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Universidade Federal do Rio de Janeiro
MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Francisco Barreto Araujo
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Francisco Barreto Araujo
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PPGAS/MN – UFRJ
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Francisco Barreto Araujo
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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
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Araujo, Francisco Barreto
Ficções Antropomíticas: um exercício de imaginação conceitual / Francisco
Barreto Araújo. Rio de janeiro, 2007.
X pp., x pp.
Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
PPGAS – Museu Nacional, 2007.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
1. Antropologia Social. 2. Teoria Antropológica. 3. Mitologia
4. Dissertação. I. Viveiros de Castro, Eduardo (Orient.). II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
Francisco Barreto Araujo
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Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social, em 15/03/2007.
APROVADA POR
__________________________________
P
ROF. DR. EDUARDO BATALHA VIVEIROS DE CASTRO (ORIENTADOR)
PPGAS-MN/UFRJ
__________________________________
P
ROF. DR. MARCIO GOLDMAN
PPGAS-MN/UFRJ
__________________________________
P
ROF. DR. OVÍDIO DE ABREU FILHO
D
EPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA-GAP/UFF
__________________________________
P
ROF
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. DR
a.
APARECIDA MARIA NEIVA VILAÇA (SUPLENTE)
PPGAS-MN/UFRJ
__________________________________
P
ROF. DR. EMERSON ALESSANDRO GIUMBELLI (SUPLENTE)
IFCS/UFRJ
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Esse trabalho consiste em encaminhar uma proposta: ‘fazer uma reflexão que utilize a
imaginação conceitual das narrativas que se convencionou chamar ‘mitos’ como filtros para
decodificar a ‘pura teoria’, a que a História as opôs.
A pesquisa se divide em quatro etapas. Em primeiro momento são situadas as margens entre
as quais a Razão, recognitiva ou representativa, se situa, aquilo que ela exclui para se
constituir. Em um segundo, segue-se as raízes históricas das três antinomias sobre as quais a
antropologia assenta (Natureza e Cultura, Indivíduo e Sociedade, Primitivos e Civilizados).
Em um terceiro, demonstra-se como o estruturalismo de Lévi-Strauss se articula a tais
antinomias e, por assim dizer, as leva ao limite. Para por fim, brevemente, apontar meios de
levar a cabo a proposta inicial, através de uma alteração da composição de forças no interior
das análises estruturalistas de Lévi-Strauss sobre os mitos das sociedades indígenas
americanas. Trata-se assim, de criar meios de voltar a questões postas pela obra do autor, por
um caminho que parece ter sido ‘bloqueado’ por boa parte da teoria antropológica posterior (o
que também deverá ser brevemente mostrado). Na tarefa de reabrir esse caminho, ganham
importância fundamental as reflexões de quatro filósofos: Nietzsche, Foucault e Deleuze (com
e sem Guattari).
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The aim of this dissertation is to propose a reflection that uses the conceptual imagination of
the narratives, which are conventionally referred to as “myths”, as filters in order to decode
the “pure theory”, which has been opposed to them by History.
This research can be divided in four stages. First, it situates the margins within which
Reason, recognitive or representative, is comprehended, in other words, that which it excludes
in order to constitute itself. Secondly, it follows the historical roots of the three antinomies
upon which anthropology rests (Nature and Culture, Individual and Society, Primitive and
Civilized). In the third stage, it seeks to demonstrate how Lévi-Strauss’ structuralism is
articulated to these same antinomies and, in a way, exhausts them. Finally, it briefly points to
a means of dealing with the initial proposal, through an alteration of the composition of forces
within Lévi-Strauss structuralistic analysis about the myths of the American indigenous
societies. Thus, it seeks to create a means of returning to questions posed by Lévi-Strauss’
work through a path that appears to have been “blocked” by a large part of the later
anthropological theory (this shall also be briefly demonstrated). In the task of reopening this
path, the reflections of four philosophers are fundamentally important: Nietzsche, Foucault
and Deleuze (with and without Guattari).
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Este trabalho é, em grande parte, fruto de saborosos anos de convivência com diversas
pessoas que, sinto, acabaram, de uma forma ou de outra, fazendo parte dele. Talvez uma lista
demasiadamente grande, desproporcional ao tamanho da dissertação, mas é assim.
Sou grato aos funcionários do Museu Nacional pela presteza e competência: Tânia, Beth e
Marina (secretaria); Cristina, Isabel, Maria Helena e especialmente para a sempre gentil Carla
Regina (biblioteca); Zé Roberto, Miguel, Cassandra e sua sucessora Margarethe (restaurante);
e, finalmente, à amiga Carmem e ao parceirão Fabiano, ou simplesmente “Dudu”
(fotocópias).
Agradeço ao Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, pela excelência e pelas diversas, algumas das quais difíceis, lições. Em
especial àqueles que foram meus professores: Antonádia Borges, Carlos Fausto e Federico
Neiburg. Também à amiga Marcela Coelho de Souza, que foi colaboradora em um dos cursos
que assisti.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa
concedida.
Aos meus professores de Antropologia da Graduação em Ciências Sociais no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ. Principalmente: Elsje Maria Lagrou, Marco
Antônio da Silva Mello, Maria Laura Cavalcante, Olívia Gomes da Cunha e Peter Fry.
Também aos professores de outras áreas, como os amigos Luiz S. C. Sampaio, que foi o
primeiro a despertar meu interesse para as chamadas ciências exatas, e Ricardo Kubrusly, de
quem assisti aulas no Mestrado em História das Ciências das Técnicas e Epistemologia, além
de tê-lo acompanhado em algumas boas degustações de cachaça.
A todos os funcionários e membros da Academia Brasileira de Ciências, instituição em que
tive o prazer de trabalhar durante a graduação, e prestar diversos serviços durante o mestrado,
e onde muito aprendi. Em especial: Marilda do Nascimento, Márcia Graça Melo e Paulo de
Góes Filho.
Aos meus colegas de turma, ingressados no Mestrado em Antropologia Social do Museu
Nacional em 2004. Foi sem dúvida uma turma heterogênea, diversa quanto a anseios e
opiniões, mas havia ali um verdadeiro sentimento de turma, uma intensa troca de
experiências, e uma alegria de descoberta. Agradeço a todos sem exceção. À Andréa, Clara,
Elisa, Marina V.G., Marina, Marcela e Thiago. Especialmente à Ana, Camila, Julia, Julieta,
Vicka (doutorado), Virna e Zé Renato, que são, tenho certeza, amigos para toda vida.
Também aos demais colegas de Museu Nacional pela boa convivência. Meus veteranos,
Alessandra, Cecília, Elena, Joanna, Levindo, Luiz, Martin, Paulinha, Paulinho, Pedro, Renata.
Aos meus calouros: Bruno, Gabriel, Helena, Indíra, além de Bete e Suiá, minhas amigas desde
a graduação. A Felipe que me sucedeu na secretaria do Núcleo de Transformações Indígenas.
Aos meus eternos amigos Zé, Pedrão, Tutu e Mariola, pelos poucos e importantíssimos
momentos de fuga do mestrado. Também Gil, Daniel, Diogo, Rodrigo e especialmente a
Bruno.
A Salvador Schavelzon (El Sabota), que se tornou durante o período de mestrado um grande
amigo e interlocutor.
A Flavio Gordon (atualmente Aroki), um cara realmente admirável, e um grande amigo desde
a graduação, que nas nossas infindáveis conversas abalou irremediavelmente meu
pensamento. Não bastasse isso, me deu um apoio sem o qual eu dificilmente teria terminado a
dissertação, dando opiniões, fazendo revisões etc..
Sou grato a todas as pessoas que participaram a diferentes graus de proximidade do Núcleo de
Transformações Indígenas, da rede Abaeté de Antropologia Simétrica e, sobretudo, das mesas
nas sextas-feiras do Aurora. Em especial à Tânia S.Lima.
A Ovídio de Abreu, Aparecida Vilaça e Emerson Giumbelli, por terem gentilmente aceitado
integrar a minha banca examinadora. Especialmente agradeço a Marcio Goldman pelas
incríveis aulas, pela amizade, e pela influência profunda que exerceu nas minhas idéias, sobre
antropologia, política etc.
Ao meu Orientador Eduardo Viveiros de Castro, por abrir espaços para o pensamento na
Academia, pela generosidade com que partilha o seu conhecimento e, sobretudo, pela enorme
paciência que teve com um orientando sempre confuso como eu fui.
A toda minha família, com um pedido de desculpas, por ter ficado tão distante durante o
período do Mestrado. A Dominguinha pela assistência logística.
A Cássia pela compreensão e pelo carinho.
A meu irmão Nando pelos exemplos de vida.
A Meus pais Verônica Aguiar Barreto Araujo e Luiz Carlos Saint-Just Araujo pela
compreensão infinita e por me proverem de todo apoio e amor de que um filho pode precisar.
SUMÁRIO
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Antecedentes.............................................................18.......................
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Vida, trabalho, linguagem e mito..............................40
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: Ciências humanas e Estruturalismo...........................53
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: Apontamentos para uma antropomitia..................................79
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Ficção científica [...] no sentido em que os pontos fracos se revelam.
Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos
ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo
a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta
extrema que separa o nosso saber da nossa ignorância e que faz passar um no
outro. É apenas deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a
ignorância é transferir para a escrita para depois ou, antes, torná-la
impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação
ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e
a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência mas de uma
maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica.
Gilles Deleuze
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Tomemos a seguinte assertiva como ponto de partida:
A antropologia tal como a conhecemos assenta sobre três polaridades
conceituais que poderíamos chamar condicionantes ou congênitas: as
oposições entre Primitivo e Civilizado, Indivíduo e Sociedade, e Natureza e
Cultura. Virtualmente todos os debates teóricos e distinções escolásticas
importantes do século passado giraram em torno do peso relativo de cada um
dos pólos dessas três dualidades na definição do objeto próprio da disciplina.
Nos últimos anos do século, entretanto, tais polaridades foram o alvo de uma
crítica cerrada e entraram em crise terminal. Hoje, elas não mais definem o
horizonte da disciplina. Com isso, finda uma fase histórica das ciências
humanas. (Retirado de http://abaete.wikia.com, em 26/02/2007)
O que fez com que tais antinomias tenham definido os limites da “antropologia tal
como a conhecemos”, e quiçá das ciências humanas como um todo? E porque teriam deixado
de fazê-lo? Como avançar em outra direção? Elaborar um plano em que tais questões possam
ser abordadas, localizar os pontos notáveis pelos quais se deve passar para tratá-las, são, em
linhas gerais, o objetivo desse trabalho. E é com tais questões em mente que buscamos
conectar uma reflexão sobre a história – essa que, na base do empreendimento antropológico,
nos permitiu ligarmos-nos a outras sociedades “a maneira da pura teoria” (FOUCAULT,
2002, p.522) –, ao ponto de inflexão a partir do qual, tornou-se possível visar a “pura teoria”
de fora, desde o estabelecimento de novas relações com as narrativas que se convencionou
chamar ‘mitos’. Assim, trata-se de chegar às análises de Claude Lévi-Strauss sobre os mitos
dos coletivos ameríndios. Nessa primeira etapa – e esse é o primeiro passo de uma pesquisa
de mais fôlego – trata-se apenas de balizar tal empreendimento e buscar modos de desfazer
aquilo que em ‘nós’ ainda o torna impraticável. Assim começa-se por situar, em um
entrecruzamento, que chamaria, por falta de um nome melhor, de “Mitologia do Ocidente” –
refiro-me ao ponto em que, por acidente, se seccionam os três sentidos da expressão em um
12
encontro que, se pode dizer, dá realidade, e “a realidade”
1
, a um Ocidente: (1) mitos que
tratam da origem do Ocidente, (2) as elaborações ocidentais sobre os mitos dos outros, e (3) o
conjunto dos mitos contados no Ocidente. Partir dessa conexão () é, possivelmente, um
modo de romper com a negatividade do conceito de ‘mito’, que parece ter sido, desde as
remotas origens platônicas até a modernidade, uma condição necessária para que a ‘Razão’
tenha podido concentrar-se monodicamente sobre si mesma
2
.
Assim disse Nietzsche:
(...) é inútil reunir ao redor do homem moderno, para seu reconforto, toda a
‘literatura universal’, e colocá-lo no meio, sob os estilos artísticos e artistas
de todos os tempos, para que ele, como Adão procedeu com os animais, lhes
dê nome: ele continua sendo afinal, o eterno faminto, o ‘crítico’ sem prazer
nem força, o alexandrino, que é, no fundo, um bibliotecário e um revisor e
que está miseravelmente cego devido à poeira dos livros e aos erros de
impressão. (
NIETZSCHE, 2006a, p.112)
Mas se já não temos a esperança do renascimento de um pré-moderno, e menos ainda
de um trágico pré-socrático – como o tinha o autor do trecho – nos resta apenas imaginar
formas de minar essa posição de centralidade (panoptismo do homem moderno em sua
biblioteca), pensar o centro já tendo em mente as relações transversais de que é feito, as
relações em que pode vir a se envolver, no limite: pensar sem centro – esse ponto de
transcendência de onde bibliotecário se coloca como mediador de todos os eventos. A questão
que se põe é: como se poderia partir da heteróclita seção que, no ‘canto’ da biblioteca, encerra
todas as narrativas de ordens que não cabem na ordem do bibliotecário?
1
“Passar de um mundo fictício à realidade e também o contrário, de um mundo fictício a outro, do âmbito das
regras ao âmbito das metarregras, faz parte, é claro, da potencialidade da espécie humana. Contudo, numa
cultura específica (a nossa) é que a distinção entre esses níveis foi teorizada com sutileza por vezes extrema, sob
o impulso excessivo e convergente da filosofia grega, do direito romano, da teologia cristã. A elaboração de
conceitos como [...], fictio, signum é tão-somente um aspecto da tentativa de manipular a realidade de maneira
cada vez mais eficaz. O resultado está diante dos nossos olhos, incorporando objetos que adotamos (inclusive o
computador em que digito estas palavras). Do patrimônio tecnológico que conferiu aos europeus a possibilidade
de conquistar o mundo fazia parte também a capacidade, acumulada no curso dos séculos, de controlar a relação
entre o visível e o invisível, entre realidade e ficção.” (GINZBURG, 2001, p.57).
2
Para um
13
Se “o universal está no fim” (DELEUZE & GUATTARI, 1976, p.177), pode-se
começar por aí, pelo fim, pelo universal, pelo histórico, mas tendo em vista o canto, os cantos,
a história que se poderá traçar partindo dali. Começar pelo Ocidente, por sua História, ponto
de cristalização e centralização, ficção suprema de nós, que, quer queiramos ou não,
determina já nossa relação com as narrativas a que chamamos ‘mitos’ – com a vida e a
realidade dos outros: “L’imaginaire, c’est la realite des autres...” (VEYNE, 1983, p.98). –,
mas que é, por outro lado, inteiramente atravessada e constituída nessas relações que o agitam
e movimentam por baixo, fervilhando sob sua face.
Trata-se, pois, de falar de História, história de uma pré-antropologia e de uma
dimensão perene de toda antropologia (potencial de reversibilidade da Razão do antropólogo
3
,
que se faz notar fortemente na obra de Lévi-Strauss, mas que, é claro, não começa aí), à luz de
fabulações sobre uma antropologia por vir. Mas antes, uma ressalva: fixar um sem número de
encontros e movimentos do pensamento em um mesmo estrato do tempo, correlacioná-los a
uma dada formação histórica, epistemológica e, em última análise, política, para assim
esboçar os fundamentos da criação do teria sido, uma renovada “mitologia do Ocidente”, são
aqui apenas as condições mínimas para que possamos dar a ver precisamente modos de
escapar a esta formação. Experimentar as linhas de fuga dessa centralização provisória que os
pontos de enrijecimento que selecionamos para determiná-la, ao mesmo tempo em que ela os
determina em nós, nos permite entrever em nosso próprio tempo. Trata-se, portanto, de nos
conectarmos a um estrato histórico para, a partir dele, tocar um plano de consistência
4
.
. Pretende-se observar como os princípios que orientam aquela recomposição geral do
pensamento – operada em outro tempo e em outras relações, e que nos permitem,
3
Sobre o conceito de antropologia reversa, ver: Wagner, 1981.
4
“O agenciamento ficava entre duas camadas, entre dois estratos, tendo portanto uma face voltada para os
estratos (nesse sentido é um interestrato), mas também uma face voltada para outro lugar, para o corpo sem
órgãos ou plano de consistência (era um metaestrato). Na verdade o próprio corpo sem órgãos formava o plano
de consistência, que se tornava compacto ou mais espesso no nível dos estratos” (DELEUZE&GUATTARI,
2002-2005, v.1, p.54). Ver também: Ibid., v.3, p.24.
14
precisamente, distinguir ali uma determinada formação histórica particular – se estratificam
em nós, para nós, nas nossas relações (sobretudo nas que se querem puramente teóricas); daí,
passar pelos bloqueios de conexões (axiomática), pelas organizações em estratos
(estratômetros), pelas centralizações em buracos negros (segmentômetros) e pelos precipícios
em que, saindo daí, ameaçamos lançarmos-nos (deleômetros), aos agenciamentos mais
profundos em que se entretecem, onde podem ser feitas novas conexões criativas
5
(DELEUZE
& GUATTARI, 2002-2005, v.5, p.230). Ir até onde imaginamos ser possível apontar modos
de produzir convulsões, vibrações, decomposições, defasagens, dissonâncias, promover
estranhos encontros, liberar o plano de composição que opera por vazamentos e contágios
(DELEUZE&GUATTARI, 2002-2005, v.4, p.23), comunicações transversais entre
populações heterogêneas, e que antecede, ladeia e já aguarda ao lado de quaisquer estratos
históricos, formações sociais ou unidades geográficas e culturais.
Não se trata apenas de liberar relações trans-históricas (e entre distintas séries
históricas) verticais – como entre os pensadores do século XIX e nós, ou entre ambos e os
pensadores do renascimento ou os antigos gregos – mas de enfocar a maneira como a
ordenação da História, e de uma meta-história, condiciona as relações de vizinhança,
horizontais, com os territórios existenciais de outros coletivos, fazendo sobrevir os “nós” que
vem dar aqui. Pode-se, assim, adiantar desde já, que são esses “nós”, inúmeras vezes
repetidos, que devem, ao fim e ao cabo, ser desatados; esses “nós” que nos prendem ao
momento em que se estabelece essa história ou, a bendizer, a “História”, desde os gregos. Nós
engendrados a partir de traços, linhas e lineamentos advindos de toda parte – linhas de outras
5
Estas apresentam interessantes ressonâncias com os quatro perigos apontados por Castañeda, tal como
analisadas por Deleuze: “medo”, “clareza”, “poder” e “o grande desgosto” (em Castañeda esse último aparece
como “velhice”). (Cf. Ibid., v.3, pp.109-115).
15
tramas, linhas de vida, linhas de fuga
6
– nós entrelaçando, em um mesmo nó
7
, o sujeito, o
Homem e o Ocidente; nós, os seres da história, sim!, nós, os modernos
8
.
Retorcer o pensamento, mirar o Ocidente, de dentro, desde seus limites e, no limite,
desfazer a “monocentragem” que faz rebaterem-se uns sobre os outros: o Ocidente, o Homem,
o Sujeito (o pai, o chefe, etc.). Passar para o outro lado, território da esquizofrenia e dos
mitos, em que se esvaem os centros, as calcificações, hierarquias coroadas e as dualidades de
que se faz nosso solipsismo. Esse é um empreendimento que arrasta todo um conjunto de
reflexões de uma antropologia nascente, mas que pode encontrar antecessores, ou melhor,
seus intercessores
9
, em diversos pensadores do Ocidente. No campo da filosofia, cabe aqui,
citar quatro autores basais, cujas idéias são aptas a nos livrarem de um kantismo quase
espontâneo de sociólogos, hegelianismo de modernos e de um platonismo enraizado de
ocidentais. Tais idéias, produzidas em dois momentos históricos distintos, balizam, enquanto
exploram, três “limites” do Ocidente: um fundo do qual se teria desprendido em um passado
longínquo (o mito); suas bordas nos interstícios da história; e seu limiar de desvanecimento,
6
“Poder-se-ia acreditar que os segmentos duros são determinados, predeterminados socialmente,
sobrecodificados pelo Estado; tender-se-ia, em contrapartida, a fazer da segmentaridade maleável um exercício
interior, imaginário ou fantasioso. Quanto à linha de fuga, não seria esta inteiramente pessoal, maneira pela qual
um indivíduo foge, por conta própria, foge às ‘suas responsabilidades’, foge do mundo, se refugia no deserto, ou
ainda na arte... etc. Falsa impressão. A segmentaridade maleável não tem nada a ver com o imaginário, e a
micropolítica não é menos extensiva e real que a outra. A grande política nunca pode manipular seus conjuntos
molares sem passar por essas microinjeções, essas infiltrações que favorecem ou lhe criam obstáculos; e mesmo,
quanto maiores os conjuntos, mais se produz uma molecularização das instâncias que eles põem em jogo.
Quanto às linhas de fuga, estas não consistem nunca em fugir do mundo, mas antes em fazê-lo fugir, como se
estoura um cano, e não há sistema social que não fuja/escape por todas as extremidades, mesmo se seus
segmentos não param de se endurecer para vedar as linhas de fuga. Nada de imaginário nem de simbólico em
uma linha de fuga. Não há nada mais ativo do que uma linha de fuga, no animal e no homem. E até mesmo a
História é forçada a passar por isso, mais do que por ‘cortes significantes’. A cada momento, o que foge em uma
sociedade?” (DELEUZE&GUATTARI, 2002-2005, v.3, pp. 78-79). Ver também: Ibid, v.5, p.222.
7
“Num regime flexível, os centros já procedem como nós, olhos ou buracos negros; porém não ressoam todos
juntos, não caem num mesmo ponto, não convergem para um mesmo buraco negro central.”
(DELEUZE&GUATTARI, 2002-2005, v.3, p.86). Ver também: Ibid, p. 87
8
Uso o termo moderno no sentido em Foucault o emprega, designando o período que começa com na viragem
dos séculos XVIII e XIX.
9
“O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas –
para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até
animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios
intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos
perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se
trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê.” (DELEUZE, 2006, p.156)
16
transbordamento, um devir. Referimo-nos respectivamente a Nietzsche, Foucault e Deleuze
(com ou sem Guattari): cada qual explorando mais detidamente um limite, mas projetando
virtualidades que atravessam todo esse espectro de exterioridades. Nessa medida mesma é que
os autores situam as três conexões entre as quais oscila o trabalho.
Entretanto, toda formulação vaga sobre as “bordas do Ocidente” conduz-se a adquirir
uma potência antropológica, na medida em que caminha para um encontro com uma posição
de exterioridade concreta, irredutível ao solipsismo da consciência, produzindo abalos
irreversíveis no pensamento. Estes abalos são o que o antropólogo procura. E os encontramos
no mesmo tipo de impulso que fez um autor como Lévi-Strauss, por exemplo, se distanciar
das filosofias da consciência em voga no campo acadêmico ocidental a partir das décadas de
50 e 60 (Bergson, Sartre etc.), em direção a uma posição de exterioridade particular: no seu
caso, as sociedades indígenas sul-americanas. É por motivos análogos que este autor torna-se
aqui peça fundamental, via de inclinação de uma discussão que, de outro modo, restaria
apenas filosófica (ou, antes, apenas filosoficamente ‘nossa’), para encaminhar uma discussão
propriamente antropológica e, conseqüentemente, para uma filosofia ela mesma renovada.
Como diria Tim Ingold “anthropology is philosophy with the people in” (INGOLD apud
VIVEIROS DE CASTRO, 2002b). Sigamos a pista de Lévi-Strauss (1989, p.275):
“Aceitamos, pois, o qualificativo de esteta, por acreditar que o objetivo último das ciências
humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo”.
Continuemos nessa direção, desfazer os ‘nós’, dissolver o homem.
Cumpre, por ora, seguir quatro etapas: situar as margens entre as quais a razão,
recognitiva ou representativa, se move (mito e esquizofrenia); seguir as raízes históricas das
três antinomias (Natureza e Cultura, Indivíduo e Sociedade, Primitivos e Civilizados) e os
modos pelos quais se estratificam em ‘nós’; demonstrar como o estruturalismo se articula às
mesmas e – já me adiantando nas conclusões – as exaure; para só então, brevemente, apontar
17
meios de utilizar ‘mitos’ como filtros para decodificar a ‘pura teoria’, a que a história os opôs
(explorar virtualidades ‘menores’ do estruturalismo, parcialmente bloqueadas tanto pelo
próprio Lévi-Strauss, quanto por boa parte da antropologia posterior). Pede-se ao leitor que
aceite apenas a seguinte hipótese metodológica: os universos expostos nas histórias a que
chamamos “mitos” (tanto quanto na ‘nossa’ História, ou a ‘nossa’ ciência) não são meramente
expressivos, mas constituintes das socialidades – “Sociality is a becoming, not a become,
thing” (WAGNER, 1974, p.112) – que os engendram (e vice-versa).
Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não
remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à
multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra
marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras. ‘Os fios ou as
hastes que movem as marionetes – chamemo-los a trama. Eles mergulham
através de uma massa cinza, a grade, até o indiferenciado...o jogo se
aproxima da pura atividade dos tecelões, a aquele que os mitos atribuem às
Parcas e às Norns
10
. Um agenciamento é precisamente este crescimento das
dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à
medida que ela aumenta suas conexões. (DELEUZE & GUATTARI, 2002-
2005, v.1, pp.16 -17).
10
Fiandeiras mitológicas que tecem a regulação da vida desde o nascimento até a morte.
18
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:
: Antecedentes.
“Um dia, em tempos muito antigos...”, “No tempo em que os homens e os bichos
ainda não se distinguiam...”, “Não havia árvores, animais, rios, nem alimento quando a terra
se formou...”, “Nascido do vasto abismo o mundo agora tem chão...”
11
, apenas reconto tal
como me chega! Deste modo se iniciam “mitos”, histórias que faz muito, muito tempo, os
Homens teriam começado a contar-e-recontar
12
a respeito dos acontecimentos de épocas
remotas em que a ordem atual do cosmos ainda não se havia estabelecido
13
. Grosso modo,
chama-se mitos às histórias de outras, e diversas, terras e tempos (heterogênese?
14
), tal como
recompostas em dado momento e lugar; às histórias dos antigos, dos bárbaros e selvagens
15
,
dos “outros”. Histórias que estes recebem de seus antepassados e de povos vizinhos, próximos
11
(1) Mito Bororo, Brasil central, recolhido por Colb. & Albisetti (apud LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 57); (2)
Parafraseio Lévi-Strauss, falando sobre qual seria a reposta de um ameríndio para a pergunta “o que é um
mito?”, em que diz: “Se você perguntasse a um índio americano, é possível que ele respondesse: ‘é uma história
do tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam’. Esta definição me parece muito profunda.”
(LÉVI-STRAUSS & ERIBON apud VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 354); (3) Mito Kaluli, terras altas
meridionais da Nova Guiné, analisado por Schieffelin (apud SAHLINS, 2004, p.580); (4) Cosmogonia grega
recontada por Vernant (2005a, p.18).
12
Não estaria nesse movimento o ser da
19
ou longínquos, a respeito das peripécias dos seres de outras eras e mundos. Os mitos são, por
assim dizer, as histórias dos “outros” dos “outros”, as duas vezes no duplo sentido da
preposição
16
, mas que apesar de terem distância da alteridade (ou as conexões das
multiplicidades?) por motivo e origem, guardam com
20
da mitologia e religião
19
. A essa ruptura que determinava um vetor de progresso, houve
sempre resistência, ainda que isso pudesse significar a busca de um retorno daquilo que fora
perdido.
* * *
Na obra de Nietzsche (O Nascimento da Tragédia), vê-se a nostalgia romântica do
fundo, do passado perdido, passado da Tragédia que, embebida no mito, teria conjugado as
potências dionisíacas de criação, desmedida e descomedida, e a harmonia da estetização
apolínea. Tragédia essa em que toda lírica seria concebida como espelhamento imagístico e
conceitual da música, jogo de imagens e proto-imagens, visibilidades e invisibilidades
20
, de
forma a que, mesmo tendo por tema o doloroso, hediondo, não deixasse de suscitar prazer
estético, ao modo do que ocorre na dissonância musical (NIETZSCHE, 2006a, p.50 e141).
Para Nietzsche, a experiência trágica, por força de estetizar o terrível, então irredutível a uma
mera aparência, teria intensificado a pujança de vida do povo grego: sua disposição para o
prazer, tanto quanto para a dor. Trata-se assim, em sua obra, de saudar o renascimento do
trágico nos campos da arte e da filosofia – o renascimento, no íntimo do povo alemão, do
espírito trágico do grego de antes de Sócrates, ora audível na musica de Richard Wagner. Em
suma, se deveria afirmar a vida, frente à Civilização Alexandrina, que desde Sócrates viria
incansável e patologicamente buscando o racional, a verdade, pondo em marcha o espírito
19
“O pensamento, antes de mais nada, manifesta-se apenas no círculo da religião, como não livre e em
expressões singulares. No segundo estádio, o pensamento reforça-se apoiando-se em si mesmo e assumindo
atitude hostil com a outra forma, na qual já não se reconhece. No terceiro momento, o pensamento acaba por se
reconhecer neste outro [...] Assim, vemos a filosofia ligada e confinada primeiramente no âmbito do paganismo
grego; depois, repousando sobre si mesma, partir contra a religião popular e assumir, a respeito desta, atitude
hostil; colher ao fim o íntimo da própria religião e nela reconhecer-se” (HEGEL, 1974, p.375-376). Em outro
trecho da mesma obra, Hegel coloca: “Todavia, da nossa história da filosofia deve ser excluída a mitologia, e
isso porque na filosofia temos em mira os filosofemas como tais,833 88 352.41 151.04039 Tm(m)Tj10.02 0 0 4 Tm(a, e )Tj-0.00129.02 0 Tm(m)Tj10.02 39 Tm(o)Tj10.02 0 0 10.178 78.07146 151.040 os 39 Tm(p)Tj10.02 0 002 .987391.97707 151.040Tm(a de)Tj10.02 0 0 10.369 300.9008 151.040 tais,833 88 352.41 12 2.40968.77301 151.04039 Tm(s)Tj10.02 0 0410.247116.07973 151.04034 Tm(a)Tj10.02 0 0430.002 78.07146 151.040(da a m)Tj10.02 0 0 40.020168.07597 151.040e tais,833 88 352.41 1210.002 38.07597 151.040t39 Tm(o)Tj10.02 0 0 10.2 29 Tm(m)Tj10.02 s m(ao fim)Tj10.02 0 0410.52 234.44284 151.04039 Tm(p)Tj10.02 0 0080.023668.07597 151.040Tm(excl)Tj10.02 0 0 29.3.0778.07146 151.0404 Tm(uí)Tj10.02 0 0 92.022 48.07146 151.040c(uí)Tj10.02 0 0 90.078568.07597 151.040it39 Tm(o)Tj10.02 0 0510.12 247.37419 151.040s n Tm(rqu)Tj10.02 0 0510.541 300.9008 151.04076). Em
21
científico e depreciando a vida, para submetê-la aos proclamados “valores superiores”.
Nietzsche declara guerra ao socratismo, que teria mutilado a unidade entre pensamento, arte e
vida, subordinando toda a criação ao entendimento à compreensão teórica, que não seria
senão a redução da vida às suas formas mais fracas. Formas estas expressas no otimismo
dialético, na serenojovialidade do helenismo posterior. Tratava-se de resistir ao Socratismo
Estético, “cuja suprema lei soa mais ou menos assim: ‘Tudo deve ser inteligível para ser
belo’, como sentença paralela à sentença socrática: ‘Só o sabedor é virtuoso’”
(NIETZSCHE, 2006a, p.81).
Da boca da modernidade, Nietzsche pretende enunciar o pecado original socrático. A
queda do Homem trágico, que teria encontrado sua melhor expressão em homens como
Ésquilo, antes que, com Sófocles, se instaurasse na tragédia um caráter mais representativo e
um refinamento psicológico que já atraiçoa a potência dionisíaca do mito, antes que Eurípides
abrisse o caminho da nova comédia ática, apontando em direção a uma secularização da
tragédia
21
, e, finalmente, antes que um jovem autor de tragédias queimasse todas as suas peças
para tornar-se aluno de Sócrates, posteriormente criando um novo estilo literário que,
alimentando-se de todos os estilos precedentes, “paira no meio, entre narrativa, lírica e
drama, entre prosa e poesia” (NIETZSCHE, 2006a, p. 88) como antes havia feito a própria
tragédia, mas agora sufocando sua força vital: nasce o diálogo platônico. O herói do romance
platônico, Sócrates, como o herói euripidiano, defende suas ações por meio da razão, júbilo da
consciência dialética frente à compaixão trágica. Instaura-se “Esse elemento otimista que,
uma vez infiltrado na tragédia, há de recobrir pouco a pouco todas as suas regiões
dionisíacas e impeli-las necessariamente à destruição – até o salto mortal no espetáculo
21
Eurípedes teria, no espírito sofista, participado ativamente de um processo de secularização da tragédia,
lutando contra os Deuses da religião tradicional, ainda que, e uma de suas últimas Obras, As bacantes, “Dionísio
aparece bem no centro espiritual do drama que outrora emergira de seu culto”, o que coloca para os especialistas
um espinhoso problema (Cf. Albin Lesky, 2003, p.267). Em seu posfácio “Nietzsche no teatro”, J. Guinsburg
aponta os quatro pecados capitais de Eurípides, segundo Nietzsche: “a épica desmistificada, o realismo
mimético, o socratismo crítico e o otimismo científico.” (2006a, p.163). Segundo Jaeguer: “aparecem em
Eurípedes pela primeira vez, como dever elementar da arte, a vontade de traduzir nas suas obras a realidade tal
como a experiência a proporciona.” (2001, p.397).
22
burguês?”. Assim, da destruição do mito originário surgiria o “homem abstrato, guiado sem
mitos, a educação abstrata, os costumes abstratos, o Estado abstrato”, como dilacerado pela
falta de uma unidade de fundo e condenado a “pobremente nutrir-se de outras culturas”,
cavoucando em busca de todos os passados e raízes alheias. Nesse ponto, Nietzsche parece
antecipar e conjurar outras formas de resistência ao Ocidente. Escreve:
Não parece possível transplantar com êxito duradouro um mito estrangeiro
sem ferir incuravelmente com esse transplante a própria árvore: a qual é
alguma vez, quiçá, bastante forte e sã para excisar, com uma luta terrível
esse elemento estranho, mas que em geral tem de consumir-se, doentio e
atrofiado, ou em espasmódica proliferação. (NIETZSCHE, 2006a, p.138
grifos meus).
Nietzsche se embriaga no antigo vinho, do fundo dos tempos, saborosa bebida de
Dionísio. Combate os ditames da dialética socrática que, como dirá em Além do bem e do mal,
engendra as oposições de valores (tais como entre bem e mal, verdade e ilusão, inteligível e
sensível, essência e aparência etc.
22
) – “reconhecer a inverdade como condição de vida: isto
significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e
uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal”
(NIETZSCHE, 2006c, p.11) –, combaterá a suposição de um sujeito agente, o primado da
origem do movimento e, assim, das intenções – o homem como seu próprio Estado.
Introduzirá os efeitos da embriagues trágica em sua filosofia, concebendo os seus conceitos
como personagens, chegando mesmo a escrever “Assim falou Zaratustra”, mais como uma
tragédia do que como um livro filosófico tradicional. Como afirma em “Ecce Homo”, busca
22
“Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição
mais mal demonstrada que já houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com
base em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso entusiasmo e a rudeza de tantos
filósofos, quisesse abolir por inteiro o ‘mundo aparente’, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo – também da
sua verdade não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre
‘verdadeiro’ e ‘falso’? Não basta a suposição de graus de aparência, e como que sombras e tonalidades do
aparente, mais claras e mais escuras – diferentes valeurs [valores], para usar a linguagem dos pintores? Por que
não poderia o mundo que nos concerne – ser uma ficção? E a quem faz a pergunta: ‘mas a ficção não requer
um autor? ’ – não se poderia replicar: Por quê? Esse ‘requer’ não pertenceria também à ficção? Não é
permitido usar de alguma ironia em relação ao sujeito, como em relação ao predicado e objeto? O filósofo não
poderia se erguer acima da credulidade na gramática?” (NIETZSCHE, 2006c, p.39, grifos meus)
23
um “deslocamento de perspectivas” que permita fazer da doença um ponto de vista para
observação da saúde, assim como da saúde um ponto de vista sobre a doença, a chave para
uma inversão radical, transformação dos valores – e não se deve minimizar a importância das
relações míticas entre a embriaguez dionisíaca e a demência (Cf. NIETZSCHE, 2006a, pp.17-
18). Mas se é verdade que bebe, e muito, desse refinado vinho antigo, afirma a potência do
filósofo como criador. Quer matar o grego! (Ibid, p.91) Também é verdade, em certo sentido,
que não deseja misturar. Não deseja outros mitos! De todo modo, e talvez adiantando um
pouco as coisas, poderíamos nos perguntar: por que não “ferir incuravelmente a árvore” (a
‘nossa’ cultura)? E o que dizer de sua atrofia e ou proliferação espasmódica?
Talvez possamos guardar desse pensamento a idéia de que o homem moderno está
“miseravelmente cego”, de que foi necessário que algo acontecesse para isso, de que se pode
desfazer alguma coisa no presente para mudar tal estado de coisas. Deleuze, quando pretende
“reverter o platonismo” – empreendimento que é especialmente marcado em Diferença e
Repetição e Lógica do Sentido, mas que, provavelmente, acompanha toda a sua obra – se
lança em uma empreitada semelhante, mas não se trata apenas de reaver algo que teria sido
perdido, mas de promover novos encontros conexões criativas entre, por exemplo, a Alice de
Lewis Carroll e as dualidades dos Estóicos (misturas de corpos e transformações incorporais).
Interessa especificamente aqui que Deleuze tenha apontado a quádrupla sujeição da diferença
ao ‘mesmo’, característica do platonismo – identidade no conceito, oposição no predicado,
analogia no juízo e semelhança na percepção – partindo do “mundo clássico da
representação” dos séculos XVII e XVIII, tal como definido por Foucault
23
(não fica bem
definido se o platonismo chega lá via as diferenças genéricas e específicas que, advindas do
Organon de Aristóteles, o “feliz momento grego”, passam a vigorar nos saberes de então, ou
23
Cf. DELEUZE, 2000, p.419. Segundo Delanda: “To avoid falling prey to representationalism (or as I call
typological thinking) Deleuze follows Foucault analysis of classical representations, witch according to the latter
forms an epistemological space with four dimensions, or ‘degrees of freedom’: Identity, resemblance, analogy
and opposition” ( 2004, p. 53). Ver também pp. 38-41.
24
se pela própria influência do cristianismo “platonismo para o ‘povo’” (NIETZSCHE, 2006c,
p.8), ou, o mais provável, devido a uma conjunção de ambos dificilmente traçável). Assim,
seguiremos daí, e não da Grécia Antiga, para analisar brevemente o que ocorria na
modernidade de onde fala Nietzsche, o que se passava no plano do conhecimento quando do
salto mortal no espetáculo burguês” e então buscar formas de sair disto.
Assim, trata-se de seguir a árvore, das raízes às folhas, em seu próprio eixo genético e
nas estruturas profundas que pressupõe, mas abrindo o caminho, para que futuramente seja
possível estabelecer para ela novas conexões. Pois se a mitologia do Ocidente é uma
mitologia das arborificações, nem todo mito diz respeito necessariamente à ancestralidade e à
descendência, e menos ainda á história. Há toda uma mitologia da aliança e do contágio, da
proliferação e do devir
24
. Deleuze assim distingue a árvore (descendência, história) do rizoma
(aliança, geografia, comunicações transversais):
Ser rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou, melhor
ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las
servir a novos e estranhos usos. Estamos cansados da árvore. Não devemos
mais acreditar em árvores, em raízes, ou em radículas. Toda a cultura
arborescente é fundada sobre elas, da biologia à lingüística. Ao contrário,
nada é belo, nada é amoroso, nada é político a não ser que sejam arbustos
subterrâneos e raízes aéreas, o adventício e o rizoma. (DELEUZE &
GUATTARI, 2002-2005, v.1, p.25 – grifos meus)
Por outro lado, imaginamos que há também um plano intensivo, onde só há uma
mitologia, ou melhor, onde a mitologia é justamente o encontro, a pura relação, a partir do
qual se definem as instâncias relacionadas
25
, e onde todas as diferenças permanecem em
estado virtual, rebatendo-se a cada momento sobre o atual, por exemplo, da distinção entre
antropólogos e nativos ou nós e os ‘outros’. Parafraseando Deleuze, não há vazio entre
mitologias (o centro, o homem na biblioteca), assim é que se faz necessário analisar os
24
Em relação, por exemplo, à mitologia amazônica, ver E. Viveiros de Castro, no texto Demoniac Alliance e
Intensive Filiation, no prelo.
25
Pode-se aqui fazer uma conexão com o conceito cultura, tal como usado por Roy Wagner, 1981.
25
bloqueios através dos quais uma “mitologia do Ocidente” pretende retirar-se desse plano
instituindo para si um ponto de transcendência. Daí a importância das “Mitológicas” de Lévi-
Strauss – “esse livro sobre mitologia é ele próprio um mito” – para uma antropologia, que
coloque o seu discurso na mesma ordem de grandeza do discurso que ela pretende analisar.
Este poderá ser um ponto de apoio para uma recusa da dialética ascendente platônica ou
hegeliana, ou ainda da transcendência kantiana (ainda que, por vezes, o próprio Lévi-Strauss,
como se verá, parece acometido destes pontos de vista), ou ao menos de seus efeitos sobre as
análises antropológicas. A mitologia (tal como elaborado pelo estruturalismo) é, pois, um
mecanismo interessante de imanentização dos discursos ‘antropológico’ e ‘nativo’, visto que
tais discursos, como os mitos, também são versões uns dos outros, eles não possuem referente
externo a ambos (um meta-discurso): um é o referente do outro. Essas conexões não precisam,
como em Nietzsche, recorrer a uma origem, um passado ‘antes de nós’, mas a um plano
virtual e paralelo
26
:
O CsO [corpo sem órgãos] é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário,
ele é contemporâneo por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu
próprio meio de experimentação, seu meio associado. O ovo é o meio de
intensidade pura, o spatium e não a extensio, intensidade Zero como princípio
de produção. Existe uma convergência fundamental entre a ciência e o mito,
entre a embriologia e a mitologia, entre o ovo biológico e o ovo psíquico ou
cósmico: o ovo designa sempre esta realidade intensiva, não indiferenciada,
mas onde as coisas, os órgãos, se distinguem unicamente por gradientes,
migrações, zonas de vizinhança. O ovo é o CsO. O CsO não existe ‘antes’ do
organismo, ele é adjacente, e não para de se fazer. (DELEUZE &
GUATTARI, 2002-2005, v.3, p.27 – grifos meus)
* * *
Se a mitologia do Ocidente se reporta à Grécia Antiga, por outro lado, e é aí que a
coisa começa a ficar interessante para nós, ela é também tributária dos encontros com diversos
povos de outros continentes, propiciados pela expansão européia – a exemplo do que ocorreu
26
Aqui a inspiração é o elogio que Deleuze faz ao livro “Sexta Feira” de M. Tournier, ao compará-lo com o livro
“Robinson Crusoe” de D. Defoe: “Referido às origens Robinson deve necessariamente reproduzir nosso mundo,
mas, referido aos fins, ele desvia necessariamente.” (DELEUZE, 2003, p.313)
26
com a descoberta da América no final do século XV e com os intensos contatos com os povos
ameríndios pelo menos desde o século XVI, mesma época em que eram redescobertos os
textos da antiguidade. Destes povos, os pensadores do Ocidente passam a receber esse gênero
de narrativas de fundação – com um repertório “indecente”, “grosseiro”, “imoral”, “infame” e
“absurdo” (DETIENNE,1998. p.46) transmitidas oralmente de geração em geração,
confrontadas com situações cotidianas através dos tempos. Tais narrativas serão
compreendidas segundo o modelo fornecido por suas congêneres advindas da Roma e da
antiga Grécia, primeiro vão ser chamadas de fábulas ou mitologias e depois de mitos – e irão
percutir sobre o próprio imaginário a respeito da mitologia grega
27
. A palavra “mito” só passa
a ser utilizada pelas línguas modernas a partir de fins do século XVIII
28
, ao mesmo tempo em
que começam a se renovar as perspectivas sobre as narrativas ora reunidas sobre o rótulo,
preparando o terreno para as primeiras tentativas sistemáticas de constituição de uma ciência
positiva que as tomasse por objeto no decorrer do século XIX – em paralelo à constituição dos
alicerces de uma positividade da qual ainda não fomos capazes de nos desvencilhar
inteiramente (FOUCAULT, 2002, p.302).
Em As palavras e as Coisas, livro que, não por acaso, quase teve o subtítulo de “Uma
Arqueologia do Estruturalismo” (e que, neste sentido mesmo, serve de esteio a esse trabalho),
27
“Um dos muitos rigores suportados pelo Dom Juan de Byron na sua infância foi uma educação clássica, que
causava à sua mãe preocupações sem limites, pois – apesar de seu enorme respeito pelos clássicos – Dona Inês
‘tinha pavor da Mitologia’ – essa chroniques scandaleuse de deuses e deusas , ‘que nunca vestem calças ou
corpetes’.” (RUTHVEN, 1997, p.38) “A nova mitologia se apresenta de imediato como uma ciência do
escandaloso. Mas, para que haja um estado de escândalo ao qual se aplique a ciência de Muller e de Tylor –
ambos decididos a falar sobre os mitos em si mesmos –, é preciso que algum tipo de sismo tenha devastado, em
maior ou menor profundidade, a paisagem familiar da mitologia clássica. Narrativas de uma mitologia conhecida
desde sempre poderiam causar abruptamente um escândalo? [...] A referência obsessiva ao selvagem, ao iroquês
oculto sob a capa do grego parece situar o ponto nevrálgico entre as Sociedades antigas e os Povos da Natureza.”
(DETIENNE, 1998, p.18). Tal aproximação só poderá ocorrer a partir das obras de Lafitau, Moeurs des
Sauvages amériquains comparées aux moeurs des premiers temps, e Fontenelle, De l’origine des fables, ambas
de 1724, que encontraram “uma impressionante conformidade entre as fábulas dos americanos e a dos gregos”
(FONTENELLE apud DETIENNE, 1998).
28
“De tels récits, qui semblent correspondre à type déjà connu chez les Grecs e romains, s’appellent ‘fable’ (tiré
do latin) ou ‘mythe’ (tiré du grec) – un système de mythes ou une doctrine sur eux constituent une mythologie.
En fait, c’est ce dernier mot qui est premier emprunté par les langues modernes, apparaissant en français dès
1403 et en anglais dès 1462, tandis que le mot mythe n’est attesté en français qu’en 1803 et en anglais en 1838,
dans une forme écrite d’abord ‘mythe’ et qui semble un emprunt du français.” (LEAVITT, 2005, v.29, n. 2. p.7).
27
Foucault faz “A história da ordem das coisas [que] seria a história do mesmo – daquilo que,
para uma mesma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser portanto
distinguido por marcas e recolhido em identidades”. E, nessa medida, o autor atribui um
íntimo parentesco entre essa obra e A história da loucura, onde, certamente inspirado por
Nietzsche, havia intentado fazer uma “história do Outro, daquilo que é, para a cultura
Ocidental, interior e estranho, devendo ser excluído e submetido” (FOUCAULT, 2002, p.
XXII).
* * *
Foucault pretendeu, em A História da Loucura, fazer uma história que não acedesse
aos termos de uma psicologia, mas que, ao contrário, a visasse, e à Razão como um todo,
desde a sua desmedida, a partir das transformações nas práticas e nas teorias sobre a loucura,
aquilo que esta Razão projetaria como um seu reverso – como se o Ocidente fosse uma
espécie de Górgona para a qual não se pode olhar diretamente sem quedar-se petrificado,
paralisado, só podendo ser visto na imagem invertida que se reflete em um anteparo
29
. Mas
não se deve tirar disso que a loucura apareça nesta obra apenas como um reflexo, é também o
anteparo, tem consistência própria, é, aí ainda, uma experiência original – como a experiência
do trágico em Nietzsche –, recoberta por diferentes imagens, e atravessando diferentes
regimes de luz no decorrer da história, mas irredutível aos mesmos.
Sob a consciência crítica da loucura e suas formas filosóficas ou científicas,
morais ou médicas, uma abafada consciência trágica não deixou de ficar em
vigília. [...] Foi ela que as últimas palavras de Nietzsche e as últimas visões
de Van Gogh despertaram. É sem dúvida ela que Freud, no ponto mais
29
Do topo da modernidade, quase fora dela, mas com os olhos voltados para trás, Foucault faz toda uma série de
estudos históricos, sem, contudo, escrever história, mas filosofia, experimentação com a história, que nos
permitem encaminhar o problema: “A história não é experimentação; é apenas o conjunto das condições quase
negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa à história, sem a história a experimentação
permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica, é filosófica. Foucault é,
como ninguém, um filósofo plenamente do século XX; sem dúvida, o único que se desprendeu completamente
do século XIX e é por isso que pode falar tão bem dele.” (DELEUZE, 2006, p.132). Foucault elabora uma
análise do passado à luz das virtualidades de um porvir, dadas no presente, e sempre como experimentação
quer se trate de loucura, nova razão, poder ou subjetividade.
28
extremo de sua trajetória, começou a pressentir: são seus grandes
dilaceramentos que ele quis simbolizar pela luta mitológica entre a libido e o
instinto de morte. É ela, enfim, essa consciência, que veio a exprimir-se na
obra de Artaud, nessa obra que deveria propor, ao pensamento do século
XX, se ele prestasse atenção, a mais urgente das questões, e a menos
suscetível de deixar o questionamento escapar à vertigem, nessa obra que
não deixou de proclamar que nossa cultura havia perdido o seu berço trágico
desde o dia em que expulsou para fora de si a grande loucura solar do
mundo, os dilaceramentos em que se realiza incessantemente a ‘vida e a
morte de Satã, o Fogo’. (FOUCAULT, 2005, p.29)
Poderíamos, talvez, dizer que ao usar a estrutura do trágico nietzscheana para dar voz
a uma loucura que persiste contra as tentativas de seu silenciamento, submetida a um
progressivo controle, no desenrolar de suas representações pela razão na história, Foucault faz
uma diferença de fundo, primeva, distender-se no anverso da história, na imanência de toda
representação. Loucura como agenciamento anteparo-reflexo-Perseu/monstro – e lembre-se
que Perseu e Medusa são as duas faces que só podem ser miradas em um mesmo espelho, não
podendo o herói ver a si ou ao monstro senão por meio de sua superfície metálica. Assim,
observa-se ali certa oscilação entre sentidos conexos da loucura: loucura pensada como
experiência primitiva, objeto de um progressivo controle; loucura, coleção heterogênea, que
ganha consistência ao ser lançada no espaço comum do negativo, todo contrario da razão; e,
ainda, loucura pressentida como limite imanente da linguagem, o indizível que permite dizer,
que se manifesta no rumor, no ruído, no murmúrio – palavras que pululam em seus livros –
captada nas obras dos diversos artistas – Artaud, Bataille, Goya, Hölderling etc.– de que se
serve para construir uma nova perspectiva tanto sobre a Razão quanto sobre a loucura, sobre o
‘mesmo’ e sobre o ‘outro’, que, nesse extremo, devem tornar-se, até certo ponto,
intercambiáveis – pois se Perseu quer ser sempre outro, ou já outro (não quer ser fixado na
rigidez da pedra), o monstro quer arrancar-lhe o anteparo e, pela visão direta, fixá-lo na forma
de um eterno mesmo. Daí entende-se a importância que o autor dá aos experimentos artísticos
e de linguagem, nos quais se encontram a Razão e a Loucura, separadas e unidas nos
movimentos da criação – note-se o uso que a psicanálise, desde Freud, faz da mitologia, e
29
particularmente da arte trágica, compreendendo-a como expressão de forças primordiais
(desejo, morte e lei)
30
.
De certo modo, as três concepções de loucura entre as quais o autor oscila se articulam
com as três formas de representação histórica da loucura que nos conduz a experienciar, mas
que, justamente, ao situar-se em seu anverso, nos permitem atravessar, passar entre elas, sem
paralisia – pensamento como movimento, ainda que pelas fendas de uma estrutura
aparentemente rígida. A loucura, no Renascimento, sofre uma forma de controle moral
incipiente, sendo objeto tema de toda forma de arte, mas relegada por uma crítica moral ao
plano da ilusão, do sonho etc. No período clássico, a loucura torna-se o oposto do
pensamento, o erro, as semelhanças enganadoras de que a razão deveria se dar conta para se
exercer, sendo absolutamente incompatível com a mesma. Já na modernidade, seria já um
outro interior, o momento negativo de uma dialética ascendente da razão – o que,
precisamente tornaria possível a sua cura – e o seu fundo necessário.
Interessa-nos que, ao fim de As palavras e as Coisas, Foucault aponte a Etnologia e a
Psicanálise – sobretudo, o seu ‘ápice’, leia-se, a antropologia estrutural de Lévi-Strauss e a
psicanálise de Lacan – como as duas disciplinas a flertar com uma exterioridade solvente do
homem tal como o conhecemos
31
. Parece-nos, que aí se revela uma distinção e, ao mesmo
tempo, uma ligação profunda entre dois modos da alteridade, duas formas de ‘outros’ radicais
nas representações da racionalidade ocidental: os ‘objetos’ da psicanálise e o da etnologia.
30
“Se Edipus Rex comove um auditório moderno não menos do que o grego da é poça, a explicação somente
pode ser no sentido de que seu efeito não está no contraste entre o destino e a vontade humana, mas que deve ser
procurado na natureza particular do material sobre o qual aquele contraste é exemplificado. (...) Temos aqui
alguém em que esses desejos primitivos de nossa infância foram realizados, e dele nos esquivamos com toda
força da repressão através da qual esses desejos foram, desde aquela época, retidos dentro de nós.” (FREUD,
1972, v.IV, p.279, grifos meus). Para uma crítica histórica da análise psicanalítica dos mitos ver J-P. Vernant
(2005b, p.53).
31
“A psicanálise e a etnologia ocupam, no nosso saber, um lugar privilegiado. Não certamente porque teriam,
melhor que qualquer outra ciência humana, embasado sua positividade e realizado, enfim, o velho projeto de
serem verdadeiramente científicas; antes porque, nos confins de todos os conhecimentos sobre o homem, elas
formam seguramente um conhecimento inesgotável de experiências e de conceitos, mas, sobretudo, um perpétuo
princípio de inquietude, de questionamento, de crítica e de contestação daquilo que, por outro lado, pôde parecer
adquirido.” (FOUCAULT, 2002, p.517)
30
Talvez, os limites do racional e do razoável que o socratismo (ao menos o de Nietzsche) teria
feito coincidir ao lançar a boa nova: ‘obedeça somente à razão e estará obedecendo a si
mesmo, seja razoável
32
. De um lado, a alteridade interior (primitiva ou atual), sobre a qual a
psicanálise vai se lançar, nos limites da representação. Lá onde ela se depara com o desejo, a
lei e a morte, que, sem penetrar o saber que se lança sobre eles, constituem-se como condições
de possibilidade de todos os saberes, origem profunda ou lastro de toda representação e forças
que, ao irromperem para fora do representado, encarnam a própria loucura:
E precisamente quando essa linguagem se mostra em estado nu, mas se furta
ao mesmo tempo para fora de toda significação como se fosse um grande
sistema despótico e vazio, quando o Desejo reina em estado selvagem, como
se o rigor de sua regra tivesse nivelado toda oposição, quando a Morte
domina toda função psicológica e se mantém acima dela como sua única
devastadora – então reconhecemos a loucura em sua forma presente, a
loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e sua
alteridade. (FOUCAULT, 2002, p.520)
Loucura como o outro da razão, manifestação real e empiricamente observável, mas
intelectualmente inacessível, e que se apresentaria em sua mais perfeita expressão na
esquizofrenia:
É por isso que a psicanálise encontra nessa loucura por excelência – a que os
psicanalistas chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível
tormento: pois nessa loucura se dão, sob uma forma absolutamente manifesta
e absolutamente retraída, as formas da finitude em relação á qual, de
ordinário, ela avança indefinidamente (e no interminável), a partir do que lhe
é voluntária-involutariamente oferecido na linguagem do paciente. De sorte
que a psicanálise ‘reconhece aí’, quando é colocada diante destas mesmas
psicoses às quais, no entanto (ou antes, por essa razão) ela quase não tem
acesso: como se a psicose expusesse numa iluminação cruel e oferecesse de
um modo demasiado longínquo, mas justamente demasiado próximo aquilo
em que a análise deve lentamente caminhar. (FOUCAULT, 2002, p.520-
521).
32
“Basta imaginar as conseqüências das máximas socráticas: ‘virtude é saber; só se peca por ignorância; o
virtuoso é mais feliz’; nessas fórmulas básicas jaz a morte da tragédia” (NIETZSCHE, 2006a, p. 89).
31
Assim, em uma borda da racionalidade, encontra-se bem definida a loucura, que deve
ser objetificada e controlada por uma autoridade vertical, no indivíduo ou no grupo (pela
instituição psiquiátrica, o manicômio, e, em última análise, pela consciência do médico
atuando sobre a do paciente). Do outro lado, o “selvagem” ou “primitivo”, que deve ser
incluído, seja por uma expansão horizontal, garantida pelo Estado – a inexorabilidade dos
efeitos de um encontro efetivo –, seja por um vetor de seu próprio ‘desenvolvimento’
33
.
A figura do “selvagem”, substitui, possivelmente, a do poeta, que no campo cultural
europeu de até fins do século XVIII se opunha à figura do louco, sendo o primeiro aquele que
reencontra sob as diferenças cotidianas o parentesco subjacente das coisas, garantia do sentido
alegórico, e o segundo como aquele que não conhece a diferença e se perde na analogia, para
quem “todos os signos se assemelham e todas as semelhanças valem como signo”, garantindo
o homossemantismo
34
. A alteridade anterior e exterior dos chamados “selvagens” se oporá a
uma loucura – que não mais se identifica com erro ou engano, como no século XVIII, mas
que é signo de forças que são limite e lastro da representação. Loucura e primitividade
aparecem como duas formas de alteridade que não param de passar uma na outra, de se
atravessar no fundo, espaço comum de nossa sombra.
Segundo Foucault, enquanto a psicanálise seria esse saber que se coloca na dimensão
do inconsciente, que inquieta interiormente as ciências humanas; a etnologia seria um saber
que se coloca na dimensão da historicidade, que faz com que as ciências humanas sejam
contestadas de fora, por suas
32
permite ligar-se às outras culturas à maneira da pura teoria” (FOUCAULT, 2002, p.522) –,
ao mesmo tempo em que já abrem novas possibilidades de inter-relações com essas outras
culturas.
Mas essa relação (na medida em que a etnologia não busca apagá-la, mas,
ao contrário, escava-a, instalando-se definitivamente nela) não a encerra nos
jogos circulares do historicismo; coloca-a, antes, em posição de contornar
seu perigo, invertendo o movimento que os faz nascer (FOUCAULT, 2002, p.
522-523).
Diria assim que, se é lícito atribuir ao discurso do esquizofrênico o lugar onde a
psicanálise esbarra com os seus limites – como se em um ‘outro’ a dimensão do inconsciente,
que figura por detrás da razão do analista, se apresentasse diretamente ao seu exame – o
mesmo se pode dizer dos discursos dos ditos primitivos, que se convencionou chamar ‘mitos’,
que são aí agrupados devido à sua alteridade máxima em relação ao discurso que quer
enquadrá-los, posto situarem-se ali mesmo aonde uma outra forma de historicidade, vêm
confrontar a história que resulta no empreendimento antropológico. No ápice dessa História o
estruturalismo aparece como um ponto de viragem, a partir do qual se poderá mirá-la – à
história, mas também à antropologia e, por que não dizer, à Razão – desde seu encontro com
outras histórias. Basta para tal radicalizarem-se algumas das proposições de Lévi-Strauss,
lembre-se do que diz o autor o Homem Nu:
(...) o mito não existe em uma língua e em uma cultura ou sub-cultura, mas
no seu ponto de articulação com outras línguas e outras culturas. Assim, um
mito nunca pertence à sua língua, ele antes representa um ângulo de visão
sobre uma língua diferente, e o mitólogo que o está apreendendo através de
tradução não se sente em uma posição essencialmente diferente da que os
narradores ou ouvintes nativos ocupam (LEVI-STRUASS, 1990, 645 –
grifos meus)
33
E se a psicanálise conheceu na esquizoanálise de Deleuze & Guattari (fortemente
influenciados pelo estruturalismo de Lacan) o seu “Anti-Édipo” – obra que não pretende
apenas mirar a psicanálise desde a esquizofrenia como possibilidade de pensamento, ao invés
da neurose, mas de visar o próprio capitalismo (entendido como axiomática dos fluxos
descodificados) a partir daí – não seria possível que a antropologia pudesse vir a conhecer o
seu “Anti-Narciso”
35
, fazer o mesmo percurso desde a obra de Lévi-Strauss? Não seria a
morte do Homem, o deslocamento de sua centralidade, sua dissolução entre a imaginação
mítica e a deambulação esquizofrênica, o único caminho para barrar os efeitos destrutivos de
sua exploração dos códigos alheios? Na referida obra (“O Anti-Édipo: capitalismo e
esquizofrenia”), Deleuze & Guattari comentam:
Nossas sociedades apresentam um gosto muito forte por todos os códigos, os
códigos estrangeiros ou exóticos, mas é um gosto destrutivo e mortuário. Se
decodificar quer dizer, sem dúvida, compreender um código e traduzi-lo, é
ainda mais destruí-lo enquanto código, atribuir-lhe uma função arcaica,
folclórica ou residual, que faz da psicanálise e da etnologia duas disciplinas
apreciadas em nossas sociedades modernas (DELEUZE & GUATTARI,
1976, p.311 – grifos meus)
* * *
Tendo explorado com Nietzsche o fundo do qual a racionalidade helênico-ocidental se
teria retirado, e com Foucault situado duas das margens desta racionalidade (loucura e
primitividade), sigamos rumo à modernidade, mas antes convêm ainda esboçar brevemente os
principais traços da epistémê clássica, dos séculos XVII e XVIII, tal como descritos por
Foucault – o passado recente de que a modernidade se retirava. No anexo de seu livro
“Foucault”, intitulado “Sobre a morte do homem e o super-homem”, Deleuze produz – no
entrecruzamento de seu pensamento com o de Foucault, e no encontro de ambos com o
pensamento de Nietzsche – uma reflexão sobre a epistémê clássica que parece muito aguda,
lançando uma inesperada luz sobre as análises originais do autor. Para Deleuze “trata-se de
35
O termo é de autoria de Eduardo Viveiros de Castro, em comunicação pessoal.
34
saber com quais forças as forças do homem entram em relação, numa ou noutra formação
histórica, e que forma resulta desse composto de forças” (2005, p.132); no caso da formação
histórica clássica: forças de elevação ao infinito, e forças de limitação do homem, compondo
a forma-Deus, na moderna, como se verá, vêm à luz a forma-Homem. A epistémê clássica se
caracterizaria por um jogo entre as diferentes ordens de infinitos, e as forças de limitação que
lhes determinariam – como se a natureza das limitações determinassem a ordem de infinito a
que poderiam ser elevadas, podendo ser, reversamente, visadas desde lá
36
. Nota-se aí uma
profunda relação com a própria constituição da série numérica, posto que, assim como aquela,
esta também opera, de saída, uma limitação qualitativa que determina uma ordem de infinito –
ainda que no caso numérico tal não seja apenas uma limitação qualitativa, mas, por assim
dizer, uma limitação do qualitativo, de sorte que o zero, por exemplo, limita o “nada
absoluto”, constituindo um nada transitivo
37
, assim projetando um infinito também numérico,
que não se confunde com o “absoluto”, ao se estender indeterminadamente, no
desdobramento da série numérica, o universo ora determinado
38
. No caso da “máthêsis não
calculável” que constitui, segundo Foucault, a taxinomia do período clássico, instala-se uma
ordenação a partir dos signos, semelhante à numérica (de fato, esta parece ser um seu caso
particular), mas de forma distinta, posto que tem como referente as “representações
complexas” e não mais as “naturezas simples”. Nas palavras do autor:
O que torna possível o conjunto da epistémê clássica é, primeiramente, a
relação a um conhecimento da ordem. Quando se trata de ordenar as
naturezas simples, recorre-se a uma máthêsis cujo método universal é a
Álgebra. Quando se trata de pôr em ordem naturezas complexas (as
36
“Reconhece-se o pensamento clássico por sua maneira de pensar o infinito. É que toda realidade, numa força,
‘iguala’ a perfeição, sendo, então, elevável ao infinito (o infinitamente perfeito); o resto é limitação. Por
exemplo, a força de conceber é elevável ao infinito, de tal modo que o entendimento humano é apenas limitação
de um entendimento infinito. E certamente existem ordens de infinidade bastante diferentes, mas apenas
conforme a natureza da limitação que incide sobre aquela força.” (DELEUZE, 2005, pp.132-133)
37
Nada de alguma coisa (referência a algum universo fechado: de chapéus, cadeiras ou idéias), que pode
esquecer o seu referente mas que, de toda forma, pode conviver pacificamente com o “tudo”, sem ter de engoli-
lo por inteiro.
38
Para uma análise semiótica do número ‘zero’, profundamente inspirada nos trabalhos de Foucault, ver B.
Rotman, 1993.
35
representações em geral, tal como são dadas na experiência), é necessário
constituir uma taxinomia e, para tanto, instaurar um sistema de signos. Os
signos estão para a ordem das naturezas compostas, assim como a álgebra
está para a ordem das naturezas simples. Mas, na medida em que as
representações empíricas devem ser suscetíveis de analisar como natureza
simples, vê-se que a taxinomia se reporta inteiramente à máthêsis; em
contrapartida, posto que a percepção das evidências seja apenas um caso
particular da representação em geral, pode-se dizer igualmente que a
máthêsis não é mais do que um caso particular da taxinomia. (FOUCAULT,
2002, pp.99-100)
Entretanto, há aí um duplo movimento que instaura uma fenda entre, por um lado, a
determinação de uma identidade e de seu domínio correspondente – ou seja, a instauração de
um termo primeiro, e assim de uma “natureza”, a ele correlata, da qual se passa a ter intuição
sem necessidade de recorrer a qualquer outra – e, por outro lado, as relações entre os diversos
graus da diferença desdobrados nesse domínio. No primeiro caso, uma gênese, no segundo,
uma Ordem, usualmente expressa em um quadro – talvez, os correspondentes para o sistema
de signos do que seria, para os números, a distinção entre os princípios da ordinalidade e da
cardinalidade. Diz Foucault:
Nas duas extremidades da epistémê clássica, tem-se, portanto, uma máthêsis
como ciência da ordem calculável e uma gênese como análise da
constituição das ordens a partir das seqüências empíricas. De um lado,
utilizam-se os símbolos das operações possíveis sobre as identidades e
diferenças; de outro, analisam-se as marcas progressivamente depositadas
pela semelhança das coisas e as recorrências da imaginação. Entre a
máthêsis e a gênese estende-se a região dos signos – signos que percorrem
todo domínio da representação empírica, mas que jamais a transbordam.
Margeado pelo cálculo e pela gênese, está o espaço do quadro.
(FOUCAULT, 2002, p.101)
Trata-se, é preciso frisar, de relações entre séries e estruturas. Nas palavras de
Deleuze:
(...) por mais diferentes que sejam, esses dois temas, o da série e o da
estrutura, sempre coexistiram na história natural; aparentemente
contraditórios, eles formam realmente compromissos mais ou menos
estáveis. Da mesma forma, as duas figuras de analogia coexistiam no espírito
dos teólogos, com equilíbrios variáveis. É que, tanto em uma como na outra,
a natureza é concebida como imensa mimese: ora sob forma de uma cadeia
36
de seres que não cessariam de imitar-se, progressivamente ou
regressivamente, tendendo ao termo superior divino que todos eles imitam
como modelo e razão da série, por semelhança graduada; ora sob forma de
Imitação em espelho que não teria mais nada para imitar, pois seria ele o
modelo que todos imitariam, dessa vez por diferença ordenada... (É essa
visão mimética ou mimológica que torna impossível, naquele momento, a
idéia de uma evolução-produção). (DELEUZE&GUATTARI, 2002-2005,
v.4, p.14)
A medida e a ordem são como que os dois modos possíveis da comparação. Uma,
mediada, pressupõe uma separação dos termos comparados, e interpõe entre eles uma unidade
comum, que reduz qualitativamente o que será comparado; e outra, sem mediação, em que se
define um domínio de comparação
39
quer partindo da gênese de um “ponto zero” de uma série,
quer partindo da comparação das diferenças que se desdobram em graus crescentes, em um
continuum infinitamente prolongável – de um lado a gênese, de outro o quadro, muito antes
que uma série temporal se desprendesse da gênese e atravessasse o quadro, distendendo-o
numa evolução. Não seria demais dizer que a epistémê clássica se constitui desse triplo
impulso, que outros historiadores tenderam a confundir: 1) um esforço de matematização do
mundo empírico, bastante diverso, mas que se concentra principalmente na astronomia e na
física; 2) a constituição de novos domínios empíricos, bem como das ciências que viriam a
ordená-los – um novo espaço para as empiricidades, que não existia no final do renascimento
e que iria se transformar profundamente na passagem à epistémê moderna – o que se dá com
novos modos de recortar qualitativamente o real: surge o domínio das palavras, e a gramática
geral; o domínio dos seres, e a história natural; e o domínio das necessidades, a análise das
riquezas. Ao mesmo tempo desponta todo um conjunto de reflexões filosóficas voltado para o
espaço aberto entre a gênese e a ordem, ou entre a Ordem e ordem (Ordem pressuposta de
Deus e ordem de limitação do homem), que é percorrido em suas duas direções – quer
reconhecendo na imaginação um estigma da finitude, do qual decorre todo erro, mas também
39
Nas palavras de Foucault (2002, p.73): “Tais são, portanto, os dois tipos de comparação: uma analisa em
unidades para estabelecer relações de igualdade; a outra estabelece elementos, os mais simples que se possa
encontrar, e dispõe a diferenças segundo o grau mais fraco possível.”
37
o poder de delimitá-la para elevar-se à verdade matemática (como com Descartes,
Malebranche e Spinoza), quer indo da desordem e similitudes da natureza ao engendramento
da imaginação (como em Hume, Condillac e Rousseau)
40
; 3) e o mecanicismo – que não é
senão o conjunto dos meios pelos quais se pode determinar, por seqüências causais de inter-
relações entre os corpos materiais no espaço, a gênese de um movimento –, que
(principalmente na metade do século XVII) propôs modelos para domínios como a medicina e
a fisiologia (FOUCAULT, 2002, p.77). Por um lado, o método algébrico, a medida e, por
outro, o sistema de signos fendido em uma taxinomia como ciência geral da ordem – “o geral
indicando uma ordem de infinidade” (DELEUZE, 2005, p.134) – e uma busca da gênese. Em
todo caso, trata-se sempre de explicar, desdobrar – e “O que é Deus senão a explicação
universal, o desdobramento supremo?” (DELEUZE, 2005, p.134).
Entre as forças de elevação ao infinito e sua repetição nas forças de limitação no
homem, estabelece-se um regime da representação infinita e interminável (sem termo) –
“representação que representa a si mesma” (FOUCAULT, 2002, p.91)
41
– mas onde, em cada
momento, é possível recolocar a diferença entre aquilo que está representando e aquilo que
está sendo representado. Assim, o próprio signo, que não está senão na dimensão em que
ambos se relacionam
42
, torna-se diáfano à medida que dá a ver as relações entre coisas, e
torna-se ‘mera linguagem’ (desprendida do mundo) quando dá a ver os, e se dá a ver nos,
40
“Compreende-se, em todo caso, que o segundo tipo de análise tenha sido facilmente desenvolvido na forma
mítica do primeiro homem (Rousseau) ou da consciência desperta (Condillac) ou do espectador estranho jogado
no mundo (Hume): essa gênese funciona me lugar da própria Gênese”. (FOUCAULT, 2002, p.97)
41
Lembre-se da assertiva de Foucault: “(...) pode-se compreender porque cada vez que há intenção de servir-se
das ciências humanas para filosofar, verter para o espaço do pensamento aquilo que se pôde aprender lá onde o
homem estava em questão, falseia-se a filosofia do século XVIII, na qual, todavia, o homem não tinha lugar; é
que, ao estender para além de seus limites o domínio do saber do homem, estende-se igualmente para além dele
o reino da representação e se está a instalar-se de novo numa filosofia de tipo clássico. (FOUCAULT, 2002,
p.503).
42
“O signo encerra duas idéias, uma da coisa que representa, outra da coisa representada; e sua natureza consiste
em excitar a primeira pela segunda” (Foucault, 2002, p.88) ou ainda “Na idade clássica, o signo é a
representatividade da representação enquanto ela é representável.” (ibid, p.89)
38
jogos da representação. Daí o interesse que passam a despertar as variações em torno das
ligações que engendram o signo
43
.
“Saber” era, agora, selecionar elementos que permitissem determinar identidades, as
mais simples e intuitivas possíveis, e em seguida ordenar as diferenças que aparecem, em seus
graus de afastamento relativo segundo um movimento de complexificação – como no método
cartesiano
44
. Deste modo, não se tratava mais, como no Renascimento, de buscar as
semelhanças entre os signos e aquilo que marcam, como se houvesse entre eles uma relação
anterior que apenas precisaria ser desvelada. Ao contrário, o signo só se constitui por um ato
de conhecimento. De modo que “A linguagem se retira do meio dos seres para entrar na sua
era de transparência e neutralidade.” (FOUCAULT, 2002, p.77). O saber separa-se de certa
concepção de divinatio, onde conhecer é reconhecer signos no mundo, os signos são agora
instrumentos de análise, moldados pela análise – daí o empirismo. Assim, “O mundo circular
dos signos convergentes é substituído por um desdobramento ao infinito.” (FOUCAULT,
2002, p.83), a ordem clássica toma o lugar da interpretação renascentista. Doravante:
(...) o saber não tem mais que desencavar a velha Palavra, dos lugares
desconhecidos onde ela se pode esconder; cumpre-lhe fabricar uma língua e
que ela seja bem feita – isto é, que, analisante e cambiante, ela seja
realmente a língua dos cálculos (FOUCAULT, 2002, p.86).
Mas se a semelhança não é mais o princípio que orienta o saber, isso não indica que
ela não tenha, na época clássica, um papel relevante. É a semelhança, “muitas vezes
enganadora”, que precisa ser ultrapassada, sobre certa percepção das semelhanças empíricas
(das coisas representadas) junto a uma imaginação do contínuo (interior à representação), que
a Ordem, a Máthêsis e a Gênese operam, e onde ocorrem as relações entre as mesmas. Fora
43
Cf. Foucault (2002, p.80).
44
“a comparação não tem mais como papel revelar a ordenação do mudo; ela se faz segundo a ordem do
pensamento e indo naturalmente do simples ao complexo.” (FOUCAULT, 2002, p.74).
39
do domínio do saber, a similitude é o fundo necessário ou o substrato sobre o qual atua. Nas
palavras de Foucault:
Como no século XVI, semelhança e signo se interpelam fatalmente. Mas de
modo novo. Em vez de precisar de uma marca para que seja desvendado seu
segredo, a similitude é agora o fundo indiferenciado, movediço, instável
sobre o qual o conhecimento pode estabelecer suas relações, suas medidas e
identidades. (FOUCAULT, 2002, p.94)
Há uma complementaridade e uma pressuposição necessária entre o papel da
semelhança no sensível e da imaginação, sendo a imaginação a condição de percepção da
semelhança e a semelhança sensível o material de que se serve a imaginação. A separação
entre as noções de natureza e natureza humana, a repetição de uma na outra, asseguram essas
relações. Deste modo, a epistémê clássica estabelece uma cisão entre duas séries de
problemas, duas direções, ou vetores possíveis de análise.
Conforme tomemos a imaginação ou a percepção por fundo, estaremos fazendo
exercícios distintos. No primeiro caso, trata-se de ir de uma série de representações a um
quadro, pela análise daquilo que constitui o fundo involuntário da percepção – as relações
entre impressões, reminiscências, memórias, etc. No segundo, trata-se de traçar relações entre
as semelhanças ‘selvagens’ percebidas e os princípios que tornam possível ordená-las. Trata-
se, assim, de explorar as fendas do quadro dos seres. Nos termos de Foucault, tem-se, no
primeiro caso, uma “analítica da imaginação” e, no segundo, uma “análise da natureza”.
Ora, esses dois momentos opostos (um, negativo, da desordem da natureza
nas impressões, outro, positivo, do poder de constituir a ordem a partir
dessas impressões) encontram sua unidade na idéia de uma ‘gênese’.
(FOUCAULT, 2002, p.96)
Esboçada a epistémê clássica, sigamos nos aproximando das conexões que nos
interessam mais diretamente.
40
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.
.
Vida, trabalho, linguagem e mito.
Seguindo Foucault, podemos pensar no século XIX europeu como o momento de uma
completa recomposição dos saberes, que se dá como resultado de um processo que envolve
inúmeros desenvolvimentos precedentes, mas que lança todo pensamento em uma
configuração absolutamente nova. Tal configuração, contudo, ainda não se afigura para nós
como de todo estranha. O século XIX assistiu à consolidação da literatura – refiro-me à obra
burguesa sob a forma de prosa e com estilo altamente autoral, em que a predominância de
uma profundidade sócio-psicológica substitui progressivamente uma ênfase radical na
dimensão cosmológica e onde as pequenas diferenças do tempo corrente substituem os
grandes intervalos de um tempo em separado que as histórias, em sua maioria feitas em verso
e ainda elaboradas segundo um modelo mitológico, punham a pairar sobre o plano em que se
desenrola a vida dos leitores
45
(passagem de que talvez Flaubert tenha feito a mais bela
ilustração, ao transformar em um conto, repleto de aventuras erráticas, a “Lenda de São Julião
Hospitaleiro”, que vira no quadriculado do vitral da catedral de Rouen, sua cidade natal).
O século XIX assistiu também ao nascimento da História, tal como a conhecemos, isto
é, não apenas como disciplina, forma de saber, “zona mais ilustrada da memória”, mas como
modo de ser de tudo o que é dado à experiência, e que condiciona os seres e os saberes
tomados em seu transcurso (que podemos chamar historicidade)
46
; ao nascimento de uma
filosofia ocupada com a fenda que se abre entre as duas acepções precedentes da história, seja
45
Para uma análise da passagem da estrutura à série nos mitos ameríndios via a passagem da mitologia ao
romance, e visse-versa, ver Lévi-Strauss (2006, pp.103-118).
46
“Na famosa frase de Marx do 18 de Brumário, segundo a qual os ‘homens fazem a história, mas não nas
condições de sua escolha’, não devemos ater-nos apenas à conjunção entre a atividade do fazer e a inércia das
condições dadas, mas nos perguntar, afinal, o que é ‘feito’ aqui: “que extraordinária complexidade subjaz à
proposição inocente de que os seres humanos ‘fazem a história’, pois sua elucidação supõe um juízo filosófico
sobre o tempo”. Para Giddens, se a idéia de ‘história implica a conjunção de uma noção linear do tempo com
uma noção de que os agentes podem mudar seu futuro por meio de um crescente conhecimento de seu passado,
então, tal idéia não teria aparecido, na tradição ocidental, antes de Vico. (...) No entanto, costumamos localizar o
aparecimento dessa concepção muito aquém de Vico, tomando a Grécia antiga como o lugar e o momento em
que uma separação entre mito e história teria fincado as raízes de nossa historicidade” (Cf. NuTI, 2003, p. 33).
41
para dela escapar (como em Nietzsche, “pensador privado”, intempestivo) ou para colocar-se
em seu cume (como em Hegel)
47
; a escavação de novos princípios de ordenação das
empiricidades, produzindo a profundidade pela qual as forças de finitude viriam, de fora, a se
insinuar ao Homem; a subseqüente criação de novas ciências positivas, a saber, a biologia, a
economia política e a lingüística; produzindo o homem como um ser que é determinado
exteriormente pela vida, pela economia e pela linguagem, tomado nas historicidades das
mesmas, antes às retome no eixo comum da História. E, assim, à preparação para o
surgimento das ciências humanas – ou, antes, do Homem, como ser que é sujeito e objeto de
um saber positivo – na esteira das ciências propriamente ditas, mas podendo mesmo assim
contestá-las. Nas palavras de Bruno Latour:
(...) a crítica, não se dirigiu somente da natureza para os preconceitos
humanos. Logo começou a percorrer a outra direção, que levava das ciências
sociais recém-fundadas rumo à falsa. Estas foram as segundas luzes, as do
século XIX. Desta vez, o conhecimento preciso da sociedade e de suas leis
permitiu criticar não apenas os preconceitos do obscurantismo usual, como
também os novos preconceitos das ciências naturais. (LATOUR, 1994, p.41)
Transformação feita de uma guinada para o homem finito, como medida do mundo –
vivente, mas mortal; criador pelo trabalho, mas passível de desgaste e cansaço; dotado de
linguagem, mas acometido por toda forma de patologias da comunicação –, em um processo
em que as atribuições da religião serão tomadas pela ciência e pela moral, e os valores divinos
serão substituídos por idéias como a de progresso, evolução ou história, a totalidade
assegurada em Deus prometida consciência futura do Homem
48
.
Ainda que não convenha aqui fazer uma análise exaustiva da epistémê moderna, dos
séculos XIX e XX, o recorte histórico com que trabalha Foucault – que nos interessa na
medida em que foi na virada dos séculos XVIII-XIX que começaram a reunirem-se as
47
Cf. Foucault (2002, pp.300-301).
48
Em certo sentido, “nada mudou, porque é a mesma vida reactiva, a mesma escravatura, que triunfava à sombra
dos valores divinos e que triunfa agora pelos valores humanos” (DELEUZE, 2001, p.26)
42
condições para as primeiras tentativas de criação de uma ciência positiva dos mitos,
empreendimento que se articula com a posterior criação das chamadas ciências humanas e
notadamente da antropologia – permite fixar alguns pontos importantes. Três aspectos
principais guardam conexões com a criação da mitologia (‘ciência’): a constituição de três
grandes Estratos, com o surgimento das novas ciências: biologia, economia política e
filologia; a constituição da História, tal como a conhecemos; e, finalmente, o nascimento das
Ciências Humanas.
Em célebres páginas, Foucault discorre sobre as transformações ocorridas na
passagem ao século XIX, “quando a epistémê ocidental se abalou” (Foucault, 2002, p.463).
Quando a teoria da representação deixa de ser o fundamento de toda ordem imaginável; a
linguagem não mais é o quadro espontâneo e primeiro das coisas, alocado entre a Ordem e a
ordem (o entendimento e a vontade de Deus e as limitações operadas sobre a imaginação e a
percepção dos homens); uma nova finitude instaura uma historicidade das coisas (da história a
História, do acontecimento à origem, da evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, do
esquecimento ao Retorno). O espaço das identidades e das diferenças dispostas em um
quadro, ordens não quantitativas, será substituído pelas organizações, relações internas entre
elementos, cujo conjunto assegura uma função. De uma organização a outra o liame não será
mais a identidade dos elementos, mas a identidade das relações entre os elementos: analogia e
sucessão. Nas palavras de Deleuze:
(...) Foucault insiste na necessidade de introduzir dois momentos bem
distintos. É preciso que a força do homem comece a enfrentar e agarrar as
forças da finitude enquanto forças de fora: é fora de si que ele se choca com
a finitude. Em seguida, e só em seguida, num segundo tempo, ele passa a vê-
las como sua própria finitude. O que significa dizer que só quando as forças
do homem entram em relação com as forças de finitude vindas de fora, só
então, o conjunto das forças compõe a forma-Homem (e não mais a forma-
Deus), Incipit Homo.. (DELEUZE, 2005, p.135)
43
Primeiro, com o surgimento de novos princípios de ordenação, mudará a maneira com
que se chega pelo jogo entre os elementos representativos a se estabelecer uma ordem – com
Adam Smith, o trabalho, com Jussieu, Vicq d’Azir e Lamarck, a organização, e com Jones, as
flexões
49
– como se uma nova profundidade se antepusesse ao continuum desdobrado da
representação clássica, como se novas forças, de fora, condicionassem os in-termináveis (sem
termo) jogos da ‘representações que representam a si mesmas’. Enfim, a descoberta de forças
recônditas que (não pertencem à Ordem ou à ordem) e que, por detrás do véu do visível,
produzem uma nova dimensão que determina o que se dá em sua superfície, e que nos seria
dado nas suas representações.
De forma muito simplificada pode-se dizer que o conceito de trabalho como princípio
de valor, tal como utilizado por Smith, opera uma dupla ruptura, com a necessidade e com o
mercado, ou terra e preçoque são, na epistémê clássica, as duas formas de engendrar valor,
uma fundada em um princípio de limitação e outra no jogo das representações. Constitui-se
como fonte de valor irredutível à comparação dos objetos representando-se a si mesmos nos
movimentos da troca, de acordo com seus valores de uso relativos, ou ao poder dos objetos de
representar uma necessidade, que dera aos alimentos, à produção agrícola e as terras os
privilégios que lhe haviam concedido os fisiocratas. Continua-se a trocar por necessidade,
mas agora a hierarquia das trocas é determinada pelas unidades de trabalho depositadas em
cada objeto trocado, e não pela livre comparação de suas representações. Pode-se doravante
ordenar as trocas por estar-se igualmente submetido ao tempo. Abre-se o caminho para
substituírem-se as análises das riquezas, e seus jogos de representações, por uma efetiva
análise da produção.
49
“Não que a organização, a flexão, o trabalho tenham sido ignorados pela idade clássica. Mas eles
desempenhavam o papel de limitações, que não impediam que as qualidades correspondentes fossem elevadas ao
infinito ou se desdobrassem ao infinito, ainda que apenas em direito. Agora, porém, elas representavam algo
inqualificável, impossível de se representar...”. (DELEUZE, 2005, p.136)
44
Da mesma forma, o conceito de organização, com Jussieu, Lamarck e Vicq d’Azyr,
passa a subordinar toda caracterização de um ser às suas relações internas, suas funções.
Opera-se, portanto, uma (dupla) ruptura com as classificações que pretendiam determinar o
“caráter”, que agruparia seres ou espécies com base na comparação de suas representações no
visível, de forma a integrá-los em unidades mais gerais que, distinguindo-se das outras
unidades de mesmo tipo tomaria parte em um quadro, pronto a receber qualquer dos seres, já
conhecidos ou ainda não. Não mais se poderia estabelecer a ligação entre a estrutura visível e
o critério de identidade como antes, quer como faziam os partidários do sistema, para os quais
os elementos representativos estavam dados desde antes da comparação, quer como os
partidários do método, para quem só era possível encontrá-los por comparações progressivas.
A organização subordina o caráter à função. Assim é que uma hierarquia dos caracteres e uma
ligação entre caracteres e funções, subordinadas à noção de vida, fazem passar do visível ao
invisível, procedendo uma ruptura entre nomenclatura e a classificação.
Igualmente, com Willian Jones, o sistema flexional faz com que a língua seja definida
por uma secreta arquitetura, padrões de alterações das palavras segundo suas correlações
gramaticais, não sendo mais a representação de representações. Antes, no âmbito de uma
gramática geral, ou das análises do discurso, partia-se do pressuposto da Babel, de uma língua
primeva, comum a todos os povos, que uma série de acontecimentos e encontros históricos
transformariam. Assim, toda discussão gira em torno de um paralelismo a uma língua
primitiva, em oposição aos resultados de uma mistura histórica. Mais uma vez, a questão era
apenas se iria partir-se do condicionamento dado pelas definições de um fundamento, ou das
múltiplas formas de interação no campo de ele define. Foucault explica que as flexões teriam
surgido mais tarde, e de forma menos visível, o que atribui ao fato de que, durante todo o
período clássico, a linguagem era a forma de ordem mais colada à representação, e, portanto,
45
menos evidente como objeto, sendo a ordem fundamental para todas as demais, a
representação por excelência (Cf. FOUCAULT, p.320).
Se as análises da representação, da linguagem, das ordens naturais e das
riquezas são perfeitamente coerentes e homogêneas entre si, existe, todavia,
um desequilíbrio profundo. É que a representação comanda o modo de ser da
linguagem, dos indivíduos, da natureza e da própria necessidade.
(FOUCAULT, 2002, p.288)
Em todos os casos, há o surgimento de uma profundidade que limita e determina as
representações de fora. Um primeiro passo para a substituição das ordens não quantitativas, de
uma taxinomia geral, de uma máthêsis não mensurável por um espaço de organizações, que
não se dá mais na identidade entre elementos, mas na identidade das relações entre elementos
e as funções que estes asseguram. E, por isso mesmo, antecederam uma Biologia, uma
Economia Política e uma Filologia.
Mas o que ocorria nessa mesma época com a mitologia?
Tudo se passa como se a mitologia fizesse o mesmo percurso das demais, mas na
direção oposta. Como se recobrisse o campo por elas deixado – o que fica mais claro,
sobretudo no que se refere às mudanças no campo que, se transformando, dará origem à
filologia. É nessa medida mesmo que o conceito de mito parece conjugar e suportar, por de
detrás, as ciências que surgiam. Segundo Jean-Pierre Vernant:
Duas condições eram sem dúvida necessárias para que fossem renovadas as
perspectivas tradicionais na abordagem do mito. Era preciso inicialmente
que os conhecimentos relativos à Antiguidade clássica deixassem de ser
misturados ao saber geral dos doutos, que não fossem mais integrados como
eram dos séculos XV ao XVIII europeus, a uma erudição cuja origem
remonta à época helenística; em suma, que os fatos antigos começassem a
ser situados à distância, tanto histórica quanto cultural. Em seguida e
principalmente, seria preciso que os mitos gregos deixassem de constituir o
modelo, o centro de referência da mitologia, que fossem confrontados, pelo
desenvolvimento de uma ciência comparada das religiões, com os mitos das
grandes civilizações não clássicas e, pela contribuição das investigações
etnográficas, à dos povos sem escrita. É através desse duplo movimento, de
início, afastamento da Antiguidade (que permite pensar o helenismo como
momento histórico, um mundo particular tendo suas características próprias)
46
e, em seguida, de aproximação dos mitos gregos com o de outras populações
(o que permite encarar o mítico sob a diversidade de suas formas, como um
nível do pensamento em geral), que se destacaram os grandes traços da
problemática contemporânea concernentes ao universo do mito.
(VERNANT, 1999, pp.190-191 – grifos meus).
Assim, enquanto nas análises das riquezas, dos seres e da linguagem, se achavam
novos conceitos – o trabalho, a organização e as flexões – que permitiam, justamente, que não
mais estivessem subordinados a um fundamento e aos jogos da representação que se dão na
superfície do campo aberto por este, o conceito de mito viesse lentamente ocupando esses
dois espaços, ora transformados. Por um lado o mito é depositado na noite dos tempos, antes
da fundação do Ocidente, ao mesmo tempo em que se estende o tipo de jogos de
representação, tais quais aí delineados, para as ‘bordas do Ocidente’, para os povos da
periferia. Em seguida lançando a periferia ao fundo, e os gregos à zona de distensão analógica
que se abre entre esse quadro de fundo e a entrada da série histórica, da História, antes da
repetição de tal ruptura no interior da história vivida, na modernidade. A modernidade extrai-
se do século XVIII, criando uma nova relação entre o passado e a periferia. Enquanto a
loucura sai do campo da pura ilusão e passa a coabitar com a Razão, os poetas, transmutando-
se em peles vermelhas, são mais uma vez desditos pelos precursores da história e banidos da
cidade. Os mitos tornam-se representação, e assim interpretáveis, mas a partir de onde se
possa a falar de nós.
É bem verdade que o quimérico, o puramente imaginário, já foram o lugar da desrazão
em Descartes e, certamente, muito antes dele, mas agora o saber arrancava-se, numa dialética
ascendente, de um fundo irracional. Agora ainda, não se tratava de livrar-se das ilusões de um
gênio enganador, mas da articulação com um fundo presente, da necessidade de repetir um
movimento ascendente original, contínua e progressivamente. É também verdade que
equiparar os mitos dos gregos aos dos selvagens não foi uma novidade do século XIX. Desde
o início do século XVIII, Joseph-François Lafitau e Fontenelle já haviam estabelecido um
47
paralelo entre “as fábulas dos selvagens americanos e dos antigos gregos”, mas não se tratava
de ‘nós’, os absurdos das fábulas não poderiam abalar a razão, nem sequer deveriam ser
interpretados, apenas interessava a origem daquele engano – para Lafitau, a corrupção e
decadência religiosa, “as idéias carnais”; para Fontenelle, uma inclinação natural ao
desenvolvimento das religiões e da arte (DETIENNE, 1998, p.24). Nas palavras de Detienne:
Quer venham dos iroqueses ou dos gregos, as fábulas nunca são nada além
de excrescências, um corpo estranho, uma sujeira interna; elas fazem jus à
mesma condenação moral. Contudo, a sua ‘conformidade’ não provoca
nenhum escândalo. Lafitau faz os lacedemônios passearem pelos povoados
iroqueses e os hurões pela Atenas de Cécrope ou de Plutarco,
indiferentemente sem qualquer intenção de tornar os gregos selvagens ou de
helenizar os selvagens americanos.(...) Nenhuma emoção em Fontenelle que,
aliás, vive debruçado sobre as ‘tolices gregas e romanas’. Pois se a Razão
simula espanto voltando-se para os primeiros homens – extremamente
crédulos, já que toda história antiga não é mais do que um aglomerado de
quimeras, devaneios e absurdos – ela não duvida um só instante que a
barbárie, mesmo excessiva, é um estado de ignorância e de que o bárbaro é
aquele que não fala a língua da Razão (DETIENNE, 1998, p.21).
Mas há também aí, sem dúvida, um desacordo, ligado à religião, que remete a questão
de saber se as sociedades decaem ou evoluem – faz-se uma conexão entre a mitologia “dos
primeiros gentios” e a mitologia cristã, matriz das análises da Ordem. Poderíamos imaginar
que, ao contrário da linguagem, que teria uma cronologia lenta, a mitologia começa a, dos
bastidores, preparar o surgimento de uma modernidade, desde muito cedo. Não seria
espantosa a afirmação de que a modernidade resulta, em primeiro lugar, de um contra-efeito,
ou uma reação, da aplicação do imaginário advindo do cristianismo a mitologias radicalmente
não monoteístas – passando-se de um primeiro momento, em que as artes e os textos eruditos
promovem encontros entre a mitologia cristã e a antiga mitologia pagã
50
, a um segundo
momento em que se deixa de ver nas mitologias o mero engano, para tentar achar sob sua
50
“A capacidade de pôr entre aspas a tradição própria e alheia era uma arma poderosíssima. Entre os seus efeitos
poderíamos incluir a extensão (fruto da soberba etnocêntrica mencionada) da categoria ‘mito’ a culturas que
nunca a conheceram. Mas o mito podia projetar por sua vez, por contragolpe, uma luz crua e inesperada sobre a
religião cristã.” (GINZBURG, 2001, pp.60- 1).
48
capa uma Ordem que, do fundo, se conectaria à nossa História. Sacrifica-se Deus junto aos
Deuses, mas apenas para preservar o seu lugar para o Homem. (Lembre-se da célebre
sentença de Hegel: “Monoteísmo da razão e do coração, politeísmo da imaginação e da arte:
é disso que necessitamos”) (HEGEL apud GINZBURG, 2001, p139).
* * *
Mas continuemos seguindo o movimento descrito por Foucault. Em um segundo
momento, no prosseguimento das fraturas em profundidade – com os conceitos de trabalho,
organização e flexões – constituem-se a Economia política, a Biologia e a Filologia como
ciências positivas. Para tal, foi necessário que as próprias riquezas, seres e palavras, não mais
remetessem a representações, mas que fossem penetrados e, em seguida, engolfados pela
finitude.
A representação que se faz das coisas não tem mais que desdobrar, num
espaço soberano, o quadro de sua ordenação; ela é, do lado desse indivíduo
empírico que é o homem, o fenômeno – menos ainda, talvez, a aparência –
de uma ordem que pertence agora às coisas mesmas e à sua lei interior.
(FOUCAULT, 2002, p.431)
Com Ricardo, Curvier e Boop, apenas para citar os nomes mais mencionados, as
forças de trabalho serão elas mesmas remetidas às condições de produção, que já têm sua
historicidade própria antes que (com Marx) sejam rebatidas e (literalmente) expropriadas pelo
capital, e submetidas às leis de seu desenvolvimento histórico. A organização deixa de estar
ligada a uma taxinomia e penetra nos seres, os próprios órgãos tornando-se menos
importantes que as funções em suas relações, mesmo transorgânicas. Assim, também a vida
estava já penetrada de uma historicidade própria dada pela “manutenção de suas condições de
existência”; sem precisar esperar que Darwin estabelecesse pelas relações entre organismos e
meio, a teoria da evolução. As flexões, por sua vez, deixam de apenas ser o liame que conecta
dois sistemas de representação para também, recebendo suas determinações de um conjunto
de elementos não representativos (sons, sílabas, etc.), instaurar uma historicidade interior à
49
língua em separado de uma história – de que, inclusive, a História poderá servir-se para
reconstituir acontecimentos de um passado imemorial que lhe serve de base.
Em todos os campos é a dobra que domina agora, seguindo a terminologia
de Foucault, o segundo aspecto do pensamento operatório que se encarna na
formação do século XIX. As forças do homem se rebatem ou se dobram
sobre esta nova dimensão de finitude em profundeza, que se torna então a
finitude do próprio homem. A dobra costuma repetir Foucault, é o que
constitui uma ‘espessura’, assim com um oco (creux). (DELEUZE, 2005,
p.137).
O que é interessante nas análises de Foucault é apontar que a Historia não nasce
primeiro no homem, como narrativa da ascensão burguesa, estendendo-se aos demais
domínios – dos objetos que ele fabrica e consome, da linguagem que fala, e que fala por ele,
da vida fora e dentro dele – mas, de fato, tudo se passaria ao contrário. O homem descobre-se
primeiro des-historicizado, atravessado por essa série de historicidades dispersas e com
cronologias distintas, antes que possa rebatê-las no eixo comum da História, que então
recolheria as historicidades dos homens, dos seres e das coisas. História essa que é justamente
o espaço onde se relacionam “os limites temporais que definem as formas singulares do
trabalho, da vida e da linguagem, e a positividade histórica do sujeito que, pelo
conhecimento, tem acesso a eles” (FOUCAULT, 2002, p.515). A História como o que falta,
modo de ser delineado no oco das diversas faltas que determinam o Homem, como unidade
superior e exterior, puro modo de ser da consciência no tempo, unida e distinta de todas as
outras formas de historicidade. História como zona entre o universal, que está no fim, sempre
à frente, e os desenvolvimentos múltiplos, heterogêneos e dispersos que o engendram. Entre o
tempo em que se projeta a vida encarnando diversas historicidades, história, e a sua repetição
na História.
Nesse novo quadro de diferenças e repetições, repete-se em favor de uma identidade,
do mesmo, projetando-se a diferença para trás de seu fundamento, como representação,
50
repete-se o positivo no fundamental. Assim se vê: a repetição do empírico no transcendental
curto-circuito de um homem que acredita tomar conhecimento em si do que torna possível
todo conhecimento; do Cogito no impensado – não o cogito cartesiano que conjurava a
fantasia, mas de um que atua na articulação do pensamento com um fundo impensado, seu
contraponto necessário, sua sombra, e a fonte de sua força; e o que é aqui mais relevante, do
recuo da origem no seu retorno – o homem que é determinado de fora por circunstâncias de
cuja origem e cronologia lhe escapam, das quais se encontra separado, e pelas quais se
encontra atravessado, que existem nele, através dele, tendo ali seu recomeço (a história). Mas
esse homem “em meio ao tempo” precisa fundar atrás de si o próprio tempo, esta “origem
sem origem nem começo a partir da qual tudo pode nascer [...] essa brecha sem cronologia e
sem história donde provém o tempo” (FOUCAULT, 2002, pp. 458-459), e que dá origem ao
que está prestes a voltar. Assim é que:
Modo de ser de tudo o que nos é dado na experiência, a História tornou-se
assim o incontornável de nosso pensamento: no que, sem dúvida, não é tão
diferente da Ordem clássica. Essa também podia ser estabelecida num saber
organizado, mas era mais fundamentalmente o espaço onde todo ser vinha ao
conhecimento; e a metafísica clássica alojava-se precisamente nessa
distância da Ordem à ordem, das classificações à Identidade, dos seres
naturais à Natureza: em suma, da percepção (ou da imaginação) dos homens
para com o entendimento e a vontade de Deus. A filosofia do século XIX se
alojará na distância da história à História, dos acontecimentos à Origem, da
evolução ao primeiro dilaceramento da fonte, do esquecimento ao Retorno.
(FOUCAULT, 2002, pp. 300-301, grifos meus)
Tanto na epistémê clássica, quanto na moderna, trata-se de submeter a diferença, ou a
novidade, à repetição de um mesmo, de uma identidade. No primeiro caso, a Ordem é o
pressuposto do pensamento, trata-se precisamente de definir princípios que permitam limitar a
semelhança na percepção ou a continuidade na imaginação, de acordo com um quadro. No
segundo, de reabsorver toda multiplicidade de experiências, todo o novo, no curso História,
talvez o que tenha permitido a Borges escrever, algo zombeteiro: “Não há exercício
intelectual que não resulte ao fim inútil. Uma doutrina filosófica é no início uma descrição
51
verossímil do universo; passam-se os anos e é um simples capítulo – quando não um
parágrafo ou nome – da história da filosofia.”
51
. Contudo, assim posto, isso só é verdadeiro
de um ponto de vista histórico, que vai cristalizar todas as experiências de conhecimento em
um período histórico, uma epistémê. Mas se é possível extrair grandes abstrações da obra de
Foucault, não me parece que este seja o seu objetivo, ao contrário, parece tratar-se da
condição para revelar os diversos matizes de pensamentos que se relacionam em um tempo,
mostrar seus pontos de contato e suas divergências. Foucault procede como um pintor que
pinta de muito perto um quadro que será visto de longe, desliza em um háptico
52
. Assim, se há
um privilégio dessa dimensão distanciada, ele é dado pelos próprios clássicos e modernos, é,
em linhas gerais, o que sustenta a ficção de um Ocidente. O ‘mesmo’ como imagem de
pensamento. Por debaixo do efeito abstrato dessas repetições – história na História, Ordem na
ordem – há mares e córregos de repetições de uma outra natureza, as repetições entre
diferenças, o movimento da diferença, “devir mesmo da diferença”. Deleuze desmembra a
causalidade para distinguir entre dois tipos de repetições:
O primeiro, é uma repetição estática, o segundo é uma repetição dinâmica. O
primeiro resulta da obra, mas o segundo é como a evolução do gesto. O
primeiro remete para um mesmo conceito, que deixa subsistir apenas uma
diferença exterior, entre os exemplares habituais de uma figura; o segundo é
repetição de uma diferença interna que ele compreende em cada um de seus
momentos e que transporta de um ponto notável para outro. Pode-se tentar
assimilar essas diferenças dizendo-se que, do primeiro aos segundo tipo, é
somente o conteúdo do conceito que muda, ou dizendo-se que a figura se
articula distintamente. Mas isso seria desconhecer a ordem respectiva de cada
repetição, pois, na ordem dinâmica, já não há conceitos representativos nem
figuras representadas num espaço pré-existente. Há uma Idéia e um puro
dinamismo criador. (DELEUZE, 2000, p.70).
Adiante-se que aqui queremos saber como nos liberar dessas repetições estáticas para
engendrar, através de repetições dinâmicas, novas relações com os mitos, involução criativa:
51
Trecho retirado do livro Ficções do escritor Jorge Luís Borges
52
Cf. Deleuze & Guattari, 2002, v.5: 203-204
52
(...) o devir é involutivo, a involução é criadora. Regredir é ir em direção ao
menos diferenciado. Mas involuir é um bloco que corre seguindo sua própria
linha, ‘entre’ os termos postos em jogo, e sob as relações assinaláveis.
(DELEUZE & GUATTARI, 2002-2005, v.4, p.19).
Entre a Ordem e ordem, ou entre a história e a História, há uma evidente
diferenciação, ou não seria necessário escrever o primeiro termo de forma distinta do
segundo, entretanto ela é ocultada sob a forma de uma identidade, pressuposta e/ou projetiva.
E – poderíamos ainda nos perguntar – não deveria haver uma repetição estática que operasse a
passagem entre a repetição dos clássicos e a dos modernos? Não estaria nas passagens entre
ordem depositada sob o mito e seu desvelamento na história, entre a “origem antes da origem”
e a gênese, e entre a História e nós, garantindo o rebatimento da história na História? Se assim
fosse, tratar-se-ia de conceber uma narrativa que, em sua forma mínima, dispusesse tais
passagens como três etapas encadeadas – “O presente é o repetidor, o passado é a repetição,
mas o futuro é o repetido” (Deleuze, 2000:174). Assim haveria uma espécie de
evolucionismo de fantasia, estrutura perene da ‘mitologia do Ocidente’.
Então, basta que a história se distancie de nós na duração ou que dela nos
distanciemos pelo pensamento, para que ela deixe de ser interiorizável e
perca a sua inteligibilidade, ilusão ligada a uma interioridade provisória. Mas
que não nos façam dizer que o homem pode ou deve livrar-se dessa
interioridade. Não está em seu poder fazê-lo, e a sabedoria consiste, para ele,
em olhar-se vivendo-a, sabendo (porém num outro registro) que aquilo que
vive tão completa e intensamente é um mito, que aparecerá como tal aos
homens de um século próximo, que assim lhe parecerá a si próprio, talvez
daí a alguns anos, e que aos homens do próximo milênio não aparecerá
absolutamente. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.283)
53
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.
. Ciências humanas e estruturalismo.
Consideremos os três grandes estratos relacionados a nós, quer dizer, aqueles
que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a
subjetivação. A superfície de organismo, o ângulo de significância e de
interpretação, o ponto de subjetivação ou sujeição. Você será organizado,
você será um organismo, articulará seu corpo – senão você será um
depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado –
ou você será um desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de
enunciação rebatido sobre sujeito de enunciado – senão você será apenas um
vagabundo. (DELEUZE & GUATTARI, 2002-2005, v.3, p. 22)
Interessa o modo como Foucault situa o surgimento das ciências humanas. Para o
autor, trata-se de pensar que acontecimento na ordem do saber teria permitido que o Homem –
“e não se trata aí da essência em geral do homem, mas pura e simplesmente desse apriori
histórico, que desde o século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso pensamento”
(FOUCAULT, 2002, p. 475) – se tornasse, isolado ou em grupo, objeto de um saber positivo,
“o que é necessário pensar e o que se deve saber”. Surge então esse Homem que deve ser
pensado enquanto é um ser que pensa, representa e até mesmo constitui conhecimento. Assim,
o Homem surge já como fundamento de todas as positividades, como local de sua unidade, e a
partir do qual todo conhecimento poderia ser contestado.
Daí esta dupla e inevitável contestação: a que institui o perpétuo debate entre
as ciências do homem e as ciências propriamente ditas, tendo as primeiras a
pretensão invencível de fundar as segundas, que, sem cessar são obrigadas a
buscar seu próprio fundamento, a justificação de seu método e a purificação
de sua história, conta o ‘psicologismo’, contra o ‘sociologismo’, contra o
‘historicismo’; e a que institui o perpétuo debate entre a filosofia, que objeta
às ciências humanas a ingenuidade com qual tentam fundar-se a si mesmas, e
essas ciências humanas, que reivindicam como seu objeto próprio o que teria
outrora constituído o domínio da filosofia. (FOUCAULT, 2002, pp.477-
478)
53
53
A respeito deste debate, tal como apareceu recentemente, I. Stengers comenta com algum humor: “Este
campo, batizado com nomes diversos, ‘social studies in science’, ‘antropologia das ciências’, questionaria toda
separação entre as ciências e sociedade. Os pesquisadores agrupados nesse campo ousariam pretender estudar a
ciência à maneira de um projeto social como outro qualquer, nem mais descolado das preocupações do mundo,
nem mais universal ou racional do que qualquer outro. Eles não mais denunciariam as numerosas infidelidades
que os cientistas cometem contra as normas de autonomia e objetividade, mas as considerariam, vazias, como se
toda ciência fosse ‘impura’ por natureza e não por estar distante do ideal. (...). Os pensadores da ciência afiam
suas aramas e vão em defesa de uma causa ameaçada. Alguns se fiam no argumento bastante clássico da
54
No Homem, volta a abrir-se, ainda que de maneira muito diversa, o espaço da
representação que dominava todo saber até fins do século XVIII. As ciências do homem iriam
surgir precisamente à medida que a representação preenchesse o novo espaço aberto pela
biologia, pela economia e pela filologia (e lingüística). Foucault representa a epistémê
moderna como “um triedro”, como “um espaço volumoso aberto em três direções”: em uma
dessas dimensões estariam as ciências matemáticas e físicas; em outra, as ciências como as da
linguagem, da vida e da produção de riquezas; e, numa terceira dimensão, estaria a reflexão
filosófica, o pensamento do mesmo. No interstício desses saberes, no volume produzido no
interior deste triedro, se instalam as ciências humanas.
É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que torna as
ciências humanas tão difíceis de situar, que confere a sua irredutível
precariedade à localização destas no domínio epistemológico, que as faz
aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo. (FOUCAULT, 2002,
p.480).
As ciências humanas seriam assim o grande perigo que ronda as demais ciências, que
se tornam impuras ao tangenciar seus domínios, ali onde se unem umas com as outras.
Foucault (2002, p.481) profetiza: “A ‘antropologização’ é, em nossos dias, o grande perigo
interior do saber.” – sem dúvida! E acrescentaríamos: uma antropologia que se empenhasse
em livrar-se do Homem e do Ocidente, dessas instâncias de totalização, poderia arrastar todo
conhecimento do que se chamou de epistémê moderna em novas e estranhas relações, por
exemplo, com o que se chamou de imaginário mítico, aqui e alhures. Expliquemos melhor. Às
ciências humanas não bastam tomar o humano por objeto – a biologia pode fazê-lo –, mas sim
o ser que do interior da vida que vive, e do sistema de trocas que entretêm, e inteiramente
atravessado pela língua que fala, constitui representações através das quais se comunica,
retorsão. Ele já foi bastante útil, e continua sendo. Afirmar que a ciência é um projeto social, não seria submetê-
la às categorias da sociologia? Ora, a sociologia é uma ciência e, no caso, uma ciência que ambiciona tornar-se
super-ciência, aquela que explica todas as demais.” (2002, pp.11-12).
55
graças às quais vive e troca. Assim, o autor delimita as ciências do Homem em três regiões
epistemológicas. Tais regiões seriam a “região psicológica”, lá onde o ser vivo abre em si um
espaço de representação; a “região sociológica”, lá onde o indivíduo que trabalha e consome é
capaz de representar tais atividades; e a “região dos estudos dos mitos e das literaturas”
54
, lá
onde representa a linguagem pela qual se expressa. Mas também, as ciências humanas podem
repetir este mesmo movimento sobe si mesmas – quem desconhece, por exemplo, as análises
sociológicas sobre a origem das teorias sociais? – e, de fato, essa retomada crítica seria uma
de suas características fundamentais.
Não seria demais concluir que a distinção entre as investigações sobre a vida e aquelas
sobre as representações subjetivas que se faz dela são coextensivas a uma antinomia Natureza
e Cultura. Igualmente parece ser na distinção entre as investigações dos indivíduos, na
condição de seres que consomem e trabalham, e dos indivíduos, como aqueles que elaboram
representações coletivas que os permitem entreter tais atividades, que se funda certo modo de
conceber a antinomia Indivíduos e Sociedade. Pode-se ainda dizer – e tem-se aqui uma torção
suplementar – que é entre as representações históricas, que teriam o privilégio de desvelar as
distinções anteriores, e aquelas dos mitos, que se fundaria a antinomia Primitivos e
Civilizados
55
. Digo que há nessa última uma torção suplementar, posto não se referir
diretamente às relações entre os ‘estudos dos mitos e das literaturas’ e a filologia ou a
lingüística, mas já entre uma história que, arrancando-se das representações míticas,
desvelaria à consciência estruturas profundas que aí subjazem, ou até, o seu próprio eixo
genético. Tudo se passa como se essa terceira antinomia arrastasse as demais para uma
dimensão temporal, projetando à frente um centro, lugar de totalização projetiva na
consciência.
54
“...análise de todas as manifestações orais e documentos escritos, em suma, a análise de todos os vestígios
verbais que uma cultura ou um indivíduo podem deixar de si mesmos” (FOUCAULT, 2002, p.492)
55
Falo das três antinomias tal como funcionam no interior das ciências humanas. Entretanto tais palavras vão
funcionar de outras formas se estiverem remetidas a outros problemas, por exemplo: quando se usa cultura no
sentido do romantismo alemão, opondo-a a civilização, ao invés de à natureza como no iluminismo francês.
56
Contudo, como lembra Foucault, sua repartição das ciências humanas deixaria a
descoberto dois problemas fundamentais – que me parecem concernentes a ultima e à
primeira destas antinomias – uma se refere à própria historicidade de seus conceitos, e a outra
ao fundo inconsciente da representação, nas palavras do autor:
(...) um concerne à forma da positividade que é própria às ciências humanas
(os conceitos em torno dos quais elas se organizam, o tipo de racionalidade
ao qual se referem e pelo qual buscam constituir-se como saber); outro, à sua
relação com a representação (e a este fato paradoxal de que, embora tendo
lugar somente onde há representação, é a mecanismos, formas, processos
inconscientes, é, em todo caso, aos limites exteriores da consciência que elas
se dirigem) (FOUCAULT, 2002, p.492)
De um lado, como já mencionado, a esquizoanálise já havia liberado o inconsciente
dos grilhões da representação, apresentando-o como puro funcionamento – “o inconsciente
não diz nada, ele maquina. Ele não é expressivo ou representativo, mas produtivo”
(DELEUZE & GUATTARI, 1976, p.229), “Não há qualquer pulsão interna no desejo, só há
agenciamentos” ( DELEUZE & GUATTARI, 2002-2005, v.3, p.112). De outro lado,
ocorreram recentemente, no interior da antropologia, dois movimentos importantes, no
sentido em que vão permitir problematizar sua própria racionalidade: surge uma antropologia
que se volta para as demais ciências, buscando desfazer a separação entre humanos e não
humanos, representações e coisas (refiro-me aos trabalhos em ‘science studies’ capitaneados
por Bruno Latour), ao mesmo tempo em que um conjunto de etnólogos passa a buscar entre os
povos que estuda, mais do que “representações nativas”, outras ontologias ou formas de
descrição (por exemplo, os trabalhos de R. Wagner, E. Viveiros de Castro, M. Strathern e
outros). Conectar estes três movimentos e, ao mesmo tempo, retornar aos trabalhos de Lévi-
Strauss para extrair-lhes virtualidades ‘menores’, nos parece assim ser uma busca
profundamente interessante.
Foucault distingue os modelos constituintes que permitiriam às ciências humanas
formar seus objetos, e que teriam para elas o valor de “categorias”. Seriam estes, três pares de
57
conceitos advindos das ciências que lhes deram origem: função e norma, conflito e regra,
significação e sistema, respectivamente advindos da biologia, da economia e da lingüística.
Tais conceitos cobririam todo o volume comum do conhecimento do homem, podendo ser
retomados em cada uma de suas regiões. Assim Foucault afirma que:
(...) pode-se dizer, de maneira global, que a psicologia é fundamentalmente
um estudo do homem em termos de funções e de normas (funções e normas
que se podem, de maneira secundária, interpretar a partir dos conflitos e das
significações, das regras e dos sistemas); a sociologia é fundamentalmente
um estudo do homem em termos de regras e de conflitos (mas estes podem
ser interpretados, e somos constantemente levados a interpretá-los
secundariamente, quer a partir das funções, como se fossem indivíduos
organicamente ligados a si mesmos, quer a partir dos sistemas de
significações, como se fossem textos escritos ou falados); enfim, o estudo
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58
Poder-se-ia talvez retraçar toda história das ciências humanas desde o século
XIX, a partir desses três modelos. Com efeito, eles cobriram todo o seu
devir, pois que se pode seguir, há mais de um século, a dinastia de seus
privilégios: Primeiro, o reino do modelo biológico (o homem, sua psique,
seu grupo, sua sociedade, a linguagem que ele fala existem, na época
romântica, enquanto vivos e na medida em que de fato vivem; seu modo de
ser é orgânico e analisado em termos de função); depois vem o reino do
modelo econômico (o homem e toda a sua atividade são o lugar de conflitos
de que constituem, ao mesmo tempo, a expressão mais ou menos bem-
sucedida); bem, assim como Freud vem após Comte e Marx, começa o reino
do modelo filológico (quando se trata de interpretar e descobrir o sentido
oculto) e lingüístico (quando se trata de estruturar e de trazer à luz o sistema
significante). Um amplo declive conduziu, pois, as ciências humanas de uma
forma mais densa em modelos a uma outra mais saturada de modelos tirados
da linguagem (FOUCAULT, 2002, pp. 497-498)
Talvez, tal fato possa ser atribuído, nos termos de Deleuze, a um vetor de
‘reterritorialização no estrato antropomórfico’, que faz dobrarem-se os demais estratos em
direção à linguagem, à significância, e a própria linguagem em direção a uma totalização na
consciência histórica – sobrecodificação.
Os estratos ‘pegam’ no próprio plano de consistência, nele formam
espessamentos, coagulações, cinturas que vão organizar-se segundo eixos de
um outro plano (substância-forma, conteúdo-expressão). Mas, nesse sentido,
cada estrato tem uma unidade própria de consistência ou de composição que
concerne inicialmente aos elementos substanciais e aos traços formais, e dão
testemunho de uma máquina abstrata propriamente estrática que preside este
outro plano. E há um terceiro tipo: é que nos estratos aloplásticos
[antropomórficos ou significantes], particularmente propícios aos
agenciamentos, erigem-se máquinas abstratas que compensam a
desterritorializações e, sobretudo, as descodificações mediante
sobrecodificações ou equivalentes de sobrecodificações. Vimos, em especial,
que, se é verdade que máquinas abstratas abrem agenciamentos, são
igualmente máquinas abstratas que os fecham. (DELEUZE & GUATTARI,
2002-2005, v.5, p. 231 – grifos meus)
Mas é a repetição do movimento que gerou o Homem e a História, no interior das
próprias ciências humanas (novo lugar da representação) que produz esse vetor. Uma
repetição em miniatura da perda do infinito como continuum desdobrado levando a um
movimento continuado de totalização do conhecimento, então prometido a uma consciência
futura. Da função à norma, dos conflitos às regras, dos significados aos sistemas, todos
pressupostos inconscientes do conhecimento que um dia deveriam ser conhecidos. No caso,
59
tal apareceria entre o nascimento da ordem, e a projeção da mesma no fundo inconsciente do
qual a consciência desvelando-se, os retira. A História da virada da epistémê clássica à
moderna repete-se na história do desenvolvimento das ciências humanas, em cada uma de
suas regiões. Sempre o Homem no horizonte.
Aproximamo-nos do momento em que uma reflexão sobre o estruturalismo de Claude
Lévi-Strauss permitirá mirar a história até aqui contada de uma nova perspectiva. Segundo
Foucault:
O problema essencial do pensamento clássico se alojava nas relações entre o
nome e a ordem: descobrir uma nomenclatura que fosse uma taxinomia, ou,
ainda, instaurar um sistema de signos que fosse transparente à continuidade
do ser. O que o pensamento moderno vai colocar fundamentalmente em
questão é a relação do sentido com a forma da verdade e a forma do ser: no
céu de nossa reflexão, reina um discurso – um discurso talvez inacessível –
que seria a um tempo uma ontologia e uma semântica. O estruturalismo não
é um método novo; é a consciência desperta e inquieta do saber moderno.
(FOUCAULT, 2002, p.287).
* * *
Para além do último homem existe, pois, o homem que quer morrer. E nesse
ponto de culminação do niilismo (Meia-Noite), está tudo pronto – pronto
para uma transmutação (DELEUZE, 2001, p.27)
Lévi-Strauss talvez seja o último antropólogo, o último moderno e, porque não dizer, o
último Homem, mas também já o primeiro ser de uma nova espécie, um grande inovador – no
limite ou no limiar
56
da modernidade? Cabe decidir. Não se trata de ir além, no sentido de
superar ou resolver contradições inerentes ao estruturalismo, mas de potencializar a
dissonância no interior deste pensamento, de forma a tornar audíveis as “línguas menores”
57
que o atravessam. O estruturalismo será aqui valorizado pela sua dimensão de superfície de
56
“Podemos, então, estabelecer uma diferença conceitual entre o ‘limite’ e ‘limiar’, o limite designando o
penúltimo, que marca o recomeço necessário, e o limiar o último, que marca uma mudança inevitável.”
(DELEUZE & GUATTARI, 2002-2005, v.5, p.130)
57
“Não existem então dois tipos de língua, mas dois tratamentos possíveis de uma mesma língua. Ora tratam-se
as variáveis de maneira a extrair delas constantes e relações constantes; ora, de maneira a colocá-las em estado
de variação contínua.”... “‘Maior’ e ‘menor’ não qualificam duas línguas, mas dois usos ou funções da língua”
(Ibid.,v.2, p.49-50)
60
contato ou lugar da relação, a partir do qual se pode redefinir os termos história, mito e
ciência. O que se quer é experimentar alterar o ângulo sobre o qual se olha esta relação e
assim alterar os modos de conceber os próprios termos. Interessa a dupla liminaridade do
Estruturalismo, entre, por um lado, a modernidade e um ainda indefinido porvir, e de outro
lado, entre o Ocidente e os nativos do continente americano. Em certo sentido, a reflexões
filosóficas de que nos utilizamos até aqui servem como fator ativante dos contrastes que
atravessam o pensamento de Lévi-Strauss, sugerindo modos de alterar as relações de forças
no encontro de que este pensamento é produto. Em contrapartida, as questões levantadas pela
obra de Lévi-Strauss servirão como o fio que permite articular novas conexões que permitam
escapar da história.
Ainda que se possa reconhecer certa unidade no programa da obra de Lévi-Strauss,
essa sofre profundas modificações desde sua primeira fase em As Estruturas Elementares do
Parentesco, até, passando pelo interregno de O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem, o
seu empreendimento na memorável tetralogia Mitológicas, e seus desenvolvimentos
subseqüentes (Via das Máscaras, A Oleira Ciumenta e História de Lince).
As Estruturas é um livro penetrado de idéias que, em certo plano, parecem remontar às
teorias contratualistas dos séculos XVII e XVIII (Rousseau, Hobbes etc.), com uma
concepção de “Estado de Natureza” e de uma gênese imaginária da sociedade. Tal obra tem o
mérito fundamental de, com extremo rigor formal, integrar em torno do tema da proibição do
incesto, as questões postas pelos três grandes paradigmas explicativos das ciências humanas
(biológico, jural e lingüístico). A passagem da natureza à cultura será agora uma passagem da
natureza à sociedade, sendo a regra da proibição do incesto (que é norma universal da
humanidade) a condição transcendental de sua instituição; e o sistema de parentesco,
reconhecido como mecanismo de regulamentação da aliança entre grupos, já um sistema
semiológico. Vê-se assim encono227.14 1t.01149 111.13953353 83.53949 Tm-.14 1t.01149 111517256465 83.53949 Tm(: (nor,do )Tj0.0007 Tc 0621561 Tw 12 0 0 14.3.8.76465 83.53949 Tme ran)Tj12 0 0 124477.7.165 83.53949 Tmegm
61
de produzirem em seu entrecruzamento soluções de admirável rendimento etnográfico, que
serão exploradas, sobretudo, na segunda metade do livro, onde se passa da “teoria geral”, que
havia sido esboçada nos primeiros dez capítulos, a uma “teoria restrita”
58
, enfocando as
estruturas elementares do parentesco tal como aparecem entre povos de diversas regiões
(China, Índia, Austrália, entre outros). Pode-se ainda, dizer que nesta obra, subsiste certa
concepção evolucionista, constituindo três etapas (que parece remontar, de algum modo, aos
três estados de Comte, ou ainda à clássica distinção entre “Selvagens”, “Bárbaros” e
“Civilizados”), as formas elementares do parentesco, onde o casamento seria prescritivo
(troca restrita bilateral) passando às semi-complexas, onde ele observa regras prescritivas e
restritivas (troca restrita unilateral); para por fim chegar às complexas, onde seguiria apenas
uma restrição (troca generalizada)
59
. Nas obras subseqüentes, a “estrutura” não mais
encontrará suporte sociológico (ao menos no sentido da ‘nossa’ sociologia), mas terá um
papel mais marcadamente cognitivo.
O Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem aparecem, de algum modo, como obras
intermediárias do autor neste processo de cognitivização. Aí buscando explicar mecanismos
universais do intelecto humano, subjacentes à ‘Razão ocidental’, o autor trabalha sobre a
dissociação de uma descontinuidade combinatória (totemismo) e de uma continuidade
diferencial (sacrifício); a distinção entre as transformações estruturais e históricas, ou seriais;
bem como a distinção entre mito e ciência, ou mito e filosofia, onde o mito figura como uma
sorte de ‘Razão’ imersa no sensível. Nas palavras de Lima & Goldman
(2003, p.19):
Preparado por ‘O pensamento Selvagem’, de 1962, as ‘Mitológicas’
anunciavam que a razão não representa a obra suprema de uma humanidade
finalmente realizada mas, no máximo, o produto de uma cultura particular
que, recusando, absorvendo e eliminando outras formas de pensar, afirmava
e ostentava a sua suposta superioridade. Contra tamanha presunção, Lévi-
58
Essa divisão do livro é de Dumont, 1971.
59
Nos sistemas elementares, a proibição do incesto é acompanhada de uma prescrição de casamento dentro de
uma determinada “classe” de parentes; a proibição do incesto é a face negativa da qual a exogamia é a positiva.
62
Strauss afirmou a existência do pensamento selvagem, estrutura universal
subjacente a qualquer forma de pensar, inclusive àquela própria do Ocidente
que denominamos Razão.
O conjunto de estudos em que Lévi-Strauss se dedica aos mitos dos ameríndios –
sobretudo nas Mitológicas, seu empreendimento de maior fôlego – submete as bases das
ciências humanas e da ‘Razão’ ocidental ao encontro com um pensamento “outro” irredutível
aos conceitos de ‘cultura’ e ‘sociedade’, mas igualmente apto a engendrar uma socialidades
(Cf. WAGNER, 1974, p.12). Assim, a um discurso coextensivo a outras formas de vida.
Viveiros de Castro disserta sobre a importância da descoberta:
Sendo, à primeira vista, um estudo puramente formal dedicado às mitologias
ameríndias, as Mitológicas revelavam algo que os etnólogos que iniciavam
seu trabalho na Amazônia não demoraram a perceber: que os materiais
simbólicos de que as sociedades sul-americanas lançam mão para se
constituir, e assim as estruturas construíveis pelo analista, eram refratárias
às categorias tradicionais da antropologia. Princípios cosmológicos
embutidos em oposições de qualidades sensíveis, uma economia simbólica
da alteridade inscrita no corpo e nos fluxos materiais, um modo de
articulação com a ‘natureza’ que pressupunha uma socialidade universal –
eram esses os materiais e processos que pareciam tomar o lugar dos idiomas
juralistas e economicistas com que a antropologia descrevera as sociedades
de outras partes do mundo, com seus feixes de direitos e deveres, seus
grupos corporados perpétuos e territorializados, seus regimes de propriedade
e herança, seus modos de produção linhageiros. Longe de se constituir em
conteúdos ‘superestruturais’ ou ‘culturais’ das formações sul-americanas,
aqueles materiais e processos articulavam diretamente uma sociologia
indígena. É por isso que as Mitológicas ensinavam mais sobre as sociedades
ameríndias que, por exemplo, os textos antigos do mesmo autor sobre a
chefia ou a guerra na América do Sul, permitindo, aliás, uma recuperação
não-durkheimiana da problemática de As Estruturas elementares do
parentesco. Antes que se impusesse a constatação de que os modelos
analíticos clássicos eram inadequados para as sociedades que estudávamos,
as Mitológicas (...) foram a primeira tentativa de apreender as sociedades
do continente em seus próprios termos – em suas próprias relações –, bem
como de fornecer um inventário geral do repertório simbólico a partir do
qual cada formação social gera suas diferenças específicas. (1999, pp. 146-
147 – grifos meus).
O plano propriamente Metalógico em que as análises estruturalistas se põem a
acompanhar os fluxos materiais e semióticos tratados pela mitologia ameríndia permite
atravessar transversalmente os planos de análise, sociológico e psicológico. Doravante, as
63
sociedades passam a aparecer como modos de atualização de um pensamento mais geral, ou
encarnações específicas do espírito humano – os sujeitos individuais tendem a ser retirados da
análise: “Não pretendemos [...] mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os
mitos se pensam nos homens, e à sua revelia.” (LEVI-STRAUSS, 2004a, p.31). Por outro
lado, a antinomia Natureza e Cultura, que fora usada como um12 4 heurpsticdo um
64
Todavia, mais à frente explica:
Como os mitos se fundam, eles próprios, em códigos de segunda ordem
(sendo os de primeira ordem aqueles em que se consiste a linguagem), este
livro forneceria o esboço de um código de terceira ordem, destinado a
garantir a tradutibilidade recíproca de vários mitos. Por essa razão, não é
equivocado considerá-lo um mito como um mito: o mito da mitologia
(...)Mas, tanto quanto os outros códigos, este não é inventado ou recebido de
fora. É imanente à própria mitologia, onde apenas o descobrimos. (ibid: 31)
Há assim um mecanismo recursivo que permite estabelecer três níveis (e não etapas)
de abstração, e essa é uma estrutura mais ou menos perene em sua obra. Assim é que, após
“acompanhar o movimento espontâneo do mito”, durante os três volumes das “Mitológicas”,
Lévi-Strauss pôde concluir, no Finale de “O Homem Nu”, que a sua ‘variante do mito’ difere
das demais, posto ser ali ‘que os mitos tomam consciência de si mesmos’, como se o mito
operando-se recursivamente sobre si mesmo desvelasse sua própria estrutura. Nas palavras do
autor:
Na medida em que consiste em tornar explícito um sistema de relações que as
outras variantes apenas incorporavam, ela [a análise estrutural] as integra a si
própria e integra a si própria a elas em um novo plano, onde a fusão definitiva
do conteúdo e da forma pode tomar lugar (...) A estrutura do mito, tendo sido
revelada à si própria, encerra a série de seus possíveis desenvolvimentos
(LÉVI-STRAUSS, 1990, p. 628 – tradução minha ).
Poder-se-ia pensar que a totalização do mito pelo antropólogo – que teria ‘acesso
privilegiado’ ao espírito humano – persiste nas análises de Lévi-Strauss, que constitui do mito
imagem homóloga, mas sem jamais fundir-se a ele, evoluindo em outro plano’. Mas tal
perspectiva resulta, afinal, de uma tomada de posição que não nos parece ser a única saída
possível. Em um debate implícito com Paul Ricoeur o autor comenta:
65
‘É preciso escolher o lado em que se está. Os mitos não dizem nada capaz de
nos instruir sobre a ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem
ou o seu destino.’ Em troca, prossegue o autor, os mitos nos ensinam muito
sobre as sociedades de onde provêm, e, sobretudo, sobre certos modos
fundamentais (e universais) de operação do espírito humano (Lévi-Strauss
apud Viveiros de Castro, 2002b, p.133).
Assim é que o mito será tomado pelo antropólogo no plano da pura linguagem –
representação que representa a si mesma. E, deste modo, aquilo de que falam não teria
conexão com o ‘real’, mas tão somente, tais imagens de pensamento remetendo-se umas às
outras, poderiam revelar uma lógica das qualidades sensíveis, leia-se, uma mesma lógica
comum ao espírito humano, tal como atualizada por uma humanidade específica. É que, diz
Lévi-Strauss: “Ora, o que pretendemos esboçar é justamente uma sintaxe da mitologia sul-
americana” (2004a, p.26). Utilizando o modelo da lingüística estrutural para fazer uma
conexão entre o mito e nós, essa era uma conseqüência quase necessária. Foucault comenta:
Enfim, [...] [uma] conseqüência que se estende, sem dúvida, até nós: a teoria
binária do signo, a que funda, desde o século XVII, toda a ciência geral do
signo, está ligada, segundo uma relação fundamental, à uma teoria geral da
representação. Se o signo é a pura e simples ligação de um significante com
um significado (ligação que é arbitrária ou não, voluntária ou imposta,
individual ou coletiva), de todo modo a relação só pode ser estabelecida no
elemento geral da representação: o significante e o significado só são ligados
na medida em que um e outro são (ou foram ou podem ser) representados e
em que um representa atualmente o outro. Era, pois, necessário que a teoria
clássica do signo desse a si própria, como fundamento e justificação
filosófica, uma ‘ideologia’, isto é, uma análise geral de todas as formas da
representação, desde a sensação elementar até a idéia abstrata e complexa.
Era igualmente necessário que, reencontrando o projeto de uma semiologia
geral, Saussure desse ao signo uma definição que pôde parecer ‘psicologista’
(ligação de um conceito com uma imagem): é que, de fato, ele redescobria aí
a condição clássica para pensa a natureza binária do signo. (FOUCAULT,
2002, p. 92-93)
Em uma passagem de “Lógica do Sentido”, Deleuze introduz uma idéia que nos
ajudará a prosseguir com a questão:
66
Lévi-Strauss indica um paradoxo análogo ao de Lacan sob a forma de uma
antinomia: dadas duas séries, uma significante e outra significada, uma
apresenta um excesso e a outra apresenta uma falta, pelos quais se
relacionam uma e a outra em eterno desequilíbrio, em perpétuo
deslocamento
(DELEUZE, 2003, p.51)
O referido paradoxo que, não se deve esquecer, tem profundas implicações nos modos
de conceber a mecânica dos jogos da representação (em que se fundam as ciências humanas),
pode ser pensado ao menos em dois níveis distintos, entre os quais Lévi-Strauss parece
oscilar: 1) Pode-se considerar que significantes e significados, entendidos respectivamente
como imagem-coisa e conceito, estejam dispostos em duas séries heterogêneas, discerníveis a
partir de um “elemento paradoxal”, que aparece, a um só tempo, em uma das séries como
excesso e na outra como falta – digamos, um som que não quer dizer nada
61
. Assim, o próprio
fenômeno de um ponto de “diferenciação assimétrica”
62
(diferença nos modos de diferir)
articula e define, pelo excesso e pela falta, as séries. O que significa dizer que a diferença
entre as séries é mais real que as séries por si mesmas, e que a fronteira entre elas é passível
de deslocamento. 2) Uma outra explicação possível e que, em certo sentido, restaura a
separação entre representações e mundo, é uma de cunho propriamente semiológico, que
estabelece uma mudança de patamares de pensamento/realidade. Trata-se de uma transposição
da relação entre conceito e imagens para o plano da linguagem, mas em que se preserva o
lugar das coisas. Assim desliza-se de um plano ontológico para um plano semântico, ou, no
máximo, epistemológico. Essa mudança acompanha uma cisão entre níveis de significação no
interior da própria linguagem. Em outras palavras, é preciso que a linguagem não apenas
tenha referentes extrínsecos, as coisas (essas sim ontologicamente garantidas), mas que tenha
a si mesma como referente. Caso em que, há um elemento extrínseco às relações auto-
referentes da linguagem onde se produzem os significados.
61
O excesso na série significante (o “significante flutuante”) aparece sob a forma de “casa vazia”, não
significada, enquanto a falta na série significada (o “significado flutuado”) aparece sob a forma de “peão
supranumerário”. Cf. Deleuze, 2003, pp.51-54.
62
Tomo expressão de empréstimo de Strathern, 1990.
67
A segunda explicação permite às análises de Lévi-Strauss considerarem que os mitos,
diversamente da ciência, não falam sobre e a respeito mas, como pura linguagem, através e a
despeito, das coisas. A separação entre a mensagem e os referentes pelos quais se articulam os
códigos (zoológico, botânico, astronômico e etc.), está no cerne deste tipo de análise, dado
que permite discernir no interior do mito um conjunto de relações metalingüísticas (e que,
portanto, estão além da linguagem) constantes
63
. Segundo o autor:
(...) a função significante do mito não é exercida pela linguagem, mas sobre
ela: a linguagem contingente de cada narrador é sempre suficiente para
transmitir um sistema de significados envolvidos por um processo
metalingüístico e do qual o valor operacional permanece mais ou menos
constante de uma linguagem para a outra. (LÉVI-STRAUSS, 1990, p.649,
tradução minha)
O conceito de estrutura sintática profunda permite mesmo pensar em uma tripartição
analítica da linguagem, entre a estrutura pura (ou pura forma), que articula morfemas, a
estrutura dos sons, imagens acústicas (significantes), que articula fonemas, e, sobre estas, a
estrutura dos sentidos (significados), que articula semantemas (LÉVI-STRAUSS, 1973,
p.242). Mas o que aconteceria se considerássemos que não há mensagem, mas apenas
múltiplos códigos, dentre os quais os códigos da lingüística (significante), ou o código eleata
(do contínuo e do discreto
64
), e os demais códigos de que faz uso Lévi-Strauss seriam apenas
tantos outros? Seria possível retirar o centro da análise, o significante, atravessar os níveis
estruturados da linguagem, a mensagem, e substituí-los pela própria tradução entre códigos –
mas também induções (real-formal), transduções (real-real)
65
etc. –, nas múltiplas relações,
diferenças e repetições em que se envolvem, de modo a fazer variar as próprias constantes
lingüísticas por uma reabertura da questão ontológica? Se tal fosse possível, tratar-se-ia
63
É justamente neste plano que as análises de Lévi-Strauss têm o caráter “acrônico” apontado por Goldman, que
torna possível isolar certas estruturas mentais invariantes (Cf. Goldman, 1999). Segundo aponta o próprio Lévi-
Strauss (1973, p.240), evocando a distinção saussureana, a língua (“Langue”), em oposição à palavra (“parole”),
é um domínio de um tempo reversível.
64
Para uma elaboração do código eleata do contínuo do discreto em Lévi-Strauss ver: SCHREMPP, 1992.
65
Ver DELEUZE & GUATTARI (2002-2005, v.1, p.90)
68
apenas de usar as relações expressas nos mitos ameríndios, onde o significante despótico não
parece ter importância fundamental, para analisar o próprio universo teórico que a história
opôs aos mitos. E se como disse Pierre Clastres (2004: 216) o estruturalismo é como “uma
teologia sem Deus: uma sociologia sem sociedade”, talvez caiba reduplicar o movimento, sim,
um estruturalismo sem espírito humano – involução criativa!
“(...) se o objetivo último da antropologia é contribuir para um melhor
conhecimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos,
finalmente dá no mesmo que, neste livro, o pensamento indígena sul-
americano tome forma sob a operação do meu pensamento, ou o
contrário. O que importa é que o espírito humano, indiferente à
identidade de seus mensageiros ocasionais, manifesta aí uma
estrutura cada vez mais inteligível...”.
Mas, por outro lado, não provém o espírito humano desse seu mensageiro ocasional, o
Homem moderno? Não estaria justamente na composição entre o Homem (ponto de
convergência da história onde se revela uma significância) e os mitos, o segredo de sua
dissolução? Voltaremos a tais questões, mas antes cabe apresentar brevemente alguns dos
caminhos pelos quais se conduziu a antropologia posterior ao estruturalismo Lévi-Straussiano.
* * *
Após o estruturalismo tem início, na antropologia, um movimento histórico marcado
por um processo de fragmentação e pelo surgimento da diversidade teórica que, segundo
Edwin Ardener (1985), caracteriza a antropologia contemporânea. De fato, o único consenso
que parece haver sobre o estado da arte da antropologia desenvolvida a partir do “declínio do
estruturalismo” parece ser a absoluta falta de consonância interna da disciplina
66
. Este
fenômeno, ligado ao desaparecimento das grandes escolas de pensamento, que Ardener
denomina “o fim dos ismos” em antropologia, comporta tanto diagnósticos negativos, como o
66
Todavia pode-se argumentar que a antropologia comportou sempre uma imensa diversidade interna e que, ao
menos em parte, a sensação de fragmentação é um privilégio do presente, antes que a distância no tempo permita
comprimir a diversidade teórica em níveis estratigráficos bem definidos, escolas e outras categorias análogas.
69
de Paul Jorion (1986), quanto outros relativamente positivos, como o de Sherry Ortner (1984;
1996). A autora vê a “confusão de categorias” e as expressões de “caos e anti-estrutura” como
sintomáticas de um período de liminaridade no qual já se poderia perceber o delineamento de
uma nova orientação teórica erigida sobre a noção de prática (“práxis” ou “ação”). A ênfase
sobre a noção de prática e a preocupação com as motivações dos atores sociais, parece, de
fato, ter caracterizado uma tendência geral da crítica ao formalismo estruturalista. A noção, tal
como utilizada por Ortner, constitui uma espécie de tônica geral do pensamento social
contemporâneo, que perpassa as obras de autores tão diversos como Goffman e os
interacionistas simbólicos, os adeptos da antropologia marxista, até Clifford Geertz, e, não
poderia faltar, Pierre Bourdieu. Este último, fortemente influenciado pela fenomenologia de
Husserl, pretende fazer uma ruptura, tanto em relação ao pretenso objetivismo estruturalista,
quanto com o subjetivismo representado, sobretudo, pela teoria existencialista de Sartre. Para
Bourdieu, são os conceitos de prática, derivado de Marx, e o conceito de habitus, que alude ao
conceito-chave do behaviorismo, hábito, que permitem fazer essa dupla ruptura. A crítica de
Bourdieu ao estruturalismo lévi-straussiano recai sobre a “falácia da regra”, o que significa
dizer que o estruturalista faz uma generalização descritiva a posteriori e a transforma em uma
explicação causal do comportamento descrito. Bourdieu, ao contrário, pretende compreender
a ação do “nativo” a partir do ponto de vista em que este vive a ação. Tal abordagem, se pode
dizer, aponta no sentido de uma pesquisa do “próximo”, dado a maior possibilidade de se
chegar ao sentido da ação de um sujeito de ‘sua própria vila’ do que de outra qualquer. Em
certo sentido, essa visão engendra uma noção do pensamento social, antes como o resultado
de uma identificação entre pesquisador e nativo, do que propriamente de um encontro com a
alteridade. Vê-se assim um retorno ao sujeito, o praticante da ação, mas, como não poderia
deixar de ser, junto vem a sociedade, o meio de conflitos ou regras em que a ação se
desenrola.
70
De forma geral, a ênfase sobre a prática parece se basear em uma distinção entre o
ponto de vista extrínseco a partir do qual o antropólogo objetiva o nativo e o ponto de vista
intrínseco no qual o nativo viveria a ação. Contudo, há que se objetar que uma distinção entre
a prática nativa e a teoria (prática teórica) do antropólogo, que pretenda valorizar a primeira
em relação à segunda, não deixa de reafirmar uma descontinuidade epistêmica entre ambas –
estranho que eles tenham a prática e nós a “pura teoria”.
Paralelamente à ênfase na noção de prática, mas já sem tanta referência direta ao
estruturalismo, podemos destacar a importância da ênfase na noção de representação, seja na
acepção política ou epistemológica do termo. As duas acepções, dificilmente desvinculáveis,
servem de suporte para as críticas das chamadas antropologia pós-colonial e pós-moderna.
Com o final da segunda guerra e o processo de descolonização dos países da Ásia e da África,
a relação entre a antropologia e o empreendimento colonial é posta em cheque. A crítica pós-
colonialista se dá pela problematização do empreendimento colonial como condição de
possibilidade da pesquisa antropológica, por parte da antropologia anterior. Esse tipo de
crítica comporta desde os escritos de Fewchtang, que apontam as relações intestinas entre os
antropólogos e governo colonial, com especial ênfase no papel das agências de financiamento,
até sofisticadas elaborações, como as de Talal Asad (1991), que aponta como um erro a
redução da antropologia a um empreendimento colonial, mas assinala a importância de se
levar em consideração as relações de poder implicadas na produção de conhecimento
antropológico. Entre os efeitos mais interessantes da vinculação da antropologia a questões de
ordem política está a afirmação da parcialidade da abordagem do antropólogo. É no sentido de
explorar essa destotalização, que se desenvolvem diversas análises da escrita etnográfica, com
vistas a esclarecer os modos de construção do ponto de vista total do antropólogo (Cf.
CLIFFORD & MARCUS, 1986b). Nos dois casos tratou-se de remeter a representação a
alguma forma de sujeito, coletivo ou individual.
71
De fato, se o estruturalismo apontava em direção a uma dissolução de sujeito e objeto
da análise, diversas das elaborações teóricas ‘posteriores’ pretenderam trazê-los de volta –
sujeito e objeto, junto aos quais voltam a sociedade e o indivíduo, a natureza e a cultura em
novas relações. O “espírito humano” só é atacado em favor da restituição dos termos daquelas
antinomias de que o Estruturalismo nos havia possibilitado escapar. Algumas dessas reflexões
se encaminharam no sentido de restituir o lugar do sujeito (individual ou coletivo), e outras o
lugar do objeto como instância totalizável, seja sobre a forma da sociedade, seja sobre a forma
de natureza encarnada na cognição.
A Antropologia pós-moderna, sobretudo a partir da obra de Geertz, dedicou-se
justamente a colocar o Sujeito novamente em evidência, daí toda a aproximação dos pós-
modernos à fenomenologia e à hermenêutica, ou seja, àquilo que Lévi-Strauss chamaria de
“filosofias da consciência”, das quais, justamente, ele fizera questão de se distanciar. Geertz
foi talvez o primeiro autor a elaborar teoricamente o caráter intersubjetivo da disciplina,
enfatizando que aquilo sobre o que o antropólogo se debruça – ou seja, seu ‘objeto` – é
resultado de um processo de construção simbólica, do qual fazem parte tanto o antropólogo
quanto ‘seu’ nativo. A antropologia pós-moderna, por sua vez, levou as idéias de Geertz para
uma outra direção, enfatizando o discurso antropológico como uma política de representação
transcultural
67
. Tais idéias, por sua vez, desembocaram, em larga medida, nas teorias da
etnicidade e das políticas de identidade (F. Barth, Eric Wolf, entre outros), que enfatizavam as
estratégias dos atores sociais para reafirmar sua identidade diante das forças
homogeinizadoras do Sistema Mundial. Aqui, é como se a cultura retornasse como
manifestação privilegiada da política. Não se trata mais da cultura como emanação de valores
morais e simbólicos, mas, agora, de uma cultura objetivada para uso estratégico. Cultura,
enfim, como meio de identidade (Cf. VIVEIROS DE CASTRO, 1999).
67
A esse respeito ver: GORDON, 2007.
72
Voltando ao estruturalismo, outro ponto de crítica se dá em direção contrária, porém
complementar, assentando-se sobre a recuperação da integridade do objeto da análise
antropológica, a sociedade como instância de totalização analítica. O conceito de sociedade
como todo analiticamente apreensível, que jogara um papel fundamental no estrutural-
funcionalismo de Oxford, sai profundamente escoriado do estruturalismo. Pois a sociedade,
tanto quanto o sujeito pensante, como lugar da totalização, parece, em certa medida,
dissolverem-se na obra de Lévi-Strauss, de forma que a totalidade aparece apenas como um
pano de fundo, ou uma virtualidade intangível – o espírito humano, o espírito do leitor.
Autores tão distintos como Louis Dumont, com sua investigação sobre a sociedade indiana, a
partir do sistema de castas, e Pierre Clastres, com sua teoria a respeito dos mecanismos de
controle da emergência do Estado nas sociedades indígenas sul-americanas, bem como alguns
expoentes da antropologia marxista como Godelier e Meillassoux, trabalham no sentido de
recuperar o conceito de sociedade após Lévi-Strauss. Por outro lado, autores como Dan
Sperber vão buscar recuperar a totalização no plano cognitivo, sob a forma de natureza
cientificamente apreensível – pensamento como objeto de conhecimento.
Dumont não apenas recupera a totalização no plano da sociedade, mas também no
plano da própria estrutura. O autor usa sua teoria sobre o holismo da sociedade indiana para
criticar o individualismo ocidental. No cerne desta crítica está a afirmação do artificialismo da
distinção entre fato e valor, baseada no argumento da necessidade de hierarquizar para pensar.
Se, para Lévi-Strauss, pensar significa distinguir (e as assimetrias das distinções provocariam
um desequilíbrio perpétuo), para Dumont, distinguir significa hierarquizar. A associação da
hierarquia ao princípio de englobamento do contrário, por sua vez, implica em que
hierarquizar seja totalizar (DUMONT, 1997). Na aplicação dessa estrutura à sua própria
antropologia, a sociedade indiana aparece como o fundo não marcado a partir do qual se pode
pensar o Ocidente.
73
Clastres, por sua vez, afirma que a análise estruturalista não pode deixar de evitar os
aspectos sociopolíticos do mito “sob pena de entrar em Pane” (CLASTRES, 2004, p. 216).
Contudo, pode-se argumentar que a sua obra guarde importantes similaridades com a do
mestre. Se em Lévi-Strauss a destotalização, que descola o mito da sociedade, e a busca de
uma “lógica das qualidades sensíveis” estão a cargo de um “descentramento” da Razão
ocidental, a retotalização da sociedade e a busca de uma “filosofia política das sociedades
indígenas” em Clastres produzem o mesmo efeito em relação à concepção ocidental de Estado
(LIMA; GOLDMAN, 2003). Permanece ainda nas análises de Clastres certo primitivismo, há
sociedades contra, mas estas estão antes do Estado, intuem o Estado, mas pode-se perguntar:
o Estado não estaria ali ao lado? E, por outro lado, ser anti-Estado é propriedade de algumas
sociedades? (Cf. 118) Clastres abre todo um conjunto de questões muito interessantes a serem
desenvolvidas. Em especial a idéia do ‘mito’ como discurso coextensivo às sociedades contra
o Estado (CLASTRES, 2004).
Uma busca esteve sempre colocada, de uma forma ou de outra, para a antropologia das
três últimas décadas do século XX, que pode ser sintetizada pela pergunta: o que pode ser
feito da antropologia após o estruturalismo? Mas, apesar das inúmeras respostas que nos
foram legadas, esta pergunta parece longe de estar esgotada. Seria possível caminhar em outra
direção, e, ao invés de resolver os “problemas” ou as “contradições” do estruturalismo, levá-
los às ultimas conseqüências? Sem dúvida, há todo um conjunto de reflexões dentro do
próprio campo da antropologia que nos permitiriam levar adiante tais questões. Seguimos com
Roy Wagner.
* * *
Wagner, fornece algumas ferramentas que permitem encaminhar uma reflexão no
sentido aqui proposto. O autor parece produzir uma semiótica generalizada pautada sobre o
conceito de símbolo (WAGNER, 1981, pp.42-43) e, em certo sentido, avança na segunda
74
‘solução’ do paradoxo a que referimos a obra de Lévi-Strauss. Wagner solapa a segurança da
existência de uma realidade última, afirmando que toda a realidade a que se pode ter acesso é
de ordem simbólica. Assim, considerando que os símbolos têm sempre outros símbolos como
referentes, Wagner atribui a “ilusão” de se ter acesso a uma realidade primeva, mais
fundamental, ou inata, à distinção, dada por determinado contexto, entre o símbolo
‘simbolizante’ (que se reconhece como remetendo a uma realidade exterior a si), e o símbolo
‘simbolizado’ (que serve como referente para o primeiro, um “symbol that stand for itself”).
Estes modos de simbolização são denominados, respectivamente, “simbolização
convencional” e “simbolização diferenciante”.
A “simbolização convencional” baseia-se nas propriedades do “símbolo”, tal como
definido por C. S. Peirce, de forma que, os símbolos, abstraídos da instância simbolizada
“coletivizam” as singularidades da mesma por meio de uma codificação reconhecida como
absolutamente arbitrária em relação ao referente. A “simbolização diferenciante”, por sua
vez, tem propriedades distintas, ainda que também passíveis de um tratamento semiótico. Esta
simbolização especifica e concretiza o mundo convencional, estabelecendo e delineando as
individualidades a que ele se refere. Cada vez que se cria uma nova metáfora, e assim um
novo referente, se redefine a instância simbolizada, se inventa uma nova realidade.
A dificuldade maior em se falar nesses dois modos de simbolização é compreender
que se tratam sempre de processos simultâneos, um que diferencia o campo dos significantes
do campo dos significados pelo estabelecimento das singularidades dos significantes
(simbolização diferenciante) e outro que remete os dois campos um ao outro continuamente
(simbolização convencional). Para falar em termos lévi-straussianos, trata-se do
estabelecimento de uma separação entre o pensamento e o real, e da contínua tentativa de
apreender o segundo pelo primeiro. O que é interessante nesta formulação é que ambas as
75
operações são pensáveis em um registro semiótico. Não havendo um referente, na ordem do
mundo, exterior à simbolização. Assim, a simbolização é pensada como invenção.
Entretanto, não se pretende aqui apontar tais formulações como avanços em relação à
obra de Lévi-Strauss, mas apenas ressaltar a forma com que Wagner leva adiante
determinadas noções do estruturalismo. Boa parte das formulações de Wagner parecem
mesmo uma radicalização de noções estruturalistas, como se pode observar nesta passagem de
A Oleira Ciumenta:
A transferência de sentido não se faz de termo a termo, mas de código a
código, isto é, de uma categoria ou classe de termos a outra categoria ou
classe. Sobretudo seria errado pensar que uma dessas classes ou categorias
pertença por natureza ao sentido próprio, a outra, por natureza ao sentido
figurado. Essas funções são intermutáveis, relativas uma à outra. Como
acontece na vida sexual dos caracóis, a função própria ou figurada de cada
classe, indeterminada de início, consoante o papel que for chamada a
representar numa estrutura global de significação, induzirá na outra classe a
função oposta. (LÉVI-STRAUSS, 1987, pp.187-188)
Wagner pensa, mais uma vez em consonância com Lévi-Strauss, que a restrição da
“visão”, ou o empobrecimento da informação, é essencial para que se possa dotar o mundo de
inteligibilidade. Desta forma, o autor afirma que todas as tradições humanas têm de
estabelecer uma de duas formas de “controle”, que são também dois modos de objetificação:
ou se considera que a simbolização convencional é o lugar próprio da ação humana,
considerando a simbolização diferenciante como inata, como nós ocidentais faríamos, ou, ao
contrário, se considera a simbolização convencional como inata e a simbolização
diferenciante como resultado da ação humana, como, por exemplo, os Daribi de Papua Nova
Guiné,
fariam. “Invenção” e “Convenção” seriam assim dois modos de objetificação
presentes em todo ato cultural, mas que sempre se apresentam, alternativamente, um de forma
aparente e outro de forma implícita, como uma espécie de “fundo invisível” da cognição
(WAGNER, 1981, p.406). Nas palavras de Viveiros de Castro: “...o que é pré-histórico e
76
genérico é que um dado é sempre pressuposto, mas não sua especificação; o que é dado é que
haverá sempre algo construído como dado” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002a, p.406)
Esta conceitualização permite por em relação diferentes modelos de descrição da
realidade. De fato, ela implica que o antropólogo possa iluminar o que permanece implícito
no modelo de objetificação nativa, tanto quanto as descrições nativas possam iluminar o que
permanece implícito no modelo de objetificação do antropólogo. Neste sentido é que apenas
no encontro é que se inventam as culturas. Em lugar de diferentes culturas sobrepostas a uma
só natureza, diferentes modelos de objetificação, que só podem ser objetificados a partir de
uma relação.
De volta à Lévi-Strauss, é licito pensar que suas análises põem em contato dois
sistemas de convenções. Contudo, há uma assim
77
contato
69
. Ou ainda, fazer a forma intrínseca à matéria dos mitos modificar a matéria
implícita na forma do discurso antropológico
70
.
Mas na semiótica wagneriana, ainda permanece certa tendência a cristalizar dois
modelos, ou duas culturas, a partir da relação – é ainda possível reconstituir uma instância de
totalização, continuar a constituir um “nós”, intelectuais ocidentais, em oposição aos os Daribi
de Papua juntos aos demais “primitivos”, bem como os camponeses e os “religiosos” (Cf.
WAGNE, 1981, p.114), mesmo que em um modelo em que fundo e forma trocam
determinações. Ainda é possível, de alguma forma, estabelecer um “grande divisor” entre as
abstrações teóricas e as pequenas multiplicidades nômades
71
. A alteração diferenciante é
cristalizada como um pólo de uma dualidade formal ou modelar. Em última análise, a
diferença entre a simbolização diferenciante e a simbolização convencional parece ser
convencional
72
. Entretanto, talvez visto desde seu outro pólo, esse dualismo se desfaça, talvez
a simbolização convencional possa ser pensada como um caso específico da diferenciante. O
que não equivale certamente a dizer que não há uma diferença entre ‘nós’ e os ‘outros’, mas
apenas que essa não nos parece ser a mais interessante das diferenciações. Talvez seja mesmo
mais interessante partir de todas as diferenças intensivas que já nos atravessam, não para
69
Assim, o objetivo não é de contextualizá-los, mas o de fazer o que Strathern (1987) chama no texto “Out of
Context” de “Play With Contexts”.
70
A inspiração vem do comentário de Viveiros de Castro: “A matriz relacional do discurso antropológico é
hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o sentido de
seu próprio sentido”...“Este artigo propõe as perguntas seguintes: O que acontece se recusarmos ao discurso do
antropólogo sua vantagem estratégica sobre o discurso do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo
funciona, dentro do discurso do antropólogo, de modo a produzir reciprocamente um efeito de conhecimento
sobre esse discurso? Quando a forma intrínseca à matéria do primeiro modifica a matéria implícita na forma do
segundo? Tradutor, traidor, diz-se; mas o que acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua?”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002b)
71
Differentiating and collectivizing modes of action, and of course all human thought and action, are invariably
contingent upon specific context, specific idioms and specific symbols. The tendency of analyst and reader alike
has been to lose one self in this specificity, to become so charmed by the force of exotic idioms that one’s overall
perspective is lost to a general sense of relativistic ambiguity, or a certainty of ‘organic cultures fulfilling their
destinies’. ‘Differentiation’ and ‘collectivization’ are overriding abstractions. That is why I use them
(WAGNER, 1981, p. 104).
72
O terceiro perigo dos quatro perigos apresentados por Castañeda, tal como descrito por Deleuze é o “Poder”,
que é possibilidade de saltar entre segmentações finas e os segmentos duros, sempre voltando à reinstaurar uma
máquina sobrecodificadora. (Cf. DELEUZE & GUATTARI, 2002-2005, v.3, p.111)
78
constituir uma alteridade, mas para nos engajarmos num movimento de alteração. Em outras
palavras, talvez, estranhamente, seja tarefa da antropologia livrar-se do Homem.
79
C
C
o
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o
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Apontamentos para uma antropomitia
Retornaremos, como prometido, à obra de Lévi-Strauss, mas antes, retomemos o
trajeto percorrido até aqui. Tentamos ao longo do trabalho encaminhar uma proposta, de fato,
delinear um panorama geral para situar o empreendimento futuro: constituir uma reflexão que
possa utilizar a imaginação conceitual das narrativas que se convencionou chamar ‘mitos’
como filtros para decodificar a ‘pura teoria’, a que a História as opôs.
No primeiro capitulo, tratamos de situar as margens da ‘Razão’ tal como constituída
na modernidade. Através de O Nascimento da Tragédia de Nietzsche situamos certo modo de
conceber a ruptura que na antiguidade teria dado origem à Razão Ocidental; após isto,
buscamos estabelecer com apoio de A História da Loucura, de Foucault, o modo como a
‘Razão’ opera por exclusões, modificando suas representações sobre aquilo que exclui à
medida que ela mesma se modifica. Ainda buscamos aí estabelecer que a esquizofrenia e os
mitos figuram para a racionalidade moderna como duas formas radicais de alteridade.
Sugerimos que há um espaço para fazer, em relação aos mitos, um movimento análogo ao que
fez a esquizoanálise de Deleuze & Guattari, em relação à esquizofrenia. Ou seja, alterar o
ponto de partida das explicações, de forma a que os mitos constituam um ponto de vista para
mirar a ‘pura teoria’ que se opõe a eles. Passamos por fim a acompanhar o modo como
Foucault descreve, em As Palavras e as Coisas, a epistémê clássica, o passado imediato com
o qual a modernidade viria a romper, ao mesmo tempo em que se estabelecia uma nova
relação de ancestralidade com a antiguidade clássica.
No segundo capítulo, ainda seguindo de perto As Palavras e as Coisas, buscamos
enfocar em seus sucessivos estágios à transformação que ocorria na curva dos séculos XVIII e
XIX, dando origem à modernidade. Tem aí importância o aparecimento dos novos princípios
de ordenação que vão resultar no nascimento de três novas ciências: a biologia, a economia
política e filologia. E após o surgimento destas, o surgimento da História tal como a
80
conhecemos – instância totalizadora em que são rebatidas as diversas historicidades pelas
quais o homem se encontra atravessado. Tratamos aí de indicar que a concepção de mito, tal
como apresentada no capítulo precedente, tinha certas relações com esta passagem. Buscamos
aí relacionar uma série histórica longa a uma curta, que vem até o presente, e, ao mesmo,
tempo indicar como ambas se entrecruzam, em um intrincado nó, com as próprias
representações que fazemos dos mitos.
No terceiro capítulo, passamos a acompanhar a descrição de Foucault sobre o papel
das ciências humanas na epistémê moderna, e propusemos que há uma relação entre a sua
arqueologia e uma cartografia que permite pensar as ciências humanas situadas entre três
antinomias: Natureza e Cultura, Indivíduo e Sociedade, e Primitivos e Civilizados. Ainda
propusemos que tais antinomias teriam, ao longo da história, tendido a serem
sobrecodificadas, rebatendo-se sobre a significância e a consciência histórica. Nesse ponto,
buscamos passar das ciências humanas ao estruturalismo de Lévi-Strauss, para propor que o
autor, mobilizando toda epistémê moderna justamente para dar conta da alteridade radical dos
mitos, abrindo as portas para o fim da modernidade. Contudo, apontamos também uma
oscilação no interior da obra do autor, que varia entre o ‘limite’ e o ‘limiar’ de dissolução da
epistémê moderna – oscilação esta que se ligaria as duas soluções possíveis para um paradoxo
envolvendo as séries dos significantes e dos significados. Buscamos então traçar um
panorama geral dos encaminhamentos da antropologia após o estruturalismo, indicando como
as antinomias com as quais o estruturalismo havia rompido acabaram, de alguma forma,
sendo retomadas. Encontramos, por fim, na obra de Wagner um ponto de apoio para abordar o
estruturalismo naquilo que têm de mais profundamente inovador. Mas ainda aí, em Roy
Wagner, nos deparamos com um último obstáculo, o modo como permite situar a
simbolização diferenciante como um pólo de uma dualidade, submetendo-a assim à
simbolização convencional.
81
Por fim resta-nos concluir apontando algumas direcionamentos para uma pesquisa
futura sobre os mitos. Comecemos por uma célebre passagem de Lévi-Strauss:
A deixar-se guiar pela busca dos imperativos mentais, nossa,
problemática se aproxima do Kantismo, embora caminhemos por
outras vias, que não conduzem às mesmas conclusões. O etnólogo
não se sente obrigado, como o filósofo, a tomar como princípio de
reflexão as condições de exercício de seu próprio pensamento, ou de
uma ciência que é a de sua sociedade e de seu tempo, a fim de
estender essas constatações locais a um entendimento cuja
universalidade só pode ser hipotética e virtual. Preocupado com os
mesmos problemas, ele adota um procedimento duplamente inverso.
Prefere à hipótese de um entendimento universal, a observação
empírica de entendimentos coletivos, cujas propriedades, de certo
modo solidificadas, lê são reveladas por inumeráveis sistemas
concretos de representações. E visto ser ele homem de certo meio
social, de certa cultura, de certa região e de certo período da história,
para quem esses sistemas representam toda a gama de variações
possíveis no seio de um gênero, escolhe aquele cuja divergência lhe
parece mais acentuada, na esperança de que as regras metodológicas
que lhe serão impostas para traduzir esses sistemas nos termos de seu
próprio, e vice-versa, exponham uma rede de imperativos
fundamentais e comuns: ginástica suprema em que o exercício da
reflexão, levado aos seus limites objetivos (já que estes terão sido
antes de tudo localizados e inventariados pela investigação
etnográfica), faz saltar cada músculo e as juntas do esqueleto
expondo assim os lineamentos de uma estrutura anatômica geral.
(Lévi-Strauss, 2004a:30)
De mesma forma que entre duas culturas, interessa para Lévi-Strauss dar a ver “os
lineamentos de uma estrutura anatômica geral”, entre dois mitos interessa sua estrutura
mínima. Assim é, que distingue entre os níveis estruturados e os níveis de probabilidade da
linguagem: os primeiros são aqueles que tendem a permanecer estáveis na transmissão dos
mitos, e os seguintes aqueles que serão modificados de acordo com as contingências em que
os diversos narradores contam um ‘mesmo mito’. O mito possui assim um caráter diacrítico, é
um discurso que é só tradução, mas precisamente na medida em que é o que permanece das
sucessivas traduções. O mito é o resultado da erosão do tempo sobre as distintas produções
humanas. É dessa maneira que o autor define o mito como o lugar do memorável, como
82
‘aquilo que fica’
73
. De modo que as obras individuais teriam todas, um “mitismo” potencial,
que seria atualizado quando e se um grupo adotasse sua estrutura no decorrer dos anos. Nesse
desenvolvimento parece haver uma intuição fundamental, qual seja, o mito não é um tipo de
narrativa, mas resulta das inter-relações entre as distintas produções humanas. Mas aí, aquilo
que se repete de uma produção humana para a seguinte, é o mesmo, o fundamental. Atribui-
se, desta forma, a maior importância ao memorável, ao permanente e às semióticas
significantes. Os aspectos criativos tornam-se assim secundários, a repetição torna-se uma
repetição do mesmo. Trata-se de extrair constantes de variáveis, ao invés de lançar as
variáveis em um estado de variação contínua. O compar, modelo legalista da ciência régia, em
lugar do díspar, modelo de uma ciência nômade (DELEUZE & GUATTARI, v5, p. 36). É
preciso, entretanto, lembrar que essa problemática é interior ao estruturalismo. Lévi-Strauss
concebe toda uma série elaborações sobre a variação contínua, e descobre na própria
mitologia indígena uma série de motivos “regressivos” – que vão do discreto ao contínuo
como a mitologia do mel (Cf. LÉVI-STRAUSS, 2004b) –, ainda que, em última análise, o
autor tenda a ‘se posicionar’ do lado do discreto (o discreto como o real e contínuo como
ilusão).
Talvez o encontro entre mitologias fosse mesmo mais interessante ali onde há uma
heterogeneidade quanto às formações sócio-políticas, regimes de naturezas-culturas, e
conexões trans-temporais, mas, nesse caso, a “ginástica suprema” consistiria em maximizar a
divergência entre as produções daí advindas – dar a ver os seus pontos de irredutibilidade
mútua, a criação, as suas conexões sempre parciais, umas servido de suporte às outras. E é
possível que as transformações expressas nos mitos da América indígena possam nos dar essa
lição, justamente por tratar-se ali como de uma:
73
Grande parte dos estudos de mitos tomou o memorável e o permanente como base para o estudo. Tal aspecto é
particularmente notável nos estudos que tratam da passagem da oralidade à escrita na Grécia antiga – por
exemplo, a chamada escola formulaica – para um panorama geral sobre o tema ver: G. NADDAF In: L.
BRISSON, 2000.
83
(…) Idade Média à qual teria faltado sua Roma: massa confusa,
originária de um velho sincretismo cuja textura foi certamente muito itolobsistiram( )Tj0.0009 Tc 0.91988 Tw 10.98 0 0 10.99 80590.895 39c10.87 28aqui e acolgin, dextamenvte
84
Afinal, como disse Lévi-Strauss (1985, p.:151): “nem sobre falsos problemas é proibido
sonhar.
85
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