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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
“FAZENDO DO LIMÃO UMA LIMONADA”:
MORALIDADES, ESTRATÉGIAS E EMOÇÕES
ENTRE VENDEDORES AMBULANTES
NOS ÔNIBUS DO RIO DE JANEIRO.
Isabel Milanez Ostrower
Rio de Janeiro
Fevereiro 2007
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“Fazendo do limão uma limonada”:
moralidades, estratégias e emoções
entre vendedores ambulantes
nos ônibus do Rio de Janeiro.
Isabel Milanez Ostrower
Dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Antropologia
Social
Orientadora: Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna
Rio de Janeiro
Fevereiro 2007
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Ostrower, Isabel Milanez
“Fazendo do limão uma limonada”: moralidades, estratégias e
emoções entre vendedores ambulantes nos ônibus do Rio de Janeiro./
Isabel Milanez Ostrower, 2007.
xii, 109p
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, 2007.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna
1. Vendedor Ambulante, 2. Ônibus, 3. Legalidades, 4. Moralidades,
5. Emoções, 6. Fronteiras – Dissertação.
I. Vianna, Adriana de Resende Barreto (Orient.). II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de
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“Fazendo do limão uma limonada”:
moralidades, estratégias e emoções
entre vendedores ambulantes
nos ônibus do Rio de Janeiro.
Isabel Milanez Ostrower
Banca Examinadora:
___________________________________________________
Profa. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (orient.) (PPGAS/MN/UFRJ)
___________________________________________________
Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg (PPGAS/MN/UFRJ)
___________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello (PPGA/UFF)
Suplentes:
__________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rabossi (PPGAS/MN/UFRJ)
__________________________________________________
Prof. Dr. John Cunha Comerford (CPDA/UFRRJ)
Rio de Janeiro
5
Fevereiro 2007
Aos meus pais
6
RESUMO
A presente dissertação procura analisar as práticas e discursos envolvidos nas
estratégias de atuação dos vendedores ambulantes nos ônibus do Rio de Janeiro,
especificamente nos bairros de Botafogo e Copacabana. A partir de um exercício
etnográfico, busca perceber como estes vendedores recuperam trajetórias e fazem
determinadas escolhas para sobreviver em um universo de fronteiras fluidas, tendo em
vista as condições adversas em que estão inseridos.
Ao circularem por locais públicos e privados, procuram negociar seu espaço
físico e simbólico através de relações estratégicas com motoristas, cobradores, fiscais e
passageiros. Se, em um plano legal, não têm autorização para comercializar seus
produtos, moralmente acionam diferentes recursos visando obter reconhecimento social.
A ambigüidade de sua posição diante das leis e regras, faz-nos questionar como se dá a
construção de si, tendo em vista que estes atores sociais são geralmente confundidos
com “pedintes”, “malandros”, “um-sete-um”, “vagabundos”. Neste contexto, tem
especial relevância a utilização de recursos retóricos e estratégias performáticas que
permitem driblar as regras e reelaborar moralmente outras formas de sociabilidade,
práticas e saberes. Assim, a pesquisa busca identificar as relações com outros agentes,
assim como o contexto local e cultural das situações problemáticas que viabilizam ou
não o trabalho do vendedor ambulante nos espaços da rua. A atuação do vendedor
envolve estratégias econômicas, políticas, simbólicas, enfim, todo um conjunto de
práticas e valores que extrapolam os códigos de socialização institucional e que são o
resultado de relações e dinâmicas negociadas cotidianamente.
Palavras-Chave: Vendedor Ambulante; Ônibus; Legalidades; Moralidades;
Emoções; Fronteiras
7
ABSTRACT
The dissertation herein seeks to analyze the practices and discourses involved in
the actions strategies of street vendors on buses in Rio de Janeiro, specifically, in the
districts of Botafogo and Copacabana. As an ethnographic exercise, it aims to perceive
how these vendors regain their own path and make particular choices to survive in a
world of movable frontiers, in view of the adverse conditions in which they are under.
Whilst circulating among public and private spaces, they attempt to negotiate
their physical and symbolic space through their strategical relationships with drivers,
conductors, inspectors and passengers. If, in the legal sphere, they aren’t authorized to
sell their products, they morally engage different resources in order to obtain social
recognition. The ambiguity of their position before the law and rules makes us question
how one constructs himself, considering that these social actors are commonly taken as
“beggers”, “tricksters”, “con men” and “bums”. In this context, there is special
relevance attached to the utilization of the rhetoric resources and performing strategies
that enable them to evade the rules. Thus, the research seeks to identify the relationship
with other agents, as that make feasible or not the work of street vendors in urban
spaces. The vendor’s actions involve economic, political and symbolic strategies, in
short, a whole group of practices and values that extrapolate the codes of institutional
socialization and which are the result of relations and dynamic daily negotiated.
Key-words: street vendor; bus; legalities; moralities; emotions; frontiers.
8
SUMÁRIO
Agradecimentos ............................................................................................................. x
Introdução .................................................................................................................... 01
Histórico de pesquisa. ............................................................................................ 01
Os contatos. ............................................................................................................ 03
Algumas ressalvas. ................................................................................................. 06
Capítulo I – A cidade e suas fronteiras ...................................................................... 10
1.1 - A cidade como inspiração. ............................................................................ 10
1.2 - O local de trabalho. ....................................................................................... 14
1.3 - O estranhamento. .......................................................................................... 16
1.4 - Economias formal e informal: relativizando as fronteira. ........................ 19
1.5 - As múltiplas possibilidades de ocupação. .................................................... 21
1.6 - A tomada de decisão. ..................................................................................... 27
Capítulo II – Fronteiras: Legalidades e moralidades ............................................... 33
2.1 - Leis e lacunas. ................................................................................................ 33
2.2 - A gramática das moralidades. ...................................................................... 39
2.3 - Construindo a legitimidade. ......................................................................... 42
2.4 - Sentimentos e reconhecimento. .................................................................... 47
2.5 - Fala. ................................................................................................................ 49
2.6 - Performance em dois planos. ........................................................................ 55
2.7 - Interagindo. .................................................................................................... 59
9
Capítulo III – Fronteiras: personagens e projetos ................................................... 63
3.1 - Relação com passageiros. .............................................................................. 63
3.2 - Relação com fiscais. ....................................................................................... 67
3.3 - Relação com os rodoviários. ......................................................................... 70
3.4 - Afirmando-se. ................................................................................................ 76
3.5 - Criando diferenciações. ................................................................................ 81
3.5.1 - Pedintes. ................................................................................................. 81
3.5.2 - Ladrões e malandros. ........................................................................... 84
3.6 - Perspectivas. ................................................................................................... 87
Considerações e possibilidades ................................................................................... 92
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 97
Anexo: Notas sobre os entrevistados ........................................................................ 102
10
AGRADECIMENTOS
Ao longo de minha trajetória acadêmica foram várias as pessoas e instituições
que contribuíram para a realização desta dissertação, algumas de forma mais
contundente, outras de forma mais pontual, mas nem por isso menos significante.
Antes de mais nada, gostaria de agradecer, com especial apreço, minha amiga,
professora e orientadora Adriana Vianna, pela paciência, dedicação, confiança e
incentivo constantes. Suas preciosas aulas, leituras atenciosas, conselhos esclarecedores
e diálogos abertos foram fundamentais para a minha compreensão do saber-fazer
antropológico, alertando para as injustiças sociais e para a importância de nosso papel
enquanto pesquisadores e militantes.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional,
agradeço por ter me proporcionado ambiente profícuo para meus estudos e pesquisas,
através de excelentes aulas, discussões e encontros, fundamentais para a minha
formação. Quanto ao corpo docente, agradeço ao professor Antonio Carlos de Souza
Lima pela clareza e franqueza, que acredito serem indispensáveis para um profissional
competente como é; ao professor Marcio Goldman pelas aulas desconcertantes; à
professora Antonádia Borges pela jovialidade associada a uma agilidade
impressionante; à professora Lygia Sigaud pela rigidez e precisão argumentativa; ao
professor Moacir Palmeira pelo carisma e atenção, ao professor John Comerford, pelas
inspirações e engajamento etnográficos; ao professor Marcos Otávio Bezerra que me
acompanhou desde o início da graduação na Universidade Federal Fluminense. Desta
época, não posso deixar de agradecer à minha primeira orientadora e professora Tânia
Stolze Lima pelos ensinamentos e vigor em sala de aula e nos encontros prazerosos.
Agradeço ainda a todos os funcionários do PPGAS, seja da biblioteca, secretaria ou
refeitório, pela atenção, paciência e presteza com que nos atendem.
Ao professor Federico Neiburg, pelos primeiros passos nas teorias
antropológicas, pelo carinho com que me acolheu numa reunião do NUCEC - Núcleo de
Pesquisas em Cultura e Economia –, pela leitura dedicada de minha monografia, pelo
11
incentivo e recepção em terras argentinas. Compartilho ainda do prazer em estudar as
economias, comércios e trocas afins.
Ao professor Marco Antonio da Silva Mello, apesar de nunca ter assistido a suas
aulas como aluna da UFF, agradeço por ter me aberto as portas quando precisava de
estímulo e idéias. Agradeço ainda por todas as discussões e sugestões, sejam nas
Reuniões Brasileiras de Antropologia, Congressos, encontros do NUFEP – Núcleo
Fluminense de Estudos e Pesquisas da UFF, nas reuniões do LeMetro - Laboratório de
Etnografia Metropolitana do IFCS ou nas praças, ruas, feiras e mercados
metropolitanos.
À CAPES, instituição que concedeu-me bolsa durante todo o período do meu
mestrado, viabilizando dedicação exclusiva aos estudos e pesquisas.
À minha mãe Suzana, pela paciência, ajuda e compreensão e por ser
insubstituível. Ao meu pai Frank pela criatividade, discussões, incentivo e pela arte em
nossas vidas. Às minhas irmãs Alexandra, Tatiana e Maria, importantes em qualquer
espaço ou tempo. Às minhas lindas e preciosas sobrinhas Beatriz e Helena, pelo carinho
e energia inesgotáveis.
Aos queridos amigos que sempre me apóiam: Dina, Maria MacDowell, Rebeca
(e a pequena Clara), Bruno, Pequeno, Pedro Capra, Joana, Mirna, Lídia, Maria Pereira,
Marcos (e a fofa Lis), Ricardo e o nosso José Emiliano, Francine, Juliana, Maíra, Liza,
Luis Felipe, Louise, Henrique, Janaina, Maria Fabiana, Samantha, Alline, Rodolfo,
Rodrigo e vários outros que esbarrei pelas esquinas do mundo. Ao Lênin, Zé Colaço e
Paulo Thiago, pelas inspiração e discussões. À Jéssica, Ana Paula e Laura, pelas
conversas durante nossa ralação. Ao Branno, pelo carinho, gracejos e pelo encontro.
Aos amigos que incorporei da Difusora Gambiarra, valeu pela música, festas e diversão.
A todos os novos amigos que ganhei no Museu Nacional, pelos encontros
descontraídos, churrascos divertidos e nervosismos compartilhados: Letícia, Suiá,
Susana, Cláudia, Fernanda, Liane, Zoy, Julia, Lívia, Marta, Luis Felipe, Helena, Pedro,
Martiniano, Martinho, Deborah, Zé Renato, Guilherme, Virna, Julieta, Ana, Camila,
Rogério, Fernando, Ricardo, Michele e outros que ainda vou conhecer...
Ao meu grande amor Mosca, Junior ou Roberto, pela nossa família, por nossa
casa, trocas, planos, desejos, prazeres. Pelas ausência e presença fundamentais para a
elaboração deste trabalho. Pelos sorrisos, gritos e apoio. Por ter me ensinado muito, e
por ter aprendido também. Pela infinitude de nosso amor tricolor, te amo como nunca
12
fui capaz, você sabe... À nossa querida Manoela, pelo prazer e felicidade que nos
proporciona.
Por fim, não poderia deixar de lembrar os novos amigos que conquistei e tive
oportunidade de conhecer, às vezes de forma breve ou ainda compartilhando do sobe e
desce nos ônibus da cidade. Agradeço muito aos vendedores que tornaram esta
dissertação possível, pela atenção, por ter abusado e tomado seu precioso tempo, reforço
todo o meu sincero respeito pela “batalha” destes trabalhadores.
13
INTRODUÇÃO
Histórico de pesquisa.
Antes de tudo, gostaria de ressaltar como todo meu interesse foi despertado.
Tudo começou em 2002, então aluna de graduação no curso de Ciências Sociais na
Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Nesta época, cursava a disciplina
“Antropologia Urbana”, em que a professora Laura Graziela Gomes sugeriu que
realizássemos um “exercício etnográfico” como forma de nos aproximarmos de algum
fenômeno social. Após uma primeira familiarização com uma bibliografia específica,
optei pelo bloco temático “Cidade, comércio e consumo”, assumindo, desde então, a
postura de que não enfocaria o aspecto econômico como o exclusivo ou o mais
fundamental na minha proposta de trabalho, mas, com base nas leituras e discussões em
sala de aula, aceitaria a perspectiva de Max Weber (1976) de que a cidade não se
distingue por uma dinâmica econômica, mas também por outras dimensões, como
política, cultural e simbólica.
A partir de então, resolvi estudar os vendedores ambulantes nos ônibus da cidade
do Rio de Janeiro. Fora todo o deslumbramento e romantismo peculiares a uma
pesquisadora iniciante, procurava identificar os desafios desses trabalhadores, a relação
com os outros agentes, suas táticas retóricas e performáticas de “convencimento” do
futuro comprador e os múltiplos jogos contextuais e relacionais de avaliação e
possibilidades de interação com a idéia de ser (ou estar) camelô. Muito influenciada por
outras leituras e discussões marxistas, estava ansiosa por encontrar uma classe
trabalhadora e suas formas de resistência e conflito com o meio urbano e outros fatores
de repressão. Aos poucos fui me desprendendo de algumas pré-noções e mergulhando
num universo riquíssimo, curioso e desafiador.
Este “mergulho” compreendeu fases distintas, mas nem por isso contraditórias.
A entrada em campo e a identificação com algumas marcas (ou clichês) metodológicas
pertencem a ordens diferentes de preocupações e não se apresentam aqui de forma
14
linear, mas estão justapostas e em constante diálogo na construção de minhas perguntas,
interesses e enfoques.
Mais do que “revelar” as “resistências” de uma classe ou sua condição
“marginalizada” em relações de trabalho antagônicas, minha preocupação inicial era
obter contato com estes vendedores. Aos poucos, fui aprendendo a me situar em campo
e a interagir, no intuito de construir uma relação de troca e cumplicidade, em que eu só
seria aceita (ou tolerada) se justificasse minha presença, se estabelecesse uma relação de
confiança e sensibilidade. No entanto, isto não significava abdicar das técnicas de
trabalho, nem do rigor teórico e metodológico.
Desta forma, tive que desafiar a cidade, investigar o comportamento no meio
urbano, “treinar a observação participante”, estranhar o familiar, apreender o
“anthropological blues”, enfim, enfrentar todos os “ritos de passagem”, para me
apropriar do ofício do antropólogo, sem afastar as marcas pessoais (e por que não dizer
os afetos) tão necessárias num trabalho etnográfico.
Estava posta a dificuldade em estabelecer o que é importante ou não para o
trabalho etnográfico, pois, como Foote White alerta, nós não temos nenhuma base para
determinar o que é importante a não ser as nossas próprias e preconceituosas noções.
Por isso, fui para a rua, pois só a entrada em campo poderia facilitar a construção de um
problema sociológico.
Gostaria ainda de ressaltar alguns momentos em minha trajetória acadêmica que
foram fundamentais para meu enriquecimento e aprofundamento intelectual e para a
produção desta dissertação. Nestas ocasiões, pude dialogar com outros pesquisadores,
discutindo sobre questões de urbanidade, formas de espacialização das trocas
econômicas, conflitos, negociações, legalidades e moralidades
1
.
Nesta dissertação, a partir das relações que construí, procuro perceber como os
vendedores circulam pelos ônibus, como se relacionam com passageiros e motoristas,
como entendem a cidade e por ela são entendidos. Isto implica, portanto, em perceber a
cidade não só por suas esferas geográficas, mas pelos fluxos sociais e morais que
transpassam limites, promovendo reconfigurações no universo urbano.
1
Quanto a estas experiências, destaco minha participação e apresentação de trabalho nos seguintes
eventos: XXIV Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Olinda, Pernambuco; Primeiro
Congresso Latino Americano de Antropologia, realizado em Rosário, Argentina; Colóquio Internacional
“Comércio, Cultura e Políticas Públicas em tempos de Globalização”, realizado na UFRJ, Rio de Janeiro
e 25ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Goiânia, Goiás.
15
Os contatos.
Em fevereiro de 2003, realizei uma primeira tentativa de entrada em campo e
reconhecimento dos atores sociais. Nesta época, ainda como estudante de graduação,
tive muita facilidade de acesso aos ônibus, além de ter sido muito bem recebida pelos
vendedores que mostraram poucas reservas em conversar comigo. Realizei sete
entrevistas, sendo uma com uma cobradora: Sandra, Alex, Patrícia, Marcos, Ricardo,
Rogério e Antônio
2
.
Em janeiro e fevereiro de 2004 voltei a campo para acumular e organizar algum
material para a produção de minha monografia
3
de final do curso de Ciências Sociais da
UFF, sob orientação da professora Tânia Stolze Lima. Desta vez entrevistei sete
pessoas, dentre elas um ex-vendedor de bala nos ônibus: Emerson, Sérgio, Tiago,
Bernardo, Wagner, Rafael e Solange.
Em julho, agosto e setembro de 2006, retornei às ruas, desta vez para
sistematizar meu trabalho de campo para a realização desta dissertação. Minha intenção,
a princípio, era tentar reencontrar as pessoas que havia conhecido, saber em que
situação elas estavam, se continuavam nos ônibus, se passaram a trabalhar de forma
diferente ou em outros locais, conhecer suas percepções sobre as prováveis mudanças
que ocorreram nestes últimos anos, além de aprofundar algumas questões. Também não
descartava a possibilidade de conhecer novas pessoas e desbravar outros percursos.
No entanto, tive muitas dificuldades tanto para entrevistar novos vendedores e
reencontrar os que havia feito contato, quanto para ter acesso aos ônibus e percorrer os
mesmos trajetos que eles. Tive notícias variadas, desde alguns que arranjaram emprego
de carteira assinada, outros que passaram a trabalhar parados nos pontos de ônibus, até
um que havia sido preso. Consegui realizar nove entrevistas com: Eduardo, Cláudio,
Robson, Marcos, Valdeci, Regina, Emerson, Carlos e Silveira, sendo duas com
vendedores que já havia entrevistado e conversei com alguns fiscais. Fiquei surpresa ao
2
Ao final da dissertação, apresentarei, em anexo, as “Notas sobre os entrevistados” a fim de recuperar
algumas imagens destas pessoas e facilitar o leitor no acompanhamento de suas falas.
3
OSTROWER, Isabel. “Tem que ser guerreiro”: o dia-a-dia dos vendedores ambulantes nos ônibus do
Rio de Janeiro. Monografia apresentada à Universidade Federal Fluminense como requisito para
obtenção do grau de bacharel em Ciências Sociais. Niterói, março de 2004.
16
perceber como eles me reconheciam. Com os que já havia conhecido antes, procurei
traçar um panorama mais amplo, percorrendo e analisando de forma mais detalhada as
etapas pelas quais passaram nestes anos.
Ao longo de todo este período de pesquisa, foi notável observar a diminuição no
número de vendedores, assim como uma maior dificuldade de acesso aos ônibus. Esta
situação também foi percebida e relatada por muitos vendedores. Em 2004, presenciei
uma época em que os ônibus estavam sendo remanejados para terem as roletas na
frente. Muitos ainda mantinham as roletas atrás, o que facilitava o diálogo do vendedor
com o motorista e, consequentemente, sua entrada imediata pela porta dianteira. Esse
ano foi marcado por uma transição e, por isso, de muita adaptação dos vendedores nos
ônibus, além de uma já visível reclamação.
Quando voltei em 2006, pude verificar não só uma consolidação deste novo
modelo, mas uma presença de câmeras de vídeo no interior dos carros. Esta “novidade”
era tida, nas palavras de Eduardo, como “o que faltava para acabar com os camelôs”.
Fato recorrente ainda foram os relatos de que antes “tudo era mais fácil”, havia menos
concorrência, ganhava-se mais e não se precisava trabalhar tanto.
Desta forma, tive que perceber como os vendedores foram se adaptando e
avaliando todas estas mudanças. Isto significou, para mim, um novo esforço de
observação e participação nas ruas, junto aos camelôs, fiscais, motoristas, cobradores,
passageiros, Guarda Municipal e transeuntes.
Vale ressaltar que, de todas as pessoas que conheci, só consegui realizar
entrevistas formais com duas mulheres, tendo conversado ainda com uma terceira. A
primeira que conheci seguia um repertório comum a todos, dizendo que sua maior
dificuldade era conseguir entrar nos ônibus e que a mudança para a roleta na frente iria
dificultar muito o trabalho dos vendedores. Outra me informou que estava “na pista”
apenas para reencontrar um ex-namorado, o qual trabalhava nas imediações por onde
circulava. A terceira me contou muito de sua vida e insistiu em falar sobre sua
desavença com uma rodoviária, ex-camelô. Por fim, comentou que só continuava a
trabalhar para juntar dinheiro e pagar um “trabalho”
4
para prejudicá-la. Com o
desenrolar da conversa fui entender que esta mulher era uma ex-namorada sua, muito
ciumenta que acabou prejudicando-a muito, devendo-lhe dinheiro.
4
“Trabalho” aqui tem o sentido popularmente conhecido como o ato de fazer ou pagar alguém para
realizar um “trabalho de macumba” para prejudicar a pessoa alheia.
17
Não pretendo aqui me estender sobre as histórias de vida destas mulheres, mas
apenas ressaltar que as razões que as levaram a trabalhar na “pista” são diferentes das
dos homens. Elas costumam justificar suas escolhas por motivos afetivos e aparecem
em menor quantidade. O número reduzido de mulheres vendedoras me chamou atenção
e decorre, a princípio, do fato de ser um trabalho cansativo que necessita de muita
disposição e força física.
Quanto aos vendedores homens, através de suas falas, procuro perceber como
eles constroem sua masculinidade, que também está baseada no esforço cotidiano do
seu trabalho. Sua dignidade deriva justamente deste sacrifício e da necessidade de
suprimento da família. Neste sentido, no universo destas justificativas, as mulheres
devem ser mantidas fora da rua e devem estudar para, conforme ressaltou Emerson, “ser
alguém na vida, não para ser camelô”.
Diante de múltiplas realidades, tive que desenvolver uma nova percepção, que
envolveu ainda um trabalho de mapeamento das histórias desses vendedores, ou ao
menos, uma tentativa de reconstruir, por intermédio de um texto escrito, alguns
momentos na vida destes agentes. Obviamente que encerrar a pluralidade de campos em
que age o indivíduo não passa de uma “ilusão biográfica”, como acentua Bourdieu. A
pesquisa, como um ato de comunicação, é sempre incompleta. Diante disto, mais do que
apresentar os resultados aos quais os vendedores chegaram, interessa-me recuperar,
quando possível, os processos de escolhas, conflitos, dificuldades e tomadas de decisão.
Na perspectiva desta dissertação, não se trata de saber se estas tomadas se
realizam ou deixam de se realizar por questões “desviantes” em relação a sistemas
normativos, uma vez que as próprias normas estão repletas de incoerências. Mas
perceber como as pessoas agem e constroem perspectivas e trajetórias conforme um
contexto social e moral mais amplo. Por isso, procurei estar mais sensível ao caráter
dinâmico, mas nem sempre explícito, das escolhas e ações, por mais triviais que fossem.
Às vezes, podia me cansar ou até não me interessar de imediato por um relato
minucioso da infância ou das relações familiares e conjugais de um vendedor. Bourdieu
chama atenção para esta atitude um pouco precipitada e “distraída” de nós,
entrevistadores, acharmos que podemos pular um “prelúdio imposto” de uma confissão
muito íntima antes de chegarmos às “coisas sérias” (Bourdieu, 1997). No entanto, com
o tempo, fui percebendo que a construção destas redes de relações fazia parte da sua
apresentação e de seus modelos explicativos, na tentativa de construir um processo de
comunicação e identificação entre duas pessoas de realidades distintas.
18
O que está em jogo neste diálogo não é a veracidade do que é relatado, mas os
sujeitos aí envolvidos “têm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o postulado do
sentido da existência narrada” (Bourdieu, 2005: 184), de dar sentido e de extrair uma
lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva do relato de vida.
O investigador, ou o “profissional da interpretação” deve, portanto, aceitar ou
estar disposto a aceitar esta criação artificial de dar sentido à narração, conformar-se
com uma “ilusão retórica” de construir uma seqüência coerente de acontecimentos com
significado e direção.
Algumas ressalvas.
Vale ressaltar que esta pesquisa é datada e circunscrita a determinado espaço
geográfico e agentes sociais. Não pretendo dar conta da realidade genérica de cada um,
nem criar generalizações ou tipificações. Por isso, quando eu menciono, no texto, “os
vendedores”, as afirmações ou questionamentos estão relacionados aos vendedores que
entrevistei. Procurei me concentrar em dois bairros da zona sul carioca, Botafogo e
Copacabana, por já conhecer alguns trabalhadores que ali atuam, por ter maior
conhecimento e facilidade de locomoção, além da possibilidade de perceber como esta
área era identificada pelos próprios vendedores em comparação com outros espaços da
cidade.
Através da relação que construí com eles, procuro apresentar alguns
depoimentos e desenvolver reflexões, tão provisórias quanto limitadas. Ao levantar
questões, busco perceber as múltiplas maneiras pelas quais alguns vendedores realizam
suas atividades, desenvolvem competências, criam alternativas de sobrevivência e
constroem relações sociais importantes para se estabelecerem no mundo da rua. Minha
estratégia metodológica, apesar de sua força e fraqueza características, procurou ser útil
na reconstrução de uma realidade complexa e dinâmica, articulando diversas opiniões e
possibilidades de atuação, sem aprisioná-las em modelos teóricos fechados ou pretender
esgotar seu universo social.
Desta forma, as idéias aqui apontadas não são universalizáveis, embora a
compreensão de contextos peculiares permita proposições mais abrangentes e
19
comparáveis. Procurei ser fiel aos discursos e atos dos vendedores, respeitando, na
medida do possível, suas falas e insinuações.
A entrevista, enquanto técnica de abordagem qualitativa, enfatiza as relações
face a face entre o investigador e os sujeitos da avaliação. Busca ainda explicitar a
racionalidade dos contextos e a lógica interna dos diversos e variados agentes que estão
sendo entrevistados. Nestes termos, procurei levar em conta a inteligibilidade dos
fenômenos sociais e o significado que lhe atribuíam os vendedores, entendendo essas
visões como racionalidades ao mesmo tempo produtoras e resultantes da dinâmica da
vida social.
Imersa no “frenesi” da rua, observei gestos e posturas, embora não os tenha
analisado de forma mais contundente, trabalhei com as falas, insinuações, silêncios,
ações e relações, procurando entender a forma como os vendedores interpretavam e
conferiam sentido às suas experiências e ao mundo em que vivem. Desta forma, para
que as situações e idéias aqui apresentadas sejam resgatadas na sua magnitude e
intensidade, sugiro que as interpretemos como conhecimento acumulado, coletivo e
associado diretamente às práticas e saberes de diversos trabalhadores da rua.
Conhecimento acumulado no sentido em que traz incorporada toda a trajetória
percorrida pelo vendedor ao longo de sua vida. Coletivo na medida em que representa
todas as experiências compartilhadas com outros atores, sejam familiares, amigos ou
colegas de trabalho. Associado às práticas uma vez que os ensinamentos os quais os
vendedores aprendem estão atrelados a atividades práticas desenvolvidas no seu
cotidiano.
Não pretendo aqui demonstrar como funciona a dinâmica de trabalho de alguns
vendedores ambulantes nos ônibus, mas levantar questões e, através delas, apresentar
mais uma maneira de fazer ver e valer uma determinada forma de vida. Não fazia parte
de minha metodologia instigar alguém com a pergunta “como é sua vida?” ou “como é
seu cotidiano?”. Ao contrário, percorrendo, de forma mais sistematizada, alguns relatos
de vida e experiências e apresentando, de forma mais diluída, alguns discursos
conforme os temas discorridos, procuro “ultrapassar” os sujeitos, abordando questões
sobre moralidades, sentimentos, performance, masculinidade, trabalho, desigualdade
social, entre outras. Espero, ainda, poder justificar o retalhamento de algumas falas,
assegurando, todavia, o impacto e inteligibilidade que elas tiveram e têm.
Desta forma, não tenho nenhuma pretensão “objetivista”, nem busco constituir
qualquer atestado de realismo e muito menos consagrar um certo discurso como sendo
20
mais legítimo ou verdadeiro (ainda que isto fosse possível). Ao contrário, procuro,
cruzando as variadas visões, sejam elas as dos autores, dos vendedores, ou as minhas,
apresentar ações que se manifestam no sentido de construir realidades. Neste sentido,
esta dissertação, longe de ser uma asserção, é mais uma contribuição para pesquisas e
pesquisadores que se encontram em meio a um universo de desigualdades sociais e
disputas por representações, reconhecimento e legitimidade da condição de
“trabalhador”.
A análise de Mauss, em “Ensaio sobre a dádiva”, procura dar conta da “dádiva”,
como um sistema de prestações totais cuja regra não representa simples trocas de bens e
nem é um mercado entre indivíduos, mas congrega coletividades que se obrigam
mutuamente. Como sabido, o que se trocam não são exclusivamente bens e riquezas,
coisas economicamente úteis, mas gentilezas, ritos, festas. Neste sentido, procuro
enfocar um espaço “em que o mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação
de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais
permanente” (Mauss, 1974:44, 45).
Podemos refletir a atuação dos vendedores ambulantes nos ônibus como fazendo
parte de mercados contínuos, que ultrapassam ruas, calçadas e vielas, invadindo os
corredores dos ônibus. Neste sentido, como propôs Mauss, entre os vendedores, o
mercado congrega outras densidades, é matéria de transmissão e retribuição, pois não
abriga simples trocas de bens e produtos, uma vez que as transações humanas também
envolvem princípios econômicos e morais.
Tendo em vista estas problematizações, no primeiro capítulo, “A cidade e suas
fronteiras”, apresento alguns autores e teorias que tiveram e têm a cidade e a
sociabilidade urbana como fenômenos de problematização sociológica. Percorro
algumas formas de ilustração e construção do vendedor ambulante, percebendo como o
mesmo se apropria das ruas, calçadas e ônibus, deparando-se com a chamada atitude
“blasé”. Em seguida, parto para uma discussão sobre as economias formal e informal,
culminando numa síntese de alguns trabalhos etnográficos que tiveram o camelô como
sujeito central na análise antropológica. Por fim, através das falas de alguns vendedores,
recupero suas trajetórias e “tomadas de decisão” no intuito de compreender as múltiplas
possibilidades de escolhas e atuação neste universo.
No capítulo dois, “Fronteiras: Legalidades e moralidades”, apresento algumas
considerações a partir de autores preocupados com a temática dos direitos, ressaltando
os limites das representações legais e as brechas aí deixadas. A dimensão moral da regra
21
é analisada tendo em vista a forma como os vendedores constroem sua legitimidade e
acionam sentimentos no intuito de gerarem algum reconhecimento social. Esta admissão
moral é alcançada através de recursos retóricos, atos performáticos e encenação, tendo
como pano de fundo uma condição de ilegalidade e desconsideração.
Por fim, no terceiro capítulo, “Fronteiras: personagens e projetos”, analiso as
múltiplas formas de mobilização do ambulante com outros agentes, tais como
passageiros, fiscais, cobradores e motoristas. Considero que a viabilidade e segurança
de seu trabalho vai depender, portanto, não só destas redes de relação, mas das
estratégias de afirmação da sua condição de trabalhador, enfatizando sua masculinidade
e determinando seu território de atuação, além de se diferenciar de outros agentes menos
“dignos”, como pedintes, ladrões, malandros, “um-sete-um”
5
. Por fim, destaco algumas
dificuldades de mobilização, perspectivas e sugestões apresentadas pelos próprios
vendedores para o seu universo de trabalho.
5
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss, “um-sete-um” possui três designações. A primeira aparece
como “aquele que pratica o crime de estelionato”; a segunda como “pessoa que mente ou que engana
outras, com o objetivo de levar vantagem, de explorá-las, ou que não cumpre o que diz ou promete;
trapaceiro, vigarista” ou ainda como “pessoa que fala muito e gosta de contar vantagem, aparentar
superioridade, exagerando ou inventando feitos ou qualidades”.
22
CAPÍTULO I
A CIDADE E SUAS FRONTEIRAS
1.1 - A cidade como inspiração.
A cidade do Rio de Janeiro, como qualquer metrópole onde circule uma grande
quantidade de pessoas, é composta por múltiplos eixos que operam com uma variedade
de espaços, significados, relações e práticas sociais que mantém e enriquecem a
diversidade da dinâmica urbana. Esta, “além de ser uma propriedade das cidades, deve
ser reconhecida como o princípio que as torna cidades”. (MELLO & VOGEL, 1985:
78).
A atividade comercial desenvolvida nas ruas, praças e calçadas das principais
cidades brasileiras foi flagrada desde Debret, quando até o século XIX, a maior parte do
comércio de comestíveis era feita por escravos. De porta em porta, eles iam vendendo
de tudo: leite, aves, frutas, cana de açúcar, banha cheirosa para o cabelo, carnes
defumadas e tripas, pão-de-ló, lingüiças, sonhos, café torrado, refrescos.
Já por volta de 1895, Marc Ferrez retratou os imigrantes, ou “gringos”
portugueses, espanhóis, árabes, italianos e judeus, que vieram trabalhar na lavoura e
terminaram no comércio informal, vendendo pão doce, cebola, verduras, bengalas e
guarda-chuvas, miudezas e jornais. Conhecido como o “fotógrafo da natureza e da
paisagem” da cidade do Rio de Janeiro, possuía, todavia, uma série peculiar sobre os
vendedores ambulantes. Ofícios como o do mascate, do lambe-lambe, do burro sem
rabo, da baiana e suas cocadas, do garrafeiro, do amolador de facas, dos meninos
vendedores de jornais, eram retratados de forma isolada e no centro da fotografia.
Pregões como “laranja seleta, quem não sabe ler soletra”, “olha a melancia, dona Maria,
panela no fogo, barriga vazia!” eram usados para atrair os fregueses. Com o tempo,
houve permanência e transformação de algumas modalidades do comércio informal e
ambulante no município do Rio de Janeiro.
23
Em sua pesquisa, Castañeda (2003) percebe como a figura do vendedor
ambulante vai sendo construída desde uma representação contemplativa, compondo a
imagem urbana, até uma visibilidade negativa em que é tido como “problema social”. A
partir da década de 70, as políticas públicas começam a apontar para a implementação
de todo um “trabalho social” no sentido de definir o camelô enquanto um agente
perturbador do espaço público, “transitando” entre o desemprego e a ilegalidade.
A chamada “Operação Zona Sul Legal”, implementada em 2003, numa parceria
entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro, as Polícias Civil e Militar, Guarda
Municipal, a Justiça da Infância e Juventude, Fundação da Infância e da Adolescência
(FIA), Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICE), Fundação Leão XIII e outros, foi
mais um destes “trabalhos sociais”. Embora apresentado como um programa de
“atendimento”, possuía inspiração na filosofia de “tolerância zero”
6
. Segundo esta
perspectiva, todos deveriam estar mobilizados nas operações de repressão aos
desabrigados, mendicância, marginalidade, prostituição e ao “comércio informal” dos
camelôs.
Não há cidade ou vila cujas ruas e calçadas não tenham sido palco do drama
cotidiano de ambulantes, feirantes e comerciantes, que com seus gritos e pregões
enchiam o ar, exercendo uma forma de comércio antiga, assistemática e não-formal, em
busca da sobrevivência. Para tanto, tiveram que enfrentar condições adversas, entrando
em conflito, transpondo estigmas e recuperando seu espaço social e moral na cidade.
Por isto, podemos afirmar que a figura do ambulante está intimamente ligada à vida e à
evolução das próprias cidades brasileiras.
Desta forma, está-se falando não da cidade em si, mas de experiências na cidade,
onde, em meio a algazarra urbana, ela se transformou não apenas em materialidade,
espaço de planejamento, moradia e circulação, mas em lugar e suporte de sociabilidade,
constituindo-se como local de encontro, troca e reconhecimento, às vezes hostil e
indiferente, mas por vezes festivo e acolhedor.
Os estudos sobre a cidade e seus fenômenos foram enfatizados, a partir da
década de 1920, por pesquisadores da Escola de Chicago, inspirados pela Sociologia
alemã e pela obra de Simmel. Tomaram a cidade como tema de pesquisa e elaboraram
6
O conceito “tolerância zero” foi lançado pelo ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani. Em linhas
gerais, consiste no combate a todos os tipos de delitos, através da inflexibilidade total com a
criminalidade, aliada à presença ostensiva da polícia nas ruas.
24
métodos orientados para uma investigação qualitativa que valorizava a pesquisa
empírica, o trabalho de campo e a exploração de diversas fontes documentais.
Georg Simmel (1976), em seu artigo “A metrópole e a vida mental” descreve
comportamentos do homem moderno mediante transformações na vida urbana.
Associada a todo o processo de fragmentação dos papéis e especialização funcional do
trabalho, existe uma reivindicação dos indivíduos por preservar a autonomia e
individualidade de sua existência. Logo, Simmel questiona como esta nova
personalidade se ajusta às forças externas. Este processo de construção e reconstrução
se dá mutuamente entre indivíduo e sociedade, numa tensão entre forças objetivas e as
subjetividades e desejos dos indivíduos pertencentes a esta realidade. Para o autor, o
indivíduo enquanto unidade separada não existe, ele está imerso numa teia de relações.
Nesta perspectiva dinâmica, devemos atentar para as nuanças da interação percebendo
todos os procedimentos que são mobilizados para a criação e manutenção daquilo que
ele denomina como papéis sociais
7
.
Junto com a exatidão e precisão da vida moderna, ocorre, por outro lado, uma
estrutura da mais alta impessoalidade, a atitude blasé, da qual falarei mais adiante. Esta
incapacidade de reagir a novas sensações é também “reflexo subjetivo da economia do
dinheiro completamente interiorizada” (Simmel, 1976: 16).
Robert Park (1976) procura mostrar a cidade como um “organismo social”, em
que não é meramente um mecanismo físico – com seu amontoado de homens e
dispositivos administrativos – mas envolve tradições e sentimentos, sendo expressão da
natureza humana. O estudo da vida urbana deve englobar sua organização física, suas
ocupações e sua cultura. Tanto o arranjo físico, quanto a “organização moral”
interagem, moldando-se e modificando-se mutuamente.
A cidade é definida, portanto, para além dos aspectos físico e administrativo,
associando-se ao seu sujeito típico. Desta forma, Park comenta que “a cidade é o habitat
natural do homem civilizado. Por essa razão, ela é uma área cultural caracterizada pelo
seu próprio tipo cultural peculiar” (Park, 1976: 27).
O autor procura contrapor a cidade antiga, caracterizada como um lugar de
refúgio, cercada por fortalezas, à liberdade da cidade moderna, surgida principalmente
devido à praça do mercado em volta. Esta última passa a ser um espaço em que
7
Vale destacar que, nesta dissertação como um todo, procuro trabalhar mais com a idéia de ator social do
que de papéis ou identidades sociais, embora estas expressões apareçam, evocando as perspectivas de
alguns autores.
25
convivem mercados, dinheiros e outros expedientes para facilitar os negócios e o
comércio.
A cidade moderna comporta ainda “classes vocacionais e tipos vocacionais”. O
homem moderno encontra possibilidades de escolher sua própria vocação e de
desenvolver seus talentos peculiares. Ao afirmar que “a cidade oferece um mercado
para os talentos específicos dos indivíduos” (idem: 36) poderíamos acrescentar que os
talentos individuais, por sua vez, também atuam em mercados específicos na cidade.
A partir da divisão do trabalho, e de suas habilidades e competências, um
determinado “tipo vocacional” se especializa e se prepara para enfrentar algumas
condições da vida citadina, como mistura, encontros e incompreensão. Cada um com
sua experiência, perspectiva e ponto de vista específico, visa determinar sua
individualidade para o grupo mais próximo e para a cidade como um todo. A questão
que se coloca é: mediante mundos completamente diferentes, é possível sair do
isolamento e criar situações de reconhecimento?
Se considerarmos, como Park, que o camelô se insere, na cidade, como mais um
“tipo vocacional”, devo estar atenta para as estratégias que ele aciona para enfrentar a
vida urbana. Minha proposta, portanto, é percorrer alguns trajetos destes vendedores,
percebendo como eles entram nesta situação e nela se sustentam. Lançar-se em um
espaço fronteiriço, requer algumas tomadas de decisão, além da garantia de redes de
solidariedade. Para afastar-se de uma condição de dificuldade e iminência de
ilegalidade, desenvolvem toda uma gramática moral e constroem suas imagens de
trabalhadores frente aos preconceitos e valorizações associados à sua profissão.
Logo, como se movimenta pela cidade criando empatias e despertando
sentimentos? Até que ponto estes sentimentos sugerem e combinam, com graus
diferenciados, solidariedade social, consentimento moral, aversão e desaprovação?
Estas são algumas questões que tangenciam minhas reflexões e contribuem para a
construção do meu objeto de pesquisa.
No entanto, como alerta Magnani (2003), “é preciso treinar o olhar, senão,
apenas como usuário, está-se sujeito aos múltiplos e incessantes estímulos da
metrópole, responsáveis pela sensação descrita por Simmel como blasé”. Por detrás de
um aparente caos urbano, há especificidades, comportamentos e estilos de vida, que
seguem certa regularidade e que um olhar mais apurado pode revelar e/ou reconstruir.
Para o pesquisador que se encontra diante de um universo familiar ou aparentemente
26
conhecido, trata-se de proceder no sentido de transformar este meio em algo estranho,
escapando às armadilhas de naturalização e senso comum (Da Matta, 1985).
Desta forma, se reconhecemos o ônibus como um meio de transporte urbano
usual e cotidiano, neste momento, ele passa a ser não só um lugar de trocas comerciais,
mas, sobretudo, um espaço político e simbólico que envolve sensibilidades e interações
de diversos tipos.
1.2 - O local de trabalho.
O ônibus, mais do que um meio de transporte coletivo, ao circular pela cidade, é
também um meio social de convivência que acaba provocando encontros, sejam eles
efêmeros, provisórios, singulares ou marcantes. Dentro desta perspectiva, Caiafa (2002)
busca discutir o modelo privado de transporte que é controlado por grupos familiares
com grande poder de barganha na política local. Além disto, identifica algumas
características como a exploração capitalista e a composição técnica do capital no
quotidiano das viagens que ressoam condições impostas por este modelo.
Dentro deste panorama, os ônibus passaram a compor o cenário da cidade
8
, uma
vez que são muito visíveis, sendo quase impossível não interagir com eles de alguma
forma. Uma das características da cidade é que ela pressupõe deslocamento e a
existência do transporte coletivo é fundamental para que ela tenha condições de se
realizar, através da dispersão que ele provoca. O ônibus é um local bastante singular em
que se constrói a alteridade a partir do confronto com novas linguagens, imagens,
discursos, provocando o estranhamento e o não-reconhecimento de outros agentes
sociais.
Simmel comenta que, com os transportes coletivos urbanos, pela primeira vez as
pessoas se puseram umas ao lado das outras sem falar nada, num contato apenas visual.
Seriam o “olhar sem ser visto” ou os “olhares sem se olhar” que acabam gerando
dissimulações ou até constrangimentos. Para ele, a metrópole cria condições
8
Caiafa esclarece que “no Rio de Janeiro o ônibus se impôs como o principal meio de transporte coletivo
– com a falência dos trens, as limitações do metrô e por várias razões que devem ser exploradas na
história da opção rodoviária em níveis municipal e nacional”. (Caiafa, 2002: 42)
27
psicológicas específicas, uma “descontinuidade aguda contida na apreensão com uma
única vista de olhos e o inesperado de impressões súbitas” (Simmel, 1976: 14).
Desta forma, o ônibus passa a ser não só um único lugar, mas uma confluência
de lugares, que se articulam a partir das práticas dos atores presentes em seu interior.
Esta confluência, mesmo que conflituosa, se torna possível a partir da decodificação,
por diferentes grupos e personagens, de códigos de sociabilidade, gerando uma ética
minimamente comum a distintas formas de comportamento e apropriação dos seus
espaços.
Como, então, em um espaço privatizado, que impossibilita muitas pessoas de
terem acesso à principal senha para a vida urbana (a locomoção), podemos criar, a partir
do contato com o diferente, um rompimento, pontes de empatia, novas experiências e
possibilidades de sobrevivência?
Caiafa esclarece que a exploração capitalista que se realiza nas viagens de
ônibus, produzindo exclusão social e desigualdade política, atinge subjetivamente tanto
rodoviários quanto passageiros e, poderíamos acrescentar, os vendedores ambulantes. A
partir desta perspectiva, a noção de subjetividade é percebida por outros paradigmas,
que procuram entender a fórmula complexa de poder que rege o negócio de transporte
por ônibus nas cidades.
Se a dominação capitalista investe cada vez mais no campo do desejo, existe a
possibilidade de que a partir deste campo os agentes sociais que circulam (ou são
negados a circular) pela cidade, possam atualizar sua expansão através da comunicação,
da dispersão e da circulação, reconfigurando as regras. O trabalho dos vendedores nos
ônibus aparece como um elemento que pode despertar a sensibilidade dos passageiros,
atingindo seu desejo, confrontando imagens, produtos, discursos, produzindo mistura,
diversão, reclamações, problemas, enfim, relações e embates de moralidades.
Neste processo de singularização, devem apresentar-se enquanto sujeitos
trabalhadores em confronto às representações negativas que, muitas vezes, os
qualificam como “pedintes”, “malandros”, “um-sete-um”, “vagabundo”. Para escapar
destas codificações, mobilizam alguns recursos sociais e desenvolvem competências
culturais para trabalhar na rua. O deslocamento para este universo social pressupõe,
portanto, sua reelaboração, assim como a produção de um “território existencial” a
partir de outras formas de sociabilidade, práticas e saberes.
Este território diz respeito ao desafio de pensar o lugar da subjetividade na
sociedade contemporânea. Como desenvolver novos modos de constituição do sujeito
28
frente a um universo de descartabilidade, que torna a figura humana invisível e as
relações sociais, afetivas e políticas totalmente setorizadas? A subjetividade, aqui, como
propõe Guattari (1985), deve ser pensada de forma tridimensional, reforçando sua
“consistência existencial”, transgredindo as determinações de identidade e
intensificando os fluxos ontológicos. Deve ser compreendida como sendo transversal,
atravessando um plano de multiplicidades de valores e possibilidades de troca e
conexão; heterogênica, estando aberta para a construção de novos campos de
agenciamentos; assim como polifônica, mesclada por diversas vozes, tanto
individualizadas quanto coletivas.
Embora o meu foco, aqui, não seja a subjetividade propriamente, este processo
de configuração da existência continua operando frente ao universo dos vendedores
ambulantes. Desta forma, vale reforçar o conteúdo dinâmico e interacional presente na
construção da alteridade destes agentes, por mais paradoxal que seja.
1.3 - O estranhamento.
Dentro dos ônibus existe toda uma operação de reconhecimento, em que se
estabelece contato, às vezes com reserva (permanecendo na indiferença e no anonimato)
que funciona, muitas vezes, como autopreservação, para proteger-se das situações de
confronto, desordem e violência, freqüentes nos ônibus do Rio de Janeiro.
Esta desconfiança ou atitude blasé resulta “em primeiro lugar dos estímulos
contrastantes que, em rápidas mudanças e compressão concentrada, são impostos aos
nervos” (Simmel, 1976: 18). Nas grandes cidades, há uma incapacidade de reagir a
todas as sensações e estímulos, uma vez que estamos condicionados a uma rapidez e
contraditoriedade das mudanças na vida contemporânea. Nos termos de Simmel, o
“homem urbano” aparece como um ser massacrado por um turbilhão de acontecimentos
e estímulos cotidianos aos quais, depois de certo tempo, deixa de reagir, sofrendo uma
espécie de “anestesia” que faz com que ele não se espante com nada. No entanto, não
representa apenas efeitos diretos de mudanças contemporâneas, mas uma tentativa de se
preservar e se remodelar frente à influência de estímulos intelectuais e materiais
fornecidos pela cidade. Esta atitude distanciada pode estar agregada a uma
desimportância ou ato discriminatório que pode ser observado na reação de alguns
29
passageiros em relação aos vendedores que poderiam “incomodar o silêncio de sua
viagem”. No entanto, os vendedores também se valem desta fórmula ritual para, a partir
do distanciamento inicial, desenvolver estratégias retóricas e comportamentos
formadores de empatia.
Simmel acrescenta que “isto não significa que os objetos não sejam percebidos,
mas antes que o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas,
são experimentados como destituídos de substância, num tom uniformemente plano e
fosco” (idem).
Há várias explicações para as pessoas não se prenderem ao “comercial”
9
. Há
aquelas que podem não ter tido sua atenção sequer despertada, absortas em suas
atividades e/ou preocupações, por isso não tiveram curiosidade pelo produto. Algumas
podem ter acabado de adquirir tal mercadoria. Outras preferem nem interagir,
esboçando reações de rejeição e impaciência.
Esta atitude de aversão, estranheza e repulsão é identificada por alguns
vendedores que, quando questionados sobre sua relação com os passageiros,
comentaram:
“O passageiro às vezes fica estressado porque é muito camelô, um entra,
outro sai, um entra, outro sai. Ainda mais se for um camelô barulhento,
que grita muito. O pessoal não gosta”. (Bernardo)
“Tem uns passageiros que te olham com a maior arrogância, tratam com
a maior antipatia, pensam que você é um nada, faz aquela cara de nojo
mesmo, resmunga, bota a cara para o lado de fora, finge que nem o
camelô está ali. Só porque mora no asfalto, quer dar uma de grã-fino ...”.
(Tiago)
Esta última fala é de um ex-vendedor de bala nos ônibus que, na época em que o
conheci, em 2004, vendia vale-transporte nos pontos de ônibus
10
. Sendo morador da
favela da Rocinha, é interessante notar como a noção de “desigualdade social” não é
dada, mas construída e ressaltada, para mim, como forma de delimitar fronteiras e
9
“Comercial” é como os ambulantes chamam o anúncio que eles fazem de suas mercadorias no interior
dos ônibus. Apesar de seguir certo padrão, pode variar, conforme os produtos, entonação de voz,
criatividade e disponibilidade de tempo do vendedor, receptividade do passageiro e qualidade da venda.
10
Esta prática de venda de vale-transporte nos pontos de ônibus era muito usual e configurava-se como
mais uma possibilidade de trabalho para os vendedores. No entanto, no final de 2004, a Prefeitura do Rio
de Janeiro, junto com as Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro, substituiu todos os tickets pelo
“RioCard - Sistema Inteligente de Transporte”. Trata-se de um cartão eletrônico que faz com que “todos
os passageiros entrem pela porta dianteira, passem pela roleta, inclusive os assegurados da gratuidade, e
saem pela porta traseira”, visando “uma melhoria na qualidade dos serviços”.
30
marcar a presença do trabalhador. O relato aqui contém um caráter moral, demonstrando
as ambigüidades e contradições da vida social, como hierarquia, igualdade, ingratidão,
lealdade... As oposições “morro”, “asfalto”, “grã-fino”, “camelô” são por vezes
apontadas como situações conflituosas, mas, dependendo das circunstâncias, passíveis
de negociação.
Simmel esclarece que “os processos de segregação estabelecem distâncias
morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos que se tocam, mas não se
interpenetram” (idem: 62). Nos ônibus cariocas, os contatos físicos são estreitos, mas os
contatos sociais não o são. Se existe uma identificação visual imediata - através da
fisionomia física, do vestuário e gestos – como desenvolver uma sensibilidade, para
além deste mundo de artefatos e conquistar reconhecimento moral e empatia?
Como escapar dos pré-conceitos e, em meio a modos de vida tão divergentes e
ao caráter transitório das relações urbanas, ser não só tolerado, mas respeitado e
reconhecido como sujeito moralmente legítimo para exercer suas atividades? Este é um
ponto fundamental para a minha reflexão, pois diante das tentativas de reserva de alguns
passageiros, busco perceber como os vendedores transformam esta indiferença em
sentimentos solidários e compreensivos. Este trabalho de valorização de si envolve
retóricas e comportamentos específicos. Podemos identificar uma dupla dimensão da
retórica, tanto no sentido de uma manipulação consciente, quanto como uma
argumentação incorporada de valores e representações sociais. Logo, procuro mapear
estas dimensões, conectando a moral com os sentimentos.
Se o vendedor se sente desqualificado diante da indiferença (qualquer que seja o
conteúdo por ela manifestado) de outras pessoas, ele ainda poderá apresentar,
dependendo de certos espaços e instâncias, sua condição de “trabalhador”. Desta forma,
utilizará os vários conjuntos de símbolos em suas interações e opções cotidianas,
tecendo, com alguns traços de liberdade de escolha, novas redes sociais,
reinterpretando, rearticulando e selecionando aqueles que melhor se encaixam em sua
visão de mundo e estilos de trabalho. Nas passagens e trânsitos entre domínios e
experiências diferenciadas, geralmente acionam certos códigos fundamentais (como
família, vizinhança, amizade, trabalho) a fim de se estabelecerem socialmente.
O encontro com o “outro”, embora, em um primeiro momento possa parecer
constrangedor e perturbador, representa a tentativa de resposta para um sentimento de
“invisibilidade urbana” e permite o uso da criatividade na elaboração de novos códigos
e regras, no sentido de “recriar” a sociabilidade urbana. Embora seja considerada como
31
uma atividade freqüente, compondo a paisagem urbana e sendo até naturalizada, a
figura do camelô em si, do sujeito empírico, por vezes passa despercebida. A distinção
que continua permanecendo, serve como apoio para mobilizar recursos, desenvolver
estratégias e conferir direitos à figura moral do vendedor. Desta forma, amplia a rede de
troca, enriquecendo sua experiência pessoal e profissional. Este aprendizado requer
todo um conhecimento das condições de vida na cidade, que vai desde saber como se
deslocar, com quem se relacionar e como vender.
Em seguida, procuro apresentar uma discussão breve sobre as particularidades
deste mercado no qual o vendedor está inserido, apontando as insuficiências de algumas
abordagens e reforçando o dinamismo e autonomia de uma situação que se encontra,
senão em total ilegalidade, pelo menos em contraste com algumas pautas normativas.
1.4 – Economias formal e informal: relativizando as fronteiras.
O comércio de rua é um comércio de fronteira, sejam elas físicas, sociais, morais
ou simbólicas. No entanto, devemos pensar a fronteira aqui não só por um caráter
segregador, mas como um local de sociabilidade privilegiado, em que há uma criação
constante de novas formas de relações. Os ambulantes, portanto, seriam um dos
principais atores destas interações na medida em que se envolvem com uma grande
quantidade de pessoas de realidades econômicas e culturais distintas.
Desta forma, fazem parte de um mercado mais amplo que agrega tanto conjuntos
institucionais, quanto relações pessoais. No entanto, dizer apenas que estes
trabalhadores se restringem, ou privilegiam as relações pessoais, de proximidade ou de
reciprocidade é uma análise muito reduzida, por isso, é preciso examinar com acuidade
estas relações.
Ora referindo-se a critérios jurídicos, ora sendo considerada como objeto de
preocupação dos economistas, ou ainda de observações antropológicas, o termo
“economia informal” não permite um consenso mínimo quanto à sua definição.
Por mais que estabeleça, em alguns casos, contornos formais perante uma
regulação social, os vendedores que nela circulam, continuam esbarrando e entrando em
conflito com a Guarda Municipal ou outros aparatos de segurança pública e privada.
Desta forma, o “desrespeito” à lei parece minoritário, uma vez que esta última
32
configura-se, como veremos adiante, muito mais como um processo cuja dinâmica
depende da interpretação e negociação de seus conteúdos, a partir das situações e dos
atores envolvidos em distintos contextos sociais.
Apesar da imprecisão na definição de setor informal, este continua sendo fonte
de análise predominantemente do ponto de vista econômico. Segundo uma literatura
socioeconômica
11
, o vendedor ambulante estaria inserido numa economia que pressupõe
desde uma pura e simples evasão fiscal até atividades de sobrevivência de populações
marginalizadas no mercado de trabalho. Como esclarece Noronha (2003), embora o
mercado informal seja visto, muitas vezes, como subemprego, não é um fenômeno
uniforme, objetivo e mensurável, sendo preciso estar atento à sua complexidade.
Não pretendo descartar a possibilidade de haver precariedade neste setor, nem
sua funcionalidade para o sistema capitalista propriamente dito. Paralelamente,
interessa-me aqui explorar não a atuação destes agentes enquanto trabalhadores
“frágeis” ou à margem da regulação formal, uma vez que não estão propriamente
“excluídos” do sistema capitalista. Ao contrário, busco ir além dos estigmas de
“excluídos”, “marginais”, “minorias”, “desprotegidos” e perceber as múltiplas
possibilidades de interação e negociação neste mercado, que, como dito antes, não é
apenas um local de simples troca de bens e produtos, mas estão em jogo fatores como a
transmissão e retribuição de gentilezas, cumplicidades, favores, olhares, gestos e
sentimentos.
Cabe lembrar que não pretendo, aqui, estudar a economia informal stricto sensu,
mas perceber as práticas de um personagem central – o camelô (como pessoa e como
trabalhador) – neste campo de possibilidades.
Devemos pensar o trabalho informal para além de uma simples adaptação às
“brechas” e preenchimento das reservas de mão-de-obra. Não convém, aqui, questionar
pura e simplesmente sobre as causas que levaram determinada pessoa a se tornar um
vendedor ambulante, se por recurso ao desemprego, por falta de opção melhor,
adaptação ou tradição.
Por isso, mais adiante, ao resgatar algumas “tomadas de decisão”, procuro
agrupar o maior número de variáveis a fim de perceber que o mercado informal não é
um acaso, faz parte do campo de possibilidades destas pessoas. O que está em jogo,
11
Refiro-me aqui à pesquisa de dois economistas Hildete Pereira de Melo e Emerson Luiz Teles: Serviços
e informalidade: o comércio ambulante no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000.
33
portanto, não são só fatores de ordem estritamente econômica, mas engloba outras
dimensões, como política, cultural, simbólica e afetiva.
Por fim, apesar de uso extenso, devo acrescentar que as categorias “legal” e
“ilegal”, “formal” e “informal”, “justo” e “injusto” são pobres ou insuficientes para
entender esta dinâmica em que os autores vão mudando conforme as estratégias de
atuação, apresentação e negociação no mercado. A fim de superar qualquer tipo de
simplificação e classificações binárias, devemos atentar para o fato de que o campo
formal não é necessariamente a face institucional e lícita, ele pode ainda está permeado
por desvios. Desta forma, categorias como informalidade, clandestinidade e ilegalidade
devem ser problematizadas e apresentadas sob vários pontos de vista, como forma de
contribuir para uma discussão mais apurada, principalmente quando o que está em
relevo é um trabalho etnográfico, de escuta e observações mais sensíveis.
Considerar a informalidade, portanto, como a alternativa de ocupação é partir do
pressuposto de que o mercado formal de trabalho é o ambiente mais adequado e
profícuo para suprir as necessidades dos homens e mulheres.
Neste sentido, o mercado informal não deve ser percebido como uma situação
atípica ao “padrão contratual formal”, como um desvio da formalidade ou da legalidade,
pelo que nele está faltando, mas como uma esfera de criação em que os agentes
envolvidos mobilizam redes, vínculos, recursos e todo um conhecimento prático
construído cotidianamente. Desta forma, estes sistemas operam conjuntamente em
planos diferentes. Se por um lado o vendedor ambulante nos ônibus da cidade do Rio de
Janeiro está atrelado a agenciamentos complexos e a fortes organizações institucionais
que inviabilizam seu trabalho ou apresentam proibições e dificuldades, por outro, estes
mesmos agenciamentos são perpassados por níveis não tão rígidos, mas por um plano
de multiplicidade em que as relações estabelecidas possibilitam a construção de
percepções e atitudes capazes de escapar dos obstáculos impostos e remanejar os
segmentos formalizados.
1.5 - As múltiplas possibilidades de ocupação.
Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa, a etimologia da
palavra camelô deriva do francês camelot (“vendedor ambulante de coisas de pouco
34
valor”) e define-se como um “comerciante de artigos diversos, geralmente miudezas e
bugigangas, que se instala provisoriamente em ruas ou calçadas, muitas vezes sem
permissão legal, e costuma anunciar em voz alta sua mercadoria”.
Veremos, mais adiante, até que ponto esta ausência de “permissão legal” influi
em sua dinâmica de trabalho, e quais estratégias retóricas são acionadas para driblar
uma pauta normativa. Por ora, gostaria de apresentar, com base em algumas
investigações empíricas, possibilidades de ocupação, por parte dos camelôs, dos espaços
públicos, privados ou fronteiriços, sejam eles físicos ou simbólicos.
Mafra (2005), em sua pesquisa no Camelódromo da Uruguaiana, no Centro da
Cidade do Rio de Janeiro, identificou três modos de ocupação dos espaços pela
camelotagem carioca: “na pista”, em que os camelôs circulam pelas ruas, sem ponto
fixo; “nas barracas” padronizadas situadas nas calçadas e com ponto fixo licenciados
pela Prefeitura; e “no camelódromo”, onde os vendedores concentram-se em boxes de
alvenaria com ponto fixo.
O camelódromo da Uruguaiana, criado em 1994, concentra cerca de 1.600
comerciantes estabelecidos em boxes de comércio atacadista e varejista de diversos
artigos. Para conseguir se estabelecer, os comerciantes devem preencher os critérios de
concessão estabelecidos pelo poder público municipal ou “alugar” o ponto diretamente
com a associação que administra o camelódromo.
Os que trabalham nas calçadas das ruas ao redor do camelódromo, mais
precisamente em direção ao Largo de São Francisco, estão estabelecidos em pontos
licenciados pela Prefeitura, com barracas padronizadas, feitas de ferro e lona. Eles se
tornaram comerciantes com relativa estabilidade no uso do espaço público e são
conhecidos como “barraqueiros”.
Nestas imediações, há também forte presença dos camelôs da pista, os quais, na
ausência da guarda, buscam realizar o maior número possível de vendas. Eles não
utilizam barracas, mas lonas estendidas no chão, conhecidas como “pára-quedas”,
tabuleiros, mostruários aramados, caixas de papelão, ou quaisquer outros apetrechos que
ofereçam liberdade de movimento para as situações de fuga. Esses camelôs não
possuem autorização da Prefeitura e, dispondo da mobilidade, realizam um circuito,
como em uma “pista”, percorrendo diversos pontos da cidade.
Mafra observou que, “na pista”, ao contrário das barracas e do camelódromo, há
pouca presença de mulheres. Por estar lidando com camelôs que também atuam “na
pista”, pude verificar fato semelhante, o qual tentarei problematizar mais adiante.
35
Outra situação similar refere-se ao tipo de relação que o camelô deve adotar com
sua freguesia. Mafra reconhece que esta relação é repleta de ambigüidades, pois ao
mesmo tempo em que os camelôs são vistos como “trabalhadores” também podem ser
tidos como pessoas “perigosas” que comercializam produtos de qualidade e origem
duvidosas.
Diante de uma carreira de difícil aceitação social, os vendedores devem aprender
a jogar com o desejo do comprador, sabendo negociar, abordar e se comunicar. Por isto,
manipulam sua ocupação, fazendo dela um trabalho, no mínimo, tolerável e, em alguns
casos, até honroso e digno de apreciação.
O “pregão” proferido na pista, assim como o “comercial” anunciado nos ônibus,
tem um ar de sedução, antecipando o desejo e a necessidade do passante. Os vendedores
situados nas ruas lançam mão de atos performáticos, manipulando brinquedos e objetos
com habilidades, despertando a curiosidade dos transeuntes. Uma vez que o cliente
tenha se aproximado, devem atendê-lo com “simpatia, cordialidade e agilidade” (Mafra,
2005). Diante de um emaranhado de relações, a autora identificou que a camelotagem
está ligada à troca de favores, presentes e facilidades. Diante disto, alguns camelôs se
utilizam de estratégias que estão na fronteira entre a legalidade e a ilegalidade, na
tentativa de manutenção da própria atividade.
O trânsito entre as fronteiras, não só morais, mas físicas, foi estudado por
Rabossi em sua tese desenvolvida entre os mesiteros, ou vendedores de rua em Ciudad
del Este, Paraguai. Ao analisar este centro comercial transnacional, especificamente os
quarteirões próximos à saída da Ponte da Amizade que conecta a cidade com Foz do
Iguaçu, o autor procurou perceber as práticas espaciais e políticas do espaço, a dinâmica
das transações e a organização social das vendas, enfim as formas de sociabilidade da
rua que iluminam dinâmicas de gênero, valores sociais e oportunidades.
Em sua etnografia, abordou os circuitos dos sacoleiros percebendo as
transformações do movimento comercial, no intuito de compreender as relações entre
espaços, negócios e legalidade. Se o mercado que se configura em Ciudad del Este pode
ser entendido como um espaço de múltiplas relações e oportunidades, os que estão
envolvidos nas transações não necessariamente estão imersos em atividades que
contravêm as regulamentações (Rabossi, 2004).
Como salienta o pesquisador, as análises destas atividades fronteiriças, assim
como das formas não reguladas ou irregulares de comércio ou de trabalho, “são
problemas de perspectiva”. Ou melhor, devemos sempre nos questionar sobre o
36
pressuposto da “forma normal” da economia da qual derivam às regulamentações
estabelecidas em um determinado território. Esta “forma normal” (que não deixa de ser
um ideal), não deve ser o único ponto de partida para compreender aquilo que não se
adapta a ela, uma vez que existe um campo de possibilidades para além dos limites
estabelecidos por estas regulamentações. Cabe lembrar que estes limites não são
unicamente aqueles inscritos espacialmente na figura da fronteira.
Desta forma, Rabossi busca reconhecer o caráter político da constituição dos
mercados, não como produto de leis naturais, mas como resultado de arranjos
institucionais, em que as regras devem ser compreendidas não só a partir de sua
definição normativa, mas das possibilidades que se abrem. O “ilegal” aqui não é a parte
amoral da sociedade, mas é constitutivo do funcionamento social em que se produzem
desigualdades e se aproveitam oportunidades.
Esta faceta moral da lei também será analisada no contexto dos vendedores
ambulantes nos ônibus. No entanto, gostaria de realçar que esta margem de manobra e
os limites da legalidade são analisados em diversas situações e perpetrados por pessoas,
empresas ou políticas públicas. Daí, portanto, a necessidade de tomar como ponto de
partida a positividade das práticas dos agentes em vez de assumi-las de antemão como
37
próprios camelôs, juntavam uns trocados, compravam algumas balas, doces ou
“enchiam um isopor”
e, dentro do trem, vendiam durante um ou dois dias, depois
desapareciam para comercializar suas mercadorias na praia, nos ônibus ou nas ruas.
Segundo Pires, os “turistas” eram considerados um problema pelos “cascudos”, pois não
dominavam a ética local nem respeitavam os limites das faixas de atuação, justamente
por não possuírem clientela fixa. Já a condição de “novato” era adquirida quando algum
camelô iniciante pedia orientações ou se queixava de alguma coisa aos outros. A
passagem de “turista” a “novato”, muitas vezes, começava pelo “batismo”, quando ao
ambulante era conferido um codinome, anunciado pública e jocosamente.
Se as viagens nos trens revelavam, em sua maioria, uma organização dos
usuários em comunidades de passageiros, e não em indivíduos isolados, nos ônibus, o
que observei foi um padrão de sociabilidade caracterizado por conversas comedidas,
silêncio entre as pessoas e certa desconfiança por algum movimento mais brusco. Este
“isolamento” normalmente era quebrado pela algazarra de algum grupo de estudantes,
pela entrada de algum camelô, pedintes ou deficientes físicos.
Ao contrário dos ônibus, nas estações de trem há uma concentração considerável
de agentes de segurança, tais como: policiais militares do Batalhão de Policiamento
Ferroviário (BPFer), os “Reservistas da Paz”, agentes do sistema privado que são
contratados pela SUPERVIA junto às empresas privadas GPS (Guarda Patrimonial e
Segurança) e HP (High Protect), além de um terceiro grupo de vigilantes, a equipe do
GAC - Grupo de Apoio ao Cliente, que são profissionais contratados diretamente pela
SUPERVIA.
Desta forma, o mercado que se prolongava a partir das imediações da Central do
Brasil para dentro das composições ferroviárias acabava enfrentando este conjunto
complexo de agentes de segurança pública e privada configurando-se em uma dinâmica
de disputas e negociações pelo uso do espaço público e pela posição social de alguns
atores envolvidos nesta trama.
Os camelôs do trem estão submetidos a uma repressão cotidiana e imediata por
parte dos vigilantes que também podem andar no interior dos vagões, como no caso dos
trens que circulam pelo ramal de Deodoro. A SUPERVIA, além de manter um serviço
de vigilância permanente, dispõe de uma legislação específica para coibir tais
atividades. Quanto aos ambulantes dos ônibus, apesar da existência de regras da
Superintendência Municipal de Transportes Urbanos (SMTU), eles dificilmente são
abordados pela Guarda Municipal ou pelos fiscais das empresas quando estão
38
circulando no interior dos carros. O diálogo é efetuado com o motorista e este acaba
sendo o agente direto de permissão ou proibição de acesso e comercialização. Todas as
vezes em que os vendedores me relataram casos de apreensão de mercadorias esta se
deu no âmbito da rua, quando o “gancho”
12
estava pendurado em algum local público
ou quando estavam trabalhando parados, e não dentro dos ônibus. Conforme me relatou
um dos vendedores, geralmente a Guarda Municipal “implica mais com o pessoal que
trabalha em calçada, parado”.
Outro ponto de dissonância refere-se ao nível de organização entre estes agentes.
Os vendedores do trem criaram, em março de 2000, a partir de conversas com a
SUPERVIA e para dar fim aos “abusos”, o Sindicato dos Ambulantes dos Trens da
Central do Brasil, o SINDATREM. Embora não existisse materialmente e não fosse de
aprovação consensual uma regularização, a criação da entidade conseguiu promover um
período inicial de “trégua” e interlocução. Em contrapartida, apesar de algumas
tentativas anteriores e isoladas de alguns comerciantes nos ônibus de estipularem o uso
de coletes para uma organização mais efetiva, muitos sentem falta de uma maior união
entre eles e de uma regularização, por parte da Prefeitura, de suas atividades, apesar de
reconhecerem a dificuldade que isto representa.
Fora estas diferenças, Pires reconhece, de forma análoga, que o ambulante passa
a ser a “representação máxima do padrão de sociabilidade local”, combinando
elementos de ordem e desordem, harmonia e conflito. Passa a ser alvo,
simultaneamente, da irritação e da solidariedade do público.
No entanto, observa, como eu também pude apreciar, que para obter aceitação
pelos clientes, o camelô precisa desenvolver algumas táticas de venda, tais como:
escolher a mercadoria mais apropriada, ter um anúncio criativo, simpatia no trato com
as pessoas, além de ousadas peripécias para seduzir os fregueses, a fim de construir o
seu “lugar ao sol”. (Pires, 2005)
Diante desta diversidade de ocupações e sociabilidades, como se situa o
vendedor que não tem ponto fixo, que circula em bens privados, que não comercializa
propriamente “mercadorias ilegais”, não trabalha em fronteiras geográficas
12
“Gancho” ou “ferro” é um suporte de metal (daqueles usado nos açougues para segurar carne) em que
os vendedores costumam prender suas mercadorias ensacadas em embalagens plásticas. Cada gancho
pode pesar em média 25 kg e chegam a ter uma variedade de até 20 tipos de bala. A arrumação dos doces
é fator de extrema importância. Colocar os bombons na parte de baixo do gancho, além de não receber o
calor da mão, provocando um derretimento mais acelerado, faz com que na hora de pendurá-lo, eles
fiquem na linha de visão do passageiro e desta forma, uma vez escolhida a bala, basta o cliente puxar o
saquinho que este sai facilmente.
39
transnacionais, em Mercados Populares autorizados, como o Camelódromo, e nem
participa de associações mais formalizadas?
Analisar a situação do vendedor ambulante nos ônibus requer, portanto,
recuperar alguns processos de escolhas que variam desde decisões calcadas em
procedimentos autônomos e valorização de si, até constrangimentos ou mimetismo com
o discurso da ordem que, ao difundir uma representação negativa, faz com que os
vendedores desenvolvam técnicas de defesa moral.
1.6 - A tomada de decisão.
A partir do relato de algumas experiências, procuro perceber como os
vendedores resgatam suas histórias, enfocando os processos de escolha e oportunidades
e evocando alguns valores como forma de se situar frente a um contexto de fronteiras
fluidas, precariedade de opções e desigualdade constante.
Escolhi três histórias que acredito serem emblemáticas neste processo de escolha
e tomada de decisão. No entanto, outras falas e personagens, que não estão sendo
tomados diretamente neste item, mas podem ser melhor visualizados no Anexo (“Notas
sobre os entrevistados), fazem uso da mesma estrutura narrativa. Ou seja, também
remetem a um mesmo tipo de léxico da ruptura, da passagem da vergonha para o
orgulho e da exaltação da coragem e do sacrifício.
Começarei com a história de Robson que conheci em janeiro de 2004 e voltei a
encontrá-lo em julho de 2006. Nesta época, ele já estava casado, morava em Brás de
Pina e lembrou de mim imediatamente. No primeiro dia que o revi, comentou da
ausência dos camelôs e disse que sempre estaria ali, pois “só os fortes sobrevivem”. A
partir de nossa conversa fui entendo o sentido desta frase e a importância da idéia de
luta cotidiana para conferir dignidade e respeito à condição de trabalhador.
Robson já trabalhou como auxiliar de costura e de cozinha, mas depois começou
a vender bala e não parou nunca mais. Isto começou em 1995 e partiu de uma iniciativa
não tão bem recebida, pois como ele mesmo fala “não gostava de vender bala”.
“Eu ganhei uma caixa de isopor de presente de casamento. Uma caixa de
isopor com guaraná. Só porque eu odiava, eu ficava de bobeira, então
40
para eu não ficar de bobeira, meu cunhado me deu de presente o que eu
mais odiava”. (Robson)
É interessante notar que sua tomada de decisão se deu através de um presente de
casamento, ou seja, no momento em que se tornava provedor da casa. No entanto, esta
não foi uma escolha fácil, foi preciso todo um enfrentamento. Ele continua,
“O primeiro dia ele me deu o dinheiro da passagem e me colocou dentro
do ônibus. Para mim, o Rio de Janeiro era grande, vim para o centro da
cidade. Sabia andar na rua, eu não sabia era vender. O primeiro ônibus
que eu peguei, quem vendeu para mim foi o passageiro. Depois dele ter
me colocado dentro do ônibus, eu fui lá para trás, com guaraná gelado,
com vergonha e fiquei esperando chegar na cidade. Aí o pessoal ficou
olhando, aí tinha um maluco lá que queria comprar, foi e comprou, deu
um real e comprou dois, aí ficou falando para eu ir lá vender, eu não quis.
Mais debochado que eu, foi lá e vendeu para mim. Depois que eu vi o
passageiro vendendo, eu fui lá e vendi. Um montão de coisa que não
precisava eu vendia. Guaraná foi mais fácil, no calor foi mais fácil. Até
porque eu não falei nada, fui lá, falei guaraná cinqüenta centavos. Depois
eu fui pegando a manha. Acabou o verão, entrou o inverno, eu comecei a
vender chocolate. Depois que eu comecei a vender chocolate, não vendi
mais gelado, só de vez em quando, carnaval, trabalho para mim mesmo,
vendendo refrigerante. Eu vou acampar e levo um guaraná”. (Robson)
Foi preciso todo um esforço para que Robson transpassasse a “zona cinzenta” da
vergonha e exposição em público e decidisse dar o primeiro passo. Seu fortalecimento
moral veio com o tempo através do esforço cotidiano, da autonomia adquirida e das
relações construídas. Como ele ressalta, as redes de relações são de suma importância
para assegurar seu espaço num universo de limiares frouxos.
“Comecei a gostar de ficar por aqui, comecei a construir amizade. O
costume de você ficar vendo todo dia passageiro já te ajuda, o pessoal
não fica mais com medo, já te chamam pelo nome, pessoal aqui de
Botafogo me chama pelo nome. Eu falo o meu nome, poucas pessoas
falam o nome, aí eu fui criando o meu ambiente. Já vai fazer dez anos
que eu estou aqui”. (Robson)
Com outros, a situação também não foi muito diferente. Conheci Marcos em
fevereiro de 2003. Contava então com 28 anos, morava em Caxias e já estava “na pista”
três anos e oito meses. Voltei a revê-lo em agosto de 2006 e desta vez estava casado,
tinha uma filha de 3 anos e morava com ela e a mulher em Botafogo. Não trabalhava
41
nos ônibus, mas parado, em sua barraca, tendo sua mulher e outros empregados
trabalhando para ele.
Contando um pouco sobre sua vida, disse que já tinha trabalhado como
Supervisor geral da Poli Brasil, uma indústria da Petrobrás, em uma loja de roupas e já
foi 2º Sargento da Reserva. Ficou nove anos no Exército, mas pediu para ir embora. Ele
resolveu trabalhar como vendedor porque, como explica, “foi a opção que me restou”.
Depois de dois anos desempregado e sem dinheiro, pediu vinte reais emprestado, o
irmão caçula ensinou a fazer um gancho e atualmente está na pista há uns sete, oito
anos.
Ele resumiu um pouco sua trajetória que começou com uma conjuntura de total
precariedade, passando pelo momento inicial de venda nos ônibus.
“A primeira vez que eu entrei, a vergonha me dominava, porque alguém
que está só acostumado a mandar e oferecer bala no ônibus, muita
vergonha. O motorista que praticamente me deu o empurrão fatal. Ele me
deu tanto esporro aquele dia, chamou tanta minha atenção que o próximo
ônibus que eu peguei eu já subi com mais coragem. Foi obrigatório,
porque precisava vender, estava sem nada, estava devendo mais de vinte
reais”. (Marcos)
Em seguida completa, explicando porque decidiu trabalhar nos ônibus.
“Necessidade, necessidade extrema. Decidi enfrentar a vergonha, porque
a gente cria uma barreira entre você e o inimigo, uma barreira social tão
grande. Eu lembro que eu fui pegar fiado pela primeira vez na minha
vida e foi a última, graças a Deus. Essa barreira que eu criei de vender
era grande demais, que eu criei não, que toda a sociedade criou. Para
mim quebrar tive que passar por necessidade. Hoje em dia eu adoro o
meu trabalho, amo o meu trabalho”. (Marcos)
Comentando sobre a época em que trabalhava nos ônibus, Marcos faz uso de
uma linguagem muito singular pertinente a seu tempo como sargento. Comenta que
quando transitava, os motoristas, mesmo tendo o trabalho em risco, deixavam entrar,
por isso são verdadeiros “heróis”. Recorda dos momentos de esforço e cansaço e da
necessidade de estabelecer alguns princípios para atingir determinadas metas.
“A vida eu acho que é um jogo e eu criei regras, eu tinha que estar tal
hora em tal lugar. Às vezes quando eu perdia a hora, eu tinha que pular
certo ponto para poder seguir o jogo. Eu nunca ficava no ponto esperando
42
e implorando para entrar no carro, eu já tinha os carros certos. Começava
às seis da manhã e ia até oito, nove horas da noite. Quando eu pegava o
último ônibus era certo duas cenas: a primeira que eu tropeçava nos
degraus, a segunda era o sono querer bater, o cansaço”. (Marcos)
Apesar de ter passado por “necessidade”, enfrentado “vergonha” e “cansaço” e
ter superado algumas “barreiras sociais”, acabou atingindo uma situação de maior
satisfação e responsabilidade, mas nem por isso de menor apreensão.
“Quando eu trabalhava no ônibus eu tinha uma preocupação: sobreviver.
Pouco tempo já tinha sanado todos os meus problemas que tinha
acumulado em dois anos. Ganhava muito mais? Não sei, porque hoje em
dia eu não posso pensar só na minha vida, tem que pensar na vida de
mais nove famílias. Eu tinha menos dor de cabeça, hoje em dia tenho
mais”. (Marcos)
Vale ressaltar que nesta fala, o vendedor refere-se às famílias das nove pessoas
que trabalham para ele. Se antes a situação era um pouco menos preocupante, pois
sustentava apenas sua família, agora, com um número ampliado de empregados, fica
mais apreensivo pelo maior grau de responsabilidade. Este é um ponto importante, pois,
em diversos momentos, os vendedores não se colocam como pessoa isolada, mas
fazendo parte de uma coletividade. Achar que a autonomia do indivíduo faz parte de um
código urbano é um engano, pois as pessoas se movem em redes e, para se arriscar,
precisam estar sustentadas por elas, principalmente pelos laços familiares. A valorização
da sua condição de trabalhador passa inclusive pelo fortalecimento do vendedor como
sujeito responsável pelo sustento da família.
Esta estratégia de valorização tanto do trabalho quanto de si reforça a idéia do
provedor da casa. Aqui, esta responsabilidade passa a ser um elemento constitutivo não
só da sua masculinidade, mas de sua honra e dignidade. Desta forma, a retórica do
orgulho, em contraposição à vergonha por estar parado, fazendo besteira ou pedindo é
reforçada constantemente.
Esta situação pode ser constatada ainda pela história de Eduardo que conheci em
julho de 2006. Morador de Bonsucesso, tem 32 anos, é casado há doze e tem uma filha
de 7. Vendedor ambulante há dez anos, já teve “várias funções de profissional”, pois
como alerta “onde abre a porta, a gente trabalha, onde não tem trabalho...”. Já atuou na
área hospitalar, como auxiliar de lavanderia, trabalhou de servente de obra, açougueiro e
43
mecânico. Para ele, sempre há “o período de dar uma pausa, quando aparece uma opção
melhor, para não ficar parado, segue a melhor opção”.
Perguntei como havia decidido ser vendedor e ele, sem apresentar causas
precisas, esboçou certo contentamento, apesar da situação difícil.
“Eu não sei, aconteceu muito rápido, uma necessidade me obrigou muito,
eu fiquei muito apertado quando eu comecei a ser vendedor, e passei a
gostar, passou a ser um vício praticamente, um vício bom porque você
está trabalhando, tem aquela ansiedade de estar todo dia na rua com o
povo, o dia a dia. O que eu gosto de fazer é trabalhar com venda. Graças
a Deus eu sempre trabalhei com harmonia, com muita calma,
tranqüilidade, sem incomodar ninguém. Como eu cheguei para ser
camelô hoje eu não sei te explicar, mas que é bom é”. (Eduardo)
Na sua família, é o único que trabalha como vendedor ambulante e, reforçando a
importância das redes de relações, acrescentou, com orgulho, seu sacrifício.
“Só tem eu, na família o único corajoso sou eu. Eles me dão muita força,
ficam impressionados de me ver ter essa coragem, ter essa atitude, vir
para o ônibus, às vezes se sujeitar, pegar condução, você subir, oferecer
mercadoria dentro do ônibus, é um trabalho meio burocrático. Ainda
mais na situação de hoje está muito complicado trabalhar na rua”.
(Eduardo)
A dificuldade aqui aparece através desse teor burocrático, cansativo, de ter que
desenvolver “coragem” e se “sujeitar”, além de enfrentar os limites da fronteira que
oscila entre o ilegal e o legítimo. Para não esbarrar em situações indesejáveis, o que
ocorre é um jogo constante entre o sacrifício e a valorização moral. Por isso, completa:
“Devido a muitos maus elementos na rua, os passageiros andam com
medo, confundem os vendedores ambulantes com os maus elementos.
Então, para a gente, hoje em dia, está muito burocrático trabalhar, mas dá
para trabalhar tem que ter paciência”. (Eduardo)
O perigo de ser confundido com algum “mau elemento” ou pessoa moralmente
mal avaliada pelos passageiros é um fator constante pelo qual os vendedores se sentem
pressionados. Diante de uma situação de desemprego e carência material, ao invés de
você “ficar em casa, sem fazer nada, é melhor trabalhar de camelô”. Diante da
iminência do ilegal ou do injusto, eles optam por uma condição que acreditam seja mais
digna, a de trabalhador.
44
A construção geral do que seja trabalhador aparece aqui como o oposto virtual,
por um lado, da malandragem ou da necessidade e, por outro, como o oposto virtual,
não mencionado, mas reconhecido, do trabalho formal, que não exige tanta coragem ou
sacrifício.
Assim, apesar destas narrativas enfatizarem, com certo orgulho, a atividade do
vendedor ambulante, esta encontra-se na fronteira do legal e ilegal e, por isso, acaba
esbarrando em determinadas regras que, dependendo de algumas situações, devem ser
superadas, no intuito do trabalhador se recompor moralmente e se estabelecer no mundo
da rua.
45
CAPÍTULO II
FRONTEIRAS: LEGALIDADES E MORALIDADES
2.1 - Leis e lacunas.
A atenção da Antropologia e dos antropólogos para normas e regras sociais não
é atual. Desde Malinowski (2003) podemos identificar uma preocupação com as leis e
normas da experiência cotidiana e a representação nativa sobre esses fenômenos. Em
Crime e Costume, o autor pretende compreender a relação dos indivíduos com as regras,
leis e obrigações e, nesta medida, discutir com a teoria jurídica de então. Enfocando a
relação entre normas e práticas, subverte a idéia de que há uma submissão instintiva à
lei primitiva (dogma da submissão automática ao costume), através da importância de
uma perspectiva etnográfica. Chama atenção para o fato de que existe um plano da ação
individual no jogo com as normas, além de obrigações mútuas que perpassam várias
dimensões da vida.
Logo, ao analisar a relação entre norma e prática, o foco não deve ser a falta de
cumprimento das normas, mas a crença nelas depositada. Os indivíduos, mesmo que
acreditem nas normas, ainda podem burlá-las. Malinowski não está preocupado com um
mero registro jurídico ou uma perspectiva externa interessada apenas no aspecto ideal
da norma, mas com outros aspectos, tais como os sentimentos, a culpa, a inveja, enfim,
o próprio interesse dos nativos pelas normas e o universo do conflito como um todo.
Seguindo este raciocínio, busco adotar uma perspectiva mais processual,
ressaltando, na interação dos indivíduos com as normas, o aspecto moral aí presente.
Reconhecendo as inúmeras possibilidades de associação, procuro explorar a conexão da
moral com as emoções e as estratégias acionadas pelos atores a partir desta
configuração. As estratégias e o plano das escolhas ganham aqui dimensão fundamental.
Frente a uma situação que não é, em si, de conflito explícito, mas carrega relações de
hierarquia e disputa, os vendedores acionam táticas de negociação, restituindo um lugar
de criação de possibilidades a partir de condições adversas.
46
Em meados de 1960, a filósofa norte-americana Judith Shklar, na tentativa de
chamar a atenção de teóricos do Direito e de políticos norte-americanos, esclareceu que
uma teoria do Direito deveria considerar que o sistema de definições que os juristas
chamam de leis relaciona-se intimamente com a moral enquanto forma de condução,
pelos indivíduos, das interações que protagonizam em determinado contexto.
Tendo em vista as complexas relações entre a dimensão da legalidade e das
moralidades, vale recuperar que Gluckman (1955), em diálogo com o sistema legal
inglês, enfatiza a dimensão viva das múltiplas ações em várias escalas e como isto
funciona na densidade etnográfica. Se o procedimento de transformação não é
unilateral, o autor destaca a ação social dos diferentes atores na reelaboração das regras
frente aos processos de descolonização de sua época. Atentando para o jogo de
manipulação das regras, estratégias e expectativas, procura perceber como a ação se
desenrola em situações formalizadas e em contextos em que as negociações se
desenvolvem de modo não formalizado. Assim, em uma situação como o julgamento,
não há apenas imposição, mas existem potencialidades de desenvolver novas leis a
partir do conjunto formalizado de normas. Para recorrer às estratégias de manipulação é
preciso obedecer a certas regras diferenciadas (normas objetivadas pela escrita). No
entanto, há margens de manobras diferenciadas que fazem parte da dinâmica da regra
instituída e da regra vivida.
13
Se há um pretenso ideal representado na lei que é aceito e
legítimo, ele não é fixo, mas existem estratégias situacionais, em que o tolerável deve
ser considerado e utilizado como recurso. Para o autor, só se compreende o que está em
jogo em dada situação, se constrói uma equação da posição dos indivíduos a partir do
seu lugar de gênero, social, relacional, entre outros. Um determinado caso permite,
portanto, considerar o conjunto das relações, acessar elementos mais amplos que ele
mesmo, além de trazer, para o centro da cena, a dimensão da ação dos atores sociais.
Apesar de enfatizar esta dimensão das escolhas e estratégias, Sally Falk Moore
afasta-se do estudo situacional, alertando para os perigos desta perspectiva em criar uma
fantasia de querer acessar a lei, como se ela fosse algo dado. Para a autora, a lei,
enquanto processo vivo, deve ser acessada a partir de sua dinâmica e não apenas de uma
situação privilegiada. Ao enfocar o Direito sob uma perspectiva antropológica, alerta
13
Não pretendo, aqui, resgatar o percurso da antropologia do direito ou da antropologia jurídica, mas,
reconhecendo a postura universalista de Gluckman, procuro reforçar minha posição por uma perspectiva
mais processual, enfocando as escolhas e mudanças presentes nos espaços não oficiais de negociação das
disputas legais. Para um apanhado mais geral sobre os estudos da antropologia jurídica e seu background
político nos últimos 50 anos, ver Moore, 2001.
47
para o fato de que aquele não se restringe às suas expressões positivadas, mas é
complementado, ou “regulamentado” por inúmeros códigos privados, quase sempre
resultantes de disputas e ajustamentos. Nestas esferas, a moral desempenharia um papel
preponderante
na regulação das práticas e relações vigentes no espaço público.
Sally F. Moore (1978) propõe pensar o direito a partir de suas formas de
regulação, capturando os processos, as incoerências, as incertezas, as ações individuais
e coletivas. A lei, assim como outros elementos da trama social, ocupa um lugar vital,
mas deve ser mais um ponto de percepção e discussão da complexidade das relações
sociais marcadas pela autoridade. Frente a esta figura, existem diferentes níveis e
dispositivos de regulação social que devem ser trabalhados tanto num plano específico,
formal e situacional, quanto num universo mais geral, fragmentado e incongruente,
agregando planos, escalas e formas diferenciadas de regras e disputas dependendo das
arenas de ação, relação e posicionamento e dos grupos corporados. Isto não implica em
confusão e nem desfaz o processo, mas possibilita a passagem de uma arena para outra
através da competição e atuação frente a interesses específicos e aos códigos de
regulamentação. Não há montagem prévia, mas as normas são construídas, interpretadas
e reelaboradas na prática, dependendo do contexto e das conexões entre obrigações,
disputas e negociações. A autora destaca, portanto, a pluralidade do que chama de
“processos de regularização”, nos quais estariam incluídas não apenas as regras
explícitas dos códigos legais, mas planos, símbolos e ideologias de comportamento
social.
14
Compartilhando inquietações semelhantes, Barrington Moore (1987), apesar de
situado em outro campo acadêmico, se questiona: como é possível algo ser construído
como injusto? O que faz com que ele seja percebido enquanto tal, causando indignação
moral? Como isso rearranja os grupos e atores, deflagrando diferentes sentimentos?
Como os grupos se constituem frente ao sofrimento?
O autor considera que diante de uma ordem muito mais complexa de coerção e
punição que extrapola a dicotomia legal/ilegal, há diferentes possibilidades morais e
caminhos de autonomia para um acordo. Ou seja, quem obedece, tem alguma parcela de
autoridade e escolha (ainda que limitada) para conferir uma ação positiva e movimentar-
14
Neste sentido, a autora alerta: “to study rule-orders in action, it is necessary to deal simultaneously with
the explicit rules, the occasions on which they are communicated and invoked, and with actual behavior
addressed by the rules, the contexts in which it takes place, and the ideas and assumptions that accompany
it. The social reality is a peculiar mix of action congruent with rules (and there may be numerous
conflicting or competing rule-orders) and other action that is choice-making, discretionary, manipulative,
sometimes inconsistent, and sometimes conflictual”. (1978: 03)
48
se. A capitalização do sentimento, através de um jogo retórico, aparece como fator
crucial capaz de dar sustentação moral e viabilidade empática para um processo coletivo
de engajamento e compromisso. Por isso, destaca também que na produção do
reconhecimento da injustiça, o sofrimento aparece como elemento capaz de conferir
autoridade moral aos que se sentem injustiçados. Desta forma, em certas ocasiões, as
pessoas são capazes de criar um sentido de superioridade em meio a situações de
submissão (1987: 81-82).
Tendo em vista estas problematizações, podemos visualizar o universo dos
vendedores ambulantes nos ônibus a partir não só do que é reprimido, mas de suas
possibilidades de subversão e criação. A construção de situações de empatia aparece
como um momento privilegiado frente a uma posição turva de legalidade em que eles
estão inseridos. Neste sentido, a questão moral passa a ser vivida através de estratégias
performáticas, tendo em vista o uso tático dos sentimentos na disputa por respeito e
reconhecimento.
Para compreender como isso se dá, é importante ter em mente que as
dificuldades dos vendedores variam muito, sendo uma das maiores queixas a entrada
nos ônibus, que só é liberada (extra-oficialmente) pelo motorista e negada pelas
empresas de ônibus e pela SMTU. Há ainda uma normatização específica do comércio
ambulante em pontos determinados do espaço público municipal, por meio de
legislação específica e atos administrativos municipais.
Em relação aos Municípios, a Constituição Federal os assegura o domínio sobre
os bens públicos de uso comum, representados pelos logradouros públicos. Tal
categoria de bens tem como característica a universalidade, isto é, sua utilização é
franqueada ao povo, sendo o beneficiário direto e imediato desses bens. Essa liberdade
de utilização é, em princípio, incondicional, podendo, no entanto, estar sujeita a normas
que limitem a sua utilização. Através de preceitos normativos das atividades de
fiscalização, a Administração Pública busca compatibilizar o exercício das atividades
com o uso coletivo, a exemplo do que ocorre com relação ao exercício em vias públicas
de atividades comerciais. (Delgado, 2005)
Segundo a legislação municipal, a localização e o exercício de atividades
comerciais em vias públicas necessitam de autorização a ser requerida por eventuais
interessados perante o órgão municipal, Coordenação de Licenciamento e Fiscalização,
e por intermédio das Inspetorias de Licenciamento e Fiscalização do respectivo bairro
onde se pretende desenvolver a atividade. (Idem, 2005). Diante disto, como se situa o
49
vendedor ambulante que não tem ponto fixo, circula em bens privados
15
, não
comercializa “mercadorias ilegais” e nem trabalha em Mercados Populares autorizados,
como o Camelódromo, na Uruguaiana, no centro da cidade do Rio de Janeiro?
A SMTU tem um “Código Disciplinar de Ônibus” que diz respeito ao
“relacionamento social” do auxiliar, ou seja, ao “exercício da função pública” que é
“tratar os usuários e cidadãos em geral com respeito, atenção e urbanidade”. Informa
que o auxiliar de transporte (motorista, cobrador, despachante, fiscal e inspetor
habilitados pela SMTU) “não deve permitir o ingresso, no veículo, de passageiro
embriagado ou com visíveis sinais de moléstia infecto-contagiosa, bem como não deve
permitir a venda de objetos ou alimentos, no interior do veículo”, sendo estabelecida a
aplicação de multas para os auxiliares, variando de cinco reais e nove centavos a vinte
reais e trinta e oito centavos.
Curiosamente, observa-se que a SMTU não proíbe a entrada dos vendedores nos
ônibus, ela apenas orienta os auxiliares de transportes a “não permitirem” o acesso, ou
seja, a coibirem tal atividade. Podemos perceber, ainda, como a instituição acaba
enquadrando no mesmo item “passageiro embriagado”, passageiros “com visíveis sinais
de moléstia infecto-contagiosa” e passageiros que estejam vendendo “objetos ou
alimentos no interior do veículo”. Ou seja, são pessoas que possivelmente poderiam
oferecer perigo, perturbação, constrangimento e ameaça para o bom funcionamento da
“urbanidade” entre os usuários e cidadãos cariocas. O que seria o bom funcionamento
da “urbanidade”? A quem estaria interessando esta formalidade e o discurso da ordem?
Diante dessas normatizações, por vezes imprecisas e contraditórias, os
vendedores criam formas para negociar e se posicionar conforme interesses e situações
específicas. Em suas experiências diárias, lidam muito com imprevistos e a
subjetividade de vários agentes. Conversei, certa vez, com Sérgio, de 36 anos e
vendedor há dez, que comentava que a “venda é imprevisível, ela tem muitos segredos”.
“A venda é muito variada, é sorte. É tudo sorte. Às vezes você fala, fala,
comercial bonito e não vende nada. Aí você entra, não fala nada e vende.
É uma questão de variável. O comércio é uma coisa variável. Hoje foi
bom, amanhã é ruim e assim vai, você tem sete dias na semana, você não
pode querer ganhar todos”. (Sérgio)
15
Cabe lembrar ainda que o ônibus, como modelo privado de transporte, é controlado por grupos
familiares que têm grande poder de barganha na política local.
50
Perguntei, então, como ele fazia para chamar a atenção dos passageiros e ele
emendou:
“É uma coisa de momento. Vê a minha sorte. Pela simpatia, pelo jeito
que você fala, educação, isso aí é primordial, isso aí não tem jeito...
Venda, na minha opinião é sorte. Você tem que saber lidar com as
pessoas”. (Sérgio)
Nota-se que, neste relato, o vendedor afirma que “venda é sorte”, “é uma
questão de variável”, que depende muito de circunstâncias inesperadas. Se sua fala, a
princípio, pode parecer contraditória, ganha rapidamente sentido, uma vez que a venda
não está atrelada somente ao acaso, a um acontecimento fortuito, mas é preciso “saber
lidar com as pessoas”, ter “educação” e “simpatia”. É necessário, portanto, desenvolver
toda uma expertise, ou seja, uma destreza que deve estar associada a determinadas
técnicas e táticas de atuação.
Conversando com Robson sobre a atuação dos outros vendedores, ele não
demonstrava um ar muito otimista e deixou uma mensagem:
“Pra quem quiser vender bala, eu prefiro que estude, é melhor. Pra
vender tem que estudar. A pessoa que tem formação vende melhor”.
(Robson)
Com o decorrer da conversa, fui entender que este “estudo” não era algo formal,
mas referia-se a um “saber-fazer”, ou melhor, a um conhecimento adquirido com a
experiência na rua, com as trocas cotidianas. O aprendizado está diretamente
relacionado com suas atividades diárias, seu esforço, esperteza e paciência. Assim, para
finalizar, explicou as táticas para ter um bom desempenho e um bom resultado.
“Não pode ter vergonha, primeiramente vender um produto de qualidade,
que o pessoal conheça. Se não conhece, que seja bom. Venda é relativo.
Eu não posso falar para você que eu vou sair daqui e vender tudo, de
repente, o passageiro está sem dinheiro. Venho para cá brincar, se eu
ficar na intenção de fazer dinheiro, prefiro ir embora para casa.
Educação, apresentação e trabalhar com a mercadoria certa. Se você tem
qualidade e preço, não precisa saber vender, vai aprender com o dia a dia.
Com a rua a gente aprende muita coisa”. (Robson)
Desta forma, por mais que a venda seja relativa, existem maneiras de desvendar
seus segredos e garantir a eficácia do trabalho. Isto vai depender da maneira com que
51
lidam com as normas, como se aproveitam das oportunidades e quais códigos morais
acionam para garantir a legitimidade do seu trabalho. A comunicação moral tem uma
dimensão pragmática. As estratégias são acionadas a partir de valores morais, mas
também estão atreladas a um processo de refinamento dos talentos individuais.
Retomando o que foi colocado antes, é importante notar que frente a uma sentença legal
existem múltiplas moralidades em jogo. Desta forma, o território de disputa por
legitimidade supõe ainda a construção de direitos e de enunciados morais que estão no
plano dos sentimentos.
2.2 – A gramática das moralidades.
Como vimos, entre um plano legal e a possibilidade de legitimidade social existe
todo um processo de estratégias e negociações para o vendedor ser reconhecido como
profissional moralmente aceito. No entanto, não devemos pensar a dimensão da
moralidade como algo que escapa ao legal, mas sim como uma composição em que
múltiplos arranjos morais devem ser elaborados, assim como um escopo variado de
situações com a possibilidade de construção de regras socialmente formalizadas.
Mesmo na sua dimensão formal, o legal ainda é passível de disputa. O próprio código
da SMTU dá margem para interpretações dúbias e diferentes comportamentos, por mais
que procure uniformizá-los.
Distanciando-se de uma concepção utilitarista ou estritamente individualista de
compreensão dos fenômenos morais, Durkheim aponta para o caráter propriamente
social dos prazeres ou dos sofrimentos.
16
Assim, o sujeito sofre justamente pela tensão
de ser um sujeito social, pela presença coercitiva do mundo social. No entanto, atrelado
ao sofrimento, há a alegria que advém do cumprimento com as regras, dos benefícios de
obedecer aos preceitos sociais moralmente valorizados.
Todo o esforço em demonstrar estar adequado às obrigações e comportamentos
morais requer o desenvolvimento de uma linguagem moral, reconhecida por todos como
válida. Para Durkheim, tanto o racional quanto o sensorial são formas de resolver o
16
Destacando a complexidade dos fatos morais, Durkheim afirma que estes estão relacionados aos outros
fatos sociais, sem com eles se confundir. Por isso, afirma: “wherever a contract exists, it is submitted to
regulation which is the work of society and not that of individuals, and which becomes ever more
voluminous and more complicated” (Durkheim, 1973: 96)
52
“insolúvel”. Por isso, procura perceber as dimensões não contratuais de um contrato,
pois através deste os homens estão submetidos a uma complexa rede de direitos e
deveres. Em um contrato, portanto, há possibilidade tanto de uma apreensão racional,
quanto de um sem número de questões não-contratuais, o que explica a impossibilidade
de agir conforme seus próprios interesses e através de disposições meramente
utilitaristas. Atrelado à lei, há todo um trabalho de justificativa moral que supõe
disputas por seu significado, sentido e interpretação.
Neste sentido, há uma série de tensões presentes na vivência concreta das
experiências morais. A moral não se constitui como um domínio pleno e acabado, mas
atravessa diversas áreas de atuação como a Educação (processos de moralização), o
Estado (moral profissional), o Direito (sanções morais). Desta forma, existe tanto a
moral num âmbito mais amplo, como as moralidades, num plano mais restrito, que
podem inclusive contradizer os princípios e regulamentos institucionais, mas
dificilmente corrompê-los.
Durkheim chama atenção ainda para a relação da moral com os sentimentos.
Como visto, o embate de moralidades se realiza através de procedimentos que supõem a
delimitação de algumas maneiras de perceber e expressar sentimentos. As moralidades,
como enunciados socialmente demarcados diante das ações dos próprios sujeitos ou
daqueles com quem se relacionam, implicam ainda em uma dimensão de apresentação
dos sentimentos.
Tendo em vista as problematizações de Durkheim, proponho uma análise das
moralidades expressas, ou melhor, uma reflexão em que a moral seja compreendida
como “linguagem em uso”, como “objeto de luta”, como um “campo de enunciados
sobre intenções” (Vianna, 2002: 197). Seguindo este raciocínio, o plano moral deve ser
percebido, entre os vendedores ambulantes, a partir de uma linguagem específica da
emoção, da trajetória pessoal e do merecimento. Deve ser criado frente às situações de
conflito e disputa pelo seu significado e interpretação, de cobrança e sobrevivência. Os
enunciados morais estão também no plano dos sentimentos, da emoção, do sofrimento,
e são vividos, na prática, através de falas e campos semânticos
17
, articulando
argumentos que devem ser enunciados performaticamente.
17
Pensando nesta dimensão pragmática dos enunciados morais, Vianna argumenta que as moralidades
não apenas podem ser descritas, mas “só podem ser apreendidas se descritas, ou seja, que são, da forma
como as compreendo, tão prisioneiras das condições de seu enunciado que só fazem sentido quando
recuperadas em sua dimensão de ação social”. (2002: 197) Mais adiante, retomando as proposições de
Weber sobre a ação social, a autora reforça: “a moral deixa de ser uma palavra auto-explicativa para se
53
A importância das técnicas performáticas está justamente na capacidade em
saber manusear as normas, conforme os limites, as possibilidades e a posição do sujeito.
Diante de uma dimensão relacional, isto supõe uma manipulação, em boa medida
consciente, por parte dos atores, das estratégias, uma reflexão do que é eficaz e o que
não é, enfim, dos efeitos das ações. No entanto, como visto, há ainda uma dimensão
incorporada das representações coletivas, o que permite que o universo moral seja
acionado, enfim, que o terreno moral da empatia seja compartilhado. A construção deste
sentimento depende, portanto, de uma narrativa apropriada, da escolha de determinadas
categorias e da eficácia da história.
Neste sentido, Bailey (1970) chama atenção para a necessidade de valorizar a
habilidade específica de saber negociar, se apropriar das regras pragmáticas, sem ferir as
regras normativas, avaliando as relações, os comportamentos, os contextos e situações
de conflito e sabendo, sobretudo, o que falar e a maneira de falar.
Vale destacar que a dimensão performática não é um todo fechado e “pronto”,
mas aparece como fator crucial no caminho de valorização do sujeito. Ao ser acionada
pelos vendedores, não se configura como uma encenação só para mim, mas para si
próprio. É uma forma de vivenciar e se recompor moralmente e é enunciada como um
dos momentos do processo contínuo de remanejamento social do vendedor.
O mesmo vendedor que comentava, em outro momento, sobre a sorte na venda,
falou, de forma explícita, sobre como era trabalhar dentro dos ônibus:
“É como outro lugar qualquer. Não tem mistério, não é nem complicado,
nem nada. É como se você tivesse uma platéia, tivesse num teatro e todo
mundo na platéia. Você ali não está atuando e vendendo teu peixe? É a
mesma coisa, não tem mistério”. (Sérgio)
A reelaboração das regras supõe, portanto, um exercício criativo por parte
daqueles que vivenciam e protagonizam a transformação, através de estratégias
possíveis de negociação para se adequar ou não à situação concreta (Gluckman, 1955).
É no próprio processo de interação em que se constrói uma dinâmica de regras,
inclusive sua atualização e efetividade. Não há apenas imposição da lei, mas frente a um
determinado conjunto de normas instituídas, criam-se novas leis, possibilidades de um
“ideal razoável” a partir de regras vividas, de uma linguagem da moralidade e margens
tornar o ponto de partida de perguntas e descrições, liga-se a estratégias, cálculos, embates, reações, etc.”.
(idem: 198)
54
de manobras diferenciadas. É isto que, frente a situações adversas, permite, em certa
medida, a elaboração de um contexto legítimo de sua condição.
2.3 - Construindo a legitimidade.
Comerford (1999), em pesquisas realizadas junto a Associações e Sindicatos de
Trabalhadores Rurais no Rio de Janeiro, na Bahia e em Minas Gerais, identificou
diferentes usos e significados do termo “luta” entre trabalhadores rurais. Estes diferentes
sentidos remetem a inúmeras situações, agentes e relações, variando conforme os
discursos.
A primeira acepção de luta caracteriza o cotidiano de trabalho dos pobres. O
trabalho aparece como uma “luta” cotidiana, como um aspecto da dignidade e do valor
de quem enfrenta dificuldades em prol da família. O segundo uso refere-se ao
enfrentamento, aos sentidos ético e épico presentes na resistência para manter seu
espaço social. O terceiro aproxima-se do discurso sindical, em que a “luta” está no
plano jurídico e político e atrelada às atividades cotidianas dos dirigentes e líderes
sindicais.
O termo “luta” torna-se, portanto, central no discurso destes trabalhadores,
principalmente nas falas de denúncia e sofrimento. Daí todo o sentido moral presente
nas narrativas. “Luta” refere-se às dificuldades do cotidiano, especialmente às
relacionadas ao trabalho. Desta forma, qualificar o trabalho cotidiano como “luta”
aponta para uma concepção mais geral de trabalho que se distingue de uma em que é
avaliado exclusivamente pelo seu valor monetário.
Da mesma forma, quando os vendedores ambulantes qualificam suas atividades
como “festa” ou “rotina”, o termo trabalho amplia-se abarcando uma variedade de
sentidos e possibilidades de exercer suas atividades, seja como diversão, seja como um
hábito desgastante e monótono.
Assim, “luta refere-se a tudo aquilo que é obrigado a ‘enfrentar’ no dia a dia
para viver dignamente. É uma noção que aponta sempre para a dimensão do sofrimento”
(Comerford, 1999:28), sendo preciso, ainda, lidar com o sentimento de vergonha ou
coragem. O trabalhador que luta, que busca suprir as necessidades de sua família, passa
a ser um “trabalhador que sofre” e, por isso, digno de consideração.
55
Quando, certa vez, perguntei a um vendedor o que ele achava do seu trabalho,
ele afirmou que o considerava “o mais digno no mundo” e contou uma história extensa
que acreditava justificar este caráter. Começou apresentando um panorama mais amplo,
falando da continuidade do desemprego e, em seguida, partiu para um relato particular.
“Quando eu estava com 17 anos, eu estava com uma namorada e ela
ficou grávida. Eu trabalhava em obra, de servente de pedreiro, só que a
gente não tinha carteira assinada, a gente não tinha quase nenhum direito.
Às vezes, ficava sem vale transporte, a gente tinha que pedir dinheiro
para poder trabalhar. A gente passava muito risco de trabalhar em morro,
confusão, polícia, guerra de quadrilha. Era muito difícil, sabe? Eu saí
desse trabalho e fiquei desempregado durante cinco meses. Estava
desesperado, pensando um montão de besteira. Vendo a dificuldade,
minha mãe trabalhava, não tinha como eu pedir nada a ela. Aí eu fui
pedir a ela um dinheiro para poder procurar um trabalho. Ela me
emprestou dois reais para mim poder arrumar um trabalho. E nisso, a
passagem do trem era noventa centavos. Aí eu saí de casa, de manhã, fui
na estação do trem. É muito engraçada a minha história, vou até chorar.
[Fico] com os olhos cheio de lágrimas. Fui pegar o trem para poder vir
até a Central, os dois reais era para mim comprar um pacote de bananada
para vender, comprar mais até eu conseguir um dinheiro para mim
comprar uma mercadoria direito. Aí pulei o muro da estação para pegar o
trem. O guarda mandaram eu voltar. Tive que voltar. Pulei o muro de
volta. Aí quando o trem veio, parou na estação, eu vim correndo, pulei
aquela grade de ferro do portão, saí correndo, o trem fechou a porta, pulei
pela janela, entrei no trem, vim até a Central. Na Central, comprei um
pacote de bananada, aí voltei para a Presidente Vargas, fui vendendo, até
na Candelária. Lá na Candelária eu atravessei para o outro lado, voltei
vendendo, fui até a Central. Dali, eu comprei outro pacote que tinha pela
metade, que é dez centavos a bananada, eu dei cinqüenta bananadas.
Toda hora eu ia, pedia para entrar no ônibus, o motorista estava achando
que eu estava até de brincadeira, você com pouca mercadoria, ele fica
desconfiado da pessoa. Aí, eu comprei, fui vendendo até perto do
aeroporto Santos Dumont, depois atravessei pela passarela, para o outro
lado. Voltei pela Presidente Vargas, até a Leopoldina. Eu consegui
vender os dois pacotes de bananada, que eu fiz dez reais. Aí voltei lá na
Central de novo, comprei cinco pacotes de bananada, vim vendendo por
Botafogo. Fui até o Leblon, do Leblon eu voltei por Copacabana direto
até acabar. Depois que acabou, eu fui embora para casa. No mesmo dia
que eu vim com dois reais, eu voltei com vinte e cinco reais. É muito
esforço. Cheguei cedinho lá, era oito horas da manhã, fui sair daqui era
nove horas da noite. Cheguei em casa quase onze horas da noite. Sem
tomar café, sem almoçar, sem comer nada. Dali ... fui vendendo direto,
comecei direto. Poucos têm coragem...” (Alex)
Quando Alex relata que, aos 17 anos, tendo a namorada grávida e estando
desempregado, tentou várias vezes arranjar trabalho, tendo conseguido se estabelecer
56
como vendedor ambulante, e se refere a essas atividades cotidianas como “risco”,
“dificuldade” e “esforço”, está caracterizando-se como pessoa merecedora de respeito
social, principalmente quando este respeito encontra-se ameaçado por visões
desqualificáveis e sem respaldo jurídico-legal. Sua situação de pobreza e degradação de
condições materiais configura um contexto de grande potencial para desqualificação
social. Sabendo disto, acaba engendrando, inclusive para ele próprio, um discurso
insistente e sensibilizador sobre o valor da sua experiência, através de falas que
acentuam seu esforço cotidiano, destacando seu valor moral, como “vou chorar” ou
“sem tomar café, sem almoçar, sem comer nada” e “poucos têm coragem”.
Neste sentido, Vale de Almeida (1995) ressalta que “nas formas de produção
simbólica, temos pessoas engajadas na prática da vida social, pessoas que contam
‘estórias’, dando coerência cognitiva e emocional à experiência pessoal e coletiva,
negociando a identidade social do orador e de um grupo. A narrativa [...] não reflete de
modo passivo as instituições sociais e a cultura, mas é parte constitutiva destas no
próprio acto de contar ou declamar” (Vale de Almeida, 1995: 214).
Uma situação que poderia ser motivo de desaprovação aos olhos dos outros e aos
próprios, à medida em que é relatada vai ganhando contornos positivos de orgulho e
satisfação. Por isso, algumas falas dos vendedores, apesar de identificarem
constantemente todo um esforço e dificuldade presentes no seu cotidiano, alertam para o
fato de isto gerar uma altivez pelo que fazem, assim como auto-estima e confiança.
O “sofrimento” ao qual fazem menção tem muito a ver com as dificuldades do
dia-a-dia, seja na negociação com os motoristas, nas representações negativas, no ritmo
incessante de trabalho, no peso dos produtos, nos passageiros sem dinheiro...
“O peso que a gente carrega, tem coisas que são pesadas. Tem muita
gente que pensa que camelô ganha dinheiro fácil, mas não, a gente rala
pra caramba. Levar sempre tudo na brincadeira para você não se estressar
e não ficar nervoso com nenhum motorista”. (Rafael)
“Tem as dificuldades, não é fácil. Se eu falar para você que é fácil, eu
estou mentindo para você, é difícil trabalhar. Você ganha aquele seu
dinheiro suado, trabalha, rala, mas se eu quiser trabalhar hoje eu trabalho,
se eu não quiser, eu não trabalho. Se eu não quiser trabalhar amanhã eu
não venho...” (Emerson)
Atrelado ao “sofrimento”, vêm os valores de “merecimento”, por ter vencido na
vida e ter conquistado certa autonomia. Certa vez, conversando com Rogério, um rapaz
57
de 23 anos e que há sete “trabalhava de camelô”, perguntei o que ele achava da sua
atividade. Ele respondeu “Bom, eu gosto, estou acostumado já na batalha.” Procurei
entender melhor como ele representava esta “batalha” e sua explicação foi a seguinte:
“É uma batalha, a gente tem que ralar para poder vencer, se a gente não
vencer a gente fica ferrado, não é não?” (Rogério)
As falas que entoam a figura do “vencedor” estão muito presentes e carregam,
na maioria das vezes, valores de dignidade, orgulho e coragem. Em outro momento,
conversando com Marcos, perguntei como ele via seu trabalho. Ele logo retrucou,
“conflito constante”. Eu indaguei “com o quê?” e ele emendou:
“Contra a prefeitura, contra nós mesmo. Porque, tem hora que temos que
vencer, tem horas que vamos enfrentar até o nosso caráter, a nossa
dignidade, porque temos que suportar humilhações. Porque se não
suporta as humilhações, acaba eles nos vencendo. Porque se eu me sentir
humilhado, regredir, e não tentar trabalhar, parei, então vou ser
derrotado. Então, enfrento isso, inclusive a minha própria dignidade”.
(Marcos)
Falar da luta cotidiana ou da “ralação”, além de ser um fator de superação de si e
afirmação do valor da pessoa trabalhadora, pode assumir o caráter de denúncia moral
quando a origem do sofrimento está localizada em ações externas, como, por exemplo,
no desprezo de alguns passageiros ou na recusa de motoristas em abrir as portas. A
denúncia, além da capacidade de generalizar o sofrimento, pode adquirir tamm uma
dimensão reivindicatória de cunho legal, na medida em que a exigência dos vendedores
é concebida como um direito ao trabalho.
Boltanski (1984) demonstra como diferentes estratégias e estilos retóricos são
usados para elucidar e acusar algumas injustiças. Em seu trabalho, analisou como,
através de cartas de denúncia publicadas em jornais, os sujeitos procuram se mobilizar,
tornando pública uma ofensa vivida privadamente. Daí a utilização de uma retórica
sensibilizadora como recurso para construir pontes de empatias, a fim de que a denúncia
seja reconhecida e ganhe legitimidade. Se o sentimento antes era tido como algo do
indivíduo, agora se torna público através da denúncia. No entanto, não é qualquer relato
que tem eficácia por si só, é necessário construí-lo de maneira a ter êxito social. Os
atores sociais devem ter habilidade para manusear as condições de enunciação, para que
58
seus relatos sejam reconhecidos como consideráveis. Porém, há sempre um risco social
presente, a possibilidade de que a interpelação não dê certo.
“Trabalhar dentro do ônibus tem que ter disposição e tem que ser artista.
Não é qualquer um que encara essa guerra do dia-a-dia não. É muita
humilhação. Tem que ser mesmo guerreiro. Se não for guerreiro, sai fora
rápido”. (Bernardo)
Nesta fala, podemos perceber como, frente a situações de disputa (“guerra”), o
vendedor constrói algumas noções de desigualdade social que, embora não configurem
como acusação imediata, acabam prevalecendo, principalmente diante do desprezo
alheio (“humilhação”) e da necessidade de sobressair-se, “ser artista”, e atuar como
trabalhador legítimo (“guerreiro”). Esta legitimidade deve ser conquistada nas relações
construídas cotidianamente, daí a necessidade de organizar o discurso e apresentá-lo de
forma criativa a fim de que gere convencimento, aprovação e respeito de sua condição.
Como lembra Vale de Almeida (1995), os discursos emotivos funcionam como formas
de ação, atos pragmáticos capazes de afetar o mundo social.
Em outro momento, Boltanski (1993) chama atenção para estratégias de
sobrevivência que servem para despertar compaixão, criando engajamento sentimental
e, posteriormente, redes de solidariedade. Preocupado com a construção de uma política
da piedade, da gratidão e da generosidade, em nível midiático e político, procura
perceber como, através de constrangimento e reflexão crítica, um sujeito se constitui no
momento em que se compromete e compartilha, emocional e moralmente, em níveis
variados, do sofrimento alheio. Isto deve implicar numa codificação social da emoção
para que ela possa ter eficácia e ser tomada como autêntica e legítima.
Neste capítulo, assim como no próximo, busco compreender, através das falas
dos vendedores, como eles constroem sua luta e “ralação” através de uma retórica do
sofrimento e da “humilhação”. Em seguida, como lançam mão de táticas de
sensibilização dos passageiros, os quais devem recodificar estes códigos para
sentimentos de empatia a fim de que o vendedor seja reconhecido como sujeito legítimo
no universo em que circula.
59
2.4 - Sentimentos e reconhecimento.
Cardoso de Oliveira (1999) assinala que sentimentos de lealdade ou de
solidariedade não podem ser prescritos pelo Estado nem por uma teoria da cidadania, na
medida em que, assim produzidos, seriam artificiais e sem sentido. No entanto, afirma
que o Estado (e eu acrescentaria as instituições privadas) não devem manter uma
distância radical dos valores associados a estes sentimentos, uma vez que os direitos
também são definidos em exercícios de prática e manifestações de reconhecimento.
Enfim, os direitos ganham legitimidade quando associados aos valores locais
mutuamente reconhecidos.
Ainda que Cardoso de Oliveira esteja dialogando com uma problemática das
demandas ou da “política do reconhecimento” e de integração social, no caso
quebequense, podemos transpor esta situação para o universo dos vendedores. Através
das falas de alguns fiscais, percebi que as empresas de ônibus acabam reconhecendo que
para trabalhar na rua “é preciso ter jogo de cintura”. Dificilmente as regras prescritas
pelas empresas serão rigorosamente seguidas, havendo sempre margens de manobras
que estarão permeadas pelos sentimentos de lealdade e solidariedade que são
construídos numa relação cotidiana. O reconhecimento e garantia moral que os
vendedores devem conquistar para trabalhar necessitam de uma dimensão dialógica. As
regras da SMTU e das empresas, formalmente estabelecidas, dificilmente darão conta
de um universo moral de sentimentos de lealdade e solidariedade necessários para
garantir a sobrevivência no mundo da rua.
No sentido apontado por Cardoso de Oliveira (2002), é possível dizer que os
vendedores tendem a interpretar a rejeição dos passageiros como uma desaprovação da
sua condição, como atos de desconsideração ou como um insulto moral. Para o autor,
esta desconsideração pode ser caracterizada como o reverso do reconhecimento. Desta
forma, os vendedores apesar de não encontrarem respaldo no plano legal, fundamentam
seus direitos intersubjetivamente no plano moral. Daí a elaboração de uma retórica do
sentimento e sua expressão como forma de garantia e reconhecimento moral.
Diante disto, como avaliar as retóricas de sentimentos dos vendedores como
estratégias que estão atreladas a toda uma gramática moral e que supõe obrigações,
representações, encenações, jogos, disputas e risco a fim de se posicionar, dentro de
uma rede de relações, como sujeitos moralmente legitimados para comercializar?
60
O autor procura articular retórica do ressentimento e as demandas de
reconhecimento da identidade quebequense, por isso questiona:
“Dado que as demandas de reconhecimento estão freqüentemente
associadas à afirmação de um direito moral, cuja percepção ou
fundamentação não encontra respaldo adequado na linguagem jurídica,
até que ponto a mobilização de sentimentos como o de ressentimento
seria um instrumento legítimo e iluminador do insulto moral que se quer
reparar? Ou, em que medida a retórica do ressentimento não correria
riscos de provocar não apenas as emoções dos atores, com o objetivo de
facilitar a percepção do insulto moral que teriam sofrido, mas também
uma atitude passional e, portanto, inibidora da compreensão que estaria
tentando viabilizar?” (Cardoso de Oliveira, 2002:12)
Da mesma forma, poderíamos nos indagar: se os vendedores ambulantes não
encontram permissão jurídica para trabalhar, tanto por parte dos órgãos da prefeitura
quanto das empresas privadas, em que medida a mobilização de sentimentos seria uma
ferramenta eficaz para garantir sua entrada nos ônibus e efetuar a venda? Será que, ao
invés de despertar empatia e solidariedade, esta mesma retórica não estaria provocando
emoções não tão satisfatórias, como incompreensão e rejeição, adiando sua venda?
Mauss, em seu artigo “A Evocação Obrigatória dos Sentimentos”, distingue três
domínios para os sentimentos: o biológico, o psicológico e o sociológico. No intuito de
compreender um fenômeno como as “lágrimas”, procura demonstrar seu caráter
igualmente sociológico mediante a análise de um rito oral funerário australiano.
Identifica a importância da expressão dos sentimentos como uma obrigação moral,
especialmente no âmbito das sociedades primitivas, chamando atenção para o fato de
que “toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos
exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por
manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação” (Mauss, 1979:147).
Seguindo este raciocínio, poderia sugerir que, nas sociedades contemporâneas, a
percepção de uma rejeição e de uma não garantia de direitos pelos moldes legais
também demanda a evocação obrigatória dos sentimentos. A identificação com a
emoção ou sentimento de desprezo ou desqualificação, permite que o vendedor socialize
o significado dessa experiência, viabilizando uma compreensão intersubjetivamente
compartilhada do fenômeno. Ao transmitir uma emoção, o vendedor deve ser capaz de
tornar a narrativa em experiência dos seus ouvintes. A empatia só é possível porque o
vendedor explora, através de táticas narrativas, um território moral comum entre estas
61
pessoas. Assim, utiliza-se de técnicas capazes de “desarmar” qualquer postura de
afugentamento.
Mauss, na tentativa de provar a natureza social dos gritos e sentimentos, indica
que as expressões coletivas são simultaneamente de valor moral e de força obrigatória
dos sentimentos individuais e grupais. Não são apenas manifestações, mas sinais de
linguagem, é preciso expressá-los de modo que os outros possam compreendê-los e
legitimá-los. Por isso, são essencialmente ação simbólica.
No entanto, como ressalta Cardoso de Oliveira, a socialização da percepção não
conduz necessariamente a uma articulação adequada ou elaborada do significado social
e/ou moral desta experiência. Mas, no caso dos vendedores, viabilizaria uma
identificação pública da sua condição de trabalhador e de pessoa moralmente legítima
para realizar atividades que antes, ou em outras esferas, eram tidas como um ato
indevido.
Por outro lado, alguns vendedores expressam gratidão quando são aceitos e bem
tratados. Este sentimento de gratidão, em oposição ao da indiferença e rejeição, é
motivado pelo uso de boas maneiras e gentilezas, tanto por parte do vendedor, do
motorista ou do passageiro. Esta nova reação simpática é desperta através da
compreensão por outrem (no caso o passageiro, motorista, fiscal ou cobrador) da
experiência de desaprovação moral pela qual o vendedor acaba passando. Este aspecto é
reforçado, como veremos adiante, pelas falas que expressam as redes de relações como
ponto crucial no desenvolvimento de suas atividades.
As demandas dos vendedores por atenção e reconhecimento podem acabar
despertando sentimentos de comprometimento e obrigação moral, como uma sensação
de “consciência pesada”, culpa ou até responsabilidade. Por isso, reforçam este apelo
em suas falas e no comercial, como forma de ajustar desejos e sentimentos.
2.5 – Fala.
Em sua pesquisa, Comerford observou que para um trabalhador ser considerado
pessoa com destaque e potencial para ocupar cargos de dirigentes ou representantes, é
importante que tenha competência para produzir discursos, ou melhor, que seja capaz de
“falar bem”, “falar bonito”, “fazer discurso”, enfim, que “saiba falar”.
62
Além desta dimensão formal da fala, outro plano possível de análise que se
encontra inseparável do primeiro é o próprio conteúdo desta narrativa ou seu apelo
moral. Comerford ressalta que uma narrativa moral acaba enfatizando a importância da
humildade para ser aceito como trabalhador, além de despertar respeito e
reconhecimento pelo seu trabalho.
Os discursos dos vendedores também estão repletos de palavras de conotações
morais tais como “sofrimento”, “merecimento”, “respeito”, “orgulho”, “vergonha”,
“coragem”. O uso dessas palavras e expressões, ao apontar para algumas noções que
parecem ser importantes na visão de mundo de alguns vendedores, acaba encontrando
forte ressonância no público, chama a sua atenção e caracteriza moralmente a figura do
trabalhador. Para que os passageiros mantenham sua atenção no vendedor, eles lançam
mão de mecanismos “performáticos” que procuram envolver sua “clientela”.
O “comercial” é um destes momentos que conjuga forma e conteúdo. Configura-
se como uma ocasião em que os usuários podem ter o primeiro contato com os
vendedores ambulantes dentro dos ônibus. Com esta forma peculiar de apresentação e
venda do produto, os vendedores, ao mesmo tempo em que anunciam, evocam
musicalmente toda uma gama de sabores. Trata-se de uma tentativa de convencer,
sensibilizar o passageiro de que seu produto é barato, de qualidade, fresquinho e que
não se encontram melhores preços em padarias ou lojas comerciais.
Ainda que possa parecer um improviso, o “comercial” segue certa regularidade
de expressões, sendo previamente esquematizado e estudado. Primeiramente, dirigem-se
aos passageiros convidando-os a focalizar sua atenção através de expressões como
“bom dia”, “boa tarde”, ou “boa noite”. Em seguida, emendam com o bordão regular
“desculpe incomodar o silêncio da sua viagem” e completam com o “trago aqui, na
promoção, o passatempo de sua viagem”. O pedido de desculpas pelo incômodo,
presente em quase todos os comerciais, é uma forma de provocar o outro, mesmo
sabendo que se pode ser considerado um intruso. Desta forma, por mais incômodo que
seja, procuram demonstrar certa “humildade”, na tentativa de criar um clima de
complacência e respeito.
Bourdieu, em “Marginália: algumas notas adicionais sobre o dom”, chama
atenção para o fato de que “o ato inaugural que institui a comunicação (ao dirigir a
palavra, ao oferecer um dom, ao fazer um convite ou lançar um desafio etc.) tem sempre
algo de intrusão ou até de questionamento” (Bourdieu, 1996a:14). Daí a interpelação
dos vendedores, através do “desculpe interromper o silêncio da sua viagem”, acabar
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gerando um constrangimento, uma obrigação, encerrando até uma incerteza, um
adiamento, ou ainda uma desconfiança por parte dos passageiros.
No entanto, apesar de certa intromissão, são ocasiões que, de certa forma,
desarmam o passageiro e até o pesquisador. Argumentos mais sentimentais como o “ou
eu tô roubando ou eu tô morrendo”, são momentos de extrema intensidade no apelo
moral e na aceitação por parte de outrem.
Apesar de ser caracterizado pelo improviso e criatividade, o “comercial”, como
um todo, aparece mais como uma estratégia de venda e recurso comparativo com os
outros vendedores. Como um repertório de arrematação, tem começo e fim
característicos, fazendo parte de um “ritual” complexo de palavras e ações. Ritual, aqui,
longe de ter um sentido moral-religioso, refere-se às atividades que seguem certas
regras e etiquetas de convivência e coerência social. Neste sentido, o “comercial” passa
a ser um momento em que os vendedores escolhem bem as palavras a fim de que elas
tenham um peso efetivo sobre suas atitudes e, se possível, as dos passageiros.
“O meu comercial é extravagante. A gente não tem comercial certo, cada
hora a gente tem um assunto para conversar com os passageiros.
Depende do momento, da hora. O meu comercial é normal. Na hora a
gente inventa alguma coisa, para incrementar e animar os passageiros.
‘Srs. passageiros, boa tarde, mais uma vez está chegando um camelô
chato para incomodar o silêncio dos senhores, mas não fiquem chateados
comigo, preciso trabalhar, venho trazendo mercadoria de qualidade para
os senhores, tudo na validade, e olha só...’ Aí apresenta as mercadorias
‘obrigado senhores pela atenção, vão com Deus e bom descanso.
Desculpa mais uma vez pelo incômodo’.” (Eduardo)
É interessante notar como este vendedor, ao mesmo tempo em que diz que seu
“comercial” é “extravagante”, logo em seguida afirma que o mesmo é “normal”. Enfim,
são palavras usuais, do cotidiano, mas que ao serem enunciadas em determinado tom,
incrementam o texto, ganham outro sentido, uma qualidade de destaque, principalmente
pelo caráter moral presente nas noções de “incômodo”, “chateados”, “preciso
trabalhar”, “vão com Deus”.
O mesmo vendedor, em outro momento, comenta sobre a importância da
receptividade e da tomada de uma primeira iniciativa, para que outros fiquem
estimulados.
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“Eles falam ‘esse neguinho é bom mesmo de história, é contador de
história’. Aí eles ficam naquela ‘compro ou não compro?’ Basta um
comprar, as portas se abrem. É um só, basta um abençoado comprar, as
portas se abrem. Aí fica tudo na paz.” (Eduardo)
Além de narrar histórias, enfatizam o bom preço, a data de validade e fazem
testes com as mercadorias, como o vendedor de descascador de legumes que leva uma
porção de legumes e começa a descascar para mostrar sua agilidade e eficiência com o
aparelho. Enfim, criam toda uma situação para aproximar os passageiros, fazendo com
que estes se envolvam e fiquem dispostos a comprar. Os significados expressos devem
ter ressonância na ética e na moral compartilhadas por todos que ali estão.
Conforme Silveira comentou, “você tem que ter uma conversa”, ou melhor,
saber tratar os passageiros, abordar a pessoa, não esquecendo de lançar um trunfo na
hora da divulgação.
“Vou fazer o comercial, primeiramente, dou bom dia, boa tarde, peço
desculpas por estar incomodando o silêncio. E a coisa mais importante,
falo o prazo de validade, às vezes a pessoa nem quer comprar, mas pela
data de validade, a pessoa vai e compra”. (Silveira)
A partir desta fala, podemos verificar que uma linguagem da etiqueta e do
reconhecimento da assimetria, como pedir desculpas, não é incompatível como uma
linguagem da racionalidade e do cálculo. A composição das estratégias racionais de
mercado – competição entre vendedores, qualidade e prazo de validade da mercadoria,
cliente fiel – é mais um elemento na tática moral do vendedor em garantir a
legitimidade do seu trabalho.
As falas dos vendedores denotam ainda outro caminho de singularização e
engrandecimento moral. Além da estratégia narrativa de valorização de si, outro
destaque está no reforço de sua expertise, do saber fazer. Para Alex, a venda varia de
acordo com a educação do vendedor. Esta educação, portanto, está associada a
determinadas táticas.
“Quando você entra no ônibus, que você sabe fazer uma propaganda
direito, você sabe conversar, você tem educação, todo mundo gosta, a
maioria das pessoas compra, quando estão com dinheiro, quando tem
condição. Mas quando é aquele camelô que chega no ônibus não dá um
bom dia, não dá um boa tarde e que não sabe como dialogar direito. Ih, as
pessoas não dá nem confiança, olha para o lado, finge que não é nem
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com eles. Tem muitos que sabem trabalhar. Tem muitos que fingem que
é camelô para poder fazer um monte de besteira tamm, sabe”. (Alex)
O vendedor, portanto, deve ser educado, se vestir bem, pois “ninguém te dá
moral se você entra de chinelo”, deve “falar olhando no olho de todo mundo”, enfim,
deve “ter um bom comercial, um bom talento e ser representativo”. Não é à toa que eles
“estudam” a melhor forma de atender o passageiro bem.
“Eu trabalho com a mente. A noite inteira eu estou pensando. Pô, que
comercial eu vou fazer hoje? O que eu vou fazer para que os passageiros
venham a comprar? O que eu vou achar melhor hoje?” (Emerson)
“A gente também faz o nosso serviço de bordo com os passageiros de
ônibus. Porque às vezes você está ali com vontade de chupar uma bala,
comer um doce. Aí entra um camelô...”. (Wagner)
O vendedor é a todo momento provado, testado, quando ele entra no ônibus
todos ficam olhando e esperando “o que ele vai falar hoje?” Daí, a necessidade de ser
diferente, despojado, espontâneo, sobressair-se de forma notável, entreter, chamar
atenção, convencer o público, explorando sua sensibilidade, com toda uma linguagem
própria, regada de musicalidade e informações que despertem a curiosidade por novos
sabores e agucem o paladar.
Seguindo este repertório, Robson comentou que passou a mudar a maneira de
fazer seu “comercial”. Ao se apresentar, ele agora passa a dizer seu nome. Segundo
informou, esta é uma estratégia que só ele realiza e que funciona de forma razoável,
pois as pessoas passaram a chamá-lo pelo nome e sua venda aumentou.
“Comecei dando bala para quem falava meu nome. Todo dia eu falava o
meu nome e eu queria saber se o pessoal ficava prestando ou se só estava
me usando por causa da fome. Eu comecei a prestar atenção que o
passageiro presta atenção no que a gente está fazendo, comecei a
aprimorar mais o meu trabalho. Quem é o meu cliente fiel, quem não é”.
(Robson)
Se considerarmos, conforme comenta Bourdieu (2005), que a nominação
contribui para constituir a estrutura do mundo social, apresentar-se pelo nome próprio é
uma maneira de criar uma imagem de si constante e durável, de construir referência e
localização, enfim, é uma possibilidade de ser identificado como pessoa reconhecida e
autorizada.
66
Se, por um lado, o insulto aparece como um ato de destituição, por outro, a
nominação surge como ato de instituição. O vendedor que age por conta própria e que
se apresenta pelo seu nome acaba cobrando de seus interlocutores reconhecimento e
respeito pela figura que agora, do anonimato, passa a estar restituída de significado não
só social, mas, sobretudo, moral. Este “indivíduo construído” passa a ser um agente
eficiente, capaz de intervir em diferentes campos.
Além disso, Robson prendeu alguns penduricalhos em seu gancho para chamar
atenção. Como ele mesmo diz, esta é uma estratégia para se afastar das imagens
negativas associadas à sua condição social.
“Eu sou feio, tenho a cara feia e moro em favela. Mas nem sempre toda a
pessoa que mora em favela, está na rua fazendo merda. Mas tem muita
madame que fica te olhando atravessado porque você paga o preço pelos
outros. Não é que tenha muito, sempre teve muita, a ocasião faz o ladrão.
Eu procuro ser diferente, por isso que eu falo o meu nome, até porque eu
venho para cá trabalhar”. (Robson)
Como visto, os discursos e declarações dos vendedores são pronunciados com
certa dramaticidade, em que os ouvintes são convocados a se situarem enquanto atores
nas imagens re-construídas pelo orador, deixando-se tocar simultaneamente nos planos
da razão e da emoção.
Isto pode provocar duas possibilidades: através da evocação do sentimento de
desvalorização, conseguir tornar inteligível a percepção de desconsideração, suscitando
uma reação de aprovação moral, ampliando o horizonte do ator e permitindo uma
melhor compreensão de sua experiência e condições de trabalho. Ou ainda produzir
resultados na direção oposta, evocando sentimentos que, ao invés de ampliar, limitam o
horizonte do ator, constrangendo-os e inviabilizando compreensão e atitudes de trocas e
reciprocidade. O importante a ressaltar é que ao falar comigo, os vendedores estão
avaliando o que dá certo e o que não dá.
Desta forma, como salienta Cardoso de Oliveira, os sentimentos evocados têm
potenciais de fecundidade cognitivos diferenciados, ora conduzindo a uma melhor
compreensão, ora a articulações perversas de intolerância e incompreensão. Devemos
analisar, portanto, caso a caso, para perceber até que ponto as experiências dos atores
podem ser mais bem elucidadas e efetivamente incorporadas como legítimas.
As técnicas de publicidade e improviso são uma forma privilegiada de chamar
atenção e cobrar certo “compromisso” dos potenciais compradores frente a uma situação
67
de necessidade. Tais estratégias buscam efetivar algum tipo de vínculo com sujeitos
fisicamente próximos, mas socialmente distantes. São alternativas para obter algum tipo
de reconhecimento público através de diferentes esquemas de interpelação que acabam,
por sua vez, produzindo diferentes aceitações por parte dos passageiros, estando sempre
presente a preocupação se a venda vai ou não ser efetivada.
Neste sentido, Wilkis, estudando vendedores de revistas vinculados à “Hecho em
Buenos Aires” (HBA), movimento internacional de publicações de rua, afirma:
“el desarrollo de la venta en el espacio público estructura el repertorio de
actuación a través de la necesidad que la misma sea visible y que en
alguna medida este orientada a llamar la atención, la conquista de ambos
imperativos se da en un terreno donde cada vez es más extensa la
competencia por ganar lugares de exposición tanto de mercancías como
de personas, de productos y fragmentos de vida. En esta polifonía de
signos y prácticas amalgamados por una lucha material y simbólica, los
vendedores buscan los intersticios para alcanzar visibilidad y atención,
estructurar una actuación sujeta a lo lógica de la diferencia y
diferenciación” (Wilkis, 2004).
No entanto, não cabe aqui explorar ao máximo a reação dos passageiros, mas
perceber como os vendedores se apropriam de um campo de possibilidades (Velho,
2003) que lhes permite desenvolver opções e alternativas para se inserir em redes de
relações, negociando seu espaço físico e moral.
Logo, interessa-me aqui mapear e resgatar a possível margem de manobra e
iniciativa de alguns vendedores no sentido de viabilizar direitos que não se realizam em
procedimentos formais, mas através de elaborações simbólicas e performáticas em
contraste com atitudes de desconsideração ou não reconhecimento.
2.6 – Performance em dois planos.
Segundo Bourdieu, a força das expressões não pode ser buscada nas próprias
palavras, mas no poder delegado de seu porta-voz. A autoridade da linguagem vem de
fora. “As condições a serem preenchidas para que um enunciado performativo tenha
êxito se reduzem à adequação do locutor (ou melhor, de sua função social) e do discurso
que ele pronuncia” (Bourdieu, 1996b: 89).
68
Para que o “comercial” ou qualquer forma de anúncio do vendedor tenha êxito,
ou acabe numa venda, é necessário que o locutor, antes de tudo, esteja imbuído de
“autoridade” para pronunciá-lo. No entanto, esta legitimidade não é dada, é preciso
conquistá-la. São verdadeiras operações de magia social.
Não basta que o vendedor seja compreendido, é preciso que ele seja conhecido e
reconhecido enquanto pessoa moralmente aceita, como um trabalhador hábil, que gera
cumplicidade, e que seu discurso tenha efeito. Ele, portanto, deve seguir toda uma
forma de se manifestar, uma etiqueta cercada de gestos e maneiras adequadas de
comportamento. Ou seja, para que toda sua rotina de venda, que engloba desde comprar
bala, ensacar, solicitar entrada ao motorista, entrar nos ônibus, cumprimentar os
passageiros, fazer o “comercial”, aguardar alguma receptividade, vender, despedir-se e
sair, funcione e opere é preciso que o vendedor, ao se apresentar, seja percebido como
trabalhador legítimo, confrontando as visões estereotipadas acerca de sua atividade.
Todas as maneiras de falar, de escolher as palavras mais adequadas, o tom mais
confortável, o modo de se portar, de gesticular, de se dirigir, são estratégias pensadas e,
sobretudo, interessadas na manipulação simbólica, no sentido de construir ou
desconstruir toda uma representação do que os passageiros e outros agentes têm dos
vendedores. De acordo com Bourdieu, estas “lutas entre classificações” ou “luta entre
representações” giram em torno de interesses materiais bem como simbólicos e podem
ser uma “luta pela definição da identidade ‘regional’ ou ‘étnica’” (Bourdieu, 1996b).
Entre os vendedores, todas as tentativas para afastar as desqualificações ou os estigmas
que permeiam sua figura, são lutas por reconhecimento social, pela consagração da sua
condição de trabalhador moralmente legítimo.
Esta identificação encontra sua realização na manifestação ou no ato
performático através do qual o sujeito antes ignorado, negado e reprimido, torna-se
visível e manifesto tanto para os outros quanto para si mesmo, atestando sua existência
enquanto ser conhecido e reconhecido. Ele passa agora a existir socialmente e também a
ser percebido como distinto. Através de todo um trabalho de dramatização, o vendedor
consegue, enunciando determinadas palavras, torná-las comuns e comunicáveis e, por
conseguinte, sensatas e socialmente sancionadas, rompendo, com isso, algumas
barreiras sejam elas institucionalizadas ou interiorizadas.
Neste sentido, me lembro de várias narrativas que sugerem a superação de
alguns obstáculos. Quando indaguei Marcos sobre o motivo pelo qual ele decidiu
trabalhar no ônibus, ele imediatamente respondeu “necessidade extrema”, em seguida,
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comentou que teve que enfrentar tanto a “vergonha” quanto “uma barreira social” criada
por ele e pela sociedade. E para quebrar essa barreira, ele teve que passar por
necessidade.
A eficácia das representações vai depender, portanto, da força das palavras e do
respeito e reconhecimento dos quais os vendedores são investidos. É a partir desta
legitimidade conferida por uma manifestação pública de “necessidade” e “esforço” que
o trabalhador é reconhecido coletivamente, sendo designado como sujeito autorizado,
inclusive para transgredir a ordem ordinária.
Vimos que toda a atuação dos vendedores passa por um trabalho de
convencimento e sensibilização que percorre seu discurso e suas variadas maneiras de
anunciar sua mercadoria e abordar os futuros compradores. Além desta esfera mais
pragmática do ato performático, gostaria de apresentar outro plano possível para esta
reflexão.
Se contemplarmos a perspectiva de Bauman (1978) de que uma performance
pode ser considerada como um modo de fala e de comunicação, podemos compreender
a ação do vendedor como um fenômeno comunicativo que envolve discursos, formas
artísticas, representações, audiência e cenário. Seguindo este plano conceitual, a
performance aparece como uma troca comunicativa e serve para que o receptor
interprete o que é dito em um sentido especial, ou melhor, não tomando as palavras
sozinhas, no seu sentido convencional e literário, mas simbólico. Desta forma,
representa um plano, ou frame interpretativo no qual a mensagem dita precisa ser não só
escutada, mas compreendida. A performance enquanto um modo de comunicação verbal
consiste em uma demonstração de competências comunicativas. Estas residem no
conhecimento e habilidade para falar de maneira socialmente apropriada. Mais
importante do que é relatado, é como é relatado.
No caso dos vendedores ambulantes, estes estilos variam conforme o público, o
ambiente, as mercadorias e as situações de conflito ou perigo. Emerson que, em 2004,
trabalhava nos ônibus, mas em 2006 decidiu trabalhar parado em um ponto, me disse
que tinha três tipos de público diferentes e para cada um tinha uma abordagem
específica, variando o tom, as palavras e o nível de intimidade.
“São vários níveis de pessoas, eu trabalho com três níveis: classe baixa,
classe média e classe alta. Tenho que falar em três tons diferentes. Classe
alta é um tom, um tipo de conversa, classe média outro tipo de conversa,
classe baixa outro tipo. A pessoa chegou de terno:
70
- Bom dia!
- Bom dia, bala de tal...
- Mais alguma coisa, senhor?
- Não.
- Muito obrigado, bom dia de trabalho.
Pronto, ele quer logo um objetivo, não quer ficar conversando,
enrolando. Objetivo, rápido. A classe baixa chega, conhece do dia a dia:
- Como é que está, tudo bom, Emerson?
- Como foi o dia de trabalho?
Tem aquela classe também que você tem que saber conversar com eles,
fica olhando o que ele quer. É o indeciso. Você tem que decidir rápido,
não pode ter fila. O mais importante é você ter rápida habilidade de
trabalho”. (Emerson)
A habilidade do vendedor está ainda na sua capacidade em chamar atenção, no
seu poder de envolvimento, convocando os pretensos compradores para participarem de
seu “espetáculo”, assumindo uma atitude colaborativa perante a expectativa depositada.
Diante do apelo conferido, o público deve não apenas escutar e entender, mas se
envolver na troca, que extrapola as formalidades comerciais. Deve, portanto,
compreender os códigos, as gírias, as linguagens figuradas, conferindo legitimidade ao
vendedor e à sua demonstração, para que esta tenha êxito e garantia moral, por mais
transitória que seja.
Este imperativo da encenação, da criatividade e da originalidade se faz tão
presente que, certa vez, conversando com um vendedor em Botafogo, ele contava que,
depois de muitos anos na “pista”, começava a sentir certa insatisfação em ser camelô,
justamente por tratar-se de uma “rotina”, um trabalho que requer bom-humor, simpatia e
invenção. De certa forma, ele não estava mais disposto a atuar neste tipo de cenário.
“Onde mora a minha insatisfação em ser camelô, hoje? Particularmente
eu não gosto mais, acho que virou uma rotina, uma monotonia, entrar no
ônibus, estar cumprimentando passageiro. Como qualquer outro trabalho,
não é todo dia que você está legal, tem dia que você não está a fim de dar
bom dia a ninguém, você tem que ser simpático, manter aquilo e eu não
sou muito ator, não” (Cláudio).
O ato performático pode não ser realizado, passar despercebido ou ser negado.
Esta negação pode ocorrer devido a uma falta de habilidade do vendedor, por não ter
seguido certas regras de conduta e etiqueta ou ainda por indisposição do passageiro. Em
71
mal sucedida. As razões variam desde o “cansaço”, nervosismo, “entrar de cara
emburrada nos ônibus”, maior controle dos fiscais, aumento do número de camelôs, até
situações de preconceito e desvalorização pelo seu trabalho.
No entanto, não me interessa aqui problematizar sobre a qualidade de uma
performance (como técnica de apresentação de si), nem opor uma boa a uma má, mas
identificar a forma como o vendedor opera, assim como os atributos lingüísticos,
simbólicos e interativos, que ele precisa desenvolver para ter eficácia e reconhecimento
em seu trabalho. Isto implica, portanto, saber com quem se relacionar, como e em que
circunstâncias.
2.7 – Interagindo.
O relacionamento envolve uma variedade de atores, papéis, atos e eventos que
não ocorrem isoladamente, mas interagem e são interdependentes. São relações que se
estabelecem fora das convenções ou das atitudes esperadas, configurando-se como
formas criativas de adaptação a uma situação normativa.
Bauman esclarece que há uma tendência para que o ator performático seja, ao
mesmo tempo, admirado e temido – admirado por sua habilidade artística e pela
quantidade de experiências que eles promovem, temido pela possibilidade que
representam de subverter e transformar o status quo. Inclusive aqui, dentro do campo de
possíveis, pode residir uma razão para que o performático seja constantemente
associado à marginalidade e desvios. Desta forma, procuro perceber em que medida o
uso estratégico de determinadas habilidades serve para transformar uma situação de
desconsideração e depreciação em admiração e respeito.
Neste sentido, é importante compreender interação, encontro ou desempenho na
perspectiva empregada por Erving Goffman (1999), ou seja, como atividades de
indivíduos ou grupos de indivíduos visando influenciar outros, em presença física
imediata (Goffman, 1999: 23). A atuação dos vendedores nos ônibus envolve interações
com motoristas, cobradores, fiscais, passageiros, guardas e outros atores, possibilitando
o surgimento de relacionamentos sociais.
Goffman está interessado em perceber “a maneira pela qual o indivíduo
apresenta, em situações comuns de trabalho, a si mesmo e as suas atividades às outras
72
pessoas, os meios pelos quais dirige e regula a impressão que formam a seu respeito e as
coisas que pode ou não fazer enquanto realiza o seu desempenho diante delas”
(Goffman, 1999: 9). Por isso, enfoca as expressões emitidas, de tipo mais teatral e
contextual, de natureza não-verbal e presumivelmente, não-intencional, acentuando o
caráter moral das projeções nas interações. Qualquer indivíduo que possua certas
características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o
tratem de maneira adequada. Ao se projetar sobre o outro e apresentar características da
situação, ele exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-los e
tratá-los de acordo com o que esperam.
Quando um indivíduo se apresenta diante de outros, ele emprega algumas
técnicas para controlar a impressão que estes recebem da situação, além de solicitar que
seus observadores levem a sério a impressão sustentada por ele, que acreditem nos
atributos que aparenta possuir. No entanto, o próprio indivíduo deve se convencer do
seu espetáculo. Quando ele não crê em sua própria atuação e não se interessa pelo o que
seu público acredita, podemos considerá-lo como um “cínico”, alguém que não tem
compromisso profissional.
Em contrapartida, para acentuar a carga de dramatização de suas táticas
performáticas, o indivíduo deve incluir, em suas atividades, sinais que acentuam e
configuram fatos confirmatórios que, sem isso, poderiam permanecer despercebidos ou
obscuros. Se a atividade do indivíduo tem que tornar-se significativa para os outros, ele
precisa mobilizá-la de modo tal que expresse, durante a interação, o que ele precisa
transmitir, para que não passe por desacreditado.
Como alerta Goffman, “uma condição, uma posição ou um lugar social não são
coisas materiais que são possuídas e, em seguida, exibidas; são um modelo de conduta
apropriada, coerente, adequada e bem articulada. Representado com facilidade ou falta
de jeito, com consciência ou não, malícia ou boa-fé, nem por isso deixa de ser algo que
deva ser encenado e retratado e que precise ser realizado” (Goffman, 1999: 74).
Partindo desta prerrogativa, podemos perceber a necessidade do ambulante em
dramatizar o próprio trabalho como forma de tornar visíveis custos, dificuldades e
atributos até então invisíveis. A dramatização é um recurso que o ator manipula, na
tentativa de tocar emocionalmente o destinatário. A atividade do vendedor, canalizada
para a comunicação, vai requerer planejamento da fala, do tom de voz, dos gestos, da
postura, dos trajes, a fim de desempenhar bem sua tarefa, mobilizando tanto o seu
73
quanto o comportamento do passageiro para fazer uma demonstração de eficiência da
qual pode derivar sua reputação profissional.
Uma representação também oferece uma concepção idealizada da situação.
Goffman esclarece que quando um indivíduo se apresenta diante dos outros seu
desempenho tende a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos
pela sociedade. Neste sentido, quando o camelô se apresenta para motoristas,
passageiros, fiscais ou para a própria pesquisadora, e evoca que é pai de família, que
tem filhos para sustentar, que tem que levar o sustento para casa, ele está oferecendo
para seus interlocutores uma imagem de provedor que incorpora valores de
reconhecimento social. Não há aqui uma gratuidade do que é escolhido na fala, mas
uma aprendizagem de saber negociar moralmente com toda uma fronteira de
ilegalidade. Ser trabalhador, e ainda ser responsável pelo abastecimento material de
casa, traz uma carga de responsabilidade moral cujas características são valorizadas e
legitimadas pelos outros atores. São símbolos e provas morais que ocupam posição
relevante de afirmação e manutenção no universo social no qual os vendedores
circulam.
Os vendedores tendem a abandonar ou esconder as ações ou indícios que não
são compatíveis com os padrões ideais da representação ou de sua pessoa, por isso,
procuram se vestir bem, evitam arrumar confusão, falar alto, pedir ou implorar, enfim,
“incomodar o passageiro”. No entanto, apesar de todas as precauções e artimanhas, a
platéia (ou os passageiros) pode não compreender o sentido de algum sinal transmitido
ou emprestar um significado desdenhoso ou risível a atitudes ou acontecimentos
fortuitos. Não basta dizer que o público seja cético ou o espetáculo falso, mas
reconhecer que discrepâncias e imprevistos acontecem. Como adverte o autor, não
devemos considerar as representações sob um ponto de vista mecânico, uma vez que
estão sujeitas a rupturas. Gestos involuntários acontecem e podem não ser oportunos a
determinadas situações, principalmente quando o que se busca é a interação.
Considerando que a atividade orientada para tarefas do trabalho, através da
representação, tende a converter-se em atividade orientada para a comunicação, o
vendedor deve estabelecer um controle sobre suas práticas a fim de manter um consenso
sobre sua atuação. Como alerta Goffman, tendo como propósito a interação, o ator deve
manter certa coerência expressiva tomando cuidado para prevenir o público de possíveis
desacordos.
74
Neste sentido, em lugar de realizar sua tarefa e dar vazão a seus sentimentos de
forma descomedida e despropositada, ele deve expressar a realização de sua tarefa e
transmitir de modo aceitável seus sentimentos. Como visto, os ambulantes lançam mão
de estratégias retóricas para construir uma representação legítima de sua atividade. O
camelô, em um plano performático pragmático, busca, através de um jogo cerimonial
que funciona como uma espécie de demarcação de território, interagir com um público
que, de certa forma, exige esta encenação. O que interessa, no próximo capítulo, é
fundamentalmente perceber como os vendedores ambulantes se vêem frente aos outros
sujeitos nestes jogos fronteiriços.
75
CAPÍTULO III
FRONTEIRAS: PERSONAGENS E PROJETOS
3.1 - Relação com passageiros.
Como vimos, o mercado
18
, no qual os vendedores circulam, aparece como um
momento de trocas, nem tão efêmeras, mas são experiências autênticas de construção de
relações sociais diretas e personalizadas, assim como de um trabalho legítimo e
moralmente aceito. Este processo supõe ainda a mobilização e criação de todo um
sentido “social” da atividade do vendedor.
Neste sentido, Wagner, vendedor de 32 anos, que já está “na pista” há quinze,
justificou a importância do seu trabalho para a dinâmica de mercado da cidade como um
todo, reforçando a racionalidade econômica de sua atividade.
“Eu vou te dar um exemplo: se acabar o nosso trabalho, a fábrica de doce
lá que vende para a gente vai sentir também, porque a gente movimenta
um mercado grande. A gente movimenta um mercado enorme. Você vai
na Central vai ver o monte de camelô que está comprando doce essa
hora. Fora os que já compraram na parte da manhã. Agora, se acabar, se a
gente deixar de comprar, a UFA
19
cai. Se a gente parar vai ter muita
gente desempregada aí”. (Wagner)
Além desta “função social”, muitos vendedores afirmam que o mais interessante
em seu trabalho é realmente o contato com as pessoas, que estas “raramente reclamam”,
que “aceitam seu trabalho de forma nobre”, que “ficam admirados quando entra camelô
no ônibus”.
18
Refiro-me a este mercado, enquanto um espaço público, econômico, político e simbólico que envolve
trocas comerciais, redes de relação, afirmação de poder, reconhecimento social, negociação e disputas por
espaços físicos e morais. Este mercado não deve ser analisado pela perspectiva de um modelo econômico
clássico, uma vez que supera a problemática de sua auto-regulação, em que as leis predeterminam o
comportamento dos agentes. Ao contrário, neste espaço dinâmico e contínuo, o conhecimento prático
aparece como recurso chave capaz de extrapolar as regras oficiais, gerando novas práticas sociais e
relações de trabalho.
19
UFA é uma loja se atacados que vende doces, balas e outras mercadorias, situada na Central e em
Madureira, na qual os vendedores procuram se abastecer.
76
“Trabalhar no ônibus é interessante porque você se diverte, conhece
gente nova, faz amizade com as pessoas, pega mais intimidade”. (Rafael)
“O contato da gente com o passageiro é tão intenso que muitas vezes eu
falto uma semana para resolver problemas e tem passageiro que me cobra
‘ué, você não veio essa semana, por quê? Eu não vi você, não trabalhou
essa semana?’. Eu ganho muito elogio pela forma de trabalho: não forçar,
não pedir, nem implorar, simplesmente vender”. (Mauricio)
Estas falas denotam bem a necessidade do vendedor de desenvolver algumas
estratégias para que sua venda tenha eficácia e seu trabalho seja reconhecido como
legítimo. Uma delas é procurar ser educado, estreitar os laços com a “clientela”, fazer
amizade, ter intimidade, construindo um grau de confiança e respeito. Conversando com
Robson, ele discorria, em um tom pouco modesto, sobre sua relação com os
passageiros, ao mesmo tempo em que destacava uma maneira adequada de tratamento.
“Só não gosta de mim quem não gosta de vendedor dentro do ônibus.
Melhor das vezes é aquele que não gosta de vendedor, passa a gostar de
mim pela minha pessoa, não pelos meus doces. Quando eu to dentro do
ônibus, eu to ali para vender. E venda é o seguinte: compra quem quer e
quem tem. Eu procuro cativar, fazer eles rir, ter carisma com eles. Eu sou
chato, quando eles não falam comigo, eu falo com eles. Tem que ser
educado, “boa tarde”, depois de dez vezes eles me vendo no mesmo
lugar, já passa a ser meu amigo, mesmo que ele não goste de mim. Ele
vai ver meu tratamento com as outras pessoas e vai passar a gostar”.
(Robson)
Ao comentar sobre a relação com os passageiros, além de destacar a necessidade
de “boas maneiras”, os vendedores procuram enfatizar a coragem, determinação e luta
do seu trabalho em oposição à “preguiça” e “vergonha” de outros atores. Estas
qualificações estão associadas, como veremos adiante, a figuras que normalmente não
possuem tanto prestígio social, como os pedintes, ladrões e malandros. Perguntei, certa
vez, ao Alex, como os vendedores eram vistos pelos passageiros e ele respondeu,
valorizando seu esforço e apontando algumas polaridades.
“Ah, os passageiros, quando você entra no ônibus, ficam admirados.
Sabe por quê? Porque tem poucas pessoas que têm a coragem de fazer as
coisas que a gente faz. Pegar assim uma mercadoria e trabalhar, tem um
montão de pessoas que preferem ficar pelo meio da rua, todo sujo,
pedindo dinheiro do que pegar e sair para trabalhar. Às vezes acha que é
vergonha trabalhar, mas eu acho que tem pessoas que têm vergonha de
77
entrar no ônibus para poder vender. A gente trabalha dia de sábado,
trabalha feriado, trabalha domingo. A gente não tem preguiça”. (Alex)
Outro vendedor, falando sobre o cotidiano do trabalho, indicou a importância de
comunicação com os passageiros, além de reforçar a imagem de “coragem” e
“disposição”.
“Eu acho legal, o dia a dia é maneiro, conversar com as pessoas. Você se
comunicar com os passageiros dentro do ônibus, eu acho o máximo. Que
ali geral está prestando atenção no que você está falando e o que você
está divulgando. Não é qualquer um que tem a coragem de chegar dentro
do ônibus e no meio de dez ou vinte, o que for, tanto de pessoas e
desenrolar igual a gente tem, tá ligado, a disposição... O dia a dia da
gente é esse mesmo”. (Ricardo)
Mais uma vez, ao conversar com Sérgio, ouvi uma reivindicação por respeito ao
seu trabalho em virtude de estar trabalhando e não pedindo. Quando perguntei se os
passageiros o tratavam bem, ele emendou:
“Tem que tratar, né, porque a gente está trabalhando, não está pedindo
nada. Não está falando que o filho está no hospital, que a mulher está
morrendo. A gente trabalha, faz o nosso comercial, a gente não está
pedindo esmola. É uma sobrevivência. A gente não está pedindo nada a
ninguém, compra quem quer e quem pode, quem está disponível, acho
que é por aí”. (Sérgio)
No entanto, estas situações de empatia podem não se efetivar. Como alertou
Regina, “alguns são meio antipáticos” e “às vezes tem gente que faz cara feia”. Já
Silveira reconheceu certa ambigüidade e desqualificação no tratamento dos passageiros.
Por isso, procura valorizar o seu trabalho, ressaltando toda a parte criativa, além de todo
um rigor, como se fosse um trabalho formal.
“Tem uns que tratam bem, tem outros que faz de conta que não está
acontecendo nada. Mandam você procurar um trabalho, não enxergam
isso aqui como trabalho. Mas isso aqui é mais do que um trabalho, isso
aqui você dá de cara com gente que você nunca viu na vida. A gente é o
grande artista da rua. Desde que eu saio de casa para vender, eu tenho
horário para chegar aqui e horário para sair, era igualmente eu estar
trabalhando de carteira assinada”. (Silveira)
78
Seguindo este estilo narrativo, Cláudio demonstrou certo descontentamento
justamente nos momentos de não reconhecimento pelo seu trabalho, como na “atitude
blasé” por parte de alguns passageiros.
“O lado que rola insatisfação são aqueles passageiros que não gostam
muito, se sentem incomodados. Você chega, ele olha para outro lado, tem
alguns que põem a mão no ouvido para não te ouvir. Alguns ignoram a
sua presença, isso é chato. Toda vez que isso acontece, menos ainda eu
gosto de ser camelô”. (Cláudio)
No entanto, garantiu conseguir reverter este quadro, ignorando-os e sendo
“simpático” com outras pessoas.
“Eu procuro ser simpático, porque se você deixar se envolver... Eu tenho
uma maneira de pensar, eu acredito que essas pessoas não têm paz
consigo mesma, são pessoas chatas, então se você se deixar levar por
essa atitude delas, você se iguala a elas. Na maioria das vezes ignoro a
atitude dela, como ela me ignorou e procuro ser simpático e não me dirijo
a ela”. (Cláudio)
Por fim, destaco uma fala que resume bem a dificuldade deste trabalho e a
necessidade de valorizar a “coragem” de ser camelô, de estabelecer contato com os
passageiros, “contornar” as situações adversas, levando bom humor e carisma.
“É um trabalho de coragem, porque você incomoda passageiro, quando
você entra tem que contornar a situação para levar o bom humor para
eles, para eles não ficarem chateados, estão cansados do trabalho, eu
respeito. A gente tem que entrar com nosso bom humor para tentar passar
para eles. Porque você já está irritando a viagem deles, o silêncio deles.
Esbarra neles, eles resmunga, reclama com o motorista. ‘Desculpa
passageiro, incomodar o silêncio da sua viagem. Por quê? Estou
desempregado não tem outra coisa para fazer. Esta é a opção que eu
escolhi para trabalhar, sei que estou incomodando a sua viagem, o seu
silêncio, o seu descanso, não leve isso em consideração. Estou levando
mercadoria de qualidade’. E aí a gente vai tentando aquebrantar o
coração. É difícil, mas vai”. (Eduardo)
É interessante notar que, nesta passagem, Eduardo destaca o “desculpe
incomodar o silêncio da sua viagem” como ponto chave para, através de uma postura
humilde, obter reconhecimento e consideração pela sua atividade. Tudo isso leva a uma
narrativa moral regada de palavras capazes de gerar sentimentos compatíveis com a sua
79
figura. Além da relação com os passageiros, outra conexão fundamental para construir
pontes de empatia e garantir seu espaço na rua, é com os fiscais, motoristas e
cobradores.
3.2 - Relação com fiscais.
A relação dos ambulantes com os fiscais envolve respeito pelo profissional da
empresa e, por sua vez, consideração, ainda que com uma parcela de restrição, pela
situação social do camelô. Conforme Alex comentou, “fiscal não perturba, é só para
poder anotar o horário do ônibus”. No entanto, é necessário construir uma relação de
amizade e tolerância, pois é mais um profissional das empresas de ônibus que pode
facilitar ou inibir o seu trabalho. Dentro deste universo de possibilidades, acabam
seguindo papel semelhante ao dos motoristas.
“Ah, os fiscais é como se fosse o motorista, é relativo também, muitos
deixam, muitos escrevem também”. (Emerson)
Um dia cheguei, no final da tarde, em Botafogo, e não encontrei ninguém
ensacando, todos já tinham subido (em direção ao Humaitá). Sentei-me em um banco e
fiquei o restante do dia conversando com os fiscais que ali se encontravam. Falei da
pesquisa que estava realizando e comecei a puxar papo a fim de entender a dinâmica
deles nas ruas.
Um fiscal esclareceu que, na frente deles, os camelôs não pegam o ônibus da
empresa para qual trabalham por respeito ao seu ofício. Mas, no ponto seguinte, fora de
sua visão e responsabilidade imediata, pegam. Situação semelhante também é relatada
por Robson que, através de uma relação de consideração, procura evitar conflitos,
transpondo as barreiras do legal e construindo relações morais.
“Eu não posso atrapalhar o trabalho deles. Porque se eu não estiver no
ponto junto com eles, eu posso até trabalhar. Tem empresas que não
permitem, nenhuma delas permite, tem umas mais chatas que as outras,
mas na minha parte, eu faço o possível para não atrapalhar o fiscal para
mim poder trabalhar tranqüilo”. (Robson)
80
Questionei ainda o mesmo fiscal como ele via o trabalho do camelô nos ônibus.
Ele me explicou que “como cidadão, a gente entende, até alivia, mas como profissional,
fica difícil, porque bota o nosso trabalho em risco. Aí vai ser mais um camelô na rua”. É
interessante notar que quando ele afirma que como “cidadão”, ele deixaria o camelô
trabalhar, parece-me que está em jogo aqui uma dimensão moral, de respeito e
legitimidade do vendedor. Mas, situando-se no campo institucional, sabendo que é
proibido, não tolera, ainda mais porque poderia comprometer sua posição na empresa,
correndo o risco de se tornar “camelô”.
Francisco, outro fiscal, me contou que, por ele, ajudava “os meninos”, mas que
por normas da empresa não deixa. Informou que sentiu uma diminuição no número de
vendedores por causa da roleta eletrônica e das câmeras nos carros. Acrescentou que os
rodoviários são muito pressionados pelas empresas para seguir corretamente as normas,
devendo evitar tanto camelô quanto pedinte de entrar nos ônibus, embora estas não
sejam diretamente suas atribuições. Por fim, acrescentou que “para trabalhar na rua, tem
que ter jogo de cintura”. Este comentário faz lembrar que as regras em jogo, embora
formalmente estabelecidas, são negociadas informalmente, por relações de amizade,
respeito e reciprocidade. Inclusive ele confirmou que as empresas sabem da necessidade
desta flexibilidade.
O intercâmbio entre questões institucionais e relações pessoais é tão presente
que o cálculo e o critério dos fiscais não é algo objetivo, mas está baseado em relações
intersticiais que pressupõem contextos específicos de reconhecimento e solidariedade.
No entanto, dizer apenas que são relações pessoais, de proximidade ou de reciprocidade
é uma análise muito reduzida, sendo preciso examiná-las, assim como o pretenso
“poder” que elas têm para resolver impasses explicativos. Estas relações não estão em
oposição a uma suposta impessoalidade do universo institucional, mas situam-se lado a
lado.
Desta forma, busco evidenciar a importância delas para o funcionamento deste
tipo de mercado. Não cabe aqui pensar a amizade como um tipo de relação fixa, mas
perceber a existência de relações que escapam às posições numa dada configuração.
Vale esclarecer que, em certa medida, estarei operando com determinadas
simplificações, mas sempre alertando para a multiplicidade de posições. Assim, busco, a
partir de determinadas situações, recuperar a dimensão estratégia das relações de
amizade, demonstrando sua importância para inverter hierarquias ou ainda criar
impasses.
81
Conforme relatou Cláudio, não é com todo fiscal que se pode estabelecer uma
relação de confiança. É preciso saber com quem lidar, de forma a assegurar sua posição
neste tipo de sociabilidade urbana.
“Não gosto de fiscal chato. Tinha um amigo aqui, que era fiscal, fazia
essa área aqui de Botafogo, a gente sempre conversava. Um dia eu vi ele
dizendo que queria escrever o motorista, mandar para a garagem, dar
uma notificação porque tinha camelô no carro. Eu perguntei ‘por quê?’
Ele falou: ‘porque não gosto desse motorista, ele é abusado’. Eu tentei
explicar que fazendo aquilo ele estaria me prejudicando também.
Particularmente o motorista era meu amigo. Ele me ignorou, enfim, não
gosto desse tipo de fiscal, cortei relações com ele, porque eu percebi que,
na verdade ele não gosta de camelô. Poderia esperar outra oportunidade.
E se um fiscal pega motorista com camelô, obviamente a empresa vai
fazer uma represália, e isso prejudica o camelô, porque o motorista vai
ter que parar de levar”. (Cláudio)
Desta forma, neste universo, as categorias “trabalho” e “ajuda” são
indissociáveis e estão permeadas por relações
82
3.3 - Relação com os rodoviários.
Vimos que, por mais que a lei formalizada impossibilite o vendedor ambulante
de comercializar nos ônibus, as regras do jogo giram em torno de ações cotidianas (ou
pragmáticas) perpetradas pelos agentes sociais, muito mais do que por instituições
especializadas no controle político, econômico e urbanístico. Seu acesso aos ônibus está
condicionado à palavra (ou gesto) final do motorista.
20
No entanto, o cobrador, na sua posição dentro da hierarquia da empresa, também
pode ser um elemento crucial nesta teia de relações. Robson chamou atenção para o fato
de tratar bem tanto motoristas, quanto cobradores, pois estes últimos, em alguma
medida, podem ter influência sobre o seu trabalho e oferecer, quem sabe, certa garantia
futuramente.
“Da minha parte comigo cooperam porque eu falo com os cobradores,
tem gente que entra só fala com o motorista. Eu sempre falo com
cobrador, porque eu não sei se ele vai virar motorista, de repente, a
intenção do cara é crescer na firma e virar motorista. De repentemente,
eu não tratando bem quando ele está na roleta, mais pra tarde,
futuramente, quando ele estiver no volante, ele não vai me levar, então eu
prefiro tratar bem até o cobrador, até o fiscal. Eu não perco nada com
isso”. (Robson)
Apesar de ser importante “agradar os dois”, o motorista é o responsável direto
pelo carro. Na sua relação cotidiana com os vendedores, representa certa ambigüidade.
Ao mesmo tempo em que aparece como extensão de um braço das legalidades paralelas
e justapostas (prefeitura, SMTU, empresas de ônibus), também passa a ser o agente em
potencial capaz de permitir brechas nestas normatizações.
Robson mais uma vez esclarece sobre a necessidade de estabelecer uma relação
mais cordial possível, agradando aqueles que têm maior sensibilidade e identificação
moral.
“Da minha parte tem que ser a melhor possível. Porque eu gosto de ser
profissional no que eu faço. O motorista que não leva é porque não leva
ninguém, até passageiro quando quer pagar, ele não leva. Agora, o
20
Um dia tentei entrar no ônibus junto com um vendedor. No entanto, de dentro do carro, o motorista fez
um sinal com a mão, demonstrando “sujeira”. O vendedor me explicou que provavelmente deveria ter um
fiscal no interior, por isso nosso acesso foi gestualmente negado.
83
motorista que abre para a tiazinha, leva deficiente, aquele ali, com
certeza, se alguém pedir, ele vai deixar trabalhar. Fora isso, fica difícil, a
gente pede, pede, e toma bastante não”. (Robson)
Muitos motoristas ainda não permitem devido à presença de fiscais,
despachantes, inspetores ou até do “secreta”
21
dentro dos ônibus, nos pontos, ou ainda
por recomendação das empresas que alertam para o fato de que, além de tal atividade
ser proibida, o “ferro” que eles carregam pode acabar batendo nos passageiros,
machucando-os e, por conseguinte, prejudicando seus lucros.
“Para eu poder trabalhar, só o motorista que sabe, se o motorista deixar,
eu entro. Mas perto do fiscal, o motorista fica com medo, com medo do
fiscal anotar na prancheta que ele deixou camelô entrar e a empresa
cobrar multa”. (Alex)
Apesar desta relação tensa e perturbadora que pode se estabelecer com os
rodoviários, os vendedores, para serem reconhecidos como pessoas “autorizadas” a
trabalhar no interior dos ônibus, buscam se inscrever numa rede de relações como forma
de assegurar seu trabalho.
Como a regra se constitui a partir de uma dinâmica de regulamentações,
manipulações e destreza, as redes funcionam como procedimentos estratégicos, uma vez
que podem aparecer tanto como veículo potencial para o fluxo de informação e fofoca,
quanto como um meio de execução de transações. (Mitchell, 1969)
Para Mitchell, o uso da noção de rede deve levar em conta a participação dos
indivíduos enquanto agentes que têm uma parcela de escolha, enfim, que não só se
submetem às regras, mas atuam no sentido da reelaboração dessas molduras normativas,
a partir de interesses específicos.
Partindo das relações de interação como um ponto fundamental para pensar a
ação do indivíduo, a noção de rede tamm é crucial para compreender as dinâmicas
sociais, uma vez que apresenta todo um emaranhado de possibilidades de organização
entre os indivíduos. Como Barnes salienta, esta noção pode ser “útil na descrição e
análise da relação entre um mercado e sua periferia, provisão de serviços e circulação de
bens e informações num meio social não-estruturado” (Barnes, 1987: 161).
21
O “secreta” pode ser amigo e parente do empresário ou até um aposentado que aceitou o “bico” para
entrar nos ônibus, pagar passagem, e ficar observando se o cobrador ou o motorista faz alguma coisa
errada. Nesta tarefa de vigilância, denúncia e desconfiança, cobre uma extensão tão ampla que acaba
sendo todos e ninguém. Qualquer passageiro pode ser “secreta” ou mesmo o colega, com quem se
trabalha todo dia. Ele está aí para dar conta da onipresença do patrão. (Caiafa, 2002)
84
Os vendedores não se deixam levar por um maniqueísmo absoluto. Suas
avaliações extrapolam o “bom ou mau” motorista e abrangem experiências muito mais
complexas do que o simplismo dos padrões. Buscando reconhecimento entre os
rodoviários, identifiquei, a partir dos discursos dos vendedores, alguns contornos
cruciais nesta sociabilidade, tais como relações de amizade.
“Com os motoristas você tem que fazer amizade e mesmo fazendo
amizade, às vezes ele está de mau humor e não quer levar ninguém”.
(Alex)
“Você tem que ser amigo dele, não adianta você ficar nervoso e brigar
com ele porque você depende de trabalhar, de fazer o seu dinheiro. Não
tem outra oportunidade, a oportunidade é essa”. (Sérgio)
“A maioria dos pilotos sufoca a gente legal, racha a cara mesmo, mas tem
vários também que estão fortalecendo na pista aí, que são ‘sangue-bom’”.
(Tiago)
“Só quem leva é os parcerão mesmo, como se fosse teu irmão, os primo.
Você tem que ser amigo dele. Você tem que saber ganhar o motorista, o
cobrador e o fiscal. Você ganhou eles, você ganhou tudo”. (Emerson)
“Porque eles entendem a nossa causa, eles sabem que a gente está
trabalhando também. E fica uma amizade boa como colega de serviço,
porque todos os dias eles estão rodando, todo dia a gente está
trabalhando. Então, fica uma certa amizade”. (Wagner)
Como assinala Vale de Almeida (1995), os princípios éticos da amizade também
são usados na ética do trabalho. O respeito pode significar, por um lado, distância
social, mas em outra acepção, designar “o resultado de características morais e éticas
dos iguais sociais que os tornam em pessoas dignas de confiança” (Vale de Almeida,
1995: 168). As noções de “sangue-bom”, “parceirão”, “primo”, “irmão”, “mano” e
“colega de serviço” veiculam a relação de respeito, amizade e confiança que os
vendedores procuram travar com os rodoviários, especialmente os motoristas.
Paralelo a este tipo de vínculo, percebi também um intuito de construir relações
de cumplicidade e respeito, através de categorias como “conceito”, “camaradagem”,
“sofrimento” e “paz”.
“Porque os motoristas das empresas que rodam este trajeto já te
conhecem porque a gente está no mesmo trajeto. Você vai tendo mais
85
conceito com os pilotos. Às vezes você está num canto, nem precisa
pedir, eles até chamam para você ir trabalhar”. (Wagner)
“Os motoristas são amigos, não é qualquer um que faz isso, chegar e
abrir a porta. Num ponto, eu até acho que ele está indo pela
camaradagem, por causa de quê? Porque ali é o emprego dele. Assim
como nós temos nossas famílias, ele também tem. Ele não vai perder o
emprego dele por causa de um camelô”. (Ricardo)
“O motorista que você conhece sabe que você está no dia-a-dia, no
sofrimento, trabalhando o mês todo, eles sempre estão levando. Pelo
motorista, a gente trabalha em paz”. (Rafael)
Acrescenta-se a tudo isso a necessidade de se estabelecer relações de troca e
gentileza. Se estas, por um lado, aparecem como um ato gratuito, por outro, trazem
consigo toda uma obrigatoriedade de retribuição, a fim de manter sua posição no
mercado.
“Aí você pega uma balinha e dá para ele, para ficar tranqüilo”. (Tiago)
“Se o motorista levar, a gente arranca uma paçoca e dá para ele, um
bombom, a gente não faz esforço, a gente quer entrar no ônibus...”.
(Emerson)
“Até mesmo para pedir para o motorista, pede com educação: ‘bom dia,
piloto, com todo o respeito, será que dá condições para trabalhar na
humildade, por favor?’ Aí ele vai e deixa”. (Rafael)
Se considerarmos como Mauss (1974) que um sistema de prestações e
contraprestações não representa simples trocas de bens e nem é um mercado entre
indivíduos, mas congrega coletividades, devemos pensar os atos de dar, receber e
retribuir estando permeados por uma linguagem moral. Estas relações de obrigação e
gratuidade abrem espaço para negociação, uma vez que existem códigos morais
compartilhados. Estas questões já foram vistas no capítulo anterior, no entanto, vale
recuperá-las sob um outro viés.
Assim, o que nos interessa ressaltar aqui é que quando o vendedor solicita a
entrada no ônibus, argumentando que tem família, que precisa sustentá-la, quem
comparece neste “direito material” é uma figura moral que constrói sua biografia a
partir de um apelo ao “sofrimento”, à “humildade”, para se situar frente ao “direito
formal” (Weber, 1996). Não é qualquer imagem que tem uma eficácia dramática, mas a
“família” constitui um aspecto de maior legitimidade nesta gramática moral. O
86
motorista, por sua vez, pode negar sua entrada, pois também tem família e isso pode
colocá-lo em risco, levando-o até a perder o emprego. Sobre esta possibilidade,
Emerson comentou:
“Uma vez um motorista falou assim para mim: ‘se eu te levar, amanhã eu
87
dos que não a possuem, mas também qualificando diferentemente seus possuidores).”
(Guedes, 1999).
Já Mariza Peirano (1986) observa o caráter simbólico que os documentos
assumem no Brasil como símbolos de identidade cívica. Ao analisar dois tipos de
documentos, a carteira profissional e o título de eleitor, procura perceber como eles
acabam preenchendo a função de distinguir o cidadão do “marginal”, uma vez que são
fornecidos por órgãos públicos apenas àqueles que seguem os requisitos estipulados por
lei.
Desta forma, como se inserem as pessoas que não preenchem tais requisitos?
Seguindo o raciocínio de Wanderley Guilherme dos Santos
22
, a carteira profissional
tornou-se, a partir dos anos 1930, a “certidão de nascimento cívico” no Brasil, ou
melhor, passou a ser o documento comprobatório de cidadania. O status de cidadão,
portanto, era regulado pelo Estado e concedido àqueles que tinham sua profissão
reconhecida por lei.
A carteira de trabalho, dentre seus variados significados simbólicos, durante
muito tempo funcionou (e ainda funciona) como uma verdadeira carteira de identidade
ou como comprovante para a garantia de crédito ao trabalhador, como prova de que
esteve empregado em “boas empresas”, com assistência, de que é “confiável” ou capaz
de permanecer por muitos anos no mesmo emprego.
Parece que esta situação não mudou muito. A maioria dos vendedores nunca
trabalhou de carteira assinada. A reivindicação por um modelo oficial e reconhecido
legalmente aparece como um fator a mais de legitimidade do seu direito de ganhar a
vida trabalhando. Silveira, que há um ano trabalha de carteira assinada, reconhece que
“é melhor porque todo o mês você tem o certo, aqui [na pista] você está aventurando.
Às vezes tem, às vezes não”. No entanto, apesar de ter uma garantia, continua
trabalhando na rua, pois como alerta “a gente que já trabalhou aqui, não consegue ficar
só lá”.
Este vínculo com a rua é tão forte que Cláudio, que já trabalhou com carteira
assinada durante um ano, desistiu e voltou para rever os amigos, conforme conta. Por
22
DOS SANTOS, Wanderley Guilherme. (1979/81) Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus –
reflexões sobre a questão do liberalismo em LAMOUNIER, B. et al (eds) Direito, Cidadania e
Participação. São Paulo: TAQ. Apud: PEIRANO, Mariza. (1986) "Sem Lenço, Sem Documento:
Reflexões sobre cidadania no Brasil". Revista Sociedade e Estado, vol. 1, n.1, pp. 49-63.
88
isso, comenta: “tentei sair algumas vezes, mas parece que tinha um imã”. Na passagem
a seguir, ele sintetiza a experiência que teve na rua.
“Eu nunca tinha vergonha do que eu fazia, era minha área de trabalho,
que me dava recursos para sobreviver, me ajudou pra caramba porque
acabei crescendo na rua e tive a felicidade de ter uma cabeça voltada para
o bem. Tive algumas experiências ruins, mas consegui superar. Acho que
a rua acabou me dando uma estabilidade. Acabei tendo essa sorte, isso
me trouxe experiência, me trouxe responsabilidade cedo, hoje eu não me
sinto dependente das pessoas, eu aprendi a me virar cedo”. (Cláudio)
Se, por um lado, os vendedores têm como parâmetro um contrato em carteira e
com segurança, por outro, e com mais intensidade, buscam um trabalho autônomo, que
preze por liberdade, mas que preserva alguma parcela de risco e instabilidade. No
entanto, procuram, com insistência, afirmar o valor de seu trabalho e experiência de
vida, além de serem percebidos não só como “aceitáveis”, mas como trabalhadores
moralmente legítimos.
3.4 – Afirmando-se.
Em minhas conversas, verifiquei que os vendedores procuram, em diversos
momentos, construir uma imagem positiva a respeito de si e de seu trabalho. Uma das
possibilidades é ressaltar suas qualidades e experiências de vida, outra é se afastar das
figuras que tradicionalmente são marginalizadas, têm má reputação ou não são
reconhecidas como trabalhadores legítimos.
Cláudio, com quem conversei de forma muito descontraída, procurava discorrer
sobre seus pontos positivos e a facilidade de adaptação a situações difíceis,
principalmente em épocas de roleta eletrônica, câmeras de vídeo e competição.
“Eu acho que os camelôs têm potenciais que não é explorado, hoje existe
muitas empresas que se tivesse um camelô lá dentro ele poderia fazer
muita diferença, experiência de vida, de rua, de trabalho. As pessoas
olham para o camelô acham que é um cara leigo, sem conhecimento, sem
cultura e às vezes a pessoa se engana, na verdade, tem muito para
oferecer: fluência verbal, simpatia, relacionamento com as pessoas,
conhecimento de áreas da cidade, existe uma facilidade de aprendizagem
89
independente para o que seja. A maioria está acostumada a se adaptar a
um novo sistema”. (Cláudio)
Esta fala traz a idéia de honra ou “the value of a person in his own eyes, but also
in the eyes of his society” (Pitt-Rivers, 1977: 01). Nesta perspectiva, a noção de honra é
sempre pública, uma vez que conecta valores, permitindo perceber sentimentos,
condutas e significados variados em contextos igualmente variados. A honra supõe uma
interlocução, um cálculo e identificação das relações em jogo. Por isso, para manter ou
perder a honra é necessário todo um processo de negociação e troca constantes.
Segundo Bourdieu (1995), a negociação aparece como condição social para pertencer a
determinado grupo. A honra não é algo construído à custa de sacrifício social, mas
envolve estratégias, vividas perante os outros, para ascender como o mais virtuoso. Por
isso, esclarece que o reconhecimento é a condição de toda troca, assim como reconhecer
a dignidade de homem de honra. O respeito, ao contrário da vergonha, define-se pela
sua dimensão social e deve ser conquistado e defendido perante os outros.
Entre os vendedores ambulantes, a honra pode ser compreendida como algo que
torna a pessoa um ser digno de respeito por conta de sua luta diária, pois são “pais de
família” e correm atrás para “levar o pão de cada dia para dentro de casa”. Estas noções
de responsabilidade referentes ao chefe de família se inscrevem em uma ética
masculina, em que o respeito é construído segundo valores da masculinidade. Desejar
para os filhos ou esposas destino diferente do seu ou ainda acesso a outro nível de vida
são idéias que permeiam o imaginário destes vendedores e, portanto, entram como
elementos constitutivos de sua masculinidade. Mais do que uma ação pela
sobrevivência, o que está em jogo aqui são manipulações simbólicas pela construção e
manutenção da honra masculina e, portanto, da pessoa digna de levar o sustento para a
casa.
Miguel Vale de Almeida (1995), ao discutir sobre o tema da masculinidade,
observa como a mesma se reproduz, no dia-a-dia, e ainda como perdura o modelo
central de masculinidade hegemônica frente a uma diversidade de experiências e
identidades dos homens. Diante disto, enfoca as relações entre gêneros como relações
de poder que são permeadas por uma assimetria. O autor identifica ainda que o discurso
sobre masculinidade é um campo de disputa de valores morais. Desta forma, para
compreender a masculinidade deve-se “prestar atenção aos aspectos discursivo e
90
performativo: a expressão, quer verbal, quer incorporada, quer ritualizada, de valorações
morais sobre o que é ser homem (e ser mulher)...” (Vale de Almeida, 1995: 16).
Abordar a masculinidade fora de paradigmas essencialistas significa entender o
que é “ser homem” do ponto de vista social. Este tipo de perspectiva implica que “ser
homem”, no dia-a-dia, nunca se reduz a caracteres sexuais, mas representa um conjunto
de atributos morais de comportamentos socialmente sancionados e constantemente
reavaliados, negociados e relembrados. Tendo como ponto de partida a distinção entre
sexo e gênero, o autor dá ênfase a outros referenciais, no intuito de perceber o modo
como o discurso e a prática do trabalho também são constituintes da masculinidade e
por ela constituídos.
Para ele, a idéia de “respeito” é o que confere prestígio à pessoa, e está atrelada
às noções de “honra” e “vergonha”. O respeito lhe é devido pela sua posição e deve ser
conquistado, merecido e vir acrescido de “provas”, tais como: honestidade, franqueza,
saber encarar ameaças, domínio da retórica da linguagem, medida dos gastos e
provimento da mulher e dos filhos. Os trabalhadores das pedreiras de Pardais
23
devem
ser respeitados pelo seu sacrifício e provação e não desprezados. Seu valor não deriva
diretamente da especialização profissional “letrada”, mas reside em outras qualidades
como parentesco, amizade, comportamentos na sociabilidade, esperteza,
reconhecimento de suas capacidades, produção coletiva e posicionamento na
organização social e na hierarquia da idade (idem: 164).
De forma paralela, pude verificar que, entre os vendedores ambulantes, o
respeito e honra pelo seu trabalho deviam ser conquistados através de suas capacidades,
espertezas e provimento da família. Certa vez, conversando com Emerson, ele
comentava que seu trabalho havia melhorado muito de acordo com seu “esforço”, o qual
complementava seu prestígio, uma vez que passou por provação e risco.
“Se eu me esforçar eu tenho bom retorno. Tudo exige esforço, tanto para
trabalhar, tanto para você vencer na vida. Conquistei todo mundo, é o
jeito de saber conversar”. (Emerson)
Para Emerson, não basta apenas se dedicar, mas lidar com as pessoas, fazer
amizades, ter boas relações, bom conhecimento e ser esperto, enfim, como ele mesmo
sintetizou “saber fazer do limão uma limonada”.
23
Pardais é uma região de Alentejo, Portugal, em que Vale de Almeida fez trabalho de campo.
91
“Tem que ser inteligente, não precisa ter estudo, tem que ser inteligente,
eu tenho a quarta série. Eu conheço vários colegas meus que têm cursos,
trabalhando de serviços gerais, auxiliar, eu trabalho na pista mesmo, que
eu ganho muito mais. No mínimo para ganhar dois mil eu largaria, não
vou conseguir, então vivo trabalhando na rua”. (Emerson)
A construção da masculinidade também está relacionada à rua, um lugar onde a
homossociabilidade pode ser vivida e experimentada em grupos (Welzer-Lang, 2001).
Nestes grupos, os mais velhos, já iniciados, procuram mostrar, corrigir e orientar os que
buscam acesso à virilidade, diga-se, à condição de trabalhador. Aprender a estar com os
homens e a pertencer ao mundo da rua condiz a aceitar a lei dos maiores, a respeitar os
códigos, integrar os ritos de passagem e distanciar-se do mundo dos mais fracos. Em
contraponto à rua, local de competição, dificuldades, esforço, aparece o universo
doméstico, como recinto privado, mais protegido e, portanto, adequado para as
mulheres.
Certo dia, Valdeci me disse que está sempre aprendendo na rua. Apesar de ter
um “currículo baixo” e não falar “um português 100%”, ele continua trabalhando para
“arrumar os meus trocadinhos e não faltar nada para a minha família”. Pai de quatro
filhos e ainda pagando pensão para uma quinta, ele não admite que a mulher trabalhe na
rua e insiste em ser o provedor, uma vez que gosta “de andar bonito e com dinheiro”.
“A minha esposa não trabalha até porque ela está fazendo a 7
a
série junto
comigo. É melhor ela ficar em casa cuidando dos 4 filhos e das coisas
que a gente compra. Enquanto der a gente vai vivendo, não esta fazendo
nada de errado, mesmo”. (Valdeci)
Conversando com Emerson, uma tarde em Copacabana, indaguei com quem
morava, e ele respondeu com a esposa. Depois, perguntei se ela trabalhava, a resposta
foi negativa e veio acrescida de toda uma explicação sobre sua auto-suficiência
enquanto provedor da casa.
“Minha esposa terminou os estudos agora, eu não quero que ela trabalhe,
quero que ela termine os estudos, para se formar em alguma coisa, para
ser alguém na vida, não para ser camelô”.
Por quê? Ser camelô é ruim?
92
“Não, mas vai ter um dia que vai acabar, não é agora, leva meses, tempo,
leva anos para terminar o camelô, eu creio que nunca vai terminar, mas,
por prevenção, é melhor ter um trabalho de carteira assinada, trabalho
para o governo, que tem um bom dinheiro, do que ficar se expondo no
sol quente, porque a mulher é mais fraca do que o homem. O homem
pega tudo, é pau pra toda obra. Ela insiste em querer trabalhar comigo,
mas eu não quero”.
Você não quer que ela trabalhe de camelô, não?
“Não, quem tem que bancar a casa é o marido”.
Mas é bom ela ter o dinheiro dela também, né, para ter as coisas dela...
“Eu compro para ela”.
Mas se um dia faltar o teu, tem que ter o dela, né?
“[Silêncio] A gente dá um jeito, só não tem jeito para a morte”.
(Emerson)
Em seu discurso, Emerson procurou mostrar que não desejava para a mulher
condição semelhante a sua, uma vez que ela “é mais fraca” e não deve ficar “se expondo
no sol quente”. Este sacrifício faz parte de seu trabalho e é o que, de certa forma,
assegura a manutenção da casa. Por mais que ela insista em querer trabalhar, ele afirma
que “quem banca a casa é o marido”, invocando ainda sua forca física, “o homem pega
tudo, é pau pra toda obra”, como elemento constitutivo de sua masculinidade. Como
comenta Welzer-Lang (2001), a aprendizagem dos homens se faz através do sofrimento.
Sofrimento dos corpos que carregam peso e humilhação, mas também através de
solidariedade e fraternidade, evitando a dor de ser uma vítima. Cabe ressaltar que, para
as mulheres, o amadurecimento também pode vir através de um sofrimento, no caso,
são emoções de qualidades e maneiras de se expressar diferentes.
Por mais que esbocem sentimentos “não-masculinos”, como salienta Vale de
Almeida (1995), aos homens não é suposto exprimirem emoções e sentimentos que
ponham em causa a imagem de força e auto-suficiência masculinas. No entanto, faz-se
homem ao mesmo tempo em que diz palavras comuns do universo feminino. Se as
emoções podem, em algum momento, ser algo de feminino e enfraquecer as pessoas, em
outro, são como forças que empurram para a ação. Não é a toa que os homens se valem
da honra, do prestígio e do sacrifício para se constituírem enquanto tal.
93
A forma e os momentos de expressão são as chaves de controle dos riscos. Por
isso, a maneira com que os vendedores apresentam suas emoções é sempre relativa. A
narrativa de sofrimento, em alguma medida, é controlada, tanto na relação com
passageiros, motoristas e fiscais, quanto na situação excepcional de entrevista comigo.
A afirmação da masculinidade aparece ainda como uma estratégia de resistência para
lutar contra as agressões, os estigmas e ameaças de ser confundido com algum “trabalho
sujo” ou indigno.
3.5 – Criando diferenciações.
Em suas falas, os vendedores ao mesmo tempo em que se afirmam, procuram
muito se diferenciar dos que acreditam não serem trabalhadores, como pedintes, ladrões
e malandros. Esta oposição procura ser enfatizada para demarcar alguns valores do
trabalhador, como a “disposição” em contraposição à “preguiça”, a “coragem” versus a
“vergonha”, o “trabalho” ao invés do “roubo”. Neste contexto, trabalhador é aquele que
“rala”, que “sofre”, que “batalha” e, ao contrário, aquele que se acomoda e quer levar a
vida fácil, só pedindo ou roubando, acaba prejudicando-o.
3.5.1 – Pedintes.
Em relação aos pedintes, os comentários não são muito favoráveis. A maioria
reconhece que, ao invés de pedirem algum trocado, poderiam pegar uma mercadoria e
vender. No entanto, alertam que atrapalha, pois quando é o momento de entrar nos
ônibus, se há algum pedinte dentro, este acaba tendo a preferência. Reclamam ainda da
sensibilização exagerada dos passageiros, pois, segundo Eduardo, “o brasileiro tem
coração fraco, é mole”.
“Atrapalha bastante, é mais um. Seu eu pedir uma carona para trabalhar,
se ele estiver ali, a preferência vai ser dele. Porque eles preferem levar os
pedido do que a gente, tem medo de alguém ver a nossa mercadoria.
Então eles sempre têm vantagem do que o próprio trabalhador que
94
investe o seu dinheiro, vai embalar para depois trabalhar e tirar o seu
reembolso”. (Eduardo)
Outro vendedor apresenta a “coragem” por estar trabalhando em contraponto à
“vergonha” de ficar pedindo dinheiro. A disposição pelo trabalho, além de despertar a
atenção do passageiro, criando uma atmosfera de intimidade, gera um sentimento de
orgulho e satisfação por estar vendendo.
“Tem poucas pessoas que têm a coragem de fazer as coisas que a gente
faz. Pegar assim uma mercadoria e trabalhar, tem um montão de pessoas
que preferem ficar pelo meio da rua, todo sujo, pedindo dinheiro do que
pegar e sair para trabalhar. Às vezes acha que é vergonha trabalhar, mas
eu acho que tem pessoas que têm vergonha de entrar no ônibus para
poder vender. A gente trabalha dia de sábado, trabalha feriado, trabalha
domingo. A gente não tem preguiça”. (Alex)
Certa vez perguntei a Wagner se ele conhecia a música “Miséria S.A.”
24
de
Pedro Luis que o grupo Rappa, em 1996, gravou no disco “Rappa-mundi”. Ele
respondeu que sim e resumiu como enxergava sua atividade.
“A gente está vendendo, a gente está oferecendo, a gente não está
obrigando ninguém a comprar, a gente não está pedindo ninguém para
comprar. Eu tenho vergonha de estar vendendo no ônibus e uma pessoa
me dá dinheiro, eu não aceito. Eu não quero não, eu quero vender”.
(Wagner)
Em seguida, perguntei se ele via isso como trabalho e, num tom negativo,
completou:
“Eu não acho que é trabalho, não, porque poxa, não custa nada pegar um
pacotinho de bananada e vender. Sou contra quem dá... dá muito, dá
muito, dá muito, não tem disposição para trabalhar”. (Wagner)
Por fim, indaguei se sentia orgulho pelo seu trabalho e ele concluiu:
24
Esta música descreve um fenômeno comum, no final dos anos 1990, entre crianças, deficientes físicos
ou pessoas doentes que circulavam pelos ônibus pedindo dinheiro, distribuindo bilhetinhos e raramente
vendiam algum produto. Seu principal refrão entoava: “senhoras e senhores estamos aqui /
pedindo uma ajuda por necessidade / pois ‘temo’ irmão doente em casa / qualquer trocadinho é bem
recebido / vou agradecendo antes de mais nada / aqueles que não puderem contribuir / deixamos também
o nosso muito obrigado / pela boa vontade e atenção dispensada / ‘vamo’ agradecendo antes de mais
nada”.
95
“Sustento os meus filhos, não assalto, tenho a minha casa que eu comprei
com isso. Não vou ter orgulho? Não vou ter orgulho se eu for pedir a
alguém”. (Wagner)
Emerson também acredita que esta situação seja desagradável, ainda mais
quando bota em cheque a própria condição do pedinte. Daí a necessidade de delimitar as
fronteiras.
“Não vou criticar todos, mas muitos a gente conhece, eles entram para
quê? Para fumar, um se faz de ceguinho, que a gente conhece. Não tenho
nada contra, mas só que muitas vezes atrapalha nosso trabalho. Então,
nada contra, mas também entre aspas, porque tem que vigiar e saber
quem é quem”. (Emerson)
Mais uma vez, nas falas de Robson, a aversão à condição de pedinte aparece:
“Horrível, o pessoal que dá é burro. Quanto mais dá, mais pede, é igual
rato. Até camelô, se não controlar, seria igual rato. Porque a ralação é
maior, ninguém quer carregar peso, é mais fácil pedir, por quê? Você não
investe em nada, não carrega peso, e sempre tem aquela alma caridosa
que te dá dez centavos”. (Robson)
Em seguida, perguntei se isto atrapalhava seu trabalho e, concordando, procurou
criar distância e apresentou um quadro de desvantagem para o passageiro.
“Só me atrapalha se subir junto comigo, fora isso, eles para lá, eu para cá.
Quem está perdendo não sou eu, quem está perdendo é passageiro que
fica dando. Dá um apoio moral, conversa, ele vai te xingar. Se você der
dinheiro, eles vão continuar fazendo a mesma coisa. Eles falam que estão
trabalhando, mas atrapalha o meu trabalho”. (Robson)
Reiterando esta idéia, Cláudio reforçou, com certa cautela, a intolerância e
enfatizou sua autonomia e destreza para superar qualquer entrave.
“Eu não acho que me atrapalha em nada. Particularmente, não acho legal,
a não ser que tenha um motivo muito grave que o leve a isso. Às vezes
acho que é meio vício, o cara pede uma vez aí vicia, vê que é um
dinheiro legalzinho, não vai querer trabalhar. Eu acho que alguns pedem
por necessidade e outros porque se tornaram sem-vergonha mesmo. Mas
me atrapalhar, particularmente, acho que nada me atrapalha. Se ele tiver
96
no ônibus eu não entro naquele ônibus, eu aguardo outro ônibus”.
(Cláudio)
Da mesma forma que os vendedores procuram se afastar das figuras que pedem,
também se desvencilham das imagens nada producentes dos “malandros” e “ladrões”.
3.5.2 – Ladrões e malandros.
Os camelôs são alvo de inúmeras representações, às vezes positivas, outras
negativas. Ser associado à figura de “bandido”, “malandro” ou “vagabundo” além de
colocar em questão sua honra pessoal, ignora seu status de trabalhador. Desta forma
procuram afirmar, com orgulho, sua condição de trabalhador, afastando-se daqueles que
roubam.
“A única coisa que eu tenho vergonha na vida é roubar e não poder
carregar, o resto eu não tenho vergonha de nada”. (Sérgio)
Apreensão semelhante é expressa por Valdeci que, em sua fala, faz uma analogia
com a figura do bandido.
“Camelô é pior do que bandido, porque bandido é perseguido por uma
coisa que ele faz, a gente é perseguido por uma coisa que a gente não
faz”. (Valdeci)
A imagem negativa também é construída por alguns vendedores que atribuem
caráter e atitudes duvidosas por parte de alguns que estão na rua “só para fazer
bobagem”. Outros são rechaçados por não terem “educação”, não saberem “dialogar”,
insistirem em “implorar”, “xingar”, “bater no carro”, demonstrarem comportamentos de
“vandalismo”, arrumarem confusão ou por não estarem interessados em vender, mas
“consumir droga”.
“Tem muitos que fingem que é camelô para poder fazer um monte de
besteira também, sabe. Tem muitos que se aproveitam do nosso trabalho
97
para fazer a besteira que eles fazem. É isso que acaba prejudicando”.
(Alex)
Carlos também corrobora este tipo de visão e acredita que “tem pouco camelô
puro, tem camelô que rouba camelô”. Por isso procura se diferenciar, enfatizando o
discurso de status de trabalhador, da disposição e da tranqüilidade ao invés de uma
correria sem direção.
“Eu gosto de trabalhar, se você está trabalhando, tá suando, o dia todo na
rua, tá ganhando pouco, mas tá fazendo alguma coisa, negócio de vida
errada você vai estar correndo em círculo”.
Mas trabalhando você corre como?
“Você anda para frente, nem corre, você anda tranqüilo”. (Carlos)
No intuito de construir uma imagem bem aceita, há a necessidade de se portar
bem, pois, conforme ressaltou Tiago:
“Depende muito da forma que você fala, que você se veste. Já entrei de
chinelo, todo esculachado, ninguém te dá moral, acha que vai consumir
algum tipo de droga. A aparência é muito importante”. (Tiago)
Em outro momento, Tiago sintetizou a importância de estar trabalhando para
evitar ser confundido ou cometer atos indevidos. Para ele, “mente vazia é oficina do
cão”. Conversando com outro vendedor, Rafael, perguntei o que havia de interessante
no trabalho de camelô e ele respondeu:
“É que você não fica parado, fazendo besteira pela rua. Você ocupa o seu
tempo para você não fazer certas coisas que atrasa a sua vida, isso aqui é
um modo de você ganhar a vida para construir um futuro melhor para a
sua família. Um modo de você se estabilizar na vida provisoriamente”.
(Rafael)
Neste instante, um outro vendedor interrompeu, alertando para o fato de que
“tem muitas pessoas largando o serviço para trabalhar de camelô. Enquanto a gente quer
largar o nosso serviço para trabalhar como eles”. No meio desta conversa, é interessante
notar como é importante ocupar o tempo, trabalhando no ônibus, de forma discreta e
justa. Afastar-se da figura do “malandro” é um marco considerável, assim como um
98
campo de possibilidades. No entanto, aos seus olhos, seu trabalho, por mais admirável e
seguro que seja, tem algo de provisório. Daí a necessidade de vislumbrar um “futuro”
mais “estável”. Quando o segundo vendedor terminou de falar, diante da inquietude que
se formou, eu voltei para o Rafael e perguntei “mas você, prefere o quê?”. E ele,
procurando ser o mais discreto e cordial, completou:
“Eu prefiro que esse trabalho seja legalizado ... que pelo menos os
empresários ponham uma determinação nas empresas, falando assim
‘camelô que estiver trabalhando na rua tem que trabalhar com colete e
calça com crachá, somente será permitida a entrada de camelô nos ônibus
assim’. E a gente também somos humildes”. (Rafael)
O desejo por certa regularização também é ressaltado por outros vendedores
como forma de assegurar sua função social. Esta é reivindicada em diversos momentos,
seja como recurso ao desemprego, ou porque “diminui o assalto no ônibus”.
Conversando com Sérgio, ele comentava a respeito deste possível controle de segurança
exercido pelos ambulantes.
“Quando entra um vendedor de bala no ônibus, o assaltante já fica atento.
Não vai assaltar ônibus que tem vendedor, não vai ter aquela disposição”.
(Sérgio)
Para Marcos, a presença dos camelôs nos ônibus, além de mobilizar outros
agentes, despertando confiança, diminuiu o índice de assalto. Para ele, esta redução foi
visível, “não só na Zona Sul, também na Zona Oeste, Zona Norte, na Baixada
Fluminense”. Ele completa:
“Não que a gente proíba, não que a gente tenha poder sobre eles, é uma
forma de eles respeitar o nosso trabalho. Eles não vão entrar dentro do
ônibus assaltando, após eu ter feito um comercial de uma bala, uma
propaganda de uma bala, de um doce, se não as pessoas resolvem achar o
quê? Que eu tô de acordo com ele, foi tudo armado para que ele saiba
quem tem a carteira, quem está com dinheiro e quem não está. Então,
para evitar esse tipo de problema, eles não fazem. O assalto, se tu
perceber, está tudo para longe daqui. Longe do lugar onde concentra a
grande quantidade de camelô”. (Marcos)
Neste sentido, Wagner segue a mesma reflexão:
99
“Por a gente circular muito, se a gente ver alguma pessoa com a intenção
de assaltar e a gente estiver ali dentro, não assalta. Por quê? Devido a
gente circular, a gente está ali, ele vai assaltar o ônibus? Amanhã a gente
está no Leblon, vai encontrar com ele, ou na Saens Peña ou na Barra ...
Ou eles não assaltam ou esperam a gente sair para assaltar”. (Wagner)
Nestas falas, mais uma vez, aparece a noção de fronteira com os assaltantes, não
só no sentido moral, mas de disputa de territorialidade. O assaltante, como mais uma
pessoa que circula pelas ruas da cidade, aparece como um agente que teme pela
possibilidade do vendedor identificá-lo. Por mais que Marcos ressalte que não tem
poder de interdição, os vendedores passam a ser inibidores concretos.
Diante de todas estas falas de afirmação, diferenciação e denúncia, procuro, em
seguida, apresentar algumas queixas e propostas sugeridas pelos próprios vendedores
como forma de melhor organizá-los dentro de um universo de fronteiras tênues.
3.6 – Perspectivas.
Às vezes a própria situação de risco social, vivida e reconhecida pelos
vendedores, dá margem para a construção de imagens negativas sobre os próprios
colegas de profissão. Conversando com Wagner, perguntei como era a relação com os
outros vendedores e ele, apresentando uma variedade de condutas, ofereceu uma
imagem valorizada de si.
“Olha só, igual qualquer profissão, tem bons profissionais e maus
profissionais. Eu tô ali todo dia porque eu tenho três filhos para criar, tem
gente que vai trabalhar, bota um pacotinho, um quilo de bananada na
mão para cheirar cola, nem todo mundo trabalha com a mesma cabeça”.
(Wagner)
Já Marcos, que trabalhou durante muitos anos nos ônibus e depois resolveu
estabelecer duas barraquinhas e vender parado nos pontos, acredita que “o camelô é
desunido, são seus piores inimigos”. Disse que muitos acabam gastando o dinheiro com
“droga”, mas fez questão de anunciar que nunca vendeu mercadoria ilegal e que seu
único vício “era mulher”. Em seguida, como forma de dar prosseguimento ao discurso
100
exaltador de si e tentando distanciar-se daqueles que “se incomodam se outro camelô
vende”, que criam “conflito” e “nervosismo”, arrematou:
“Desde o momento que você faz um negócio, você tem que aprender a
administrar. Se eles fossem profissional, eles saberiam a diferença de
lucro e capital de giro. Nunca teriam problema”. (Marcos)
Quando indaguei a Robson sobre a possibilidade de haver alguma forma de
organização, ele logo retrucou:
“Não resolve, camelô é tudo safado. A maioria dos camelôs que vem
agora é porque cresce o olho para o camelô que está fazendo.
Antigamente era melhor, tinha organização apesar de não ser organizado,
mas rolava organização. Hoje em dia seu vizinho está competindo com
você, passageiro que comprava na sua mão, agora está vendendo”.
(Robson)
A diferença na escolha de horários e ritmo de trabalho e a ausência imediata de
um patrão para controle das atividades e maior repressão acabam contribuindo para a
falta de sindicalização ou união por parte dos trabalhadores. Como salienta Vale de
Almeida, os homens também “são rivais potenciais na competição pela masculinidade”.
(Vale de Almeida, 1995: 186) Esta, ao mesmo tempo em que une, ainda opõe os
homens.
Certo dia, final de tarde em Copacabana, situei-me no cruzamento de duas ruas
movimentadas e avistei, na esquina, um carro da Guarda Municipal. Na tentativa de
encontrar um vendedor que tinha passado por mim, notei que um dos camelôs tinha
apoiado seu “gancho” na parte de cima do ponto de ônibus. De repente, dois guardas se
aproximaram reclamando que não era para deixar “gancho” pendurado naquela área.
Rapidamente o vendedor retirou, alegando que não trabalhava parado, mas dentro dos
ônibus. Os guardas começaram a falar e gesticular, sem maiores movimentos bruscos,
apenas querendo demonstrar autoridade. Nisto, Silveira, o vendedor que eu estava
procurando, chegou intercedendo a favor do camelô, dizendo que não era para ele dar
conversa para “essa gente”. Os guardas já tinham ido embora, retornando para seu local
inicial, sem ter tocado na mercadoria do rapaz. Conversando com Silveira, percebi sua
insatisfação com a falta de mobilização dos camelôs e com a presença repressiva e, num
tom militante, conclamou:
101
“Essa época de Guarda Municipal, a gente devia fazer protesto, fechar
tudo, a gente quer trabalhar, o César Maia não quer deixar a gente
trabalhar. Devia se reunir todos os camelôs e parar tudo. Se fosse
regularizado também seria uma coisa boa. Pagava uma taxa por mês na
prefeitura”. (Silveira)
O desejo por maior organização e regularização é reivindicado por muitos
vendedores. Eduardo comentou, inconformado: “se teve projeto para a Guarda
Municipal, porque não pode ter para os vendedores ambulantes?” Quando ele encontrou
com o filho do prefeito, exigiu, em tom moral, uma postura mais determinada:
“Rodrigo, avisa o seu pai que o camelô tem família para criar!” Por isso, completa:
“Fazer uma cooperativa, cadastrada, organizada, cada um com seu
crachá. Para que? Para acabar com essa barreira, motorista vê se é um
vendedor ambulante, autorizado pela Prefeitura, crachazinho bonitinho,
tudo organizado, cada um na sua rota, nas suas áreas. Eu acharia que é
uma opção, ia ser melhor porque é muito pai de família. Se um dia essas
portas fechar, pode contar que a marginalidade vai aumentar. Se já está
difícil, imagine esses vendedores ambulantes todinhos, sem opção para
trabalhar?” (Eduardo)
Aqui, podemos perceber uma conexão com o capítulo anterior, uma vez que
estão em jogo disputas de posição e representação entre os campos da legalidade e da
ilegalidade. Em relação ao primeiro capítulo, vale enfatizar que os atores sociais não
têm só diagnósticos ou projetos individuais, mas uma leitura mais ampla do que seja a
sua situação, oferecendo perspectivas para o seu lugar no mundo social-urbano. Diante
destas problemáticas, as visões quanto à criação de um sindicato são variadas. Por um
lado, alguns acreditam, mesmo com reserva, que este tipo de associação melhoraria suas
condições de trabalho. Como alertou Rafael:
“Acho que deveria ter um sindicato sim. Um deputado federal, estadual
que desse um apoio, que ajudasse. Pô, mas não aparece ninguém, eles
sabem só falar na televisão”. (Rafael)
Emerson reforça esta idéia do estímulo e apoio por parte de alguém ou do poder
público e reivindica:
“A gente tem que encontrar uma pessoa que dê apoio. Uma pessoa
grande, um deputado, um senador, entendeu. Que bate de frente. Aí nós
tomamos força. Por que os taxistas são unidos? Vamos fechar, vamos
102
parar o Rio. Um liga para o outro, sindicato, pá, e fecha, e acabou.
Porque em São Paulo as empresas falam assim “não vão trabalhar, pára
tudo”. Eles não param? Porque tem alguém, o quê? Grande. Nós somos
pequenos ainda, nós somos como um grão-de-areia. Infelizmente somos
pequenos...” (Emerson).
Após este comentário, eu completei: Mas que faz uma diferença! Emerson
concordou e emendou: “porque a população está a nosso favor”. Por outro lado, outros
vendedores têm posicionamento contrário à criação de uma associação mais formal.
Seguindo este raciocínio, Sérgio, de forma apreensiva, comentou:
“Sindicato acho que não seria a palavra mais sensata para poder resolver.
Eu acho que não adianta. Na minha opinião, acho que a sociedade tinha
que tomar um pouco de vergonha na cara. Do resto, o que adiante
sindicato? Vai comer o meu dinheiro e não vai resolver nada. Então, eu
acho que tem que dar uma solução digna, porque ganhar duzentos e
cinqüenta contos ninguém merece. Isso aí ninguém quer, ficar se
sujeitando a isso”. (Sérgio)
Em seguida, perguntei se alguma forma de organização, por parte da prefeitura,
seria um movimento mais propício. Ele concordou, mas alertou para a necessidade de
diálogo e respeito.
“Seria melhor, mas também fazendo uma avaliação de uma contribuição
justa. Não é fazer o que eles querem. É sentar na mesa, elaborar. Porque
tem que ter umas cabeças contemporâneas e bem para frente, porque o
povo, não é porque trabalha na rua que é analfabeto, burro, ignorante”.
(Sérgio)
Teria que ouvir vocês também, né? Saber o que vocês querem?
“Claro. De ambas as partes. Tem que ser ambas as partes ... querer
colocar o cara lá em cima daquele morro para vender, aí não tem
condição do cara ganhar dinheiro. Vai ter que sair para rua. Você tem que
ver onde vai colocar as coisas ... porque o povo quer onde está o contato
das pessoas. Porque vendo as pessoas na rua, por exemplo, aqui está tudo
vazio, vamos supor que não tivesse nenhum camelô aqui, pô o cara ia
falar “pô, a rua está estranha”. Querendo ou não querendo, nós somos o
cartão de visita da rua, independente do estabelecimento ou não. Nós
somos o cartão de visita da rua”. (Sérgio)
103
Apesar de toda uma heterogeneidade nas trajetórias dos vendedores, com
processos de escolhas em momentos e por motivos diferenciados, engajamentos,
relações, estratégias e dificuldades variáveis, podemos observar algumas semelhanças.
Existe todo um esforço coletivo em querer generalizar-se, em querer demonstrar-se
como pertencendo a uma categoria, por mais fluida e instável que seja. Reivindicar
reconhecimento social, desejar maior união por parte dos vendedores, regularização do
trabalho, através de crachá, uniforme ou ainda ambicionar um trabalho de carteira
assinada são elementos que estão presentes nas falas dos vendedores e são afirmados
tendo em vista uma situação transitória que causa apreensão.
Assim, ao manifestarem, nas conversas comigo, um certo projeto de
estabilização, passam a desejar também a construção de uma “categoria para si”, ou
seja, uma categoria mais organizada, unida, solidária, que necessita ainda do
reconhecimento dos outros para se legitimar enquanto tal. Todo este processo de
construção de si e de uma categoria mais estruturada passa também por uma elaboração
moral.
Neste sentido, aparece aqui uma condição social que é mais ampla que as
trajetórias pessoais. O contexto de precariedade e desigualdade social frente a um
universo de fronteiras fluidas, de iminência de ilegalidade, de ser confundido com
“bandido”, “pedinte” ou “malandro” faz com que os vendedores desejem melhores
condições de trabalho, maior organização e estabilidade.
104
CONSIDERAÇÕES E POSSIBILIDADES
Esta dissertação, ao apresentar algumas trajetórias de vendedores ambulantes
nos ônibus, enfocando suas tomadas de decisão, não pretende dar conta de uma questão
inquietante - a desigualdade social - mas apontar para caminhos possíveis e criativos,
adotados pelos próprios atores, dentro de condições adversas. Por isso, diante dos
limites físicos de uma folha de papel, devo “finalizar” esta etapa, mas não pretendo, de
forma alguma, apresentar “conclusões” de algum tipo, mas reconhecer minhas
dificuldades, identificar a incompletude do trabalho, fazer um balanço de minha
experiência e apresentar propostas para pesquisas a serem desenvolvidas futuramente.
Estas são sugestões que podem ser percorridas ou não, mas que devem servir de
estímulo para o estabelecimento de novos diálogos.
Ao longo destes três anos de pesquisa, tive contato com muitos vendedores, criei
amizades, estabeleci relações de confiança, gerei situações incômodas, perturbei e fui
perturbada. Ao todo, entrevistei vinte e uma pessoas. Por respeito aos entrevistados,
optei por mudar seus nomes, mesmo reconhecendo que esta alteração poderia estar
esvaziando a realidade destes agentes de significados sociais importantes.
Retomando o que disse na introdução, vale destacar que as entrevistas foram
realizadas em três momentos diferentes. Em 2003, então como estudante de graduação
e na tentativa de realizar um “exercício etnográfico”, minha preocupação girava mais
em torno de uma curiosidade e ansiedade em me deparar com algum fenômeno social.
Neste primeiro momento, me apresentava sem muitos receios, sendo muito bem
acolhida e, por vezes, confundida com repórter ou categorias afins. Apesar de ter sido
um contexto mais descontraído, consegui construir relações que foram fundamentais
para o meu prosseguimento na pesquisa.
Por isso, quando retornei em 2004 (para a elaboração de minha monografia) e
em 2006 (para a construção desta dissertação), apesar de grande dificuldade de acesso
aos ônibus e de perceber uma redução no número de vendedores, tive maior
desenvoltura nas aproximações e conversas. Esta possível “facilidade” deu-se em
virtude de já conhecer alguns vendedores qu
105
De uma forma despretensiosa (mas nem por isso descomprometida) e feliz, esta
dissertação procurou ser um exercício de reflexão sobre as ações e falas de vendedores
ambulantes nos ônibus do Rio de Janeiro, especificamente os que circulam em
Copacabana e Botafogo, bairros da Zona Sul carioca. Cabe ressaltar, ainda, que este
relato, regido pelo afeto e inspirado em outros estudos, privilegiou o ponto de vista dos
vendedores, seus valores, idéias e comportamentos, no intuito de preservar sua
autonomia e individualidade.
Tive a oportunidade de conversar com os mesmos vendedores em momentos
distintos, o que caracterizou observações diferentes e novas reflexões e trocas. Mesmo
reconhecendo que as pessoas aqui retratadas são muito mais ricas e complexas do que
um recorte textual, procurei apresentá-las de forma resumida, na expectativa de que as
imagens possam ser suficientes para uma primeira compreensão.
Optei por retratar de forma mais ampliada alguns sujeitos, reconstruindo suas
trajetórias, possibilidades e escolhas, ao mesmo tempo em que fragmentei outras falas,
distribuindo-as ao longo do texto, conforme as elaborações temáticas. Desta forma,
justifico este retalhamento, esperando não negligenciar outros vendedores, apresentando
suas narrativas, mesmo que de forma breve e recortada. Talvez esta não seja a melhor
forma de recuperar suas inspirações, anseios, reclamações, devaneios e alegrias. No
entanto, acredito que algum mapa cognitivo possa ter sido apreendido e exaltado.
Por que fiz determinadas escolhas e não outras? Por que os vendedores, ao longo
de suas vidas, optaram por determinados caminhos e não outros?
Estas eram algumas inquietações que me acompanharam ao longo de minha
trajetória acadêmica. Se, enquanto residente de uma cidade repleta de moradores e
trabalhadores de rua, ficava angustiada e perplexa com a condição de vida e de trabalho
desses citadinos, enquanto pesquisadora, acabei optando por estudar um grupo de
pessoas que são comuns na cidade do Rio de Janeiro: os camelôs e vendedores
ambulantes. Eles estão nas calçadas, nos sinais de trânsito, ônibus e pontos,
camelódromos, trens, barracas, praias, calçadão, enfim, compõem o cenário urbano,
modificando as transações comerciais, transpondo barreiras, criando novas formas de
sociabilidade e configurando-se como “cartão de visita da cidade”.
Se os vendedores ambulantes nos ônibus eram, até alguns anos atrás, comuns
nos ônibus cariocas, de uns tempos para cá se tornaram escassos devido a vários fatores.
Seja porque esta é tida como uma atividade ilegal, seja porque os ônibus atuais
passaram a ter roleta na frente e câmera, seja porque é um trabalho cansativo e instável
106
que depende da mobilização de uma rede de relações para disputar e garantir seu espaço
físico e moral.
A moralidade foi uma questão central para a minha pesquisa no sentido em que
analisei as formulações legais (principalmente as regras da SMTU e as normas das
empresas dos ônibus) como pautas normativas que supõem representações ambíguas e,
em certa medida, acabavam competindo ou mesmo ferindo outra ordem de
regulamentos que não se situam em um contexto de formalizações, mas nem por isso
são menos operantes. Se os códigos formalizados da SMTU impossibilitam os
vendedores de comercializarem, eles devem acionar outros códigos e estratégias a fim
de criar situações de empatia, reconhecimento e legitimidade.
A moralidade, portanto, deve ser compreendida a partir da produção, veiculação
e embate de significados, além de campos dinâmicos de construção de representações e
valores morais que dependem diretamente das experiências concretas nos quais são
explicitados.
Desta forma, procurei explorar toda a articulação dos vendedores, sua retórica de
sentimentos, suas táticas de sensibilização do passageiro, modalidades de venda e
abordagem dos clientes. Estas estratégias envolviam todo um saber-fazer, um
conhecimento adquirido e desenvolvido nas suas experiências cotidianas. Por isso,
deveriam ser educados, se vestir de forma apresentável, saber o que falar, como falar,
vender produto de qualidade, no prazo de validade, antecipando-se aos desejos dos
passageiros.
Todo este cálculo e critério de atuação apareciam como uma linguagem
estruturada e prevenida, reconhecendo os desafios e dificuldades de um mercado
instável. No entanto, também estavam baseados em relações pessoais que
pressupunham contextos específicos de reconhecimento e solidariedade. Estas redes
(familiares, de trabalho e sociabilidades urbanas) são fundamentais para sustentar os
vendedores nas suas escolhas e trânsito em situações de risco e fronteiras fluidas.
Fora estes pontos, outras questões foram deixadas de lado, por isso, procuro, em
seguida, indicar algumas possibilidades de enfoque e problematizações.
Os vendedores, em suas falas, procuravam afirmar certa “função social” de sua
atividade: como inibidora de assaltos nos ônibus, como opção ao desemprego ou ainda
como sustentadora de toda uma dinâmica comercial urbana, pois “movimenta um
mercado enorme”. A partir destes apontamentos, mais uma vez procuro demonstrar a
relação direta existente entre mercado não formalizado e mercado formal. As
107
mercadorias que os vendedores vendem nos ônibus de forma pessoal e informal são as
mesmas comercializadas nas lojas, seguindo uma lógica do lucro e do “toma lá dá cá”.
Outra possibilidade que não abordei, mas que, em outra circunstância e
dependendo da abordagem, merece apreço é pensar os vendedores a partir de uma
perspectiva de políticas públicas, do ponto de vista do planejamento urbano, da geração
de renda e trabalho, mas que satisfaçam os desejos desses vendedores.
Isto implica em diálogo e planejamento conjunto, visando a criação de
instrumentos para aplicação dos direitos de acesso à cidade e a seus recursos. E não em
um plano estratégio de “limpeza urbana”, calcado na lógica de ordenamento e de
investimentos que, em nome da “participação” e da “democracia”, torna alguns
fenômenos urbanos visíveis e outros nem tanto. Neste sentido, devemos pensar a cidade
de forma conjunta (moradia, saneamento, transporte, trabalho...), sob uma perspectiva
de justiça social, criando um espaço de conflito e negociação constante, e não como
mercadoria vendável.
Outro desdobramento possível, que procurei fazer de forma breve, é resgatar as
biografias e trajetórias de vidas dos vendedores de forma ampliada, agregando outras
relações e contextos. Busquei retratar algumas escolhas e tomadas de decisão dentro de
um campo de possibilidades. No entanto, cabe ainda percorrer a trajetória destas pessoas
no contato com outros agentes, familiares e amigos, em relações de vizinhança, locais
de festa e descontração, espaços religiosos e místicos, outros lócus de trabalho ou
iniciativas profissionais.
Durante a minha pesquisa, cheguei a cogitar a possibilidade de transitar por
outros espaços da cidade, como a Avenida Brasil, pois como um vendedor me alertou
“lá é a realidade”. Pretendia fazer uma análise comparativa, entrevistando vendedores
de outras localidades, mas, por motivos práticos de elaboração desta dissertação, fiquei
impossibilitada de efetuar tal tarefa. No entanto, não descarto a idéia de, futuramente,
fazer um trabalho comparativo com outros universos geográficos e sociais, percorrendo
novas fronteiras da cidade carioca.
Outra questão que merece desmembramento e que não tive tempo e fôlego para
conduzir é perceber a reação de passageiros, motoristas e fiscais de forma mais
cautelosa. A possibilidade de entrevistar estes outros agentes para saber o que pensam
do mercado informal, da situação dos vendedores ambulantes, especificamente nos
ônibus, é mais um elemento que merece, em contextos futuros, apreciação detalhada.
Este trânsito pode contribuir para a construção de um panorama mais amplo, agregando
108
opiniões diversas, sem cair em preconceitos ingênuos e afirmações simplistas. É
importante pensar as categorias de acusação ou qualificação a partir da pluralidade de
agentes, a fim de compreendê-las como parte de uma “configuração moral” (Vianna,
2002).
Nesse sentido, estão abertas as possibilidades de questionamento tanto para
outros universos de pesquisa, quanto para o desdobramento e modificação de questões
para o universo aqui tratado. Estas perguntas girariam em torno de como se constroem
as legalidades, quais seus limites de aplicação, como se produzem as moralidades,
através de que significados são veiculadas, como são performatizadas e quais as
estratégias acionadas para o reconhecimento social.
Por fim, considerando que eu não abarquei as questões colocadas
anteriormente, ao mesmo tempo gostaria de ressaltar certos comprometimentos
durante a pesquisa, principalmente os pessoais. Ao longo destes três anos, desenvolvi
empenhos em níveis diferenciados, variando conforme meu momento acadêmico,
disponibilidade física e necessidade de produção intelectual.
Se, em alguns momentos, não consegui me aproximar da maneira que desejava
ou não obtive maior receptividade, não foi por falta de esforços. Acredito que poderia
ainda ter reservado mais tempo junto aos vendedores e a outros locais de sua
sociabilidade. No entanto, neste primeiro momento, não foi possível construir maior
afinidade e nem era meu interesse abarcar questões pertinentes a estas esferas.
Por enquanto, desejo afirmar que as escolhas feitas não são só teóricas e
acadêmicas, mas devem ser, sobretudo, políticas e críticas em um sentido amplo.
Diante disso, procurei ter todo o cuidado em manter certo distanciamento, respeitando
o espaço e o tempo dos vendedores, sua disponibilidade e paciência para interromper
o momento de trabalho e me conceder entrevista ou bater um papo mais descontraído.
Por isso, deveria me aproximar, “ser afetada”, criar pontes de empatia, construir um
espaço possível de entrosamento e engajamento.
Embora as idéias aqui propostas possam não ter sido suficientes para explicitar o
nível de comprometimento que almejei, espero, todavia ter registrado alguma parcela da
complexa rede de relações em que os vendedores estão envolvidos. Se sua atuação
envolve todo um conjunto de práticas e valores que extrapola os códigos de socialização
institucional, é necessário abarcar estas relações através de dinâmicas e processos que
são negociados cotidianamente.
109
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113
SITE
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114
ANEXO:
NOTAS SOBRE OS ENTREVISTADOS
Entrevistas 2003
1) Sandra, trocadora da linha 121 Central-Copacabana, tem uma visão ambígua
a respeito dos ambulantes. Por um lado, acredita que se torna “chato, porque perturba os
passageiros”, por outro “se torna até agradável”, pois quebra a monotonia.
Assumindo sua função enquanto funcionária de uma empresa de ônibus, revela o
discurso oficial de regulação e repressão. No entanto, denota uma apreciação moral
positiva em relação à atividade dos vendedores, que é acrescida por um questionamento
sobre sua condição enquanto pessoa digna.
2) Patrícia tem 20 anos, trabalha como vendedora há cinco e mora em Benfica.
Para ela, a maior dificuldade, além de conseguir entrar nos ônibus, é a mudança com
roleta na frente. Muito curiosa sobre o que eu pesquisava, após uma explicação breve,
perguntou se eu estava tentando entender a cidade. Eu falei que sim e ela emendou: “é
uma coisa meio difícil de entender”. Eu concordei e ela logo prosseguiu: “é difícil
entender a cabeça do povo”.
3) Alex tem 23 anos, mora em Coelho da Rocha e trabalha como vendedor há
cinco anos. Quando perguntei como era a relação com os motoristas, ele respondeu que
é necessário “fazer amizade”, já com o fiscal é diferente, porque ele “não perturba”.
Com os passageiros, varia “de acordo com a educação do vendedor”. Disse que precisa
se desviar dos aproveitadores (pessoas que “fingem que é camelô para poder fazer um
monte de besteira”) e reivindica maior regularização do seu trabalho.
Para ele, a venda depende “da sorte que a pessoa tiver no momento”, assim
como da educação e maneira de se portar. Em suas falas, procurou se diferenciar dos
pedintes, pessoas que “têm vergonha de entrar no ônibus para poder vender”.
4) Em 2003, conheci Marcos então com 28 anos. Morava em Caxias e
trabalhava como vendedor ambulante nos ônibus há três anos e oito meses. No entanto,
115
já teve outros trabalhos como Supervisor geral da Poli Brasil, uma indústria da
Petrobrás e já foi 3º Sargento do Exército. Ele resolveu trabalhar como vendedor porque
“foi a opção que restou”. Em 2006, voltei a encontrá-lo. Desta vez, estava com 32 anos,
morava em Botafogo com a mulher e a filha de 3 anos, trabalhava parado em uma
barraca no ponto do Rio Sul, mas ao todo, estava “na pista há uns sete, oito anos”.
Apesar de não transitar mais pelos ônibus, os motoristas são seus amigos até hoje.
Resolveu parar por causa das roletas na frente e das câmeras. Disse que parará
definitivamente quando sua filha estiver formada, administrando o negócio dela, “aí eu
largo, vou viver de pesca na região dos lagos”.
5) Ricardo tem 23 anos, mora no Jacaré e trabalha como vendedor ambulante há
oito anos. No entanto, já trabalhou em boate, restaurante, em obra e de faxineiro. Disse
que trabalha em Copacabana, pois é um lugar “tranqüilo, o pessoal não tem pena,
compra. É a fonte do dinheiro”.
Perguntei o que achava do seu trabalho, ele respondeu que é bom conversar com
as pessoas. Sua relação com os motoristas é permeada pela amizade e solidariedade. Já
os passageiros, “tem uns que são meio arrogante”. Para ele, o clima entre os vendedores
é de amizade, mas, “às vezes tem aquelas discussõezinhas boba”.
6) Rogério tem 23 anos, mora na Fazenda Botafogo e trabalha “de camelô” há
sete. Já foi office-boy, trabalhou em trailer, em barraca parada, em Cascadura, no
Centro de Processamentos de dados no Estado do Rio de Janeiro, no Proderj, e na
UFRJ, na Ilha do Fundão.
A relação com os motoristas é dúbia “às vezes boa, às vezes ruim”. Na época
que eu o conheci, estava começando a padronização de roletas na frente dos ônibus.
Para ele, isto iria “quebrar a firma”. Disse que já teve sua mercadoria apreendida
quando trabalhava em Madureira e foi levado para dentro de uma Kombi, algemado.
Chegando à delegacia o policial civil falou que ele estava errado, porque não existe lei
para quem trabalha dentro do ônibus, apenas para quem tem ponto fixo. Rogério
considera isto um equívoco, pois lhe “tirou como errado, e os guardas ficaram como
certos”.
7) Antônio é um senhor de 55 anos, muito falante e engraçado. Conta história e
piada, canta e anuncia resultados de jogos de futebol. Trabalha há cinco anos como
116
camelô e disse que resolveu começar por amor. “Foi uma prova de amor. Minha mãe
ficou sozinha e eu não tive opção e fui por causa dela. Você vê que por amor a gente faz
qualquer negócio”. Ele acha seu trabalho bom, pois se diverte. A relação com os
motoristas passa por cordialidade e reciprocidade.
Perguntei o que achava da roleta na frente e ele disse que ia prejudicar uma vez
que “não é bom negócio para o governo, porque o que vende é camelô. Quem expõe a
mercadoria é o camelô. Ninguém vai sair da sua casa para ir na padaria, na lanchonete,
aqui é fresquinho e dá vantagem, lá não dá. Vai cair muito camelô ...”
Entrevistas 2004
8) A primeira vez que eu conheci o Emerson ele tinha 25 anos, morava em
Caxias e trabalhava como camelô nos ônibus há três anos. Natural de Teresópolis,
trabalhou quinze anos na lavoura, “desde os sete anos na roça”, depois veio para cidade
grande e atuou como porteiro, vigilante, repositor, nas Sendas, jardineiro, em bufê e em
restaurante. Optou pela camelotagem por “falta de trabalho e porque é a melhor forma
de se ganhar dinheiro mais rápido”. Nesta época, ele disse que havia começado a
namorar e que ia trabalhar “na pista” até um período, pois “a venda é muito
imprevisível”.
Ele prefere trabalhar só em Copacabana pois “é o lugar onde tem mais dinheiro”.
Disse que é camelô de Zona Sul, mas logo, consertou, acrescentando que “os outros
falam camelô, mas isso é esculacho, eu sou microempresário”. Eu questionei porque ele
se achava microempresário e ele respondeu “porque é o meu negócio”. Sua relação com
os motoristas é baseada no companheirismo e amizade. Emerson me assegurou algumas
táticas de venda como “ter um bom comercial e um bom talento”.
Com a Guarda Municipal, a relação é tensa. Nas vezes que trabalhava parado,
acabou entrando em confronto e sofrendo agressão. Assim, avalia negativamente esta
situação, colocando-se num campo legítimo e honesto de quem “está trabalhando” ao
invés de estar roubando. Por fim, relatou que preferia ver a situação dos camelôs mais
regularizada, reclamou da desunião dos camelôs e sentenciou: “é a lei do mais esperto”.
Em 2006, voltei a encontrar Emerson, desta vez ele contava com 28 anos, ainda
morava em Caxias, mas estava casado e trabalhando parado, em Copacabana, na sua
“bombonière”. Apresentava a mesma articulação e desenvoltura. Disse que resolveu
117
parar de trabalhar dentro dos ônibus, pela dificuldade, uma vez que “os veículos agora
tem câmera”.
Neste segundo encontro, já casado, ele demonstrou certa preocupação com o
futuro da esposa, não desejando destino semelhante ao seu. Ao relatar sua trajetória, seu
discurso é permeado por um tom de heroísmo e luta.
9) Sérgio tem 36 anos e mora em São Gonçalo. Trabalha como camelô há dez
anos, mas já trabalhou em bar, em depósito de bebida, de mensageiro, de office-boy e já
teve uma carroça de cachorro quente. Para ele, como camelô de ônibus, não tem o
melhor lugar para atuar, “existe oportunidade”.
A relação com os motoristas varia muito, mas “não adianta ficar nervoso, porque
você depende de trabalhar. Não tem outra oportunidade, a oportunidade é essa”.
Se, por um lado, os passageiros têm um tratamento adequado, por outro, os
vendedores devem fazer a sua parte, ou melhor, “o negócio é ser representativo”.
Acredita que seu comercial é “simples e normal” e que a conquista se dá “desde a
primeira oportunidade que você tem de entrar no ônibus e falar”. Por fim, reivindicou
alguma forma de regularização por parte da prefeitura, mas sempre com ressalva.
10) Tiago, morador da Rocinha, já foi vendedor ambulante nos ônibus durante
dois anos, mas quando o conheci trabalhava vendendo vale transporte em um ponto de
ônibus em Botafogo. Da primeira época, guarda visão dúbia sobre os motoristas. Com
os passageiros, a relação era de desconfiança e certo distanciamento. Para ele, a
vantagem de trabalhar no ônibus, ao invés de parado é “que você vai ao cliente, o
cliente não vem até você, você leva o seu produto até ele, faz a sua divulgação”.
11) Bernardo mora em Belford Roxo e atua como ambulante há sete anos. A
observação a respeito dos motoristas parece concordar com os outros depoimentos, pois
“tem uns que leva, são ‘sangue-bom’, tem outros que racha a cara mesmo”.
A pior situação é a presença do “secreta”, pois ele “pode caguetar o motorista”.
Em relação aos passageiros, disse que eles ficam estressados “porque é muito camelô”.
Assim, para se desviar destas situações, é necessário ter um “bom comercial, falar sério
olhando no olho de todo mundo, ter disposição e ser artista”. O mais interessante no seu
trabalho é a autonomia, enfim, é não ter “patrão para encher o saco”, além da diversão e
possibilidade de conhecer muita gente, fazer amizade com todo mundo.
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12) Wagner tem 32 anos, três filhos e é originário da Pavuna, mas atualmente
mora em Nova Iguaçu. Já está “na pista” há quinze anos, mas trabalhou como motorista
profissional, em ônibus pirata.
A relação com o motorista é “amigável” e os passageiros tratam “super bem”.
Acredita que a mudança nos ônibus, com catraca na frente, prejudicou o trabalho.
Fazendo uma avaliação dos outros vendedores, procura se afirmar como trabalhador
legítimo, justificando a importância do seu trabalho para a dinâmica de venda na cidade.
Por fim, deixou uma mensagem para os empresários liberarem a entrada nos ônibus.
13) Rafael tem 21 anos, mora em Bangu com a mãe, a esposa e a irmã e trabalha
na rua há pelo menos uns seis ou sete anos. Um pouco inconformado, relatou que,
quando jovem, “sobrou” no Exército, foi procurar emprego, mas não conseguiu. Sua
aprendizagem, portanto, passa por toda uma experiência da rua.
A relação com os passageiros não é das melhores, pois “algumas pessoas levanta
ou resmunga”. Já com os motoristas, é necessário criar certa intimidade. Para ele, “o que
vale é a educação”. Trabalhar dentro do ônibus “é um passatempo, o interessante é que
você não fica parado, fazendo besteira pela rua”.
14) Solange tem 24 anos, mora no Rio Comprido, trabalha há quatro anos como
vendedora ambulante. Optou por trabalhar em ônibus porque se viu com criança recém-
nascida nos braços e teve que começar a trabalhar aos 20 anos. A conversa com ela foi
muito rápida, sem maiores detalhes. Disse que trabalha na Tijuca e em Copacabana, mas
que “agora está um pouco difícil, porque todo mundo está sem dinheiro, em todos os
lugares”.
Entrevistas 2006
15) Robson tem 26 anos, mora com a esposa em Brás de Pina e já trabalhou
como auxiliar de costura e de cozinha, no Flamengo. Depois começou a vender bala e
não parou nunca mais. Começou como vendedor, em 1995, porque não gostava de
vender bala. Disse que ganhou uma caixa de isopor com guaraná de presente de
casamento.
119
Apesar de reconhecer que o número de vendedores está diminuindo, justifica sua
permanência na pista, pois “dentro do ônibus é um teatro, cada ônibus é uma história
diferente”.
Para ele, o chato é ter “que ficar tomando não”. No entanto, existem maneiras de
se desviar desta proibição, uma delas é construir uma relação de respeito com os
motoristas. Com os cobradores e fiscais a relação tamm é de consideração. Com os
passageiros, apresentou um quadro de otimismo e elevada auto-estima.
Em relação ao seu comercial, passou a variar, dizendo seu nome dentro do
ônibus e dando um pacote de bala. Para ele, este “agrado simbólico” favoreceu muito,
pois além de ajudar “a tirar o pesado”, fez com que os passageiros lembrassem dele. Por
isso, a educação e o bom-humor são fundamentais.
A maior dificuldade é “carregar o peso”, no entanto, a “diversão é o que conta”.
Assim, a luta cotidiana acaba gerando algumas recompensas.
16) Regina tem 43 anos, mora sozinha em Bonsucesso e é a única da família que
trabalha como camelô, há quatro anos. Muito desconfiada, foi se soltando no decorrer
da conversa. Costuma trabalhar parada, mas no dia que eu a encontrei, devido ao sol
quente, resolveu pegar os “piratões” (ônibus piratas que vão para o subúrbio e Baixada
Fluminense e que “o pessoal compra bem”). Sua maior dificuldade, além da entrada nos
ônibus, é ter que carregar peso nas costas e ficar com o corpo dolorido. Neste momento,
ela procurou enfatizar que poucas mulheres têm força e coragem para fazer o que ela
faz. Já trabalhou no trem, mas preferiu sair, pois “era muita barulhada, os guardas
estavam brigando, dando em cima.” Decidiu virar camelô “porque não acha emprego”.
Disse que trabalha por necessidade, senão estaria roubando ou morrendo de fome. Se
arrumasse uma “casa de família” até iria, “mas não tem”. Para ela, com a roleta na
frente, piorou e, com a câmera, mais ainda.
17) Silveira tem 38 anos, mora na Pavuna com as duas filhas, de 12 e 14 anos.
Trabalhou cinco anos no mesmo ponto, em Copacabana, mas há três está “rodando”. Já
trabalhou na SBT vendendo carnê do Baú e, atualmente, trabalha de “carteira assinada”.
Apesar de ter emprego fixo, resolveu trabalhar nos ônibus.
Ele disse que já trabalhou no trem e lá bastava abrir a porta para entrar, no
ônibus “tem que pedir ao motorista. Se ele abrir a porta tudo bem, se não abrir...”
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Apesar da visão duvidosa de alguns passageiros, procurou afirmar sua atividade
enquanto trabalho legítimo, com regras de comportamento e horários. Por fim,
reivindicou maior união e regularização por parte dos vendedores para enfrentar as
situações de repressão. Seu balanço é de que, nestes anos todos de atividade, “mudou
muito, a venda piorou, você passa duas horas no ponto para poder pegar um ônibus”.
18) Cláudio tem 29 anos, mora com a esposa e os dois filhos em Caxias. Já
trabalhou como cobrador rodoviário, durante dois anos e meio, como vigia, em empresa
de produtos naturais, na CEASA, em Botafogo, fazendo entregas, em loja de móveis.
Começou a trabalhar como vendedor com oito anos de idade, depois que perdeu o pai
aos sete. A partir de então, as coisas complicaram em sua casa e a situação ficou difícil.
O irmão mais velho, então com doze anos, começou a trabalhar no sinal da Rua Senador
Vergueiro, no Flamengo, vendendo pastilha garoto. Meses depois, acompanhava-o,
somente aos sábados, porque estudava. Com o tempo, abandonou a escola e começou a
trabalhar na rua. Percebeu que no ônibus vendia e abandonou o sinal.
Atualmente, apresenta certa insatisfação em “ser camelô”, acha que virou uma
rotina, uma monotonia. Mesmo reconhecendo a dificuldade e instabilidade na sua
atividade, depois de alguns anos trabalhando em outro ramo, retornou à rua. Para ele,
trabalhar no ônibus é conviver com situações imprevistas, no entanto, para contorná-las,
procura ser o mais simpático a fim de não “deixar se envolver”.
O mais interessante é que “você é o seu patrão, não tem que dar satisfação a
ninguém”, dita as próprias regras. A roleta na frente dificultou, pois cortou o
relacionamento com o motorista. Por fim, reivindicou maior valorização pela figura do
camelô, assim como a criação de projetos para os camelôs, “no afã de educá-los”.
19) Eduardo tem 32 anos, é casado há doze e tem uma filha de 7. É vendedor
ambulante há dez anos, mora em Bonsucesso e já trabalhou na área hospitalar, como
auxiliar de lavanderia, de servente de obra, açougueiro e mecânico.
Decidiu ser vendedor porque a “necessidade obrigou”. Na sua família, é o único
“corajoso” que trabalha como vendedor ambulante. Para ele, além da parte laboriosa, a
dificuldade deriva da visão negativa que muitos têm sobre sua atividade. No entanto, é
necessário luta e disposição, além de mobilizar os sentimentos dos passageiros.
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Em relação ao motorista, demonstrou compreensão pela sua situação. Para
funcionar bem a venda, declarou que costuma chegar cedo na rua, para explorar o
horário e ter um desempenho melhor.
Acredita que seu comercial oscila de uma qualidade “extravagante” para certa
normalidade. Por fim, procurou se diferenciar de outros vendedores e reivindicou maior
regularização como forma de conter a “marginalidade”.
20) Carlos tem 24 anos e mora com os pais e o filho no morro do Pavãozinho,
em Copacabana. Já trabalhou em duas lojas, fazendo bico, mas de carteira assinada
nunca. Trabalha na rua desde os 9 anos, pois foi o que a vida lhe empurrou. Atualmente
trabalha parado em um ponto, pois sofreu um acidente, sendo muito cansativo “subir
nos ônibus e carregar peso”.
Para a venda dar certo “tem que tratar o cliente bem e sempre estar com
novidade”. Caso haja alguma regularização, acredita que não vai dar certo, pois “a
prefeitura vai querer mandar e botar em lugar errado”.
21) Valdeci, 30 anos, mora no Vidigal com a mulher e os quatro filhos e veio
“para esse negócio de camelô porque a falta de oportunidade está grande”. Apesar de
todas as dificuldades, disse que sempre aprende alguma coisa. Para trabalhar dentro do
ônibus basta “coragem para chegar na frente dos passageiros e começar a falar”. A
relação com os motoristas “é imprevisível”, sendo necessário ainda agradar o cobrador.
Com os passageiros, a relação é ambígua, tem uns que “tratam bem”, “dá aquela
moral”, mas com os chatos “finge que não escuta”.
O interessante do trabalho é a garantia de certa dose de autonomia e diversão.
Por fim, esboçou um panorama não muito positivo dos últimos anos, além de apresentar
o trabalho de camelô como alternativa, pois “quando não cai na bandidagem, ou na vida
do crime o outro caminho que ele caça é aqui”.
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