábrica de fumo, precisará sujeitar-se aos
interesses do mais forte, personificado no barbeiro Chu Fu em sua aliança com
o primo Chui Ta – ambos representantes de uma sociedade autoritária,
machista, e detentora do poder de ditar o destino da mulher, direcionando,
freando e restringindo o campo de atuação feminina conforme os padrões por
eles estabelecidos. Conceder a Chen Te a oportunidade de exercer a assistência
social é, então, típico dessa postura paternalista e autoritária, pois faz parte de
sua estratégia de manipulação; afinal a assistência aos miseráveis, ao suprir-
lhes as necessidades imediatas, garante a manutenção da “ordem” social, ao
mesmo tempo em que promove a “boa” consciência dessa burguesia,
representada por Chu Fu. Por mais que Chen Te questione seu direito de opção
e chegue, por um momento, a tomar a decisão de ser livre, essa decisão logo
esbarra no poder implacável da realidade, materializado na hipocrisia imanente
ao caráter degenerado de Yang Sun:
96
CHUI TA –
Parece até esquecer que ela é um ser humano, dotado de razão!
SUN
achando graça
Eu sempre achei espantoso o que certas pessoas pensam das
mulheres da própria família, e do efeito que possam ter sobre elas os
mais ponderados conselhos. E dos poderes do amor e das fraquezas
da carne, o senhor nunca ouviu falar? Está querendo chamá-la à
razão? Razão é uma coisa que ela não tem! Ela foi maltratada a vida
inteira, pobre bichinho! Basta eu pousar a mão no ombro dela e dizer
“vem comigo!’; ela começa a ouvir sinos celestiais, e é capaz de
estranhar a própria mãe.
(p. 119).
Chen Te, ao ver-se flagrada em sua condição de opressão – condição
essa triplamente formulada na peça: a personagem é prostituta, é pobre e é
mulher –, precisa reformular seu destino. Agora sem opção, vê-se forçada a
aceitar as propostas “generosas” do barbeiro. Novamente, a personagem é
obrigada a vender-se. Chen Te é cooptada por Chu Fu – encarnação do
paternalismo em sua mais alta expressão de hipocrisia e dissimulação –;
cooptação que se dá via primo, que é o intermediário das negociações.
Chen Te é a alegoria do próprio povo, sem voz, sem direitos e
abandonado em meio aos outros homens. É a própria incapacidade de exercer
o livre arbítrio, ou melhor, é o próprio livre arbítrio que é posto em discussão
nesta peça: os homens são incapazes de exercer a liberdade porque,
paradoxalmente, essa liberdade lhes foi tolhida por meio da alienação: o
homem alienado, despolitizado, não tem opções. Ainda que Chen Te proclame
a revolução, o que obtém como resposta é o silêncio, a evasiva:
CHEN Te
perplexa
– [...]
Ah, desgraçados: um irmão é maltratado,
E vocês olham para o outro lado?
Grita de dor o ferido, e vocês ficam calados?
A violência faz ronda e escolhe a vítima,
E vocês dizem: “A nós ela está poupando,
Vamos fingir que não estávamos olhando!”
Mas que cidade, que espécie de gente é esta?
Quando campeia numa cidade a injustiça
É necessário que alguém se levante;
É preferível que num grande incêndio
Toda a cidade desapareça
Antes que a noite desça!
[...]
97
CHEN TE
com desânimo
Eu não queria ofender vocês: só fiquei espantada... Não: o que eu
quero é xingar vocês, mesmo! Desapareçam da minha vista!
O Desempregado, a Cunhada e o Avô saem, comendo e resmungando
(p. 109, 110).
Quando Chen Te veste a máscara de Chui Ta, ela está representando,
conscientemente, um papel; uma outra história se institui, pois uma nova
dinâmica é instaurada por serem outras as relações agora estabelecidas: os
vínculos entre os homens/personagens da peça passam a ser firmados por
meio de contratos econômicos. E é Chui Ta e não Chen Te, como a escolhida
pelos Deuses, quem promoverá a transformação ou revolução, fazendo frente à
miséria e degradação vigentes: os que viviam à margem – desempregados,
mendigos – são re-incluídos, re-integrados como cidadãos, por meio do
envolvimento em um modo de produção – como empregados assalariados na
fábrica de fumo de Chui Ta. Esse envolvimento no processo produtivo, no
entanto, não investe no resgate da humanização desses seres, pois esse modo
de produção, ao qual se acham agora subordinados, por priorizar o lucro,
supre-lhes, por meio de uma ínfima remuneração, apenas as suas necessidades
imediatas, exigindo-lhes, contudo, o dispêndio de uma energia sobre-humana:
CARPINTEIRO
parando, a gemer, e deixando-se cair sobre um dos
fardos
– Não agüento mais: já não tenho idade para um trabalho
destes!
SUN
sentando-se também –
Por que você não
pega esse fardos e joga na cara dele?
CARPINTEIRO –
E a minha gente vai viver de quê? Com tudo isso, eu ainda tenho de
empregar meus filhos, para que não nos falte o necessário. Se a
senhorita Chen Te pudesse ver isto! [...]
SUN
vendo chegar Chui Ta
Me dê aqui um desses fardos, aleijado!
Sun apanha um dos fardos de
Lin To e leva-o, com os seus.
[...]
CHUI TA –
Esperem aí! Que história é essa? Por que você vai levando um fardo
só?
CARPINTEIRO –
Eu hoje estou me sentindo um pouco cansado [...]
98
CHUI TA –
Volte lá e pegue três sacos, meu caro! O que Yang Sun pode fazer,
você também pode: é que Yang Sun tem boa vontade, e você não.
(p. 156).
Assim, a ética do modo de produção capitalista é desnudada na peça em
todas as dimensões; é posta sob observação e análise do espectador: Chui Ta
apropria-se de bens e serviços alheios – como dos fardos de fumo que estavam
guardados nos fundos da loja e que pertenciam aos parentes; com eles dá
início à sua fábrica, fazendo com que os verdadeiros donos tenham que
trabalhar para ele –; desempregados, como Sun, dispõem-se a comprar um
emprego à custa da danação/distração de outro funcionário que precisará ser
demitido; o empregado explorado, coerente com essa ética, explora e oprime
os seus companheiros como uma forma de ascender e obter regalias dentro da
empresa.
SUN
, de pé, com as pernas entreabertas, aparece por trás dos
operários, que vão fazendo passar por cima das cabeças um cesto
com folhas de fumo em bruto.
SUN –
Isso não é trabalho honesto, gente! O cesto precisa andar mais
depressa!
A um dos Meninos
Você pode sentar-se aí no chão, para
não atrapalhar! E você, lá: mais força na prensagem! Seus cães
vadios, por que é que nós pagamos a vocês? Mais depressa com o
cesto! Mas que diabo: Vovô, sente-se num canto, fazendo só o
trabalho das crianças! Chegou a hora de acabar com a preguiça! Eu
quero todos dentro do compasso!
Sun vai batendo o compasso com as mãos e o cesto vai passando
mais rapidamente.
SENHORA YANG
ao público
E nenhuma das hostilidades, nenhuma das indiretas, por parte
daquela gente ignorante, fez meu filho recuar no cumprimento do
dever.
(p. 157, 158).
Mas o primo, criado por Chen Te, é apenas uma alternativa que se vê
logo lograda e que, em sua provisoriedade, não atende às necessidades
impostas pela vigência e condução dos fatos e problemas que não cessam.
99
Chen Te como um indivíduo sozinho numa sociedade decadente,
desumanizada, descobre-se, também, impotente.
O uso da máscara em sua duplicidade revela o paradoxo vivido pela
personagem: Chui Ta não defende a prima apenas dos exploradores, mas a
defende de si mesma, de seus excessos de bondade e caridade. A alienação
move os dois seres: Chen Te, como a alma boa, em sua ingenuidade e visão
humanitária, porém idealizada do mundo; e Chui Ta, como a alma má, em sua
objetividade e visão realista, porém mecânica do mundo. Conforme Holthusen
(apud PEIXOTO, 1979), Chui Ta é uma espécie de correção dialética do
primeiro impulso do coração: sua compreensão realista e fria da natureza
humana, onde é necessário agir sem levar em conta os sentimentos, mas sim
os interesses – dominar e organizar, ordenar e investir.
A cisão da personagem mostra, ao final da peça, não pertencer ao
campo dos paradoxos insolúveis, mas sim ao da dialética, ou seja, os extremos
representados por Chen Te e Chui Ta não se excluem, nenhum deles pode ser
suprimido. A tensão que lhe é inerente, tende à perpetuação desde que
prevaleçam as condições político-econômicas nas quais essa cisão foi gerada e
às quais é imanente. E, o que é importante observar, essa tensão se estende a
todas as relações desenvolvidas pela personagem e por isso constitui o vínculo
que ela estabelece com os seres que a cercam, com o ser amado e com as
coisas ou com o meio de produção material de que dispõe para sobreviver:
CHUI TA
soltando um grito
Lá se vai a loja! Ele [Sun] não tem amor a ninguém! É o fim! Não sei
o que fazer!
Põe-se a andar de um lado para outro, como um animal
enjaulado, repetindo sempre “Lá se vai a loja”, até que de repente
pára, e diz para a senhora Chin
– Chin, você cresceu na sarjeta, igual
a mim: somos idiotas? Não! Falta-nos a brutalidade necessária? Não!
Eu sou capaz de agarrar você pela garganta e sacudir até vê-la cuspir
fora o queijo que acabou de me roubar, você sabe disso. Os tempos
andam terríveis, esta cidade é um inferno, mas assim mesmo vamos
tentando subir, cravando as unhas na parede lisa... De repente, o
azar dá em cima de um: começa a amar e pronto, lá se vai! É
bastante um momento de fraqueza e a gente está liquidado. Mas,
como se livrar de umas tantas fraquezas, e do amor que é a mais
fatal de todas? Não é possível! O preço é alto demais! Diga, com toda
franqueza: a gente pode estar sempre de pé atrás? Enfim, que mundo
é este?
Carícias tornam-se estrangulamentos,
100
Cada suspiro é um grito de pavor:
Por que esvoaçam corvos agourentos?
É alguém que vai a um encontro de amor!
(p. 120).
Ao estabelecer relações dessa natureza, a personagem expõe uma luta
contínua que, simultaneamente, aprofunda a sua cisão; em seu
desdobramento, passa a negar aquilo que afirma e a afirmar aquilo que nega.
Mas essa é uma estratégia de sobrevivência, uma astúcia objetiva, como diz
Renata Pallottini (1989, p. 106) ao analisar o caso de Puntila, na peça O Sr.
Puntila e seu crido Matti, de Brecht, a astúcia do homem no mundo capitalista:
“no caso de A alma boa
...
a contradição objetiva leva à verdadeira ruptura, a
uma esquizofrenia objetiva. Chui Ta é o duplo social de Chen Te”.
Os habitantes de Setsuan não têm perspectiva histórica, o que conduz a
uma falta de perspectiva política; assim, vivem no plano do imediato, são
alienados, desprovidos da consciência de que compõem uma ordem que pode
ser alterada; por outro lado, já não têm temor algum aos Deuses, sua alienação
se expressa no âmbito material e não espiritual – isso não significa que não
seja motivada pelos preceitos cristãos, como discutiremos mais adiante –,
sofreram um processo de individualização, por isso desenvolvem apenas
relações utilitárias, as quais decorrem desse mesmo processo de alienação e,
simultaneamente, o aprofunda.
Embora não temam os Deuses, esses homens tendem a explicar os
fenômenos materiais por meio de intervenções mágicas, o que logo é
desmistificado pelos próprios Deuses:
Voz
dentro da casa
Deixe-nos em paz, você com os seus Deuses! Nós temos outras
preocupações!
WANG
voltando para perto dos Deuses
O senhor Cheng está fora de si, com a casa cheia de parentes, e não
se atreve a expor-se aos vossos olhos, Santíssimos. Aqui entre nós,
acho que é gente bem ruim e ele não quer vos mostrar: tem medo do
vosso julgamento, isso é que é!
TERCEIRO DEUS –
Será que nós somos assim de meter medo?
101
WANG –
Só para gente ruim, não é verdade? Todos sabem que a província de
Kuan, por exemplo, vem sendo castigada por inundações há dezenas
de anos...
SEGUNDO DEUS –
É? E por que isso?
WANG –
Ora, é que lá não há nenhum temor a Deus.
SEGUNDO DEUS –
Bobagem! Só porque deixaram a represa desabar...
(p. 61).
102
Já batemos o bestunto e nada achamos no fundo:
Se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo,
Ou se os Deuses fossem outros ou nenhum – como seria?
Nós é que ficamos mal, sem nenhuma fantasia!
(p. 184, 185).
7.3 DAS DOBRAS QUEBRADAS
Não são os Deuses “tolos e inoperantes”, retornando para o seu Nada,
com a consciência tranqüila por terem encontrado uma alma boa, que terão o
poder da intervenção, esse poder pertence aos homens que devem assumir
uma posição definida e ter muito claro seu papel de agente sócio-histórico.
Conforme defende Brecht, também a arte deve assumir posição, pois sem
opiniões e objetivos nada se pode representar:
Muitos poderão achar isso uma degradação, os que colocam a arte
nos píncaros da lua (depois das contas acertadas, é claro); mas as
mais altas decisões da humanidade são realizadas numa luta travada
na terra, e não nas nuvens; no mundo extramental e não na cabeça
das pessoas. Ninguém pode ser colocado acima das classes que
lutam, pois ninguém pode ser colocado em plano superior ao homem.
A sociedade não pode ter um sistema de comunicação comum,
enquanto estiver dividida em classes antagônicas. Pois a arte, sendo
“apolítica”, não quer dizer outra coisa senão estar aliada ao grupo
dominante. (BRECHT, 1967, p. 207).
Aos homens cabe rever a dinâmica das relações sociais e alterar o
quadro de dominação em que vivem. A eles cabe reformular os mandamentos
da convivência humana:
WANG –
Se, por exemplo, pedísseis “benevolência” em vez de “amor ao
próximo”...
TERCEIRO DEUS –
Mas isso é ainda mais difícil, infeliz!
WANG –
Ou “eqüidade” em lugar de “justiça”...
103
TERCEIRO DEUS –
Assim vai dar muito mais trabalho!
WANG –
Ou pura e simples “decência” em vez de “honra”...
TERCEIRO DEUS –
Tudo isso representa mais muito mais, homem de pouca fé!
(p. 153).
Realmente “tudo isso representa muito mais”, representa a destituição
dos mandamentos que atendem aos interesses de uma classe, a classe
burguesa, como analisa Peixoto (1979, p. 193): “[Os Deuses] desprezam as
condições em que vive o povo [de Setsuan] [...] pedem uma bondade cristã
impossível, e seus ‘mandamentos’ são a ilustração da ordem burguesa”.
Como sintetiza Chiarini (1967), nesta peça Brecht descarna ao máximo
as contradições da sociedade burguesa e capitalista, sem nada conceder ao
devaneio, ao idílio, à utopia. E esse descarnar, por meio da instituição do
“pathos dialético”, constitui a virtude poética mais sólida do texto brechtiano:
“Brecht é poeta sobretudo nisto: quando nos ilustra, com impiedosa ironia e
cruel sarcasmo, os perenes paradoxos da sociedade burguesa” (p. 32).
A peça é suspensa, não termina, novamente, como ocorre em O
preceptor, é interrompida pelo discurso do outro, personagem/narrador/ator,
estabelecendo um universo polifônico pelo confronto de vozes, tempos e
espaços, como ocorreu em vários outros momentos. Esse procedimento de
corte “reduz o véu a dobras quebradas”, como diz Barthes:
“Desvelar” não é tanto retirar o véu como despedaçá-lo; no véu, só se
comenta, geralmente, a imagem daquilo que esconde ou subtrai; mas
o outro sentido da imagem é igualmente importante:
o forrado, o
tênue, o seguido
; atacar o escrito mentiroso é separar o tecido,
reduzir o véu a dobras quebradas. A crítica do
continuum
(aqui
aplicada ao discurso) é constante em Brecht. [...] O descontínuo do
discurso impede o sentido final “de retomar-se”: a produção crítica
não espera; quer-se instantânea e repetida: é a própria definição do
teatro épico segundo Brecht. O épico é aquilo que corta (repica) o
véu, desagrega a paz da mistificação [...]. (BARTHES, 1988, p. 230)
(grifo nosso).
104
O ator se dirige ao público, num procedimento que foi recorrente em
vários momentos da demonstração da história, afirmando sempre que se está
no teatro e este não pode ser confundido com o real: ele, no entanto, o reflete
e refrata. E nesse processo, não há, então, uma verdade unívoca, uma doutrina
absoluta pregada por um mestre, como ocorre na parábola testamentária.
Também em A alma boa, como já analisamos em O preceptor, será somente
por meio do estabelecimento das relações entre os enunciados narrativo,
interpretativo e pragmático, dialeticamente engendrados na peça, que
chegaremos ao sentido subjacente. A lição que fica é que são os modos de
pensamento, organização e produtividade sociais que devem ser observados e,
por meio do exercício da análise, do pensamento dialético, neles se pode e se
deve intervir, pois são construtos humanos; e o público a isso é incitado:
Epílogo
E, agora público amigo, não nos interprete mal:
Sabemos que este não foi um excelente final!
Nós fazíamos idéia de uma lenda cor de ouro
E ela, disfarçadamente, assumiu um tom de agouro.
Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado,
Tanto problema em aberto e o pano de boca fechado.
Recolham-se às suas casas e disto tirem proveito!
[...]
Para esse horrível impasse, a solução no momento
Talvez fosse vocês mesmos darem trato ao pensamento
Até descobrir-se um jeito pelo qual pudesse a gente
Ajudar uma alma boa a acabar decentemante...
Prezado público, vamos: busque sem esmorecer!
Deve haver uma saída: precisa haver, tem de haver!
(p. 185)
105
8 DA FARSA HISTÓRICA À PARÁBOLA
O único princípio nunca abdicado é sempre subordinar todos os
princípios à tarefa social que nos propomos a realizar a partir de cada
peça.
Bertolt Brecht (apud PEIXOTO, 1979, p. 165)
A resistível ascensão de Arturo Ui foi escrita por Brecht em 1941. Peça
que é “um dos espetáculos mais expressivos do teatro contemporâneo, uma
encenação em que todas as propostas brechtianas são quase esgotadas, numa
pesquisa minuciosa, de uma teatralidade espantosa” (PEIXOTO, 1979, p. 207).
No primeiro quadro da peça, ambientada em Chicago, temos já a
maquinação da manobra político-econômica tecida pelos líderes do cartel da
couve-flor, cuja repercussão acabará por desencadear todo o plano de
ascensão de Arturo Ui. Cinco personagens, homens de negócios, discutem
questões financeiras decorrentes da grande crise, e, desse diálogo, repleto de
frases feitas e ironias, sairá o plano de corrupção e cooptação de Dogsborough
– político influente e “honesto” – a favor das docas. Cabe ressaltar que
Dogsborough era financiado pelo cartel de verduras: “Há dezenove anos ele
recolhe as nossas contribuições para o fundo eleitoral. Ou seriam vinte?” (p.
131). Dessa forma, as suas decisões políticas passarão a ser subsidiadas por
interesses econômicos.
Traído, todavia, por ter aceitado a negociata proposta pelos líderes do
cartel de couve-flor, envolvendo ações de uma companhia de navegação em
troca de favorecimento de verbas da prefeitura para o cartel, Dogsborough
tenta, a qualquer custo, evitar que tal negociata venha a público, manchando
uma reputação construída ao longo de seus oitenta anos. Para isso, o velho
passa a aceitar a proteção de Arturo Ui – gângster decadente que nesse
momento estava à espreita –, no entanto passa a servir a este, Ui, como bode
expiatório. Dogsborough, devido à esfera política em que atua e à sua enorme
influência na câmara e nas instituições estatais, ajuda a promover – por meios
ilícitos, mentiras e omissões –, a ascensão do futuro grande ditador.
106
Não só Dogsborough, mas também o cartel estabelecerão aliança com
Arturo Ui e sua gang. A partir disso, como deuses ditadores do destino da
coletividade, esses gângsteres, com suas “pistolas Thompson”, passarão a
subjugar os comerciantes de verduras, pequenos quitandeiros, inicialmente de
Chicago e, após, de Cícero, coagindo-os – pela demonstração mesmo de que
estão em perigo, ainda que sob a mira das próprias armas desses gângsteres –
à aceitação de seus favores e serviços de “proteção”. Vale dizer que o
paternalismo estatal é próprio do regime fascista – paternalismo sob extrema
vigilância, é claro, o que gera a total dependência e o imobilismo. Assim Brecht
expõe a ideologia dos movimentos nazi-fascistas em Arturo Ui, sem se
esquecer, contudo, de atrelar a ela os interesses econômicos que a alicerçaram
e motivaram à ação.
8.1 A TEATRALIDADE DO REAL
Chicago é a grande e verdadeira cidade americana, produtiva,
violenta, tough. Aqui as classes se confrontam como exércitos
inimigos, o wealthy people na faixa de edifícios ricos à beira do
estupendo lago, e logo em frente o imenso inferno dos bairros
pobres. Sente-se que aqui o sangue encharcou as calçadas, o sangue
dos mártires de Haymarket (os anarquistas alemães aos quais é
dedicado um velho e belíssimo livro ilustrado, obra do chefe da polícia
de então), sangue dos acidentes no trabalho com que se construiu a
indústria de Chicago, sangue dos gângsteres. [...] Gostaria de ficar
mais tempo em Chicago, que merece ser entendida em sua feiúra e
beleza, mas o frio lá é terrível, minha amiga local é banal e
deselegante (portanto perfeita para Chicago), e eu parto num vôo
para a Califórnia”.
Ítalo Calvino (2003, p. 9)
Espaço e personagens são alegorias de seres históricos contemporâneos a
Brecht. E estão aqui, presentes na parábola, como objetos, para serem
analisados; para isso, tais personagens são trazidas para o plano do humano, e
nesse plano são rebaixadas para a condição de anti-heróis, heróis farsescos;
não há qualquer possibilidade de idealizações ou conflitos; estas personagens
107
são menores que as contradições às quais são submetidas. Como analisa
Pallottini em seu trabalho sobre a construção da personagem no teatro:
À noção de conflito Brecht opõe a noção de contradição. O conflito,
sob este ponto de vista, seria uma contraposição de sentimentos,
vontades, objetivos dos personagens. Cada pólo de um conflito nasce
de um personagem ou grupo de personagens – pelo menos na maior
parte das vezes. A contradição é maior do que isso; ela está acima
dos personagens, que são o tempo todo submetidos a ela. No
conflito, podem-se opor pólos quaisquer: duas famílias inimigas, dois
homens que amam a mesma mulher, dois inimigos que pretendem o
mesmo poder. Na contradição os dois pólos estão como que
ligados
,
um supõe o outro, não pode existir sem o outro; não podem existir
escravos sem senhores, patrões sem empregados, pobres sem ricos,
e vice-versa. (PALLOTTINI, 1989, p. 112).
Como uma história alegórica para cada elemento da instância narrativa,
podemos apontar um referente do mundo objetivo. Assim Chicago é a
Alemanha dos anos trinta – contudo a peça, conforme Brecht (apud Peixoto,
1979), “não pretende traçar um quadro de conjunto da situação histórica dos
anos trinta. Falta o proletariado, e não era possível conceder-lhe um lugar
maior, pois nesta estrutura todo elemento a mais seria um excesso [...] e
falharia em seu objetivo”. A cidade de Cícero é a Áustria – anexada em 1936 e
dominada por Hitler em 1938 –; Dogsborough é o presidente Hindenburg, que,
por sua reputação e poder, é usado como bode expiatório às causas de Hitler;
em 1921 Hindenburg era um reverenciado Marechal-de-campo; em 1932 aplica
um golpe de Estado contra o governo social democrata da Prússia e demite o
governo Braun, sob o pretexto de que “a ordem estava ameaçada”; os homens-
tenentes do gângster Arturo Ui são os homens de Hitler: Giri é Göring, criador
da Polícia Secreta do Estado (
Gestapo
), com funções repressivas e preventivas;
Givola é Goebbels, criador da Câmara Cultural do Reich, quando intelectuais e
artistas perdem a liberdade de expressão e de organização e começam a ser
perseguidos, foi também o chefe do Ministério da Propaganda; e Ernesto Roma
é Ernst Röhm, comandante das S.A, massacrado juntamente com suas
lideranças nazistas, em 1934, por ordem de Hitler, com o objetivo de moralizar
a própria casa. O chefe do monopólio de legumes de Cícero (Áustria),
assassinado pela gang de Ui, Dullfeet, é Dollfuss, primeiro-ministro austríaco,
108
cujo assassinato, em 1934, é patrocinado pelos nazistas com a intenção –
frustrada nesse momento – de tomarem o poder em Viena.
No testamento de Dogsborough, forjado por Givola, aparecem as
nomeações da gang de Ui/Hitler, conforme o que colocamos acima, que
acontecerão de fato na Alemanha após as eleições de 1932, quando o Partido
nazista consegue 196 cadeiras no parlamento – vitória devida à propaganda e à
persuasão com suas intimidações e ameaças. Em 1933, Hitler é nomeado, pelo
presidente Hindenburg/Dogsborough, chanceler e, com a morte deste, em
1934, o líder nazista toma o seu lugar:
10
No Hotel Mammoth. Suíte de Ui. Ele está deitado em uma poltrona
funda, olhando fixamente para o nada. Givola está escrevendo algo,
enquanto dois guarda-costas, olhando por cima de seus ombros, riem.
GIVOLA –
Assim eu, Dogsborough, deixo como herança para o bom e esforçado
Givola o meu boteco; para o corajoso, só que um pouco esquentado
Giri, a minha casa de campo, e ao honesto Roma, a guarda de meu
filho [vale lembrar que Ernest Röhm/Roma era homossexual e foi
massacrado pelos próprios nazistas por suas posições, excessos e
bestialidades; vale lembrar também que, em nome da moralização, os
homossexuais foram perseguidos pelo regime e eram castrados nos
campos de concentração]. Peço a vocês que nomeiem o Giri para juiz
e o Roma para chefe da polícia; já o meu querido Givola, para
defensor dos pobres. Eu recomendo, de coração, Arturo Ui para o
meu próprio posto. Ele é digno dele [...].
(p. 181).
109
sempre buscando o modelo da vida real para cada figura. Isso era
especialmente difícil. (BRECHT, 2002, p. 175).
Se formos buscar a trajetória hitleriana e a astúcia com que o líder nazista
a empreendeu, encontraremos semelhanças espantosas entre os dois
personagens, chefes de gangs de “gângsteres” nazistas. Como observa Adorno,
para além das críticas que faz a essa peça – críticas essas que foram
recentemente contra-argumentadas por Iná Camargo Costa – o grupo que
maquinou a tomada do poder na Alemanha era certamente uma gang, e ele
pontua: “a comédia de Brecht sobre a resistível ascensão do grande ditador
Arturo Ui expõe a nulidade subjetiva e a pretensão de um líder fascista sob uma
luz dura e precisa” (apud COSTA, 1998, p. 229). Costa refuta, no entanto, não
só o argumento de Adorno em torno do tratamento dado por Brecht ao tema
do nazismo, como também refuta a crítica do filósofo quanto à reconstrução do
nexo social e econômico em que age o ditador na peça, pois, conforme o
filósofo, “ao invés de uma conspiração dos ricos e poderosos, temos uma
organização trivial de gângsteres, o truste da couve. [...] O verdadeiro horror
do fascismo é exorcizado [...]. se ele for suprimido e uns poucos exploradores
de quitandeiros são ridicularizados, ali onde estão posições-chave do poder
econômico, o ataque fracassa [...] reduz o efeito político”. A essas objeções de
Adorno, Costa responde com agudeza crítica, apoiada no nexo da peça:
O que mais espanta no argumento de Adorno contra
Arturo Ui
é sua
análise ter passado por cima do fato de que Brecht deixou
absolutamente claras as posições-chave do poder econômico,
mostrando como a vegetação nazista floresceu em solo muito bem
adubado por relações político-econômicas, tanto as evidentes quanto
as obscuras e, a partir da rede tramada entre esses interesses e os da
gang nazista, estabeleceu o terreno
político
no qual cabe ridicularizar
uma figura como a de Hitler/Arturo Ui, inclusive expondo
metateatralmente o seu lado canastrão. E, como bonificação extra,
localizando novamente sua cena em Chicago, aproveitou para propor
uma analogia muito procedente entre as gangs do nazismo e as
organizações mafiosas dos Estados Unidos (a menos que não se
reconheça o papel parafascista por elas desempenhado no combate
às organizações dos trabalhadores americanos). (COSTA, 1998, p.
232).
Essa “rede tramada” que sustenta o terreno político “muito bem adubado
por relações político-econômicas”, no qual ascende Arturo Ui e floresce a
110
“vegetação nazista”, conforme afirmou Costa, se explicita desde o primeiro
quadro, quando os líderes do cartel da couve-flor tramam a corrupção e
cooptação de Dogsboroug e, em seguida, estabelecem aliança com Arturo Ui e
sua gang financiando sua campanha e dando guarida a suas ações.
UI –
[...] a primeira coisa necessária é a união. Em segundo lugar, o
sacrifício. O quê? – ouço vocês dizerem – temos que fazer sacrifício?
Pagar pela proteção, dar trinta por cento pela segurança? Não, isso
nós não queremos. Para isso, o nosso dinheiro é muito caro! Ah, se a
proteção fosse grátis, então sim. Pois é, meus caros quitandeiros, as
coisas não são tão simples. Grátis só mesmo a morte. Tudo o mais
tem preço. E assim, também têm preço a proteção, a tranqüilidade, a
segurança e a paz! É assim que é a vida. E já que é assim, e já que
isso nunca vai mudar, eu tomei a decisão, junto com alguns homens
que vocês estão vendo aqui – e outros que estão lá fora – de que
vamos emprestar nossa proteção a vocês.
Givola e Roma batem palmas.
E para que vocês possam ver que tudo deverá ser feito em bases
comerciais, está aqui o Sr. Clark, do atacado Clark, que todos vocês
conhecem.
Roma conduz Clark para a frente. Alguns quitandeiros batem palmas.
GIVOLA –
Sr. Clark, em nome da assembléia, dou-lhe as boas-vindas. Que o
cartel da couve-flor esteja se empenhando pelas idéias de Arturo Ui
merece todo o meu louvor. Muito obrigado, Sr. Clark.
CLARK –
Senhoras e senhores, nós do cartel da couve-flor, estamos vendo,
alarmados, como é difícil para os senhores vender os seus produtos.
“São muito caros” – é o que ouço dizer. Mas por que são muito caros?
Porque os nossos empacotadores, carregadores e motoristas, atiçados
por maus elementos, exigem cada vez mais. Arrumar esta situação é
o que desejam o Sr. Ui e seus amigos.
(p. 166, 167).
São, assim, as motivações econômicas que sustentam as ações políticas,
culminando no projeto expansionista do grande ditador:
UI –
Aceito com orgulho o agradecimento de vocês. Quando, há quinze
anos, como um simples filho de Bronx, desempregado, saí para
ganhar Chicago, seguindo o chamado do destino, acompanhado de
somente sete homens fortes, era meu firme desejo trazer paz para o
comércio de verduras. Naquela época não éramos mais que um
111
pequeno grupo, cujo simples porém fanático desejo era justamente
essa paz! Agora são muitos. E a paz no comércio de couve-flor de
Chicago já não é mais um sonho e sim crua realidade. E para garantir
essa paz, eu dei ordens que se comprem hoje mesmo novas
metralhadoras Thompson e carros-tanque e naturalmente tudo o mais
que se possa conseguir em pistolas Browning, cassetetes, etc., pois
clamam por proteção não só Cícero e Chicago, mas também outras
cidades: Washington e Milwaukee! Detroit! Toledo! Pittsburg!
Cincinnati!. Onde também há comércio de couve-flor. Flint! Boston!
Filadélfia! Baltimore! St. Louis! Little Rock! Minneapolis! Colombus!
Charleston! E Nova York! Todas reclamam proteção! E nenhum “Uuh!”
e nenhum “Isto não se faz!” vai impedir o Ui!
(p. 213).
Ainda sobre a analogia entre os dois ditadores e suas intervenções no
processo político, a título de exemplo, podemos citar o episódio do “Putsch da
Cervejaria” que nos dá bem a dimensão desse lado “canastrão” do líder nazista,
Hitler, ao qual se referiu Costa. Esse episódio tem como personagens Kahr, um
monarquista da direita e ex-primeiro ministro da Baviera, nomeado, a 26 de
setembro de 1923, pelo gabinete bávaro, Comissário Estadual com poderes
ditatoriais, Hitler e seus “lugares-tenentes” Goering, Hess e Ulrich Graf. A
Baviera estava em crise com a República alemã e anunciava seu próprio estado
de emergência, contudo era contrária às idéias de Hitler, que proclamavam a
tomada de Berlim e a derrubada da República de Weimar: “não nos
submeteremos mais a um Estado que se baseia na idéia enganadora de que
representa uma maioria. Queremos a ditadura...”, proclamava Hitler.
Desconfiado de que Kahr pudesse proclamar a independência da Baviera e a
restauração do trono bávaro para os Wittelsbachs, Hitler intercede, invadindo,
juntamente com seus homens (todos armados) a cervejaria em que Kahr
discursava, conforme narra o historiador Shirer:
Cerca de oito e quarenta e cinco da noite de oito de novembro de
1923, no momento em que Kahr falava havia meia hora a uns três mil
sedentos cidadãos, sentados a toscas mesas e bebendo cerveja em
canecas de pedra, à moda bávara, as tropas S.A cercaram a grande
cervejaria e Hitler irrompeu no salão. Enquanto alguns de seus
homens assentavam uma metralhadora na entrada, Hitler saltou sobre
uma mesa e, para chamar a atenção, disparou seu revólver para o
teto. Kahr interrompeu seu discurso e o auditório voltou-se para ver
qual era a causa do distúrbio. Com a ajuda de Hess e de Ulrich Graf, o
antigo açougueiro, lutador amador, desordeiro, e agora o guarda-
pessoal do líder, Hitler, dirigiu-se para o palanque. Um major da
112
polícia tentou detê-lo, mas Hitler, com a pistola apontada, empurrou-
o. De acordo com uma testemunha ocular, Kahr ficara naquele
momento ‘pálido e confuso’, recuando no palanque e deixando que
Hitler ocupasse o seu lugar. (SHIRER, 1964, p. 115).
Também é digna de nota, por nos dar a dimensão do caráter
predeterminado de Hitler, que tinha a convicção de que “nada poderia deter
sua ascensão”, a resposta dada por ele, quando acusado de ditador pelo
tribunal, após o episódio na Bavária –; o que nos faz voltar às colocações de
Adorno sobre a peça expor “a nulidade subjetiva e a pretensão de um líder
fascista sob uma luz dura e precisa” e concluir que Brecht consegue reconstruir
esse ditador em Arturo Ui na sua exata medida. Como nos conta ainda Shirer
(1964), Hitler, em sua resposta, não nega ser um ditador, pois o destino o
decretara:
O homem nascido para ditador não é forçado a isso. Ele o deseja. Não
se deixa conduzir, mas conduz a si mesmo. Não há nenhuma
imodéstia nisso. Haverá imodéstia no fato de um operário procurar
dedicar-se a um trabalho pesado? Diríamos presunçoso um homem
que, com a tenacidade de um pensador, atravessasse noites a estudar
até que desse ao mundo uma invenção? O homem que se sente
solicitado a governar um povo não tem o direito de dizer: ‘Se me
querem, ou me intimidam, cooperarei’. Não! É seu dever antecipar-se.
(Hitler apud SHIRER, 1964, p. 128).
O episódio da cervejaria e os outros subseqüentes terminam em
verdadeiro fiasco para Hitler e seu grupo, chegando ao ponto de acabarem
presos por traição. Hitler é, então, condenado a cinco anos de prisão por um
crime cuja pena seria a prisão perpétua: tentar alterar pela força a Constituição
do Reich Alemão. Aconteceu que o Ministro da Justiça da Baviera, Franz
Guertner, era um velho amigo e protetor do líder nazista e, assim, diligenciara
para que a justiça fosse complacente e tolerante. Dessa forma, proferindo sua
própria defesa, Hitler consegue inverter a situação e chamar a atenção da
imprensa sobre sua pessoa; astutamente, passa da situação de réu, criminoso,
para a de vítima do regime vigente e herói revolucionário: “Não pode haver alta
traição contra os traidores de 1918” – proclama em uma de suas contra-
113
argumentações ao promotor, numa fala que durou quatro horas e impressionou
o povo alemão.
O mito começa aí a se construir. Sabemos que Hitler era um exímio
orador, dominava a arte geradora dos efeitos persuasivos do discurso e
manejava os seus mecanismos para atingir seus fins sábia e ostensivamente;
alertava, por exemplo, sobre a ineficácia da propaganda que fosse vista como
tal, ela deixaria de funcionar desde o momento em que sua presença se
tornasse visível. Também na peça, Brecht expõe tal habilidade a uma sátira
mordaz, à carnavalização paródica.
Conforme coloca o historiador Lenharo (1986), tudo interessa no jogo da
propaganda nazista: mentiras, calúnias; para mentir, que seja grande a
mentira, pois, assim sendo, “nem passará pela cabeça das pessoas ser possível
arquitetar uma tão profunda falsificação da verdade”. A partir dessas
considerações, os nazistas darão à propaganda um tratamento de longo
alcance, do qual nem a produção artística escapará. Parece que é isso mesmo
que faz o nosso Apresentador no início da peça, só que faz uma propaganda às
avessas das personagens ao anunciá-las – ou será que ele está tomando
partido, numa postura altamente irônica, daquele gosto do grande público pelos
“heróis sanguinários”?
Como Hitler, Arturo Ui, no quadro 6, tomará aulas com um ator clássico
para impostar a voz e dar força às suas palavras em seus discursos, trabalhar a
postura e melhorar a aparência pessoal; seu fito é atingir as pessoas simples,
impressioná-las para convencê-las de que ele é aquele que deverá conduzi-las.
Para Ui, “não é importante o que um ou outro sabido pensa. O que importa é
como a pessoa simples imagina que deve ser o seu senhor. E basta” (p. 163).
Novamente, na fala de Ui, se explicita a questão do aprimoramento da imagem,
da propaganda ideológica – para Hitler, como comenta ainda Lenharo (1986), a
massa seria como as mulheres, cuja sensibilidade não captaria os argumentos
de natureza abstrata, mas seria tocada por uma “vaga e sentimental nostalgia
por algo forte que as complete”.
114
8.2 A TRAMA DAS REPRESENTAÇÕES NO UNIVERSO DA REPRESENTAÇÃO
A
forma épica
preconizada por Brecht será em primeiro lugar uma
outra maneira de mostrar o real, de esfacelar as aparências. Ela
mobiliza o senso crítico dos espectadores, incitando-os a descobrir por
si mesmos uma verdade mais complexa do que aquela que aderiam
ao entrar no teatro.
Jean-Jacques Roubine (2003, p. 152)
Em A resistível ascensão de Arturo Ui não temos apenas a demolição do
herói trágico, na figura de Ricardo III, histórico e lendário – misto de Diabo e
Vício, conforme Benjamim (1984, p. 251) –, a quem Ui é comparado, mas a
demolição, pela ironia e sarcasmo, de um titã, um gigante às avessas: Hitler. A
ironia instala-se já pelo contexto em que Ui surge em cena na peça. Um
apresentador/narrador, dirigindo-se ao público, como em um espetáculo
circense, sob um clima de balbúrdia, apresenta as personagens que passam a
desfilar frente à platéia, num típico procedimento épico – o espectador sabe
tratar-se de personagens que foram chamadas ali para ilustrar suas histórias, já
acontecidas; o farão então pela segunda vez, sendo, então, história e
personagens nela envolvidos, uma farsa, pois assumem agora o estatuto de
ficção mesmo:
APRESENTADOR –
[...]
Vocês verão, na apresentação dos artistas,
Os heróis mais famosos do nosso mundo do crime.
Vocês os verão mortos e vivos,
Transitórios e constantes;
Nascidos e criados, como,
Por exemplo, o velho, bom e honesto Dogsborough!
Diante do pano surge o velho Dogsborough
O coração preto, a cabeleira branca
Faça a sua reverência, seu velho depravado!
[...]
Diante do pano surge Givola.
O florista Givola. Com sua lábia melíflua
Ele vende gato por lebre.
Dizem que a mentira tem pernas curtas!
Então observem as dele!
Givola se afasta, mancando.
E agora, Emanuele Giri, o superpalhaço!
115
Apareça logo, deixe que te vejam!
Diante do pano aparece Giri, cumprimentando todos com um aceno
de mão.
Um dos maiores assassinos de todos os tempos!
Suma daqui!
Giri se afasta, zangado.
E finalmente, a nossa maior atração!
O gângster de todos os gângsteres!
O famigerado
Arturo Ui! Com o qual o céu nos castigou,
Por todos os nossos crimes e pecados,
Atos de violência, tolices e fraquezas!
Diante do pano surge Ui, que atravessa a rampa de um lado para
outro
.
A quem ele não faz lembrar Ricardo III?
(p. 126).
O apresentador, ao anunciar as personagens, vai emitindo juízos de valor
sobre elas, julga-as conforme os atos que cometeram, mas de maneira a
ridicularizá-las, a rebaixá-las, expondo-lhes as falhas, cacoetes, defeitos morais
e físicos.
É importante anotarmos a mistura de tons no discurso do apresentador,
o que gera a quebra do “grande estilo” pretendido e anunciado por ele. Em sua
fala solene, repleta de exclamações, há a mistura de provérbios e frases da
sabedoria popular, gerando a inadequação – e esse procedimento perpassa
toda a peça. Quando os líderes do cartel da couve-flor discutem as
conseqüências da grande crise não apenas para os seus negócios mas também,
por extensão, para o país e o mundo – do qual representam uma elite
econômica nesse momento ameaçada não só pela própria fraqueza do
capitalismo, mas por movimentos sociais emergentes –, seu discurso está
impregnado de chavões e ironias. As frases feitas proferidas por esses “homens
de negócios” funcionam como contraponto ao status das personagens,
contraponto também entre ação e discurso, evidenciando, por meio da ironia
contida no jogo de palavras e idéias, a astúcia dessa elite na construção –
consciente, ideológica – desse discurso. Assim, essa estratégia brechtiana vem
explicitar a visão de mundo dessa elite e a forma como esta manipula os
interesses políticos de uma maioria subordinando-os aos interesses econômicos
– aos seus interesses econômicos. O efeito gerado é o do distanciamento
116
quando a contradição se instala, contaminando a cena e tornando-a
incongruente.
Essa incongruência já está mesmo no título da peça quando, ao invés de
resistível ascensão, o coerente seria irresistível ascensão; afinal, ninguém e
nada pode “impedir o Ui!”, a sua ascensão, como proclama o próprio
protagonista ao final da peça. Para Brecht, como já dissemos, os títulos devem
expressar não somente uma qualidade social, mas também devem conter uma
qualidade crítica e anunciar uma contradição. Como a realidade só pode ser
apreendida a partir de sua natureza dialética, do caráter inerentemente
contraditório dos acontecimentos e dos homens neles envolvidos, Brecht quer
que a dialética se concretize no palco, que ela se materialize afinal “os mistérios
do mundo não são solucionados, são demonstrados”. Daí o papel fundamental
do efeito de distanciamento, o qual possibilita essa demonstração ao
representar/expor a dialética em cena; como diz o próprio Brecht (1967, p.
138): “Distanciar é, pois, historicizar”, é ver em termos históricos, “é
representar os fatos e os personagens como fatos e personagens históricos,
isto é, efêmeros”. Brecht, quando diz “efêmeros”, aponta para a historicidade e
seu movimento, ou seja, os fatos se concretizam pelas relações e contratos
estabelecidos entre os homens, como já apontamos nas análises anteriores,
estes são os sujeitos que constroem a história e podem alterá-la. Dessa forma,
Hitler é efêmero, “resistível”, o nazismo é efêmero, “resistível”, poderiam ter
sido negados pela sociedade em que “germinaram”. Assim se explica o título A
resistível ascensão. Também nesse sentido, Brecht (2002) comenta, em seu
Diário de trabalho, sobre o uso dos iambos na peça:
2. 4. 41
[...] Meu trabalho é retocar os iambos de
A resistível ascensão de
Arturo Ui
. Meu tratamento do iambo tinha sido muito negligente [...]
em parte com a alegação de que a versificação desleixada era
apropriada a essas personalidades [...] (p. 176).
12. 4. 41
À parte o fato de o verso branco fazer um casamento infeliz com a
língua alemã [...] para mim ele também tem algo de intrinsecamente
anacrônico, seu feudalismo fatal. Retirem os elementos
compartimentados, arrevesados, formais, da expressão cortesã,
oficial, e logo ele se torna vazio e ‘vulgar’, um novo-rico. No entanto,
embora o efeito principal, quando faço os gângsteres e vendedores de
117
couve-flor se expressarem em iambos, seja a paródia, já que tudo que
resulta disso é a inadequação de seus esforços por parecerem
importantes, o que se consegue, quando o verso branco é maltratado,
mutilado, esticado e estropiado, é um novo material formal para um
verso moderno, com ritmos regulares, que propicia todos os tipos de
possibilidades. (BRECHT, 2002, p. 179).
O caso do título e o dos iambos são também exemplos de como o teatro
dialético brechtiano historiciza a própria forma. Quando Brecht faz os
gangsteres e vendedores de couve-flor se expressarem em iambos, na
linguagem dos clássicos, a dissonância gerada por essa combinação de
elementos díspares distancia o espectador do mundo apresentado, revelando-o
como artefato, levando, então, o receptor a ver, re-ver, dialeticamente,
historicamente, a tecer as relações necessárias entre os elementos implicados
tempo, espaço, sociedade.
A peça, levando mesmo às últimas conseqüências o efeito de
distanciamento, principia antes da peça propriamente dita, lembrando a
estrutura do teatro de Calderón. Mas, numa inversão de O grande teatro do
mundo, aqui os homens/personagens são julgados logo no início, ainda no
prólogo da peça e não no final; e, semelhante àquele teatro, antes de ela
começar, os personagens recebem seus papéis e os acontecimentos/episódios
são anunciados pelo apresentador, não havendo, assim, em Arturo Ui,
com o
que o público se surpreender:
APRESENTADOR –
[...]
Desde os tempos das duas rosas
Não se viam matanças tão fulminantes e sangrentas!
Foi o desejo da direção,
Não temer custo nem taxas especiais,
Para apresentar tudo isso, em grande estilo.
Tudo, porém é estritamente verídico,
Pois o que vocês verão, hoje à noite, não tem nada de novo,
Não é inventado nem imaginado,
Não foi censurado nem arranjado para vocês:
O que mostramos aqui, todo o continente já sabe:
É a peça sobre o gângster que todos conhecem!
Vai aumentando o volume da música, somada ao som de uma
metralhadora. O apresentador se retira, apressadamente.
[...]
(p. 126).
118
Nessa peça de Brecht, os fatos, num procedimento reiterativo, são
triplamente apresentados: primeiro por meio de manchetes inscritas nas
cortinas, antes de estas se abrirem; depois anunciados pelo apresentador; e,
por último, representados pelas personagens em cena:
Prólogo
Diante da cortina, surge o Apresentador. Sobre o pano estão inscritas
grandes manchetes: “Novidades no escândalo do subsídio para as
docas!” – “Acirrada disputa pelo testamento e pela confissão do velho
Dogsborough” – “Grandes revelações no processo do incêndio do
armazém” – “O assassinato do gângster Ernesto Roma pelos seus
amigos” – “Extorsão e assassinato de Ignatius Dullfft” – “A conquista
da cidade de Cícero pelos gângsteres”. Por detrás do pano, ouve-se
música de fanfarra.
(p. 125).
Todos esses acontecimentos são repassados pelo apresentador; são
postos em “revista”, em re-visão – vale dizer que a estrutura de crônica satírica
dessa parábola lembra a do teatro de revista, com a apresentação prévia das
personagens e toda a sua carpintaria: o levantar e o baixar das cortinas e
telões ao início e ao final de cada cena, as músicas, enfim, o próprio tratamento
do tema que tem no ridículo a sua maria prima. No prólogo de Arturo Ui, o
apresentador entra em cena e cumprimenta o público em grande estilo; estilo
esse que encontra seu contraponto na recepção ou no comportamento das
pessoas/personagens da platéia, das quais ele precisará chamar a atenção pelo
mau comportamento:
APRESENTADOR –
Respeitável público. Hoje trazemos –
Silêncio lá atrás pessoal!
E favor tirar o chapéu, jovem senhora! –
O grande e histórico
show
de gangsteres!
Contando, pela primeira vez,
A verdade sobre o grande escândalo do subsídio para as docas.
Além disso, levamos ao seu conhecimento,
O testamento e a confissão de Dogsborough.
A ascensão de Arturo Ui durante a grande crise!
Novas surpresas no famigerado processo do incêndio do armazém!
[...] (p. 126).
119
Além do prólogo, essa parábola contém o epílogo em que novamente o
ator se dirige ao público, na função de narrador,comentando a história que
foi demonstrada, mas, agora, por meio da enunciação da sua moral:
EPÍLOGO
Vocês, porém, aprendam como se vê em vez de olhar fixo, e como
agir em vez de falar e falar. Uma coisa dessas chegou quase a
governar o mundo! Os povos conseguiram dominá-lo, porém, que
ninguém saia por aí triunfando precipitadamente – é fértil ainda o colo
que o criou!
(p. 213).
Como nas outras parábolas teatrais já analisadas, também aqui se
configuram, em torno da narrativa, da história apresentada, os discursos
interpretativo e pragmático concretamente formulados em forma de prólogo e
epílogo. Contudo, como já observamos, as marcas interpretativas se inter-
relacionam com outros mecanismos presentes na elaboração discursiva,
manifestam-se em estratégias discursivas utilizadas por Brecht que funcionam
como recursos de distanciamento, como comentários à história, induzindo a
uma mudança de percepção sobre os fatos. Como exemplo, podemos citar o
quadro 9, no qual se explicita também um discurso pragmático, quando surge a
mulher coberta de sangue e, dirigindo-se ao público, apela para a sua tomada
de posição:
9
Cícero. Saindo de um caminhão destroçado por tiros, uma mulher,
coberta de sangue, cambaleia para a frente.
MULHER
Socorro! Vocês aí! Não fujam! Vocês têm que testemunhar! O meu
marido lá no carro já se foi! Ajudem! Ajudem! O meu braço também
se foi... E o caminhão também! Eu preciso de um pano para o braço...
Eles nos abatem como se estivessem tirando moscas do seu copo de
cerveja! Oh, Deus! Por favor, ajudem! Não tem ninguém aqui... O
meu marido! Seus assassinos! Mas eu sei quem é! É o Ui![...] E todos
o toleram! E nós sucumbimos! Vocês aí! É o Ui! O Ui! (Bem perto
120
espoca uma metralhadora, e a mulher cai no chão). Ui e o resto!
Onde vocês estão? Ajudem! Ninguém vai deter essa peste?
(p. 180).
Temos aí o quadro grotesco da mutilação, do dilaceramento da guerra, e
das bestialidades nazistas praticadas contra os povos que estivessem à frente
ou no caminho de seus objetivos de expansão e “esterilização” do terreno, onde
“brotaria” uma raça pura e forte: a raça ariana. Daí Brecht usar a couve-flor
que “está apodrecendo” nos armazéns. Ela funciona como uma metáfora ou, se
é que se pode chamar assim, uma metáfora às avessas, remete à podridão do
espaço onde floresceu o nazismo.
3
[...]
Roma –
A polícia não vai atirar a favor das quitandas. Só atira a favor dos
bancos. Olha aqui, Arturo, começamos pela rua Onze: janelas
quebradas, gasolina na couve-flor, os móveis em pedaços para servir
de lenha! E aí avançamos até a rua Sete. Um ou dois dias depois,
Manuele Giri aparece nos armazéns, uma flor na lapela, e garante
proteção. Dez por cento do faturamento.
Ui –
Não. Antes, quem precisa de proteção sou eu. Tenho que me
proteger da polícia e dos juízes antes de poder dar proteção aos
outros. Isso só funciona partindo de cima.
Sombrio
– Se eu não tiver
o Juiz no bolso, tendo ele uma coisa minha no bolso, fico totalmente
sem direitos. Se eu assalto um banco, qualquer guardinha
simplesmente me mata!
Roma –
Então só nos reta o plano de Givola. É ele quem tem o faro pra
sujeira. E se ele afirma que o cartel da couve-flor está com cheiro
“familiar de podre”, tem de ter alguma verdade nisso. [...]
(p. 139, 140).
É em torno desse vegetal que Brecht constrói a trama da peça, trama
que revela os interesses e vínculos, contratos, estabelecidos pelo poder
econômico e político. O quadro 9 funciona como um contraponto na estrutura
da peça e no desenvolvimento da ação. Essa cena alegórica da mulher coberta
de sangue produz, ao quebrar a seqüência da ação, dando voz ao outro, ao
recalcado pela história, como denomina Benjamin, o distanciamento épico na
dialética entre representante e representado, narrativa alegórica e situação
121
presente. O outro – como história subjacente, história atual – é apontado pela
mulher coberta de sangue; o outro implicado no resultado dos atos brutais,
recalcado na e pela fala do terror, carrega a cena e passa a significar.
A peça se desenvolve em quinze quadros apenas numerados em
algarismos arábicos; alguns estão subdivididos, e esta indicação é feita por
meio das letras do alfabeto. Cada quadro se encerra por descidas de cortinas,
músicas, luzes que se apagam. O espaço é outro de quadro a quadro, conforme
a seguinte montagem:
1. Centro da cidade/em frente à bolsa de mercadorias
2. Quarto dos fundos do restaurante
3. Loja de apostas
4. Casa de campo de Dogsborough
5. Prefeitura
6. Suíte de Ui no Hotel Mammoth
7. Escritório do Cartel
8. Tribunal
9. Cícero/casa de Dogsborough
10. Suíte de Ui no Hotel Mammoth
11. Garagem
12. Floricultura de Givola
13. Atrás de um féretro
14. Suíte de Ui no Hotel Mammoth
15. Centro da cidade
A ação, como já o exemplificamos por meio do quadro 9, é descontínua,
salta de um lugar a outro, assim as partes são autônomas e não mais
interdependentes, o que gera a quebra da identificação com o mundo do palco.
Ao final dos quadros, com exceção de dois, aparecem letreiros, painéis
com informações sobre fatos recentes da história alemã. Na tradução feita pela
editora Paz e Terra (BRECHT, 1992), a qual seguimos, não há nenhum texto
compondo estes painéis – ficará então a cargo do encenador criá-los, ou até
122
mesmo atualizá-los. Em um comentário de Fernando Peixoto (1979) a essa
peça, o crítico apresenta a tradução de alguns deles, como por exemplo:
Em fevereiro de 1933 o Reichstag foi destruído por um incêndio, Hitler
acusou seus adversários de serem os responsáveis pelo fogo e deu o
sinal para a noite dos longos punhais.
Na peça, esse letreiro aparece no episódio do julgamento de Fisch,
estrangeiro usado como bode expiatório da gang de Ui. Acusado de ter
incendiado um armazém, é então condenado, por um júri corrompido e
intimidado, a quinze anos de prisão:
8
O julgamento do incêndio do armazém. Imprensa. Juiz. Promotor.
Advogado de Defesa. O Jovem Dogsborough. Giri. Givola. Dockdaisy.
Guarda-costas. Quitandeiros e o acusado Fish.
a
Emanuele Giri está em pé na frente do banco das testemunhas,
apontando para o acusado Fish, que está sentado, totalmente apático.
Giri
gritando
Este é o homem que com mãos perversas botou fogo no armazém!
Segurava a lata de gasolina apertada contra o seu corpo no momento
em que o flagrei. Fique em pé quando falo com você! Levante-se!
Obrigam-no a se erguer. Ele fica em pé, cambaleante.
Juiz –
Acusado, controle-se. O senhor está no tribunal. O senhor está sendo
acusado de provocar um incêndio criminoso. Reflita sobre o que está
em jogo para o senhor!
Fish
balbucia
Ârlârlârl.
Juiz –
Onde o senhor conseguiu a lata de gasolina?
Fish –
Ârlârl.
A um aceno do Juiz, um médico extremamente elegante e de aspecto
austero curva-se sobre Fish e troca um olhar com Giri.
Médico –
Está simulando.
Advogado de Defesa –
A defesa exige a opinião de outros médicos.
123
Juiz
sorrindo
Indeferido.
Advogado de Defesa –
Sr. Giri, como se deu o fato de o senhor estar presente na hora e no
lugar do início do incêndio no armazém de Hook, que reduziu a cinzas
vinte e duas casas?
Giri –
Estava dando um passeio para ajudar a digestão.
Alguns guarda-costas riem. Giri também cai na risada.
[...]
Giri –
[...] Estive o dia inteiro a passeio em Cícero, onde encontrei cinqüenta
e duas pessoas que podem atestar que me viram.
Os guarda-costas riem.
Advogado de Defesa –
O senhor não acabou de afirmar que o senhor fazia um passeio
digestivo em Chicago, na região das docas?
Giri –
O senhor tem algo contra eu almoçar em Cícero e digerir em Chicago?
Grandes e longas gargalhadas, inclusive do Juiz. Escurece. Um órgão
toca a marcha fúnebre de Chopin como se fosse música de dança.
(p. 171 - 173).
O réu aparece drogado para que nada saia do controle da gang. Todas
as cenas do tribunal se encerram em escuridão com o órgão a tocar a marcha
fúnebre de Chopin em ritmo de dança.
d
Quando volta a claridade, Dockdaisy está no banco das testemunhas.
Dockdaisy
numa voz mecânica
Reconheço o acusado com certeza pela sua expressão de consciência
culpada e porque ele tem um metro e setenta de altura. Ouvi da
minha cunhada que ao meio-dia do dia em que o meu marido foi
baleado ao entrar na prefeitura ele foi visto em frente à prefeitura. Ele
estava com uma pistola automática marca Webster embaixo do braço
e tinha um ar suspeito.
Escurece. O órgão volta a tocar.
(p. 175).
A escuridão, ausência de luz e, portanto, de visão, funciona como
contraponto ao espaço da justiça, dialetizando mesmo a sua essência ética,
com seus valores de imparcialidade, racionalidade e equilíbrio. Institui-se a
124
inversão desses referentes: a escuridão, aliada à música – marcha fúnebre de
Chopin em ritmo de dança – instaura um espaço/contexto em essência
dionisíaco; fundado na irracionalidade, na desmedida e desregramento de toda
ordem. A inversão de valores se explicita na peça em vários níveis, não apenas
formais: após o reconhecimento e acusação do verdadeiro incendiário por
Hook, este passa de vítima a réu:
Quando volta a claridade, Hook está no banco dos réus. Ele está todo
quebrado, a bengala a seu lado e com faixas na cabeça e sobre os
olhos.
Promotor
O senhor pode dizer que está em condições de reconhecer alguém
clara e perfeitamente?
Hook –
Não.
(p. 174).
São muito interessantes as observações de Roubine (1998) sobre a
música no teatro brechtiano e sobre essa cena do tribunal especialmente; diz o
estudioso, em conformidade com o que já comentamos anteriormente, que
Brecht atribui à música algumas funções, como: interromper a continuidade da
ação; romper a unidade da imagem cênica; despsicologizar
o personagem
opondo-lhe uma contradição; destruir todos os efeitos do real eventualmente
induzidos pelo espetáculo. Mas, segundo Roubine, a música em Brecht é bem
composta, o dramaturgo “justapõe as referências mais diversificadas, sem
fundi-las” – e é dessa forma, a nosso ver, que se instaura um universo
dialógico. Ainda, conforme Roubine, comentando a música na peça
:
Em
A resistível ascensão de Arturo Ui
cada episódio do oitavo quadro
(o processo deturpado do incêndio dos depósitos [do Reichstag] é
pontuado por uma intervenção musical que Brecht descreve com as
seguintes palavras; “Um órgão toca a
Marcha fúnebre
de Chopin num
ritmo de dança”. Desse modo vemos encaixar-se uns nos outros os
conceitos de feira popular (realejo), religião (órgão de igreja), o culto
da grande música (Chopin), o luto – a Justiça e a Liberdade são
assassinadas – (a
Marcha Fúnebre
), a opereta, a festa, o teatro (o
ritmo da dança) – esse assassinato é uma vitória para alguns... O
125
caráter heterogêneo da música
épica
está portanto ligado à
multiplicidade das referências justapostas, mas também à relação que
ela mantém com um conjunto de ruídos, esses também, por sua vez,
significantes. (ROUBINE, 1998, p. 162).
Como podemos concluir, então, a música nesse quadro, assim como o
jogo claro/escuro da iluminação, carnavalizam o espaço cênico, carregam-no de
duplos destronantes, como diria Bakhtin, remetem ao outro – a outros
referentes –, a outras possibilidades de sentido; têm o papel de ironizar, de
comentar a situação demonstrada, fazendo com que ela seja “
re
-vista” de
forma crítica pelo público.
Aqui podemos retomar a idéia de Brecht explicitada no início dessa
análise: “os mistérios do mundo não são solucionados, são demonstrados”. É
sobre essa demonstração que recai a preocupação do dramaturgo, sobre como
evidenciar nas relações implicadas na produção teatral as relações de produção
históricas; contudo, como fazê-lo de tal forma que elas não fiquem evidentes.
Por isso Brecht realiza um aprofundado trabalho com a linguagem, construindo,
como denomina Roubine (1998, p. 67), um texto plural, como já afirmamos,
cuja heterogeneidade do material reforça as possibilidades significantes, e
assim força, através da dialética semiológica que introduz, o exercício do
pensamento.
Após a sentença aparece um outro letreiro que, segundo Fernando
Peixoto, contém as seguintes informações:
No grande processo dos incendiários do Reichstag, a Alta Corte de
Leipzig condenou à morte um operário desempregado, previamente
drogado. Os verdadeiros incendiários nunca foram incomodados.
Também Girard (1980, p. 33) comenta o uso das tabuletas, apontando a
que aparece no episódio 15, o da tomada do poder sobre os quitandeiros de
Cícero, por Ui e sua gang:
No dia 11 de março de 1938, Hitler entrou na Áustria. Eleições organizadas sob o terror
dos nazistas deram a Hitler 98% dos votos.
126
8.3 UM UNIVERSO POLIFÔNICO
Shakespeare criou alguns ótimos vilões que celebram ou se encantam
com sua própria vilania – Edmund em
Rei Lear
, Iago em
Otelo
, por
exemplo – mas nenhum tão lúcido e bem articulado quanto
Ricardo
III
, o primeiro personagem totalmente cínico da literatura mundial.
Ricardo se congratulando, deslumbrado, por ter conseguido seduzir a
viúva do homem que mandou matar com o corpo dele ainda quente,
é não apenas uma ode ao cinismo mas uma rapsódia ao poder e ao
sortilégio, e ao perigo, das palavras bem ditas.
Luís Fernando Veríssimo (2006, p. 20)
Na peça, as referências se estendem aos textos literários: assim, temos
como intertextos, além do Ricardo III de Shakespeare, o Fausto de Goethe. Na
cena em que o autor clássico dá aulas para Ui, entrega a este o discurso de
Marco Antonio junto ao caixão de César, contra Brutus, para Ui dramatizar.
Temos aí uma cena metateatral da mais alta ironia, pois que o discurso de
Antonio já é em si mesmo um exemplo da utilização astuciosa dessa ironia.
Conforme analisamos inicialmente, a parábola, em sua gênese, é uma
narrativa encaixada em um contexto discursivo maior, o do Novo Testamento,
em relação ao qual ela funciona como demonstração da Verdade essencial ali
contida. Ela é utilizada como afirmação da voz do locutor, do Mestre, Jesus, que
a utiliza como
exemplum
para afirmar a Palavra acabada, definitiva. Sua
elaboração, como narrativa alegórica, com suas estratégias de interpretação e
indução a uma prática, produz um efeito persuasivo altamente eficaz, cuja meta
é a conversão do receptor.
A transposição da parábola para o teatro, ou seja a introdução da
metanarrativa como um gênero com especificidades próprias em um outro
gênero promove o que Bakhtin denomina carnalização e assim o que resulta é
um gênero dialógico, ambivalente. Conforme afirma Barthes, a crítica não poda,
não suprime, ela acrescenta, cada frase, em Brecht, é devolvida com valor
contrário, porque é suplementada, a nosso ver, pelo veio da ironia:
127
Não há em Brecht nenhum catecismo marxista: nenhum estereótipo,
nenhum recurso à vulgata. Por certo a forma teatral protegeu-o desse
perigo, visto que, no teatro, como em qualquer texto, não se pode
identificar a origem da enunciação: impossível a colusão, sádica, do
sujeito com o significado (essa colusão produz o discurso fanático), ou
aquela, mistificadora, do signo com o referente (que produz o estilo
dogmático); mas, mesmo em seus ensaios, Brecht nunca se dá a
facilidade de
assinar
a origem do seu discurso, de colar nele a
estampilha do império marxista: a sua linguagem não é uma moeda.
Dentro do próprio marxismo, Brecht é um inventor permanente;
reinventa as citações, acede ao intertexto: “Ele pensava com
outras cabeças; e, na sua, outros que não ele pensavam. Aí
está o verdadeiro pensamento”. O verdadeiro pensamento é mais
importante do que o pensamento (idealista) da verdade. Em outras
palavras, no campo marxista, o discurso de Brecht nunca é um
discurso de sacerdote. (BARTHES, 1988, p. 227. grifo nosso).
Em Arturo Ui de Brecht, o espaço é mesmo o da diversidade, da
máscara, da carnavalização, o universo discursivo que se impõe é o das
contraposições, das contradições – contra-dicções –, da multiplicidade de vozes.
A ironia presente instaura um universo ambíguo, em que o real como
fato acabado com suas personagens rigorosas é decisivamente minado pelo
duplo destronante que se configura alegoricamente. Assim o riso rompe com
qualquer encaminhamento partidário.
O que fica explicitado por meio dessa elaboração do material é que o
partido assumido por Brecht é o próprio homem, considerado como ser
histórico, sujeito capaz de alterar seu contexto. O riso que perpassa a peça
corrói qualquer possibilidade de monologia e totalitarismo discursivo e dirige-se
mesmo a toda forma de aliciamento, subjugo e opressão desse homem.
A verdade que deve ser interpretada nesta parábola brechtiana, coerente
com as anteriormente comentadas, é a de que o homem deve “ver” a realidade
dialeticamente, em suas contradições, e, a partir da apreensão dessas
contradições, atuar sobre as forças – e representações – que o subjugam ou
impelem a uma única direção.
Por meio da ironia, Brecht estabelece no discurso o confronto entre
vozes – históricas e míticas/fictícias/ lendárias – e os vários planos em que
atuam – real/físico (na escala política, econômica e social),
psicológico/imaginário. Então os significados – valores de verdades absolutas –
128
são postos em questão, invertidos pela ambigüização que os perpassa. Como
coloca Peixoto, em Arturo Ui:
Brecht utiliza uma mistura de melodrama policial, drama elizabetano e
crônica dos anos trinta. Relacionando o nazismo com o gagsterismo
não faz uma alteração de significado: ambos exprimem o crime e são
ambos resultado de definidas relações de propriedade. O que se
verifica é uma redução em escala: assassinos reduzidos à sua
dimensão de homens. E, diminuídos os deuses arianos para as
imagens de gângsteres, são agigantados, através da paródia dos
clássicos, e a eles é atribuída uma forma de linguagem próxima a
Goethe e Shakespeare. São os processos de distanciamento
pesquisados por Brecht nesta peça. (PEIXOTO, 1979, p. 210).
Em Arturo Ui, os personagens são insignificantes tanto do ponto de vista
do mundo em que vivem – condição de gângsteres – quanto do ponto de vista
humano, porém suas ações produzem grandes traumas na sociedade em que
passam a exercer a coerção.
Como afirma Costa (1998), o rebaixamento dos líderes nazistas a
gângsteres e as alianças com o “truste da couve” e com o grande capital têm o
propósito de mostrar que o perigo mora ao lado “que ele
também
está ali
mesmo, no bar da esquina, quitanda ou padaria” (p. 135)
e muitas vezes
fazemos vistas grossas a ele, nos acovardando ou silenciando; o que não deixa
de significar o estabelecimento de um pacto com o seu jogo. É importante
colocar que eles atuam numa sociedade em crise não apenas econômica, mas
também social e moral, e é a essa crise ética que a peça nos expõe: toda a
sociedade alemã foi cúmplice do nazismo, assim como muito recentemente a
ONU e o mundo se curvaram ao totalitarismo, alicerçado em interesses
econômicos, de um nada ético presidente da república de uma certa nação
imperialista, que teve em suas mentiras a crença e confiança de seu povo – em
nome da “proteção” e da “justiça” – cega –, esse império contra-ataca míseros
povos que, no entanto, possuem o ouro negro minando de seu solo.
É contra esse terror que grita, desesperadamente, a mulher coberta de
sangue do quadro 9: “Onde estão vocês? Ninguém vai deter essa peste?”. E é
desse terror que nos fala Brecht. E parece ser mesmo essa a moral dessa
parábola brechtiana. Cai o pano com o seguinte letreiro – epígrafe - para
129
encerrar essa análise que, no entanto, pode, a partir daqui, estar apenas
começando:
Parábola memorável,
A resistível ascensão de Bushad’óleo, show
de
gângsteres, vai começar. A fanfarra está embalada. Os heróis do
mundo do crime vão desfilar e revelar seus truques. Encimado por
manchetes que denunciam manobras políticas e econômicas, o
apresentador, em relação direta com o espectador (técnica do
distanciamento
), enumera as atrações para o público. Atualiza-o a
respeito dos bastidores sórdidos da ascensão de Bushad’óleo (Hitler),
dos comparsas e das instituições que lhe deram guarida.
Bushad’óleo canaliza frustrações apresentando-se como porta-voz de
insatisfações difusas dos desvalidos, da classe média que perde a
paciência pelos fracassos econômicos de seu governo, que enlaça os
demais países capitalistas; aproveita-se do receio dos financistas e
reacionários diante da possível ascensão de movimentos
antiglobalização. Com uma retórica antidemocrática e racista (“somos
superiores, civilizados e levaremos as cruzadas”), capitaliza o rancor
dos egueua-unidenses, humilhados pelo ataque às Torres Siamesas.
Toma de assalto o Estado e, sustentado pelas Forças Armadas, vende
a idéia de supremacia para dar esperança a seu povo.
Exibe-se a pleiade de bandidos em seu habitat natural. Dogpoodle
comparece ao proscênio recebendo o escracho sem meias-palavras:o
“velho depravado”. Ariflexmanroyal, o florista, é o mentiroso de
pernas curtas que manca como Goebbels. Rameirosfeld, o
“superpalhaço”, é um dos maiores assassinos da história. Bushad’óleo,
o “famigerado”, ascende como produto de nossas fraquezas.
Bushad’óleo lembra Ricardo III (Shakespeare) em sua voracidade por
poder e sangue. É o genocida aprovado por muitos de seus
concidadãos. Não é uma desgraça enviada pelos céus, mas encubada
pelos homens.
A metralhadora dispara. O apresentador, que não é bobo, trata de
escafeder-se. Os líderes dos cartéis de Tequisana [...] .
(BEVILAQUA SOBRINHO, 2005, p. 190, 191)
130
9 QUANTO CUSTA O FERRO? AS RELAÇÕES DE PODER E AS
LEIS DE MERCADO
Lições horripilantes: se as guerras duram muito tempo, a gente
simples acaba reconhecendo a desu
131
Svendson, para satisfazer o Cliente, em sua extrema necessidade de
cada vez mais ferro, aceita um acordo, proposto por este, de receber
“mercadorias” em troca do produto. Assim, ao final da peça, a pergunta feita
repetidamente nas passagens anteriores “Quanto custa o ferro?” funciona ao
revés, pois a redundância neste caso não representa a paralisação, a
circularidade de uma ação que desemboca no mesmo lugar, funciona ao
contrário, ela aponta para o movimento desencadeado pelo preço desse “ferro”,
tão “caro” e “preciso” ao projeto de ascensão nazista. Na pergunta tantas vezes
formulada pelo Cliente, concentra-se a potencialidade do centro que a
engendra e carrega de significação. Dessa forma, no final, ao transformar-se
em mera questão retórica, produz, em contraste, um efeito bombástico:
SVENDSON –
Guerra!
Corre até a tabela de preços, apaga o número três com a esponja e
mais do que depressa escreve o número quatro. Pálido como cal,
entra o cliente carregando muita coisa debaixo do casaco.
SVENDSON
escutando
Sabe de onde vem esse estrondo de canhão?
CLIENTE –
Vem do ronco do meu estômago. Quer saber? Estou indo buscar
comida. Mas para isso preciso de mais ferro.
Joga o casaco para trás
e mostra pistolas automáticas engatilhadas.
SVENDSON –
Socorro! Socorro!
CLIENTE –
quanto custa o ferro?
SVENDSON
acabado
Nada.
(p. 226).
Esse “nada”, na dialética a que deve ser exposto, em relação à dinâmica
da peça, representa a completa submissão e servilismo que o Cliente (
Füher
)
exigirá de seus aliados sob pena de seu aniquilamento; além de representar a
potencialidade da violência que o hitlerismo exerceu e virá a exercer sobre
grande parte da humanidade.
132
9.2 O IMPÉRIO DO TERROR OU O TERROR DO IMPÉRIO
Os grandes crimes só são possíveis porque são inacreditáveis.
Trapaça banal, simples mentiras, extorsões descaradas, estas são
coisas que pegam muita gente desprevenida. Os espíritos mais sutis
se recusam a acreditar em trapaça tão primitiva e, quando ficam
desconfiados, procuram em demasia, contando com crimes
meticulosamente planejados e de complexidade exemplar.
Indignados, recusam-se a “confundir” estadistas com ladrões de
cavalos, generais com especuladores da bolsa de valores, e assim se
mostram totalmente incapazes de entender roubos de cavalo e
mercado especulativo.
Bertolt Brecht (2005, p. 196)
Em Quanto custa o ferro,
temos a materialização, por meio da alegoria,
do processo de anexação de territórios que comporão o espaço vital necessário
para viabilizar os planos de domínio alemão. Temos também a sátira da forma
leviana e ao mesmo tempo audaciosa com que Hitler fazia e desfazia seus
pactos de paz, de colaboração ou de não-agressão. Concomitantemente é
revelada a hipocrisia da política não-intervencionista que acabou por contribuir
com a construção de uma história de terror e massacre de milhares de seres
humanos em nome da “irmandade” ariana: “Foi logo me chamando pelo
primeiro nome e me explicou que éramos parentes.” (p. 212). Brecht expõe as
motivações econômicas dissimuladas em um discurso pacifista, de não
intervenção, de países como a Polônia, Suécia, Hungria e Dinamarca, cuja
atitude possibilitou a ascensão do hitlerismo.
SVENDSON –
Dansen, é você? Olha, aquele sujeito novo esteve aqui. – Ah, ele
também esteve aí... Ele fez compras comigo. – Ah, com você
também... Enquanto ele pagar, para mim está bom. É claro que para
você também está bom que chega enquanto ele pagar.
Escurece
(p. 216).
O cinismo da situação, o dissimular dos reais interesses que movem o
Cliente tomam forma e se expõem na maneira sorrateira e totalmente calculada
com que aborda suas vítimas; estas são pegas de surpresa, sem condição
133
qualquer de resistência. O cliente, então, prega-lhes o discurso da boa
vizinhança, defende a idéia de haver prováveis laços consangüíneos entre eles,
e da necessidade de promover-lhes proteção. Na primeira cena da peça, o
Vendedor de Tabaco (Áustria) conta a Svendson (Suécia) o fato de ter sido
abordado por um estranho (Hitler), o qual lhe causara forte impressão e medo:
VENDEDOR DE TABACO –
[...] O homem me tratou como um velho amigo. Foi logo me
chamando pelo primeiro nome e me explicou que éramos parentes.
Até hoje eu nunca soube, eu falei. O quê, você não sabe disso, foi o
que ele disse, e me olhou como se eu fosse uma moeda falsa. E então
ele me explicou tintim por tintim como é o nosso parentesco, e
quanto mais ele falava mais a gente virava parente.
SVENDSON –
E isso é tão grave assim?
VENDEDOR DE TABACO –
Não, mas ele me disse que me faria uma visita em breve.
SVENDSON –
O senhor diz isso como se tivesse sido uma ameaça?
VENDEDOR DE TABACO –
Sabe, as palavras eram bem comuns, ele disse ter o defeito de
possuir um senso de família muito forte. Se ele descobre que alguém,
de alguma forma, é parente, não consegue mais viver sem essa
pessoa.
SVENDSON –
Mas essas palavras não são feias.
VENDEDOR DE TABACO –
Não, mas ele berrava tanto quando falava.
SVENDSON –
E isso o deixou assustado?
VENDEDOR DE TABACO –
Para dizer a verdade, muito.
SVENDSON –
O senhor está tremendo. No corpo todo.
[...]
VENDEDOR DE TABACO –
Eu também estranhei que, antes de me deixar ir, ele tenha sugerido
um pacto: nunca falaria nada contra mim e eu nunca falaria nada
contra ele.
SVENDSON –
Mas isso soa mesmo muito honesto. Isso é reciprocidade absoluta.
134
[...]
VENDEDOR DE TABACO –
Talvez eu devesse ter algum tipo de arma.
SVENDSON –
Claro. Isso não faz a ninguém.
VENDEDOR DE TABACO –
Infelizmente armas custam dinheiro.
(p. 212, 213).
O terror, desencadeado por tal abordagem, assume uma proporção ao
longo da peça que fugirá a qualquer controle, culminando em manobras e
artimanhas do Cliente deliberadas sem o menor constrangimento:
CLIENTE
devagar –
Tendo em vista o fato de que somos um pouco parentes, quero lhe
fazer uma sugestão.
SVENDSON –
Não que eu soubesse, meu caro...
CLIENTE –
Se o senhor ainda não sabe, tudo bem. Eu quero sugerir que
passemos para um novo procedimento, um procedimento de troca:
mercadoria contra mercadoria. Tenho certeza que o senhor fuma
charutos. Pois bem, aqui estão os charutos.
Tira uma caixa de
charutos grandes do casaco.
Posso fazer um precinho bem barato
para o senhor, já que não me custaram nada. Eu herdei de um
parente. E eu não fumo.
SVENDSON –
O senhor não fuma. O senhor não come. O senhor não fuma. E isso aí
são
austrillos.
CLIENTE –
Dez centavos cada. São dez coroas pela caixa com cem. Entre primos,
eu deixo por oito, quer dizer, pelo ferro. Concorda?
[...]
SVENDSON –
Eu não posso me dar ao luxo. Se eu pudesse comprar alguma coisa,
compraria sapatos.
(p. 219)
O calendário do depósito de ferro indica 19??
Svendson circula por ali, fumando um austrillo e calçando os sapatos
da senhora Tcheca.
(p. 226).
135
A Áustria (Vendedor de Tabaco), então, é o primeiro Estado europeu a
cair nas mãos do
Führer
(Cliente),
tornando-se uma província do Reich alemão,
sob o olhar aterrorizado, porém ambíguo, dos seus vizinhos:
VENDEDORA DE SAPATOS –
Um vendedor de tabaco, um tal de Austríaco, foi assaltado em plena
rua. Assassinado e roubado.
SVENDSON –
Não diga! Mas isso é terrível.
VENDEDORA DE SAPATOS –
Não se fala em outra coisa na redondeza. Agora eles querem
organizar uma polícia. Todos devem fazer parte. O senhor também,
seu Svendson.
SVENDSON
desagradavelmente tocado
Eu? Mas isso é totalmente impossível. Eu não dou para policial, dona
Tcheca, de jeito nenhum. Eu sou pacífico demais. E o meu depósito
nem me dá tempo para isso. Eu quero vender o meu ferro em paz e
pronto.
(p. 217).
Depois da Áustria, é a vez da Tchecoslováquia (Vendedora de Sapatos).
Hitler (Cliente) tem a seu favor os governos italiano e húngaro. Contra estão a
França (Senhora) e o Reino Unido (Senhor), ligados à Tchecoslováquia por um
pacto de assistência mútua.
SENHOR –
Ontem à noite a nossa vizinha, a senhora Tcheca, foi assassinada, foi
assaltada e roubada por um homem fortemente armado, aquele tal
fulano lá.
SVENDSON –
O quê? A dona Tcheca assassinada? Como pode acontecer isso?
[...]
SENHOR –
Trata-se agora de juntar todos os vizinhos numa união que possa
cuidar para que isso não volte a acontecer. Aproveitamos para
perguntar também se o senhor não quer se filiar a uma união para a
manutenção da ordem como essa e incluir seu nome na lista dos
organizadores.
Entrega-lhe uma lista.
SVENDSON
recebe-a hesitante, inquieto
Bom, mas eu sou apenas uma pequena loja de ferro. Eu não posso
me meter na briga das firmas grandes. Meu ingresso numa união
dessas poderia irritar alguns dos meus clientes.
136
SENHORA –
Ora, o senhor só quer vender o seu ferro, tanto faz para quem?
SVENDSON –
De maneira nenhuma! Como a senhora pode dizer uma coisa dessas!
Eu acho que tenho consciência tanto quanto a senhora. Eu só não sou
um sujeito de briga, entende? Não estou nem pensando no meu
negócio. Vamos conversar mais cordialmente.
Para o senhor –
O
senhor fuma?
SENHOR
observa os charutos
Austrillos
!
SENHORA –
Eu seria grata aos senhores se não fumassem.
(p. 221).
A Rutenia e a Hungria anexarão parte de território tchecoslovaco, e esse
jogo de interesses dos países vizinhos é precisamente explicitado na peça:
O calendário do depósito de ferro indica o ano de 1939
[...]
SVENDSON
telefona, apreciando um austrillo
É você, Dansen? O que você me diz dos últimos acontecimentos? É,
eu também digo o mesmo. Não falo nada. – Hã – Hã, você também
não chama a atenção? É, eu também não. – Sei, você também ainda
vende para ele? É, eu também ainda vendo. – Sei, você também não
está assustado? É, eu também não.
Escurece
[...]
(p. 220).
O calendário do depósito de ferro indica 19??
Svendson circula por ali, fumando um austrillo e calçando os sapatos
da senhora Tcheca. De repente, estrondo de canhões. Svendson,
muito inquieto, tenta, em vão, telefonar. Não há mais linha, liga o
rádio. Não há mais transmissão. Olha pela janela. Clarão.
[...]
(p. 226).
137
9.3 ACEITA CHARUTOS???
As artimanhas, as tramas pelo poder acabam por ser reveladas por meio
dos adereços cênicos que remetem a um outro referente que é o referente
histórico: uma barra de ferro, charutos austrillos, sapatos amarelos, são signos
ideológicos, mas também designam ações ou acontecimentos cuja
referencialidade remete a desfechos que transtornaram a ordem social ou
política ora local ora mundial, ora ambas:
CLIENTE –
Mas eu tenho que ter mais ferro, Svendson [Suécia]. Estão tramando
contra mim. Querem me assaltar. Todos querem me assaltar. Porque
não suportam ver como estou bem [Alemanha].
Seu estômago ronca
outra vez.
Dizem que eu dei um fim nela! [Dona Tcheca, vendedora
de sapatos, alegoria da Tchecoslováquia]. Mentira! Mentira! Mentira!
[remissão à negativa de Pedro; o negar três vezes instala uma aguda
ironia a esse contexto discursivo] E sabe o que eu encontrei com ela
depois? Uma barra de ferro! Ela queria me atacar. O senhor faz bem
em se manter fora dessas encrencas asquerosas. O senhor é um
vendedor de ferro e não um político, seu Svendson. Vende o seu ferro
a quem paga. E eu compro aqui porque o senhor me agrada e porque
vejo que o senhor vive do seu negócio. Por não estar contra mim e
não se deixar insuflar pelos meus inimigos, é por isso que eu compro
o seu ferro. Por que mais haveria de comprar? Comigo o senhor não
precisa se agastar. Outro dia o senhor queria sapatos, não queria?
Aqui estão seus sapatos.
Desembrulha grandes sapatos amarelos.
Justamente o que o senhor precisava, seu Svendson. Posso fazê-los
bem baratos. Sabe o que me custaram?
SVENDSON
fraco
O quê?
CLIENTE –
Nada. Está vendo, isso vem a seu favor. Ainda seremos os melhores
amigos, principalmente se ficarmos totalmente de acordo quanto ao
preço do ferro. [...]
(p. 225, comentário nosso).
Brecht, tanto ao “
re
apresentar” episódios históricos como ao trazer
personagens de obras clássicas – históricos ou míticos – para o contexto de
suas peças, instaura-lhes uma nova dinâmica – em uma nova dinâmica que é
simultaneamente instaurada – e, assim, constrói peças marcadas por uma
138
complexa construção sígnica, cujos mecanismos da enunciação são expostos ao
receptor no jogo metateatral:
PRÓLOGO
Meus amigos, outro dia um inglês
Contou esta parábola, ouçam vocês.
Em Old Vic, num
pub
distante
Falou de política com um sueco e com um estudante.
Eles tomaram tanta cerveja e tanto
Brandy
, mas nem assim chegaram a um portanto
Foi assim que o inglês lhes escreveu no outro dia
Sua opinião sobre a política que se fazia
E usou uma alegoria para isso:
Nós a repetimos, mas sem compromisso.
Um depósito de ferro é onde ela se passa
Quem é o comerciante, quem é o boa-praça
O vendedor de tabaco e a mulher do sapato
Vocês todos vão ver, até mesmo o mais pato.
E quem carrega o ferro é o cliente
Que vocês vão ver logo mais à frente.
Entender a parábola é um exercício
Qualquer um pode fazer. E agora, vamos dar início.
(p. 211).
Neste prólogo o ator/narrador, distanciado de seu personagem, explicita
o modo de configuração do gênero: trata-se de uma parábola. Nomear uma
obra parábola já é indicar uma postura do receptor, já é antecipar-lhe uma
forma específica de recepção frente a essa obra. É estabelecer uma relação
especial entre o texto e o ouvinte/leitor/espectador. O saber tratar-se de uma
parábola remete ao conhecimento prévio de aí se configurar uma história que
quer dizer uma outra coisa, a qual deve ser buscada, na analogia, nas relações
entre o dito e o não dito, o pressuposto. E em Brecht temos fundamentalmente
uma peça cujo discurso é alegórico; alegoria como a concebe Walter Benjamin:
um discurso que remete para o outro, o recalcado.
O discurso alegórico remete cada componente da instância narrativa a
um seu equivalente no mundo objetivo, assim se configura uma outra história,
que está subjacente à história linear. Apreender esse outro discursivo
auscutando-lhe outras vozes possíveis exige o estabelecimento de relações
“Entender a parábola é um exercício”. No entanto, se o gênero depende
também do modo como o locutor percebe e compreende seu destinatário e do
139
modo como ele pressupõe uma compreensão responsiva ativa deste
destinatário, em consonância com o pensamento de Bakhtin, como já
formulamos anteriormente, Brecht concebe o seu destinatário como um ser
capaz de estabelecer as devidas relações para a apreensão do sentido, pois tal
exercício “Qualquer um pode fazer / até mesmo o mais pato”. Brecht deixa
explícita sua concepção do ouvinte na Carta ao Teatro de Trabalhadores –
Theatre Union de Nova Iorque – acerca da Peça A Mãe:
Também, então, houve quem nos perguntasse:
‘Será que o trabalhador vos entenderá? Renunciará
ao habitual estupefaciente, à participação psicológica
numa revolta alheia, na prosperidade dos outros?
Renunciará
A toda essa ilusão que o excita durante duas horas
E o deixa, depois, mais extenuado,
Cheio de vagas lembranças e de mais vagas esperanças?
Ao oferecerem o vosso saber e a vossa experiência,
Encontrarão, realmente, uma platéia de homens de Estado?’
Camaradas, a forma das novas peças
É nova. Mas porquê [sic] temer
O que é novo? É difícil de executar?
Mas porquê [sic] temer o que é novo e difícil?
Para quem é explorado e sempre desiludido
Também a vida é uma constante experiência, e
O ganho de uns quantos tostões uma empresa incerta
Que em parte alguma jamais se aprende.
Por que razão temer o que é novo, em vez do que é velho?
E mesmo que o vosso espectador, o trabalhador, hesite,
Vocês não deverão acertar o passo por ele, mas, sim adiantarem-se-
lhe,
Rapidamente, a passos largos,
Confiando, sem reservas na sua força, que surgirá enfim.
(BRECHT, 1964, p. 68, 69).
Também é importante observarmos que o narrador/ator no prólogo de
Quanto custa o ferro? se propõe contar uma história que lhe foi contada por um
outro: “Meus amigos, outro dia um inglês / Contou esta parábola, ouçam
vocês”. Isso significa que há uma outra voz que se configura e, assim, não há
uma autoria a impor uma verdade sua. Além de esse modo de formar implicar
uma visão ontológica do homem por reconhecer nele a sua capacidade de
pensar sobre os fatos, produz distanciamento crítico diante da h/História que
será mostrada, demonstrada no palco.
140
9.4 A SUBVERSÃO DA FORMA NA FORMA DO CÔMICO
Como analisa Ewen, Brecht produziu vários esquetes em torno da
questão do hitlerismo e de como superá-lo, problema que o atormentava.
Assim, o crítico inclui a peça entre esses esquetes: “Um deles,
Was kostet das
Eisen?
(Quanto custa o ferro?) esboçava, em forma de parábola, a anexação da
Áustria e Tchecoslováquia por Hitler.” (EWEN, 1991, p. 303).
O esquete, conforme Pavis (1999), é uma peça curta, uma cena, cujo
motor é a sátira ou paródia, às vezes grotesca e burlesca da vida
contemporânea: apresenta uma situação geralmente cômica, interpretada por
um pequeno número de atores sem caracterização aprofundada ou de intriga
aos saltos e insistindo nos momentos engraçados e subversivos.” (p. 143).
De fato, Quanto custa o ferro?
é uma peça curta, com reduzido número
de atores, o que vai de encontro à configuração das outras parábolas aqui
estudadas. Mas o que vale a pena discutir é que Brecht, levando ao extremo o
princípio dos saltos, constrói uma intriga que salta de uma peça a outra: o
dramaturgo escreve, em 1939, dois esquetes que se complementam, Dansen e
Quanto custa o ferro?, além de um “apêndice” para eles, porém somente o
último esquete é denominado parábola pelo autor. Vale dizer que, vistas no
conjunto, elas ganham em efeito e produção de sentido. O que é reiterado de
uma a outra montagem não é o que se repete como forma, mas o que se
interpreta na dialética das conexões implicadas. Espaço, tempo, ações,
personagens são os mesmos, reduzindo-se estas, as personagens, a três em
Dansen (ele mesmo, o estranho e Svendson).
Essas instâncias são reapresentadas, sem, contudo, fixarem-se; a
reiteração, de novo, não deve conduzir ao congelamento, à paralisação do
pensamento por aquilo que esses seres representam, mas indicar o perigo
dessa paralisação. Personagens, espaço, tempo são reiterados para revelar o
que neles é puro trânsito: as idéias, os compromissos, os pactos, são falíveis,
transitórios.
141
É contra este perigo que precisamos ficar atentos: contra o perigo das
posturas autoritárias, totalitárias, e contra o perigo ainda maior que é o da não
percepção das articulações presentes nas representações ideológicas as quais
escamoteiam essas posturas.
Quanto ao burlesco, próprio do esquete, pela Nota feita por Brecht para
esta peça, temos uma real medida do cômico e da dimensão satírica aí
presentes:
NOTA
A pequena peça deve ser encenada no estilo
142
Inserir o nazismo em um contexto burlesco é também subverter o terror,
rebaixá-lo, retirar dele a sua potência. Assim, como ocorreu nas outras
parábolas analisadas, são também aqui os contrastes de base que deverão
promover a atividade do público, forçá-lo a uma outra postura diante do mundo
apresentado – se não à decifração, ao menos à correta formulação do
problema, o que já é muito produtivo. Ao nomear a história uma “parábola,
Brecht propõe ao público o exercício interpretativo, a atenta observação, o
distanciamento, devido à postura crítica, de desconfiaça diante dos detalhes ou
das pistas apresentadas, afinal não se deve temer o que é novo e difícil. “Para
quem é explorado e sempre desiludido, também a vida é uma constante
experiência, e o ganho de uns quantos tostões uma empresa incerta que em
parte alguma jamais se aprende. Por que razão temer o que é novo, em vez do
que é velho?”.
Brecht promove a subversão do gênero, carnavaliza-o pelo afloramento
de outras vozes; finca-lhe o alfinete japonês cujos barulhentos guisos abalam a
percepção do ouvinte, forçando-o à revisão dos fatos “e mesmo que o vosso
espectador, o trabalhador, hesite, vos não deverão acertar o passo por ele,
mas, sim adiantarem-se-lhe, rapidamente, a passos largos, confiando, sem
reservas na sua força, que surgirá enfim”. Eis a didática brechtiana.
Sobre o afastamento necessário ao pensamento crítico, nos fala Barthes:
O que é então esse afastamento, essa descontinuidade que provoca o
abalo brechtiano? É apenas uma leitura que separa o signo do seu
efeito. Você sabe o que é um alfinete japonês? É um alfinete de
costureira, cuja cabeça é munida de um guizo minúsculo de maneira
que não se possa esquecê-lo na roupa terminada. Brecht refaz a
logosfera deixando nela alfinetes com guizos, os signos munidos de
seu barulhinho: assim, quando ouvimos uma linguagem, nunca
esquecemos de onde ela vem, como foi feita: o abalo é uma
re-
produção
: não uma imitação, mas uma produção despegada,
deslocada:
que faz barulho.
(BARTHES, 1988, p. 227).
É, então, pelo abalo que Brecht desmobiliza palco e platéia; pelo
descontínuo do discurso, promovido pelo contraste, impede o sentido de
retomar-se e, assim, corta, repica o véu, desagrega os veios das
representações ideológicas.
143
10 MEDIDA POR MEDIDA: DE SHAKESPEARE A BRECHT
A princípio, achava os yahoos abomináveis; contudo, a idéia de que
eram assim brutos, imundos e detestáveis porque eram bichos me
consolava. Depois, ao saber que eram humanos, tive medo de que os
houyhnhnms descobrissem que eu fazia parte da mesma raça, pois
não queria ser confundido com eles. Agora as coisas estavam
mudando dentro de mim. Começava a ver as ações e paixões dos
homens sob um outro ponto de vista; nós não éramos melhores que
os yahoos, nem menos detestáveis que eles. Nossa única diferença,
nítida e indiscutível, eram os traços físicos. É verdade que tínhamos
inteligência, países organizados e governantes, mas usávamos tudo
isso para nos destruir uns aos outros. Naquele dia refleti muito.
Comparando os homens, os yahoos e os hoyhnhnms. Decidi nunca
mais retornar à Inglaterra. Ficaria o resto de meus dias observando e
tentando imitar aqueles cavalos [hoyhnhnms] tão sábios e felizes.
Swift (Viagens de Gulliver, 2001, p. 124, 125)
Die Rundkoepfe und die Spitzkoepfe oder Reich und Reich gesellt sich
gern (1931 – 1934), Os cabeças redondas e os cabeças pontudas ou, Rico se
dá com Rico, Uma fábula de horror. Essa peça, escrita entre 1931-1934, nasce
como uma adaptação de Medida por medida, uma comédia de Shakespeare que
atrai Brecht por seu conteúdo filosófico e social que apelava para os
governantes medirem como eram medidos, e, a partir dessa medida, deixassem
de exigir de seus súditos uma moral que eles mesmos não praticavam:
Escalo
Quais são as notícias que vão aí pelo mundo?
Duque [disfarçado em um frade a fim de ver como agiam seus
representantes na sua ausência] –
Nenhuma, a não ser que o bem está tão doente que o único remédio
é a dissolução. As novidades, eis o que todos querem saber, e é tão
perigoso ser idoso em qualquer gênero de vida, como virtuoso ser
inconstante em qualquer coisa. Mal existe a verdade necessária para
que as sociedades sejam seguras, mas há bastante segurança para
fazer as amizades amaldiçoadas. [Segundo
Provérbios
XI, 15 que
dizem: “aquele que incautamente fica por fiador de um estranho cairá
na desventura; mas o que evita os laços viverá tranqüilo”.] É em
grande parte em torno deste enigma que gira a sabedoria do mundo.
Essas novidades já são bem antigas, no entanto são novidades de
todo o dia. [...]
[...]
144
Escalo
Vou visitar o prisioneiro. Passai bem. [refere-se a Cláudio, condenado
à morte por um juiz “severo”, irredutível às idéias de Angelo para
quem a fornicação era o maior dos crimes, e o jovem engravidara sua
noiva, Julieta]
Duque
A paz esteja convosco! (
Saem Escalo e o Preboste
) Quem quiser
brandir a espada do céu deve ser tão santo quanto severo; tornar-se
modelar, a fim de aprender a honra das resistências, as virtudes da
ação, pesando exatamente as faltas dos outros na balança que
pesa suas próprias faltas. Maldito seja aquele cuja sentença cruel
condenar pelas faltas que ele mesmo cometa! Maldição dupla e tripla
sobre Ângelo que monda meus vícios, mas deixa que os seus
cresçam! Oh! Que não oculta um homem no seu interior, mesmo
apresentando um interior de anjo! Como a hipocrisia, afeita ao crime,
enganando o mundo, atrai para sua teia sutil as coisas mais pesadas e
as mais substanciais! Contra o vício, empregai a astúcia. Hoje de
noite, Ângelo se deitará junto da antiga noiva abandonada [Ângelo
recusara-se a casar com Mariana quando esta perde o dote
juntamente com o irmão que desaparece no mar, ele então a
abandona por ela nada mais possuir]. Assim, um disfarce [Mariana
por Isabel, irmã de Cláudio, noviça a quem Ângelo cobiçava] pagará
com falsidade falsas promessas e o contrato de outrora será mantido.
(
Sai)
(SHAKESPEARE, Medida por medida, 1979, p. 167, 168, grifo nosso).
Nos primeiros esboços de sua peça, Brecht expõe o caráter de classe da
justiça burguesa, e o Ângelo, indicado para substituir o Duque, aparece com
ares quixotescos travando uma luta ingênua, conforme analisa Ewen (1991),
esperando conciliar os conflitos na sua sociedade. Contudo, nesse período de
produção de Brecht, Hitler toma o poder, o Reichstag é incendiado e são
promulgadas as leis raciais de Nuremberg. Com esses fatos, Brecht reescreve a
peça, alterando-a radicalmente. Assim nasce um novo Angelo, Angelo
Iberin/Hitler: dono de uma oratória altamente persuasiva, demagogo, populista,
cínico, um perfeito instrumento para os fins almejados pelos latifundiários ricos,
capitalistas, de Luma, insatisfeitos com os resultados econômicos que arruínam
Jahoo. O Vice-Rei é alertado por Missena da crise que assola o país e da
ameaça que se estende sob os poderosos e suas propriedades, devido ao
crescimento de um movimento camponês, denominado Foice – organização
revolucionária composta inclusive pelos arrendatários que, vendo-se explorados
por seus arrendadores, recusam-se em primeiro lugar a pagar os aluguéis do
arrendamento.
145
MISSENA –
É o excesso, senhor, que nos consome.
Nosso país Jahoo vive de grãos
E morre pelo grão. E está morrendo
Pela abundância. Nossos campos deram
Tanto que os favores da sorte enterraram
Os favorecidos. O preço baixou tanto
Que não compensa o transporte. O grão
Não paga nem os gastos da colheita.
Pois foi contra o homem que o grão cresceu
O excesso gerou fome, o camponês
Recusa-se a pagar. O Estado treme
Nas bases. O arrendador está gritando
O Estado tem que arrecadar! Eles mostram
Seus contratos. E no sul do país
Camponeses em torno da bandeira
Da grande foice estampada: é o símbolo
Da revolta. O Estado se arruína.
(p. 19, 20).
Iberin é acionado para, com sua ideologia e caráter implacável,
solucionar o impasse que se apresenta. Afinal, os cinco grandes negam-se,
devido à crise, a contribuir com o governo, a não ser que a rebelião da Foice
seja liquidada e seus líderes exterminados “o inimigo interno é que nos impede
de alcançar o externo” (p. 21).
MISSENA –
Aqui ninguém nos escuta. A guerra
Traria mercados para o terrível
Excesso de grãos e novas fontes
Para aquilo de que carecemos.
(p. 21)
[...] Enquanto houver Foice
Não haverá guerra. Pois a Foice é
A pura ralé, não quer pagar nada.
Comerciante, artesão e funcionário
Numa palavra: a média acredita
Que o camponês não pode mais pagar.
São pela propriedade, mas hesitam
Pisar no rosto pálido da fome.
Por isso combater esse levante
Só um homem não desgastado consegue
Que só pense no equilíbriio do Estado
Autruísta – ao menos conhecido por.
Só existe um...
(p. 22).
146
Dessa forma, o Vice-Rei – ele mesmo o maior latifundiário do país – não
vê saída, a não ser conferir o poder a quem lhe resgate a credibilidade.
Persuadido, então, por Missena, nomeia Ângelo Iberin governador: homem
neutro, moderado e, assim, aceito pela classe média.
MISSENA –
Ele mesmo é classe média, não é
Arrendador e nem arrendatário
Nem rico nem pobre. Por isso é contra
A luta entre a classe rica e a pobre.
Acusa pobre e rico de ganância
Materialismo baixo. Ele exige
Justiça e resolução contra os pobres
E contra os ricos. Pois para ele o nosso
Descalabro é psicológico.
O VICE-REI –
Sei. Psicológico.
E esse aqui?
Faz o gesto de contar dinheiro.
MISSENA –
Vem daquele.
O VICE-REI –
Muito bem. E aquele?
De onde ele vem? Qual é sua causa?
MISSENA –
Essa causa é precisamente a grande descoberta
Do nosso Iberin, senhor!
O VICE-REI –
E não somos nós?
MISSENA –
De jeito nenhum
[...]
O VICE-REI –
Esses são os txixes... E os pagamentos?
MISSENA –
Disso ele não fala. E quando fala
Não é claro. Mas é pela propriedade.
Fala da “alegria txuxe pela propriedade”.
(p. 24 a 26).
147
Se formos comparar as figuras de Iberin e do Vice-Rei, podemos
perceber que Brecht configura em um, o primeiro, o perfil do líder totalitário,
sem ego, fanático, que crê piamente em suas teorias e nelas está disposto a
apostar o próprio reino. Já o Vice-Rei, que, apesar do percurso, possui um
caráter muito diferente da figura do Duque construída por Shakespeare – e daí
as diferenças de motivação e de propósitos entre as duas personagens– é, em
Brecht, um ditador autoritário, que convoca Angelo Iberin para defender uma
causa ideológica ignóbil, porque ele próprio não tem nem é adepto de
nenhuma, o que lhe importa são poder e riqueza e, assim, a manutenção da
ordem social tal qual está estabelecida, com cada um em seu devido lugar,
como proclama ao final “Bebam amigos! [latifundiários ricos] Ao que
permanece!” p. 146).
Iberin prega uma teoria construída sob representações raciais:
representações que escamoteiam as contradições e antagonismos de classe,
geram intolerância e aprofundam a crise social e política. Defende a
superioridade dos cabeças redondas sobre os cabeças pontudas. Assim, o
problema que assola Luma está na configuração das cabeças: redondas, “nativa
de Jahoo, é da terra e de bom sangue, são nobres, altruístas; pontudas,
“elemento estranho, que se infiltrou e que não tem pátria”, são os estrangeiros,
intrusos, esgoístas, materialistas.
Esta teoria ganha muitos adeptos, os cabeças redondas em sua grande
maioria, que vê nela a possibilidade de eliminar os concorrentes cabeças
pontudas de seus negócios e até a oportunidade de usurparem seus bens; além
dos Cinco Grandes, que vêem, nessa teoria, a chance de esvaziar o movimento
em marcha que os aterroriza.
Acontece que, entre os latifundiários ricos, há também cabeças
pontudas, o que trará sério impasse à teoria de Iberin, que, ao final, deverá
curvar-se aos interesses desses poderosos e compactuar com as suas leis,
intercedendo pelo Senhor de Guzman, um cabeça pontuda, acusado de seduzir
a filha do seu arrendatário, Callas, um cabeça redonda, desonrando-o. De
início, Guzman é condenado à morte, porém, no desenrolar da história, com a
contenção do movimento da Foice, ele é absolvido. É nesse impasse que reside
148
o centro da discussão brechtiana: a diferença das cabeças será, nessas
condições, suplantada, numa demonstração de que é nas roupas que ela deve
ser buscada.
DIRETOR DE TEATRO –
Como vêem, o autor usa dois contrapesos com
Diferentes normas.
Num pesa roupas furadas e trajes ilesos.
Noutro pesa crânios de duas formas.
E agora seu prazer pessoal: ele pesa os dois contrapesos.
Pega as duas balanças nas mãos e pesa uma com a outra. Em
Seguida devolve-as e dirige-se a seus atores –
Vós que da parábola sois atores
Escolhei diante dos espectadores
Como na peça vos foi indicado.
E se o autor, como cremos, tiver razão
Então com a roupa escolhereis o fado
E não com o crânio. Ao combate então!
(p. 17).
Callas, como um cabeça redonda, começa a reivindicar direitos, como a
posse de dois cavalos e o não pagamento dos aluguéis. Reivindicações que,
devido a seu caráter privado, imediatista e transitório, não atendem à crise do
processo produtivo desencadeadora dos conflitos socio-econômicos que
atingem a sua classe. Ele não percebe que sua situação de miséria só pode ser
efetivamente atacada se forem eliminadas as condições de opressão e
marginalidade impostas a toda base social: pelas condições relatadas em seu
discurso, pode-se apreender o estado de penúria e a exploração a que estão
submetidos os reais sujeitos produtivos, os quais, nesse processo, tornam-se,
numa inversão de valores, objetos; assim estão na mesma condição o
arrendatário, o camponês, a terra, os equipamentos de trabalho; o “sujeito”,
contudo, é o capital. No caso de Callas, essa objetificação conduz ao servilismo,
à procura por um líder que lhe resolva os problemas, e à total sujeição a esse
líder:
Iberin facilmente conduz Callas e não apenas o arrendatário, pois um
grande número de pessoas tornam-se adeptas das idéias do “grande ditador”,
que as manipula em seu querer; um querer, contudo, que já expressava uma
149
vontade de caráter individual, alienada em suas necessidades e em seus
propósitos.
Assim Brecht demonstra como a crise de valores éticos, morais,
humanitários é um terreno promissor na gestação de grandes farsas como
Angelo Iberin, que, como um herói popular, guia de um povoincapaz de
abstrair e impaciente também pela miséria, vê a culpa desse descalabro num
ser comum com boca e ouvidos e sobre duas pernas e que todo mundo
encontra na rua” (p. 25); ele toma o Estado, faz justiça com as próprias mãos –
na figura dos Huas – e assume o poder da sentença nos tribunais, condenando
Guzman.
Sobre o embuste de tal situação, a canção “Balada do arremesso do
Botão”, cantada pela Senhora Cornamontis, é esclarecedora:
BALADA DO ARREMESSO DO BOTÃO
[...]
Ela toma o arrendatário Callas pelo braço e o conduz alguns passos à
frente. Em seguida demonstra com ele a terceira estrofe.
Um coitado vem a mim
Muito irado diz assim:
Um rico tomou-me casa e gado
Serei eu por isso indenizado?
É só perguntar, que nos dirão!
Vamos ver:
Se pra cima ele ficar
Não irão te indenizar
Nem precisas pretender.
Verifiquemos se estás sem sorte!
E arremesso o botão: estás mesmo.
Vocês dizem:
ALGUNS OUVINTES
inclinam-se sobre o botão, erguem o olhar e
dizem –
Esse furo tem
Dois lados!
SENHORA CORNAMONTIS –
E eu digo: é assim mesmo!
E ainda mais: estás sem sorte meu rapaz.
Isso tu vais ver até cansar.
O que fazes, isso tanto faz
Errado ou certo: tens que pagar!
(p. 66, 67).
150
10.1 O TEATRO DO MUNDO E O MUNDO NO TEATRO
Além de alterar o conteúdo da sua adaptação, Brecht transforma a peça
em uma parábola. Assim, temos, em conformidade com a configuração do
gênero, um prólogo no qual a problemática é formulada, enunciada pelo diretor
de teatro, que se apresenta ao público:
PRÓLOGO
Diante da pequena cortina surgem sete atores: o Diretor do teatro, o
Governador, o Arrendatário Rebelde, o Latifundiário, sua irmâ, o
Arrendatário Callas e sua filha. Os quatro últimos vestem camisa. O
Governador em seu traje, mas sem máscara, carrega uma balança
com dois crânios pontudos e dois redondos; o arrendatário Rebelde
carrega uma balança com duas roupas finas e duas em trapos; ele
também está trajado, mas sem máscara.
DIRETOR DE TEATRO –
[...]
Por toda a parte o nosso autor era interrogado
Se a diferença dos crânios não o deixava irritado
Ou se não percebia diferença alguma.
Dizia então: não vejo diferença nenhuma.
Mas eu vejo sim uma desigualdade
Muito maior que dos crânios somente
Que deixa marca mais evidente
Que decide entre dor e felicidade.
E sem apontá-la logo não fico:
É a diferença entre pobre e rico.
Penso que é melhor que aqui fiquemos
Vejam a parábola que escrevemos
Nela eu mostro a qualquer um
Que é esse o ponto e mais nenhum.
(BRECHT, 1992, p. 15, 16).
Não há como deixar de apontar as semelhanças entre a parábola teatral
brechtiana e a de Calderón, O grande teatro do mundo, que, como já dissemos,
muito influenciou Brecht no uso dos recursos épicos, dos recursos didáticos, da
metateatralidade. Ambos levam o mundo para o teatro, o espetáculo dentro do
espetáculo “então mostremos bastidores e tablado / e o mundo na parábola
será mostrado! Esperamos aos senhores poder mostrar / com que diferenças se
pode contar.” (Os cabeças redondas e os cabeças pontudas, p. 18). Também
151
em Brecht, os atores são chamados pelo diretor diante do público para
receberem os adereços cênicos e assim representarem um papel:
Essa parábola, meus caros, será agora encenada.
Do baú
Tiramos e construímos em nosso palco um país de nome
Jahoo.
Nele o entregador seus crânios entregará
E para alguns o destino mais rápido chegará.
(p. 16).
As roupas serão distribuídas “de acordo com a fortuna que cada um
possuir” assim se fará “a distinção entre quem tem pouco e quem tem um
montão” e será essa distinção a responsável pelo “destino” imposto à
personagem, seu julgamento se processará de acordo com suas posses,
julgamento feito pelos homens segundo as leis construídas por alguns desses
homens.
O DIRETOR
apresentando o Arrendatário Rebelde –
Mostra agora, distribuidor de vestes, as roupas
Que em tua balança carregas
E que aos homens ainda no berço tu entregas.
ARRENDATÁRIO REBELDE
mostra sua balança –
Acho que ver a diferença não é difícil
Esta é a boa e esta é a surrada.
Acho que negar isso não leva a nada.
Quem com esta vai trajado
Quase nunca será tratado
Como aquele que com esta desfila.
Isso se sabe na cidade e na vila.
Quem com a minha balança pesar
Saberá na mão de quem o bolo vai parar.
Baixa com o dedo o prato com as roupas finas.
(p. 17).
Em O grande teatro do mundo, será pelo acordo entre representação e
indumentária que cabe a cada um, que os atores, personagens do mundo como
teatro, como ilusão, serão julgados. Toda atuação está subordinada aos
desígnios do Autor, e por ele tal atuação será julgada. A indumentária, como
instrumento do destino, é maior que a personagem, que deve se adequar,
152
adequar sua representação a ela, não terá direito de mudar seu destino no
mundo, não há qualquer possibilidade de transcendê-lo.
Em Brecht, essa posição se inverte, temos o teatro como mundo, um
teatro de homens que encenam o mundo dos homens e é neste mundo que as
possibilidades devem ser buscadas, o público deverá observar que a história
(mundo) nas suas relações fundantes pode ser alterada não pela atuação de
um líder ou pelo reverso do destino, mas pela atuação dos homens, no trato
dessas relações. É claro que estas relações, uma vez no teatro ou no texto
teatral pertencem ao mundo ficcional, o que Brecht faz é transfigurar sua
concepção de mundo/homem e de teatro/mundo. E esse processo é trazido à
discussão, a um enfrentamento com o seu tempo, com a história e com o devir,
quando, numa postura altamente irônica, Brecht utiliza-se da auto-
referencialidade:
O ARRENDATÁRIO
pegando duas cabeças redondas –
Ficamos com a redonda, minha filha.
O LATIFUNDIÁRIO –
Nós usaremos a pontuda.
A IRMÃ DO LATIFUNDIÁRIO –
Por vontade do Sr. Bertolt Brecht...
A FILHA DO ARRENDATÁRIO –
Filha de redonda, redonda é.
Sou redonda do sexo feminino.
O DIRETOR –
Aqui está o figurino
Os atores escolhem suas roupas.
O LATIFUNDIÁRIO –
Eu faço o latifundiário.
O ARRENDATÁRIO –
Eu o arrendatário, que mau.
A IRMÃ DO LATIFUNDIÁRIO –
A irmã do latifundiário eu.
A FILHA DO ARRENDATÁRIO –
E eu a horizontal.
O DIRETOR –
O problema foi entendido, eu espero.
153
OS ATORES –
Sim.
(p. 18).
Brecht leva às últimas conseqüências a dinâmica da teatralidade, suas
possibilidades. E então podemos retomar as idéias de Pavis (1999) sobre a
parábola teatral, citadas anteriormente, e dizer que o teatrólogo alemão não a
usa como um simples disfarce de uma mensagem unívoca, mas ele confere a
ela autonomia e, assim, sua parábola significa por si própria, nunca é traduzível
em uma lição, mas presta-se “ao jogo da significância e aos reflexos da
teatralidade”. O caráter dessa auto-citação será apreendido somente se
entrarmos no jogo que se configura, jogo entre a representação do real e o real
como representação teatral, entre mundo e arte. Somente assim será possível
apreender a intencionalidade dessa intromissão que aprofunda o caráter do
artifício no artifício em sua dialeticidade: ao citá-lo, como o autor da peça que
será encenada dentro da peça que se está encenando, a atriz/personagem
mostra estar no teatro, mas não em qualquer teatro, um teatro com exigências
específicas, que requer um espectador inteligente, atento, disposto a interagir
nesse jogo da teatralidade de que nos fala Pavis. Ao mesmo tempo que o
autor, “o senhor Bertolt Brecht”, se presentifica, ao ser nomeado, ele está
ausente, Brecht é citado no discurso do outro, e como “outro” passa a
significar. Brecht é aquele que assume uma posição, aquele que interfere no
mundo produzindo artifícios. Mas, em Brecht, arte e artista estão sujeitos,
ambos às mesmas condições históricas “quem o escreveu é um homem viajado
/ (a propósito, nem sempre viajava voluntário)” (p. 15). Sua voz vem somar-se,
na dinâmica instaurada, a vozes de homens de outros tempos, Shakespeare,
Calderón de la Barca, Swift, vozes de seu tempo e espaço, vozes do nosso
próprio tempo.
A partir disso compreendemos o porquê do gosto e do uso intenso e
intencional da parábola por Brecht, e as palavras de Umberto Eco podem
complementar o nosso raciocínio quando o crítico caracteriza o teatro
brechtiano não como um teatro dos significados, das soluções, mas como um
154
teatro dos significantes, construindo o mundo como um objeto que deve ser
decifrado:
No momento mesmo em que ligava este teatro da significação a um
pensamento político, Brecht, se o podemos dizer, afirmava o sentido,
mas não o completava. Certamente, seu teatro é mais francamente
ideológico do que muitos outros: toma posição quanto à natureza, ao
trabalho, ao racismo, ao fascismo, à história, à guerra, à alienação;
entretanto, é um teatro da consciência não da ação, do problema, não
da resposta; como toda linguagem literária, serve para formular, não
para fazer; todas as peças de Brecht terminam implicitamente por um
Procure a solução
endereçado ao espectador em nome dessa
decifração a que a materialidade do espetáculo deve conduzir... o
papel do sistema, aqui, não é transmitir uma mensagem positiva (não
é um teatro dos significados), mas fazer compreender que o mundo é
um objeto que deve ser decifrado (é um teatro dos significantes).
(ECO, 1971, p. 27).
Em Brecht, toda a maquinaria teatral é exposta ao público, a montagem
é feita diante dele que deve estar todo o tempo consciente de que está num
teatro. Os atores vestem-se diante do espectador para mostrar que as alegorias
são, sim, alegorias, mas as usarão para demonstrar como agem os homens e
como se relacionam estes homens mostrados.
10.2 UMA PARÁBOLA DE TERROR
O fascismo é uma forma de governo que possibilita que as pessoas
sejam subjugadas ao ponto de poderem ser usadas para subjugar
outros povos.
Bertolt Brecht (2005, p. 123)
Também aqui a matéria-prima será dada pelas relações do homem na
sociedade instituída: as relações entre os homens e destes com as suas
condições materiais de existência; fundamentalmente, será uma análise, como
temos defendido, da constituição dessas relações, ou seja, a que interesses elas
atendem ao se firmarem e se tornarem históricas.
155
De acordo com Pallotini:
o que Brecht pretendeu com seu novo teatro, foi criar um público
composto por seres humanos capazes de compreender sua própria
situação histórica e agir sobre ela, para mudá-la. Seus personagens
não são heróis, nem seres ideais, nem príncipes: são pessoas
humanas, mostradas claramente e sem disfarces, por todos os meios
possíveis, às vezes esquemáticas e traçadas com linhas grossas, que
agem para mostrar que é possível agir e que têm suas motivações
fundamente mergulhadas no caldo do momento econômico e social
em que vivem. (PALLOTINI, 1989, p. 112).
A proposta do dramaturgo é, firmemente, a de desvelar ao espectador –
que deve permanecer todo o tempo ativo, crítico, por meio dos numerosos
recursos de distanciamento presentes na peça, como as canções ou as frases
de efeito – os mecanismos de construção da própria história: “Você vem pescar
comigo?/ Perguntou o pescador à minhoca” (p. 42).
Frases como essa, a qual é colocada como uma epígrafe no início do
quadro 3, apontam para as artimanhas do poder; nesse caso específico, essa
frase expõe a estratégia de cooptação dos cabeças redondas pobres
arrendatários como Callas – para que, aliando-se à ideologia racial e, assim, ao
novo poder que se instala, o nazismo, abandonem a causa da foice. O que se
dá é uma trama para escamotear as diferenças de classe. Assumindo uma outra
causa, Callas e demais cabeças redondas circularão entre possibilidades que
jamais se viabilizarão, pois serão contrárias aos reais interesses dos poderosos.
O ARRENDATÁRIO CALLAS
para o público
Não era muito o que eu buscava
Quando saí da minha casa.
A terra eu não queria pagar
E o grão pra mim queria plantar.
E quando em Luma eu cheguei
Tocar de sinos escutei.
Como se eu fosse não-sei-quem
Me trataram mais que bem.
Se alguém como eu maltratavam
O malfeitor logo enforcavam.
E assim o sapo sai do charco
E vira digno de um plutarco.
A honra até me divertia
Mas não pagar é o que eu queria.
Pra que essa honra distinguida
Se ela não compra a comida?
156
Se alimento houvesse só no charco
Melhor era esquecer Plutarco.
De honra duas semanas se falou
Arrendamento nem se mencionou!
Eles não querem me contar
Ao arrendador vou perguntar.
Seja lá o que for que façam comigo:
Quero saber se ele está abolido!
(p. 130).
Sem nenhuma garantia legal, suas reivindicações, fomentadas pela
postura inicial de Iberin, serão, ao final, tratadas como imorais, mera
presunção, ganância espúria, e as idéias às quais aderiu – sem mais nenhuma
serventia para seus mentores diante do sucesso advindo do período de sua
vigência – serão tidas, então, como equivocadas.
O ARRENDATÁRIO LOPES
falando da forca para Callas –
Callas, olhe para nós.
Um dia fomos uma só voz.
Fomos camponeses, você ainda é.
Lutamos contra a opressão, você não teve fé.
Quem não se curva tem a nuca quebrada.
Para você sopa, e a nossa gente enforcada.
Preferimos ser enforcados
A pedir sopa feito escravos.
Você assumiu a cabeça achatada
E de sua casa nos tocou a pancada.
Ao encostar o seu rifle amigo
E junto a juiz e chanceler buscar abrigo
Você achou que com cabeças iguais
Ser pobre ou rico não importava mais.
Você furtou dois cavalos
Como os ladrões costumam furtá-los.
A sua rede quem jogou foi você
Bem que isso ajudou, como se vê.
Os cavalos só foram seus
Enquanto lutávamos, e uma hora depois – adeus!
Você achou que a um txuxe presentes seriam dados
Mas logo os tomaram, não é surpresa.
O txixe e o txuxe aqui serão enforcados
E lá eles se sentam à mesma mesa.
Com força a velha divisão voltou:
É a entre pobre e rico. Você achou
Que era o predador mas era a presa.
(p. 144, 145).
157
10.3 RICO SE DÁ COM RICO
Como em Medida por medida, Brecht também lançará mão da inversão
de papéis, do travestimento de personagens que se fazem passar por outros.
Inversão cujo efeito é surpreendente, pois, por esse meio, Brecht mostra a
inversão de propósitos, inversão de valores “O arrendador briga com o seu
patrão./ Um tem direitos, o outro tem razão” (p. 133), inversão de toda
situação e das idéias que se apresentavam “Txuxe supera o Txixe e a injustiça
a razão! / Pobre morre pro rico e empregado pro patrão.” (p. 134). Os
equívocos inerentes aos pactos, às trocas de papéis de Callas, que, pela isenção
de dois anos de arrendamento, aceita passar-se pelo Senhor de Guzman e ser
enforcado; e de Nana que aceita passar-se por Isabella, são transformados em
álibis pelo Vice-Rei, quando esse retorna e reassume o poder, revelando, então,
a astúcia de um discurso muito hábil na construção de argumentos que só
servem aos interesses dos poderosos, e não passam de representações
ideológicas.
O VICE-REI –
Conheço o caso.
Permita, senhor Iberin, que eu
Mostre os peixes que caíram na rede
Cuja malha você tanto apertou.
Ouvi dizer que condenou um rico
À morte por ter pego a filha
De um pobre. Ele será enforcado.
É txixe e não pode cometer erros.
É aquele ali o tal do txixe rico?
O INSPETOR –
É o latifundiário txixe, Excelência!
O VICE-REI –
Não estou certo. Ele usa tamancos?
Com certa dúvida ergo o seu capuz
Mas a dúvida é pouca.
Ele quer tirar o capuz do homem, mas ele o segura.
[...]
MISSENA –
É o arrendatário txuxe!
O VICE-REI –
Como é que você veio parar aqui?
158
O ARRENDATÁRIO CALLAS –
Eu teria isenção do arrendamento por dois anos se ficasse no lugar
dele. E me disseram que um latifundiário jamais seria enforcado!
O VICE-REI –
Eu temo, amigo, que não lhe mentiram!
Tragam aquele que ele substituiu!
O inspetor sai.
IBERIN
para Callas
O quê? Por uns pesinhos
Você se entrega à forca, vagabundo?
O ARRENDATÁRIO CALLAS –
Não, por dois anos de arrendamento.
(p. 139, 140).
Os latifundiários ricos, ao pensarem que Isabella de Guzman, uma txixe,
mas que “pertence à nata deste país”, entregara-se ao comandante para salvar
seu irmão e ainda por cima fora violentada pelos soldados, ficam horrorizados e
exigem punição dos culpados. Contudo ao saberem da troca de papéis, que
Nana é quem fora ao encontro do comandante, em lugar de Isabella,
poupando-a da humilhação, da agressão física e moral – “Caem na
gargalhada”, afinal Nana é uma mulher do povo:
OS LATIFUNDIÁRIOS RICOS –
[...]
Que piada! Você conseguiu Iberin!
Essa é a corja que você exaltou.
Aí a honra só existe nos trapos”
E veja o que ele faz de toda a honra!
Por alguns pesos ela vai e entrega
Seu corpo txuxe, que seja pelo agressor!
Diga que foi a filha do camponês.
Foi só a filha do camponês. Mas
Aos seu aliados, que foi só uma txixe!
Ao pai entregue mais uma vez
Sua filha! É ela, arrendatário!
Você não vai acreditar!
(p. 141).
A comicidade presente na construção dessa cena é obtida por uma
engenharia metateatral precisa na demonstração da teatralidade do real: são
artifícios a revelarem artifícios.
159
O VICE-REI –
Agora basta!
Sim, ela é sua filha e assim é que está
Certo. Mas as cabeças são redondas –
Trazem de Guzman. Sua irmã está a seu lado.
E agora só vêm os verdadeiros txixes.
Por que, de Guzman, o libertarei?
Porque o seu arrendatário deseja
Tão pouco que você seja enforcado
Que prefere fazê-lo em seu lugar.
Além disso também vou libertá-lo
Porque a filha do camponês prefere
Se entregar a vê-lo enforcado, por
Você ser tão querido, eu o absolvo.
(p. 141, 142).
Brecht utiliza os recursos do discurso opressor, sua sutil ironia, sua
astúcia e engenhosidade, sua hipocrisia implícita, radicalizando-os na
encenação de suas disparidades, apanhando-os, dessa forma, na raiz de seu
raciocínio. A comicidade da cena em que esse raciocínio se formula demonstra
sua total falta de sustentação, pois toda essa situação está calcada em
equívocos: os fatos, os impasses, o discurso que os engendra e o que os
interpreta nascem de equívocos e se encerram em equívocos; a única
pretensão do arrendatário é livrar-se do pagamento do aluguel, “dois anos de
isenção de arrendamento. Talvez por isso eu me enforque” (p. 133); sua
alienação, como já discutimos, não permite que reivindique ou discuta aquilo
que conferiria condições dignas de vida e de trabalho para ele e para sua
família, ainda porque não conhece outras possibilidades e assim não as
reconhece como tais. Dessa forma, Brecht revela o jogo e ao mesmo tempo o
perigo desse jogo tão bem articulado:
O VICE –REI –
[...]
Também o camponês deve ser solto
Para pagar o arrendamento.
Para Callas –
Callas
Meu querido! Não vá dar mau exemplo!
E ainda há mais para pagar, amigo.
A repressão aos ladrões de cavalos
Quem irá pagar, se não for você?
Soltem o camponês e o Senhor!
A mesma sentença para os dois! Livres!
Vida para os dois! [...]
160
[...]
O ARRENDATÁRIO CALLAS –
E como fica a isenção do arrendamento, nada?
O VICE –REI –
Não, amigo!
Um contrato desses é imoral e não tem valor.
[...]
O INSPETOR –
Vossa excelência queirais desculpar, mas os arrendatários da Foice
condenados à morte aguardam a execução. Agora é para soltá-los
também?
[...]
O VICE –REI –
Esta foi a decisão do Iberin.
Devem ser enforcados, nãoé isso?
E leve a sopa ao meu querido Callas!
(p. 142).
Ao final, o verdadeiro inimigo não está mais entre o povo de Jahoo como
se fez pensar, mas sim no exterior, são os cabeças quadradas e, agora, para
derrotá-los, cabeças redondas e pontudas deverão se unir.
O VICE-REI –
Arrendatário, quase me esqueci
Eu sei que você é pobre. Escute:
Eu voltei, mas não de mãos abanando
Trouxe comigo algo para você.
Seu chapéu está furado, tome o meu!
E você não tem capa, tome a minha!
Coloca seu capacete na cabeça dele e veste-o com sua capa de
soldado.
Que diz disso? Claro que hoje e amanhã
Ainda prefiro vê-lo na sua terra.
Eu chamo se precisar de você
E pode ser logo. – Iberin, o senhor deu
O primeiro passo, mas é preciso mais.
O império que ergueram nessas semanas
Murchará se não for logo ampliado.
Pois não sabem, no sul além mar
Habita nosso inimigo mortal
Cujos súditos têm cabeças quadradas
E que aqui ainda são desconhecidos.
Percebo que transmiti-lo à sua calaçaria
Será agora sua tarefa, senhor Iberin.
Pois agora se aproxima uma guerra
De uma violência nunca vista e todo
Homem saudável será necessário.
Bem amigos, vamos comer agora!
A mesa do juiz, onde julgamos
Tanta gente, serve para comermos.
Camponês, espere que eu mando a sopa.
161
O ARRENDATÁRIO CALLAS
para Nana
Você ouviu que eles querem fazer uma guerra?
Trazem a mesa já posta. O Vice-Rei, Missena, Isabella e os
Latifundiários ricos dirigem-se a ela.
O VICE-REI
distribui a sopa com uma concha grande
Primeiro o camponês, não é Iberin?
Temos que alimentá-lo: é um soldado.
Dois pratos. Quer mais? Estamos com fome.
[...]
O Hua traz a sopa para Callas e sua filha
(p. 144).
10.4 DIVERTIR, INFORMAR, FORMAR
Em Os cabeças redondas e os cabeças pontudas, Brecht não ataca a
proposta de Hitler, mas sim o seu fundamento que é o mesmo fundamento do
capitalismo de um modo geral. Jameson (1999, p. 34) rebate críticas feitas à
peça, afirmando que Brecht não tratou do Holocausto enquanto tal:
Na verdade, a principal crítica a uma peça como
Rundköpfe und
Spitsköpfe
[sic]
[
Os cabeças redondas e os cabeças pontudas
] – para
mim uma de suas melhores – é que ela omite os judeus e parece
falhar em apreender o que foi historicamente singular na política
específica do nazismo para eles. Mas talvez isto seja precisamente o
que a camada nazista de Brecht tem a ofercer-nos: uma Alemanha
nazista da vida cotidiana e precisamente aquela banalidade do mal
que tornou tão difícil pensar Eichmann. A Alemanha de Brecht é antes
aquela na qual o nazismo é semelhante a todos os regimes
conservadores de toda parte e ao próprio espírito de repressão tal
como adormecido numa população pequeno-burguesa. Nem mesmo
aparece ainda o não-Holocausto do puro massacre étnico (como
vimos em toda parte, da Iugoslávia à África Central e Índia), mas
simplesmente a “mentalidade” de um povo que deu boas-vindas ao
conservadorimo radical nazista, a seus prazeres espetaculares
(Nuremberg) e seus desenvolvimentos modernistas (VWS, a
autobahn). Aquela verdade mais profunda, não de ódio, mas de
ressentimento do qual a violência pode surgir com tanta certeza
quanto as mais dramáticas ou nobres emoções. Esta “miséria alemã”
não pode, então, ser decomposta em alguma imagem culturalista da
Alemanha como uma tradição histórica singular e enigmática, mas
deve antes ser generalizada e transformada em parte de nossa
própria auto-análise nacional, da nossa própria crítica da auto-crítica,
se é que alguma vez estivemos preparados para confrontar-nos com
tal coisa. (JAMESON, 1999, p. 34).
162
De fato, se atentarmos para a nota feita por Brecht para essa peça,
veremos que a “desmedida” é engendrada dentro dessas cabeças, ela está na
mentalidade de um povo conduzido por ressentimentos que descambam na
violência, na barbárie, na atrocidade sem limites. Será então na desmedida
dessas cabeças “que não devem parecer menos anormais” umas em relação a
outras que encontraremos a resposta para a “Fábula de Horror” brechtiana:
O povo daquela cidade de Luma, onde se passa a peça, consiste de
txuxes e txixes, duas raças: a primeira tem cabeças redondas, a
segunda cabeças pontudas. Essas cabeças pontudas devem ser pelo
menos quinze centímetros mais altas que as redondas. Mas as
cabeças redondas não devem parecer menos anormais que as
pontudas.
(p. 14).
Brecht parte do contexto alemão, mas o ultrapassa, estabelecendo o
diálogo com outros textos e contextos, remetendo a novos referentes e a
outras vozes/leituras possíveis: o país de Jahoo, por exemplo, traz o mundo
espetacular criado por Swift em Viagens de Gulliver
para a cena, “carregando-
a” com o veio satírico que ataca a mentalidade de uma época, a tirania
estabelecida, a justiça às avessas, a incompetência dos ministros, a idiotice dos
intelectuais, o mau uso da razão e da ciência. Enfim Swift expõe, nessa obra, a
vil condição a que o ser humano é submetido. E, quando dizemos “carregando-
a”, não é no sentido de que Brecht sobrecarrega a sua peça, mas de que
tensiona nela a potência crítica, artística, atualíssima em sua discussão, a
potência do mundo criado pelo escritor irlandês. É fundamentalmente o homem
em seus equívocos no uso da razão e no trato das relações sociais que passam
em revista por Swift. Aí se configura a adesão de Brecht, e, o que é muito
importante, essa adesão se estende ao que, na crítica de Swift, termina como
positividade expressa na luta pela liberdade, pela emancipação humana, na
crença da possibilidade de reversão da situação apresentada pela reeducação
do homem:
163
164
Travamos aqui essa discussão por entendermos que somente pela leitura
das “leituras” de Brecht, pelo resgate do diálogo travado com outros textos,
contextos, podemos discutir a qualidade de uma peça como Os cabeças
redondas e os cabeças pontudas: “Ele pensava com outras cabeças; e, na sua,
165
Talvez a noite até nos alumie.
Talvez a lua cheia não mais esvazie.
Talvez a chuva brote mesmo do chão!
(p. 147).
Esse “talvez” reiterado na canção remete para uma cadeia de
alternativas, pois contém em si não apenas o que se afirma mas também o seu
contrário, ou seja, aquilo que se nega como outra possibilidade. O “talvez”
explicita o caráter alternativo do desenvolvimento histórico-social, afinal, o
mundo por que circulam os homens que sondam e amedrontam os
arrendadores é um mundo não estático, um mundo inconcluso, vasto, e o palco
brechtiano é demasiadamente vasto. Diferentemente da brevidade constituinte
da parábola, é vasto para nele caber, todo, o homem, o homem em sua
totalidade. E assim “termina” (?) essa parábola teatral brechtiana:
Quando o canto termina, o Hua retira o cavalete do muro: ele precisa
dele para a forca. Atrás do muro, sobre a parede recém-pintada,
aparece um grande símbolo vermelho da Foice. Todos o vêem e
observam pasmos. Com a voz abafada pelos capuzes, os
arrendatários começam a cantar a “Canção da Foice”.
CANÇÃO DA FOICE
De pé camponês!
Marcha de uma vez!
Não deixa nada te deter
Um dia terás que morrer.
Ninguém poderá te ajudar
Só, terás que levantar.
Marcha de uma vez!
De pé camponês!
(p. 147).
166
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa pesquisa, apreendemos a dinâmica configuradora da parábola
teatral brechtiana. Nosso problema central consistia, então, em constatar a
coerência entre o pensamento do dramaturgo, informado em seus pressupostos
sobre o teatro épico, e a dinâmica instaurada em suas parábolas teatrais; mais
especificamente nas peças eleitas assim por ele.
Dessa forma, buscamos a configuração do gênero “parábola” e, a partir
dessa configuração, o contexto em que se deu a transposição desse gênero
para o teatro. Constatamos assim a presença dessa transposição em épocas
cuja exigência histórica requeria um teatro didático dirigido a um público
composto de homens comuns. O propósito de atingir um grande número de
adeptos das idéias veiculadas por esse teatro, a intenção didática, implicou a
opção por recursos adequados a tal fim; desse modo, este teatro compreende
elementos épicos, um deles é a parábola, configurada não apenas como
recurso retórico, mas também como gênero, como parábola teatral.
Constatamos dessa forma que a transposição do gênero não foi tarefa
exclusiva do teatro brechtiano, mas que este teatro recebeu influência de
dramaturgos expressivos nas diferentes épocas em que se processou tal
transposição, como Gil Vicente e Calderón de La Barca, por exemplo.
Pudemos, a partir da configuração do gênero, constatar o caráter épico
da parábola que distancia a história transfigurando-a em alegoria. Na
interpretação alegórica, o homem encontrará refletido o seu próprio mundo e,
dessa interpretação, deverá tirar um ensinamento, convertendo-se, no caso da
parábola bíblica, e transformando o mundo, no caso da parábola brechtiana.
Fica patente assim a dimensão ideológica do gênero.
A partir disso, procedemos à descrição e análise da forma do gênero em
cinco peças denominadas parábolas por Brecht. Há nessas peças a presença
dos prólogos e epílogos em torno da narrativa, da história, que será
demonstrada ao público, e neles há o comentário dessa história. Também as
canções, a iluminação, os adereços cênicos, a gestualidade dos atores são
167
recursos de comentário, mas esses recursos funcionam, na dinâmica
instaurada, como contrapontos.
Os comentários em Brecht apontam para o outro, outras vozes, outros
referentes; têm o propósito de apontar as relações implicadas na construção
dos fatos. Assim, as máximas expressas pelas personagens, diferente do que
acontece nas parábolas bíblicas, funcionam ao contrário, ao revés. A ironia
presente nas peças brechtianas inverte os valores das máximas enunciadas
pelas personagens e coloca esses valores em questão.
É pelo veio da ironia que Brecht, nessas peças, desmonta as artimanhas
do poder, expondo-lhe a base, ou seja, a sua forma, como trama discursiva,
como representação. “Ou, imagine-se um homem discursando num vale e que,
de vez em quando, muda de opinião ou diz frases que se contradizem, de modo
que o eco, acompanhando-o, põe as frases em confronto”, dessa forma, o eco
devolve a fala com valor contrário; e são, nas parábolas brechtianas, os
contrapontos, os contrastes de base que promoverão a atividade do público,
forçando-o a uma outra postura diante do mundo apresentado. O teatro/mundo
brechtiano termina como possibilidade ou não termina, a peça é interrompida, e
o público é convocado a encontrar a solução para a problemática exposta. E, na
parábola brechtiana, essa problemática só é apreendida em toda sua
complexidade no confronto dos discursos narrativo, interpretativo e pragmático.
Brecht traz o mundo para o palco. Mas a peça brechtiana não fica presa
na circunstância histórica, na pura referência, ela a ultrapassa quando expõe as
relações humanas implicadas nessa circunstância. A referência uma vez no
mundo ficcional é submetida a um rigoroso trabalho analítico, fundado na
observação. A partir daí, essa referência, como representação, é condenada a
falar, a encenar seu processo de gestação, demonstrando os seus mecanismos
constituintes. Mas, uma vez no mundo ficcional, ela é submetida a suas leis
específicas, e as leis do teatro brechtiano exigem de todos os seus dispositivos
um movimento e uma “contradicção” permanentes, uma gestualidade de todos
os seus componentes: todos, então, indicando, apontando, para as
contradições dessa circunstância determinada.
168
Conforme analisávamos cada uma das parábolas de nosso corpus,
constatávamos a universalidade dos problemas nelas formulados e a sua
atualidade, universalidade que só pode ser pensada em seu vínculo dialético
com a singularidade. A partir de cada leitura, compreendíamos melhor a
problemática de nosso tempo, pois identificávamos nas peças questões
envolvendo as disputas nacionais e internacionais pelo poder; as articulações
implicadas nas guerras rece
169
Daí o caráter épico desse teatro, ele traz o vasto mundo dos homens para o
palco, e os homens nele mostram não apenas suas ações, mas
fundamentalmente apontam as motivações que as engendram, as artimanhas
processadas para a viabilização dos seus intentos, os pactos estabelecidos com
e entre os homens.
Brecht privilegia a parábola como gênero, contudo atualiza-o numa nova
configuração, finca-lhe o alfinete japonês de que nos fala Barthes, e ela passa a
falar por si mesma em suas “barulhentas” alegorias, no processo a que estas
são expostas. Brecht carnavaliza todo discurso, imprimindo nele a
potencialidade do riso que liberta o homem do medo, conduzindo-o a uma
mudança de percepção, à emancipação política. Por meio da ironia, Brecht
“rasga o véu e expõe as dobras quebradas” impondo aos fatos o olhar
estrangeiro, o distanciamento necessário para o estabelecimento de uma nova
visão sobre eles: não há mais uma verdade essencial; não há mais uma voz
única, um Autor a doutrinar, um único caminho. Ao público brechtiano, ao
homem de carne e osso, cabe a tarefa de buscar uma alternativa “sem
esmorecer! Deve haver uma saída; precisa haver, tem de haver!”.
170
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182
ANEXOS
183
ANEXO A – Parábolas bíblicas
9
LUCAS 15: 1-32
15 Jesus provoca escândalo
Todos os cobradores de impostos e
pecadores se aproximavam de Jesus para o escutar. Mas os fariseus e os
doutores da Lei criticavam a Jesus, dizendo: "Esse homem acolhe pecadores, e
come com eles!".
A ovelha perdida
- Então Jesus contou-lhes esta parábola: “Se um de vocês
tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no
campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la? E quando a
encontra, com muita alegria a coloca nos ombros. Chegando em casa, reúne
amigos e vizinhos, para dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a minha ovelha
que estava perdida’. E eu lhes declaro: assim, haverá no céu mais alegria por
um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não
precisam de conversão”.
A moeda perdida
“Se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma,
será que não acende uma lâmpada, varre a casa, e procura cuidadosamente,
até encontrar a moeda? Quando a encontra, reúne amigas e vizinhas, para
dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a moeda que tinha perdido’. E eu lhes
declaro: os anjos de Deus sentem a mesma alegria por um só pecador que se
converte’.
Os dois filhos
Jesus continuou: “Um homem tinha dois filhos. O filho mais
novo disse ao pai: ‘Pai, me dá a parte da herança que me cabe.’ E o pai dividiu
os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu,
e partiu para um lugar distante. E aí esbanjou tudo numa vida desenfreada.
Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome nessa região,
e ele começou a passar necessidade. Então foi pedir trabalho a um homem do
lugar, que o mandou para a roça, cuidar dos porcos. O rapaz queria matar a
9
Cf.. A BÍBLIA SAGRADA, 1990.
184
fome com a lavagem que os porcos comiam, mas nem isso lhe davam. Então,
caindo em si, disse: ‘Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e
eu aqui, morrendo de fome... Vou me levantar, e vou encontrar meu pai, e
dizer a ele: - Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me
chamem teu filho. Trata-me como um dos teus empregados'. Então se
levantou, e foi ao encontro do pai. Quando ainda estava longe, o pai o avistou,
e teve compaixão. Saiu correndo, o abraçou, e o cobriu de beijos. Então o filho
disse: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu
filho’. Mas o pai disse aos empregados: ‘Depressa, tragam a melhor túnica para
vestir meu filho. E coloquem um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Peguem
o novilho gordo e o matem. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho
estava morto, e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’. E começaram
a festa. O filho mais velho estava na roça. Ao
voltar, já perto de casa, ouviu
música e barulho de dança. Então chamou um dos criados, e perguntou o que
estava acontecendo. O criado respondeu: ‘É seu irmão que voltou. E seu pai,
porque o recuperou são e salvo, matou o novilho gordo’. Então, o irmão ficou
com raiva, e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. Mas ele
respondeu ao pai: ‘Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a
qualquer ordem tua; e nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus
amigos. Quando chegou esse teu filho, que devorou teus bens com prostitutas,
matas para ele o novilho gordo!’ Então o pai lhe disse: ‘Filho, você está sempre
comigo. e tudo o que é meu é seu. Mas, era preciso festejar e nos alegrar,
porque esse seu irmão estava morto. e tornou a viver; estava perdido, e foi
encontrado’.
MATEUS 18: 21-35
Perdoar sem limites
Pedro aproximou-se de Jesus, e perguntou: “Senhor,
quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?”
Jesus respondeu: “Não lhe digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
Porque o Reino do Céu é como um rei que resolveu acertar as contas com seus
empregados.
185
“Quando começou o acerto, levaram a ele um que devia dez mil talentos. Como
o empregado não tinha com que pagar, o patrão mandou que fosse vendido
como escravo, junto com a mulher e os filhos e tudo o que possuía, para que
pagasse a dívida. O empregado, porém, caiu aos pés do patrão e, ajoelhado.
suplicava: ‘Dê-me um prazo. E eu lhe pagarei tudo’. Diante disso. o patrão teve
compaixão, soltou o empregado. e lhe perdoou a dívida. Ao sair dali, esse
empregado encontrou um de seus companheiros que lhe devia cem moedas de
prata. Ele o agarrou, e começou a sufocá-lo, dizendo:Pague logo o que me
deve’. O companheiro, caindo aos seus pés, suplicava: ‘Dê-me um prazo, e eu
pagarei a você’. Mas o empregado não quis saber disso. Saiu e mandou jogá-lo
na prisão, até que pagasse o que devia. Vendo o que havia acontecido, os
outros empregados ficaram muito tristes, procuraram o patrão, e lhe contaram
tudo. O patrão mandou chamar o empregado. e lhe disse: ‘Empregado
miserável! Eu lhe perdoei toda a sua dívida, porque você me suplicou. E você,
não devia também ter compaixão do seu companheiro, como eu tive de você?’
O patrão indignou-se, e mandou entregar esse empregado aos torturadores,
até que pagasse toda a sua dívida. É assim que fará com vocês o meu Pai que
está no céu, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão”.
MATEUS 24-25
A história
e o
fim dos tempos
Logo depois da tribulação daqueles dias, o
sol vai ficar escuro, a lua não brilhará mais, e as estrelas cairão do céu, e os
poderes do espaço ficarão abalados. Então aparecerá o sinal do Filho do
Homem no céu; todas as tribos da terra baterão no peito, e verão o Filho do
Homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória. Ele enviará
seus anjos que tocarão bem alto a trombeta, e que reunirão os eleitos dele,
desde os quatro cantos da terra, de um extremo do céu até o outro.
Fiquem vigiando
Aprendam, portanto, a parábola da figueira: quando seus
ramos ficam verdes, e as folhas começam a brotar, vocês sabem que o verão
está perto. Vocês também, quando virem todas essas coisas, fiquem sabendo
que ele está perto, já está às portas. Eu garanto a vocês: tudo isso vai
186
acontecer antes que morra esta geração que agora vive. O céu e a terra
desaparecerão, mas as minhas palavras não desaparecerão. Quanto a esse dia
e essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos do céu, nem o Filho. Somente o
Pai é quem sabe. A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé.
Porque, nos dias antes do dilúvio todos comiam e bebiam, casavam-se e
davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada
perceberam, até que veio o dilúvio, e arrastou a todos. Assim acontecerá
também na vinda do Filho do Homem. Dois homens estarão trabalhando no
campo: um será levado, e o outro se deixado. Duas mulheres estarão
moendo no moinho: uma será levada, a outra será deixada. Portanto, fiquem
vigiando! Porque vocês não sabem em que dia virá o Senhor de vocês.
Compreendam bem isto: se o dono da casa soubesse a que horas viria o ladrão,
certamente ficaria vigiando, e não deixaria que a sua casa fosse arrombada.
Por isso, também vocês estejam preparados. Porque o Filho do Homem virá na
hora em que vocês menos esperarem. Qual é o empregado fiel e prudente? É
aquele que o Senhor colocou como responsável pelos outros empregados, para
dar comida a eles na hora certa. Fe1iz o empregado cujo senhor o encontrar
fazendo assim quando voltar. Eu garanto a vocês: ele colocará esse empregado
à frente de todos os seus bens. Mas, se for mau empregado, pensará: ‘Meu
senhor está demorando’. Então começará a bater nos companheiros, a comer e
a beber com os bêbados. O senhor desse empregado virá num dia em que ele
não espera, e numa hora que ele não conhece. Então o senhor o cortará em
pedaços, e o fará participar da mesma sorte dos hipócritas. Aí
haverá choro e
ranger de dentes.
25 Fiquem preparados
Naquele dia, o Reino do Céu será como dez virgens
que pegaram suas lâmpadas de óleo, e saíram ao encontro do noivo. Cinco
delas não tinham juízo, e as outras cinco eram prudentes. Aquelas sem juízo
pegaram suas lâmpadas, mas não levaram óleo consigo. As prudentes, porém,
levaram vasilhas com óleo, junto com as lâmpadas. O noivo estava demorando,
e todas elas acabaram cochilando e dormiram. No meio da noite, ouviu-se um
grito: ‘O noivo está chegando. Saiam ao seu encontro’. Então as dez virgens se
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levantaram, e prepararam as lâmpadas. Aquelas que eram sem juízo disseram
às prudentes:Dêem um pouco de óleo para nós, porque nossas lâmpadas
estão se apagando’. As prudentes responderam: ‘De modo nenhum, porque o
óleo pode faltar para nós e para vocês. É melhor vocês irem aos vendedores e
comprar’. Enquanto elas foram comprar óleo, o noivo chegou, e as que estavam
preparadas entraram com ele para a festa de casamento. E a porta se fechou.
Por fim, chegaram também as outras virgens, e disseram: ‘Senhor, Senhor,
abre a porta para nós’. Ele, porém, respondeu: ‘Eu garanto a vocês que não as
conheço’. Portanto. fiquem vigiando, pois vocês não sabem qual será o dia,
nem a hora’.
Esperar, arriscando
Acontecerá como um homem que ia viajar para o
estrangeiro. Chamando seus empregados, entregou seus bens a eles. A um deu
cinco talentos, a outro dois, e um ao terceiro: a cada qual de acordo com a
própria capacidade. Em seguida, viajou para o estrangeiro. O empregado que
havia recebido cinco talentos saiu logo, trabalhou com eles, e lucrou outros
cinco. Do mesmo modo o que havia recebido dois lucrou outros dois. Mas,
aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra, e escondeu
o dinheiro do seu patrão. Depois de muito tempo, o patrão voltou, e foi ajustar
contas com os empregados. O empregado que havia recebido cinco talentos,
entregou-lhe mais cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me entregaste cinco talentos.
Aqui estão mais cinco que lucrei’. O patrão disse: ‘Muito bem, empregado bom
e fiel! Como você foi fiel na administração de tão pouco, eu lhe confiarei muito
mais. Venha participar da minha alegria’. Chegou também o que havia recebido
dois talentos, e disse: ‘Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais
dois que lucrei’. O patrão disse: ‘Muito bem, empregado bom e fiel! Como você
foi fiel na administração de tão pouco, eu lhe confiarei muito mais. Venha
participar da minha alegria’. Por fim, chegou aquele que havia recebido um
talento, e disse: ‘Senhor, eu sei que tu és um homem severo pois colhes onde
não plantaste, e recolhes onde não semeaste. Por isso, fiquei com medo, e
escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence’. O patrão lhe
respondeu: ‘Empregado mau e preguiçoso! Você sabia que eu colho onde não
188
plantei, e que recolho onde não semeei. Então você devia ter depositado meu
dinheiro no banco, para que, na volta, eu recebesse com juros o que me
pertence’. Em seguida o patrão ordenou: ‘Tirem dele o talento, e dêem ao que
tem dez. Porque, a todo aquele que tem, será dado mais, e terá em
abundância. Mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. Quanto a
esse empregado inútil, joguem-no lá fora, na escuridão. Ai haverá choro e
ranger de dentes’.
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