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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA - UFSM
CENTRO DE EDUCAÇÃO,
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO
ÉTICA DO DISCURSO E EDUCÃO:
do agir comunicativo à racionalidade discursiva
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
IRENE MONICA KNAPP
Santa Maria, RS, Brasil
2007
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ÉTICA DO DISCURSO E EDUCÃO:
do agir comunicativo à racionalidade discursiva
por
Irene Mônica Knapp
Dissertação de Mestrado apresentado ao Curso de Mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS).
Orientador: Prof. Dr. Amarildo Luiz Trevisan
Santa Maria, RS, Brasil
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
ÉTICA DO DISCURSO E EDUCAÇÃO:
do agir comunicativo à racionalidade discursiva
elaborada por
Irene Mônica Knapp
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Educação
COMISSÃO EXAMINADORA:
Prof. Dr. Amarildo Luiz Trevisan (UFSM)
(Presidente/Orientador)
Profa. Drª. Nadja Mara Amilibia Hermann (PUC/POA)
Profa. Drª. Sueli Menezes Pereira (UFSM)
Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto (UFSM)
(Suplente)
Santa Maria, 13 março de 2007
AGRADECIMENTOS
Em toda etapa de nossa formação temos muito a agradecer àqueles que de
forma direta ou indireta participaram dos momentos de alegria, de descoberta e,
também, de angústia diante do que nos desafia no mundo acadêmico.
Agradeço primeiramente às valiosas contribuições do professor Dr.
Amarildo, nas orientações, nos momentos de leitura e muitos outros que
acompanharam a trajetória do curso.
Agradecimentos sinceros aos colegas do curso e do grupo de estudo, em
especial, aos amigos Cristiane, Maiane e Maurício, pela persistência diante dos
obstáculos e pela amizade nos momentos de dificuldade.
Aos professores do Curso de Mestrado em Educação da UFSM, pela
contribuição no transcorrer das leituras, nas calorosas discussões acerca dos temas
e conteúdos abordados. Agradeço também, a dedicação e contribuições valiosas
dos professores da comissão examinadora.
Aos amigos professores da Escola Estadual General Edson Figueiredo,
pelas palavras de incentivo e apoio sempre presentes no convívio diário.
Um agradecimento especial às filhas Larissa e Laura, compreensivas nos
momentos de ausência e de necessária dedicação às leituras, mas que, em
momento algum se deixaram vencer pelos obstáculos e desafios inerentes no
percurso de uma formação.
Enfim, meus agradecimentos a todos que contribuíram para o meu
crescimento intelectual no decorrer do curso. Obrigada!
RESUMO
ÉTICA DO DISCURSO E EDUCAÇÃO:
do agir comunicativo à racionalidade discursiva
Autora: Irene Monica Knapp
Professor orientador: Dr. Amarildo Luiz Trevisan
Santa Maria, 13 de março de 2007
A dissertação tem a intenção de abordar pontos pertinentes à ética e sua
relação com a educação no cenário hodierno, focalizando a problemática referente
ao fenômeno da racionalização do mundo legitimado pelo potencial tecnológico da
ciência e a possibilidade de uma argumentação discursiva crítica frente às atitudes
humanas implicadas neste processo. A redução da racionalidade ao aspecto técnico-
instrumental restringe o espaço de discussão sobre questões problemáticas que
dizem respeito a um mundo comum a todos e requer o entendimento com o outro.
No campo prático-moral, a atitude monológica no enfrentamento com o mundo
enquadrou as questões éticas a um modo de vida individual, limitando o potencial
reflexivo do sujeito sobre seu agir, uma vez que este é possível de ser realizado
na relação intersubjetiva via discurso prático. As conseqüências de uma ética
subjetivista alcançaram escala global e questionam a parcela de responsabilidade
solidária diante dos problemas atuais os quais demandam o uso de uma
racionalidade comunicativa voltada ao reconhecimento da alteridade num esforço
racionalmente motivado. Habermas propõe o recurso argumentativo em favor de
uma racionalidade comunicativa, na perspectiva de que seja possível resgatar
pretensões de validez envolvendo não apenas um mundo objetivo, mas também o
mundo social e subjetivo presentes no contexto vital. O método do discurso,
apresentado pelo filósofo em sua Ética do Discurso, parte de princípios nos quais os
participantes têm de sair de sua posição egocêntrica para o entendimento com o
outro, assumindo a responsabilidade sobre seus proferimentos. Na educação, os
subsídios teóricos presentes na Ética do Discurso levantam expectativas de
contribuir para o agir das diferentes racionalidades presentes na construção do
conhecimento.
Palavras-chave: ética do discurso – racionalidade – ética – moral
ABSTRACT
ETHICS OF THE DISCOURSE AND EDUCATION: from communicative act to
discursive rationality
Author: Irene Monica Knapp
Orienting : Prof. Dr. Amarildo Luiz Trevisan
Saint Maria, march 13
nd
of 2007.
The dissertation to intend to broach pertinent points to the ethics and its relation with
the education in the actual scene, focusing the problematic of the rationalization of
the world. This phenomenon is legitimated for the technological potential of science
and for the human attitudes implied in this process. The reduction of the rationality to
the technician-instrumental aspects restricts the argument space about problematic
questions concerning a common world that requires the agreement with the other. In
the practical-moral field, the monological attitude restricted the ethical questions to an
individualism way of life, limiting the reflexive potential of the subject about his act.
And this reflexive potential is only possible of being carried through the practical
discourse. The consequences of subjectivist ethics had reached global scale and
argue the parcel of responsibility in the face of current problems, which demand the
use of a communicative rationality in a rationally motivated effort. Habermas
considers the reasons resource on behalf of communicative rationality, in perspective
of that it is possible to rescue validity pretensions involving not only the subject world,
but also the social and subject world present in the vital context. The method of the
discourse, presented for the philosopher in his Ethics of the Discourse, asserts that
the participants has to leave their self-centered position for the agreement with the
other, assuming the responsibility about their utterances. In the education, the
theoretical subsidies present in the Ethics of the Discourse to be able to contribute to
act of the different rationalities for the benefit of the knowledge construction.
Word-key: ethics of the discourse – rationality – ethical - moral
1.SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS......................................................................9
1. Contextualização da pesquisa e caminho investigativo.........................................14
CAPÍTULO I. ÉTICA E AGIR HUMANO: a idéia de bem enquanto princípio
educativo....................................................................................................................21
1.1 Campos principais de estudo sobre a
ética..........................................................23
1.2 Concepções filosóficas: a intencionalidade dos princípios éticos........................28
1.3 Ética e moral: do indivíduo à sociedade...............................................................37
CAPÍTULO II. DIALOGANDO COM A MODERNIDADE: possibilidades de um
filosofar hermenêutico em tempos de crise................................................................45
2.1 A modernidade em questão: a racionalização da razão......................................46
2.2 A racionalidade discursiva: o uso racional do saber, do agir e do falar...............54
CAPÍTULO III. A ÉTICA DO DISCURSO EM HABERMAS: a conciliação entre justiça
e solidariedade...........................................................................................................66
3.1KANT: a boa vontade e o dever enquanto manifestação do bem.........................69
3.2 A Ética do Discurso..............................................................................................75
CAPÍTULO IV. FILOSOFIA, ÉTICA E AGIR COMUNICATIVO: pensando a formação
a partir da intersubjetividade......................................................................................87
4.1 Ética do Discurso: o entendimento buscado via processos de
aprendizagem.............................................................................................................88
4.2 Educação e a Ética do Discurso: a práxis da argumentação na ressignificação da
prática pedagógica.....................................................................................................94
4.3 “A corrente do bem”..............................................................................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................105
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................110
8
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Os escritos a seguir pretendem aprofundar a discussão acerca da dimensão
ético-moral na formação do ser humano e sua importância no cenário hodierno.
Partindo desta temática, o trabalho volta-se para a educação pautada unicamente
pelo predomínio do conhecimento científico, enquanto oriundo de uma racionalidade
instrumental
1
e fruto dos descaminhos da modernidade, que emergiu historicamente
na Europa dos séculos XVI e XVII. O interesse pelo assunto instituiu-se no suposto
de que à educação cabe sua parcela de responsabilidade em estender suas
propostas para uma formação ético-moral, uma vez que essa trata das escolhas e,
conseqüentemente, a partir delas, da forma de agir do indivíduo na sua relação com
a alteridade do outro e do mundo.
Observa-se no contexto educacional o predomínio de uma cultura voltada
para fins particulares, na qual impera uma preocupação voltada para a formação
específica e que procura atender unicamente às demandas do mercado de trabalho.
O fato aponta para o encolhimento do papel da educação na sua possibilidade de
inventariar, enquanto espaço de socialização, a importância da formação de valores
e do espírito crítico, de sujeitos envolvidos na interação social e com a natureza. Tal
proposta requer, então, a tematização sobre o modelo de formação técnico-científica
adotado em detrimento das dimensões ética e estética da convivência humana. A
unilateralização da formação trouxe sérias conseqüências para a sociedade como
um todo, provocadas, principalmente, pelo rompimento com as estruturas simbólicas
dos grupos sociais, os quais se constituem nas relações interpessoais do mundo
vivido. A ênfase dada pelos modelos educativos ao aparato cognitivo-instrumental do
1
Habermas (2004b) apóia sua teoria numa concepção normativa voltada para o entendimento mútuo, na qual os
envolvidos estabelecem critérios para a aceitabilidade racional de seus proferimentos através da via
argumentativa. Para o filósofo, a racionalidade instrumental seria apenas uma das raízes da racionalidade na qual
se apóia o ser humano na sua relação com o mundo. O racional refere-se à capacidade de pensar, agir e de falar
estruturado em três diferentes raízes da racionalidade: a racionalidade epistêmica, a racionalidade teleológica e a
racionalidade comunicativa.
sujeito reforçou a cultura
2
individualista, competitiva e excludente, características de
uma sociedade capitalista. O individualismo instaurado demonstra assim os seus
resultados, numa sociedade cujos cidadãos empenham seus esforços,
predominantemente, para fins particulares, incorrendo em ações abusivas com o
objetivo de alcançar interesses estratégicos. A potencialização técnica
3
das
atividades humanas colocou a própria humanidade diante de problemas que se
estendem ao mundo comum a todos. Tais problemas expõem a urgência da
responsabilidade ética, diante das conseqüências que colocam em risco o próprio
ecossistema. Entre esses problemas destacam-se os desequilíbrios bio-ecológicos,
provocados, principalmente, pelo aquecimento global (efeito estufa), desencadeando
diversos fenômenos climáticos que põem em risco a vida humana e a sua própria
sustentabilidade devido aos prejuízos causados à natureza. A sempre eminente
ameaça de uma guerra nuclear é uma demonstração do inconseqüente uso da
tecnologia científica. A violência urbana também se apresenta como outro problema
na sociedade atual, causando insegurança diante da criminalidade que banaliza a
vida humana.
Esta situação agrava-se ainda mais no quadro da corrupção política, que
tem se acentuado ultimamente em nosso meio, através da negligência dos
2
Expor aqui um conceito claro de cultura é tarefa complexa e requer aprofundamentos por vários caminhos.
Relacionar educação e cultura requer esforço adicional, pois se trata de um campo teórico vasto e complexo, no
qual referências sobre um conceito definindo cultura no sentido da transmissão do patrimônio intelectual da
humanidade; ou enquanto patrimônio de conhecimentos, valores e tradições de uma cultura específica; ou ainda,
dando ênfase às culturas pluralistas das formas de vida de grupos sociais; como também, ocorrendo a noção de
“cultura humana” ( FORQUIN, 1993). O autor ainda discorre sobre a cultura sui generis específica da prática
escolar, a chamada cultura escolar. A relação entre educação e cultura, de forma sucinta, estabelece-se na
dinâmica que envolve a educação de alguém por alguém, o que supõe “a comunicação, a transmissão, a
aquisição de alguma coisa: conhecimentos, competência, crenças, hábitos, valores, que constituem o que se
chama precisamente de ‘conteúdo’ da educação” (p.10). Habermas (1990) entende a cultura como um dos
componentes do mundo da vida além da sociedade e as estruturas da personalidade. Os três componentes
reproduzem-se a partir de processos de socialização mediados pela rede da prática comunicativa. Para Habermas,
“a cultura é o armazém do saber, do qual os participantes extraem interpretações no momento em que se
entendem mutuamente sobre algo[...]. O saber cultural está encarnado em formas simbólicas em objetos de
uso, tecnologias, em palavras e teorias, em livros e documentos, bem como ações” (p.p. 96-98). Sendo assim,
cultura não é apenas o legado da tradição encontrado no mundo objetivo, mas relaciona-se dialeticamente com o
mundo social e subjetivo e abre horizontes para uma reconstrução racional dos saberes, tarefa para uma
hermenêutica filosófica. É sob esta concepção que cultura está sendo referida no decorrer do trabalho. Este
conceito inspira-se na idéia de formação (Bildung) do idealismo alemão do século XVIII. A cultura seria o
caminho para que o indivíduo pudesse desenvolver-se de forma integral: a sua formação intelectual, moral e
estética (HELL,1989). Neste sentido, a idéia de formação no decorrer do trabalho apresenta-se na tentativa de
ampliar um conceito reduzido de formação proporcionado pelas atuais posturas educativas, uma vez que entende
a formação enquanto aperfeiçoamento técnico do sujeito em detrimento de sua formação ética e estética.
APEL, Karl-Otto, 1994.
3
10
problemas sociais a favor de benefícios próprios. Além disso, o desrespeito ao
patrimônio público e o uso indevido dos recursos financeiros são situações
denunciadas diariamente através dos meios de comunicação social. Estas
situações, entre outras que poderiam ser listadas, expressa a realidade de grande
parte da estrutura política de nosso país, o que traz à tona o questionamento diante
da responsabilidade das instituições e da própria sociedade acerca da formação
ética e moral do ser humano. Ao assinalar o predomínio de interesses particulares
sobre o mundo comum, evidencia-se o desafio sobre uma formação que leve em
conta a capacidade do ser humano de entender-se com o outro de forma
cooperativa, abrindo-se para o reconhecimento mútuo das razões levantadas e
responsabilizando-se eticamente pelas suas palavras e ações.
Sendo assim, diante do quadro exposto acima, impõem-se algumas
questões: quais as possibilidades das instituições educacionais, enquanto parte de
um sistema político-econômico, envolverem-se efetivamente com o debate dos
problemas éticos que se apresentam na atualidade? Como a educação assume, em
sua proposta pedagógica, a responsabilidade normativa diante das escolhas e
atitudes em um contexto que reclama o entendimento cooperativo sobre assuntos
que transcendem o universo subjetivo?
Considerando tais questões e os problemas apontados anteriormente, a
hipótese do trabalho parte da idéia de que a educação pode desprender-se das
amarras científico-tecnológicas estendidas à formação que atende,
predominantemente, a interesses particulares - como a formação específica voltada
para as necessidades do mundo do trabalho -, na medida em que tematizar o mundo
da vida problematizado nas causas que envolvem a todos em nível global. A Ética
do Discurso, proposta por Habermas apresenta aspectos dignos de consideração
para o tratamento de tais questões. Assim, a pesquisa tem como meta principal
investigar as possibilidades expressas na Ética do Discurso de contribuir com a
prática pedagógica, considerando as propostas de uma educação atenta aos
princípios mais universais de conduta, que remetem ao seu papel na constituição de
uma sociedade formada por cidadãos responsáveis e solidários com suas ações no
mundo.
O conceito de racionalidade discursiva, apresentada pelo filósofo como
elemento integrador na avaliação do pensar, do agir e do falar, pressupõe a
11
educação como espaço importante no desenvolvimento da competência
comunicativa, embora esse processo se encontre implicado nas situações que
compreendem o mundo da vida, porém, pertencentes a uma realidade objetiva. Os
diversos assuntos abordados intuitivamente no ambiente pedagógico podem ser
problematizados desse modo em nível de discurso, favorecendo a revisão crítica e a
reconstrução de formas mais elaborada e com outro nível de compreensão.
Nesta abertura ao mundo através da linguagem, as questões ético-morais
ganham espaço e conteúdo de discussão. Os sujeitos envolvidos trazem consigo
expectativas, incertezas e interesses oriundos de suas esferas culturais de valor
inseridas na vida. Estes elementos são expressos das mais diversas formas dentro
do espaço educacional na interação com os outros.
Uma outra perspectiva é apontada por Habermas quando aduz a
necessidade de uma compreensão descentrada das contingências, porém fazendo
parte de um processo que tem seu ponto de partida na prática comunicativa. O
mundo da vida fica, portanto expresso na identidade de cada um, nos valores que
formam seu caráter, na autocompreensão existencial a partir de seu contexto
cultural. Estas manifestações individuais tornam-se evidentes nas mais diversas
situações que envolvem os relacionamentos interpessoais e as divergências ou
preferências acerca de atitudes e opiniões.
Na prática pedagógica, quando situações problemáticas são abordadas
apenas enquanto opções pessoais, perde-se a oportunidade de ampliar a
capacidade de compreensão, efetuando assim o processo de abstração
reflexionante, como aponta Habermas. Questões éticas são o ponto de partida para
a discussão de pontos de vista morais, que transcendem o mundo contingente, na
expectativa de contribuir para uma formação crítico-reflexiva de situações que não
se restringem ao mundo da vida, mas sempre mantém com ele uma estreita ligação
de partida. A pluralidade presente no ambiente educacional exige esta capacidade
de compreensão descentrada de mundo, de forma que possa considerar a todos
igualmente. Mas nesse reconhecimento da universalidade, a pluralidade, e por conta
disso, a singularidade de cada um já está pressuposta.
Por esse caminho, fica claro que a Ética do Discurso, de Habermas,
pautada por uma razão comunicativa, torna-se um veículo importante para auxiliar
12
na permanente revisão crítica das concepções educativas, colocando em debate
temas que envolvam questões como respeito, justiça e solidariedade enquanto
práticas orientadoras do agir moral nos dias atuais. Habermas configura a Ética do
Discurso no horizonte das relações intersubjetivas, mediadas pelo uso
argumentativo da linguagem. Neste processo, além da liberdade de cada
participante em assumir seu ponto de vista, ocorre uma segunda condição para a
busca do entendimento, a de que haja uma atitude cooperativa na exposição das
razões aceitáveis por todos. Ou seja, de que em tal prática argumentativa, a
autoridade epistêmica atribuída para cada um individualmente, “seja exercida de
acordo com a busca de um acordo racional; que, portanto, sejam escolhidas
soluções racionalmente aceitáveis para todos os envolvidos e todos os que por elas
forem afetados” (Habermas, 2004, p. 16).
Os subsídios teóricos, apresentados na Ética do Discurso, remetem
consequentemente para possíveis influxos no campo da educação, na possibilidade
de uma relação mais significativa entre conteúdos acadêmicos e o mundo da vida. A
interpretação do filme “A corrente do bem”
4
, é pensada neste sentido. Um filme é
uma forma de entretenimento bastante comum na sociedade em geral. Trazê-lo para
o campo pedagógico parte do pressuposto de que este recurso áudio-visual contém
um potencial educativo possibilitado pela tematização das questões apresentadas
nesta narrativa. O debate acerca de uma narrativa como essa indica possibilidades
de contribuição para o desenvolvimento do potencial argumentativo, em favor do
“universal comum a todos” presente de maneira contrafática no discurso.
O filme narra a história de um professor que lança um desafio a seus
alunos no início do ano letivo, em uma de suas primeiras aulas de Estudos Sociais:
criar algo que possa mudar o mundo e colocá-lo em prática.
4
As informações e imagens a respeito do filme foram localizadas através do site de busca:
http://www.google.com.br/search?hl=pt
BR&q=FILME+A+CORRENTE+DO+BEM&btnG=Pesquisa+Google&meta=
13
Trevor MacKinney é um aluno que se sente motivado pelo desafio proposto
pelo professor. Assim, empenha-se em formular um jogo que chamou de “pay it
forward”. O jogo consiste em retribuir o favor recebido, criando uma espécie de
corrente do bem, ao passar adiante para outras três pessoas um favor que elas não
conseguiriam realizar sozinhas, mas apenas com a ajuda de outra pessoa. Em meio
a algumas decepções, a idéia começa a funcionar, envolvendo o próprio professor
Eugene, ajudando-o a desvencilhar-se de alguns segredos do passado, e também à
mãe de Trevor, Arlene, a encontrar um novo sentido para sua vida. Dessa maneira, o
enredo do filme ilustra o envolvimento de alunos e professor com sua competência
ético-comunicativa, estabelecendo uma relação dialógica entre participantes e a
tematização da narrativa. Uma discussão mais aprofundada do filme será
desenvolvida no quarto capítulo da pesquisa.
1. Contextualização da pesquisa e caminho investigativo
O interesse pelo tema da pesquisa evidenciou-se no decorrer do curso de
Mestrado, à medida que as leituras no campo da Filosofia e da Filosofia da
Educação, iniciadas anteriormente no curso de Especialização, foram sendo
assimiladas e relacionadas a outros conhecimentos mais específicos da área da
Pedagogia. O processo de interpretação e compreensão da interlocução dos
14
campos teóricos citados provocou momentos de conflito e de autocrítica sobre o
fazer pedagógico. Ao mesmo tempo, um outro olhar sobre questões pertinentes ao
espaço escolar, experienciado ao longo dos anos, veio à tona.
Entre as questões percebidas situa-se a racionalização da formação
educativa, restringida a uma aprendizagem instrumental, que apresenta dificuldades
em lidar com situações cada vez mais presentes na educação tais como o excesso
de informações através das tecnologias da comunicação em detrimento de um
posicionamento reflexivo crítico diante das mesmas. Para Habermas (1989), a
fragmentação das estruturas da racionalidade cognitivo-instrumental, estético-
expressiva e a moral-prática gerou uma divisão de trabalho sob a cultura dos
especialistas, que se retraiu em campos autônomos, perdendo sua relação temática
com o todo. Sob a rubrica da modernidade, estas grandes unilateralizações da razão
geram problemas de mediação com um mundo vivido que mantém a unidade de
suas interpretações sobre o pensar, o agir e o falar perante as situações do
cotidiano. Foi por esse viés que minhas preocupações em relação às questões
éticas na educação acabaram se consolidando. O interesse pelo tema da pesquisa
justifica-se aqui, devido a importância de considerar a educação enquanto um
espaço, não apenas de reprodução de conteúdos instrumentais, mas também como
locus de promoção da racionalidade reflexiva acerca das escolhas éticas
necessárias diante do mundo vital compartilhado.
A redução do conhecimento à simples demonstração de estados de coisas,
instaura um ambiente perturbador na educação pela falta de sentido gerado pela
descontextualização e fragmentação dos conteúdos. Neste sentido, a hermenêutica
filosófica apresenta-se como possibilidade para a interpretação dos problemas, na
expectativa de compreender as razões que, a princípio, questionadas, tornam-se
estranhas ao contexto. A educação sente-se beneficiada com este caminho
interpretativo, o qual possibilita a retomada crítico-reflexiva dos fundamentos
presentes na tradição a partir de outras abordagens teóricas, na perspectiva de
atualização de conceitos importantes no processo pedagógico.
Segundo Hermann (2003), a hermenêutica traz a possibilidade de que o
fazer pedagógico possa interpretar as racionalidades que atuam em seu meio. Para
a autora, a hermenêutica movimenta-se ancorada em uma racionalidade
comunicativa, dialógica, que “conduz à verdade pelas condições humanas do
15
discurso e da linguagem [...], o que nos permite encontrar outros possíveis sentidos
para a ação educativa” (p.83). É um entendimento pautado por razões nas quais os
participantes têm a liberdade de optar afirmativamente ou negativamente pelas suas
pretensões de validez. A hermenêutica filosófica, conforme Habermas, tem o
potencial de dialogar com o horizonte do mundo da vida, que por algum motivo
apresenta-se perturbado, necessitando de uma via de entendimento. Ao defrontar-se
com um ambiente perplexo
a hermenêutica filosófica investiga a competência comunicativa interpretativa
dos falantes adultos sob o ponto de vista de como um sujeito capaz de
linguagem e de ação pode fazer-se entender em um ambiente estranho,
repleto de manifestações que resultam ininteligíveis (1998b, p. 182).
Entendimento, conforme o autor, não significa simplesmente acatar as
concepções do outro, mas sim dialogar a partir de razões que são reconhecidas
mutuamente. O controle sobre o outro, nega a possibilidade da emancipação e
autocrítica, pois, não permite aprender com o outro e aprender com seus acertos e
falhas, uma vez que tal possibilidade efetiva-se via linguagem, permitindo o
esclarecimento mútuo.
Compreender o processo de aprendizagem humano não pode restringir-se a
uma interpretação lógico-formal dos processos mentais. Tal postura deixa “escapar a
experiência dos atores envolvidos no processo, com seus inevitáveis preconceitos e
danos, e, por conseqüência, empobrecem a experiência educativa” (HERMANN,
2003, p. 84). A abordagem hermenêutica mostra-se assim favorável à discussão
pretendida, uma vez que nos remete a uma postura reflexivo-crítica sobre as
estruturas da comunicação através do uso da linguagem ampliada.
Para Habermas( 1987), a tarefa da hermenêutica filosófica é a de elucidar
os processos de compreensão ordinários, presentes no uso cotidiano da linguagem,
para um uso discursivo crítico que ele denominou de discurso competente (gekonnte
Rede). Seria outro nível de consciência adquirido no discurso compartilhado via
competência comunicativa, capaz de “alterar esquemas de interpretação a que
estamos acostumados, com a finalidade de aprender (e ensinar) a ver de outra
maneira e ao mesmo tempo julgar de novo o que foi compreendido previamente de
16
maneira tradicional” (p. 31). É um olhar sobre o conhecimento que não exclui as
experiências prévias. Estas são incluídas na situação inicial do agir comunicativo
presente no contexto histórico-efetual e que podem ampliar-se, via abstração
reflexionante, para uma compreensão descentrada de mundo.
Neste sentido, a hermenêutica opera em dois níveis de consciência: o de
uma auto-reflexão sobre as experiências do falante em sua competência
comunicativa que funciona inconscientemente; para um nível elevado de consciência
via reconstrução racional deste conhecimento pré-teórico, que busca explicar o uso
dessa competência lingüística em um contexto histórico-efetual, no qual o falante
depara-se com ambientes, inicialmente estranhos, problematizados por outros
argumentos racionalmente motivados.
“A hermenêutica filosófica desenvolve, portanto, [...] as noções das
estruturas das linguagens naturais que podem ser adquiridas a partir de
um uso refletido da competência comunicativa: reflexividade e objetividade
são traços fundamentais da linguagem, tanto quanto a criatividade e a
integração de linguagem e práxis vital” (HABERMAS, 1987, p.p. 32 e33).
Pelo caminho hermenêutico adotado, as obras escolhidas, como referência
para o desenvolvimento do tema da pesquisa, colocam-se pertinentes para elucidar
pontos problemáticos no contexto educativo. Para o embasamento do trabalho,
destaco as principais obras de Jürgen Habermas utilizadas no desenvolvimento da
pesquisa: Consciência moral e agir comunicativo (1989); Pensamento pós-
metafísico (1990); Comentários à Ética do Discurso (1991); Teoría de la acción
comunicativa, vol.I (1998); Verdade e Justificação (2004a); e A inclusão do outro
(2004b). Assim sendo, a pesquisa apresenta-se de caráter eminentemente
bibliográfico, procurando assinalar algumas possibilidades de se pensar outras
abordagens pedagógicas possíveis e importantes hodiernamente. O trabalho situa-
se no campo teórico, não focalizando, assim, situações de caráter empírico. Nesse
sentido, a teoria da Ética do Discurso é distinguida como forma de reflexão crítica
sobre o conhecimento e a racionalidade humana na sua relação com a educação e
não sobre contextos específicos, no entanto, estes compreenderam a situação
prévia da problemática.
17
A teoria habermasiana mostra-se profícua na interpretação e compreensão
de problemas e questões que permeiam o ambiente educacional. Em especial,
referendo mais uma vez as contribuições da Ética do Discurso para renovar o campo
pedagógico, ao discorrer sobre os processos de formação argumentativa da
vontade, orientando-se sob os princípios da justiça e da solidariedade na busca
cooperante da verdade. Neste sentido, a razão comunicativa instaura outras formas
de linguagem, que inclui não apenas uma racionalidade lógico-formal. Ela abre o
horizonte para que o sentido dos proferimentos seja situado historicamente,
considerando as formas de vida socioculturais, porém, sem perder de vista a
fundamentação teórica sobre o pensar e o agir enquanto especificidade humana.
Essa sempre foi uma das tarefas da filosofia, impondo-se mais uma vez com todos
os desafios que lhe cabem no atual contexto em que, cada vez mais, a pluralidade
de formas de vida exige reconhecimento. A postura hermenêutica da linguagem, na
sua relação entre teoria e prática, concebe o sujeito do conhecimento enquanto
inserido em uma atitude dialógica com o mundo, trazendo a dimensão reflexivo-
crítica de seu pensar e agir numa expectativa de reconstrução via processo
argumentativo.
Para Habermas, a multiplicidade e a complexidade das situações que se
situam em uma esfera público-social não conseguem ser interpretadas apenas pela
definição de conceitos, estatísticas ou pela descrição de estados de coisas. Assim, a
prática comunicativa deveria ser um elemento complementar à ação instrumental, no
sentido de colocar os sujeitos numa posição de participantes do contexto e não
meros observadores. Ou seja, nos princípios de uma ética da responsabilidade, não
basta conhecer ou perguntar sobre “o que posso ou quero fazer?”, mas, também “o
que devo fazer?” o que implica em escolhas ou decisões. Assim, para Habermas
(1989) o questionamento “o que devo fazer?” deve fundamentar-se em normas
orientadas por razões, que por sua vez remetem ao “por quê?” do agir e do pensar,
o que pressupõe a dimensão crítica frente a um enunciado. Esses questionamentos
não podem ser respondidos apenas do ponto de vista da racionalidade meio-fim,
pois requerem o entendimento com o outro a respeito de algo através da
competência comunicativa
5
específica do ser humano.
5
O conceito de competência comunicativa é formulado por Habermas “mediado por elementos da filosofia
transcendental moderna e elementos provenientes da lingüística e da filosofia da linguagem” (OLIVEIRA, 2001,
p. 293). Para Habermas, a linguagem não fica limitada à competência lingüística de um falante conhecedor de
18
Dessa forma, as idéias expressas na Ética do Discurso de Habermas
trazem indícios favoráveis para se desenvolver a competência comunicativa no
processo de aprendizagem no ambiente pedagógico, sem prescindir de seus
conteúdos cognitvo-instrumentais, mas sim ampliando a compreensão e
interpretação do meio sem negligenciar as dimensões sociais e subjetivas, que
desde sempre se encontram inseridas em um mesmo mundo objetivo. Com
propósito de desenvolver a temática do trabalho, o texto da pesquisa segue
organizado em quatro capítulos teóricos no sentido de estabelecer uma relação
entre os assuntos escolhidos de modo que, em sua totalidade, possam ampliar a
compreensão das pontuações feitas e elucidar os questionamentos abordados no
início da pesquisa.
No primeiro capítulo almejo, inicialmente, fazer um breve excurso sobre as
divisões surgidas acerca da ética, conforme suas diferentes escolas e correntes
filosóficas, inserindo também a Ética do Discurso habermasiana. A seguir, situo as
origens do ethos na idéia de formação inscrita na Paidéia grega, com o propósito de
assinalar as diferentes idéias de bem que orientaram a conduta humana, passando
pela ética cristã e introduzindo brevemente a modernidade secularizada. Finalizando
o primeiro capítulo teórico, proponho uma diferenciação entre ética e moral na visão
de alguns teóricos. Esta diferenciação acontece dada a crescente complexificação
das sociedades plurais, que necessitam se abstraírem de seus contextos
contingentes para buscar referências que possam atrair a adesão de todos.
No segundo capítulo, pretendo expor as principais características do
pensamento moderno e suas implicações na organização da sociedade. A idéia de
racionalização na visão de Max Weber aparece no desenvolvimento do texto, neste
primeiro momento. Num segundo momento, as três raízes da racionalidade,
discutidas por Habermas, são interpretadas como caminho para uma racionalidade
reflexiva de caráter integrador.
regras abstratas geradoras de linguagem - referindo-se à teoria da linguagem de Chomsky - mas de um falante
inserido em contextos de ão. Enquanto a competência lingüística diz respeito à capacidade lingüística dos
falantes inseridos em um sistema de regras geradoras da linguagem, na competência comunicativa essa
capacidade permite o falante interagir no contexto das regras, situando a linguagem numa relação intersubjetiva,
na qual o falante busca entendimento com o outro sobre algo no mundo.
19
A seguir, no terceiro capítulo, apresento a Ética do Discurso de forma
aprofundada, embora, dada sua complexidade, restrinjo-me aos aspectos principais.
Uma vez que Habermas tem como base para sua teoria ético-moral a ética kantiana,
esta é retomada, em um primeiro momento, em alguns pontos que considero
importantes. Posteriormente, reflito sobre os princípios da Ética do Discurso,
expressos a partir do ‘método discursivo’ de uma prática argumentativa. O método
do discurso tem como base a participação de todos na avaliação das pretensões de
validez, que são valorizadas a partir de sua referência ao mundo objetivo, social e
subjetivo.
No quarto capítulo, procuro estabelecer uma relação entre conceitos da
Psicologia Cognitivista, em especial, segundo as idéias de Jean Piaget, e a Ética, de
Habermas. A partir da explanação das idéias pode-se perceber a relação entre o
processo de formação da vontade discursiva com o processo de aprendizagem que
tal feito exige dos sujeitos. Nesta perspectiva, o método do discurso prático é
pensado como elemento de contribuição para o desenvolvimento da competência
comunicativa e caminho para um nível mais ampliado de argumentação frente às
tematizações possíveis do contexto educativo. Enfim, a Ética do Discurso é
apresentada como referência para a saída do egocentrismo primário (compreensão
descentrada de mundo) específico do ser humano, para um conhecimento
compartilhado por argumentações racionalmente motivadas (abstração
reflexionante).
20
- CAPÍTULO I -
ÉTICA E AGIR HUMANO: a idéia de bem enquanto princípio educativo
A ética é entendida, tradicionalmente, como um estudo, uma reflexão
teórico-filosófica sobre a forma de agir do ser humano, sobre os costumes e
normas que orientam as formas de vida. Reale(1993) situa a reflexão ética pré-
filosófica e a filosofia moral a partir de alguns esclarecimentos acerca de
distinções terminológicas: a) moralidade ou conduta moral é algo comum a todos
os seres humanos, desde os mais primitivos, uma vez que qualquer grupo unido
por algum objetivo em comum necessita portar-se de alguma maneira aceitável; b)
convicções morais são estabelecidas pelas tradições herdadas e constituídas nos
grupos sociais, seja primeiramente na família, para estender-se à sociedade de
forma mais abrangente. É o que se denomina de civilização a qual é incorporada e
acrescida ao patrimônio cultural através da adoção de máximas e de preceitos
legitimadas pela prática dos grupos sociais; c) filosofia moral é um outro nível de
reflexão na qual a razão vai além das causas particulares, pois busca estabelecer
relações que possam ser universalizáveis. Ou seja, submete as convicções morais
ao crivo crítico, questionando sobre sua validade e justificabilidade. Para isso
remete as normas de conduta a um princípio que é dado pela natureza do homem,
pela sua essência, diferente do princípio dos outros seres.
Conhecer a essência humana seria condição para o desenvolvimento da
verdadeira areté (virtude) do homem, que é seu fim último. A idéia de
aperfeiçoamento da alma aponta para uma educação voltada para a virtude.
Assim, o fundamento, a razão da educação torna-se a formação do homem em
sua essência, papel atribuído aos filósofos. Esta formação da perfeição humana
orientada por preceitos éticos é o que traduz a concepção da Paidéia grega para
a qual deveria se dirigir todos os esforços humanos como justificação da
comunidade e da individualidade” (HERMANN, 2001, p. 22).
Sendo assim, a ética trata de enunciados descritivos e normativos. Os
enunciados descritivos referem-se às ações e costumes da prática de vida
cotidiana, ou seja, da aplicação prática dos princípios éticos. Neste sentido, a ética
sob o aspecto descritivo considera a pluralidade cultural nos diferentes espaços e
épocas históricas. Posicionando-se além do que é contingente, os enunciados
ético-normativos tratam de normas de comportamento que ultrapassam
determinado tempo e espaço. As proposições normativas referem-se a temas
gerais, universais tais como as idéias sobre a liberdade e a justiça, a consciência,
as leis, a idéia de bem, entre outros.
Neste capítulo apresento, primeiramente, um breve registro de divisões
surgidas no estudo sobre a ética conforme suas diferentes escolas e correntes
filosóficas a partir do que julga ser uma ação moralmente correta ou não. A Ética
do Discurso de Habermas apresenta-se como idéia promissora para a formação
discursiva da vontade que considere os interesses do indivíduo em seu vínculo
social. Habermas aposta na capacidade do ser humano de sair de seu
egocentrismo para colocar-se na posição do outro e assumir uma atitude
cooperativa na busca do entendimento mútuo (1.1).
Embora os valores e costumes modificam-se no transcorrer da história,
permanece a preocupação com uma formação que pudesse orientar os impulsos e
a liberdade do homem sob os princípios da justiça, responsabilidade e
solidariedade. Assim, o ideal ético de formação do homem representa o cultivo do
22
bem através do desenvolvimento de virtudes, tanto em seu crescimento individual
quanto na interação com o mundo. Neste contexto surge a ciência do ethos que
na sua origem representou a formação de hábitos e costumes inspirando a
concepção da Paidéia grega. No mundo ocidental, a ética grega foi assimilada
pela ética cristã que influenciou fortemente os ideais de vida humana. O modelo
único imposto pelo cristianismo entra em crise por suprimir a pluralidade existente
no contexto histórico e que passa a defender diferentes concepções de mundo
(1.2).
Diante da complexificação da sociedade, impulsionada pela pluralidade
de culturas e interesses, não representadas sob um único paradigma, instaura-se
a necessidade de pensar o homem em sua individualidade ética como
pressuposto para a possibilidade de seu convívio num espaço normativo mais
amplo e diverso em suas culturas. Ética e moral, que tradicionalmente
identificavam-se como sendo o mesmo objeto de estudo, passam a ter definições
mais específicas a partir da relação indivíduo/sociedade. Por conta disso, o
desafio aos estudos sobre a ética presentifica-se na avaliação de princípios morais
que possam obter respaldo universal sem suprimir os contextos sócio-histórico-
culturais, uma vez que na prática cotidiana, as questões normativas entrecruzam-
se com os costumes de um determinado tempo e lugar. Finalizando o capítulo,
novamente a teoria habermasiana figura como profícua no campo da formação
ética, pois concebe o desenvolvimento da capacidade do indivíduo em assumir
normas morais como fruto de processos de aprendizagem em suas interações
sociais (1.3).
1.1. Campos principais de estudo sobre a ética
Borges et al. (2002), indica as divisões da ética em três campos
principais: metaética; ética normativa; e ética aplicada. A metaética pretende
23
investigar a natureza dos princípios morais nas diversas teorias sobre a ética e
sua relação com o meio de acordo com os seus preceitos: se estes são absolutos
ou objetivos; se são inteligíveis; e se podem ser verdadeiros. A ética aplicada
serve-se, segundo a autora, “de princípios extraídos da ética normativa para a
resolução de problemas éticos cotidianos”( p. 8). A ética normativa importa-se com
a forma de agir de acordo com as normas e regras corretas e subdivide-se em
duas categorias: a ética teleológica e a ética deontológica.
A ética teleológica “determina o que é correto de acordo com certa
finalidade (télos) que se pretende atingir” ( Id.ibid., p. 8). Subdivide-se em ética
conseqüencialista ao referir-se às conseqüências da ação e a ética das
virtudes – relativo ao caráter moral ou virtuoso do indivíduo. Na ética
conseqüencialista destacam-se duas correntes principais que são o egoísmo e o
utilitarismo. “Ambas defendem que os seres humanos devem agir de forma tal que
produzam boas conseqüências” (ibid., p. 9). A primeira visa à ação em benefício
próprio e a segunda, age conforme o interesse de todos.
O utilitarismo, na sua origem, foi uma elaboração da modernidade, tendo
como seu nome principal Jeremy Bentham (1748-1832). Porém, pode-se
identificar suas características em tempos bastante remotos, como no caso da
filosofia na Antigüidade com Aristóteles (384-322 a.C.) pregava a felicidade
como bem maior - e Epicuro (341-270 a. C.) considerava o prazer como motor
de nossas ações. Segundo a autora, o utilitarismo faz alusão a várias teorias
sobre a ética. Tanto no egoísmo ético universal cada um age em interesse
próprio quanto no utilitarismo de regra agir de acordo com as regras que
determinem a felicidade de todos a partir de nossas ações - a dificuldade
apresentar-se-ia quanto à edificação de normas éticas além do contexto particular
ou local.
As ações orientadas por interesses particulares deixam sua margem de
dúvida sobre a possibilidade de interagirem com outros interesses da humanidade
em geral. Os interesses particulares podem excluir-se mutuamente e, portanto,
24
não possibilitariam a construção de enunciados universais, importantes e
necessários quando o assunto envolve ética, pois aqueles se constituem na
discussão e estabelecimento de acordos buscados na interação social e não
apenas individual.
Na ética das virtudes, o mais ilustre representante é Aristóteles (384 – 322
a. C.). Em sua obra “Ética a Nicômaco” explana sobre a virtude como fonte de
perfeição humana que se desenvolve, no decorrer da vida, através das boas
ações orientadas pela capacidade do homem em aperfeiçoar seu caráter como
forma de chegar à felicidade. Aristóteles (2004) afirma ser a felicidade o fim
supremo do homem, um bem em si. A felicidade está intimamente relacionada
com o agir do homem, “como uma espécie de boa vida e de boa ação”(I, 8, 10).
Nesse sentido, a felicidade pode ser definida como um processo de aprendizagem
ou de exercício, como se refere o filósofo, que se constitui como o prêmio e a
finalidade da virtude.
A idéia de formação voltada para o bem pressupõe a capacidade do
indivíduo em elevar, a níveis superiores de reflexão e abstração, o elemento
imediato e particular via aprendizagem. A ética, nesse sentido, posiciona-se como
elemento básico para pensar o processo que conduz a esse fim. A metáfora da
caverna, ilustrada no Livro VII da “República” de Platão (427 347 a.C.), faz uma
referência ao nível de conhecimento que o homem adquire na presença da
educação. Embora a idéia de conhecimento, nos filósofos gregos, delimita-se pelo
aspecto contemplativo, percebe-se a conexão entre educação, aprendizagem e
ética enquanto fim educacional. A ética grega serviu de inspiração à ética cristã
que assimilou em sua doutrina a idéia de perfeição divina como fim último, porém
voltada para um único Deus, encarnado na figura de Cristo.
Na ética deontológica, o agir correto situa-se embasado sobre outros
princípios que não sejam os de suas conseqüências como na ética teleológica
acima mencionada. Neste sentido, de acordo com Borges, et al. (2003), a ética
deontológica também é definida como não-conseqüencialista e suas correntes
25
principais são o intucionismo moral, a ética do dever, a ética do discurso e o
contratualismo moral. O intucionismo moral alega a convicção de que o
conhecimento do que é certo ou errado se encontra definido na intuição de
cada. Tal concepção traz a desvantagem de que, não havendo a interferência da
razão, a argumentação quanto à justificação das normas torna-se impossível.
A ética do dever, iniciada por Kant (1724 1804), fundamenta-se por
aquilo que o filósofo denominou de imperativos categóricos - a ação moral é
válida se a regra que a orienta, puder tornar-se uma regra universal. A ética do
discurso, elaborada por Apel(1922 -) e Habermas (1929 -), é uma reformulação da
ética kantiana. A Ética do Discurso será desenvolvida posteriormente, com maior
aprofundamento.
O contratualismo moral inspira-se, principalmente na teoria da justiça de
John Rawls, também analisada por Habermas em sua “’Ética do Discurso”. Os
princípios morais estariam fundamentados na conformação de uma sociedade
democrática, baseada na cooperação entre seus cidadãos através de suas
instituições. Rawls (1981) demonstra em sua obra uma preocupação sobre aquilo
que se coloca como justo, remetendo-se, por sua vez, àquilo que é considerado
como injusto, tendo como fundamento seus princípios de justiça. A teoria de Rawls
volta-se para uma idéia de estrutura social baseada em uma organização
democrática de cidadãos livres e racionais. O contrato, em seus direitos e
deveres, é formulado e regulado por instituições sociais consideradas relevantes
em uma sociedade, tendo como ponto de partida a posição original (véu de
ignorância), que visa uma posição de igualdade Para o autor, as instituições
sociais formam a estrutura básica da sociedade. O principal objetivo da posição
original seria a garantia de um acordo eqüitativo, que Rawls denominou “justiça
como eqüidade”(p. 37).
A teoria de Ralws apóia-se na idéia antecipada de uma sociedade
organizada e bem ordenada por princípios éticos, ignorando possíveis interesses
estratégicos e oportunistas. Sendo assim, quaisquer imprevistos põem em perigo
26
a estrutura planejada, uma vez que estabeleceu como condição original a
subtração das informações que deveriam ser consideradas.
6
Na ética do discurso,
conforme Habermas, a participação de todos livres de coações, compreende a
possibilidade da atitude cooperativa diante das exigências requeridas no contexto.
Aos participantes é evocada a perspectiva de uma relação solidária a partir de
sua pré-compreensão e de sua compreensão de mundo - sendo que, desse
entrelaçamento de concepções, “constrói-se uma perspectiva em primeira pessoa
do plural (‘nossa’) idealmente ampliada, a partir da qual todos possam testar em
conjunto se querem fazer de uma norma discutível a base de sua práxis” (2004b,
p.75-76).
Neste sentido, a teoria exposta à crítica de uma razão pública envolve-se
com “cidadãos de carne e osso” (Ibid., p.79) na sua pluralidade, tomando posição
no reconhecimento da alteridade como um das condições importantes no agir
cooperativo via diálogo. Diante das diferentes concepções valorativas em uma
sociedade pluralista, a Ética do Discurso tem como princípio básico o respeito
inalienável dispensado a cada participante e a responsabilidade solidária por cada
um exigida na construção de acordos. Tais pressupostos configuram como
atitudes favoráveis diante de situações em conflito as quais se deseja resolver
mediante entendimentos que possam evitar qualquer tipo de violência. Se a
individualização é possível via socialização, como afirma Habermas (2004),
então se torna possível supor que a constituição de normas em diferentes
contextos possa obter uma base consensual.
Sob tais impasses, os desafios no campo da ética assinalam para uma
teoria que possa considerar os princípios da universalidade sem desligar-se dos
contextos sócio-histórico-culturais, uma vez que na prática cotidiana, as questões
normativas entrecruzam-se com os costumes de um determinado tempo e lugar.
6
A ética do discurso, pelo contrário, o ponto de vista moral como encarnado no procedimento de uma
argumentação levada a efeito intersubjetivamente, que exorta os participantes a erguerem as barreiras de suas
perspectivas de interpretação. [...] Se é tão pesado o ônus da prova ocasionado pela subtração de informações
que se inflige como véu da onisciência às partes em condição primitiva, então é natural que, para diminuir
esse encargo, se operacionalize o ponto de vista moral de maneira distinta. Penso aqui no procedimento
aberto de uma práxis argumentativa que acate as severas pressuposições do ‘uso público da razão’ e que não
descarte já de antemão o pluralismo das convicções e das cosmovisões” (HABERMAS, 2004,p. 75-77)
27
Em outras palavras, quais princípios ético-morais poderiam obter a aceitação
universal sem que se anulasse a necessidade de sua contextualização no
momento de sua aplicação.
Conforme Habermas, a conciliação entre as normas éticas e os costumes
constitui um antigo problema provocado pela “abstração de uma moral que separa
as questões da justiça das do bem-viver” (1991, p. 39). Na filosofia da moral estes
dois aspectos representaram, tradicionalmente, discussões antagônicas entre as
éticas do dever voltadas para as questões de justiça e as éticas do bem que por
sua vez tratam das questões do bem-estar geral.
1.2. Concepções filosóficas: a intencionalidade dos princípios éticos
De um modo geral, ética refere-se a princípios que regem a conduta
humana orientada pelo duplo critério do bem e do mal. Conforme Abagnano
(2000) duas concepções que se colocam como fundamentais para o conceito
de ética: a concepção de ética como ciência que orienta para um fim e para os
meios necessários para atendê-lo, tendo como referência a natureza humana
tanto para o fim quanto para os meios; a concepção de ética enquanto ciência do
móvel (motivo) do agir humano, procurando determinar tal móvel com vistas a
dirigir ou disciplinar essa conduta. De acordo com o autor, embora as duas
concepções designem coisas diferentes, tanto na Antiguidade quanto no mundo
moderno, ocorreu uma mescla em seus usos, provocando algumas confusões,
principalmente, porque ambas traziam uma idéia, aparentemente, idêntica de
bem.
O vocábulo bem, segundo Abagnano, é a palavra tradicional que, na
linguagem moderna, é substituída pela palavra valor e pode referir-se tanto a um
valor material quanto a um sentimento, ação ou comportamento do caráter,
28
identificando-se também, com o adjetivo bom. No sentido de bem moral, a ética
passa a ser o estudo sobre seus diferentes significados históricos que, na filosofia,
podem ser destacadas duas linhas teóricas importantes, conforme o autor, que
são a metafísica identificando o bem como realidade suprema e absoluta e a
subjetivista - que identifica o bem como objeto da vontade e do desejo humano. A
partir do entendimento do que seria o bem, decorrem normas voltadas às formas
de vida de acordo com critérios morais.
Tal pretensão, segundo Hermann, “nasce da reflexão dos costumes e se
origina no espírito grego até chegar à tematização daquilo que chamamos de bem
viver ou bem agir ( 2001,p. 15). Conforme a autora, à ética pertence o papel de,
sob o ponto de vista filosófico, discutir e problematizar os valores morais e a
fundamentação do agir moral na perspectiva do que seja o bem viver e bem agir,
que em sua origem grega, culminava com o convívio na pólis. Assim, a ética grega
preocupava-se em formar hábitos e costumes de vida o ethos - que pudessem
desenvolver as virtudes políticas e sociais. Para Hermann (2001), a ética
representa, na sua origem, a idéia de formação do homem no sentido de conter
seus impulsos e paixões, na possibilidade de estabelecer normas plausíveis no
regramento da convivência humana não apenas sob o ponto de vista particular,
mas, também, na interação social. A partir de tal pensamento, a educação
identifica-se com a ética no intuito de educar o indivíduo para sua relação em uma
comunidade, “articulada com a idéia de bem” (Ibid., p.12).
Historicamente, conforme Hermann, a “história da fundamentação ética
da educação – idéia de formação espiritual, nos moldes do humanismo ocidental –
nasce no interior da filosofia” (ibid.p.p. 21-22). Na sua origem, de acordo com a
autora, a formação nos princípios da Paidéia grega compreendia uma estreita
relação entre o indivíduo e sua atuação pública na comunidade. À idéia da
educação para a virtude (areté) enquanto disposição do homem voltada para o
bem - pressupunha a possibilidade de se constituir uma sociedade justa, em
equilíbrio. O potencial humano para a prática do bem figura enquanto principal
fundamento da Paidéia no sentido de elevar esta capacidade através da
29
educação. O ser humano é pensado, além de seus cuidados físicos, em suas
qualidades morais, que, conforme Hermann, inicia-se com o nascimento da
ciência do ethos , nos séculos V e VI a.C., com nomes como Sócrates, Platão e
Aristóteles.
Valls (2006) situa o interesse das investigações sobre a natureza do bem
moral nas obras de Platão (427-347 a. C.) localizando o período entre os anos
500 e 300 a. C. como um tempo áureo do pensamento grego. Platão sistematiza
as idéias de Sócrates através de suas obras como nos Diálogos. Em seus escritos
desenvolve as idéias sobre a busca do Sumo Bem. uma preocupação em
definir, sob princípios éticos, qual seria o caminho para a busca pela felicidade
pretendida por todos os homens. Percebe-se no diálogo A República( 2005) a
ênfase dada a busca do verdadeiro conhecimento adquirido através do raciocínio
dialético empregado pela filosofia. Essa natureza filosófica, desenvolvida através
de uma educação conveniente, seria capaz de conduzir o indivíduo a toda espécie
de virtude. Ao filósofo caberia guardar as leis e costumes da cidade, uma vez que,
sempre apaixonado pelo saber não se deteria na mera aparência e sim, projetaria
seu olhar para a essência das coisas,
para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto de referência, e
contemplando-a com o maior rigor possível, para então promulgar leis
aqui na terra sobre o belo, o justo, o bom, se for o caso disso, e preservar
as que existirem, mantendo-as a salvo (PLATÃO, 2005, VI, 484a –d).
Em Platão, a idéia de bem se encontrava acima da própria essência das
coisas, acima do belo em si, do bom em si. A idéia do bem era a causa do saber e
da verdade. Estas são semelhantes ao bem, mas “a idéia do bem é a mais
elevada das ciências, e que para ela é que a justiça e as outras virtudes se tornam
úteis e valiosas” (Id.ibid., 505a – e). Dessa forma, o Sumo Bem era possível no
mundo inteligível, no mundo das idéias. Havia uma clara hierarquia entre o mundo
sensível e aquele adquirido pelo esforço da razão no uso de sua inteligência e no
30
entendimento sobre as coisas inteligíveis, imutáveis e por isso, confiáveis. A ética
de Platão evidencia a vida contemplativa, orientada pela prática da virtude como
meio de adequação a essa forma de vida. A dialética é o caminho para a escolha
das virtudes necessárias para alcançar o mundo ideal, imutável, eterno
7
.
Em Aristóteles(384-322 a.C) permanece a idéia das virtudes para a
conquista de uma vida feliz. Porém, Aristóteles considera em suas obras outros
bens necessários ao ser humano em sua vida terrena, diferenciando-se da
excessiva transcendência divina de Platão. Assim, “as virtudes relacionam-se com
ações e paixões, e cada ação e cada paixão é acompanhada de prazer ou de
sofrimento, pelo mesmo motivo a virtude se relacionará com prazeres e
sofrimentos” (2004, II, 3, [5]). A virtude (areté) constitui-se na própria finalidade do
ser humano, a consonância de suas ações com a melhor virtude. Para Aristóteles,
“as virtudes não são paixões nem faculdades,podem ser disposições” (id. Ibid.,
5,[10]) para escolhas feitas e das ações que a elas correspondem. O bom
desempenho dessas ações dependerá da excelência do meio-termo, definido
como a medida justa entre o excesso e a falta.
A atitude virtuosa é a manifestação da atividade racional do homem, o
que o diferencia das demais atitudes comuns aos outros seres vivos. Porém, para
Aristóteles, as virtudes éticas necessárias para se chegar à felicidade não são
geradas espontaneamente, de forma natural. Para o filósofo, recebemos a
potência que deve se desenvolver através do hábito, num esforço contínuo da boa
vontade do indivíduo através da razão livre dos condicionamentos causados pelos
excessos e pelos vícios.
Como vimos, há duas espécies de virtude, a intelectual e a moral. A
primeira deve, em grande parte, sua geração e crescimento ao ensino, e
por isso requer experiência e tempo; ao passo que a virtude moral é
7
está o Sumo Bem, para Platão. A prática da virtude (areté) é a coisa mais preciosa para o homem. A
virtude é a harmonia, a medida (métron) e a proporção, e a harmonia individual e social é assim uma imitação
da ordem cósmica. (Cosmos significa ordem, ao contrário de caos)” (VALLS, 2006, p. 26). Conforme o
autor, embora as éticas gregas enfatizassem a busca pela felicidade, as pesquisas empreendidas por Platão
para este caminho pautavam-se pela questão sobre o Sumo Bem.
31
adquirida em resultado do hábito, de onde seu nome se derivou, por uma
pequena modificação dessa palavra. É evidente, pois, que nenhuma das
virtudes morais surge em nós por natureza, visto que nada que existe por
natureza pode ser alterada pelo hábito (id. Ibid., 1, 15)
A modificação da palavra ethos, citada por Aristóteles, refere-se ao
vocábulo ethiké. Conforme Hermann (2001), a palavra grega ethiké, foi traduzida a
partir do termo latim moralis (moral), tendo como raiz o substantivo mos, “que
significa modo de proceder segundo usos e costumes” (p. 17). A identificação do
termo moral com a palavra ética é produto de modificações ocorridas ao longo da
história. Na tradição grega
8
, ética e moral não correspondiam a contextos
diferentes de ação, havia uma idéia do todo, de cosmos perfeito e harmonioso.
Viver de acordo com esta harmonia era o fundamento da ética grega. Na Grécia
Antiga, o agir individual estava estritamente conectado com sua relação no
convívio social. A formação do homem virtuoso culminava com sua interação na
pólis, ou seja, voltada para a atuação política, como se confirma na filosofia de
Aristóteles (2004), na citação “o homem é um animal político” ( I, 7, 10).
A busca pelo conhecimento do homem revelou-se nas mais diversas
formas de expressão do povo grego como na forma humanizada de seus deuses,
nas esculturas, na poesia, na filosofia e no próprio Estado. Na Paidéia grega a
finalidade da educação é com a formação do homem virtuoso, voltado para a
prática do bem. Esta educação requeria um longo processo educacional para
adquirir o hábito, as disposições já apontadas por Aristóteles, para o agir conforme
a razão. “Desse modo, a educação encontra um fundamento ético que conduz
para a busca da perfeição. Essa idéia de perfeição, que nasce com os gregos,
8
Segundo Valls(2006) o ideal de vida ético na tradição grega definia-se pela busca teórica, mas também
prática, da idéia do Bem. As realidades do mundo participariam de alguma forma, na busca da felicidade que
poderia ser entendida como uma vida virtuosa orientada pela capacidade intelectual do indivíduo, mas que
não desprezasse as outras necessidades do homem para trilhar este caminho. Outra característica da ética
grega seria a vida em harmonia com a natureza e o cosmos, ou seja, com seus deuses personificados e que
detinham as forças naturais. “Viver de acordo com a natureza não era uma questão exclusivamente ecológica,
mas também moral, isto é, de acordo com a sua natureza. A lei moral seria então um aspecto da lei natural” (p.
35).
32
encontra o mais alto desenvolvimento no pensamento cristão” (HERMANN, 2001,
p.29). Conforme a autora, a ética cristã tem como telos a formação da alma, de
natureza divina, enquanto idéia de bem maior, de perfeição humana. Esta
formação é possível via um longo processo que se desenvolve pelo
conhecimento teológico, de um fundamento que tem sua origem em Deus, em um
Deus único, diferente do contexto grego.
Conforme Lima Vaz (1986), as características do pensamento teológico
9
é
iniciado com o pensamento da filosofia grega. Isso é reconhecido na busca pela
perfeição da alma em Sócrates, na valorização da vida contemplativa enquanto
caminho para o conhecimento considerado verdadeiro, na busca incansável pela
essência das coisas reconhecendo o princípio de tudo como algo divino,
transcendente. Lima Vaz aponta a filosofia de Platão e de Aristóteles, entre outras,
como tendo uma visão teológica de mundo.
Para esses dois pensadores, cuja obra assinala a época áurea da filosofia
grega, o ato supremo do conhecimento reside justamente na theoria ou
contemplação, cujo objeto é Deus, isto é, as realidades que no universo,
pelas suas características de perfeição e, sobretudo, de eternidade, de
superação de contingência e precariedade de existência sublunar,
podemos chamar de divinas. Por outro lado, a teologia é o coroamento de
toda a moral estóica, pois essa se fundava na aceitação de um logos, de
uma razão divina imanente ao universo e cuja providência conduz todas
as coisas. [...] Não é, pois, surpreendente que a teologia cristã tenha
lançado raízes no terreno da filosofia grega (LIMA VAZ, 1986, p. 75).
Tomás de Aquino torna-se o principal nome no processo de assimilação
da filosofia aristotélica na teologia cristã ocidental, no século XIII, que procura
9
Segundo Lima Vaz (1986) a teologia apresenta-se no mundo como uma cultura, situando-se como um
paradigma intelectual que se inicia na filosofia grega, perpassa o mundo medieval e persiste no mundo
moderno. Para o autor, reconhecer este fato é imprescindível na avaliação atual da cultura moderna uma vez
que o pensamento teológico, no mundo medieval, deixou marcas expressivas nas filosofias e modelos
políticos e “imprime ainda sua marca visível na face de nossa pretensa cultura secularizada” (pág.71).
33
conjugar a ciência de Deus (teologia) – através da revelação da fé – e a ciência do
homem (filosofia) através da reflexão no uso da razão. Assim, o homem é livre
para fazer suas escolhas porque é dotado de razão, porém a realização perfeita
da liberdade está “na divina essência, ou na intuição e no amor beatificantes de
um Deus pessoal que se revela como Deus de amor: tal é o ensinamento da
revelação cristã” (Id. Ibid., p. 41). Desta forma, a ética cristã espelha-se na figura
de Cristo e nos ensinamentos bíblicos para pregar o amor ao próximo, o
acolhimento ao pobre, ao oprimido, ao estrangeiro, desenvolvendo as virtudes da
justiça e da solidariedade
10
para a vida em comum e como caminho para a
salvação em Deus. É também através da dedicação e da disciplina para o trabalho
que o homem é dignificado e abençoado com sua redenção divina. Deus
estabelece, assim, uma íntima e direta relação com o homem em suas
circunstâncias históricas. Para Lima Vaz (p. 95) se
a experiência grega da “pólis” foi capital para a idéia ocidental de
sociedade política, é permitido pensar que a descoberta bíblica da
responsabilidade pessoal em face de uma instância transcendente [...] em
face de Deus, agiu decisivamente na formação da idéia moderna da
inviolabilidade da consciência pelo poder político.
A idéia do trabalho enquanto gesto criador do homem à semelhança de
Deus é um dos pontos importantes que influenciará toda uma concepção de
educação e disciplina e que marcará o moderno espírito capitalista
11
. Neste
sentido, Lima Vaz define o cristianismo enquanto paidéia religioso-cultural que
preparou o homem ocidental para o mundo através da educação disciplinar em
suas escolas, através de sua moral e de suas crenças. Esta educação atribui ao
indivíduo a responsabilidade social que “mostrou-se historicamente a mais
poderosa força criadora de civilização”, trazendo uma idéia de universalidade.
10
Habermas propõe uma outra concepção de “justiça” e “solidariedade” que será explicitada posteriormente
em sua Ética do Discurso.
11
A respeito, ver obra de Max Weber (2006) “ A ética protestante e o espírito do capitalismo” .
34
Desta forma, pode-se falar de uma influência cristã planetária. Os fenômenos e
conflitos históricos decorrentes até a contemporaneidade refletem os próprios
conflitos da cristianização, principalmente do ocidente, estendendo-se para outras
culturas que vivem a tensão dessa influência.
Na educação, esta tensão é também sentida na forma disciplinar que se
estabeleceu com a doutrinação cristã. O contingente e o universal não encontram
espaço comum na busca pela perfeição pressuposta por um único caminho
direcionado ao fim último que é Deus. A educação pensada para atingir um nível
ascendente, volta-se para um método capaz de realizar a intervenção educativa
necessária “através de um processo de influência, traduzido como vivência
interior, isto é, internalização de vivências” (HERMANN, 2001, p. 32). Esta idéia do
aperfeiçoamento ético humano passa a representar o fim da educação e a
influenciar, de acordo com a autora, as políticas educativas e as reformas
pedagógicas do século XX. Atingir este fim depende do esforço empreendido na
formação do caráter envolvendo a dimensão espiritual do indivíduo.
Esta dependência às disposições do caráter internalizada pela educação
vê-se forçada a reconhecer as contingências presentes “na vida humana. No
entanto, a contingência tende a ser subsumida no universalismo do mais alto bem”
(id. Ibid., p. 33), assim, a própria educação acaba por subordinar-se a essa idéia
universal de bem, excluindo a consideração pelas contingências e à pluralidade
cultural existente no meio. A educação nestes moldes passa a ser questionada e
abre espaço para outras propostas pedagógicas e outras visões de realidade
perpassadas por relacionamentos plurais. O homem passa a ser compreendido
sob a visão antropológica, ou seja, a concepção divina de seu fim último baixa do
céu e volta-se para a terra, ou seja, a ética passa a preocupar-se com a vida
social, com as injustiças econômicas, com um mundo (terreno) mais humano
(VALLS, 2006). A sociedade passa a ser vista e pensada como a realização do
indivíduo e as possibilidades e limites que isto representa.
35
Porém, para Lima Vaz (1986) a visão moderna de homem desenvolveu-se
dentro do terreno da cristandade da Europa Ocidental. Para o autor, a cultura
moderna procura apresentar o oposto desta visão medieval dentro de uma tensão
dialética de negação e supressão, mas que conserva o problema: o que ocupará o
espaço da concepção cristã de mundo; ou haverá uma nova forma daquilo que
permanece da antiga a ser suprimida ou reformulada e quais suas relações com
aquilo que se busca superar? Para o autor, o mundo moderno permanece com o
velho problema sobre “quem é Deus?”, “por que se busca a Deus?”. Do homem
pertencente a uma comunidade que deveria acolhu€eFFuenl
Nesta tensão entre indivíduo, sociedade e mundo, perante a pluralidade
de concepções decorrente do mundo moderno, os termos ética e moral passam a
ter definições mais específicas, o que não acontecia em sua origem grega, uma
vez que os hábitos do indivíduo e os costumes socialmente aceitos eram os
prolongamentos um do outro, consistindo um mesmo objeto de investigação. Em
outra palavras, as escolhas na forma de proceder do ser humano consigo mesmo
estendiam-se para o convívio com a comunidade.
1.3. Ética e moral: do indivíduo à sociedade
A preocupação em distinguir ética e moral surge na filosofia moderna,
“como decorrência do agir humano social e individual diante do processo
crescente de complexificação da sociedade” (HERMANN, 2001, p.17). Conforme a
autora, é Hegel que faz a distinção entre moral e ética sob o paradigma moderno
de racionalidade.
Hegel (1770 1831) retoma os conceitos modernos de consciência
subjetiva, situando-a como uma razão dominadora na qual o próprio sujeito torna-
se objeto, propondo uma razão conciliadora que se efetiva na razão objetiva.
Dessa forma, faz uma distinção entre moral e ética. A moral subjetiva, conforme
Hermann (2001), Hegel denominou de moralidade (Morlalität), enquanto a moral
objetiva a moral que se efetiva nas normas sociais, portanto, válida para todos
como eticidade (Sittlichkeit). Sendo assim, os direitos e necessidades de todos
devem estar de acordo com as normas objetivas, confrontando os interesses
individuais com os interesses públicos, nos quais o próprio sujeito se vê implicado.
Dessa forma, a liberdade individual (subjetividade) efetiva-se na
objetividade dos costumes que para Hegel materializa-se no Estado de direito. O
37
Estado
12
através das instituições sociais, com suas leis, organizaria a sociedade
de modo que pudesse garantir a liberdade individual e a igualdade de direitos para
todos, ou seja, o bem comum. Embora o próprio Hegel tenha percebido,
posteriormente, que sua filosofia não conseguiria abarcar toda a universalidade
pretendida, permaneceu a intenção de uma filosofia conciliadora frente aos
problemas da modernidade. Nota-se em Hegel que para ocorrer a realização da
eticidade, efetivada na vida pública, torna-se necessário assumir um ponto de
vista que ultrapasse os valores particulares. Habermas irá considerar esta atitude
como pré-requisito para estabelecer normas morais em um nível que além do
comportamento convencional em um processo que chamará de saída do
egocentrismo primário para uma compreensão descentrada do mundo. Esta
relação entre o mundo subjetivo/social e o objetivo irá determinar a diferenciação
entre o que Habermas considera ser o “ético” e o “moral”, que será retomado
posteriormente.
As distinções surgidas entre os termos ética e moral, conforme Tugendhat
(2001), configuraram-se principalmente pelas interpretações e traduções feitas dos
vocábulos originais, principalmente ao termo ethos, na ética aristotélica. As
confusões semânticas desse termo (ethos) permanecem mais acentuadas do que
no termo “moral”, o qual se utiliza mais freqüentemente na linguagem normal;
diferente em “ética”, definida a partir de campos mais específicos como na
filosofia. Portanto, estabelecer uma definição mais clara para ética e moral não é
possível segundo seus termos originais, pois as modificações sofridas acabaram
por torná-los “termos técnicos, que na tradição filosófica foram por muito tempo
empregados como equivalentes” (p.34). Segundo o autor, os juízos entre que é
julgado bom ou mau são caracterizados pelos diferentes conceitos de bem, o que
12
Para Lima Vaz (1986) a reflexão sobre os problemas entre a fé e o saber recai sobre a filosofia moderna. As
reflexões sobre o ser humano e seus maiores conflitos acabam desembocando nas relações entre o problema
com Deus presente nos “problemas da sociedade e do Estado. Em face do Estado moderno que se apresenta
como fonte primeira do direito e mesmo da moral, o homem moderno afirma a subjetividade infinita da
consciência, a rocha inabalável do eu penso, na expressão cartesiana. [...] ele luta assim com o que Hegel
chamou de Deus visível sobre a terra, o Deus que caminha na história e se faz presente na majestade do
Estado. [...] Aspiram caminhar a história humana para uma sociedade na qual todas as alienações, todas as
limitações da contingência e da penúria sejam suprimidas: uma sociedade, enfim, em que o divino seja real na
vida vivida pelos próprios homens”(p.p. 84-85)
38
por sua vez orientou as diferentes concepções morais sobre o agir do homem na
sociedade.
Em seu livro Lições sobre ética” (1996), utiliza o termo ética como sendo
uma reflexão filosófica sobre a moral. A reflexão filosófica torna-se imperativa
diante da pluralidade envolvida na dimensão sócio-cultural e traz o desafio de
buscar consensos sobre quais princípios éticos poderiam orientar a conduta moral.
Envolve questões complexas tais como “por que ética? E o que é ética? [...]
porque afinal devemos nos ocupar com a ética?” (p. 11). A idéia de Tugendhat é
de que as conseqüências negativas de uma impossibilidade de se fazer
julgamentos morais seria o próprio motivo desejável para a busca de juízos morais
que pudessem ser justificados e aceitos.
A questão da justificabilidade da moral é colocada como alternativa diante
de uma ética imposta pela autoridade ou, no seu extremo, uma ética orientada
pela fundamentação empírica, o que não viabiliza contextos fora de uma crença
particular. Para o autor, a fundamentação da moral não pode mais basear-se em
pressupostos absolutos, mas também, não por meros motivos. semelhanças
entre as propostas de Tugendhat e Habermas (2004b) como, por exemplo, ao
referirem-se à justificabilidade das normas serem aceitas apenas na base da
validação participativa de seus membros, isentos de qualquer coerção. A liberdade
de cada um na busca pelo entendimento estaria orientado por razões
reconhecidas pela sua coerência e discernimento diante das situações, ou seja,
por “boas razões”.
Vasquez em sua obra “Ética” (2006) faz uma clara definição sobre o que
entende por ética e moral. O agir moral é considerado como característico da
conduta humana. Para o autor, o agir moral refere-se aos problemas práticos, “isto
é, de problemas que se apresentam nas relações efetivas, reais, entre indivíduos
ou quando julgam certas decisões e ações dos mesmos” (p. 15). A moral é
utilizada como uma idéia regida por normas e aceitas por determinada
comunidade na intenção de orientar a melhor decisão diante dos problemas
39
considerados como morais. O agir moral pauta-se pelas normas que julgam qual a
melhor forma de ação num determinado contexto. As normas estabelecidas são
aceitas pela sua capacidade de justificação e coerência, “de acordo com elas, os
indivíduos compreendem que têm o dever de agir desta ou daquela maneira”
(VÁSQUEZ, 2006, p. 16).
O comportamento humano moral-prático, segundo Vasquez, remonta
desde as mais longínquas organizações sociais, mas, que se modifica de acordo
com a época histórica e de uma sociedade para outra. Neste sentido, a moral
orienta a ação humana diante de uma situação concreta, sobre o “o que fazer”,
sobre o melhor procedimento diante de questões prático-morais. Para Vasquez
(2006), quando o comportamento moral passa a ser objeto de reflexão do
pensamento humano, surge a ética enquanto plano teórico da moral. Ou seja, “do
plano da prática moral para o da teoria moral [...] da moral efetiva, vivida, para a
moral reflexa” (p. 17).
Sendo assim, a ética diferenciar-se-ia da moral pela sua generalidade, por
tratar de questões que não se referem diretamente à prática, envolvendo-se com
problemas de caráter teórico como a definição do que é bom, justo, o que se
entende por liberdade e responsabilidade. São pontos teóricos que não estão
restritos a discussões de apenas um determinado período histórico ou a uma
sociedade em particular, mas, que buscam orientar o pensamento humano de uma
forma geral. Porém, com isso, o autor não desconecta teoria (ética) com a prática
(moral). Embora a teoria não ofereça uma resposta direta aos problemas práticos,
influencia em seu comportamento uma vez que, modifica, via processos de
reflexão, a visão de mundo possibilitando um horizonte mais ampliado de
compreensão.
Uma visão mais ampliada da situação traz a perspectiva de que outras
considerações sobre as alternativas para o problema possam ser viabilizadas. No
entanto, para Vasquez, as soluções buscadas para os problemas práticos, via
conhecimento teórico, devem estar pautadas por atitudes responsáveis diante da
40
liberdade do ser humano em utilizar tal conhecimento. Portanto, isso impõe o
constante retorno da reflexão teórica aos problemas práticos como forma de
verificação de sua real efetividade no comportamento humano. Considerando o
campo da ética enquanto teoria que tem a moral como objeto de sua reflexão,
Vasquez aponta para a importância deste conhecimento na relação com outras
áreas de investigação acerca do ser humano. Para o autor, o comportamento
moral é uma manifestação do meio sócio-histórico-cultural do qual o indivíduo faz
parte, portanto, áreas como a filosofia, as ciências sociais e a psicologia
“contribuem para esclarecer o tipo peculiar de comportamento humano que é o
moral” (ibid., p. 29).
Para Habermas (1991), o indivíduo está exposto à extrema
vulnerabilidade em suas formas de vida sócio-culturais, necessitando de
dispositivos de proteção
13
que possam informar sobre a forma mais adequada de
ação neste meio. Assim, o autor (2004b) parte de uma fundamentação moral de
forma descritiva, vinculada às interações existentes no mundo cotidiano. Para o
filósofo, nas situações práticas do cotidiano somos surpreendidos pela
necessidade de tomar decisões diante dos mais diversos problemas. Porém,
uma diferença diante da questão O que devo fazer?” quando nos voltamos para
assuntos pragmáticos, com fins estratégicos, nos quais se exige determinada
técnica ou programa e quando as escolhas envolvem um juízo de valor, seja para
escolhas particulares, seja para as escolhas envolvendo os outros.
São questões que Habermas localiza no campo da ética e da moral e que
dizem respeito ao caráter, a autocompreensão crítica, a responsabilidade e o
respeito mútuo necessários em uma vida compartilhada com os outros. Para o
autor “julgamos as orientações de valor, bem como a autocompreensão das
13
Para Habermas, as intuições morais serviriam, no ponto de vista antropológico, como dispositivo de
proteção em vista da extrema vulnerabilidade do comportamento humano nas formas de vida sócio-culturais.
Portanto, tal mecanismo é possível de se desenvolver via socialização. Não há, conforme o autor, um
dispositivo genético capaz de estabelecer a relação entre espécie e indivíduo. Aprendemos via capacidade
lingüística que ocorre em ambientes partilhados intersubjetivamente. Por morais, Habermas designa “todas as
intuições que nos informam acerca das melhores formas de nos comportarmos, para que possamos reagir,
mediante a deferência e a consideração, à extrema vulnerabilidade dos indivíduos” (1991, p.18 grifo do
autor).
41
pessoas ou grupos baseada em valores, a partir de pontos de vista éticos”, porém,
“julgamos os deveres, as normas e os mandamentos a partir de pontos de vista
morais (p. 40, grifos do autor). As normas morais constituem-se
intersubjetivamente, via acordo mútuo, e trazem a perspectiva de coordenar as
ações sociais tendo como base motivos/razões com alto potencial de
convencimento. Esse processo é mediado pela linguagem comum e acessível a
todos os participantes, mas que exigem certas condições para se chegar a um
nível mais elevado de entendimento, uma vez que os debates acontecem num
espaço público de discussão e requer a saída de um estado monológico de
consciência.
Para Hermann (2001), apesar das modificações do termo ”ética”, o que
permanece na linguagem filosófica, é de que na edificação da ética o homem
torna o mundo habitável, com suas normas, regras, valores constituídos na cultura
e através dela, tornando possível a humanização. Decidir sobre quais as atitudes
mais apropriadas, fazer escolhas entre o que julga ser certo ou errado, são
manifestações especificamente humanas decorrentes de um processo de
formação. O entender-se com o outro, reconhecendo as diferenças a partir de sua
identidade, torna-se um desafio constante no comportamento humano.
Os diferentes princípios éticos constituídos no transcorrer da história, têm
uma relação direta com as mudanças de concepção acerca de homem e mundo,
igualmente, os interesses e razões que envolvem tais posturas. A busca pela
adaptação aos diferentes contextos históricos, traz o forte pressuposto de que os
processos de aprendizagem envolvidos na relação com a conduta moral do ser
humano apresentam um vínculo direto sobre a possibilidade de o indivíduo
reformular e revisar seus princípios ético-morais e as ações a que correspondem.
Na perspectiva habermasiana, os processos de aprendizagem envolvidos para se
chegar a um nível pós-convencional da moral sinalizam para os espaços de
educação e sua importância na contribuição desta formação, uma vez que, o
indivíduo se reconhece enquanto tal e constrói sua identidade em espaços de
socialização.
42
Assim, o campo da ética situa-se em meio aos conflitos, necessidades e
possibilidades inerentes ao indivíduo e seu convívio com os outros nos diferentes
paradigmas histórico-culturais. Na modernidade, os estudos sobre a ética e a
moral recaem sobre a nova concepção de homem sob o olhar antropológico
14
. A
liberdade de escolha sobre o que julga ser correto, sobre o que define como sendo
o bem, as decisões diante de problemas, aponta para o homem enquanto
indivíduo que necessita entender-se com os outros. Esta liberdade de intervenção
no mundo, via racionalidade humana, colocou-se sobre o símbolo do que se
chamou de “progresso”, que Weber (2006b) denominou de desencantamento do
mundo na civilização ocidental do qual a ciência é o motor principal.
As manifestações da razão humana desembocaram num processo de
racionalização do mundo da vida. Os valores éticos mudam da vida em comum
para os interesses individuais refletindo em um individualismo que hoje demarca
profundas conseqüências a nível planetário. Assim, a ética atual enfrenta o desafio
de pensar a autonomia moral do sujeito e sua necessidade de comprometer-se,
cooperativamente, com o mundo no qual habita. O indivíduo consciente enquanto
legislador universal de sua vontade, na concepção kantiana, necessita ser
discutindo publicamente em suas ações. Neste sentido, segundo Valls (2006), a
linguagem torna-se crítica e busca analisar os ideais éticos instituídos nos
discursos incutidos fortemente sob interesses políticos e econômicos. A ética
14
Para Lima Vaz (1986) a visão antropológica de homem no pensamento moderno o coloca como ser natural,
que segue sua natureza e assim reflete a capacidade de seu conhecimento e as conseqüências de suas ações.
Diferentemente da visão clássica, a modernidade substitui a idéia de um cosmos e de uma sociedade ordenada
como um todo. O homem histórico é colocado ao centro. O mundo é algo em transformação, o próprio
homem é um ser que se adapta e que se modifica. “O homem a pessoa é agora o Todo dinâmico do qual
irradiam o sentido e o valor definitivos das totalidades naturais em que se situa: do mundo e da sociedade” (p.
107). Esta nova concepção de mundo secularizado é impresso através do surgimento da ciência experimental,
na formação da economia capitalista e na constituição do Estado moderno. O homem fica à mercê de suas
próprias invenções. A cultura ocidental, desta forma, evolui sob o signo da razão e da história que o homem
incorpora no universo de sua linguagem. A tomada de consciência de sua liberdade de interferência no mundo
traz a difícil tarefa de conciliar razão e liberdade no meio sócio-político e também pessoal. “Para se justificar,
o eu se analisa e analisa o mundo [...]. Com Descartes ele encontra no cogito sua expressão filosófica e se
torna racionalista. Mas sua expressão econômica, social e política será conquistada em dura luta, que traça
o roteiro das primeiras revoluções modernas. Ela conduz à consagração dos direitos e normas abstratas,
recobrindo a profunda divisão em que a sociedade, cindida em classes, a ruptura dos antigos vínculos
substituir-se pela coalizão de interesses no combate do indivíduo pelo que chamará, propriamente de
‘sucesso’” (p. 108). Assim, o homem moderno vê-se diante de problemas que precisará enfrentar provocado
pela sua própria liberdade e capacidade de construir conhecimentos.
43
passa a fundamentar-se pelos interesses econômicos, em defesa da propriedade
particular, legitimados pelo direito positivo. São qualidades éticas, como afirmava
Weber (2006a), muito diferentes da ética tradicional.
Segundo Habermas (1998a), os acordos antes coordenados pela busca
do consenso sobre valores a partir das ações sociais e das culturas tradicionais,
acabam sendo substituídos por valores instrumentais generalizados, como poder e
dinheiro. Ou seja, o Estado e a economia são organizados conforme interesses
estratégicos, desvinculando-se de outras esferas do mundo vivido, no qual as
ações voltam-se para a força consensual do entendimento mútuo. O capítulo a
seguir pretende retomar o discurso do projeto moderno, expondo algumas
questões que desembocaram na critica da razão impulsionada pelas
conseqüências do uso abusivo da racionalidade científica. No entanto, é na
própria crítica à razão que Habermas a possibilidade de sua reconstrução
hermenêutica mediada por uma linguagem que se torna reflexiva.
44
- CAPÍTULO II -
DIALOGANDO COM A MODERNIDADE: possibilidades de um filosofar
hermenêutico em tempos de crise
No decorrer histórico da formação humana, a complexificação das
sociedades denunciou seus percalços. A confiabilidade na autonomia moral do
indivíduo, que age de acordo com a razão, não pôde ser garantida através do
estabelecimento de mandamentos ou obrigações. A liberdade de escolha
demanda a responsabilidade que precisa ser assumida via entendimento entre as
pessoas sobre suas ações no mundo. As manifestações individualistas do sujeito
moderno implicam em um processo de reflexão sobre conseqüências que não
ficam restritas ao indivíduo, pois interfere na vida de outras pessoas, pontuando os
princípios morais no atual contexto. Trata-se de ressignificar a idéia da educação
voltada para o bem, mas levando em conta a natureza humana na sua falibilidade,
influenciada por interesses individuais, mas com o potencial que também lhe é
inerente: a capacidade de aprender com os outros, de ampliar o nível de reflexão
crítica sobre seus atos e modificar o comportamento, tanto individual como social.
Neste capítulo, primeiramente, pretendo aludir sobre algumas
características do pensamento moderno, assinalando para conseqüências trazidas
na supremacia do conhecimento científico sobre outros campos do saber. Isto
implicou em um processo de racionalização do mundo em todas as suas esferas.
A legitimação racional das normas éticas viu-se excluída do saber objetivo, uma
vez que não se enquadrou nas esferas das ciências lógico-formais. Assim, a
racionalidade fica reduzida à esfera da razão teórica conforme os modelos das
ciências exatas e das ciências empíricas. (2.1). Porém, afirma Habermas, a
racionalidade humana não se restringe ao agir estratégico. A capacidade racional
do ser humano desenvolve-se também na sua interação com os outros. O
entendimento buscado através da competência comunicativa abre a expectativa
de remeter à crítica as suas próprias ações, coordenada pela atitude reflexiva
(2.2). Para Habermas a linguagem é o principal meio da manifestação da
racionalidade humana. A capacidade de aprender com os outros, de estabelecer
acordos e de expressar-se simbolicamente projeta a possibilidade que o ser
humano tem de assumir outros pontos de vista além de seu próprio ego. Estes
processos de aprendizagem são específicos do homem e sugerem que as
decisões tomadas são passíveis de revisão crítica na intenção de sua validação e
justificação. Portanto, as discussões no campo da moral e da ética necessitam do
uso da razão prática que possa abarcar as situações do cotidiano tornadas
problemáticas das quais a ciência e a tecnologia não conseguem dar conta (2.3).
2.1. A modernidade em questão: a racionalização da razão
O pensamento moderno através do discurso sobre o progresso e a
emancipação, recorreu a uma teoria confiável para atingir seus objetivos através
das ciências colocando o sujeito no centro do processo. Conforme Prestes (1996)
a racionalidade moderna tem início com as ciências empíricas (Bacon) e com o
racionalismo (Descartes). O modelo de racionalidade empírico-matemático que
dominou a modernidade até o século XX, justificou-se por colocar-se como meio
de controlar a natureza, agindo diretamente sobre ela, rompendo com uma
postura contemplativa. É a liberdade impulsionada pela necessidade e
conquistada pelo uso da razão. Sob este discurso é que surge a modernidade
46
impulsionada pelos ideais iluministas, no século XVIII, anunciando a emancipação
do homem auxiliado pelo conhecimento racional-científico.
Dessa forma, muda profundamente as concepções de homem e de
mundo, afastando e repudiando a passividade e a alienação incubada pela
sociedade religiosa. A capacidade do homem de intervir na natureza através da
sua razão, contrapõe-se com a idéia de salvação divina do mundo, mas que, no
entanto, mantém-se nesta trajetória agora voltada para o próprio homem. De uma
sociedade limitada e controlada por princípios religiosos cristãos, surge uma
sociedade motivada para as coisas humanas e das possibilidades de se
transformar o mundo. A formação dessa nova sociedade aspira conhecer para
transformar.
Outra concepção de homem constitui-se impulsionada por movimentos
culturais como o Renascimento na Itália (séc. XVI), que se expressa pela
valorização do homem, da razão e da ciência. Defende a idéia da razão como
forma de se chegar ao conhecimento, em que a ciência, fruto da razão humana
descobre e compreende a natureza para transformá-la exigindo outras visões de
mundo. Assentam ideais de maior liberdade para pensar, agir e transformar a
sociedade, opondo-se a uma sociedade feudal, estática e fechada. Tais objetivos
influenciados pelos ideais iluministas
15
- originaram muitos conflitos entre os
burgueses, o clero e a nobreza, tais como a Reforma Protestante, no séc. XVI; a
Revolução Industrial e a Revolução Francesa, ambas no séc. XVIII, (Cambi,
1999). Tais movimentos contribuíram para a organização social e política da época
e dos períodos históricos subseqüentes.
A principal característica no campo da filosofia moderna é o que se
designou filosofia da consciência ou filosofia da subjetividade. “A liberdade, a
15
Conforme Cambi (1999) o Iluminismo foi um movimento filosófico, iniciado na Inglaterra no final do
século XVIII, conhecido como “Século das Luzes”, referindo-se à idéia de que a razão pudesse “iluminar” os
caminhos para o agir humano. Seu maior representante foi John Locke. Sérgio P. Rouanet em seu livro As
razões do Iluminismo (2004) faz uma distinção entre Iluminismo e Ilustração.Por Iluminismo definiu “uma
tendência intelectual, não limitada a qualquer época específica, que combate o mito e o poder a partir da
razão” (p. 28), e por Ilustração entendeu como uma corrente de idéias que surgiu no século XVIII, aceita pelo
Iluminismo e que se realizou através dele.
47
autonomia e a reflexividade são as categorias tematizadas como expressão do
princípio de subjetividade [...] A Filosofia dos séculos XVIII e XIX e, sobretudo, o
idealismo alemão são tentativas de formular uma expressão teórica à autonomia
pretendida com a modernidade” (PRESTES, 19996, p. 24). O sujeito dotado de
razão e de potencial cognitivo torna-se o fundamento para pensar o processo
educativo. O homem passa a representar a sua própria consciência, através de
sua razão. Segundo Prestes (ibid.), com o “princípio da subjetividade, a
modernidade expressa sua no sujeito com capacidade de reflexão, que
conquista sua autonomia e liberdade”. A substituição de Deus, enquanto legislador
da ação moral efetiva-se através da conduta regida pelos preceitos da razão e
expõe ao homem a responsabilidade por seus atos.
Este ideal moderno acerca da razão humana edificou-se sob a concepção
científica do conhecimento. O modelo técnico-mecanicista apresentou-se como
ideal para levar a cabo o conceito de progresso e desenvolvimento. Sob os
princípios da previsibilidade ralação causa e efeito - do cálculo e do
planejamento mais acertado, o método científico enquadrou também o
comportamento humano em um padrão homogeneizando reconhecido como
válido. Aspectos que não correspondiam a esse padrão permaneciam relegados
ao senso comum ou considerados como incompatíveis ao processo. É nesse
sentido da previsibilidade que Weber refere-se ao processo de intelectualização
da ciência. A ciência retira a magia do mundo, a credibilidade é dada ao cálculo da
previsão de forma que possa impedir as interferências indesejadas no curso do
mundo.
É o desejo de domínio e controle o ideal a ser conquistado pelo homem
moderno. Esta conquista se pela dedicação à ciência a ao trabalho, que na
liberdade pelo conhecimento busca a perfeição no mundo terreno e que ao
mesmo tempo, expressa a idéia de universalidade. Todavia, esta trajetória pela
conquista do conhecimento apoiou-se excessivamente na racionalidade técnico-
instrumental gerando o fenômeno que o autor denominou de desencantamento do
48
mundo
16
. Esta concepção de homem e mundo é uma característica do mundo
ocidental que se encaminhou para o modelo capitalista, conforme Weber (2006a
p. 31). O capitalismo moderno toma posição para a busca do lucro sempre
renovado, “dependente da calculabilidade dos fatores técnicos mais importantes
[...] dependente da ciência moderna, em especial das ciências naturais fundadas
na matemática e em experimentações exatas e racionais”. Para o autor, o mundo
ocidental mostrou-se um terreno fértil para a utilização técnica do conhecimento
científico pelas suas favoráveis considerações econômicas presentes em sua
estrutura social.
Entre os fatores mais importantes para o desenvolvimento do moderno
capitalismo estão as estruturas jurídicas e a administração baseada em regras
formais. Os sistemas legais e administrativos racionais legitimaram a forma do
capitalismo ocidental. Dessa forma, o racionalismo moderno edificou-se
fundamentalmente através do racionalismo econômico não apenas dependente
da técnica e do direito racionais, mas ao mesmo tempo determinado pela
habilidade e disposição do homem em adotar certos tipos de conduta racional
prática” (Id. Ibid., p. 32).
Habermas segue em alguns aspectos a interpretação de Weber, porém
ressalta que o sujeito não se orienta unicamente pela racionalidade instrumental.
Para Habermas, Weber restringiu todos os setores vitais ao agir estratégico da
racionalidade moderna, desembocando no controle e domínio do homem sobre o
próprio homem. No atual sistema capitalista, este agir estratégico “força o
indivíduo, à medida que ele esteja envolvido no sistema de relações de mercado,
16
Max Weber traz o conceito de racional ao referir-se ao desencantamento das imagens religiosas do mundo,
criando um mundo profano a partir do contexto europeu e que se liga à idéia de modernidade promovida pela
autonomia das ciências empíricas modernas, da arte, das teorias morais e jurídicas, fundamentadas em
princípios racionais. Tais esferas culturais de valor, possibilitariam “processos de aprendizado de problemas
teóricos, estéticos ou prático-morais, segundo suas respectivas legalidades internas” (HABERMAS, 2000, p.
4). Com o conceito de racionalização Weber procurou descrever a profanação da cultura ocidental como
também a organização das sociedades modernas sob um modelo capitalista de produção e do sistema
burocrático do Estado, que ele entendia como sendo um processo de institucionalização de uma ação
econômica e administrativa racional com respeito a fins” (Ibid., p.4).
49
a se conformar às regras de comportamento capitalistas” (WEBER, 2006, p. 50)
num processo de seleção permanente do mais apto.
Para Weber (HABERMAS,1998a) a racionalização do mundo ocidental se
confirma pelo domínio instrumental e organizacional, orientado para fins, sobre os
processos empíricos que se legitima através da ciência moderna. O mundo
objetivado pelo conhecimento técnico-científico abstrai-se das formas tradicionais
de vida, de um mundo ordenado e unificado por Deus, desligando-se de qualquer
sentido ético tradicional. É o que Weber designa de racionalização da sociedade.
A razão anteriormente unificada pelas orientações religiosas e filosóficas
tradicionais, divide-se em campos especializados criando suas próprias leis e
normas.
Com a ciência moderna, com o direito positivo e as éticas profanas
baseadas em princípios, com uma arte que se tornou autônoma e uma
crítica de arte institucionalizada, cristalizaram-se três dimensões da razão
[...] em questões de verdade, justiça e gosto. Essas grandiosas
unilateralizações, que constituem a rubrica da modernidade, não carecem
de fundação e justificação; mas geram problemas de mediação [...] no
interior da esfera da ciência, da moral e da arte (HABERMAS, 1989, p.
32).
As esferas culturais de valor
17
ciência e técnica, arte e literatura, direito
e moral são componentes da cultura que na modernidade seguem autônomas,
cada uma com sua lógica interna enquanto que o mundo da vida mantém-se
orientado por interesses e idéias socializadas, manifestando a tensão entre as
estruturas. A diferenciação, e até mesmo a oposição, entre as esferas de valor faz
surgir, respectivamente, os componentes cognitivo-instrumentais, os componentes
17
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: racionalidad de la acción y racionalización social.
Madri: Taurus, 1998.
50
estético-expressivos e os componentes morais-práticos na consciência moderna,
que Weber traduz como a racionalização da cultura, ou, processo de
racionalização das imagens do mundo. Este processo de racionalização gera os
conceitos formais do mundo: o mundo objetivo; o mundo social; e o mundo
subjetivo.
Ao mundo objetivo corresponde o conhecimento técnico-científico, formal,
adequado para orientar os meios necessários a determinados fins de interesse
estratégico. Ao mundo social relaciona-se a atitude de respeito e reconhecimento
às normas. O mundo subjetivo é correlativo à personalidade do indivíduo, seu
caráter, suas experiências, seus desejos e sanções consigo mesmo. Esta
sistematização representa a demarcação neutralizante das estruturas simbólicas
do mundo da vida: a cultura, a sociedade e a personalidade. As estruturas da
consciência moderna não agem diretamente no mundo vivido, mas sim, através de
seus sistemas culturais de ação representadas pelas instituições sociais,
educativas, religiosas e jurídicas. E através dos sistemas centrais de ação que
fixam as estruturas da sociedade através do Estado moderno, da economia
capitalista e da estrutura familiar burguesa. Além desses sistemas, o espírito
moderno influencia nas disposições da personalidade transmitindo um sistema de
vida metódico-racional que se remetem aos valores típicos da vida moderna.
Assim, para Weber os procedimentos correspondem a um mundo
cognitivo e moralmente objetivizado e um mundo interno subjetivizado. Esta
racionalização fica expressa na atitude objetivada frente ao mundo exterior, na
atitude conformista ou crítica frente à sociedade, e em uma atitude expressiva de
natureza interna ao sujeito. Porém, para Habermas (2004a), as estruturas de
compreensão descentrada do mundo que possibilitam ao sujeito adotar atitudes
diversas frente aos componentes da consciência, ainda assim, fazem parte de um
mesmo mundo objetivo, passível de entendimento
18
.
18
Habermas aborda a racionalidade comunicativa como elemento integrador dos componentes da consciência.
Para o filósofo, além das ações voltadas para fins estratégicos, ocorrem as ações voltadas para o
entendimento, assunto que será tratado a seguir.
51
No processo de desencantamento do mundo, a ética vê-se substituída
pelo sistema jurídico
19
o que para Oliveira (1993) torna-se a atual problemática na
ciência do ethos: as tensões existentes entre o campo da ciência em sua relação
com a ética. Uma vez que a racionalidade científica torna-se o paradigma válido
na construção do conhecimento por basear seus dados em fatos comprováveis e
mensuráveis, as normas morais “conseqüentemente estão fora do campo objetivo,
intersubjetivamente válido. Assim, não lhe resta outra perspectiva, exceto situar-se
no espaço da subjetividade [...] no campo das emoções, dos sentimentos, das
decisões arbitrárias” (p.11). Porém, estes são campos não reconhecidos pela
racionalidade moderna como meio de legitimação de normas. Portanto, a ética fica
excluída da racionalidade. Esta acaba confinando-se na esfera da razão teórica,
“no campo do conhecimento científico-objetivo” (p.12) gerando o dualismo
objetividade e subjetividade.
Weber (Habermas, 1998a) reconhece o sistema jurídico como sendo a
racionalidade prático-moral, no entanto, o reduz a uma racionalidade instrumental,
paralelo à racionalidade cognitivo-instrumental presente na economia e no sistema
administrativo do Estado. Tanto a administração pública quanto a administração
jurídica são desempenhadas por especialistas apoiados em princípios operativo-
formais. Esta concepção formal de mundo autoriza e legitima ao sujeito moral a
escolher metodicamente sua forma de vida assim como autoriza e legitima ao
sujeito do direito privado a orientar suas ações voltadas para o êxito, desde que
esteja dentro da lei.
O sistema jurídico moderno distingue-se por três características. a) Pela
sua positividade : não se rege por interpretações tradicionais ou sagradas. É
baseado em normas convencionais instituídas e reconhecidas racionalmente que
19
“As instituições primárias das sociedades primárias das sociedades tradicionais são substituídas, nas
sociedades modernas, por instituições jurídicas. Ocorre que o direito moderno se desatrela de motivações
éticas [...] Ocorre na modernidade um processo de positivação do direito: é direito o que é estabelecido
enquanto tal, que acoplado por um processo de legalização e formalização. É exatamente a separação típica da
modernidade entre legalidade e moralidade que é a condição de possibilidade da institucionalização do
dinheiro e do poder numa perspectiva funcional. O desenvolvimento da sociedade moderna é, assim, a
institucionalização das relações mercantis e do poder político através do direito positivo” (OLIVEIRA, 1993,
p.p.16-17).
52
regulam a sociedade. b) Pela sua legalidade: as ações são permitidas dentro do
que permite a lei e não por motivações éticas. O que é sancionado são as ões
que infringem as normas, e não as más intenções. c) Pelo seu formalismo: traz a
idéia do sujeito universal do direito privado, de livre-arbítrio para exercer suas
ações em um espaço eticamente neutro, consciente das conseqüências jurídicas.
“Neste âmbito está permitido tudo aquilo que não está juridicamente proibido” (Id.
Ibid., p. 336. – tradução própria).
É assim que se permite a generalização dos fins estratégicos. Este
sistema de ação pressupõe que todos os indivíduos sigam as determinações da lei
com autonomia racional, comportando-se estrategicamente, mas visando, por fim,
os interesses pessoais, inclusive com a possibilidade de mudar a legislação
quando não mais se mostrar eficiente. No entanto, para Habermas isto é
característica da constituição do próprio espírito moderno na organização da
sociedade. A idéia de “progresso”, ao referir-se à técnica, apontada por Weber
(2006b) traz o imperativo de adaptar-se, modificando-se a novos contextos
quando comprovado baixo nível de eficiência. Isto demonstra a capacidade de
aprendizagem e inovação do conhecimento pelo ser humano sempre que sua
racionalidade torna-se reflexiva. Conforme Habermas (2004a) esta forma de
ampliação do saber muda a significação sobre o mundo mediado pela interação
entre as pessoas. É uma abertura para o mundo captada pelos processos de
aprendizagem que é possível pela interpretação reflexiva viabilizada pela
linguagem. Esta “força estruturante” (p.p.127-128) da linguagem
que nos abre um acesso ao mundo precisa resistir à prova continuamente;
precisa pôr os sujeitos agentes em condição de chegar a bom termo com
o que encontram no mundo e aprender com os erros. Por outro lado, as
revisões retroativamente desencadeadas por esse saber lingüístico
interpretador do mundo não são um resultado automático de soluções de
problemas bem-sucedidas. A imaginação lingüística [...] é, antes,
estimulada pelos fracassos de tentativas de solução de problemas e pelos
bloqueios de processos de aprendizado.
53
Esta abertura ao mundo não acontece apenas para determinadas
considerações, mas para qualquer tipo de racionalidade. No caso do componente
prático–moral, esta abertura presentifica-se no nível pós-convencional da
consciência moral na qual se avalia as normas segundo princípios de validade e
a possibilidade de sua correção normativa tal como se organiza o direito
moderno. Esta é a origem da idéia “de que todas as normas jurídicas são em
princípio suscetíveis de crítica e de que, por isso mesmo, é necessário justificá-
las” (HABERMAS, 1998a, p.p. 337-338. tradução própria). Porém, esta relação
interpretativa e argumentativa do sujeito coordenada para o entendimento mútuo,
exige um potencial argumentativo-discursivo assentado em uma racionalidade
comunicativa. Essa racionalidade comunicativa se expressa pela força integradora
da fala, garantindo aos seus interlocutores “envolvidos em um mundo da vida
intersubjetivo partilhado e, ao mesmo tempo, o horizonte no interior do qual todos
podem se referir a um único e mesmo mundo objetivo” (HABERMAS, 2004a, p.
107).
2.2. A racionalidade discursiva: o uso racional do saber, do agir e do falar
A racionalidade comunicativa orienta-se pela possibilidade do
entendimento
20
mútuo entre os participantes da argumentação. Os interlocutores
posicionam suas discussões sobre a fundamentação das categorias que se
20
Habermas em sua obra “Teoría de la acción comunicativa” (1998), vol. I, conceitua entendimento
(Verständigung) como sendo um acordo racionalmente motivado, alcançado por seus participantes, na
aceitação das pretensões de validez (verdade, correção normativa e veracidade) sobre as categorias expressas
na argumentação. Porém, em seu livro “Verdade justificação” (2004, p.113) o autor faz uma diferenciação
entre acordo e entendimento mútuo propriamente dito. “O acordo no sentido estrito só é então alcançado se os
envolvido podem aceitar uma preteno de validez pelas mesmas razões. O entendimento mútuo realiza-se
apesar disso, além das preferências de cada participante. Ele acontece à luz de razões “independentes do ator”.
Neste sentido, refere-se ao uso comunicativo de linguagem utilizado no acordo como um modo “fraco” de
entendimento mútuo; e de modo “forte” o uso comunicativo utilizado no entendimento mútuo propriamente
dito.
54
apresentam no mundo e sua relação nas estruturas simbólicas da sociedade.
Permite que sejam levantadas pretensões da validez acerca do que se apresenta
no mundo desde seu âmbito objetivo, quanto social e subjetivo. Porém, estas
reivindicações exigem uma atitude de participante do processo por parte de seus
sujeitos, diferente da neutralidade técnico-científica adotada pelo racionalismo
moderno no sistema jurídico-político-administrativo da sociedade.
Para Habermas o fato de pertencermos a um mesmo mundo objetivo é
condição de possibilidade de estabelecer certas pretensões universais de
entendimento mútuo. Para tanto, a visão descentrada de mundo
21
(1998a) tornou-
se uma das dimensões mais importantes no processo da evolução moderna das
imagens do mundo. Uma visão descentrada de mundo permite uma interpretação
reflexivo-crítica acerca dos três mundos, pois as pretensões da validez são
requisitadas levando em conta a possibilidade de um acordo motivado por razões,
portanto, acessível a todos, e não limitadas às tradições culturais de um
determinado contexto.
Esta abordagem torna-se importante no atual contexto histórico, levando
em conta as sérias conseqüências de uma visão egocêntrica de mundo,
provocado, principalmente, pela separação entre moralidade e legalidade
expressas no direito moderno. O livre-arbítrio do homem, dentro do prescrito na
lei, para que seus investimentos pessoais obtivessem êxito e sucesso, gerou
ações individualistas na sua relação com os demais e a natureza. O resultado de
tais ações é sentido a nível mundial e, portanto, a dimensão crítica sobre estas
manifestações não se resume a um exame de consciência solipsista. Reclama
uma racionalidade que se torna reflexiva pela via da ação comunicativa.
A compreensão de mundo no sentido moderno, refere-se às estruturas
universais de racionalidade que, nas sociedades ocidentais, foi equivocadamente
dominada “pelos aspectos cognitivo-instrumentais e, neste sentido, somente
21
A compreensão descentrada de mundo que Piaget concebe como um nível complexo da capacidade de
aprendizagem do indivíduo e será abordado em capítulo posterior.
55
individual” (HABERMAS, 1998a, p. 99. tradução própria). A racionalidade
22
diz
respeito ao “dar razões” como forma de legitimação daquilo que se afirma.
Conforme Habermas à expressão “racional” pressupõe-se uma relação próxima
entre racionalidade e saber ou conhecimento. Os conhecimentos e saberes são
demonstrados através da estrutura proposicional, ou seja, através da capacidade
de utilizar-se a linguagem através de enunciados. Porém, para o autor “a
racionalidade tem menos a ver com o conhecimento ou com a aquisição do
conhecimento que com a forma em que os sujeitos capazes de linguagem e de
ação fazem uso do conhecimento” (Id. Ibid., p. 24).
A filosofia da linguagem
23
investiga sobre como essas interações
mediadas pela linguagem expressam o pensamento humano. Para Habermas
(1990, p.p. 70-71), nas interações sociais mediadas pela linguagem, o agir e o
falar encontram-se conectados. Define interação como uma forma de coordenar
ações na qual devam participar mais de uma pessoa, de modo que “as ações de
Alter possam ser engatadas nas de Ego”.
Essa perspectiva pragmática da linguagem, que parte dos contextos de
ação de seus participantes, abre horizontes para o resgate da individualidade e da
criatividade do sujeito expressas nas interações sociais e que foi subtraída nas
interpretações da linguagem formal semanticista. Habermas contesta a redução
22
“Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em que se orienta performativamente por pretensões de
validade; dizemos que ela não apenas se comporta racionalmente, mas que é racional, quando pode prestar
contas de sua orientação por pretensões de validade” (HABERMAS, 2004a, p. 102).
23
A filosofia da linguagem teve seu apogeu na primeira metade do século XX e contou com nomes de
grandes filósofos tais como Gottlob Frege, Bertran Russel e Ludwig Wittgenstein. A intenção dos filósofos era
a de desenvolverem reflexões filosóficas relacionadas à linguagem no sentido de esclarecer e retificar o seu
uso nas relações intersubjetivas. “ A expressão ‘filosofia da linguagem’ possui duas acepções principais, uma
mais restrita e outra mais ampla. Em uma acepção mais estrita, ela é o resultado de uma investigação
filosófica acerca da natureza e do funcionamento da linguagem, sendo por vezes chamada de ‘análise da
linguagem. [...] Na segunda e mais ampla acepção, a filosofia da linguagem diz respeito a qualquer
abordagem crítica de problemas filosóficos metodologicamente orientada por uma investigação da linguagem,
razão pela qual ela é por vezes chamada decrítica da linguagem’. Uma boa parte da filosofia do século XX
caracterizou-se duplamente como uma investigação filosófica acerca da linguagem e também por uma
abordagem crítico-lingüística de problemas filosóficos em geral” (COSTA, 2003, p.p. 7-8). Historicamente,
estabeleceram-se dois tipos de filosofia da linguagem: a filosofia da linguagem ideal influenciada pela
lógica simbólica a partir de Frege evidenciando-se do o lculo de predicados - e a filosofia da linguagem
ordinária – que investiga a estrutura funcional da linguagem do cotidiano. O agir comunicativo habermasiano
tem como ponto de partida para o discurso argumentativo, a linguagem ordinária.
56
da linguagem ao domínio da sintaxe
24
e da semântica. Defende o sentido
pragmático da linguagem, o que requer a consideração da experiência concreta da
linguagem que acontece nas comunidades lingüísticas de seus usuários.
Porém, no contexto da ação, Habermas diferencia as ações lingüísticas e
as não-lingüísticas, ou então, o uso comunicativo e não-comunicativo do saber
proposicional. Embora ambas as ões, numa visão geral, aspiram a um fim, a
diferença se em relação ao fim ao qual se orientam, ou seja, de que maneira
empregam o saber, definindo assim, o sentido da racionalidade empregada. Dessa
forma, Habermas (2004a) aponta para três raízes da racionalidade que orientam
as diferentes ações sociais conforme suas estruturas do pensar, do agir e do falar:
racionalidade epistêmica, racionalidade teleológica e racionalidade comunicativa.
A racionalidade epistêmica é a estrutura que permite inferir se um
conhecimento é verdadeiro ou falso. É um saber teórico que necessita de
comprovação sobre seus juízos, ou seja, “o ‘saber o que é’ está implicitamente
ligado ao saber o por quê’ e remete nesse sentido a justificações potenciais” (Id.
Ibid., p. 104).Os atos de fala envolvidos são os atos de fala constatativos que
exprimem estados de coisas. A pretensão de validez buscada é a verdade dos
fatos presentes no mundo objetivo, pressupondo a necessidade de sua
24
A sintaxe é uma das divisões da linguagem, juntamente com a semântica e a pragmática. Esta divisão no
estudo da linguagem originou-se a partir do texto de Charles William Morris (1901-1979), da Universidade de
Chicago (EUA) que serviu de introdução à Enciclopédia Internacional de Ciência Unificada organizado pelos
membros do Círculo de Viena (Áustria). Além de Morris, nomes como Otto Neurath e Rudolf Carnap faziam
parte da organização do projeto que objetivava “formular os fundamentos epistemológicos e metodológicos
de um ciência unificada” (MARCONDES, 2005, p. 7) iniciado na Europa por Neurath. Morris teve a
influência do filósofo norte-americano Charles Sanders Pierce (1839-1914), um dos precursores da
pragmática. Na definição tradicional, em Morris e Carnap, a sintaxe “examina a relação entre os signos; a
semântica estuda a relação dos signos com os objetos a que se referem; e a pragmática diz respeito à relação
dos signos com seus usuários e como estes os interpretam e os empregam” (Id. Ibid., p. 8). A pragmática
envolve o contexto dos usuários da comunicação e pressupõe a sua multiplicidade, a heterogeneidade e
variação de seu uso. É nesse sentido que Carnap considerava a a pragmática um campo da linguagem de
difícil análise. Tradicionalmente, a sintaxe e a semântica receberam mais atenção. Habermas (1990, p. 57) ao
referir-se à guinada lingüística, aponta para os limites do semanticismo e propõe a guinada pragmática. O
estruturalismo, do qual quedou a semântica da proposição, voltou-se para uma linguagem abstrata. “Elevando
as formas anônimas da linguagem a uma categoria transcendental, ele degrada os sujeitos e sua fala à
condição de algo meramente acidental.[...]A individualidade e a criatividade do sujeito capaz de fala e
ação[...]passa a ser visto como um fenômeno residual, que pode ser simplesmente posto de lado ou
desvalorizado[...] Somente a guinada pragmática oferece uma saída para a recuperação da abstração
estruturalista”.
57
fundamentação e de sua possível crítica. O uso desta racionalidade, embora
empreendida através do discurso teórico, não se sustenta por si mesma, isenta de
qualquer contexto. A expressão do conhecimento acontece em nível da linguagem
e do agir, uma vez que, modernamente, todo saber é considerado falível, ocorre a
necessidade de corrigi-lo e modificá-lo sempre que isso se mostrar adequado.
Para Habermas (Id. Ibid.,p. 105) isto representa
também aprender algo mediante o relacionamento prático com uma
rerÐ dadqðÐpFpnÐ/s re
A intenção de executar uma determinada ação exige a decisão por
determinadas medidas que, no caso da racionalidade teleológica, está amparado
por uma saber ancorado em informações, no cálculo de suas probabilidades, que
podem ser corretas ou falsas. Para tanto, exige um saber reflexivo sobre as
razões de determinadas escolhas. As razões que determinam as escolhas
“dependem do suprimento de informações confiáveis (sobre eventos aguardados
no mundo ou sobre a conduta e as intenções de outros autores)“ (p. 107),
entrelaçando-se assim com as estruturas do saber e da fala. Assim, as
informações, inteligentemente selecionadas por seus autores conforme sua
preferência, só podem ser processadas e justificadas pelo viés lingüístico. Envolve
um saber teórico, mas também inferências práticas. O agir intencional recorre a
proposições intencionais, ou seja, aos atos de fala perlocucionários, pois visam
influenciar para alcançar determinados fins. A pretensão de validez levantada é a
eficácia em suas ações que possam conduzir ao êxito no mundo objetivo.
Ao empregar a linguagem de forma comunicativa, a racionalidade aplicada
adquire uma forma peculiar, que não pode ser reduzida a uma racionalidade
epistêmica e também, não se reduz à racionalidade do agir teleológico. No uso da
racionalidade comunicativa entra em jogo a interação social. Nesta interação,
mediada pelo uso das expressões lingüísticas, o falante precisa entender-se com
o outro a respeito de algo, ou seja, não é mais uma ação de escolha
exclusivamente individual. O agir comunicativo traz a possibilidade de ser um elo
integrador entra as outras racionalidades, pois
não serve apenas para exprimir intenções de um falante, mas também
para representar estados de coisa (ou supor sua existência) e estabelecer
relações interpessoais com uma segunda pessoa. [...] então uma
relação tripartite entre a significação de uma expressão e (a) o que se
quer dizer com ela, (b) o que se diz nela e (c) a forma de sua aplicação na
ação de fala (HABERMAS, 2004a, p. 107).
59
O uso da racionalidade comunicativa corporifica-se em processos de
entendimento mútuo de forma que seus participantes necessitam assumir uma
postura de cooperação de uns com os outros. Assim, exige-se dos sujeitos uma
mudança de perspectiva:
os atores têm de abandonar o enfoque objetivador de uma agente
orientado pelo sucesso, que deseja produzir algo no mundo, e assumir o
enfoque performativo de um falante, o qual procura entender-se com uma
segunda pessoa sobre algo no mundo. Sem essa re-orientação que leva
em conta as condições do uso da linguagem voltada ao entendimento,
eles não teriam acesso ao potencial de energias de ligação existentes na
linguagem (HABERMAS, 1990, p. 74).
Além dos papéis assumidos na primeira (falante) e segunda (ouvinte)
pessoas, Habermas (2004a) aponta para a possível necessidade do papel da
terceira pessoa no uso da racionalidade comunicativa. Diferentemente no uso das
outras racionalidades, os atos de fala
26
ilocucionários utilizados pretendem
26
A Escola de Oxford, Inglaterra, (OLIVEIRA, 2001) empenhou-se em desenvolver estudos sobre a
linguagem sob um outro sentido: no contexto de seu uso. Seus teóricos opunham-se à concepção tradicional
de linguagem, utilizada apenas na sua dimensão descritiva. O iniciador da pesquisa sobre a linguagem
enquanto ação foi o filósofo inglês John Langshaw Austin 91911-1960). Para o pesquisador não existem
apenas enunciados declarativos que designam, descrevem, registram um fato qualquer. enunciados do tipo
constatativos que m como função a pura constatação. Além desses, os performativos. Eles próprios
representam uma ação, ou seja, dizer significa fazer, por exemplo, quando fizemos uma promessa para
alguém. Assim, Austin propõe a “Teoria dos Atos de Fala”. Para Austin, um ato de fala qualquer, mesmo o
mais simples, é uma realidade complexa, contém muitas dimensões. Para podermos captar a ação lingüística
em sua totalidade, faz-se necessário, em primeiro lugar, tentar analisar suas diferentes dimensões” (p. 157).
Assim, Austin aponta para três tipos de fala: locucionários envolve todo procedimento lingüístico, é uma
pré-condição para que a linguagem aconteça ilocucionários busca situar o contexto do ato locucionário,
questiona sobre a intenção/objetivo com que ele é empregado (para ameaçar, julgar, apelar, informar, etc.). Os
atos ilocucionários são constituídos por convenções sociais e a força ilocucionária depende de determinadas
condições de aceitação. Por fim, Austin refere-se aos atos de fala perlocucionários como sendo a expressão
lingüística que tem como finalidade produzir efeitos sobre as pessoas, influenciando para determinados fins.
Além de Austin, outro nome de peso na Escola de Oxford é o de John Searle que procurou aprofundar
teoricamente os estudos de Austin, afastando-se da situação concreta para situar seu trabalho na estrutura
universal da linguagem, ou seja, das condições de possibilidades para que o ato de fala seja possível. Para
Habermas (1990), a teoria dos atos de fala de Searle é considerada por ele como sendo a mais bem elaborada
até agora, principalmente em seus acréscimos nas condições de validez para o sucesso dos atos ilocucionários.
Estes acontecem nas relações intersubjetivas do modo cooperativo em que um procura entender-se com o
outro (racionalidade do entendimento) a fim de alcance êxitos ilocucionários. Com os atos ilocucionários
realiza-se uma ação social.
60
alcançar as metas ilocucionárias que não se restringem aos efeitos provocados no
mundo objetivo. Isto se justifica uma vez que, a ação comunicativa, fundamentada
nos atos de fala, tem como intenção o agir voltado para o entendimento e não
para fins estratégicos. Ou seja, pode se dar numa relação dialógica,
intersubjetiva, livre da coerção, pois tal postura colocaria em risco a própria
intenção do consenso, que necessita firmar-se na base da cooperação
racionalmente motivada, sempre aberta à crítica. Assim, ao ouvinte cabe a
liberdade de decidir entre o “sim” e o “não”, que a princípio pode-se definir como
uma liberdade de arbítrio, na linguagem ordinária presente no mundo da vida
27
,
mas que se torna uma liberdade reflexiva no contexto da argumentação no uso de
uma racionalidade tornada discursiva.
O agir comunicativo, no uso performativo de seus enunciados, visa à
integração social, portanto, preocupa-se com a aceitação de seus proferimentos
justificando-os racionalmente e comprometendo-se com a sua veracidade e
compreensibilidade. Habermas aposta nesta capacidade de cooperação e
responsabilidade ética dos sujeitos envolvidos nos atos de fala, comprometendo-
se com as condições necessárias para a interação comunicativa: sinceridade,
veracidade, inteligibilidade e justificabilidade. Nas palavras de Habermas (2004a,
p. 109)
27
O conceito de mundo da vida (HABERMAS, 1990) foi introduzido por Husserl como forma de crítica em
um contexto de vida marcado pela razão objetivante das ciências naturais. Assim, opõe o mundo da vida,
espaço das realizações originárias, ao mundo da ciência idealizado pela tecnicização. Habermas introduz o
conceito de mundo da vida no campo de uma teoria da comunicação. Ao atuar comunicativamente, os
sujeitos estão amparados por um saber presente no horizonte do mundo da vida que lhes dão os recursos para
os processos de interpretação em situações de ação. O mundo da vida traz um saber não-temático, pré-
reflexivo ,ou seja, não problematizado oriundo das nossas experiências, convicções e aprendizagens impressas
na nossa cultura. “Podemos imaginar os componentes do mundo da vida, a saber, os modelos culturais, as
ordens legítimas e as estruturas da personalidade, como se fossem condensações e sedimentações dos
processos de entendimento, da coordenação da ação e da socialização, os quais passam através do agir
comunicativo, que corre através das comportas da tematização e que torna possível o domínio de situações,
constitui o estoque de um saber comprovado na prática comunicativa. [...] A rede da prática comunicativa
cotidiana espalha-se sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos, sobre as dimensões do espaço social
e sobre o tempo histórico, constituindo o meio através do qual se forma e se reproduz a cultura, a sociedade e
as estruturas da personalidade”. (p. 96).
61
o que torna aceitável a oferta do ato de fala são, em última análise, as
razões que o falante, no contexto dado, poderia apresentar para a validade
do dito. A racionalidade inerente à comunicação repousa, portanto, na
conexão interna entre (a) as condições que tornam válido um ato de fala, (b)
a pretensão levantada pelo falante de que sejam cumpridas estas condições
e c) a credibilidade da garantia por ele assumida de que poderia, se
necessário, resgatar discursivamente essa pretensão de validade.
O reconhecimento das pretensões de validez levantadas conduz ao êxito
ilocucionário dos atos de fala. A racionalidade voltada ao entendimento requer de
seus participantes um conceito formal de mundo, à primeira vista, como forma de
referência, uma vez que não envolve apenas contextos pessoais. Porém, os atos
de fala presentes em uma argumentação têm o mundo da vida como sua primeira
referência. Assim, não correspondem apenas à representação de acontecimentos
ou estados de coisas (mundo objetivo). Também se referem às interações sociais
reguladas por normas (mundo social) e às vivências pessoais dos seus sujeitos
(mundo subjetivo), do qual têm acesso privilegiado.
Nisto, deparamos com exatamente três tipos de pretensões de validade:
pretensões de validade relativas a fatos que afirmamos com referência a
objetos no mundo objetivo; pretensões de veracidade de enunciados que
revelam vivências subjetivas às quais o falante tem acesso privilegiado;
por fim, as pretensões de correção de normas e prescrições, que
merecem reconhecimento num mundo social intersubjetivamente
partilhado (Id. Ibid.).
A pretensão de validade levantada no uso de qualquer racionalidade
depara-se com a referência a um mundo objetivo e as possíveis resistências em
sua aplicação. Toda ação parte em princípio de uma decisão pessoal, mas que
se encontra inserida em um mundo social e objetivo. Para Habermas (1991) as
razões tomadas para que um problema seja resolvido ou um objetivo a ser
62
alcançado nos coloca entre diferentes possibilidades de ação. Procura-se dar
razões para as preferências ou opções a fim de que a meta seja alcançada. Estas
decisões podem ser simples ou complexas dependendo do fim ao qual estão
orientadas. Porém, em todos os casos, estão implicadas questões pessoais,
sociais e objetivas, mas que estão inseridas em um contexto de relações
intersubjetivas, de uma prática de vida. São questões pragmáticas, éticas e
morais, situadas no horizonte das relações interpessoais e que carecem da
interpretação crítico-reflexiva no uso da razão prática enquanto complementação
da razão abstrata que se refugiou no formalismo da teoria.
A forma discursiva do conhecimento pressupõe um ser capaz de refletir
sobre sua própria razão incorrendo num processo de aprendizado que se na
sua interação como os outros.
Os resultados de processos de aprendizado, que sempre começam num
horizonte particular de significação, só podem modificar os limites do mundo
lingüisticamente aberto quando o saber sobre o mundo não só é
possibilitado pelo saber lingüístico, mas ganha em relação a este uma força
de revisão (HABERMAS, 2004a, p. 93).
No comparecimento de situações complexas, a razão torna-se reflexiva
certificando-se de seu procedimento. A atitude reflexiva adotada pela razão
participa de um processo de abertura ao mundo, uma vez que precisa prestar
contas de suas pretensões de forma responsável em relação aos outros que
participam da argumentação. Para uma posse reflexiva de sua razão, o sujeito
necessita distanciar-se de seus proferimentos assumindo uma postura
descentrada de mundo, o que Habermas considera como “uma condição
necessária de sua liberdade. A liberdade se distingue segundo os diferentes tipos
de auto-referência do sujeito cognoscente e agente” (Id. Ibid., p. 103 grifo do
autor). Habermas situa a liberdade reflexiva, a liberdade de arbítrio e a liberdade
ética como disposições de cada pessoa de acordo com as auto-referências que o
63
sujeito toma para si a partir das perspectivas que os outros participantes do
discurso têm ao apresentarem seus argumentos. Neste sentido, Habermas
identifica a racionalidade discursiva
28
como sendo um nível integrativo da
linguagem entre as racionalidades epistêmica, teleológica e comunicativa.
Nesta última, origina-se a racionalidade discursiva. Assim, afirma que “a
estrutura discursiva cria uma correlação entre as estruturas ramificadas de
racionalidade do saber, do agir e da fala ao, de certo modo, concatenar as raízes
proposicionais, teleológicas e comunicativas”(p.101). Dessa forma, as diferentes
racionalidades, na educação do ser humano, devem ser compreendidas como
dimensões complementares que, na proposta de Habermas, podem estabelecer
um vínculo integrador, tendo na práxis da argumentação (racionalidade discursiva)
a “forma reflexiva do agir comunicativo”.
A capacidade de mudança de perspectiva, isto é, a compreensão
descentrada de mundo, traz as condições de possibilidade para a formação
discursiva da vontade que possa ir além das formas particulares de vida sem,
porém, negligenciá-las. Essa capacidade de compreensão descentrada de mundo
pode ser interpretada em analogia com a autonomia kantiana necessária para o
estabelecimento das normas morais que exigem, a princípio, abertura para a
interpretação de mundo dissociada dos costumes, embora, tenha neles seu ponto
de partida. Nessa perspectiva da tradição kantiana é que Habermas fundamenta
sua Ética do Discurso que pretende justificar o discurso prático como sendo a
forma mais viável de estabelecer uma relação dialógica entre as questões éticas e
as normas morais. O capítulo a seguir procura discorrer sobre estas questões.
28
O autor também denominou esse tipo de racionalidade de plena responsabilidade. “A plena responsabilidade
pressupõe uma auto-relação refletida da pessoa com o pensa, diz e faz; por meio das auto-referências
correspondentes, essa capacidade se entrelaça com as estruturas racionais centrais do saber, da atividade
orientada a fins e da comunicação” (HABERMAS, 2004a, p. 102).
64
- CAPÍTULO III –
A ÉTICA DO DISCURSO EM HABERMAS: a conciliação entre justiça e
solidariedade
A partir das considerações feitas anteriormente, acerca da racionalidade
discursiva, retomo brevemente, a título de introdução, a questão da liberdade
enquanto condição para uma compreensão descentrada de mundo. A atitude
descentrada tora possível assumir pontos de vista que transcendam os interesses
e preferências conduzidas egocentricamente. Esta relação entre formas de vida
particular e as formas de vida partilhadas socialmente norteiam os conceitos de
justiça e solidariedade expressos na Ética do Discurso em Habermas. A justiça e a
solidariedade não são elementos complementares, conforme Habermas (1991),
antes são dois aspectos de uma mesma realidade. A preocupação com o bem-
estar do outro e com o bem estar - geral se numa relação de reconhecimento
recíproco.
Este tratamento igual que cada indivíduo conclama para si (justiça) tem
no seu complemento o mesmo tratamento para todos (solidariedade). “A justiça
tem a ver com as iguais liberdades de indivíduos inalienáveis e que se
autodeterminam, enquanto a solidariedade tem a ver com o bem-estar das partes
irmanadas numa forma de vida partilhada intersubjetivamente e, assim, também
com a preservação da integridade dessa forma de vida. As normas morais não
conseguem proteger uma coisa sem a outra: nem conseguem preservar os
direitos e liberdades iguais do indivíduo sem o bem-estar do próximo e da
comunidade que pertencem” (p.p. 70-71). A solidariedade pensada sob uma moral
universalista estende-se para além dos grupos sociais restritos ou a grupos
etnocêntricos. No entanto, justiça e solidariedade convergem pressupondo
expectativas de reconhecimento recíproco construídas na formação da vontade
geral discursiva capaz de enfrentar as barreiras que se encontram inseridas nas
estruturas sociais.
Dessa forma, a racionalidade que opera no interior de uma
argumentação discursiva é uma racionalidade tornada reflexiva e que, em
situações problemáticas compreende a formação discursiva da vontade,
integrando a individualidade do sujeito e os laços que o prendem objetivamente a
todos os outros, de forma universal. Este é o cerne da Ética do Discurso. Neste
processo de formação da vontade discursiva, a “plena responsabilidade”
(Habermas, 2004a) dos sujeitos é esperada na auto-relação refletida nas atitudes
com os outros participantes do discurso. A racionalidade do indivíduo é medida
pela sua capacidade de adotar uma atitude reflexiva na auto-relação com seu
saber, seu agir e sua fala. As disposições para o uso de sua liberdade é condição
para esta atitude reflexiva.
A auto-relação epistêmica requer uma liberdade reflexiva para dispor de
uma atitude reflexiva “do sujeito cognoscente com suas próprias opiniões e
convicções” (Id. Ibid., p. 103), saindo de uma posição puramente egocêntrica. A
auto-relação técnico-prática exige uma liberdade de arbítrio numa atitude do
sujeito para com suas escolhas que melhor se adaptarem as suas atividades
orientadas ao êxito em um mundo objetivo. A auto-relação moral-prático conta com
a autonomia ou a vontade livre, na tradição kantiana, no sentido do sujeito
autodeterminar a vontade própria em favor de uma idéia moral que possa ser
atribuída de forma universal. É uma atitude reflexiva do sujeito “ante suas próprias
ações reguladas por normas” (Id. Ibid.). A auto-relação existencial conta com a
liberdade ética que “exige uma atitude reflexiva ante o projeto de vida próprio, no
66
contexto de uma biografia individual, mas entrelaçadas com formas de vida
coletivas dadas” (Id. Ibid.).
Habermas acentua que a liberdade do sujeito é uma disposição que lhe é
inerente pela capacidade racional, porém, a atitude reflexiva adotada nas auto-
relações correspondentes se pela interiorização dos efeitos produzidos nas
relações interpessoais. Em outras palavras, as perspectivas que os outros têm
diante de minhas ações produzem um efeito reflexivo sobre meus proferimentos.
Esse processo é possível pela via discursiva, voltada ao entendimento. No que
diz respeito às questões ético-morais, a ação comunicativa tornada reflexiva,
rompe com a idéia de que juízos morais devem desprender-se das questões da
vida prática. Para Habermas (2004a) os sentimentos negativos enfrentados em
determinados contextos de vida, gerando situações de violência e injustiça, podem
ser reconhecidos reciprocamente. Para o filósofo, sentimentos de culpa, de
ofensa, de indignação e de rejeição diante de comportamentos dos participantes
de uma comunidade “têm um conteúdo proposicional que anda de mãos dadas
com a apreciação moral” (p. 273). As histórias de vida e as relações com os
grupos sociais envolvem as questões éticas que são o ponto de partida para o
reconhecimento de normas morais, respaldados universalmente.
No desenvolvimento deste capítulo, procuro expor as principais idéias que
fundamentam a Ética do Discurso em Habermas. No horizonte do reconhecimento
das formas de vida prática, a Ética do Discurso reformula a ética kantiana do
dever ser, partindo do pressuposto da necessidade de um moral universalista.
Contudo, sem cair no universalismo abstrato que exige a total separação das
formas de vida particular para um dever-ser idealizado, refletindo em problemas
de aplicação na prática. Na Ética do Discurso, o imperativo categórico kantiano
reconcilia-se com as questões do bem-viver no interior de uma prática
comunicativa tornada reflexiva via argumentaçã
Na Ética do Discurso
29
, apresentada logo a seguir, as normas devem
contar com a anuência de todos envolvidos no discurso prático. É uma busca
cooperante da verdade na qual pode alcançar o status de validade moral os
enunciados universalmente reconhecidos. Isto requer a emancipação das
vontades e preferências contingentes, embora toda moral tenha um estreito
vínculo com as formas de vida ética e pragmática de cada um. Neste sentido, a
razão prática diferencia-se conforme a perspectiva de seu uso: seja nas questões
práticas, no debate ético ou no do discurso acerca das normas morais. Assim, o
método do discurso prático expresso na Ética do Discurso inclui os interesses e
necessidades referentes ao mundo subjetivo, social e objetivo. No entanto, os
argumentos utilizados no discurso sempre estarão submetidos a uma avaliação
crítica em relação às pretensões de validez (3.2).
3.1. KANT: a boa vontade e o dever enquanto manifestação do bem
Um ilustre representante da ética moderna é Immanuel Kant (1724
1804). A ética do dever, iniciada por Kant fundamenta-se por aquilo que o filósofo
denominou de imperativos categóricos - a ação moral é válida se a regra que a
orienta, puder tornar-se uma regra universal. Em seu livro Fundamentação da
metafísica dos costumes e outros escritos (2005), Kant apresenta a
fundamentação para a idéia de bem estabelecida de acordo com aquilo que
definiu como “boa vontade”. Com Kant a idéia de felicidade como sumo bem é
29
Segundo Marcondes (2005) a concepção de uma ética do discurso se encontra elaborada em algumas
idéias centrais na pragmática formulada na Teoria dos Atos de Fala de Austin. No entanto, o filósofo alemão
Karl Otto Apel (1922 - ) é o principal formulador da Ética do Discurso. Nas palavras de Habermas (2004a, p.
90)Apel, na interpretação pragmática da reflexão sobre a validade, esbarra nas condições comunicativas de
uma busca cooperativa da verdade. nisso a influência do modelo, desenvolvido por Charles S. Pierce, de
uma comunidade ilimitada de comunicação, em que os pesquisadores justificam uns aos outros suas
afirmações falíveis no intuito de alcançar um acordo (em princípio, revisável) invalidando pelo discurso os
contra-argumentos (sempre possíveis). Essa idéia o o impulso rumo ao conceito de verdade fundado
no discurso, mas marca também o ponto de partida para uma ética do discurso, que sugere uma leitura
intersubjetiva do imperativo categórico”.
68
substituída pela idéia do dever-ser, orientado por princípios da razão objetiva e
não por inclinações pessoais como acontecia com a idéia aristotélica de felicidade.
Para o filósofo, somente as determinações de uma boa vontade podem orientar as
escolhas mais acertadas. Essa vontade (digna) pode ser determinada pelo uso
da razão, pois, outras inclinações humanas, como as paixões, desejos e outras
emoções podem tender tanto para o bem quanto para o mal.
Desta forma, torna-se moralmente válido aquilo que pode ser determinado
sem outras intenções, mas, como um fim em si mesmo, pelo “conceito de dever
que contém em si o de boa vontade” (2005, p. 24) e que restringe as inclinações
subjetivas, uma vez que estas conduzem a uma idéia equivocada de bem moral.
Conforme o autor, nossas atitudes contêm um princípio moral quando praticadas
sem interesses pessoais, mas pelo querer, pelo dever em si. A máxima kantiana
princípio subjetivo do querer é o pressuposto para o princípio da lei prática, da
razão prática objetiva de forma que possa ser aceita por todos, isto é, em forma de
lei, o que Kant denomina de imperativo categórico. Pois, “o dever é a necessidade
de uma ação por respeito à lei”, e sendo assim, devo agir sempre de modo que
possa querer também que minha máxima se converta em lei universal” (KANT,
2005, p. 28-29). Embora o próprio autor admita as dificuldades do ser humano agir
por puro dever (sollen), acredita na disposição do espírito para esta formação do
caráter. O ideal da razão, como pressuposto para o agir moral, atribui a
importância ao processo educativo do sujeito. Segundo Kant (2004), o homem é o
único animal a necessitar de educação e formação, pois, é singularmente ele que
tem a liberdade de escolha.
A liberdade do homem diante de suas possibilidades exige o uso da razão
para o reconhecimento dos princípios da lei que devem orientar as escolhas, desta
forma, para Kant, a vontade é a própria razão prática. Os imperativos categóricos
serviriam como um dispositivo para regular as imperfeições humanas (subjetivas)
da vontade, encaminhando-se para uma vontade considerada boa, necessária por
si mesma, governada sob leis objetivas (do bem). Somente os imperativos
categóricos têm a validade de uma lei, pois, são formulados a priori, livre das
69
influências humanas condicionadas pelos motivos e leis empíricas. O cumprimento
da lei estaria assegurado pela relação de todo ser humano com um conceito de
vontade, objeto de estudo de uma “metafísica dos costumes” (KANT, 2005, p. 57),
de uma filosofia prática. Esta ocupar-se-ia em conhecer e investigar os princípios
e leis daquilo que deve ser, não considerando critérios sobre o que agrada ou
desagrada.
A formação do ser humano em conformidade com os imperativos
categóricos deve ser vista como um fim, ou seja, a educação deve elevar o
homem a um outro nível de moralidade, para uma outra natureza, a natureza
ética. Para Kant (2004), o homem é fruto de sua educação que deve ser
aperfeiçoada com o passar das gerações no sentido de desenvolver no homem
disposições para o bem. Sendo assim, em Kant, a educação está voltada para
uma idéia de futuro, aquilo que pode vir -a- ser. “A educação, portanto, é o maior e
o mais árduo problema proposto aos homens” (p. 20).
Kant reconhece o homem enquanto ser consciente de sua pertença a um
mundo sensível e a um mundo inteligível. Portanto, sujeito às inclinações e
apetites do querer, o que o filósofo denominou de heteronomia da natureza regida
pelo princípio da felicidade, pertencente ao mundo sensível. Porém, a
determinação das ações humanas não pode ser regida por tais fenômenos criados
por princípios subjetivos. Assim sendo, ficaria restrita a uma vontade particular
ferindo o princípio do imperativo categórico de que o decidido pudesse ser válido
para todos. Enquanto ser inteligível, deve orientar-se por princípios racionais que
se abstraem de todos os princípios subjetivos. Estas decisões podem ser
tomadas sob a orientação de uma vontade autônoma regida por leis. É uma
vontade racional, portanto, universal que Kant denomina de vontade legisladora
universal. Esta é a condição necessária para a idéia de uma liberdade orientada
por leis universais. O princípio da autonomia da vontade torna o sujeito o
legislador de suas ações, de sua vontade e que podem estar em consonância
com a razão, ou seja, regida pelo princípio da moralidade.
70
Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, o homem
não pode jamais intuir a causalidade de sua própria vontade senão sob a
idéia de liberdade, pois a independência das causas determinantes do
mundo sensível [...]é a liberdade. Ora, a idéia de liberdade está
inseparavelmente ligado ao conceito de autonomia, e a este, o princípio
universal de moralidade, que serve de fundamento à idéia de todas as
ações de seres racionais (KANT, 2005, p. 85).
O próprio homem deve tomar consciência desta sua dupla maneira de
ser: a de um ser pertencente ao mundo sensível (consciência de si) e pertencente
a um mundo inteligível (consciência de si enquanto ser inteligente) capaz de
desprender-se das coisas sensíveis através da autonomia da vontade regida pela
razão. Esta capacidade de legislador universal sobre o agir conduz o ser racional
ao reino dos fins.
Pela palavra reino entendo a ligação sistemática de vários seres racionais
por meio de leis comuns. Ora, como as leis determinam os fins segundo a
sua validade universal, se se abstrair das diferenças pessoais entre os
seres racionais e de todo conteúdo de seus fins particulares, poder-se
conceber um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como
fins em si mesmos como dos próprios fins que cada qual pode propor a si
mesmo) em ligação sistemática. [...] Decorre daí, contudo, uma ligação
sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, isto é,
um reino que, justamente porque essas leis têm em vista a relação desses
seres uns com os outros como fins e meios, pode bem ser chamado de
reino dos fins (Id.ibid., p. 64 – grifo do autor).
Para Kant, a lei objetivo-prática determina-se exclusivamente pelo uso da
razão, portanto desligada de qualquer contexto da experiência. Para o filósofo, o
estudo dos sentimentos, das inclinações e do prazer cabe a uma psicologia
empírica fundada em leis empíricas. A lei objetivo-prática, estudo de uma filosofia
71
prática, determina o que deve ser. Inicia-se com as máximas regidas pela
autonomia da vontade que é a condição para o imperativo categórico. Este
desprendimento do empírico é possível pelo uso da liberdade inerente ao
homem, regida pela vontade pura, que Kant considera como um a priori, portanto,
não condicionada às influências do mundo sensível, mas sim como algo em si,
absoluto.
Esta teoria que divide o mundo em mundo sensível - dos fenômenos, das
inclinações e motivos subjetivos - e o mundo inteligível do dever e da vontade
pura – é uma das diferenças que Habermas aponta em relação a Kant e a Ética do
Discurso. A excessiva abstração encontra sérios problemas de aplicação da ética
do dever, idealizada teoricamente, quando precisa confrontar-se com problemas
concretos do mundo empírico. O próprio Kant exclui-se em explicar a possibilidade
de tamanha abstração teórica.
Ora, como uma razão pura, sem outros impulsos, venham esses de onde
vierem, possa por si mesma ser prática, isto é, como o simples princípio
da validade universal de todas as máximas como leis (que seria
certamente a forma de uma razão pura prática), sem matéria alguma
(objeto) da vontade em que antemão pudesse tomar qualquer interesse,
possa dar por si mesma uma impulsão e produzir um interesse que se
denominaria puramente moral; ou, dizendo de outra maneira: como uma
razão pura possa ser prática explicá-lo, eis algo que toda a razão
humana é absolutamente incapaz: e serão vãos todos os esforços em
busca de sua explicação. Da mesma forma seria se eu quisesse descobrir
como é possível a liberdade mesma como causalidade de uma vontade (I.
ibid. p. 94 – grifo do autor).
No entanto, Habermas considera a idéia da universalidade, expressa no
imperativo categórico, como uma saída do egocentrismo, das inclinações pessoais
que motivam atitudes egoístas pautadas em uma ética puramente subjetivista.
72
Valores como respeito
30
, justiça e solidariedade se encontram inscritos na ética
kantiana. Considerar o outro a partir de tais valores exige uma saída do
individualismo para uma relação intersubjetiva cooperativa, exercendo laços de
solidariedade. O reconhecimento ao igual tratamento a todos se torna uma
questão de justiça e por isso, um dever fazê-lo. Porém, uma outra objeção de
Habermas à ética kantiana diz respeito à atitude monológica atribuída à
consciência interior do sujeito em decidir sobre seus juízos morais.
Apesar das diferenças, a Ética do Discurso é apresentada por Habermas
como uma reconstrução da ética kantiana fundamentando-a na base do discurso
argumentativo, tendo como referência a teoria de Apel. Segundo Apel (1994)
somente o discurso argumentativo seria capaz de validar normas e juízos que se
tornam problemáticos no mundo da vida. Para o filósofo a situação atual da
humanidade - os riscos impostos pelo próprio homem sobre sua sobrevivência
exige, por si, um posicionamento moral. Segundo o autor, “por primeira vez na
história mundial transcorrida até agora, se torna visível uma situação, na qual os
homens, em face do perigo comum, são desafiados a assumir uma
responsabilidade moral” (APEL, 2004, p. 193). Sendo assim, a situação na qual o
homem, hoje, se encontra perigo da guerra nuclear; devastação da biosfera;
violência social; corrupção política, etc – já se coloca como um problema ético.
Habermas considera a Ética do Discurso, inaugurada por Karl Otto Apel,
como sendo a abordagem mais promissora para a discussão das questões
práticas. No processo argumentativo, os participantes levantam expectativas por
pretensões de validez, orientadas para o entendimento mútuo, de modo que
possam posicionar-se entre o “sim/não”. Esse processo de comunicação dialógica
pode se dar na intersubjetividade e não na imposição coercitiva de um
conhecimento sobre o outro. O agir comunicativo cotidiano é elevado a uma práxis
30
Para Kant (2005) o respeito o é um simples sentimento condicionado pelas inclinações humanas. Pelo
contrário, é um sentimento produzido mediante critérios pelo uso da razão. O respeito que demonstrado é a
subordinação da vontade perante alei, é o reconhecimento de algo que é imposto ao nosso amor-próprio. Por
exemplo, o respeito a uma pessoa de talento dar-se-ia pelo modelo de retidão à lei que ela representaria, sendo
seu talento também visto como um dever cumprido. Habermas desce à terra esse conceito de dever kantiano
de forma que o que é válido, ou a decisão correta, tenha como base as razões incontestadas apresentadas em
forma de argumento discurso as quais possam conta com a anuência de todos os participantes.
73
argumentativa pautada pelo melhor argumento na pretensão de convencer o outro
de suas razões. Nesta interação, abre-se o horizonte no qual seus interlocutores
podem “aprender uns dos outros” (HABERMAS, 2004a, p. 92). Os participantes
do diálogo comprometem-se mutuamente com os resultados do processo. Nesta
perspectiva, é que Habermas qualifica sua Ética do Discurso.
3.2. A Ética do Discurso
Seguindo esta linha de pensamento, Habermas no campo da filosofia
um caminho favorável para a interpretação hermenêutica e o debate crítico de
situações atuais. Jürgen Habermas (1929 - ) é integrante da segunda geração de
intelectuais da Escola de Frankfurt, Alemanha. O termo Escola de Frankfurt
(Prestes, 1996), é utilizado para referir-se aos pensadores filiados ao Instituto de
Investigação Social (Institut für Sozailforschung), fundado em 1924. Entre eles, em
especial, Max Horkheimer, Theodorn Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse,
Leo Lowenthal. Seus estudos filosóficos baseiam-se em investigações
interdisciplinares acerca dos problemas sociais, preocupando-se, principalmente,
com a questão da emancipação humana. As críticas à forma tradicional de
conceber a sociedade passam a ser o principal ponto de pesquisa e que
compreende o termo “teoria crítica”. Habermas é influenciado, em suas pesquisas,
por esses pensadores, porém, reformula categorias e pressupostos estabelecidos
na Teoria Crítica. Sustenta o esgotamento do paradigma da consciência, ainda
mantido neste modelo teórico, propondo sua substituição pela teoria da ação
comunicativa.
A possibilidade vista por Habermas, em uma comunidade de
comunicação pressupõe a possibilidade de se retomar valores éticos importantes,
até então, no atual contexto mundial. Para Habermas, no convívio social -
mediado pelo agir comunicativo as expectativas de superação do egocentrismo,
são ancoradas em uma racionalidade voltada ao entendimento e que se submete
74
a critérios públicos de discussão. Tal processo de entendimento, para o autor,
requer que o interesse seja compartilhado, uma vez que, passa pelo viés da
linguagem pressupondo uma relação intersubjetiva.
A forma discursiva do entendimento mútuo, a partir de argumentos
racionalmente aceitos por todos, é a base da Ética do Discurso. A validade dos
enunciados pode ser avaliada livre de qualquer tipo de coerção, seja ela por
força política, pela autoridade imposta pela tradição ou convicção religiosa. Tais
preceitos, compreendidos nos princípios da Ética do Discurso, tornam-se
pertinentes na avaliação de normas morais e ganha importância em um contexto
no qual os fundamentos religiosos vêem-se subtraídos desta tarefa.
Com a destituição dos fundamentos religiosos, a autoridade epistêmica
dos fundamentos morais passa para as ciências empíricas. A pluralidade das
culturas sociais não mais se permite validar por uma moral única, partilhada por
todos, como a visão de mundo católica, obrigatória a todos. Assim, a filosofia
moral necessita buscar um outro nível de fundamentação que não pode mais ser
justificado “publicamente segundo um ponto de vista divino transcendente”
(HABERMAS,2004b, p. 18). Porém, Habermas levanta suas objeções às
tentativas de fundamentação da moral a partir de posições idealistas,
individualistas, funcionalistas ou céticas surgidas historicamente, que não serão
aqui debatidas.
A Ética do Discurso proposta por Habermas é complexa e levanta
questões que poderiam cada uma, ser extensivamente discutidas, uma vez que
recorre a muitos autores de diversas áreas do conhecimento em um processo que
denominou de reconstrução teórica. O contexto desta pesquisa restringe-se em
pautar por idéias e conceitos básicos que fundamentam esta teoria sobre a ética e
a moral como a tentativa de Habermas (1991) em reconstruir a atualizar
hermeneuticamente a ética kantiana. Conforme o autor, Kant criou um conceito de
justiça unilateralizado centrado na decisão de um sujeito idealizado, de forma
monológica, fazendo uso de sua autonomia da vontade para avaliar suas máximas
75
de conduta. É nessa capacidade racional de abstração que Kant fundamenta sua
ética: a razão prática enquanto instância verificadora da validade das normas,
desprendida de qualquer contexto ou instituição. Os problemas na aplicação das
normas têm início quando necessita da anuência de todos. As questões do
reconhecimento mútuo, da cooperação recíproca à liberdade de participação
encontram seus limites uma vez que a aplicação do imperativo categórico por si
só, isenta-se em buscar a concordância dos demais reconhecendo suas situações
concretas de vida. Para Habermas, o indivíduo forma sua personalidade
através da socialização via linguagem. A linguagem utilizada no entendimento com
o outro se torna condição necessária diante da fragilidade do ser humano no
entrelaçamento com as diferentes formas de vida sócio-culturais.
O indivíduo isolado, por si só, não consegue afirmar sua identidade”
(Id.Ibid., p. 19) necessitando do compartilhamento com os outros como referência
aos seus próprios atos. Segundo o autor, a moral posiciona-se enquanto
dispositivo de proteção nas relações interpessoais construídas sobre uma base
comunicativa - como forma de orientação à extrema vulnerabilidade dos
indivíduos” (Ibid., p. 18). Uma vez que a individualização se constitui na
socialização, para Habermas, a moral tem duas tarefas a cumprir: exige o respeito
à dignidade e à liberdade de cada um (justiça); e, da mesma forma, em
reconhecimento mútuo, exige a reciprocidade desse respeito ao outro como
membro do grupo, na preocupação como seu bem-estar (solidariedade).
A Ética do Discurso dispõe do potencial para estabelecer uma estreita
relação entre justiça e solidariedade. Tais princípios éticos, tradicionalmente,
colocavam-se em posições excludentes: as éticas do dever assentam-se sobre o
princípio de justiça e as éticas do bem, sob o bem-estar geral. Para Habermas,
esta relação entre justiça e solidariedade destacada na ética do discurso, torna-se
possível quando orientada por uma forma de comunicação mais exigente que
possa transcender as forma de vida concreta. A estrutura universal da razão
expressa pela linguagem de todos os sujeitos inspira a imagem de uma
76
comunidade ideal de fala
31
enquanto condição de possibilidade do discurso
argumentativo. Trata-se da formação de uma vontade discernente e garantidora
do debate livre de coações, um processo possível no uso de um método
discursivo prático.
O método do discurso possibilita a avaliação da validade dos
proferimentos via força argumentativa. Ou seja, a adesão se pelo
convencimento às boas razões levantadas e que resistem às possíveis objeções.
Substitui, assim, a validade do imperativo categórico imposto como uma
obrigação. Para a avaliação imparcial dos pontos de vista morais, válidos
universalmente, G. H. Mead recomenda
a assunção de papéis ideais que exige que o sujeito dotado da
capacidade de juízo moral se coloque na posição de todos aqueles
eventualmente atingidos por uma conduta problemática ou pela entrada
em vigor de uma norma controversa. O método do discurso prático
apresenta vantagens quando confrontado em ambas as construções.
Quando argumentam, os intervenientes têm de partir do princípio de que,
em regra, todos os indivíduos em questão tomam parte, enquanto sujeitos
livres e iguais, numa busca cooperante da verdade [... ] O discurso prático
é visto como uma forma exigente da formação da vontade”( HABERMAS,
1991, p. 17).
Dessa forma, o método do discurso prático contempla os dois aspectos
importantes num processo argumentativo: a autonomia de cada um em seus
proferimentos e a relação recíproca do reconhecimento desse interesse de modo
em geral. É uma relação de empatia solidária em que cada indivíduo projeta-se no
31
“Na qualidade de interveniente numa argumentação, cada indivíduo está posicionado na sua própria
perspectiva, embora continue inserido num contexto universal é isto que Apel pretende dizer com
‘comunidade ideal de comunicação’. No discurso, o se quebra o laço social do sentimento de pertença, se
bem que o consenso que a todos é exigido transcenda as fronteiras de todas as comunidades concretas”
(HABERMAS, 1991, p. 22).
77
outro, é a “reciprocidade do conhecer-se a si próprio através dos outros” (Id. Ibid.,
p. 73), condição para a busca de um consenso sempre passível de revisão.
A ética discursiva ordena diversas formas de argumentação a questões
éticas e morais, a saber, discurso de auto-entendimento, de um lado,
discursos de fundamentação normativa (ou de aplicação) de outro. Com
isso, no entanto, ela não reduz a moral a tratamento indistinto, mas
procura fazer jus a dois aspectos; à justiça e à solidariedade. Um comum
acordo almejado via discursiva depende simultaneamente do “sim” ou do
“não” insubstituível em cada um dos indivíduos, bem como da superação
egocêntrica, indissociável de todos os envolvidos em uma práxis
argumentativa pautada pelo convencimento recíproco (HABERMAS,
2004b, p. 50)
Esta forma de socialização comunicativa consegue superar de uma
vez três aspectos passíveis de crítica na ética kantiana (Habermas, 1991, p.23): a)
em seu aspecto formalista na divisão dos dois mundos, sensível e inteligível. A
abstração deontológica da moral kantiana não permite a participação das
questões práticas nas discussões racionais de sua fundamentação. O que é justo
é separado das questões do bem-viver e sobre elas subtrai-se qualquer
responsabilidade na ordem dos problemas cotidianos. A Ética do Discurso
considera a justiça e a solidariedade como forma complementar no convívio social.
b) a Ética do Discurso supera a avaliação interna da conduta moral do
sujeito monológico pelo processo de um discurso público como forma de
generalização das normas. “Não é por acaso que o imperativo categórico dirige-se
a uma segunda pessoa do singular, dando a impressão de que cada um por si, in
foro interno, pode submeter às normas a prova, segundo convém” (HABERMAS,
2004b, p. 48). A validade das normas para que possa ser aceito de forma universal
depende por um lado, da participação de cada um e, por outro lado, da superação
da perspectiva egocêntrica.
78
c) a Ética do Discurso pretende superar a fundamentação baseada no
princípio do dever, que anula a subjetividade em nome de uma lei objetiva. “O
conceito intersubjetivista de autonomia leva em linha de conta que o livre
desenvolvimento da personalidade de cada um depende da realização da
liberdade de todos” (HABERMAS, 1991, p. 27).
Porém, Habermas também reconhece que, assim como as máximas
submetem-se ao imperativo categórico, da mesma forma a fundamentação das
normas e as condutas morais na Ética do Discurso dissociam-se dos contextos
práticos e se sujeitam a apreciação hipotética. Uma moral universalista precisa
manter certa harmonia com as práticas de socialização e com as instituições
públicas. O autor aponta que os esforços empreendidos nas manifestações e
movimentos sociais e políticos devem ser considerados em sua dimensão
histórica. Observa-se, atualmente, que a revisão de normas e leis tem sido
motivada por exigências da opinião pública frente ao descontentamento e o
sentimento de indignação diante dos mais diversos tipos de violência que
diariamente o ser humano sofre.
No entanto, a teoria do discurso aborda de forma diferenciada as questões
morais, éticas e pragmáticas. A pergunta “o que devo fazer?” tem uma dimensão
diferente diante das situações que envolvem o uso da razão prática. Nos discursos
pragmáticos nossa razão orienta-se pelas preferências e opções oferecidas diante
das situações. Isto é, nossa vontade esta implicada naquilo que é reconhecido
como sendo razoável fazer, basta decidir entre as alternativas dos meios e na
fixação dos objetivos. Nas tarefas pragmáticas envolvem-se ões estratégicas
nas quais se utilizam técnicas decididas egocentricamente. “Os discursos
pragmáticos [...] apresentam determinada afinidade com discursos empíricos.
Servem para relacionar o conhecimento empírico com a determinação hipotética
de fins e preferências e para avaliar as conseqüências de decisões (informadas de
modo incompleto) segundo máximas subjacentes” (HABERMAS, 1991, p. 110). As
questões pragmáticas não envolvem problemas ético-morais, pois apenas
dependem das condições para a execução de um plano individual e não uma
79
mudança de conduta por parte do destinatário. Nos discursos ético-morais a
vontade conecta-se com a razão como forma de motivação para a mudança de
atitude, para a adoção de outras perspectivas na relação com os outros.
Segundo Habermas a validez dos proferimentos e ações não pode reduzir-
se a avaliações empiristas nem tampouco fundamentar-se em termos absolutos.
Dessa forma, o método do discurso oferece, através do processo argumentativo,
um procedimento de avaliação da validade das normas. É uma forma reflexiva de
argumentação que visa ao entendimento. Como ponto de partida para esse
processo de entendimento, Habermas (2004b, p. 55) pressupõe que os problemas
e conflitos que afligem os envolvidos desejam ser resolvidos sem violência, na
base de um acordo mútuo. No entanto, nas sociedades pluralistas, uma ética
comum a todos não é possível. O grifo na palavra “ética” chama a atenção para a
validade de uma norma seja aceita por todos necessita desprender-se dos motivos
éticos relativos à autoconsciência de cada pessoa ou de histórias de vida em
grupos sociais restritos. Para Habermas (Id. Ibid., p.p. 46-47)
esses motivos relativos aos atores não contam mais como motivos e
orientações de valor de pessoas individuais, mas como contribuições
epistêmicas para um discurso de exame de normas, realizado com o
intuito do mútuo entendimento.[...]Uma lei é válida no sentido moral
quando pode ser aceita por todos, a partir da expectativa de cada um. [...]
No momento em que a autovinculação da vontade assume a forma de
autolegislação, vontade e razão se interpenetram integralmente.
Para estabelecer o princípio discursivo e o princípio universalizante que
serve como regra de argumentação, Habermas (2004b) apóia-se no pressuposto
de que a práxis da argumentação é uma forma de entendimento comum a todos
os tipos de culturas e sociedades, de maneira formal ou informal. A práxis
argumentativa assenta-se sobre uma “concorrência cooperativa” de forma que
seus resultados estejam fundados na força de convencimento produzida pelo
80
melhor argumento e não sob inclinações pessoais ou valores culturais de grupos
específicos. Uma norma moral rege-se pelo princípio discursivo estabelecido no
respeito a cada um numa cooperação solidária, logo, não coercitiva, pelo
reconhecimento de perspectivas alheias. Assim, o princípio “D” inspira o princípio
universalizante “U”.
Os princípios da ética do discurso apontam para a possibilidade de um
procedimento argumentativo no sentido de convencer a todos os envolvidos, de
forma imparcial e assim, fundamentar normas morais, aceitas universalmente. O
princípio “D” estabelece que “só podem aspirar por validade as normas que
puderem merecer a concordância de todos os envolvidos em discursos práticos.
[...] O principio discursivo ‘D’, introduzido de forma condicional, indica a própria
condição a ser cumprida por normas válidas, caso elas possam se
fundamentadas. [...] No entanto, para a operacionalização de ‘D’, falta ainda uma
regra para a argumentação que indique como as normas morais podem ser
fundamentadas. O princípio universalizante ‘U’ [...] Ele afirma: que uma norma só é
válida quando as conseqüências presumíveis e os efeitos secundários para os
interesses específicos e para as orientações valorativas de cada um, decorrentes
do cumprimento geral dessa mesma norma, podem ser aceites sem coação por
todos os atingidos em conjunto(HABERMAS, 2004b, p. 58 – grifos do autor).
Sob tais princípios, o discurso prático é um procedimento que pretende
avaliar a validade das normas hipoteticamente apresentadas e propor sua
correção, caso seja necessário, e não propor conteúdos normativos. Neste sentido
faz a distinção entre o campo do que é moralmente válido e os conteúdos culturais
valorativos. Os conteúdos culturais valorativos têm a ver com a personalidade de
cada indivíduo e sua interação em grupos sociais, assim, envolvem a
autocompreensão
32
e uma compreensão de mundo dos participantes em
particular. É uma visão ainda egocêntrica que parte da perspectiva da
32
A autocompreensão refere-se a como o indivíduo compreende a si próprio, levando em conta sua identidade
e aos ideais a que aspira, mas que estão entretecidos com os laços sociais a que faz parte. O processo de
formação de cada um desenvolve-se no espaço das tradições compartilhadas. Assim, a minha identidade é
cunhada por identidades coletivas e a minha história de vida está enraizada em formas de vida de âmbito
histórico” (HABERMAS, 1991, p. 107).
81
autocompreensão (autoconsciência) e é regida pelas máximas, no sentido
kantiano, que formam uma rede de hábitos pessoais nos projetos de vida, na
identidade do sujeito e do grupo. Neste contexto de tradição, os hábitos “regulam
o dia-a-dia, o estilo da interação, a forma de lidar com os problemas, de resolver
conflitos, etc” (HABERMAS, 1991, p. 107). A perspectiva moral exige um tipo de
reflexão diferente da perspectiva ética. Esta permanece nos acordos acerca das
máximas mais adequadas e boas no uso em um pequeno contexto (a própria
pessoa, a família, grupos sociais determinados); a primeira exige uma reflexão
sobre a possibilidade de essas máximas poderem ser aceitas universalmente.
A tradição kantiana sobre a moral torna-se, novamente, visível na
analogia feita entre máximas (o ethos) e o imperativo categórico (a lei moral).
Porém, na Ética do Discurso o imperativo categórico ganha outro status expresso
nos princípios “D” e “U” . Habermas entende que as máximas kantianas são “um
plano de intersecção da ética e da moral, uma vez que podem ser
simultaneamente avaliadas quer do ponto de vista ético, quer do moral”(Id. Ibid.).
Nesse sentido, Habermas afirma que as relações interpessoais presentes no
mundo da vida trazem a expectativa da familiaridade com um ambiente
normativo, embora restrito a um agir comunicativo não problematizado, mas que
também levantam suas pretensões de validez.
A fundamentação da moral não exclui, então, as questões pragmáticas e
éticas de seus participantes, mas exige
uma fratura com todas as evidências dos costumes concretos e
estabelecidos, assim como o distanciamento em relação àqueles
contextos práticos com os quais a identidade individual está entretecida
de forma inextricável. É unicamente a partir dos pressupostos
comunicativos de um discurso de âmbito universal, no qual todos dos
eventuais indivíduos envolvidos possam tomar parte e assumir uma
atitude hipotética e argumentativa face às pretensões de validade de
normas e de modos de conduta tornadas problemáticas, que se constitui o
nível superior de intersubjetividade relativa a uma intercruzamento da
82
perspectiva individual [...] sem, no entanto, perder a ligação à atitude
performativa dos participantes (Id. Ibid., p. 112).
A atitude performativa dos participantes na práxis da argumentação é
exigida enquanto condição para um possível consenso. Estas qualidades para a
aceitabilidade racional dos proferimentos, como fala Habermas (2004b), são
inerentes ao próprio processo argumentativo. O filósofo aponta para quatro
qualidades que julga importante: a) desde que possa dar uma contribuição
relevante, ninguém pode ser excluído da participação; b) a contribuição é direito
de todos, de forma igual; c) o que é dito pelo participante deve ser coerente e
sincero; e d) não pode haver qualquer espécie de coação, interna ou externa, de
modo que fique garantida a liberdade de opção entre o “sim” e “não” perante as
reivindicações de validação criticáveis. A única forma de força permitida é a do
melhor argumento.
Na possibilidade do consenso e sua verificabilidade, para cada condição
de ato de fala corresponde uma pretensão de validade e sua possível tematização
sempre que ocorrer desvios dessas condições, que Habermas designou de
condições universais da comunicação (1989,1990). No caso em que a
compreensão do que é dito torna-se obscura e, portanto não esclarecida para o
ouvinte, o falante empreende o esforço no resgate às pretensões de validez. Seria
uma das condições para a busca do consenso de que aquilo que é dito possa ser
compreendido dentro de uma linguagem estabelecida para fins comunicacionais,
possibilitando sua reconstrução. Portanto, essa condição tem por si o
pressuposto de existir para que ocorra o discurso, dependendo dela todo o
processo de comunicação em geral.
Nos atos de fala constatativos erguem-se pretensões de verdade, ou seja,
faz uma referência aos fatos e coisas em um mundo objetivo e, portanto, só pode
ser requisitada ao nível do discurso que ultrapassa o contexto. A pretensão de
correção normativa refere-se ao mundo social, referindo-se aos atos de fala
regulativos, nos quais se pressupõe o estabelecimento de regras que possam
83
orientar a comunicação. Essa pretensão de validade pode ser resgata no
discurso prático, ou seja, nos acordos estabelecidos no contexto da tematização,
mas que não ocorrem fora do mundo objetivo. Finalmente, os atos de fala
representativos dizem respeito à pretensão de veracidade relacionada à
subjetividade do participante, a qual coloca em evidência a sinceridade dos
proferimentos do falante.
Habermas (2004b) assinala que a força dos pressupostos argumentativos
não é por si normativo em sentido moral. A liberdade comunicativa em participar
do discurso, a exigência de que seus proferimentos sejam sinceros e inteligíveis
faz parte de qualquer processo argumentativo. Permanece então a questão sobre
a fundamentação moral das sentenças e ações, o que é julgado correto ou não.
Tradicionalmente a questão da validade refere-se à verdade ou falsidade das
proposições assertivas numa concepção de mundo objetivo racionalmente
estabelecido, ou seja, os juízos morais, também assim classificados,
correspondiam simplesmente à relação entre fatos e objetos.
Para Habermas a verdade das sentenças assertivas pode ser interpretada
em analogia com a correção das normas morais. Assim, verdade torna-se um caso
especial de validade. Porém, faz uma diferenciação entre “verdade” condição
inalienável das asserções - e “aceitabilidade racional” declarações que estão
ligadas a um contexto. O que pode ser compreendido como: “justificado em
qualquer contexto” e justificado em nosso contexto” (Il…iAbÐbÐ oÐ Ðnece
transcendental. Esta validade é buscada entre as pessoas, na sua capacidade de
aprender e de se entender um com o outro.
Validade” significa agora que normas morais contarão com a
concordância de todos os envolvidos, quando esses, em discursos
práticos, testarem em conjunto se a respectiva práxis vem ao encontro de
todos em igual medida (Id. Ibid., p. 51).
No espaço das relações sociais necessita-se continuamente estabelecer
vínculos de convivência, seja na família, com os amigos, no ambiente de trabalho,
etc. Esta interação provoca situações de confronto, de ajuda mútua, de
reconhecimento e de valorização para com o outro na medida em que se constrói
a própria personalidade. Para Habermas (2004a) o vínculo com as três dimensões
o objetivo, o social e o subjetivo orientado por pretensões de validez, muda a
forma da relação do homem com o mundo. As experiências de sucesso ou de
fracasso entrelaçam-se com momentos de aprendizagem e de revisão dos erros
próprios. Assim, o processo de conhecimento é interpretado como um
procedimento inteligente capaz de gerar aprendizagem, solucionar problemas e
refazer interpretações equivocadas. Em suas obras, Habermas argumenta com
teóricos da psicologia no sentido de apontar conceitos referidos na epistemologia
sobre os processos de desenvolvimento cognitivo e que influenciam no
desenvolvimento da consciência moral. Assunto que segue no próximo capítulo.
85
- CAPÍTULO IV -
FILOSOFIA, ÉTICA E AGIR COMUNICATIVO: pensando a formação a partir da
intersubjetividade
Ao abordar a Ética do Discurso como alternativa para a reabilitação da
razão prática, Habermas recorre ao apoio de outras teorias
33
. Sob este aspecto,
Piaget é um dos pensadores citados pelo filósofo por identificar-se com sua teoria
sobre o desenvolvimento cognitivo humano que acontece na sua relação com o
meio. Piaget afirma que a influência do mundo social sobre o comportamento
moral assemelha-se à influência exercida pelo mundo objetivo sobre as operações
mentais em geral.
A aprendizagem por estágios de desenvolvimento mental pressupõe, no
entender de Habermas, de que esta capacidade envolve não apenas o aspecto
cognitivo, mas também, o ético-moral. Nas interações comunicativas das
comunidades lingüísticas, a linguagem em si não é racional, mas sim o uso que
dela se faz em diferentes contextos. Para Habermas (2004a), a linguagem
empregada no mundo da vida encontra-se a nível pré-reflexivo, não
33
Em algumas obras utilizadas na pesquisa, Habermas faz referências a Lawrence Kohlberg (mais
especificamente no livro “Consciência Moral e Agir Comunicativo, 1989) e a Jean Piaget, teórico do campo
da psicologia cognitivista. Ambos os autores afirmam a existência de competências no ser humano capazes de
gerar a aprendizagem e de solucionar problemas empírico-analíticos e morais-práticos. Piaget refere-se ao
pensamento formal-operacional e Kohlberg aos juízos morais pós-convencionais. Tanto para Piaget quanto
para Kohlberg o conceito de conhecimento se numa perspectiva construtivista. O conhecimento se dá, de
forma geral, por processos de aprendizagem que acontecem através de solução de problemas em que o
indivíduo encontra-se ativamente envolvido. Este processo de aprendizado é orientado racionalmente pelo
discernimento dos próprios sujeitos no processo. com isso uma hierarquia de veis e estádios de
desenvolvimento do ser humano. Pretendo centrar o texto em alguns conceitos de Piaget, principalmente no
conceito de abstração reflexionante, como possibilidade de o indivíduo assumir uma compreensão
descentrada do mundo, importante para o reconhecimento de normas morais.
problematizado. Ao confrontarmos a linguagem em um contexto social mais
amplo, ou num mundo objetivado, o nível de compreensão exigido se processa
numa forma reflexiva que vai de um agir comunicativo ordinário para uma forma
discursiva empregada no entendimento com alguém sobre algo no mundo.
Neste último capítulo da pesquisa pretendo fazer uma relação entre
conceitos existentes na psicologia piagetiana e que se apresentam promissores
para a complementação de algumas considerações apontados na Ética do
Discurso. Assim, será dada mais atenção ao conceito de abstração reflexionante.
Nesta perspectiva, também se pretende reafirmar o teor cognitivo das normas
morais, mas que não acontecem abstraídas de contextos éticos, assim como o
estágio formal do desenvolvimento cognitivo que realiza suas abstrações, tendo
como base esquemas que se desenvolveram no contato com o mundo concreto
(4.1).
Encerrando o capítulo, pretendo fazer uma relação mais direta da teoria
habermasiana com a educação, mais especificamente, com as contribuições do
processo de argumentação expresso na Ética do Discurso. Não se tem a intenção
de expor novos conceitos ou de buscar maiores referências teóricas, mas
apresentar os horizontes de uma possível justificativa acerca do tema da
pesquisa. E isso pode estabelecer o alcance da relação entre a ética discursiva e
a educação, entendida enquanto espaço de formação da individualidade e da
socialização e, portanto, enquanto campo permeado pelas formas éticas de um
mundo da vida compartilhado (4.2). Para focalizar a relação entre a teoria
abordada com a prática pedagógica utilizo como recurso didático a interpretação
do filme “A corrente do bem” (4.3).
4.1. Ética do Discurso: o entendimento buscado via processos de
aprendizagem
87
Habermas busca recurso teórico na psicologia genética de Jean Piaget
(biólogo e psicólogo/1896-1980), com o propósito de reafirmar alguns pontos
sobre o processo de aprendizagem a partir das vivências pessoais e das relações
interpessoais em um mesmo mundo objetivo. A ampliação da capacidade de
interagir e se entender com os outros, superando o egocentrismo voltado para os
próprios interesses, também apontado por Habermas (1990), é um dos
pressupostos para buscar acordos submetidos à argumentação pública. O
desenvolvimento a partir de uma epistemologia genética, na teoria piagetiana,
indica aspectos importantes que contribuem com a teoria da Ética do Discurso.
Uma das contribuições citadas por Habermas refere-se à capacidade do indivíduo
em alcançar níveis de compreensão descentrada do mundo imediato para um
mundo objetivado no qual seus conteúdos são discutidos e orientados por razões
numa atitude reflexiva. Segundo o autor (1989), a capacidade do indivíduo de
evoluir para níveis superiores de reflexão, referidos nas pesquisas de Piaget
(1983), abre um horizonte de expectativas sobre a possibilidade desse processo
não se restringir apenas à dimensão cognitivo-instrumental, mas também, aos
aspectos ético-morais de aprendizagem do sujeito.
A teoria de ambos, embora tendo abordagens diferentes, não se opõem,
mas complementam-se em muitos pontos. Habermas (1989) refere-se ao conceito
piagetiano de esquema cognitivo capaz de interagir com os novos conhecimentos
sempre que a atual condição de conhecimento entre em conflito, como uma forma
de aprendizado que interage com todos os aspectos do ser humano. Ou seja, o
esquema em Piaget seria as estruturas com as quais o sujeito se adapta e
organiza o meio através dos processos de assimilação e acomodação
34
. Seria
como uma tomada de consciência do mundo. Em cada situação de contradição
entra em jogo um esforço para uma nova equilibração.
34
A assimilação e acomodação, conforme Piaget(1983), seriam os dois componentes responsáveis pelas
mudanças nas estruturas da inteligência. Por assimilação define a integração de novos elementos às estruturas
existentes (esquema de ação), através da ação sobre o novo objeto. É o próprio ato de conhecer, de lhe dar
significação. Esse processo provoca o ato de acomodação que modifica os esquemas de assimilação para a
nova construção, sempre que os esquemas existentes não forem suficientes para tal situação que se coloca
como um novo problema a ser resolvido.
88
O resultado produziria esquemas de ação diferenciados, reconstruídos e
evoluídos para um nível superior de reflexão. Ou seja, não acontece um simples
acréscimo em nível de informações. “Piaget descobrira que, assim, como o
desenvolvimento cognitivo em geral, os processos de aprendizado moral não
remetem a conteúdos que o adolescente recebe na escola ou no cotidiano”
(HABERMAS, 2004a, p. 277 grifo do autor). O que ocorre é uma mudança nos
esquemas cognitivos, uma reconstrução que age sobre os conhecimentos que o
sujeito possuía. O que Habermas aponta é que neste processo de aprendizado
ocorre uma espécie de interação e também de constrangimento em relação ao
mundo objetivo, social e subjetivo. O sujeito age sobre o mundo conforme seu
interesse, procura alcançar seus objetivos e aprende com isso, interage com o
meio. No entanto, o mundo objetivo sua contrapartida impondo sobre o sujeito
a realidade de estruturas existentes, independentes do contexto em particular.
Este constrangimento, no caso das regras morais, acontece nos espaços sociais
de forma que as atitudes egocêntricas precisam adquirir uma perspectiva
ampliada para o posicionamento alheio. Nas palavras de Habermas,
para Piaget, o mundo social desempenha para o desenvolvimento da
consciência moral um papel semelhante ao que desempenha o mundo
objetivo para as operações do pensamento em geral. Na confrontação
prática com seu entorno físico, a criança desenvolve pela abstração
reflexionante as categorias e operações apropriadas à apreensão do
mundo objetivo. Do mesmo modo, ela adquire no trato com seu entorno
social as categorias e perspectivas necessárias para uma apreciação
moral adequada de conflitos relativos à ação (Id. Ibid., p. 276).
O desequilíbrio provocado a cada nova situação problemática exige que
o indivíduo saia de sua situação atual, reconhecendo sua limitação e
necessitando, assim, abrir-se para outros horizontes. Esse processo torna-se
necessário para que ocorra o que Piaget denominou de “redução gradual do
89
egocentrismo
35
(1983, X, introdução) como exigência para a construção do
mundo objetivo, considerando outros pontos de vista a partir do raciocínio lógico. A
superação da fase egocêntrica projeta o limiar de uma relação intersubjetiva,
socializada. No aspecto do juízo moral, o constrangimento do egocentrismo toma
posição na construção da autonomia à medida que passa a ser compreendida
como “a necessidade da justiça equânime e da responsabilidade individual e
coletiva, independentes da autoridade ou da sanção imposta” (Ibid., XI,
introdução).
A autonomia citada por Piaget identifica-se, de certa forma, com a
proposta kantiana ao colocá-la enquanto condição para a compreensão mais
ampliada dos julgamentos morais. Ou seja, a necessidade de sair de um ponto de
vista apenas subjetivo, reconhecendo o olhar do outro e as limitações do mundo
objetivo. Piaget (1983) traz a noção de estágio
36
pelo qual a atividade mental se
organiza no processo de estruturação da inteligência. O desenvolvimento de um
estágio para o outro pressupõe um crescimento qualitativo que tem sua
culminância no estágio das operações formais. Este se diferencia pela capacidade
de inclusão e de reversibilidade do pensamento, ou seja, consegue fazer a
operação de análise e síntese, através de abstrações refletidas que são o
resultado de uma abstração reflexionante. Esse processo de aprendizagem eleva
a capacidade de compreensão de mundo para um nível superior. Piaget (1995)
denomina de abstração reflexionante a contínua operação de coordenação das
ações a níveis complexos, envolvendo processos de diferenciação e
generalização, ampliando o conhecimento do sujeito e sua capacidade de
conceituação.
35
O egocentrismo seria a manifestação de um pensamento centrado apenas no seu ponto de vista. Segundo
Piaget, o egocentrismo é responsável por um pensamento pré-lógico, fantasioso, que não corresponde à
realidade. Porém, a saída do egocentrismo revela a capacidade de descentração de si próprio que o ser
humano tem.
36
Piaget(1983) organiza os estágios em faixas etárias.Conforme o autor, estes estágios podem diferenciarem-
se neste aspecto, mas ocorrem numa seqüência comum a todos. Os estágios de Piaget são: estágio sensório-
motor (do nascimento até dois anos); o segundo estágio subdivide-se em pré-operatório (dos dois aos sete
anos) e operatório concreto (dos sete aos onze anos); e o estágio das operações formais (por volta dos onze,
doze anos e segue para a adolescência). Neste estágio, ocorre o pensamento lógico e implicam o grupo de
operações INRC – inversa; negativa; recíproca; e contrária.
90
Para Habermas (1989), esse processo de compreensão descentrada de
mundo, ao qual se refere Piaget, assemelha-se à reflexão transcendental
necessária para a validação e justificação das proposições, não restritas apenas
ao contexto local e particular, numa perspectiva de universalidade. O processo de
compreensão descentrada diz respeito à diferenciação entre o mundo da vida e o
mundo. Para Habermas, essa diferenciação repete-se em cada processo de
comunicação conscientemente efetuado pelo sujeito capaz de agir e de falar. O
mundo da vida representa a estabilidade adquirida nas estruturas da
personalidade e nas tradições dos laços sociais que os participantes da
comunicação mantêm as suas costas. Ao deparar-se com um mundo desprendido
de seus laços familiares e sociais (numa relação eu-tu), os sujeitos precisam
assumir a perspectiva de uma terceira pessoa, desvinculada do contexto ordinário.
As pretensões levantadas numa ação comunicativa referem-se, assim, a estas
três perspectivas: ao mundo objetivo a pretensão de verdade; ao mundo social a
pretensão da correção normativa; e ao mundo subjetivo a pretensão de
sinceridade.
Este processo envolve um outro nível de entendimento baseado em
razões convincentes. No momento em que fatos relevantes do mundo são
problematizados, o acordo buscado requer um posicionamento formal diante do
mundo, ou seja, que transcenda o cotidiano. É um entendimento racional
empreendido de forma reflexiva. A competência comunicativa inerente ao sujeito
ganha uma outra dimensão ao ser confrontada com o mundo objetivo. De um agir
comunicativo auto-evidente não problematizado, os envolvidos passam “para uma
práxis argumentativa em que eles desejam se convencer mutuamente, mas
também aprender uns dos outros” (HABERMAS, 2004a, p. 92).
É um saber sobre o mundo, ampliado a partir das relações existentes nas
estruturas do mundo da vida. A pluralidade de concepções existentes exige cada
vez mais esta capacidade de descentração da imagem de mundo. Neste sentido,
a tradição cultural também é convocada a adotar uma relação reflexiva consigo
mesma, de modo que seja permitida uma revisão crítica de seus enunciados na
91
possibilidade de optar-se por interpretações alternativas. Esta atitude reflexiva é
inerente à capacidade de aprendizagem do ser humano na sua interação com o
mundo. Nas palavras de Habermas (p. 93)
os resultados de processos de aprendizado, que sempre começam num
horizonte particular de significação, podem modificar os limites do
mundo lingüisticamente aberto quando o saber sobre o mundo não é
possibilitado pelos saber lingüístico, mas ganha em relação a este uma
força de revisão. Esta se explica pelo processamento discursivo de
experiências referentes à ação, as quais temos, de um lado, no trato
pragmático com um mundo objetivo suposto como idêntico e
independente e, de outro, no trato interativo com membros de um mundo
social suposto como comum (grifos do autor).
Assim como nas questões pragmáticas que exigem a solução de
problemas objetivos, da mesma forma o reconhecimento de normas morais requer
o uso reflexivo do saber lingüístico como caminho para a revisão de expectativas
normativas inseridas num mundo objetivo. O entrelaçamento do mundo objetivo,
social e subjetivo sugere um movimento contínuo entre os estágios de
desenvolvimento das estruturas mentais definidos por Piaget. Parte-se de um
pensamento egocêntrico (agir estratégico), mas que já de antemão está
influenciado pela esfera sócio-cultural mais próxima. O contexto social estabelece
regras e convenções que são compensados na busca por um entendimento mútuo
no uso da competência comunicativa (agir comunicativo do mundo da vida).
No entanto, redirecionando para a esfera da moral, o pensamento e a
ação ampliam sua capacidade de aprender e interagir lançando mão de uma
compreensão descentrada desse vínculo próximo para avaliar e justificar,
discursivamente, normas que possam ser aceitas universalmente em um mundo
objetivo. Neste sentido, Habermas aponta para o princípio “U” da Ética do
Discurso como sendo de caráter deontológico fundamentado na validade de
suas normas de caráter cognitivista as pretensões de validade são baseadas
92
em razões de caráter formalista restringe os contextos particulares a partir de
uma regra de argumentação que leva em conta apenas as questões normativas
aceitas por todos. E, finalmente, considera sua ética de caráter universalista, pois,
avalia as pretensões de validade e sua aceitabilidade baseado na racionalidade
comum a todos e não de uma determinada cultura. O processo de aprender que
envolve a práxis argumentativa do discurso abre horizontes para refletir sobre a
importância dos espaços educativos na sociedade.
4.2. Educação e a Ética do Discurso: a práxis da argumentação na
ressignificação da prática pedagógica
A instituição educacional hodierna é uma expressão do pensamento
moderno. Ou seja, racionalizada na sua forma administrativa, com suas normas
técnico-instrumentais, voltada ao conhecimento científico e inserida dentro de um
mercado de trabalho. Sua meta principal é a pessoa do aluno, a formação do ser
humano pertencente a esse mesmo mundo objetivo. Comoexposto no segundo
capítulo (2.1), o processo de racionalização do mundo gerou a cisão nas formas
tradicionais de vida. A especialização dos campos do conhecimento, cada um com
sua lógica interna, provocou uma fragmentação nas esferas culturais de valor
ciência e técnica, arte e literatura, direito e moral que são os componentes da
cultura. O mundo da vida, no qual os componentes cognitivo-instrumentais, os
componentes estético-expressivos e os componentes morais-práticos se
encontram organizados e estabilizados, encontram problemas de mediação com o
mundo racionalizado do sistema. Este processo de racionalização gera os
conceitos formais do mundo: o mundo objetivo; o mundo social; e o mundo
subjetivo.
A educação não foge ao padrão de uma racionalização do mundo. Seu
projeto político pedagógico, em um sentido amplo, expressa as marcas do sistema
econômico voltado para a eficiência e para o cálculo estratégico. Assim, o
93
desencantamento do mundo estende-se para os âmbitos sociais, públicos e
também privados, influenciando diretamente no modo de vida do sujeito moderno.
A ênfase em uma formação de base científica que correspondesse a essa nova
concepção de homem e mundo voltada ao progresso, gerou a unilateralização do
conhecimento. O encolhimento do espaço reservado às decisões que
contemplassem uma racionalidade comunicativa voltada ao entendimento fez
surgir casos extremos de individualismo, de desrespeito ao outro, ao bem público
e de exploração incontrolável da natureza em nome do progresso econômico e
tecnológico. “Neste universo, a tecnologia proporciona igualmente a grande
racionalização da falta de liberdade do homem e demonstra a impossibilidade
‘técnica’ de ser autônomo, de determinar pessoalmente sua vida” (HABERMAS,
1987a, p. 49).
Para Habermas, em nome do conforto proporcionado pelo avanço
tecnológico e das vantagens proporcionadas ao mercado capitalista pelo
conhecimento científico cada vez mais avançado, o sujeito moderno afasta-se da
figura de autolegislador da sua vontade teorizado por Kant. Assim, o conhecimento
científico-tecnológico acaba legitimando a dominação da racionalização
instrumental e que provocou, em grande parte, os problemas sociais e culturais
que hoje afetam o mundo globalizado.
Porém, é também Habermas que assinala o progresso científico enquanto
prova irrefutável do homem construir conhecimentos. A própria idéia de progresso
está assentada na capacidade do ser humano em revisar seus erros, reinterpretar
suas bases teóricas e buscar alternativas. A problemática situada na razão
reduzida a racionalidade teleológica necessita de revisão crítica. Se a
racionalidade tem mais a ver com a forma como empregamos nosso
conhecimento do que como o adquirimos, então, sua aplicação necessita do
complemento da racionalidade comunicativa que possa conduzir o pensar, o agir e
a fala a uma racionalidade discursiva no uso reflexivo da razão.
94
Situando, novamente, a educação a partir destas considerações, pode-se
afirmar que a ela é um espaço de transmissão do legado cultural, de repasse de
informações, mas também, de construção de novos conhecimentos. Os
conhecimentos adquiridos não se restringem a um mundo objetivo, apenas, mas
envolvem-se dialeticamente com o mundo social e subjetivo. Habermas refere-se
ao processo de construção de conhecimento como algo que acontece provocado
por desafios e problemas que requerem uma revisão reflexivo-crítica sobre nosso
pensamento.
As certezas abaladas, problematizadas só acontecem na dimensão da
competência comunicativa que se torna reflexiva e questiona as verdades
estabelecidas. O uso reduzido de uma racionalidade instrumental reprime o
espaço da revisão crítica acerca da validade e da justificativa das proposições que
se encontram problematizadas. Para Habermas (1991, p. 73) “a perspectiva
egocêntrica do indivíduo não é inata, mas sim socialmente produzida”. O que
permite pressupor uma idéia complementar, de que a formação discursiva da
vontade capaz de gerar consensos também é um processo a ser adquirido
socialmente o que remete ao campo educacional.
As concepções pedagógicas encontradas com freqüência no ambiente
educativo demonstram uma preocupação excessiva com o conteúdo instrumental.
Porém, os sujeitos inseridos nesse espaço são oriundos de um mundo vivido
prévio, no qual as práticas comunicativas estabelecem um pano de fundo para a
interpretação dos problemas. A negligência das estruturas simbólicas do mundo da
vida pode representar uma forma de dominação e controle através da legitimação
de uma linguagem puramente técnico-científica, que abstrai de seu discurso as
múltiplas formas de vida para impor uma concepção unilateralizada de mundo.
Focalizando a educação sob o paradigma da linguagem vislumbra-se a
possibilidade de diversos conteúdos enquanto tema de debate e sinalizam para o
potencial formativo do pensar e do agir humano a partir destes momentos de
pontos de vista compartilhados. São discussões motivadas pelos mais diversos
95
assuntos observados e vivenciados em ambientes fora da instituição,
principalmente, os difundidos pelos meios de comunicação com abrangência tanto
local quanto mundial. A crescente autonomia dada à educação no planejamento
de sua estrutura pedagógica
37
permite inferir a possibilidade de que os diversos
temas que permeiam o espaço social e que envolvem os sujeitos em sua
totalidade, no sentido afetivo, cognitivo, social, moral, econômico, etc, possam
servir de médium para ampliar a competência comunicativa e argumentativa entre
os sujeitos envolvidos. Lançar mão de outras narrativas, que revisem o discurso
evidenciado da modernidade sobre um passado definitivo e um futuro predizível
pelo conhecimento científico, como ressalta Giddens (1991), traz possibilidades de
que o sujeito da aprendizagem não seja apenas considerado como um ser
epistêmico, mas um ser inserido em um contexto sócio-histórico-cultural.
O indivíduo é constituído pelas suas vivências sociais mediadas pelo uso
da linguagem. Em outras palavras, podemos identificar problemas e interesses,
situar diferenças e estabelecer consensos pelo uso de uma linguagem que nos é
comum. Reafirmando as palavras de Gadamer (2002, p.p. 173-174):
É somente pela capacidade de se comunicar que unicamente os homens
podem pensar o comum, isto é, conceitos comuns e sobretudo aquele
conceitos comuns, pelos quais se torna possível a convivência humana
sem homicídios, na forma de uma vida social, de uma constituição
37
A descentralização na resolução de formas de desenvolvimento do currículo nas escolas estava firmada
na lei de Diretrizes e Bases (LDB) para a Educação Nacional de nº. 5.692/1971. Embora houvesse uma
orientação para que certos conteúdos universais estivessem contemplados nas propostas pedagógicas, a LDB
5.692/71 instituía a liberdade para as instituições em atender às necessidades e possibilidades concretas locais.
Embora, neste contexto, isto foi interpretado como preparação da mão de obra necessária para determinado
local, o que se procura destacar é a possibilidade de se construir um projeto pedagógico próprio mesmo em
meio a uma ditadura política, como no caso da LDB 5.692/71. Na LDB nº. 9.394/1996, capítulo II, seção I
das Disposições Gerais, a autonomia dispensada aos estabelecimentos de ensino da Educação Básica quanto à
estruturação de sua proposta político-pedagógica e do seu regimento normativo é novamente confirmada,
desde que respeitado algumas disposições que regem o sistema educacional enquanto tal. Esta autonomia vai
desde à estruturação do calendário escolar, níveis de escolaridade, quanto à avaliação e classificação dos
alunos no estabelecimento de ensino. No capítulo IV, fazendo referência à Educação Superior, a lei expressa a
importância tanto da divulgação e transmissão dos conhecimentos culturais, científicos e técnicos, quanto de
seu aperfeiçoamento e atualização a cada geração que precede.
96
política, de uma convivência articulada na divisão do trabalho. Isto tudo
está contido no simples enunciado: o homem é um ser vivo dotado de
linguagem.
A dimensão crítica da linguagem através de uma razão situada, questiona
sobre as verdades inseridas em um contexto enquanto resultado da construção
histórica e, portanto, permeada de tensões e interesses de grupos sociais ali
implicados. Ao levantar pretensões de validade para os proferimentos que se
apresentam, questiona-se sobre a realidade no comprometimento com a crítica
levantada. Para isso, argumenta-se com razões que desejam ser aceitas. O
comportamento ou atitude crítica (NOBRE, 2004) visa opor-se a uma visão
objetivista da sociedade estabelecida pelo sistema tecno-burocrático. Nesta
concepção uma tendência em explicar os fenômenos sociais como forma de
adaptação a uma estrutura natural de causa e efeito, legitimada pela pretensa
neutralidade científica acerca do conhecimento sobre o mundo. Dessa forma, a
sociedade enquanto produto da ação humana não é questionada. A atitude crítica
visa interrogar a organização social num determinado contexto, enquanto
resultado da ação humana e seus condicionantes históricos. Ou seja, num
primeiro momento trata de se mostrar “como as coisas são”.
Um segundo momento, a partir da reflexão crítica sobre a realidade,
apresenta o comportamento crítico que pretende mostrar as lacunas de um teoria
a - histórica, mascarando as relações entre conhecimento e sua relação com a
organização da sociedade, como no caso do mundo Ocidental, a estrutura da
sociedade capitalista dividida em classes. “Sendo o capitalismo uma forma social
histórica que tem como centro organizador o mercado, trata-se, antes de mais
nada, de reconhecer que a produção de mercadorias é o foco a partir do qual se
estrutura a sociedade. Desse modo, qualquer concepção de ciência que não tenha
como pressuposto a divisão da sociedade em classes e que não seja capaz de
reconhecer o exercício da ciência com um dos momentos dessa sociedade
produtora de mercadorias está sendo, como concepção de ciência, parcial” (p.39).
97
Assim, o comportamento crítico busca investigar as condições necessárias para
orientar a ação a partir do diagnóstico desta realidade, o de pensar em “como as
coisas deveriam ser”, considerando suas potencialidades, porém sem descuidar
das tensões e obstáculos que possam estar presentes.
Como assinalado por Horkeimer, trata-se de considerar o conhecer e o
agir conjuntamente. Neste sentido é que Habermas não nega a importância da
racionalidade instrumental no mundo capitalista, mas defende que, pela via ação
comunicativa, possa ser posto em discussão as contradições do próprio discurso
da teoria do capital: a de liberdade e igualdade, que ao mesmo tempo possibilita e
bloqueia. A emancipação é entendida, nesta concepção, como a efetiva
participação dos sujeitos, livre de mecanismos de dominação e coerção, na
organização da sociedade. No discurso, as verdades podem ser questionadas a
partir de sua validade, o que implica em uma auto-reflexão crítica para
fundamentar os motivos e reconstruir a partir de novos argumentos. Esse
processo exige a responsabilidade crítica sobre o que aceitamos como verdade e
sua implicação na esfera pública do discurso.
4.3. “A corrente do bem”
O filme “A corrente do bem” traz possibilidades de uma leitura
interpretativa sob vários ângulos, desde o ponto de vista da atitude pedagógica em
sala de aula, quanto ao envolvimento ético dos sujeitos com o mundo da vida. O
filme sob o título original Pay it Forward foi lançado nos Estados Unidos da
América pela Warner Bros / Bel Air Entertainment, no ano de 2000. No elenco
principal, estão Haley Joel Osment (Trevor McKinney), Kevin Spacey (Eugene
Simonet), Helen Hunt (Arlene MacKinney), James Caviezel (Jerry), Shaw Pyfrom
(Sean) e Jon Bon Jovi (Ricky).
98
Sob o ponto de vista da ética, a narrativa compreende a idéia da
solidariedade enquanto complemento para que a justiça seja feita. Ao lançar o
desafio à turma - criar algo que possa mudar o mundo e colocá-lo em prática - a
atitude de observador com que o professor Eugene Simonet se coloca
inicialmente, frente à proposta, é questionada pelo aluno Trevor MacKinney ao lhe
perguntar sobre seu envolvimento concreto na busca de um mundo melhor.
Apesar de perceber-se que o professor, em sua prática pedagógica, toma posição
por uma prática dialógica, questionando os alunos sobre o mundo que os envolve
e motivando-os a participar do debate, mantém-se numa atitude de expectador
frente às questões. Ao desejar desenvolver a competência comunicativa, a
argumentação crítica e a criatividade na busca por idéias autênticas, o professor
vê-se forçado a assumir uma posição de participante, enquanto sujeito envolvido
em um mesmo mundo objetivo tematizado, tendo as suas costas as estruturas
simbólicas de um mundo da vida tal qual o de seus alunos.
A partir da idéia de seu aluno Trevor, não é mais possível manter-se de
fora dos problemas e temas abordados. O processo de aprendizagem no espaço
99
educacional é antecipado em um espaço socializado no mundo da vida, repleto
de significações, e que não se separa de seus sujeitos ao ingressar em uma
instituição. A metáfora da corrente do bem sinaliza o envolvimento de uns com os
outros na estrutura do mundo. Estamos conectados de uma forma ou outra via
socialização. Só nos reconhecemos enquanto indivíduos dessa forma.
Ao propor a tarefa-desafio para seus alunos, o professor Simonet utilizou
o acréscimo de pontos na avaliação final como motivo para sua realização. Porém,
no caso de Trevor, sua motivação estava muito além de atingir esse fim
estratégico. Sua preocupação estava em envolver-se com algo que fosse além de
seu próprio interesse pessoal. Isto levou o professor a compreender que quando
as interações são mediadas por uma linguagem visando o entendimento de um
com o outro (Alter), a coordenação das ações têm outra dimensão do que aquela
visando apenas a transmissão de informações ou a execução de um plano
específico do ponto de vista de seu ator (Ego).
Conforme Habermas, para que os planos de ação de Alter (o outro)
possam ser vinculados nas ações de Ego (o eu), em um espaço social e em um
tempo histórico, o caminho a ser abordado é via processo de entendimento. Os
envolvidos assumem um papel cooperativo levando em conta uns aos outros,
tendo como pano de fundo o mundo da vida compartilhado. Para o autor, uma
atitude cooperativa exige do participante uma saída de seu egocentrismo, pois é
desafiado a defender seus argumentos publicamente na busca pelo entendimento,
o que só pode acontecer via agir comunicativo.
O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os
participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas
ações de fala ou tomam em consideração os dissensos constatados.
Através das ações da fala são levantadas pretensões de validade
criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo. A
oferta contida num ato de fala adquire força obrigatória quando o falante
garante, através de sua pretensão de validez, que está em condições de
100
resgatar essa pretensão, caso seja exigido, o tipo correto de argumento
(HABERMAS,1990, p. 72).
Porém, Habermas chama a atenção para o seguinte fato: para que o
processo comunicativo voltado ao entendimento aconteça é preciso haver a
aceitação do outro (o destinatário) das razões levantas pelo falante. Esta opção
entre o sim/não do ouvinte não pode ser provocada casualmente. A liberdade de
opção pode ser motivada via razões argumentativas que o falante ergue na
busca de um acordo consensual. Ao colocar em prática sua idéia, Trevor
desconsiderou, inicialmente, esta condição para o processo de entendimento, o
que provocou as primeiras tentativas frustradas de suas ações solidárias.
Obstinado em realizar sua tarefa, desconsiderou pontos importantes tais
como as reais condições de possibilidade de, em ambientes sociais perturbados,
obter a anuência dos sujeitos envolvidos no desenvolvimento de sua proposta. A
diferença aconteceu quando da mudança de perspectiva de seus participantes, os
quais abandonaram sua posição estratégica para “entender-se com uma segunda
pessoa sobre algo no mundo”(Id. Ibid, p. 74). Essa mudança de perspectiva é
possível se rioéð
Assim, o enfoque dado inicialmente ao trabalho ganha importância, pois
ultrapassa o interesse individual, infiltrando-se em questões de cunho moral, ou
seja, envolvendo-se com uma comunidade e ampliando-se para um grande
número de pessoas que transcendem o tempo e o espaço específico. Sob esta
lógica, afirma-se o significado da figura metafórica “corrente do bem”, pois,
embora o desfecho da narrativa apresente um final trágico, a idéia de Trevor
permaneceu viva e ampliou-se para outras esferas, ascendendo a um contexto
particular em direção ao universal.
A exposição e análise do filme ocorreram neste trabalho no sentido de
afirmar a possibilidade de abordagem das diferentes racionalidades presentes na
constituição do sujeito na ação pedagógica. A identificação com personagens e
situações vividas no filme, e a possibilidade de um caminho interpretativo a partir
da sua problematização, sugere a perspectiva daquilo que Habermas assinalou
como a saída do egocentrismo rumo a uma visão descentrada. Essa implica na
capacidade de cada indivíduo, partindo de suas próprias vivências, compreender e
considerar os problemas e as necessidades alheias, numa atitude de
solidariedade. As diversas situações de aprendizagem possíveis através de uma
narrativa, tal como a do filme, abrem horizontes para uma formação que possa
envolver outras dimensões manifestas no discurso.
É pertinente observar que Habermas considera imprescindível que as
condições necessárias para a práxis argumentativa compreendam um nível ideal
de fala. No entanto, posiciona este ideal enquanto condição de possibilidade do
discurso. É uma idéia regulativa que motiva racionalmente a busca desse ideal e
não uma condição absoluta. Habermas está ciente das limitações objetivas,
sociais e subjetivas encontradas a todo o momento.
Muitas vezes faltam as instituições que poderiam proporcionar, a nível
social, a formação discursiva da vontade em relação a determinados
temas e em determinados lugares; muitas vezes faltam os processos de
102
socialização que permitam a aquisição de disposições e capacidades
necessárias a uma participação em argumentos morais (1991, p.p. 28-29).
No entanto, segue a essas condições problemáticas a denúncia cada vez
mais freqüente de injustiças por parte da sociedade que merece o respaldo no
reconhecimento de que normas morais devem ser avaliadas e justificadas,
requerendo para si sua correção normativa sempre que suas razões forem
invalidadas sob uma revisão crítica. A comunidade ideal de fala é, assim, um ponto
de referência nos problemas que exigem a busca de um entendimento
racionalmente motivado. As limitações do tempo e do espaço devem ser
entendidas como pertencente ao processo do qual se pode fazer a tentativa de
aproximação do ideal.
Assim, uma razão comunicativa utiliza-se da linguagem como meio para o
entendimento e exige, por um lado, a validez das proposições e normas que
transcendem o espaço e o tempo. Por outro lado, “a pretensão é levantada
sempre aqui e agora, em determinados contextos, sendo aceita ou rejeitada, e de
sua aceitação ou rejeição resultam conseqüências fáticas para a ação”
(HABERMAS,1990, p. 176). Na pluralidade de um contexto pressupõem-se os
mais variados pontos de vista. A saída do egocentrismo, nas questões prático-
morais, exige uma compreensão descentrada de mundo, mas que é possível
se ampliamos nosso ponto de vista ético para um ponto de vista moral.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa teve a intenção de buscar recursos teóricos nas obras de
Habermas para uma compreensão mais ampliada e crítica a respeito de questões
que permeiam a sociedade hodierna e sua elaboração pela educação. O interesse
em problematizar as questões ético-morais, na sua relação com o processo
educacional, presentifica-se na idéia de que a racionalização do mundo moderno
acabou provocando um esvaziamento dos referenciais formativos orientados na
perspectiva emancipatória. A racionalidade técnico-instrumental restringiu a
educação a uma preparação para o mundo do trabalho. Assim, o progresso da
humanidade, símbolo da modernidade, resumiu-se a um crescente aumento na
atuação da esfera político-econômica.
Esta realidade objetiva globalizou-se, originando um mundo automatizado
regido por normas burocráticas, provocando uma série de problemas sociais, uma
vez que se desligou dos seus contextos de aplicação ao não considerar outras
possibilidades existentes nas complexas formas de vida social. As instituições
educacionais encontram-se inseridas neste mundo utilitário e, por conta disso,
poder-se-iam levantar muitos questionamentos acerca do papel da educação num
mundo globalmente estruturado. Uma das questões pertinentes ao debate crítico
no campo pedagógico pode ser expressa do seguinte modo: a instituição
educacional utiliza seu espaço de convivência com um público diversificado, em
pleno processo de aprendizagem, para desenvolver uma racionalidade reflexiva
diante dos fatos que acontecem no mundo e afligem a todos de maneira cada vez
mais direta? As discussões que podem provocar outras abordagens, e que
permitem envolver o mundo social e subjetivo de seus sujeitos, poderiam ser de
grande contribuição na complementação da formação de conteúdos efetivos. No
entanto, infelizmente os saberes aprendidos no espaço pedagógico acabam sendo
resumidamente trabalhados como repasse de informações.
O caminho da práxis argumentativa, proposto por Habermas, exige um
complexo envolvimento das estruturas cognitivas e contribui para uma
compreensão mais expandida de mundo. Este processo de aprendizagem, que
requer a formação de uma vontade discursiva, apresenta possibilidades de
contribuir favoravelmente para os aspectos voltados tanto para o campo
profissional quanto para as relações intersubjetivas no mundo social e ainda para
a construção da personalidade dos sujeitos envolvidos.
Em um ambiente no qual as relações interpessoais orientam-se por um
agir comunicativo, voltado ao entendimento recíproco, pressupõe-se que não
possa haver a supremacia de uma narrativa apenas, mas de uma diversidade de
temas e problemas que passam a fazer parte de outros discursos. Nesse novo
cenário público, não cabe mais o controle e o autoritarismo de um saber superior.
Na perspectiva justa e solidária, de uma modernidade que precisa se desfazer das
certezas e verdades absolutas, um alto grau de tolerância à diversidade e ao
erro, que passam a ser vistos como constituintes dos processos de aprendizagem
e não como categorias desviantes. Neste sentido, considerando que a instituição
educacional é um sistema pertencente a uma organização objetiva do mundo, mas
não determinada, todas as questões são passíveis de crítica e reconstrução. Elas
pressupõem, assim, a capacidade de uns se entenderem com os outros, seja em
espaços mais reduzidos de convívio social ou na coletividade de forma mais
ampla, inseridos no mesmo mundo objetivo.
A Ética do Discurso, embora seja uma teoria elaborada levando em conta
a sociedade como um todo, contém aspectos consideráveis para a revisão crítica
da prática pedagógica. A possibilidade de contribuição da racionalidade discursiva
abre horizontes para uma formação que busca superar o egocentrismo de seus
indivíduos, possibilitando outros níveis de entendimento. Pode-se entender tal
105
processo enquanto acréscimo necessário da competência comunicativa inerente
ao ser humano, ou seja, a sua capacidade discursiva voltada para o entendimento
mútuo.
Consoante Habermas, o agir voltado ao consenso fornece subsídios para
os processos de formação da socialização e da individuação, pois ele é obtido
via entendimento lingüístico, não diluindo no momento do acordo as diferentes
perspectivas de seus participantes. Esses processos de formação remetem
diretamente ao trato interativo, que depende do envolvimento de seus sujeitos
num esforço empreendido para a saída de uma visão egocêntrica de mundo. A
práxis argumentativa pode servir de elemento integrador entre os conhecimentos
cognitivo-instrumental, prático-morais e estético-expressivos, contemplando assim
os três componentes presentes nas esferas culturais do saber.
Os princípios “D” e “U” propostos na Ética do Discurso apontam para a
possibilidade de que nas situações de conflito, em que se erguem pretensões de
validade sobre os proferimentos, as alternativas possam ser debatidas por razões
convincentes de forma participativa. O esforço cognitivo empreendido na
abstração reflexionante poderá ser um caminho livre para o exercício da
convivência, a fim de que aspectos como justiça e solidariedade não fiquem
relegados à condição da benevolência fraternal, mas sejam reconhecidos como
parte de uma mesma realidade: o mesmo respeito exigido por mim é estendido ao
reconhecimento do outro em pé de igualdade.
O compromisso assumido no processo de entendimento mútuo sobre os
temas abordados levanta expectativas de uma responsabilidade ética extensiva
aos sujeitos imputáveis. Sob esta ótica, o ambiente pedagógico, ao envolver os
alunos e professores por intermédio da competência comunicativa, abre
horizontes para o uso de uma racionalidade discursiva, capaz de expressar
proferimentos, assumindo uma conduta reflexiva e responsabilizando-se pelo que
pensa, pelo que diz e pelo que faz.
106
Considerar a educação do ser humano e sua relação com o mundo como
resultado de processos de aprendizagem equivale a perceber que o sujeito é um
ser em formação e não um indivíduo dado. A aprendizagem ocorre no longo
processo de vida do sujeito e envolve outros espaços de formação fora do meio
acadêmico. Porém, a instituição educacional tem o potencial de abordar
criticamente os diversos temas que permeiam os mundos objetivo, social e
subjetivo, comprometendo-se com uma formação apta a colaborar na criação de
um cidadão emancipado e responsável. Precisamente tal formação não se via
unilateralização do conhecimento instrumental, mas na complementação nivelada
de uma racionalidade discursiva e ética. Conforme a teoria habermasiana, o
racional refere-se à capacidade de aprender, de propor alternativas e soluções
para os problemas e dar razões e justificativas de suas atitudes e pensamentos
perante os outros. Assim, a racionalidade voltada para fins objetivos também está
vinculada à capacidade de cada um responder por seus atos perante uma
comunidade, o que pode acontecer na forma compartilhada da competência
comunicativa.
racionalidade comunicativa é apresentada com o intuito de equilibrar o uso do
saber instrumental, servindo-lhe de alicerce e complemento na constituição da
sociedade. No mundo objetivo, a capacidade operativa do âmbito cognitivo-
instrumental deveria vir acompanhada, portanto, das responsabilidades ético-
morais com os conhecimentos utilizados no mundo comum a todos. Esse
ambiente comum, sob o olhar crítico-discursivo, oferece as condições e
possibilidades de que as situações problematizadas possam entrar no debate,
levantando pretensões de validez sobre as verdades dos fatos, as normas
pertencentes ao contexto e à sinceridade das expressões emitidas pelos
participantes.
Essa prática comunicativa permite um processo de entendimento baseado
em argumentos consistentes, embora sempre suscetíveis de crítica, no qual temas
importantes, envolvendo os mundos objetivo, social e subjetivo, possam ser
debatidos livres de coerção e com a participação em igual medida de todos.
Levantar boas razões, ou seja, agir racionalmente, diz respeito tanto a situações
que exigem uma resolução técnica, quanto a situações nas quais normas e
valores encontram-se problematizados e desejam ser solucionados
consensualmente. Na educação, esse procedimento diante dos problemas
colabora para fertilizar o desenvolvimento das raízes da racionalidade de forma
mais dilatada possível. E isso permite maior autonomia aos sujeitos, não apenas
no campo cognitivo-instrumental, mas também nas responsabilidades ético-morais
diante das causas globais que afetam de forma assustadora o convívio
intramundano.
108
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