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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA
ALEMÃ
SOPA DE LETRAS NAZISTA:
A APROPRIAÇÃO IMEDIATA DO REAL
E A MEDIAÇÃO PELA FORMA NA FICÇÃO
DE THOMAS BERNHARD
Alexandre Villibor Flory
São Paulo
2006
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2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA ALEMÃ
SOPA DE LETRAS NAZISTA:
A APROPRIAÇÃO IMEDIATA DO REAL
E A MEDIAÇÃO PELA FORMA NA FICÇÃO
DE THOMAS BERNHARD
Alexandre Villibor Flory
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Língua e Literatura Alemã, do
Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, para
a obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador: Profº Drº Stefan Wilhelm Bolle
São Paulo
2006
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3
DEDICATÓRIA
A
Xanda e Helena,
meus amores,
sempre.
4
Agradecimentos
Ao CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,
pela concessão de uma Bolsa Sanduíche de um ano na Alemanha,
fundamental para a realização desta tese;
Ao DAAD – Deutscher Akademischer Austauschdienst, em parceria com o
CNPq na concessão da bolsa de estudos acima mencionada, além de um
curso de 4 meses de aperfeiçoamento em língua alemã;
Ao Prof. Dr. Willi Bolle, pelo estímulo, amizade e orientação ao longo de todo
este período, além de nossas incursões teatrais brechtianas, e pelo amor pela
literatura, que me incentiva muito em meus caminhos literários;
Ao Prof. Dr. Klaus Scherpe, da Universidade Humboldt de Berlin, pela
orientação na Alemanha, com indicações precisas que me fizeram entender a
literatura austríaca sob outra perspectiva;
Ao Prof. Dr. Ulrich Beil, sempre pronto a ouvir e discutir projetos, sejam
acadêmicos ou pessoais, e pela participação na qualificação desta tese;
Ao Prof. Dr. Marcus Mazzari, amigo, incentivador e interlocutor deste mergulho
bernhardiano desde seu começo;
Ao Prof. Dr. Jorge de Almeida, pela participação na qualificação, também um
interlocutor decisivo para meus caminhos dentro da obra de Bernhard;
A Renato Oliveira de Faria, pela revisão criteriosa, pela sistematização das
notas, e pelas discussões bernhardianas, enfim, pela ajuda, amizade e
companheirismo em todas as horas, as fáceis e as difíceis;
À minha esposa, Alexandra, pelas conversas sobre Bernhard, pela revisão
detalhada, por me acompanhar à Alemanha, por todo tipo de apoio em todos
os sentidos e momentos, desde que nos conhecemos;
À minha mãe, Suely, cuja ajuda foi inestimável, seja pela leitura pertinente e
pelos comentários sobre a tese;
À minha família, que sempre me apoiou em minhas decisões e caminhos;
5
SUMÁRIO
Índice............................................................................................... 2
Resumo.............................................................................................4
Abstract............................................................................................4
Introdução........................................................................................5
Capítulo I..........................................................................................8
Capítulo II.......................................................................................51
Capítulo III....................................................................................118
Considerações finais...................................................................248
Referências Bibliográficas..........................................................251
6
ÍNDICE
Introdução........................................................................................5
Capítulo I
Contexto histórico e literatura austríaca no pós-1945
................8
Reescrita da história da literatura austríaca A literatura de Bernhard de
Frost (1963) a Auslöschung (1986): um esboço Quatro autores, quatro
textos: diálogos na década de 60 – A escrita autobiográfica: o “teor de
verdade” da mentira Excurso: diálogo possível entre periferias do
capitalismo Os anos 80 na Áustria: literatura e sociedade Sobre
Holzfällen. Eine Erregung e Auslöschung. Ein Zerfall
Capítulo II
Estudo sobre Holzfällen. Eine Erregung
...................................51
Ponto de vista e sujeito da história..............................................51
Os desdobramentos do “eu” e do tempo no romance Os personagens e
seus nomes: ausências e presenças – A respeito do sujeito da história
A construção labiríntica de Holzfällen.........................................63
Os efeitos da repetição Mobilidade e paralisia em Holzfällen A função
decisiva do “insignificante” A forma-mercadoria como estrutura estética:
Wald, Hochwald, Holzfällen O dinheiro como sujeito Excerto: Brecht e a
centralidade do dinheiro O papel da arte em Holzfällen O leitor e o
labirinto: a recepção exigida por Bernhard Sobre os duplos e o caráter
teatral da realidade Crítica das categorias de crítica Escrita corporal e
física: construção da realidade em Holzfällen
7
A formalização estética da provocação: o caso Holzfällen.......97
Papel da recepção: histórico e clímax em Holzfällen O grupo em torno do
pianista Lampersberg(er) em Tonhof: antecedentes do “crime” O
escândalo Holzfällen Eine Erregung: a provocação passa à forma
Erregung como atualização da história Provocação formal em Holzfällen
Três riscos inevitáveis – Thomas Bernhard: projeto de uma classicidade
contemporânea?
Capítulo III
Estudo sobre Auslöschung. Ein Zerfall.............................118
Ponto de vista e personagens
................................................118
Ponto de vista e voz narrativa em primeira e terceira pessoas Do ponto de
vista da morte à morte dos pais e do irmão Metalinguagem como princípio
de construção Construção dos personagens e relação com o leitor O pai
e Johannes: modernidade arcaica e redução à mercadoria Ocupando o
lugar do pai: Murau como Senhor de Wolfsegg Die Gedanken sind frei”: a
caminho da totalização negativa Morte social pela forma da máquina
Totalização negativa O “mal personificado” ou a “Bondade em pessoa”? A
mãe segundo Murau Murau assume o discurso e ação da mãe: o projeto
de aniquilamento das irmãs Os serviçais von Unten têm a sua vez: a
cozinheira e os jardineiros Maria e Spadolini: Murau entre extremos O
cunhado fabricante-de-rolhas-de-vinho-de-Freiburg” Murau como
Stimmenimitator O interlocutor ausente Gambetti e a literatura como
explosão Übertreibungcomo UntertreibungA caminho da redução à
linguagem e sua explosão na história
A linguagem em Auslöschung: concentração na palavra e
irrompimento da história.............................................................168
A linguagem como uma criança senil Linguagem, luta de morte e história:
princípio de construção de Auslöschung “Ur-plötzlich”, “Ur-ur-urgroßeltern”,
“Ur-sprungsort” “Abschaffen” como “Entschöpfungstag” Os narradores
como “Wortfetzen” – “Begriffslose Begriffswelt” – Benjamin sobre Kraus:
citação e origem
8
História, memória e escrita da história......................................196
“Reibpartien” em Wolfsegg: prazer em servir Austrofascismo e Nazismo:
defesa contra si mesmo O passado do mito Habsburgo O barroco A
concepção de alegoria da modernidade Socialismo como capitalismo de
Estado na Áustria Uma outra história da humanidade A Kindervilla como
memória de um espaço estético O processo de rememoração (parte 1): o
sonho de Murau O processo de rememoração (Parte 2): a arte do
rememorar como exigência após Auschwitz O processo de rememoração
(Parte 3): rememoração e reescrita da história como turvação da vista limpa
Mediação pela fotografia e pelos jornais como autênticas pela sua
falsidade – A autenticidade da fotografia – Mediação pela linguagem e
imediação da realidade social em Auslöschung (Doação) Final: Sobre a
composição do romance e sua falha que acerta em cheio
Considerações finais...........................................................................248
Bibliografia...........................................................................................251
9
RESUMO
Esta tese estuda a obra do escritor Thomas Bernhard, especialmente a
partir de dois de seus romances, a saber Holzfällen. Eine Erregung (1984) e
Auslöschung. Ein Zerfall. (1986). Pela mediação entre forma literária e forma
social, pretende-se desvendar dinâmicas históricas inscritas na forma literária
elaborada pelo escritor austríaco. Por um lado, o autor busca “politizar a
estética” por meio de uma estética da provocação formal, com o que cita
diretamente a sociedade e quebra as fronteiras bem delimitadas entre ficção e
realidade.
Por outro lado, dadas as condições históricas específicas da Áustria após
a Segunda Guerra, e apoiando-se na formulação adorniana da arte como
historiografia inconsciente de nosso tempo, Bernhard cria uma obra que
procura ler a contrapelo (Benjamin) e atualizar esta rica tradição num momento
propício, culminando em sua obra dos anos 80.
Palavras-chave: Thomas Bernhard; literatura austríaca; estética da
provocação formal; reescrita da história; teoria da narrativa; mediação entre
forma social e literária; literatura e sociedade.
10
ABSTRACT
The present dissertation is a study of the work of Thomas Bernhard, based
mainly in two of his novels, Holzfällen. Eine Erregung (1984), and Auslöschung.
Ein Zerfall. (1986). The intention is to uncover the historical dynamics inscribed
in the literary form developed by the Austrian author through the mediation
between literary and social form.
On the one hand, Bernhard seeks to “politicize the esthetics”, making use
of an esthetics of formal provocation that makes direct references to real people
of the Austrian society, effacing the sharp distinction between fiction and reality.
On the other hand, in the specific context of the historical condition of Austria
after the Second World War and based on Adorno’s concept of art as the
unconscious historiography of our time, Bernhard writings seek to renew this
rich tradition in a way that is opposed to the traditionally accepted one
(Benjamin) and to bring it up-to-date in a propicious context. The higher point of
this achievement is the work he produced during the decade of 1980.
Key words: Thomas Bernhard; Austrian literature; formal provocation
aesthetics; rewriting history; narrative theory; literary form and social mediation;
literature and society.
11
INTRODUÇÃO
Esta tese pode ser considerada inovadora, por trazer para o Brasil a
discussão sobre a obra do austríaco Thomas Bernhard, um dos autores mais
importantes da literatura em língua alemã das últimas décadas. Embora seja
significativo o número de obras traduzidas e publicadas no Brasil, seu estudo
por aqui ainda é incipiente. Entre as obras publicadas contam Extinção
(Auslöschung), Árvores abatidas (Holzllen), O náufrago (Der Untergeher),
Perturbação (Verstörung), O sobrinho de Wittgenstein (Wittgensteins Neffe), e,
no ano de 2006, a publicação da autobiografia, com os cinco volumes
publicados num livro sob o título de Origem. Além disso, houve a
encenação de algumas de suas peças, como No Alvo (Am Ziel), em 1997, e de
A força do hábito (Die Macht der Gewohnheit), em 2004, ambas em São Paulo.
Seu estudo, porém, ainda não ganhou muita atenção por parte da crítica
brasileira, sendo a rica bibliografia secundária alemã e austríaca de difícil
acesso no Brasil.
A obra de Bernhard tem como uma de suas matrizes o amálgama entre
ficção e realidade, procurando discutir as delimitações entre os vários campos
da vida em sociedade, penetrando pela forma no contexto especificamente
austríaco e, também, no mundial. Ou seja, parte do chão austríaco, para daí
trazer para a tessitura de sua obra as aporias da modernidade ou pós-
modernidade. Sendo assim, obrigaria, como defendo, uma leitura tanto pelo
seu lastro austríaco quanto pelo seu modo de inserção peculiar no cenário
capitalista contemporâneo.
O modo próprio de sua escrita “fez a Áustria falar”, nas palavras de
Schmidt-Dengler, e, neste sentido, sua obra intenta levar adiante o projeto de
uma “politização da estética” que consiga questionar a autonomia do campo
cultural, deixando sua obra ativa, embora sem uma filiação política específica,
que a faça sectária.
Este projeto está firmemente ancorado numa tradição austríaca muito
marcante, que remonta ao barroco e passa pela Era Metternich (pós-1815),
entendida como conservadora e aspirando à reconstrução de uma identidade
salvadora, dada a perda de influência internacional desde meados do século
12
XIX. Esta tentativa, após a Segunda Guerra Mundial, ganha novo impulso e
torna-se quase uma política de Estado, que deseja se distanciar dos horrores
perpetrados pelos nazistas e, ainda, reconquistar a soberania política das mãos
das potências vencedoras da guerra; para isso, abafa, reprime e, mesmo,
“extingue” este seu passado. Se a literatura austríaca e a historiografia literária
admitem e aceitam fazer parte desta construção no imediato pós-guerra, como
pretendo mostrar no capítulo I, a partir dos anos 60, passando pelos 70 e
chegando aos “perigosos” anos 80, para usar uma formulação do livro
Holzfällen, surge um grupo que se posiciona contra esta perspectiva.
Vários autores insurgem-se contra esta releitura da história, ocupando
Bernhard espaço de destaque entre eles. O capítulo II trata da criação e do
funcionamento deste mecanismo, bem como alguns dos precursores e,
especialmente, a maneira como Bernhard se insinua neste quadro complexo.
Minha tese defende que duas grandes linhas de força operando na
obra de Bernhard, ambas calcadas no mote: “In meinen Büchern ist alles
künstlich.” (ITA, 82)
1
Esta expressão, cunhada numa entrevista publicada como
posfácio de um de seus livros, evidencia a necessidade da mediação pela
linguagem, para se perscrutar os meandros da forma literária e, também, da
forma social. Se este “motivo condutor” (Leitmotiv) poderia conduzir à errada
avaliação de uma obra formalista, no mau sentido, ou seja, como obra fechada
sobre si mesma, Bernard se esforça ao máximo para não perder de vista a
sociedade e o mundo material, que nunca deixam de ser considerados em sua
obra, às vezes mergulhando na forma social quase imediatamente como, por
exemplo, pela formalização da provocação social.
Esta é uma das duas linhas acima comentadas, e que chamo aqui de
“provocação formal”. Por meio dela Bernhard procura penetrar diretamente a
forma social, deixando “impura” a forma do texto em prol de um contexto que
exija força explosiva. A sociedade se citada e incitada ao debate. Veremos
no capítulo I que este caminho remonta à autobiografia (75-82), mas o capítulo
II discute em profundidade o ápice desta dinâmica, reconhecido no romance
1
Nesta tese, todas as obras de Bernhard serão citadas desta maneira, com uma abreviação
em maiúsculas seguido do número da página citada. Sendo assim, Der Italiener = ITA,
Auslöschung = AUS, Holzfällen = HOLZ, Frost = FRO, Die Ursache = UR, Der Keller = KEL, Die
Kälte = KÄL, Der Atem = ATEM, Ein Kind = KIND, Verstörung = VER, Der Stimmenimitator =
STIM, Heldenplatz = HELD, Alte Meister = AM.
13
Holzfällen, cujo subtítulo alude ao caráter irritado e provocativo que marca sua
forma. O texto flerta com a classificação de “romance de chave”
(Schlüsselroman), no qual cada personagem e lugar podem ser identificados e
tarjados, organizando e orquestrando um escândalo que, de fato, ocorre,
deixando a esfera da recepção para entrar na forma da obra, constituindo-se
como um dos seus pilares básicos. A obra não se resume a isso, no entanto, e
formalmente tem pretensões mais ousadas: a citação direta da realidade de
parte da vida cultural vienense pode ganhar corpo pela mediação via
linguagem, para onde tudo conflui neste texto. Assim, não um realismo
vulgar, que conceba a linguagem como mero instrumento, mas a própria
criação de uma realidade que pode ser concretizada na e com a linguagem,
artificial por natureza, caráter este exacerbado na estética bernhardiana.
A outra linha trata dos temas ligados ao passado austríaco a ser
atualizado e dignificado, o que se torna possível dado o contexto social, político
e econômico dos anos 80, após o fim das ilusões do pós-guerra. Esta
perspectiva insurge-se contra uma forte tradição, que não nega, antes se
alimenta dela para realizar uma crítica que a leia contra a corrente. O lugar por
excelência deste debate, no século XX, é sem dúvida o nazismo: em que
medida este representa uma continuidade desta tradição austríaca, ao invés do
status de aberração histórica exógena (alemã) a que fora relegado? E ainda
mais: por outro caminho, o nazismo pode ser visto também como a realização
macabra dos potenciais humanos e tecnológicos da modernidade, com a
possibilidade do morticínio industrial em massa e a burocratização do trabalho
e, também, do pensamento e da sensibilidade. Assim, campo para o
afloramento tanto das questões eminentemente austríacas, quanto de sua
inserção em âmbito mais genérico que, certamente, atua sobre o quadro local.
Esta linha também tem como ponto de apoio a autobiografia, culminando
naquela considerada por muitos sua Opus Magnum, Auslöschung. Neste
romance realiza-se uma alegorização da história da Áustria pelo castelo
Wolfsegg e por seus moradores, tratando de questões que vão da necessária
rememoração e atualização deste passado, até a possibilidade de uma
reescrita da história, lida a contrapelo.
De fato, estas duas linhas não são excludentes, e Holzfällen expressa as
antinomias e aporias de parte da classe artística de Viena entre os anos 50 e
14
os 80, criticando uma “politização da estética” negativa e regressiva, que
almeja defender o status quo atingido com a chegada deste grupo aos cargos
de direção mais relevantes na Áustria. Por seu turno, Auslöschung também
provoca: não pessoas específicas, mas a Áustria e os austríacos, de modo
geral: assim o romance Auslöschen(sic) recebe a crítica ferrenha de Jörg
Haider, político de extrema direita com participação decisiva nos
acontecimentos políticos da segunda metade dos anos 80 na Áustria.
Nas palavras de Weinzierl: “Liebe und Haß, Faszination und Schrecken,
Verehrung und Verachtung, Zärtlichkeit und Brutalität und weitere gemischte
Gefühle bilden in der Regel eine unklare, wahrlich trübe Suppe.”
2
Esta sopa
turva, como aquela sorvida pelo ator do Burgtheater (personagem de
Holzfällen) em meio a seu discurso de amor ao teatro, materializa muitos dos
conflitos e situações colocadas pela obra de Bernhard.
2
U. Weinzierl. “Bernhard als Erzieher”, em P. M. Lützeler (org.), Spätmoderne und
Postmoderne, p. 192.
15
CATULO I
Contexto histórico e literatura austríaca no pós-1945
O estudo do contexto histórico da literatura austríaca no pós-1945 é
indispensável para a compreensão da obra de Bernhard, considerando-se,
especialmente, as leituras que foram feitas após a Segunda Guerra Mundial, e
que tinham como pano de fundo o interesse de marcar as bases de uma
literatura eminentemente austríaca, empreendimento que pretende cortar o
cordão umbilical que faz da literatura austríaca um apêndice da alemã. Este
esforço ganha sentido ao se levar em conta as idiossincrasias históricas do
espaço que hoje se chama Áustria, que já foi o centro do Sacro Império
Romano Germânico e, também, do Império Austro-Húngaro, passando pela
anexação ao “Reich de Mil Anos” de Hitler, até chegar à conformação atual da
Segunda República, em 1945, e à reconquista da autonomia em 1955, com o
“Contrato de Estado” (Staatsvertrag).
A necessidade de se construir uma identidade nacional austríaca, após a
guerra, incluía objetivos variados. Em primeiro lugar, o Império Austríaco no
século XIX era formado por muitos povos (Vielvölkerstaat), indo contra a
constituição de uma perspectiva nacional, temida desde os tempos do
Congresso de Viena, em 1815, por conta do seu potencial destrutivo: o
nacionalismo faria ruir as bases deste Império de muitos povos.
Após a Primeira Guerra Mundial, no entanto, o Império se de uma vez
por todas extinto, e resta o temor pela inviabilidade econômica austríaca que,
sem o parque industrial da Boêmia e as terras cultiváveis da Hungria, receava
pela sua capacidade de se estabelecer como nação autônoma. O receio,
apesar de infundado, teve efeitos nítidos: levou a Áustria ao projeto de
anexação com a Alemanha, o que angariou amplo apoio popular e não se
efetivou por imposição dos vencedores da guerra, que o desejavam uma
Alemanha fortalecida após sua derrota.
3
De fato, desde as derrotas de
Solferino (1859) e de Königgrätz (1866), especialmente esta última, para a
3
Cf. R. Steininger, Stationen auf dem Weg zum ‘Anschluß’”, em M. Gehler e R. Steininger
(orgs.), Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 1, p. 99-152.
16
Prússia e para a Itália (perda de Veneza), determinando o final da “Liga Alemã”
(Deutscher Bund), que estava sob comando austríaco, se aventa a hipótese
do desmantelamento do Império Austríaco. O tema “A Queda da Áustria” (Der
Zerfall Österreich) ganhou as ruas em 1870, marcando desde o início a política
do Império Austro-Húngaro, que tem seu termo com o final da Primeira Guerra
Mundial.
4
Estes fatores contribuíam para o clima que se formou: sentia-se a
necessidade de preencher este vazio identitário, que permaneceu ao longo da
Primeira República (1918-1934) e do Austrofascismo (1934-1938) e, depois,
com a anexação nazista (1938-1945).
Além disso, um segundo interesse animava este projeto pós-1945, a
saber: a Áustria precisava vender-se aos aliados na condição de “primeiras
vítimas” de Hitler, com o quê alcançava dois objetivos de uma vez: por um
lado, facilitava a aceitação de sua própria conduta na guerra, e em segundo,
servia para se reconquistar a autonomia política, ameaçada pela divisão entre
os dois blocos antagônicos da guerra fria, como ocorreu com a Alemanha. O
caminho seria assumir o espólio da rica tradição austríaca e, assim, resgatar
uma cultura milenar. Deste modo se estabelece a primazia da arte para a
construção desta auto-imagem, tanto externa quanto internamente,
absolutamente necessária no cenário montado no pós-guerra. De quebra, o
incentivo ao turismo viria bem a calhar, dadas as dificuldades de inserção da
Áustria na economia mundial.
A criação desta identidade passa necessariamente pela cultura, que deve
ser retomada como maneira de inserir a Áustria e os austríacos na história.
Mas a questão não era alheia a controvérsias. Não é à toa que, em 1982, tenha
sido publicada uma coletânea de artigos sobre o tema: Für und wider eine
Österreichische Literatur
5
, na esteira de um intenso debate em torno da
existência de uma literatura especificamente austríaca, que não por acaso tem
como epígrafe uma citação da autobiografia de Thomas Bernhard, na qual se
lê: “Hatte ich die Grenze nach Deutschland überschritten, holte ich die deutsche
Kennkarte hervor, hatte ich die österreichische nach Salzburg überschritten, die
österreichische Identitätskarte. (Die Ursache)”. A diferença entre o uso dos
4
Cf. H. J. K. Kuprian, “Staat und Gesellschaft vor dem Ersten Weltkrieg”, op. cit., p. 10-12.
5
K. Bartsch, et al. (orgs). Für und wider eine österreichische Literatur. Königstein/TS:
Athenäum, 1982.
17
termos parece pequena, mas indica algo central: trata-se da questão de
construção de uma identidade, que vai se incrustar na geografia, no espaço,
que também tem uma memória, conforme se verá em Auslöschung e em outros
romances de Bernhard.
Sem entrar no mérito da questão, cumpre lembrar que as diferenças
históricas políticas, sociais, ideológicas, culturais, de formação nacional
entre o que hoje compreende a Alemanha e a Áustria são enormes, o que
justifica uma abordagem que leve em conta estas idiossincrasias. Como dirá
Schmidt-Dengler, com acerto, a questão sobre a existência de uma literatura
austríaca foi superada por outra, essa sim decisiva: “Was sind die
Besonderheiten der österreichischen Literatur?”
6
.
Inserida neste contexto turbulento, a literatura austríaca do imediato pós-
guerra procurava, antes de qualquer coisa, deixar de lado a altercação com o
perigoso passado recente austríaco, buscando assim dar continuidade ao
caminho trilhado antes da guerra, como se aquele passado não lhe dissesse
respeito. Tomando como exemplo Heimito von Doderer: para este autor não
houve uma quebra histórica interna, como se viu na Alemanha, e portanto não
havia necessidade de um recomeço do zero (Stunde Null) ou de uma
atualização do passado, como se em Auckenthaler
7
. Um outro autor
importante para este período foi Alexander Lernet-Holenia, que afirma,
categórico: “In der Tat brauchen wir nur dort fortzusetzen, wo uns die Träume
eines Irren unterbrochen haben, in der Tat brauchen wir nicht voraus-, sondern
nur zurückblicken [...] wir sind, im besten und wertvollsten Verstande, unsere
Vergangenheit.”
8
Que Hitler era austríaco, não se recorda. Deve-se lembrar
que este olhar para o passado exortado por Lernet-Holenia o procura
dignificá-lo, mas apagá-lo. Preconiza antes um salto para antes da guerra, o
entendendo o que levou àquele estado de coisas, desaguando no nazismo. O
passado a que ele alude aspira à empatia com um outro tempo, com outros
valores, uma outra tradição.
6
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 11.
7
Cf. K. F. Auckenthaler, “‘Ich sah, daß die Österreicher eine ganz andere, fremde Nation sind.
Die gemeinsame Sprache täuscht… Sie sind viel älter, erfahrener, viel weiser im Umgang mit
anderen Völkern.’ Überlegungen zum österreichischen Literaturbegriff”, em Zeitschrift
Österreich in Geschichte und Literatur (mit Geographie), n° 38, caderno 3, p. 155.
8
A. Lernet-Holenia apud W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 22.
18
Reescrita da história da literatura austríaca
Não apenas os autores, mas a história da literatura também se alinha a
esta perspectiva, e a relê segundo estas diretrizes, quase institucionais. A volta
a estas raízes será elaborada teoricamente por uma série de autores, que ora
voltam ao barroco austríaco, quando Viena rivalizava com Paris como capital
européia, ora estancam na Áustria famosa pelo Biedermeier da Era Metternich,
com o Congresso de Viena (1815). Estas são as duas principais correntes
descritas por Auckenthaler, entre outras arroladas por este autor.
Em primeiro lugar, a linhagem de Josef Nadler, iniciada em 1948, que
defende a continuidade e influência da tradição barroca, do século XVII e XVIII,
para a literatura austríaca
9
. Este itinerário parte da contra-reforma católica, com
o impedimento da entrada do protestantismo e da ilustração na Áustria.
Hermann Broch comenta, em seu famoso ensaio sobre Hofmannstahl, que a
hipertrofia da Corte gerou uma secularização a serviço da Igreja, ganhando
esta destacada força política que, no século XX, caracteriza o contexto
austríaco com cores bem específicas, estendendo-se da participação ativa no
Austrofascismo à adesão ao nazismo:
Die Säkularisation des geistigen Lebens war vom Protestantismus ausgegangen;
ihre Imitation durch die Höfe hatte also auch religionspolitischen Zweck, nämlich
den einer Wiederfestigung des Katholicismus im neuen Staatsrahmen. Nicht
zuletzt galt das für die Kunst.
10
Deste desenvolvimento surge, em Broch, a importância do teatro (de
tradição barroca) e a tendência para o ritual (dramas jesuítas). Para adiantar, o
teatro ocupa posição central na estética de Bernhard, entendido como forma de
conceber o mundo, e não apenas como uma esteticização da vida moderna
que, por seu turno, também realiza. A construção de uma máscara identitária
anda lado a lado com a formação de um personagem teatral, o que conduz a
uma concepção do mundo como teatro (“Teatro-Mundi”), a uma bürgerliche
Totentanz, nas palavras de Claus Peymann. Mas o teatro entra tanto pelo tema
(O pato selvagem, no caso de Holzfällen) quanto pela linguagem e pela
encenação do enterro (em Auslöschung).
9
J. Nadler, Literaturgeschichte Österreichs, Salzburg, 1948.
10
H. Broch, Hofmannsthal und seine Zeit, p. 51.
19
A segunda perspectiva foi estabelecida por Claudio Magris, num texto
escrito em 1963, em italiano, com destaque na Áustria a partir 1966, quando foi
publicada sua tradução em alemão. Suas teses tiveram enorme repercussão,
angariando tanto concordância como discordância, mas sempre levadas em
consideração a partir de então. O título diz muito: O mito habsburgo na
literatura austríaca
11
. Em seu trabalho, Magris recua apenas até 1806, ano que
considera o início do Biedermeier, que ganha força a partir de 1815, sob o
conservador Metternich. Dado que um defensor destas teses, Ulrich Greiner,
coloca Bernhard como um exemplo crasso da aplicação deste “mito habsburgo”
na segunda metade do século XX, vale a pena deter-me neste trabalho.
Deve-se frisar que a posição de Magris não defende incondicionalmente
estes “mitos” que erige. Ele deixa isto claro quando discorre sobre a
conceituação do termo “mitos”. Por um lado, este termo alude aos valores
arraigados ao longo da história e à tradição de uma dada sociedade. Por outro
lado, inclui também desejos e projeções idealizadas, que nunca existiram mas
que podem ser criadas a posteriori, remodelando o passado a seu contento.
Todavia, mesmo como idealização, expressa uma verdade para estas pessoas
sendo, portanto, fator decisivo para se entender o momento atual, seja no
âmbito literário como no social. No caso em questão, a busca por uma
identidade também se pauta por esta recriação do passado, partindo daí o
trabalho de Magris.
O principal elemento deste mito a Áustria dos Habsburgos pintada
como uma época feliz, um espaço marcado pela medida e pela harmonia, a
expressão de uma Europa Central caracterizada pela ordem e organizada
como um conto de fadas, na qual o tempo não corre tão depressa e se arvora
em um depositório de valores seculares. Magris cita Stefan Zweig: “[...]
goldenen Zeitalter der Sicherheit. Alles in unserer fast tausendjährigen
österreichischen Monarchie schien auf Dauer gegründet und der Staat selbst
der oberste Garant dieser Beständigkeit.”
12
11
C. Magris, Il Mito Absburgico nella Letteratura Austriaca Moderna, Torino: Editora Torino,
1963. (Tradução alemã de Madeleine von Pásztory: Der habsburgische Mythos in der
österreichischen Literatur, Salzburg: Otto Müller, 1988.)
12
S. Zweig apud C. Magris, Der habsburgische Mythos in der Österreichischen Literatur, p. 14.
20
Este “mito habsburgo” teria conseguido transformar a contraditória
realidade austríaca em um mundo seguro e calmo.
13
Aqui uma das linhas de
força que, ao mesmo tempo, o aproxima e afasta de Thomas Bernhard, por
este se insurgir contra o abafamento destas contradições, transformando-se
tanto em tema quanto em forma em sua linguagem explosiva. Para ir de
encontro a ela, Bernhard a mobiliza, entrando em terreno perigoso: muitos
críticos vão listá-lo como apologista desta reação, quando, por exemplo,
desloca seus romances para espaços como Castelos, diretamente vinculados à
tradição Habsburga, ou critica veementemente a política e o estado austríacos.
Não se leva em conta que Bernhard a cita para, de dentro dela, miná-la,
destruí-la, numa palavra cara a Bernhard, extingui-la, para lembrar do romance
Auslöschung.
14
O trabalho de Magris apóia-se em três pilares para erigir este “mito
habsburgo”: o universalismo (unindo a Europa Central), a burocracia (vinculada
ao imobilismo dos valores) e o hedonismo (a entrega aos prazeres sensoriais
face à impotência política).
O universalismo, expresso por um ideal supranacional, que remete ao
temor de Metternich do crescimento do nacionalismo após a derrota de
Napoleão e o restabelecimento da ordem sob a batuta da Áustria, como se
pelo fechamento das irmandades alemãs (Burschenschaften), com seus ideais
nacionalistas. Este universalismo encontra sua dicção na expressão “Aos meus
povos” (“An meine Völker”) que virou bordão na voz do Imperador Franz Josef.
Esta luta contra o nacionalismo, para Magris, explicita a luta dos Habsburgos
contra a história. Em Werfel, escrevendo em meio ao nazismo, o universalismo
feudal dos Reinos da Idade Média transforma-se em uma cultura européia que
superaria as oposições nacionais. Num certo sentido a União Européia tem
raízes num sentimento desta natureza.
Quanto à burocracia, uma citação pode ser elucidativa: “Sinn für Ordnung
und Hierarquie, Abneigung gegen jegliches Titanentum und Verzicht auf jede
aktive Umgestaltung der Dinge werden in der Gestalt des Bürokraten sublimiert
13
Cf. op. cit., p.10.
14
Num texto de 1966, intitulado Politische Morgenandacht, Bernhard diz que a Áustria não
soube usar o fim do Império Habsburgo e do nazismo, deixando claro que eram atrasos e
erros.
21
[...].”
15
A forma da burocracia traz à tona o imobilismo característico deste mito,
elevado a virtude maior, que aprendeu a soletrar o verbo “renunciar”. Para
Werfel, o elemento que unia a monarquia era o seu tremendo caráter estático,
que ele considera uma sabedoria, uma vez que contav
22
rosto imóvel há movimento incessante, mesmo que imperceptível. Este mundo
burocratizado está diretamente ligado à figura do Imperador Franz Joseph, com
sua barba característica copiada nos departamentos mais distantes, formando
duplos por todos os lados, como o pai e o irmão do narrador em Auslöschung.
Em outro ponto deste trabalho, ver-se-á um poema de Karl Kraus que lista
as principais características deste homem, a principal delas a falta de caráter
não mau-caráter, mas sem-caráter que, para Magris, incorpora a
“mediocridade heróica” (“heroische Mediocritas
17
). A despersonalização a
favor da ordem e da regra, a falta de juízo, que o impedia até mesmo de opinar
sobre uma apresentação teatral, deixava-o sozinho e vivendo em sonhos de
mundos passados. Também pudera: desde 1863, então com 15 anos no poder,
vive a derrocada do mundo e dos valores nos quais foi criado, assistindo à
derrocada paulatina do seu Império, que esvaziou pouco a pouco. O narrador-
personagem de Auslöschung se chama Franz Josef, e gostaria em tudo de ser
o seu oposto, mas ao receber o legado de Wolfsegg assume, por vezes, a
posição de seu pai, que tem traços deste personagem da vida real, o imperador
Franz Joseph.
O terceiro item que conforma este “mito” é o hedonismo, uma vontade de
viver e de gozar a vida, de apreciar a culinária e dançar a valsa. Contra a
seriedade dos prussianos, o austríaco seria leve, brincalhão, mais ligado ao
corpo e aos seus prazeres. Nas palavras de Hofmannstahl, chamadas à vida
neste contexto: “Der Österreicher [comparando com os prussianos]:
Genußsucht, Lässigkeit, Ironie bis zur Auflösung, Schauspielerei, witzig [...]”.
18
Estas características também podem ser encontradas em Bernhard, como no
caso do “jantar artístico” de Holzfällen.
Grillparzer
19
será o autor de referência para a montagem deste mito por
Magris, embora não se encaixe bem na classificação de Biedermeier, estando
além destes autores absolutamente limitados ao idílico e à fuga na família. Nas
palestras do Prof. Dr. Jost Hermand proferidas na Universidade Humboldt em
17
C. Magris,
23
Berlim, este assinala que Grillparzer, conservador da mais nobre estirpe, não
recebe boa acolhida pelo governo Metternich, pela inclinação deste governo a
uma literatura absolutamente apolítica, vendo com maus olhos mesmo uma
orientação conservadora, como a de Grillparzer
20
. Este papel cabia bem a
Adalbert Stifter, indicado, inclusive, para ministrar aulas particulares ao filho do
primeiro-ministro e todo-poderoso da Áustria.
Ulrich Greiner publica em 1979 um livro em que leva adiante as teses de
Magris, entendendo as obras de Peter Handke e Thomas Bernhard como
representantes ximos da linhagem formulada por Magris
21
. Este caminho
ganha relevância por se tornar um dos veios mais significativos para a leitura
da obra de Thomas Bernhard, leitura essa que repudio ao longo desta tese. A
sua linha de argumentação pode ser resumida como segue: em primeiro lugar,
desde o fim do período conhecido como Josefinismo
22
teria havido uma
paulatina despolitização e resignação da sociedade. A literatura, frente à
censura e à impossibilidade de implementação de mudanças reais na
sociedade, teria se refugiado numa inação esteticizante. Isto teria tomado conta
da literatura austríaca na forma de uma negação da realidade e na renúncia de
seu enfrentamento e sua expressão, de modo que uma tradição como a alemã,
de autores como Schiller, chner e Heine chegando a Heinrich Mann, não
teria espaço nem equivalente na Áustria. Por fim, a queda da monarquia teria
sido traumática para a sociedade e para a literatura, que se fecha ainda mais
sobre si mesma, caracterizando-se pelo seu caráter apolítico e artificial,
ancorando-se nas premissas acima listadas. Os grandes fundadores seriam
Grillparzer e Stifter. Greiner parte daí para encontrar “afinidades eletivas” entre
Stifter e Bernhard, identificando a literatura deste último como escapista,
relativista e ahistórica.
20
Também nestas palestras, Jost Hermand comenta que a canção Stille Nacht, escrita em
1816 pelo pastor Joseph Mohr em Oberndorf bei Salzburg, pode ser vista como uma resposta
Biedermeier à Marselhesa. Nada de política, uma calma idílica e religiosa que convida ao
imobilismo etc. A imagem é interessante e dela se tira o “espírito” de natal que se vende até os
dias de hoje em qualquer canto do mundo: o Natal, afinal de contas, é Biedermeier, alfineta
este pesquisador.
21
Cf. U. Greiner, Der Tod des Nachsommers, p. 14 ss.
22
Joseph II, Imperador do Austro Império Romano Germânico de 1765 a 1790, implementou
uma série de reformas no sentido da ilustração entre 1780 e 1790. Até 1780 sua mãe, Maria
Tereza, que ainda vivia sob a influência dos valores da contra-reforma, impediu que o ímpeto
reformista de seu filho fosse efetivado, o que durou, portanto, apenas dez anos. Seu sucessor,
seu irmão Leopoldo II, retomou a linha anterior à morte da mãe.
24
Greiner e seus continuadores erram ponto por ponto, ao não perceber na
técnica da citação de Bernhard a crítica do citado, sua carnavalização e
alegorização. Bernhard retoma a tradição para invertê-la, expondo o processo
de sua criação, por trás dos bastidores da escrita, sem perder de vista o
presente e o passado. Seu “escapismo” na linguagem, que “relativiza” suas
asserções pelas contradições sem solução e pelas ambigüidades constitutivas
sem progressão, procura antes expressar o imobilismo e a aporia deste
processo, o qual culmina na fuga da realidade, do modo mais incisivo e
pungente que conseguir, jogando no rosto dos leitores envolvidos por sua
trama a forma sob a qual trabalha este mecanismo repressor. Da realidade
desta forma todos pretendem se evadir, ainda mais após a Segunda Guerra, e
Bernhard atesta a continuidade deste modelo, cada vez mais empedernido. A
intenção alegórica da imitação que não imita, típica de Bernhard, deve ser
perscrutada em seu mecanismo, visto como um todo, para não cair em seu
contrário.
Tanto Magris quanto Greiner cometem ainda outro erro de implicações
significativas ao valorizar demais as tradições literárias vinculadas ao
conservadorismo, atribuindo espaço secundário para autores como Johann
Nestroy e Ferdinand Raymond, como bem pontua Norbert Weber, para quem o
projeto daqueles estudiosos não leva em conta o campo estético como parte
das atividades humanas, dando preferência a certos autores como
representantes de um modelo pré-concebido de literatura
23
.
A obra de Johann Nestroy (1801-1862), por exemplo, deve ser destacada
entre as mais importantes e frutíferas dos autores da primeira metade do
século XIX, numa linha que se estende até Karl Kraus e que, de certo modo,
chega a Bernhard, em suas sátiras à sociedade.
“[Nestroy ist einer], der in den ‘gesellschaftlichen Schweinestall’ seiner Zeit
(Ernst Fischer) hineinleuchtete, oder eine[r], der als ‘der erste deutsche
Satiriker’ gelten kann, ‘in dem sich die Sprache Gedanken macht über die
Dinge’ (Karl Kraus).”
24
Esta frase de Kraus cabe muito bem à estética de
Bernhard, que faz da redução de todo seu material à linguagem, para daí tratar
23
N. Weber, Das gesellschaftlich Vermittelte der Romane österreichischer Schriftsteller seit
1970, Frankfurt am Main/Berlin/Cirencester: Peter Lang, 1980.
24
W. Schmidt-Dengler, Nestroy. Die Laune des Glückes, p. 5.
25
da história, especialmente daquela reprimida e esquecida.
25
Pois se esta língua
não pode ser ouvida, sobra apenas a informação. Ainda com Kraus, sobre
Nestroy: “Denn eine Zeit, die die Sprache nicht hört, kann nur den Wert der
Information beurteilen. [...] Wie sollte sie, deren Gedächtnis nicht weiter reicht
als ihre Verdauung, in irgend etwas hinüberlangen können, was nicht
unmittelbar aufgeschlossen vor ihr liegt?”
26
Este tempo e contexto ao qual Kraus se refere estende-se até a época de
Bernh17(n)]TJ283.247 0 TdV.33117(,)-2.16558( )-222.294(s)-0.295585(o)2á4 -20.64 Td278]TJ86-4.3232.294(s)-0.218 lo chb
26
Sendo assim, tracei as linhas que considero as mais profícuas para
chegar a Bernhard, um autor que, como nenhum outro, soube trazer esta
tradição para a escrita, sem se perder no tempo e sentir-se nostálgico, mas
atual. A releitura desta tradição o filia, sem dúvida, a ela, e mostra as
diferenças sensíveis que se pode notar neste projeto em relação aos autores
alemães, situados em contexto bem diverso, e com outros objetivos.
Concluindo este tópico com as palavras de um germanista austríaco do maior
gabarito: “Festzuhalten ist, daß die Autoren aus Österreich nicht in das
Periodisierungsschema passen, das die deutsche Literatur-
geschichtsschreibung bereithält [...].”
27
Aqui não se procurou esgotar tema tão
vasto e multifacetado, mas apresentar algumas linhas que dão suporte a este
estudo.
A literatura de Bernhard de Frost (1963) a Auslöschung (1986): um esboço
Pretendo nesta seção comentar algumas etapas dentro da obra de
Thomas Bernhard, especialmente no que tange à sua obra em prosa. Em
primeiro lugar, gostaria de pontuar que não se pode conceber a tese de um
livro único, aventada por parte da crítica ainda na década de 70, mas
abandonada nos dias de hoje.
28
Apesar da redução última à linguagem, cuja
concepção e dinâmica leva necessariamente à história e à discussão sobre o
papel da arte na sociedade contemporânea, como fio condutor que perpassa
toda a obra, esta se move dentro de seu tempo, e muda não apenas por conta
do amadurecimento do próprio autor, que ele mesmo anota, mas também pelas
mudanças sociais (sejam políticas, econômicas, culturais etc) pelas quais
passa o mundo, onde chega a partir de uma posição bem calcada em solo
austríaco, e que não pode ser desprezada. Além disso, a obra não prescinde
da influência dos temas e formas que preocupam alguns autores, dentre os
quais alguns serão aqui brevemente recenseados, como Ingeborg Bachmann,
Gerhard Fritsch e Hans Lebert, para ficar apenas com três autores que podem
27
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 14.
28
Cf. A. Pfabigan, Thomas Bernhard. Ein österreichisches Weltexperiment, p. 18 ss. Neste
texto, Pfabigan deixa claro que a perpectiva que via na obra de Bernhard apenas um grande
livro, e não a individualidade deles, teve força ao longo da década de 60, perdendo força
com a escrita da autobiografia.
27
ser tomados como precursores, pelo menos em termos de uma mesma
perspectiva de literatura e de atualização histórica. Volto a isso mais adiante.
Se em Frost se vislumbra um projeto literário em construção, ainda não
uma ligação direta e radical com o mundo social, e que pode ser notada em
suas obras futuras. Bernhard concentra-se na criação de uma forma fechada:
Weng, a cidade onde se passa esta história, é um espaço isolado, entre
montanhas e gargantas, que por pouco não se desliga da Áustria: digo por
pouco, pois aqui e ali a história recente da Áustria, da guerra e do
desenvolvimento capitalista, com seus engenheiros e construções, penetram a
trama do romance. Mas é inegável que constitui uma obra que se volta sobre si
mesma. Esta tendência formal se desenvolve num crescendo até Gehen, de
1971, um livro que, para Schmidt-Dengler, chega ao ápice da abstração que
marca este período:
Mit dem Text Gehen (1971) war ein Grad der Abstraktheit erreicht, der einerseits
als hepunkt in Bernhards schaffen anzusehen war, der andererseits die
künstlerische Leistung radikal gefährdete: was da geschrieben ist, ist so vermittelt,
daß der Realitätsfundus unerkennbar wird; nichts ist nachvollziehbar.
29
Com este desenvolvimento concordam quase todos os comentadores
(como Andreas Herzog
30
, Josef Donnenberg
31
, Andreas Gößling
32
): varia muito,
entretanto, o julgamento que cada um destes autores tece. Para Gößling, por
exemplo, as primeiras obras, especialmente Frost e Korrektur, formariam uma
complexa e hermética rede simbólica formal, constituindo uma categoria
poética que a obra da segunda fase, chamada por ele de autobiográfica (com o
que concordo, pois mesmo os romances pós-75 apresentam a componente
biográfica em primeiro plano), não conseguiria alcançar mesmo em seus
pontos altos.
33
Sua posição é diametralmente oposta à de Schmidt-Dengler,
29
W. Schmidt-Dengler, “Bernhards Scheltreden”, em Der Übertreibungskünstler. Zu Thomas
Bernhard, p. 135.
30
A. Herzog, “Vom Studenten der Beobachtung zum Meister der Theaterkunst”, em Bernhard-
Tage Ohlsdorf. Materialien, p. 99-124.
31
J. Donnenberg, Thomas Bernhard (und Österreich). Studien zu Werk und Wirkung 1970-
1989. Especialmente o primeiro artigo deste livro: “Thomas Bernhard und Österreich”, p 3-24
(escrito em 1970).
32
A. Gößling, “Die Eisenbergrichtung”: Versuch über Thomas Bernhards Auslöschung, Münster:
Kleinheinrich, 1988.
33
Cf. op. cit., p. 8 ss. A única destas obras da segunda fase que se salva, para este autor, será
Auslöschung, entendida como uma síntese bem resolvida destas duas fases.
28
que via neste crescente hermetismo um perigo para a obra, flertando com o
formalismo vulgar e, assim, com a recusa da realidade, uma crítica com a qual
Bernhard se viu diversas vezes confrontado. Uwe Betz tece um comentário
pertinente: os textos do primeiro período de Bernhard (até Gehen) são escritos
contra a pretensão da transcendência, mas aparecem exatamente como se
tivessem realizado o processo que querem negar.
34
Seja dito que a dialética
destes textos é complexa, mas colocar armadilhas para o leitor sempre fez
parte do projeto literário de Bernhard; mas, de fato, a mudança de Bernhard a
partir da autobiografia tem como intuito diminuir esta finta que, de o sutil,
passa despercebida e pode ter o efeito contrário ao desejado.
Considero que em romances como Frost estão presentes a concepção
de linguagem e uma motivação para a escrita que, por equívoco, pode ser
entendida como fechada sobre si mesma. Estas obras iniciais, como Frost,
Verstörung, Korrektur não podem ser encerradas sob a rubrica do formalismo
vulgar; elas se inserem na história, fazendo das categorias tradicionais da
crítica literária instrumentos não aplicáveis, o que dificulta o trabalho dos
comentadores.
35
O romance Frost será trazido para a discussão desta tese em
diversos momentos, tanto no capítulo sobre Holzfällen (como projeto literário)
quanto no capítulo referente a Auslöschung (sobre a constituição dos
personagens), o que deixa claro a trama interna das várias obras de Bernhard.
Outro trabalho importante foi escrito por Robert Menasse.
36
Segundo ele,
Bernhard leva seu acerto de contas com a história para a linguagem,
especialmente para o nível formal, sem esquecer da relação com as tradições
como, por exemplo, o mito habsburgo de Magris. Para Menasse, Bernhard
contava como precursores os autores do Wiener Gruppe que, ao levar a
linguagem para o centro de suas experimentações formais, trazem a lume a
questão da língua e tradição. Com Menasse:
Die Wiener Gruppe hat sozusagen den österreichischen Herr-Knecht-Topos aus
der Darstellung in rückständigen literarischen Techniken befreit und damit zum
34
Cf. U. Betz, Polyphone Räume und karnavalistisches Erbe: Analyse des Werks Thomas
Bernhards auf der Basis Bachtinscher Theoreme, p. 130.
35
Um estudo muito interessante sobre Frost foi escrito por W. Schmidt-Dengler: “Zurück zum
Text. Vorschläge für die Lektüre von Frost, em Der Übertreibungskünstler, p. 176-196.
36
Cf. R. Menasse, “Seinesgleichen wird geschrieben: die Sozialpartnerschäftliche Ästhetik”, em
Das war Österreich, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.
29
Prinzip der österreichischen Literatur gemacht, indem sie die Sprache zu einer
Materialsammlung des Herr-Knecht-Verhältnisses auflöste und dieses Verhältnis
mit dem Publikum durchspielte.
37
Esta passagem realiza para este autor uma “virada copernicana”
(kopernikanische Wende) no âmbito literário, pois a relação entre senhor e
servo deixa de ser apenas um topos na literatura austríaca e agora faz visível,
via literatura, um fato da realidade social austríaca: noutras palavras, assume o
estatuto de forma. Menasse aponta dois autores de expressão e significado na
literatura austríaca contemporânea como os que teriam trazido este conflito
senhor-servo para a forma de modo inovador, não se extinguindo em mero
tema, mas ativados como princípio de composição do texto: Thomas Bernhard
e Peter Handke, respectivamente com seus textos Frost (1963) e
Publikumsbeschimpfung (1965).
Menasse identifica em Verstörung, com acerto, a retomada do topos
Senhor-Servo, numa dialética que, via linguagem, penetra o personagem
Saurau, de modo que ganha nível formal. Mesmo porque o príncipe Saurau
não tem nem servos nem administradores. A dialética senhor-servo se incrusta
num personagem do discurso. Mas nesta sua língua a relação se mantém
presente, embutindo uma dialética no monólogo de Saurau, o que formata, com
Menasse, a produção de um discurso correspondente, validado na prática
social, discurso este que aparece como síntese dos diversos interesses, mas
não o é. A superação das contradições, no plano social, ocorre aparentemente
sem máculas e sem dores, mas Bernhard mostra com seu personagem Saurau
o quanto esta dinâmica é destrutiva para o indivíduo, que afinal fica no meio do
caminho da constituição de sua identidade. O maior receio de Saurau é uma
outra forma de discurso (“eine andere Redeweise”), representado pelo filho
ausente.
No entanto, após este início tão promissor, Menasse erra ao avaliar a
obra de Bernhard segundo sua teoria da “estética da parceria social”
(Sozialpartnerschäftliche Ästhetik). No âmbito da política e da economia no
pós-1945 austríaco, a necessidade da união de forças da sociedade em busca
do consenso leva à criação de grupos chamados de “parceria social”
37
Op. cit., p. 187.
30
(Sozialpartnerschaft), evitando o desgaste do embate público e melhorando
assim a imagem tanto interna quanto externa da Áustria. Os grêmios da
parceria social o formados por representantes de grupos como empresários
e sindicalistas, além de ministros da área econômica. Apesar dos membros não
serem eleitos, estes grêmios tinham um peso decisivo nas decisões do
governo, e o fato de estarem ao largo dos controles institucionais os fazia ágeis
e alheios às críticas. As áreas de atuação preferenciais destas parcerias
sociais o a discussão sobre salários de trabalhadores, sobre política
econômica e comércio, de modo geral, mas também podem ser criadas
comissões para tratar de outros assuntos relevantes da vida em sociedade.
Esta “parceria social” foi fundamental desde o final da Segunda Guerra até a
década de 1970, posto que a mera pretensão de retomar a autonomia política
perdida com o fim da guerra pressupunha uma base econômica e política
sólida e pujante, o que demandava decisões ágeis e consensuais, conseguidas
pelo trabalho destes grêmios. Embora continuem existindo e tendo amplo apoio
popular, perderam força política por influência dos partidos, que se sentem
tolhidos em seu poder, sendo criticados tanto pela esquerda (SPÖ partido
social-democrata) quanto pela direita (especialmente pelo FPÖ, partido liberal).
Estas são algumas linhas gerais que pautam a discussão em torno destas
parcerias sociais.
38
31
quanto maior a ênfase em textos monomaníacos e marcados pelo contraditório,
mais fechado sobre si mesmo estariam estes textos, de modo a esvaziar estas
contradições, caindo na crítica formalista formulada ainda pouco, num
movimento tautológico corolário daquele referente às decisões da parceria
social, pré-definidas pelos grupos de interesse com maior influência.
no mínimo três ressalvas a esta argumentação. Em primeiro lugar, os
textos mais centrados em personagens que se “destacam” do mundo e se
concentram em malabarismos lingüísticos marcam apenas a primeira parte da
obra do autor, com Frost, Verstörung, Das Kalkwerk e Gehen, por exemplo,
sendo que mesmo nestas obras por uma crítica apressada e não pertin7( )-232.3(“)2.8388(n)5.67474(ã)-4.33117(o)-4.3311778]TJ-345.324 -20.76 17(s)-0.295585(,)1(i)1.87(s)-09.71032( )-292.336(d)-4.331154(t)- n o eçnass e es m oasos n45(O1655(e)9-42.188(s)-080439(d)5.51125(e)5.o33117(s)-0.33117(o)-4.33117(s)9.2.1821(p)-4.33117(e)-4.33117( )-2.16821(p)-4f16436(a)-4.33117(c)]Tl8771(a)-4.33117(r)2.80439(c)-0”0439( )-42.188(u)5..33117(m)-7.4273.7687(m4d[( )-172TJ/R31 12 Tf17.5317(23d[(F)10.6(s)-0026.80439(o)-4.33117( )-6.295585(t)278]TJ/R9 12 Tf27.256130 Td[( )7.84188(u)5.l8771(a)-4.33117(m)-771032(a)-4.33117(s)-084188(u)5.j7122(u)5.673117(s)-0.295585(t)-2.16436(a)-4.3474(m)-7.49466(a)5..33117(n)5.67474(t)-2.16436(e)-4.33117( )-292.821(p)-4.33117(r)2..33117(r)2.80439(c)-067718( )278]TJ-294.309.(23d76 Td[(s)-0.33056( )-42.1r)2.2480.294974(o)-4.33056(n)-4.33056(t)-2.16558(r)2.805(a)-)-4.33117(r)2.80439(4.33117( )-172.2)2.2480.33117(o)-4.33117(s)9.2.12)2.248067474(u)-4.33117(e)-4.33117( )-42.12)2.2480M1003(a)-4.32995(m)-7.33117(a)-4.33117(g)5..295585(s)-0.2032(e)-4.33117(m)-72.12pr
32
mundo à força de seu poderio militar, dando primazia, por acaso, às regiões em
que haja petróleo. Mas chega de democracia.
Por último, Bernhard não quer que seus “juízos a priorisejam tomados
por seu valor de face, por sua máscara, mas intenta justamente mostrar como
se deu o processo de construção e introjeção da máscara, sem esquecer de
posicioná-la de acordo com um determinado ponto de vista na narrativa, tanto
no tempo quanto no espaço. Cabe ao leitor, cujo papel é determinante na obra,
cumprir o percurso todo que leva à crítica. Os juízos de Bernhard são
desqualificados em diversas chaves: seja porque se contradizem entre si, seja
pela sua abundância que os desvaloriza ao esvaziamento, seja pelo risível e
ridículo dos personagens que detém a palavra evidente em suas narrativas,
mesmo em Verstörung e Das Kalkwerk. Não posso concordar que Bernhard
afaste o leitor do texto e de sua interpretação, como quer Menasse, entregando
algo pronto e acabado, inviolável. Este caráter fechado constitui antes de tudo
uma das muitas armadilhas formais que Bernhard espalha pela sua obra, cujo
desmonte seria fundamental para a dinâmica do texto. Embora o texto de
Menasse seja em geral muito bom, ele não está à altura da obra de Bernhard.
A formalização do topos senhor-servo, por seu turno, é pertinente, na esteira
da recuperação da tradição, por exemplo, pelos romances de Castelo, quase
um gênero à parte na literatura austríaca, com todo o apelo da monarquia dos
Habsburgos, como visto, e se espraia de Verstörung até Auslöschung, mas
sempre em chave negativa.
39
Quatro autores, quatro textos: diálogos na década de 60
A partir destas considerações, está claro que surge nos anos 60 uma
mudança em relação àquele quadro do imediato pós-guerra, sendo que os
autores representativos deste período, como Doderer e Lernet-Holenia, ambos
escritores antes da guerra, cedam espaço a uma outra geração, com outros
objetivos e inserção no quadro social da Áustria. Mesmo sendo fato que
somente a partir da segunda metade da década de 80, após vários escândalos
e a atenção da comunidade internacional, instaura-se uma altercação do
39
Sobre este topos da literatura austríaca, a saber, a literatura de Castelo, cf. S. Kaszinski,
“Das Schloß als Identitätseichen der österreichischen Gegenwartsliteratur”, em H. Zeman (org.),
Die österreichische Literatur, vol. 2, p. 1103-1116.
33
passado reprimido e esquecido de modo mais incisivo e com ampla
repercussão, Auckenthaler erra ao esquecer de autores que, na década de
60, podem ser considerados precursores do que atinge o ápice na década de
80
40
. O clima político e econômico que marca os anos 80, tanto interna quanto
externamente, ensejou um outro nível de interpelação, mas não surgiu do
nada. Entre estes textos, gostaria de citar2.80(d)-4.33117(e)-4.33117( )-92.2175(a)-5[J-300-0.295585(2.164300.26-2.16436(t)7.84154(o)-4.33117(r)]TJ291.412 0 Td[(e)9.71032( )-92.2175(d) )-192.278(g)5.679466(a)ttam om
34
de um novo escritor passe pelo outro, pela visão de fora, para ser aceito
internamente.
O primeiro destes romances, Wolfshaut, expõe um enredo dos mais
ilustrativos: numa vila (Dorf) de nome Schweigen (“esquecimento”), o
marinheiro Johann Unfreund (o nome diz muito) descobre, por acaso, um crime
cometido por moradores da vila: a morte de alguns trabalhadores estrangeiros,
perto do final da guerra. Este personagem e um outro, um fotógrafo de nome
Karl Maletta, tornam-se instrumentos de uma instância punitiva e quase
mitológica que cerca a cidade sob o signo do Wolf. O fotógrafo, inclusive,
transforma-se em lobisomem, neste romance que segue a estrutura dos
romances criminais, mas não é de modo algum realist
35
austríacos aparecem nestas versões preliminares como observadores, não
como assassinos, situação que muda de figura radicalmente em Auslöschung,
última estação do castelo Wolfsegg na obra de Bernhard, onde os pais de
Murau eram nazistas “de nascença”.
Apesar disso, o romance de Lebert não traz nenhuma inovação formal
que seja digna de nota, levando a discussão para o âmbito temático, com o que
perde muito de sua potência. Mas se percebe uma mudança, ainda que
pequena, de direcionamento.
Com a coletânea de contos de Ingeborg Bachmann já se avança bastante
no sentido formal. Quero me deter sobretudo num dos contos, intitulado Unter
Mörder und Irren
45
, que, segundo informações do aparato da edição de suas
Obras Completas, teria sido escrito entre 1956-1957, depois da retomada da
soberania com o “Contrato de Estado” (Staatsvertrag) de 1955: “[...] es [este
conto] ist die fundamentalste und umfassendste Abrechnung mit der
österreichischen Restauration nach 1945.”
46
Temos sete homens num bar, conversando e bebendo; trata-se do mundo
dos homens, as mulheres estão em suas casas, esperando por eles, como no
tempo da guerra. Com a diferença que agora, ao invés do heróico da guerra,
entra o cotidiano que as mantém isoladas e esquecidas. Destes sete, há quatro
ex-nazistas e três “judeus”, assim chamados antes por sua condição de
perseguidos na guerra do que por sua suposta origem judaica. Faltaram outros
dois do grupo dos “judeus”, o que leva um dos presentes a declarar, numa
frase que terá implicações sérias: “Wir sind heute nur drei Juden”.
47
Esta
constatação alude ao fato de que os ex-nazistas não se sentirão tolhidos em
sua verve, não precisarão mascarar tanto seu discurso, pois o discurso oficial
deste momento histórico preconiza que se silencie em busca do consenso
necessário à reintegração austríaca, uma harmonia provocada pela
deformação da realidade. Bachmann critica com veemência o nervo do
imediato s-guerra, da recriação de uma identidade que estivesse de acordo
com os interesses políticos e sociais. Em minoria, os três nada podem fazer
contra o afloramento daquele outro discurso, guardado a sete chaves.
45
I. Bachmann, “Unter Mörder und Irren”, p. 159-186, em Das dreißigste Jahr, p. 84-265
(Sämtliche Erzählungen), München: Pipper Verlag, 2005.
46
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 115.
47
I. Bachmann, op. cit., p. 161.
36
Chega ao bar um grupo de ex-combatentes, nostálgicos, que com
maus olhos o grupo dos sete, por conta dos “judeus”, e mais ainda, pela
chegada de um outro personagem, desconhecido dos demais, um ex-
combatente que foi preso e enjaulado por não conseguir matar os inimigos,
sendo acusado de traição e considerado louco; ele mesmo se considerava um
c(e)5.67474(s-345.204 -20.64 Td771(a)-2949)-0.295585a(e)5.67474(a)-4.33117((t)-4.3311.)1.8715117.n80.0402 T0 0 8.33333 0 0 cm BT/R9814.3 312.99941 0 .noH 1 111185áC(o)3311128((r)2.80561( )-242.307aC)1.57503((o)3311128(i)-62.159Jn)-482.449(v)-4.33117( )-62.1998do2.80561( )-(s)-574(c)-0.2331111(s(e)-4.33117(( )-24959(9(g)5.67474e.64 Td771(a)-29487120.24.33054974(s)-0.29497-4.33117(p)-4.331170.2331111(s(r)2.80439(a)-4.33117l(l)1.8712)-262.318(c( )-24959((m)]TJ290.09a)5.67474(:)1.87122(s)-0331111(saC)1.57503((o)4.330549117(i)1.87( )-1823117o)-482.449(v)-4.33117o)-482.449(ê)-4.33117( aC)1.57503(ç)-4.33117(o2.0.295585(a)-4.33117(d)331111(sn)-4.3389.0)-52.19392.0.295585(a)-4.33117(d)331111(sv)-4.07887(n)-4.3117( )58s)-0.293142857474-.71072(-)]TJd0.294974(s0.64 Td[(ca)-4.33056(u)-4111.25420.76 Td[(s )-242.306(e)-4..2727(x)9.71072(-)2.80439(c)-0.295974(o)0.295585a)-172.266((e)5.67474(a)-4.33056(t)-2.16558(e)5.67474(n)-4.33117(p)-4.33117(n)-4.33117(o)..71242(e)a)5.67474()-4.33117(s(t)-2.16558(e)5.67474(a)-4.33056(t)-2.16558o)-4.33117( )-4.33117)-0.11.2538a)-172.266()-4.11.2538pal62.1998(e)-4.33117, noparngnocçoõe0.29557.982-52.1939(m)]TJ290.09aondp0.76 Td[(sp)-4.317(c)9.7104 -20.-4.33056(t)-2.16558(o)-4.33117(n)5.67474(a)2.80561( )-242.307(u)512.84()-0.295585(a)-4.33117(d)512.84()-0.29.272l0.2949 7(x)9.71072(-)2.80439(c”)-4.33117(a)-12.84(a)-482.449(ê)-4.337474()--4.33117o(a)-02.88285(i)1.8712209a09as09a09a(i)1.87122(t0.295585(o)-4.33117(r)2.80439(a)5.687122)--4.33305(a)-412.886(o)-4.33117( )-62.1998 e quo
37
[Austrofascismo, 1934-1938], mein Großvater ein Opfer der Monarchie, meine
Brüder Opfer Hitlers.”
49
Com Schmidt-Dengler:
Geschichte erscheint nicht als eine Serie aufeinanderfolgender Großtaten, nicht als
der endlich erfolgte Sieg der Unterdrückten über die Unterdrücker, sondern als
eine Folge von Missetaten an den Opfern; Geschichte ist eine Geschichte der
Opfer.
50
A concepção da história aqui se aproxima daquela expressa por Benjamin
em suas teses sobre o conceito de história: o inimigo ainda não parou de
vencer, e a história deve pegar dos escombros para ser reescrita. Esta
concepção encontra respaldo no trabalho de Bernhard, na autobiografia,
culminando na escrita do romance Auslöschung.
O narrador de Bachmann admite que não há mais separação entre bons e
maus, estão todos sentados à mesma mesa. O que sobra é a divisão entre
assassinos e loucos, sendo que os loucos devem ser isolados, ou mesmo
aniquilados, como aqui.
Os aspectos formais da narrativa merecem ainda destaque. Embora haja
uma morte ao final, o andamento da narrativa é marcado pela parataxe, as
vidas destes personagens à mesa vão sendo contadas como se cada uma
fosse independente da outra, exigindo a história geral para conectá-las. O som
das canções dos ex-combatentes penetra diretamente o tecido da narrativa,
quase sem mediação do narrador, uma violência que não conhece limites. O
resultado geral é muito expressivo.
O próximo texto, uma peça de Peter Handke com estréia em 1966, em
Frankfurt, sob direção de Claus Peymann (amigo de Bernhard e seu diretor de
confiança, que encenou as estréias de quase 90% de suas peças). Esta peça
não tem uma ação propriamente dita, mas se concentra em formas de uso da
língua, e mesmo em gestos sem fala, atirados ao público que está no teatro.
Não obstante Ernst Fischer considere o teatro de Peter Handke e o de Thomas
Bernhard como antípodas, eles se aproximam no caráter provocativo que
caracteriza parte de sua obra, embora por caminhos absolutamente
49
I. Bachmann, op. cit., p. 177.
50
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 118.
38
diferentes
51
. Winkler afirma, com razão, que as peças de Bernhard miravam o
público da estréia, e na verdade o eram feitas para seu público, mas contra
ele, de modo que assim se entende sua (de Bernhard) afirmação de que se
preocupava sobretudo com uma boa estréia, mais nada, e chegava mesmo a
negar que as peças fossem apresentadas em diversos teatros.
52
Comentando
o teatro austríaco a partir de meados da década de 60, diz Ernst Fischer: “In
der Tat versteht sich das Gegenwartstheater als eine an den Zuschauer
gerichtete Herausforderung: seine Ästhetik ist auf Provokation, auf das
Nichtkulinarische, auf das Herausreißen aus gewohnten Denk- und
Gefühlsbannen gerichtet.”
53
Esta provocação, exigindo resposta, torna-se forma
em Bernhard, e se estende também para seus textos em prosa. O surgimento
de uma geração de autores que, cada vez mais, se preocupa com sua inserção
na cena pública torna-se uma das preocupações mais importantes para
Bernhard, e terá seus impactos com a escrita autobiográfica, campo que estes
precursores e contemporâneos também ajudam a preparar.
O último deles é Gerhard Fritsch, uma figura das mais influentes dentro do
cenário das letras austríacas e, ainda, um amigo e promotor de Thomas
Bernhard. A revista Wort in der Zeit
54
, fundada em 1955 pelo conservador
Rudolf Henz, tinha o intuito de se fazer ouvir as vozes austríacas, sem um
canal próprio de divulgação. Mas seus interesses eram muito diversos dos da
vanguarda, representados por uma segunda geração de escritores após a
guerra, e neste cenário ascende Gerhard Fritsch, que em 1960 já trabalhava na
redação e, em 1962, torna-se o redator-chefe da revista. Afastando-se das
linhas de Henz, publicou textos de Ernst Jandel, Friederike Mayröcker e
Thomas Bernhard, entre outros jovens escritores. Em 1965, Fritsch se
demitido da redação, o que consiste num dos motivos para a perda de sua
51
Cf. E. Fischer, Die österreichische Literatur im letzten Drittel des 20. Jahrhunderts”, em H.
Zeman (org.), Geschichte der Literatur in Österreich, vol. 7, Graz: Akademische Druck- und
Verlagsanstalt, 1994.
52
Cf. J.-M. Winkler, “Rezeption und/oder Interpretation”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler
(orgs.), Wissenschaft als Finsternis?, Wien: Böhlau, 2002, p. 164.
53
E. Fischer, “Die österreichische Literatur im letzten Drittel des 20. Jahrhunderts”, em H.
Zeman (org.), Geschichte der Literatur in Österreich, vol. 7, p. 521.
54
Cf. a respeito da história desta importante revista W. Hackl, Kein Bollwerk der alten Garde
kein Experimentierbude. Wort in der Zeit (1955-1965). Eine österreichische Literaturzeitschrift,
Innsbruck: Institut für Germanistik, 1988.
39
importância. Sua ida para a recém-criada Literatur und Kritik fará deste órgão
um dos mais importantes no cenário cultural austríaco.
Sob este pano de fundo publica seu primeiro romance, Moos auf den
Steinen, em 1956, recebido com júbilo por crítica e público. Tomando a ação
em poucas linhas: num castelo arruinado moram o pai, aristocrata falido, e sua
filha. Um adorador da garota, poeta jovem, deseja agir no sentido de restaurar
o castelo, transformando-o num centro cultural, com simpósios, exposições,
eventos teatrais. Mas não é ele quem recebe o amor da garota, mas sim um
outro rapaz, totalmente desinteressado por aquelas ruínas e aquela história, e
as ambições do primeiro o solapadas. Ao jovem par resta ainda outra
desgraça: um acidente separa os dois, e a garota fica sozinha com aquela
herança pesada sobre suas costas.
O título já alude ao enredo do romance, que foi incensado pelo seu
alinhamento à postura da geração do pós-guerra, ao se apegar a uma suposta
continuidade com o passado Habsburgo, diretamente citado pelo castelo
arruinado, onde o destino de toda uma geração estaria encerrado, o apenas
o daquela família. Mas note-se que mesmo o futuro parece sombrio e pouco
amistoso. Schmidt-Dengler lembra que há, neste romance, um fermento crítico
que passou despercebido pela crítica, o que fez com que o próprio autor se
afastasse desta sua primeira incursão pelo gênero, mais devido à recepção
festiva e conservadora do que por uma recusa ao sucesso mesmo.
55
Seu segundo e último romance aparece apenas em 1967, e era um
sucesso anunciado. Porém Fasching teve péssima acolhida por público e
crítica, demorando anos para vender por completo a primeira edição, de 3000
exemplares. O romance é, tanto tematica quanto formalmente, a negação
daquilo que foi lido no primeiro romance. No romance Fasching, o narrador-
personagem Felix Golub abandona sua divisão na Segunda Guerra e se
esconde, travestido na figura de uma serviçal numa casa de uma pequena
cidade austríaca, com a anuência da viúva de um major, dona da casa, de
quem se torna amante. Um general austríaco que, a despeito do fim iminente
da guerra, deseja lutar com os russos ao último homem, se apaixona pela
55
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 94.
40
serviçal (Felix) e este, num momento propício, o desarma e o obriga à
capitulação, o que salva a cidade da aniquilação sem-sentido.
Não obstante este ato heróico será entregue aos russos como soldado e
levado como prisioneiro à Rússia, onde fica por doze anos. Voltando à Áustria,
retorna àquela cidade, pois recebera a oferta de assumir a loja e o trabalho de
fotógrafo. Chega às vésperas do Fasching (algo como um carnaval), onde
acaba aclamado como Princesa, em virtude de seu passado “heróico”. Ao
longo da festa, será cercado e espancado. O linchamento será interrompido
pelo apagar repentino das luzes do salão, sendo Felix reconduzido ao buraco
onde se escondera quando desertara, de novo pelas mãos da vva, e
permanece, terminando o livro quase num delírio que, ao fim e ao cabo,
atualiza o tempo da guerra no agora da narração. Cito as palavras finais de um
arranque de quase cinco páginas, de tirar o fôlego, em que as palavras puxam
umas as outras seja pelo componente sonoro, seja pelo absurdo do
travestismo, em que uma palavra passa pelo seu oposto, de modo que tudo o
que ocorreu como tema, na verdade, se realiza por completo apenas como
forma, como língua:
[...] ich sehe die Mumie . . . die bleckenden Zähne . . . sie grinsen . . . ein Haus . . .
eine Frau . . . eine Zukunft . . . ein Mitbürger . . . gutheil . . . in Treue fest in der
Falle . . . ich habe noch nicht so gelacht . . . und die Tränlein fließen . . . ich bin
desertiert von den Männer zu den Mädchen . . . von den Mördern zu den Narren . .
. von den Narren zu den Mördern . . . ei warum . . . ei darum . . . sie vergeben nicht
. . . sie vergessen . . . sie lachen . . . und ich . . . lache mit . . . die Tante marschiert
. . . und ich . . . marschiere mit . . . links zwo drei . . . links . . . links zwo . . . warum
...warum nicht . . . warum erst jetzt . . . warum denn nicht gleich so?
56
Um romance que não perdoa ninguém: mesmo o herói, Felix Golub, é um
oportunista, que desertou da guerra, aceitou ser travestido em mulher, salvou a
cidade por acaso, em primeiro lugar para fugir das investidas do general. Os
moradores da cidade tentam linchá-lo, e vários motivos podem ser aventados,
embora no romance não se procure por eles: primeiro, ele era um desertor,
numa cidade onde os valores defendidos pelo nazismo estão ainda arraigados;
segundo, um covarde que aceitou ser vestido como mulher; terceiro, eles foram
56
G. Fritsch, Fasching, p. 238.
41
salvos por um covarde, o que os faz inferior a ele. Mas eles também são
travestidos: sob a pátina da aceitação e do esquecimento que servem de base
à reintegração austríaca, aceitam a volta de Felix, mas isto é a máscara. O
Fasching, em verdade, traveste o travestido, numa virada dialética que faz
emergir o que estava latente. Nesta festa Felix, como princesa, sealvo de
sua fúria represada. Ele tem que fugir com as roupas de princesa, e termina em
seu esconderijo, tão pequeno que o consegue se esticar por completo, nem
ficar de pé, sem saber quando a viúva do major voltará para buscá-lo. Este
diagnóstico virá à tona nos anos 80, em especial, com os primeiros acenos
nos anos 70, como se verá mais tarde. Nas palavras de Robert Menasse,
contrapondo Moos auf den Steinen e Fasching:
Die Zweite Republik als Erbin des kakanischen Österreich? Eine Lüge. Nun zeigt
Fritsch die personelle und mentale Kontinuität des Faschismus in Österreich. Das
moderne Österreich eine glückliche Verbindung aus tiefsinnig-sensiblem Hang zu
historischer Schönheit und nun funktionierender Demokratie? Eine dürftige
Ideologie. Nun zeigt Fritsch die banausische Schäbigkeit, Borniertheit und
Gemeinheit der Menschen und einer Demokratie, die auf der alles überwältigenden
Mehrheit derer basiert, die ‘ihre Pflicht getan’ haben.
57
O acerto de contas com a Segunda República Austríaca empreendido por
Fritsch em Fasching expõe os bastidores do discurso corrente na Áustria, e o
que se são máscaras mortuárias com os dentes de fora, vivas, prontas a
trucidar, como a múmia do trecho que transcrevi, com seus dentes
arreganhados. Por conta disso o romance, em 1967, foi rechaçado.
A escrita autobiográfica – o “teor de verdade” da mentira
Para o crítico Joachim Hoell, Fasching, Wolfshaut e Frost aproximam-se
na medida em que realizam um projeto por ele chamado de
Antiheimatliteratur
58
, negando uma literatura dos anos 50 pautada pelo
aparente idílio do pós-guerra e que obteve enorme sucesso de público.
Bernhard, Fritsch e Lebert tomam as calmas e mansas vilas austríacas e as
57
R. Menasse, “Zu Tod und Werk von Gerhard Fritsch”, em Das war Österreich, p. 219.
58
Cf. J. Hoell, Thomas Bernhard, p.79. Cf. também U. Betz, Polyphone Räume und
karnavalistisches Erbe, p.35. Neste trecho, o autor identifica uma aproximação mais
significativa entre os romances Wolfshaut e Frost.
42
colocam de cabeça para baixo. Mas o enfrentamento direto deste passado, do
modo como Fritsch o fez, terá seu ponto alto com a escrita de Auslöschung.
59
Por outro lado, Bernhard quer fugir do perigo da acolhida ruim de
Fasching, obra-prima que pode passar despercebida por seu caráter
generalizante. Deste modo, é conseqüente que a virada, em Bernhard, se
pela autobiografia, onde as referências são diretas, as pessoas e lugares são
chamados pelos nomes. De certo modo, a penetração quase imediata da vida
social na obra se torna uma das chaves de sua estética, o que num primeiro
momento será chancelado pela autenticidade cedida de chofre pelo formato
autobiográfico. A provocação é prevista, e esta linhagem dentro da obra tem
como ponto de fuga o romance Holzfällen, tema do próximo capítulo.
O interesse de Bernhard, porém, vai muito além disso, e o caráter
artificial, de mediação literária, não é amainado por esta incursão direta, pelo
contrário, ele será reforçado: trata-se antes da discussão sobre o processo
mesmo de escrita e, também, da quebra de fronteiras entre realidade e ficção.
A ligação com a sociedade é direta, e não o é, no mesmo passo.
Bernhard não publica nenhum texto em prosa entre 1971 (Gehen) e 1975,
quando publica o primeiro volume autobiográfico, intitulado Die Ursache. Eine
Andeutung (1975), seguido de Der Keller. Eine Entziehung (1976), Der Atem.
Eine Entscheidung (1978), Die Kälte. Eine Isolation (1981), e por fim Ein Kind
(1982), fechando aquilo que muitos comentadores chamam a sua pentalogia
autobiográfica.
O primeiro volume autobiográfico, Die Ursache. Eine Andeutung, traz
em seu título muito de sua pretensão: trata-se de uma insinuação, ou alusão,
indicando que se procede de modo indireto, com o caráter de mediação em
destaque. Logo a seguir, porém, o contraste constitutivo desta autobiografia: a
epígrafe cita uma notícia do jornal Salzburger Nachrichten, de 6 de maio de
1975, na qual se diz que Salzburg apresenta a maior taxa de suicídios da
Áustria, uma das maiores do mundo. A notícia é verdadeira, como atestam os
organizadores das Obras Completas
60
. Ou seja: se o título remete ao campo
59
Uma pergunta do narrador Golub de Fasching, quando escondido no cubículo, poderia servir
de epígrafe à obra de Thomas Bernhard, quase um leitmotiv, ou no mínimo uma pergunta
pertinente: Wie vergeht Zeit in der Finsternis?
60
M. Huber e M. Mittermayer, “Posfácio”, em T. Bernhard, Autobiographie (Werke in 22
Bänden), vol. 10, p. 530.
43
nebuloso da incerteza, do caráter indireto da recuperação pela memória, a
epígrafe traz uma informação nua e crua, além de atualíssima. A discussão
sobre a autenticidade do meio jornal se realizada em outra parte, mas
adianto que o é questão simples. Bernhard não aceita a verdade da
informação jornalística, que finge objetividade para se passar por verdade, mas
nesta epígrafe joga com esta leitura: uma contraposição formal instigante.
Especialmente quando se leva em conta que esta epígrafe bate de frente com
uma leitura de Salzburg como uma cidade maravilhosa, aprazível, musical e
cultural, como por exemplo na avaliação atribuída a Alexander von Humboldt,
de que as regiões de Salzburg, Nápoles e Constantinopla seriam as mais belas
do mundo.
61
Uma provocação que não passa despercebida pela crítica dos jornais, os
quais desancam este livro como um ataque desmedido a Salzburg. Bernhard
não foge da raia, e mesmo eleva a temperatura desta discussão, como na
entrevista cedida a Bayr, quando explica a este o uso malicioso, claro da
expressão “deutsche Rom” para se referir a Salzburg: “Das ist ja eine herrliche
Bezeichnung, da ist ja alles drinnen: Rom, Kirche, deutsch, Nazi alles. Eine
wunderbare Mischung.”
62
Nesta mesma entrevista, nesta mesma direção,
afirma: “Das Motto ist das Fundament meines Buches.”
63
Quando afirma isso,
Bernhard coloca a cidade de Salzburg e a distorção positiva destes clichês
a respeito de Salzburg no centro de sua autobiografia. Mais do que apenas as
lembranças de um “eu”, remete a todo um contexto social e, além disso, ao
mascaramento operado na Áustria do pós-guerra. A autobiografia procura
operar na contracorrente, e o exagero – no número de mortes durante a guerra,
das cenas que teria presenciado, mentiras comprovadas por Huguet serve
até mesmo para deixar os nervos à flor da pele dos leitores, muitos indignados,
outros aliviados, nenhum indiferente. A provocação, do modo como Bernhard a
faz, e no que será um mestre ao longo da vida e obra, tem como um dos seus
efeitos conseguir o eco e o efeito que Fritsch não obteve com seu Fasching.
61
R. Hoffmann, Mythos Salzburg. Bilder einer Stadt, p. 35.
62
T. Bernhard, “Aus Schlagobers entsteht nichts.” Gespräch zwischen Rudolf Bayr und Thomas
Bernhard, em M. Mitermayer e S. Veits-Falk, Thomas Bernhard und Salzburg. 22
Annäherungen, p. 249.
63
Op. cit., p. 245.
44
Não apenas a cidade de Salzburg, mas também o padre Franz
Wesenauer viu sua honra manchada na figura de Onkel Franz, e entrou na
justiça contra Bernhard. A contenda durou dois anos, e acabou com um acordo,
pelo qual das edições subseqüentes foram extirpadas algumas passagens,
consideradas ofensivas ao reclamante. Mas Bernhard não estava disposto, de
início, a nenhuma concessão, e não se melindrou com o longo tempo que
tomou a ação.
64
A repercussão do caso, bem como o salto para outros
cadernos dos jornais para as folhas criminais não o intimida, pelo contrário,
o seduz, e terá como ápice os casos Holzfällen (1984) e Heldenplatz (1988),
criando o que chamo de provocação formal. Deste modo, o ano de 1975 marca
uma virada. Com a palavra Schmidt-Dengler: “Bernhard spricht über sich
selbst; in diesem Jahr ändert sich denn auch die Praxis der Scheltreden und
Leserbriefe. Es geht um Namen [...].”
65
Mas o caráter artificial e artístico da autobiografia não poderiam ter sido
postos de lado, visto que são decisivos para a concepção e execução da obra,
como defende Martin Huber, que toma um artigo de jornal com o título
“Personagem processa autor” para mostrar o absurdo deste processo
criminal
66
.
Pretendo agora tomar um excerto deste volume para uma apreciação
mais específica. Em 1943 Bernhard é enviado para um internato em Salzburg,
onde estudará a 1946
67
. Este internato seguirá, até o final de 1944,
orientação nazista, tornando-se então católico. Essa escola é descrita no
romance autobiográfico Die Ursache como uma “maquinaria catastrófica de
mutilação”, que sob a batuta do Führer ou de Jesus praticava os mesmos
métodos pedagógicos. A figura de Hitler é justaposta à de Cristo, em
64
Cf. T. Bernhard, Autobiographie (Werke in 22 Bänden), vol. 10, p. 547 ss. Cf. também J.
Dittmar (org.), “Die Identität des ‘Onkel Franz’ (1975/76)”, em Sehr Gescherte Reaktion.
Leserbrief-Schlachten um Thomas Bernhard, p. 61-66.
65
W. Schmidt-Dengler, “Bernhards Scheltreden”, em Der Übertreibungskünstler, p. 135.
66
Cf. M. Huber. “Romanfigur klagt den Autor. Zur Rezeption von Thomas Bernhards Die
Ursache. Eine Andeutung”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler (orgs.), Statt Bernhard. Über
Misanthropie im Werk Thomas Bernhards, p. 59-110.
67
Os dados biográficos seguem o trabalho de L. Huguet, Chronologie. Johannes Freumbichler.
Thomas Bernhard, Wien/Linz/Weitra: Bibliothek der Provinz, s/d. Neste livro o francês Huguet,
um professor aposentado de literatura, segue as pistas existentes e inexistentes da genealogia
de Thomas Bernhard e de seu avô, Johannes Freumbichler, num trabalho exaustivo que tomou
dez anos. Deste relato se depreende que muitas das afirmações de Bernhard, em sua
autobiografia, não são fidedignas, fruto tanto do esquecimento (menos) quanto, penso eu, da
liberdade que toma para criar a si mesmo como personagem.
45
passagens fortes. O volume é dividido em duas partes, cujos títulos são os
nomes dos dois diretores escolares, do período nazista e católico,
respectivamente Grünkranz e Onkel Franz.
Im Innern des Internats hatte ich keine auffallenden Veränderungen feststellen
können, aber aus dem sogenannten Tagraum, in welchen wir in
Nationalsozialismus erzogen worden war, war jetzt die Kapelle geworden, anstelle
des Vortragspultes, an welchen der Grünkranz vor Kriegschluss gestanden war
und uns grossdeutsch belehrt hatte, war jetzt der Altar, und wo das Hitlerbild an
der Wand war, hing jetzt ein grosses Kreuz, und anstelle des Klaviers [...] stand ein
Harmonium. (UR, 67)
[...] Der jetzt jeden Tag und also annähernd dreihundertmal im Jahr geschluckte
und verschluckte Leib Christi war auch nichts anderes gewesen als die tagtägliche
sogenannte Ehrenbezeigung von Adolf Hitler. (UR, 75)
[...] Der Junge [...] wird in nichts als in eine katholisch-nationalsozialistische
Atmosphäre hineingeboren, und er wächst, ob er es weiß oder nicht, in dieser
katholisch-nationalsozialistischen Atmosphäre auf. (UR, 76)
[...] In vielen Salzburgern erkenne ich immer wieder den Präfekten, der für mich
Nationalsozialist und Katholik in einem gewesen ist, eine Menschenform als
Geisteshaltung, die in Salzburg die weiterverbreiteste ist und von welcher diese
Stadt bis heute vollkommen beherrscht ist. (UR, 79)
Antes de qualquer coisa, devo lembrar que esta constelação será
retomada em Auslöschung. A longa citação acima serve para mostrar como se
constrói esta sobreposição, fusão e articulação entre nazismo e catolicismo na
Áustria, tanto no âmbito da cultura como da educação.
68
Mas o texto de
Bernhard não pára na Áustria, embora parta dela.
A rie arrasta-se das mudanças na utilização do espaço aos
instrumentos e concepção de cultura, do piano clássico ao órgão de igreja, das
canções marciais às liturgias, chegando à figura de Hitler substituída pelo
símbolo da cruz. Parte do individual para o geral, coletivo, histórico (no qual o
indivíduo está inserido): de Grünkranz e Onkel Franz para Hitler e Jesus. Nesta
passagem já se afasta dos indivíduos de carne e osso para o âmbito próprio do
catolicismo e do nazismo, mas ainda preso às suas expressões em forma
68
Cf. S. Moritz, Grüss Gott und Heil Hitler! Katholische Kirche und Nationalsozialismus in
Österreich, Wien: Picus, 2002. Neste livro, o autor mostra a aproximação entre a igreja católica
e o nazismo na Áustria, tema controverso, mas que não pode ser negado.
46
humana, em suas representações figurativas Hitler assume, assim, status
alegórico de encarnação do mal. Mudam os nomes, mas as práticas
pedagógicas são as mesmas. A última parte da citação evidencia que a “forma
do homem” (Menschenform) de Salzburg, o seu próprio espírito, é cultivado
nessa atmosfera católica e nazista que aproximo, via educação e cultura, à
forma do sujeito abstrato burguês, além de atestar a permanência aterradora
deste “estado de espírito” (que é material) até os dias de então (ele escreve em
1975, 30 anos depois desta vivência).
O jovem que está, em qualquer caso, solitário, jogado nesta atmosfera e
contexto, não tem como escapar: está preso à forma deste sujeito. Esta solidão
será sentida de forma tão aguda quanto nos sanatórios, entre médicos, que o
tratam como objeto, ou paciente, passivo: não como sujeito (Die lte). Estes
hospitais e escolas são as “máquinas catastróficas de mutilação” (Ursache) que
formam o homem.
O movimento leva para o coletivo, para a sociedade: a culpa do ocorrido
não recai apenas sobre essas duas figuras particulares, mas da estrutura do
sujeito contemporâneo, e mesmo isso é localizado: fala-se de Andraschule, em
Salzburg, Áustria, ao final da Guerra Mundial. Não se trata de universais
vazios ou de essências humanas: os pés estão firmemente calcados em solo
austríaco no capitalismo tardio.
Die Schönheit als Berühmtheit meiner (einer) Heimat ist nur ein Mittel, ihre
Gemeinheit und ihre Unzurechnungsfähigkeit und Fürchterlichkeit, ihre Enge und
ihre Grössenwahnsinn mit erbarmungsloser Intensität fühlen zu lassen. (UR, 99)
Esta passagem toca um dos pontos centrais de toda a obra de Bernhard,
um tema caro aos países germânicos e cuja complexidade e abrangência
podem ser vislumbradas pela carga semântica da palavra das Heim. Palavra
de difícil tradução, somente com redução pode ser transposta para lar ou casa.
Não se restringe também à pátria ou nação. Torna-se ainda mais complexo ao
se tomar o traumático período da Guerra Mundial, quando um sentimento de
superioridade era propagado nas ruas e nas escolas, o que se manteve, em
parte, no pós-guerra, durante os esforços pelo reerguimento dos escombros da
Alemanha. Ao lado desta valorização (obviamente reprimida), no entanto,
47
crescia uma forte repulsa àquela cultura, no seio da qual atrocidades como o
genocídio haviam sido perpetradas, o que impedia a afirmação destes
valores. Do meio destas tensões surgia um novo sentido para das Heim, que
também inclui uma carga de recalcamento e de negação.
Mas a situação austríaca ainda reunia toques especiais: em primeiro
lugar, pela valorização de uma cultura aristocrática perdida que, embora
reprimida, se faz presente e atuante. Por outro lado, um apego ainda mais
renitente que o alemão por negar qualquer responsabilidade pela destrutiva
anexação ao Reich e suas conseqüências. Deste modo, o conceito de Das
Heim fica ainda mais enevoado e ambivalente, num grau sem paralelo quando
se toma o restante da Europa.
Sendo assim, embora Das Heim seja específico da cultura germânica e
onde provavelmente encontre sua ambigüidade mais explícita, seja tomada
como lar ou como nação pode-se fazer uma extrapolação, partindo do ponto
específico para o geral, da Áustria para a Europa sob o capitalismo
48
se encontra no documentário de Michael Moore, Roger and Me, no qual a
decisão estratégica e asséptica da General Motors de eliminar 30.000
empregos em Flint, Michigan, cidade que dependia direta e indiretamente
destes empregos, provocou um caos econômico, social e ambiental. A GM, no
entanto, apenas lamentou o fato, e nada fez; para ela tratou-se apenas de uma
mudança estratégica mínima.
Cabe lembrar que a equivalência entre as estruturas nazista e católica
será um dos temas mais importantes também em Auslöschung, além de estar
presente na peça Heldenplatz, já mencionada.
Neste volume autobiográfico e, em grande medida, no excerto citado, o
nazismo, o catolicismo, o sistema educacional e a cultura serão discutidos em
chave formal como momentos e realizações da forma social vigente. Pela sua
leitura, a bem da verdade, estes vínculos se tornam mediações e assomam
como tema de discussão obrigatória a partir da configuração estética de
Bernhard.
Segundo o sociólogo alemão Robert Kurz, o nazismo, com a utilização da
técnica abstrata para realizar um morticínio do modo mais produtivo possível
(com suas ferrovias e fornos) aplicou muito bem os ensinamentos de
Administração Científica de Frederick Taylor, motor do fordismo e grande
propulsor do capitalismo.
69
Além disso, a sentença que emoldurava os portões
de Auschwitz Arbeit macht frei(“o trabalho liberta”) resume e alegoriza o
capitalismo no que ele tem de mais visceral, a questão da liberdade de todos
para vender sua força de trabalho, mas que deixa de ser liberdade dado o
caráter compulsório da venda da mercadoria trabalho. A guinada econômica
empreendida pelo nazismo foi vista pelo próprio Keynes como a melhor
utilização de suas concepções sobre a intervenção da política na economia
como forma de impulsionar o desenvolvimento
70
. Argumentar que este
69
Cf. R. Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, p. 44.
70
Na Introdução à edição alemã da Teoria Geral, de 1937, Keynes pontua que os princípios
econômicos adotados pelo nazismo eram os mais adequados à crise do período, crise esta que
não poderia esperar que o sistema voltasse a crescer sozinho. Para Keynes, a incerteza do
contexto pode levar os indivíduos, de modo racional, a poupar, por medo de perder dinheiro, e
caberia aos governos assumirem um papel regulatório. Com efeito, a Alemanha foi o único país
que conseguiu sair da crise provocada pela depressão antes da guerra, o que os EUA e os
demais países europeus conseguiriam graças à deflagração do conflito. Não custa lembrar
que a Alemanha tinha sido profundamente afetada pela depressão e, apesar da estabilização
da moeda em 1924, a crise estava refletida no alto desemprego e foi agravada com a
depressão de 1929. Em 1933, o desemprego chegava a 44% da força de trabalho alemã. Em
49
crescimento deve ser creditado à economia de guerra que antecede a Segunda
Guerra Mundial soa, paradoxalmente, como uma confirmação desta conjectura,
e não como sua justificativa nefasta: os EUA pautaram e pautam seu
crescimento baseado em economias de guerra, sejam guerras factuais ou
fictícias.
71
Bernhard também centra sua artilharia contra a religião. Isto tem relação
com a força da Igreja Católica na Áustria, onde a contra-reforma conseguiu
reverter o avanço do protestantismo e do idealismo, imiscuindo-se no estado,
como se viu. Mas a relação entre capitalismo e religião vai além deste
posicionamento austríaco. No texto de Walter Benjamin “Kapitalismus als
Religion” se lê:
Erstens ist der Kapitalismus eine reine Kultreligion, vielleicht die extremste, die es
je gegeben hat. Es hat in ihm alles nur unmittelbar mit Beziehung auf den Kultus
Bedeutung, er kennt keine spezielle Dogmatik, keine Theologie. Der Utilitarismus
gewinnt unter diesem Gesichtspunkt seine religiöse Farbung.
72
Desta feita, não dias santos para a celebração de seu culto extremo, pois o
significado do culto é dado de forma imediata, sem dogmas, e todo dia e hora
fazem parte de uma celebração ininterrupta.
Este grau de abstração exacerbado engendra-se a partir da gênese da
mercadoria e do dinheiro, que tem na abstração o elemento estrutural que
permite comparar quantitativamente o que apresenta qualidades distintas,
como casas e mesas. O homem também se torna mercadoria e vende sua
força de trabalho, categoria abstrata, sendo este um dos aspectos da alienação
marxista. O próprio Marx não se utiliza da zona nebulosa da religião para
discutir a forma-mercadoria por acaso ou por efeito metafórico cil, mas por
suas mediações constitutivas. Em Marx:
1936, sob Hitler e por conta da economia de guerra, a Alemanha ostentava crescimentos da
ordem de 9% ao ano, uma recuperação fantástica calcada na preparação para a guerra que,
aliás, iria socorrer também os demais países. O New Deal de Roosevelt serviu apenas como
atenuante.
71
Sobre isso, cf. Paulo Eduardo Arantes, “Guerra sem névoa. Uma digressão sobre o
filme The Fog of War: Eleven Lessons from the Life of Robert S. McNamara”, dirigido por
Errol Morris, 2003, que tematiza o documentário com Robert Strange McNamara,
secretário de defesa dos EUA durante a crise dos mísseis em Cuba e da Guerra do
Vietnã, intitulado no Brasil Sob a Névoa da Guerra.
72
W. Benjamin, “Kapitalismus als Religion”, em GS VI, p. 100-103.
50
Für eine Gesellschaft von Warenproduzenten, deren allgemein gesellschaftliches
Produktionsverhältnis darin besteht, sich zu ihren Produkten als Waren, also als
Werten, zu verhalten und in dieser sachlichen Form ihre Privatarbeiten aufeinander
zu beziehn als gleiche menschliche Arbeit, ist das Christentum mit seinem Kultus
des abstrakten Menschen, namentlich in seiner bürgerlichen Entwicklung, dem
Protestantismus, Deismus usw., die entsprechendste Religionsform.
73
Quando o nazismo passa a ser visto como o ápice do processo de
desenvolvimento abstrato próprio do capitalismo, o ajuste de contas escapa ao
âmbito restrito da Áustria e se espraia para todos os rincões em que os
pressupostos formais do capitalismo tomam posição: hoje, nenhum espaço
está inerte.
Diferentemente do que ocorreu com os textos de Fritsch e Lebert, a
autobiografia de Bernhard surge num momento oportuno também por um outro
fator. A partir do início dos anos 70, escândalos políticos envolvendo a entrada
de ex-nazistas no governo do Social-Democrata (e judeu) Kreisky (SPÖ)
ganharam boa repercussão interna, embora o externa. Em 1970, quatro de
seus ministros foram acusados de participação no nazismo, o que, além de um
problema moral, gerava ainda um entrave legal: ex-nazistas poderiam
assumir cargos públicos quando não houvesse outra pessoa qualificada para o
trabalho.
74
Kreisky não apenas os apoiou, mas se colocou na frente deles,
como escudo. Seu salvo-conduto era sua origem judaica. Mais tarde, em 1975,
defendeu o líder do partido liberal (FPÖ), Friedrich Peter, ex-pertencente às
fileiras SS. Por um lado, Kreisky o fez por precisar de apoio político para o
governo de coalizão. Por outro, Kreisky ficara preso, durante o Austrofascismo
(1934-1938) junto com os nazistas, então proibidos de atuar oficialmente, não
vendo nestes seus principais inimigos. Estas questões serão discutidas em
profundidade, porém, quando do estudo sobre Auslöschung. Por agora, apenas
a menção de que a discussão sobre este passado nazista, ainda vivo nas
73
K. Marx, “Erste Kapitel – Die Ware”, em Das Kapital, p. 93.
74
“Kreisky gewann [...] die Wahl und setzte in den siebziger Jahren einen gesellschaftlichen
Reformprozeß in Gang, für dessen Durchführung er allerdings gravierende ideologische
Zugeständnisse hinsichtlich des Umgangs mit dem Nationalsozialismus, bzw. latenter
antisemitischer Vorurteile, in Richtung neuer Wählerschichten machte.” T. Albrich, Holocaust
und Shuldabwehr”, em M. Gehler e R. Steininger (orgs.), Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 2,
p. 78. Cf. também, no mesmo volume, o artigo de O. Rathkolb, “Die Kreisky-Ära 1970-1983”.
51
entranhas da vida em sociedade, começa na década de 70 a ganhar as ruas,
embora ainda de forma incipiente, o que faz eco para um texto como Die
Ursache. A partir de 1979, Bernhard se insurge, por meio de entrevistas e
artigos para periódicos, contra Kreisky, tornando sua crítica ainda mais ácida, e
sua participação no debate público mais visível, quase na entrada dos anos 80.
Em 1976 chega às livrarias Der Keller. Eine Entziehung, segundo volume
da autobiografia. Se no livro anterior se tratava de suas vivências durante a
guerra, especialmente na escola, aqui ele abandona esta e tenta ser aprendiz
de comerciante num bairro mal-afamado de Salzburg, que ele escolhe a dedo
por ser justamente o lugar para onde ninguém deseja ir: ele quer tomar a
direção oposta, quase um mote deste texto (in die entgegengesetzte Richtung
gehen). Uma passagem deste romance discute qual o estatuto da verdade que
pode ser almejada pela literatura, e assinala em que medida não se pode
deixar de lado o caráter artificial da linguagem:
Der Wille zur Wahrheit ist, wie jeder andere, der rascheste Weg zur Fälschung und
zur Verfälschung eines Sachverhalts. [...] Wir beschreiben etwas Wahrheitsgetreu,
aber das Beschriebene ist etwas anderes als die Wahrheit. [...] Die Wahrheit, die
wir kennen, ist logisch die Lüge, die, indem wir um sie nicht herumkommen, die
Wahrheit ist. Was hier beschrieben ist, ist die Wahrheit und ist doch nicht die
Wahrheit, weil es nicht die Wahrheit sein kann. Wir haben in unserer ganzen
Leseexistenz noch niemals eine Wahrheit gelesen, auch wenn wir immer wieder
Tatsachen gelesen haben. [...] Es kommt darauf an, ob wir lügen wollen oder die
Wahrheit sagen und schreiben [...]. Letzten Endes kommt es nur auf den
Wahrheitsgehalt der Lüge an. (KEL, 29-30).
Aqui se encerra um projeto de escrita que serve de base para seu projeto
literário, confirmando a primazia da mediação para se chegar à verdade. De
fato, fica claro que o desejo de expressar a verdade dos fatos não pode ser
realizado. A expressão é mediada, mesmo quando não o parece, mesmo
quando só lemos fatos (Tatsachen), estamos na mentira. Esta falsidade é ainda
falsificação (Verfälschung), de modo que o processo de criação como artificial
fica evidenciado. Não se trata apenas de algo falso, mas de uma falsificação.
Esta mentira é constitutiva e intransponível, mas não impede a escrita, no
entanto. Pois a verdade factual é logicamente impossível, mas não a verdade
da forma, que, como a língua, é forma tanto literária como social. Não se trata,
52
como aventado por parte da crítica, de apenas mais um entre tantos casos de
contradição ou ambigüidade sem solução. Em primeiro lugar, deve haver a
vontade de expressar a verdade, de alguém que escreve, de uma determinada
posição, sem o que tudo se perde. Havendo este esforço, pode-se almejar o
“teor de verdade da mentira”. Não uma verdade transmitida por uma linguagem
instrumental, mas a verdade por trás da concepção mesmo de linguagem.
O uso do pronome nós (wir) tem implicações decisivas, não é apenas um
cacoete expressivo, mas está relacionado com o caráter social desta verdade.
Neste sentido, não se pretende, nesta autobiografia, atingir a fidelidade factual,
que deve ser evitada por uma mediação fortemente marcada. Esta discussão
passa necessariamente por Benjamin, quando trata da diferença da crítica e do
comentário:
Die Kritik sucht den Wahrheitsgehalt eines Kunstwerks, der Kommentar seinen
Sachgehalt. Das Verhältnis der beiden bestimmt jenes Grundgesetzt des
Schrifttums, demzufolge der Wahrheitsgehalt eines Werkes, je bedeutender es ist,
desto unscheinbarer und inniger an seinen Sachgehalt gebunden ist. [...] Will man
um eines Gleichnisses willen, das wachsende Werk als den flammenden
Scheiterhaufen ansehn, so steht davor der Kommentator wie der Chemiker, der
Kritiker gleich dem Alchimisten. Wo jenem Holz und Asche allein die Gegenstände
seiner Analyse bleiben, bewahrt für diesen nur die Flamme selbst ein tsel: das
des Lebendigen. So fragt der Kritiker nach der Wahrheit, deren lebendige Flamme
fortbrennt über den schweren Scheitern des Gewesenen und der leichten Asche
des Erlebten.
75
O teor de verdade da obra de arte perseguida pela crítica não se resulta
em um realismo vulgar, que procuraria mimetizar a realidade, antes intenta
recriá-la. O tema, no caso, é justamente seguir na direção contrária, o que
noutras palavras equivale a repisar a história, e perceber que o passado está
vivo, atualizado no presente; não é outro o intuito de Bernhard com esta
autobiografia. No caso destes dois volumes até agora considerados, ir contra
Salzburg, na direção do bairro considerado por todos – mesmo seus moradores
como o pior de Salzburg, e apontar para pessoas específicas: tudo isso faz
parte da releitura de um passado na contramão, projeto que, como vimos, tem
precursores, mas o modo como Bernhard o faz é próprio. Como se viu, a
75
W. Benjamin, “Goethes Wahlverwandschaften”, em GS I-1, p. 125-126.
53
ligação com a sociedade é direta, e não o é. Deste modo, não quer uma
autobiografia factualmente fidedigna, mas que almeje a verdade da forma, que
é tanto social quanto literária, o que ele chamana autobiografia de “teor de
verdade da mentira”. Bernhard mente na autobiografia, criando-se nela como
um personagem que assume posições de onde desfere sua verborragia. Entre
outras posições, a de inimigo da Áustria e dos austríacos, ou seja, na tradição
de Raymond, um Menschenfeind
76
, de onde ataca a tudo e a todos, com o
intuito de chocar e estimular um debate, normalmente contra as unanimidades,
quaisquer que sejam, sem que participe com argumentos convincentes deste
mesmo debate; ele participa antes como agitador. Es
54
dos textos de Bernhard, cada vez mais direta, não se resume a uns poucos,
mas almeja também o leitor, envolvido por sua linguagem sedutora que, sem
qualquer aviso, ataca seu bom-senso com algum juízo arbitrário, ou que cansa
pelas repetições incansáveis
77
. Percebe-se uma leve ironia no próprio texto
acima citado: a julgar por ele, tem-se a impressão que basta a vontade do leitor
para que, facilmente, destes fragmentos se faça um todo. Ora, este salto é
reconhecidamente impossível; o autor coloca uma armadilha para o leitor,
instigando-o com isso. Qual a armadilha? Pelo texto da autobiografia, sabe-se,
pela forma, que esta totalidade é falsa, a única que resta é negativa, da
subsunção de todos à forma aniquiladora da modernidade, pautada pela forma
da mercadoria. O autor mesmo se cria como um personagem, vendável, que
melhora seu valor de mercado por suas provocações. E Bernhard não está
alheio a isto, antes as aceita e incorpora, que é pressuposto de seu agir
visando à extinção, como se verá no romance Auslöschung, base para sua
escrita da história. Com Adorno:
Als Materialisation fortgeschrittensten Bewußtseins, welche die produktive Kritik
des je gegebenen ästhetischen und außerästhetischen Zustands einschließt, ist
der Wahrheitsgehalt der Kunstwerke bewußtlose Geschichtsschreibung, verbündet
mit dem bis heute stets wieder Unterlegenen.
78
O “teor de verdade da obra de arte”, nas palavras de Bernhard, “da
mentira”, tem os traços de uma escrita da história inconsciente. Este o projeto
que anima a escrita de Bernhard, e a autobiografia é uma das estações pelas
quais este projeto ganha corpo, com a aproximação da realidade material, seja
pelo formato autobiográfico, seja pela penetração da matéria social quase
imediata, em perspectiva provocativa, o que se consegue por uma mediação
exacerbada. Esta verdade afiança que todos estão submetidos à mesma
opressão, que nos conduz à minoridade não à maioridade da razão, e
Bernhard faz graça disso com seus leitores.
77
Como o próprio Bernhard diz numa entrevista: “Jetzt [...] konstruiert [man] eine Prosa, die die
Leute langweilt, weil sie sagen: ‘Das ist mir zu blöd, drei Seiten ein Satz.’ Und das ist doch der
Reiz, daß die denn sagen: ‘bäääh’. Und das ist noch ein Reiz, daß man was macht, was die
Leute ablehnen und ihnen Widerstände macht.” Entrevista a K. Hofmann, Aus Gesprächen mit
Thomas Bernhard, p.33.
78
T. W. Adorno, Ästhetische Theorie, em Gesammelte Schriften, vol. 7, p.285-286.
55
Neste contexto, cabe bem uma das frases fundamentais de Bernhard: In
der Finsternis wird alles deutlich.
79
Com Brecht: Wir leben in finsteren Zeiten.
Mas quando esta escuridão se torna completa, total, talvez se possa ver
alguma coisa, posto que não nada que tire a atenção do vazio. aqui um
intertexto que, neste cenário, faz todo sentido. Uma de suas peças, Der
Ignorant und der Wahnsinnige
80
, escrita especialmente para o festival de
Salzburg (!), era uma espécie de resposta à Flauta Mágica, de Mozart numa
de suas provocações para a estréia de que fala Winkler mas que não se
restringe a Salzburg, antes cita em negativo o projeto da ilustração. Nesta
peça, a atriz que faz a Dama da Noite, décadas, está cansada das viagens,
do estrelato, da família, e vez por outra tosse, como quem está com uma
doença pulmonar. Apesar do seu sucesso, sua vida é vazia e ela se sente
acabada, desmarcando inclusive a próxima apresentação. Ao final da peça, a
rubrica coloca os personagens num bar, depois da apresentação, e as luzes
vão se apagando, enquanto a Dama da Noite tosse, até a escuridão completa,
que deveria durar dois minutos: contra a vitória da luz em Mozart, a escuridão
completa seria o contraponto necessário, tendo em vista as feições atuais do
capitalismo. Na estréia, as luzes de emergência permaneceram acesas, e o
diretor Peymann exigiu que, para as próximas apresentações do festival,
fossem apagadas, pedido negado pela direção do festival, por motivo de
segurança. O diretor Peymann, então, recusa-se a apresentar a peça
novamente, com o apoio de Bernhard. Este conclui que uma sociedade que
não agüenta dois minutos de escuridão total pode muito bem passar sem sua
peça.
81
Sendo assim, não faz sentido seguir o caminho de Andreas Maier, que
procura avaliar a forma da autobiografia e da escrita de Bernhard, mas ao fazê-
lo, não obstante as ressalvas de que não se interessa pela fidedignidade
factual do escrito, critica veementemente Bernhard por tentar se criar como um
herói. Depois, ainda desanca a forma do texto, ao dizer que os conceitos
mudam de sentido num momento e noutro, arbitrariamente, o que
79
T. Bernhard, “Drei Tage” (Entrevista a Felix Radax), em Der Italiener, p. 82.
80
T. Bernhard, Stücke 1, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988. A peça teve estréia no festival
de Salzburg, em 29/07/1972, dirigida por Claus Peymann.
81
Cf. J. Dittmar (org.), “Die Identität des ‘Onkel Franz’ (1975/76)”, em Sehr Gescherte Reaktion.
Leserbrief-Schlachten um Thomas Bernhard, p. 49-55.
56
enfraqueceria a obra, em chave tanto moral quanto estética. Para seus ataques
se serve da obra de referência de Huguet, restando a seu cargo os acentos
valorativos. A obra de Maier é daquelas muitas que acaba sendo boa pelo
diagnóstico e ruim pelos desdobramentos críticos que elabora. O que ele
diagnostica é pertinente, indo da dança dos conceitos ao caráter de
permutabilidade dos pares antagônicos se bem que com limites, não tão a
esmo como ele tenta fazer crer –, passando pelo pouco caso com a veracidade
dos fatos formalizados esteticamente. Quando faz disso seu cavalo de batalha
para desvalorizar, mesmo moralmente, a obra de Bernhard, comete um erro
tremendo. Pena que o tom do livro seja este, o de apontar os erros e fraquezas
de Bernhard, o que, num volteio irônico, é a sua própria fraqueza.
82
Nas
palavras de Jahraus:
Sie [os personagens de Bernhard] sind Subjekte und ihre eigene
Selbstverwerfungen gleichermaßen. Aber sie sind noch mehr: Sie sind nicht nur
Räpresentanten auf der Figureneben, sie sind ein Textkonstituitionsprinzip auf der
Textebene. [...] Es geht nicht mehr wie bei Hofmannstahl um den gepflegten
Ausdruck einer Krise des Subjekts, sondern die Krise des Subjekts erzwingt einen
autoiterativen kommunikativen Prozeß.
83
Mesmo que Jahraus esteja se referindo especialmente aos personagens
dos romances de Bernhard, penso que não há como diferenciá-los
completamente. Há uma equiparação entre os personagens dos romances, que
ganham vida e chegam a ser mencionados em entrevistas de Bernhard, e
pessoas “reais” que se tornam personagens dos romances, como nos casos de
Ritter, Dene e Voss, título de uma peça com estes três atores, que mais nada
em comum com estes tem do que o título. E as entrevistas de Bernhard, bem
como sua autobiografia, são escritos com a mesma língua que cria nos
romances. Isto não implica que não haja diferenças entre eles: Murau é
Bernhard e não é; uma unidade entre os dois, necessária para a criação
estética e afiançada pelo autor em entrevista, mas a própria mediação já impõe
uma distância intransponível.
Retomando a biografia do autor, em 1948 surgem os primeiros sinais de
82
Cf. A. Maier, Die Verführung Thomas Bernhards Prosa, p. 158 ss.
83
O. Jahraus, “Von Saurau zu Murau”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler (orgs.),
Wissenschaft als Finsternis? p. 75.
57
uma pleurisia, que evoluirá para uma tuberculose. Num primeiro momento
Bernhard será internado num hospital, numa ala para pacientes terminais,
sendo depois conduzido para um sanatório com o intuito de se restabelecer.
Descobre que este local está repleto de pacientes tuberculosos, doença que
por fim também contrai. Estas doenças e peregrinações acompanharam-no por
toda a vida e o condenaram a permanecer por grandes temporadas em clínicas
e sanatórios, como num período quase ininterrupto entre 1948 e 1951.
Estes internamentos serão temas centrais em sua autobiografia, e que
conjecturo estar entre as passagens mais decisivas de sua obra, pautando-se
pela dialética entre construção estética e forma social concepção de doença,
de instituições como sanatórios, da relação médico-paciente, de ciência, da
competição irracional mas inevitável, da família, da solidão e da morte; todas
estas concepções em chave eminentemente históricas, socialmente
compartilhadas. Cumpre reforçar que a autobiografia entra neste trabalho não
como documento, mas antes e sobretudo como forma e configuração estética,
por um lado, e conteúdo habilmente pinçado para realçar a posição do
narrador.
Alle Patienten produzierten ununterbrochen Sputum, [...] als hätten sie keine
vordringlichere Aufgabe, als Sputum zu produzieren, als feuerten sie sich
gegenseitig zu immer grösserer Sputumproduktion an, ein Wettbewerb fand hier
jedem Tag statt, so schien es, in welchem am Abend derjenige den Sieg
davongetragen hatte, welcher am konzentriersten und die grösste Menge in seine
Spuckflasche ausgepuckt hatte. [...] Das Labor wartete auf mein Sputum, alles in
Grafenhof schien auf mein Sputum zu warten, aber ich hatte keines; schliesslich
hatte ich den Willen, Sputum zu produzieren, nichts als diesen Willen, und ich
versuchte mich in der Kunst des Spuckens, [...] aber ich produzierte nichts ausser
immer grössere Halsschmerzen, mein ganzer Brustkorb schien entzündet. [...]
Aber ich musste spucken! Alle forderten es von mir. [...] ich produzierte jetzt schon
mit Sicherheit Sputum, [...] das Labor war zufrieden. […] Nach fünf Wochen war es
soweit, der Befund war: positiv. Ich war plötzlich Vollmitglied der Gemeinschaft.
Meine offene Lungentuberkulose war bestätigt. (KÄL, 9-11).
84
84
Não poderia deixar de mencionar a enorme dificuldade de citar pequenos trechos do texto
bernhardiano. A estrutura das frases e do discurso obriga a um “recorte” pouco nítido. O
movimento de intensificação e generalização - que culmina não poucas vezes em assertivas do
gênero de Das ist die Wahrheit, depois negadas - é recheado de vaivéns, digressões e perda
do foco objetivo. Este passo é constitutivo de sua estética e marca o caráter material e objetivo
da concepção de verdade que ainda é relativo, pois este percurso ocorre tantas vezes que
58
O volume autobiográfico Die Kälte apresenta como epígrafe uma citação
de Novalis na qual se lê: Jede Krankheit kann man / Seelenkrankheit nennen”,
de modo que sua doença, que lhe teria sido praticamente impingida pelos
médicos, pacientes e por ele mesmo, indica e representa ainda uma doença
cultural, e daí social, econômica, política, humana. De quebra, instaura-se
ainda uma soturna e ridícula competição, bem nos moldes da luta por
mercados, da busca irrefreada da vitória: uma competição absurda entre
doentes para produzir mais catarro. O saldo final nos mostra uma paródia
macabra que alegoriza e ridiculariza a ânsia por produtividade. Este episódio
vira do avesso a lógica perversa da índole mesma do competir: vence quem for
o doente mais estropiado, mais acabado, e o resultado que,
necessariamente, deve ser quantitativo, posto sua ambição científica é
auferido pela comparação entre o volume e densidade de secreção pulmonar
produzida por cada um.
algo no tom e no andamento desta passagem que remete às disputas
em centros financeiros como de Wall Street, em filmes hollywoodianos. A lógica
competitiva subjacente é a mesma nos dois casos o que pode dificultar que
se perceba a ironia e o escárnio do texto de Bernhard, que não deixa de ser
sóbrio mas o sinal está invertido, o que expõe o absurdo desta lógica. Assim,
configura-se um jogo de esconder e mostrar levado às últimas conseqüências.
Uma soturna ética do trabalho emerge aqui com toda sua força,
produzindo doença, morte, aniquilação, como de hábito. “Das Labor wartete auf
mein Sputume Das Labor war zufrieden”: Labor significa laboratório, mas a
origem latina indica trabalho, e quero crer que esta acepção tem validade
formal no caso: o Trabalho (como conceito, trabalho abstrato, parte do
mercado) estava satisfeito, “eu cumpri as metas e sou merecedor de mérito,
além de conseguir uma identidade; faço parte do grupo dos doentes terminais”.
Estas formulações resumem esta ética, expressando-a agudamente, com o
Trabalho posto como sujeito que exige resultados e avalia, redigindo
veredictos. Ele, o homem, sente-se acuado, entregue a esta aniquilação que,
por fim, o forma. A doença assume dimensão tanto física quanto psicológica,
esvazia seu conteúdo, ou o dialetiza, historiciza e relativiza, fazendo-o vivo, assim como o teor
de verdade de Benjamin.
59
social e espiritual, como na epígrafe de Novalis. A relação médico-paciente não
é outra senão a de sujeito-objeto da teoria tradicional, mas se engana quem
não perceber que, de sujeito, o médico tem sua consciência individual e
social, ideologia explícita o sujeito aqui é o Trabalho (como Labor). O médico
é, objetivamente, um instrumento deste sujeito, que se traveste externamente
como ciência. A ciência médica será aqui (como em Frost, de 1963, seu
primeiro romance) a alegoria do modelo racionalista e prova cabal da dimensão
estrutural de sua falência, da órbita da forma capitalista básica. Numa certa
altura deste volume autobiográfico, o narrador-autor percebe que o tratamento
que os médicos lhe receitam o destruirá, e deliberadamente toma remédios
quando não deveria, ou não toma quando deveria fazê-lo, e credita a este
procedimento sua recuperação assustadoramente rápida.
Infelizmente grande parte da crítica interpreta estas e outras passagens
apenas como a reiteração eterna de seu ódio e rancor contra tudo e todos;
nesta perspectiva tudo se resumiria a uma questão subjetiva, do autor, e o
objetiva, referindo-se ao todo da sociedade. Esta resposta fácil e grosseira,
contudo, está prevista pela obra, que não esconde a subjetividade. Estas não
prescindem de uma posição subjetiva, mas o exagero e as ambigüidades dos
narradores fazem confundir, propositalmente, os leitores. Digo propositalmente
pois este erro ou engano interpretativo assume estatuto de forma no
capitalismo, assomando como tal. O exagero da subjetividade nos faz passar
para o lado oposto, como que num transbordar conceitual: a objetividade
material mais nua e crua se traveste na mais aguda subjetividade. Porém não é
preciso muito esforço para perceber que não se trata de um caso psicológico,
para terapeutas, mas sim para hermeneutas. Um dos comentadores de
Bernhard, Hermann Korte, diz:
Aber seine ‘Übertreibungskunst’ reicht über die Poetik einer literarischen Gattung
in der Masse hinaus, wie sie gleichsam eine potenzierte, radikalisierte Form
ästhetischer Negation sein will. Sie treibt jede Reflexion, jede Denkform, jeden
Satz auf die Spitze und entzieht sich der Diskursivität der Rede. Ihr Ziel ist nicht die
epische Darstellung einer Welt, sondern deren Destruktion in Form eines
fortwährenden Monologs. Jede auktoriale Erzählgestus wird schon in Ansatz
dadurch ad absurdum geführt, dass der Erzähler sein eigenes Urteil und seine
Kompetenz, eine Geschichte zu erzählen, in den Idiosynkrasien seiner
60
61
sessões de tortura. O narrador-autor ensina os jovens médicos a proceder de
modo correto. O descaso e o desprezo são gritantes. Esta a mais nua
objetividade.
Por fim, o último volume, Ein Kind, tem como tema sua primeira infância,
sendo anterior cronologicamente aos primeiros volumes. O efeito é calculado:
impregnado pelos revezes e realizações de todos os gêneros enfrentados
pelo narrador-autor, este futuro penetra o passado e o significa. O passado,
denso por si só, será remem
62
[...] drei ‘Haupt-Vernichtungen’… [...] Zuerst wie beim Tier animalisch Zeugung,
Geburt, dann aus Mangel an eigenen, Gefühlsvernichtung durch die
stumpfsinnigen, egoistischen Eltern, Vernichtung der Seele durch die Kirche und
Vernichtung des Geistes durch die Schule – so steht der völlig zerstörte und
vernichtete Mensch dann da.
88
A aniquilação praticada pela escola e pela igreja não tem como
contrapartida a família, esta é antes uma outra instância de sua aniquilação, de
modo que há algo que unifica estas três esferas: a forma social. Quando
Bachmann fala do nazismo penetrando o seio familiar, deve-se entender que
esta forma o vem de fora, mas está presente em cada uma das reproduções
da vida em sociedade. Bernhard leva isso até o nascimento e, mais longe
ainda, ao próprio ato de procriação: até aquilo tido como natural entra na sanha
desta forma, que não deixa nada de fora. De fato, a procriação tem uma
fundamentação econômica em nossa sociedade, e mesmo políticas estatais
de aumento da taxa de natalidade, sem o que o desenvolvimento econômico
fica limitado. A prevalência do social sobre o individual também se por esta
inversão: antes a vivência do nazismo, da escola, da igreja, instituições sociais
por excelência, depois o seu nascimento, com suas idiossincrasias, que deixam
de ser apenas individuais pela penetração daquelas vivências posteriores em
seu nascimento; assim, ganha estatuto social. A repetição incansável de
adjetivos duros e implacáveis mimetiza o destroçar das pessoas, um mastigar
monótono e contínuo, que se incumbe sem emoção desta tarefa aniquiladora.
Uma outra cena que merece destaque por seu caráter alusivo à escrita de
Bernhard é o episódio em que a criança, que acabou de aprender a pedalar,
tentar ir com a bicicleta do padrasto aSalzburg, visitar uma tia. Apesar do
início promissor, e da grandeza da cena, que o erig
63
conseguido pela mediação da palavra, que o salva, e o repõe como herói. A
cena pode ser tomada em negativo, como faz Maier, que aqui um modelo
para a narrativa: mentir para se construir como herói. Vejo pelo lado oposto: o
decisivo, no caso, é a exposição de todo o processo, que vai da rememoração
à desfiguração pela escrita, criativa, que se faz passar aos ouvidos do outro
como autêntica, mas não o é. pode achar as armadilhas quem sabe montá-
las: este o princípio que tenta deixar tudo à mostra, que produz algo diferente
da realidade, fala dos bastidores, em primeiro lugar, e se desnuda sem
esconder nada. A cena toda merece consideração especial. Atualizando
também a cena que remonta a mais de 40 anos, o narrador-autor se lembra
que estivera com este amigo de infância poucos anos atrás: estava
liquidado, fechado em sua casa. O pai cometera suicídio, ele se isolara e não
recebia nem falava com ninguém anos, abre a porta a Bernhard quando
este diz “Thomas”: a voz da criança. E o narrador-autor rememora a sua
narração do episódio da bicicleta tendo em vista esta visita de alguns anos
atrás, e assim temos o presente formado por quatro tempos passados: a cena
da bicicleta, sua narração ao amigo, sua visita a este e o momento em que
escreve, deixando evidente a densidade do presente que ativa, pela
rememoração, via mediação literária:
Durch meine Spekulation [quando escreve] blickte ich durch den Unmenschen
Schorschi [o tempo da visita, poucos anos atrás] auf unsere gemeinsame Kindheit
[narra a história da bicicleta]. Sie war noch immer da, sie lebte. [...] Ich sehe diese
Szene deutlich. [...] ich setzte mich mit ihm in sein kaltes Zimmer und erzählte ihm
meine Geschichte. Sie hatte die erwartete großartige Wirkung auf ihn. [...] Ich
selbst genoß meinen Bericht so, als würde er von einem ganz anderen erzählt, und
ich steigert mich von Wort zu Wort und gab dem Ganzen, [...], eine Reihe von
Akzenten, [...] [die] sogar zusätzliche Erfindungen waren, um nicht sagen zu
müssen: Lügen. [...] ich [war] überzeugt, daß man ihn [o narrado] als ein
wohlgelungenes Kunstwerk auffassen mußte, obwohl kein Zweifel darüber
bestehen konnte, daß es sich um wahre Begebenheit und Tatsachen handelte. [...]
Ich hatte die Fähigkeit, mein klägliches Scheitern am Ende mit ein paar kurzen
Sätzen zu einem Triumph zu machen. Es war mir gelungen: der Schorschi war an
diesem Morgen überzeugt, daß ich ein Held bin. (KIND, 25-26)
64
Assim se constrói um escritor: com Honold, os cinco volumes
autobiográficos de Bernhard não o documentos autênticos de uma infância e
juventude terríveis, mas uma socialização literária: “den Weg des Kindes zum
Dichter”
89
. Ao mesmo tempo em que reforça o caráter de mediação da obra de
arte, ele atesta que não o nada mais do que fatos, que podem existir
enquanto criados e, por isso, neste sentido, são verdadeiros. Nada escapa a
esta linguagem a que tudo se reduz em Bernhard, e de onde partem para nada
menos do que a história. A autobiografia de Bernhard se diferencia da maioria
das autobiografias: “Bernhard hat den Bericht völlig in den Bereich seiner
Sprache hereingezogen.”
90
Este o caminho trilhado por Bernhard, e que o
permite, ao mesmo tempo, trazer a realidade quase imediatamente para seus
textos (com as provocações, os nomes, os ataques etc), mas o fazer por sua
linguagem peculiar, que não se deixa esquecer durante o processo de leitura,
não serve nunca como mero instrumento de transmissão de significados.
Seguindo esta argumentação, constitui erro grave encaixar Bernhard
como um representante do que se chamou Nova Subjetividade (ou Nova
Interioridade), levando-se em conta a escrita autobiográfica, como fez, por
exemplo, Wilfrid Barner. Esta tendência literária tem suas bases numa
redescoberta do “Eu” nos países de língua alemã, na esteira de um sentimento
de impotência gerado pela repressão e inviabilidade das demandas de 68,
desaguando em desilusão e falta de esperança. Como resposta a esta
frustração, teria havido o escape da arena política em direção a uma
preocupação “hipocondríaca e atormentada em relação aos sentimentos e
feridas do eu”
91
. A mudança das relações sociais e da sociedade teria sido
posta de lado em função de um aprofundamento de questões focadas no
indivíduo e em sua complexidade.
É verdade que os narradores de Bernhard são fortes e insinuantes, e que,
a partir de 1975, pode-se interpretar uma volta ao “eu” motivada pelo formato
autobiográfico. Mas isto seria deixar de ver que o projeto autobiográfico não
cria um “eu” fechado em si mesmo, antes pretende lidar com o passado e a
89
A. Honold, “Bernhards Dämonen”, em J. Hoell et al. (orgs.), Thomas Bernhard – Eine
Einschärfung, p. 18.
90
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 306.
91
W. Barner, Geschichte der deutschen Literatur von 1945 bis zur Gegenwart, p. 626. (Minha
tradução).
65
história austríacas, abandonando a concepção de arte que se fecha sobre si
mesma, como um santuário, querendo tornar-se permeável à matéria social. A
relação entre autor e personagem torna-se interna, assim como aquela entre
ficção e realidade, cuja discussão entra pelo texto. A autobiografia não é
factual, antes cria um personagem, o que acaba se tornando uma armadilha
para o leitor.
92
Interessa sobretudo o processo de escrita e a concepção de
linguagem, que está no centro da dinâmica da obra. “Die Figur Bernhards
wandelt sich zu einer Kunstfigur, sie gestaltet sich nach den Figuren des
eigenen Opus. Die Sprache [...] haben Verfügungsgewalt über die Biographie
des Autors gewonnen.”
93
Na Áustria o clima era especialmente propício para o surgimento de novas
formas, dada a experiência de crise pela qual o país passara a partir da
Primeira Guerra Mundial. A hegemonia histórica que o país possuíra foi
abruptamente desfeita em 1918, e a aposta num “Reich de Mil Anos”, unida à
Alemanha de Hitler, leva a Áustria a uma perda de significado internacional
ainda mais profunda. O país foi, então, de acordo com diversos autores,
maquiado como uma “disneylândia alpinaum centro turístico calcado numa
tradição velha, gasta e obsoleta, com salas e teatros famosos cheios de pompa
e sem valor –, que tentava esconder ressentimentos, preconceitos e
escândalos de um país tomado pela corrupção e marcado por um
antisemitismo encalacrado e arraigado. Este quadro pintava uma realidade com
cores provocativas para autores como Peter Handke, que utiliza o “xingamento
do público” como estratégia discursiva em seu primeiro sucesso, o que vem a
se constituir em uma característica desse movimento. À Áustria teria faltado o
mea culpa em relação ao seu passado recente, recalcando modos de pensar e
ser que deveriam ser expostos, discutidos e questionados. Disto se depreende
uma linhagem formal historicamente localizada, dentro da qual se insere
Thomas Bernhard, que, por seu lado e meios, também instaura um diálogo
complexo e nada amistoso com seu país e seus leitores. No entanto, comete-
se erro grave ao restringir seu ataque ao modo de proceder austríaco, sem
atribuir o devido crédito à forma capitalista subjacente que capitaneia esta
perspectiva; isto não obstante assumir determinadas formas na Áustria,
92
Cf. U. Betz, Polyphone Räume und karnavalistisches Erbe, p. 299-307.
93
W. Schmidt-Dengler, Bruchlinien, p. 316.
66
passagem essa exigida pela interpretação da obra bernhardiana.
E
XCURSO
:
DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE PERIFERIAS DO CAPITALISMO
Assim se configura um diálogo possível e pertinente entre literaturas na
periferia do capitalismo. Embora tão distantes cultural e historicamente, a
“dialética da malandragem” articulada por Candido
94
na relação entre forma
social e forma literária, cujos pressupostos foram expostos e discutidos por
Schwarz
95
, guarda um paralelo com a dialética entre a “disneylândia alpina”
caracterizada por sua cultura elevada, por uma história imperial com pompa e
circunstância, por ser um centro turístico mundial e o seu desprezo e
desvalorização do outro, do diferente, seu antisemitismo e seu passado não
debatido e enfrentado. A boa inserção do castelo Wolfsegg no capitalismo será
um dos pontos-chave do romance Auslöschung, não obstante a construção
remeter ao Império Habsburgo, supostamente com outros valores.
Um dos caminhos da inserção capitalista postula uma “vocação turística”
que cria imagens consumíveis de virtude, nobreza, arte elevada, por trás da
qual mascara ódios e ressentimentos provocados pela destituição de sua
relevância histórica e política, que marca indelevelmente as relações sociais e
a psicologia individual encobertas e escondidas pela forma-mercadoria, que
assume o papel ativo desta relação entre homens, agora disfarçada pela
“naturalização” das relações entre mercadorias. Uma casca aristocrática seria
então preservada e reposta como itinerário para sua assimilação no mercado
burguês; assim a Áustria seria alçada à condição de um grande palco na
Europa após a Segunda Guerra Mundial, cultivando para si mesma uma
imagem que lhe traria tanto identidade e dignidade quanto dinheiro, mas ao
custo de alijar do debate a discussão fundamental e que permanece latente na
forma social; esta será vivida, sentida e esteticamente elaborada pela cultura.
Assim se pode entender o que Renato Mezan chamou de “amor ao
94
Cf. A. Candido, “Dialética da Malandragem”, em O discurso e a cidade, p. 19-54.
Especialmente ao tratar da dialética entre ordem e desordem num corpo,
necessariamente, para caracterizar o processo de formação do caráter nacional, à margem
mas inserido no capitalismo central.
95
Cf. R. Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, da ‘Dialética da malandragem’”, em Que horas
são?, p.129-155. Schwarz evidencia o papel especial da crítica imanente para as letras
nacionais, chamando a atenção para o risco da importação de métodos pré-concebidos obstruir
a interpretação da obra e o entendimento das idiossincrasias de nossa formação social.
67
clássico” nas artes e costumes como forma de recalcar o passado recente e
reconstruir a identidade numa moldura vendável.
96
Para Hermann Broch, o
estado austríaco na segunda metade do século XIX, tanto no domínio
intelectual, como no político, era bom para ser guardado num museu:
Das Museale war Wien vorbehalten, und zwar als Verfallszeichen, als
österreichischen Verfallszeichen. Denn Verfall im Elend führt zum Vegetieren, doch
einer im Reichtum führt zum Museum. Das Museale ist Vegetieren im Reichtum, ist
heiteres Vegetieren, und Österreich war damals noch ein reiches Land.
97
Se Paris transformava as formas do Ancien gime e se tornava, nas
palavras de Benjamin, a “capital do culo XIX”, a Áustria se acomodava em
seu provincianismo, abrindo mão da categoria de metrópole européia que
ostentou no barroco, não pouco pela força do catolicismo. Também Adolf Loos,
nos idos de 1890, destaca o aspecto “Potemkim” da arquitetura de Viena, uma
cidade de ilusão, que se pavoneia aristocrática, no contexto da era burguesa,
procurando apagar as diferenças sociais.
Desta feita ganha espaço o debate sobre o caráter psicológico da
anexação nazista (Anschluss) em 1938: houve uma rendição ou uma adesão?
Não é à toa que este tema surge com força total na última peça de Bernhard,
Heldenplatz, com estréia no jubileu (1988) da referida anexação precisamente
no Burgtheater, a alguns metros da praça onde ocorreu o discurso de Hitler
para o júbilo de milhares de austríacos. A peça tematiza a permanência e
mesmo a potencialização daquele estado de espírito pelos 50 anos
seguintes; uma das personagens (Frau Professor Schuster) afirma escutar,
continuamente, horrorizada, a fúria da multidão delirante naquele dia, que se
tornara mais enérgica 50 anos depois.
A ausência de mudanças, de movimento e de alternativas, própria da
segunda metade do século XX sob o véu do desenvolvimento tecnológico e de
alguns paliativos como o Welfare State –, ganha nesta peça uma
representação pungente. Ora, esta dialética, aqui apenas esboçada, deve ser
lida como uma maneira própria de inserção capitalista que, na Áustria, se
configura numa perspectiva específica, mesmo atrasada, em relação ao resto
96
Cf. R. Mezan, Freud, pensador da cultura.
97
H. Broch, Hoffmannsthal und seine Zeit, p. 49.
68
da Europa. Não custa lembrar que os Habsburgos do Império Austro-Húngaro
são destituídos do poder apenas após a Primeira Guerra Mundial.
Este movimento pode ser melhor observado nas crises e sob o ponto de
vista da periferia, visto que a inserção traz consigo ambigüidades e
contradições próprias para casar com a lógica ideológica do capital que por
este processo podem se tornar mais visíveis pelo desajuste
98
e gerar o que
Francisco de Oliveira alcunhou, em nossas terras, de O Ornitorrinco, num livro
ímpar sobre a formação nacional.
Crise e periferia do capitalismo são características da obra de Thomas
Bernhard, tanto em termos temáticos, discursivos e formais, configurando-se
como um dos motivos que tornam o seu estudo relevante. A crítica que acentua
sua verve demolidora contra a Áustria perde-se ao não realizar o próximo
passo, necessário, previsto pela obra: sua localização nacional não o
particulariza e desqualifica, mas antes especifica o lugar de onde se fala, e
parte daí para discutir a forma social subjacente.
Sendo assim, a guinada para o “Eu” funciona como um salto em direção à
matéria social, diria mesmo como uma politização da estética contra uma
perspectiva cara ao desenvolvimento social austríaco. A recriação de uma
identidade própria como berço de uma cultura milenar passa pela valorização
da cultura na esfera política, que coloca a divulgação desta cultura como um
dos pilares de sua reconstrução. Os meios culturais ganham polpudos
subsídios estatais, e a cultura se burocratiza, tendo em vista sua massificação.
Este quadro forma o pano de fundo contra o qual se insurge o romance
Holzfällen, motivo pelo qual este tópico será desenvolvido mais tarde. A Áustria
conta cada vez mais com os dividendos do turismo. Esta “politização da
estética” é regressiva e conservadora. Tudo isso leva ao aspecto musealizado,
comentado noutra parte, que será “citado”, e contra o qual Bernhard arma
suas invectivas ao longo da obra, visando outra “politização da estética”.
98
Este argumento será desenvolvido com todo vigor e pungência no capítulo “As idéias fora do
lugar” (R. Schwarz, Ao vencedor as batatas, p. 9-32). Neste texto, o autor argumenta a respeito
do Brasil e faz referência por analogia à literatura russa, dizendo: “O que é um modo, também,
de indicar o alcance mundial que têm e podem ter as nossas esquisitices nacionais. Algo de
comparável, talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante dessa, ainda os maiores
romances do realismo francês fazem impressão de ingênuos. Por que razão? Justamente, é
que a despeito de sua intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim como a
moral formalista, faziam no Império Russo efeito de uma ideologia ‘estrangeira’, e portanto
localizada e relativa.” (p. 27)
69
Veremos nos estudos sobre os romances, especialmente em Auslöschung,
como isto se dá.
Os anos 80 na Áustria: literatura e sociedade
A publicação da autobiografia é concluída em 1982, início de uma década
na qual Thomas Bernhard irá se imiscuir cada vez mais no debate público, seja
por meio de artigos para jornais, de entrevistas, de escândalos e de sua própria
obra. André Müller, um insistente jornalista que, a muito custo, conseguiu duas
grandes entrevistas com Bernhard (uma em 71, outra em 79), afirma: “In den
folgenden Jahren [ou seja, nos anos 80] schlug seine Medienscheu in eine
geradezu exhibitionistische Lust an öffentliche Auftritten um.”
99
Em seus textos,
também se nota uma diferença em relação ao percurso que vim
acompanhando. Traços autobiográficos penetram seus romances, tornando
ainda mais difícil a discussão sobre este caráter em sua obra. Deste modo, em
Wittgensteins Neffe. Eine Freundschaft, de 1982, mesmo ano em que publica
Ein Kind, fala sobre sua amizade com Paul Wittgenstein, sobrinho de Ludwig.
Sua estada no sanatório de Steinhof, na ala de doentes pulmonares, assim
como a de Paul, na ala de psiquiatria, é verídica. A edição de bolso da
Suhrkamp diz com todas as letras que este romance continua sua autobiografia
onde esta havia sido interrompida, indo de 1967 a 1979. Nas palavras de Alfred
Pfabigan sobre a presença imediata da realidade social: “[...] die bis ins
Spätwerk reichende unmittlebare Präsenz des Autors im Text, das Netz von
Anspielungen auf eigene Erlebnisse und auf die reale oder phantasierte
Familiengeschichte [...].” Mas isto não é suficiente para nivelarmos autor e
personagens: “Strauch ist Bernhard, ist nicht Reger; Reger ist Bernhard, ist
nicht Murau; Murau ist Bernhard und so fort.”
100
Os livros o se passam mais em Weng, como Frost, ou numa mina de
cal, como em Das Kalkwerk, nem em Castelos afastados como em Verstörung.
O romance Der Untergeher fala sobretudo de Salzburg, Alte Meister. Eine
Komödie se passa numa sala do Kunsthistorisches Museum, de Viena,
Holzfällen. Eine Erregung está cravado em Viena, e mesmo Auslöschung. Ein
99
A. Müller, “Prefácio”, em André Müller im Gespräch mit Thomas Bernhard, p. 5-6.
100
A. Pfabigan, Thomas Bernhard. Ein österreichisches Weltexperiment, p. 19.
70
Zerfall tem como palco o castelo Wolfsegg, que poderia ser visto de uma das
casas que Bernhard compra após seu sucesso como escritor.
Estamos entrando numa fase que, para Andreas Herzog, tem como título:
“Das theatralische Sprechen auf der österreichischen Bühne.”
101
O título é
sugestivo, pois traz a metáfora teatral para o primeiro plano, assim como a
Áustria como palco onde este teatro se realiza, um teatro pautado pela palavra.
Neste artigo, Herzog mostra como, a partir da segunda metade dos anos 70,
num crescendo em intensidade e virtuosidade, Bernhard procura entrar em rota
de colisão calculada com a opinião blica. Seus interesses estão cada vez
mais voltados para a arena política, mas sempre por meio de seu projeto
estético, que passa a abranger toda e qualquer aparição pública do autor, que
nas entrevistas se coloca como seus personagens:
[...] mit dem Namen Bernhard ein Diskurs benannt wird, der an der Schnittlinie von
Literatur und Politik gelagert ist, und daß kaum ein Autor über das Ghetto des
Innerliterarischen hinaus in Österreich so nachhaltig wahrnehmbar und wirksam
geworden ist, daß sich etwa Peter Handke genötigt sah, von einer Ära Bernhard
sprechen zu wollen und nicht von einer Ära Waldheim, die nach den Unruhen eben
des Jahres 1986 im Jahre 1992 sanft zu Ende ging.
102
Esta é a conclusão a que chega este autor a partir da obra de Bernhard
nos anos 80. A afirmação de Handke, ainda mais, não é pouca coisa: o
escândalo Waldheim é daqueles poucos casos que contam com a unanimidade
de gregos e troianos; não importa como se julgue o episódio pou contra
Waldheim todos concordam que representa um momento de virada na
Áustria, tanto no âmbito político como no sócio-cultural, no plano nacional como
no internacional.
Conhecido como Waldheim-Affäre, ou Escândalo Waldheim, refere-se às
revelações sobre o passado nazista do candidado à presidência austríaca,
publicadas pela revista Profil. A investigação foi instigada, ao que tudo indica,
pelo então Kanzler Fred Sinowatz em conversa reservada. Sinowatz envolveu-
se tanto com o caso que, com a vitória na corrida presidencial de Waldheim,
101
A. Herzog, “Vom Studenten der Beobachtung zum Meister der Theaterkunst. Bernhard I,
Bernhard II, Bernahrd III”, em Bernhard-Tage Ohlsdorf, p.112.
102
W. Schmidt-Dengler, Vorlesung zur österreichischen Literatur 1990-2000, cópia
mimeografada, p. 2.
71
acabou renunciando, indicando como seu sucessor o então ministro das
finanças Franz Vranitzky. Investigação feita, reportagem publicada, escândalo
armado. Mesmo após comprovadas sua participação na cavalaria das Waffen-
SS e, em decorrência disso, das suas mentiras, Waldheim vence as eleições.
Ou seja, isto ocorre a despeito de seu passado, pois suas negativas
verdadeiras reconstruções por retalhos bem escolhidos de uma memória
“seletiva” foram menos eloqüentes e convincentes do que as três estratégias
que adotou como defesa. Em primeiro lugar, teria apenas cumprido com suas
obrigações. Em segundo, colocou-se como vítima de um complô orquestrado,
em grande medida, pela comunidade judaica internacional. Por fim, empostou a
voz como patriota empedernido. E vence as eleições tendo ainda, contra si, a
opinião pública internacional, tendo sido listado na Watchlist como criminoso de
guerra, e assim proibido de entrar nos EUA, mesmo sendo o presidente eleito
da Áustria, só recebendo boa acolhida nos países árabes.
103
Além disso, a efervescência internacional nesta década, com a crise
econômica e a falência dos estados que levou ao início das guinadas
neoliberais na Inglaterra de Tatcher e nos EUA de Reagan, além das crises no
bloco soviético, com o caso do sindicato Solidariedade, na Polônia no início dos
anos 80, trazem uma instabilidade que aumenta a pressão interna na Áustria,
que no final da década estaàs voltas com a possibilidade de fazer parte da
União Européia, o que muitos autores consideram uma mudança radical na
política externa austríaca.
104
Deve-se lembrar que dois aspectos legais que
devem ser contornados e o foram. Primeiro, a Áustria se comprometera a ser
militarmente neutra, como a Suíça, e a unificação européia poderia ir contra
isso. Além disso, a Áustria não poderia se unir à Alemanha, o que ficaria
caracterizado com este passo.
Sobre Holzfällen. Eine Erregung e Auslöschung. Ein Zerfall.
103
Cf. M. Gehler, Die Affäre Waldheim: Eine Fallstudie zum Umgang mit der NS-
Vergangenheit in den späten achtziger Jahren”, em M. Gehler e R. Steininger (orgs.),
Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 2, p. 355-414. Cf. também o excelente (e famoso) ensaio de
J. Haslinger, Politik der Gefühle. Ein Essay über Osterreich, Frankfurt am Main: Fischer, 2001
(versão ampliada do texto original de 1987) e o livro de R. Menasse Das war Österreich.
104
Cf. M. Gehler, “17 Juli 1989: Der EG-Beitrittsantrag. Österreich und die europäische
Integration 1945-1995”, op. cit., p. 561 ss.
72
Tendo este quadro em vista, Bernhard segue, de modo conseqüente,
duas linhas que venho perseguindo ao longo deste capítulo, que se reforçam
mutuamente. Por um lado, uma provocação conseguida pela entrada quase
direta da matéria social para dentro do romance, por meio da palavra mediada:
impureza na autonomia da obra de arte que está relacionada com a forma
social que engendra a modernidade.
105
Esta linha vai culminar em Holzfällen,
que não por acaso tem como subtítulo eine Erregung, num nível de provocação
que se eleva ao nível formal, como se verá, e que chegou a ser retirado das
prateleiras antes de ser posto a venda, por obra de um processo na justiça
movido por Gerhard Lampersberg. Por outro lado, a altercação com a história
recente austríaca, que deve ser relida a contrapelo, buscando justamente na
linguagem o outro discurso que foi abafado, reprimido e esquecido: esta linha
leva até a obra considerada seu Opus Magnum, Auslöschung. Um escândalo
como o Waldheim faz com que as duas perspectivas ganhem asas, entre
outras coisas porque o momento histórico é propício, diferentemente das
condições das duas décadas anteriores: agora Bernhard pode obter o eco que
considera fundamental e, nas palavras de Schmidt-Dengler, fazer os austríacos
falarem.
106
Auslöschung é um livro extensivo e intensivo ao mesmo tempo: tudo corre
no sentido do enterro, em Wolfsegg, relatado pelo narrador sob o impacto da
morte dos familiares. Mas é extensivo pois, por meio sobretudo de um ponto de
vista alegórico, inclui todos os grupos sociais, dos aristocratas e burgueses aos
serviçais e proletários, passando pelos artistas e mesmo pelo olhar estrangeiro,
da Itália, contraponto de Wolfsegg, alegoria da Áustria. Também no tempo é
extensivo, e a reescrita desta história como extinção nos leva do barroco ao
Biedermeier, passando pelo Império Austro-Húngaro, pela Primeira República,
pelo Austrofascismo, pelo Nazismo e, sobretudo, pela Segunda República,
terminando com uma exortação do futuro, Das Neue, por Gambetti (e Murau,
claro). A história familiar é estigmatizada pelo signo da destruição e adaptação
oportunista que caracterizam a modernização capitalista em chave austríaca.
Este romance marca as continuidades acachapantes da história do país.
105
Cf. G. Hens, “Jaja, sie schreiben…”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler (orgs.),
Wissenschaft als Finsternis?, p. 100.
106
Cf. W. Schmidt-Dengler, Vorlesung zur österreichischen Literatur 1990-2000, p. 7: “Kurzum,
es gelang Bernhard, die Österreicher redend zu machen.”
73
Holzfällen, por seu turno, está centrado numa situação específica, num
determinado grupo de pessoas pertencentes ao meio artístico vienense, e
Bernhard se esforça por escrever um romance que consiga andar sobre dois
extremos, sob tensão máxima. Por um lado, o próprio Bernhard quer que os
retratados se vejam por completo no livro, e se sintam atingidos, tal qual um
romance-de-chave (Schlüsselroman), onde se pode descobrir as pessoas e
eventos reais retratados por detrás dos personagens. Por outro lado, e ao
mesmo tempo, um livro onde a esteticização chega a um tal grau de
virtuosismo, que os personagens – em primeiro lugar o narrador – têm o
estatuto de figuras do discurso por excelência. Veremos que o narrador nem
nome tem. Este mecanismo também se em outros pares: os anos 50 e 80.
O narrador, digamos, junta as pontas destes trinta anos passados, deixando
tudo que está entre este período no escuro. Interessa a agudeza que leve,
porventura, às barras dos tribunais, de onde consegue romper de vez as
amarras do âmbito fechado da literatura, tornando-se cada vez mais vivo.
Provocação e irritação que, no limite, constroem um novo gênero, que deve
movimentar-se num crescendo até a explosão, que é a corrida desenfreada por
Viena. Auslöschung, com sua perspectiva alegórica, revela uma ambição maior
e julga a própria história e todos os austríacos, sem se excluir.
Antes de serem antagônicos, os romances se completam. Auslöschung
com certeza angariou maior projeção por conta da repercussão do caso
Holzfällen, e este livro, no caso, escrito ao que tudo indica depois de
Auslöschung (escrito quase todo em 1982, mas publicado somente em 1986),
tem em mente aquele texto, concentrando-se em algo mais específico e,
talvez, mais ousado formalmente. Trata-se da realização de um projeto estético
conseqüente, que tem nos dois romances linhas de fuga que considero chave
para a obra completa, e que vão se cruzar em Heldenplatz, sua última peça, de
1988, objeto das considerações finais deste trabalho.
74
CATULO II
Estudo sobre Holzfällen. Eine Erregung
1. Ponto de vista e sujeito da história em Holzfällen
Man spricht nicht mehr, man wird
gesprochen.
(Alfred Döblin, sobre Berlin
Alexanderplatz)
Os desdobramentos do “eu” e do tempo no romance
O estudo da composição de Holzfällen confere a esta narrativa um
estatuto dos mais significativos na prosa contemporânea em língua alemã: este
será o objetivo das duas primeiras seções deste capítulo. Em seguida, uma
outra qualidade intrínseca a este texto, a saber, a “formalização estética da
provocação”, será então objeto de considerações. Neste sentido, parte da
crítica bernhardiana, que tende a tomar este texto apenas como um “romance
de chave” (relacionando cada uma das personagens a uma pessoa da vida
“real”) acaba por se mostrar redutora, pois somente por meio da dinâmica entre
as duas perspectivas referidas acima é possível aproximar-se do “teor de
verdade” desta obra.
O texto é narrado, em sua maior parte, por um narrador-protagonista,
segundo a tipologia de Norman Friedman
107
, narrador este que se encontra no
mesmo nível do leitor. Em alguns momentos a voz é entregue a outros
personagens de forma direta, remetendo às palavras e entonação exatas
usadas pelo mesmo, sempre para secundar e reiterar a avaliação do narrador,
não-confiável. Em muitos casos também recorre ao discurso indireto para
instaurar a voz dos outros. Ele narra principalmente no tempo pretérito (o uso
107
Sobre a teoria do foco narrativo, inclusive Norman Friedman, cf. L. Chiappini, O foco
narrativo. Para uma crítica das teorias sobre o foco narrativo sob enfoque estruturalista, devido
ao seu caráter a-histórico, cf. T. Eagleton, Teoria da Literatura e F. Jameson, Marxism and
Form (onde numa passagem, lê-se: “The fact is that the implied narrator described by Booth is
possible only in a situation of relative class homogeneity, and indeed reflects a basic community
of values shared by a fairly restricted class of readers; […]”, p. 357).
75
do Perfekt, Präteritum e Plusquamperfekt, alternadamente, caracterizam a
maior parte da narrativa) comentando um “jantar artístico” que acabara de
acontecer e do qual tomara parte. Quando se refere ao tempo da narrativa,
pode usar o presente. É comum, no entanto, que, na mesma frase, ambos os
tempos apareçam, tornando difusas as fronteiras entre presente e passado.
Was also suche ich in der Genzgasse? fragte ich mich, und ich sagte mir, dass
ich einer augenblicklichen Sentimentalität nachgegeben habe auf dem Graben.”
(HOLZ, 140) O primeiro verbo, suche”, no presente, refere-se tanto ao
momento da narrativa, durante a festa, como ao momento em que recebeu o
convite, e mesmo o da narração, em sua casa. fragtee sagte”, no
passado, referem-se ao momento da escrita da narração. Num outro caso: “Ich
habe sie gerettet und sie haben mich gerettet damals, dachte ich [...].” (HOLZ,
170) Esta estrutura é a mais usual. A primeira parte da frase situa-se no
passado em relação ao tempo do jantar, a segunda (“dachte ich”) indica o
presente do jantar, mas passado para o momento da escrita do texto; ou seja,
a primeira é passado para a narrativa, a segunda é presente da narrativa e
passado da narração. Com esta estrutura, o narrador instaura o diálogo
consigo mesmo. Este é o diálogo entre o presente e o futuro da narrativa, pois
somos apresentados à narrativa em seu tempo presente e recebemos as
referências de um narrador no futuro, do tempo da escrita, que rememora no
calor dos acontecimentos, como deve acontecer numa Erregung. Não se deve
76
dias como a décadas atrás. A atualização do passado que molda o presente e
o significa ganha contornos formais aqui.
O narrador ainda se utiliza do pronome “du” para dialogar consigo mesmo,
instaurando uma conversa que, segundo o próprio narrador, é a única que
trava no jantar artístico. Por exemplo: “Hättest du nicht im entscheidenden
Moment den Rücken gekehrt, wärst du von ihnen vernichtet gewesen, dachte
ich.” (HOLZ, 20) Este procedimento vem acompanhado sempre do Konjunktiv
II, numa forma subjuntiva que avalia suas ações passadas, ora conduzindo
para sua salvação, ora para sua auto-repreensão.
O narrador também adota a primeira pessoa do plural, s (“wir”): Wir
verdanken ihnen alles und wir verzeihen ihnen nie, dass wir ihnen alles
verdanken, dachte ich.” (HOLZ, 163) Ainda digno de nota é o uso do presente
nestas formulações generalizantes que, a rigor, procuram desprender-se da
história e assumir o estatuto de verdades universais, como se no trecho
citado. O tempo passado liga-se normalmente à primeira pessoa do singular,
ich”, embora possa também aparecer o tempo presente da narração.
Quando entrega a voz aos demais personagens, pode fazê-lo de forma
direta, porém isto nunca será identificado por um travessão ou parágrafo, antes
no corpo de sua própria fala, que assim contamina a voz do outro mesmo no
caso direto. Por vezes, com efeitos mimetizantes e irônicos, quebra a voz direta
do outro por interpolações suas. Dentro do molde que cria, mesmo a voz direta
vem a corroborar – aparentemente de fora – as asserções do narrador:
[...] bis ich Ekdal sagte, worauf sie mehrere Male in Hysterie ausgebrochen das
Wort Ekdal in den Wirtshaussaal hineinschrie, so, dass es peinlich gewesen war,
immer wider schrie sie Ekdal, Ekdal, Ekdal, richtig, Ekdal, bis der Auersberger
sagte, sie solle ruhig sein.(HOLZ, 116)
Assim, a Auersberger, que durante todo o romance procura fingir-se de
aristocrata, deixa-se ver de um modo inaudito no romance, tanto antes como
depois. A sua gritaria histérica ainda ressoa a um grasnar, digno de um pato, o
que vem bem a calhar sendo Ekdal um personagem de O pato selvagem, de
Ibsen.
77
A participação do narrador na voz do outro fica mais evidente quando do
uso do discurso indireto, outro de seus recursos. Não raro se faz valer do
Konjunktiv I, como quando passa a voz à Auersberger no trecho acima. Neste
caso a voz do narrador aproxima-se da voz direta do outro, mas a forma verbal
distancia o narrador desta voz, isentando-o de responsabilidade pelo que está
sendo dito, como a respeito dos sentimentos do companheiro de Joana: “Er
habe sie wirklich geliebt.” (HOLZ, 124)
Quanto ao uso do discurso indireto, não é fácil perceber quando este se
torna discurso indireto livre. No momento em que o ator do Burg explode contra
uma pergunta impertinente de Jeannie Billroth, o narrador se aproxima muito
deste personagem, muitas vezes fundindo-se a ele, como em:
[...] indem er nämlich sagte, dass es mehr oder weniger eine Unerhörtheit sei, ihm
eine so dumme Frage zu stellen, denn ihre Frage ist ganz einfach nichts als dumm
und dass sie, die Jeannie Billroth, doch nicht erwarten könne, auf ihre dumme
Frage eine intelligente Antwort zu bekommen, auf ihre unverschämte Frage, wie
der Burgschauspieler sagte, ich glaube, Sie haben sich doch im Ton vergriffen,
sagte der Burgschauspieler nur und war gerade im Begriff [...]. (HOLZ, 293)
O narrador toma trechos da fala do ator e monta gramaticalmente a frase,
enfatizando e repetindo quantas vezes desejar; as vozes se imiscuem, e não
podemos nos pautar pela escrita em itálico para identificar a voz. O narrador
recolhe pedaços, fragmentos discursivos, e interpreta o que está acontecendo,
cedendo voz e focalização às personagens, criando pontos de vista internos e
preservando o lugar do leitor, por meio de uma polifonia que nunca deixa sua
própria dicção de fora. Neste espírito: [...] Wörter wie niederträchtig, gemein,
unbotmässig, verlogen, infam, grössenwahnsinnig, dumm prasselten plötzlich
auf die Genzgassengesellschaft [...].” (HOLZ, 295) Aqui a voz do narrador e do
ator do Burg se misturam.
Apesar desta ampla gama de recursos expressivos, o narrador mesmo
quase não conversa com os outros. Os poucos momentos em que isto ocorre
são configurados em visão retrospectiva, que podem remontar a alguns
minutos, horas, dias ou anos atrás.
78
O uso do duneste romance é sintomático do vaivém deste narrador. Ele
se destaca de si mesmo e se avalia de fora, confirmando seu estatuto de duplo
de si mesmo. Isto, porém, não causa estranheza, pois, assim como o
procedimento do plural, o uso do du é uma forma coloquial, do dia-a-dia,
podendo passar despercebida. Os recursos deste narrador o inteligentes ao
esconder-se em formas batidas, assimiladas, que o causam estranheza.
Mas o jogo ininterrupto entre diferentes posições que o narrador assume é
ilustrativo e representativo de sua cisão e da ausência de um centro, de uma
identidade, de um sujeito que narra. Sem ter um nome, o narrador é um “eu”,
“você”, “nós”, “ele”; abstração no mais alto grau. Esta abstração é própria do
capitalismo e a troca de posições é do âmbito da mercadoria, que assume
qualquer forma, pois seu significado, o dinheiro, é tudo e nada: pura abstração.
Assim, antes de resumir o romance pura e simplesmente à fórmula fácil da
“chave”, ele ainda aspira à expressão da forma social subjacente àquele
contexto.
O uso da primeira pessoa do plural merece consideração especial. Este
procedimento procura elevar um episódio subjetivo e pontual para um nível
geral, aspirando ao universal, à totalidade. Seu efeito esperado faria o leitor
acompanhar seu raciocínio e, sem se dar conta da abrupta mudança de planos,
aceitar como uma verdade o que está sendo proposto. No entanto, no romance
em questão, esta passagem assume um estatuto paródico e irônico da técnica
indutiva científica que, de poucos elementos nos quais os pressupostos
estão embutidos, pretende chegar ao conceito abstrato.
A ironia e o efeito inverso de desconfiança aparecem primeiro pelo
exagero e rapidez com que o narrador passa, sem etapas intermediárias e sem
testar outras hipóteses, de uma vivência única para a generalização abstrata,
universalizante. Este efeito será reforçado e alimentado pelo número enorme
de vezes em que surge pelo romance. Num outro exemplo, para acompanhar o
uso da técnica por inteiro:
Indem ich so viele Jahre nichts mehr von ihr gehört und gesehen hatte, war sie von
mir ganz einfach vergessen worden, dachte ich auf dem Ohrensessel. Wir sind mit
Menschen so innig zusammen, dass wir glauben, es ist eine Bindung für das
79
ganze Leben, und verlieren sie aufeinmal über Nacht aus den Augen und aus dem
Gedächnis, das ist die Wahrheit, dachte ich auf dem Ohrensessel. (HOLZ, 73)
Pelo acúmulo perdem a força de conjunto, pois não um encaminhar-se
para uma dada tese, como seria de se esperar, que possa funcionar como uma
espécie de síntese, mas se remete a múltiplas pseudoteses. Quando se sabe
que a objetividade e o rigor acadêmicos exigem a forma plural para a pesquisa
individual, como se a própria ciência, do alto de sua legitimidade, estivesse
falando pelas nossas palavras, qual um fantasma etéreo que carreia verdades,
a ironia da situação já não é tão evidente quanto no recurso de Bernhard.
De que objetividade se trata, então? Daquela que, calcada nos baluartes
da dita ciência, se arroga o discurso da verdade, negando todos os outros sem
precisar discuti-los. Um simples nós
108
, aparentemente neutro, e está posto o
véu e a posição privilegiada de onde se quer falar. O tema, a partir daí, não é
nada senão um apêndice do estabelecimento daquela posição; uma discussão
formal em primeiro plano. O resto se esvanece ante o ponto de vista, que
configura o campo de forças onde se a luta mais ferrenha, o verdadeiro
conteúdo: a reprodução de uma dada visão da ciência, do mundo, da literatura.
O estudo da forma é obliterado pelo hermético tema expresso, do que se fala,
mas que, nesta perspectiva, funciona como uma armadilha, deslocando para o
lugar errado o debate, como numa discussão qualquer a discorrer sobre a
liberdade no mundo pós-moderno hiper-realista; este nível é o do engano e
engodo. Deste modo a cultura e a crítica produzem, reproduzem, reforçam e
matizam, num vaivém dialético incessante, a realidade de que tratam. Aqui
fica claro que não se pode tratar forma e conteúdo como categorias externas
umas às outras: o que era forma, o uso do wir”, torna-se o conteúdo mais
decisivo, embora sob uma densa névoa. O que era conteúdo expresso, por seu
turno, passa a forma de encobrimento.
Este recurso discursivo que parodia e ironiza formalmente está
objetivamente inscrito na obra, porém não se pode afirmar que seja consciente
para o narrador, que está envolvido neste mundo. Se por vezes este narrador
108
Ou a forma ainda mais bem acabada da ideologia, a indeterminação do sujeito, que no
fundo apenas o escamoteia ou, ainda, expressa que o sujeito está noutro lugar, para além dos
homens, no capitalismo.
80
consegue ver além deste cenário, isto não se configura como regra, e deve-se
manter uma boa distância dele que, a todo o momento, procura envolver os
personagens e o leitor. Este narrador alterna entre ich”, du”, wir”, er
(quando usa do Konjunktiv I, o tempo do verbo refere-se ao pronome ele, ela),
entre o passado e o presente, entre o indicativo, subjuntivo e interrogativo,
moldando a voz dos outros, num processo de trocas, espelhamentos,
duplicações e ambigüidades que chega ao limite neste romance em que tudo
se esgarça até perder a forma, ganhando assim contornos próprios.
O uso do itálico cede a voz aos interlocutores, com a intenção de
escarnecer e ridicularizar a classe artística de Viena. “Hohn, Spott und
Verachtung für die prätentiösen Selbstdarsteller der Wiener Kulturschickeria
liegen allein in dieser simplen graphemischen Auszeichnung [...].”
109
Mas vai
além disso: funciona como um indicativo para o leitor, que não deve perder
esses trechos da intrincada rede que compõe o texto, em termos de tempo,
espaço, tema e forma. O itálico faz do leitor cúmplice do narrador, o que nem
sempre é agradável, como um sinal de que, agora, a temperatura vai
esquentar: o leitor saliva ante este recurso gráfico, tal um cão de Pavlov, numa
das técnicas utilizadas pelo autor para conduzir a recepção da obra.
Por tudo o que se viu, fica patente que o narrador não é inteiramente
confiável, usando de artifícios que vão da cessão da voz (emoldurada pela
dele), da avaliação rápida e mordaz, do controle da montagem (de modo que
traz novos dados somente quando e se quiser) e da escolha entre materiais.
Mas esta perspectiva manipulatória pode ser rastreada desde a epígrafe da
obra, que nos propõe um caminho de leitura que, ao final, se mostrará
inteiramente falso. se lê: “Da ich nun einmal nicht imstande war, die
Menschen vernünftger zu machen, war ich lieber fern von ihnen glücklich.” Esta
frase, atribuída a Voltaire, encontra-se na mesma página em que o livro se
inicia. Logo abaixo surge o narrador. A proximidade nos faz atribuí-la a ele. E
nada mais diferente do que se lerá a seguir: este narrador depende das
pessoas deste jantar para construir sua identidade. Ele não está ali por acaso
ou por sentimentalismo, como diz a certa altura, mas por necessidade. O “eu”
109
A. Honold, “Bernhards Dämonen, em J. Hoell et al. (orgs.), Thomas Bernhard – Eine
Einschärfung, p. 24.
81
da epígrafe tem uma identidade precisa, afasta-se dos homens para ser feliz,
como num idílio. Esta perspectiva não corresponde à deste narrador. Quando
muito, o ator do Burg, com seu romantismo ultrapassado que louva a entrega à
natureza; porém este o faz como idealização, não como ação. Esta
afirmação é do gênero que o narrador se esforça por fazer crível ao leitor,
adotando-a como ponto de partida para sua leitura.
A narração se inicia in medias res (no caso, durante o jantar) e as
primeiras linhas e páginas já prenunciam muito do que será a narrativa:
Zwanzig Jahren habe ich von den Eheleuten Auersberger nichts mehr wissen
wollen und zwanzig Jahre habe ich die Eheleute Auersberger nicht mehr gesehen
und in diesen zwanzig Jahren hatten mir die Eheleute Auersberger allein bei
Nennung ihres Namens durch Dritte Übelkeit verursacht, dachte ich auf dem
Ohrensessel, und jetzt konfrontieren mich die Eheleute Auersberger mit ihren und
mit meinen Fünfzigerjahren. Zwanzig Jahre bin ich den Eheleuten Auersberger aus
dem Weg gegangen, zwanzig Jahre habe ich sie nicht ein einziges Mal getroffen
und ausgerechnet jetzt habe ich ihnen auf dem Graben begegnen müssen, dachte
ich [...]. (HOLZ, 7)
Há suspensão do tempo; não se sabe – nem se saberá – o que o
narrador fez ao longo deste período em que esteve ausente desta sociedade. A
escrita não é objetiva, denotativa, clara; antes labiríntica, entrecortada, cheia de
desvãos e vaivéns. O espaço é bem delimitado e claustrofóbico, esboçado
como se fosse uma prisão física e psicológica. O procedimento de se mover
constantemente no tempo, pela linguagem –, porém sem sair do lugar, é um
topos da prosa bernhardiana. Configura-se como um movimento formal que é
análogo, no capitalismo tardio, à necessidade de velocidade, produtividade,
competição, porém sem sentido, sem que se mudem os pressupostos e as
condições objetivas em que se vive.
Para Robert Kurz, esta paralisia formal encontra-se prevista em Marx. O
aumento da produtividade e do consumo torna-se um imperativo num modelo
cuja racionalidade é da ordem da valorização irracional do valor. Assim se
diminuem custos de produção, que levam os preços para baixo, provocando
aumento no consumo, na produção e no nível de emprego, num círculo vicioso
82
positivo enquanto se cresce. Mas quando o valor do trabalho humano
abstrato tende a zero haja vista a robotização das fábricas e informatização
das organizações , este círculo vicioso roda em sentido contrário. Pessoas
são demitidas, salários são achatados, governos se enxugam – todo este
quadro orientado segundo as famosas e danosas reengenharias de Michael
Hammer
110
. Donde surge a pergunta de Brecht, em A Santa Joana dos
Matadouros: e quem vai consumir?
111
A resposta sempre repisa o mesmo
discurso, posto que estrutural: devemos crescer mais, produzir mais, consumir
mais. Daí a velocidade colossal tecnicamente possível das mudanças nos
dias de hoje. Mas não se sai do impasse, pois a pergunta está errada,
constituindo um falso truísmo. Procurar respostas dentro do quadro do sistema
produtor de mercadorias significa continuar na mesma forma básica, que
abre espaço para paliativos, cada vez mais efêmeros.
112
O narrador rastreia os motivos que o levaram a aceitar o convite para o
jantar; depois, ainda, a razão de ter efetivamente comparecido. Sentado e
calado, tece considerações e avalia os convidados da reunião em sua
maioria artistas de Viena, com os quais travara amizade mas que abandonara
quase trinta anos. Esperam a chegada de um ator do Burgtheater,
renomado palco de Viena, que representa naquele momento, com enorme
110
M. Hammer e J. Champy, Reengineering the corporation: a manifesto for Business
Revolution, 1993. A reengenharia preconiza uma mudança brusca na organização, com o uso
da máxima tecnologia disponível e o estabelecimento de metas individuais e grupais para os
funcionários, que assumem as responsabilidades e devem ser, ao mesmo tempo, entre si,
competitivos e cooperativos. Demite-se muita gente e a pressão sobre os que ficam aumenta
exponencialmente. Não mais separação entre espaço da casa e do trabalho. Assim
justificam-se muitas demissões em massa e a enorme tensão organizacional dos dias de hoje.
Não é de se estranhar que este conceito tornou-se rapidamente estigmatizado pela resistência
dos funcionários, que não era ativa, política, mas sim da ordem do inexequível. Este funcionário
do século XXI parece assumir responsabilidades e tomar decisões, como um sujeito que
fizesse a história, mas na verdade serve ao capital, de forma mais acintosa e desgastante
embora com ares de autonomia – do que antes.
111
B. Brecht, A santa Joana dos Matadouros, p. 39: CRIDLE: [...] Engraxo as facas e mando
trazer umas tantas máquinas / Novas, que poupam muito salário. / É um novo sistema, da
máxima inteligência. / Suspenso em tela de arame, o suíno sobe / Ao andar mais alto onde
começa a ser abatido. / Com leve ajuda o animal se precipita das alturas / Sobre as facas.
Entendeu? O suíno corta-se / Por conta própria e transforma-se em salsicha. / Assim, caindo
de etapa em etapa, abandonado / Pela sua pele, que se transforma em couro / Separando-se
de seus pêlos que serão escovas / E deixando enfim os seus ossos – futura / Farinha – o suíno
impele a si mesmo / Rumo à lata de conserva. Entendeu? GRAHAM: Entendi. Porém, qual
será o destino das latas? Malditos tempos!”
112
Assim recupero um dos argumentos principais de R. Kurz, em O colapso da modernização,
absolutamente fundamental para o diagnóstico que adoto aqui sobre a crise atual do
capitalismo; um debate que está longe de ser equacionado, quanto mais resolvido, mas que
exige posição.
83
sucesso, a peça O pato selvagem, de Ibsen. A partir deste frágil e quebradiço
esquema narrativo emergem outros episódios, como a morte da amiga comum
Joana (ocorrida há poucos dias, tendo o enterro sido realizado na mesma tarde
do jantar), a relação e o papel do casal Auersberger e da escritora Jeannie
Billroth em seu desenvolvimento, seja pessoal ou artístico, e de sua fuga como
único recurso para se salvar. A posição física do narrador merece destaque:
sentado, sem movimento, num canto, isolado porém presente, cismando,
resmungando, dormindo.
Com a chegada do ator, sentam-se à mesa de jantar, onde a dinâmica
da reunião passa a ser o alvo da atenção e das digressões do narrador,
sempre entremeada por voltas, retomadas, revisões e aprofundamentos. Daí
passam à sala de música. Na primeira metade do texto está sentado na
Ohrensessel, no escuro, de onde vê mas não é visto.
O texto é narrado em monólogo interior, numa espiral que, nas páginas
finais, se esgarça e chega a flertar com o fluxo de consciência, menos
estruturado sintaticamente.
113
A narrativa vai e vem por lugares e tempos sem
seguir nenhuma regra ou encadeamento lógico rigoroso como seqüência
temporal, espacial, de evolução dos personagens ou de situações. Constitui-se,
antes, no vagar de cogitações e humores do narrador.
Os personagens e seus nomes: ausências e presenças
A questão dos nomes dos personagens também chama a atenção. O
narrador age de forma diferente em cada caso. O casal anfitrião, os
Auersberger, são assim chamados em todo o livro. O esperado e aclamado
ator do Burg é chamado por sua função, sempre de Burgschauspieler. Joana é
também nome artístico; seu nome no texto é Elfriede. A amiga de Joana, de
Kilb, será Gemischwarenhändlerin, e o companheiro dela será Lebensgefährt.
Contemplados com nome completo apenas as escritoras Jeannie Billroth e
Anna Schrecker. Assim não uma uniformidade na maneira de relacionar-se
com as personagens.
113
Faz-se indispensável frisar que, neste âmbito, não se deve procurar fronteiras precisas,
sendo relevante discutir o procedimento e seus efeitos. A escrita do romance é construída com
o maior rigor, porém sem nexos causais.
84
O narrador trata-se principalmente por “eu”, porém seus valores estão
sempre em dúvida, assim como seus interesses e suas ações. Assim,
configura-se um “eu” que não está nem pode ser formado, uma vez que o
constituem a sua cisão e o balanço arbitrário do contexto. Não sendo
explicitamente o simulacro de ninguém ou de nada no romance, perde-se e não
consegue nem mesmo uma máscara, de onde vem sua necessidade de se
constituir pelo texto, pela relação com os outros personagens e, também, com
os leitores, enredados em sua trama. Nesta linha de raciocínio não faz sentido
entender este texto apenas como “chave” e aplicar o nome de Bernhard a este
“eu”: aqui ele exerce a função de agente do discurso como, aliás, o próprio
autor Bernhard. Noutras palavras, o autor Bernhard perde-se neste “eu” mais
do que o explica. O “eu”, pronome, ocupa o lugar do nome, assim tornado
abstrato, como elemento interno do discurso. Não se trata de um nome que
procura se formar, mas um “eu”, o que reforça o argumento da autocriação pelo
discurso. Qualquer um pode assumir a posição de “eu”: uma abstração apenas
indicativa de um feixe de avaliações que mudam e se embaralham.
Para Jahraus: “In Bernhards Werk wird auf der einen Seite deswegen so
intensiv und extensiv, in jedem Fall aber immer textkonstitutiv kommuniziert
(erzählt oder gesprochen), weil auf der anderen Seite gerade kein Subjekt, kein
Bewusstsein (als Erzähler oder als Figur) eindeutig greifbar ist
.
114
Esta é
também a posição do valor de troca da mercadoria no capitalismo, e o papel de
equivalente do dinheiro, pura abstração que serve, entre outras coisas, para
comparar matérias qualitativamente diferentes, assumindo qualquer corpo.
Vale lembrar, pela afinidade formal, o comentário de Benjamin sobre o
poema em prosa de Baudelaire “As multidões”: Wenn Baudelaire von einem
‘religiösen Rauschzustand der Grossstädte’ spricht, so dürfte dessen
ungenannt gebliebenes Subjekt die Ware sein.”
115
. Em Benjamin, além do
conceito de empatia com a alma da mercadoria por parte da burguesia, a
mercadoria torna-se sujeito, ganhando uma alma, humanizando-se. Assim
como o homem torna-se coisa, mercadoria, do âmbito do inorgânico, a
mercadoria recebe uma casa e se humaniza. Mas se no texto de Baudelaire
114
O. Jahrraus, “Die Geburt der Kommunikation”, em Thomas Bernhard, p. 32.
115
W. Benjamin, Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus, em GS I-2,
p. 559.
85
narra-se em terceira pessoa, em Holzfällen um “euque narra, buscando
salvação em sua mercadorização, na sua criação pelo olhar e valoração feita
pelos outros; o esvaziamento dos seus últimos trinta anos é uma ausência que
se faz muito presente, pois ele se cala completamente sobre este período
londrino, contraponto vazio e inserido na narrativa nesta qualidade.
Na segunda parte da narrativa aqui seccionada pela posição do
narrador, pois o texto apresenta apenas um grande bloco, inclusive sem quebra
de parágrafo –, quando chega o ator do Burg, a perspectiva muda. O espaço
se amplia para a mesa de jantar, e a intromissão dos outros personagens
cresce, embora sempre permeados pela voz do narrador, que não é isento,
controlando quem, quando e como se fala. Na primeira parte, o narrador
esconde-se no escuro, junto à porta de entrada, e observa sem ser observado,
de esguelha. Seu tema é a falta de contornos daquele ambiente esfumaçado,
qual uma névoa. Na segunda metade, encontra-se na mesa de jantar ou na
sala de música, entre os outros. O ator do Burg, especialmente, recebe a voz
em vários momentos, mas a atenção do narrador está voltada para Jeannie
Billroth, sentada à sua frente, com quem não troca uma única palavra durante
toda noite, mas com quem luta, disputa, se contrapõe, pelos olhares. Quando
todos ouviam o ator do Burg: “[...] nur die Jeannnie nicht und ich nicht, die wir
uns gegenseitig nicht mehr aus den Augen gelassen haben. Die Virginia Woolf
von Wien, die letztenendes doch nur die Frau ihres Ernstl und also die
Chemikerfrau geblieben ist.” (HOLZ, 237)
De modo que, por vezes, acompanhamos a voz do ator do Burg, mas
nossa atenção está voltada ao ausente, para perscrutar como Jeannie reagirá
a esta fala, e como o narrador vai avaliar a intromissão de Jeannie, num jogo
de espelhos e insinuações que não se apreende numa única leitura. Os mais
leves detalhes corporais ganham dimensão de primeira grandeza, tendo no
olhar o sentido mais aguçado. Também na fala, o destaque fica por conta da
entonação, da ênfase, e menos no conteúdo expresso. Sendo assim, pelo
ponto de vista, o leitor é levado a ater-se ao não-dito, às frestas, às ausências:
Joana morreu, o narrador não tem nome, não se sabe o que ocorreu em
Londres, não diálogos com o narrador. Paradoxalmente, uma escrita prolixa
e exagerada exige uma leitura pelas ausências, pelo que ela cala.
86
Ao final do jantar, o ator do Burg explode contra uma pergunta indecente
feita por Jeannie, o que recebe a atenção estupefata e de concordância do
narrador. De certa forma ouve-se a voz do narrador quando da arremetida
contra Jeannie. Como o consegue fazê-lo diretamente, usa este momento
para, controlando a montagem, expor seu ponto de vista. Logo depois, porém,
tudo volta ao padrão anterior. O narrador praticamente não interage com os
outros, embora sua presença e seu comportamento não passem em vão.
Quanto mais ausente, mais presente. Após se despedir, carinhosamente, da
anfitriã com um beijo na testa, o que contraria seus impulsos e pensamentos
mais íntimos e entranhados, o narrador desabala pelas ruas de Viena, em
direção ao centro da cidade, contrário à direção de sua casa, para onde diz que
gostaria de se dirigir: assim se conclui uma Erregung, num movimento de
abertura, de inconclusão, que exige pela forma a participação ativa do leitor.
A respeito do sujeito da história
As ambigüidades e paradoxos estão sempre despontando neste texto. O
narrador ama e odeia, assume formas de ich”, du”, wir”, er”, está ausente
em presença, entre dormindo e acordado. Em seu percurso abarca as outras
vozes, o leitor, e parte para o absoluto, em chave formalmente irônica.
Não como fugir destes encampamentos do outro e das generalizações
que irrompem quase a cada página e que, esteja expresso ou não, culminam
na proposição Das ist die Wahrheit”. Esta expressão aparece explicitamente
em vários momentos, como ápice deste movimento, mas não deve estar
sempre presente: quanto menos se afirma ser a verdade, mais poder de
convencimento e alcance ganha a assertiva. O efeito da aparência de verdade
se completa quando a presença se na ausência, quando se torna
imanente ao discurso; por este caminho, o discurso torna-se a encarnação
daquela forma, assim assumida de antemão e dada como inquestionável e
indevassável. Assim se constitui a base sobre a qual são formuladas as
perguntas erradas, escondendo na forma o que está por trás, o debate
verdadeiro.
87
No caso de Holzfällen, a pergunta errada, reiteradamente formulada pelo
narrador, e eixo do romance, é: “por quê vim à festa?” O narrador responderá
que sentiu um momento de sentimentalismo quando andava pelo Graben,
comovido pela morte de Joana. Porém reconhece não ter sido tocado ao
receber a notícia, a ponto de inquirir de forma grosseira a amiga de Joana
sobre os pormenores do suicídio. Em outro momento, acusa-se de uma
suposta fraqueza de caráter. Mais tarde culpa ter escolhido justamente o
Graben como local de passeio. Páginas depois, justifica seu passeio pela
necessidade de comprar uma gravata. Nenhuma das alternativas se mantém,
no entanto. Se o próprio narrador reconhece como obrigatório e necessário o
encontro com os Auersberger no Graben, não há acaso aqui. O narrador se
insinua a este encontro, ele se faz uma vítima consciente, freqüentando os
locais onde teria, necessariamente, de encontrá-los. A altercação e atualização
deste passado como ferida ainda viva é necessária, não mera contingência, da
mesma forma que a tentativa de desviar a atenção dos leitores para a pergunta
errada, também exigida pela forma, que não se deixa apanhar com facilidade.
Uma pergunta que se deveria fazer seria “quem e o quê sou (somos) eu e
nós?” A resposta a esta questão passa por Viena e pelo seu outro (no caso,
Londres), pela concepção de arte e de artista, pelo funcionamento do mercado
literário, pela reconstrução de uma identidade afeita aos interesses de uma
espécie de “política cultural” austríaca, que desempenhou um papel decisivo no
processo geral de esquecimento e encobrimento que, nos anos 80, entra na
linha de tiro de autores como Bernhard, Josef Haslinger, Elfriede Jelinek,
Michael Scharang, Robert Menasse, entre tantos outros, e ganha dimensão
política com os escândalos que abalam a segunda república. Num plano mais
geral, esta discussão não fica alheia ao mundo das mercadorias, do
alinhamento do sistema literário burguês à estrutura geral da sociedade e de
sujeito, que antes de ser sujeito (ativo) da história, está sujeito (passivo) às
injunções da forma social.
Daí se depreende outra pergunta, estrutural para a concepção de
literatura e de sociedade: “quem é o sujeito da história?” Eberhard Lämmert,
em artigo fundamental, discute esta questão no âmbito da historiografia e da
88
literatura sob fundo histórico.
116
Em primeiro lugar, o crítico nota, apoiando-se
em Huizinga, que as dificuldades crescentes de exposição da história pelas
narrativas o ocorrem por conta de mudanças nos modos de representação,
mas sim numa mudança na determinação do processo histórico:
Os autores de romance reagiram com uma ampla dissolução do fluxo narrativo em
prol de uma mudança forçada de estilo e perspectiva, mas também com uma
multiplicação do espectro entre experiência passada e presente: discurso indireto
livre e monólogo interior tornam-se os instrumentos de tal imbricação de diferentes
níveis de experiência.
117
Ponto por ponto, este rápido elenco de recursos expressivos encontra-se
na obra de Bernhard, da dissolução do fluxo narrativo à fratura do tempo que,
fragmentado, dirige-se para um mesmo ponto, constituindo uma realidade
embaçada e confusa, historicamente determinada. A língua é o refúgio e a
salvação desta história encoberta, mas ela deve ser também libertada de uma
função meramente instrumental.
Dessa perspectiva, quem faz história em Bernhard? Noutras palavras,
quem é o sujeito? Como se viu, das Laboré sujeito na autobiografia. Em
Holzfällen, por sua vez, também os móveis falam; assim como em Das Kapital
de Marx as mesas dançam, e no Brecht de Die Kleinbürgerhochzeit os veis
ao se quebrarem, conferem ritmo e tensão dramática à peça
118
(com a
diferença de que os móveis em Holzfällen são aristocráticos, e em Brecht são
pequeno-burgueses). em Auslöschung, como se verá, o ponto de vista das
mesas e dos móveis poderia contar uma outra história, abafada e destruída,
dos vencidos: estes mobiliários só estão de pé porque mudos.
A cidade de Berlim fala no famoso romance de Döblin assim como a
cidade de Viena em Holzllen que, por seu turno, assume feições
fantasmagóricas e infernais, manipulando as pessoas, que não sabem para
116
Cf. E. Lämmert, “‘História é um esboço’: a nova autenticidade narrativa na historiografia e no
romance”, em Estudos Avançados nº 23.
117
Op. cit., p. 292.
118
Nesta peça, o próprio noivo fabrica os móveis por falta de dinheiro; estes móveis, toscos,
malfeitos e ruins, não suportam o uso e a situação e quebram, como todas as relações na
peça.
89
onde vão. Ao final, é também a cidade quem decide que o narrador corra para
o centro e não para sua casa. O “eu” não se refugia nem mesmo como
elemento estruturador do discurso, fragmentando-se em nós, você, ele. Com
Lämmert:
Muito ao contrário da historiografia, os romancistas tentam com isso assegurar
nova autenticidade às suas composições ficcionais da história recente. Divergindo
de uma historiografia social que, por exemplo, trabalha sobretudo analiticamente,
eles não podem renunciar a pessoas de carne e osso. Mas ao expor de forma
radical a subjetividade da perspectiva pessoal, ganham uma nova verdade. Eles
demonstram a refração necessária e porventura ltipla e subjetiva na
conversão de notícias do passado e, ao mesmo tempo, facilitam o processo dessa
conversão ao fazer com que o passado se reproduza preponderantemente em
cima de testemunhos linguísticos legados.
119
Gostaria de ressaltar que essa verdade depende da perspectiva subjetiva,
sendo assim constituída, e que a multiplicidade ganha espaço em lugar de uma
continuidade tempo-espacial. O passado é atualizado com e na linguagem, não
pela linguagem.
Não apenas os móveis, mas a arte (morta) e o dinheiro (vivo) falam em
Holzfällen, sendo este último, no capitalismo, o sujeito por excelência. As
perguntas erradas do narrador de Holzfällen desviam-nos das questões
objetivas colocadas pelo texto. De perguntas erradas depende tudo: é uma
questão menor discutir se o capitalismo pode levar liberdade, igualdade,
dignidade e melhores condições de vida para todos. O fato é que o capitalismo
afiança tê-lo alcançado, pela própria forma: a liberdade do trabalho e o direito
dos homens, contra a servidão feudal e a lei de Deus.
Em nível formal, o uso do plural majestático estabelece por si um
caminho errado que deve ser combatido. Em Holzfällen, num grau não visto em
nenhum outro de seus romances, esta argumentação e discussão ganham
espaço e fôlego. A falta de escrúpulos e o ataque direto, sem meias palavras,
às estruturas íntimas deste encobrimento apresentam-se como uma das
119
E. Lämmert, “‘História é um esboço’: a nova autenticidade narrativa na historiografia e no
romance”, em Estudos Avançados nº 23, p. 303 (itálicos do autor, negritos meus).
90
maiores forças deste romance, que chega a ser leve e denso ao mesmo tempo.
uma graça nas personagens e em seus duplos, nas pinceladas com que
constrói e re-constrói as situações. O narrador não esgota a caracterização das
personagens até o final do livro, mas vai sobrepondo camadas de episódios e
avaliações, de modo que nunca as vemos por completo. A rigor, nenhum
assunto vai até o fim, tudo permanece aberto, e algumas personagens como
os jovens escritores, que não interessam ao narrador – praticamente não
recebem atenção, restando obscuras e inescrutáveis, meros blocos monolíticos
sem refinamento. Sente-se a violência deste narrador nestes casos, pelo
silêncio e desprezo que atribui a estas personagens.
A densidade e a seriedade de Auslöschung contrastam com o deboche
que beira o ridículo de Holzfällen. O narrador deste está muito mais próximo
dos personagens do que o de Auslöschung. Neste romance, o narrador não
está jogado imediatamente numa arena onde luta pela sua existência, com
tanta crueldade e escárnio. Tudo em Auslöschung está mais distante, também
degradante e aniquilador, mas o tom é outro, e a perspectiva também. Em
Auslöschung trata-se de um acerto de contas que também é histórico no tema
(todos o são na forma). Este é um livro mais pretensioso, e Murau o é tão
solto e desesperado como o narrador de Holzfällen. Se em Auslöschung se tem
a impressão de que o narrador tem controle da situação, consciente da
degradação e da necessidade da extinção, em Holzfällen o narrador ainda se
debate furiosamente contra tudo e todos, ordenando o andamento pela
desordem da provocação formal que leva sempre às últimas conseqüências.
Corre, como o jovem Bernhard da autobiografia, in die entgegengesetzte
Richtung”. Com a diferença de que no volume autobiográfico o narrador sabia o
que queria, pela negativa. Em Holzfällen o narrador nem isso sabe qual é a
direção contrária. Mas a frase ressoa tanto num como noutro texto. O esforço
dos narradores bernhardianos de seguir na direção oposta, às vezes sem
saber o porquê, é um leitmotiv deste romance e de toda a obra, e talvez insinue
um impulso utópico-emancipador pela recusa e pela práxis destes
personagens.
91
O ponto de vista da narração em Holzfällen, por tudo o que se viu,
apresenta afinidades formais com o materialista histórico da tese 16 de
Benjamin:
O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é
transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define
exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista
apresenta a imagem eterna” do passado, o materialista histórico faz desse
passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no
bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas
forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história.
120
120
W. Benjamin, “Sobre o conceito de história”, em Obras escolhidas I, p. 230-231.
92
2. A construção labiríntica de Holzfällen
“Labyrinthe sind dazu da, dass man sich in ihnen verliert vorübergehend
oder auf Dauer.”
121
Deste modo Manfred Schmeling inicia sua pesquisa sobre o
labirinto como construção estética de narrativas, introduzindo dois
parâmetros que irão nortear esta incursão em Holzfällen: o espaço e o tempo.
Pois assim como o narrador está perdido entre tantas vozes e perguntas, ele
também está perdido no tempo e no espaço. O tempo a que me refiro é o
passado e o presente, que se imbricam neste jantar dum modo peculiar,
fecundando-se mutuamente, numa espécie de co-determinação. E o espaço é
especialmente o da cidade de Viena, com seus outros Kilb, onde Joana foi
enterrada durante a tarde, e Londres, onde esteve nos últimos trinta anos o
narrador, sobre o qual nada se sabe.
Por outro lado, também central para o estudo em questão, a matriz
labiríntica remonta à mitologia grega, embora não haja uma forma definitiva
deste mito, como ocorre no caso de Édipo-Rei. Especialmente no que tange ao
papel de Dédalus quanto ao mito interessa-me discutir algumas linhas. Ele é
tanto o construtor do labirinto, um artista que se incumbe da tarefa com
engenhosidade e planejamento, quanto o resultado será uma construção que
impede que se veja o início e o fim, da ordem da redundância, nova mas
sempre igual, provocando o perder-se que levará à morte de inúmeras
pessoas. De modo que o labirinto não se refere apenas à perda dos nexos, à
desrazão, mas depende também do seu contrário, como princípio operador e
construtivo. A construção mais complexa e ambígua é também a mais racional.
Em Holzfällen, a construção do labirinto também é precisa, como um
engenheiro a montar sua estrutura.
Assim chegamos ao segundo ponto que pretendo salientar, aqui
caudatário da Teoria Crítica. Adorno e Horkheimer esforçaram-se para mostrar
que a razão da Ilustração era, ao fim e ao cabo, da ordem dos mitos, assim
como os mitos são também racionais, em sua maneira de organizar o mundo.
121
M. Schmeling, Der labyrinthische Diskurs, p. 13.
93
Por este raciocínio a construção labiríntica não significa apenas uma
retomada dos mitos ou uma simples atualização de sua força nos dias de hoje,
mas sobretudo, na acepção de Benjamin, um caminho para a penetração,
pelas frestas, da mitologia, que se finge de racional, das metrópoles como
Paris. Assim a própria estrutura do mito torna-se um caminho para se entender
a estrutura de nossa sociedade, o que, dadas as condições atuais de crise,
irrompe não só em greves e movimentos antiglobalização, mas pela cultura. De
acordo com Schmeling:
Das bedeutet, das Labyrinthische erscheint immer weniger nur als Aspekt des
Topologischen (der physischen Raum) oder des Ereignishaften (der
Handlungsraum des Labyrinthgängers) und immer stärker als eine spezielle
bewusstseinmässige Einstellung gegenüber der Welt. Die Attribute dieses
Labyrinthischen Begrenzheit, Unüberschaubarkeit, tautologische Existenz
(Wiederholung) und ähnliche die Krisis des Helden vermittelnde Komponenten
konstituiren kein vorübergehendes’ Bedeutungsfeld, innerhalb dessen der
Labyrinthgänger nur vorübergehend handelt und das er dann wieder verlässt. Wir
haben es micht mehr mit einem ‘episodischen’ Labyrinth, wie noch im Falle von
Gides Thésée, sondern mit einem ‘strukturellen’ Phänomen zu tun.
122
Assim se estabelem alguns caminhos pelos quais é possível rastrear o
labirinto discursivo de Bernhard, que tem suas bases tanto no chão austríaco
quanto na forma social subjacente, capitalista. Em Holzfällen ambas as
tendências são esgarçadas até o extremo.
Uma primeira aproximação diz respeito aos espaços utilizados em
Holzfällen. A cidade de Viena é toda ela marcada por avaliações feitas pelo
narrador, constituindo um percurso que é, ao mesmo tempo, racional e
mitológico: “Auf dem Graben gehen heisst ja nichts anderes, als direkt in die
Wiener Gesellschaftshölle zu gehen [...].” (HOLZ, 8) Não o Graben, mas
também Kohlmarkt, Kärtnerstrasse, Spiegelgasse, Stallburggasse,
Dorotheergasse, Operngasse. Estas ruas e alamedas estão inscritas dentro ou
próximas ao Ring, um anel no centro de Viena onde, na época medieval, havia
um muro isolando a parte protegida do castelo. Diferentemente de Paris, que
122
M. Schmeling, Der labyrinthische Diskurs, p. 175.
94
passou por uma total reconstrução sob Hausmann, que construiu grandes
boulevares e redistribuiu as diferentes classes sociais pela cidade, expulsando
os pobres e mendigos do centro e alargando as ruas para conseguir vantagem
contra as temidas barricadas, em Viena ainda sobrevive uma certa atmosfera
medieval na configuração deste anel, muito embora a cidade seja uma
metrópole.
Mas justamente a odiosa Viena, especialmente o ir e vir contínuo pelo
Graben e pela Kärtnerstrasse, o fizeram voltar à vida; nas suas palavras, “diese
entsetzliche Stadt Wien, dachte ich, die mich tief in die Verzweiflung und
tatsächlich wieder einmal in nichts als in Ausweglosigkeit gestürzt hat, ist
plötzlich der Motor, der meinen Kopf wieder denken, der meinen Körper wieder
wie einen lebendigen reagieren läßt” (HOLZ, 12). A cidade relaciona-se com ele
como algo vivo, como se fosse uma pessoa, e de certa forma o encontro com
os repugnantes Auersberger não desempenha, no caso, um papel desprezível,
embora seja lamentado por todo o romance: ele tinha, necessariamente, que
acontecer, como o narrador mesmo diz. De modo que o minotauro deste
narrador, a sociedade, chegaria mais hora menos hora: “[…] dass die Eheleute
Auersberger auf dem Graben getroffen zu haben, der Preis ist für diese
gelungene Therapie und ich dachte, dass dieser Preis ein sehr hoher Preis ist
[...].” (HOLZ, 12)
O encontro com o casal foi o preço pago por esta terapia. De forma que o
dinheiro vem ocupar sua posição central na relação entre as pessoas. uma
afirmação de Benjamin que diz: “O labirinto é o caminho certo para aquele que
sempre chega a tempo à sua meta. Essa meta é o mercado.”
123
Isto se adapta
muito bem à perspectiva do trecho estudado de Bernhard, bastando apenas
trocar os sentidos, ou pensar numa via de mão dupla: pois o narrador paga um
preço, mas também será comprado. Tanto que irá ao jantar, que de certa forma
ajuda a constituí-lo; ele pertence completamente a esta sociedade que o
repugna, e ela também não prescinde dele. E ainda, seguindo Benjamin, numa
frase que completa a primeira: “o labirinto é a pátria do hesitante. O caminho
daquele que teme chegar à meta facilmente traçará um labirinto.”
124
O labirinto
123
W. Benjamin, “Parque Central”, em Obras escolhidas III, p. 161.
124
W. Benjamin, “Parque Central”, em Obras escolhidas III, p. 162.
95
é tanto a pátria do hesitante, quanto daquele que sempre chega a tempo a sua
meta. A hesitação é uma das marcas deste narrador, que não se decide por
nada. Dificilmente coloca-se em dúvida, antes adota os dois lados de um
debate e os incorpora. Assim, Viena o destrói e o salva, ao mesmo tempo. Os
Auersberger são a sua ruína e a sua salvação. O ir e vir pela Kärtnerstrasse
estabelece uma espera tranqüila e ameaçadora, ao mesmo tempo, pois
chegará o momento de seu encontro consigo mesmo, representado por aquela
sociedade.
Mas o labirinto também é formado por outras arquiteturas. “In der
Nussdorferstrasse im Achtzehnten Bezirk hatte ich mein Quartier, hatte ich
mich ausgeschlafen, auf dem Sebastianplatz im Dritten Bezirk hatte ich meinen
Kunsttempel.” (HOLZ, 128) A amiga Joana, cujo recente suicídio paira como
uma nuvem sobre o episódio do “jantar artístico”, morava em Sebastianplatz e,
para fazer do marido um tapeceiro famoso e vender suas obras, reunia tanto os
artistas mais renomados de Viena quanto os empresários e banqueiros mais
ricos. O narrador classifica este apartamento como templo, o que nos remete
de novo para a âmbito da religião e do mito; mas este templo serve ao Deus
capital, posto que as reuniões tinham como interesse último a venda da
produção do artista. O “templo da arte” era um balcão armado em espaço
cultural: arte como mercadoria. E não apenas a arte, mas os artistas também
não passam de mercadorias, como o tapeceiro e, também, ele, que aceita o
mecenato dos Auersberger sem cerimônia. Sentado na mesma Ohrensessel de
trinta anos atrás, na Genzgasse, usa verbos sem meias-palavras: “dreissig
Jahre, dass du dich ihnen mehr oder weniger auf die niederträchtigste Weise
verkauft hast.” (HOLZ, 21)
Kilb, vila no interior da Áustria, de onde veio e foi enterrada Joana,
representa o contraste campo versus cidade, enquanto a casa de campo dos
Auersberger, em Maria Zaal, nos arredores de Viena, estabelece o contraponto
entre a periferia e o centro, no qual a periferia é formada por abastados
moradores. ainda o espaço da floresta, trazido à baila pelo ator do Burg,
que esteve para compor o seu Ekdal: um idílio campestre, que acalma e
relaxa. O narrador, por seu turno e em outro contexto, contrapõe: “Wie andere
in den Park oder in den Wald, lief ich immer ins Kaffeehaus, um mich
96
abzulenken und zu beruhigen, mein ganzes Leben.” (HOLZ, 26) O café da
cidade como contraponto da floresta; a natureza não existe mais, apenas como
idílio pode ser aceita, explícito no episódio da busca por inspiração do ator do
Burg na cabana campestre, como se verá. Contra isso, o cio dos Cafés de
Viena torna-se o natural da cidade, onde impera a fumaça dos cigarros e o
mundo da informação inebriante pelos jornais. Londres, por fim, é o outro da
Áustria, cuja importância assenta em sua ausência no texto. O narrador se cala
completamente sobre sua vida em Londres. Assim ganha relevância
indiscutível, posto que aproxima os dois pólos temporais em que se passa a
narrativa, tal qual uma ponte, uma passagem, sobre a qual nada a dizer, e
muito a entender.
Como uma das linhas de força desta obra destaca a presença e
relevância pela ausência, sou tentado a identificar neste outro talvez
reprimido mas, com certeza, previsto pelos vazios do texto uma dimensão
estrutural. A Inglaterra, como se sabe, berço da Revolução Industrial, conta
com uma burguesia muito consciente de si, e se contrapõe às estruturas que
se simulam arcaicas na Áustria, dando origem a encenações, como se viu no
primeiro capítulo. Londres, como centro do capitalismo, contrasta com os
valores “eternos” aristocratas da Áustria, saudosa do imperador “sem-caráter”
Franz Joseph e de outros passados recriados. Mas que não haja enganos, esta
reconstrução não faz jus à adaptação austríaca da Segunda República, aqui
combatida politicamente na estética. Na voz do ator do Burg, aqui enredada à
do narrador: “Das Wiener Publikum ist das verzogenste und das mit dem
besten Geschmack, das Theater genauso betreffend, wie die Musik, allerdings
auch das infamste, das rücksichtsloseste.” (HOLZ, 289)
A cidade de Viena e seus arredores, bem como Londres, são espaços
sociais, psicológicos, teológicos que, ao mesmo tempo, salvam e arruínam. O
leitor não deve tentar fazer um mapa físico da cidade, embora possa ajudar.
Mais importante é acompanhar o que cada um destes espaços representa, na
narrativa, ajudando a construir o todo. desde o ateliê da artista Joana à
casa aristocrática dos Auersberger, passando pela sua moradia pobre, onde
apenas dormia. Como o narrador fazia no Graben, estão indo para lá e para cá,
o tempo todo. Se o labirinto de Dédalus era antes de tudo físico, a arquitetura
97
montada por Bernhard expande este horizonte e se mostra concomitantemente
topográfica, teológica, social, sentimental e aniquiladora. Perdido, sem se
perder, não pode evitar passear no Graben, comparecer a Genzgasse, fugir
para o centro.
Os efeitos da repetição
A construção do labirinto também depende da concepção da linguagem e
de sua utilização. Um dos procedimentos mais sintomáticos deste narrador é a
repetição: em Holzfällen, esta ocorre em todos os níveis da composição. No
nível das palavras, verifica-se que inúmeros vocábulos repetem-se
continuamente: por exemplo, widerwärtig, Wahrheit, além de muitas outras. No
nível da frase, há também diversas estruturas que se repetem. A sintaxe
bernhardiana mostra-se sempre entrecortada, seja por inversões, seja por
apostos explicativos, seja pelas inúmeras retomadas antes do fim; enfim, a
frase nunca flui. Por esta razão, muitos de seus comentadores vão afirmar que
sua escrita é marcada pelo contraponto. O recurso de repetir intercalando,
quase à exaustão, frases como dachte ich auf dem Ohrensesselou dachte
ich auf dem Ohrensessel sitzend”, com suas muitas variações, é um bom
exemplo disso. Numa certa altura este procedimento já não traz nenhuma
informação adicional, mas continua sendo relevante, determinando um ritmo
que não é linear nem denotativo, remetendo a algo que aflui à superfície
mesmo se não evocado, forçando passagem. A respiração durante a leitura
fica marcada por estas pausas: o leitor pode aceitá-las e incorporá-las ou,
numa luta de morte com o texto, saltá-las inconscientemente. Estas estruturas,
porém, estão sempre de volta, numa disputa corporal, onde o ritmo e a
cadência são significados por si sós. A marca é a da quebra, retomada,
reinício; qual Sísifo, esforço inevitável mas infrutífero.
A repetição obsessiva embaralha o sentido atribuído às palavras. É muito
conhecida uma brincadeira de crianças, sobretudo que consiste em repetir
à exaustão um determinado significante, rapidamente, sem pausa mesmo para
respirar, provocando de uma hora para outra o esvaziamento do significado
atribuído àquele significante: o signo está temporariamente desfigurado. Este
procedimento torna-se estruturalmente decisivo em Bernhard e em sua
98
concepção de estética e de verdade, de seu realismo. O material se torna
gasto pelo seu uso abusivo e reiterado, tornando-se material para a forma: o
sempre-igual passa do conteúdo que lhe é atribuído para uma discussão sobre
o estatuto da linguagem, num salto epistemológico de grande alcance.
A repetição sistemática leva-nos, ainda, a questionar a convicção do
emissor: a assertividade/objetividade/ordem costuma ser expressa apenas uma
vez. Quem vacila, duvida e não se sente seguro acaba por repetir, mudar a
entonação, alterar a ordem sintática, voltear em torno do mesmo ponto sem
parar, tal e qual o cismador. Este nunca se considera pronto, voltando sempre
ao tema, procurando novos ângulos e matizes.
Há repetição também no nível do período que, aliás e a bem ver, é
apenas um. Não quebra de parágrafo e o texto, mesmo ao ser folheado,
parece um grande amontoado de palavras. Chega a ser paradoxal um texto
com tantas quebras e reviravoltas não abrir espaço para que se interrompa a
leitura. A estrutura em espiral, monótona e entrecortada, tece um fio único;
parar em qualquer ponto provoca uma quebra dolorosa, quase um romper das
regras do jogo. Não há um parágrafo ou uma distensão que nos permita tomar
distância, no nível dos parágrafos ou dos períodos. A tensão criada logo nas
primeiras linhas é mantida e amplificada pelas sucessivas idas e vindas e pelo
adensamento típico deste movimento, sem que haja compreensão do que se
narra. Holzfällen constitui-se, a meu ver, num caso especial, onde esta tensão
é elevada a um grau máximo. A tensão é instaurada in medias res, no
momento mesmo da angústia maior: estar ali é aniquilador, ainda mais sob o
impacto recente da morte da amiga Joana, e o sufocamento que esta situação
causa, o ridículo de suas atitudes no jantar, o acerto de contas de sua vida com
as pessoas decisivas, tudo contribui para o impacto máximo.
Também aqui se provoca o leitor, visto que a leitura labiríntica o domina e
o subjuga. Ao voltar ao texto, é difícil saber por onde recomeçar, pois o texto
flui ininterruptamente. Saltando para o nível temático percebem-se, claramente,
as repetições dos mesmos assuntos. Dadas as primeiras páginas, todo o resto
é retomada, porém significando sempre algo diferente: nuances, novos
ângulos, outro estado de espírito, nova avaliação.
99
Estas repetições engendram diversos efeitos. Entre eles, como na poesia,
a retomada que ressignifica pelo exagero, pelo realce, pelo destaque. No caso
de Holzfällen, o narrador faz avaliações sobre as pessoas da festa que, num
primeiro momento, parecem exageradas. Depois, contudo, este narrador
introduz “fatos” passados – sempre filtrados pelo seu crivo, estilo e perspectiva.
Estes fatos podem remeter-se ao dia anterior ou há trinta anos atrás, e à
medida que as avaliações o repetidas, normalmente de forma peremptória e
agressiva, ganham novos matizes. Mas nada é esclarecido, a avaliação do
narrador muda o tempo todo, sem um encadeamento dos nexos racionais, num
processo que será agravado pela suspensão temporal.
Assim vai se construindo uma perspectiva labiríntica, pois o que se
encontra pela frente é normalmente o visto, o conhecido, sendo que o
acúmulo provoca uma impressão sempre renovada, numa mudança sutil, mas
que ainda está preso ao mesmo. Como isto ocorre em todos os níveis, funciona
como se houvesse uma espiral dentro de outra espiral, todas se movendo ao
mesmo tempo, provocando uma espécie de embriaguez no leitor. Não custa
lembrar que o tempo também vai e vem ao sabor das lembranças do narrador.
Ele se situa nos anos 50 e 80, atualizando vários outros jantares de que
participou, a morte de Joana etc. Tudo se embaralha de modo a criar uma
confusão que elimina, de um certo modo, o nexo temporal entre os
acontecimentos. Assim, o narrador avalia a ação dos personagens antes
mesmo destes agirem, numa concepção temporal que lembra a de Kafka. Em
Schwarz:
Esquematicamente: o tempo mecânico é de rigorosa sucessão causal; o tempo da
atividade humana surge da submissão da causalidade a um nexo de sentido; o
tempo do mito despreza o encadeamento dos fatos a possibilidade humana de
agir, portanto – bastando-se com impor-lhes um padrão. Não tem importância
saber se B nasceu de A, nem como o fez. Importante é que se sucedam, para
completar o emblema. É desta perspectiva que se narra A metamorfose.
125
Embora tudo o que esteja arrolado até aqui conduza à falta de sentido e
de lógica tradicional, esta se encontra presente. O movimento das frases segue
um roteiro relativamente calculado: uma constatação objetiva numa situação
125
R. Schwarz, “Uma barata é uma barata é uma barata”, em A sereia e o desconfiado, p. 63.
100
particular, sempre localizada num narrador, por mais inconstante que este seja.
Isto posto, ruma para generalizações que se desprendem do eventual, do
contingente para o necessário, normalmente sob o signo da duplicidade, da
ambiguidade, num jogo de ressonâncias reforçadoras, culminando em
assertivas categóricas como Das ist die Wahrheit”, como foi visto quando se
tratou do ponto de vista. Assim a concepção de verdade é exposta
historicamente, a partir de um ponto de vista, por meio de um procedimento
estético regrado, calculado e cadenciado, mas sem nexos intermediários, como
numa notícia de jornal. Daí passa a outra constatação, seja uma lembrança
casual ou motivada pelo ambiente, e o processo se reinicia, podendo voltar a
um assunto já pisado e repisado.
Um procedimento muito racional, por seu grau de convencimento, mas
não por uma razão que se quer autônoma, denotativa, pura, antes dialética,
tensa, antinômica, de onde se depreende a importância do ambíguo, do duplo,
das retomadas presentes no texto. Ou seja, o autor se utiliza das técnicas
racionais de criação da realidade dita “objetiva”, mas os outros procedimentos
ligados à estética do labirinto podem, paradoxalmente, levar o leitor a perceber
a trama. Digo “paradoxalmente” pois o labirinto, a rigor, prende e confunde
mas, neste caso, estaria funcionando ao contrário, permitindo a crítica. Numa
palavra: a aparente racionalidade é construída sobre pressupostos recônditos,
que a estética labiríntica, ao gerar estranhamento num contexto “objetivo”,
permite desmascarar. Ao mostrar a operacionalidade do labirinto, Bernhard o
ativa contra os mitos da modernidade, tornando-o construtivo. Nas palavras de
Manfred Schmeling: “Labyrinthe sind nicht nur beängstigend, sie sind auch
anregend, nicht nur destruktiv, sondern auch konstruktiv. Sie vermitteln Chaos
und Ordnung, Dunkelheit und Helle, Gutes und ses, Macht und Ohnmacht,
Geborgenheit und Entfremdung, Wiederholung und Veränderung, Leben und
Tod.”
126
O movimento vai das partes para o todo, procurando uma totalização
materialista, tendo como conseqüência que a autonomia da razão burguesa
estrutura básica para a epistemologia e ciência no capitalismo será colocada
em xeque. Não se constrói um caminho que vai do material para o metafísico,
126
M. Schmeling, Der labyrinthische Diskurs, p. 14.
101
em busca das “essências” e do “espírito absoluto”, pela própria precariedade
que estas “verdades” assumem no texto bernhardiano. Estas assertivas se
superpõem e se negam, sendo ironizadas no corpo do texto. Seus pontos de
fuga correm quase sempre na “direção oposta” à da razão autônoma que
reforça o papel do sujeito como aquele que a usa para conhecer , ao
questionar, de dentro, o próprio sujeito, e por seu discurso avesso às
argumentações. Como se viu, isto se de diversos modos, e com diferentes
efeitos, mas esta perspectiva marca seu projeto estético e, mesmo, político. A
concepção de linguagem como construída socialmente, no caso até mesmo
corporal reforça esta posição.
Mobilidade e paralisia em Holzfällen
Mas existe em nossas cidades um recanto que
não seja o local de um crime?
(W. Benjamin, “Pequena história da fotografia”)
A (re)criação do episódio do convite no Graben representa um dos pontos
culminantes de todo o modo de proceder deste narrador, elaborando
esteticamente o que foi comentado a respeito da irracionalidade em meio a
mais absoluta racionalidade. As retomadas e revisões de um dado episódio
externam de modo bastante enfático a imobilidade e inatividade. O exemplo
mais eloqüente talvez seja a sua tentativa de procurar entender infrutífera,
como todas os motivos que o levaram a aceitar o convite e comparecer ao
jantar, como em:
[...] und dachte, daß es ein gravierender Fehler gewesen ist, die Einladung der
Auersberger anzunehmen. Zwanzig Jahre hatte ich die Auersberger nicht mehr
gesehen und ausgerechnet am Todestag unserer gemeinsamen Freundin Joana
habe ich sie auf dem Graben getroffen und ohne Umschweife habe ich ihre
Einladung zu ihrem künstlerischen Abendessen […] angenommen. (HOLZ, 7)
[...] Und ich dachte wieder, dass es ein gravierender Fehler gewesen ist, die
Einladung der Eheleute Auersberger angenommen zu haben [...]. (HOLZ, 13)
102
angesprochen, dachte ich, wahrscheinlich hatten sie dich schon eine Weile von
hinten beobachtet und sind hinter dir hergegangen in Beobachtung und haben dich
im entscheidenden Moment blitzartig angesprochen [...]. (HOLZ, 24)
[…] Schliesslich hätte ich ja, obwohl ich sie angenommen habe, der Einladung
nicht Folge leisten müssen, noch dazu, […] Tatsächlich habe ich ja die ganzen
Tage zwischen der Einladung zu diesem künstlerischen Abendessen und dem
Tag, an dem es dann stattfinden sollte, überlegt, ob ich auch wirklich zu den
Auersbergerischen gehe, einmal dachte ich, ich gehe zu den Auersbergerischen,
einmal dachte ich, ich gehe nicht zu den Auersbergerischen, einmal sagte ich mir,
ich gehe hin, einmal, ich gehe nicht hin, ich gehe hin, ich gehe nicht hin [...].
(HOLZ, 77-78)
Aqui se tem novamente a repetição dos conteúdos, sempre realçados por
uma nuance, uma modificação, um novo juízo, ao longo de toda esta obra, mas
que nunca levam a lugar algum. Todos os temas vão e vêm ao longo da
narrativa, caracterizada ainda pela repetição de estruturas sintáticas, sem
parágrafos, e pela utilização obsessiva das mesmas palavras, criando um jogo
ininterrupto entre movimento e imobilidade. Mais que isso: há uma relação
dialética entre estes dois termos, especialmente na mediação, propiciada
historica e socialmente pelo capitalismo, dialética esta fundamental para se
entender a paralisia em meio ao turbilhão (relacionados internamente). Desta
forma irrompe, como sempre, uma dialética correlata no plano estético: a da
irracionalidade (a trama, a perda de sentido, o vaivém não linear, o
estilhaçamento do sujeito) e a da racionalidade completa (a urdidura do texto
bernhardiano, da narrativa musical, matemática, precisa, composta segundo
um plano minucioso), ambos imbricados, constitutivamente, um no outro; não
apenas um fecunda o outro, mas um passa pelo outro.
Ao leitor não é dado conhecer a dinâmica que comand
103
atual, o reconhecimento deve ser imediato e o consumo rápido, indolor e
reconfortante, moldando o momento mesmo em que o indivíduo pode se sentir
vivo, na medida em que o concebe como aquele que consome.
As repetições fatigantes e os saltos abruptos no tempo, espaço e tema
remetem diretamente ao ritmo insosso e mecânico da produção capitalista,
associado ao choque e à quebra, porém numa cadência que entorpece,
adormece e hipnotiza. Uma provável “dialética fracassada” do capitalismo
tardio ganha contornos formais em Bernhard, de acordo com Schmeling: a
ação é mínima, não síntese, mas as divagações são intermináveis.
127
O
labirinto não é mais o local de provação do herói, mas do desespero, doença e
morte. O título da seção no qual se encontram inseridas as reflexões sobre
Bernhard chama-se “Gescheiterte Dialektik Die Auflösung des
Überwindungschemas”. Mas isto não significa que seu projeto estético-literário
tenha naufragado: a obra de Bernhard prevê uma interação com a crítica e com
os leitores, permitindo a visão desta “névoa”, destes “bloqueios” histórico-
sociais, e contribuindo para a superação da inconsciência.
Deste modo, a narrativa pode ser qualificada, em se tratando da
possibilidade de salvação dos heróis, como fracassada; da perspectiva do
crítico e dos leitores, uma dialética do fracasso que aponta para além dele,
numa arquitetura que olha para seu próprio abismo pois não há outro lugar
para onde olhar. Cada pequeno gesto demarca o início de cogitações múltiplas
que se enraizam umas nas outras, sem levar a nenhuma conclusão: tudo fica
como está. Isto admite ainda considerações sobre o uso do signo (do
significante): a tendência para longas construções metonímicas e sintagmáticas
(ou seja, paratáticas), na perspectiva deste trabalho, funciona não apenas
como fenômeno formal da condition postmoderne (em referência a Jakobson,
Bakhtin, Kristeva), mas, antes de tudo, como um paralelo em relação aos
novos desenvolvimentos do capitalismo global.
Desde o início, o narrador afirma não saber por que aceitou o convite do
casal. Estando em Viena questiona por que andava justamente no Graben
para suportar a morte de Joana, para comprar uma gravata, para se recobrar
fisicamente, ou justamente por ser o local mais provável do fatídico, porém
127
Cf. M. Schmeling, Der labyrintische Diskurs, p.174.
104
inescapável, encontro consigo mesmo? Descreve minuciosa e
meticulosamente o diálogo travado com a Auersberger, na tentativa de
reconstituir a armadilha que eles supostamente teriam preparado para o
agarrar: primeiro, emocioná-lo com a notícia da morte de Joana e depois,
contando com sua decorrente fragilidade, convidá-lo para o “jantar artístico”. O
personagem-narrador, ciente da morte de Joana, reage com dissimulação,
fazendo o jogo que se espera dele: finge não saber de nada e comover-se,
sem que haja uma explicação plausível para esse comportamento. Dado este
primeiro passo, na direção de uma segunda natureza, da máscara social, que o
narrador afirma não prezar e não seguir, contraditoriamente admite não poder
declinar do convite.
Das masslose Sich-Hinterfragen der Subjekte, der ständige Wechsel zwischen
Aussage und ironischer Zurücknahme der Aussage, der Trieb zur
Selbstbespiegelung und Verdoppelung auf allen Ebenen des künstlerischen
Gestaltungsprozesses lassen die moderne Auffassung vom Bruch zwischen
subjektiver und objektiver Welt, von der Unfreiheit und Isolation des einzelnen in
neuem, schärferem Licht erscheinen.
128
A cidade também faz parte deste contexto. Ela afasta as pessoas, que
não se conhecem e vêem no outro um criminoso em potencial. O crime será
sempre encoberto pela anonimidade do indivíduo. Assim o encontro no Graben
permite também esta linha investigativa. Se não se conhece o todo, como
entender o outro, indevassável, fonte dos mais insuspeitos temores? De certa
maneira nós montamos o crime, pois qualquer comportamento torna-se
inaceitável se não uma base de experiências compartilháveis, e daí todo
espaço ser o local de um crime.
Esta cena (a denominação não é acidental), construída na perspectiva do
narrador, é central, pois muitos dos paradoxos e dialéticas paralisantes da
ação, do pensamento, do desenvolvimento do personagem no romance são
instaurados por ela, configurando-se como um travamento. Sua lente aproxima-
se como numa cena de perseguição cinematográfica: viaja do detalhe ao todo,
128
M. Schmeling, Der labyrintische Diskurs, p. 196.
105
da posição de ataque por trás ao plano reo, usa flashbacks, cortes abruptos,
sendo conduzido por lembranças e reminiscências que afloram ao consciente e
se presentificam, borrando as fronteiras de tempo e espaço e embaçando a
concepção de realidade, que se torna pesada, confusa, com muitas imagens
sobrepostas, constituindo um novo travamento, agora por excesso,
sobrecarregando os canais e paralisando o sistema. De um modo geral, a
estética de Bernhard, em todos os seus pormenores e aspectos, conflui suas
linhas de força para este ponto, exigindo a atualização da história agora, trinta
anos depois.
A função decisiva do “insignificante”
Do exemplo acima podemos passar diretamente para um outro tópico que
dialoga com o tema do labirinto, mas não está restrito a este. Diz respeito, na
estética de Bernhard, à importância decisiva do aparentemente insignificante
como caminho para a compreensão e para a interpretação do texto. Estes
farrapos de linguagem são chaves indispensáveis para a interpretação da
prosa bernhardiana. O que poderia passar despercebido deve ser perscrutado;
o que silencia deve ser ouvido; o excesso, a falta, o exagero e a minúcia
assumem importância central. Sua arte mostra-se nestes pequenos detalhes,
lapsos e frestas do discurso: o que na aparência é acessório, deslize ou lapso
confere coesão, unidade e significação ao todo. As nuances e as ênfases
constituem pontos-chave na estruturação do texto de Bernhard.
Esta perspectiva está conectada ao comentário sobre a linguagem
cinematográfica da escrita de Bernhard, atenta aos mais ínfimos detalhes, seja
numa expressão facial, na entonação das frases, num movimento brusco
demais, nos olhares, na falta de sincronia entre as scaras e o homem. O
cinema propiciou a visão microscópica que abriu um mundo de possibilidades
perceptivas ainda desconhecidas. A concentração na parte também se conecta
à perda da visão de totalidade com o capitalismo, com a divisão do trabalho, do
espaço da casa e do trabalho, do tempo do relógio, que é medido em
segundos. O todo torna-se inapreensível, e a parte configura esteticamente
esta impossibilidade, que é histórica, não apenas do nível do pensamento.
106
O trecho pode ser muito pequeno, do tamanho de um lapso, um olhar,
uma frase, ou muito grande, como todo o episódio do enterro. Aqui a dialética
entre forma estética e social mostra-se com clareza. Este aspecto é
fundamental numa forma como o capitalismo tardio, totalizador por mais que
esta totalização seja falsa, pois o todo, como se viu, está irremediavelmente
perdido –, uma forma na qual cada parte reforça as demais, as esferas
autonomizadas fingem viver vidas próprias: economia, política, sociedade,
ciência e tecnologia, organizações, arte, dificultando que se veja por trás delas
as imbricações e determinações mútuas. Somente o manejar das frestas, das
minúcias, do não-dito, pode propiciar que a visão crítica alce vôo para além da
prisão deste falso truísmo. Desta qualidade é a arte do detalhe e do acessório
na obra de Bernhard.
A forma falsamente totalizada remete ao labirinto, que é temporal,
espacial e lingüístico. Os farrapos se perdem na malha narrativa, o que faz
parte da arquitetura da obra. De modo que não se deve procurar um fio de
Ariadne, pois não há um fio único. Alguns destes trechos apontam para o
deciframento da forma, para o entendimento das mediações e, também, para a
dificuldade desta tarefa, quase inatingível.
Um aspecto de destaque em Holzfällen é que se trata de um jantar, uma
espécie de “jantar fúnebre” ao mesmo tempo “artístico” e “fantasmagórico”.
Este jantar remete-nos diretamente aos outros múltiplos “jantares artísticos” de
outrora, quase trinta anos, noutro estado de espírito. Porém em apenas um
momento o narrador atribui adjetivos aos anos 80: “[...] wie wenn ich jetzt in den
Achtzigerjahren nocheinmal den Fünfzigerjahren davon liefe in die
Achtzigerjahre hinein, in diese gefährlichen und hilflosen und
stumpfsinnigen Achtzigerjahre hinein [...].” (HOLZ, 320, negritos meus)
Sobre os anos 50 na Áustria, pano de fundo desta passagem, já se
comentou no primeiro capítulo desta tese. Nos anos 80 o mundo já se encontra
em um outro estado de espírito. A crise do petróleo na década de 70, as
primeiras discussões sobre a crise ecológica na conferência de Estocolmo em
1972, a crise dos Estados com seus déficits gigantescos, a Guerra do Vietnã e
as ditaduras apoiadas pelos EUA ao redor do mundo (como no Brasil e por
107
toda a América Latina), acompanhadas de uma queda no nível de emprego,
contribuem para o início do desmonte de um cenário promissor nos anos 50.
em Bernhard um lapso entre estas décadas, um salto, provocando
uma tensão aguda que os aproxima. Não nexos causais ligando os dois
períodos, e o contexto dos anos 80 explicita, explica e significa o quadro vivido
nos anos 50, agora palpável como crise anunciada, em todos os sentidos. A
importância da leitura do detalhe quase jogado em meio à torrente discursiva
se faz aqui presente: hilflosen é o estado das pessoas sem ajuda do “Estado
de Bem-Estar Social”, que se desmonta, sem a menor perspectiva de
inserção numa sociedade que depende cada vez mais de conhecimentos em
alta tecnologia, num quadro agravado pelo enfraquecimento do estado que não
mais qualifica para o trabalho; gefährlichen caracteriza uma sociedade cada
vez mais violenta, na qual, como diz Enzensberger
129
, o cidadão que trabalha
de dia num escritório pode se tornar um hooligan à noite. No caso austríaco,
vemos o afloramento do ideário nazista que marca os anos 70 e vai culminar
na eleição de Waldheim em 1986; nos anos 80, como se viu, o “esquecido”,
“abafado”, “reprimido” volta à cena em primeiro plano, marcando o momento
propício para a atualização daquele cenário idealizado dos anos 50. E
stumpfsinnig (estúpido, parvo, monótono, mesmo tom) caracteriza a
irracionalidade e o ritmo de eterno retorno do mesmo, da mudança que não
muda, indica itens imprescindíveis para se entender o mundo atual.
Estes adjetivos aparecem apenas duas vezes no romance a rigor,
nesta seqüência, apenas uma. Num outro contexto, Willi Bolle percebe, nas
frestas do sertão “mítico” de Guimarães Rosa, o único ponto em que a
referência à crise sócio-econômica irrompe neste jorro discursivo roseano, crise
esta que leva à emigração. Esteticamente funciona como uma ponta que
desprende e mostra aquilo que qualifica o tom do livro; um aspecto estrutural
que, apesar de e talvez justamente por estar pouco visível à primeira vista
129
Cf. H. M. Enzensberger, Guerra civil, p. 15: “Há muito que a guerra civil penetrou nas
metrópoles. Suas metástases pertencem ao cotidiano das grandes cidades, não só de Lima ou
Johannesburg, de Bombaim e Rio de Janeiro, mas de Paris e Berlim, Detroit e Birmingham,
Milão e Hamburgo. Dela não participam apenas terroristas e agentes secretos, mafiosos e
skinheads, traficantes de drogas e esquadrões da morte, mas também cidadãos discretos que
à noite se transformam em hooligans, incendiários, dementes violentos e serial killers. Como
nas guerras africanas, estes seres mutantes são cada vez mais jovens. Enganamo-nos em
acreditar que vivemos em paz porque podemos ir à padaria sem que sejamos atingidos
pelos disparos de um franco-atirador.”
108
imanta e marca o romance, tornando-se um item decisivo para sua
interpretação, pois localiza historicamente o sertão aparentemente arcaico e
imutável de Rosa. Neste pequeno fragmento, de acordo com Bolle, a partir da
periferia da periferia, o sertão brasileiro, pela única vez “incide como um
lampejo [...] a passagem visionária dos migrantes”, rompendo com o mundo
fechado sobre si do Brasil arcaico. “Ela [a população do sertão] depende das
metrópoles: é ‘periferia’. O romance mostra que o que parecia parado e mítico
é movido pelas forças da história.”
130
Deste modo, Bolle trabalha com o discurso mítico e com a quebra deste,
numa cena curta e muito significativa, uma fresta que se abre e não apenas
permite, mas exige, que esta interpretação seja feita. O fato de ser pouco
visível faz parte de sua estrutura íntima.
131
Nesta mesma linha de raciocínio, a discussão em Bernhard sobre os anos
80 esteticamente representados de forma explícita naquela síntese na página
final conferem o tom em retrospectiva de todo o livro. Como já foi dito, a
suspensão do tempo não elimina a questão material e objetiva da agudeza do
tempo presente, de cada vez maior abstração, perda da experiência, das
utopias, criando um vazio aterrador e do qual não parece haver saída,
encurralado na forma totalizante do capitalismo contemporâneo, mas também
está diretamente ligado a um desenvolvimento austríaco específico, e Bernhard
arremete contra os dois em sua Erregung: uma perspectiva fortalece a outra.
Discorrendo sobre o romance Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins,
Roberto Schwarz afirma que “a imensa desproporção entre a causa imediata e
o resultado ‘necessário’ é um desses nexos em que sentimos o peso inexorável
130
W. Bolle, “Gêneros literários urbanos: Berlim, Paris, São Paulo”, em Revista Tempo
Brasileiro, p. 80-81.
131
Ainda nesta perspectiva, os negros que não aparecem em Dom Casmurro por estarem
invisíveis numa sociedade em que, o obstante sua invisibilidade, constituíam a base sobre a
qual todo o sistema funcionava, e que assim deveriam ser esteticamente concebidos; por uma
presença ausente, que se percebe nas falhas estruturais do romance, que serão seus pontos
mais positivos. Isto porque desta feita a sociedade pareceria mover-se por conta própria, mas
haveria alguns desajustes que a forma não conseguiria superar. Este desajuste o é outro
senão aquele social provocado pelas idéias liberais que por si são, de berço,
contraditórias e ambíguas num contexto que dependia e aceitava a escravidão e a figura dos
“homens livres”. Cf. Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, 2000.
109
da história contemporânea.”
132
Ou seja, o capitalismo, com sua arquitetura
falsa que deve à lógica da “valorização irracional do valor, que se finge de
racional”, nas palavras de Robert Kurz, procura criar vínculos causais
necessários e determinantes, como quer também o historicismo tradicional,
com sua seqüência de eventos numa sucessão temporal, contra a qual se
posiciona, veementemente, Benjamin
133
.
A forma-mercadoria como estrutura estética: Wald, Hochwald, Holzfällen
Em Holzfällen, a todo o momento, podemos rastrear este nexo por trás da
névoa. Se este romance é marcado pela falta de elos na cadeia lógica, pulando
etapas entre causa e conseqüência, entre ação e julgamento, suas linhas de
fuga convergem para este ponto.
A repetição incansável do ator do Burg, em seu efêmero e alcoólico
momento filosófico, da expressão Wald, Hochwald, Holzfällende onde vem o
título do romance, remete a uma expressão do velho Ekdal na peça de Ibsen. A
sua tradução para bosque, floresta, árvores abatidasembora recupere uma
das acepções aludidas pela expressão alemã, não chega perto de suscitar o
impacto e o efeito da expressão original, cheia de significados. O que a
tradução permite vislumbrar é o movimento de ruptura e negação do terceiro
elemento, que não poderá ser visto como uma superação dialética; nada se
mantém após este processo. De bosque a floresta e daí para a destruição da
floresta, a ação humana muda a natureza conforme suas necessidades e, no
capitalismo, conforme as necessidades do capital, eliminando mesmo a ação
do sujeito como uma práxis.
Remete ao episódio, no Fausto II, da cabana de Philemon e Baucis, que
deve ser destruída para não refrear o ímpeto progressista capitalista. Este não
suporta memória, não aceita a superação dialética, que “supera” conservando,
antes exigindo a submissão total à sua lógica implacável. Mesmo Mefistófeles
sente-se aturdido pelo ritmo frenético e algo obsessivo imprimido por Fausto
em seu afã em busca do “Verweile doch, du bist so schön”, uma das mais belas
132
R. Schwarz, “Sobre Cidade de Deus”, em Sequências brasileiras, p. 166.
133
Como se depreende de suas teses “Über den Begriff der Geschichte”: W. Benjamin, GS I-2,
p. 702 ss.
110
e terríveis expressões cunhadas e que resume, de forma inexorável, uma
máxima capitalista: a suspensão do tempo devido justamente à mais frenética
velocidade, intentando não desperdiçar absolutamente nada, qual um juízo final
secularizado e ocidentalmente civilizado, um gestus visionário da aporia do
século XXI. Isto porque o pacto com Mefistófeles, contraído em Faust I, será
realizado a contento apenas ao final do Faust II, em meio ao frenético
movimento do turbilhão capitalista
134
.
Mas mais a ser dito quando se toma o original alemão. Wald está
contido em Hochwald, mas difere desta forma. Holzfällen mantém,
sonoramente, vínculo com Hochwald pelo início em Ho-. Desta forma, se no
nível do conteúdo não síntese dialética, no nível formal do significante o
dúvida da presença desta articulação. Por este procedimento a saída do
âmbito restrito e particular de Wald para o generalista, quiçá aspirando o
universal, de Hochwald, fica em evidência. Hoch- significa alto, para cima,
ascendente. Este movimento é também típico do capitalismo que, em sua ânsia
por generalizações e abstrações em graus cada vez mais profundos, provoca,
no limite, a abstração completa que leva à naturalização de todas as relações,
injunções e co-determinações. Assim se despreza o individual e se
estabelecem leis naturais que justifiquem o estado atual das configurações
históricas, conduzindo a Holzfällen, como se esta passagem fosse um
processo natural e irrevogável, sem qualquer relação objetiva com a práxis
humana e com a história. Este o nexo entre Hochwald e Holzfällen que, como
uma ilusória síntese, seria o resultado “natural” de um processo que, na
verdade, é histórico e social. Daí a força do título.
Por este caminho, este processo não seria mais instituído por sujeitos,
não sendo responsabilidade de ninguém, operando sob uma perspectiva quase
“biológica”. De certo modo, se se entende o capital como único sujeito no
capitalismo, o homem estará fadado a ser determinado de fora por este
processo, agora inexorável e perfeitamente cabível na lógica da mercadoria
que rege o pensamento e a ação no capitalismo. A naturalização é ideológica e
134
J. W. von Goethe, Faust I, p. 57: “Faust: Werd’ ich zum Augenblicke sagen: / Verweile doch!
Du bist so schön! / Dann magst du mich in Fesseln schlagen, / Dann will ich gern zugrunde
gehn!”. Em Faust II, p. 348: “Zum Augenblicke dürft’ ich sagen: / Verweile doch, du bist so
schön! / Es kann die Spur von meinen Erdetagen / Nicht in Äonen untergehn.”
111
abjeta pois, de qualquer modo, um suposto sujeito no capitalismo, tributário
da ascenção da burguesia e subsumido à lógica da mercadoria como
arquiforma social. O perigo desta concepção de sujeito burguês, a mais
próxima da consciência histórica irrevogavelmente marcada pela ideologia
é sua força encobridora, pautada por registros teológicos sob um véu racional.
A suposta clareza da antinomia entre razão e teologia, como já se viu, é
estrutura no seio do capitalismo. A crença no progresso e na melhoria da
qualidade de vida humana, no trabalho como vocação e salvação, na liberdade
e no sujeito autodeterminado faz girar os gonzos da civilização, mas sua base
gira sobre uma irracionalidade de fundo.
Somente agora, com a crise sistêmica que, reforçando as diferenças
sociais e econômicas, vem se instalar à soleira da história humana a partir dos
estertores do século XX, essas considerações podem ganhar atenção, em
detrimento das teorias que postularam uma possível “orgia global” regada pelas
benesses do Welfare State, da democracia americana, da “aldeia global” etc.
Aquele movimento, saudado como de emancipação do homem em relação ao
trabalho a diminuição das horas de trabalho semanais em resposta ao
aumento de produtividade está com os dias contados. Na Europa, se fala
e age no sentido de acabar com esta sanha, que impede uma produtividade
competitiva nos mercados globalizados e sem qualquer aumento de
salário
135
.
Importante notar que esta leitura metafísica naturalizadora, formalmente
objetiva em Bernhard, como procurei mostrar, recebe sua crítica no e pelo
próprio romance, num processo simultâneo. Noutras palavras: essa leitura é
135
Sobre isso, extenso material bibliográfico. Jeremy Rifkin, em O fim dos empregos, 1995,
acompanha historicamente as mudanças no modo de trabalhar, além do aumento do número
de horas e da tensão no trabalho, especialmente na parte IV, “O preço do Progresso”, p. 179-
240. Alvin Tofler, em A empresa flexível, 1985, trata do caso específico de uma empresa na
passagem para um contexto onde as mudanças ocorrem num ritmo nunca antes visto. Outra
referência é o canadense Gareth Morgan que, em Imagens da Organização, 1996, discute
vários fatores que contribuíram para as mudanças e seus efeitos para os trabalhadores, vendo
as organizações atuais como, por exemplo, prisões psíquicas e instrumentos de dominação, o
que será aprofundado pelos franceses Max Pagès et al. em O poder das organizações, 1993,
um estudo sobre o domínio ideológico nas grandes empresas, interessadas num vínculo com
seus funcionários de mesma matriz que aquele existente entre uma igreja e seus fiéis, o que
sempre foi forma no capitalismo, com capítulos como “A nova igreja”, A autopersuasão” etc.
Uma referência importante é ainda a inglesa Karen Legge, em seu Human Resource
Management – Rhetorics and Realities, 1995, cujo título traz explicitamente a dimensão retórica
da persuasão e entrega total exigido pelas organizações contemporâneas.
112
obrigatória, na medida em que formaliza um processo que é a base estrutural
da ideologia única nestes anos pós-guerra fria, posição esta atacada no
romance em questão. O mecanismo é exposto em toda sua carga ideológica.
Os Auersberger vivem de vender as terras em Maria Zaal, que serão o palco de
desenvolvimentos capitalistas que destroem e desfiguram a região.
Aus diesen Grundstücken existieren die Auersbergerischen jetzt schon beinahe
fünfunddreissig Jahre, dachte ich auf dem Ohrensessel, aus dem Verkauf dieser
Grundstücke. […] Es ist ein Jammer, was durch den Verkauf der
auersbergerischen Grundstücke aus Maria Zaal geworden ist, dachte ich auf dem
Ohrensessel. […] Da, wo ein Wäldchen war, da, wo ein Garten aufblühte im
Frühjahr, [...] wuchern jetzt die Betongeschwüre unserer Zeit, die auf Landschaft,
überhaupt auf Natur, keinerlei Rücksicht mehr nimmt, und die nur von der politisch
motivierten Geldgier beherrscht ist […]. (HOLZ, 150-151)
O ator do Burgtheather, que repetidamente proclama a expressão, é
ridicularizado. Seu refúgio na floresta para compor o personagem, configura-se
na verdade como construção de uma segunda natureza: o idílio romântico,
calcado numa ligação umbilical e pura com a natureza. A ida do ator para as
montanhas para incorporar o personagem Ekdal expõe tudo menos o
abandono da segunda natureza (social) que o constrói e domina. A concepção
do gênio como incompreendido, isolado do mundo, autônomo é combatida
ponto por ponto; esta figura é a mais social, dependente e objetivamente
inexistente que se pode conceber – criada por seu próprio discurso –, mas está
mais viva que nunca, pois é formal variando apenas a configuração externa e
a atividade que realiza. Assim se que o narrador se aproxima do ator do
Burg não pela via da volta idílica à natureza, a qual o narrador ridicularizara;
antes, tem em vista a lógica capitalista que sustenta a estrutura social atuando
por trás.
Sendo sucinto, a fábula da peça mostra a personagem Ekdal-pai, antigo
caçador que, enganado pelo sócio, vai preso e, ao ser solto, não tem do que
viver e depende inteiramente do filho. O velho Ekdal refugiou-se dos homens
dentro de si mesmo: ele não toma parte no quebradiço fio da narrativa, vivendo
em um mundo próprio. A neta se suicida, toda uma rie de
113
acontecimentos, mas o Ekdal-pai não toma parte desta realidade; não reage
a ela. O seu mundo psicológico é o do caçador, que espreita, um caçador
velho, destruído física e moralmente e impedido de embrenhar na floresta,
digamos, “material”. Não obstante isso continua caçando dentro do porão da
casa do seu filho, num laivo fantástico nesta peça realista. Como ele poderia
atirar de verdade em animais dentro de um porão, continuamente, como se
este porão fosse uma floresta enorme? Neste contexto é que o velho Ekdal
afirma que não se deve mexer com a natureza, pois a natureza se vinga: Wald,
Hochwald, Holzfällen. O aquecimento global representa apenas a localização
mais atual desta estrutura.
O Ekdal representado pelo ator do Burg é um simulacro um Ekdal de
butique, diria, que se isola numa cabana na floresta como preparação para se
criar empatia com a personagem por imersão, perdendo-se como ator e leitor
da peça, assim como dos contextos que a envolviam.
136
O Ekdal-pai de Ibsen
não pode mais caçar na floresta nem se isolar fisicamente dos homens, e estas
são duas condições fundamentais de sua existência. Estar entre os homens e
afastado deles, simultaneamente; não se isolar nas florestas e voltar para o
sucesso ao representar Ekdal. Um papel no máximo bem ensaiado, tanto no
palco como no jantar, onde continua agindo, em certa medida, como Ekdal
mas ainda ilusão, simulacro, duplo ridículo.
Se o pato selvagem em Ibsen vive num porão, qual numa segunda
natureza, (na primeira não poderia mais viver, pois não consegue mais voar) o
narrador vive numa espécie de prisão psicológica e social. Esta argumentação
leva a um diálogo com o “romance de provação” (Prüfungsroman), em que o
personagem tem que passar por algumas provas antes de se tornar merecedor
de algo; no caso, de tornar-se sujeito. Mas tanto como Prüfungroman quanto
como Bildungsroman o que se vê é o fracasso; o que se narra é uma anatomia
do fracasso, em todas as suas possibilidades.
136
Como já se disse, numa prespectiva stanislavskiana. Nada do Verfremdungseffekt (V-Effekt)
de Brecht, que ao se distanciar abre a possibilidade de postura crítica e de ação política tanto
do ator como do espectador. Para Brecht, o ator nunca deixa de ser ator e personagem ao
mesmo tempo, num contexto específico que não pode estar alheio, o que será constitutivo de
sua concepção de teatro. Deste modo, deve-se romper com o ilusionismo e acentuar o caráter
de representação da peça, deixando isso evidente para o público, instado a não aceitar
passivamente o que lhe é mostrado. A perspectiva do ator do Burg será ridicularizada no
romance de Bernhard.
114
Tanto a concepção de sujeito quanto a da realidade social e objetiva são
discutidas por aquela expressão tão profícua em desdobramentos
interpretativos. Mas isto não é tudo. Hochwald ainda diz respeito a uma floresta
na qual se pratica silvicultura com fins econômicos. Assim se constituem
verdadeiras plantations, monoculturas com o fito primeiro e estruturalmente
único de gerar capital e multiplicá-lo. Processo este que produz uma floresta
artificial e abstrata, pois o próprio conceito de floresta pressupõe uma
biodiversidade que é absolutamente contrária ao processo de controle da
natureza voltada para a atividade econômica, que hoje em dia se pauta pela
engenharia genética para forjar plantas e animais mais robustos às intempéries
e à ação do entorno, ou seja, do ecossistema no qual estão inseridos e com o
qual, necessariamente, interagem.
Mas o ímpeto capitalista que conduz de novo ao citado Fausto II
não atribui importância para isso, almejando o controle total de si, da natureza
e de tudo. O ambiente e o próprio homem tornam-se assim matéria prima para
a produção de mercadorias, e esculpir o corpo com próteses, anabolizantes e
engenharia genética para extinguir o verbo aqui não é casual qualquer
traço expressivo não configura mais um tabu. O intuito de tal procedimento não
se restringe a rejuvenescer com a eliminação das rugas. Mesmo conscientes
do efeito da perda expressiva provocada por estas técnicas, a prática é
disseminada e talvez por isso mesmo mais desejada. Tornando a face
inexpressiva, tal qual uma tábula rasa do rosto humano, pode-se construir com
cosméticos e profissionais adequados a expressão que se deseje para um
determinado momento e ocasião. Não há mais necessidade de se esconder
isto; aceita-se que este procedimento artificial, de construção estética, com
seus materiais próprios, seja realizado. O último reduto o corpo humano
foi tempos atingido, e agora o que se é o júbilo pela entrega total. Se o
personagem Dom Casmurro ainda mostrava pruridos para afiançar sua sede
de nomeada, o mundo das celebridades e dos reality shows se exalta pela
mercadorização completa, pela passagem ao inorgânico. Fica difícil usar a
terminologia clássica e falar em classes quando o desejo do consumo iguala
ricos e pobres, favelados e bem-afortunados do mesmo Morumbi. Comentando
o que mais o agastara no enterro de Joana em Kilb, diz o narrador de
115
Holzfällen: “[...] weniger die Tatsache, dass die Joana begraben worden ist, hat
mich in Kilb deprimiert, mehr noch die Tatsache, dass hinter dem Sarg der
Joana lauter künstlerische Leichen einhergegangen sind, [...] lebende
Kunstleichname, Schriftsteller, Maler, Schauspieler, Tänzer und ihr Anhang, als
lebende Leichen, als lebende, noch lebende Kunstleichen [...].” (HOLZ, 101)
Assim Hochwald é e não é Wald; Hochwald leva à destruição do
ecossistema e da própria planta, assim como do corpo humano e do seu
contexto; o paralelo não é coincidência, e os personagens-duplos deste
romance não nos deixam esquecer disso. E assim estamos embrenhados no
termo Holzfällen, como deve ter ficado claro. A interligação dos termos fica
por conta do cálculo econômico.
O dinheiro como sujeito
E, de repente irrompe o nexo destas relações com toda clareza,
respondendo muitas das perguntas instauradas pelo narrador e pelos
personagens:
Nicht sie selbst sind im Grunde immer der Mittelpunkt ihrer Gesellschaft gewesen,
116
Deste modo o contexto (a situação em que os personagens estão
inseridos) não é mera decoração ou adorno, mas parte da forma e do
conteúdo. Daí a importância decisiva da repetição de Ohrensessel, na
Genzgasse. Isto não é mera localização geográfica, mas forma do sujeito,
ideologia. Do mesmo modo que na forma social, na forma literária: o contexto
sócio-histórico e a vida do autor, bem como dos leitores, não é moldura para se
entender a obra de arte, aspecto decorativo, mas discutido nas entranhas da
obra. Por onde se vê a necessidade da crítica imanente da obra de arte, e meu
percurso aqui, apoiado na autobiografia do autor e sua forma, procura seguir
este itinerário. Penso que, aqui de modo explícito, vê-se como a entrada pela
obra de Bernhard deve ser feita necessariamente por esta via.
Numa palavra: num discurso enorme e opressivo, escrito com mão-de-
ferro, em que tanto é dito de forma tão agressiva, em que luzes o fortes e
focadas são utilizadas, deve-se procurar nos escuros, no lusco-fusco, nas
entrelinhas, no insinuado, e mesmo na ausência, o irrompimento do significado.
Pois não é nenhum absurdo, antes é lógico, que um foco tão exagerado exija
que se perceba e interprete o que está além dele. A arte sempre manipula, no
sentido de mostrar isso e não aquilo, por mais imparcial que pareça.
Este procedimento configura esteticamente a forma social capitalista no
que ela tem de mais próprio e característico: diz realizar um ideal quando, na
verdade, a forma não permite que este irrompa. A liberdade apregoada pela
burguesia e petrificada na “Declaração dos Direitos do Homem”, na Revolução
Francesa, parece ser a realização de uma aspiração metafísica do homem,
mas na verdade conforma o que as condições históricas de hoje comprovam
uma falsidade histórica e objetiva do homem: o conceito de sujeito burguês
auto-suficiente, racional e livre não pode surgir do seio da sociedade produtora
de mercadorias. Mas esta sociedade depende desta idealização para se
colocar, como um processo inevitável de legitimação.
Recorrer ao posicionamento de Lukács
137
, em artigo de 1936, a respeito
de Wilhelm Meister Lehrjahre, de Goethe, pode contribuir para o
desenvolvimento deste ponto. Para Lukács, Goethe saberia que aquele
137
G. Lukács, “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister”, em J. W. Goethe, Os anos de
aprendizagem de Wilhelm Meister, p. 593-613.
117
contexto histórico (escreve entre 1793 e 1795), naquela configuração
específica, não poderia produzir humanistas como Lothario e Nathalie por
isso, apesar de serem homens e mulheres que agem no mundo, estão numa
espécie de ilha no romance, tanto pela Sociedade da Torre, quanto pela cesura
a partir do livro VI –, mas sonhar com eles seria parte necessária do sonho
capitalista, sonho este povoado de mitos que Benjamin, com veemência, acusa
e contra os quais pretende se armar. Deste modo, a arte serve como
depositária, criadora e reprodutora destes valores burgueses que, assim, se
enraizam cada vez mais no reconhecimento social dos homens. Mas cabe à
arte também politizar a estética, não devendo somente esteticizar a política,
aqui de novo com Benjamin. Esta é uma das discussões centrais em Alte
Meister. Numa passagem lê-se:
Beethoven haben sie gehört, aber Goya haben sie [os Habsburgos] nicht gesehen.
Goya wollten sie nicht haben. Beethoven ließen sie die Narrenfreiheit, denn die
Musik war ihnen ungefährlich, aber Goya durfte nicht herein nach Österreich. Nun
ja, die Habsburger haben genau den dubiosen katholischen Geschmack, der in
diesem Museum zu Hause ist. Das Kunsthistorische Museum ist genau der
dubiose habsburgische Kunstgeschmack, der schöngeistige, widerliche. (AM, 32)
Não é apenas uma questão de gosto ou entendimento sobre a arte, como
o narrador havia dito um pouco antes: “ein Gehör für Musik ja, aber keinen
Kunstverstand.” (AM, 32) Antes de mais nada é um questionamento sobre o
conceito de obra de arte, a quem ele interessa, sobre a importância central de
seu papel político-ideológico, que se depreende do personagem Reger ao dizer
que música se aceitava, pois ela é abstrata, do estatuto da “liberdade dos
loucos” leia-se aqui a atitude e interpretação pós-moderna – que se fecha em
seu caráter estético e na teoria da arte pela arte. A pintura, por outro lado, tem
outro efeito, facilitando que se depreenda um conteúdo e uma forma mais
inteligíveis, algo que remetesse à práxis, à ação. Hoje em dia, contudo, esta
seleção não seria mais necessária. “Die Leute gehen ja nur in das Museum,
weil ihnen gesagt worden ist, dass es ein Kulturmensch aufzusuchen hat, nicht
aus Interesse […].”(AM, 13)
118
Em Holzfällen, a esteticização da arte também ocupa posição central na
narrativa, contra a qual se insurge o narrador. O erro na interpretação é
necessário, formal: falar de uma coisa num contexto é ouvir antes de tudo o
contexto, esta a chave da obra. Por isso, a leitura existencialista e metafísica
da obra de Bernhard, embora possível, fica restrita a um momento da dialética
necessária para se ir além dela. Não nada mais brutal do que uma obra,
hoje, que não escancare a aspereza e a violência do momento atual:
parafraseando Brecht, são tempos em que falar sobre árvores é um crime, pois
significa calar sobre tantas outras coisas. A menos que se fale de árvores como
estas de Holzllen, que são da ordem desta brutalidade.
O livro de Bernhard, paradoxalmente, ao ser tão duro, pungente e
inescrupuloso, exagerado e cansativo, e brutal no mais alto grau, não é um
livro brutal, inescrupuloso, exagerado, mas humano, inserido em seu tempo, na
exata medida do exagero e da vivência e violência do choque no capitalismo
tardio, ou por outra, na crise capitalista dos anos 80 e que perdura e se
agrava século XXI adentro.
Excerto: Brecht e a centralidade do dinheiro, que explica o que parece
sem explicação
Por uma afinidade eletiva com a discussão sobre centralidade do dinheiro
e configuração estética, ocorrem-me os versos finais do suplemento de Die
Dreigroschenoper: “Denn die einen sind im Dunkeln / Und die andern sind im
Licht. / Und man siehet die im Lichte / Die im Dunkeln sieht man nicht.”
138
Novas luzes e ângulos para tornar visível o que existe, mas não se vê. A crítica
pertinente busca na própria obra, tida como unidade, as mediações entre
forma, história das formas, história social, ideologia, economia; uma crítica
imanente. A canção final cujo título é Die Schlussstrophen des
Dreigroschenfilm, não surgiu aqui por acaso: a citação acima, aparentemente
autônoma, remete ao natural e fisiológico por sua tautologia. Assim
estabeleceria um fato lógico, racional, contra o qual nada haveria a fazer: uma
posição política. Ao se tomar a canção toda, no entanto, os versos finais
138
B. Brecht, Die Dreigroschenoper, em Gesammelte Werke II, p. 497.
119
ganham uma coloração irônica e condenatória da omissão da sociedade, que
lava as mãos. O esforço deve se voltar para a apreensão do todo:
Und so kommt zum guten Ende / Alles unter einen Hut. / Ist das nötige Geld
vorhanden / Ist das Ende meistens gut. // Dass nur er im Trüben fische / Hat der
Hinz den Kunz bedroht. / Doch zum Schluss vereint am Tische / Essen sie des
Armen Brot. // Denn die einen sind im Dunkeln / Und die andern sind im Licht. /
Und man siehet die im Lichte / Die im Dunkeln sieht man nicht.
139
O que escurece e ilumina não é a convencionalidade da linguagem, não é
uma questão que se resume a arejar a língua viva, ou apenas do estatuto da
linguagem e sua relação com o pensamento, mas também e
constitutivamente – o capitalismo e sua estrutura calcada no encobrimento
mítico-racional tão bem apontado na discussão de Marx sobre o fetiche da
mercadoria, base dos mecanismos de funcionamento e desenvolvimento do
capitalismo.
“Ist das nötige Geld vorhanden” (negrito meu); dinheiro necessário, tanto
em termos de volume de dinheiro quanto em termos de necessidade (oposta à
contingência), estrutura e equivalente-geral; numa palavra, o dinheiro assume
seu papel de sujeito concebido pelo capitalismo. Este sujeito é masculino, com
Kurz
140
, e pesca em águas turvas. Daí uma possível leitura, salvo engano, do
verso: “Dass nur er im Trüben fische” (negrito meu). Sendo o artigo de dinheiro
(Geld) neutro, em alemão, Brecht o eleva a sujeito e lhe confere este estatuto
lingüístico, com se estivesse a desvendar uma e())ú.39434(r)2.8.288(e2.0.67474(e)].87122(e)-.33117(m)-7.49466(a)-495585(s)-0.295585(i)1e.16436(i)1.87122(g)5.33117( )-ó.2175(e)-4.33117(n).33117(t)-2.16436(i)1..33117(m)-7.49466(a)-4.33117( )-92.2187(q)5.67474(3u)-4.9466(a)-492.2175(d)5.67718(o)-4e2.0.6719( )]TJ-[Td[(l)1.87( Td[(s)-0.294974(e)-4.67474(u)-4.33117((i)1.87(t)-2.16558(a)-4.33z87122(e)-4.33117(v)9)-4.33061(-)2.805(r)2i)1.87(a)-4.33111715..67474(s)-0.295585(c)-0.2955854.33117(n)-2.1833(n)-4.33117(u)-.51003( )-82.2128(295585(u)-4.33112(c)9.71032(o)-4.49588( )-42.3117( )-.)1.87(a)-4.33111715..2.16436( )-423117(e)-4.33117(())95585(s)-0.2933117(r)220.52 Td.677159/R7 12 Tf92.4545 0 T33[(e)-4.33117(r)2788637474(e)]TJ111715612.1703(e)-4.33117(r).33117( )-212.288(f)-2.33117(b)-4.33117t)-2.16436(e)-.33117(e)-4.33117(s)95.67474(m)2.5111171561295585( )-772.619(t)-2.16436(a)5.6.619(t)-é2.619(t)-2.16436(a)55.67474(m)2.5111171561a.16436(i)1.87122(g)5.6711171561a.16436(i).87122(e)-4.33117(n)-4.33117(t)-.16436(e)-i)1.87(n)-4.33117(h)5.33117(b)-.67474(t)-2i71032(e)-4.311171561M.2175(u)-4.33117(m)267474(s3144(u)174(s3144(i95585(u)-4.33115(d)5.67718(o)-194.(c)( )278]TJ-30M95585(u)-4.33117o)-4.33056(n)-4.7.484 -20.76 Td[(s)-0..33117(u)-i)1.87(a)-4.3117(s)-0.295585( )655883117(é)]TJ.1825564.33117( )-a.337122(g)5.671386 3-32.1821(S)-s87122(e)-4.32128(B)-3.39434(r)2.671386 3-3p80561(i)-2.16117(e)-4..122(c-4.30561(i)-2.133117(h)5.3.1230u)-4.33117(m)2.511386 3-32.3117( )-a.337122(g)5t.33117(v)9.71032(r)2t.33117(v)u Td[(n)0.6400263(i)1.Td[(n)0..511386 354.30561(i)-2.133117(h)5.511386 354.337122(g)5u Td[(n)0.j3117(())95585(s)-0.i33117(n)-46400263(i)1.61133056(l)1.87(d)28734J/R9 12 Tf1386 3542.51003(i)1.87122(n)-4.331386 354c3117(s)-0.295585(s)-0..33117( )-212.288(n)5.671386 354.16558( )-32.183( )-4.33117(h)5.33117(b)-.671386 354.33117(b)-4.33117(r)2.87122(e)-4.33117(i)1.295585(v)9.71032(e)-4.31.87( )-42.1892(d)5.671386 354B.16436( )-92.2175(d)533117(())95585(5(d)5”16558( )-:.67474(m)2.5.055(d)-10.61c)( )278]TJ-270 Td[(G)-2.46056(0 Td[(G)-2.671277.72-4.33117G)-2.671277.72-s.33117(i)1.87122(v)9.71032-4.33117(l)1.87122(v)9.711277.72-.80439(o)-4.33117(p)-4.33117(u)-4.11277.72-.49588( )-102.225(u)54.11436()-32.1821(m)-p.33112(c)94.33117(v)9)-4.33061(.33117(m)-7.49588(e)-4.33117(n)-4.33117(t)7.841277.7-2.16558(b)-.31.87( )-42.1892(d)5u.3117( )-a.3317(s)-0.29551436().295585(s)-0. 0 Td[7)-.16436(e)-372.38(u)-4.33117(m)-72.16436(i)1.87122(c)-0.5.67474(m)2.51003(i)1.87122(n)-4.67474(e)-.80439(a)-4.331277.71(774(i)1.87(l)1.8(u)-4.33117(m)2.52.288(4.57474(e)].87122(e)-.71032(e)-4.31.87( )-95585(c)-0.295585(u)-i)1.87(n)-4.33056(g)5.67474(ê)-4.33117(n)-4.33117((e)-.33117(m)-7.491277.71(1.8771(e)-4.33117(d)-4.33117(a)5.33117(m)-7.491436().2p5585(5(d)52.16436(v)9.71032(e)-a32873(t)-2.16436(o)154.57 )278]TJ-32.33117((i)1.87(t)-220.88 Td[(l)1.87(.33056(n)-4.333117G)-2.672317151-212.29(a)-4.33117(p)5.33117(u)-4.12317151-2.223(s)-0.295585(o)-4..33117( )-a.33117(e)-4.20.88 T95585(s)-0.295585(ã)-4.331386 95-.31.87( )-42.189ç)-0.2955317151-4.33117( )-772.62(s)-0.295585(u)-4.335317151-.16558( )-372.384(c)-0.4.32873(i)1.8712( )-212.288(n)5l)1.87(a)-4.33117(ç)-0.299588(ã)-4.33117(m)2.51131714.33117( )-2.16681(s)-0-42.188(e)5.6131714q87122(t)-92.2187(q)5.67474(u)-4.331317144.33117(r)2.80561(h)-4.80439(e)-4.33117(j)1.33131714o.33117(m)2.52.28811.17(3117(é)]TJ5585(a)-4.33117(m)2.52.29(a)-4.33117(p)5.33117(a)-4.3331714.33117( )-2.163117(m)-7.49588(e)-4.33117(n)-4.33117(t)-.33117( )-2.16436(d)5.674317142.1821(()2.80439(3u)-s)174(s3144(33117(())95585(5(d)5.3117(s)-0.33333 0 0-811.17(3( )28]TJ-32 )1741477922 )1741477922 )1741477922 )1741477922 )1741477922 )1741477922 )1741477922 )1741477922 )1741477922 1f0.1.6774 0 1 85.08 38..718218(.)]TJ/R9 6.48 Tf0.170.36 0 1 391.32 553332 Tm[553339l9 sre5.7237(H)721117(447).94103(n)-10.6134(d)1.17(447)h895(i)5(n)3.9425(r).94176(r5a)1.4422(d)-1.33624(-10.6134(e)1.44100336(o)2r4. )01.44
120
salvamento na verdade, é salvo pelas suas relações com os poderosos, com
aqueles que detêm capital. A situação da coroação da rainha da Inglaterra,
bem como o universo da cavalaria e, ainda mais, a indulgência e nobreza
outorgadas a Mackie Messer são estranhos à composição da obra, beirando o
ridículo de tão fora de propósito, constituindo numa saída nada verossímil, e
parece que fica faltando o termo que poderia conferir sentido ao todo: ele virá.
Todos os sinais estão invertidos: claro que não se trata de cavalarias, de
indultos divinos. Brecht exagera tanto na dose para deixar evidente que há algo
mais por trás destes desdobramentos, que gostaria de permanecer encoberto.
O que será que unifica e sentido nesta dança de significados e
n295585(,)4229.4655destserada s ecx9.71032(o)-4.33117(m)-0.295585( )-220.460ca u-4.33117(s)9.71032(t)-4.33117(i)1.87122(s)-0.295585(,)-220.460cue siere ia
121
sua inserção nas altas rodas vienenses. O ator do Burgtheater, ao ser
confrontado por Jeannie se não haveria perdido o ímpeto artístico, a
necessidade da arte, após comprar um belo apartamento em Viena, quer
concordar com ela. O narrador dependeu, mesmo financeiramente, dos
Auersberger trinta anos atrás, vendeu-se a eles. Este nível deve sair do
segundo plano e ocupar o espaço central, de organização íntima do romance.
Não é de se estranhar que, com o enfraquecimento do “Estado de Bem-Estar
Social”, desde o início dos anos 80, os artistas que dependem do Estado
estejam em pé-de-guerra.
Não a arte tornou-se mercadoria, como os artistas se sentem à
vontade neste mundo, que se assemelha ao mundo dos negócios, onde cada
qual tem uma marca, que o diferencia e o faz produto inorgânico. A subsunção
completa da arte à lógica da forma capitalista será escamoteada, seja
consciente ou não, por um verniz esteticista. Discorrendo sobre a concepção
dos Auersberger de arte e móveis, diz o narrador:
Sie umgeben sich mit der Weichheit des Abgestorbenen, aus welchem jeder
Widerspruch unmöglich geworden ist, denke ich. [...] In Wirklichkeit sind sie
gegenüber ihrer eigenen Zeit so schwach, dass sie sich mit den beln einer
längst toten Zeit umgeben müssen, [...] wenn sich Leute mit Möbeln einrichten aus
den vergangenen Zeiten, nicht mit solchen ihrer Zeit, deren Härte und Brutalität sie
nicht ertragen, dachte ich. (HOLZ, 242-243)
A inclinação por móveis e arte antiga, enfim, está ligada diretamente à
história e à política, além da economia. O esteticismo se caracteriza justamente
por criar um mundo próprio para a arte, no qual não haja injunções de outras
esferas (como a história e a política) em seus domínios, justamente o caminho
mais adequado para, desta posição privilegiada, atuar politica e socialmente. A
arte assim entendida funciona como fuga e reforço do modelo vigente. Aqui o
esforço é similar ao visto em Alte Meister, ao criticar o Kunsthistorisches
Museum de Viena, onde não há Goyas. A diferença é que aqui estamos não no
museu estatal, mas no interior de uma casa burguesa, que se quer
aristocrática.
122
O papel da arte também se torna tema: não como engajamento,
entretenimento ou mera ideologia, mas como verdade histórica, dialética entre
forma social e forma literária, como crítica, ensaio, autobiografia, em chave
negativa. Em Holzfällen, a arte se torna mercadoria, e mais: os autores se
tornam mercadorias, localizados na Áustria, mas não restritos a ela. O
exercício da crítica literária se faz de dentro, das entranhas da obra,
questionando tanto o leitor, sempre instado a tomar posição, quanto o autor e
seus narradores, chegando à própria realidade histórica: os perigosos anos 80.
O leitor e o labirinto: a recepção exigida por Bernhard
Por conta da focalização da narração, que procura envolver o leitor e
enredá-lo, bem como do labirinto espacial, temporal e sentimental em que se
inscreve, a incursão por Holzfällen pede pelo menos três leituras, que se
exigem mutuamente.
Uma destas leituras deve permanecer atenta aos mínimos detalhes,
procurando frestas, pormenores e insinuações, desconfiada de tudo e
recolhendo materiais, como um detetive. Estes se dispersam no discurso
paratático, não causal, e se perdem no labirinto. O procedimento inclui
recolher, sobretudo, aquilo que foi deixado de lado, sem valor, aparentemente
insignificante, aproximar pistas e seguir indícios. É preciso ler as minúcias, as
frestas, o não-dito. O processo é análogo ao método científico, que divide o
que se quer conhecer em unidades estranhas e isoladas umas das outras,
procurando leis internas que, a julgar pela ciência, seriam “autônomas”. A
forma social subjacente corrobora esta perspectiva: a abstração e ilusão
ganham contornos materiais o trabalho abstrato, por exemplo, e a expressão
que explicita isso de forma cabal, das mercadorias que são sensíveis e supra-
sensíveis, em Marx – e operam por trás, não se deixando ver às claras, embora
sejam responsáveis por conferir uma “aura” de sentido ou falta de sentido
às vivências das pessoas. Esta leitura deve ser atenta, concentrada e
especializada. Aqui não identificação com a leitura, antes a suspeita,
exigindo as motivações que levam uma passagem estar antes da outra. Aqui
se questiona o narrador. Seus resultados, porém, estão fadados de antemão
123
ao insucesso, pois aqui não respostas, nem causas, mas pistas falsas e
perguntas.
A outra leitura é a da monotonia, das estruturas repetidas, do acostumar-
se a uma paisagem e freqüentá-la tactilmente, qual um flaneur que passeia
sem saber o caminho a percorrer, deixando que os pensamentos fluam por si
sós; leitura esta cansativa, pesada, hipnótica, que não procura o novo mas o
visitado, e pelo uso e costume se entranha e emaranha nas teias discursivas.
Não quer o novo, o diferente, a informação que acrescenta, o detalhe que
conta, mas entregar-se, abaixar a guarda e deixar-se levar. Esta leitura
preconiza o errar pelo labirinto. O tempo permanece suspenso e estamos sob o
signo do eterno retorno e da hipnose, da entrega. Esta leitura é fundamental
para que o ritmo e a corporalidade do texto de Bernhard, suas redundâncias,
ganhem dimensão significativa, ao ponto em que estas desprendam de si
mesmas e alcem vôo: não o vôo das essências, no entanto, mas o das
mercadorias. A configuração estética alegórica na modernidade, ao fazer
desprender significantes e significados pelo excesso, não os torna metafísicos,
mas dialéticos, em chave negativa, seguindo a concepção alegórica de
Benjamin. Este o segredo desta leitura. Aqui se aceita o narrador, alegoria do
capitalismo. A forma capitalista análoga é a da alienação, a do trabalho sempre
igual, sem sentido, que entorpece, que leva à empatia com a alma da
mercadoria, ao bilo por fazer parte desta “celebração” que, ao mesmo tempo,
destrói quem dela toma parte.
As duas leituras não são antinômicas ou contraditórias, antes
interconstitutivas. Sendo assim, ao leitor não é dado comportar-se apenas de
um ou outro modo; antes deve percorrê-los ao mesmo tempo, o que exige bem
mais do que uma leitura. O leitor o deve realizar apenas uma atividade de
atenção focada, concentrada, que elimina os entornos e procura os nexos
causais e racionais. A atenção pode ser dispersa, como no filme, cuja própria
forma impede que se mantenha a atenção prolongada em pormenores, como
num quadro. E nem a dispersão é totalmente desprendida, ela se organiza em
torno de interpretações, de seleções perceptivas que, mesmo inconscientes,
são atentas. Para Benjamin, é preciso antes de tudo entender as mudanças no
modo de perceber a realidade. A sociedade do espetáculo é, sobretudo, visual.
124
As cidades exigem o sentido visual, para sua localização e locomoção, além do
tátil – os encontros e o habituar-se dependem do tato.
Uma terceira leitura também se faz necessária, e objeto de considerações
na próxima seção, deve ser aqui mencionada: a leitura do romance como
“chave”, tendo em vista sua recepção e permitindo que a realidade penetre
cruamente os meandros de uma obra, como se está vendo, formalmente muito
complexa. Esta leitura deve dialetizar as duas anteriores, pois impede
cabalmente que se perca os pés do chão ao se estudar este romance.
Nem todos os autores e nem todas as épocas exigem uma leitura assim,
tripla, em que interagem a parte e o todo, a distância e a entrega hipnótica, o
tato (contato distraído, corporal) e o pensamento (o diferente, estranho, que
aguça os sentidos, tornando-nos atentos, acordados), as diferenças entre
realidade e ficção, autor e personagem, num vaivém hermenêutico
estabelecido pela própria forma do romance. O romance, ao levar para o nível
da forma a discussão sobre a objetividade da obra (e daí sua relação imanente
com a forma social, pois objetividade aqui está sendo usado neste sentido),
torna sua decifração complexa. Um enigma pede decifração, um mistério pede
culto
141
: a alegoria é do estatuto do enigma, o símbolo do mistério. O
entrelaçamento constitutivo elaborado por Bernhard entre as condições
materiais, a localização dos assuntos e sua mediação com a maneira de
pensar e agir sobre eles, não deixa o pensamento escapar do chão, por maior
que seja o esforço nesta direção. Percebe-se que o leitor está entranhado e
faz parte da forma, que depende dele para a atualização do sentido. Disso
resulta que um leitor “tradicional” de best-sellers pode ser expulso da obra
pelos múltiplos mecanismos que ela articula contra a denotação objetiva e as
categorias tradicionais; assim como ao leitor de romances criminais faltará o
crime, que está na forma, não no conteúdo.
Em Bernhard, a Áustria, o capitalismo, o catolicismo, o nazismo, são
tratados em termos formais: o tempo suspenso, a perda do passado como
experiência, a conseqüente vivência do choque, da violência e da quebra,
potencializado pela mercadorização do homem e pela limitação de seu espaço
141
J. A. Pasta Jr, “O romance de Rosa Temas do Grande Sertão e do Brasil”, em Novos
Estudos Cebrap, nº 55, p. 61-70.
125
de atuação são seus elementos constituintes. O que resta são as frestas do
discurso, pelas quais se penetra nas ambigüidades conceituais já mencionadas
(como liberdade, homem burguês, Estado-nação e instituições como a escola,
a igreja etc). Daí a leitura tripla, num autor marcado pelo signo do duplo,
correspondendo à alegoria do capitalismo tardio sob a bandeira do movimento
acelerado ao máximo em meio à paralisia, à crise, à beira da catástrofe.
Nas condições vivenciadas mostram-se as garras afiadas do capitalismo,
antes escondidas sob véus de sonho
142
, agora escancaradas. Isto é nítido no
estado de exceção do governo americano que rege o país e o mundo, que se
nutre dos escombros do Welfare State. Deste quadro ainda fazem parte a
demissão em massa dos ainda empregados, em nome do mercado agora
globalizado. Quanto a isso é ilustrativo Schwarz dizer que, nos idos de 1994,
aos desempregados não resta nem mesmo a possibilidade de exploração
capitalista que, ao menos, alimentava-os:
O ponto principal aqui, entretanto, é que a maior parte destes pobres não é
realmente explorada no sentido pleno do capitalismo, embora eles evidentemente
sejam vítimas do desenvolvimento capitalista. Por certo gostariam de ter um
trabalho que lhes permitisse ser decemente explorados pelo capital. Mas o capital
não os quer. Se eles fossem explorados, estariam em situação melhor.
143
A questão ambiental e a crise do trabalho são limites da abstração auto-
reprodutiva do capital. Por um lado, ambiental, pois há limites de recursos
naturais na Terra, e contra isso não há raciocínios, por mais brilhantes e
concatenados que sejam, que possam deliberadamente se furtar de palpá-la
quando o assunto tange aos agora claros limites ambientais de exploração do
meio-ambiente (embora o discurso da “ciência econômica” ainda localize esta
discussão como secundária, ou cosmética); por outro lado, crise do trabalho,
questionando o que fazer quando a reprodução do capital quase prescinde
da mão-de-obra assalariada, devido aos enormes ganhos em produtividade
142
Cf. B. Brecht, “Die Moritat von Mackie Messer”, em Die Dreigroschenoper, p. 395: “Und der
Haifisch, der hat Zähne / Und die trägt er im Gesicht / Und Macheath, der hat ein Messer / Doch
das Messer sieht man nicht.”
143
R. Schwarz, “Entrevista com Roberto Schwarz”, em Literatura e Sociedade, nº 6, p. 18.
126
que se consegue com a chamada “terceira revolução industrial”, a informática.
Tanto um como outro, matérias-primas inesgotáveis e trabalho humano
abstrato, necessários para a reprodução do capital, chegam pelo mesmo
movimento a seus limites e questionam a forma-mercadoria, que, dentro destes
parâmetros, hoje, se debate na esfera dos paliativos, cada vez mais efêmeros
e ineficientes.
Este processo, todavia, não poderia ocorrer de outro modo, uma vez que
a forma de se pensar também se abstraiu e se “naturalizou” ao,
paradoxalmente, desprender-se da matéria, a partir da formulação de Kant;
mas “a forma de pensar é também determinada pela forma-mercadoria”
144
. A
linguagem corporal e labiríntica de Bernhard luta contra esta abstração. Lê-lo
exige percorrê-lo a pé, aos poucos, acompanhando suas subidas e descidas,
aventurando-se pelas entranhas do labirinto esteticamente construído, que é
também nosso, estrutura profunda da realidade social. O discurso pós-moderno
atesta este momento histórico, mas erra ao subsumir este caledoscópio
significativo à metafísica da essência humana ou a um sujeito hipertrofiado (ou
seja, extra-humano ou intra-humano), trocando as bolas de um processo que é
eminente- e imanentemente histórico e social (inter-humano). Por isso não
basta conhecer a fábula dos livros de Bernhard (aliás, de nenhuma obra de
arte).
A interpretação da obra não prescinde da trama que é tecida sobre a
urdidura da linguagem, do discurso, do tempo, do espaço, dos personagens, do
material, da história, das formas consagradas e de sua recepção. Assim o
não-ir, o não-estar, no tempo e no espaço, e o absurdo e a ironia desta
144
Cf. R. Burger, “Warenform und Denkform. Alfred Sohn-Rethels marxistische Liquidation des
Sozialismus”, em Kapitalismus oder Barbarei? (Merkur Deutsche Zeitschrift für europäisches
Denken), caderno 9/10, p. 874: “Da alle diese Lehren in letzter Instanz im Kantianismus
gründen, handelt es sich also darum, das Kantische Apriori als ein Posteriori zu erweisen, den
innersten Kern des Transzendentalsubjekts als ein geschichtliches Produkt, den Schematismus
des abstrakten Verstandes als Resultat einer gesellschaftlich vollzogenen Abstraktion. Und
Sohn-Rethel gelingt dies mit einem Coup, den der mit Lob sehr sparsame Theodor W. Adorno
genial genannt hat: Ausgehend von der Wertformanalyse der Ware entdeckt Sohn-Rethel in der
Realabstraktion des Tausches den genetischen Springpunkt der Denkabstrationen des
Verstandes. Denn im Tausch vollziehen die Menschen wirklich, was sie im Denken bloss ideell
vollziehen: Sie sehen ab von der qualitativen Beschaffenheit der Dinge und setzen sie als
Werte einander gleich. Marx: ‘Sie wissen es nicht, aber sie tun es.’ […] Der Tausch ist nach
Sohn-Rethel die praktische Urform der ideellen Identitätslogik, das abstrakte Denkvermögen
des Subjekts verdankt sich der Internalisierung der Formalstrukturen abstrakter
Vergesellschaftung durch geldvermittelten Warenverkehr. [...] ‘Das Geld’, sagt Sohn-Rethel, ist
‘die bare Münze des Apriori.’”
127
situação historicamente localizada são tematizados e discutidos, construindo
esteticamente uma dialética fracassada que marca nosso desenvolvimento
contemporâneo. Isto exige muito do leitor de Holzfällen e, sendo mais geral, da
obra de Bernhard. O escritor auxilia nesta tarefa ao procurar impedir a
identificação com personagens e com narradores; eles não são confiáveis,
dado que são manipuladores, sarcásticos, compulsivos e agressivos. Konrad
(personagem de Das Kalkwerk) corporifica um excelente exemplo; um
personagem abjeto, que provoca asco pela sua manipulação sádica da esposa,
relação caracterizada pela falta de compaixão, o que impede a identificação. O
narrador deste romance permanece sempre muito distante, não avalia, não se
coloca, mantendo-se friamente a elaborar um relatório como uma máquina
objetiva; porém o relatório está calcado no mais puro subjetivismo, pois ele
ouve pessoas que, afinal de contas, não tinham muito contato com o
assassino, Konrad. Uma leitura superficial nem notaria quem narra, tal o pouco
espaço que se dá a este assunto. Para Alfred Pfabigan:
Das Publikum versteckt seine affektgeladene Irritation, scheinbar ist ihm alles
selbstverständlich und es nimmt bei der Lektüre häufig die Haltung der Zuseher
gewisser Talk-Shows ein, die mit liberaler Unverbindlichkeit die vorgeführten
Exzentrizitäten konsumieren. Schon darin liegt ein deutliches Zeichen des
Publikums, sich auf Bernhard ‘einzulassen’. Dennoch hat dieser Autor, der
eigentlich für eine ‘Lektüre mit Handschuhen’ disponiert ist, es verstanden, viele
seiner typischen Leser/innen in Teilstücke seiner exzentrischen Welt derart zu
involvieren, dass zwischen ihm und seinem Publikum zeitweilig eine klebrige
Intimität, ja abhängige Beziehungen herrschten.
145
Além das duas leituras, o público ainda tem que se haver com a
penetração imediata da realidade no romance, formalizando a provocação e
levando de vez o texto para outros âmbitos.
Sobre os duplos e o caráter teatral da realidade
145
A. Pfabigan, “‘Einzeltextund ‘Gesamttext’ oder: Der Bernhard-Konformismus”, em Thomas
Bernhard, p. 15.
128
Já foram feitas considerações a respeito da dimensão decisiva do detalhe,
muitas vezes tido como insignificante no emaranhado narrativo, para a
interpretação dos textos de Bernhard. Mas também um outro efeito que não
se pode deixar de lado: as diminutas frestas, os pequenos deslizes e a falta de
medida para mais ou para menos permitem emergir uma concepção da
representação e da vida como encenação: há sempre um algo mais, um algo
menos, um exagero, um momento decisivo e único, rápido como um raio, que
perpassa a obra:
Da mein Schockiertsein ein gespieltes gewesen war, hatte ich die Annahme der
Einladung der Auersberger zu ihrem künstlerischen Abendessen auch gespielt,
weil alles gegenüber der Auersbergerischen auf dem Graben gespielt gewesen
war von mir […]. Ich habe allen alles immer nur vorgespielt, ich habe mein ganzes
Leben nur gespielt und vorgespielt, sagte ich mir auf dem Ohrensesel, ich lebe
kein tatsächliches, kein wirkliches, ich lebe und existiere nur ein vorgespieltes, ich
habe immer nur ein vorgespieltes Leben gehabt[…]. (HOLZ, 104-106)
Não apenas o próprio narrador, como é de se esperar, mas toda aquela
sociedade é marcada por uma artificialidade constitutiva. Neste sentido é
exemplar o momento da missa pela morte de Joana: os visitantes de Viena
levantam-se sempre um pouco mais cedo do que deveriam, ou sentam-se um
instante após o esperado, num descompasso ínfimo e mínimo, porém
suficiente para fazer cair toda a máscara de credibilidade e de autenticidade
destas pessoas. Os termos se acumulam e se sobrepõem:
“künstlerischen
Menschen, künstlerischen Vorhaben, künstlerischen Tätigkeit, künstlichen Gang,
künstliche Stimme, alles an ihnen war künstlich, [...].” (HOLZ, 107)
O mecanismo funciona como se apenas pelos pequenos detalhes se
pudesse atingir uma intuição imediata e total da situação e do que está perdido
pelas entrelinhas, e que passa despercebido. Os vienenses não estão vestidos
adequadamente para o enterro; o narrador, ao ser acordado na Ohrensessel
pela Auersberger, segura seu braço no instante mesmo em que ela ia tocá-lo
de modo um pouco violento e bruto demais; os Auersberger o teriam observado
no Graben e feito o convite para o jantar no único e exato instante que o
impediria de recusá-lo; o ator do Burg falara um pouco baixo demais no teatro;
129
os pequenos gestos e entonações põem tudo a perder. Aos habitantes do
campo é dada certa naturalidade que, a bem dizer, não remete à natureza ou a
injunções puramente biológicas; é uma naturalidade que está relacionada à
imediatez do comportamento, contrastada à mediação racional dos vienenses.
Mas a diferença aqui o é de qualidade, mas de grau. Estamos no âmbito da
segunda natureza, social, construída, tanto de um lado quanto de outro, mas
esta diferença aqui de grau vai se tornar cada vez mais significativa ao ponto
de, no limite sob o capitalismo tardio dos dias de hoje atingir a diferença
qualitativa; o grau de construção das identidades esvaziadas consciente e
deliberadamente aponta para outro momento na concepção de sujeito, que
não é alheio nem com maus olhos o fato de ser mera representação no
espaço social. A vida nas cidades e nas metrópoles, com seu grau de
abstração exagerado em todos os níveis, favorece este processo e o energiza.
Mas a ideologia rasa que marca os habitantes do campo, também segunda
natureza, poderosa pelo seu poder ilusório, por ser imediata e inconsciente,
confunde-se facilmente com o conceito de “natural”. Esta ideologia não é
esquecida por Bernhard, que faz questão de apontar a pequenez de horizontes
de mundo do parceiro provinciano de Joana.
Na esteticização deste processo a voz é entregue aos personagens em
vários momentos e a entonação assume papel de destaque, radicando-se nela
muito da força expressiva e interpretativa. Num exemplo, constitui um ritmo que
interpola a voz do narrador e a do ator do Burg, mimetizando assim a cadência
corporal da fala do ator do Burg que, esfomeado, fala enquanto sorve a sopa.
O narrador, como se percebe ao longo da narrativa, é um observador
meticuloso e penetrante. O procedimento adotado ainda é emblemático do
modo de proceder deste narrador, que nunca é isento ou se ausenta,
interferindo deliberadamente, seja isto explícito ou não.
Der Ekdal, sagte er und löffelte die Suppe, der Ekdal ist schon jahrzehntelang
meine Wunschrolle gewesen, und er sagte, wieder Suppe löffelnd, und zwar alle
zwei Wörter einen Löffel Suppe nehmend, also er sagte der Ekdal und löffelte
Suppe und sagte war schon und löffelte Suppe und immer meine und löffelte
Suppe und sagte Lieblingsrolle gewesen und löffelte Suppe und er hatte auch noch
zwischen zwei Suppenlöffeln seit Jahr- und dann wieder nach zwei Suppenlöffeln
130
zehnten gesagt und das Wort Wunschrolle genauso, als redete er von einer
Mehlspeise, denke ich. (HOLZ, 177)
Assim o narrador mistura sua voz em primeira pessoa com o discurso
direto do personagem, neste caso com o objetivo específico de representar o
tempo e o ritmo da fala entrecortada pela sopa, e do efeito cômico e ridículo
que isto provoca.
A palavra “quase”, mesmo que não pronunciada, é aqui de extrema valia;
por um instante que seja, por um movimento um pouco mais brusco que o
devido, por uma roupa mal escolhida, por uma entonação ou um olhar um
pouco que seja inesperados, uma fala baixa demais, irrompe toda a força da
impossibilidade de se alcançar alguma “perfeição” e de se salvar, tendo algo
em que se apoiar. O naufragar de tudo e de todos é irremediável. A busca da
perfeição na arte é inatingível; neste passo discute-se a impossibilidade de
perfeição na construção da máscara social, pois a estrutura que molda a
máscara o capitalismo gira em falso, depende completamente duma
abstração que esvazia os sujeitos. Indo mais longe, a construção consciente e
aceita socialmente desta máscara atesta a centralidade da concepção estética
na vida cotidiana nos dias de hoje.
No caso específico deste romance, este ideal seria a perfeita encenação,
o assumir completa e irrestritamente o papel que coube a cada um, e perder-se
nele. Veja que isso não seria de modo algum descobrir uma essência profunda,
mas apenas viver completamente identificados por analogia o que não iguala
ao que se espera de nós. Esta saída para alguns terrível seria a única
plausível, mas mesmo este caminho se tornou impraticável. Este topos da
busca da perfeição é também percorrido por vários outros de seus textos; em
Die Macht der Gewohnheit, os atores de um circo ensaiam 20 anos uma
peça de Schubert, mas nunca conseguiram tocá-la perfeitamente; não obstante
isso, não param de ensaiar, mesmo sabendo da impossibilidade desta tarefa.
Mas permanece a estrutura de poder estabelecida pelo diretor do circo
Caribaldi e já absorvida e entranhada pelos outros, que embora externem
revolta contra o absurdo de sua situação, não impedem a continuação de sua
exploração.
131
Em Alte Meister o narrador permanece, dia sim dia não, por toda a
manhã, no Kunsthistorisches Museum de Viena mirando as obras dos grandes
mestres e procurando defeitos nelas; especialmente no quadro “Weissbärtigem
Mann”, de Tintoretto. “Alle diese Gemälde sind grossartig, aber kein einziges ist
vollkommen, so Irrsigler nach Reger.” (AM, 13) A concepção de gênio é
descartada; dos grandes mestres, um não sabe pintar mãos, outro paisagens,
outro vestimentas: a perfeição é impossível pois o conceito de perfeito é
histórico, assim como a verdade. Deste modo, critica veementemente o
Kunsthistorisches Museum pela sua orientação política e ideológica.
146
A cultura torna-se mais uma mercadoria que se possui ou não, sendo
banida a fórceps do mundo da vida e se refugiando numa esfera autônoma e
estéril, relacionando-se, porém, como tudo e todos, pelo dinheiro. Por este
argumento se deve avaliar uma obra de arte pela fama do autor e pelo valor
monetário atribuído à mesma, deformando por completo o conceito de arte. A
crítica não deve ser reacionária, mas historicizar o processo e seus efeitos. A
luta de morte contra estas distâncias intransponíveis entre esferas autônomas
e que servem para legitimar e dourar as contradições, absurdos e aporias da
vida nos dias de hoje configura-se como uma das muitas batalhas
instauradas pela obra de Bernhard, que se debate contra todas as categorias
dessa concepção que se quer independente. E o faz, como se viu, pelas
fissuras e frestas que se tornam uma obsessão.
Voltando ao texto de Holzfällen, o narrador nem por um momento os
chama de “Auersberg”, diga-se de passagem, refutando o nome que, então,
quando mencionado, assume um caráter grotesco; o “-erfinal apresenta-se
como uma excrescência, um insulto irônico, devastador, ecoando para além de
seus limites. Não é demais lembrar que este er”, em alemão, é o pronome
pessoal masculino ele, caso nominativo, ou seja, substitui um sujeito que age.
Sua eliminação pode ser lida em pelo menos três chaves: primeiro, a assunção
de uma posição aristocrática passou a ser apenas uma questão lexical,
vocabular, abstrata; segundo, o marido Auersberger foi destruído, eliminado,
146
“In Österreich muss man die Mittelmässigkeit sein, um zu Wort zu kommen und ernst
genommen zu werden, ein Mann der Stümperhaftigkeit und der provinziellen Verlogenheit, ein
Mann mit einem absoluten Kleinstaatenkopf. Ein Genie oder ja schon ein ausserordentlicher
Geist wird hier auf entwürdigende Weise über kurz oder lang umgebracht, sagte ich zu
Irrsiegler.” (AM, 21).
132
sendo seu lugar ocupado pela ativa esposa; terceiro, e mais abrangente,
acompanha o sujeito deixar de ser sujeito, tornando-se um simulacro de si
mesmo, rendendo-se ao sujeito formado pelo capital; houve aqui uma espécie
de castração simbólica que alegoriza o que ocorre com as pessoas no
capitalismo.
O ator do Burg que é conhecido por este nome na narrativa é o
duplo do Ekdal, de O Pato Selvagem ou, como discutido, um simulacro
muito mal resolvido. Muitas das suas falas no jantar são citações diretas da
peça, entre elas o título do livro. O narrador é o duplo do autor, com vários de
seus traços biográficos identificáveis ao longo do texto, além do próprio Ekdal-
pai. Se os Auersberger são simulacros de aristocratas, Jeannie Billroth (“a
Virgínia Woolf austríaca”) representa a artista burguesa típica, falsamente
crítica, ligada às estatísticas e à ciência. O ator do Burg encorpa o romântico
tardio, enquanto o Auersberger é o bêbado, o bobo da corte. Joana é o duplo
de Fritz; ela o produziu como tapeceiro ao fazer circular sua obra entre a classe
alta e artística de Viena, de modo que fez dele o seu produto.
Simultaneamente, porém, ela se torna este produto, ela passa a ser Fritz: “[...]
also die Kunstwerke des Fritz [...] sind in Wahrheit die der Joana, wie alles, wie
der Fritz heute ist, von der Joana ist, die Joana ist.” (HOLZ, 139) Neste trecho
representa-se de modo cabal, rápido e definitivo o processo de mercadorização
de Joana, passando pela duplicação no outro. Da concisão estética da
passagem depende sua força. O argumento se inicia pela constatação de que
Fritz se tornou vendável e um artista famoso pela interferência de Joana,
que o apresentou ao círculo de dinheiro e prestígio de Viena. Daí vem a
sequência: a arte de Fritz é arte de Joana, pois a arte não é um valor em si,
mas seu significado é construído, moldado historicamente, aqui redutível ao
dinheiro. Mas não isso: tudo o que o Fritz é hoje, um artista de renome, é
uma mercadoria da Joana. O autor é mercadoria, construída de fora.
O tema do duplo é um topos da literatura ocidental, aqui com a função
específica de mostrar o quão real é a ilusão num mundo cada vez mais
abstrato, caracterizado por Guy Debord como a “sociedade do espetáculo”, e
um pouco além, o topos austríaco barroco do mundo como teatro. O complexo,
formado por redes inextricáveis que constroem significados, não pode ser
133
impunemente quebrado e seccionado sem perda irremediável. A arte é um
espaço privilegiado para lutar contra o seccionamento da realidade:
[…] for what is relatively transparent and demonstrable in the cultural realm,
namely that change is essentially a function of content seeking its adequate
expression in form, is precisely what is unclear in the reifeid world of political,
social, and the economic realities, where the notion that underlying social or
economic ‘raw material’ develops according to a logic of its own comes with an
explosive and liberating effect.
147
A discussão sobre a estética do duplo e o caráter abstrato-ilusório da
construção da identidade das pessoas que se tornam mercadoria atinge nível
formal no texto ora analisado, totalmente ancorada no debate crítico sobre o
capitalismo na segunda metade do século XX, com suas implicações para a
vida e a cultura, além da relação direta com a realidade austríaca.
Acompanhou-se um pouco o percurso pelo qual a virtualidade e a aporia que
caracterizam estes momentos turbulentos chegam a um grau que, embora
mais incisivo do que aquele discutido por Marx, era um momento lógico
previsto e tratado por ele para estar com Kurz, o Marx do fetiche da
mercadoria, sua ilusão e segredo, e não o Marx da luta de classes
148
. A forma
literária surge como um condutor de destaque para a interpretação e leitura
tanto da própria literatura como da sociedade, formando uma dialética
constitutiva e necessária.
Crítica das categorias de crítica
No esforço pela localização histórica das categorias estéticas, um dos
elementos-chave refere-se à corporalidade da escrita e da escrita sobre o
corpo humano, o que se encontra dentro da perspectiva geral contra a
metafísica da linguagem pela linguagem.
147
F. Jameson, Marxism and Form, p. 328.
148
Cf. R. Kurz, O colapso da modernização. o que sejam dois Marx diferentes, pois um
pressupõe o outro, mas a lógica da mercadoria abarca e cria o contexto no qual aflora a luta de
classes, que se move dentro daquela lógica.
134
Se há poucos momentos em sua obra em que se tomam decisões e estas
são postas em prática – não obstante serem decisivas para se entender a obra
– uma das mais viscerais surge quando se trata de se manter vivo ou sucumbir,
que se resume em Der Atem a uma concisa fórmula: respirar ou não. Uma luta
corporal que se converte, neste volume autobiográfico, sob o ponto de vista
adulto, em configuração estética de uma escrita corporal em primeiro plano,
dos baixos e escuros do corpo e de seu ritmo fragmentário. Aqui fica claro que,
sob condições extremas, sob o colapso iminente, o homem toma uma decisão:
o jovem decide viver. Este é o espaço de ação que lhe restou, e neste contexto
ele age. O corpo não é imaterial: a escrita fragmentária respeita e configura,
esteticamente, a irredutibilidade ao plano transcendente; a formalização desta
vivência é um traço marcante e distintivo da estética de Bernhard, por outro
lado tão matemática e precisa nos movimentos pendulares que realiza.
Escrever também é respirar: quando a vida depende de um esforço
desumano para realizar a mais banal e vital das atividades do corpo, a
necessidade de ar não pode ser abstraída. Do mesmo modo que as doenças
pulmonares serão companhia e tormento constante, sua escrita também será
uma luta contínua contra a morte. O corpo não é uma abstração, uma idéia de
perfeição. E do mesmo modo o ar, tão necessário, porém rarefeito. Em Frost,
como se viu, o ar (Luft) é o único conhecimento verdadeiro; aqui se completa,
pelo que ele tem de objetivo, material, resistência contra a morte. Não é à toa
que Bernhard escreve seus primeiros poemas nos sanatórios por onde passou.
Mas estas decisões não o afastam da condição objetiva em que se encontra.
Não se trata, de modo algum, de esteticismo, do ideal da arte pela arte, de fuga
para o espírito criador ou algo análogo, como procuro demonstrar neste estudo.
[...] und ich lief und lief und dachte, dass ich, wie allem Fürchterlichen, auch
diesem fürchterlichen sogenannten künstlerischen Abendessen in der Genzgasse
entkommen bin und dass ich über dieses sogenannte künstlerische Abendessen in
der Genzgasse schreiben werde, ohne zu wissen, was, ganz einfach etwas
darüber schreiben werde und ich lief und lief und dachte, ich werde sofort über
dieses sogenannte künstlerische Abendessen in der Genzgasse schreiben, egal
was, nur gleich und sofort über dieses künstlerische Abendessen in der
Genzgasse schreiben, sofort, dachte ich, gleich immer wieder, durch die Innere
135
Stadt laufend, gleich und sofort und gleich und gleich, bevor es zu spät ist. (HOLZ,
321)
Pela escrita o narrador não irá recuperar o jantar, mas criá-lo, como uma
Erregung. É indispensável e constitutivo desta forma que o faça logo,
imediatamente, e esta palavra, como se sabe, evoca a imediação da realidade
social que esta forma pressupõe, ou seja, não apenas escrever ainda com tudo
fresco na memória do evento recém-acabado, mas penetrando na carne de
uma realidade e de uma forma social que se impõe exatamente neste
momento, nos anos 80, o que vale tanto para o narrador, quanto para o autor.
Não se pode esquecer que esta rememoração do “jantar artístico” e fúnebre
não se restringe ao que foi dito, visto e comido no jantar mesmo, mas a
rememoração inclui uma atualização dos anos 50, que vêm à tona durante o
jantar. Mesmo esta atualização depende do contexto em que ocorreu a
rememoração, que a ativou, e se este momento se perder, perde-se a história,
simplesmente. O que está em jogo aqui é uma releitura da história que se faz
possível naquele contexto específico, e Bernhard sabe muito bem disso. O
desfecho deste texto será marcado até mesmo por um ritmo e uma sonoridade
diferentes: verbos e advérbios ligados pelo conectivo “e” (em alemão und”)
lembram o ritmo de uma corrida desenfreada:
[...] dass ich diese Menschen verfluchte und doch lieben muss und ich dachte,
während ich schön durch die Innere Stadt lief, dass diese Stadt doch meine Stadt
ist und immer meine Stadt sein wird und dass diese Menschen meine Menschen
sind und immer meine Menschen sein werden und ich lief und lief und dachte, dass
ich [...] (HOLZ, 321)
A aliteração do /m/ (menschen, muss, meine, immer), e especialmente a
aliteração do /se/ /x/, som que mimetiza o ato de respirar e que se torna um
chiado doloroso quando se pensa num doente pulmonar é muito marcada:
dass, ich, menschen, verfluchte, doch, muss, dachte, schön, durch, Stadt, e por
fora. O estudo desta passagem não pode se furtar dos elementos de análise
de um poema, e não poderia deixar de sê-lo. Este final representa, portanto,
não apenas no nível do conteúdo, uma corrida desenfreada sem fôlego, mas as
136
estruturas lexicais, sintáticas e fonéticas também contribuem para o efeito total,
atingindo um grau elevado de condensação, tensão, ambigüidade e
significação, fechando esta provocação que, sendo assim, não mira
unicamente o músico Lampersberg, mas a cidade de Viena e o que ela
representa.
Escrita corporal e física – construção da realidade em Holzfällen
Após estas considerações, reitero a necessidade da mediação estética
para a construção e exposição da realidade. Não sequer a pretensão de
uma descrição afastada, fidedigna e objetiva do jantar, de si mesmo e das
pessoas. Pelo contrário, é no e pelo calor das emoções e da correria, ápice do
desespero, da tensão e da ambigüidade constitutiva que irrompe não apenas o
momento adequado, mas o único capaz de representar aquela festa. O que se
representa é esse desespero, antes de tudo, desaguando em inacabamento
essencial, com o naufrágio de todas as perspectivas de comunicação e de
entendimento de si e dos outros. Trata-se disso e ele o faz pelos móveis,
entonações, linguagem, olhares, escuros do texto: o resto é ilusão formal.
Preocupa-se com os castiçais e cortinas da festa, mas não com o impulso de
descrevê-los e trazer realismo à ambientação, e sim por pertencer a eles o
discurso. o é apenas uma volta ao eu”, mas sobretudo uma visada
materialista e objetiva, que passa pelo sujeito, necessariamente. Este é o
estranhamento: nem um psicologismo que eleva o homem à condição de um
demiurgo, nem uma descrição objetiva que conferiria realismo: a voz é passada
para estes componentes encobertos que, por vários procedimentos, fazem das
mesas sujeitos do discurso. Em Marx:
Die Form des Holzes z.B. wird verändert, wenn man aus ihm einen Tisch macht.
Nichtsdestoweniger bleibt der Tisch Holz, ein ordinäres sinnliches Ding. Aber
sobald er als Ware auftritt, verwandelt er sich in ein sinnlich übersinnliches Ding. Er
steht nicht nur mit seinen Füssen auf dem Boden, sondern er stellt sich allen
andren Waren gegenüber auf den Kopf und entwickelt aus seinem Holzkopf
Grillen, viel wunderlicher, als wenn er aus freien Stücken zu tanzen begänne.
149
149
K. Marx, Das Kapital, p. 85.
137
Ou seja, as mesas dançam, têm cabeça, pensam, apesar de serem,
ainda, madeira. Tudo assume um sinal invertido. No fundo, trata-se de um
processo dialético pelo qual estes móveis são cadeiras, mas não são cadeiras.
De onde se vê que descrever um móvel é descrever um móvel e toda a
sociedade, objetivamente, a partir do móvel. Em estrita correspondência
localiza-se, nesta concepção, a arte. Com a diferença que não se pode sentar-
se sobre os quadros a óleo dos Auersberger, descritos no mesmo espírito que
os móveis. O que a arte faz é ainda mais forte, no entanto: como não se pode
comer sobre ela ou seja, ela não é funcional em termos práticos –, ela serve
unicamente para moldar a visão de mundo, de ética, estética, de
conhecimento, e mesmo de política e economia, sustentando quase
fisicamente, com certeza materialmente as bases desta sociedade, tanto por
moldá-la, como pela transmissão, difusão e entranhamento. Ao fugir da
contradição e do encontro com o próprio tempo, a arte dos Auersberger
instrumentaliza esta subjugação, que se transforma numa entrega prazerosa.
Daí a presença e importância desta obra de Marx na concepção de realidade
forma social e de cultura forma estética em Bernhard, além do
imbricamento constitutivo entre estas duas formas, que não apenas se
espelham ou são correlatas, mas se produzem e reproduzem continuamente.
Em Bernhard, é correto afirmar que uma torrente sinuosa de frases e
discursos criando uma névoa que cobre personagens e situações, o que eleva
a linguagem e seus volteios para um nível de destaque. No entanto, este
procedimento nunca ocorre com o afastamento destes personagens do
contexto histórico-social e também cultural em que estão, pelo contrário; numa
segunda volta hermenêutica, o que parecia acessório e esteticizante
(linguagem pela linguagem) revela-se o seu contrário. Numa palavra, esta
névoa que é objetiva, estrutura íntima tanto da sociedade quanto da obra em
questão será configurada no texto não apenas na condição de encobrimento
necessário nesta sociedade: antes de qualquer coisa, o texto pretende
expressar este turvamento formal, materializado nesta névoa que sempre
esteve presente mas, por condições históricas, permanecia oculta embora
atuante, provocando um travamento formal nos autores mais significativos,
138
nem sempre compreendidos como poderiam e deveriam. Nestes, muitas
vezes reclamou-se a falta de nexo causal entre alguns fatos narrados e suas
conseqüências plausíveis, sob a alegação de falta de ritmo, de
verossimilhança, de coerência. Esse fato, na perspectiva que adoto, deve ser
avaliado de modo contrário, em sua positividade, na condição de uma
impossibilidade formal do romance, necessária e reveladora.
Este véu, esta névoa, este embaçamento reassumem, nessa segunda
volta, sua posição, superando dialeticamente a discussão travada apenas no
âmbito da linguagem; como toda superação dialética, como se sabe, não
elimina este nível do debate, mas o supera conservando. Isto se dá em
Bernhard pela aversão completa à esteticização pela pura estética: como se
viu, em todos os âmbitos (autor e obra, relação com o leitor, nos conteúdos, na
concepção de arte, linguagem e verdade, no inacabamento constitutivo, pelo
exagero formal, pela posição do narrador) Bernhard impede a desvinculação de
uma posição firme: levar para o âmbito da metafísica e romper os lastros
materiais corresponde a fazer o jogo da ideologia que, quero crer, a obra de
Bernhard explicita e, formalmente, repudia e evita, ponto por ponto embora
flerte com ela, o que faz parte da própria configuração formal, que pressupõe o
engano, a dúvida, a ambigüidade.
em Frost a névoa e a escuridão cobrem tudo e todos, numa figuração
do que irrompe nos outros romances de modo menos visível, pela linguagem,
que quase se materializa. Em Holzfällen, esta névoa é material, e o processo
mesmo é descrito, embora invertido.
Die Macht und die Hilfslosigkeit der Künstler und überhaupt der Menschen sind mir
auf dem Sebastianplatz zum ersten Mal deutlich geworden, als hätte ich auf dem
Sebastianplatz den undurchdringlichen Nebel, der bis dahin die sogenannte
künstlerische Gesellschaft zugedeckt gehabt hatte, heben können, dachte ich.
(HOLZ, 133)
Aqui esta névoa ainda é abstrata, conceitual, de trinta anos atrás, quando,
num despontar de consciência ainda sem grande clareza, começa a perceber
qual o verdadeiro centro daquela sociedade artística. Antes disso:
139
[...] dachte ich auf dem Ohrensessel, von welchem aus ich die Gäste im
Musikzimmer beobachtete, die wie auf einer Bühne agierten im Hintergrund, einer
beweglichen Photographie ähnlich durch den Zigarettenrauchschleier, den die
Gäste durch fortwährendes Rauchen erzeugt hatten in der Zwischenzeit. (HOLZ,
54)
Os itálicos são meus, e pretendem enfatizar a névoa da sociedade. Se no
primeiro caso esta névoa é metafórica, no segundo ela é também material: ela
é produzida pela fumaça dos fumantes na sala de sica. O cigarro, aqui, não
deixa de ser também ideologia, fazendo parte do mesmo processo debatido
das cadeiras e da arte, constituindo o sujeito que o consome, como bem sabem
as companhias que os produzem e que, pelo marketing, atualizam este
percurso. De forma que esta névoa é material, metafórica e, também, objetiva
no sentido econômico, político e cultural. No texto, no entanto, visto apenas
como tema, perde em importância quando comparado à materialidade da
névoa provocada pela própria linguagem exagerada, pelos detalhes, pelo
labirinto, que pedem superação. Esta superação se dá pelo excesso, pelo
alcance do limite e pela passagem ao seu contrário, que mantém o ponto de
partida. A abstração da névoa no trecho da página 133 evidencia que se deve
atribuir a esta névoa estatuto formal; e, ainda, que a leitura deve ser sempre
atenta, pois a névoa dos cigarros da página 54 o é inocente, não é mera
caracterização realista.
Noutras palavras: é certo que há ilusão e que a realidade é construída.
Trata-se aqui da relação objetiva entre pessoas, que vivem concretamente
(Lampersberg etc), e suas mediações com a política, economia e cultura.
Mediação não é a mesma coisa que relação: a relação se estabelece entre
coisas que são externas umas às outras, enquanto a mediação é interna,
constitutiva, necessária. Por isso é sempre complicado discutir as relações
entre literatura e sociedade, embora existam na medida em que se aceite estes
campos como autônomos, seja apenas por uma questão epistemológica. Mas
sobretudo mediação que faz da sociedade constitutiva para a literatura e
vice-versa. Aqui a diferença entre uma sociologia da literatura mal feita (foco
apenas nas relações, considerando-se o limite de cada campo ou sistema
140
demarcável, e as fronteiras e contatos conseqüentemente objetos) e teoria da
literatura (que também, claro, pode ser mal feita, mas quando bem feita procura
os liames formais internos na dialética entre literatura e sociedade). O gênero
“provocação” leva ao extremo estas considerações.
O narrador de Holzfällen não é um coitado ou alguém que justifica suas
ações. Ele faz pilhéria, usa tintas grotescas para pintar seus personagens,
humilha-os além da conta, repelindo a aproximação de quem quer que seja.
Depois de tocar nas feridas, penetra nelas e as revira, com sarcasmo, gozo e
dor. O narrador é uma figura muito forte, concentrando-se nele as tensões e
contradições cujas fontes, no entanto, estão além dele. Daí a importância do
silêncio nos textos de Bernhard, com o exemplo mais cabal em Holzfällen, no
qual o narrador-personagem quase não fala, sendo uma figura praticamente
muda. De modo geral, considero que Bernhard tensiona a forma até o limite
neste texto, em todos os âmbitos, num livro curto que parece longo, o que
condiz com o momento em que escreve, 1984.
150
150
Por acaso, o título de uma obra-prima de George Orwell; e não por acaso, Kurz escreve um
excelente artigo onde argumenta que, neste livro, o autor discute desdobramentos formais do
capitalismo, mais do que erige uma crítica6(a)1.4422(i)5(s)-6..5(p)-4.33117(r)2.80439(a)-4.3311(í)0.72s o
141
3. A formalização estética da provocação: o caso Holzfällen
In meinen Büchern ist alles künstlich.
(Thomas Bernhard, “Drei Tage”)
Das ist doch nur die Wahrheit!
(Thomas Bernhard, em entrevista a Sepp
Dreissinger)
A “terceira fase” da obra de Thomas Bernhard é fortemente dedicada à
relação complexa com a opinião pública. Com isso, ao mesmo tempo em que
angariava notoriedade – garantia de boas vendas –, o escritor também se
insinuava num debate que ocorria paralelo às discussões artísticas, exigindo
que o público folheasse, por assim dizer, todo o jornal à procura de textos de e
sobre Bernhard e sua obra. Uwe Betz dirá que, agora, Bernhard quer pisar o
tabuleiro do mundo.
151
Cada vez mais, os âmbitos estético, ideológico e político
não se separam. Esse movimento, que ganha impulso com a autobiografia,
desenvolve-se completamente ao longo desta “terceira fase”. Na obra em
prosa, Holzfällen. Eine Erregung ocupa posição de destaque: por um lado, o
autor nunca gerou tantos artigos pró e contra si mesmo e sua obra, o que
implicou uma vendagem também superior
152
; por outro, e este aspecto é ainda
mais decisivo, Bernhard parecia não apenas contar com a acalorada
repercussão obtida, mas a teria preparado, o que se deduz tanto do próprio
texto/da letra do próprio romance quanto do seu modo peculiar de se inserir no
debate:
Neben Heldenplatz, Bernhards letzten Werks, ist der Roman Holzfällen wohl sein
ambitionierster Versuch, den Ausbruch des Spiels in die Zeit zu wagen. Das
Unterfangen gelingt, der Skandal ist geradezu perfekt. [...] Die Inszenierung des
echten Skandals – die Bernhard im Auge hat – folgt einer anderen Logik. Sie bietet
151
U. Betz, Polyphone und karnavalisiertes Erbe, p. 255 ss.
152
Cf. R. Hörlezeder, F. Mühlbek e A. Nowak, “Die Erregungskurve. Eine Empirische
Untersuchung zur Resonanz Bernhards in den deutschsprachigen Printmedien 1963-1992”, em
W. Bayer (org.), Kontinent Bernhard. Zur Thomas-Bernhard-Rezeption in Europa.
142
der autonomen Kunst die Möglichkeit, mit der ernsten und gefährlichen Wirklichkeit
in Kontakt zu kommen.
153
Papel da recepção: histórico e clímax em Holzfällen
Antes de tudo, deve-se notar que Bernhard não era novato em produzir
escândalos.
154
Jens Dittmar discorre sobre nada menos do que vinte e nove
deles ao longo da obra (catorze deles ocorreram nos anos 80, onze nos anos
70), variando de altercações com figuras do maior respeito, como Elias Canetti,
passando por políticos como o então primeiro-ministro Bruno Kreisky. “Thomas
Bernhards Theater der Widerlichkeiten ist das Österreich der Nachkriegszeit,
der siebziger, vor allem aber der achtziger Jahre.”
155
O primeiro escândalo digno de menção ocorre em 04 de março de 1968,
quando Bernhard recebe um prêmio literário (“Österreichische Nationalpreis”):
no discurso de agradecimento, o escritor afirma que os austríacos são
desprovidos de caráter, inteligência e fantasia, com o que provoca a ira do
ministro da cultura da Áustria, presente na ocasião; este levanta-se e retira-se
da sala, no que será acompanhado de grande número de pessoas indignadas.
Este caso merece atenção pois, quatorze anos depois, será literariamente
reconstruído em Wittgensteins Neffe. Nos anos 70, mais especificamente entre
1972 e 1975, trava uma queda de braço com o diretor do Festival de Salzburg,
Josef Kaut. Ainda em 1975, uma primeira estação que nos interessa mais de
perto, alvo de considerações: o padre Franz Vesenauer se vê no
personagem autobiográfico “Onkel Franz”, processa o autor e consegue, ao fim
de dois anos, que partes do texto sejam extirpadas, pois seriam ofensivas à
sua honra.
Em 1979, outro caso digno de nota. Num dos textos curtos da coletânea
Der Stimmenimitator (1978), chamado “Exempel”, um juiz distrital de nome
Zamponi, após aplicar uma pena exemplar a um crime, suicida-se na frente de
todos. De fato, havia em Salzburg um juiz distrital com este nome, que tinha
153
L. Ellrich, “Die Tragikomödie des Skandals. Thomas Bernhards Roman Holzfällen und der
Ausbruch des Spiels in die Zeit”, em F. Shößler e I. Villinger (orgs.), Politik und Medien bei
Thomas Bernhard, p. 180-181.
154
Uma recensão deste percurso pode ser lida em J. Dittmar (org.), Sehr gescherte Reaktion.
Leserbrief-Schlachten um Thomas Bernhard.
155
K. Zeyringer, Innerlichkeit und Öffentlichkeit: österreichische Literatur der achtziger Jahre, p.
106.
143
morrido de morte natural. Sua filha processa Bernhard, que muda o nome nas
edições posteriores para Ferrari. O que mais chama a atenção é a resposta
dada por Bernhard na ocasião: a “citação” tratava-se de uma homenagem ao
juiz.
156
Não interessa ao autor como o juiz falecera, pois o seu texto é ficcional.
O procedimento é ilustrativo de uma das tendências de sua obra e,
especialmente, desta coletânea: seus textos, curtos, diretos, de uma página,
“imitam” a forma jornalística. Aparentemente trata-se de informações que, por
sua forma mesmo, ganhariam autenticidade: muitas delas, inclusive, citam
jornais como fontes. Não apenas os jornais, mas pessoas reais aparecem com
seus nomes na narrativa. Mas, por outro lado, e por isso esta cnica de
“imitação” está entre aspas, nada do que ali se soa verossímil, mais ainda,
bate de frente com qualquer lógica. A imitação de Bernhard deforma o imitado
até torná-lo quase irreconhecível, para usar uma expressão cara ao autor.
Assim, Goethe teria dito “mehr nicht” ao invés de “mehr Licht” ao morrer, e os
prefeitos de Pisa e Veneza conspiravam trocar, de noite, a Torre de Pisa pelo
Campanilo, tendo sido presos na noite anterior ao crime e levados ao
sanatório. O “imitador de vozes” do conto que título ao livro consegue imitar
todas as vozes, mas não conhece a própria voz.
Deste modo, temos aqui uma estrutura diferente daquela da autobiografia,
em que o próprio formato facilita a identificação de um personagem com uma
pessoa de carne e osso; nesta coletânea, estas pessoas passam a ser
eminentemente personagens que, fora o nome, nada têm a ver com a figura
esteticamente concebida. Nesta mesma linha, o Kant da peça de mesmo nome
faz uma viagem de navio aos EUA, e o Glenn Gould de Der Untergeher é um
personagem, embora seja um objetivo expresso e declarado que estas figuras
públicas sejam a referência da leitura (uma vez que seus nomes e alguns fatos
de suas vidas aparecem diretamente no texto). Bernhard não estava
interessado nesses fatos, mas sim em seu procedimento literário. Assim, não é
justo depreender juízos de Bernhard, a partir de seus textos, posto que sua
intenção não é argumentar, pelo contrário, muitas vezes, intenta,
prioritariamente, produzir desconforto, revolta, oposição. “Selten wird daraus
konkreter Gewinn oder Information zu ziehen sein, im besten Fall Irritation.
156
Cf. J. Dittmar (org.), Sehr gescherte Reaktion, p. 87.
144
Doch auch das Verfahren der Irritation verdient Beachtung.”
157
Veremos, por
exemplo, que Goethe será um dos alvos prediletos de seu ataque
indiscriminado aos clássicos, o mesmo Goethe adorado pelo autor Thomas
Bernhard.
Entre 1979 e 1981 ocorre uma série de altercações, via jornais e
revistas, com o então primeiro-ministro Bruno Kreisky (chanceler de 1970 a
1983), incensado por grande parte da crítica e do público. Este ponto é
decisivo, pois mostra que a escalação destes escândalos faz chegar aos
postos mais altos da República, angariando com isso desafetos e apoiadores,
mas nunca o desprezo. E assim chegamos a Holzfällen. Eine Erregung, e
passo agora a discorrer sobre este “escândalo anunciado”.
O grupo em torno do pianista Lampersberg(er) em Tonhof: antecedentes
do “crime”
Thomas Bernhard procurou, ao longo da década de 1950, travar contato
com pessoas influentes do círculo das artes da Áustria, com o intuito de
conseguir inserção num cenário pouco receptivo a novos autores. Entrando em
contato com o círculo conservador de Hans Weigel, que publicou alguns textos
de Bernhard entre 1954 e 1956, conheceu Jeannie Ebner, que o apresentou a
Gerhard Lampersberg em 1957.
158
“Diese persönlichen Beziehungen waren in
der Nachkriegszeit und in den fünfziger Jahren um so wichtiger, als von
staatlicher Seite kaum eine Förderung junger Künstler zu erwarten war.”
159
Lampersberg era um pianista, representante da vanguarda e, em torno
dele e de sua esposa Maja, reunia-se um grupo de jovens artistas,
especialmente os autores do Wiener Gruppe”, como Oswald Wiener, H. C.
Artmann e Gerhard Rühm, mas também Jeannie Ebner, Gerhard Fritsch e
Thomas Bernhard. Os encontros ocorriam na propriedade chamada Tonhof, na
região de Maria Saal, herdada pelo casal. Não apenas o espaço era cedido por
eles, como ainda atuavam no papel de mecenas de parte deste grupo.
Bernhard, por exemplo, passava longas temporadas entre 1957 e 1960 com o
157
W. Schmidt-Dengler, “Bernhards Scheltreden”, em Der Übertreibungskünstler, p. 131.
158
Sobre este período, cf. J. Hoell, Thomas Bernhard, München: DTV, 2000, p. 63-70; H.
Höller, Thomas Bernhard, Reinbeck bei Hamburg: Rowohlt, 1993, p. 54-59; B. Doppler,
“Erregung gegenüber den fünfziger Jahren. Holzfällen und der Tonhof”, em J. Hoell e K. Luehrs-
Kaiser (orgs.), Traditionen und Trabanten, p. 207-216.
159
H. Höller, em Thomas Bernhard, p. 55.
145
casal em Tonhof, sendo um dos seus amigos mais próximos. As primeiras
peças de Bernhard, como “Die Rosen der Einöde”, de 1959, surgem do
trabalho conjunto com o pianista Lampersberg, que musicou este balé. Se a
publicação de Frost (1963) é tomada por muitos como o início da obra de
Bernhard, isto se deve ao fato dessa obra representar uma inflexão no trabalho
do autor, e de ser sua primeira incursão vigorosa em prosa, assumindo um tom
e estilo próprios; mas Bernhard já havia escrito textos curtos, poemas e mesmo
peças de teatro, estas especialmente no período de Tonhof. Em 1958,
Bernhard publica a coletânea de poemas In hora mortis, que tem uma
dedicatória a Lampersberg. A partir de 1960, a relação apresenta sinais de
146
outra história austríaca, também das mais significativas. De alguma forma, teria
ocorrido entre os anos 50 e 80 uma espécie de traição dos intelectuais,
culminando na esterilidade cultural dos anos 80. Nos anos 80, viu-se a
deterioração paulatina desta relação.
161
Deste modo, também se pode fazer
uma ponte entre este romance e Auslöschung: como se comentou, o próprio
Kreisky foi alvo de invectivas de Bernhard no final dos anos 70, e estes ataques
voltarão, de forma nada velada, também em Auslöschung. Aqui, em Holzfällen,
a ligação com este período é ainda mais indireta, sendo preciso conhecer o
pano de fundo histórico.
O romance trabalha entre estes dois períodos, deixando evidente o fosso
que separa estes dois mundos, com a classe artística participando de uma
espécie de jantar fúnebre (afinal, sob o signo do suicídio da personagem
Joana) na forma de um jantar artístico. O romance está muito além de toda e
qualquer imediação social, mas foi lido assim por grande parte da crítica;
também o erro oposto a este, concentrando-se apenas na letra do romance,
sem atribuir destaque a esta penetração da realidade operada pelo romance e
potencializada pelo escândalo. Este trabalho procura entender ambos os
momentos como constitutivos para a forma do romance. Começo pelo
escândalo e por esta imediação social, pois ela deve estar sempre ativa
quando do mergulho na tessitura do texto; o texto respira esta vida fora da
estética, mas não se reduz a esta perspectiva.
O escândalo Holzfällen
O crítico Hans Haider, tendo recebido um exemplar antes da publicação
para resenhá-lo, não demora a concebê-lo como um “romance de chave”
(Schlüsselroman), identificando uma a uma as personagens e seus
equivalentes na vida cultural vienense.
162
Jeannie Billroth seria Jeannie Ebner,
Maria Zaal seria Maria Saal e, por fim, o casal Auersberger seria o casal
Lampersberg. Especialmente o marido, Gerhard, seria o alvo no romance de
um processo difamatório sem precedentes. Contra todas as boas práticas
jornalísticas, entra em contato com este amigo e lhe envia o exemplar.
Lampersberg aciona então judicialmente Bernhard e a editora Suhrkamp, com
161
Cf. K. Zeyringer, Innerlichkeit und Öffentlichkeit, p. 95 ss.
162
Cf. a biografia de M. Mittermayer, Thomas Bernhard, p. 69.
147
o intuito de que o livro fosse confiscado. Sem mesmo ouvir o autor, e antes que
o livro tivesse sido posto à venda, um juiz acatou o pedido de Lampersberg e,
no dia 29 de agosto de 1984, a polícia confiscou o livro em todas as livrarias do
país, dado que o mesmo já havia sido distribuído.
Inumeráveis artigos foram escritos com o intuito de identificar, uma a uma,
todas as figuras presentes no “jantar artístico”, tornando-se assim um atrativo
também para as colunas sociais (e não mais apenas criminais). O furor da
mídia traz uma notoriedade desconhecida mesmo para um autor como
Bernhard, com um histórico invejável no quesito escândalos públicos. Não
apenas a mídia sensacionalista e os folhetins literários dos jornais, mas
também escritores e professores foram obrigados a se posicionar no episódio,
a grande maioria do lado de Bernhard, a favor da liberdade de pensamento e
de escrita.
163
O próprio autor levantou, indignado, esta bandeira, sendo no
entanto sua participação no debate não restrita a isto. A crítica literária Sigrid
Löffler, escrevendo na revista Der Spiegel de 10 de setembro de 1984, serve
de porta-voz ao grupo que desanca este romance de Bernhard; sua fala
merece consideração:
Thomas Bernhards augenblicks entwertet: Sofort ist Literarisierung nichts als
schlechte Tarnung, [...]. Schlimmer noch: Indem wir in rein sprachlichen
Kunstfiguren plötzlich Frau E., Frau M. Oder Herrn L. erkennen müssen, zwängen
sich diese Herrschaften in ihrer penetranten realen Leibhaftigkeit in die Sehweise
des Lesers hinein und besetzen seine Vorstellungs- und Gedankenbilder. Man
kriegt sie nicht mehr los, während man sie liest, diese Phantasie-Okkupanten
aus der Wiener Wirklichkeit, und die Lektüre ist einem schon verdorben.
164
Os fantasmas da realidade não deixam que a autora sinta empatia com os
personagens e perca-se na malha narrativa. Mais ou menos nesta mesma
direção vai a crítica de Gößling à obra de Bernhard dos anos 80, comentando a
promiscuidade que faz com que a realidade penetre quase de modo imediato a
obra de arte, o que seria um critério de desvalorização da mesma. Este
resultado era esperado por Bernhard, e está completamente de acordo com
163
Sobre o desenrolar do escândalo, três referências são fundamentais: A. Pfabigan, Thomas
Bernhard, especialmente p. 359-385; O. Benz, Thomas Bernhard. Dichtung als Skandal,
especialmente p. 55-70; e, por fim, J. Dittmar (org.), Sehr gescherte Reaktion, p. 134-143.
164
S. Löffler apud J. Dittmar (org.), Werkgeschichte, p. 275 (negritos meus).
148
seu projeto literário. Esta imediação é construída com o que a arte tem de
melhor. Neste sentido, quanto mais diretamente traz elementos da realidade
para a obra, mais elaborada deve ser a mediação literária. Noutras palavras:
Bernhard não se confunde com um escritor realista, que visse a literatura como
um instrumento para espelhar a realidade. Esta perspectiva conferiria à língua
um papel secundário e ideológico: a realidade poderia ser descrita
objetivamente. Bernhard almeja penetrar a realidade social de modo imediato,
mas o faz, paradoxalmente, pela ênfase no caráter mediado da linguagem. A
imediação social se pela mais elaborada criação estética. Assim se
imiscuem numa trama única realidade e ficção, uma completamente
dependente da outra.
Bernhard, num primeiro momento, proíbe que seus livros e obras sejam
vendidos na Áustria durante o prazo de vigência dos direitos autorais. Isto, no
entanto, não impede que o romance seja contrabandeado da Alemanha, o que
ocorre num nível inaudito. Bernhard participa do processo e do escândalo de
mídia como um personagem de si mesmo: ao mesmo tempo em que defende o
caráter artificial da obra de arte, reforça a aproximação entre vida e obra. Isto
se quando Bernhard assume uma posição por meio de um artigo publicado
pelo Frankfurter Allgemeine Zeitung de 15 de novembro de 1984, no qual, entre
outras coisas, escreve:
Dieses Ehepaar Auersberger hat mit dem Kläger Lampersberg nichts zu tun. Herr
Lampersberg, der früher Lampersberger geheißen hat und in den letzten
Jahrzehnten immer wieder, wie ich weiß, jedenfalls teilentmündigt gewesen ist,
sieht in meinem Buch Ähnlichkeiten mit sich selbst. Das ist seine Sache.
165
Esta tomada de posição merece atenção: mesmo quando quer se
defender, Bernhard ataca, pois um dos momentos mais desmoralizantes do
romance se quando o narrador diz que o personagem chamado por ele de
Auersberger mudou seu nome para Auersberg, pois isto soaria mais
aristocrático. Deste modo, o escritor confirma a passagem do seu romance,
agora com os nomes reais, como se ele, Bernhard, fosse também um dos
jornalistas a esquadrinhar e desnudar a vida do compositor Lampersberg
165
T. Bernhard apud J. Dittmar (org.), Sehr gescherte Reaktion, p. 137.
149
(antes Lampersberger), corroborando o texto do livro. Sendo assim, Bernhard
envolve-se ainda mais na trama complexa que criou e que ganhou vida própria,
passando a fazer parte da leitura do romance. Cada vez mais penetra na
recepção da obra a indistinção entre ficção e realidade, sem nunca equipará-
las; afinal de contas, a realidade não pode ser expressa, e ela é bem pior do
que o escrito.
Pfabigan assinala que o processo judicial, em si, lembra aquele movido
contra Klaus Mann a respeito de Mephisto, “der von Oberlandesgericht
Hamburg 1966 als ‘Schmähschrift in Romanformklassifiziert wurde.”
166
Com
uma significativa diferença, também apontada pelo crítico: acompanhando-se
de perto o escândalo e o andamento do processo, especialmente o
comportamento do autor no episódio, pode-se crer que Bernhard estava no
controle da situação, que tudo aquilo estava de acordo com suas intenções.
Noutras palavras, ele teria orquestrado esta contenda pública. O advogado de
Lampersberg nos uma pista significativa, dizendo que as mudanças, de tão
primitivas e superficiais, não impedem que seu cliente seja imediatamente
identificado por aqueles que o conhecem.
167
Bernhard contava com isso.
Neste sentido, a entrevista concedida a Krista Fleischmann, por ocasião do
lançamento de Holzllen, antes do processo judicial, mas sob a expectativa
de um iminente escândalo, mostra-se sintomática: Bernhard sabia de alguma
movimentação de bastidores no sentido de impedir a circulação do livro, mas
não acreditava na retirada do livro de circulação. Nesta entrevista, posiciona-se
Bernhard, de modo conseqüente, de acordo com sua concepção de verdade e
de expressão. Num primeiro momento:
Fleischmann: Sind das nun fiktive Personen, oder sind das Menschen, denen Sie
begegnet sind im Leben?
Bernhard: Das sind ganz natürliche Menschen, die ich sehr gut gekannt hab’, sehr
gut kenn’ eigentlich noch, fiktiv ist insofern nichts. [...]
Fleischmann: Und was ist nun, wenn diese Freunde sich wiedererkennen in
diesem Buch?
166
A. Pfabigan, Thomas Bernhard, p. 360.
167
Cf. J. Dittmar (org.), Sehr gescherte Reaktion, p. 139.
150
Bernhard: Na, sie sollen sich ja wiedererkennen, obwohl sie alle andere Namen
haben. Der Außenstehende weiß nicht, wer es ist, der Betroffene weiß
hundertprozentig, daß er’s ist, wenn er sich betroffen fühlt.
168
De caso pensado, antes mesmo do processo judicial, indica que o livro
deve ser lido, por um lado, como um “romance de chave”47(o)-4.3311111111111111111122(u)-4.33117(d) l-7.49466(o)5.67474 e”47(o)-4.3311111111111111111122(u)-4.33117(d)aa
151
exemplar, dado que se torna quase um projeto estrategicamente concebido, e
seguido à risca. Em Holzfällen, Bernhard se insurge justamente contra este
processo, e daí se entender as invectivas contra esta obra, não apenas dos
que a consideram ofensiva aos detratados, mas também dos que a julgam, de
um ponto de vista formal, exageradamente promíscua em sua relação quase
carnal com a realidade. Esta relação ganha relevo com a passagem da palavra
viva em munição que, deste modo, deixa de ser apenas uma metáfora barata,
mas remete à matéria mesmo, da qual não se quer fugir.
Em resumo, o escrito é, por um lado, verdade inconteste; por outro, não o
é, na medida em que um texto escrito nunca é a verdade. E assim começa
Bernhard sua entrevista, depois que Fleischmann pergunta, a respeito do livro,
o que seria ficção e realidade: “Na, Wahrheit ist alles und gedichtet ist auch
alles. Das ist so eine Mischung.”
172
Ao mesmo tempo afiança a fidelidade do
escrito em relação à realidade e a nega, constitutivamente mentira. Três vezes
mentira: porque exagerado, porque expressão mediada, porque a partir de uma
posição. Sendo assim, o se resume a um Schlüsselroman, se bem que esta
leitura está prevista pela obra e requerida por seu autor, um exímio colocador
de armadilhas: “Da ich [...] ein Fallensteller im Grund [bin].”
173
De fato, o crítico
Hans Haider executou seu “papel” com maestria, exatamente como se poderia
esperar dele, servindo como instrumento para um grande lance de marketing,
viabilizando a montagem do teatro em forma de processo judicial, que faz jus à
crise da arte denunciada pelo romance: a estética deveria ficar restrita a um
campo específico e delimitado. Para reconduzi-la a isto, a justiça entra em
cena, e acata o pedido inusitado, que vai contra a liberdade da obra de arte.
Bernhard se defende tomando as armas dos adversários, elevando a voz em
respeito a esta liberdade, que no entanto critica ironicamente na entrevista e no
artigo de jornal. Cada vez que assume o bordão da artificialidade da obra de
arte no que está inteiramente correto –, ele repisa cheio de sarcasmo e ironia
a relação verdade/invenção, pois mistura ainda mais os dois campos, tornando-
os indistintos, e reiterando suas invectivas. O tom destes dois textos – da
modernas: todas elas são regressivas, conservadoras em sua negação da realidade, cada uma
à sua maneira.
172
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 93.
173
T. Bernhard apud K. Fleischmann, op. cit., p. 102.
152
entrevista e do artigo de jornal – é o da zombaria: ele desanca a própria
argumentação, que arregimenta para sua defesa, ri de si mesmo e, assim, dos
que lhe dão ouvidos, os leitores dos textos.
Eine Erregung: a provocação passa à forma
Assim, a provocação ganha estatuto formal por esta obra, que não por
acaso tem como subtítulo Eine Erregung: uma irritação, uma provocação, um
engaste. Na entrevista, Bernhard não tem intenção de amenizar e tornar seu
texto palatável, mas antes jogar mais lenha na fogueira. Isto é próprio da
criação pela linguagem, andando de mãos dadas com a concepção da “arte do
exagero” que se lê em Auslöschung. E esta concepção de obra de arte entende
a história e a memória como seus elementos constitutivos, e mais, a
rememoração como atualização da história. Esta questão não se reduz aos
temas, mas invade a sua concepção de linguagem, e cada palavra pode conter
em si toda a história (retorno a isto no próximo capítulo).
Bernhard coloca habilmente suas armadilhas: o que é obra de arte?
Löffler está certa ao estigmatizar o livro como ilegível pela imediação social ali
presente? Quais as diferenças entre os Lampersberg e os Auersberger? E
quem é Bernhard nesta confusão? Ele é idêntico ao personagem? Se no
volume autobiográfico Ein Kind Bernhard expõe o processo que o faz herói, em
Holzfällen estaria mostrando o processo que o faria vil e odioso? Mas o
narrador-personagem pode ser idêntico ao autor, ou ele é uma invenção, uma
instância narradora? O formato permite uma aproximação direta com o autor
Bernhard? Noutras palavras, trata-se de um volume autobiográfico? Bernhard
se evade destas questões, acendendo-as ainda mais, ao falar sobre este livro,
tratando-o como uma Erregung:
[...] Ja, weil der Stil auch ein etwas erregter ist in dem Buch, musikalisch gesehen,
vom Inhalt her schreibt man so was nicht ruhig, [...] Das kann man nicht ganz ruhig
so wie eine klassische Prosa schreiben, sondern da setzt man sich hin und ist ja
schon einmal von der Idee her erregt [...].
174
174
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 96.
153
Deste modo, a forma vem por si só, a partir do que se quer escrever, não
é possível separar conteúdo de forma; noutras palavras, conteúdo e forma são
uma e mesma coisa. “Das ergibt sich alles von selbst, und dann ist es ein
künstlerischer Stil, denn kann man ja nie finden.”
175
Esta forma não é
inventada, porque não pode ser inventada, ela é o “teor de verdade da
mentira”, para lembrar do que havia sido proposto na autobiografia. Sendo
assim, é tanto mentira quanto verdade, ao mesmo tempo. A posição do autor
está também dentro, não como separar autor do texto, eles formam uma
unidade. É a posição de um escritor,
der den Schneeball macht und ganz klein ist, und dann wirft er ihn hin. Er weiß
zwar, wo er’n hinwirft, und daß das zwangsweise größer wird. [...] Eine Erregung
steigert sich bis zum Ende immer mehr. Endet ja auch in einer totalen Erregung
über die Stadt Wien [...].
176
Este estilo ou gênero que criou para este livro (não se trata de um
romance, mas de uma Erregung) envolve a dimensão da recepção, mas
qualquer uma, pois pressupõe uma recepção acalorada e enérgica para se
desdobrar até o limite de sua forma. O autor faz a “bola de neve”, ainda
pequena, ou seja, restrita a ele, no âmbito individual, mas ela, necessariamente
(zwangsweise), deve crescer, sem o que não se encaixa no gênero pretendido:
fiel a isto, o romance termina numa corrida desvairada por Viena. O escritor
antecipa-se à reação, forçando-a, por exemplo, ao participar de uma entrevista
sabendo que há algo sendo preparado contra seu livro. A forma exige esta
dinâmica, e sem ela o romance perde em vigor, pois o projeto de sua escrita
iria se dissolver: este texto depende do seu consumo, tornando a obra impura.
Isto não arrefece seu teor de verdade, antes não pode ser dissociado dele.
Erregung como atualização da história
“Die Zeit erregt einen ja nach dreißig Jahren nicht mehr, aber die
Erinnerung, die macht man sich gegenwärtig.”
177
4(n)-4.33117(c 5(s)[(1)3.43846(e)-4.33117(s)-0.295585(s)-0.295585(a)-4.3311717(c 5(s)[(a)5.67474(f)-12.1703(i)1.87122(r)2.80439(m)-7.49466(a)-4.33117(ç)-0.295585(ã)5.67474(o)-4.33117( )-562.495(s)-0.293142(e)-4.32873( )278]TJ-2922524 -20.64 Td[(d)-4.33056(e)-4.33056pe)-4.33056(r)2.806(e)5.67535en)-4.33056(n)-4.33117(d)5.67474(e)-4.33117( )-232.301(q)5.67474(u)-4.33117(e)-4.33117( )-232.017(o)-4.33117( )-232.017(i)1.87(m)-7.49588pquso desta escrita reposa nas embraças e em sua
2506]TJETQ1 i70R9 .015.64 100 5 refgq8.33333 0 0 8.33333 0 0 cm BT/R14 12 Tf0.99941 0 0 1.225.08-119.42 Tm( )Tj/R9 6.48 Tf0.999426 0 0 1 85.08-112764 Tm[(1)0.155332(7)0.15533256
154
necessária rememoração, que as atualiza. De repente, passaram-se trinta
anos, mas as feridas ainda estão abertas, e devem ser fuçadas. Afinal de
contas, os anos 50 foram decisivos (“ein entscheidendes Stück meines
Lebens”
178
), e chegou o momento de lidar com estas lembranças. A
atualização da história se em momentos decisivos: o apenas os anos 50,
mas também os terríveis e odiosos anos 80, como coloca no livro. Nos anos
80, a destruição operada na Áustria em nome do progresso perde a aura e
passa a ser relida como o que de fato era: destruição sem-sentido. Isto será
tematizado tanto em Holzfällen, pelo próprio título (desdobrando-se na
transformação de toda uma região florestal em torno de Maria Zaal em área
cimentada), como em Auslöschung, na crítica ao progresso desenfreado que
marca, sobretudo, o governo Kreisky. Nas palavras de um historiador, sobre o
ímpeto transformador que toma conta da Áustria depois da guerra: “Was die
neuen Kraftwerke, Skilifte und Industrieanlagen an Umweltschäden anrichteten,
wurde nicht gesehen, die Fortschrittsgläubigkeit war die Ideologie der Zeit, die
Kritik an manchen Phänomenen setzte erst ab den 1980er Jahren ein.”
179
Sendo assim, os anos 80 se constituem no momento adequado para a
releitura e atualização das expectativas idealizadas dos anos 50, vistas agora
como pura fantasia, ou melhor, como senso de oportunismo, bebendo na mais
rica tradição austríaca. Todos queriam apenas se acertar, adequando-se ao
sistema. Deste modo, reconfigura-se o passado, que deve ser reescrito, para
que possa recuperar sua dignidade. Mais do que dizer que as feridas estiveram
sempre abertas, enfatiza-se que agora elas estão abertas, elas são tão atuais
e penetrantes que exigem uma altercação na mesma moeda: um estilo irritado,
acusador, desabrido. o se reduz a uma questão pessoal, um acerto de
contas do autor Bernhard com seu passado, mas o feridas sociais, as
personagens são modelos do que era a vida na Áustria. “Das sind klassische
Beispiele einer klassischen Situation in Österreich, von Leuten, die Schreiben,
Musik machen, tanzen, Kultur machen.”
180
O “teor de verdade da mentira”, ou
seja, da forma, é social, não individual.
178
T. Bernhard apud K. Fleischmann, op. cit., p. 93.
179
K. Vocelka, Österreichische Geschichte, p. 115.
180
T. Bernhard apud K. Fleischmann, op. cit., p. 96.
155
Daí também não ser possível restringir o escopo do texto a uma
difamação barata de Lampersberg, o que faria da obra fogo-fátuo, deixando de
almejar o teor de verdade da forma, ou seja, justamente a releitura da história.
Isto passa necessariamente por este escândalo, portanto é preciso que os
retratados se vejam ali. Não se trata deles, no entanto, eles são o “combustível
lingüístico” que serve de base para que esta crítica da sociedade, no nível da
forma, possa alçar vôo; por isso esta Erregung nasce de uma explosão por
palavras, que não é inventada, mas surge necessariamente do texto (“Ergibt
sich von selbst, das ist zwangsweise, aus der Wortexplosion vielleicht.”
181
),
prioritariamente um projeto estético que inclui a política. O projeto de sua
escrita visa uma politização da estética positiva, rompendo fronteiras. “Ich kenn’
sie ja gar nimmer. [...] Aber ich kann sie mir vorstellen als Leser.”
182
Mas é
sintomático que Bernhard conceba conhecê-los como leitores na entrevista. É
possível que agora o conhecimento que se tem deles possa se completar,
quando o contexto o permitiu. Veremos a elaboração de um projeto de escrita
nesta mesma perspectiva em Auslöschung. Sem um contexto, não se pode
nem mesmo ver, ouvir e cheirar; até os sentidos dependem de uma
interpretação, de uma história, e até mais, de uma concepção de história. Esta
concepção, dado o estatuto de uma Erregung, não poderia ser apaziguadora:
“Das ist das Klischee von der Vergangenheitsbetrachtung, das ist natürlich
völlig falsch. [...] Erregung ist ja ein angenehmer Zustand, bringt das lahme Blut
im Gang, pulsiert, macht lebendig und macht dann Bücher.”
183
Uma questão decisiva e central para a estética de Bernhard se deixa
entrever neste trecho da entrevista: o modo de lidar com o passado não
permite uma aproximação com algo morto, definitivo, enterrado. Deve ser
tenso, irritado, provocante, acusador, posto que, por uma “explosão discursiva”
(Wortexplosion), aquele passado salta para o presente, está quente e mudado,
agora interpretável e, por isso, autêntico, talvez pela primeira vez; agora é
possível vislumbrar o seu “teor de verdade”, antes invisível. É este o tom de
uma Erregung que, deste modo, passa a fazer parte da leitura de toda sua
obra.
181
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 94.
182
T. Bernhard apud K. Fleischmann, op. cit., p. 100.
183
T. Bernhard apud K. Fleischmann, op. cit., p. 97.
156
Ou seja, tanto a imediação social, quanto a mediação formal pela
linguagem, estão ambas presentes. Neste sentido, é e não é um “romance de
chave”, que pode ser decifrado. Bernhard expressa neste romance o processo
que leva à “Nova Áustria” (“Neues Österreich”)
184
: toda a reestruturação da
Áustria passava pela cultura no pós-1945, numa politização da estética
contrária àquela preconizada por Benjamin. Em verdade, esta politização da
estética austríaca alinhava-se à estetização da política, posto que afastava a
discussão da esfera política para um controle da mesma. Com isso, segundo
Bernhard, abria-se mão de uma perspectiva crítica, amoldando-se a este poder
e a estes cargos. O processo gradual toma três longas décadas, que Bernhard
comprime e aproxima abruptamente no corte de Holzfällen, que deixa um
buraco vazio entre os períodos, deixando claro que aquele momento dos anos
50 ganha significado funesto, diga-se de passagem nos anos 80, e
assim a crítica será grotesca, ridicularizante, desmoralizante, atingindo tanto
pessoas quanto um processo social em curso.
Provocação formal em Holzfällen
Holzfällen ocupa um caso à parte, e é defensável dizer que aqui se trata
da criação de um outro gênero, o da irritação e provocação, dependente do
leitor e do efeito. “Die problematischste Form der literarischen ‘Skandal-
Kunstwerke’ stellte zweifellos Holzfällen. Eine Erregung (1984) dar, eine durch
die künstlerischen Mittel grandiose satirische Demontage konkreter lebender
Personen und ein medienwirksames Gerichtsspektakel.”
185
Holzfällen foi além
de todos os outros casos, rivalizando-se apenas com Heldenplatz, peça
encenada quatro anos depois.
A relação com a sociedade de forma quase direta, parte do projeto
estético de Bernhard, remonta à escrita da autobiografia, como visto, e se
alçado a primeiro plano nas obras dos anos 80, atuando como um segundo
divisor de águas: a escrita e publicação de Holzfällen, em 1984. O autor se
preocupava, cada vez mais, em participar do debate acirrado que tomava conta
da Áustria naquele momento, e não se faz de rogado em considerar a literatura
ou seja, a estética como um dos campos onde este enfrentamento deveria
184
R. Menasse, Das war Österreich, p. 15-25.
185
H. Höller. Thomas Bernhard, p. 13. Cf. também O. Benz, Thomas Bernhard, p. 69.
157
ocorrer, sem com isso se perder na estética: a estética deveria questionar,
justamente, as fronteiras bem definidas entre ficção e realidade, de modo que a
passagem de um texto seu para as folhas criminais, jurídicas e políticas seria
vista com bons olhos. “Es ist glich, daß Bernhard mit einer gerichtlichen
Auseinandersetzung als Folge von Holzfällen gerechnet hat, ja, daß er sie
sogar provoziert hat, denn in Anbetracht der Fülle der autobiographischen
Bezüge und der Beleidigungen in diesem Buch müßte man ihn sonst für naiv
halten.”
186
Hens nota este esforço em Holzfällen para, infelizmente, deixar este veio
de lado como algo extraliterário e, portanto, “indigno de considerações no
âmbito da estética”. A preocupação de Bernhard também se dirige no sentido
de conseguir um efeito e, com isso, repercussão, o que deixa evidente numa
das entrevistas cedidas a Kurt Hofmann, todas entre 1981 e 1988, quando dirá:
Ich meine, eine Wichtigkeit oder ein Wert entsteht nur dadurch, wie etwas
aufgenommen wird. Im Echo. Wenn’s keines hat, hat’s auch keinen Wert. Ihre
Gefühle haben auch keinen Wert, wenn sie in Ihnen drinnen bleiben. Und Ihr
Protest nützt auch nichts, wenn ihn niemand hört, denn dann würden Sie selbst
daran ersticken und daran zugrundegehen. Das hat auch keinen Sinn. Also laufen
Sie aus ihrem Haus heraus und teilen ihnen Protest mit. Und die Reaktion ist dann
wichtig. Entweder man sagt, der ist verrückt oder der gehört eingesperrt, irgendein
Echo ist ja dann da.
187
O eco e a reação advinda deste processo de interação com a instância da
recepção são cruciais para o efeito esperado pela obra, que será de antemão
ponderado, ao ponto de muitos críticos enxergarem a tentativa de conduzir esta
recepção
188
. Falando, tanto da obra de Bernhard quanto sobre s
158
und sein Werk läßt sich nicht mehr ablösen von der Wirkung, die es gehabt
hat.”
189
Assim a provocação pública se eleva ao nível formal, que depende do
horizonte de expectativas dos leitores e da opinião pública para se realizar, ao
voltar-se para a obra e significá-la. Isto vale mesmo para aqueles que não
leram seus romances e peças e que, deste modo, virão a conhecê-lo pela sua
atuação pública, formando um juízo sobre ele. Holzfällen e Alte Meister
desempenham um papel de destaque na criação da personagem pública do
autor Bernhard. “Die Form des Bernhardschen Kunstwerk ist offen angelegt, sie
fordert die Reaktion der Öffentlichkeit geradezu heraus; die Reaktion, der durch
die Provokation Involvierten ist ein unabdingbarer Bestandteil des Werkes; die
Grenzen von Kunst und Alltag werden fließend.”
190
No fundo, a provocação faz
parte da forma deste romance, sem ela o livro perde sua vitalidade; esta
provocação não o esgota, ele vai além dela, pela sua escrita, pela concepção
de linguagem, tratando também da forma social que base a esta separação,
acima criticada, entre arte e literatura.
Do mesmo modo que Winkler
191
dirá que suas peças eram escritas
contra o seu público da estréiae assim se entende a afirmação de Bernhard,
dizendo contentar-se apenas com uma boa apresentação de suas peças –, em
seus romances Bernhard não prescinde deste enfrentamento, aliás depende
dele para a dinâmica que pretende colocar em funcionamento. Como disse
Bernhard numa entrevista sobre seu estímulo para escrever romances: “Und
das ist noch ein Reiz, daß man was macht, was die Leute ablehnen und ihnen
Widerstände macht.”
192
Três riscos inevitáveis
Bernhard visa no blico austríaco, relacionando a reação que pretende
obter a um contexto histórico específico. Este “acerto de contas” com a Áustria
e com os austríacos não se resume ao âmbito da estética, crítica apressada de
Heiner Müller, mas intenta alcançar às páginas políticas, econômicas e
189
W. Schmidt-Dengler, “Bernhards Scheltreden”, em Der Übertreibungskünstler, p. 130.
190
O. Benz, Thomas Bernhard, p. 45.
191
J.-M. Winkler, “Rezeption und/oder Interpretation”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler
(orgs.), Wissenschaft als Finsternis?, p. 164.
192
T. Bernhard apud K. Hofmann, Kurt Hofmann. Aus Gesprächen mit Thomas Bernhard, p. 33.
159
jurídicas, como visto, ganhando relevo social, mas sempre consciente do risco
de ser encaixado a fórceps sob a rubrica do formalismo, criticado pela redução
à linguagem e à forma como caminhos necessários para encaminhar seu
projeto. Sem dúvida um dos preceitos mais decisivos para a estética de
Bernhard consiste na artificialidade da expressão, que passa inclusive pela
construção de si mesmo como um personagem, normalmente o do bobo,
falando de uma posição que prescinda de justificativas, abusando até deste
caráter afetado. Em Auslöschung, o narrador Murau, aqui em sintonia com as
afirmações de Bernhard da entrevista, expõe seu conceito de “arte do exagero”
(Übertreibungskunst), indispensável para que algo seja visível. “[...] auch die
Gefahr, daß wir zum Narren erklärt werden, stört uns in höherem Alter nicht
mehr. [...] sollen wir uns spätenstens mit vierzig zum Altersnarren ausrufen, [...]”
(AUS, 129). que o tema que discuto toca, justamente, na imbricação entre
ficção e realidade, este trecho aponta para uma das posições que o autor (e
seus personagens) podem assumir, posição necessária para ser ouvido, ao
preço de ser tachado como um bobo. O que importa, mais do que ser
160
emprestado o que disse Peter Szondi a respeito das múltiplas leituras possíveis
dos textos de Paul Celan, a indefinição dos textos de Bernhard serve à
precisão
194
, dadas as condições atuais, e diria mais: serve à expressão da
verdade, em se tomando a estética de Bernhard como parâmetro. Ao não
justificar suas assertivas e deixá-las se desdobrar no debate que as seguiam,
sendo defendido e atacado por muitas vozes.
195
“Entrüstung zu provozieren
und sie in ihrer ganzen Fragwürdigkeit promenieren zu lassen, scheint immer
wieder Bernhards Strategie zu sein.”
196
A atuação de Bernhard serve como
energia de ativação deste debate, e ele o vacila em assumir diversas
máscaras que o ajudem neste intuito, nenhuma delas favorável a ele, para
exercer essa função. Vale a pena ser chamado de louco, como dito por
Bernhard no trecho da entrevista acima citada, pois quando isto ocorre,
houve algum tipo de eco, de reação.
Dentro desta perspectiva, uma das máscaras que lhe cai bem é a de
Altersnarr, comentada. Outra máscara vestida por Bernhard é a do
misantropo profissional, insultante da Áustria, como na cena em que acusa
todos os austríacos, indiscriminadamente, de nazistas e de débeis-mentais, em
Heldenplatz (1988), no maior escândalo obtido por suas obras, seguido de
perto de Holzfällen. Nas palavras de Bernhard:
Und ich bin wahrscheinlich lebenslänglich der negative Schriftsteller. Aber ich m
sagen, ich fühl’ mich in der Rolle ganz wohl, weil sie mich gar nicht irritiert. Weil die
Leut’ sagen, ich bin ein negativer Schriftsteller, und ich bin aber gleichzeitig ein
positiver Mensch. Also kann mir ja nichts passieren, nicht. Oder? Ist es ein
gefährlicher Zustand? Ich weiß nicht.
197
Por estas scaras, entre impostas e construídas, e por não argumentar
em favor de suas teses foi chamado de fascista por alguns de seus
194
Cf. P. Szondi apud W. Schmidt-Dengler, “Elf Thesen zum Werk Thomas Bernhards”, em Der
Übertreibungskünstler, p. 153: “Die Mehrdeutigkeit [dos textos de Paul Celan], Mittel der
Erkenntnis geworden, macht die Einheit dessen sicher, was verschieden nur schien. Sie dient
der Präzision.”
195
Como fica claro a partir da Werkgeschichte compilada por Jens Dittmar, que coloca alguns
artigos de jornais referentes a cada uma das obras do autor, incluídas boa parte de suas
cartas e artigos para jornais, entrevistas, além da obra ficcional.
196
W. Schmidt-Dengler, “Bernhards Scheltreden”, em Der Übertreibungskünstler, p.136.
197
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleichmann, p. 25.
161
detratores
198
, o que mostra como estes dois riscos mencionados produzem
efeitos vigorosos, e não podem ser esquecidos. Lembrando: primeiro risco,
evadir-se pela estética do mundo real, caindo no formalismo vulgar; segundo
risco, tornar-se um bobo, ou misantropo, ou niilista, que por sua posição
categórica não deve ser considerado. Em verdade, as acusações não se
sustentam, embora seja forte a tentação de se entregar a elas.
Bernhard intenta produzir eco e ativar o debate, para não incorrer numa
outra espécie de problema: usar as armas do inimigo, ou seja, o discurso
racional, argumentativo, sério, do artista intelectualizado, cuja fala quase
ninguém entende, ou que se delicia no gozo da arte; para Bernhard, numa
tomada de posição como esta o decisivo não se evidencia pelo lado da
contenda em que se está, mas na forma como se penetra no debate. O uso
destas categorias de argumentação para atuar no debate público seria
envolvido pela própria forma da discórdia entre pares, da diferença entre
posições que guardam a mesma filiação e interesses.
ainda um terceiro risco, oposto ao risco do formalismo, mas do qual
também é acusado: sua obra pode ser lida apenas como uma chama que arde
pela irritação e recepção recebidas, num contexto delimitado de tempo e
espaço, o que a faria perder sua pertinência e vigor crítico de um dia para o
outro. Com estas palavras se sai Ulrich Weinzierl: “Die Medien-, ja
vaterlanderschütternden Skandale – etwa rund um Holzfällen anno 84 und
Peymanns Burgtheaterpremiere von Heldenplatz können wir getrost beiseite
lassen, denn hier handelte es sich um eine fast hundertprozentig
außerliterarische Erregung [...].”
199
Surpreendentemente, foge a este autor o
caráter político da provocação formal, aqui em curso, o que ele encontra com
clareza em Auslöschung, considerado por ele o único romance decisivamente
político de Bernhard.
No entanto, se a forma de seus textos encampa e leva em conta o eco da
recepção e mira um momento específico, não se reduz a isso. Mesmo a leitura
fora da Áustria, seja na Alemanha mas também em países como França,
198
Cf. W. Schneyder apud J. Hoell et al. (orgs.), Thomas Bernhard Eine Einschärfung, p. 16:
“Ich zähle zu den engagiertesten Gegnern Thomas Bernhards, halte ich ihn als Autor für
überschätzt, als politischen Menschen für faschistoid.”
199
U. Weinzierl, Bernhard als Erzieher. Thomas Bernhards Auslöschung”, em P. M. Lützeler
(org.), Spätmoderne und postmoderne, p. 186.
162
Inglaterra, Espanha, Rússia, mostra que sua força se situa muito além desta
remissão imediata à realidade social, embora isso seja parte de sua
estratégia
200
. Bernhard foge disso pela forma peculiar de sua escrita, que
submete este imediatismo à mediação total e irrestrita pela linguagem, com o
quê não se resume a um pólo ou outro. Na contramão de Weinzierl,
Donnenberg acerta em cheio:
Es ist eine Kunst, die zugleich vollkommener, das heißt vollkommen einseitiger
Ausdruck unsere Zeit ist, und vollkommener, das heißt vollkommen einseitiger
Widerstand gegen unsere Zeit. [...] Sein Kunst ist es, die ihm Gehör verschafft;
ohne sie wäre er wohl als Sonderling, Spinner, Schwarzmaler, Skandalnudel längst
abgetan.
201
Críticos, como Gößling, não levam este ponto em consideração,
desvalorizando a obra dos anos 70 e 80 por não atingirem a excelência formal
atribuída às obras dos anos 60, pois estas últimas seriam melhores no que
tange à sua arquitetura formal, tomando a obra como fim em si mesmo.
202
Isto,
a meu ver, não leva em conta as mudanças no projeto estético do autor, bem
como na realidade em que vivia. Acertamente, esta postura não encontra
respaldo na crítica hodierna mais influente e produtiva, como Schmidt-
Dengler
203
, Hans Höller
204
e Alfred Pfabigan
205
, entre outros, que mostram
200
Sobre a recepção em outros países, cf. sobretudo a coletânea organizada por W. Bayer e
intitulada Kontinent Bernhard. Zur Thomas-Bernhard-Rezeption in Europa.
201
J. Donnenberg, “Thomas Bernhard der Künstler als Kritiker oder ‘Weltverbessern ist ein
Wahnsinn’”, em Thomas Bernhard (und Österreich), p. 127.
202
A. Gößling, Die “Eisenbergrichtung”: Versuch über Thomas Bernhards Auslöschung, p. 8:
“[...] Frost oder Korrektur [...] erweisen Bernhards einzigartiges poetisches Talent und Potential,
das sich jedoch anscheinend nur in jenem hermetischen Symbolgefüge einer streng rational
organisierten und doch in unfaßbarer Bedeutungsvielfalt oszillierenden Traumwelt
angemessen realisieren kann. Auch die gelungensten Texte der zweiten, autobiografisch
dominierten Phase, etwa Der Keller (1976), erreicht nicht den dichterischen Rang der frühen
Werke.” Note-se, no entanto, que o autor defende ser Auslöschung algo como uma síntese
dialética entre aquele primeiro Bernhard, mais formal, e o segundo, marcadamente
autobiográfico, tratando imediatamente da matéria social daquele período: assim salva
Auslöschung da crítica voraz a que submete Holzfällen, entre outros da segunda fase. Mas sua
análise não se sustenta quando se critica as premissas de sua concepção de literatura.
203
O que fica claro em seu ensaio sobre Frost, em Der Übertreibungskünstler, quando discorre
sobre a mobilidade dos conceitos neste romance.
204
Em sua dissertação Kritik einer literarischen Form, publicada em 1973, fica evidente a
importância da forma social em romances da década de 60.
205
Alfred Pfabigan, em seu livro de referência obrigatória Thomas Bernhard. Ein
österreichisches Weltexperiment, acompanha o desenvolvimento dos temas em Bernhard e sua
ligação com a história, especialmente a austríaca. Infelizmente não se aprofunda na análise da
163
como esta linha não faz jus nem mesmo às obras da chamada “primeira fase”,
que não se reduzem ao hermetismo de um sistema simbólico que se basta a si
mesmo.
Sua obra não se esgota no agora pois: primeiro, a provocação é formal,
não mero afeto; segundo, a forma do romance expressa, explicita e explora a
forma da sociedade em que vive – noutras palavras, o teor de verdade da obra;
terceiro, a dialética entre a redução à extrema mediação da linguagem e a
imediação da realidade social é complexa e proíbe uma orientação unilateral,
para qualquer um dos extremos, sem considerar o outro lado, indo além, sem
levar em conta sua dinâmica conflituosa e criadora. Grande parte da crítica
incorre no erro de tomar as categorias da interpretação literária como
ferramentas prontas e inquestionáveis, aplicando-as ao texto. Uma trama como
a de Bernhard, com suas sobreposições e armadilhas, que ainda aspira ao
afloramento da urdidura textual ao primeiro plano, fazendo da urdidura trama e
vice-versa, não se deixa analisar pela secção arbitrária operada com as
ferramentas da teoria literária. “Das ständige Grenzgängertum zwischen
Komödie und Tragödie irritiert die Zus78]TJ-303.419 -20.2.80437(r)2.80488(p)5.n eier24(ö)-4.33117(d)-4.33111.87122(s)-0.295585(d)-4.33111.87122(s)-0.29517(s)-0.295585(,)-2.167122(s)-0.1032(e)-4.33117(i)1.8733117(r)2.80567(e)-4.7(r)2(24(ö)-4.33117(di49466(a)5.662(d)-4.33117(e)-4.33117( )-22117(m)-7.42.284(a)-4.33117( )-20-303.419 -20.2.80437(r)217( 117.295585(o)5.u3117(m)2.f032(e)-4.331125(a)-4.3)5.620)-4.32873(s)525 -20.76 Td]TJ-299.216 -20.80439(a)33 Td]TJ-299.4.32873( )-12.171-4.33056(r)2.805(a)5.80439(a)33 42.188(p)5.67474(l)1.83117(m)-7.h(r)2(24(ö)-4.33114.33117(s)-0.22.1703(l)1f117(r)2.80561(9(a)33 33117( )-20-303.419 -20..33117(i80439(a)-4. Td[( )-192.277(G04.33117( )-20-303.419 -20.2.80e)-4.33117(x)9.2.805(a)5.80439(a)-4.S)6.6m)-5.71032(e)-4.33117((o)5.67474( )-472.442(l)1.80439(a)-4.H17(m)-7.42.284(a)-4.33117( )-32.1821(p)-4a.805(a)5.6764(m)-7.49466(a)-4e7474(l)1.8312(Z)0.640026(u)-4.331t032(e)-4.331139(a)-4.71032(g)5.679(a)-453285995(r)2.117(m)-7.4TJ303.419 h303.419 -20.2.80437( Td[(f)-2.16436(a)-4.31139(a)-4.k87(c)-0.295585(a)-4.333117(x)9.2.805(a)5.283.487 0 Td[(o)-4.333117(x)9.”))1.9(a)TQ8.04q8.33333 08 38.48026085( 413.6T/R9 2)3613819(0)3613819(6)55533339(a)TQQq8.33333 0 0 8.33473.3284083 0 /R9 31139(a)-4.O7122(g)5.631139(a)-4.q3117(m)2.)5.n)5.ç17(33117(m)2.51125(a)-4388.78e)-4.32873(n)-Td]TJ-299.2.51125( )278]TJ- 2995(d)-4.278]TJ-307ad]TJ-299.2.5112502.225(o)5.67474(b)-4.02.225(o)5.67474(b)-4.0.2.80exe e 67535(m)-7.49588(e)-4.33174(b)-4.558(a)-4.33117(s)-0.295595(d)-4.33117( )-32.1821(5i)1.8.188(p)5.67474(l)1.871032(p)-4.331439(e)-4.33117()-4.333117( )-362.374(a)-4.377(a)-4.33117(n)-41(e)-4.33117(a)-4.33117117( )-9271032(e)-4.33174(b)-2.80561(r)2.80561(o)-4.33174(b)-2.117(s)-0.29558439(i)1.87122(a)-4.95585( )-192.277(e)5.33117(l)1.87122(i)1.87122(a)-4.32873(n)-17(620.2.80437(117(d)5.67474(e)-4.33114(b)-2.2.284(d)-4.33056(e)5.67535( )1.82.284(B)-3.39556(e)-4.33117(r)2.80561(a)-4.33117( )-4.32873(i)1.87122(r)2.804117(x)9.71032(r)2.8.1703(n)-4.33117(o)-4.33117(u)5.71032(g)5.33117( )-8233117(r)2.80561(t)-2.5585(t)-2.164374(b)-2.80585( )-199466( )-202.282(e)-4.-17(620)-4.32873(s)12 Tf0.99941 0 0 1 85.08 759.92 Té )-12.171.64 Td[(i)1.87(m)-7.4958 )-4.3117(a)-4.334(c)-0.2.8.188(p)5.67277(G)-2.45995(r)2.80439(a)-4.33117(n)5.33117(ã)-4.33117(o)-4.16436(o)-4.3317(n)5.3.1939(c)]TJ296.815 095585(,)-2.16436()1.87(m)-7.4958 iaa(d)-4.33117(i)1.87122(d)5.6745(a)-4.367474(l)1.871032(p)-4.3585(õ)-4.33o7(s)-0.295585(78]TJ.1703(n)-4.3317(o)-4.67474(l)1.871032(p)-4.3585(õ)-4.)1.87(c)-0.295117( )-192.277(c)9.2.284(a)-4.33117( )-3 de2.1821(p)-4.362(s)-0.539(e)-4.32.805(a)-4.33056(mt)7.84154(e)-4..33117(r)2.807( )-192.277(d)-4.3395585(a)-4.33117( )-1564(a)-4.33117(s)-0.295.33117(n)5.67474(f)-12.805(a)-4.33056(mt)7..33117(n)5J289.371 0 Td[(r)2.71032(p)-4.3585(õ)-4.33q3117(-0.295585(.ç17(33117(m)2.51125(a)-43-0.539-4.32873(n)-r)2.805(c)-0.29 85.08 759.92 Tp )-12.171-4.3305303.419 -20.76)-4.(ç)-.87122( )-112.229(é)-4.33117( )çde.87(e)5.67474(71032(e)-4.33117( 7474(d)-4.33117( )-1295585(o)5.673311(ç)-.8b45995(r)2.809(é)-4.33117( ))-4.3311(ç)-.1.80561(r)2.80561(o)-4..377(a)-4.33117(n)-42.1821(p)-4.33117(n)5.6439(i)1.87122(e)-4..33117(e)-4.33117(r)2..33117(r)2.801(ç)-i)1.8.188(p)5.809(é)-4.3.80439(o)-4.33117( )-.801(ç)-ida(i)1.2.277(c)-0.295585(r)2.80439(v)9.71093(e)-4.33117(r)-4.32873(n)9739(v9(e)-4.3b45995(r)2.o33117(e)-4.3.67474(ö)-4.(ç)-.267474(d)-4.33117(e)-4.33117( )-192.277(p)5.67474(a)-4.331(ç)-0.295585(ã)-4..33117(r)2.80439( )-362.377(p)5.6741(ç)-i)133117(r)2.80561(t)-2.7474(u)-4.33117(n)-41(e)-4ä ev9s
164
sua grandeza antitética, multifacetada, além de fugidia e ardilosa, escapando
pelos nós de nossos dedos interpretativos, para depois se deixar pegar em
outras constelações, que por sua vez se desfazem, num jogo ininterrupto. Na
dialética entre ser tomado por este tecido sedutor e controlá-lo de fora, escrevo
este trabalho, como se diz, no fio da navalha, e sei que me corto às vezes. Mas
não seria justo e preciso se agisse de outra feita: antes perderia de vista meu
objeto, que inclui o perder-se e o erro como constitutivos de sua malha
discursiva. Uma crítica que se quer pertinente deve respeitar a obra, no
mínimo, não a mutilando.
A forma da ambigüidade, a quebra das fronteiras entre realidade e ficção,
as divergências dentro da crítica, o papel da arte, do artista e do leitor, o
movimento de aproximação, a concepção de história e de linguagem, a
abertura e o inacabamento constitutivos, a busca do autêntico e da verdade
pelo artificial e artístico, a falta de respostas e as perguntas cifradas que
perpassam o texto, traços formais que Bachmann dirá serem o “Novo”, embora
não se saiba ainda no que isto consista, são questões que não perderam sua
validade, em última análise porque o mundo que Bernhard formalizou não
cessou de existir: vemos antes a exacerbação das tendências neoliberais a
partir da nova conformação mundial dos anos 90, após o esfacelamento do
bloco soviético e a expansão do liberalismo como vimos ocorrer hoje em dia,
em associação com um grau de desenvolvimento tecnológico nunca antes visto
e que não pode ser assimilado pelo modo de produção vigente, pautado pela
lógica do aumento da produção e consumo para contrapor aumentos de
produtividade, mantendo a taxa de emprego.
O desemprego estrutural que assola as economias européias é um
exemplo eloqüente desta lógica. Entendo aqui a derrocada do bloco soviético
como parte da crise do sistema produtor de mercadorias, ou seja, como parte
do sistema vigente hoje, deixando em segundo plano a questão sobre a
propriedade dos meios de produção, desde que o modo de produção se baseie
nas relações de trabalho assalariado e alienado, com divisão do trabalho e a
coisificação das relações humanas e, enfim, do homem.
208
De modo que o
capitalismo não viveu a exuberância e o gozo que se profetizou a partir dos
208
Nesta passagem, acompanho os argumentos de Robert Kurz, em O colapso da
modernização, em especial o capítulo “Lógica e ethos da sociedade de trabalho”, p. 13-26.
165
anos 90 mas, muito pelo contrário, acumulam-se em cascata as crises
econômicas sistêmicas ao redor do mundo sub-desenvolvido (que se quer
sejam conjunturais, atribuindo a culpa a agentes econômicos inescrupulosos,
pouco qualificados e corruptos)
209
México, Rússia, Argentina, para não falar
de muitos outros casos deixando à vista as feições sem máscaras do que
ocorre nos porões deste sistema.
O caso do Brasil é emblemático do absurdo da lógica econômica vigente,
pois embora não tenha chegado a sofrer uma crise econômica digna do
noticiário dos países credores, no mesmo grau dos países mencionados acima,
o fez às custas de registrar superávits primários escandalosos para abater
parte dos juros da dívida externa, em detrimento do estímulo do mercado
interno, que poderia contribuir para amenizar a situação desesperada da
imensa maioria da população, uma massa excluída do processo conservador
de formação de nossa sociedade e da distribuição de riqueza
210
. O receituário
neoliberal, mais uma saída requentada com roupagem internética pós-moderna
do que expressão dos potenciais de crescimento num mundo cada vez mais
“interligado” e “ágil”, expõe cruamente o desespero às portas de uma crise que
não deixa ninguém de fora – neste, e só neste sentido, pode-se falar em
igualdade. As crises ecológicas, empregatícias, econômicas, políticas,
energéticas, culminam no erigir de uma “sociedade de risco”
(Risikogesellschaft)
211
que, como alude o nome, não consegue avaliar os
riscos e perigos de sua atividade invasiva, com impactos que atingem o mundo
todo, sendo seu emblema maior a explosão de Chernobil, quando, nas
palavras de Beck, a Escandinávia rezou para que os ventos fossem favoráveis
209
O discurso corrente nos jornais reza que a culpa da crise argentina deve ser atribuída à
corrupção política e institucional daquele país, e não ao seu alinhamento incondicional ao FMI,
onde a Argentina foi vista como o melhor aluno. Como se não houvesse os escândalos na
Alemanha do CDU de Kohl e sua arrecadação de fundos de campanha, e como se não
houvesse escândalos políticos e corporativos envolvendo o governo Bush.
210
Cf. J. A. Pasta Jr, “Perspectivas de Viva o Povo Brasileiro”, p. 6: “Conforme a historiografia e
os estudos sociais não cessam de demonstrar e a literatura figurou antes de todos —, as
sucessivas modernizações conservadoras do Brasil, da Independência aos dias atuais,
procederam sempre pela não-incorporação das massas populares. Mantidas à margem dos
avanços, e apartadas das pretensões de universalização dos direitos, às classes populares
faltou sempre a articulação indispensável à constituição de uma dimensão cumulativa da
experiência, indissociável da reflexividade, base necessária da formação de uma identidade
nacional-popular. O que não se constitui, assim, é propriamente essa mediação essencial à
identidade do ‘povo brasileiro’.”
211
Cf. U. Beck, Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne, Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1986.
166
e não trouxessem a radiação para seu território; a natureza, que parecia não
apenas morta, mas absolutamente controlada e “reposicionada” como pano de
fundo para propaganda de margarinas, dava o troco. A obra de Bernhard não
está alheia a este estado de coisas, antes mergulha nele, o que o estudo dos
personagens e suas “mutilações” físicas e espirituais deixa claro. A provocação
formal estava estabelecida dentro da obra do autor, e todos os livros
posteriores já saíam sob este signo.
Thomas Bernhard: projeto de uma classicidade contemporânea?
Pasta Jr.
mostra que Brecht, em seu texto Processo dos três vinténs,
eleva a nível formal a penetração social de suas performances públicas.
212
O
objetivo era organizar e controlar um escândalo, com o que angariava
visibilidade social, não se restringindo apenas ao âmbito estético. Como visto
até aqui, esta perspectiva também foi adotada por Bernhard no caso Holzfällen,
o que aproxima os dois projetos estéticos. Em primeiro lugar, Brecht projeta
uma pendenga judicial com um grande estúdio cinematográfico. Ele vende os
direitos de filmagem da peça Die Dreigroschenoper, mas exige que ele mesmo
seja o adaptador. Brecht conta com a amenização do teor crítico da filmagem,
visando o grande público, o que de fato ocorre. Quando se havia gasto mais
de um milhão de marcos com produção e filmagem, Brecht processa a
empresa, alegando mudanças em sua adaptação. A partir daí, Brecht conduz
os episódios do processo como um diretor de teatro. Ele sabe que não tem
como lutar contra um milhão de marcos, e quer fazer do episódio a ilustração e
expressão desta impossibilidade: a integridade da arte versus um milhão de
marcos. Neste sentido, ele deseja perder o processo, para deixar evidente a
lógica capitalista, e assim propiciar aprendizagem aos que acompanharem o
caso. Assim, não recorre quando perde em primeira instância.
Brecht intentava trazer para seu projeto o que antes era fortuito e
ocasional: a performance pública tornava-se parte da obra. Este passo do
projeto brechtiano está diretamente relacionado com a estética da provocação
formal de Bernhard, tema desta seção. No romance Holzfällen, ápice desta
212
Sigo de perto as reflexões de José Antonio Pasta Júnior em Trabalho de Brecht: breve
introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea, São Paulo: Ática, 1986,
especialmente p. 56-71.
167
dinâmica, acompanhamos como Bernhard pretende atingir este objetivo. O
processo movido por Lampersberg, a proibição da comercialização dos textos
de Bernhard na Áustria depois liberados –, seu artigo no Frankfurter
Allgemeine Zeitung e sua entrevista a Krista Fleischmann podem ser vistos
como partes da obra, exigidas pela mesma. O episódio Lampersberg-
Lampersberger penetra na obra. A concepção de uma provocação (Erregung)
impõe que a “bola de neve” do autor ganhe tamanho e tenha impacto, de modo
que estes acréscimos adquiridos pela recepção não são meros acessórios,
mas constitutivamente decisivos para sua arquitetura formal que, assim, se
mostra aberta e permeável à imediação social.
Não apenas na elaboração de um projeto estético que encampe a
repercussão e recepção em sociedade há paralelos entre os dois autores. No
plano de Bernhard está inscrito não apenas a altercação com a história
austríaca, mas também uma crítica à modernidade: “Bernhard, auch in er
österreichischen Tradition mehr zu Hause als andere, hat nicht die
österreichische Tradition, sondern den epochalen Bruch mit dieser Tradition ins
Zentrum seiner Werke gerückt.”
213
Ao lado do projeto formal das provocações, visto acima, um outro também
era posto em funcionamento: um projeto que pode mesmo ser considerado
como clássico, pois se pautava por uma retomada dos clássicos, lidos, no
entanto, contra a corrente. O caso mais contundente ocorre com a publicação
de Der Stimmenimitator (1978). Nesta coletânea pratica-se uma teoria da
imitação que serve de base para toda a obra poética de Bernhard, que imita
sem imitar: imita a forma dos jornais, e empresta a autenticidade deles, mas
não possui nenhuma verossimilhança. A crítica aos jornais empreendida por
Karl Kraus, em seu Die Fackel, serve como precursora da empresa de
Bernhard. Kraus cita fora do contexto, com a intenção de salvar a citação: se a
informação se finge de verdadeira, por seu caráter objetivo e destituído de
contexto significativo ou de participação ativa do leitor para a formação da
significação, a sua retomada por Kraus, em outro contexto, causa espécie, e
faz desconfiar da informação original. A citação serve para destituir a aura de
objetividade da informação jornalística. Bernhard retoma esta perspectiva, não
213
H. Höller, Thomas Bernhard, p. 106.
168
apenas com o meio jornal, mas também em sua relação com autores que cita.
Seus personagens citam filósofos, escritores, pensadores, políticos, mas
dificilmente para fazer a apologia destes trabalhos. “‘Alles, was sie sagen, ist
zitiert.’ Alle Sätze sind Wiederholungen.”
214
O procedimento muito comum do Name-dropping, com o qual faz
referência a uma série de autores de uma vez, sobretudo filósofos e escritores,
é também uma forma de citar sem citar: por um lado, apropria-se deles pela
evocação dos nomes, e por outro lado deforma o citado, pois mesmo quando
não o critica e ridiculariza de todo, a citação não se desenvolve em
enfrentamento crítico com o citado. Muitos críticos da obra bernhardiana fazem
de suas dissertações e teses um verdadeiro mosaico da filosofia ocidental,
buscando encaixá-lo no pensamento do filósofo citado. Mas, aqui, trata-se de
um erro, pois a obra de Bernhard, em nenhum sentido, pode ser redutível a
uma filosofia ou literatura específica, antes se realiza a carnavalização ou
deturpação destas citações. Mas a poética de Bernhard também inclui esta
relação de levar o leitor e o crítico não passa de um leitor , como se diz,
pelas fuças, e assim abre várias picadas e veredas, por onde se pode entrar e
se perder.
Se nesta consideração metódica das contribuições do passado se observa, em
Brecht, a constituição de um ponto de vista universalista que se deve provar como
tal pela capacidade de se formular incorporando a herança, é ao incidir, este ponto
de vista, na questão dos gêneros, como dissemos, que ele revela sua feição
clássica, em que a consideração da herança, longe de esgotar-se em si mesma,
surge em função da busca da adequação e do rigor da forma, vista como
inseparável do “conteúdo”.
215
Com Pasta, Brecht “consome” os grandes clássicos, e de certa forma,
este consumo capitalista que aniquila o clássico também faz parte do projeto
de Bernhard. Por um lado, a imediação social, que no entanto não se esgota
nesta irritação; por outro, a forma trata da modernidade, do capitalismo tardio.
E mais: suas citações que não citam, alçam-no ao panteão classicista, sem
perder o contato direto com as condições específicas na Áustria, das quais
214
W. Schmidt-Dengler, ‘Analogia entis’ oder das ‘Schweigen unendlicher ume’?”, em Der
Übertreibungskünstler, p.30.
215
J. A. Pasta Jr, Trabalho de Brecht, p. 146.
169
exige resposta, sendo este um dos itens da agenda de sua classicidade
contemporânea que, por exigência dos tempos, deve ser impura e realizar um
percurso dentro da sociedade, sem deixar de ser parte da obra. Este projeto
clássico, assim, garante a pertinência da obra no tempo, mas sem abrir mão da
participação ativa na vida em sociedade. Com Schmidt-Dengler:
Kurzum, es gelang Bernhard, die Österreicher redend zu machen. Sie wurden
allesamt kenntlich, die sich da über Bernhard ausließen; von seinen Büchern war
so gut wie gar nicht mehr die Rede, Bernhard war zu einer öffentlichen Figur
geworden. Auch wenn er nichts unternommen hatte, so war er für viele bald zu
einem Repräsentanten Österreichs avanciert, und je mehr er sich mit seiner
Person der Öffentlichkeit entzog, um so mehr schien er sich dieser zu
insinuieren.
216
216
W. Schmidt-Dengler, Vorlesung über österreichische Literatur 1990-2000, p. 7.
170
CATULO III
Estudo sobre Auslöschung. Ein Zerfall
In all den Jahren hat man sich gefragt, wie wird es
wohl aussehen, das Neue. Hier ist es, das Neue.
(Ingeborg Bachmann, “Thomas Bernhard, ein
Versuch. Entwurf”)
1. Ponto de vista e personagens
Auslöschung. Ein Zerfall foi o último romance publicado de Thomas
Bernhard, mas não o último a ser escrito. Auslöschung foi escrito por volta de
1982, datação esta já aceita como indiscutível pela crítica bernhardiana.
217
Entre 1982 e 1986, ano da publicação, ele ainda escreveu e publicou cinco
outros romances, a saber: Beton (1982), Wittgensteins Neffe (1982), Der
Untergeher (1983), Holzfällen. Eine Erregung (1984) e Alte Meister. Komödie.
(1985). Não se sabe ao certo o motivo da postergação da publicação de
Auslöschung, mas se admite a hipótese do autor considerar este livro como
sua Opus Magnum, o que encontraria respaldo na maior parte da crítica
218
, e
com isso projetado o livro como o fecho de sua obra em prosa.
219
Deve-se
notar, porém, que algumas alterações importantes foram introduzidas para a
publicação em 1986, como se na primeira página da cópia datilografada
presente no espólio. Ali se vê que Murau se chamaria ttinger, e que entre os
livros indicados por Murau para Gambetti, citados no início do livro, Bernhard
217
Cf. U. Weinzierl, “Bernhard als Erzieher. Thomas Bernhards Auslöschung”, em P. M.
Lützeler (org.), Spätmoderne und postmoderne. Beiträge zur deutschsprachigen
Gegenwartsliteratur, p. 193-194. Isto tem respaldo no fato do tempo da narrativa remontar a
1982, tendo em vista que Bernhard não raro faz do tempo da narrativa o de sua produção, num
dos muitos caminhos pelos quais estabelece uma relação direta da obra com seu contexto
histórico, aproximando ficção de realidade, apesar de toda a artificialidade de seus textos e de
outras estratégias de sua estética, que impedem uma mimese simplista da realidade.
218
Mas divergências a este respeito, como se pode notar em U. Weinzierl, op. cit., p. 189,
que não lê o romance como o melhor, mas como o mais essencial da Áustria dos anos 80.
219
Como afirma J. Hoell, Thomas Bernhard, p. 128: Auslöschung ist aber auch der bewusst
gesetzte Schlusspunkt unter das Prosawerk, in dem Themen und Motive des gesamten Werkes
zusammengeführt werden. Er selbst hat Auslöschung als Höhepunkt und literarisches
Testament betrachtet. Als er das Manuskript aus dem Tresor genommen hat, sagt er stolz: ‘Das
macht mir keiner nach.’”
171
substituiu Witiko, de Adalbert Stifter, por Amras, dele mesmo, de 1964. O
comunicado da morte do narrador foi deslocado para o final do romance, bem
como a data de sua morte para 1983, em vez de 1981
220
. Estas alterações são
mínimas, porém decisivas, e apontam para a importância das sutilezas num
romance de 651 ginas. Destaque-se, especialmente, a inserção do romance
Amras, do próprio Bernhard, como leitura para Gambetti, instaurando um
diálogo deste livro com a obra anterior do autor, corroborando a tese de que
Bernhard procura fazer confluir todas as linhas de força da sua poética em
cada uma das obras, numa obra por outro lado tão multifacetada e dinâmica,
que se desenrola ao longo de quatro décadas
221
.
Uma breve recapitulação do enredo deste romance pode ser útil e
resumida em poucas linhas, dada a estrutura da obra. Franz-Josef Murau
recebe um telegrama de suas irmãs em Roma, onde mora, comunicando a
morte dos pais e do irmão mais velho, no Castelo Wolfsegg, Áustria, residência
da família e de onde Murau se evadiu décadas. Este tira de sua
escrivaninha fotos nas quais sua família aparece e, a partir destas fotos e sob o
impacto das mortes, que o tornam herdeiro do castelo Wolfsegg e de tudo que
esteja relacionado a ele, destrói e re-constrói sua relação conflituosa com a
família. Os juízos não o, contudo, definitivos, uma vez que uma mesma
imagem pode ser lida sob diversos ângulos, luzes e disposição das fotos.
Depois de mais de trezentas páginas escritas em seu quarto em Roma, que
perfazem a parte intitulada Das Telegramm, onde o narrador personagem
atualiza pela memória todo seu passado em Wolfsegg, até sua partida para
Lisboa e depois Roma, em definitivo, volta a Wolfsegg para, como diz, tomar
parte do enterro triplo como teatro (entre a tragédia e a sátira), enfrentar as
irmãs e a sociedade, e resolver as questões legais relacionadas à herança.
A segunda parte, Das Testament, mostra a difícil chegada ao castelo
Wolfsegg, sua relação com as irmãs, o cunhado, os serviçais do castelo e,
mais tarde, com os convidados para o enterro, muitos dos quais pernoitarão
220
Op. cit., p. 127.
221
Cf., por exemplo, o volume 14 (especialmente a parte IV, “Frühe Erzählungen”, p. 457-538)
das Obras de Thomas Bernhard, sendo lançadas pela Editora Suhrkamp: Werke 14.
Erzählungen. Kurzprosa. (Werke in 22 Bänden). Thomas Bernhard ainda trabalhou como
jornalista cobrindo tribunais, como se pode ler em J. Dittmar (org.), Aus dem Gerichtssaal.
Thomas Bernhards Salzburg in den 50er Jahren, 1992. Um material de referência incontornável
foi organizado por este mesmo J. Dittmar: Thomas Bernhard. Werkgeschichte, 1990.
172
nas dependências do castelo. O narrador Murau, em primeira pessoa, discorre
o tempo todo sobre essas personagens e, também, sobre si mesmo, como o
ator principal neste teatro macabro e ridículo. Todo o passado e o presente de
Wolfsegg e da Áustria, como se verá, alegorizada em Wolfsegg –, e mesmo
projetos e alusões sobre seu futuro, imiscuem-se indistintamente e vão, assim,
construindo a tessitura da narrativa, que se volta sobre o seu processo
constitutivo e os seus pressupostos implícitos, numa realização que tece e
desmancha, ao mesmo tempo, o seu complexo fio de Ariadne, feito pelo
desfazer. O romance termina com a doação do complexo Wolfsegg para a
comunidade israelense de Viena, na última página, onde também seremos
informados de que Murau, narrador do texto, morreu em Roma, onde o texto foi
escrito, em 1983.
Infelizmente o enredo, colocado desta forma, pouco diz sobre o texto
Auslöschung, e pergunto-me em que medida serve mesmo de baliza para o
mergulho na obra, tão avessa e defensiva em relação a aproximações desta
natureza, visto que sua realização e verdade se encontram, sobretudo, na
forma e, mesmo, na extinção/destruição do enredo e de um fio narrativo
conseqüente e cronológico a que tentei aludir nesta recapitulação. O como
e não o quê ocupa o primeiro plano em sua obra: “Das Problem liegt im
Wie”
222
. Deste modo, Bernhard explicita a importância da musicalidade da
linguagem e da forma em seu trabalho, numa entrevista concedida em 1983. A
caducidade e a falta de sensibilidade analítica na separação arbitrária e
equivocada entre forma e conteúdo também serão tratadas em nível formal.
Mas assim vou além do que me propusera nesta porta de entrada para o
romance. É hora de fazer falar o próprio texto de Bernhard.
Ponto de vista e voz narrativa em primeira e terceira pessoas
O tempo da narração tempo do ato de narrar, da enunciação e o da
narrativa tempo do enunciado
223
não se confundem em Auslöschung. Isto
ocorre tanto pelo fato de a escrita em Roma ser posterior aos eventos
narrados, como pela inserção de uma instância em terceira pessoa que se
222
“Aus zwei Interwiews mit Thomas Bernhard. Aufgenommen von Jean-Louis de Rambures”,
em H. Höller e I. Heidelberger-Leonard, Antiautobiografie. Thomas Bernhards Auslöschung, p.
15.
223
Cf. G. Genette, Discours de récit, Paris: Ed. du Seuil, 1972.
173
interpõe entre o leitor e o narrador em primeira pessoa, num romance cuja
composição é marcada pela destruição criadora do narrado em todas as
instâncias, seja da história, seja dos personagens, seja dos julgamentos feitos
pelo narrador, o que será reforçado pela atenção redobrada aos bastidores
deste romance como teatro, aos escuros, aos vazios, ao recôndito. Esta
dinâmica também envolve o ponto de vista e a voz narrativa em terceira e
primeira pessoas. Não se trata propriamente de uma moldura em terceira
pessoa, externa, visto que esta instância se imiscui na trama textual, como se
pode notar pelo modo de sua inserção, no primeiro e no último parágrafos.
Assim se inicia o romance:
Nach der Unterredung mit meinem Schüler Gambetti, mit welchem ich mich am
Neunundzwanzigsten auf dem Pincio getroffen habe, schreibt Murau, Franz Josef,
um die Mai-Termine für den Unterricht zu vereinbaren und von dessen hoher
Intelligenz ich auch jetzt [...] (AUS, 7)
E o final:
Von Rom aus, wo ich jetzt wieder bin und wo ich diese Auslöschung geschrieben
habe, und wo ich bleiben werde, schreibt Murau (geboren 1934 in Wolfsegg,
gestorben 1983 in Rom), dankte ich ihm für die Annahme. (AUS, 651)
A crítica Eva Marquardt simplifica em demasia ao resumir o resultado
deste procedimento à exacerbação do caráter indireto do relato, que vai além
do narrador Murau, chegando a esta voz em terceira pessoa (que ela trata
como moldura), deixando claro para ela a separação entre uma narrativa
primária (em terceira pessoa) e uma secundária (em primeira), na esteira de
Genette.
224
Esta terceira pessoa, misteriosa, quase escondida neste turbilhão
discursivo, insinua-se pela frase intercalada “schreibt Murau, Franz Josef” no
início, e por “schreibt Murau” no final, acompanhado das datas e local de
nascimento e morte. Nada mais. Mas não se limita a uma moldura, o que fica
evidente pela intercalação de sua intervenção no próprio corpo do texto,
fraturando-o e tornando-se parte inseparável dele. A superposição destas duas
vozes irá se espraiar para o ponto de vista do romance, não se limitando ao
224
Cf. E. Marquardt, Gegenrichtung, p. 57-59.
174
início e fim, o que será reforçado pela ausência de parágrafos ao longo do
texto, dividido apenas em dois grandes capítulos: a inserção inicial estende sua
influência até o final do primeiro capítulo, e a final fecha o segundo.
A mesma Marquardt lembra que a crítica aventou várias hipóteses sobre
quem se esconderia por trás desta voz: o interlocutor e aluno Gambetti, ou o
amigo Eisenberg, que aceita a doação de Wolfsegg para a comunidade
israelita, entre outras hipóteses.
225
A meu ver, considero um engano tentar
atribuir aquela voz a um personagem específico, num romance que procura,
antes de tudo, extinguir estas vozes, e o afirmá-las. É mais plausível
entender esta instância como parte indissociável da constituição íntima do
próprio narrador Murau, que se de fora e estrutura o romance com mestria,
num jogo incessante que depende do ponto de vista externo e interno: o
narrador se faz ainda mais infame e deplorável quando não aponta para as
suas falhas de caráter, como expõe em muitas ocasiões. O leitor é tentado a ler
o romance pelo prisma da primeira pessoa, na qual se narra, esquecendo
desta outra perspectiva que espreita suas reações e o enreda, de sua posição
privilegiada nos escuros do texto, o tempo todo. A própria epígrafe do romance
“Ich fühle, wie der Tod mich beständig in seinen Klauen hat. Wie ich mich
verhalte, er ist überall da atribuída a Montaigne, prepara-nos para a
onipresença da morte, também contida no título Auslöschung e na dinâmica
que constrói o ponto de vista.
A instância em terceira pessoa não se confunde com a da narração, em
Roma, pois escreve após a morte de Murau, dispondo do todo em suas mãos
e, de modo nada inocente, intrometendo-se no texto alheio após a morte do
seu autor. Não se respeita o texto de Murau, que pode ter sido alterado após
seu termo, o que corrobora a perspectiva de que o texto de Auslöschung vale
mais como processo de escrita do que como texto acabado. Depreende-se daí
a importância de uma estética dos bastidores, que discute a escrita do próprio
texto que temos em mãos: Auslöschung configura-se tanto como um projeto de
escrita de Murau, que o leitor acompanha ao longo do romance, quanto como o
texto final publicado. O subtítulo Ein Zerfall alude a este caráter de processo,
225
Cf. E. Marquardt, Gegenrichtung, p. 58-59.
175
ao movimento próprio de uma decomposição, uma decadência, de tornar-se
ruína.
Em verdade, a julgar por esta argumentação em curso, esta inserção faz
um morto falar: Murau agradece Eisenberg por aceitar a doação de Wolfsegg
após o sabermos morto. O narrador em terceira pessoa poderia, caso não
intentasse essa acepção, inserir sua frase após o agradecimento de Murau, o
que não se verifica. Indo mais longe, a frase no primeiro parágrafo potencializa
e expande este raciocínio: todo o texto narrado em primeira pessoa o foi
também sob o ponto de vista de um morto, visto que as inserções no início e no
final originarem-se da mesma pena e, ao que tudo indica, numa mesma
ocasião. Kaufmann aproxima esta perspectiva daquela do primeiro romantismo,
começando pela citação de Novalis:
Das Wesen der Identität läßt sich nur in einem Scheinsatz aufstellen. Wir verlassen
das Identische, um es darzustellen. (Novalis, Fichte-Studien, Bd.2, S.8) Thomas
Bernhard nimmt diese Denkfigur als zentralen Topos seiner Poetik formal wieder
auf. Mit gutem Grund ist der Roman Auslöschung aus der Perspektive eines Toten
geschrieben.
226
Esta aproximação ao romantismo é válida, desde que se perceba que o
absoluto, em Bernhard, será substituído pela história como ponto de fuga, num
passo obrigatório haja vista a concepção formal e o desenvolvimento material
de nossa sociedade atual.
O tempo após a morte de Murau, quando foram escritas as inserções ora
em relevo, penetra na carne do seu texto. E, de fato, a perspectiva da morte
serve bem à operação aqui em curso: uma extinção que, ao extinguir, cria algo
outro e novo, mas que ainda preserva o extinto, num movimento que vai da
frente pra trás e que atualiza o passado, muitas vezes arrancando-o do leito
tranqüilo a que estava relegado pela tradição, da qual desconfia. De modo que
o ponto de vista do romance não se restringe ao do morto, mas envolve
também o do vivo, sem que se possa sair deste emaranhado constitutivo para
o narrador e para o romance. A possibilidade de algo “Novo” como uma
espécie de ponto de fuga do romance apresenta como porta de acesso o
226
S. Kaufmann, “Romantische Aspekte im Werk Thomas Bernhard”, em W. Schmidt-Dengler
et al. (orgs.), Thomas Bernhard. Beiträge zur Fiktion der Postmoderne, p. 103.
176
personagem Gambetti, e tem o feitio do “caráter destrutivo” benjaminiano que,
pela extinção do que existe, abre espaços, mas não faz prognósticos: limpa o
terreno. Essa extinção passa necessariamente por uma auto-extinção, que
pressupõe a aniquilação do próprio Murau, o que implica o ponto de vista da
morte:
Tatsächlich bin ich dabei, Wolfsegg und die Meinigen auseinanderzunehmen und
zu zersetzen, sie zu vernichten, auszulöschen und nehme mich dabei selbst
auseinander, zersetze mich, vernichte mich, löschte mich aus. Das allerdings, [...],
ist mir wieder ein angenehmer Gedanke, meine Selbstzersetzung und
Selbstauslöschung. (AUS, 295).
O projeto encampa o que a voz em terceira pessoa realiza. As vozes
assim se imiscuem no tecido narrativo, não se apresentando como algo de
fora, com controle sobre o todo. Mesmo o autor não escapa dessa dinâmica e
traços autobiográficos penetram também o mundo ficcional, o que, no entanto,
não descamba em depoimento ou numa autobiografia. O ponto de vista do
morto não é externo ao texto, mas é forma estética que apreende a social: a
morte social em vida (pela alienação e isolamento no capitalismo, que reserva
a passagem à mercadoria para se fingir de vivo) está plasmada neste ponto de
vista, e seus desdobramentos marcarão o andamento do romance. Assim,
numa inversão típica do capitalismo, o morto está vivo, e o vivo, morto. A forma
estética não fica alheia a este processo.
Do ponto de vista da morte à morte dos pais e do irmão
A morte é um dos temas centrais na obra de Bernhard, e quero crer que o
crítico Höller esteja certo, em sua dissertação publicada em 1973
227
, ao
entender esta concepção de morte em chave histórico-social, e não metafísica.
Em Auslöschung, além disso, o narrador Murau diz, quiçá numa alusão velada
à sua própria condição, que os mortos estão vivos, ao referir-se aos pais e às
suas mortes e a tudo que elas desencadeiam: “[...] denn auch das sogenannte
starre Gesicht ist vollkommen in Bewegung, weil es nicht tot ist, selbt das tote
Gesicht, weil es in Wirklichkeit nicht tot ist, und so fort.” (Aus, 618) A retomada
227
H. Höller, Kritik einer literarischen Form, p 124-134. Isto indica que esta concepção de morte
faz parte do projeto estético do autor desde seus princípios.
177
da palavra pelos ex-nazistas no enterro mostra em que sentido o pai ainda
vive: enquanto discurso e reviravolta política. A menção aos restos putrefatos
dos pais como indignos dos mesmos, que não estavam decrépitos como os
seus corpos, serve à materialização grotesca da morte destes, almejando
impedir sua idealização, atitude perniciosa que levaria à deturpação e ao
esquecimento do que eles eram e são:
Bei ihrem Anblick ekelte es mich, ich war weit davon entfernt, gerührt zu sein, wie
gesagt wird, etwas anderes zu empfinden als Ekel und Abscheu. Meine Bindung
hatte ich zu meinen lebenden Eltern und zu meinem lebenden Bruder, nicht zu
diesen toten stinkenden Leichnamen, dachte ich. (AUS, 396).
Contra esta idealização arma-se esta Auslöschung, e neste sentido a
intenção alegórica aqui presente ganha em pertinência crítica, pois procura
inviabilizar este procedimento: os mortos estão vivos, mas não se admite a
recriação que deturpa até a irreconhecibilidade, que atenua toda e qualquer
visada crítica: a morte não os salva
228
. Os pais não podem, sob hipótese
alguma, ser canonizados porque mortos: faz-se imperativo buscar a verdade de
todas as relações e contextos, (alles Dazugehörende) mesmo num momento
de dor como este, numa referência nítida à história da Segunda República
Austríaca, por todos os encobrimentos, deturpações e esquecimentos que
marcaram esta época. Este constitui um dos elementos desta escrita: não
ceder à tentação da fuga e do esquecimento. O narrador luta contra esses
impulsos em várias ocasiões no romance, e a luta em si importa mais do que
os temas, propriamente ditos, sobre os quais Murau se debruça.
O risco desta idealização é enorme e descrever friamente, com certo
asco, os corpos putrefatos evidencia a intenção de impedir que seus pais se
tornem abstração, exigindo que sejam vistos em sua decrepitude física (nos
caixões), que alude à decrepitude moral e espiritual: assim, farão jus à crítica
que esta perspectiva alegórica permite. Neste diapasão enfeixam-se as duas
228
A canonização do próprio Bernhard, após sua morte, por parte da opinião pública e dos
políticos que o espicaçavam em vida, e sua ânsia em alinhá-lo ao panteão dos grandes artistas
austríacos do século XX, não poderia ser mais criticável, quando se tem em mente essa luta
contra a idealização e sua suspeita de toda e qualquer tradição, projetos caros a Bernhard que,
também por isso, proibira a publicação de quaisquer de suas obras após sua morte; não queria
ser tragado pela máquina da indústria cultural, mas mesmo isso contribuiu para sua fama de
Inimigo Público, com o qual fez fama.
178
tentativas malsucedidas, realizadas por Murau, de abrir o caixão lacrado da
mãe, mas, sobretudo, seu desejo de expor a mãe decapitada a Spadolini,
obrigando-o a vê-la assim, pensamento que depois repudia. Como todos os
pensamentos descritos que depois nega, esse também tinha,
necessariamente, que ser pensado, pois seu desejo toca o nervo central deste
episódio: o idealizador máximo entre todos será justamente Spadolini, o bispo
amante da mãe, adorado pelo narrador Murau, que se lembra de uma mãe e
um pai absolutamente falsificados, embora para Murau tudo o que diga, pela
forma como o faz, seja autêntico (AUS, 580-581). Contra esta idealização, a
violência da exploração dos corpos destroçados e fedorentos surge como
antídoto, o que não esconde um certo pendor sádico do narrador que, em
outros momentos, não se esforça por esconder dos leitores, na conta de um
pudor inverossímil.
Apesar desta alegoria dos mortos em putrefação aludir ao barroco, a
índole deste procedimento em Bernhard afina-se com as alegorias de
Baudelaire, segundo a leitura original de Benjamin: configura-se como uma
alegoria da modernidade, de modo algum conservadora ou reacionária, em
certo sentido mesmo revolucionária, visando o “Novo” de Gambetti e Murau.
229
Os mortos falam na medida em que atualizam a história, que não
descansa no fundo dos livros empoeirados nas estantes das cinco bibliotecas
fechadas a cadeado de Wolfsegg; a história não se deixa prender, não se
restringe aos livros e congêneres: ela pode ser lida na sala de estar de
Wolfsegg, no silêncio engasgado da esposa do mineiro Schermair, na tessitura
histórica dos conceitos e tradição tidos como indevassáveis, como se verá em
momento oportuno. Com Benjamin:
Nur dem Geschichtsschreiber wohnt die Gabe bei, im Vergangenen den Funken
der Hoffnung anzufachen, der davon durchdrungen ist: auch die Toten werden vor
229
S. Buck-Morss, The dialects of seeing, 1989, nota que Benjamin critica a alegoria barroca
pelo seu idealismo e pela sua fuga do terreno, refugiando-se no espírito. Neste sentido, a
alegoria barroca seria eminentemente conservadora, diferente da intenção alegórica em
Baudelaire, destruidora por natureza, como mostra a sua investida contra os anjos. A alegoria
seria o antídoto para livrar a realidade dos mitos da modernidade. Esta perspectiva alegórica
será tratada mais detidamente noutro capítulo: ela está bem à vontade no mundo das
mercadorias, assim como esta Auslöschung. “À enganadora transfiguração do mundo das
mercadorias se contrapõe sua desfiguração no alegórico.” (W.Benjamin, Obras escolhidas, p.
163). O processo vai tão longe que não apenas os personagens, mas mesmo o autor torna-se
uma mercadoria, um produto, num mundo totalizado negativamente sob esta forma.
179
dem Feind, wenn er siegt, nicht sicher sein. Und dieser Feind hat zu siegen nicht
aufgehört.
230
O que Benjamin escreve sob a influência do início iminente da Segunda
Guerra continua válido na cova aberta da família de Murau: ao louvar o pai e
seu passado e reservar o silêncio à mãe e ao irmão, deturpa estes mortos e a
própria história que representam, o que Murau tenta impedir, ao escrever sob
os auspícios da perspectiva deste historiador materialista benjaminiano. O
ponto de vista da morte age, não espera sua salvação de fora, para tentar fazer
ouvir outras vozes que não apenas a dos vencedores.
Metalinguagem como princípio de construção
Auslöschung nomeia tanto o texto final, impresso em forma de livro,
quanto um projeto arquitetado ao longo da narrativa, como se viu. Esta
metalinguagem é mais complexa do que parece à primeira vista, pois o se
resume em colocar uma obra dentro da obra: a obra acabada não está
acabada, ao incluir, de uma vez, o texto terminado – que nos é apresentado
pela instância em terceira pessoa e o seu projeto e processo de construção,
em primeira pessoa, o que será assunto do item seguinte, sobre a linguagem
neste romance. Decisivo é o processo: o rememorar e não a rememoração, o
movimento e não o definitivo, o esboçar de uma verdade e não o
estabelecimento dela. No sentido da narrativa, Auslöschung ainda é um texto a
ser redigido. O texto pronto contém várias digressões sobre sua futura redação.
Esta situação faz do livro um vir-a-ser, um projeto inacabado, algo “Novo”. Este
romance histórico-alegórico tem, então, como princípio construtivo a sua
própria aniquilação, e por este processo se conforma, tanto no sentido de
tomar forma quanto no de se resignar à necessidade da auto-supressão
(morte) como pressuposto de seu ponto de vista.
Construção dos personagens e relação com o leitor
O movimento que marca este ponto de vista, que passa pela “extinção
das posições assumidas, estrutura todo o romance, especialmente a partir da
construção dos personagens. O narrador penetra todos os outros personagens,
230
W. Benjamin, “Über den Begrifff der Geschichte”, em GS I.2, p. 695.
180
cola-se neles, torna-se seu duplo para, então, repor a distância, com a qual
anula aquela posição, num jogo que deixa rastros pois, acima de tudo,
interessa-lhe o processo, numa extinção como Aufhebung”, uma superação
que mantém o suprimido. Age, do mesmo modo, com as avaliações que
encampa para, logo a seguir, desprender-se delas. Assim se sua formação
pela supressão, que ganha corpo no ir e vir.
231
O leitor o fica alheio a esta
dinâmica engendrada pela obra, como também ocorre no caso de Holzfällen.
Por um lado, o monólogo que recria diálogos passados com Gambetti coloca-
nos, como leitores, na posição de interlocutores de Murau. Seu texto relata
antes uma fala (para alguém) do que um pensamento (para si mesmo), como
afirma Jelinek: “Daher war seine [de Thomas Bernhard] Literatur eine Literatur
des Sprechens (im Gegensatz zum Denker Hanke), der Endlos-Tiraden.”
232
; um
diálogo fraturado, quando não hipotético, em que os interlocutores (não apenas
Gambetti) estão geralmente ausentes, como seus pais, irmão e tio, mortos,
Maria, Eisenberg, e mesmo o Spadolini íntegro, que cede lugar ao Spadolini
oportunista em Wolfsegg. Como disse Bernhard numa entrevista em 1970:
Es ist immer das Gespräch mit meinem Bruder, das es nicht gibt, das Gespräch
mit meiner Mutter, das es nicht gibt. Es ist das Gespräch mit dem Vater, das es
auch nicht gibt. Es ist das Gespräch mit der Vergangenheit, das es nicht gibt und
die es nicht mehr gibt, die es nie geben wird. (ITA, 89).
Estas frases, de 1970, estão mais de uma década distantes da escrita de
Auslöschung, mas ecoam no texto cerrado de Murau: são diálogos não
havidos, seja por estarem recriados como monólogos (Gambetti) ou
inexistentes, no caso dos familiares, que emprestam forma ao romance, com o
que o diálogo é afirmado e negado: “Es ist das Gespräch [...] (afirma), das es
nicht gibt” (nega).
O leitor, acompanhando de perto o narrador Murau, entra, ele também,
neste jogo de interlocução em ausência. Para corroborar ainda esta hipótese
da posição do leitor como interlocutor devo recorrer à importância deste leitor
231
A expressão e o conceito de “formação supressiva” são de autoria de José Antonio Pasta Jr.
Ver, por exemplo, “O romance de Rosa. Temas de Grande Sertão e do Brasil”. Revista Novos
Estudos – CEBRAP, N. 55, nov. de 1999, onde surge pra comentar a formação do narrador
Riobaldo.
232
E. Jelinek, “Atemlos”, em S. Dreissinger (org.), Thomas Bernhard. Portraits. Bilder & Texte,
p. 311.
181
no projeto estético de Bernhard, já discutido no capítulo sobre Holzfällen, e que
conduz à provocação formal.
O pai e Johannes: modernidade arcaica e redução à mercadoria
Logo na primeira página do romance, o telegrama informando da morte
dos pais e do irmão e em funcionamento a “máquina de pensar”
(Denkmaschine) do narrador Murau. Em itálico, a lacônica e seca mensagem
das irmãs: Eltern und Johannes tödlich verunglückt. Caecilia, Amália.” (AUS,
7). Um telegrama em que não se explica como ocorreram as mortes,
desencadeando um processo de construção hipotética do narrador que se
encerra, afinal de contas, no acerto de que a morte dos três devia-se a um
acidente automobilístico: “Ihr Tod, es kann nur ein Autounfall sein [...]” (AUS,
14)
233
. Murau aprovará o procedimento das irmãs, de não usar o telefone, mas
o telegrama, para a mensagem: o diálogo sem diálogo marca o andamento do
livro, mesmo que isso causasse certa estranheza nos idos dos anos oitenta do
século vinte.
Um acidente automobilístico: o automóvel, ícone máximo da
modernidade, caracteriza um estilo de vida, pensamento e valores que os leva
à morte. Um meio (de transporte) que se torna fim, o símbolo moderno por
excelência da liberdade e autonomia que se afiançam satisfeitas pela
sociedade capitalista, mas de fato inatingíveis, fora da equivalência e
passagem pela mercadoria.
234
Diga-se de passagem que a indiferença
(Gleichgültigkeit) dos narradores de Bernhard e do próprio autor é da estirpe da
equivalência das mercadorias pelo dinheiro, e não uma indiferença política e
social por vezes atribuída ao autor, o que levaria à letargia e à inação, como
afirma com acerto Donnenberg, numa de suas catorze teses sobre a obra de
Bernhard: “So wenig Bernhards Pessimismus bloß ein psychischer Defekt ist,
233
Em Holzfällen, o narrador recebe a notícia da morte da amiga Joana por telefone, sendo
inescrupuloso ao extremo ao perguntar pelas minúcias sobre esta morte, arrancando da amiga
de Joana que ela cometera suicídio por enforcamento o que, aliás, o narrador também
“adivinhara”.
234
O apelo da sociedade do automóvel fica arranhado quando se filas de carros parados
num engarrafamento numa auto-estrada alemã sem limite de velocidade, ou o que ainda ilustra
melhor, nos engarrafamentos sistemáticos numa cidade como São Paulo, quando se soma à
falta de mobilidade o pânico provocado pelos assaltos e seqüestros cada vez mais freqüentes,
situação na qual o automóvel, que promete liberdade, transforma-se numa cela de ferro, em
que o motorista fica algemado e à espera do infortúnio, o que exige duma inocente visita ao
supermercado uma preparação de guerra.
182
so wenig verführt ihn seine durch negative Erwartungen bestimmte Haltung zur
Untätigkeit, zum Schweigen.”
235
Sob a ótica do narrador Murau, a Áustria e os
austríacos cometem seu crime mais hediondo ao abafar e silenciar seu
passado, e contra isto se volta esta Auslöschung.
Murau não poderia ter tanta certeza como tem com o telegrama à mão.
Essa certeza advém da arquitetura do romance, de sorte que a morte pelo
automóvel não é um lance fortuito, mas estrutural. Eles tinham que morrer num
acidente automobilístico. Es kann sein (“pode ser”) trabalha no campo da
suposição, porém a partícula nur qualifica esta frase, toma para si o
significado dela e aponta para a certeza advinda da necessidade formal, ou
seja, indica que se trata de uma exigência da fatura desta composição. Está
em jogo a tensão entre o despontar do dito mundo moderno e os seus
desdobramentos nos estertores do culo XX, entre a sociedade do telegrama
e a dos automóveis esportivos como o “Jaguar”, ou noutra configuração trazida
à baila pelo romance e fundamental para o mesmo, o mundo do trator e o do
automóvel, que caracterizam respectivamente o pai e o irmão de Murau, que,
sob certo sentido, se reduzem a esta passagem pela mercadoria. Não é
demais lembrar que ambos sentem-se livres apenas quando saem com estas
suas máquinas. Sobre a importância do trator para o pai:
Er betrachtete sich auf dem Traktor als den glücklichsten Menschen. Als den
unabhängigsten. Auf den Traktor sei er er selbst, das sei genauso traurig, wie wahr
und ich glaubte ihm, soweit hat es kommen müssen, daß ich nurmehr noch auf
dem Traktor allein und glücklich sein kann, hat er einmal zu mir gesagt. (AUS,
352).
O irmão, por seu turno, exerce sua “liberdade” e seu “poder” imprimindo
ao seu veículo a velocidade que decide – pois mesmo a decisão sobre o
caminho cabe à mãe. Interessa a construção que faz o irmão assumir o poder,
pois a forma desta liberdade, aqui em chave irônica, deve ser lida como trágica,
posto que este irmão, duplicata do pai, alegoriza o moderno e o que restou
dele:
235
J. Donnenberg, Thomas Bernhard (und Österreich). Studien zu Werk und Wirkung 1970
1989, p. 131.
183
Ihr Autokult hat sie vernichtet, dachte ich. War er [Johannes] sonst der ruhigste
Mensch, wenn er Auto fuhr, war er nurmehr noch der entfesselte, der zum
absoluten Machtmenschen gewordene, welcher er außerhalb des Autos nicht sein
konnte, [...] (AUS, 352).
Ao volante assume o “poder absoluto”: apenas neste momento detém o
comando, por mais ilusório que isso seja. Na verdade, o irmão se torna uma
duplicata do pai, incorpora suas feições, seu jeito de andar, sua voz, suas
doenças, seu modo de agir e pensar: “[...] es dauert nicht mehr lange, [...] und
er ist unser Vater”. (AUS, 353).
Tanto ele como o pai fazem parte de uma sociedade que repudia tudo
que há de novo, desde sapatos até pensamentos: “[...] es ist nichts mehr
übriggeblieben von ihm, das an seine Persönlichkeit erinnerte, wie sein Vater,
dachte ich, führt er das Leben eines von Millionen von Duplikaten dieser alten
Gesellschaft.” (AUS, 352). o carro deve ser novo: o moderno apenas como
pátina. A liberdade falsa da sociedade capitalista se expressa neste culto ao
automóvel. Esta citação deixa explícito que estamos diante de uma alegoria da
modernidade, que penetra nesse cenário pelo automóvel, não se restringindo
aos personagens deste romance. Não apenas o irmão duplica o pai, mas
ambos representam uma posição dentro desta sociedade.
Ambos são marionetes da mãe, estando esvaziados como sujeitos até o
limite das possibilidades, variando apenas na adaptação de cada um a este
papel dadas as circunstâncias históricas de cada qual. Esta imobilidade que se
finge como mudança ininterrupta se refere tanto à forma capitalista quanto a
um desenvolvimento próprio austríaco, trazido à tona pelo imobilismo que
caracteriza os muitos movimentos reacionários na Áustria, indo desde a
Contra-Reforma católica (Magris), passando pelo Congresso de Viena sob
Metternich (Jost Hermand), pelas feições tardo-biedermeier do sem-caráter
(charakterlos) Kaiser-König Franz-Joseph (Karl Kraus), e chegando à negação
da ilustração ‘protestante’ e a nostalgia da grandeza da Casa dos Habsburgos
no final do século XIX, que adentra o século XX e que, nas palavras de Magris,
aferra-se à construção de um ‘Mito Habsburgo’, anacrônico em sua recusa ao
pensamento modernizador, suspirando pelos momentos de grandeza
184
passados. Esta caracterização nostálgica do imobilismo se em Werfel, em
Zweig, e na comparação de Hofmannsthal entre os prussianos e os austríacos:
Der Österreicher: Traditionelle Gesinnung, stabil fast durch Jahrhunderte. Der
Preusse: Aktuelle Gesinnung (um 1800 kosmopolitisch, um 1848 liberal, jetzt
[1917] bismarckisch, fast ohne Gedächtnis für vergangenen Phasen).
236
Mais do mesmo se na ironia quase debochada de Musil, no famoso
capítulo Kakanien. Depois de pintar o cenário de uma cidade futurista do
mundo dos sonhos, dirá o narrador:
[...] Und eines Tags ist das stürmische Bedürfnis da: Aussteigen! Abspringen! Ein
Heimweh nach Aufgehaltenwerden, Nichtsichentwickeln, Steckenbleiben,
Zurückkehren zu einem Punkt, der vor der falschen Abzweigung liegt! Und in der
guten alten Zeit, als es das Kaisertum Österreich noch gab, konnte man in einem
solchen Falle den Zug der Zeit verlassen, sich in einen gewöhnlichen Zug einer
gewöhnlichen Eisenbahn setzen und in die Heimat zurückfahren.
237
A concepção de “modernidade” como aparência molda-se por este
processo histórico e pauta o conceito de progresso, sendo mais claro num
contexto periférico em termos capitalistas como o austríaco, mas não é
alheio a nenhum de seus centros. No pai e em Johannes a “estabilidade” de
Hofmannsthal e a retomada dos valores de um mitológico Império Austríaco,
marcado pelo não-desenvolvimento (Nichtsichentwickeln).
Tendo em vista que esta modernidade arvora-se em aparência sem fulcro
real, não é apenas o irmão em seu Jaguar que se desnuda arcaico, mas
também o pai está bem à vontade neste mundo moderno, estando bem
integrado a ele.
Die Leute irren, wenn sie glauben, die Meinigen hätten in dieser Zeit nichts zu
suchen, denn die Meinigen sind in Wahrheit und in Wirklichkeit in dieser Zeit
lebendiger als andere und beherrschen diese Zeit, [...] Sie sind sogar
durchdrungen von dieser jetzigen Zeit, dachte ich,viel tieferer als andere, aber auf
ihre Weise. Es ist nicht richtig, zu sagen, die Meinigen sind Relikte aus einer
vergangenen, einer alten, einer längst abgeschobenen Zeit, denn sie sind ja in
236
H. von Hofmannsthal, Preuße und Österreicher. Ein Schema”, em Gedichte und Prosa
(Gesammelte Werke), vol. 1, p. 573.
237
R. Musil, Der Mann ohne Eigenschaften, p. 32.
185
dieser Zeit. Aber auf ihre Weise. [...] Vielleicht ist es auch ihr größer Trick, sich den
Anschein zu geben, aus einer anderen Zeit und aus einer anderen Welt zu sein.
[...] vielleicht aus einem angeborenen besseren als nur guten Instinkt heraus für
die Zusammenhänge dieser Welt und dieser Zeit [...]. (AUS, 366-367)
À primeira vista, o irmão recua ao arcaísmo do pai, leitura esta no entanto
errada, pois o imobilismo e arcaísmo do pai, com seu culto ao velho, ao
ultrapassado, não deixa de ser moderno, especialmente em fundo austríaco, a
julgar pela concepção de modernidade que se depreende do romance, e pela
adequação a uma auto-imagem construída como representantes de uma
cultura milenar, necessária para a indústria do turismo, um dos pilares da
economia austríaca. Ainda alude ao esquecimento do passado recente, que se
prefere enterrado, ou melhor, desfeito: isto se realiza pela escrita da história e
pelo recuo a um passado remoto glorioso, “verdadeiro” fundo da alma
austríaca. Noutras palavras: o pai e seu mundo não estão alheios à
modernidade, e por astúcia Wolfsegg aparenta funcionar sob outros valores
que não os da modernidade capitalista, que tem como uma de suas principais
características o culto ao trabalho, tomado como uma ética inquestionável.
Murau mostra como seu pai e irmão, na verdade, fingem trabalhar e acreditam
que o fazem, desta posição o criticam sob o peso da palavra parasita, atribuída
várias vezes a Murau pelos familiares. Mas sua riqueza e excelente adaptação
às condições atuais não são frutos de trabalho, mas sim de uma outra
característica austríaca que os pais incorporam com maestria: a de estar ao
lado dos que detém o poder, de modo oportunista, retirando máximo proveito
de entender melhor do que outros as relações do todo social, em resumo, a
verdade sobre o desenvolvimento do capitalismo. A prosperidade não se colhe
pela semente do mérito, mas pela política da boa vizinhança, pela adesão
ideológica e política incondicionais, pela completa falta de caráter.
Zweifellos hat mein Vater von den Nazis profitiert.” (AUS, 193) “Kaum waren die
Nazis weg [...] hatten sich die Meinigen den Amerikanern an den Hals geworfen
[...] Sie hatten immer zu den gerade an der Macht Befindlichen gehalten und als
geborene Österreicher die Kunst des Opportunismus wie keine zweite beherrscht,
[...] Ihrer Charakterlosigkeit, muß ich sagen, hat Wolfsegg es zu verdanken, daß es
bis heute verschont worden ist, ich meine den Besitz [...] (AUS, 195)
186
“O não nunca foi coisa do pai.” Esta perspectiva, longe de negar as
premissas capitalistas, da modernidade das máquinas, está muito à vontade
neste campo, posto que seja sua verdade de fundo. Conhecê-las em terreno
periférico como a Áustria permite-nos perscrutar seu funcionamento sem
grandes obstáculos, pois tudo fica escancarado. Entendendo, alegoricamente,
Wolfsegg como a Áustria, leitura que não quer pra si exclusividade, mas é
pertinente, remete à luta austríaca para reconquistar, após a Segunda Guerra,
a autonomia e integridade dos seus territórios, que estavam sob a ameaça de
divisão como a ocorrida em solo alemão. Muitos esforços foram envidados até
a concessão da soberania em 1955, dez anos após a guerra.
A modernidade do pai se expressa ainda na negação de uma morte
quase idílica na floresta, como queria, e ao volante morre modernamente: “[...]
er [o pai] ist den heute tagtäglichen Tod gestorben, der ihm genau
entgegengesetzten, wie Millionen, ganz wie der heutige moderne Mensch, ganz
einfach in einem Augenblick des Unkonzentriertseins auf der Straße.” (AUS,
509). De novo nos confrontamos com a generalização para o todo da
sociedade. O homem moderno morre num átimo, num microssegundo de
desconcentração: o mundo moderno não admite a distensão, mas apenas a
tensão máxima. O pai faz parte deste contexto, por mais que não o queira, do
mesmo modo que Wolfsegg não representa um encrave anacrônico idílico em
meio à modernidade, muito pelo contrário.
O “potencial mecânico de agressão” da indústria automobilística
desempenha um papel significativo no contexto do desenvolvimento do
capitalismo. “O automóvel enquanto “auto”-expressão da personalidade
mecanizada (...), demonstraria simultaneamente força e capacidade de
imposição.”
238
Kurz refere-se, ainda, à aplicação militarista produzindo tanques
de guerra que viabilizam a cientificização da matança na primeira guerra, e ao
surgimento de carros populares como o Volkswagen, durante o nazismo, na
onda do crescimento econômico naquele país. Mesmo hoje em dia, as mortes
no trânsito atingem números estonteantes, mas são aceitas sem grandes
celeumas, mesmo com naturalidade, com o que se espanta um autor como
Ernst Jünger, citado por Kurz.
238
R. Kurz, “Sinal verde para o caos da crise”, em Os últimos combates, p. 355.
187
Talvez se possa entender essas mortes como sacrifícios rituais
necessários ao modo de vida e de pensamento das grandes cidades,
impensáveis sem os automóveis e seus mutilados. Não é de se estranhar que
as penas aplicadas aos “assassinos por engano” sejam leves ou mesmo
inexistentes, muito embora se saiba dos riscos inerentes à condução de
automóveis, com sua velocidade e força descomunais em comparação com os
frágeis e lentos corpos humanos, alvos potenciais a poucos metros de
distância, lembrando o que disse Benjamin, a respeito da utilização das
máquinas na Primeira Guerra, sendo a forma desta experiência visível em
qualquer esquina de uma grande metrópole. Nestas condições, um instante de
desconcentração costuma ser fatal, como ocorreu com o pai em Auslöschung
que, não por acaso, estava ao volante; sua morte o atesta como moderno,
assim como “moderna” era também sua visão de mundo, como se ainda
pelos discursos proferidos diante de sua cova aberta. Num sistema totalizador
como este, todos os eventos são momentos seus, e só por erro pode-se cogitar
como alheio a estas injunções.
Ocupando o lugar do pai: Murau como Senhor de Wolfsegg
O pai e o irmão não se resumem a alegorias da modernidade como
imobilismo, mas se submetem ainda à dinâmica geral que anima os
personagens deste romance. O movimento de construção das personagens
pela extinção caracteriza sobretudo Murau, e por várias vezes Murau se na
pele do pai/irmão, ou melhor, assume o discurso destes e, estupefato, vê-se
investido como o novo Senhor de Wolfsegg, posição da qual mais que
depressa se afasta. Mostrar este jogo é central para a construção do romance,
o que nos remete, invariavelmente, à instância narrativa em terceira pessoa,
vista. Murau mantém, assim, tanto a afirmação quanto a negação. O narrador
Murau incorpora o pai, por exemplo, em:
Die Kindervilla werde ich herrichten lassen, sagte ich plötzlich und auf Caecilia
hatte diese, wie ich glaubte, vollkommen nebensächliche Äußerung, wie ein
Schock gewirkt, sie blickte auf und sah mir direkt in die Augen. Tatsächlich hatte
ich mich mit dieser Äußerung zum Herren von Wolfsegg gemacht, denn ich
wörtlich gesagt, ich werde die Kindervilla herrichten lassen, niemals vorher hatte
ich gesagt (...) (AUS, 399-340).
188
Neste trecho destaca-se o papel da linguagem, que o investe em Senhor,
e pelo processo de formação do personagem pela incorporação do discurso
alheio. Ele se torna o senhor de Wolfsegg quando a palavra que profere o
empossa. A repetição deixa claro como ele mesmo fica atônito com sua frase,
que se auto-realiza, determinando que ele fosse o Senhor de Wolfsegg. O que
à primeira vista seria uma “consideração secundária” torna-se frase
fundamental, posto que o coloca, de fato, e não de direito, como o herdeiro
de tudo aquilo, o que seconfirmado pelo silêncio da irmã. se sabe que
nesta narrativa o secundário sempre alça vôo ao primeiro plano, o que se
confirma nesta passagem. Algumas ginas depois, no entanto, em itálico,
descola-se do pai e do irmão, também movimento necessário de sua dinâmica:
[...] aber ich bin kein Landwirt, ich bin nicht der, der sich auf den Traktor setzt wie
der Vater. Ich bin kein Traktormensch und ich habe keine Lust, mich mit
Lagerhausdirektoren um einen Sack Kunstdünger herumzustreiten, weil dieser
Kunstdüngersack nur halb angefüllt, aber von mir ganz bezahlt worden ist. Ich bin
nicht Johannes, sagte ich. Die Eltern haben übersehen, daß ich nicht Johannes
bin.(Aus, 535).
Mas este processo de aproximação e afastamento não ocorre sempre de
modo tão explícito como nos exemplos acima. Em outro momento no romance,
após uma digressão sobre as diferenças entre ele e o irmão, especialmente no
que tange ao trato com os animais e ao abate dos mesmos para consumo e
venda, ele reafirma que não é o irmão, pela terceira vez numa página: “Ich bin
nicht Johannes.” E ato contínuo: “Im Kuhstahl zählte ich mit einem einzigen
Blick zweiundneunzig Stück, die Idealzahl, so mein Vater. Wenigstens hier ist
die Wirtschaft noch intakt, dachte ich.” (AUS, 594) Após repisar enfaticamente
seu distanciamento, assume por completo, pela frase seguinte, a posição
negada, sem o atestar para o leitor: conta as reses num único olhar, como
alguém daquele meio saberia fazer, e nota que o número é o ideal, dizendo
junto com o pai em itálico (die Idealzahl): as vozes se superpõem. E na terceira
frase, a incorporação completa, posto que sem itálico, ou seja, sem marcas
diferenciais, quando as vozes dos três se tornam uma: pelo menos aqui a
economia (rural de Wolfsegg) está intacta, funcionando a contento. A frase soa
189
estranha na boca de Murau, ainda mais que não a segue nenhuma auto-
censura. Neste momento também assume o discurso de Senhor de Wolfsegg,
mas sem o notar, o que confere distinção ao episódio. Assim se realiza esta
dinâmica, que envolve todos os personagens, cada um à sua maneira,
processo pelo qual se forma a instância narrativa.
“Die Gedanken sind frei”: a caminho da totalização Negativa
Ich konnte mich von dem Gedanken nicht befreien [...].
(AUS, 453)
Este narrador não fala, mas é falado pelos discursos, ao passar pelos
outros personagens e os extinguir, segundo a lógica da mercadoria: um objeto,
mais do que um sujeito, realiza a totalização negativa que deixa em evidência o
fracasso do projeto desta modernidade. Uma das figuras mais expressivas
criadas por ele é a da “Máquina de Pensar”, mecanizando o pensamento que
não é nossa propriedade, mas ocorre em nós, num processo que conduz ao
vazio completo equivalente à morte. Maquinal aqui se refere, antes de tudo, à
forma deste pensamento; o vazio do narrador equipara-se ao do irmão e do
pai, porém noutro nível de articulação e de consciência, o que, de modo algum,
interrompe a dinâmica em curso, que não se submete ao sujeito e às suas
injunções.
Wir glauben, wir haben es schon so weit gebracht, daß wir eine Denkmaschine
sind, aber wir können uns auf das Denken dieser unserer Denkmaschine nicht
verlassen. Sie arbeitet ununterbrochen im Grunde gegen unserer Kopf (...) sie
produziert fortwährend Gedanken, von welchen wir nicht wissen, woher sie
gekommen sind und wozu sie gedacht werden und in welchem Zusammenhang sie
stehen, habe ich zu Gambetti gesagt. Wir sind tatsächlich von dieser
Denkmaschine, die ununterbrochen arbeitet, überfordert, unser Kopf ist davon
überfordet, aber er kann nicht mehr aus, er ist unweigerlich lebenslänglich an diese
unsere Denkmaschine angeschlossen. Bis wir Tod sind. (AUS, 157).
A forma da máquina domina todas as esferas, incluindo o pensamento, e
pensa por nós. O pensamento desliga-se então do homem e vive uma vida
própria; o pensamento nos pensa, antes de ser pensado por nós, e isto nos
190
constrói de fora. A máquina domina o pensamento; assim a forma social que se
cria no mundo dominado pelas máquinas é ela mesmo maquinal e se estende
para todas as esferas. A máquina não se reduz ao nível da produção, ou da
economia, mas toma conta do espírito, da consciência e da cultura, o que não
ocorre posteriormente àquele desenvolvimento, digamos, no âmbito da infra-
estrutura, mas concomitantemente e numa relação de co-determinação.
Importante frisar que não se trata de um momento da forma social em que a
determinação da superestrutura pela infra-estrutura se torna caduca, mas se
procura expressar a imbricação constitutiva do todo. O que não impede que a
cultura e política sirvam para “justificar”, “explicar” e “esconder” a forma social
que se depreende das relações econômicas existentes nesta organização
social.
A forma-mercadoria abarca todos os âmbitos, e ao se aceitar a cultura
como campo à parte, de fora dos laços da vida social, se assume seus
pressupostos, e a discussão torna-se necessariamente estéril, mesmo que o
teatro montado diga o oposto (a arte como último bastião do humanismo, ou
como crítica à sociedade etc). A arte participa antes como expressão da forma
social num contexto em que a economia determina as relações entre os
homens, numa formulação que deve a de Benjamin sobre o seu intuito com o
Projeto das Passagens.
239
A máquina das fábricas também se aloja no
pensamento e na cultura, determinando a razão que se queria autônoma, e
assim se auto-intitula, desde o projeto kantiano de maioridade da razão.
Assim se encaixa a argumentação do projeto idealista alemão, partindo
de Kant, consistir antes em expressão destas mudanças infra-estruturais (na
economia) e de sua forma do que na libertação do homem e do pensamento, a
caminho da propalada maioridade da humanidade; isto torna relativos
conceitos como os de liberdade, igualdade e justiça, que acabam sendo
remodelados, ou forjados, com as cores da razão e da lógica quando, em
verdade, surgem em decorrência daquelas mudanças e servem mesmo para
justificá-las, como mostra, por exemplo, Slavoj Zizek, apoiado no trabalho de
Sohn-Rethel:
239
W. Benjamin, Das Passagen-Werk, GS V-1, N1a,6, p. 573-574. “Marx stellt den
Kausalzusammenhang zwischen Wirtschaft und Kultur dar. Hier [Obra das Passagens] kommt
es auf den Ausdruckszusammenhang an. Nicht die wirtschaftliche Entstehung der Kultur
sondern der Ausdruck der Wirtschaft in ihrer Kultur ist darzustellen”.
191
[...] na estrutura da forma-mercadoria é possível encontrar o sujeito
transcendental: a forma mercadoria articula de antemão a anatomia, o esqueleto
do sujeito transcendental kantiano isto é, a rede de categorias transcendentais
que constitui o arcabouço a priori do conhecimento científico “objetivo”. [...] Antes
que o pensamento pudesse chegar à idéia de uma determinação puramente
quantitativa, um sine qua non da moderna ciência da natureza, a quantidade pura
estava em ação no dinheiro, essa mercadoria que possibilita a
comensurabilidade do valor de todas as outras mercadorias, a despeito de sua
determinação qualitativa particular.
240
O desenvolvimento da indústria cultural e do entretenimento contribuem,
nitidamente, para explicitar que superestrutura e infra-estrutura o podem ser
seccionados como dois momentos diferentes, mas como imbricados e
infiltrados um no outro. A cultura como indústria traz em seus termos a
eliminação de um campo autônomo para a arte, expondo o caráter mercantil da
arte, que não é meramente conjuntural no período pós-guerra, sendo antes
constitutivo da forma social capitalista. O ganho, se se pode falar em ganho,
deste passo no desenvolvimento do capitalismo, é da ordem da sem-cerimônia
com que esta totalização negativa será celebrada: o artista não mais se
distingue do trabalhador das bricas
241
. A mudança qualitativa está no
esvaziamento material dos produtos como valor-de-uso, que agora se mede
como valor de marca, subjetiva, funcionando como ferramenta para se moldar
identidades, sujeitos “independentes” e “diferenciados” (a diferenciação deixa o
campo estreito das corporações e ganha as ruas), que se torna um produto
como outro qualquer, o que se acostumou chamar de estetização da vida
cotidiana. Caem os véus, pois este processo ocorre em praça pública, não
mais é visto como tabu, mas isto não conduz à postura crítica, mas ao
aprofundamento daquela condição de mercadoria, pressuposto pela forma
social. O afloramento à superfície facilita a visibilidade, mas não garante outra
240
S. Zizek, “Como Marx inventou o sintoma”, em S. Zizek (org.), Um mapa da ideologia, p.
302.
241
No artigo “Nota sobre vanguarda e conformismo”, Roberto Schwarz aponta para estes
desenvolvimentos no Brasil: “no contexto do mercado anônimo, produzido pelos veículos de
massa, a situação é outra. O aspecto-mercadoria passa para o primeiro plano, e tende a
governar o momento da produção. [...] instalado o comércio de significados em grande escala,
a própria linguagem cotidiana o material do artista se reconstela de forma tal, que é como
se espontaneamente aspirasse à publicidade, à forma da mercadoria [...]”; em O pai de família
e outros estudos, p. 45.
192
coisa senão o gozo desta virtualidade, gozo pós-moderno, dada a dificuldade
de fugir das malhas desta totalização.
E que fique claro o resultado deste processo: não foram a razão e a
ilustração que trouxeram as bases para o desenvolvimento econômico e
tecnológico, mas o contrário; o resultado são as Denkmaschinen humanas, que
serão dominadas pelo pensamento que deveria libertar o homem, mas na
verdade o conforma e aprisiona: o progresso como mitologia da modernidade,
cuja crítica será um dos temas por excelência de Benjamin. Assim fica evidente
a utopia falsa de um verso como Die Gedanken sind frei”, que ganha traços
fantasmagóricos, e não mais alude à independência e autonomia do homem
que o fez ser proibido durante o nazismo, mas à sua submissão incondicional e
abstrata: Murau tenta diversas vezes fugir da perseguição implacável destes
pensamentos livres. Este pensamento se pensa a si mesmo, surgindo
fantasmagoricamente como auto-fundante, o que de modo algum se sustenta.
Neste engano fundamental centra-se a crítica bernhardiana aqui em relevo,
pois a Denkmaschine aventada não sai do lugar e fracassa.
Daí ser conseqüente Murau não entender os filósofos que, ao fim e ao
cabo, considera como os seus filósofos. Resultado: Murau não entende a si
mesmo, e seu discurso quebradiço, além de mirar seus objetivos de extinção e
ambigüidade constitutivas, também expressa esta situação paradoxal: Murau é
filho deste pensamento, que o define, mas não o compreende. Um pensamento
que se quer autônomo, mas logra apenas se distanciar do mundo que pretende
fundar, pois esta autonomia era falsa. Desde os seus pressupostos estava
submetido a uma ordem de valores que expressam o seu escuro e vazio,
indicando o seu segredo, que não é outro senão o segredo das mercadorias.
Noutras palavras, estes pensamentos não passam de mercadorias, que criam
este homem de fora, preenchendo-o com a vida etérea da abstração e da
morte, o que ganha expressão na figura de Wolfsegg como um mundo de
bonecos (Puppenwelt) (AUS, 123); as mercadorias assumem o papel de vivos
e, daí, fecundam os homens, coisificados. O pensamento, assim considerado,
não liberta, mas submete, embora prometa e afiance cumprir o contrário do que
efetivamente realiza, esta uma outra parte deste segredo. De modo que a
questão não seria a de realinhar o projeto da ilustração, supostamente
deturpado e abandonado pelo meio do caminho, distorcido e usado para os fins
193
mais espúrios, mas antes reconhecer no cenário atual os resultados da
realização efetiva deste projeto até seus limites, e não a sua desvirtuação.
242
O
problema faz parte do projeto da ilustração, e daí que sua articulação teórico-
conceitual deva ser posta sob suspeita. Em resumo: não se trata de retomar
este projeto, como se seu fracasso se devesse a uma realização equivocada,
mera contingência; sua falência está prevista estruturalmente e ganha corpo
nas crises atuais, seja do desemprego mundial, do aumento da xenofobia na
Europa e das guerras no Oriente Médio. Ao questionar o estatuto dos conceitos
em sua obra
243
, Bernhard se filia a uma tradição que critica, sobretudo, a
própria tradição, assinalando em toda cultura um documento de barbárie.
A imagem mental da metáfora do homem-máquina é invertida por Murau:
o esperado seria que a quina se pusesse a pensar como Homem, e não o
contrário: aqui os homens são pensados, maquinalmente: ou seja, pela forma
da máquina, leia-se, da mercadoria. No filme Metrópolis, de Fritz Lang, a
máquina toma a forma de Maria, substituindo-a como ser humano. Em 2001,
de Stanley Kubrick, o computador pensa e age como se fosse humano. Em
Bernhard, o homem se reduz à forma do pensamento da máquina, sendo
pensado pelos discursos que o atravessam, estes oriundos das condições
sócio-econômicas em que floresceram. Se a mercadoria, materialmente
considerada, ao sair da fábrica é ao mesmo tempo sensível e supra-sensível
(sinnlich übersinnlich, Marx) tanto valor-de-uso (matéria) quanto valor-de-troca
(trabalho abstrato, equivalente-dinheiro), este “pensamento maquinal” abstrai
mesmo a materialidade, sendo abstração em segundo grau, como a
especulação financeira que caracteriza o cenário globalizado de hoje, forma em
estado puro.
Posta a questão nestes termos, não assusta que tanto Bernhard como
Murau não realizem um estudo sistemático de seus filósofos, antes os usem
como objetos, aplicados pelo seu valor de face, definido no mercado do
marketing das idéias. A enumeração dos nomes de diversos filósofos em
seqüência pode ser caracterizada como name-dropping, técnica essa que, a
242
Um caminho seguido de Benjamin e Adorno, chegando a Robert Kurz.
243
Um dos caminhos desta crítica se faz pela expressão “unbegriffene Begrifflichkeit”, algo
como um mundo conceitual sem conceitos, como surge em Frost. Schmidt-Dengler argumenta
que, na obra de Bernhard, os conceitos ganham espaço na medida em que se anulam ou se
mostram falíveis e históricos. Sobre isso, ver capítulo sobre a linguagem em Auslöschung.
194
despeito de não realizar uma adequada discussão dos autores citados em
cascata
244
, não redunda numa provável arbitrariedade do narrador, mas numa
maneira de deslocar este discurso, pela negativa, para o centro da obra: sua
perspectiva crítica não admite a argumentação tradicional, fundamentada em
premissas bem estabelecidas, pois, fazendo isso, aceitaria a forma do discurso
lógico-racional que quer extinguir, mais do que qualquer termo específico. Para
a crítica aqui esboçada e projetada, a argumentação racional seria redundante,
pois aceitaria de antemão os pressupostos desta razão, e a crítica terminaria
inerte.
Alle diese Namen und ihre Werke sind überhaupt nicht zu begreifen, hatte ich zu
Gambetti gesagt, Pascal nicht, Descartes nicht, Kant nicht, Schopenhauer nicht,
Schleiermacher nicht, um nur die aufzuzählen, die mich im Augenblick
beschäftigen. [...] Mit der größten Rücksichtslosigkeit gegen sie, wie gegen mich
selbst, hatte ich zu Gambetti gesagt. [...] Aber meine bisherigen
Auseinandersetzung mit den Philosophen und ihren Produkten sind bis jetzt
ziemlich erfolglos gewesen. Bald wird das Leben vorbei, meine Existenz
ausgelöscht sein, hatte ich zu Gambetti gesagt, und ich habe nichts erreicht, es ist
mir alles ziemlich fest verschlossen geblieben. Wie die Auseinandersetzung mit mir
selbst bis heute ziemlich erfloglos geblieben ist. (AUS, 154-155).
Estes “nomes” têm um posicionamento no mercado “das idéias”, onde
transitam como produtos que são. Mozart e seu rosto juvenil e maroto estão em
toda parte em 2006, Benjamin apresenta um semblante circunspeto, Kafka tem
como marca um olhar melancólico, o gênio descabelado Einstein expõe sua
língua para as câmeras: assim se posicionam estas “mercadorias do espírito”
na “mente dos consumidores”, sendo fiel ao jargão corporativo, que interpretam
a obra de antemão para a opinião pública. Neste diapasão Murau cogita que
toda a obra de Einstein tenha sido escrita por aquela língua debochada, o que,
provavelmente, completa Murau, ocorreu apenas nesta única ocasião, mas foi
o suficiente para que se tornasse sua imagem mais famosa e reproduzida:
interessa sua veiculação em massa.
244
Como dirá Gregor Hens: “Gerade Bernhard, der trotz gegenteiliger Behauptung allerseits
und trotz seines unausgesetzten name-dropping von Pascal bis Heidegger eigentlich ein
unphilosophischer Autor ist, ein Autor, dem die großten Ideen erst Spaß machen, wenn er sie
soweit aufgebröselt hat, daß sie in seiner unpräzisen, lächerlich innefizienten Prosa beinahe
nicht mehr zu erkennen sind, [...]”; G. Hens, Thomas Bernhards Trilogie der Künste, p. 7.
195
Morte social pela forma da máquina
196
greves e contexto político quanto pelo trânsito, mas também encampa a
fuligem que sai das fábricas e os produtos agrícolas cotados em bolsa de
valores, alvo de especulações e um dos pontos mais controversos das
negociações sobre livre comércio. Assim se constitui o mundo administrado
numa época em que a crise mundial econômica se instalou e a guinada a
favor das políticas “liberais” de Reagan e Tatcher representa o início do
processo que culmina no quadro globalizado de hoje. Wolfsegg representa o
mundo de Murau, bem à vontade no capitalismo e parte dele, como visto, num
processo que encampa todos os personagens. As diferenças ocorrem apenas
no modo de inserção no quadro social maior, algo como a “liberdade” dos
funcionários das fábricas, que poderiam vender sua força de trabalho a quem
desejassem. Relações de trabalho regidas por contratos o alheias ao
contexto de Wolfsegg, com suas serviçais pinçadas a dedo dentre a camada
mais pobre da sociedade austríaca.
Totalização negativa
Aos poucos o quadro vai ganhando contornos totalizadores, com todos os
personagens, cada qual a seu modo, inseridos e incorporados a esta dinâmica.
Com Adorno:
É quando o processo, que se inicia com a transformação da força de trabalho em
mercadoria, permeia todos os homens transformando em objetos e tornando a
priori comensuráveis cada um de seus impulsos, como uma variante da relação de
troca que se torna possível à vida reproduzir-se segundo as relações de
produção imperantes. Sua organização integral exige uma união de mortos. A
vontade de viver encontra-se na dependência da negação da vontade de viver: a
autoconservação anula a vida na subjetividade.
245
Neste diapasão articula-se o conceito de morte em Bernhard, como aqui
defendo, formalmente configurado no quadro das relações sociais no
capitalismo. Um exemplo convincente encontra-se no texto curto Eine
Maschine, da coletânea Ereignisse, livro publicado em 1969 mas escrito
provavelmente entre 1957 e 1959
246
. Uma máquina nova e colossal, tida como
245
T. W. Adorno, Minima Moralia, p.201. Original em alemão de 1951.
246
Cf. T. Bernhard. Obras, Werke 14. Erzählungen. Kurzprosa, p. 556.
197
uma maravilha da técnica moderna, chega numa fábrica, onde é recebida com
todas as honras e reverências cabíveis, numa cerimônia à qual não faltou
sequer uma banda. Os engenheiros e trabalhadores receberam-na de chapéu
nas mãos. O circo armado em torno dessa recepção não tem nada do tom frio
e objetivo que, em geral, se empresta às novas máquinas nas fábricas: o
ambiente caloroso e festivo mais se assemelha a uma relação entre seres
humanos, o que não ocorre por acaso. À máquina bastava uma lubrificação a
ser realizada a cada 14 dias, trabalho este reservado a uma das funcionárias
que, num escorregão infeliz, acaba decepada pela quina. As outras
funcionárias, atônitas e horrorizadas, o esboçam qualquer reação, nem
sequer gritam, e por fim manuseiam a cabeça como faziam de costume com os
pedaços de borracha normalmente cortados pela engenhoca. A última a
embala como produto final, com o que o texto chega a seu termo.
Essa máquina, alegoria de um Moloch moderno, exige sacrifício. A
conduta das outras funcionárias chama a atenção: petrificadas, nada fazem
senão realizar mecanicamente (com duplo sentido) as seqüências de seu
trabalho, tratando a cabeça da colega como um produto da linha de montagem.
Esta é uma das leituras possíveis: a “morte” destas funcionárias dentro deste
sistema é um seu pressuposto: todas estavam alijadas da condição de sujeito,
restando como única reação embalar o “produto” que, passando por cada uma
delas, realiza na prática, de modo macabro, a relação social entre elas. Assim
Bernhard figura a passagem à mercadoria: a funcionária, viva, não se
relacionava com as outras, mas com a máquina; com sua morte, as mulheres a
tocam, posto que “ascendeu” ao nível de produto. Com Adorno:
Quanto mais imediata é a sua decisão, tanto mais profundamente sedimentada
está, na verdade, a mediação: nos reflexos de pronta resposta, desprovidos de
resistência, o sujeito extinguiu-se por completo.
247
Deste quilate é a extinção no romance homônimo. A morte equivale a
“pifar”, ainda com Adorno, com o que a linguagem das máquinas toma conta do
corpo humano; não se trata de simples metáfora, mas de forma. O homem
moderno não morre, mas “pifa”, o que tem conseqüências das mais graves. A
247
T. W. Adorno, op. cit., p. 202-203.
198
reação quase reflexa (imediata) das outras funcionárias explicita o quanto esta
mediação está sedimentada, e como o processo foi levado a cabo quase por
completo. Assim estão abertas as portas para a penetração da morte
administrada em massa:
uma humanidade à qual a morte tornou-se tão indiferente quanto seus
membros, uma humanidade que morreu para si mesma, pode infligi-la
administrativamente a incontáveis indivíduos.
248
A alusão ao nazismo é direta: tanto como tema quanto, mais importante,
na condição de forma social que propiciou este estado de coisas, constituindo-
se como a trama e a urdidura do romance Auslöschung. Resultado parcial
desta fatura: a forma social subjacente a esta realidade e presente nessa forma
literária está diretamente envolvida com as condições de possibilidade do
surgimento daquela máquina de assassinar com máxima eficiência e mínima
comiseração. A guerra “limpa” pela tecnologia dos dias de hoje realiza esse
objetivo inteiramente, posto que o extermínio torna-se totalmente abstrato. Os
potentes helicópteros da família Apache, por exemplo, voam de preferência à
noite, por vantagens óbvias: eles usam câmeras de infravermelho para se
orientar, abrindo mão da visão direta, e desta feita voam e atiram por
monitores. Neste caso, apertar um botão e causar a morte de milhares de
pessoas em Bagdá ou Beirute assemelha-se mais a um videogame do que a
uma destruição real. A distância na faixa das centenas de quilômetros entre o
apertar de um botão e a explosão de uma bomba leva à abstração da matança,
caracterizada como “guerra limpa” pelos detentores da tecnologia, que não
sujam as mãos de sangue nem a consciência de culpa. Este quadro move-se
dentro do diagnóstico de Adorno, do alheamento e indiferença das pessoas em
relação às outras. Deste modo, como base para o surgimento da experiência
real do Holocausto não se pode recorrer à insanidade de alguns ou mesmo de
um povo, mas à forma social ainda vigente, e pior, levada adiante em sua
dinâmica alienante: um exemplo disso é a quase impossibilidade, hoje, de
s7( )-2.16436(d)-4.33117(a)-4.333093117(l)1.87(o)-4.3311( )-2.16436(d)-4W77474(m)-7.4s m ue as cou-s dmbstinmi modiinofrred it
199
Não se fala de nazismo em Auslöschung apenas no âmbito temático, história
pessoal do pai e da Áustria, mas principalmente em termos formais, de onde
tira sua força e pungência; veremos que o nazismo seria de nascença nos pais,
segundo Murau, com o que afiança ser uma questão social mais
profundamente desenvolvida, no mínimo no século XIX, quando nasceram os
pais, e não uma questão restrita à história do século XX.
Esta morte ocorre quando todos os seus membros já passaram pelo
processo de socialização capitalista, por este esvaziamento e isolamento seja
das condições de trabalho, seja pelo processo de mediação pelo dinheiro, que
assume a forma de sujeito, como a máquina deste texto curto de Bernhard, que
lembra a metáfora da máquina comedora de homens na Metrópolis de Fritz
Lang. Com uma grande diferença: lá, a máquina demoníaca ganha traços
humanos; no texto de Bernhard, a máquina nunca se mostrou outra coisa: são
os homens que se aproximam dela, é a forma social expressa pelas
fantasmagorias da mercadoria que penetra o homem, até sua aniquilação
completa, invertida no discurso capitalista para liberdade completa. Nesta
perspectiva deve-se compreender o conceito de morte em Bernhard. Com
Höller, falando a respeito da poética de Bernhard: “Der Tod, der alte topoihafte
gesellschaftliche Gleichmacher, übernimmt provokatorisch den Platz in der
Gesellschaft, der dem Geld wie selbstverständlich überlassen ist.”
249
Assim espero esteja claro que esta concepção de morte não implica em
fuga da realidade, mas em mergulho nela. A morte não mais iguala os
desiguais, como no nivelamento de todos perante Deus do feudalismo; as
pessoas constroem sua identidade sob o signo da equivalência geral, pelo
menos no papel, numa sociedade burguesa. Esta equivalência não significa
contudo igualdade, mas indica a permutabilidade e indiferença completa. Com
o desenvolvimento do processo, ocorre a progressiva desvalorização destas
pessoas, para usar um termo caro à economia, de tal sorte que mesmo a morte
perde em efeito, na medida em que acaba com o que já estava aniquilado.
A morte dos indivíduos tornados “iguais” na Revolução Francesa
(quando a forma do indivíduo burguês se anunciava, da estirpe da
equivalência do dinheiro, da permutabilidade, etc, mas isto ainda não era
249
H. Höller, Kritik einer literatischen Form, p. 128.
200
visível) pela guilhotina que servia para reis e soldados indistintamente se
“citada” no texto Eine Maschine, em chave negativa, pois aqui a forma
subjacente está explícita. Vale lembrar o início do texto: “Eine Maschine, die
wie eine Guillotine ist, schneidet [...]”
250
. Como é típico na obra de Bernhard, a
citação procura subverter e reler o citado, em perspectiva crítica: a mitologia
por trás daquele sonho de revolução e o seu fracasso ficam ambos explícitos
por esta alusão, e remetem à verdade formal dessa igualdade: iguais na
extinção, na irracionalidade da máquina que assume status de sujeito da ação
e do papel relegado ao homem, seu braço mecânico. A totalização negativa se
completou, e o ponto de vista da morte configura-se como uma necessidade
para conferir autenticidade à narrativa, em termos formais.
251
A morte do aniquilado perde em potência, tornando-se mesmo ridícula
e risível. “[...] es ist alles lächerlich, wenn man an den Tod denkt.”
252
Esta frase,
cunhada pelo autor por ocasião do recebimento de um prêmio literário em
1968, será tomada por muitos críticos como uma de suas frases fundamentais.
Adorno afiança que um certo tipo de produção da indústria cultural faz da morte
cômica, a partir do momento em que a morte, “sendo percebida apenas como
excreção de uma criatura viva do grupo social, este finalmente a domesticou: o
fato de morrer não é senão a confirmação da absoluta irrelevância de um
organismo natural diante do absoluto social.”
253
Levando em conta esses
desenvolvimentos formais no capitalismo, pode-se ler aquela frase de Bernhard
não como uma alternativa e uma mudança de ênfase dentro da obra, passando
da morte para o riso, mas perceber a comicidade penetrando o conceito de
morte. Como se lê na seqüência do texto para agradecimento pelo prêmio:
Man geht durch das Leben, beeindruckt, unbeeindruckt, durch die Szene, alles ist
austauschbar, im Requisitenstaat besser oder schlechter geschult: ein Irrtum! [...]
Wir [austríacos] haben nichts zu berichten, als daß wir erbärmlich sind, durch
250
T. Bernhard, “Eine Maschine”, em Ereignisse, p. 211.
251
A “citação” de Goethe, como exemplo maior, e da tradição em geral, opera sempre em
chave negativa na obra de Bernhard, como subversão, como releitura carnavalizante. A
citação, implícita ou explícita, é central para o projeto estético de Bernhard, e numa tacada a
valoriza, pela menção, e a desqualifica, pela inversão ou subversão. A desconfiança da
tradição é a base para a sua recuperação pela citação, que se arvora em história revista.
252
T. Bernhard, “Rede”, em A. Botond (org), Über Thomas Bernhard, p. 7.
253
T. W. Adorno, Minima Moralia, p. 203.
201
Einbildungskraft einer philosophisch-ökonomisch-mechanischen Monotonie
verfallen.
254
Tudo é intercambiável sob esta forma social e o resultado final mesmo
a morte como cômica e risível. Essa associação entre morte e riso de fato tem
destaque na obra de Bernhard. Em sua primeira peça, Ein Fest für Boris,
255
a
morte deste personagem ao final da peça provoca uma gargalhada
aterrorizante da personagem A Boa (Die Gute). Esta personagem faz dos
aleijados miseráveis suas marionetes, meros produtos a seu dispor, com a
função de humanizá-la, para que possa assumir o papel de misericordiosa.
Mas este uso da miséria não passa incólume pelos próprios aleijados,
personagens dos mais complexos. Suas entradas são marcadas como O
aleijado mais velho, Aleijado jovem, Quatro aleijados, por exemplo (Der Älteste
Krüppel, Junger Krüppel, Vier Krüppel). Eles falam em jogral, com frases
marcadas pela ironia e, assim, pelo duplo sentido, num diálogo velado com o
público. Esta ironia beira o grotesco, especialmente no que tange a
ridicularização da própria miséria. Seus nomes, ditos pelos próprios, aludem à
permutabilidade completa entre eles: Ernstludwig, Ernstaugust, Karlernst,
Ernstludwigaugust, Karlludwigviktor, Karlviktor, Karlaugusternst, Karlviktorernst,
Ernstaugustkarl: são combinações de Karl, Ernst, Viktor e August, formando
nomes próprios que, de próprios, não tem nada. Estes personagens não são
realisticamente concebidos, antes tem traços que os ligam à tradição do
Altwiener Volkstheater, com seus personagens tipificados, influência da
Commedia Dell’arte italiana. Com sua fala e canto, recheados de ironia e
deboche, eles expõem não apenas a própria condição, mas também a da
personagem A Boa, evitando ao máximo fazer de si mesmos personagens
dignos de comiseração, ou, noutras palavras usadas em Auslöschung, fazem
de tudo para impedir que venha à tona a malfadada “sentimentalidade
burguesa”. Essa sentimentalidade empática sufoca qualquer laivo crítico.
Murau também condena com veemência a sentimentalidade burguesa e
impede que esta aflore em relação a ele, o que caracteriza a relação que
254
T. Bernhard, “Rede”, em A. Botond (org), Über Thomas Bernhard, p. 7.
255
T. Bernhard, “Ein Fest für Boris”, em Stücke 1, 1988.
202
mantém com o leitor, que o seu desnudamento em público pela exposição
dos bastidores desta Auslöschung.
Voltando à peça: mesmo a alcunha de A Boa, atribuída a ela com ironia
por um dos aleijados, será assumida por ela como positiva, pois não percebe a
ironia. Esta personagem “comprara” Boris para marido, salvando-o do asilo dos
aleijados, e faz humilhá-lo, no fio da navalha entre o sarcasmo e o sadismo.
À empregada Joana, submetida a todo tipo de capricho, humilhação e anulação
pela Boa, resta apenas o apego por Boris, retribuído pelo mesmo. A Boa
permite sua aproximação para potencializar sua dor, apreciada em silêncio. A
mutilação física, também da Boa, aponta pra mutilação espiritual e, mais
profundamente, para a forma desta relação de dependência, sarcasmo,
desprezo, aniquilação mútua e mercadorização completa de todos os
personagens, achincalhados por ela e pela sociedade. Tome-se como prova
cabal disto a cena em que os aleijados contam que suas camas, pequenas
devido à sua falta de pernas, serem feitas sob medida, de modo que cada um
não caiba na sua cama por poucos centímetros. Os aleijados não conseguem
esticar seus corpos nem nas camas, permanecendo sempre curvados e
deformados (mais do que já o são), sempre por poucos centímetros, num
cálculo perverso. A otimização econômica capitalista chega a todos os
recônditos e não conhece limites para sua lógica implacável. Não lógica
para que assim seja, ficando a resposta no limbo entre o desinteresse
burocrático da Instituição, levando em conta sobretudo a racionalização do
espaço e dos gastos com material, e o desprezo puro e simples, próprio desta
forma social, que descamba em maus-tratos para os que não podem produzir
nem detém capital, que o considerados culpados no tribunal erigido pelo
capitalismo, pecadores neste capitalismo como religião
256
.
A festa para Boris realiza-se como um ritual em que se encena esta
morte, figurada na morte de Boris, que após bater num ritmo frenético em seu
tambor, cai morto com a cara na mesa, sem que ninguém por isso. Todo
este cenário culmina com a banalização desta morte, e com a sua comicidade,
256
Aqui se encontram ecos tanto da análise de Max Weber em A ética protestante e o espírito
do capitalismo, onde se diz que todas as pessoas devem lutar ao máximo para conseguir
realizar a sua vocação, em alemão, Beruf, chamamento religioso traduzido por trabalho por
Lutero; assim, os que não o fazem são culpados do próprio infortúnio e, ainda mais, pecadores.
Outro texto interessante para este debate é Kapitalismus als Religion, de Walter Benjamin, GS
VI, p. 100-101.
203
representados pela gargalhada aterrorizante de A Boa, quando sozinha em
cena, fechando esta “dança da morte” capitalista. Esta morte aparece em
Auslöschung especialmente na figura das irmãs, mas também do pai e do
irmão. Não como não ver na caracterização da mãe por Spadolini como “A
bondade em pessoa” (Die Gute in Person) traços desta personagem da peça
de 1970, ambas controlando com mão de ferro suas marionetes.
“O mal personificado” ou “A bondade em pessoa”? A mãe segundo
Murau
Na crítica sobre Auslöschung, não são poucas as tentativas de enquadrar
na conta da encarnação do mal, seguindo uma expressão do próprio narrador
(AUS, 569), mas que resulta numa leitura apressada e errada desta relação
difícil. As invectivas de Murau contra a mãe, em particular, e contra o feminino,
em geral, não podem ser vistas em termos absolutos. Murau se lembra do
“elemento feminino” na cozinha como um dos lugares amados da infância,
antes da Kindervilla. A escritora Maria destaca-se como uma das figuras
decisivas na composição do texto, constituindo-se como uma instância ética,
afetiva e de senso estético do mais alto gabarito, única com poder de veto
sobre os escritos do narrador (AUS, 542).
A mãe é uma personagem complexa e fundamental no romance, não se
restringindo à mera representação categórica do mal. O antagonismo de Murau
com a mãe chega a ser uma disputa pela amizade/amor de Spadolini, que
nutre excelente relação com ambos. Murau sente-se muito mais próximo da
mãe do que do pai, e em várias passagens age e pensa como ela, assumindo
suas posições. Ao passar por ela, pretende extingui-la e a si mesmo.
Devo defender esta tese com veemência, dado que uma interpretação
que recebeu muito destaque na crítica os personagens femininos, na obra
de Bernhard em geral, como a expressão da misoginia do autor nivelando
completamente o autor às suas personagens, o que beira o absurdo – o que, a
meu ver, erra tanto num caso quanto no outro. O livro de Endres ataca
Bernhard com um verdadeiro panfleto feminista, perdendo de vista que os
narradores de Bernhard estão longe de serem porta-vozes de suas
204
concepções, por um lado, e que a dinâmica formal das obras mesmas não
permite enquadrá-las em categorias maniqueístas e petrificadas
257
.
No caso de Auslöschung esta perspectiva não se mantém em pé.
Criticando a leitura de Endres, Tabah
258
defende o momento diferencial
constitutivo do feminino em Bernhard, que serviria para conferir contornos ao
Eu masculino, lutando por conseguir e garantir uma identidade e, assim, salvar-
se. Tabah argumenta que esta salvação, ao fim e ao cabo, não se realiza, o
que põe por terra os propósitos do narrador, que termina fracassado. Deste
modo Bernhard desmascararia a leitura do feminino sob a ótica de Murau e, de
quebra, o sonho da racionalidade e autonomia masculinas como ficções
patriarcais. Até aqui vai seu argumento.
Com efeito, este aspecto constitutivo ganha em expressividade quanto
maior for a virulência dos ataques; estes chegam, em Auslöschung, ao nível da
caracterização da mãe como a personificação do mal, como mencionado. Uma
leitura mais atenta, porém, mostra que esta abordagem não encontra
sustentação neste romance, onde a figura da mulher e a da mãe não se
resumem ao negativo, como defendido acima.
Tabah faz um esforço tremendo para apoiar sua tese na cena do sonho
de Murau. (AUS, 215-27) Neste sonho, Maria troca de sapatos com Eisenberg
e calça suas botas, o que Tabah apressadamente caracteriza como um
processo de masculinização de Maria, que a faria imune aos ataques ao
feminino. Mas este caminho mostra-se forçado e errado; se se aceita esta
hipótese, então Eisenberg, ao vestir os sapatos de Maria, assumiria também
traços femininos. Sendo este o único personagem que pode ombrear em
caráter, inteligência e amizade com Maria, não se vai longe com este
argumento. Tabah simplesmente ignora que Eisenberg calça os sapatos de
Maria, o que é bom para seu propósito, mas ruim para se entender o romance.
Com Marquadt, criticando Tabah: „Der ganzen Wahrheit kommt man erst auf
die Spur in der Zusammenschau der einzelnen unversöhnlichen Perspectiven
verschiedener Personen, oder aber der gleiche Person zu jeweils
257
R. Endres, Am Ende angekommen. Dargestellt am wahnhaften Dunkel der nnerportraits
des Thomas Bernhard, 1980.
258
M. Tabah, “Geschlechterdifferenz im Werke Thomas Bernhards”, em M. Huber e W.
Schmidt-Dengler (orgs), Wissenschaft als Finsternis?, p. 133-144.
205
verschiedenen Zeitpunkten.“
259
Aqui o terreno por excelência de Auslöschung:
tanto as vozes dissonantes de Spadolini, Gambetti e Maria, que não são meros
porta-vozes de Murau, quanto as mudanças radicais do próprio narrador
perfazem um quadro bem mais complexo do que aquele pintado por Tabah,
cujos argumentos são em parte pertinentes, ressalva essa que não cabe ao
texto de Endres, que cai numa das armadilhas que o texto coloca, ao perder de
vista o movimento antitético e complexo do todo. Gostaria de reforçar que esta
linha argumentativa vale sobretudo para o romance Auslöschung, onde surgem
personagens com vozes relativamente próprias, em número não equiparável
em nenhuma outra de suas obras. Em Alte Meister a perspectiva é bem outra,
tornando-se difícil identificar onde termina o discurso de Reger – que nem
mesmo narrador ée começa o dos outros personagens. Em Holzfällen, sobra
pouco ou nenhum espaço pra fugir do narrador, que deturpa e ridiculariza a
tudo e a todos, de modo que o procedimento de usar os outros como objetos
da sua constituição impede qualquer distância entre este narrador e seus
personagens.
Marquardt, por seu turno, resume toda a estrutura da obra à sua
constituição antitética. Quero crer que haja, mais do que isso, uma outra
dinâmica, que perfaz a passagem no outro seguida da aniquilação desta
posição, realizando a extinção na forma de uma auto-extinção do narrador. Por
mais que negue e acuse, Murau é filho de Wolfsegg e apresenta sobretudo os
traços da mãe. Ele realiza várias auto-extinções em seu processo de formação
como personagem de linguagem, sendo esta a sua tônica, o que aprendeu,
acima de tudo, com a mãe, que a todos conforma e controla, o que não exclui o
próprio narrador. A e será caracterizada ao longo da narrativa como
mentirosa, burra, cobiçosa, ardilosa, adúltera, nazista, enfim, como o mal
personificado, criando uma figura quase alegórica representando o mal.
Mas o próprio narrador admite consistir um erro atribuir toda a culpa a ela,
alojando tudo o que apresenta a chancela do mal sobre as costas da mãe, mas
assim mesmo o faz e o mantém, pois este procedimento falso facilita as
coisas” pra ele:
259
E. Marquardt, “Die halbe Wahrheit. Bernhards antithetische Schreibweise am Beispiel des
Romans Auslöschung”, em, op. cit., p. 87.
206
Aber es wäre völlig unsinnig, ihr allein die Schuld an diesem Bösen in die Schuhe
zu schieben, wie wir das tun, weil wir keine andere Wahl haben, weil uns ein
anderes Denken viel zu schwierig ist, zu kompliziert, einfach unmöglich, wir
vereinfachen die Sache und sagen, sie ist ein böser Mensch, unsere Mutter, und
haben daraus einen lebenslänglichen Gedanke gemacht. (AUS, 298)
A dificuldade, aliás impossibilidade, de se conhecer o todo e suas
relações íntimas, o leva a falsear a realidade, por assim dizer, sem o menor
escrúpulo. Este é o procedimento que fará da mãe uma alegoria e fonte do mal
no romance, que apresenta isto como um erro. Não é demais lembrar que
seu corpo, às vezes parte dele, serve como alegoria da história austríaca
recente, como no torcicolo permanente que ganha quando vai retirar a bandeira
suástica da janela de Wolfsegg, poucas horas antes da chegada dos
americanos: as referências ao seu pescoço enorme e deformado se acumulam
ao longo da narrativa, seja nas fotos que o narrador tem em mãos na primeira
parte do romance, seja no episódio da bandeira, seja na decapitação da mãe e,
ainda, no quadro de Nossa Senhora, pintado na Meierei, que tem um pescoço
impossível, irreal. Para o romance, não é mera coincidência esta dupla função
da mãe, que merece menção.
O narrador simplesmente abandona o projeto de tratar da fonte real deste
mal, com o que alude ao que está escondido no romance como chave para
entrar em sua arquitetura complexa, sendo em verdade aquilo que mais
interessa: estas conexões e relações que, se não são feitas às claras na trama
do texto, o são às escuras, de modo que o romance deve ser lido pelas suas
ausências, pelos seus desvios e faltas, sempre de modo indireto: “Das Zögern
ist meine Art, das mich vorher auf einen günstigen Betrachtungsposten
zurückziehen läßt. Ganz einfach das Indirekte ist mir angemessen.” (AUS, 333).
Estas frases, ditas pelo narrador em primeira pessoa, cabem também à
instância em terceira. Isto inclui as múltiplas divagações do narrador, a falta de
um fio narrativo claro, a metalinguagem, o uso das alegorias (sempre indiretas),
das alusões, resultando numa escrita que almeja iluminar os bastidores, os
porões de sua própria criação. Esta passagem sobre a mãe acaba se
constituindo como um dos pontos-chave do romance.
A menção estrutural ao todo das relações sociais, decisiva para a forma
do romance, porém inacessível, insinua-se numa locução aparentemente
207
secundária que, por esta argumentação, atinge o centro nevrálgico da
estruturação do romance: “e tudo o que a ele estiver relacionado”. (und alles
Dazugehörende) (AUS, 650). A narrativa não se restringe à Wolfsegg, nem à
doação, mas também a tudo que esteja relacionado a Wolfsegg, ou seja, todo o
contexto e a história que dão sentido a Wolfsegg, como criação literária.
260
Na
remissão a este todo se encontra a origem deste mal, que não é a mãe, mas
algo muito maior, que pode, no máximo, ser alegorizado na figura da mãe, o
que resulta noutra coisa bem diferente. É apenas aparente o desprezo a que o
narrador relega o leitor, ao deixar uma acusação falsa vigorar a despeito do
interesse que o tema suscita: o livro trata deste tema, mas em nível formal, o
que garante o acerto da fatura final. Isto é mais do que se restringir às
antíteses construídas pelo autor/narrador, como faz Marquardt, como se elas
bastassem a si mesmas. Embora suas considerações sejam pertinentes, não
chegam aos pontos-chave para o entendimento da narrativa.
Murau vai mais longe: se escrevesse um livro tratando da culpa das mães
(e não apenas da dele) seria declarado mentiroso ou bobo, pois o mundo não
aceita fatos, mas apenas a inverdade e a hipocrisia. (AUS, 299). Que se deixe
de lado a crítica às mães, que o narrador ainda torna relativa, dizendo que suas
afirmações valem para a maioria das es (ou seja, não para todas). Importa
pois o texto Die Mütter, que não poderia ser escrito, aparece, assim como a
própria Auslöschung, como uma necessidade, embora ainda não escritos: o
não-fazer torna-se um fazer. Aqui se tem o ataque incondicional às
unanimidades, quaisquer que sejam. “In Wahrheit werden in dieser Welt die
Tatsachen ignoriert und die phantastischen Ideale für Tatsachen erklärt, weil
das politisch nützlicher und angenehmer ist, als das Gegenteil, Gambetti.”
(AUS, 300). Em verdade, nesta Auslöschung está presente este Die Mütter,
exatamente contra o conselho de Murau a Gambetti, de que estes
pensamentos deveriam ser pensados em segredo. De fato, Bernhard e esta
Auslöschung não recuam diante da acusação de bobo ou mentiroso, ou a de
260
A epígrafe do capítulo sobre a escrita da história traz uma citação de Auslöschung na qual
se tematizada pelo tio Georg, e encampada por Murau, uma concepção de História como a
vista nesta passagem, e que orienta todo o romance: “Die Geschichte interessierte mich, aber
nicht so, wie sie sich für unsere Geschichte interessierten, sozusagen nur für die als zu
Hunderten und zu Tausenden aufeinandergelegten Ruhmesblätter, sondern als Ganzes”. (AUS,
57)
208
machista (Endres), e a crítica já está embutida no texto, em que reconhece que
tais assertivas sobre as mães teriam uma determinada recepção.
O mesmo procedimento adotará Bernhard numa entrevista a Krista
Fleischmann, falando mal das capacidades intelectuais e sentimentais das
mulheres, sem ceder ao discurso politicamente correto mesmo quando incitado
pela entrevistadora, estupefata com o que ouve, e, mesmo ciente de que fazia
parte de uma armação em que o autor se colocava como personagem de si
mesmo, tenta desarmá-lo para torná-lo palatável ao público televisivo desta
entrevista, sem sucesso.
261
Não se deve esquecer que o nome de Fleischmann
para as entrevistas havia sido uma exigência explícita do próprio Bernhard, por
confiar em sua integridade e inteligência, como se neste mesmo livro. E
ainda que Ingeborg Bachmann era considerada por Bernhard a principal
escritora, entre homens e mulheres, de sua época, sendo homenageada na
personagem Maria, de Auslöschung. Além disso, a figura mais importante na
vida de Bernhard, excetuando-se o avô materno e a mãe, foi sua amiga Hedvig
Stavianicek, homenageada em Alte Meister na figura da esposa recém-morta
do personagem Reger. Nas entrevistas como aqui, em Auslöschung, Bernhard
sabe que pisa em terreno minado, sendo chamado de bobo e de mentiroso,
mas paga o preço destas provocações desprovidas de argumentos. Não se
digna a escrever um ensaio sobre as mães; apenas diz que mães imaculadas
são ideais fantásticos, e não a verdade, mas não justifica como chegou a isso,
e pior: quando se sabe que a culpa das mães não se sustenta nem mesmo
para Murau, o que resta? Resta a crítica ao discurso corrente, despretensioso
na aparência e validado pela unanimidade do senso comum, e avaliado como
suspeito porque moldado para ser politicamente útil e agradável. A crítica à
construção da realidade que passa pelo discurso científico e pelo senso
comum, justificando e mantendo uma estrutura de poder, deixando de lado o
campo de batalhas histórico. Tome-se por exemplo o amor pelos filhos, que
nesta Auslöschung se desdobra em cálculo econômico (irmão Johannes), na
preparação de serviçais para a velhice (irmãs), em violência desmedida pela
perda de controle (Murau); aqui as determinantes são históricas.
261
Cf. K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit Krista Fleischmann,
p. 64-69.
209
Mas esta perspectiva dura e crua não exclui o amor, e Murau não reserva
apenas pedras à mãe. Num determinado momento, Murau lembra que, aos
sábados, ajudava a mãe a organizar a corrêspondência de Wolfsegg, ali pelos
9 e 10 anos de idade:
Dann war es auch vorgekommen, daß sie selbst [a mãe] mir ein freundliches, ja
sogar ab und zu ein liebvolles Wort sagte. Dich die Mutter ja auch liebe und
tatsächlich mit größter Innigkeit, war mir während dieses Briefordnens oft
vorgekommen, wenn ich sie von der Seite her beobachtete, empfand ich ihr
Gesicht als ein schönes, während es mich sonst immer wegen seiner
Gewöhnlichkeiten irritiert hatte. Die Schreibtischlampe, die sie brennen hatte und
die ein sehr schwaches Licht auf ihr Gesicht warf, hatte dem Gesicht meiner Mütter
gut getan (...). (AUS, 265).
Esta relação bia, entre o amor e o ódio, opera nas entrelinhas de cada
frase mais ácida e cheia de pathos contra a mãe ou as mães. Nesta cena, diz
que a mãe recolhia a mão de seus cabelos quando dava por si que não
acariciava Johannes, com o quê os ataques à mãe se tornam uma expressão
desesperada de amor. Por um instante ele, Murau, ocupara o espaço de
Johannes, mas logo em seguida fora destituído dele.
Murau pretende ocupar o espaço da mãe, aproximando-se dela em seu
comportamento e discurso. Em primeiro lugar, Murau tem uma índole mais
próxima da mãe do que do pai, o que ele mesmo reconhece: “Er [Johannes] ist
tatsächlich in allen unserem Vater ähnlicher gewesen, als unserer Mutter,
während ich mehr der Mutter nach gewesen bin von Anfang an [...]” (AUS, 89).
A relação conturbada com a mãe implica uma briga de morte com esta, que
pretende dominar a tudo e a todos, e o consegue, com exceção dele mesmo. O
pai, o irmão, as irmãs, Spadolini, todos estes sucumbem à mãe, de uma forma
ou de outra (AUS, 122). Mas não o narrador, que se coloca em pé de igualdade
com ela, desafiando-a, por mais que a renegue ponto por ponto.
A relação com Spadolini é um bom exemplo disto. Ela é descrita de modo
completamente diferente por Murau e por Spadolini. Este a chama dedie Güte
in Person (a bondade personificada) (AUS, 570), o extremo oposto da
avaliação de Murau. Não obstante isso, Spadolini goza da mais alta estima e
sua fala tem autenticidade, mesmo quando se ocupa de falsificar ao máximo a
210
mãe, a ponto de subestimar a inteligência de Murau e das irmãs (AUS, 579).
Com a morte da mãe, o caminho para uma amizade mais profunda com
Spadolini fica aberto. “Möglicherweise, sagte ich mir, ist der Tod der Mutter jetzt
die Möglichkeit, die Freundschaft mit Spadolini zu erneuern, sie sogar noch zu
festigen, sie mir vollkommen frei zu machen.” (AUS, 499). Ganhar a disputa
com a mãe e tomar o lugar dela também fazem parte do cálculo de seu futuro
pós-enterro. O narrador cogita que Spadolini agora se aproximaria dele,
usando a mãe como desculpa, para que ele passe a financiá-lo em lugar da
mãe. Embora o narrador repudie este pensamento por considerá-lo repulsivo,
todas as relações em Auslöschung ostentam a rubrica do dinheiro: a família o
chama de parasita e afirma que gasta somas astronômicas para sustentá-lo,
Georg recebeu sua parte em dinheiro para sair de Wolfsegg, o narrador
acompanha diligentemente as remessas de dinheiro que o financiam (AUS,
205), as aulas de Gambetti o bem pagas, a mãe é uma consumidora
inverterada, e por afora. Spadolini soma apenas mais um nesta malha que a
todos envolve. Por sinal, gastar quantias absurdas com roupas caracteriza
tanto a mãe (AUS, 121) quanto o narrador (219), embora este critique aquela
por ser perdulária.
Murau assume o discurso e a ação da mãe: o projeto de aniquilamento das
irmãs
O episódio mais ilustrativo, no entanto, ganha expressão na maneira
como Murau trata as irmãs, quando assume inteiramente o discurso e dicção
da mãe. A mãe as fez marionetes, vestidas como bonecas, e com a função de
cuidar dela na velhice (AUS, 64). “Ihre Töchter waren nie etwas anderes
gewesen als Puppen für ihre Spielleidenschaft” (AUS, 122). Mas logo a voz do
narrador encampará a da mãe no que tange às suas irmãs, repondo tudo o que
havia sido atribuído à e, como deformação, e procurando com esta
passagem fazer destas avaliações verdades irrefutáveis, ao melhor estilo
oportunista deste narrador insidioso. Já imbuído deste propósito, Murau as
anula como indivíduos, ao não conseguir diferenciar a voz das duas, que se
apresentariam como gêmeas, embora não o fossem. Um outro ponto merece
menção pela crueldade e sadismo explícitos:
211
Fortwährend husten sie, ich kenne sie nicht anders, einmal husten sie in Wolfsegg
von oben herunter und dann wieder von unten herauf, aber dieser Husten ist kein
ernstzunehmender, kein tödlicher, es ist, als wäre dieser Husten ihre einzige
Leidenschaft, ihre bequemlichste Lebensunteraltung. (AUS, 61)
Terrível; uma outra palavra não conseguiria descrever o quadro que
Murau pinta de suas irmãs e sua tosse, tida como a única paixão delas. A
paixão é uma tosse, uma doença; Murau chega a ser grotesco nesta
caracterização, pior do que procedera com os pais e com o irmão. Murau faz
graça e pouco caso com a desgraça das irmãs, pois a tosse como paixão
apresenta tons cômicos. Uma centena de páginas depois comentará, quase en
passant, que às irmãs estavam reservados pela mãe os quartos do lado norte,
onde não batia sol, sempre úmidos e frios: “[...] und es ist leicht möglich, daß
sie [as irmãs] ihre Anfälligkeit für Erkältungskrankheiten diesem Umstand
verdanken, auf die Nordseite verbannt zu sein.” (AUS, 176). Assim identifica a
origem desta tosse ininterrupta, que qualificara como paixão, na verdade
resultado de uma violência desmedida, socialmente desferida em suas irmãs,
mesmo que orquestrada pela mãe, com a qual o narrador coaduna. Se quando
comentou a tosse foi irônico, aqui a objetividade se faz cínica, estabelecendo
distância e qualificando seu desprezo pelo infortúnio das irmãs. Não custa
lembrar: sempre como a mãe. A distância física dos trechos no texto procura
abafar a origem histórica da enfermidade crônica, quase a naturalizando.
Esta paixão pela doença não tem nada da atração pela morte dos
românticos ou da grandeza desta como uma espécie de revolta e defesa contra
uma situação opressora: não se trata de uma doença mortal, como o narrador
faz questão de frisar. Mesmo a dignidade da doença terminal lhes é negada:
não podem nem mesmo morrer. Pouco notadas pela crítica, que se concentra
na figura da mãe, do pai, do irmão e de Georg, no âmbito familiar, as irmãs são
o resultado mais bem-resolvido do desenvolvimento sob as condições dadas,
seja do espaço reservado às mulheres, seja da impossibilidade de se tornar um
sujeito com identidade própria, nem que seja pela extinção; às irmãs é
reservado um desprezo universal, e praticamente não sobra comiseração ou
possibilidade de salvação para elas, diferentemente do que ocorre com os
212
outros personagens. Pouco é dito sobre o fato delas estarem vivas e se verem
privadas de Wolfsegg.
As irmãs não se desenvolveram, o tiveram forças de romper com
Wolfsegg. (AUS, 60). Deste modo resume Murau, direta e objetivamente, a
condição das irmãs no cenário familiar. Porém, quando ocorre a primeira
tentativa de rompimento e Caecilia casa-se com o “fabricante-de-rolhas-de-
vinho-de-Freiburg”, Murau a espicaça tendo em vista uma suposta falta de
consideração com a mãe: “[...] was ich ihr [Caecilia] gesagt habe, Hände weg
von dem Weinflaschenstöpselfabrikanten, Hände weg von dieser perversen Art
von Gemeinheit gegen die Mutter.” (AUS, 425). O casamento será então
qualificado apenas como uma perversidade contra a mãe, deixando de lado
quaisquer considerações sobre Caecilia. Ele a julga pelos moldes da mãe,
chegando a dizer que pensava exatamente como ela a respeito da
inconveniência deste casamento, o primeiro ato de insubordinação de Caecilia
em toda a vida (AUS, 376). Um ato de impertinência e contra todas as
expectativas, uma vez que as duas haviam sido privadas de todos os meios
para obter sua independência, inclusive materiais, como roupas, sapatos,
dinheiro, para ir a qualquer lugar.
Quando se fala de dinheiro, este mediador universal, Murau tem a frase
certa pra mostrar que, mesmo como mercadorias, suas irmãs não valem
nenhum investimento: “Es ist wahr, dachte ich, die Schwestern haben immer
am allerwenigsten gekostet, aber sie sind auch nicht mehr wert, dachte ich.”
(AUS, 604). O discurso da mãe resplandece nesta frase bem ao estilo
pequeno-burguês, da relação custo-benefício de um dado investimento, medido
em dinheiro. Resta apenas o exercício indiscriminado do poder e a
transformação em marionetes, projeto que acaba por elevá-lo ao nível da mãe.
Depois de levá-las à Kindervilla e comentar seu projeto de renovar este prédio,
e depois, numa correria enlouquecida, fazê-las abrir todas as janelas para
entrar ar fresco, resultando no seu (delas) esgotamento físico e psicológico,
Murau as mira e fulmina, em pensamento: “Sklavisch hatten sie gleichzeitig ihre
Köpfe in Richtung auf die Berge gewendet, wie wenn sich zwei
aneinandergekettete Puppen nach den Bergen in de Ferne gewendet hätten,
dachte ich. [...] Ich hatte sie vollkommen in der Hand.” (AUS, 465). Neste
momento ele assume o apenas o discurso da mãe, mas também o espaço
213
dela em relação às irmãs, com o que completa a passagem. Mas, na frase
seguinte, o afastamento esperado: “Ich empfand das aber nicht als einen
Triumph, sondern als eine unerträgliche Belastung.” (AUS, 465). Deste modo,
Murau também passa pela mãe, burguesa ascendente, no dizer do pai
aristocrata, die Frau von unten (AUS, 175), e extingue esta posição.
Os serviçais von Unten têm a sua vez: a cozinheira e os jardineiros
um episódio ilustrativo de um dos modos como Murau realiza esta
dinâmica de passagem pelo outro e extinção desta posição no trato com os
serviçais. Indo à cozinha tomar café, lê com avidez os jornais acerca do
acidente automobilístico familiar. Ao terminar, a cozinheira volta e pergunta ao
agora Senhor (Herr: AUS, 408) se ele se interessaria em lê-los. Num primeiro
momento, Murau se torna senhor de Wolfsegg pelas palavras dela, e se
ressente disso, posto que este título caberia ao pai e estava fadado ao irmão.
Mas ao responder que não queria lê-los, incorre numa mentira que o rebaixa à
cozinheira: ele conjectura que ela percebeu sua mentira. Sentindo-se acuado,
passa a rogar imprecações em pensamento contra ela, com o que se nivela à
cozinheira, travando com a mesma uma luta de olhares, que só pode ser
registrado, evidentemente, na conta do narrador, que assim interpreta a
situação constrangedora. Cada um deles teria cometido uma infâmia:
[...] sie zeigt ihrerseits eine Niederträchtigkeit, dachte ich, ihre Gemeinheit, indem
sie mich 1.4422( )-2h rschend nbick. [...] ererseits te ich mich in einer i
einicherer Ldae, dhenn meine Gemeinheit wNr ie er
214
cozinheira. Ele vence a contenda pela violência, pelo uso do poder a ele
concedido, visto a dependência dela deste Senhor. E que não se espere
indulgência deste Senhor: “Es wäre doch nur eine unverzeihliche Dummheit
gewesen, sich vor einem solchen Menschen wie der Köchin zu fürchten [...]”
(AUS, 410-1).
O episódio explicita a dinâmica deste narrador, que se inicia pela sua
elevação a Senhor de Wolfsegg (com o que assume o posto do pai e do irmão),
seguido pela negação de Murau desta condição, e conseqüente rebaixamento
ao nível da cozinheira, com quem trava então uma disputa que ele mesmo cria,
no mais das vezes, entre discursos, mais do que entre personagens, o que
também termina pela desautorização da voz oponente como contendedora,
repondo a distância que ele mesmo havia eliminado, reassumindo a sua
posição de Senhor de Wolfsegg.
Uma dinâmica bem diferente ocorre no caso dos jardineiros, com quem se
afina desde criança. A crítica teima em reforçar uma visão idílica dos jardineiros
ao antagonizá-los aos caçadores, o que implica num maniqueísmo duro de
aceitar num romance como Auslöschung. Esta idealização das pessoas
simples, como os jardineiros e os moradores da vila abaixo de Wolfsegg,
entretanto, não tem respaldo no romance: “[...] die Unteren sind genauso
verlogen auf ihre Weise, wie die Meinigen auf die ihrige.” (AUS, 336). A
aproximação ao modo natural dos jardineiros acaba se mostrando como uma
construção bem elaborada, que, inclusive, falha quando Murau chega em
Wolfsegg para o enterro dos pais. Em verdade, esse nivelamento se dá apenas
em sonhos, com o que já mostra o fracasso do projeto:
In meinen römischen Wohnung phantasiere ich mich sozusagen sehr oft zu ihnen,
dachte ich, [...] mische mich unter sie, fange an, ihre Sprache zu sprechen, ihre
Gedanken zu denken, [...] aber es gelingt mir naturgemäß nur im Traum, nicht in
der Wirklichkeit, [...] (AUS, 336)
Assim marca a distância, com pesar, e por mais que deseje, não
consegue se relacionar com estas pessoas simples que, deste modo, tornam-
se as mais complicadas. Estes jardineiros não são acessíveis para ele, o que é
raro no romance, restando outro campo o do desejo e o do sonho para que
haja a passagem de um pelo outro, característica deste narrador.
215
216
Maria e Spadolini: Murau entre extremos
Também os amigos, que não são de Wolfsegg, serão envolvidos pela
dinâmica do discurso de Murau. Este narrador difere, substancialmente,
daquele sem-nome de Holzfällen. Enquanto este empresta a voz sempre com o
intuito de difamar e ridicularizar o outro, o que marca por itálicos devastadores,
Murau salva alguns personagens, muitas vezes dignos, como a escritora Maria,
o rabino Eisenberg, seu amigo Sachi e, sobretudo, seu interlocutor oculto,
aluno-mestre Gambetti. Esta perspectiva não se espraia para todos os
personagens do romance, no entanto, e a família incluindo o próprio narrador
será alvo dos ataques mais vorazes, no mais das vezes relativizados logo a
seguir. O narrador deixa que as vozes e discursos dos outros ganhem corpo,
nele mesmo, um Imitador de Vozes (Stimmenimitator) para, em seguida,
aniquilar esta posição.
O bispo Spadolini, com certeza, não pertence ao grupo dos que estão a
salvo. Ele e Maria se odeiam e são completamente opostos: aquela não
consegue sequer escrever poemas em Wolfsegg, dado o peso da história que
ali quase se respira
262
, e na mesma Wolfsegg, Spadolini ascende e brilha como
ator principal do enterro como teatro, ao lado do próprio Murau.
Maria o entende como Murau não rompa relações com o oportunista
Spadolini, e Murau, mesmo concordando com suas objeções, não prescinde da
grandiosidade do bispo, amante da mãe. O narrador oscila entre a moral reta
de Maria e o oportunismo e falta de caráter de Spadolini: tentado e seduzido
por este, concede que sua fala, mesmo quando mentirosa, soe autêntica. Ele o
desmascara e afirma com todas as letras a infâmia da avaliação que Spadolini
faz dos pais, falsificações como idealizações grosseiras e grotescas,
inaceitáveis. São dois extremos que expressam o ir e vir do narrador Murau,
que passa pelos dois. Maria nos é apresentada como a única pessoa com
poder de veto sobre seus escritos, o que não é pouca coisa. “Maria ist die
Unbestechliche, [...] Kein Mensch außer Maria ist imstande, mir klar zu machen,
daß meine Manuskripte nichts wert sind, daß sie ins Feuer geworfen gehören.”
(AUS, 542). Em sua busca pela verdade inspira-se na poesia de Maria, e por
isso projeta escrever esta Auslöschung; título, aliás, que surge por influência de
262
Numa alusão, talvez, à impossibilidade de se escrever poemas após Auschwitz, com
Adorno.
217
Maria, que o chama de Auslöscher. As intenções são as mesmas que movem
Maria, mas o modo de expressá-las difere drasticamente.
Murau procede como Spadolini ao escrever. Este se configura como um
mistério, em certo sentido uma chave para o romance. “Spadolini ist ein
Beispiel für einen abstoßenden und faszinierenden Menschen und wir sind uns
sehr oft nicht sicher, sind wir jetzt von ihm fasziniert, oder abgestoßen, [...]”
(AUS, 582) Do mesmo modo que o narrador Murau, que causa tanto fascínio
quanto repúdio com sua escrita nos leitores, por sua aspiração à verdade, por
um lado, e sua infâmia, por outro, expondo ambos. A caracterização da mãe
feita por Spadolini, centrando forças apenas em itens secundários e
acessórios, ocultando o decisivo que remete à relação amorosa entre os dois,
tem o intuito de desviar a atenção de Murau e das irmãs da verdade desta
relação. O modo como o bispo se expressa merece atenção.
[Spadolini] berührte und rühmte nur das Nebensächliche, das warf er uns
sozusagen zum Fraß vor, [...] (AUS, 585). Wie er etwas sagt und sich dabei zur
Schau stellt, nicht was er sagt, ist das, das meine Bewunderung herausfordert,
dachte ich. (AUS, 555).
O narrador, atento para o procedimento do mestre, utiliza deste
receituário para escrever esta sua Auslöschung, como visto, pelo indireto,
pelos bastidores. Mas seu objetivo é afeito ao de Maria. A expressão da
verdade não prescinde da mentira e falsidade: de novo, a busca do teor de
verdade da mentira leva-o ao jogo entre Maria e Spadolini. Seu desnudamento
como da mesma estirpe de Spadolini leva à necessidade de sua auto-extinção
para alcançar a integridade de Maria.
O cunhado “frabricante-de-rolhas-de-vinho-de-Freiburg”
Se as irmãs estão absolutamente anuladas pela mãe e, mais do que
isso, pelas condições a que foram relegadas, o que será devidamente reposto
por Murau, o que se pode dizer do cunhado, tomado como instrumento de
Caecilia para fugir da subjugação completa à mãe? A esta personagem estará
reservada, portanto, o mais alto grau de desprezo, sarcasmo e infâmia. Este
fervor será ainda potencializado pelo temor de Murau em ser obrigado a aceitá-
lo como parte de Wolfsegg, com direito a assento. O cunhado representa o
218
burguês por excelência, com todas as deformações físicas e espirituais que se
pode imaginar (AUS, 376), destruído e aniquilado pelas suas máquinas e seus
escritórios (Weinflaschenstöpselmaschinen e -büro; AUS, 380), resultando no
mesmo fim reservado ao pai aristocrata, porém, no caso do cunhado, o tom
acusatório é mais incisivo. Sua nulidade eleva-o ao status de personificação da
inação (die personifizierte Untätigkeit; AUS, 466), sendo caracterizado pelo
andar desengonçado, pelas pernas tortas (O-Beine; AUS, 433), como um
personagem absolutamente perdido ante uma tragédia como a ocorrida. A
alcunha que Murau lhe pespega evidencia o processo que culminou em seu
retrato atual, a saber, a divisão e especialização capitalista do trabalho em
partes cada vez mais ínfimas: ele é um fabricante, não de qualquer coisa, de
rolhas, que não servem pra qualquer bebida, mas para vinhos; e ainda, o que
não deve passar despercebido, vindo de Freiburg, na Alemanhaantr r,2.223(d)5.67718(e)(n)-4.33
219
pilha de jornais relatando o acidente, com fotos da cabeça decepada da mãe,
que Murau havia lido, às escondidas. O narrador incita o cunhado a lê-los, e
este responde com um “agora não”, suficiente para ser desmascarado. Ele se
nivela ao cunhado ao vencer uma espécie de “duelo verbal” que trava em
silêncio com este:
Das jetzt nicht des Schwagers war ein so abstoßend geheucheltes als hätte ich
selbst es gesagt, denn ich selbst hätte es genausogut in diesem Augenblick sagen
können, ich hatte meinen Triumph, weil er es gesagt hat, nicht ich, ich stand da als
der Anständige, [...]. (AUS, 470).
Após esta vitória acachapante, que mais os equipara do que os separa,
Murau coloca-se como superior e entrega os jornais para que o cunhado os
leia, avalizando-o. Com este estímulo e chancela, o cunhado devora os jornais,
com uma avidez e sem-cerimônia notáveis. Murau monta uma armadilha, e
agora se delicia em pensar como irá contar esta cena para a irmã, falseando-a
em seus interesses, como se o cunhado o tivesse desprezado e humilhado.
Tatsächlich bin ich zu einer solchen Gemeinheit als Verfälschung befähigt, dachte
ich, [...] ich hatte solche Gemeinheiten auch schon hunderte Male begangen, sie
mir sogar zur Gewohnheit und Methode, zur gewohnheitsmäßigen Methode
gemacht, dachte ich. (AUS, 473)
Com isso temos acesso a uma das chaves para a interpretação deste
romance, pois também nós, leitores, estamos agora c
220
ser eminentemente mediada pela linguagem como, por exemplo, quanto
comenta sobre o cunhado para os amigos, e depois completa, para si: “Die
Gemeinheit, mit welcher ich dabei vorgegangen bin, war mir erst später zu
Bewußtsein gekommen, d ich nicht gegen ihn, meinen neuen Schwager,
geredet habe dabei, sondern im Grunde nur gegen mich, mich dabei selbst
denunziert habe.” e e e eewcaa e e ea653.5815(a)f0.re,ehmieiea,emgo,edao(d)-401(w)11.5803(e681.67474(a)-4.331(,).3(202.282(n)5.67474(u)-4.331(,).3(2.33117(i)1..87122(b)-4.s9466(p)-4.33117(l)1.33117( )-412.408(64 T67474(a)-4.331(,).3(233117(e)5.67474(n)-4.8]TJ-312.064 439( )-232.3(z)9.712331(,).3(267474(n)-4.8]466(p)-4p7474(e)-4.33117(.)-2.ç]TJ-37)5.67117(e)5..49466(i)1.871(,).3(216436( )-467474(n)-4.8]TJ-3b)-4.m3117(,556(3 0 0r)2.867474(a)-4.331(,).3(27229(n718096 -20.64 T84 -20.76 Td[(G)-2.4687.348)-4.33056(m)-7.49588(e)5.67535(n)-4.7(e)-4.3311.805( )-412..33117(a)-4056(e)-467474(e)-4.33117(n)-4.33117( )-201(w)1167474(e)-4.67117( )-2.33117(a)-4.33167(p)8O1003(n)5.6.33157(p5-3.39556(c)-02.3(m)-7.49466(i)o)5.466(i)o)5.a3117( )-202.282(d)-47474(e)-4.33117(g3(e)5.)167(p)8.39556(c)-0ã.272(p)5.67474(a)-4.331167(p59233117(e)5.67474(n)-4.g3117(e)-4.33117(i)1.331167(p5927229(n)-4.32873(t)-2.67474( )-182.2757(p532.33117(i)1..8466(p)-4.16436( 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221
imitador um bom imitador. Daí a caracterização de Murau como um
Übertreibungskünstler”. Esta, ainda, a postura do artista em relação à
sociedade: ele deforma para expressar sem perder a autenticidade formal do
representado. Daí a frase de Bernhard, no volume autobiográfico Der Keller:
“Letzten Endes kommt es nur auf die Wahrheitsgehalt der Lüge an.” Bernhard
imita em Stimmenimitator a forma dos jornais: os seus textos são curtos,
informativos, cita fontes aparentemente fidedignas, objetivas. Mas o que relata
não é crível, caracteriza-se pela irônica e categórica aversão à
verossimilhança. Um exemplo disso é o texto Pisa und Venedig, que reporta a
um pretenso plano dos prefeitos destas duas cidades de trocar, numa noite, a
torre de Pisa e o Campanilo de Veneza, com o intuito de chocar os visitantes
dessas cidades. Como o plano vazara, a polícia os teria prendido na noite
mesmo da troca e os levado ao hospício, cada um, naturalmente, em sua
própria cidade. As autoridades italianas, conclui o texto, teriam conseguido
fazer estas prisões em segredo. (STIM, 240) Mais não se diz, como se
houvesse realmente o perigo deste projeto amalucado ser factível. O projeto,
diga-se de passagem, critica a visita desenfreada a estas “mercadorias
culturais” do ocidente, e acerta em cheio o próspero “turismo cultural”,
constituindo-se num crime contra patrimônios culturais da humanidade, uma
espécie de terrorismo cultural. Isto se equipara a macular, em terras alemãs, o
nome e a biografia tão bem cuidada do gênio Goethe que, no texto Behauptung
(STIM, 270) verá sua famosa última frase, mehr Licht, ser “corrigida” para
mehr nicht: ao invés do fáustico Mais Luz!, o negativo não mais! Seis médicos,
no entanto, se recusaram a interná-lo como louco; o sétimo, que não titubeou
em fazê-lo, como teria atestado o Frankfurter Allgemeine Zeitung, teria
recebido uma condecoração da cidade de Frankfurt. Com acerto, Schmidt-
Dengler
264
aqui o esforço pela manutenção do status quo e a negação da
reescrita da história e da tradição, atuando por suas instituições, como os
médicos, o governo, o hospício.
A verdade da forma jornalística, que indica a incapacidade comunicativa
da mesma, ao seccionar e equiparar as “notícias”, destacadas do contexto e
quase despidas de sentido, mas envolvidas por uma aparente objetividade
264
Op. cit., p. 73.
222
acachapante que exporia as “verdades” nuas e cruas, será ridicularizada nesta
imitação que não imita, uma imitação em negativo de Bernhard, decisivo para
sua concepção estética. Imita e não imita: do mesmo modo que a mediação
necessária da linguagem e a imediação social dos romances de Bernhard
imitam sem imitar. Assim é concebida a personagem Murau, um Imitador-de-
Vozes, que nega todas as vozes que imita, e que não apresenta uma voz
própria, uma psicologia definida, antes se constrói por este emaranhado de
vozes dissonantes e pela sua negação.
O interlocutor ausente Gambetti e a literatura como explosão
O personagem Gambetti, mesmo ausente, é o mais citado em todo o
romance, que em sua maior parte seconstruído como uma rememoração de
conversas havidas com ele, diferentemente das outras conversas, não havidas,
com os familiares.
265
Somente por este motivo ganharia relevo no rol dos
personagens do romance, mas sua importância vai além disso, como pretendo
mostrar neste capítulo.
Não custa lembrar que, logo à primeira linha do romance, antes mesmo
de relatar o acidente com os pais, Murau o cita. “Nach der Unterredung mit
meinem Schüler Gambetti,[...]” (AUS, 7). Assim se inicia o romance, cujo
primeiro parágrafo, após 13 linhas, termina: [...] erhielt ich gegen zwei Uhr
mittag das Telegramm, n welchem mir der Tod meiner Eltern und meines
Bruders Johannes mitgeteilt wurde.” (AUS, 7) Antes deste início constituir-se
como uma menção secundária, o encontro com seu aluno remete à estrutura
desta composição como atualização da memória, cujo principal agente serão
os diálogos passados com Gambetti, expostos aos leitores inteiramente como
escrita da memória, como palavra viva.
Esta recuperação dá-se por meio do monólogo do narrador Murau, que
remete a encontros com Gambetti romance afora, como se apenas pudesse
lidar com os pais pela recriação para este interlocutor misterioso. Sua técnica
de escrita indireta ganha com isso mais uma dimensão: Gambetti está ausente
do romance, como personagem, mas se insinua em quase todas as suas
265
Mesmo o título dos capítulos, Das Telegramm e Das Testament, configuram diálogos
postergados, portanto o havidos, escritos em vez de falados, assim como o próprio romance
Auslöschung.
223
páginas, como uma instância necessária para a atualização desta história, que
conhece por intermédio de Murau, visto que este nunca o convidou a ir a
Wolfsegg, justificando-se como segue: “Die Konfrontation Gambettis mit
Wolfsegg könnte tatsächlich in eine Katastrophe führen, dachte ich, deren
entscheidendes Opfer dann niemand anderer wäre als Gambetti selbst.” (AUS,
15) Por um lado, Murau alude à proteção de Gambetti do mundo sufocante
deste castelo. Por outro, este expediente permite ao narrador pintá-lo com as
cores que julgar mais convenientes e oportunas, um dos seus procedimentos
para escrever esta narrativa, de modo que ele, Murau, possa se proteger da
revelação de sua origem a Gambetti, o que implicaria numa aproximação não
controlada nem desejada pelo narrador, que se sabe filho dileto daquele meio,
e teme o encontro com seu passado e com Wolfsegg, em suma, consigo
mesmo.
A Wolfsegg que Gambetti tem acesso é inteiramente mediada por Murau,
criada por ele em função de seus interesses. O leitor se equipara, nesta
passagem, a Gambetti: também o leitor dialoga com Murau por meio de um
monólogo, que ganha corpo neste Auslöschung, e também ao leitor se reserva
um tratamento de mesmo quilate. Assim o lembrete de que o escrito é
inofensivo ante a realidade, tema que acompanha a obra de Bernhard, serve
como um aviso aos leitores de que a mediação inescapável e necessária pode
ser, ainda, reacionária, posto que uma fuga para a estética: Murau teme esta
realidade e se refugia em seu relato, por pior que este pareça. Pois se
Gambetti fosse para Wolfsegg encontraria uma realidade mais contundente
que a ficção de seus relatos: “Dann würde er sehen, daß alles das, das ich ihm
in den letzten Jahren über Wolfsegg gesagt habe, harmlos sei gegenüber der
Wahrheit und der Wirklichkeit, die er zu sehen bekommt, dachte ich.” (AUS, 14)
A memória, mediada pela escrita, assume então o seu espaço no romance,
uma vez que não apenas a fábula se desenrola no passado (a escrita em
Roma será feita após todos os eventos), mas as conversas com Gambetti são
recuperadas no presente da fábula, reeditadas de acordo com a dinâmica das
memórias de Murau. E que o leitor se arme em defesa, que o escrito pode,
por sua forma mesmo, amenizar o mais terrível e tornar palatável qualquer
excrescência, perigo impossível de ser evitado.
224
“Übertreibung” como “Untertreibung”
Aqui se abre o espaço para uma discussão sobre a forma da escrita
artística, tendo em vista sua inserção na sociedade: a “arte do exagero”
(Übertreibungskunst) cobrada e defendida por Murau. Após dizer a Gambetti
que, em pouco tempo, tudo mudará no mundo até a irreconhecibilidade, pela
destruição, e reconhecer que também seu próprio erro faz parte deste seu
prognóstico, provoca uma “risada à la Gambetti” (Gambettilachen), com o que
complementa:
Wir steigern uns oft in eine Übertreibung derartig hinein, habe ich zu Gambetti
später gesagt, daß wir diese Übertreibung dann für die einzige folgerichtige
Tatsache halten und die eigentliche Tatsache nicht mehr wahrnehmen, nur die
maßlos in die Höhe getriebene Übertreibung.” (AUS, 611).
A realidade passa a ser então este exagero, necessário para a expressão
e criação de todo e qualquer fato. Mas que não se incorra em erro: este
exagero não pode ter suas arestas aparadas para se chegar ao “fato”
verdadeiro, em estado puro, intocado: este não existe, posto que depende da
linguagem, de uma determinada forma, uma expressão e uma posição, tarefa
da qual não podem fugir os artistas, em especial os escritores:
[...] wie der Schriftsteller, der nicht übertreibt, ein schlechter Schriftsteller ist, wobei
es ja auch vorkommen kann, daß die eigentliche Übertreibungskunst darin besteht,
alles zu untertreiben, dann müssen wir sagen, er übertreibt die Untertreibung und
macht die übertriebene Untertreibung so zu seiner Übertreibungskunst, Gambetti.
(AUS, 612).
O exagero na expressão não passa de uma diminuição, ou, em outras
palavras, de algo muito diferente da realidade social, visto que o material é
outro: não há sangue no chão, mas tinta no papel, que aceita tudo. A mediação
artística, mesmo quando utiliza as tintas mais negras, não chega perto do terror
da realidade social que, por outro lado, cria e sustenta. Por isso Murau impede
que Gambetti a Wolfsegg, no mesmo diapasão que na peça Heldenplatz a
linguagem não pode exprimir a realidade, não apenas por ser outra coisa, mas
ainda por ser a realidade muito pior do que qualquer expressão, mesmo a mais
incisiva. Nos dois casos, de Auslöschung como de Heldenplatz, a história
225
recente da Áustria e da modernidade estão no campo de visão destas
assertivas. Por trás desta concepção está a impossibilidade da mimetização do
real pela arte, o que implica numa necessária distorção pela mediação da
linguagem e, ainda, pela perspectiva e interesses de quem narra, de modo que
a expressão é sempre outra coisa que não a realidade, embora busque, nesta
mentira, o seu “teor de verdade”. A forma em que esta mentira será articulada
fala uma verdade desta forma, também ela mediada. A Untertreibung pode ser
lida como a insuficiência da arte e do sujeito em estabelecer a ponte que
conduza à realidade, de modo que resulte num arrefecimento em relação à
experiência social real; a ocultação disto consiste no maior dos perigos. Daí a
necessidade do exagero que, no caso em questão, provoca o leitor e tenta, ao
menos, estimulá-lo, retirá-lo da apatia típica do momento do consumo passivo
das informações segundo o padrão em nossa sociedade. A próxima sessão
discute questões sobre história, memória e modo de atualização desta que
culmina numa escrita da história, numa perspectiva que se alinha ao
pensamento de Benjamin; Gambetti é um dos elos desta trama.
Dentro da linha adotada neste capítulo, cumpre antes de tudo estudar
suas relações com o narrador Murau. Gambetti secaracterizado ao mesmo
tempo como aluno e mestre de Murau, não obstante sua juventude. “Gambetti
ist mein Schüler, umgekehrt bin ich selbst der Schüler Gambettis. [...] Dann ist
unser Idealzustand eingetreten.” (AUS, 10) Murau confessará que, antes de
avaliar Gambetti, foi avaliado por este como professor (AUS, 510). Gambetti
funciona como o estímulo necessário para Murau desenvolver seu
pensamento, com suas perguntas inquietantes e seu espírito aberto, e seu
pensamento anarquista seria obra de Murau, que, no entanto, aponta Gambetti
como aquele que fez revigorar seu espírito anarquista, num dos exemplos da
passagem contínua e ininterrupta de um pelo outro. (AUS, 512) Estas
aproximações são seguidas da negação de uma viagem conjunta a Wolfsegg.
Vale notar que o vínculo entre os dois ocorra via literatura alemã, e por
este caminho querem mudar o mundo, o que aponta para a discussão sobre o
papel da literatura na sociedade, uma das questões de fundo deste romance.
Gambetti encampa a dimensão de interlocução fracassada (posto que ausente)
mas necessária para o ponto de vista do romance, que trabalha nas fissuras
dos diálogos fadados, de antemão, a não acontecer. Diálogos forjados, neste
226
caso, pela sua citação via Murau, o que alude mesmo à comunicação difícil
com os leitores, haja vista as múltiplas mediações necessárias entre autor e
leitor, que resulta numa distância quase insuperável.
O fato de Murau ser o professor de literatura alemã de Gambetti não é
mero acessório para a composição do romance, como t nt tiçcoto iimãom é p-4.33056(rd[(l)1.87(e)-4.330)-4.33117(â22.1762(r)121.87(s)-0.295585(t)-2.16558-12.1715(p)-4.335583 )-qltap6-12.1715(p)-67474( )-2b295585(e)--2.45995(a)5.67474 tnãânetMu edo a e, i o profesã
227
gênio, bem como o caminho institucional pela educação que disseminou e
estabeleceu de vez sua vida e obra como monumentos da cultura ocidental. O
valor inegável da obra de Goethe não é posto em dúvida, mas Bernhard, como
parte de sua estética de provocação, oferece uma visão carnavalizada de
Goethe, enfatizando a exposição do processo de construção ideológica e seu
uso como instrumento e mercadoria do espírito, assunto de palestras com
Gambetti. A importância da obra de Goethe, mesmo para o narrador Murau,
pode ser medida na indicação de leitura da obra Die Wahlverwandschaften
para ser discutida com Gambetti.
Além da crítica ao caráter mercantil da obra literária (Geistesgut) em
primeiro plano, Murau traz ainda dois outros itens fundamentais para o
estabelecimento e disseminação do gênio de Goethe, a saber seu editor, Cotta,
e o papel decisivo do sistema educacional, que serviu para expandir a
recepção e torná-lo numa espécie de guru espiritual para os alemães, que
assim se alçam ao panteão da cultura ocidental (AUS, 575-576). Mas ao fazer
isso não é um documento da cultura, mas da barbárie, com Benjamin, e o
espólio recebe a denominação de Bens Culturais (Kulturgüter).
267
A influência
de sua obra tornou-se tamanha, que a história literária por muito tempo
desvalorizou um período histórica-, política e esteticamente riquíssimo como a
primeira metade do século XIX, deixando de lado uma gama de autores como
Heine, chner, os autores ligados ao movimento Junges Deutschland, ou o
que hoje se nomeia como Vormärz, assim como a estética Biedermeier para se
concentrar no classicismo de Goethe como marca única deste período. A
efervescência do período entre 1815 e 1848 perde assim sua forma, que ganha
com a variedade e multiplicidade da criação estética do período.
268
Goethe é ridicularizado (para Uwe Betz, carnavalizado) por Murau, que
alude à falsidade do projeto do homem emancipado, assim considerado pela
sua elevada filosofia que, ao fim e ao cabo, não passa de um instrumento para
o preenchimento da mercadoria Cultura, nas palavras de Murau, algo como
267
W. Benjamin: “Es [os Bens Culturais, Kulturgüter] ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne
zugleich ein solches der Barbarei zu sein. Und wie es selbst nicht frei ist von Barbarei, so ist es
auch der Prozeß der Überlieferung nicht, in der es von dem einen an den andern gefallen ist.
Der historische Materialist rückt daher nach Maßgabe des Möglichen von ihr ab. Er betrachtet
es als seine Aufgabe, die Geschichte gegen den Strich zu bürsten”. “Über den Begriff der
Geschichte”. GS I.2, p. 696.
268
Cf. J. Hermand, “Allgemeine Epochenprobleme”, em Zur Literatur der Restaurationsepoche
1815 – 1848, p. 3 – 61.
228
uma “marmelada espiritual”. A passagem à mercadoria circulante, que Brás
Cubas almejara ao conceber o emplastro com seu nome, teria sido levada a
cabo pelo produto espiritual com a embalagem Goethe. Sendo assim, é
compreensível que Murau recomende cautela a Gambetti no contato com ele.
No seu afã iconoclasta de agredir a tradição literária alemã e, principalmente, o
uso e manipulação da arte pelo mercado, Bernhard não considera que o
próprio Goethe, em Wilhelm Meister Lehrjahre, aponta para a
mercadorização do teatro, visto como empreendimento cultural; noutras
palavras, Goethe não adere à estética burguesa, pelo contrário, ele realiza
também uma crítica a este estado de coisas. Cumpre notar que a provocação
em Bernhard, no entanto, não se pauta pela argumentação embasada, mas
geralmente toma os pilares da cultura como alvo indiscriminado de suas
invectivas, intentando a polêmica. Além disso, seus personagens não podem
ser equiparados ao autor Bernhard; a instância narrativa em Auslöschung
suspeita de toda a tradição, que sabe como sua. Sendo assim, ataca os
autores que considera justamente os maiores, como Robert Musil, Thomas
Mann, e outros.
A concepção de literatura que se depreende deste romance a como
parte do sistema produtor de mercadorias, e não como acima ou fora dele.
Murau se esforça para não perder de vista nenhum de seus aspectos: a
produção, a circulação, o consumo como produto espiritual seja para uso
cotidiano, seja como parte da ideologia que não o autor em suas relações
materiais, diga-se, políticas, econômicas e sociais, que ele faz questão de
frisar. Frente à pergunta Onde encontrar a diferença entre uma Obra de Arte e
uma mercadoria, Norbert Bolz afiança, com acerto: “[...] não qualquer
diferença entre obra de arte e mercadoria, pelo menos a partir da perspectiva
de Walter Benjamin. [...] E que tudo aquilo que foi produzido esteticamente,
antes da configuração da arte pela forma da mercadoria, não tinha a qualidade
específica da arte autônoma, mas tinha caráter de culto”
269
Neste sentido, o
surgimento de um campo específico para as artes, separado das relações
íntimas com outras esferas da vida social, dá-se quando a forma mercadoria
269
N. Bolz, Onde encontrar a diferença entre uma Obra de Arte e uma mercadoria?”, em
Revista da USP. Dossiê Walter Benjamin, p. 92.
229
toma conta da forma social, o que remete aos primórdios do capitalismo. Nas
palavras de Kurz,
Nas civilizações antigas, porém, não havia uma divisão social em separado
denominada “arte” ou cultura”, no sentido que as entendemos hoje. Isto porque a
estrutura moderna de esferas separadas e autônomas entre si, que também
definem nossa linguagem e nosso pensamento, era absolutamente estranha às
sociedades primitivas. [...] Uma tal divisão da vida social desenvolveu-se apenas
quando a chamada economia moderna foi destacada do resto da vida uma
alteração elementar, que não precisa ser sublinhada.
270
A leitura de Murau sobre Goethe encontra-se neste diapasão, e a
pergunta, colocada em Auslöschung, sobre o que é cultura deve ser assim
respondida: uma mercadoria das mais astuciosas, posto que se auto-arroga a
ocupar um espaço autônomo e livre, como também os pensamentos e a
linguagem, como visto neste estudo sobre Auslöschung. Goethe serve como
exemplo por representar o posto mais avançado do processo cultural e artístico
em solo alemão, que precisa ser questionado. Não quero deixar de salientar
que esta perspectiva ganha espaço nesta análise, sobretudo, por ser
fundamental para entender a composição formal deste romance de Bernhard,
que questiona o espaço da literatura, sua relação com a sociedade, e ainda as
categorias analíticas utilizadas pela crítica, tendo como um de seus pontos de
fuga a politização da estética, como se verá logo mais.
Um próximo passo deste encaminhamento surge na esteira da discussão
sobre a maquinização do homem e do pensamento, já apontada aqui. Os
escritórios, com seus arquivos em Wolfsegg, não apenas eliminaram a
expressão do rosto do pai, mas esta forma se espraia por toda a Europa, por
todo o mundo: “Millionen sind von Leitzordnern beherrscht [...]. Bald wird ganz
Europa von den Leitzordnern nicht nur beherrscht, sondern vernichtet sein.”
(AUS, 606). Decisivo para a argumentação em curso, porém, será o modo
como a literatura entra neste jogo de forças. Ao comentar a literatura de
mestres como Thomas Mann e Robert Musil, dirá:
270
R. Kurz, Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 4/4/1999, p. 5.
230
Selbst die Literatur der Deutschen ist eine von den Leitzordnern unterdrückte,
habe ich zu Gambetti einmal gesagt. [...] Es ist eine lächerliche Büroliteratur, die
von Leitzordnern diktiert ist, [...] Wenn wir diese Literatur lesen, sehen wir, wie sie
ein Beamter schreibt, [...] dem im Grunde und letzten Endes doch nur die
Leitzordner die Feder geführt haben. (AUS, 607-8).
A única exceção é Kafka: “Der Angestellte Kafka, habe ich zu Gambetti
gesagt, hat als einziger keine Beamten- und Angestelltenliteratur geschrieben,
[...].” (AUS, 608) O processo em curso não deixa margem para dúvidas: o único
escritor que efetivamente vivia sob o jugo da forma da burocracia, como
funcionário, não se submeteu a esta forma, escrevendo uma grande literatura.
Os outros, por assim dizer, entregaram-se a esta forma burguesa, na visão do
narrador Murau, mesmo quando não o percebiam. Por assim dizer, dentre
estes grandes do espírito, os verdadeiros donos do “capital espiritual”
(Geistesgut) e que vivem de vender este capital como cultura, Kafka seria o
único que não viveu como realização, ou mesmo como promessa, o sistema
como ele funciona, mas o expressou. Noutras palavras, e que quase no
mesmo, não se pode chamá-lo de um escritor profissional, no sentido de viver
de seus escritos, muito embora vivesse para seus escritos, o que é bem
diferente.
A literatura aparece aqui como historiografia inconsciente, sendo a forma
literária expressão da forma social. No contexto em questão, em que as
mercadorias ascendem a sujeito, quem escreve estes livros são os próprios
fichários, ou noutras palavras, a forma que subjaz às relações em sociedade. O
homem torna-se mero instrumento desta forma inescapável, posto que total.
estão Thomas Mann, Robert Musil, os maiores, segundo Murau, que escrevem
uma literatura pequeno-burguesa de repartições públicas (kleinbürgerliche
Beamtenliteratur), Kafka como exceção. Desta feita, as mudanças que ocorrem
na economia e na política também se dão no âmbito da estética.
Esta literatura, no entanto, é autêntica dos nossos tempos, como frisa
Murau, o que corrobora com o que disse: a forma literária, nos bons autores,
faz jus à forma social, e se uma está degradada, a outra necessariamente
também estará. Nas palavras de Murau, uma literatura que, tomada como todo,
estaria relegada ao lixo da história da literatura. “Andererseits ist diese heute
geschriebene Literatur die unsrige, habe ich zu Gambetti gesagt, und wir
231
werden, ob es uns paßt oder nicht, mit ihr leben müssen, weil wir uns ihr
verschrieben haben, [...].” (AUS, 609)
Dadas estas considerações, é conseqüente que Murau não se veja como
um escritor, e busque uma outra forma de enquadrar sua atividade, como quem
procura um caminho de atualizar esta tradição, relendo-a a contrapelo. O final
do século XX apresenta as condições materiais propícias a isso, visto que as
diversas crises que testemunhamos obriguem-nos a um pragmatismo que
exclui reviravoltas retóricas muito elaboradas: numa palavra, a totalização
negativa que faz de todos, mesmo escritores e membros de universidades,
meros produtores, em quase nada distintos dos produtores de sabonetes.
A respeito do mundo universitário, por sinal, Murau identifica uma febre de
títulos acadêmicos no mundo, e seriam eles, e não as pessoas, que
conversariam entre si; assim se reproduz no âmbito da cultura e da ciência a
relação social fundamental de Marx em O Capital, dizendo que as mercadorias
travam relações sociais entre si, no lugar dos homens. Esta relação é
fundamental, tanto para entender o pai aristocrata quanto a mãe, o cunhado, o
príncipe da igreja Spadolini, chegando aos acadêmicos, sejam bacharéis ou
professores, e aos escritores. Em suma, a totalização acima mencionada é
negativa por não servir à maioridade do ser humano, mas ao seu esvaziamento
completo. Neste contexto, nada mais justo do que afirmar:
Ich bin já nicht eigentlich Schriftsteller, habe ich zu Gambetti gesagt, nur ein
Vermittler von Literatur und zwar der deutschen, das ist alles. Eine Art literarischer
Realitätenvermittler, habe ich zu Gambetti gesagt, ich vermittle literarische
Liegenschaften sozusagen. (AUS,
615
).
Um trecho curto, mas com implicações das mais significativas. Em
primeiro lugar, Murau coloca-se como um mediador, e isso remete à necessária
mediação da literatura, num cenário onde parece não haver mais mediações,
visto que todos os interesses tornam-se escancarados, abertos, posto não
haver nada a contrapor ao pensamento one-way que vigora no neoliberalismo;
por outra, com a naturalização e quase deificação do mercado, todo o resto
torna-se ninharia, conseguindo-se uma justificativa que soluciona todos os
problemas, dos materiais aos ideológicos. Murau qualifica-se como um
232
mediador, e essa mediação realiza-se pela literatura: não por acaso Murau é
concebido como um personagem de linguagem, o que configura a estética
como um campo privilegiado para pensar sobre a forma social, uma vez que
ele e Gambetti visam o todo (leia-se, a forma social totalizada) pela mediação
literária.
O que ele medeia, literatura, não é nada mais que uma propriedade, em
termos de terrenos literários, com o que se coloca como uma espécie de
corretor de imóveis; nada do glamour esperado pelo artista das belas-letras.
271
Neste sentido, Murau precisa cobrar caro por suas aulas, sem o que os pais de
Gambetti sequer permitiriam seus encontros: sem que haja a relação
fundamental mediada pelo dinheiro, tudo se torna suspeito. Murau como um
mediador torna-se forma pura, o que faz jus à grandeza deste personagem
esvaziado, que se constrói como linguagem pela passagem pelos outros e sua
subseqüente extinção. O ponto de vista da morte ainda aponta para o
aniquilamento físico do personagem, que nos lega o texto Auslöschung: do
mesmo modo como se coloca como um mediador para Gambetti, também o é
para os leitores.
Quanto à mediação pela literatura como caminho para perscrutar a
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233
emancipação.
272
234
esta linha enquadra-se o discurso do Bundeskanzler Vranitzky, em 1993, em
Israel, falando da co-responsabilidade de alguns austríacos nas atrocidades
nazistas, mas negando qualquer responsabilidade do Estado Austríaco.
Citando: “Er [Bundeskanzler Vranitzky] sprach von ‚unserer Mitverantwortung
für das Leiden, das nicht Österreich da der Staat ja nicht mehr existierte –,
aber einige seiner Bürger anderen Menschen und der Humanität zugefügt
haben.”
275
Com isso Vranitzky pretendia fugir da responsabilidade de arcar com
custos de reparações de guerra, como a devolução de bens confiscados no
período nazista, entre outras questões ainda pendentes. Menasse cita um
discurso parecido, de 1988, no parlamento austríaco: “Es habe eine Mitschuld
gegeben aber nur von seiten einzelner Österreicher, jedoch nicht von seiten
Österreichs”. E comenta Menasse: “Mit anderen Worten, es bleibt dabei:
Österreich war ein Opfer”.
276
A proposta de politizar a estética de Bernhard, explícita como tema neste
ponto em Auslöschung, e presente como forma da escrita em nível profundo,
ainda tem como objetivo criticar uma outra politização da estética, negativa e
maléfica, levada a cabo para conseguir vender (o verbo vem bem a calhar) a
Áustria como um país de cultura milenar e fundamental. Essa campanha, que
culminaria na devolução da autonomia política à Áustria no pós-guerra, fez do
Ministério da Cultura um dos pontos nevrálgicos da política austríaca, seja
interna ou externa, entregando-se à classe artística cargos públicos bem
remunerados, o que os fez conservadores e reacionários, como Bernhard
tematiza em Holzfällen. Além disso, uma espécie de “vocação turística” poderia
ser acesa com o reforço da Áustria como um dos pilares da cultura européia e,
até mesmo, como seu centro: uma vez que, como escreveu Broch, nos séculos
17 e 18 Viena rivalizava com Paris como centro cultural da Europa.
277
Esta
“vocação”, dada a decadência do Império Austríaco e de Viena, ao longo do
século XIX e pelo XX adentro, ganha aspecto de museu a céu aberto, como
visto na citação de Broch no capítulo 1.
275
Em J. Haslinger, op. cit., p. 12.
276
R. Menasse, Das war Österreich, p. 35.
277
“Während des 17. und 18. Jahrhunderts waren Paris und Wien die Machtzentren des
europäischen Kontinents, und die Rivalität zwischen die Häusern Bourbon und Habsburg war
die Achse, um die sich die Weltpolitik dreht”. H. Broch, Hofmannsthal und seine Zeit. Eine
Studie, p. 50.
235
Se em Auslöschung temos em Wolfsegg e em sua história uma alegoria
da Áustria, não poderia haver melhor caracterização do todo como uma grande
peça de teatro, o que sem dúvida recebe o aval do narrador Murau, que se vale
da metáfora teatral para alocar as relações entre seus familiares. O enterro,
antes de mais nada, é colocado como um teatro, no qual Spadolini e o próprio
narrador ocupam os papéis principais, cabendo a direção à irmã Caecilia:
Murau se preocupa com os mínimos detalhes da preparação deste grande
espetáculo barroco, uma espécie de dança da morte, sendo mais criterioso do
que a mãe o seria, ao perceber detalhes da posição das bandeiras e cantos
sujos, que deveriam ser limpos. Não custa lembrar que, com Broch, no período
barroco, a Áustria ainda era o centro da política e da arte européias. O próprio
título Auslöschung. Ein Zerfall alude à Queda (Verfall) de Broch, em termos de
uma degradação que leva às ruínas.
A politização da estética visando a construção de uma imagem
internacional e este elemento musealizado visando o turismo impedem que a
arte contenha alguma centelha crítica e a traz como justificativa das relações
existentes, como pátina a cobrir e sufocar qualquer atualização, seja histórica
ou estética, e contra este estado de coisas se posiciona Bernhard. Em
Auslöschung este quadro se completa na figuração da Áustria como um grande
negócio:
Ganz Österreich ist zu einem skrupellosen Geschäft geworden, [...] Sie glauben, in
ein schönes Land zu reisen und reisen in Wahrheit und in Wirklichkeit in ein
pervers geführtes Geschäftshaus. (AUS, 117). Zuerst hat es so als hätten die
Kriege unsere Städte und unsere Landschaften ruiniert, aber mit einer viel
größeren Gewissenslosigkeit sind sie in den letzten Jahrzehten von diesen
perversen Frieden ruiniert worden, von der skrupellosen Geschäftmacherei der
Mächtigen,[...] (AUS, 115).
Interessante notar que posições semelhantes são ventiladas em
Holzfällen, e a relação entre a cultura, ou os grupos que controlam a política
cultural austríaca, são associadas à devastação, tanto das cidades quanto dos
campos, como também da degradação social, com o uso enganador da nobre
palavra Socialismo (Ehrenwort Sozialismus) (AUS, 118), que faria seus
idealizadores se revirarem em seus túmulos. A posição do autor Bernhard,
236
externada em entrevistas e em artigos para jornais, sejam encomendados ou
enviados para as seções de carta dos leitores, se alinha à lida no romance, o
que complica ainda mais a separação estrita entre literatura e sociedade; quem
é o autor Bernhard, afinal? Minha resposta, embora enseje mais perguntas que
respostas, é a seguinte: como se viu, Bernhard cria-se como personagem de
si mesmo, ocupando diversos espaços e incitando o debate, não deixando
nítida a separação entre ficção e não-ficção, entre autor e personagem.
Reforça, assim, seu estatuto de construção estética, mesmo como autor, o que
o atesta como uma mercadoria com posicionamento de mercado, firmando-se
como uma marca registrada que vende propriedades literárias. Almeja algo
diferente com isso, embora não saiba ao certo o quê, mas conhece um
pressuposto para esta mudança, o que divide com Gambetti, “der immer alles
wissen will auf dem Weg über die deutsche Literatur, [...]” (AUS, 512):
Gambettis Aufmerksamkeit, ja Faszination ist die größere, wenn ich ihm sage, wie
die Welt in meinem Sinne zu verändern wäre, indem wir sie ganz und gar radikal
zuerst zerstören, beinahe bis auf nichts vernichten, um sie dann auf die mir
erträglich erscheinende Weise wieder herzustellen mit einem Wort, als eine
vollkommen neue, wenngleich ich nicht sagen kann, wie das vor sich zu gehen hat,
ich weiß nur, sie mzuerst völlig vernichtet werden, [...] als wenn ich Gambetti
den Siebenkäs in die Hand drückte und ihn bitte, mir dann, am Ende der Lektüre,
den Siebenkäs betreffende Fragen zu stellen. (AUS, 209)
Eis o caráter explosivo desta destruição, de uma vez por todas, e
completa, do mundo, e não apenas de Wolfsegg; em outras palavras, em
extinguindo Wolfsegg, o mundo está sendo extinto, e isso se pelas
perguntas surgidas na discussão sobre literatura.
Mas o aspecto central e decisivo desta passagem diz respeito à forma da
reconstrução, que se faz com uma palavra (mit einem Wort), ou seja, pela e na
linguagem, o que retoma a força da palavra como criadora da realidade, até
mesmo como redentora e salvadora. Uma palavra não instrumental nem
autônoma, mas social e, por que não, utópica. Não se pisa o terreno da religião
e da palavra divina, mas o chão da palavra socialmente viva, liberta da
instrumentalidade castradora, que não espelha, representa ou mimetiza a
realidade e a verdade, mas a constitui e, ainda, pode transformá-la. A palavra
237
atinge estatuto histórico e contém carga explosiva; um centro para o qual as
linhas de força desta Auslöschung se dirigem, e de onde podem explodir para o
Novo: isto leva ao capítulo seguinte, sobre a concepção e o papel da
linguagem no romance.
A caminho da redução à linguagem e sua explosão na história
Oliver Jahraus tece um bom argumento sobre o papel dos personagens
na obra de Bernhard, que serve para reinterpretar a frase em que o autor se
auto-intitula um Geschichtenzerstörer. Segundo ele,
238
estanca neste, chegando necessariamente ao nível da linguagem. Pois este
processo conduz à linguagem artificial criadora como estação derrradeira, o
que ganha expressão definitiva na metáfora presente em seu romance de
estréia, Frost, quando o narrador caracteriza o pintor Strauch como se este
fosse em alguns momentos não uma pessoa, mas se reduzisse a “farrapos de
linguagem” (Wortfetzen: FRO, 214), com o que define não o estatuto deste
personagem, mas de quase toda a galeria dos personagens de Bernhard.
Ulrich Weinzierl chama os personagens de Bernhard, tendo em vista sobretudo
Murau, de “personagens de fala” (Sprechfiguren), e neste ponto acerta em
cheio
279
. Este processo prima pela concentração na escuridão, e dela surge a
luz que será focada sobre um único ponto
280
. Neste palco não surgem apenas
personagens, mas prioritariamente a linguagem mesma, mediação insuperável
que Bernhard não como um problema, mas como o campo por excelência
de toda criação, de atualização histórica e pressuposto para o “Novo”. De modo
que Murau não tem uma psicologia definida, mas ganha corpo lingüístico,
diga-se de passagem – nesta dinâmica aniquiladora.
In der Finsternis wird alles deutlich. Und so ist es nicht nur mit den Erscheinungen,
mit dem Bildhaften es ist auch mit der Sprache so. Man msich die Seiten in
den Büchern vollkommen finster vorstellen: Das Wort leuchtet auf, dadurch
bekommt es seine Deutlichkeit oder Überdeutlichkeit.
281
Aqui se somam as metáforas do teatro com as características próprias da
concepção da linguagem como mediação irredutível. O que sobe ao palco são
figuras construídas pela e como linguagem, no limite a própria língua. Deste
modo, estas Sprechfiguren são antes marcadas pelo seu aspecto de língua
(Sprache) do que de personagens (Figuren), sendo, ao fim e ao cabo, tanto
uma coisa quanto outra, uma imbricação constitutiva para a poética de
Bernhard. Murau será antes construído por discursos e por palavras,
esteticamente, do que irá controlar estas instâncias. A imagem é expressiva: no
279
U. Weinzierl, Bernhard als Erzieher. Thomas Bernhards Auslöschung”, em P. M. Lützeler
(org), Spätmoderne und postmoderne, p. 192.
280
Uwe Betz dirá, com razão: “Finsternis als literarisches Verfahren meint Reduktion oder
Minimalisierung, Konzentration auf das Wort”. Polyphone Räume und karnavalisiertes Erbe, p.
217.
281
T. Bernhard, “Drei Tage”, em Der Italiener, p. 82. Entrevista concedida ao diretor Ferry
Radax no verão de 1970.
239
palco vazio as palavras se iluminam e se tornam nítidas, ou mesmo nítidas em
excesso (Überdeutlichkeit): “Es ist ein Kunstmittel, das ich von Anfang an
angewendet habe.”, dirá Bernhard imediatamente a seguir na entrevista em
questão. Com Schmidt-Dengler, ainda mais dentro da perspectiva deste
trabalho: “Bernhards Figuren, diese Wörtermenschen, werden somit zu
übermalten Allegorien, bei denen Sprechen einer Destruktion gleichkommt.”
282
Entender a criação destes personagens de fala sob o signo da alegoria
cabe sobretudo à concepção íntima do romance Auslöschung, como se verá,
embora Schmidt-Dengler mire em Frost, romances que não apenas neste
sentido podem ser postos lado-a-lado. (Veja que a perspectiva alegórica não
encontra o mesmo respaldo para o estudo de Holzfällen, um romance bem
diferente). E não só: a equação “fala = destruição” ajusta-se bem a
Auslöschung, onde o todo do texto escrito deve realizar a extinção de tudo,
especialmente do próprio texto.
Na perspectiva desta redução à linguagem, é sintomático que haja duas
instâncias narrativas no romance, tema dos mais importantes e central para
este capítulo. E para evitar enganos: se Murau aparenta ser mais
consciencioso do que o narrador de Holzfällen, isto se constitui mais numa
armadilha deste ponto de vista do que num abrandamento dos afetos; o leitor
não está imune, ele também, a este processo de incorporação e aniquilamento
operado por Murau, uma espécie de casmurro austríaco, latifundiário que se
quer moderno e justo em suas avaliações, praticando uma auto-extinção em
todas as instâncias narrativas, mas que também faz reproduzir todos os
discursos e métodos que, mesmo negados, o constituem e são assumidos por
ele.
282
W. Schmidt-Dengler, “Zurück zum Text. Vorschläge für die Lektüre von Frost”, em Der
Übertreibungskünstler, p. 190.
240
2. A linguagem em Auslöschung: concentração na palavra e
irrompimento da história
Como já foi visto a respeito de Holzllen, a linguagem ocupa um papel de
destaque na prosa de Thomas Bernhard. Este espaço privilegiado da
linguagem e de sua concepção atingem seu cume em Auslöschung, onde se
discute, desde o início, o processo de escrita do próprio texto. Este processo
deriva da concepção de linguagem como história condensada e, ainda, como
lugar privilegiado para se entender a bárbarie da cultura. Deste modo, nada
mais defensável do que entrar pelo romance por este aspecto que, penso,
conduz sem rodeios ao ponto nevrálgico da composição formal deste romance.
Estamos longe de uma musicalidade auto-referente e hedonista.
Logo na segunda página do livro, diz Murau:
Die deutschen Wörter hängen wie Bleigewichte an der deutschen Sprache,
sagte ich zu Gambetti, [...]. Das deutsche Denken wie das deutsche Sprechen
erlahmen sehr schnell unter der menschenunwürdigen Last seiner Sprache, die
alles Gedachte, noch bevor es überhaupt ausgesprochen wird, unterdrückt; unter
der deutschen Sprache habe sich das deutsche Denken nur schwer entwickeln
und niemals zur Gänze entfalten können im Gegensatz zum romanischen Denken
unter den romanischen Sprachen, wie die Geschichte der jahrhundertlangen
Bemühungen der Deutschen beweise. (AUS, 8).
Este curto trecho mostra as chaves em que a linguagem será tratada
em Auslöschung. Antes de mais nada, Murau tematiza, em termos de
conteúdo, aquilo que realiza em termos formais, o que se reduz mesmo a uma
mesma palavra ou frase, como se verá. Admitido este movimento interno e
proposital desta obra, que dificulta uma separação, mesmo que didática, entre
forma e conteúdo o que, de quebra, havia sido notado como parte de seu
projeto estético de provocação, com seu ponto alto e formalização em
Holzfällen – não deixarei nada sem consideração.
Em primeiro lugar note-se que o narrador encontra ensejo para discutir a
dificuldade de se expressar em alemão logo no início da narrativa. Em segundo
lugar, o uso de Bleigewicht como metáfora para as palavras alemãs conduz a
dois caminhos, ambos pertinentes. Por um lado, a figuração e materialização
241
desta linguagem, que perde a sua altura sistêmica e metafísica e ganha corpo,
corpo este que não nega a aspiração à uma aproximação da idéia pelos
conceitos, mas assinala este projeto como fracassado e, ainda, falso no
contexto atual. Por outro lado, o peso de chumbo da língua pressiona o
pensamento para baixo, reprime, bloqueia e trava o seu desdobramento. A
língua torna-se pesada, peso formado sobretudo pela história sedimentada. A
“história secular” do esforço alemão provaria e evidenciaria esta
impossibilidade, e na seqüência Murau contrapõe a língua alemã às línguas
românicas.
Em última análise, palavras associadas ao nazismo (para ficar num
campo semântico caro ao livro) como Vernichtungslager, o prenome Adolf e
mesmo a estrofe Deutschland über alles foram banidas ou, no mínimo,
reprimidas do vocabulário alemão – mas não, a julgar por este romance, de sua
dicção, mesmo que abafada. O peso da história verga o projeto racionalista e
idealista até a irreconhecibilidade, a julgar por esta passagem, e impede que se
descreva ou narre à distância. A crítica à tradição, sempre suspeita de se
arvorar em mitologia, e mesmo a recusa à argumentação analítica, substituída
por uma escrita afetiva e afetada, agressiva, que não recua diante dos tabus e
incita o escândalo, constituem mesmo uma crítica ao racionalismo operada
pela forma de sua escrita e, deste modo, apontam para o teor de verdade do
romance. Na passagem acima citada, Murau leva esta discussão para a própria
concepção da linguagem, o que irá além de mero tema nas próximas ginas.
Fica claro que o trato da linguagem no contexto histórico-cultural da língua
alemã – que inclui a Áustria – não pode se abster de incluir a história, e mais: a
possiblilidade de narração e o modo de realizá-la transformam-se no centro
organizador deste romance.
Mesmo a comparação com as línguas românicas, e a sua propalada
leveza, que remete a tempos clássicos outros, não deve fazer com que estas
línguas românicas sejam vistas como modelo de sucesso. Antes servem aqui
como o outro que, negativamente, fala do idêntico, ou seja, da língua alemã.
Não se deve procurar um julgamento positivo destas línguas e culturas, elas
entram como contraponto, como oposição, como fronteiras que dizem respeito
242
prioritariamente ao que a língua alemã não articula
283
. Esta incorporação do
outro tem, no narrador centralizador e tonificador das vozes, a sua formalização
mais bem-acabada, o que não se apenas neste romance de Bernhard, aqui
sui generis pela perspectiva dupla do narrador, que se posiciona tanto em
primeira como em terceira pessoa, num entrelaçamento que não se restringe à
alteração de perspectiva ao longo da narrativa, mas se estende ao
imbricamento das duas perspectivas, num jogo contínuo. A identidade
construída negativamente e que, na negação do outro, não se forma, é típica
deste romance feito de desmoronamentos, de “descriações”.
Voltando à citação do início desta seção, a língua alemã nunca pode se
desdobrar e atingir a totalidade, die Gänze. Aqui segue um topos romântico, da
impossibilidade de se atingir o absoluto, mas a ênfase não recai na aspiração
deste alcance e o papel da crítica no processo de aproximação deste absoluto,
inatingível porém projetado em termos teleológicos, centrando seus esforços
na historicidade deste processo e, daí, na falsidade e mesmo absurdo deste
projeto
284
. A crítica da e pela língua está em primeiro plano, como para os
românticos, mas o absoluto como teleologia é substituído pela releitura da
história e da história dos conceitos, como afirma Gagnebin ser o caminho
mesmo de Walter Benjamin
285
.
A concepção de linguagem aqui
esboçada encontra respaldo nas
283
Roma e os romanos serão valorizados na narrativa não por sua clareza, mas por ali os
contornos da forma social contemporânea estarem mais à mostra. O barulho do trânsito de
Roma, o caos da cidade,as greves dos trabalhadores, a possibilidade aberta pelos comunistas
no poder a faz centro do mundo. Ou seja, não se trata de uma tradição melhor que a alemã,
mas da mesma forma social e da mesma crise, que se expressa diferente.
284
Uwe Betz comenta que Zelinsky, que já em 1966 analisara Amras sob as luzes do
romantismo, destaca uma diferença fundamental em relação a Novalis, pois o mal (doença,
morte) não era mais visto como um passo necessário para se chegar a uma vida mais elevada,
pois os heróis de Bernhard colocavam seu mundo futuro nas profundezas, na escuridão, das
quais não saída. U. Betz, Polyphone Räume und karnavalisiertes Erbe, p. 118. E continua,
na página 130: “die Schwierigkeit des frühen Texten Bernhards besteht darin, dass sie gegen
Prätentionen des Transzendenz gerichtet sind, aber dennoch wirken, wie wenn sie dem
logologischen Fragment16 von Novalis nachempfunden wären”.
285
“O que sobra pra nós, bisnetos do romantismo alemão, desconstrucionistas,
construcionistas, estruturalistas e outros? [...] Talvez nossa questão hoje não seja mais a
relação entre crítica e absoluto, mas sim, muito mais, entre crítica e historicidade. (aliás,
historicidade da crítica entre outras). Uma das chaves de leitura da obra posterior de Benjamin
me parece constituir na verificação desta hipótese”. J. M. Gagnebin, “Nas fontes paradoxais da
crítica literária. Walter Benjamin relê os românticos de Iena”, em Márcio Seligmann-Silva (org),
Leituras de Walter Benjamin, p. 78.
243
considerações de Mikhail Bakhtin, que
destaca a vida da língua e o espaço que
abre para embates ideológicos entre
diversas visões de mundo e de sociedade:
(...) as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É
portanto claro que a palavra sesempre o indicador mais sensível de todas
as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que
ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas
ideológicos estruturados e bem formados.
286
.
A palavra, como indicador mais
sensível das transformações sociais que
ainda não tomaram forma, tem papel
significativo na escrita de Bernhard, como
se depreende do ensaio de Bachmann e,
ainda, será formulado como segue em
Prießnitz: bernhards prosa versteht sich
als beschreibung, aber man erfährt – selbst
durch kursive setzung nicht, als
beschreibung für was.
287
O sistema
ideológico dominante, no entanto, fará de
tudo para conseguir que a língua não
apareça como social e historicamente
determinada, mas sim como
aparentemente conotativa e clara, mero
instrumento. Parte da lingüística moderna,
tributária de Saussure, segue os
ensinamentos do genebrino e deixa de
286
M. Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 41.
287
R. Prießbitz, “Thomas Bernhard”, em A. Botond (org), Über Thomas Bernhard, p. 129.
244
lado a fala (Parole), preocupando-se
sobretudo com a Língua (Langue), aqui
reduzida à uma abordagem sincrônica e
sistêmica. Ao diacrônico se reservaria o
secundário papel de inserir neste sistema
mudanças graduais e lentas, deixando de
lado a dinâmica feroz das disputas
históricas e ideológicas, que se dão no
interior do signo, sempre dialógico. Neste
sentido conceitos como o de Liberdade e
Democracia puderam ganhar os contornos
que assumem quando proferidos por
figuras públicas, em que servem como
245
(entendida como mero instrumento) quanto
as concepções sticas, essencialistas da
linguagem.
288
A palavra dos homens não
se reduz a instrumento vazio de
determinações ideológicas que transmitam
verdades factuais, nem pode almejar
alcançar a linguagem divina.
Isto reforça a posição de Bakhtin, para
quem não se pode pensar em arbítrios
pessoais ou sistêmicos, pois o signo
nasce no espaço interindividual. Na
medida em que os índices sociais de valor
chegam à consciência individual, eles se
tornam índices individuais de valor, cuja
fonte, entretanto, não se encontra na
consciência individual.
O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes (...) Na
verdade, é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo
e móvel, capaz de evoluir. (...) Mas aquilo mesmo que torna o signo
ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de
deformação do ser. A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico
um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de
ocultar a luta dos índices sociais de valor que se trava, a fim de tornar o signo
monovalente
289
.
Não se discute a pertinência de termos
como classe dominante, hoje: pretende-se
sublinhar a tentativa de se abafar e ocultar
a luta dos índices sociais, a própria
288
M. Seligmann-Silva, Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica literária, p.
81-90.
289
M. Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 46.
246
história do desenvolvimento e das
mudanças na língua, substituindo-o por
um signo monovalente. Contra esta
perspectiva, tão pregnante em tempos da
informação nua e crua dos jornais, com
sua objetividade fabricada, posiciona-se a
linguagem em Bernhard, o que ganha
tratamento tanto formal quanto temático
em Auslöschung. Mais ainda: “Die Sprache
bildet mit ihren Mitteln das auf der
Inhaltsebene Gesagte nach bzw. setzt
Signale, die die Interpretation des
Gesagten in eine bestimmte Richtung nahe
legen.
290
Esta a fórmula cunhada por
Betten para tratar da relação entre forma e
conteúdo, de modo que o tema não
interesse pelo que é, mas pela sua
realização na forma, que aponta para a
verdade da obra de arte. Neste mesmo
texto, Betten cita Eyckeler, resumindo, de
modo lapidar: Die Form vollzieht, wovon
inhaltlich die Rede geht.
O peso de chumbo das palavras e a
impossibilidade do pensar gerada pelo
travamento da língua não deixam dúvidas
sobre a proximidade desta concepção de
linguagem, adaptada ao espaço austríaco,
290
A. Betten, “Thomas Bernhard unter dem linguistischen Seziermesser”, em M. Huber e W.
Schmidt-Dengler (orgs), Wissenschaft als Finsternis?, p. 189.
247
o que será desenvolvido ao longo do
romance. Esta adaptação ao espaço
austríaco da linguagem encontra respaldo
na dicção austríaca de Bernhard que,
questionado numa entrevista em 1983
sobre a existência de uma literatura
especificamente austríaca, responde: “Das
ist gar keine Frage. Nehmen Sie die
Aussprache, die Sprachmelodie. Da gibt es
schon einen wesentlichen Unterschied.
Meine Schreibweise wäre bei einem
deutschen Schriftsteller undenkbar, und
ich habe im übrigen eine echte Abneigung
gegen die Deutschen.”
291
Na próxima
seção se verá como Robert Menasse
qualifica esta linguagem austríaca do pós-
guerra.
291
T. Bernhard em entrevista a Jean-Louis de Rambures, H. Höller e I. Heidelberger-Leonard
(orgs), Antiautobiografie. Thomas Bernhards Auslöschung, p. 16.
248
A linguagem como uma criança senil
Outra passagem significativa aparece
logo na página seguinte de Auslöschung:
[...] Gambetti [gab mir] [...] wieder eine wertvolle Lektion der Mühelosigkeit
und Leichtigkeit und Unendlichkeit des Italienischen, das zum Deutschen in
demselben Verhältnis stehe, wie ein völlig frei aufgewachsenes Kind aus
wohlhabendem und glücklichem Hause zu einem unterdrückten,
geschlagenen und dadurch verschlagenen aus dem armen und ärmsten.
(AUS, 9)
Novamente, a referência à
Unendlichkeit diz mais da Endlichkeit da
língua alemã do que qualquer coisa sobre
a italiana. Não se trata, em Bernhard, da
crítica da Áustria e dos Alemães como se
esses fossem a representação do mal
sobre a terra, com o que se perderia de
vista a história em atacado, ao se subsumir
tudo à aberração de um povo. A crítica da
sociedade exige que se tome um ponto de
vista propício e representativo de um
contexto específico que, no entanto, faz
parte de um todo e não pode ser
desvinculado deste. Em Auslöschung,
ocupa esta posição o castelo Wolfsegg e a
Áustria.
A situação austríaca conforma um
caso em que os absurdos e contradições
ficam mais expostos e viscerais, donde
249
seu valor heurístico. Numa entrevista em
1985, Bernhard dirá:
Zorn und Verzweiflung sind meine einzigen Antriebe, und ich habe das
Glück, in Österreich den idealen Ort dafür gefunden zu haben. Kennen Sie
viele Länder, wo ein Minister sich extra bemüht, um die ‘Rückkehr in die
Heimat’ eines SS-Offiziers zu begrüßen, der für den Tod tausender Menschen
verantwortlich war? [...] Ja wirklich, wenn dieses Land sich ändern sollte,
bleibe mir nichts anderes übrig, als auszuwandern.
292
Trata-se de um valor relativo e não
absoluto, e a dinâmica das ambigüidades,
escalações, contradições e paralelismos
que caracterizam sua escrita tornam
relativas as asserções categóricas que
perpassam a obra, mas que não se
sustentam. Antes da preocupação com
cada fala e asserção, vem a dinâmica do
processo de escrita e de pensamento, o
que fica bem claro no texto de
Laederach
293
, que privilegia a dinâmica e o
292
T. Bernhard em entrevista a Jean-Louis de Rambures, H. Höller e I. Heidelberger-Leonard
(orgs), Antiautobiografie. Thomas Bernhards Auslöschung, p. 17. Bernhard se refere ao
escândalo Frischenschlager-Reder, que atingiu dimensões internacionais, com máculas para a
reputação austríaca ainda antes do escândalo Waldheim. Walter Reder foi um comandante das
Waffen-SS nazistas na Segunda Guerra, tido por principal responsável pelo massacre de 1800
pessoas em outubro de 1944, perto de Bolonha, na Itália. Depois de ter sua pena na Itália
comutada de perpétua para libertação em 1985, chega em 24 de janeiro deste ano no
aeroporto de Graz-Thalerhof, onde será recebido com um aperto de mão pelo ministro da
defesa austríaco Friedhelm Frischenschlager (FPÖ Partido Liberal), o que causou uma crise
no governo de Fred Sinowatz (S Sociais-democratas). Sobre isso, cf. M. Gehler, “Die
Affäre Waldheim”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 2, p.
355-414.
293
J. Laederach escreve: “Die Rezeptionsästhetik tut gut daran, diese Grundierung durch die
unverzichtbaren Bernhardschen Satz- und Themenkatarakte wahruznehmen als die
unbremsbare Dauerdrehung eines Helikopterrotors. Wen kümmert die einzelne Drehung?”,
apud U. Betz, Polyphone Räume und karnavalisiertes Erbe, p. 170. Claro que, para os
cientistas que estudam o vôo, interessa cada rotação da pá; assim pra nós, da literatura, cada
volteio semântico pode ser alvo de atenção, mas não se pode deixar de olhar também para o
todo.
250
efeito do todo e não a prisão a cada
detalhe da composição. Como hermeneuta,
valorizo as duas perspectivas e o jogo
entre elas, mas não é demais lembrar que a
remissão ao todo em Bernhard (e, neste
caso, penso no todo como na obra
integral) desdiz e desfaz a operação
limitada ao caso específico, com
vantagens para a dinâmica geral. A
“caducidade” da língua alemã entra tanto
como caso específico como remete à
concepção geral da linguagem como
histórica e mortal, como se na
alegorização das nguas como crianças,
ambas, o que implica ainda uma juventude
e uma história por vir, não obstante a
caducidade já adquirida da língua alemã.
Na peça Am Ziel, escrita no inverno de
80/81 portanto quase concomitante à
Auslöschung –, a personagem principal
conta de seu filho Richard, morto aos 2,5
anos de idade, que nascera com um rosto
senil, mais do que isso, “primevo
(uralter): Er hatte ein Gesicht wie ein
uralter Mensch / [...] / er hatte ausgesehen
wie ein Greis / unter drei Millionen passiert
das / eine uralte Haut.
294
294
T. Bernhard, “Am Ziel”, em Thomas Bernhard. Stücke 3, p. 294.
251
Esta personagem alegórica une, num
único ser humano, um recém-nascido e um
ancião, numa figura grotesca e horrível,
considerada pela própria mãe uma
aberração condenada à morte. Assim deixa
de ser meramente uma figura de linguagem
e ganha contornos humanos, que ecoam
nesta passagem de Auslöschung, em outro
diapasão, que no entanto incorpora e
atualiza a figura daquela criança, aqui
como linguagem. Não há o momento do
adulto representante da humanidade que
almeja e alcançaria, pela razão, a
maioridade do projeto kantiano. A criança-
linguagem já se curva como uma anciã sob
o peso da tradição e da razão que se
mostram agora em trajes bárbaros e
destruidores. Esta criança caduca está à
beira da catástrofe, resultado dos
processos sociais pelos quais passou e
que a compuseram
295
. Aqui a língua alemã,
nascida numa “casa” (Hause – o castelo
Wolfsegg configura o espaço da criação de
295
O prof. Jost Hermand, em uma Vorlesung (aula) que versava sobre A Era Metternich (1815-
1848) proferida na Universidade Humboldt no semestre de inverno de 05/06, afirma que o
Biedermeier como estética literária tomava como personagens crianças e velhos, fases da vida
em que se renuncia a qualquer ímpeto revolucionário, ao mesmo tempo em que autores do
movimento Junges Deutschland eram censurados. Esta perspectiva não aceitava nem mesmo
a adoção de um receituário conservador, monarquista, como foi em grande medida o projeto de
Grillparzer, preferindo uma literatura absolutamente apolítica. Bernhard toma esta criança e
este ancião e os une numa figura grotesca, e assim remexe e revira criticamente sua própria
tradição, remetendo a este período fundador desta identidade austríaca, a julgar pelo influente
livro de Claudio Magris sobre o Mito Habsburgo na literatura austríaca.
252
uma linguagem, de um discurso, que
Murau procura ‘descriar’ com sua
Extinção) onde foi reprimida e espancada:
verschlagenen.
Neste termo (verschlagenen) se
encerra muito mais do que uma leitura
apressada pode revelar. Em uma palavra
se encontra, em condensação extrema, o
núcleo duro da estrutura da linguagem
neste romance. Em primeiro lugar, este
verschlagenen surge como
conseqüência das pancadas (geschlagen),
apresentando a mesma raiz lingüística. O
termo apresenta-se como o resultado de
um desenvolvimento histórico, um
processo cultural e lingüístico, o que fica
claro pelo “por meio de (dadurch). Em
segundo lugar, o itálico na primeira laba,
verschlagen, acentua o aspecto processual
desta passagem, pois este prefixo ,ver,
neste caso, tem o sentido semântico de
tornar-se, vir a ser. Outra semântica deste
prefixo indica a morte de alguém segundo
o verbo principal, como em Jeden Tag
verhungern Tausend von Menschen”; no
caso em questão, morrer por apanhar
296
.
296
Estes usos e significados foram consultados no dicionário Duden Digital e no Langenscheidt
– Deutsche als Fremdsprache.
253
Ao marcar o prefixo ver, Bernhard
consegue evidenciar o caráter construtivo
da língua, e mesmo aludir à sua destruição
por despedaçamento semântico. A
construção não ocorre apenas pelos
“farrapos de memória”
297
na condição de
temas, mas se expande e encontra seu
campo mais fértil mesmo na linguagem,
chegando mesmo a penetrar o interior de
uma única palavra, quebrando-a como
quem realiza uma fissão nuclear que
despeja uma energia destrutiva e
construtiva acumulada séculos, com
vozes sobrepostas, superpostas,
escondidas, outras fadadas ao silêncio
pela dicção aniquiladora dos vencedores e
da tradição. Fleischmann afirma, numa
entrevista com o autor, que em Holzfällen
ele não poupa nada e ninguém, ao que o
autor emenda: Ergibt sich von selbst, das
ist zwangsweise, aus der Wortexplosion
vielleicht.
298
Esta explosão ainda rompe
com as fronteiras bem cuidadas entre as
disciplinas, e o recurso à figuração
consiste, também, numa maneira de ativar
a língua.
297
“ [...] Möglichkeitsfetzen von Erinnerung [...]” (ATEM, 57).
298
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 95.
254
Este uso do itálico aumenta as
possibilidades semânticas deste adjetivo-
verbo, pois o isolamento do ver libera da
prisão o seu radical e permite, mais ainda,
exige que se joguem com as mais variadas
possibilidades que o prefixo traz consigo,
o que fiz apenas em poucos casos
ilustrativos deste procedimento. Isso
assume, no caso, estatura formal,
apontando para a polissemia e para o
contraste; o ver e o schlagenen têm
registros diferentes, embora estejam
ligados, formando uma palavra. Essa
redução, que pode se resumir a uma
palavra num romance de 651 páginas,
expressa o grau extremo de adensamento
significativo nessa obra, indicando a
concentração quase num único ponto que
caracteriza, de modo fundamental, a
estética de Bernhard.
Pelo processo indicado e realizado
neste parágrafo, o leitor é chamado à baila,
pois a frase se insinua e pede decifração,
mas não a permite, fazendo valer para
Bernhard o juízo de Adorno sobre Kafka. O
itálico mostra o narrador indicando para o
leitor um ponto de destaque, requerendo
sua atenção. Assim procura conduzir a
recepção da própria obra, o que a crítica
255
com acerto não cansa de repetir, e será
estudado em outro lugar. Esta condução
opera de modo complexo e passa pela
diminuição da distância entre a instância
da narração e a da recepção. Embora não
fale com o leitor, Murau indica e aponta,
num gesto rápido, algo que não deve
passar despercebido.
Em resumo, pela semântica mesmo do
termo ‘verschlagenen’ no contexto da frase
e do texto como um todo, chega-se por um
lado a uma criança (a língua) que se tornou
astuta e esperta pelas pancadas
recebidas.
299
Por outro lado, esta língua
aparentemente perde a fala, por mais
paradoxal que isso soe, como na
expressão Es verchlägt mir die Sprache,
cuja semântica ressoa no texto em
questão. Notável o jogo aludido a partir
desta acepção: a “criança” que emudece é
a própria língua; isto não é outra coisa que
sua extinção, seu aniquilamento, que por
este processo de descriação” não deixa
de existir, pelo contrário, procura sua
redenção, numa expressão cara a
Benjamin. Sair da paralisia a que estava
condenada, das cinzas da catástrofe da
história, numa crítica da linguagem que
299
Segundo o dicionário Langenscheidt.
256
tem tradição no âmbito austríaco como,
por exemplo, na Chandos-Brief, de
Hofmannsthal
300
. Deste processo - tanto
em sentido de seqüência como de
julgamento - a língua alemã não sai ilesa.
Silenciar a língua equivale a uma
espécie de destruição que, limpando o
terreno cheio de tralhas, representa o
primeiro passo para se pensar no novo,
com Benjamin: Der destruktive Charakter
kennt nur eine Parole: Platz schaffen.
301
Ora, em 1986, dirá Bernhard numa
entrevista sobre Auslöschung:
Jedes Wort ein Treffer, jedes Kapitel eine Weltanklage und alles zusammen
eine totale Weltrevolution bis zur totalen Auslöschung. Aber was heißt
Auslöschung? Wiederbeginn des Neuen. [...] Wo ein Ende ist, [...] ist auch ein
Anfang.
302
O caráter destrutivo desta
Auslöschung vai da temática à forma do
romance, da palavra agressiva à acusação
mundial o que será isso, senão uma
acusação da forma desta sociedade
capitalista totalizante? Trata-se aqui de
300
“Ich empfand ein unerklärliches Unbehagen, die Worte >Geist<, >Seele< oder >Körper< nur
auszusprechen. Ich fand es innerlich unmöglich, über die Angelegenheit des Hofes, die
Vorkommnisse im Parlament oder was Sie sonst wollen, ein Urteil herauszubringen” H. von
Hofmannsthal, Ein Brief”, em Gedichte und Prosa (Gesammelte Werke), vol. 2, p. 326. Este
texto data de 1902.
301
W. Benjamin, “Der destruktive Charakter”, em GS IV-1, p. 396. Cabe a Hans Höller e a Irene
Heidelberger-Leonard o mérito de aproximar este texto a Auslöschung, no prólogo do livro que
organizaram. Antiautobiografie. Thomas Bernhards Auslöschung, p. 7.
302
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 143.
257
uma total revolução mundial, que conduz à
extinção de tudo, passo necessário para o
novo. uma afinidade enorme entre o
texto de Benjamin e a composição da obra
de Bernhard. Em Benjamin: [...] jedes
Wegschaffen dem Zerstörenden eine
vollkommene Reduktion, Radizierung
seines eignen Zustands bedeutet.(p. 397).
Em Auslöschung a redução leva à
linguagem, que ainda se concentra por
vezes em algumas palavras, que carregam
toda a força deste projeto. Estas palavras,
no entanto, não prescindem do todo para
obter seu significado explosivo, antes
serão reforçados e reafirmados pelo todo.
Como visto, os temas remetem às formas,
a literatura remete à sociedade sem se
resumir a ela –, o autor se torna um
personagem que participa do debate
público. As marcas das fronteiras são
apagadas, e a parte contém o todo: “Jedes
Geschöpf trägt nach meiner Überzeugung
strenggenommen das Gewicht der ganzen
Menschheit”, diz Bernhard na citada
entrevista a Rambures.
303
O ponto de fuga que aponta para o
“Novo”, em Auslöschung, foi encontrado
na obra de Bernhard por Ingeborg
303
Entrevista a Jean-Louis de Rambures, em H. Höller e I. Heidelberger-Leonard, op. cit., p. 14.
258
Bachmann em seu ensaio, mencionado.
Embora Bachmann tenha salientado que,
apesar da precisão com que Bernhard fala
do nosso tempo, ainda não sabemos
avaliá-lo, posto que ainda não conhecemos
a nós mesmos, percebe-se o Novo
insinuando-se por meio do sonho de
Murau, dos desejos de Gambetti e da
caracterização da explosiva Roma como
centro do mundo, culminando na
afirmação de Murau de que o mundo da
virada do milênio seria irreconhecível.
Tudo isso passa formalmente por uma
nova dicção, sintaxe e processo de
desmoronamento e destruição (o subtítulo
diz Ein Zerfall), que está,
indissoluvelmente, ligado ao novo e não o
priva da história pelo contrário,
pressupõe e exige sua atualização.
Por este caminho chego a Robert
Menasse e à sua análise da Segunda
República Austríaca (com início em 1945),
que não deixa vidas quanto à
pertinência desta discussão em solo
austríaco.
304
Antes uma questão de ordem:
o curso dos acontecimentos que serão
apresentados aqui se alinha com a análise
304
R. Menasse‚ “Exposition. Im Anfang war das Neue Österreich. Die Erschaffung des
österreichischen Überbaus”, em Das war Österreich, p. 15-27.
259
de muitos outros historiadores e
comentadores, que serão trazidos ao corpo
do texto no capítulo seguinte, que trata da
escrita da história, quando o quadro ganha
em profundidade (não se limita à Segunda
República) e abrangência teórica (com a
referência de outros autores); por ora,
restrinjo-me ao necessário para a
argumentação deste capítulo.
Após a Segunda Guerra Mundial, era
preciso reencontrar um caminho de
integração e identidade nacionais. Este
caminho impunha a criação de um novo
vocabulário, de uma nova ngua. “Die zwei
prinzipiellen Begriffe, die in Österreich in
der Zeit nach Kriegsende vornehmlich
strapaziert wurden, verraten schon, worum
es ging: “Wiederaufbau” und “Neues
Österreich”.”
305
Esta “reconstrução” no plano
econômico intentava apenas repor o
campo limpo pelo austrofascismo e pelo
nazismo, no sentido de eliminar toda e
qualquer forma de resistência contra o
pleno desenvolvimento da economia
capitalista. Menasse argumenta, de modo
convincente, como esta Wiederaufbau’
305
R. Menasse, “Exposition. Im Anfang war das Neue Österreich. Die Erschaffung des
österreichischen Überbaus”, em Das war Österreich, p. 16.
260
apoiava-se na purificação realizada pelos
austrofascistas e, posteriormente,
encampada e ampliada pelos nazistas,
ambos contribuindo para anular a força
dos trabalhadores, minimamente
organizados (com os acontecimentos de
1933/1934, marcados pela repressão aos
trabalhadores e aos social-democratas na
“Viena Vermelha”, pela proibição dos
partidos políticos Socialista, Comunista e
Nazista, pelo fechamento do Congresso
por Dollfuß
306
) e dos comunistas, criando
regras e leis trabalhistas impossíveis antes
de 34 e que seriam e efetivamente foram
mantidas, o que fez deste “refazer” pura
retórica. Diga-se de passagem que o
historiador Karl Vocelka pontua que até o
atual momento ainda não se procurou lidar
com este passado austrofascista.
307
Por seu turno, Neues Österreich (Nova
Áustria) era uma palavra-de-ordem que
trabalhava no plano cultural (das
superestruturas, no dizer de Menasse), e
tinha como função recolocar a Áustria
numa posição cultural de destaque, para
obter a benevolência da comunidade
internacional leia-se, dos aliados e,
306
Cf. W. Maderthaner, “12.Februar 1934: Sozialdemokratie und Bürgerkrieg”, em R. Steininger
e M. Gehler (orgs), Österreich im 20. Jahrhundert. vol.1, p. 153-202.
307
K. Vocelka, Österreichische Geschichte, p.107.
261
com isso, a anuência para a
independência: a Áustria, como a
Alemanha, estava ocupada pelas tropas
vencedoras. Deste modo, as mudanças
ocorreriam apenas no plano cultural, e
mesmo neste apenas no nível das
aparências, para que econômica e
politicamente tudo pudesse voltar a ser
como antes. Nas palavras de Menasse:
(...) daß vieles sich hatte ändern müssen,
nur damit alles beim alten bleiben
konnte.
308
Nova era apenas a máscara
externa que flertava com a possibilidade da
soberania. Era preciso criar um mecanismo
identitário que livrasse a Áustria do peso
da acusação que a tachava como um
estado colaborador, salvando-a com a
retórica que a punha na condição de
primeira vítima do regime nazista. Paralelo
a isso, as estruturas que remontavam
àquele período eram, paulatinamente,
repostas. Muitos itens da legislação
trabalhista nazista foram mantidos, e no
que diz respeito à obrigatória
“desnazificação” (Entnazifizierung), as
exceções eram a regra, como disse Brecht,
segundo o mote:
308
R. Menasse, op. cit., p. 16.
262
Die Entnazifizierung war ‘prinzipiell’ (Leumund!), aber mit Ausnahmen(im
Sinne des Wiederaufbaus).” E ainda: “Entnazifizierung war keine
Notwendigkeit für den ‘Wiederaufbau’, keine Notwendigkeit für das ‘Neue
Österreichbewußtsein’, sondern lediglich eine Notwendigkeit für die
Wiederverlangung der Souveränität.
309
Assim estava aberto o caminho para o
estabelecimento do Entweder-und-Oder
(Ou-e-Ou, Este-e-Aquele), lógica
subjacente à esta estranha constelação
que será esmiuçada por Menasse noutro
artigo, no qual caracteriza a identidade
austríaca mais arraigada pela falta de
caráter, pela despersonalização. Os
mesmos fantasmas estão de novo
rondando a cena, ou melhor, eles nunca
estiveram ausentes. Não posso me furtar
de transcrever trechos de um poema de
Karl Kraus, com o significativo título de
Franz Joseph, o Kaiser und König, que
reinou de 1848 até sua morte, em 1916,
sobre a Casa dos Habsburgos e imprimiu
seu rosto e feições ao seu tempo:
Wie war er? War er dumm? War er gescheit?
Wie fühlt’ er? Hat es wirklich ihn gefreut?
War er ein Körper? War er nur ein Kleid?
War eine Seele in dem Staatsgewand?
Formte das Land ihn? Formte er das Land?
Wer, der ihn kannte, hat ihn auch gekannt?
Trug ein Gesicht er oder einen Bart?
309
R. Menasse, “Exposition. Im Anfang war das Neue Österreich. Die Erschaffung des
österreichischen Überbaus”, em Das war Österreich, p. 21-22.
263
[...]
Nie prägte mächtiger in ihre Zeit
jemals ihr Bild die Unpersönlichkeit.
310
Não é mera coincidência que esta
forma social da despersonalização se
prolongue para aquém do Imperador Franz
Joseph, que não a criou: vem dos períodos
reacionários do Biedermeier e, para recuar
ainda mais, da Contra-Reforma católica,
que marca o Barroco Austríaco. O
processo de sua efetivação emperra e
encerra o desenvolvimento do idealismo
em sua área de influência. A igreja, não por
acaso, também ocupará papel de destaque
no austrofascismo (1934-1938), a ponto de
Hans Höller caracterizar o golpe de 1934
como uma Segunda Contra-Reforma. Toda
esta carga pesa sobre os ombros fatigados
do narrador Franz-Josef Murau, como não
deve ter escapado a ninguém. Não custa
ainda lembrar que essa despersonalização
também apresenta traços da forma social
capitalista, o que torna o enquadramento
das relações entre as partes e o todo mais
complexo e representativo desta forma
negativamente totalizadora. Trata-se de
uma caracterização por descaracterização,
310
K. Kraus, “Franz Joseph”, em Das Karl Kraus Lesebuch, p. 281. Publicado originalmente em
1920, na revista de Kraus Die Fackel 551.
264
de uma personalidade que se forma pela
despersonalização.
Seguindo esta linha de raciocínio, as
contradições e ambigüidades da dialética
sem síntese da escrita de Bernhard, que
oscila entre a afirmação categórica e sua
subseqüente negação (tão veemente
quanto a afirmação anterior), e que cria
pela “descriação”, não se parecem mais
tão alheias à verdade da forma social:
aproximar-se o mais possível desta
verdade é a obsessão expressa de
Bernhard. Falta de caráter
(Charakterlosigkeit): assim Murau qualifica
o pai, a mãe, o irmão e a si mesmo, todos
filhos desta tradição que, afinal de contas,
serviu pra salvar a Áustria da fúria dos
aliados e, de quebra, abriu as portas para
uma atividade econômica das mais
importantes para o país: o berço de uma
cultura como nenhuma outra.
A metáfora teatral e a cultura austríaca
como principal capital do país marcam a
poética de Bernhard, ancorando-se na
linhagem acima descrita da criação de uma
identidade pacífica, culturalmente elevada,
ordeira e trabalhadora a ética do trabalho
justifica as atrocidades cometidas, na
medida em que cada um teria apenas
265
cumprido seu dever, como aliás, de
quebra, anunciou a plenos pulmões e com
a consciência tranqüila o austríaco por
adoção Adolf Eichmann em Jerusalém. De
modo que esta construção mirava tanto
para fora quanto para dentro. Internamente
visava impedir, entre outras coisas, a
reunião de grupos de interesse sejam
trabalhadores ou agricultores em prol de
um crescimento desenfreado, sem
mecanismos que o emperrassem leia-se,
neste caso, sem mecanismos de controle
democráticos, morosos e custosos, tanto
em dinheiro como em tempo. Em torno
deste projeto (como teatro) uniram-se, à
vontade ou contra ela, todos os setores da
sociedade, o que ganhará formas finais e
sua representação mais fidedigna e
eloqüente nos Grêmios da Parceria Social
(Sozialpartnerschaft). “Dieses System, die
Sozialpartnerschaft, bewirkte, daß alle
gesellschaftlichen und politischen
Widerspüche und Gegensätze mitsammen
identisch wurden (...)”
311
.Todos como
iguais e irmanados no projeto de
reconstrução. O sentimento de união dos
mais diversos setores da sociedade adviria
311
R. Menasse, “Das Land ohne Eigenschaften. Oder Das Escheinen der Wahrheit in ihrem
Verschwinden”, em Das war Österreich, p. 29-120. A citação encontra-se na página 33.
266
da experiência comum de sofrimento sob o
jugo nazista, ao qual todos teriam sido
igualmente expostos: assim se aproximam
social-democratas e nazistas, numa
combinação muito estranha e tipicamente
austríaca
312
.
Faltava, contudo, a realização de um
pressuposto. “Doch zunächst fehlte es an
allem Notwendigen, es fehlten auch die
Worte. [...] Dieses Österreich wieder mit
Menschen zu besiedeln hieß, ihnen eine
Sprache zu geben.”
313
Não demora muito e
recaem no vocabulário nazista, quando se
apegam ao conceito de Povo (Volk) para
articular aquela unidade fabricada deste
conceito de Povo. (Volkseinheit.)
Deshalb das Rekurrieren auf den Begriff, den der Nationalsozialismus, der ja
ebenfalls die Aufhebung der gesellschaftlichen Widersprüche versprochen
hatte immer wieder beschworen hatte: ‘Volk’, worin alle sozialen Gegensätze
einfach semantisch verschwinden.
314
A linguagem de Bernhard revira esta
outra linguagem fundadora, reacionária e
incorporada por esquecimento, de cabeça
pra baixo, empresa que se torna mais
312
Como se na autobiografia de Bruno Kreisky, quando este social-democrata comenta que
esteve preso com nazistas no período do austrofascismo, de onde brotara mesmo uma certa
camaradagem na desgraça. Ver, a esse respeito, artigo de J. Haslinger, “Im Bett von Jörg
Haider”, em Klasse Burschen. Essays, p. 7-17.
313
R. Menasse, “Exposition. Im Anfang war das Neue Österreich. Die Erschaffung des
österreichischen Überbaus”, em Das war Österreich, p.17-18.
314
Op. cit., p.19.
267
madura e pungente nos anos 80, quando o
debate ganha as ruas.
Por este processo, eminentemente
austríaco, delineiam-se as bases sobre as
quais uma discussão sobre identidade
política e cultural age necessariamente
com e por uma determinada concepção de
linguagem e suas artimanhas, manhas e
esperteza (verschlagenen!) A linguagem
não é mero instrumento, mas ela cria estas
verdades e se finge de instrumento, num
processo que “naturaliza” a sua criação
estética, portanto artificial. Advém daí a
necessidade premente de deslocar esta
questão para o primeiro plano, como o fará
Bernhard. O nazismo, que será tematizado
ao longo do romance Auslöschung,
aparece na linguagem formalizado e
cifrado, apontando para a história, tanto
em sua conformação austríaca quanto no
desenvolvimento instrumental da
linguagem no cenário do indivíduo
burguês capitalista. Fleischmann pergunta,
a respeito de Auslöschung, se Bernhard
acredita que tudo será extinto, e ele
responde assim: “Ich meine já nicht das
Universum, nicht einmal die Welt. Ich
meine meine engere Umgebung, und von
der schließt immer auf die Welt. [...]
268
Ausstrahlen, und zwar nicht nur weltweit,
sondern universell.”
315
A chave aqui é a
íntima conexão mutuamente fundadora
entre a parte e o todo.
Em Auslöschung a modernidade
capitalista, o patrimônio cultural austríaco
e o nazismo fazem parte da equação final.
Logo após a notícia da morte dos pais, que
instaura o processo de rememoração de
Murau e estabelece o ponto para onde tudo
conflui, no tempo, no espaço e num
personagem, inicia o narrador seu texto. E
começa pelo contexto e pelas dificuldades
que a sua língua, necessariamente,
empresta à empreitada. Esta língua não
poderia nem será concebida como neutra e
distante, muito pelo contrário, sua
rememoração consiste antes de tudo numa
criação da língua e na língua, e não pela
língua. Mesmo o termo Das Neue remete
negativamente à palavra de ordem Neues
Österreich, de que nos fala Menasse; pois
esta Nova Áustria não tem nada de novo,
antes esconde seu caráter eminentemente
reacionário. A discussão em torno desta
linguagem serve como porta de entrada e
núcleo estruturador da obra. A língua
315
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 142-3.
269
criada que serviu para dar sustentação à
identidade mutilada e deformada da
Segunda República Austríaca, a partir de
1945, será descriada”, o que não significa
aniquilada, por Bernhard, que se esforça
em evidenciar o caráter artificial deste
processo criativo, marcado pelo exagero,
além de expor a materialidade desta língua
e escrita, que como material ideológico
puro (Bakhtin, 1929) faz parte de nossas
trocas com o meio material.
Linguagem, luta de morte e história: princípio de construção de
Auslöschung
A chave para se entender a construção de Auslöschung, que serve como
ponto de partida, pressuposto e estímulo de sua composição pode ser
depreendida da passagem a seguir. A citação longa se faz necessária. O
narrador lembra ter dito a Gambetti, numa conversa dias antes da tragédia, da
beleza do clima e paisagem de Wolfsegg no outono, que faria da região ideal
não fossem as pessoas que lá habitavam, e diz:
Aber ich kann die Meinigen ja nicht, weil ich es will, abschaffen, hatte ich gesagt.
Deutlich höre ich mich diesen Satz sprechen und die Furchtbarkeit, die er jetzt
durch den tatsächlichen Tod meiner Eltern und meines Bruders in sich hatte, ließ
mich diesen Satz, noch immer am Fenster stehend und auf die Piazza Minerva
hinunter schauend, noch einmal laut sprechen. Da ich den damals Gambetti
gegenüber mit der größten Abneigung gegen die Betroffenen ausgesprochenen
Satz Aber ich kann die Meinigen ja nicht, weil ich es will, abschaffen, jetzt ziemlich
laut und geradezu mit einem theatralischen Effekt wiederholte, so, als sei ich ein
Schauspieler, der den Satz zu proben hat, weil er ihn vor einem größeren
öfentlichen Auditorium vorzutragen hat, entschärfte ich ihn augenblicklich. Er war
auf einmal nicht mehr vernichtend. Dieser Satz Aber ich kann die Meinigen ja nicht,
weil ich es will, abschaffen, hatte sich jedoch bald wieder in den Vordergrund
gedrängt und beherrschte mich. Ich bemühte mich, ihn zum Verstummen zu
270
bringen, aber er ließ sich nicht abwürgen. Ich sagte ihn nicht nur, ich plapperte ihn
mehrere Male vor mich hin, um ihn lächerlich zu machen, aber er war nach meinen
Versuchen, ihn abzuwürgen und lächerlich zu machen, nur noch bedrohlicher. Er
hatte auf einmal das Gewicht, das noch keinen Satz von mir gehabt hat. Mit
diesem Satz kannst du es nicht aufnehmen, sagte ich mir, mit diesem Satz wirst du
leben müssen. Die Feststellung führte urplötzlich zu einer Beruhigung meiner
Situation. Ich sprach den Satz Aber ich kann die Meinigen ja nicht, weil ich es will,
abschaffen, jetzt noch einmal so aus, wie ich ihn Gambetti gegenüber
ausgesprochen hatte. Jetzt hatte er dieselbe Bedeutung wie damals Gambetti
gegenüber. (AUS, 17-19)
vários aspectos dignos de nota. Em primeiro lugar, trata-se do horror
de querer suprimir os “seus”, ou seja, sua família, e com isso sua história, pela
língua; desejo que se torna profético em face da morte dos pais e do irmão. A
força da palavra indica seu poder criador, que deixa o âmbito puramente
artificial da ficção e assume estatuto de matéria social. A frase é vista
materialmente, o que será tematizado pela objetividade e distância com que a
pronuncia. Inicia-se uma luta de morte entre Murau e sua frase, que,
desprendida dele, o enfrenta. Esta frase profética se desprende de uma
existência meramente estética, ou instrumental, e se realiza no plano material;
Murau intenta, então, negá-la, ou melhor, aniquilá-la. Por quê este ímpeto toma
conta de Murau?, pergunta-se o leitor. A frase exige uma leitura atenta: ela
expressa tanto o desejo da eliminação dos “seus”, leia-se, passado e
antepassados, bem como a impossibilidade deste projeto. Ele não pode evitar
desejar esta aniquilação, nem tampouco realizá-la; ele quer, pelo menos, não
se sentir culpado destas duas negativas, tentando reconstruir e aniquilar a
própria frase, como se assim pudesse remodelar seu passado a contento.
Luta de morte, no caso de uma extinção como a que está em curso. Mas
as palavras são mais do que ele supôs, realizando verdades formais e
materiais, são atos políticos e sociais que não podem ser menosprezados. Em
seu esforço de guerra Murau passa pelas estações da
teatralização/esteticização da frase, pela violência, pela quebra do signo por
dentro (da relação significante/significado), mas estas estratégias funcionam
num primeiro momento, e cada round a torna mais poderosa, até que ela
domina inteiramente a cena, e torna-se a frase fundamental deste narrador:
271
não pra lutar contra o desejo de extinção nem contra a impossibilidade
deste projeto. Daí que esta extinção será constituída pela entrega ao desejo,
num projeto que, de impossível realização, só se deixa apanhar pela sua
própria extinção, seu desfazer-se, um desmoronar, decompor-se: Ein Zerfall.
Esta criação como descriação” (Abschaffen) opera pelos bastidores do
discurso, da linguagem, que se estende à constituição dos personagens e da
história. Toda a estrutura do livro é sustentada por esta linguagem que envolve
e revolve a história particular e geral, numa nada de conhecimento que se
reduz à palavra, como se em vocábulos como Abschaffen e verschlagenen.
Sua materialização como um combatente numa luta de morte, da qual sai
vitorioso, é sintomática da escrita de Bernhard, alegorizada aqui e que remete
à toda sua prosa. Um projeto que vai de encontro ao desenvolvimento da
dicção da escrita austríaca, a se tomar por Menasse, e insinua-se no debate
público que toma conta dos anos 80 na Áustria. A estética será politizada,
como queria Benjamin, no contexto de seu seqüestro semântico pelos nazistas,
que politizaram a estética a seu favor; o que não se restringe, de fato, à política
nazista.
Neste quadro entende-se porque não é um absurdo supor que Bernhard
concebera esta Auslöschung como um testamento literário, como defende
Mittermayer
316
, o que coloca a seguinte questão: por que Bernhard aceita
imprimi-lo em 1986? A tese de Joachim Hoell, de que havia escrito dois
outros textos em prosa em 1982 e, deste modo, protelava a publicação para
manter o ritmo de um livro por ano, não se sustenta; fosse assim, teria sido
publicado em 1983, e cada livro postergado um ano em sua publicação. Penso
ser mais pertinente atribuir a um amadurecimento do contexto histórico no
sentido de uma necessária altercação com o passado, que se inicia em 1985
com o escândalo Frischenschlager-Reder (já mencionado) e chega ao ápice
com o escândalo Waldheim, em 1986, apressando o momento de sua
realização formal. Tanto o passado como o desejo de extingui-lo restam ativos
e atuantes, e dessa matriz irrompe a perspectiva do romance. Ao narrar a
história pelos bastidores, de certo modo procura desmitificá-la (penso aqui nos
Mitos Habsburgos de Claudio Magris); tanto a exposição da construção e
316
M. Mittermayer, Thomas Bernhard, p. 66.
272
funcionamento deste “mito” como sua negação, mais, recriação, mais ainda,
destruição criativa, tomam pra si o andamento da narrativa. Isto se configura na
voz em terceira pessoa, que remete ao narrador Murau como morto; a
perspectiva desta eliminação/extinção que, não obstante, arvora-se em
pressuposto desta narração, depende da destruição que cria espaços, sendo
expressa por esta instância narrativa em terceira pessoa.
Esta perspectiva, assim, não é fantasmagórica, mas exigida pela forma do
romance, e remete ao próprio narrador Murau, que se insinua pela instância
autoral e duplica o ponto de vista, intentando uma unidade entre autor e obra,
forma social e literária, unidade esta reclamada por Bernhard numa entrevista.
Quando perguntado sobre a distância entre o escritor e o cidadão, o artista e o
homem, dirá Bernhard:
Kunst und Person müssen eine Einheit sein, weil es sonst eben nichts ist. [...] ich
brauch ja zu einem Satz vier bis fünf Wochen immer, bevor ich mich überhaupt
hinsetz, und da überleg ich immer erst dann fang ich den Satz zu schreiben an,
wenn ich weiß, Kunst und Person ist eine Einheit.
317
Voltando ao excerto destacado de Auslöschung, quero acompanhar mais
de perto a sua escrita e seus desdobramentos. A frase Aber ich kann die
Meinigen ja nicht, weil ich es will, abschaffen ganha, logo de início, autonomia
enquanto discurso, assumindo seu caráter social. A frase está fracionada, e o
termo Abschaffen está isolado, separado pela oração intercalada de sua
oração, o que não implica em destruição do significado da frase, mas reforça a
potência deste verbo irradiante. Por outro lado, a construção sintática ja nicht,
sem dificuldade entendido como reforço da negação, não deixa de por lado a
lado sim e não, /sim não/: afirma e nega no mesmo movimento. E mais ainda:
se se entender o nicht como remetido ao interlocutor, num encurtamento de
nicht wahr? (não é verdade?), como de quebra típico da oralidade e presente
nas transcrições das entrevistas de Bernhard, a frase fica positiva: eu posso
“descriá-los” porque quero. Mas com certeza a acepção que se sobressai é a
da negação veemente, que, não obstante, não elimina as demais leituras.
317
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 138-9.
273
A luta contra esta frase arma-se como uma batalha contra o próprio
discurso e contra a história, e questiona a possibilidade de sua sumária
supressão, ou, no mínimo, de seu enfraquecimento, e/ou recriação,
reinventando-a. Seguindo este raciocínio, numa primeira etapa Murau a conduz
à esfera do teatro, onde se pode fingir uma entonação e contexto que a
desloquem para o âmbito da arte, do artificial, onde perderia sua verdade e
força na matéria social. Assim leu Heiner Müller a obra e a repercussão de
Bernhard:
Österreich braucht das, das ergänzt sich hervorragend: Das subjektive Gefühl oder
Empfinden oder Bewußtsein von Thomas Bernhard, daß er gegen Österreich
kämpft, und das Interesse des österreichischen Staates, bekämpft zu werden, im
Theater. [...] So ein Skandal hat doch eine ungeheure Ventilfunktion. Das lenkt ab
von Allen Fragen, die eingentlich hier zu stellen wären in Österreich. [...] Das ist
fast Werbung.
318
Na verdade, este erro de avaliação é previsto pela obra, que coloca
armadilhas ao longo de seu percurso. Bernhard lutou com todas as armas que
pôde contra esta acepção de arte, de estetização dos problemas materiais
reais, e procuro mostrar nesta tese como tentou fugir deste enquadramento. A
primeira tentativa de acabar com a frase tentou levá-la para este território
inócuo e infértil, o que não dará certo.
Aqui aparece, nu e absolutamente concentrado na mediação pela
linguagem, uma concepção de arte e de língua combatida pelo texto, uma
tentativa de evasão pela repressão, deturpação e deformação para uma forma
aceitável pela sua própria construção identitária, numa reformulação visando
uma nova expressão condensada. A alegorização da História Austríaca
também se faz presente nesta passagem: a teatralização desta história, no
sentido de construir uma face para consumo exterior, em que se pinta como a
primeira vítima do nazismo, entre outras coisas para readquirir sua soberania,
enquanto, na verdade, mantinha a estrutura jurídica trabalhista e mesmo os
antigos nazistas em posições de destaque, como já foi visto há pouco. A
tentativa de reprimir (e, daí, suprimir) a verdade desta história ganha feições de
318
H. Müller, “Thomas Bernhard ist auch nur ein Beamter”, em Der Standart, de 15.12.1988,
citado segundo Weltkomödie Österreich. 13 Jahre Burgtheater 1986-1999, H. Beil et al. (orgs),
p.108.
274
uma Hora Zero (Stunde Null
275
Áustria. Esta luta, cada vez mais ferrenha, passa por uma tentativa de
estrangulamento (abwürgen) da frase. Ato contínuo, Murau a pronuncia,
repetidas vezes, com o intuito de torná-la ridícula e risível. Como visto antes,
a repetição enfraquece o significado pela redundância, mas o decisivo aponta
pra outra direção: a repetição seqüencial tem como efeito isolar o significante
(componente acústico, som) do significado (histórico e social), além de retirar o
signo do contexto que lhe garante pertinência: por este procedimento libera-se
o significante para ser qualquer coisa, posto que auto-referente. Essa tentativa
pauta-se pelas teorias estruturalistas que, numa perspectiva sistêmica, primeiro
isolam o signo dos referentes estes separados da “coisa extralingüística”
ou matéria social, posto que inseridos no triângulo de Ogdens como se
correspondessem à realidade, sendo, porém, material ideológico
320
e depois,
no interior do signo, isolam significantes e significados, dando forma às bases
para todo tipo de fabricação da realidade, num vale-tudo pós-moderno.
Pela mediação desta linguagem chega-se ao âmbito histórico desta
reconstrução, que culmina nas famosas frases de Kurt Waldheim numa
entrevista ao canal de teORF, reproduzidas por Gehler: “In dieser Sendung
sprach er auch jenen ominösen Satz, wobei er bei den deutschen Wehrmacht
als Soldat eingerückt war, wie hunderttausende Österreicher auch, die ihre
Pflicht erfüllt haben’”
321
. Não assusta que estes argumentos sejam quase
cópias fiéis da defesa de Adolf Eichmann, no seu famoso julgamento em
Jerusalém, em 1961, como se lê por exemplo em Arendt: “Ele [Eichmann]
cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele o
obedecia ordens, ele também obedecia à lei.”
322
A defesa se concentra na
moral do trabalho, do cumprimento à lei e, no caso de Waldheim, do
comportamento da maioria, argumento arraigado e pronto a ser utilizado por
todos que abraçaram o nazismo na Áustria, ganhando os contornos de uma
verdade indevassável e inexpugnável, que chega quase intocada aos anos 80.
Menasse nota, com agudeza, que, ao tomar esta “verdade como
bandeira de sua defesa na campanha eleitoral, esta deixa os porões a que
320
Ver I. Blikstein, Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade, 1995. A crítica que se faz aqui
mira especialmente na linguística de Ferdinand Saussure.
321
M. Gehler, “Die Affäre Waldheim”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich im 20
Jahrhundert, vol.2, p. 358.
322
H. Arendt, Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal, p. 152.
276
estava condenada e escondida e, com a vitória de Waldheim, numa margem
nunca antes vista por um presidenciável que o estivesse concorrendo pela
reeleição
323
, erige as bases sobre as quais irá ascender um político como Jörg
Haider, com suas tintas anti-semitas e xenófobas
324
. Murau perde também esta
batalha, e mais: a cada tentativa de emudecer, ridicularizar ou estrangular a
frase, esta se torna mais ameaçadora e mais verdadeira. Não pode ser
descriada”. Cada tentativa de reescrever a verdade desta história evidencia a
impossibilidade do projeto. Os mais endiabrados volteios semânticos operados
no sentido da evasão acabam retornando a ela, e o cansaço da empreitada,
junto à conscientização da falta de saída, o exasperam e desesperam. Murau
nota que a frase assumira o peso que nenhuma outra frase dele até então
tivera: tornara-se, assim, a sua frase fundamental, noutras palavras, esta frase
explicita a verdade da forma tanto social (prioritária-, mas não unicamente
austríaca) quanto literária (sobretudo desta Auslöschung, mas não exclusiva).
Ela se espraia para todos os níveis da composição, do tempo, do espaço, do
personagem. Com esta frase Murau terá que conviver. Esta constatação o
acalma repentinamente (urplötzlich); ele não mais a teme, mas a incorpora no
projeto da extinção. O saldo final do romance, no entanto, mostrará que Murau
não lida com seu passado como este trecho indica. Isto, ainda, acompanha de
perto a forma social, pois se é verdade que os anos 80 viram o debate florescer
na Áustria, foi antes para mostrar o poder e vigência daquele discurso
reacionário que, de Waldheim, chega a Jörg Haider.
Neste momento chega-se a algo crucial: depois de todo o processo de
atualização desta história pessoal e coletiva, por parte de Murau, por diversos
323
M. Gehler, op. cit., p. 362.
324
K. Vocelka, Österreichische Geschichte, p. 121, fala do “fenômeno Haider”,que mudou a
estrutura de forças e de coalizões na Áustria desde 1986, na esteira da eleição de Waldheim.
“Haider verstand es geschickt, den rechten Rand der Wählerschaft anzusprechen und mit einer
ausländerfeindlichen, dem Nationalsozialismus gegenüber revisionistischen Politik zu punkten,
was ihm besonders nach 1989 gut gelang”. Menasse completa: Vor Waldheim konnte ein
Politiker in Österreich zum Beispiel Antisemit sein, aber er hätte es nie öffentlich gesagt. Nach
Waldheim kann er es sagen und er sagt es dann mit hoher Wahrscheinlichkeit auch ganz
bewußt, etwa weil er über Umfragedaten und Erfahrungswerte verfügt, die ihm zeigen, daß er
mit solch einer Aussage eine bestimmte Anzahl Wähler für sich gewinnen kann. [...] Das ist der
Hintergrund, vor dem die Karriere von Jörg Haider möglich wurde und auch erst einschätzbar
wird”. O artigo em questão se chama “Deus ex Machina II. Jörg Haider. Ein verrücktes Land”,
em Das war Österreich, p. 269-70. Também o excelente ensaio de J. Haslinger, Politik der
Gefühle, p. 11. “Er [Jörg Haider] scheint der wahre Erbe dessen zu sein, was im Waldheim-
Wahlkampf zum Ausdurck kam”. A dedicatória também é bastante expressiva: “Für Ilse M.
Aschner und alle Österreicher, die ihre Pflicht nicht erfüllt haben”.
277
métodos e caminhos, resumidos praticamente numa página, a frase de Murau
reassume o sentido original, de sua primeira aparição. Disso não se depreende
que todo o processo foi em vão, muito pelo contrário, esta volta apresenta e
expressa a dimensão do projeto de escrita do livro, que será uma Auslöschung,
ou Abschaffung, que não elimina a história, mas trata justamente dela, em
todos os seus pormenores, sem o menor pudor. Como se a frase exigisse um
projeto de retomada, a contrapelo, desta história, que a suprime e a mantém,
ao mesmo tempo, e que opera num mesmo ponto no tempo e no espaço, como
numa mônada pronta a explodir. Desta natureza advém a calma de Murau: o
projeto do livro pretende suprimir no sentido de descriar (Abschaffen), num
verbo que contém a criação (Schaffen), e não apenas a sua destruição como
eliminação. Uma atualização no sentido do materialismo histórico, por
Benjamin: “Sein Grundbegriff [do materialismo histórico] ist nicht Fortschritt
sondern Aktualisierung.”
325
“Ur-plötzlich”, “Ur-ur-ur-großeltern”, “Ur-sprungsort”
nesta passagem uma palavra que irradia seu tom pelo romance e
remete ao campo semântico da história: urplötzlich. Murau a usa para qualificar
a rapidez com que se acalmou, dada a derrota frente à sua frase fundamental.
Urplötzlich remete a Ursprungsort, palavra atribuída a Wolfsegg na página
anterior (AUS, 16). A concepção de história em Benjamin não abre mão do
conceito de Origem (Ursprung), chave para marcar o caráter não cronológico
do projeto de reconstrução histórica, que se alinha à acepção de uma
linguagem nunca aceita como instrumental e arbitrária. À Origem como
cronologia (Entstehung) se antepõe a Origem Ursprung, Ur-sprung como
salto primevo, que da origem, pela palavra, irrompe no presente trazendo
consigo uma força que faz deste momento um “Agora da Conhecibilidade”,
como este agora deste trecho do texto de Auslöschung, compondo uma
“Dialética em Paralisação” que eleva a tensão ao máximo e não admite
superação dialética. Em Benjamin: “Der Ursprung steht im Fluß des werden als
Strudel und reißt in seine Rhythmik das Entstehungsmaterial hinein.”
326
Dirá
Bolle: “Somit sind die Elemente der Geschichtsschreibung für Benjamin weder
325
W. Benjamin, Das Passagen-Werk, em GS V-1, Konvolut N 2, p. 574.
326
W. Benjamin, “Ursprung des deustschen Trauerspiels”, em GS I-1, p.226.
278
in der linearen Entwicklung von Fakten noch in kausalen Herleitung zu suchen.
Das läuft auf eine entschiedene Kritik des kausalgenetischen Paradigma
hinaus.”
327
Formalmente, Bernhard afasta-se de uma estrutura marcada pela
causalidade, o que se verifica em todos os níveis de sua escrita, que se
esquiva de conceitos como subordinação ou seqüência histórica, preferindo
uma escrita marcada pela raiva (Zorn). Além disso, as continuidades, analogias
e sobreposições de uma dada tradição são recorrentes em sua escrita, seja
neste Auslöschung ou nos textos autobiográficos: uma atualização brusca, que
faz convergir todas as energias para um ponto, como numa explosão de
palavras (Wortexplosion, a respeito de Holzfällen; em Auslöschung, Murau e
Gambetti querem explodir tudo); esta redução se expressa pelo peso e mesmo
pela caducidade desta linguagem. Este Urplötzlich remete, como um raio, a um
passado não linear. Tudo se dirige à morte dos familiares e ao enterro; o
passado, o presente e mesmo o futuro aparecem tanto na linguagem, que
carreia a história e não pode ser abolida, na memória – por exemplo, da
Kindervilla – quanto nos personagens, que realizam esta dinâmica compressiva
e concentradora, num agora repleto de passado.
Jede Gegenwart ist durch diejenigen Bilder bestimmt, die mit ihr synchronistisch
sind: jedes Jetzt ist das Jetzt einer bestimmten Erkennbarkeit. In ihm ist die
Wahrheit bis zur Zerspringen geladen.” (N3,1, p. 578). “[...]Bild ist dasjenige, worin
das Gewesene mit dem Jetzt blitzhaft zu einer Konstellation zusammentritt. Mit
anderen Worten: Bild ist Dialektik im Stillstand. Denn während die Beziehung der
Gegenwart zur Vergangenheit eine rein zeitliche, kontinuierliche ist, ist die des
Gewesnen zum Jetzt dialektisch: ist nicht Verlauf sondern Bild <,> sprunghaft
Nur dialektische Bilder sind echte (d.h., nicht archaische) Bilder; und der Ort, an
dem man sie antrifft, ist die Sprache.
328
Na primeira parte do romance, as fotografias que Murau observa e
comenta servem para ilustrar um percurso que se aproxima, pela forma, deste
desenvolvimento benjaminiano. A mãe de Murau é um exemplo cabal deste
procedimento: seu pescoço, comprido desde o nascimento, sofre um torcicolo
eterno durante o nazismo –no episódio em que ela retira a suástica do mastro –
327
W. Bolle, “Geschichte”, em M. Opitz e E. Wizisla (orgs), Benjamins Begriffe, p. 404.
328
W. Benjamin, GS V-1, p. 576-8; N2a,3 N3,1, respectivamente.
279
o que seincorporado à memória da imagem (Bild) da mãe, que é uma foto
que chega a nós, leitores, pela mediação da linguagem e da memória de
Murau. Por esta foto dos pais, em Londres, Murau afirma que a posição da
mãe deixa seu pescoço, deformado, ainda mais destacado; exagero que se
faz visível, partindo deste narrador que se auto-intitula um
Übertreibungskünstler. No pescoço, uma parte do corpo, concentra-se toda a
história do nazismo e mesmo antes dele, pois nascera alongado demais. Ao
analisar a foto, o nazismo será diretamente atualizado; embora o narrador
nos conte do torcicolo páginas à frente, esta informação volta àquela foto, cuja
interpretação nunca se completa, por princípio. Esta parte do corpo vira um
grotesco fragmento quando de sua morte: o pescoço será seccionado do
corpo, o que o narrador verá na foto estampada nos jornais, mas que lhe será
negada no enterro: o caixão está lacrado. Como ocorre com este pescoço e
com a linguagem, também o espaço físico como espaço de memória faz tudo
colidir num presente pesado, que não pode ser aliviado ou esquecido.
Ursprungsortnos faz ver que a Origem, nesta Auslöschung, é também
localizada no espaço. Um lugar: Wolfsegg, e nesta Wolfsegg, a Kindervilla
apresenta uma arquitetura que remete ao barroco e à Itália. O teatro ali
praticado é popular e secular, é o lugar onde as crianças brincavam; os pais
trocavam de lugar com os jardineiros e os serviam uma vez ao ano, numa
carnavalização; por fim, foi o local onde os amigos nazistas dos pais ficaram
escondidos logo após a guerra, sendo no tempo do enterro um prédio
abandonado, em parte queimado; um lugar de memória, como se verá mais à
frente, pois a memória se tema de um capítulo à parte. São escolhas
conscientes do narrador por serem pregnantes e formalmente esclarecedoras,
em consonância com seu projeto estético calcado na artificialidade da
expressão. Nas palavras de Bolle: “Die den Geschichtsdiskurs konstituierenden
Einheiten entstehen aus einem Wesensverwandtschaft des Späteren mit dem
Früheren, aus der doppelten Perspektive der dargestellten und darstellenden
Zeit. Geschichte ist Konstruktion von dieser Doppeleinsicht her.”
329
Isto parece
compor a perspectiva dupla da narração de Auslöschung em primeira e terceira
pessoas, como já visto.
329
W. Bolle, “Geschichte”, em M. Opitz e E. Wizisla (orgs), Benjamins Begriffe, p. 405.
280
,Ur-ainda se refere aos antepassados, à história pessoal como coletiva:
esta remissão será feita poucas páginas à frente, em Auslöschung, quando o
narrador se refere à construção das bibliotecas de Wolfsegg, iniciada “por
meus tataravôs” (von meinen Urururgroßeltern) (AUS, 23) O resultado é muito
expressivo para a análise aqui em curso. Em primeiro lugar, Urururproduz
estranheza mesmo aos ouvidos alemães, e com algum empenho se chega
ao número de gerações antepassadas. Além disso, torna-se um pouco vago e
abstrato: para aquém dos bisavôs (Urgroßeltern) reina uma certa indistinção,
uma generalização sob a abstrata rubrica “Antepassados”. pessoas que
convivem com algum dos bisavôs, mas dificilmente com um trisavô, dos quais
restam poucas referências diretas. Um tataravô se assume, por assim dizer,
como uma abstração, que pode ser alcançado a muito custo por várias
mediações, descarnado mesmo pelas lembranças.
330
A repetição do termo Urapresenta ainda a acepção do imutável de uma
tradição engessada, a paralisação em um sistema de valores, o que se refere à
história austríaca aqui cifrada, como se verá num capítulo específico. Outro
efeito é liberar este Ur-de sua prisão dentro da palavra, como fizera com o
verschlagenen’, com o resultado de aludir a um Ur-primevo, de Ursprung
irrecuperável cronologicamente, mas não imaterial, nem morto e, assim
ganhando estatuto próprio, emprestar seu campo semântico a toda a obra, que
desde seu início (estamos ainda por volta da vigésima gina de um romance
de mais de seiscentas) exprime sua concepção de história e, ainda, de escrita
da história, que se desenrola com a mediação pela linguagem. A este ‘Ur-’
deve ser relacionado o ‘Das Neue’, que surge depois pelas aulas de Murau a
Gambetti, o homem-bomba cujas bombas, de modo expressivo, são livros de
literatura e filosofia alemã que leva debaixo dos braços por Roma, enquanto
sonha com a explosão de tudo pelos ares. Condensados nesta mônada em
forma de romance, o caminho desta origem inclui nada menos que o “Novo”. O
espaço deste Novo cria-se pela atualização desta história, que a supera e a
mantém, lendo-a, novamente com Benjamin, a contrapelo.
330
W. Benjamin, em sua “Kleine Geschichte der Photographie”, alude a isso, ao dizer sobre os
retratos pintados de familiares: “Blieben sie im Familienbesitz, fragte man hin uns wieder noch
nach den Dargestellten. Nach zwei, drei Generationen, aber ist dies Interesse verstummt: die
Bilder, soweit sie dauern, tun es nur als Zeugnis für die Kunst dessen, der sie gemalt hat.” Em
GS II-1, p. 370.
281
Assim, esta repentina (urplötzlich) calma advinda da constatação da
prevalência desta história e família o impele à sua origem familiar
(Urururgroßeltern) e social (Ursprungsort), mediada necessariamente pela
linguagem artificial e artística, que reinterpreta este passado em termos de uma
supressão que constrói (Auslöschung no sentido de uma Abschaffen
“descriação”), assim realizando a criação do texto que temos em mãos
(Schaffen). O processo inclui a extinção da própria extinção, do próprio texto,
que ao ser realizado estabelece os termos desta “supressão”. A dialética que
opera por fora no termo Auslöschung penetra a palavra mesma no caso de
Abschaffen, e esta forma faz história dentro da obra de Bernhard, o que vale
um capítulo à parte
331
.
331
Não posso me furtar de encontrar analogias entre este quadro e o conceito de Dialektik im
Stillstand de Benjamin. “Wo das denken in einer von Spannungen gesättigten Konstellation zum
Stillstand kommt, da erscheint das dialektische Bild. Es ist die Zäsur in der Denkbewegung. Ihr
Stelle ist natürlich keine beliebige. Sie ist, mit einem Wort, da zu suchen, wo die Spannung
zwischen den dialektischen Gegensätzen am größten ist. De<m>nach ist der in der
materialistischen Geschichtsdarstllung konstruierte Gegenstand selber das dialektische Bild. Es
ist identisch mit dem historischen Gegenstand; es rechtfertigt seine Absprengung aus dem
Kontinuum des Geschichtsverlaufs”. GS V-1, Das Passagen-Werk, N10a,3, p. 595. Esta história
será alegorizada ao longo do romance, mas se encontra cifrada neste trecho citado, do
modo como será desenvolvido; este o motivo de colocar aqui esta citação. Wolfsegg é o
espaço por excelência deste “quadro dialético”.
282
“Abschaffen” como “Entschöpfungstag”
Esta interpretação acima recoloca, em outros termos e constelação, os
argumentos principais de um artigo de Schmidt-Dengler sobre a linguagem no
romance Frost
332
. Como foi defendido no capítulo sobre Holzfällen, não é
exagero enxergar em Frost o esboço de um projeto literário que permeia toda a
obra, embora com alterações de percurso, tanto por mudanças na sociedade
quanto por conta do amadurecimento do escritor e de seu projeto estético,
projeto este atualizado em Auslöschung. Em Frost Bernhard cria neologismos,
como “Dia da descriação (Entschöpfungstag, p.291) e “Anti-Pai-Nosso”
(Antigottesvers, p.189), além de muitos outros listados por Schmidt-Dengler,
com o que faz da palavra a própria dialética em paralisação, numa
concentração e economia máximas.
Neste artigo sobre Frost, que serve de estímulo e base para esta seção, a
recorrência aos neologismos como formas compostas (Komposita als
Neuschöpfung) serve para testar os argumentos do crítico, que efetivamente
prova como a composição deste romance e, de quebra, da obra como um
todo, cada qual com suas idiossincrasias – depende do emaranhar-se na
tessitura da linguagem e de sua atualização histórica. Uma passagem decisiva
é:
[...] ein Wort wie ‘Entschöpfungstag’, denn die Negation der Schöpfung ist also
nicht deren Vernichtung, sondern deren Rückgängigmachung“. [....] Indes ist dieser
Negationsprozeß nicht einfach als die Tilgung eines Satzes durch seinen
Gegensatz oder eines Wortes durch sein Gegenteil zu sehen, sondern es scheint
vielmehr so, als wäre im Getilgten das zu Tilgende enthalten. Im ‚Antigottesvers’ ist
Gott, im ‘Entschöpfungstag’ die Schöpfung enthalten. Die Geschichte, die
Schöpfung soll rückgängig gemacht werden; sie ist im Wort aufgehoben.
333
Quero crer que este crítico conseguiu visualizar sua concepção de
linguagem e de escrita da história nesta passagem de modo brilhante. Um
processo de negação que volta sobre suas próprias pegadas, da frente pra
trás, revendo e ponderando sobre cada passo. Ao fazer isso, recolhe os trapos
de sua história e as reinterpreta, sem nunca perder a perspectiva do presente,
332
W. Schmidt-Dengler, “Zurück zum Text. Vorschläge für die Lektüre von Frost”, em Der
Übertreibungskünstler, p. 176-95.
333
Op. cit., p. 185.
283
de onde nunca saiu; assim mantém-se o extinto. O espaço onde ocorre este
processo é a palavra, na qual a história adquire sentido. No sonho que Murau
conta a Gambetti, Murau fica à espreita na janela e procura retraçar os passos
que os Eisenberg e Maria deixaram na neve, e a cena vale citação por se
constituir exatamente sob o signo deste desfazer que repisa e refaz o passado
de frente pra trás:
Ich stand noch eine Weile am Fenster und schaute hinunter und versuchte, die
Spuren der Schritte [...] so weit zurückzuverfolgen, wie möglich. An die
hundertzwanzig Eintritte habe ich gezählt, ich erinnere mich genau, Gambetti, [...],
als träumte ich diesen Traum jetzt und hätte ihn nicht schon vier oder fünf Jahren
geträumt. (AUS, 222, itálicos do autor).
Os principais aspectos da argumentação de Schmidt-Dengler encontram-
se aqui. Mais do que apenas seguir, perseguir os vestígios dos passos de
frente pra trás, qual numa investigação policial, o que implica uma certa
desconfiança, o cheiro de algo errado, como se estes personagens fossem
suspeitos: conhecendo as acusações que o taberneiro fará, segue-se que sim,
são atacados pelo discurso xenófobo,e dele recebem sentença de morte. Este
errado tem o estatuto da interpretação histórica, em curso em Auslöschung. O
discurso do taberneiro culmina em: “so ein Gesindel wie Sie (also wie wir)
gehöre ausgerottet. Mehrere Male schrie er uns das Wort ausgerottet ins
Gesicht.” (AUS, 226). E o mais significativo para meus propósitos: nada deixa o
terreno do presente, ele não mergulha no sonho como este fora no passado,
mas o sonha de novo: ele se lembra como se sonhasse agora. O sonho se
atualiza no agora, explode neste presente recheado de agoras, sem perder o
seu estatuto de passado.
O que no sonho forma uma imagem, no trecho em questão (Abschaffen)
se reduz à língua, como no caso trabalhado por Schmidt-Dengler. Em
Auslöschung, no entanto, Bernhard vai mais longe e prescinde dos
neologismos nos pontos-chave, com o objetivo de potencializar a
expressividade de sua poética pelos avessos e escuros da palavra cotidiana, o
que confere um ganho à fatura: não apenas pela invenção de um novo termo
composto – embora gramaticalmente permitido pelo alemão consegue-se
mostrar e lidar com a história pela mediação da palavra, mas no e do interior
284
mesmo da palavra que se queria pura e clara, mas se mostra explosiva e
enérgica, assim perdendo a inocência em prol de sua autenticidade e
dignidade, atingindo estatuto crítico.
Mal comparando, se se tomar o neologismo por termos compostos como
expressão de uma forma analítica, em que o elemento fraturado e inesperado
exige atenção redobrada, a composição da dialética destes termos-chave em
Auslöschung opera de forma sintética: nela, nada marca de modo indelével a
superfície do texto, antes sua estrutura interna explicita o procedimento. O
movimento no interior da obra é análogo à técnica cinematográfica presente em
Der Italiener, que passa a forma em Auslöschung, sendo suprimido e mantido
(aufgehoben). Assim a ênfase não recai para o âmbito do neologismo,
oscilando entre palavras com entrada em qualquer dicionário como urplötzlich,
Abschaffen, Ursprungsort, Urururgroßeltern, que, aqui, ganham outra
dimensão, formalizando o encobrimento que precisa ser desvendado, o enigma
a ser decifrado, como os passos na neve. A composição dos textos de
Bernhard deixa cada vez mais o “campo estético mais fechado em si mesmo”
de textos como Frost crítica que o se sustenta se submetido a uma análise
rigorosa – e interage cada vez mais imediatamente com a realidade social, sem
perder a artificialidade de sua escrita, sua mediação constitutiva via linguagem,
antes a exagera: o que ocorre é a citação de lugares geográficos existentes,
pessoas e situações também verídicas, nas quais vai buscar a verdade da
forma social via mediação literária, ponto central de sua estética e, mesmo, de
sua concepção de verdade, como se verá ainda neste estudo sobre
Auslöschung. De fato, quanto mais artificial e artístico, mais realista, esta a
palavra-de-ordem que emana dos textos de Bernhard. Uma das frases
fundamentais de sua estética diz: “In meinen Büchern ist alles künstlich, [...]”
334
Não alheio a este espírito, antes reforçando-o, Schmidt-Dengler defende que,
para o bem ou para o mal:
Der Diskurs Bernhard und der Diskurs Österreich in bezug auf Literatur haben,
wenn ich so formulieren darf, die maximale Überschneidungsmenge: Es ist heute
334
T. Bernhard, “Drei Tage”, em Der Italiener, p. 82.
285
schon schwer geworden, über Österreich zu sprechen, ohne den Namen Bernhard
zu erwähnen.
335
A dialética em suspensão, comprimida à palavra, expressa por estes
exemplos que a construção desta extinção depende de sua destruição, que
abre espaços e prepara o terreno para o novo, o que remete ao texto de
Benjamin, intitulado “O caráter destrutivo” (Der destruktive Charakter), como se
verá mais tarde.
O caráter “analítico” em
286
und verschobene Satzgefüge war er dann nur noch.” (FRO, 214). Assim a
perspectiva alegórica alça vôo, ainda com Schmidt-Dengler, para quem esta
caracterização “zeigt den Maler [o personagem principal] als eine allegorische
Figur, die aus der Sprache zusammengesetzt ist, als eine Kunstfigur, die aus
einer völlig verstörten, ja zerstörten Sprache besteht.”
336
Resta saber alegoria
de quê, o que o autor do artigo não irá apontar claramente. No caso de
Auslöschung, a alegoria da história da Áustria não é tão difícil de ser percebida,
mas a caracterização do personagem como Wortfetzen’, embora
absolutamente pertinente pela redução de tudo à mediação pela linguagem em
Auslöschung, conta com a sutileza que marca a sua obra dos anos 80, onde o
procedimento ocorre, mas sem marcas externas tão aparentes, antes
absorvido e dissolvido na forma: esta ‘sutileza formal’, numa leitura rápida,
pode passar despercebida.
E como isto se em Auslöschung? De novo, o que estava explícito em
Frost (Wortfetzen) está implícito em Auslöschung, em que o narrador é criado
pelo discurso dos outros, por suas palavras, que assume para si e, ato
contínuo, suprime, formando-se neste processo de extinção. A dinâmica se
dirige assim à forma da criação destes personagens, como foi visto no capítulo
sobre o ponto de vista do narrador. Tudo é artificial e a redução final remete ao
âmbito da linguagem, da mediação e do embate ideológico por excelência.
Frost e as peças de teatro são os lugares onde se pode verificar estes
aspectos de forma explícita, que nos romances da década de 80 acabam
reduzidos à forma, com ganhos para o resultado final, visto que a forma é
conteúdo social decantado, de onde surge a verdade da obra, objetivo maior de
Bernhard.
“Begriffslose Begriffswelt”
Nesta mesma linha encontra-se a formulação “er [o pintor Strauch] lebt in
einer begriffslosen Begriffswelt (“mundo conceitual aconceituado”)
desenvolvida por Schmidt-Dengler neste artigo sobre Frost. Como visto no
capítulo sobre Holzllen, os conceitos vão e voltam, do abstrato ao material,
sem que haja uma aprendizagem no sentido de uma dissolução completa em
336
Schmidt-Dengler, “Zurück zum Text. Vorschläge für die Lektüre von Frost”, em Der
Übertreibungskünstler, p. 186.
287
qualquer dos pólos, mantendo a tensão fundadora dos conceitos. O crítico quer
justamente entender nesta fórmula a cabal expressão da uma contradição que
não se deixa preencher com sentido, antes deixar viva sua dinâmica interna.
Die dem Chaos entsprungenen Begriffe sind auch nur dadurch erkennbar, daß sie
negiert werden. Die Begriffe sind da, sind vorrätig in der Sprache, aus ihnen
heraus wird gedacht, aber sie erhalten Funktion erst dadurch, daß sie verworfen
werden. Ein Begriff erhält seine Konturen erst dadurch, daß er zum Verschwinden
gebracht wird; die Auslöschung bringt die Dinge und Begriffe zur Sprache.
337
Embora o autor prenda-se à análise de Frost, ao escrever este texto, já na
década de 90, remete diretamente à Auslöschung pelo uso deste substantivo,
de modo a ligar as duas pontas da obra em prosa de Bernhard. Reunidos sob
este guarda-chuva semântico encontram-se conceitos como o de morte,
natureza, comédia, tragédia, arte, escuridão, aqui escritos em minúscula para
trazê-los de volta à vida, sem que percam seu estatuto de conceito:
begriffslose(n) Begriffswelt. Bernhard diz numa gravação para a TV, onde fala
livremente sobre o que quiser, a respeito de sua escrita, em 1970:
Es ist die Unterhaltung mit der Natur die es nicht gibt, der Umgang mit den
Begriffen, die keine Begriffe sind, keine Begriffe sein können. Der Umgang mit der
Begriffslosigkeit, Begriffsstützigkeit.
338
Sem citar este texto, Schmidt-Dengler parece se mover nesta mesma
perspectiva. O movimento não engana os iniciados: diz Bernhard, lidar com
conceitos, que não são conceitos, que não podem ser conceitos. Primeiro,
afirma: lidar com conceitos. Depois, nega: que não são conceitos. Os dois
estão ativos e validados. Mais: em itálico, não podem ser conceitos; não se
trata de um processo circunstancial, mas estrutural, da impossibilidade da
forma que sustenta os conceitos. Apenas pela dissolução dos conceitos eles
podem ser trazidos de volta à palavra, o que equivale dizer, à vida.
Schmidt-Dengler restringe-se, programaticamente, ao texto de Frost, por
considerar que este caminho tenha sido abandonado pela crítica. Isto o impede
337
W. Schmidt-Dengler, Der Übertreibungskünstler, p.188. A expressão “begriffslosen
Begriffswelt” aparece nesta mesma página do romance.
338
T. Bernhard, “Drei Tage”, em Der Italiener, p. 89. Itálicos do autor.
288
de buscar respaldo na forma social que sustenta esta formulação neste artigo.
Este salto é no entanto fundamental para, no mínimo, evitar o erro da
absolutização e ahistorização do procedimento. Pois quando brinca que:
“‘Begriffslose Begriffswelt’ ist eine contradictio in adiecto, die kaum mit Sinn zu
füllen ist, vergleichbar einer ‘fleischlosen Fleischspeise’”
339
, ele acerta no que
diz, mas erra por abstenção: esta contradição sem sentido é moeda corrente
em nossa realidade material palpável e cotidiana. O seu exemplo é dos
melhores em sua contundência e acurácia: o “prato de carne sem carne” dos
vegetarianos ilustra bem este ponto: toma-se café sem cafeína, come-se doce
sem açúcar, saboreia-se gordura sem gordura. Estes hábitos alimentares não
assustam mais ninguém: ingere-se, materialmente, uma abstração, contradição
bem afeita e adaptada à nossa realidade. O material passa a abstrato, e as
pílulas com gosto de churrasco dos livros e filmes de ficção científica
deixaram as telas e chegaram às prateleiras dos supermercados. De modo que
um simples café perdeu a inocência: consome-se na verdade um estilo de vida,
uma imagem que se quer construir de si mesmo. Em grande medida nossas
vivências – para não falar em experiências compartilháveis – mediadas no grau
em que são hoje, tornam-se abstratas.
Este tratamento confiado aos conceitos, mostrados em sua destruição e
desnudamento, faz jus à própria dignidade do conceito como medium de
reflexão e não mero instrumento e caracteriza a obra de Bernhard,
realizando-se em cada obra noutra configuração. Quando tratei de Holzfällen
me referi a este jogo entre o concreto e o abstrato, que faz os conceitos
ganharem história e uma dinâmica que lhes confere vivacidade.
Benjamin sobre Kraus: citação e origem
Ainda gostaria de me remeter ao ensaio de Benjamin sobre Karl Kraus,
cuja concepção de linguagem mostra afinidades com a de Bernhard, ainda
mais sob o pano de fundo austríaco, embora, por não ser citado explicitamente
nas obras, tenha recebido pouco atenção da crítica, o rápida ao percorrer a
obra completa dos autores cujo nome foi simplesmente mencionado.
“Vollendeter ist nie die Sprache vom Geist geschieden, nie inniger an den Eros
339
W. Schmidt-Dengler, op. cit., p. 188.
289
gebunden worden, als Kraus es in der Einsicht getan hat: Je näher man ein
Wort ansieht, desto ferner sieht es zurück.”
340
A palavra se separa do indivíduo não por se tornar autônoma, mas pela
relação que ela estabelece com os homens: ela olha de longe e não se deixa
instrumentalizar ou domesticar. Esta língua trava uma batalha de olhares com a
humanidade. Esta relação é análoga àquela do trecho de Auslöschung, no qual
Murau procura enfraquecer a frase por se aproximar dela, seja para jogá-la
para o palco, seja para destroçá-la pela destruição do signo, seja pela briga
corporal do estrangulamento, processo por meio do qual a frase se torna, ao
invés de mais fraca, mais forte, poderosa e não manipulável. A aproximação de
Murau é respondida pelo olhar à distância, porém interessado, da língua.
Benjamin, mais à frente neste ensaio, tendo em vista a linguagem de Kraus e
atingindo em cheio a concepção de linguagem de Bernhard, afirma: “Von der
Sprache weisen sich beide Reiche Ursprung so wie Zerstörung – im Zitat aus.
Und umgekehrt: nur wo sie sich durchdringen – im Zitat – ist sie vollendet.”
Assim a interpenetração entre origem (Ursprung) e destruição, pela
citação, fazem a língua completa. Uma citação traz do passado, daí origem, em
potência; e quando destruída, seja pela sua mercadorização, ou pela negação,
ou carnavalização (Betz), ou descontextualização criando a imbricação entre
esta Origem e sua atualização, na linguagem.
O que se entende por citação, aqui, é bem amplo: refere-se à citação de
um outro contexto em que uma palavra surgiu e seu significado, e também à
rima e às repetições enquanto citações. Não é demais lembrar que a obra de
Bernhard é marcada por citações nos mais variados níveis: do caráter musical
de sua linguagem, que trabalha com rimas internas e com pequenas variações
em torno de uma mesma raiz, no nível da palavra e das frases, passando pelas
repetições e vaivéns dentro de uma obra e entre as obras, além da citação
normalmente apenas segundo a cnica do name-dropping, ou seja, da
290
lado e chegou-se a afirmar que tudo em sua obra seriam citações,
especialmente de si mesmo, o que pode soar o seu tanto paradoxal, mas deixa
de sê-lo quando se lembra que Bernhard assume-se como personagem de si
mesmo, desdobrando-se em personagem de ficção e da realidade. Mas faltou
a muitos o passo adiante, e entender como e por que Bernhard se valia destas
citações, nunca casuais.
Decisiva, ainda, é a remissão (como citação) à própria situação e contexto
em que uma obra foi concebida na estrutura da mesma, o que surge com maior
nitidez em suas peças teatrais, como se viu no capítulo sobre o teatro. A
citação velada à Flauta Mágica de Mozart (Die Zauberflöte) em Der Ignorant
und der Wahnsinnige, criada para o festival de Salzburg e que exigia dois
minutos de escuridão completa ao final da peça, salta aos olhos. Esta
escuridão total deve ser lida como uma resposta contemporânea à derrota da
Rainha da Noite em Mozart, indicando ainda com grande carga simbólica o
resultado funesto do programa da ilustração nos nossos dias. A escuridão foi
proibida pela prefeitura de Salzburg: esta não permitiu que as luzes de
emergência fossem apagadas pelos dois minutos. Os desdobramentos do
incidente a peça não foi reapresentada no festival por conta da proibição
ainda ilustra o quanto a sociedade está cega às avessas, cegueira pelo
excesso de luzes. Bernhard mesmo alude a isso em seu comentário apoiando
a recusa do diretor Peymann de reapresentar a peça: “Eine Gesellschaft, die
zwei Minuten Finsternis nicht verträgt, kommt ohne mein Schauspiel aus.”
341
,
embora as principais críticas se dirijam ao então diretor do festival, Josef
Kaut.
342
Na peça de Bernhard, uma cantora lírica famosa justamente por
encenar a Dama da Noite não suporta mais o papel, que se tornou
mecanizado, tanto de Dama da Noite quanto de Diva da Ópera; ela está
doente, o que se sabe por suas tosses. Encená-la em Salzburg, terra de
Mozart, relendo sob as condições atuais uma sua obra-prima, estimula o
público numa provocação que, deste modo, chega ao nível formal. Seguindo
este modelo Winkler irá formular que as peças de Bernhard eram feitas tendo
em vista sua estréia, pois se dirigiam a um público específico, para quem, ou
ainda mais, contra quem se dirigiam.
341
M. Mittermayer, Thomas Bernhard, p. 56.
342
J. Dittmar, Sehr gescherte Reaktion, p. 49-56.
291
Por outro lado, para que a força da obra não se esgotasse no efêmero de
uma apresentação, a altercação uma forma de assimilação da tradição
clássica, quer seja pelo tema, quer pela enumeração dos autores, quer pela
proximidade com alguns procedimentos da vanguarda funcionava no sentido
de garantir uma durabilidade no tempo e adaptabilidade à outros contextos:
nova citação. Por este percurso fica evidente o aspecto destrutivo da empresa
bernhardiana, visto que o trato com o contexto e com o intertexto ocorre quase
sem exceção em chave conflituosa ou de ataque.
292
3. História, memória e escrita da história
Die Geschichte interessierte mich, aber nicht so, wie sie sich für
unsere Geschichte interessierten, sozusagen nur für die als zu
Hunderten und zu Tausenden aufeinandergelegten
Ruhmesblätter, sondern als Ganzes. (AUS, 57)
Esta epígrafe, dita pelo tio Georg, mentor de Murau, serve como porta de
entrada para se perscrutar o modo como se concebe a história neste romance.
Como já visto no capítulo anterior, a concepção de linguagem exige a remissão
à história, e à sua atualização, o que será alvo de considerações neste
capítulo.
“Reibpartien” em Wolfsegg: prazer em servir
Em primeiro lugar, um episódio que gostaria de analisar. Ao chegar a
Wolfsegg, o narrador Murau que o chão da entrada principal havia sido lavado,
e se corrige: [...] gewaschen worden, gerieben, wie wir sagen, auf den Knien,
von den Hausmädchen, [...]” (AUS, 356). Chega a este verbo ao lembrar que,
em verdade, “ralar” o chão da entrada de joelhos era mesmo uma das provas
que a mãe usava para contratar estas serviçais, o que, “[...] wenn auszureiben,
tatsächlich eine unmeschliche Anstrengung. Aber die Mädchen, fasziniert von
dem Gehabe meiner Mutter und Von Wolfsegg überhaupt, [...] rieben das
Vorhaus aus, gleich unter welchen Qualen [...]” (AUS, 358). A cena toda, por si
só, mostra o abuso e a exploração destas serviçais, selecionadas entre as mais
pobres e dos rincões mais distantes, o que as faz suscetíveis de serem
aliciadas para quaisquer tipos de trabalhos e humilhação, a começar por esta
prova inicial. Não é demais lembrar que a mãe precisa ir longe para buscá-las,
visto que a maioria, quando pode, escolhe trabalhar em bricas. As que se
submetem não teriam outra alternativa a não ser aceitar esta condição, e
mesmo se sentirem realizadas por terem seu trabalho explorado, de um modo
até mesmo sádico.
O episódio ganha outra dimensão, no entanto, ao se verificar que este
verbo, ralar (reiben) está diretamente ligado à anexação nazista na Áustria.
Quando Hitler entra na Áustria, no dia 12 de março de 1938, um referendo
293
estava pra ser realizado, sobre a anexação ou não ao nazismo. O ditador
austrofascista, Schuschnigg, lutava para se manter no poder, e as calçadas de
Viena estavam pintadas com palavras de ordem deste. Neste mesmo dia,
judeus e políticos da oposição tinham que limpar estas calçadas. “Die Palette
reichte von Plünderungen, Raubzügen, öffentlichen Beschimpfungen und
Demütigungen wie die sogenannten “Reibpartien”, die mit Zahnbürsten die
aufgemalten Schuschnigg-Parolen entfernen mußten.”
343
O nome o deixa
dúvidas: Reibpartien, onde a raiz Reib vem do verbo reiben, ralar o chão para
limpá-lo, de joelhos, como mostra a foto à página 257 do mesmo livro citado.
Na paz do pós-guerra, a ação que servia como máxima humilhação e
achincalhe público no nazismo ganha “dignidade”, baliza para se avaliar a
eficiência do trabalho e, assim, instituir uma seleção pautada pelo “mérito”
capitalista. Murau nota apenas, de passagem, que o esforço era desumano,
mas não o desqualifica, deixa passar, como um exemplo da inexorabilidade da
mãe, sem acentuar a ignomínia da cena, embora tenha acentuado o verbo pelo
itálico:o leitor deve estar atento para não perder as conexões aqui em jogo,
implícitas no texto bernhardiano, que nunca é isento.
Quando, em outro momento, Murau comenta que a maior destruição da
Áustria não ocorreu durante a segunda guerra, mas durante a paz que se
seguiu, no afã desenvolvimentista e progressista capitaneado pelos socialistas
(leia-se, o governo Kreisky), quando campos e cidades perderam suas feições,
pode-se remeter a este episódio do chão ralado, quando o que era abominável
na guerra torna-se normal, aceito sem grandes problemas, expressão do mérito
no trabalho, escondendo a relação material de dependência irrestrita à que
estas serviçais se submetiam em Wolfsegg. Quem as indicava eram os
monges e freiras, pois outra das características destas moças, além de sua
miséria e ausência de qualquer chance de desenvolvimento, é seu extremo
catolicismo, o que convém à mãe, que escolhia sempre as mais devotas entre
todas (AUS, 357). Elas viviam sob regras rígidas, e mesmo sua voz se tornava
aos poucos artificial, pois deveriam falar sempre baixo e de modo subserviente.
Assim a memória entra em cena: ao ver o chão limpo da entrada da casa,
isto o leva ao passado, às relações sociais em Wolfsegg; o que observa, ouve
343
T. Albrich, “Vom Vorurteil zum Pogrom: Antisemitismus von Schönerer bis Hitler”, em R.
Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 1, p. 339.
294
e pensa sempre desperta o processo de atualização da memória, nunca se
limitando a mera menção e anotação do que percebe. O chão da entrada
atualiza a exploração e indica a situação social lastimável de uma camada
social, que serve de estopim para a constatação de que as relações de
dependência irrestrita e abuso de antes ainda estão vivas. Esta atualização,
como se verá, não é involuntária, mas fruto de um exercício constante a que o
narrador Murau se submete; a história deve sempre carregar o agora com
todas as injunções necessárias ao seu despertar, e o sono do mito da
modernidade talvez seja o mais profundo, e daí exija um esforço ainda maior.
Pois esta atualização inclui, em Auslöschung, o passado nazista austríaco, que
irrompe com toda a força por meio deste verbo, e que se mostra assim tão ou
mais vivo do que outrora, dada a naturalidade da conduta da mãe.
Austrofascismo e Nazismo: defesa contra si mesmo
Este livro é escrito sob a influência de uma atualização histórica austríaca
indispensável, que tenta expressar como ruína o que se considera a mais alta
tradição, o que culmina numa exortação fundamental:
[...] den katholisch-nationalsozialistischen Geist, welcher ja, wie ich schon oft
gesagt habe, der österreichische Ungeist ist [...]. Aber kaum bemerke ich diesen
urösterreichischen Ungeist in oder an mir, wehre ich mich mit Haut und Haaren
dagegen. (AUS, 293-4)
Toda a escrita de Auslöschung se prende a esta defesa contra si mesmo,
em seus vaivéns, em sua escrita pelos bastidores, que preza sobretudo pelos
processos, pela metalinguagem. Decorre da necessidade da auto-extinção,
pois Murau, efetivamente, como visto, assume todas as posições que nega.
Este urösterreichische Ungeist não é genético ou uma constante
antropológica, mas história. Os pais eram nazistas de nascimento (AUS, 291)
implica dizer que a forma social em que nasceram e foram educados estava
alinhada àquele ideário. “Der Nationalsozialismus hat ihnen in allem und jedem
entsprochen, sie hatten sich in ihm sozusagen selbst entdeckt.” (AUS, 291) E
não acabou com o fim da guerra, mas continuou, como por exemplo na guarida
que deram a nazistas fugitivos na Kindervilla. E mesmo o discurso de matriz
nazista continua vivo, embora escondido, e vêm à tona, de novo, quando as
295
condições históricas o permitem, o que será alegorizado na figura do enterro
dos pais, quando os nazistas retomam a palavra, o que tem como pano de
fundo a eleição de Kurt Waldheim, mas também o escândalo do primeiro-
ministro socialista Kreisky, ainda na década de 70, entre outros.
O catolicismo também entra nesta panela de pressão pela porta dos
fundos, apoiando os governos ditatoriais (seja o austrofascismo, seja o
nazismo) e tolerando o anti-semitismo que permeava ambos. “In Österreich
herrschen uneingeschränkt nationalsozialistisch-katholische
Erziehungsmethoden, wer etwas anderes behauptet, ist ein Lügner und ein
Ignorant gleichzeitig [...]” (AUS, 291-2) Do mesmo modo que no primeiro
volume autobiográfico, aqui aparece no sistema educacional esta mistura
(Machtmischmethode) devastadora para os austríacos. O resultado deste
processo naturaliza a condição de nazi-católica, o que a torna quase
inexpugnável, mesmo quando combatida em todas as frases e palavras, como
faz neste romance o narrador Murau: “Der österreichische Mensch ist durch
und durch ein nationalsozialistisch-katholischer von Natur aus, er mag sich
dagegen wehren, wie er will.” (AUS, 291). Klaus Zeyringer lembra, com
pertinência, que nos anos 80 uma nova onda conservadora é designada por
Roma para ditar novos rumos para a Igreja Católica Austríaca, que logo se fez
ouvir na opinião pública, com campanhas veementes contra o aborto, o
homossexualismo, além da pretensão de influir nas instâncias de poder.
344
Cumpre lembrar que, afinal de contas, Murau também escreve artigos
para jornais na Áustria, sendo levado à juízo e ameaçado por muitos (AUS, 19).
Destacam-se traços notadamente autobiográficos quando, por exemplo, Murau
afirma que o acusam de sujar o nome da Áustria, com certeza tendo em mente
que esta Auslöschung serve como munição para se levar esta acusação
adiante. O autor penetra também como personagem na pele de Murau, e alude
ao fato de precisar haver uma unidade entre escritor e obra, como já visto.
345
344
K. Zeyringer, Innerlichkeit und Öffentlichkeit: österreichische Literatur der achtziger Jahre, p.
123.
345
O que não implica que Murau seja Bernhard, mesmo porque o processo de construção
deste personagem-de-discurso impede esta equiparação, visto seu movimento de afirmação e
negação constitutivo.
296
O ano de nascimento de Murau, 1934, marca o início do austrofascismo,
um momento chave na história recente da Áustria, após o debelar da última
sublevação dos trabalhadores em Viena.
1934 [ist] das Jahr der Etablierung des [...] Austrofascismus, einer autoritären,
ständestaatlich organisierten und vom politischen Katholizismus gestützten
Herrschaftsform, für die man auch, wegen ihres hierarchiebewußten politischen
Katholizismus, den Begriff “Zweite Gegenreformation” geprägt hat.
346
A força da Igreja na Áustria não precisa ser realçada, sendo sintomático
desta data a marca de um fortalecimento da Igreja como força política, aliando-
se ao fascismo austríaco. Quando da anexação nazista, também houve
aceitação por parte de representantes do clero, que não levaram em conta o
assassinato de Dollfuß nem mesmo as Leis Racistas de Nürnberg (Nürnberger
Rassengesetze), e recebem de braços abertos os nazistas pelas possibilidades
de crescimento econômico e pelo afastamento do medo dos bolcheviques sem
Deus.
347
A história do anti-semitismo na Áustria pode ajudar a entender esta
relação. Desde o século XIX já havia a mistura do anti-judaísmo católico (morte
de Cristo) com o “anti-semitismo” moderno, de raiz racista e nacionalista.
Junte-se a isso as crises econômicas pelas quais passou a Áustria, também
fonte de antisemitismo, por considerar os judeus como exploradores
capitalistas do trabalho, com o que se acha um bode expiatório para substituir
os problemas desta própria forma.
348
Como a Áustria passava por crises
políticas, econômicas e mesmo culturais sucessivas, com o desmembramento
do Império Austríaco depois das derrotas pra França e Alemanha, na segunda
metade do século XIX, havia um mal-estar latente que foi devidamente atraído
por este discurso, especialmente por Karl Lueger, fundador do partido Social-
cristão em 1891 (Christlichsoziale Partei - CS). “Was dem Vordenkern und
Predigern des modernen Antisemitismus im Deutschen Reich vor dem Ersten
346
H. Höller, “Politische Philologie des Wolfseggs-Themas”, em H. Höller e I. Heidelberger-
Leonard (orgs), Antiautobiografie, p. 39. Outro texto de referência foi escrito por D. A. Bider,
“Der “Christliche Ständestaat” Österreich 1934-1938”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs),
Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 1, p. 203-257.
347
J. Haslinger, Politik der Gefühle, p. 76.
348
Aqui sigo o artigo de T. Albrich, “Vom Vorurteil zum Pogrom: Antisemitismus von Schönerer
bis Hitler”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), op. cit., vol. 1, especialmente p. 310 e ss.
297
Weltkrieg versagt blieb, gelang Schönerer und Lueger in Österreich: der
politische Durchbruch.”
349
Quatro anos após fundarem o partido, ganham as eleições em Viena, em
1895. Em 1897, mesmo contra a vontade do Kaiser Franz Joseph, Karl Lueger
se torna o primeiro prefeito da Europa eleito com uma aliança e discurso
absolutamente anti-semitas, o que evidencia a ligação umbelical da Igreja com
esta posição ideológica e, agora, política. O partido dominou a política vienense
até 1919. Este é o cenário em que nascem os pais de Murau, de onde se a
historicidade e profundidade deste processo.
No pólo oposto do espectro partidário austríaco, os socialistas, embora
contassem com judeus em seus quadros, não tinham forças para se opor à
tendência geral, e sua propaganda contra os judeus capitalistas era
abertamente antisemita, o que mesmo os judeus do partido toleravam, para
que o partido não fosse tachado de defensor da causa judaica.
350
Além disso, o Austrofascismo colocou, lado a lado, na prisão, socialistas,
comunistas e nazistas austríacos, o que os aproximou a ponto do socialista
Bundeskanzler Bruno Kreisky (1970-1983) declarar, em sua autobiografia:
“Kreisky läßt keinen Zweifel: Der unmittelbare Gegner, der auf uns
Sozialdemokraten schoß, der uns vernichtete, gegen den wir kämpften, das
waren die Kleriko-Faschisten. Das erklärt auch, warum die Österreicher eine so
zwiespältige Haltung eingenommen haben, bis in unsere Zeit”.
351
Sua defesa
dos ministros comprovadamente nazistas passa por esta argumentação, que
vai pautar o comportamento do SPÖ (Sozialdemokratische Partei Österreich)
dos anos 70 a os anos 2000, de acordo com o autor citado. Quando da
anexação nazista, portanto, a boa acolhida dos socialistas e católicos não é de
se estranhar: “Zwei Räpresentanten großer Bevölkerungsgruppen Karl
Renner r die Sozialdemokratie, Kardinal Theodor Innitzer für die katholische
Kirche haben für den Anschluß Stimmung gemacht. Beide haben es nach der
Befreiung nicht für nötig befunden, zu ihrer früheren Gesinnung Stellung zu
nehmen”.
352
349
T. Albrich, op. cit., p. 315.
350
T. Albrich, op. cit., p. 324.
351
Citado a partir de Andreas Maislinger, “Den Nationalsozialisten in die Hände getrieben. Zur
Geschichtspolitik der SPÖ von 1970 bis 2000”, em Europäische Rundschau, 2001.
352
J. Haslinger, Politik der Gefühle, p. 77.
299
Waldheim, verificou-se uma mudança no espectro geral, com a vitória deste
candidato, que centrou seus esforços em três frentes para lidar com a
acusação de pertencer ao partido nazista: primeiro, “Só cumpri com minhas
ordens, como todos fariam”. Segundo, “Sou tima de um complô difamatório
por parte dos judeus e seus aliados”, o que vai inclusive levar a um aumento do
anti-semitismo em 1986 na Áustria, pois a campanha de Waldheim jogava
abertamente com estes sentimentos, em épocas de fortalecimento de uma
Política dos Sentimentos (Politik der Gefühle). A propaganda de Waldheim
dizia, depois da primeira conferência de imprensa do Congresso Mundial
Judaico, em Viena: Agora com maior razão!” (Jetzt erst recht!), com o que
aludiam a este possível compjudaico. Gehler comenta que isto levou ao
efeito de solidarização dos meios de comunicação austríacos com os ataques
“externos” (dos judeus que, no entanto, eram em grande parte austríacos),
culminando na entrevista do Secretário Geral do ÖVP, Michael Graff, para a
revista francesa L’Express, quando disse: “[...] er [Graff] behauptet hatte, eine
Schuld des Prasidenten sei nicht gegeben, “Solange nicht bewiesen sei, dass
Waldheim eigenhändig sechs Juden erwürgt habe.”
356
Em terceiro lugar, Waldheim adota o discurso patriota, da estirpe de
palavras de ordem como “A Áustria para os austríacos”. Em suma, não se trata
de uma campanha que negou ou procurou ofuscar as acusações que pesavam
contra ele mas, na prática, as aceitou e jogou com elas, inflando o sentimento
anti-semita e, assim, vencendo as eleições. O espólio político desta eleição foi
assumido por rg Haider: “Er [Haider] scheint der wahre Erbe dessen zu sein,
was im Waldheim-Wahlkampf zum Ausdruck kam.”
357
Saindo do âmbito estritamente austríaco para um mais amplo, o fascismo
pode ser entendido não como uma aberração histórica a ser relegada aos livros
de história, onde fica de quarentena e devidamente esterilizado, para uso em
cerimônias pontuais que mais marcam o afastamento do que o enfrentamento
deste passado, como um parêntese no desenvolvimento da civilização
ocidental, mas uma de suas estações. Com Kurz:
356
M. Gehler, “Die AffäreWaldheim”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich im 20.
Jahrhundert, vol. 2, p. 361.
357
J. Haslinger, Politik der Gefühle, p. 11.
300
Das “Recht der Stärkeren” ist die innere Konsequenz dieser Freiheit” [propalada
pelo capitalismo], wobei das vorgeschaltete Kriterium immer schon die
Durchsetzungskraft in der Banalität von Marktbeziehungen ist, dessen Definition
von “Stärke” also einen besonders schäbigen Typus bevorzugt.
358
Aqui se nota em que bases se a relação entre a mãe e as serviçais
contratadas, que teriam “liberdade” pra vender sua força de trabalho a quem
quiser, sendo que a abstração das relações de mercado impede que se veja a
exibição brutal da força. E continuando:
Rassismus und Faschismus sind nur die Fortsetzung dieser Liberalen
Konkurrenzideologie mit anderen Mitteln, indem sie das Konkurrenzschema des
Liberalismus auf Ethnien, „Völker“ und andere irrationale Kollektivsubjekte
übertragen. Insofern ist es keinesfalls eine Übertreibung, den Faschismus als
historischen Abkömmling des insgesamt in der Modernisierungsideologie
hegemonialen Liberalismus zu bezeichnen.
359
Assim se entendem também as continuidades austríacas após o fim do
nazismo, não obstante as muitas mudanças cosméticas necessárias àquela
situação específica. Trazer Auschwitz pra dentro da história inclui perceber não
apenas o quanto os homens podem ser destrutivos, mas o quanto aquele
desenvolvimento estava de acordo com as bases modernas do capitalismo.
Neste sentido pode Heiner Müller alfinetar:
Da habe ich leichtsinnigerweise gesagt: Hitler war schlecht in Geographie, er hat
mitten in Europa gemacht, was ein anständiger Europäer nur in Afrika oder in
Asien oder in Lateinamerika macht. Genozid war normal im Kolonien, aber in
Europa nicht mehr üblich. Das war Hitlers Abweichung.
360
O problema não era o genocídio, mas onde foi praticado, remetendo ao
colonialismo, uma das estações do capitalismo, numa mesma linha de
argumentação que Kurz desenvolve no livro supracitado. Estas continuidades
são tanto fruto da forma social como, na Áustria, assumem feição própria, e
Bernhard toca nos dois nervos. A continuidade histórica está inscrita no
358
R. Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, p. 44.
359
Op. cit., p. 44.
360
H. Müller, “Auschwitz kein Ende. Ein Gespräch mit jungen französischen Regisseuren”, em
Berliner Ensemble. Drucksache 16, p. 603.
301
nazismo de nascença dos pais, que viram expressos nele seus valores mais
arraigados, e não cessa com o fim da guerra, sendo reprimido e esquecido,
agora saindo dos porões: todo este percurso é anotado por Bernhard como
tema e forma. Mesmo como tema, ao realizar uma provocação explícita e
anunciada, por vir de um autor etiquetado com o timbre de “instância
acusatória”, se arvora em forma, que se depreende da pergunta típica de seus
leitores e críticos: contra quem Bernhard atirou desta vez?
O passado do mito Habsburgo
O fato de Wolfsegg ser um castelo faz com que seja enquadrado numa
categoria própria na Áustria, por alguns estudiosos. Para Renate Langer: “Das
Schloß als aristokratischer Wohnsitz fungiert als Topos für das Habsburgische
Österreich”
361
O prenome do narrador Murau, Franz-Josef, o remete ao
imperador que reinou entre 1948 e 1916, considerado por Kraus como a cara
do seu tempo, em poema visto: sem caráter (não mau-caráter), bonachão,
vazio, marcado pela falta de iniciativa e de mobilidade. Ele representa, de certo
modo, uma nostalgia do Império que idealiza o passado feudal, e a esta linha
de argumentação se filia ao famoso livro de Cláudio Magris sobre o “mito
Habsburgo” na literatura austríaca que, mesmo quando irônico, como em Musil,
serve para deixar viva a memória deste período. Bernhard não pode passar ao
largo desta tradição, o que ele mesmo comenta numa entrevista, sobre a
existência de uma literatura eminentemente austríaca:
Vergessen Sie nicht das Gewicht der Geschichte. Die Vergangenheit des
Habsburgerreichs prägt uns. Bei mir ist das vielleicht sichtbarer als bei den
anderen. Es manifestiert sich in einer Art echter Haßliebe zu Österreich, sie ist
letztlich der Schlüssel zu allem, was ich schreibe.
362
Claro que Bernhard irá extinguir também esta posição, como faz com
todas as outras. Entre outros motivos, porque esta nostalgia do antigo, do
mundo do pai de Murau destruído e sem-sentido, em grande medida pela
361
R. Langer, “Die Schwierigkeit, mit Wolfsegg fertig zu werden. Thomas Bernhards
Auslöschung im Kontext der österreichischen Schloßromane nach 1945”, em H. Höller et al.
(orgs), Antiautobiografie, p. 197.
362
Entrevista a Jean-Louis de Rambures, em H. Höller e I. Heidelberger-Leonard,
Antiautobiografie. Thomas Bernhards Auslöschung, p. 16.
302
chegada da mãe, burguesa, controlando o espaço antes dos aristocratas, pode
descambar em nazismo, por mais inofensivo que pareça. Afinal de contas, a
ordem poderia enfim ser restabelecida, Hitler tomado como salvador e
construtor de um substituto para a monarquia perdida, criando um novo “reino”.
Murau chega a afirmar que Wolfsegg não apenas está bem adaptada ao
contexto capitalista, mas ainda usa de astúcia, ao parecer filiar-se a um outro
mundo, com outras relações de base. Daí afirma que essa suposta ordem de
Wolfsegg faz falta à modernidade (AUS, 369), com o que assume o discurso
acima descrito, para logo em seguida descartá-la: “Gleich darauf dachte ich,
daß, was ich gerade gedacht habe, doch völliger Unsinn ist, oder wenigstens
eine Narretei, die zu nichts führt, ein Gedankenscheitern.” (AUS, 370) Afinal de
contas, a ordem é apenas aparência, e todo este complexo de valores deve ser
atualizado.
Aqui se também o enquadramento dos pais de Murau que, sem
grandes sobressaltos, adaptam-se a quaisquer circunstâncias, sabendo tirar o
melhor de cada uma delas, o que foi comentado anteriormente; este
oportunismo foi lido em chave positiva, como adaptabilidade e saber-viver, por
Magris, mas não por Bernhard. A caracterização da vida em Wolfsegg como
uma existência forjada, teatral, metáfora esta que permeia toda a obra, mostra
a impossibilidade das relações naturais, que se esperaria como próprias deste
sistema de valores “imutáveis”, do valor de cada pessoa e do respeito. As
relações de Murau com a família, com os empregados, entre os familiares,
todas são absolutamente falsificadas, e apontam também para o fracasso
desta empreitada. Resta a vida esvaziada e encenada da segunda república
austríaca. No texto intitulado Politische Morgenandacht, Bernhard defende que
os austríacos não souberam aproveitar as chances trazidas pela aniquilação da
monarquia e de Hitler, apontando pra crise atual, em certo sentido, como ainda
ligada a estas duas possibilidades, por um lado como nostalgia e recriação da
própria identidade, por outro como deformação, repressão e esquecimento,
mas ainda vivo e ainda estamos em 1966.
363
Estas cesuras históricas
precisam de atualização para ganhar a dimensão que merecem.
363
T. Bernhard, “Politische Morgenandacht”, em Wort in der Zeit, 12/1/1966, p. 13.
303
A alegoria da Áustria como um Castelo, tendo-se em vista o modo como
Murau o apresenta a nós, consegue atualizar e cerrar num espaço grande
parte da história e das questões decisivas ainda deixadas de lado. Assim,
temos um país de industrialização tardia, onde relações feudais ainda em parte
dominam, mas estas se mostram muito à vontade no cenário capitalista.
Depois, a tensão entre estas relações aparentemente “feudais” e o mundo
republicano e democrático de fundo, na verdade não funciona, se levarmos em
conta a discussão sobre a armação de uma estrutura política “pra inglês ver”,
literalmente, calcada numa democracia de fachada.
364
Ainda: o esquecimento e
deturpação do passado nazista impedem que se entenda o desenvolvimento
histórico que conduziu a ele. Todos estes são temas que a alegorização da
Áustria como um Castelo pode trazer para primeiro plano.
O barroco
A remissão ao mundo como teatro traz o âmbito do Barroco para o
romance, o que ainda ganha força com a encenação do enterro como drama
barroco
365
. Não custa lembrar que o Barroco não faz parte da constituição do
mito Habsburgo de Magris: este retorna até Grillparzer, ou seja, até a primeira
metade do século XIX. A Kindervilla, construção Italiana feita duzentos ou
trezentos anos (no romance, as duas hipóteses são aventadas), bem como a
Orangerie, aludem à tradição barroca. O teatro infantil realizado na Kindervilla
também faz associação ao barroco, com os muitos figurinos que ali estavam
guardados. Dirá Höller, referindo-se ao fragmento de 1964 chamado Der
Italiener, uma espécie de precursor do tema Wolfsegg na obra de Bernhard,
mas que pode ser aplicado também à Wolfsegg de Auslöschung:
364
Ver a discussão de R. Menasse, no capítulo anterior, e também J. Haslinger: “Der
Salzburger Landeshauptmann Wilfried Haslauer (ÖVP) sagte zur Kritik an Waldheim: Das
Herumschnüffeln in seiner Vergangenheit führt zu nichts und ist demokratieschädlich.”
Demokratie (auf österreichisch) bedeutet: Berührungsverbot der Vergangenheit.”, Politik der
Gefühle, p. 32.
365
H. Höller, Auslöschung als Comedie humaine der österreichischen Geschichte”, em F.
Gebesmair et al. (orgs), Bernhard-Tage Ohlsdorf. Materialien, p. 64.
304
Wie in einem barocken Sinnbild arrangiert der Erzähler den Theaterfundus neben
der Schaubühne des Todes, ein allegorischer Aspekt, der die Welt als Theater und
das menschliche Leben als Rolle erscheinen läßt.
366
Se em Der Italiener, contudo, o narrador efetivamente mostra ao italiano,
seu interlocutor, os figurinos da peça que seria encenada caso não houvesse
um morto a ser velado, em Auslöschung a metáfora teatral perpassa todo o
texto, culminando no episódio em que Murau afirma ser Caecilia a diretora, ele
e Spadolini os atores principais no enterro. E o que foi feito, em Auslöschung,
dos figurinos das peças que encenaram na infância e estavam guardados na
Kindervilla? Eles foram queimados, num incêndio provocado casualmente por
saltimbancos que ali pernoitavam. Nada é casual: a destruição dos figurinos da
infância, de certo modo, indica a impossibilidade do projeto de reconstruir a
infância pela renovação da Kindervilla, um dos projetos mais importantes da
escrita deste romance, que se verá a seguir.
Um estereótipo etiquetado como Barroco, por exemplo, é a Wiener
Gemütlichkeit’, que, de acordo com Langer
367
, ainda no entre-guerras produzia
sentimentos de inferioridade, pois se caracteriza pela fraqueza, pela simpatia
inofensiva, pouca capacidade e falta de gana: em suma, desenhando os traços
de um bonachão. Na medida em que se opõe aos fáusticos alemães, este
diagnóstico poderia servir, no pós-guerra, para livrar os austríacos da pecha de
participantes ativos do nazismo. Uma fraqueza de caráter torna-se, assim, um
salvo-conduto e um álibi ante o ajuste de contas com a história e com os
vencedores da guerra. Murau, como era de se esperar, ataca este tipo e,
com isso, essa perspectiva: “[...] an der sogenannten Wiener Gemütlichkeit,
deren Teuflisch-Stumpfsinniges mich auch immer abgestoßen hat, wie der
Begriff der Gemütlichkeit mich immer wenigstens irritiert, aber doch meistens
deprimiert hat, weil die sogenannte Gemütlichkeit doch nichts anderes ist als
ein gemeiner Umgang mit dem Leben, [...]” (AUS, 378).
A concepção de alegoria da modernidade
366
H. Höller, “Politische Philologie des Wolfsegg-Themas”, em H. Höller et al. (orgs),
Antiautobiografie, p. 40.
367
R. Langer, “Die Schwierigkeit, mit Wolfsegg fertig zu werden”, em H. Höller et al. (orgs),
Antiautobiografie, p. 206.
305
A intenção alegórica ligada à remissão ao Barroco é evidente, como foi
mesmo notado pelos autores supracitados. Com Bolle, de modo amplo, “a
alegoria é essencialmente um processo dialético de desvalorização e
revalorização.”
368
Benjamin, no entanto, considera a alegoria barroca
conservadora pelo seu idealismo e por sua fuga do terreno, refugiando-se no
espírito.
369
Em Auslöschung, no entanto, a concepção de alegoria se aproxima
da perspectiva erigida pela obra de Baudelaire. “Sie [as alegorias de
Baudelaire] vollziehen das “Auslöschen des Scheins”, das Benjamin immer
wieder als zentrale poetische Technik Baudelaires erörtert.”
370
O romance
Auslöschung traz em seu título esta proposta, que iremos encontrar ao longo
de toda a obra. Cumpre notar que Baudelaire, no século XIX, centra seus
esforços para decifrar a mitologia do mundo capitalista moderno, tendo em
vista a metrópole Paris e sua caducidade em meio à aparência prometida pelo
progresso, vistos não em último lugar pela recriação desta cidade por
Hausmann. Bernhard, nos estertores do século XX, faz do castelo Wolfsegg e
tudo o que está relacionado a ele uma alegoria da Áustria e, daí, de nossa
época, da modernidade.
Mas a frase de Benjamin encaixa-se, perfeitamente bem, em ambos os
casos: “Was soll das: einer Welt, die in Totenstarre versinkt, von Fortschritt
reden.”
371
O rosto dos pais finge a paralisação, mas aquele mundo está em
movimento. Só por erro se pode deixar de perceber a atualidade de Wolfsegg e
o funcionamento da mesma forma social que toma conta das metrópoles em
todos os rincões da terra, e a alegoria de Bernhard mostra que a tentativa de
esconder o passado, reescrevê-lo, esquecê-lo, não funciona. Por outro lado, a
modernidade que Wolfsegg (a Áustria) gostaria de negar entra pela porta dos
fundos, e não apenas o irmão se torna um duplo do pai, arcaico, mas o pai
arcaico é moderno e, assim, morre num átimo de desconcentração ao volante
do automóvel, a alegoria da sociedade capitalista por excelência: o tempo
abstrato do capitalismo entra pelos seus poros, mesmo contra sua vontade.
368
306
Sendo assim, o capitalismo serve-se da porta da frente para entrar em
Auslöschung, pelas mãos deste tempo esvaziado de Wolfsegg que, por
decorrência da forma estética deste romance, irrompe pela linguagem, que
combate pela verdade da forma social: “Eisenbergs Einladung nehme ich
selbstverständlich an, ich werde ihm sofort antworten, dachte ich, aber sofort
bedeutet, nach meiner Rückkehr aus Wolfsegg.” (AUS, 20). “Imediatamente”,
aqui significa após a volta de Wolfsegg, com o que o tempo de Wolfsegg se
esvazia por completo. Por mais que seja uma expressão aparentemente sem
grandes conseqüências, trata-se justamente de extinguir estas aparências.
“Nicht kreatürliche vanitas, der alles Weltliche und Geschichtliche zum
Totenkopf erstarrt, sondern das Tödliche im Sekundentakt entleerter Zeit ist für
die Großstadtallegorie prägend.”
372
A morte dos pais e do irmão num acidente
automobilístico é o ápice do desenvolvimento destes personagens,
completando o movimento de mercadorização que foi tratado em detalhe nesta
análise, em que a morte representa o inorgânico que, como mercadoria, está
vivo; seja mercadoria do espírito, pelo discurso que se eleva no túmulo aberto,
seja nas fotos nos jornais, em que contribuem para o aumento da venda e da
circulação. “Das von der allegorischen Intention Betroffene wird aus den
Zusammenhängen des Lebens ausgesondert: es wird zerschlagen und
konserviert zugleich. Die Allegorie hält an den Trümmern fest. Sie bietet das
Bild der erstarrten Unruhe”.
373
Deste modo, a atualização da história da Áustria, lida a contrapelo, quer
colocar todo o complexo do Castelo de Wolfsegg em ruínas, a partir de onde se
abre espaço para o Novo. Wir tragen alle ein Wolfsegg mit uns herum und
haben den Willen, es auszulöschen zu unserer Erretung, es, indem wir es
aufschreiben wollen, vernichten wollen, auslöschen (AUS, 199). Este é o
escopo da intenção alegórica em Auslöschung, como o entendo. Se Delacroix
pintou a alegoria da Liberdade no quadro Liberdade guiando o povo, Bernhard
nos contrapõe a mãe de Murau, por um lado a “Personificação do Mal” (Murau),
mas também a “do Bem” (Spadolini), com seu pescoço deformado de nascença
e entortado ainda mais pelo nazismo, uma figura grotesca, que acaba
decepada pelo acidente e lacrada num caixão. Murau tenta abri-lo, precisa ver
372
B. Lindner, “Allegorie”, em M. Opitz e E. Wizisla (orgs), Benjamins Begriffe, p. 74.
373
W. Benjamin. Zentralpark. Em GS I.2, P. 666.
307
o corpo para realizar a operação final deste processo, mas isto lhe é negado ao
vivo; ele a verá decapitada nas fotos dos jornais, com o que, pelo menos por
esta mediação, tem acesso a esta imagem central, como o eram também os
corpos do pai e do irmão, que faz questão de frisar estarem em franco
processo de decomposição. Contrapor as duas figuras alegóricas fala muito do
resultado do processo que tem como uma de suas estações a Revolução
Francesa, talvez o momento em que se acreditava nas possibilidades abertas
pela igualdade da guilhotina, como se viu, também atualizada por Bernhard.
O cunhado personifica a Inação (Untätigkeit) do industrial burguês, que
vai de encontro à imagem que se faz do capitalista ágil, inovador, trabalhador,
que em verdade estão absolutamente desorientados (ratlos)
374
em meio ao
mundo contemporâneo, o qual imaginam controlar via mercado. A sua verdade
é representada por esta inação, dominado que está pela forma da máquina e
pelo seu escritório: pela forma-mercadoria, enfim. Mas o personagem decisivo
é justamente Murau que, em seu movimento constante de formação
supressiva
375
, esvazia-se até o limite, precisando do outro para ter uma voz
376
,
com o quê se assemelha ao mediador por excelência desta forma social: o
dinheiro. Esta a aproximação entre a intenção alegórica e a mercadoria. O
alegorista procura relacionar muitos significados a cada um dos seus
significantes, de modo que o resultado não possa ser estabelecido ou previsto,
pois não há mais uma mediação natural entre os termos do signo:
In der Tat heißt die Bedeutung der Ware: Preis; eine andere hat sie, als Ware,
nicht. Darum ist der Allegoriker mit der Ware in seinem Element. Als Flanêur hat er
sich in die Warenseele eingefühlt; als Allegoriker erkennt er im “Preisetikett” mit
dem die Ware den Markt betritt, den Gegenstand seiner Grübelei die Bedeutung
– wieder.
377
374
Ver, a esse respeito, o conto Es wird etwas geschehen”, de Heinrich Böll, onde esta
desorientação é exercitada ao máximo.
375
Novamente, vê-se aqui a expressão de Pasta Jr, como se pode ler na nota 15 deste
capítulo.
376
Como no texto curto da coletânea Stimmenimitator que título ao livro, comentado em
outra parte.
377
W. Benjamin, Das Passagen-Werk. Fragment J80,2. Em GS V-1, p. 466.
308
O alegórico não sente empatia pela alma da mercadoria, não perde a
distância, pelo contrário: ele percebe que o significado da mercadoria não está
nela, mas na etiqueta de preço, a que tudo se reduz e se iguala. Simmel,
apesar de o concordar com a teoria do valor em Marx, mostra os impactos
na cultura gerados pelo surgimento e dinâmica das metrópoles e do dinheiro.
378
Numa palavra: o alongamento das séries teleológicas implica numa distância
cada vez maior entre meios e fins, que culmina na substituição dos fins pelos
meios e, com isso, no dinheiro visto como fim em si mesmo. Isto acarreta um
esquecimento destes meios que, noutra chave, vai desembocar em alienação e
reificação, termos de Marx
379
e Lukács
380
, implicando na naturalização das
relações de troca no capitalismo. Esta forma se espraia pra todas as relações
humanas, posto que a relação social se dá entciá toa q117(z)]TJ125( )278]TJ3117(t)-2.169588.33v4558.33117547a ed uãi727.49585533117(c)-0.2993-102.223(i)1.z6er 313.3311558295585(ã)-8da95585( )-14 Td[(a)-4.33056(p)-4.3305( )-55.67474(u)-4.331( )-2.16436(e)5s295585(e)-e12117(r)2.8.87122( )-12.13117(n)-4.33117(c)97(o)-4.33117(s)9.710323117(c)-0.295585(i)1.87117(t)-2.169588.33v45.67474(n)-stiteio aus e r s nae c.295585( )-2.16558(4.33117(l)1.8771.575)-4.33117()-4.33117(o)-4.33117(s)9.71032mei111725.67474(e)-4.33117-4.3376 Tü-567474(e)-4ao75m eosce ciáez
309
BEIL (der gerade in sein Schnitzel gebissen hat) Natürlich
PEYMANN Immer kommen Sie mir / mit Ihrem ‚Natürlich’ / wenn Sie doch einmal
sagen würden ‚künstlich/ ‚künstlichBeil ‚künstlich’ Beil ‚künstlich’ / es ist doch
alles ‚künstlich’ in der Welt Beil / ‚künstlich’ ‚künstlich’ Beil ‚künstlich’ / während Sie
andauernd ‚natürlich’ sagen / [...] / alle um mich herum sagen andauernd ‚natürlich’
/ wo sie doch nicht als ‚künstlich’ sagen sollten die ganze Zeit / [...] / es gibt nichts
Natürliches mehr / und in Wien schon gar nicht / [...]
382
Esta discussão ganha relevo em Auslöschung quando fala que não
existem mais pessoas naturais, mas apenas artificiais, artísticas, o que
veremos mais à frente.
Socialismo como capitalismo de estado na Áustria
O aforismo de Benjamin acima citado continua como segue: “Die Welt, in
der diese neueste Bedeutung ihn heimisch macht, ist keine freundlichere
geworden. Eine Hölle tobt in der Warenseele, die doch scheinbar ihren Frieden
im Preise hat.”
383
A mercadoria ganha então uma alma, se humaniza, mas
como valor-de-troca só pode obter significado quando entra pelo mercado
estampado por um preço, que o faz equivaler às demais mercadorias e poder
circular. Esse preenchimento, no entanto, expressa de fato seu vazio: a
abstração do preço e do dinheiro permite apenas uma paz aparente. A
violência de base desta relação, que é a violência da relação social, está
“esquecida” (Simmel), e o homem celebra sua liberdade, por poder vender sua
força de trabalho, por possuir um preço. Essa liberdade é ilusória, pois encobre
a dependência irrestrita dos outros: como já citado das teses de Benjamin, com
Marx, o homem que possui a força de trabalho teque ser escravo dos
outros. Segundo Simmel, com a mediação do dinheiro, as séries teleológicas
se tornam tão longas, que não se percebe a dependência de ninguém em
específico, o que confere a sensação de liberdade; mas nunca se dependeu
tanto de outras pessoas, anonimamente. Esta falsa liberdade produz uma paz
382
T. Bernhard, “Claus Peymann und Hermann Beil auf der Sulzwiese”, em Claus Peymann
kauft sich eine Hose und geht mit mir essen. Drei Dramolette. Berliner Ensemble,
Programmheft Nr. 20, Premiere14.03.2001, p.39-40.
383
W. Benjamin, Das Passagen-Werk. Konvolut J80,2. Em GS V-1, p. 466.
310
falsa, uma das astúcias do capitalismo. Esta é a paz da seleção das
311
In keinen anderen Land haben sie die stumpfsinnigen Parolen von Fortschritt so
bitter ernst genommen, wie in Österreich [...]. Wie sie in Österreich immer alles
Stumpfsinnige ernst genommen haben, sagte ich zu Gambetti, todernst, und Sie
wissen, was das bedeutet. (AUS, 118)
Na palavra todernstse concentra o vigor desta passagem, difícil de ser
traduzida pela sua força expressiva e por ser expressão idiomática em alemão:
seu significado coloquial levaria para “com toda a seriedade”, “seríssimo”, o
acréscimo do tod- ao adjetivo indica reforço, exagero; mas aqui, neste caso,
faz-se indispensável ler tendo em vista o romance, e deste modo este
acréscimo significa morte, e aponta pra história do nazismo e a participação
ativa dos austríacos. A maquinaria da morte industrial faz de Auschwitz um
momento da história da modernidade, com direito a assento na primeira fila. O
nazismo como parte do progresso capitalista gerado na paz dos mercados vem
pra primeiro plano neste aposto corretivo; os austríacos não são apenas sérios
em aceitar estes conceitos vazios como os de progresso, eles os levam até o
seu limite. Murau não permite que haja quaisquer dúvidas deste passo, o que o
leva a explicitar tematicamente o que estava embutido na forma da
expressão todernst’, ao completar: e você sabe o que isso significa. (und Sie
wissen, was das bedeutet).
Esta Máquina de Aniquilação (Vernichtungsmaschine: AUS, 112),
capitaneada pelo Estado, não deixa pedra sobre pedra, sendo o ímpeto desta
destruição marcado pela repetição incessante e irrevogável, que expõe o tema
pela adoção de uma cadência agressiva, da qual vou reproduzir apenas uma
parte:
Die Auslöscher sind am Werk, die Umbringer. [...] Die Auslöscher und die
Umbringer bringen die Städte um und löschen sie aus und bringen die Landschaft
um um löschen sie aus. Sie sitzen auf ihren dicken Ärschen in den Tausenden und
Hunderttausenden von Ämtern in allen Winkeln des Staates und haben nichts als
die Auslöschung und das Umbringen im Kopf [...]. (AUS, 113)
Tomando por base os verbos assassinar (umbringen) e extinguir
(auslöschen), exercita a raiz em suas várias formas, quase esgotando as
312
possibilidades: como Sujeito, adjetivo e verbo, criam uma redundância que,
aparentemente, não faz sentido, soando irracional. Algo como: Os assassinos
assassinam e não têm outra coisa na cabeça senão cometer assassínios. Mas
esta falta de sentido vira do avesso quando se tem em vista que ela implica na
irracionalidade desta forma social, que procura expressar. A frase não tem
sentido, pois a ação (no caso, do Estado empreendedor no capitalismo)
também não tem, o que dialeticamente garante a fatura crítica pela forma
estética, que no âmbito temático não argumenta, como já visto.
O campo semântico das palavras ainda merece menção: discorrendo
sobre a condução da política austríaca no que diz respeito à destruição das
cidades e do campo, chama seus representantes de assassinos, e os acusa de
extermínio. Soa estranho, o seu tanto fora de contexto: assassinar a cidade ou
o campo, como entender isso? Fica mais claro quando se tem em mente a
crítica voraz aqui em curso à malfadada “desnazificação” (Entnazifizierung)
austríaca, que valeu para uso externo, a julgar pelos comentadores citados
neste capítulo sobre o nazismo na Áustria. Internamente, em pouco tempo os
antigos nazistas retomaram seus postos na administração pública, seja por
conseguirem documentos “comprovando” sua não-participação (caso de
Waldheim, por sinal, o que será desmascarado em 1986), seja por uma brecha
legal que os permitia voltar caso fossem “insubstituíveis”, com o que muitos
substituíveis voltaram a seus postos. Na frase dura de Haslinger: “Der Begriff
Entnazifizierung bekam in Österreich bald einen neuen Sinn. Er bedeutete
nun: Reinigung der Nationalsozialisten von jedem Schuldvorwurf.”
386
Temos então os dois passos ao mesmo tempo, o geral e o específico
aqui: a forma capitalista de progresso pode ser alegoricamente figurada como
um extermínio, uma destruição completa, o que está diretamente relacionado
com a guerra e o de pior que pode ocorrer nela, com a abstração da matança,
que ganha dimensões quantitativas e se torna de massa; ao mesmo tempo, a
alusão a uma situação específica da política austríaca, que inclui uma forma de
386
J. Haslinger, Politik der Gefühle, p. 69. Ver, ainda, a este respeito O. Rathkolb, “Die Kreisky-
Ära 1970-1983”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich im 20. Jahrhundert, vol. 2,
p.307: “Alle wesentlichen politischen Parteien – mit Ausnahme der KPÖ [Kommunistische Partei
Österreich, AF] gingen sehr rasch von einer Entnazifizierungspolitik zu einer
Reintegrationspolitik ehemaliger Mitglieder der NSDAP über. Die nationalsozialistische
Vergangenheit wurde gesellschaftspolitisch nicht mehr aufgearbeitet”.
313
lidar com o passado e com a memória, que inverte os pólos e faz dos
agressores vítimas, justificando-se por um argumento caro à ética do trabalho:
não se deve distinguir entre modalidades de trabalho, mas sim entre trabalho
bem feito e mal feito. Noutras palavras, tanto uma mediação formal pela
intenção alegórica e pelas palavras que, vistas sob o prisma da história e da
luta pelo sentido, mostram uma outra história e uma outra língua, quanto uma
imediação social, pela remissão direta à questões polêmicas da vida em
sociedade na Áustria, e que programaticamente devem provocar, assim
elevadas também a estatuto formal, com o quê deixam de ser “impurezas
formais”.
Essa imediação social tem alvo bem mais concreto do que a generalidade
da classe política austríaca: ela mira um governo e homem específicos, a
saber, Bruno Kreisky e seu SPÖ (Sozialdemokratische Partei Österreich, antigo
Sozialistische). Cumpre notar que a menção a uma situação específica não
elimina ou enfraquece a análise formal, antes a reforça, pois uma o exclui,
mas exige a outra para seu desdobramento completo.
O governo Kreisky se estende de 1970 a 1983, e inclui tanto uma onda de
modernização quanto o arrefecimento do enfrentamento da Áustria com seu
passado nazista, a despeito de ser judeu, como visto na introdução.
387
O
principal momento deste entrevero ganha contornos com o chamado escândalo
Kreisky-Peter-Wiesenthal-Affäre.
388
O affaire se inicia em 1970 e tem seu
ápice em 1975. Em 1970, o SPÖ de Kreisky se alia aos liberais (FPÖ) para
formar o governo de coalizão, quando Simon Wiesenthal acusa quatro
integrantes do governo de Kreisky de terem pertencido ao partido nazista,
sendo um deles integrante das tropas SS. Como visto algumas páginas atrás,
Kreisky não apenas os apóia, mas sai em sua defesa incondicional. Em 1975
Wiesenthal volta à carga, e apresenta um dossiê comprovando a participação
do presidente do FPÖ, Friedrich Peters, numa brigada de morte da SS, embora
não tenha conseguido provar que Peters, pessoalmente, tenha cometido tais
crimes. Kreisky defende Peters acusando Wiesenthal de colaboracionismo com
387
T. Albrich, “Holocaust und Schuldabwehr”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich
im 20 Jahrhundert, vol. 2, p. 78. Ver, ainda, no mesmo volume, O. Rathkolb, “Die Kreisky-Ära
1970-1983”, p. 306.
388
T. Albrich, op. cit., p. 79-81, e O. Rathkolb, op. cit., p. 305-309.
314
os nazistas, e exorta: “es [sei nun] Zeit, einen Schlußstrich unter die
Vergangenheit zu ziehen.”
389
muitos interesses em jogo neste episódio, e
mesmo a Comunidade Israelita não apóia integralmente Wiesenthal, receando
que este faça o jogo do partido ÖVP (que, junto com o SPÖ, formam até hoje
os dois maiores partidos austríacos). Mas não há dúvida de que Kreisky
intentava esquecer este passado, por motivos aqui tratados: o fato de terem
sofrido juntos sob o Austrofascismo e a necessidade de apoio do FPÖ, que
surgiu sob os auspícios do SPÖ já calculando os votos dos ex-nazistas.
Deste modo, quando se refere aos burocratas austríacos com suas
“bundas gordas” nos mais remotos recônditos da Áustria como assassinos e
exterminadores além de impedir o uso de um termo neutro e apaziguador
como “burocratas”, remetendo ao burocrata-mor e assassino Eichmann
Murau critica o conceito de progresso e o que este faz das cidades, dos
campos e dos austríacos, tomados por uma “incultura devastadora”
(verheerende Unkultur: AUS, 112), mas também se refere às práticas políticas:
Ganz zu schweigen von den politischen Verhältnissen. Was für scheußliche
Kreaturen in diesem Österreich heute die Macht haben! [...] Leidenschaftlichen
Zerstörer sind am Werk, rücksichtslose Ausbeuter, die sich die Mantel des
Sozialismus umgehängt haben. Die Regierung betreibt eine ungeheuerliche
Vernichtungsmaschine, in welcher tagtäglich alles vernichtet wird, das mir lieb ist.
(AUS, 112)
E assim entra o socialismo austríaco sob Kreisky pelo romance,
caracterizado em duas frentes: como uma espécie de furor burocrático,
imobilismo e abuso do poder infiltrados em todos os cantos (dicken Ärschen,
Auslöscher, etc), que remete às políticas social-democratas e a aplicação do
Keinesyanismo, com aumento da interferência do Estado no papel de investidor
e mediador da atividade econômica (o que ainda tem raízes históricas na
burocracia do final do Império, sob Franz Joseph), aliado a um espírito
empreendedor capitalista de matriz liberal: “[...] ganz Österreich ist zu einem
skrupellosen Geschäft geworden. Sie glauben, in ein schönes Land zu reisen
und reisen in Wahrheit und in Wirklichkeit in ein pervers geführtes
389
T. Albrich, op. cit., p. 80.
315
Geschäftshaus” (AUS, 117)
390
Aqui dois caminhos a seguir, um austríaco e
outro de ordem geral, ambos pertinentes.
O vínculo seminal entre os liberais e socialistas na Áustria foi anotado,
entre o SPÖ e FPÖ, e conduz à caracterização das medidas tomadas pelo
governo reformista e desenvolvimentista de Kreisky, de forma geral, como
reformas sócio-liberais (sozialliberalen Reformen) e como keynesianismo
social-democrata (sozialdemokratische Keynesianer)
391
, de modo que o ímpeto
liberal não está alheio à manutenção das estruturas burocráticas vigentes, e
mesmo dos ocupantes destes cargos. Com Menasse, o desenvolvimento
econômico austríaco deve ser creditado ao esvaziamento do poder e da
consciência dos trabalhadores durante o austrofascismo e nazismo, quadro
preservado após a guerra, com os principais postos da burocracia ocupados
por antigos austrofascistas (que, com o fim da guerra, posavam de grandes
heróis da resistência) e a gestão econômica mantendo os parâmetros
introduzidos pelos nazistas, como, por exemplo, na adoção de uma política
salarial muito austera. De 1945 a 1955, ano do “Contrado do Estado”
(Staatsvertrag), que devolve a soberania política em 1955, vigia o consenso de
que se deveria manter paz interna, para não haver riscos de estender e,
mesmo, sacramentar a ingerência política das potências vencedoras. A partir
de 1955 entra em cena o Sistema da Parceria Social, cujos grêmios exerciam
enorme influência em todas as questões relevantes da vida em sociedade e
que estava fora da esfera de controle público: noutras palavras, os
mecanismos democráticos seriam em parte apenas fachada.
392
Pesquisas
mostravam que a maioria não sabia como era constituída esta parceria, nem
onde ocorriam suas reuniões daí a abstração da esfera do poder mas
consideravam sua atuação fundamental e válida.
393
390
Nesta passagem, ainda alude ao que hoje se intitula diferencial ou vantagem competitiva”
da Áustria para o turismo, com suas paisagens e cultura, e que antigamente se diria “vocação”.
391
Estes termos são utilizados pelos organizadores da coletânea Österreich 1945-1955.
Gesellschaft, Politik, Kultur; R. Sieder et al. (orgs). Conferir também, a este respeito, P. A.
Ulram, Hegemonie und Erosion. Politische Kultur und politischer Wandel in Österreich, p. 230 e
ss.
392
R. Menasse, “Exposition. Im Anfang war das Neue Österreich”, em Das war Österreich, p.
21-26. Ver, ainda, sobre a ausência de debate democrático por conta do poder destes grêmios
de parceria social, p. 84-88 e p. 129.
393
Daí ser conseqüente que: In dem vom damaligen Parlaments- [1990-2002] und heutigen
[desde 2004] Staatspräsidenten Heinz Fischer herausgegebenen Band Das politische System
Österreichs heißt es daher im Abschnitt über die Sozialpartnerschaft: deren Politik sei
316
Deste modo, não é de se estranhar que Oliver Rathkolb chame o modelo
de Kreisky de Austrokeynesianismus’, visto que a política fiscal na prática
estava nas mãos dos grêmios da Parceria Social. E mesmo com a crise do
petróleo em 1973, a Áustria conseguiu manter o crescimento.
394
Tendo isto em
vista, devo tomar algumas citações do romance e contrapor a textos publicados
em um jornal e uma revista, nos quais Bernhard fala sobre Kreisky. Numa carta
ao jornal alemão Die Zeit, Bernhard ataca com as seguintes palavras:
Der Kommis Kreisky, ein echter Nestroy, also eine Figur der Weltliteratur, [como
aparece em Auslöschung] wenn auch nicht der Weltgeschichte, behauptet, er
führe einen phantastischen Laden, während er doch ganz genau weiß, daß er
bankrott ist und die Regale leer sind. Nicht ein einziges Sackerl echten
unverfälschten Sozialismus ist nicht einmal im der unterste Lade.
395
Estas invectivas, publicadas na Alemanha, talvez fossem desconhecidas
dos editores da revista Profil que, em 1981, encomendam a Bernhard uma
resenha do livro sobre Kreisky, com textos de Peter Turrini e Gerhard Roth.
Neste artigo Bernhard cunha termos como Höhensonnenkönig’,
Halbseidensozialist’, eine echte österreichische Fatalkatasthophe’, [...] ein
Sozimonarch’.
396
Não é difícil encontrar em Auslöschung termos aproximados e
o mesmo tom destas linhas, como por exemplo em skruppellosen Geschäft’,
ou chamar a Áustria de Geschäftshaus(AUS, 117). “Die Schönste Gebiete
sind der Geld- und Machtgier der neuen Barbaren zum Opfer gefallen, [...] Und
alles im Namen des Sozialismus mit der widerwärtigsten Heuchelei [...]” (AUS,
113).
‘illusionär’, ‘wirklichkeitsfremd’ und ‘verklärt’, aber ‘dennoch’ – oder vielleicht deswegen – konnte
sie ‘geschichtsgestaltende Kraft erlangen.” R. Menasse, “Szene. Seinesgleichen geschieht”, em
Das war Österreich, p. 89.
394
O. Rathkolb, “Die Kreisky-Ära 1970-1983”, em R. Steininger e M. Gehler (orgs), Österreich
im 20 Jahrhundert, vol. 2, p. 318 e, especialmente, p. 338: “Zum Unterschied von vielen
anderen Industriestaaten ging diese Entwicklung in Österreich relativ rasch vor sich und wurde
auch durch konkrete politische Programme und Projekte noch verdichtet, war daher auch als
“Ära” erkennbar”.
395
T. Bernhard, “Ein Brief an die Zeit”, em Die Zeit, 29.06.1979, apud J. Dittmar (org), Sehr
gescherte Reaktion, p. 108.
396
T. Bernhard, “Der pensonierte Salonsozialist”, em Profil, 26.1.1981, apud J. Dittmar (org),
op. cit, p. 109.
317
Deste modo, este progresso como destruição deve ser creditado
diretamente à Áustria sob Kreisky; se o ímpeto aniquilador dos “novos
bárbaros” com seu dinheiro não conhece limites, flerta aqui com o capitalismo
da estirpe mais selvagem que se pode imaginar, de matriz liberal, mas sem
perder a estrutura burocrática histórica que o sustenta. A condução deste
processo sob o manto dos socialistas será tachada como hipócrita, visto o seu
formato liberal que coloca o dinheiro e seus interesses acima do bem-estar das
pessoas. No fundo, sob o manto socialista se praticava uma política liberal,
mais própria da direita, centrando seus esforços não no bem-estar das
pessoas, mas no desenvolvimento que pode mesmo aumentar as
desigualdades sociais. O conceito de Murau de socialismo seria outro, não
afinado com estas políticas. E, de fato, Murau diz: “Ich meine den heute
herrschenden Sozialismus, der nur geheuchelt ist, Gambetti, den verlogenen,
den impertinent vorgetäuschten.” (AUS, 118)
Esta outra tradição socialista, não levada a cabo, não se refere apenas ao
caso austríaco, onde se verificou a chegada do socialismo ao poder e seu
funcionamento bastante complexos, marcado pela ligação entre socialistas, ex-
nazistas e igreja, numa combinação bem austríaca que Bernhard plasma em
seu texto, não apenas no nível temático, mas principalmente no formal. Ela se
liga à relação de fundo entre o socialismo (e a social-democracia) a partir do
final do século XIX que, em sua configuração alemã, na esteira de Benjamin,
apega-se à moral do trabalho que, afinal de contas, é interna ao sistema,
desaguando num marxismo vulgar. Kurz mostra este processo também na
URSS, o que chamou de Capitalismo de Estado.
397
Em Auslöschung:
Wir haben heute keinen tatsächlichen Sozialismus, nirgendwo auf der Welt, nur
diesen verlogenen, geheuchelten, vorgetäuschen [...] Dieses Jahrhundert hat es
zustande gebracht, das Ehrenwort Sozialismus in einer Weise in den Schmutz zu
ziehen, [...] Die an den tatsächlichen Sozialismus gedacht [...] haben [...] würden
sich im Grabe umdrehen, wenn Sie sehen könnten, was ihre widerwärtigen
Nachfolger aus ihm gemacht haben. [Und] was heute unter ihrem Ehrenwort
Sozialismus verkauft [...] wird [...] in Europa und auf der ganzen Welt. (AUS, 118-
9).
397
R. Kurz, O colapso da modernização, 1992.
318
Este socialismo de fachada atua, no fim das contas, totalmente dentro das
categorias capitalistas, não se constituindo em alternativa ao sistema, antes
uma sua astúcia, ao amenizar o sofrimento dos trabalhadores sem questionar a
forma central do sistema produtor de mercadorias. Uma válvula de escape para
amainar as tensões próprias do capitalismo que, a bem da verdade, não é
invenção socialista: Bismarck as implementou na Alemanha, e Getúlio Vargas
no Brasil. Com Kurz, a social-democracia adota o ponto de vista da classe
trabalhadora” (Standpunkt der Arbeiterklasse),
in Wahrheit ein Standpunkt innerhalb der bürgerlichen, kapitalistischen Welt und
ihrer permanenten, bewußtlosen Modernisierung eingenommen [wurde].
Realhistorisch wurde der ‘Standpunkt der Arbeiterklasse’ zum ‘Standpunkt der
Arbeit’, d. h. des abstrakten, repressiven Prinzips [...]
398
Deste modo esta social-democracia (e mesmo o comunismo) não mais se
preocuparam com a comunidade de pessoas livres, além do mundo da
mercadoria, dinheiro e Estado, mas aceitam e estimulam a concorrência
irracional e a acumulação do capital, deixando de lado a crítica marxista do
fetichismo, que se insurge contra o trabalho abstrato e o delírio do
desempenho. Sendo assim, Bernhard procura tanto acertar a minúcia, o
detalhe da formação histórica austríaca como, ao mesmo tempo, chegar ao
todo da forma social capitalista. É um projeto ambicioso, porém inescapável,
posto não ser possível apreender a Áustria, o caso específico, sem deitar a
vista no todo do qual a Áustria faz parte; a recíproca também e verdadeira, e a
remissão direta ao todo da vida social torna-se etérea sem o específico. Hans
Höller resume isso de modo claro: “Bernhard, auch in der österreichischen
Tradition mehr zu Hause als andere, hat nicht die österreichische Tradition,
sondern den epochalen Bruch mit dieser ins Zentrum seiner Werke gerückt.”
399
O encaminhamento ao todo da forma capitalista faz parte da forma deste
romance, em que abundam generalizações como a realizada na última citação
398
R. Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, p. 199.
399
H. Höller, Thomas Bernhard, p. 106.
319
do romance, em que deixa o campo específico da Áustria e se joga para o
mundo, o que nao significa perder de vista sua tradição e cultura, muito pelo
contrário, ele pode desmascará-la como parte deste todo. Como sempre,
Be par s pinãa
320
321
[...] das nationalsozialistische Verbrechertum, das heute nur totgeschwiegen wird,
nachdem es so viele Jahrzehnte gründlich verdrängt worden ist. [...] Das
Schweigen unseres Volkes über diese tausende und zehntausende Verbrechen ist
von allen diesen Verbrechen das größte [...]. (AUS, 458)
Esta é a perspectiva que emprestará voz ao mineiro Schermair, um
conhecido a quem Murau presta homenagem em Auslöschung, e não apenas a
ele, mas a muitos que, como ele, sofreram durante o nazismo e não
conseguem nem mes6(a)5.67474as mes ostsa,nus ozear csl e-442.4414()-4.33115394 0 4278] s s sineiro
322
Uma outra história da humanidade
Murau procura, com isso, uma outra história da humanidade, de um outro
ponto de vista, não o dos retratos dos seus antepassados nas paredes de
Wolfsegg, mas o ponto de vista da sala e o da mesa que estão neste mesmo
cômodo.
Wenn dieser Speisesaal reden könnte, hatte ich zu Gambetti gesagt, hätten wir
eine komplette unverfäschte, genauso phantastische wie reale, genauso
strahlende, wie fürchterliche Menschheitsgeschichte. (...) Aber Speisezimmertische
reden nicht, hatte ich zu Gambetti gesagt, das ist auch gut, denn wenn sie redeten,
würden sie von denen, die sich an sie setzen müssen, schon nach kurzer Zeit
zertrümmert werden. (AUS, 172)
A voz de Schermair, aniquilado em vida, é também a voz destas mesas e
desta sala. E sem rodeios, Murau vai direto no ponto: bom que estas mesas
não falam pois, se falassem, teriam sido destruídas muito tempo. A tradição
está pendurada na parede, também o seu discurso está presente nesta sala,
representado pelas fotos. A luta dos dois discursos é desigual, e Murau tenta,
pelos ltiplos recursos de que dispõe, fazer estas mesas falarem, ao mesmo
tempo em que faz parte da tradição dos seus antepassados até seus pais. Não
se trata de simples escolha de um lado em detrimento do outro, mas a justiça
histórica se faz pela contraposição e atualização de ambos, tornando o
presente pesado. Schermaier e os nazistas, as mesas e os quadros: desta
altercação surge o texto, marcado por uma dinâmica entorpecente.
No caso de Auslöschung, eu completaria a imagem de Bernhard do palco
vazio lembrando que os alicerces ficam à mostra; na verdade, o livro trata dos
alicerces e das mesas que viveram de perto os horrores da história e se
mantiveram de posto que calados; seu silêncio serviu como salvo-conduto
para a posteridade. (AUS, 172) Isto vale tanto para as mesas da sala de jantar
de Wolfsegg quanto para o mineiro Schermaier, cujas vozes ecoam neste
romance. Murau lhes faz falar de olho na história incrustada nas cadeiras, que
poderiam escrever uma outra História da Humanidade, e no choro silencioso da
323
esposa de Schermaier, que não consegue verbalizar sua dor, contrastando
com os discursos dos ex-nazistas que reassumem voz ativa no alegórico
enterro dos pais: quando estes descem à cova, o seu mundo não será
enterrado com eles, antes o contrário, suas vozes “mortas” ganham vida de
novo.
Sendo Wolfsegg alegoria da Áustria, o enterro dos pais não corresponde
ao fim do mundo que estes carregavam nas costas, pelo contrário: o ensejo
para a volta triunfal ao primeiro plano do que estava reprimido e escondido. O
enterro alegoriza o momento histórico em que o livro é publicado, com os
debates em torno da eleição de Kurt Waldheim, e o fato dele ter vencido a
eleição, a julgar por Menasse, Haslinger e Gehler,
324
ferida está exposta, o que não implica dizer que a dignidade destes
personagens será devolvida; na verdade, ocorre o contrário, e eles continuam
banidos, agora humilhados em cena aberta ao público, com a aprovação de
parte deste.
Por este percurso espero esteja claro que a redução à linguagem não
deságua em formalismo vulgar. Esta linguagem está carregada de história:
mesmo que se tente apagá-la da língua e fazê-la mero instrumento, lépida e
ágil, a língua não o permite e guarda, formalmente, sua dignidade e verdade
em sua tensão íntima e de ordem constitutiva, que deve ser despertada do
sono do mito: esta a pretensão deste projeto literário, que lhe confere sua
atualidade e radicalismo.
A Kindervilla como memória de um espaço estético
Murau depende de uma recuperação pela memória para realizar esta
atualização, que não prescinde da intenção alegórica discutida. A arquitetura
e os espaços em Wolfsegg são partes desta construção. O prédio da
Kindervilla, porém, ocupa um lugar a parte neste cenário, pois ao longo do
romance Murau cogita, várias vezes, reconstruir e refazer a Kindervilla, e
acompanhar passo a passo este projeto ao longo da narrativa equivale a
entender como Murau concebe a recriação da história pela memória.
[...] die sogenannte geliebte Kindervilla [...] ist für Kinder gebaut worden. In ihr
befindet sich ein Puppentheater, in welchem immer Theatervorstellungen
stattgefunden haben, von Kinder veranstaltet. [...]In der Kindervilla sind Hunderte
von Kindertheaterkostümen aufbewahrt. (Aus, 184)
Em estilo italiano, leva ao campo semântico de Roma, da latinidade, que
aqui se apresenta como exótico, mas que, apesar disso, está bem adaptada à
região. O teatro de bonecos para crianças liga-se à tradição austríaca do
Kasperl, que no século XIX se transforma em teatro de bonecos para crianças,
e que está relacionado ao personagem barroco Hanswurst. Esta tradição está
presente nos figurinos, ainda guardados, e remetem à infância de Murau. Daí a
325
primeira menção ao projeto de reconstrução, que havia sido bloqueado pelos
pais, que fecharam a Kindervilla.
Por um lado, um espaço amado na infância, ligado a uma tradição teatral
das mais estimulante, com montagens redigidas pelas próprias crianças. O seu
exotismo prende a atenção, trazendo evocações italianas para Wolfsegg, o que
reforça um ar misterioso que a envolve. O narrador diz que foi construído
trezentos anos (AUS, 163), mas depois fala em duzentos anos (AUS, 184).
Parte deste encanto inexplicável, a Kindervilla é palco anualmente da chamada
Gärtnerjause, uma festa na qual a família de Murau serve os jardineiros, numa
carnavalização das relações ali existentes.(AUS, 333). Num determinado
momento de suas infâncias, para Murau a mais dolorosa, eles foram afastados
da Kindervilla e do teatro, pois era preciso estudar. (AUS, 185) A moral do
trabalho entra aqui em cena, por assim dizer: brincar o teatro não se compara à
educação formal, que vai nos transformar em títulos ambulantes. “Aber wie
immer [...] wird das tatsächlich Poetische wie nichts sonst vernachlässig.” (AUS,
185)
Por outro lado, a Kindervilla também está marcada pelo terror maior; está
manchada pelo passado nazista. O pai cedeu, por livre e espontânea vontade,
este espaço para os nazistas, que ensinavam seus jovens (Hitlerjugend) a
entoar suas canções. (AUS, 194). Lá, ainda, estava hasteada a bandeira
nazista que, ao ser retirada pela mãe, provoca um torcicolo permanente nela.
Apesar desta mácula e visando aquela infância, Murau projeta reerguer a
Kindervilla várias vezes ao longo do romance. O que fora terminantemente
proibido pelos pais, por ser um desperdício irracional de dinheiro, torna-se um
dos carros-chefe dos projetos de Murau para Wolfsegg, ao lado de abrir todas
as portas das cinco bibliotecas e jogar as chaves fora. “Die Kindervilla werde
ich herrichten lassen” (AUS, 400). Agora como Senhor de Wolfsegg, esta frase
lhe parece a mais natural de todas, embora tenha um efeito devastador sobre
as irmãs. Sua intenção é reabrir a Kindervilla com uma peça com crianças da
região, tornando-a novamente viva.
Entra em cena então o fator que vai levar por água abaixo todos estes
projetos, e não assusta que estejam ligados à atualidade deste passado
nazista. Uma checagem na lista dos convidados confirmados para o enterro o
326
aterroriza: ele que dois Gauleiter estarão presentes, além de ex-membros
das SS, os quais considerava presos ou mortos. Em verdade, saem dos
esconderijos subterrâneos onde estavam (Untergrund), e de onde mantinham
contato com seus pais por todo este tempo. “[...] und die jetzt dieses Begräbnis
dazu benutzen werden, sagte ich mir, um zum ersten Mal wieder ganz deutlich
vor die Öffentlichkeit zu treten.” (AUS, 440).
Esta é a chave para se retomar a história desta construção: estes homens
permaneceram uns quatro anos escondidos na Kindervilla, até 1949 (até Murau
fazer quinze anos). E enquanto os pais jantavam com os americanos, eles se
refugiavam a poucos metros de distância. Por mais que os pais tenham sempre
silenciado sobre este assunto, a proibição imposta às crianças era eloqüente, e
não podia passar despercebido que algo acontecia dentro daquelas paredes
amadas (AUS, 441). Murau ainda se lembra de um destes ex-nazistas
agradecendo os quatro melhores anos de sua vida naquelas dependências
(AUS, 445).
A Kindervilla como esconderijo e dos mais aconchegantes metaforiza
a saída e a volta à cena destes personagens da vida real austríaca, e aqui a
remissão à eleição de Kurt Waldheim é quase direta: com esta eleição, os
valores representados por esta posição puderam ganhar as ruas de novo, não
obstante a crítica da comunidade internacional. Como visto, as estratégias
de Waldheim nesta eleição passaram por se colocar como vitimizado por uma
conspiração judaica, além de se colocar como um homem que cumpriu com
seu dever, com o que não se questiona as práticas e os crimes cometidos, nem
os valores, que assim, de certa forma, permanecem ativos. Bernhard parece
estar fazendo um exercício de futurologia em 1982, quando escreve o
romance, que na verdade nada tem de cosmologia, mas de forma social, ao
dizer: “[...] sie sind es, die sie sozusagen nicht, wie oft gesagt wird, noch heute,
sondern gerade heute in noch viel höherem Maße als ihre Leitfiguren
betrachten, [...] Diesen heimlichen Führern meiner Landsleute, dachte ich,
werde ich die Hände schütteln müssen.” (AUS, 443) A eleição não foi vencida
por resquícios daqueles valores (noch), mas exatamente agora eles voltam ao
primeiro plano com força total (gerade heute). Ele repete a expressão Führer
secretos” (heimlichen Führern) três vezes, no mínimo, e esta é uma maneira de
327
se convencer e de não esquecer, uma das funções da repetição, além de que o
eco da frase não permite que ela passe despercebida. A repetição grava na
memória e a faz ativa, trazendo à tona o passado que não se pode esquecer.
“Der Nationalsozialismus ist das größte österreichische Übel neben dem
Katholizismus, dachte ich [...]” (AUS, 444). Este “mal austríaco”, no entanto,
define a hierarquia do enterro: primeiro os bispos, entre os quais dois
arcebispos, e logo atrás os dois Gauleiter e os homens da SS, que com suas
assinaturas mandavam milhares aos campos de concentração. Seguindo-os
estará o povo nazista-católico, acompanhados por uma música nazista-
católica. E salvas de tiro nazistas serão ouvidas da rampa do cemitério e os
sinos católicos vão gemer. (AUS, 444)
Esta escalação chega ao ápice com o sol e a chuva nazista-católicos.
(AUS, 444-5) Tudo acaba sendo contaminado por esta história que sai dos
porões e ganha as ruas de novo, agora sem maquiagem. Com as anistias,
estes burocratas reassumiram seus postos. O enterro alegoriza o momento
atual (de 1986): na frente, vão os católicos, atrás os ex-nazistas (os Führer
secretos), seguidos do povo, que também tem o mesmo epíteto. A arte está
presente, pela música, e as saraivadas de tiros e o sino completam o quadro. A
memória não deixa que se pense apenas nos mortos e na condução da
cerimônia, como num ritual que remonta à séculos atrás, mas, pelo exagero,
este passado se atualiza mesmo na paisagem, que se torna impossível, de tal
modo que mesmo a natureza perde a inocência e se toma parte deste presente
aterrador. A totalização da forma ganha expressão por esta disseminação do
epíteto indistintamente, tomando conta de todos os campos.
Não se trata uma biologização da história, mas o seu contrário, uma
historicização da paisagem e da natureza. Este é um dos caminhos pelos quais
este narrador faz com que a história venha a primeiro plano, penetrando todos
os níveis, para impedir que seja esquecida ou distorcida. Nestas condições,
mesmo o sol se mostra nazista. Não mais natureza, ela foi toda destruída
pelo progresso e por seus conceitos, pela naturalização das relações no
capitalismo, como deixa claro a investida contra a palavra “naturalmente”,
comentada.
328
In der Kindervilla suchte ich nach die Kindheit, aber ich fand sie natürlich nicht. [...]
das ist aber absurd, nur daran denken, denn die Kindheit läßt sich nicht mehr
herrichten, indem ich die Kindheit herrichte, [...] Die Kindheitszimmer sind genauso
ausgeräumt und verschleudert worden, ausgeraubt worden wie die Kindervilla, die
Kindheit aber nicht, wie die Kindervilla, von der Mutter, sondern von mir selbst, [...]
Die Kindheit ist vollkommen ausgenützt und von mir verbraucht worden, [...]
verramscht worden, dachte ich. Die Kindheit habe ich ausgebeutet bis zum letzten.
Wir suchen überall die Kindheit und wir finden nur überall die gähnende Leere, [...]
Ich gehe in die Kindervilla hinein, heißt ja nur, ich gehe in die gähnende Leere
hinein, [...].(AUS, 598)
Uma primeira consideração diz respeito ao campo semântico das palavras
que qualificam a infância como esgotada e falsa, todas do âmbito da economia.
Ausnützen, verschleudern, ausrauben, verbrauchen, verramschen, ausbeuten:
a infância entra como um produto, uma mercadoria “infância”, que pode ser
esgotada, vendida, roubada, consumida, liquidada, explorada, mas nunca com
dignidade. Murau a cria para uso próprio, externamente, como algo que
erigisse no lugar de sua infância, da memória de sua infância. Como um bom
produto, acaba consumida até o esvaziamento completo. Gähnende Leere’:
algo como vazio abissal, vazio completo, mas esta tradução perde o
componente corporal, do bocejo, que a expressão idiomática alemã carrega, e
que assim se liga à infância de uma pessoa. Gähnende Leere: sempre em
itálico, no romance, destacado, enfatizado, repetido à exaustão, num misto de
exclamação, descoberta, infâmia, medo, todos estes sentimentos juntos: uma
outra dicção. Vazio tanto pelo consumo da infância, mas principalmente por
perceber que esta infância foi sempre falsa, suas expectativas de reerguer a
infância também se situavam no espaço delimitado por este produto, que
poderia ser recarregado, repintado, refeito; mas a única coisa que tem em
comum com a Kindervilla é o estado de completo abandono, que deixa Murau
estupefato, e que funciona como uma virada dentro do romance.
Não há como eliminar a história que foi vivida nesta Kindervilla, esta
página da história que inclui o nazismo e sua continuidade, no subsolo
metaforizado por este espaço o seu tanto mágico. Esta memória da Kindervilla
e da Áustria é coletiva, não individual. O presente cheio de agoras deste
passado está maculado e marcado, e só por engano se pode pisar o terreno do
329
presente criando uma identidade feliz; isto desemboca, ao fim e ao cabo, no
vazio. Esta infância inexistente explora o próprio personagem, desligando-o da
história, e assim restam castelos de areia, de fantasia, que, se observados
com acribia, estão vazios. Os tempos sombrios de Brecht (Wir leben in
finsteren Zeiten) ecoam nesta história aqui em vista, que mantém o que parece
superado, do modo mais sombrio.
Este vazio não é igual a nada, no entanto, ele traz consigo a pressão da
história de tudo o que ocorreu, de todo o passado e presente e, mesmo, do
futuro: é um vazio cheio, pesado, como o ar
407
que prenuncia uma tempestade,
que Murau sabe estar chegando (AUS, 595). Afinal de contas, é um vazio
abissal, assustador, nele está toda a história explorada e toda barbárie,
esquecidos e abafados. Um vazio repleto de tensões e distensões, como um
rosto que boceja.
A Kindervilla não é a infância, o adianta equipará-las e tentar
reescrever este capítulo de sua história, e mais, de Wolfsegg, posto que seria
imoral e falsa, deixando tudo reprimido e vivo. Isto se estende até o momento
em que percebe que o que chama de infância não passa de um produto para si
mesmo, uma memória como auto-engano, o que o levará a buscar a verdade
de sua memória, no vazio que se cria em seu lugar, projeto este que também
motiva a escrita desta Auslöschung, e que, portanto, funciona aqui como
metalinguagem, como uma escrita de bastidores. A memória não pode ser
tomada pelo seu valor de face, pelos mosaicos que constroem uma
determinada identidade, posto que isto se confunde com uma deturpação
inaceitável. O vazio também não é o nada pois dele brota o conhecimento, a
aprendizagem.
“[...] was sich jetzt als heilsamer Irrtum herausgestellt hat, denn ich werde
von jetzt an nicht mehr glauben, ich brauche nur in die Kindervilla
hineinzugehen, um in die Kindheit hineinzugehen.“ (AUS, 599) O caminho para
se chegar a esta verdade não é nada menos do que o erro produtivo, o engano
sadio. O livro consiste numa sucessão destes erros, incluindo todas as idas e
vindas do narrador, suas dúvidas, vacilos, seus arrependimentos, como erros
407
em Wolfsegg, na madrugada antes do enterro, Murau abre a janela a espera de ar
fresco: “aber [...] die Luft, die hereinkam, war warm und schwer”. (AUS, 588).
330
desta estirpe, sendo desta cunhagem o ganho que se tira deste romance. O
mergulho no erro, ou melhor, na forma social que faz de toda vivência um
produto, alheio a nós, é indispensável para se poder compreender a própria
forma. se pode entender a mitologia penetrando a “realidade” pelo
embrenhar-se nesta mesma realidade.
“Die Kindheit kannst du nicht mehr aufsuchen, weil es sie nicht mehr gibt,
sagte ich mir. Die Kindervilla zeigt dir schonungslos, daß die Kindheit nicht
mehr möglich ist.” (AUS, 600) Por este procedimento Murau extingue sua
infância, extinção essa que, como as demais no romance, não a elimina, mas
busca a sua verdade nesta falsidade. Este vazio o é existencial, mas
pertence à Murau, à Áustria, ao capitalismo. A atualização da história da
Kindervilla o permite vislumbrar o erro em que consistia sua própria infância,
como ele a concebia, e como ele a moldava, a partir de um prédio que, assim,
se torna a Memória de um Espaço, nas palavras de Steffen Vogt. “Durch ihre
zeitliche Permanenz können die Orte vielmehr als Zeugen einer historischen
Erfahrung beansprucht werden, die erst durch den Besuch des Ortes abgerufen
wird.”
408
A Memória de um Espaço estaria ligada, de acordo com este autor, a
um dêitico, um “aqui”, que concentra uma memória que não é apenas
individual, mas coletiva. “Die Sprache solcher
Vergegenwärtigungsbemühungen sei daher notwendigerweise von einem
deiktischen Gestus bestimmt, vom ‘Dort-Sagen’”.
409
Vogt aceita a diferença entre um Espaço de Memória, de representação
simbólica, quando os espaços podem ser transferíveis, e da Memória de um
Espaço, descrito acima, dêitico e ligado a um espaço específico. Ele insere
Auslöschung neste segundo grupo, embora a perspectiva alegórica que sigo
neste capítulo também indique um salto a partir deste Espaço específico,
esteticamente construído, e veja as ruínas das cidades e a miséria do episódio
da anexação austríaca em 1938 (Anschluß), e toda a história recente da
Áustria, atualizadas neste espaço que é o romance Auslöschung. Deste modo,
as duas perspectivas são encampadas por este projeto, que assim se constitui
na Memória de um Espaço Estético, numa formulação possível. Auschwitz
408
S. Vogt, “Erinnnerung bei Thomas Bernhard und Peter Weiss”, em J. Hoell et al. (orgs)
Thomas Bernhard. Traditionen und Trabanten, p. 39-40.
409
Op. cit., p. 40.
331
apresenta-se também como a Memória de um Espaço, mas limitada a um
evento, espaço e momento histórico. Com isso, pode funcionar como
instrumento para estigmatizar um momento histórico, comprimindo-o a um
lugar e tempo específicos, como se ali estivesse as ruínas de algo acabado,
terminado, feito para visitas ocasionais ao terror dos alemães na segunda
guerra mundial na Polônia contra os judeus. Sendo assim, com Kurz: “Es ist oft
von der Singularität des Menschheitsverbrechens Auschwitz gesprochen
worden. [...] Aber diesen Begriff der Singularität dient gleichzeitig den westlich-
demokratischen Ideologen dazu, Auschwitz aus der deutschen Geschichte, aus
Demokratie, Kapitalismus und Aufkklärungsvernunft
hinauszumythologisieren.”
410
As ferramentas do marketing estão todas a postos para vender a
sentimentalidade própria deste turismo macabro, e as linhas de trem que saem
do primeiro plano para o ponto de fuga da foto, onde se encontram com os
portões de entrada de Auschwitz, formam imagens gravadas nas mentes de
todos. Este é o perigo das memórias que, como a infância de Murau, são
construídas num determinado sentido, marcadamente como produto, o que, em
Auslöschung, estende-se até a alma cheia de marmelada espiritual. Murau
tenta esvaziar o pote de marmelada de sua infância, mas Auschwitz pode ser
um produto pernicioso e reacionário, quando lido neste sentido acima
configurado. Com Benjamin:
Die gegenständliche Umwelt des Menschen nimmt immer rücksichtsloser den
Ausdruck der Ware an. Gleichzeitig geht die Reklame daran, den Warencharakter
der Dinge zu überblenden. Der trügerischen Verklärung der Warenwelt widersetzt
sich ihre Entstellung ins Allegorische.
411
Auslöschung como mediação literária constrói uma “Memória de um
Espaço” mediado pela literatura, que tem ambição política, visando podar a
instrumentalização sentimental e o esquecimento do passado pela sua fixação
na ruína, atualizando-a para ser digna do presente, por pior que este seja. A
mediação pela linguagem, mais do que os sentidos, tato, olfato, audição, visão
410
R. Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, p. 553.
411
W. Benjamin, “Zentralpark”, em Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des
Hochkapitalismus. Citado a partir de GS I-2, p. 671.
332
e paladar, constitui o arcabouço desta memória; não em detrimento destes
sentidos, mas por estes se reduzirem àquela. A palavra carregada de história
(e de barbárie) como cultura tem primazia, e embora Wolfsegg encampe a
Memória de um Espaço, este se atualiza pela linguagem, constitutivamente
artificial: o castelo Wolfsegg, fotografado e presente em antologias sobre o
romance, é qualitativamente distinto daquele esteticamente concebido por
Bernhard. Isto posto, deve-se lembrar não ser desprezível o fato do castelo
existir, posto que a imediação social faz parte de seu projeto estético, tendo
uma função primordial: mas por erro esta função está relacionada com
algum pretenso realismo, antes será re-criada como arte. Wolfsegg tem ambos
os momentos:
Denn Wolfsegg ist nicht nur der Name für eine familiäre Vergangenheit, sondern
für eine Ortschaft im Jahrhundert der Wölfe. [...] Wie allegorische Grübelbilder
verlangen sie vom Leser, daß er sie deutet, daß er die Ursache findet für ‘die
Finsternis, die hier herrscht’ (ITA, 77)
412
Este autor alude a outros dois textos precursores deste romance sobre o
tema Wolfsegg, que acompanha Bernhard por quase quarenta anos. Na
década de 50, o nome Wolfsegg o remete aos lobos, e a frase sobre a
escuridão vem de um fragmento da década de 60, já comentado.
Com este passo, o Espaço de Memória de Wolfsegg tem estatuto
inteiramente literário, mas não fica perdido numa abstração qualquer, mas
posicionado no interior da Áustria, num chão bem conhecido. Se Auschwitz se
tornou um Espaço de Memória pela história, Wolfsegg o é pela literatura, mas
isto o implica dizer que prescinda da história, pelo contrário: o projeto de
Bernhard quer fazer da literatura uma política, uma reescrita da história, e para
isso cria sua Wolfsegg. Sendo um artefato literário, quer ser lido com toda a
dignidade que merece, como escrita inconsciente da história, ao reescrevê-la
em meio às ruínas de nossa tradição, e contra a corrente. E com ganhos: se a
memória de Auschwitz está fixa num determinado tempo e espaço, num
contexto por muitos considerado de exceção, Wolfsegg é um artefato literário
como alegoria da história austríaca e de sua inserção na modernidade, e suas
412
H. Höller, “Ortschaft bei Peter Weiss und Thomas Bernhard”, em J. Hoell et al. (orgs)
Thomas Bernhard. Traditionen und Trabanten, p. 24.
333
feridas continuam abertas, e valem para todos, em qualquer lugar, podendo ser
atualizado pelos leitores. Wolfsegg é um lugar esteticamente concebido, como
Murau é um personagem do discurso. Assim as palavras guardam o peso da
história e dos discursos, o que havia sido subtraído dela sob o primado de uma
concepção que a entende como transmissora de mensagens. Murau, um
mediador de terrenos literários visando o “Novo”, envolve num mesmo
movimento a concepção da arte como mercadoria, numa explicitação desta
condição que procura realizar a politização da literatura como campo para
“preparar espaços”. No centro de suas preocupações está a mediação entre
literatura e sociedade. Com Schwarz: “Trata-se de ler o romance sobre fundo
real e a realidade sobre fundo de romance, mais nas formas que no conteúdo.
[...] Ler uma na outra até encontrar o termo de mediação”
413
.
O processo de rememoração (Parte 1): o sonho de Murau
O sonho de Murau consiste numa espécie de condensação da história de
Auslöschung e, de quebra, da Áustria aqui em curso, como alegoria, sendo um
dos caminhos para se penetrar na tessitura do romance. é digno de nota
que um “comentário secundário” de Gambetti (AUS, 213) o tenha levado ao
sonho: tudo o que aparece sob a chancela do “secundário” ganha estatuto de
primeira ordem neste romance. A memória é acionada por uma palavra
(Hochgebirge) e não por um cheiro ou uma posição do corpo.
A composição deste episódio se por camadas: com o telegrama em
mãos, as fotos de seus parentes, aciona na memória os encontros com
Gambetti e, duma conversa com este, faz uma associação via palavra que
remete ao sonho, que ocorrera coisa de quatro ou cinco anos atrás. São vários
níveis de rememoração e de mediação: das fotos, do sonho, do seu relato
deste sonho a Gambetti, e da sua redação nesta Auslöschung.
An diesen Traum habe ich mich sehr oft erinnert und jedesmal mehr versucht, in
ihn einzudringen, dieses Mal mit noch größerer Willenskraft als jemals vorher,
denn ich habe mich, das Telegramm in Händen, vom Telegramm ablenken wollen
auf alle Fälle,[...] (AUS, 212).
413
R. Schwarz, “Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem”, em Que horas
são?, p. 140.
334
O sonho é recorrente e sua tentação (heimsucht: AUS, 214) o acomete
várias vezes ao ano, mas Murau sabe exatamente onde e quando o sonhou
pela primeira vez, o que insere no romance: estava de visita a parentes da
mãe, numa casa Senhorial (Herrschaftsvilla), quando foi acometido por uma
doença febril, que o deixou dois dias de cama sem comer. Mas engana quem
pensa que o sonho é fantástico ou delirante: ele antes remete à escuridão
(Finsternis) que domina o local onde o sonhou. Não custa lembrar que os
espaços aqui em Auslöschung são decisivos para o narrador: Roma é boa por
ser explosiva e caótica, alusiva do “Novo”, Wolfsegg encampa toda a história
da Áustria, a kindervilla atrai pra si a infância e o nazismo, e daí que a definição
exata do local do sonho não pode passar despercebida.
A rememoração de Murau não é arbitrária, além disso: o sonho não
apenas é recorrente, mas o narrador se esforça para penetrá-lo cada vez mais,
nas circunstâncias atuais (telegrama em mãos) ainda com mais força de
vontade. Murau alude a uma tentativa de postergar o enfrentamento do
telegrama como justificativa desta força de vontade, mas também posso
aventar a necessidade de rever esta história, condensada neste sonho, de
atualizá-la no momento de penetrar na escuridão que domina Wolfsegg.
Neste sonho, Murau combina com seus amigos Maria, Eisenberg e Zachi
de se encontrar numa taberna isolada (não por acaso chamada de zur Klause)
para discutir os poemas de Maria e a filosofia de Schopenhauer. Maria chega
depois dos três, de madrugada, direto da Ópera de Paris.
Eisenberg, habe ich, ihn beobachtend, gedacht, hat, wie ich, nicht
geschlafen und ist selbstverständlich der erste, der Maria sieht, also auch der,
der ihr als erster entgegengeht.(AUS, 220) Esta frase colossal, em que as
palavras são isoladas e seccionadas por vírgulas, sem perder o sentido,
apresenta seu processo construtivo em miniatura: a frase foi desfigurada,
cortada, fazendo dela mesmo alvo das atenções, conferindo destaque a cada
palavra. E representa ainda a emoção, com falta de ar, deste momento do
sonho, que tem algo de romântico; na neve, às cinco da manhã, um homem e
uma mulher vão ao encontro um do outro, observados por um terceiro pela
janela. Deste cenário quase idílico, emocionado, explode um estrondo no
sonho, introduzido por uma frase que amalgama todos os tempos em jogo
neste episódio, numa espécie de concentração temporal que atualiza o próprio
335
sonho, que ganha ainda maior relevo em virtude do telegrama. Este estrondo
prenuncia toda a catástrofe presente, que está por receber voz tanto no sonho
quanto no romance.
Maria war stehengeblieben und Eisenberg trat zu ihr, sagte ich zu Gambetti,
dachte ich jetzt, am Fenster meines Arbeitszimmers stehend, auf die Piazza
Minerva hinunterschauend, da hörte ich, sagte ich zu Gambetti in meiner
Traumerzählung, einen fürchterlichen Knall, wie ein Donner, und die ganze Erde
bebte im Augenblick. (AUS, 221).
Este estrondo (Knall), que faz o mundo tremer e o tira dos eixos, será
percebido apenas por ele, no sonho. A expulsão dos quatro pelo dono da
taberna xenófobo e anti-semita, com laivos de assassino em pele de
inofensivo, está indicada por este tremor. Este estrondo é um momento de
compressão, de quebra, de concentração e tensão até o grau máximo, em
consonância com uma concepção monadológica de história, que converge para
este Big Bang não cosmológico, mas histórico, que irrompe pela palavra
414
.
Vejamos o procedimento da compressão: (...) sagte ich zu Gambetti (1), dachte
(2) ich jetzt (3), am Fenster meines Arbeitszimmers stehend (3), auf die Piazza
Minerva hinunterschauend (3), da hörte (4) ich, sagte (2) ich zu Gambetti in
meiner Traumerzählung (1), etc. Sendo (1) conversa no Pincio com Gambetti,
(2) narração, (3) telegrama e (4) sonho, passado atualizado.
Este estrondo ainda remonta à força de aniquilação necessária como
pressuposto para o Novo, um terremoto, uma explosão que retira uma dada
época do contínuo da história, com Benjamin, em várias de suas teses Sobre o
Conceito de História.
415
Mais à frente, Murau diz que talvez ouça, ainda, um
estrondo (Knall) de Gambetti mandando tudo para os ares. (AUS, 543). Em seu
afã de repisar a história, Murau fica à janela e procura acompanhar, retraçar os
passos que os dois deram na neve, que deixa marcas, até o mais longe
possível.
414
Walter Benjamin conceitua assim: “Wo das denken in einer von Spannungen gesättigen
Konstellation plötzlich einhält, da erteilt es derselben einen Chock, durch den es sich als
Monade kristallisiert”. “Über den Begriff der Geschichte”. GS I.2, p.702.
415
Walter Benjamin. Nas teses XV, XVI (aufsprengen), XIV, XVII (heraussprengen), por
exemplo. GS I.2, p. 701-3.
336
Ich stand noch eine Weile am Fenster [...] und versuchte, die Spuren der Schritte,
die Eisenberg und Maria auf ihrem Weg zum Zur Klause gemacht hatten, so weit
zurückzufolgen, wie möglich. An die Hundertzwanzig Eintritte habe ich gezählt, ich
erinnere mich genau, [...] als träumte ich diesen Traum jetzt und tte ihn nicht
schon vor vier oder fünf Jahren geträumt. (AUS, 222)
Entre os procedimentos-chave de sua rememoração estão a
concentração dos tempos num agora (jetzt, em itálico), convergindo na
concepção de história como mônada
416
cheia de tensões, mediada pela
linguagem, além do esforço de contar as pegadas na neve, de não perder as
marcas do passado, atualizando-o sempre e tão completamente seja possível.
Nenhum passo pode ser perdido, e cada um dos seus momentos deve poder
ser trazido à consciência sempre que necessário, como se em cada um deles
estivesse sonhando-o de novo, agora, em itálico, potencializado: este agora
(jetzt) refere-se ao momento com Gambetti, mas também se refere ao
momento em que está com o telegrama em mãos, e também o da escrita deste
texto; a bem da verdade, sempre que Murau comenta que estava em Roma, à
janela, pode-se pensar no tempo da narrativa, do telegrama, e no da narração,
ambos em Roma. Este agora se espraia mesmo para o momento da leitura, em
que nós o atualizamos como leitores. Da frente pra trás sem perder nenhum
dos traços de vista, sempre com um ponto de vista do presente, que se torna
cada vez mais denso e complexo.
De repente, após o taberneiro reclamar que os quatro deveriam retirar os
livros da mesa para que pudesse servi-los, ele enerva-se com o
comportamento deles (Eisenberg e Maria haviam trocado de sapatos, etc) e
resolve jogar os livros no chão, o que Eisenberg proíbe e, sendo mais rápido
que o taberneiro, alcança-os primeiro. “Solche Leute gehörten eingesperrt, rief
er plötzlich aus, und [...] diese rte von Leute getragen werden, die
aufgehängt gehörten. [...] soe in Gesindel wie Sie (also wie wir) gehöre
ausgerottet. Mehrere Male schrie er uns das Wort ausgerottet ins Gesicht.”
(AUS, 226).
Um homem conhecido por ser calmo, e que estoura pela banalidade de
não poder arrumar a mesa, de fazer o seu trabalho, cumprir suas obrigações
416
Mônadas como as dos átomos que, considerada a menor partícula e indissociável, provou-
se mais tarde fracionável e dotada de uma energia interna monstruosa, e muito explosiva.
337
(uma das defesas de Waldheim para a eleição presidencial de 1986), e que
chega a dizer, sem meias palavras, de um modo que, nem mesmo no enterro
poderia ser expresso tão abertamente. O que se ouve pela boca do taberneiro
no sonho pode ser entendido como as entrelinhas do discurso dos ex-nazistas
no enterro dos pais. Se o local e nome da taberna indicam o afastamento da
sociedade, o taberneiro fará com que esta volte do nada com toda a força, com
uma violência desmedida e irracional. Eles procuram isolar-se, mas não é
possível: a arte e a filosofia não conseguem se evadir da história, ela os pega
quando menos se espera. E o comentário dos outros três participantes do
sonho, assim como Gambetti, quando o ouviram, foi o silêncio, sintomático
deste tipo de extinção em forma de sonho que, como disse, não deve ser
creditado à conta da fantasia, como a arte também não: trata-se de forma
social, mediada pelo sonho.
O processo de rememoração (Parte 2): a arte do rememorar como
exigência após Auschwitz
Antes de mais nada, não é sem razão que Heidelberger-Leonard identifica
no título Auslöschung a proximidade acústica com Auschwitz
417
, o que já
mostra como se pode ativar o passado mesmo por uma única associação entre
palavras.
A ativação da memória e a atualização do passado ganham ainda uma
exposição no romance que, assim, deixa explícito mais uma vez um de seus
princípios constitutivos. Com Murau: [...] ich denke, daß wir sehr oft an
Einzelheiten, sogenannte Nebensächlichkeiten genau erinnern, wenn wir sie
festhalten und in sie eindringen in unserer Betrachtung.” (AUS, 617) Aqui, os
primeiros pontos desta rememoração: ela se refere a pormenores, detalhes,
unidades menores de um todo (Einzelheiten), que são encontradas no
aparentemente secundário, como no caso do sonho, às quais trazemos à
memória ao se concentrar nelas e penetrá-las.
Wenn wir uns für diese Nebensächlichkeiten und Einzelheiten zur Verfügung
stellen, sie zuerst anschauen, dann durchschauen, zum Beispiel, daß ich genau
417
I. Heidelberger-Leonard, “Auschwitz als Pflichtfach für Schriftsteller”, em H. Höller et al.
(orgs), Antiautobiografie, p. 181.
338
beobachtet habe auf dem Weg von der Kindervilla zum Büro, wie sich die Wolken
hinter der Kindervilla zu einem Drachen mit weitaufgerissenem Maul geordnet
haben (AUS, 618).
Interessante a mudança de perspectiva: o observador se coloca à
disposição do objeto visto, não o contrário, mas sem se anular, pois age.
Primeiro ver (anschauen), em seguida entender o princípio que rege aquilo,
suas características, mesmo suas intenções, uma penetração que interpreta,
que tenta entender as conexões íntimas daquilo com o todo (durchschauen).
Este passo é significativo, pois ao levar em conta estas conexões, mesmo o
primeiro momento (anschauen) pode mudar; a visão (e os outros sentidos) não
pode prescindir do peso da história, e a sensibilização visual representa
apenas a primeira etapa deste processo complexo, que vai conduzir, inclusive,
na deturpação desta percepção, que a refina por excesso. Afinal de contas, o
dragão não é um dragão, mas uma invenção de Murau, uma ficção do
observador. Ver bem não significa nitidez ou clareza, mas conseguir entender
todas as conexões que dão sentido àquilo, o que inclui a atualização do
passado. O exemplo da nuvem com formato de dragão com boca aberta, tendo
em vista tudo o que ocorreu e está para acontecer em Wolfsegg, aparece como
secundário: deve, portanto, ser decisivo. Logo, este exemplo é mais complexo
do que parece à primeira vista: a nuvem, ou seja, o dragão, está atrás da
Kindervilla, de onde acabou de sair com o saldo de uma infância extinta,
aniquilada pelo passado devastador, que não pode ser apagado. O dragão
também faz parte das fantasias infantis: tudo remete à sua infância, a uma
inocência perdida do fantástico, ao produto que acalmava sua alma com a
promessa da reconstrução. Sendo assim, este dragão está de boca aberta,
prestes a engolir e destruir tudo com um bafejo de fogo, o que remete à
aniquilação da própria infância que acaba de realizar, remete ao vazio como
gähnende Leere. Este vazio também é o da concepção de história que
Benjamin quer substituir pela do historiador materialista: “Ihr Verfahren [do
Historismo] ist additiv: sie bieten die Masse der Fakten auf, um die homogene
und leere Zeit auszufüllen. Der materialistischen Geschichtsschreibung
ihrerseits liegt ein konstruktives Prinzip zugrunde.”
418
. Murau discorre sobre um
418
W. Benjamin. “Über den Begriff der Geschichte”. GS I.2, p. 702, tese XVII.
339
princípio construtivo, que depende de mediações para se chegar ao “teor de
verdade da mentira”. E Continua Murau:
Auch in der Erinnerung kann uns ein solches Nebensächliches dann deutlich sein,
wir sehen dann unter Umständen, wochenlang später, monatelang, jahrelang
wirss,r ,er9( )-10.6134(l)-7.993613710.6134(u)1.4422(t)339(o)-9( )-7.10447794422(e)1.4422(n)1.4422( )-348.99361371 Td[(w)-1.336249(E)3.9425(r)aäelEg
340
uma necessidade. O exemplo da nuvem havia saído do âmbito dos dragões
e chegado à história, sendo metáfora, neste momento, pois entender o
movimento destas ‚nuvens’ não se esgota na nuvem mesmo, mas depende de
condições específicas.
E chega-se a um novo exemplo: agora se concentra no rosto humano, em
seus movimentos, tema dos mais caros a este narrador, que observa os rostos
nas fotos, olha o rosto dos mortos, quer ver o da mãe de qualquer modo,
nenhum movimento escapa a este exímio observador. O rosto humano
condensa toda a história individual e coletiva, quando visto a partir de um
contexto específico. Mesmo o movimento dos rostos mortos pode ser
perscrutável a partir da memória, com o que ganham vida novamente. O rosto
paralisado está totalmente em movimento, pois não está morto, e mesmo o
rosto morto se movimenta, pois em verdade não está morto. Primeiro: um rosto
imóvel está em movimento, de modo que o aparentemente estável falseia um
movimento incessante por trás dos bastidores, por trás da scara. Segundo,
o imóvel é a condição do desesperado, que está perdido, e vai e vem, em
pensamentos, sem sair do lugar, como Murau em seu apartamento em Roma.
Em terceiro lugar, o movimento incessante entre dois pontos se expressa não
raro pela imobilidade. Quarto, um rosto morto não está morto pela putrefação, e
por último, o discurso do morto pode estar mais vivo do que nunca, seu mundo
presente: daí a luta de morte de Murau por não ser o pai, nem a mãe, etc. A
repetição do mesmo, imobilidade, é movimento, como os rostos.
E continua o treinamento da memória Wir können jahrelang danach noch
präzise sehen und hören, wenn wir diesen Mechanismus beherrschen, der es
uns möglich macht. Genauso verhält es sich mit dem Geruchsinn, wie wir
wissen” (AUS, 618-9) Perceba-se que a visão, a audição e o olfato, aqui, não
abrem mão também das circunstâncias, a percepção não se resume a um
pragmatismo dos sentidos, mas dependem de analogias, paralelos,
comparações, contextualizações, para ganhar sentido, de modo que podemos
ver, ouvir e cheirar o visto, ouvido e cheirado no futuro, pela memória, mas
apenas quando as condições o permitirem. Se as condições históricas não
estão dadas, nada é possível, mesmo o mais ingênuo olhar se torna falso, e
deve-se suspeitar de tudo. Os sentidos dependem da memória, da sua
ativação e atualização num futuro e, ainda, de uma interpretação. A história
341
penetra todos os âmbitos da experiência humana, sempre mediada pela língua
e dependendo de interpretação, sendo constitutivamente dialógica.
“Diesen Mechanismus habe ich mir aus dem natürlichen zu einer Kunst
gemacht, denke ich, die ich jeden Tag ausübe und ich werde mich in dieser
Kunst noch steigern.” (AUS, 619) Aqui o final desta aula, que remete à
constituição desta Auslöschung. Do natural dos sentidos se faz uma arte,
artificial, mediada como toda arte, e que pode, nesta condição, ser treinada,
com método, não mais dependente do biológico ou do acaso. Murau se coloca
como um mestre nesta arte, exercitando este mecanismo todos os dias para se
tornar cada dia mais penetrante.
Também Proust será “citado” nesta passagem, quando diz que,
“naturalmente”, o olfato também entra nesta conta. Mais ainda: num exemplo,
diz que, andando por Paris, é possível acordar a memória de algo ocorrido
vinte ou trinta anos atrás. Dado tudo o que foi dito a respeito desta aula sobre
atualização da memória, esta citação é típica de Bernhard. O que aqui se
espera é outra teoria da rememoração: se em Proust ela é arbitrária, casual,
involuntária e pessoal, aqui se trata de uma ativação necessária, que deve ser
arrancada da memória à força, por vontade férrea daquele que lembra. Ela é
coletiva posto que não pode se deixar de lado a experiência terrível que se
quer envolver, e que impede a fuga na infância individual, em favor da
exposição das relações sociais que levaram ao nazismo, por exemplo. O
treinamento desta memória deixa claro como é indispensável nos tempos de
hoje; não apenas as impressões, mas as conexões, vistas em chave negativa,
devem ser expostas. Nas palavras de Bennholdt-Thomsen: “Diese [...] Funktion
des Erinners bei Bernhard hat freilich im Verglech zu Proust eine neue
Dimension der Notwendigkeit erhalten. Sie setzt den Zweiten Weltkrieg voraus,
[...]”.
420
O passado deve vir integral em cada visão, cheiro e voz; em Heldenplatz,
a esposa do prof. Schuster, que ouve o júbilo dos vienenses na acolhida ao
Führer na Heldenplatz em 1938 cinqüenta anos depois, agora ainda mais
sonoro, consiste num exemplo pungente deste ouvir. E ainda mais, esta peça
marca o caráter coletivo deste rememorar: se é verdade que apenas a Frau
420
A. Bennholdt-Thomsen, “Zu Thomas Bernhards Gedächtnis-Kunst”, em J. Hoell et al. (orgs),
Thomas Bernhard. Traditionen und Trabanten, p. 17.
342
Professor Schüster ouve estes gritos em 1988, as rubricas indicam que este
som, paulatinamente, toma conta da sala, e os personagens têm que falar cada
vez mais alto, mesmo sem o perceber, e o público mal consegue ouvir estes
diálogos gritados, entrecortados cada vez mais pela pressão quase física dos
júbilos, representado pela postura tesa da personagem que re-ouve. Os gritos
afetam todos os personagens e o público, embora os personagens não o
sintam (falhas na percepção?), não se restringindo a uma alucinação da
personagem.
421
O processo de rememoração (Parte 3): rememoração e reescrita da
história como turvação da vista limpa
De volta a Auslöschung, aqui também se encontra a negação da mera
percepção dos sentidos pela busca da verdade histórica, de modo que o tempo
de outrora se adensa no agora, num salto (Sprung) entre tempos com
“afinidades eletivas”, assim como Benjamin lembra que Roma era citada na
Revolução Francesa. Mas a citação de Bernhard rema sempre contra a
corrente, desconfiada, compondo uma imitação que não imita, almejando
escapar da concepção da história como tempo vazio completo por uma
sucessão de acontecimentos famosos, o que o leva aos saltos que atualizam
este passado, quando as circunstâncias o permitirem e o indivíduo montar
constelações favoráveis com o que tem à mão.
A sobreposição que turva a percepção e impede que se perca a
oportunidade de atualizar a história aparece quando Murau olha as fotos das
irmãs: “[...] ich kann sie [as irmãs,] nicht sehen gehen, ohne daß ich sehe, daß
sie im Grunde noch immer so hysterisch hüpfen, wie als ganz kleine Kinder”
(AUS, 97). Este é um primeiro exemplo eloqüente desta prática de
rememoração, que pode tanto advir de uma palavra quanto de uma
observação. Murau as andando mas, ao mesmo tempo, as saltitando: na
verdade, sabe o narrador, elas andam, mas a atualização da memória as
mostra aniquiladas pela mãe (e pelo narrador), o que se expressa naquela
maneira histérica de se locomover. A sua visão não perde nenhum dos
momentos, tem a consciência de que andam, não está delirando ou sonhando,
421
Thomas Bernhard. Heldenplatz. F/M: Suhrkamp, 1988, p.159-165.
343
mas justamente esta percepção será abalroada pela rememoração, restando
uma coisa e outra. Do mesmo modo o riso sarcástico (spöttische Gesichter)
delas, também presente nas fotos, não pode ser apagado da memória em favor
de uma nova visada. “[...] mit diesen Gesichter werde ich leben müssen, meine
Existenz zu führen haben, [...]” (AUS, 245). Esta frase se alinha com aquela da
‘descriação’ dos parentes, no capítulo sobre a linguagem.
De modo semelhante, o pai usava na fotografia que Murau tem em os
uma Habigpumphose (AUS, 246), de trinta anos de idade, que também
ostentava durante todo o período nazista. E mostra, novamente, este
mecanismo de atualização da memória, mesmo que doloroso, não pode deixar
de ser ativado. “Auch wenn er eine ganz andere trägt, hat er r mich diese
Pumphose des Herrn Habig an. Er sagt fortwährend Heil Hitler in dieser
Habigpumphose, [...]” (AUS, 246) Estes exemplos mostram como até mesmo a
percepção não está livre, não pode estar livre deste exercício necessário à
atualização desta história dos vencidos. A história tem que ser entendida como
Todo, mesmo que isto turve a vista. E completa que, afinal de contas, não pode
destruir estes risos rasgando as fotos, eles ficariam ainda mais fortes e
penetrantes. (AUS, 246).
Mediação pela fotografia e pelos jornais como autênticas pela sua
falsidade
Em certa altura do texto, Murau explica que não existe mais nada que
seja natural no mundo, nem mesmo pessoas. [...] gibt es ja heute schon
nurmehr noch Kunstmenschen, künstliche Menschen, keine natürlichen, [...].
Alles ist künstlich, alles ist Kunst. Es gibt keine Natur mehr.” (AUS, 125-6) Este
pode ser considerado como um dos pontos de fuga do romance, e aponta para
necessária mediação de tudo em sociedade, o que confere até mesmo um
caráter privilegiado para a arte, necessariamente composta por um material.
O estudo da arte é caminho privilegiado, em primeiro lugar, porque na
obra de arte as tensões podem ser mais facilmente mapeadas, visto que
construídas e acabadas por uma subjetividade na qual se interpenetram as
forças objetivas da sociedade, ganhando expressão formal. Além disso, numa
perspectiva histórica, a vida na sociedade do espetáculo reifica as imagens que
344
saturam nossa vivência cotidiana, e a construção estética destas imagens é
constitutiva para a identidade dos indivíduos que as consomem. Para Jameson,
se aceitarmos a argumento de Debord sobre a onipresença e onipotência da
imagem no capitalismo de consumo hoje, então as prioridades do real tornam-se,
no mínimo, invertidas, e tudo é mediado pela cultura, até o ponto em que mesmo
os ‘níveis’ político e ideológico devem ser previamente desemaranhados de seu
modo primário de representação, que é cultural.
422
Desta forma, a cultura não pode ser a leitura de um bom livro por mês”,
mas o elemento-chave da própria sociedade de consumo.
423
Assim se faz o
diagnóstico de uma sociedade caracterizada pela esteticização da vida
cotidiana, questão essa que exige um tratamento formal para a compreensão
da abrangência de seu alcance. Como uma obra-de-arte, no entanto,
constroem-se também identidades, e aqui a forma artística não desempenha
um papel secundário. Para Kurz,
Voraussetzungen [para o conceito de ‘Lebensästheten’ tornar-se massificado] sind
die volle kapitalistische Monadisierung des Subjekts [...] sowie die volle
Kommerzialisierung der Reproduktion und die Totalisierung der Warenästhetik als
demokratische Nachkriegsresultate, die nach der fordistischen Inkubationsepoche
erst in den 80er Jahren zur Blüte gelangten und erst in den 90er Jahren ihre
Früchtchen tragen [...]
424
.
Daí o papel da obra de arte nos dias de hoje, e de sua crítica, que pode
voltar suas baterias para o discurso das corporações transnacionais, para a
propaganda como fez Barthes em seu livro Mitologias
425
–, para os filmes
422
F. Jameson, “Reificação e utopia na cultura de massa”, em As marcas do visível, p. 22.
423
Op. cit., p. 22.
424
R. Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, p. 27.
425
R. Barthes, Mitologias, 1975. Há ensaios com títulos como “Publicidade da profundidade”,
“Cozinha Ornamental”, entre outros. Sobre a mitologia da modernidade, assunto central para
Benjamin na Obra das Passagens, Barthes dirá, no mesmo livro, no ensaio O mito é uma fala
despolitizada”: A semiologia ensinou-nos que a função do mito é transformar uma intenção
histórica em natureza, uma contingência em eternidade. Ora, este processo é o próprio
processo da ideologia burguesa. Se a nossa sociedade é objetivamente o campo privilegiado
das significações míticas, é porque o mito é formalmente o instrumento mais apropriado para a
inversão ideológica que a define: a todos os níveis da comunicação humana, o mito realiza a
345
comerciais da indústria do entretenimento – como fez Fredric Jameson no
supracitado As marcas do visível –, na maioria das vezes com resultados
notáveis. Esta linha de argumentação se situa no mesmo âmbito das
discussões de Benjamin sobre o estatuto da obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica, do enfraquecimento do conceito de original e da
difusão por novos meios e contextos, criando novos significados. Estes
aspectos todos vão irromper na dialética entre forma social e forma literária,
como já foi visto antes.
“Hatte man vordem vielen vergeblichen Scharfsinn an die Entscheidung
der Frage gewandt, ob die Photographie eine Kunst sei ohne die Vorfrage
sich gestellt zu haben: ob nicht durch die Erfindung der Photographie der
Gesamtcharakter der Kunst sich verändert habe [...].”
426
Aqui estamos pisando
no terreno da mediação artística, que elimina qualquer vestígio do natural falso
da forma social reificada, e da possibilidade de sua autenticidade. Em
Auslöschung, tanto a fotografia quanto o jornal entram nesta discussão.
Meine Eltern (...) waren auf einmal über Nacht auf dieses groteske und lächerliche
Foto zusammenschrumpft, das ich jetzt auf dem Schreibtisch liegen hatte und mit
der größten Eindringlichkeit und Schamlosigkeit betrachtete. (AUS, 25)
Os pais, do estatuto de linguagem que assumiram quando se tratava de
sua ‚descriação’, agora são vistos sob a mediação da fotografia, com o que
ficam grotescos, ridículos, risíveis e deformados. O futuro da narrativa reserva
para eles papel de cenário no teatro de seu enterro, entre o trágico e a sátira, e
ainda matéria de jornal. sempre uma mediação a mais, além da literária,
que os penetra, aumentando o caráter de sua exposição indireta e alegórica. A
artificialidade completa da obra de arte fica assim instituída e reforçada, em
prol do abandono de um realismo e de um natural(ismo) vulgares. Por conta
inversão da anti-physis em pseudo-physis. […] A função do mito é evacuar o real: literalmente,
o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se prefere, uma evaporação; em
suma, uma ausência sensível. É possível completar agora a definição semiológica do mito na
sociedade burguesa: o mito é uma fala despolitizada. [...] O mito não nega as coisas; a sua
função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em
natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação; se
constato a imperialidade francesa sem explicá-la, pouco falta para que a ache normal,
decorrente da natureza das coisas: fico tranquilo.” (p. 162-163)
426
W. Benjamin. ‘Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit.’ (p. 471-
508). Em GS I-2, 1991, p. 486.
346
desta mediação fica evidente o caráter de construção destes pais, ao sabor dos
interesses do narrador. A rigor, como a própria aspiração de uma expressão
verdadeira (no sentido de factual) será rechaçada pela constituição mesma da
língua e da realidade, não faz sentido caracterizar o escrito como mentira ou
verdade, pois toda comunicação depende de uma mediação. Pertinente seria
perguntar pelo ‘teor de verdade da mentira’, com Bernhard, pela autenticidade
do escrito.
Sie [as pessoas] halten auf ihren Fotos eine pervers verzerrte Welt fest, die mit der
wirklichen nichts als diese perverse Verzerrung gemeint hat, an welcher sie sich schuldig
gemacht haben. [...] Das Fotografieren ist eine gemeine Sucht, won welcher nach und nach die
ganze Menschheit erfaßt ist, weil sie in die Verzerrung und die Perversität nicht nur verliebt,
sondern vernarrt ist und tatsächlich vor lauter Fotografieren mit der Zeit die verzerrte und die
perverse Welt für die einzige Wahre nimmt. [...] Die Menschen sind auf ihren Fotografien
lächerliche, bis zur Unkenntlichkeit verschobene, ja verstümmelte Puppen, die erschrocken in
ihre gemeine Linse starren, stumpfsinnig, widerwärtig. (AUS, 29).
O tempo dos antigos viajantes, com suas experiências do distante, do
diferente, quase não existe. Hoje, a memória das viagens se resume em
grande medida às fotos que restam delas: sem estes objetos externos uma
viagem pode chegar ao ponto de deixar de ter acontecido, tal o grau de
aderência da vivência (já nem falo em experiências) às imagens gravadas. O
homem esvazia-se, e deixa as relações para a mercadoria realizar. Mas isto
não mais causa comoção, uma vez que a relação do próprio corpo com o
indivíduo deixou de ser imediata: a mediação do silicone e do botox ganha as
ruas. Já não se tem vergonha destas “correções da natureza”, em busca da
juventude eterna, que não precisa mais ser “natural”: por sinal, “natural” é
aceitar estas operações plásticas sem sobressaltos, e estranhar quem não
entra na sanha. Isto chegou a tal ponto que os seios, hoje em dia, são
exageradamente grandes, como os cabelos pintados com cores aberrantes,
que não existem na natureza: a moda é a da passagem no artificial, no objeto.
Não se trata de outra coisa senão da composição estética do sujeito pós-
moderno, com o qual brinca a rio Menasse
427
, ao falar a respeito do
427
R. Menasse, “Der Name der Rose ist Dr. Kurt Waldheim. Der erste postmoderne
Bundespräsident”, em Das war Österreich, p. 249-65.
347
presidente pós-moderno Kurt Waldheim, que tenta se reconstruir com farrapos
de memória afeitos à perspectiva de que foi uma vítima dos nazistas, na pior
das hipóteses alguém que cumpriu seus deveres.
A mediação exagerada por este processo descrito não indica, entretanto,
qualquer possibilidade de crítica pela maior visibilidade a que está exposta. Isto
porque ocorre a naturalização desta mediação, tomada a partir de então como
imediata: a criação estética de si mesmo deixa de se apresentar como um
absurdo contra a natureza humana e a beleza da imperfeição “natural”, e se
transmuta em expressão da “liberdade” do indivíduo de ser como quiser ou
como o capital, via marketing, o queira, em última análise.
Numa sociedade em que todas as relações são mediadas pelo dinheiro,
que de meio se torna fim, e que se apaga como mediador ao ser “naturalizado”
e “ontologizado”, não mais fronteiras intransponíveis, mas apenas o prazo
para que o desdobramento da forma se espraie para outro âmbito da vida.
Essa espera não é determinada por uma maturação e aceitação ética e dos
costumes, mas fica na dependência do avanço da tecnologia e, claro, da
massificação do processo, que o torne acessível economicamente.
A autenticidade da fotografia
Die Fotografie zeigt nur den grotesken und den komischen Augenblick, dachte ich,
sie zeigt nicht den Menschen, [...] die Fotografie ist eine heimtückische perverse
Fälschung, [...] eine gemeine Unmenschlichkeit. Andererseits empfand ich die
beiden Fotos als geradezu ungeheuer charakteristisch [...] für meine Eltern
genauso wie für meinen Bruder. [...]. Hier habe ich keine idealisierten Eltern, [...]
hier habe ich meine Eltern, wie sie sind, wie sie waren, verbessert ich mich. [...] Sie
waren alle drei so scheu, so gemein, so komisch. Ich hätte ja, dachte ich, keine
Verfälschung meiner Eltern und und meines Bruders in meinem Schreibtisch
gedulded. Nur die tatsächlichen, die wahren Abbilder. Nur das absolut
Authentische, und ist es noch so grotesk, möglicherweise sogar widerwärtig.
(AUS, 27; negritos meus)
A fotografia, ao mesmo tempo, falseia o homem, até a desumanização
completa, não o homem, integralmente; por outro lado, ao fazer isso,
expressa a forma desta humanidade que concebeu a fotografia, aniquilada,
seccionada, perdida, e neste sentido a foto ganha autenticidade. O homem,
348
atravessado por mediações em todos os sentidos de sua existência, do
dinheiro à sua própria constituição como produto, exigindo a foto, por exemplo,
para recriar suas vivências mais íntimas, pode ser expresso por esta
fotografia. Noutras palavras, a realidade está cada vez mais dependente desta
mediação, sem a qual nada mais existe. De fato, em sendo assim, tudo é falso,
como se diz no começo desta passagem, não se pode sequer imaginar um ser
humano integral, dadas as condições atuais de fragmentação a o
esvaziamento da experiência humana, que será reconstruída de modo
idealizada por fotos.
Murau foge desta idealização pela dialética: pois sabendo que não vai
acreditar na imediação que tenta fazer das fotos a verdade das pessoas, ele as
desacredita e desvaloriza; caindo sua scara, fica evidente a exposição das
ruínas que tentava esconder, e essas ruínas são a verdade desta mediação e,
portanto, da própria necessidade da mediação como “imediação” salvadora.
Deste modo, no entanto, não se chega à verdade de uma foto em específico,
mas à autenticidade da própria mediação, que exige uma consciência
redobrada do caráter de mediação da fotografia. Não é outra a perspectiva de
Bernhard com uma de suas frases fundamentais: “In meinen Büchern ist alles
künstlich“, como já se sabe.
Este é um outro caminho para se chegar à busca da verdade pela obra de
arte, o que leva a uma das frases mais recorrentes em seus romances,
presente em quase todas as situações: “Das ist die Wahrheit.”
428
Almeja-se a
verdade da forma. Sendo assim, o livro se concentra em levar para a forma as
questões decisivas sobre a história austríaca, não obstante tematizar esta
história. Mas a verdade procurada não se encontra com facilidade, pois a
verdade dos temas não pode ser expressa, mas sim a formal, o que o narrador
não deixa de explicitar a cada página, pelo processo de sua extinção.
Um exemplo: Murau comete um lapso ao dizer que os pais ainda “são”, o
que corrige com o “eram”. Ao escrever o texto em Roma, Murau poderia ter
suprimido um dos termos: se escrevesse apenas no presente (são) ou no
passado (eram), o trecho passaria despercebido. Do modo como fez,
428
Em Auslöschung, por exemplo, nas páginas 143, 193, 197, 299, 364, com variantes
expressivas como na página 291: “Das ist die österreichische Wahrheit”, falando sobre o
nazismo e suas continuidades e desdobramentos em terreno austríaco.
349
colocando frente a frente o vivo e o morto, impede que este lapso passe em
brancas nuvens. No fim das contas, deste lapso trata o romance: esta é a
autenticidade da forma. Os pais estão vivos e continuarão vivos em Murau,
posto que ele não os pode suprimir (Abschaffen) por palavras. E deste modo
eles estão tanto vivos como mortos. (wie sie sind, sie waren) De novo, aqui, o
passado e o presente se combinam e se sobrepõem, na forma deste lapso.
Este que, para o leitor desatento, indica apenas uma correção irônica sem
conseqüências maiores, não tem nada de ingênua e casual, remetendo para a
verdade que Bernhard pretende exprimir. O modo como redige esta passagem
mostra um aspecto central de sua escrita e da sua concepção de história e de
rememoração, além, é claro, de escrita da história. Ele se corrige, mas mantém
o corrigido como válido, escrito. Interessa antes o processo dialético que
mantém os dois termos e impede uma concepção de história como uma
sequência de acontecimentos diários dignos dos jornais. Sendo assim, não
poderia escrever de outra maneira que não esta.
Neste sentido é necessária uma mediação para se chegar a qualquer
autenticidade no mundo de hoje, e a foto se presta bem a este papel, ao
expressar uma verdade da forma social: a retirada do fotografado de um
contexto significativo, base para a rememoração e a significação em
Auslöschung, como visto, (Unter Umständen) implicando na deformação e
construção de uma vivência via montagem. Não é à toa que, mais à frente,
Murau reorganize as três fotos que têm em mãos (pais, irmão e irmãs) para
reconfigurar seu passado e presente, para reescrever a história. Ao criar uma
nova constelação, um novo contexto, irrompe uma nova significação. “Ich legte
die drei Fotografien jetzt so übereinander auf den Schreibtisch, daß, obwohl er
darauf gar nicht abgebildet ist, (...) mein Onkel Georg zuoberst und also über
meine Eltern sozusagen als erster eingeordnet war, unter meinen Eltern mein
Bruder Johannes.” (AUS, 54) A posição destas fotos será crucial para sua
rememoração, que é uma recriação, como se estas fotos fossem farrapos de
memória, com as quais Murau, ativamente, tem que reconstruir a sua própria
identidade e, ainda mais, a história, que nunca prescinde de um contexto e de
um ponto de vista. Mesmo os ausentes (mortos, ou emudecidos) têm vez e
participam desta construção, que não se prende, como se viu, ao que está
efetivamente retratado: o tio Georg, mesmo ausente nas fotos, fica acima de
350
todos os retratados. A percepção ganha com a presença do ausente, que turva
a vista, mas chega mais próximo da verdade aqui perseguida, a da forma.
Sendo assim, se consegue ao mesmo tempo, nas fotografias, tanto a
deformação e falsidade até a irreconhecibilidade, quanto a verdade, a
autenticidade máxima que se pode obter.
[...] je länger ich sie betrachte, hinter der Perversität und der Verzerrung doch die
Wahrheit und die Wirklichkeit dieser sozusagen Abfotografierten, weil ich mich
nicht um die Fotos kümmere und die darauf Dargestellten nicht, wie sie das Foto in
seiner gemeinen Verzerrung und Perversität zeigt, sehe, sondern wie ich sie sehe.
(AUS, 30, itálicos do autor).
A fotografia, atacada por Murau atacada como a maior tragédia do século
XX (AUS, 30), concomitantemente aspira à verdade da forma, à sua
autenticidade, mas seria um erro pensar que este autêntico é um universal.
a necessidade da interpretação do sujeito que olha, que organiza o material e o
significa. Assim, a foto é antes um Medium-de-Reflexão,
429
no sentido
benjaminiano, que não pode por ela mesma chegar a algo positivo, mas
apenas em um observador.
Quanto mais deformada e inverídica, mais autêntica, de onde o apenas
a dignidade dos meios tecnológicos é atestada para as condições atuais, como
suas qualidades acabam plasmadas na forma do romance, que brota do
mesmo contexto. O filme Der Italiener, de 1970, que pode ser visto como uma
etapa anterior de aproximação da matéria social formalizada em Auslöschung –
o tema Wolfsegg , mostra a afinidade entre a linguagem cinematográfica e a
forma literária do romance. Numa das rubricas para a direção deste filme,
Bernhard escreve: “Die Kamera ist jetzt die rücksichtsloseste”
430
, o que remete
à passagem em que Murau observa de modo desavergonhado as fotos (AUS,
25: Schamlosigkeit). o o meio fotografia ou cinema, com Murau, “quadros
em movimento” –, mas a forma social é desavergonhada.
429
W. Benjamin, “Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik”. Em GS I.1, p.7-122,
especialmente entre as páginas 62 e 72. Ver, por exemplo: “Jede kritische Erkenntnis eines
Gebildes ist als Reflexion in ihm nichts anderes, als ein höherer selbsttätig entsprungener
Bewußtseinsgrad desselben. Diese Bewußtseinsteigerung in der Kritik ist prinzipiell unendlich,
die Kritik ist also das Medium, auf die Unendlichkeit der Kunst bezieht [...]”, p. 67.
430
T. Bernhard, Der Italiener, p. 22.
351
Sendo correta esta argumentação, não se trata de crítica desabrida contra
a fotografia, mas a discussão sobre a forma da arte e seus encobrimentos
astutos. Mais do que isso, com Benjamin, no seu ensaio sobre a história da
fotografia,
431
a forma social antecipa e estabelece as direções para os avanços
tecnológicos, de onde se depreende que a questão nunca poderia ser a da
demonização da foto, mas muito antes a de entender e penetrar no arcabouço
da forma social e, daí, da literária. Não custa lembrar que a passagem em que
Murau observa as fotos e reconstrói seu presente e passado toma mais de 300
páginas do romance, o sendo algo periférico, mas central na arquitetura do
mesmo.
De acordo com esta leitura, não como concordar com o argumento de
Marquardt
432
, para quem a altercação com as fotografias constitui um exemplo
claro de ambigüidade constitutiva, resultando numa expressão paroxística que
se acaba em si mesma. Para mim, no entanto, a falsidade da foto e a
destruição da dignidade humana não criam um paradoxo frente à autenticidade
e verdade conferida às fotografias, pois o primeiro lado desta equação funciona
como pressuposto para o segundo, sendo que um trabalha no âmbito temático
(falsidade), e o outro formal (autenticidade); este último confere dignidade e
validade àquela falsidade.
Num determinado momento, Murau se pergunta porque guardou
justamente aquelas três fotos e não outras, entre muitas em que seus pais
apareciam como pessoas sérias, e não aquelas caricaturas que tinha em mãos.
Mas uma justificativa que Murau não usa, mas que é pertinente:
especificamente nestas fotos, os pais e os irmãos se enquadram muito a
contento na concepção brechtiana de Gestus social:
Den Bereich der Haltungen, welche die Figuren zueinander einnehmen, nenn wir
den gestischen Bereich. Körperhaltung, Tonfall und Gesichtsausdruck sind von
einem gesellschaftlichen Gestus bestimmt: die Figuren beschimpfen,
komplimentieren, belehren einander und so weiter. Zu den Haltungen,
eingenommen von Menschen zu Menschen, gehören selbst die anscheinend ganz
privaten, wie die Äußerungen des körperlichen Schmerzes in der Krankheit oder
die religiösen. Diese gestischen Äußerungen sind meist recht kompliziert und
431
W. Benjamin, “Kleine Geschichte der Photographie”, em GS II.1, p. 382.
432
E. Marquardt, “Die halbe Wahrheit. Bernhards antithetische Schreibweise am Beispiel des
Romans Auslöschung”, em M. Huber et al. (orgs), Wissenschaft als Finsternis?, p. 89.
352
widerspruchvoll, so daß sie sich mit einem einzigen Wort nicht wiedergeben
lassen. [...]
433
.
A partir deste excerto sobre o Gestus social estas fotos ganham outra
dimensão, e a escolha delas não se resume mais à uma questão de gosto
pessoal, mas de representação da forma social. Vide que à postura corporal do
pai (Körperhaltung) corresponde sua constituição social, pois a foto expressa
sua consciência pesada, nas palavras de Murau (AUS, 24: Die Körperhaltung
meines Vaters sein schlechtes Gewissen [...] nicht verbergen kann), assim
como o pescoço longo da mãe (AUS, 24: etwas zu langen Hals) que
saberemos marca do nazismo, mais tarde, por causa do seu torcicolo
permanente; do mesmo modo, o riso abobado no rosto das irmãs e a
expressão atormentada do irmão nas suas fotos apontam pra sua aniquilação e
extinção social. Este caráter social é fundamental para emprestar autenticidade
a estas fotos, facilitando o acesso a esta verdade formal, pelo seu caráter
alegórico.
A discussão sobre os jornais está alinhada com a acima realizada sobre a
fotografia. Ela se faz decisiva quando se tem em mente Auslöschung como
ponto de fuga da obra de Bernhard, e se sabe que o autor começou sua
carreira nos jornais, escrevendo sobre processos criminais e paisagens
austríacas, entre outros assuntos, quando entrou em contato, por exemplo,
com o nome Wolfsegg, vinte e seis anos antes da publicação deste romance.
434
A imitação que não imita, típica de Bernhard e seu procedimento de citação,
que em geral deturpa, ou mesmo põe de cabeça pra baixo o citado, encontra
seu expoente maior na forma dos jornais. Em especial no livro Der
Stimmenimitator, comentado, este aspecto ganha o relevo que vai ostentar
ao longo da obra.
De volta a Auslöschung, o tema aparece quando Murau vai à cozinha e vê
uma pilha de jornais sobre a mesa, em que o acidente é retratado e relatado.
433
B. Brecht, “Kleines Organon für das Theater”, 6 1, Gesammelte Werke 16. Schriften zum
Theater 2, p. 690.
434
“Ja, aber da ist nun Wolfsegg, das mit seinem Schloßberg und Markt hoch über der
Landschaft thront, und sein Name erinnert an die Wölfe, die einst hier gehaust haben sollen.
Auch die Haltstelle Wolfshütte bewahrt das Andenken an diese Bestien, die bis nach 1800
Standwild in Oberösterreich waren”. T. Bernhard, Geheimnisse der Ortsnamen, em
Demokratisches Volksblatt, 19/09/1953, apud H. Höller, “Politische Philologie des Wolfseggs-
Themas”, em Antiautobiografie, p. 48.
353
Ao ver as fotos da mãe decepada, repudia estes jornais pelo sensacionalismo
barato a que se entregam para aumentar suas tiragens. Murau fica, ao mesmo
tempo, enojado e atraído, posto que confessa ser um ávido leitor de jornais.
Entrega-se à leitura dos jornais, por um lado, mas fica à espreita da chegada
de alguém que o flagrasse nesta infâmia, nos termos dele. Como foi visto, a
entrada da cozinheira vai debelar uma luta ferrenha com esta, mas isto foi
alvo de considerações.
[...] ich hatte während des Lesens den Eindruck, die Zeitungen schreiben zwar mit
der allergrößten Verlogenheit, gleichzeitig aber auch nichts als die Tatsachen, daß
sie zwar alles in diesen Berichten bis zur Unkenntlichkeit verstümmeln, wie sie
selbst es über die Leiche meiner Mütter schreiben, dsie aber gleichzeitig nichts
als authentisch sind. [...] je verlogener sie schreiben, desto wahrer ist es. (AUS,
405).
O aparente absurdo, como visto, não é nenhum absurdo: é mentira e,
ao mesmo tempo, o fato. O jornal esquarteja todos os seus temas e, ao fazê-lo,
tem autenticidade. O jornal é a mídia mais adequada e correspondente a uma
realidade aparentemente factual, em que os fatos não precisariam de contextos
e de sujeitos para assumirem um significado: eles falam por si sós, e se
bastam. O homem que consome informação é entendido como tabula rasa, que
recebe os blocos de significação prontos, sem que haja qualquer espaço para
questionamentos. Benjamin, depois de lembrar que a imprensa se constitui
num dos mais importantes instrumentos do alto capitalismo nas os da
burguesia, comenta sobre as informações que preenchem seus espaços:
Die Information aber macht den Anspruch auf prompte Nachprüfbarkeit. Da ist es
das erste, daß sie ‘an und für sich verständlich’ auftritt. Sie isto oft nicht exakter als
die Kunde früherer Jahrhunderte es gewesen ist. Aber während diese gern vom
Wunder borgte, ist es für die Information unerläßlich, daß sie plausibel klingt.
435
E a mídia jornal ainda conta com outros elementos importantes para se
entender sua forma. A falta de contornos claros entre propaganda e texto
jornalístico, especialmente nos dias de hoje, faz deste meio ainda mais
autêntico, pois a sua verdade última, o aspecto econômico da atividade, não
435
W. Benjamin, Der Erzähler, p.438-465. Em GS II.2, p. 444.
354
está restrita ao espaço exclusiva e abertamente publicitário, estando presente
em todas as suas matérias, que dependem, também elas, da venda do jornal.
Quando uma empresa de alimentos banca um estudo que a privilegie, e este
ganha as folhas dos jornais como notícia, não se pode diferenciar os dois
momentos.
Quanto mais o jornal distorce, mais longe da realidade complexa que
envolve o acontecido, e assim mais próxima do espírito do tempo, da
desfiguração, isolamento e equiparação de tudo pelo denominador comum do
dinheiro: em última análise, o que se publica se dobra a este poder moderador,
que se conforma, por seu turno, ao mercado. Karl Kraus cunha uma expressão
que vai direto ao ponto, ainda com pitadas de ironia, em 1901:
“Nimm das gedruckte Wort nicht ehrfürchtig für bare Münze! Denn deine
Heiligen haben zuvor für das gedruckte Wort bare Münze genommen.”
436
O
trocadilho combare Münze’ (numa tradição literal “dinheiro vivo”) é um achado,
pois na primeira frase, como expressão idiomática, significa “favas contadas”
ou “verdadeiro”, com o que o dinheiro passaria a ser algo verdadeiro, não
falsificável, que efetivamente valeria o que estampa em sua face: isto aponta
justamente para a astúcia da informação jornalística, que se finge de factual e
inquestionável, em suma, expressa aquilo que o meio jornal pretende como
maneira de esconder sua verdade formal. No entanto, sendo o dinheiro uma
abstração da relação social entre pessoas, que se finge de mero equivalente
de troca, temos uma mentira a ser desmascarada. O que ocorre na frase
seguinte, pela mesma expressão, ‘bare Münze’, agora tomada literalmente, que
explicita o caráter interessado deste dinheiro e, por extensão, do texto
jornalístico. A moeda volta a ser moeda e perde a aura de verdade, mesma
queda que sofrem os santos (Heiligen) imaculados que escrevem estas
notícias. Que não haja enganos: trata-se de um produto que se arroga o
estatuto de detentor de verdades inquestionáveis. No fundo, no entanto,
importa mesmo se foi auferido lucro que possa manter a empresa funcionando.
A brincadeira com as palavras, além disso, também dirige uma crítica à língua
tomada como transmissora de mensagens denotativas: Kraus entende a língua
como interessada e partícipe do jogo de significações, o que se pela própria
436
J. Pötschke, “Karl Kraus. Spruch und Widerspruch”, em Karl Kraus. Polemiken Glossen
Verse und Szenen, p. 350.
355
história, que penetra a linguagem e faz dela um campo de batalhas ideológico
por excelência. (numa formação bakhtiniana).
A perspectiva do texto de Auslöschung, para continuar em alto nível com
Kraus, está alinhada a um outro aforismo dele, publicado num dos cadernos de
Die Fackel do ano de 1912: Die Verzerrung der Realität im Bericht ist die
wahrheitsgetreue Bericht über die Realität.
437
Mais do que na mesma
perspectiva: a frase de Kraus resume e explica o suposto absurdo do texto de
Bernhard, e não me refiro apenas à esta passagem específica. A deturpação
do relatado a informação expressa a forma verdadeira da matéria social
que se pretende expor: mutilação, nivelamento, extinção. O jornal, como
Benjamin analisa tendo em vista Kraus, é antes de tudo forma:
Die Presse ist das Ereignis. Ist die Presse ein Bote? Nein: das Ereignis. Eine
Rede? Nein: das Leben.“ (Kraus, citado em Benji). „Die Zeitung ist ein Instrument
der Macht. Sie kann ihren Wert nur von der Charakter der Macht haben, die sie
bedient; nicht nur in dem, was sie vertritt, auch in dem, wie sie es tut, ist sie ihr
Ausdruck. Wenn aber der Hochkapitalismus nicht nur ihre Zwecke, sondern auch
ihre Mittel entwürdigt, so ist eine neue Blüte paradiesischer Allmenschlichkeit von
einer (...) Macht so wenig zu gewärtigen.
438
Quando Murau coloca em discussão este meio de comunicação (a
palavra meio engana, por seu caráter de transferência, de não participação)
e a construção de uma realidade por este, no caso dos artigos sobre o
acidente, sua crítica se alinha a esta acima. Ao criar uma história com
personagens, o acidente se torna uma mercadoria editorial travestida de
informação objetiva. Isto não se restringe à Áustria, embora aí ganhe uma
conformação própria, como os tablóides de mexericos ingleses são diferentes
dos alemães, mas a lógica subjacente é a mesma. A lógica da destruição do
outro, tomado como objeto da ciência, aparece na relação de Konrad com sua
esposa, em Das Kalkwerk, de modo explícito, e a tortura/estudo científico
ocorrem tendo em vista um estudo sobre a linguagem. A frieza com que ele
age não seria possível sem a racionalidade técnica e o isolamento do Eu
realizados pela revolução industrial, que irá culminar numa: “industrielle
437
J. Pötschke, “Karl Kraus. Spruch und Widerspruch”, em Karl Kraus. Polemiken Glossen
Verse und Szenen, p. 353.
438
W. Benjamin, “Karl Kraus”, em GS II-1, p. 344.
356
Menschenvernichtung des letzten Jahrhunderts”
439
. Uma possível tradução
deste trecho evidencia a relação entre a forma capitalista e o Holocausto, se se
pensa que esta ‚aniquilação humana industrial’ é tanto fruto da industrialização
[capitalismo], mas também realizada como indústria e seus padrões de
eficiência [Holocausto]. Com Adorno ganha o argumento seus contornos finais:
Wäre sie [a frieza, die Kälte] nicht ein Grundzug der Anthropologie, also der
Beschaffenheit der Menschen, wie sie in unserer Gesellschaft tatsächlich sind;
wären sie also nicht zutiefst gleichgültig gegen das, was mit allen anderen
geschieht außer den paar, mit denen sie eng und womöglich durch handgreifliche
Interessen verbunden sind, so wäre Auschwitz nicht möglich gewesen, die
Menschen hätten es dann nicht hingenommen. (...) Die Kälte der gesellschaftlichen
Monade, des isolierten Konkurrenten, war als Indifferenz gegen das Schiksal der
anderen die Voraussetzung dafür, daß nur ganz wenige sich regten.
440
O isolamento propiciado pelo capitalismo e a frieza das relações
humanas, mecanizadas e substituídas por relações entre mercadorias, são um
pressuposto para a indiferença ante o genocídio, de modo que as pontas se
fecham do que aqui se discute, e a ponte entre a forma dos jornais e da
fotografia e o nazismo ganha contornos nítidos, mediados pela forma social
totalizadora.
441
Esta aniquilação realizada pelos jornais faz dos vivos
cadáveres, como Bernhard comenta numa entrevista dada por ocasião do
lançamento desta Auslöschung, em Madrid: “Fleischmann: Und wie ist es
eigentlich, wenn Sie etwas über sich selbst in der Zeitung lesen? Bernhard: Ich
bin immer die Leiche gewesen [...] Das war ja der große Vorteil, das man das
weiß, daß man die Selbstleiche ist” Mas longe de repudiar isto, Bernhard
continua como deve, sendo a necessidade de se transformar em mercadoria
editorial um modo de conseguir uma voz, mesmo que seja deturpada, pois
assim, como morto publicado, volta à vida, a das mercadorias. A entrevista
continua: “Ich bin die Leiche, die ewig lebt in diesem Sinne.”
442
439
H. Höller, “Bernhards Wissenschaft”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler (orgs.),
Wissenschaft als Finsternis?, p. 23.
440
T. W. Adorno, “Erziehung nach Auschwitz”, em Gesammelte Schriften vol 10: Kulturkritik und
Gesellschaft I/II. p. 687.
441
A pensar assim, as bases materiais e intelectuais estão todas presentes, e o espanto não é
ter havido Auschwitz, mas ainda não ter ocorrido de novo; pelo menos não na Europa Central.
442
T. Bernhard apud K. Fleischmann, Thomas Bernhard. Eine Begegnung. Gespräche mit
Krista Fleischmann, p. 149.
357
O esvaziamento humano e sua extinção são formais no romance de
Bernhard. A necessidade da arte do exagero, da desfiguração, da mediação
fortemente marcada, em suma, a condução à necessária artificialidade do
texto, serve à configuração estética desta realidade, ao preço de aniquilar sua
própria configuração, em termos da proposta da “descriação” (Abschaffen) e da
doação final do romance. “A desfiguração da realidade no relato é o relato mais
verdadeiro desta realidade”: a mediação dos jornais para conseguir acesso ao
acidente coloca a discussão sobre a linguagem jornalística em primeiro plano,
e Murau não se esquiva de lidar com este “como” (wie) que, ao fim e ao cabo, é
para o narrador mais importante do que o tema mesmo (was). Isto nos remete
à “imitaçãodesta forma operada em Der Stimmenimitator (1975), que não
por acaso numa versão anterior se chamaria “provável improvável”
(wahrscheinlich unwarscheinlich), em que a forma de construção da realidade
pela linguagem jornalística (o provável) conduz aos maiores absurdos
resultados (improváveis).
Kraus e Benjamin recorriam também aos jornais cotidianos para buscar a
verdade do seu tempo, citando-os, com o intuito de salvar esta realidade,
presente nestes textos. Pötschke critica erradamente em Kraus esta técnica de
citação, pela suposta dependência de Kraus deste meio: por seu (de Pötschke)
raciocínio, se o jornal desfigura a realidade, a sua citação por Kraus conduziria
a uma desfiguração em segunda potência. O erro desta interpretação está em
não perceber que a ênfase recai, no procedimento de Kraus, justamente no
caráter de desfiguração da realidade perpetrada pelo jornal. Assim, mostra
outras leituras que não a única objetiva daqueles veículos de comunicação.
Acossado por duas (ou mais) leituras conflitantes, espera-se dos leitores que
busquem as relações de interesse e os contextos em que aqueles textos
surgiram e conseguiram seu efeito, fazendo do mesmo meio – jornal – o
caminho crítico que lhe falta. Assim, a desfiguração da desfiguração teria o
intuito de se aproximar da verdade e autenticidade daquele meio, que
necessita de uma outra mediação para perder a aura de verdade que assumiu
no desenvolvimento social e econômico real, em que se configurou como
mitologia da modernidade.
Assim também se configura o projeto de Bernhard na composição por
citação, seja dos jornais, seja da realidade mesma, da matéria social (entrando
358
imediata na obra-de-arte, mas sem deixar de ser completamente mediada).
Também a auto-citação, seja em entrevistas, seja nos romances, que remetem
uns aos outros, seja na citação de filósofos e escritores, numa gama bastante
extensa utilizada pelo autor. Perceba-se que a citação nunca permite, em
Bernhard, uma relação de filiação incondicional, nem a uma escola filosófica,
nem a uma dada tradição literária. Quanto mais fiel a “citação”, por exemplo,
dos escritores em Holzfällen, mais se deve desconfiar do interesse em
mimetizar esta realidade, ou seja, maior atenção deve ser reservada à forma
da obra de arte e, conseqüentemente, da sociedade. A citação sempre atualiza
o citado, em Bernhard, de acordo com um determinado ponto de vista. Não é à
toa que, justamente em Holzllen um romance-provocação que,
programaticamente, tenta atacar o mais imediatamente possível determinadas
pessoas e instituições o narrador é, ao mesmo tempo, o mais subjetivo (no
sentido de afetado e auto-centrado) e abstrato (sem se dar ao menos um
nome) de todos os narradores desta última fase, ou seja, dos romances dos
anos 80; o narrador mais destruidor e o mais destruído, num romance em que
tudo é levado às últimas conseqüências.
Em suma: a fotografia, o cinema e os jornais abrem espaço no romance
para a penetração na modernidade. Como assinala com razão Höller
443
, a
composição em série dos acontecimentos, a seqüência musical e a imagética
do filme Der Italiener estão presentes em Auslöschung, porém concentrados e
formalizados pelo monólogo de Murau. Nesta mesma perspectiva se entende
aqui o diálogo pela rememoração com Gambetti e assim, ausente –, que se
contrapõe ao diálogo efetivo em Der Italiener (no filme e no fragmento anterior,
de 1964, de 10 páginas). Isto também se verifica na metáfora do teatro, que
remete, no filme e no fragmento, efetivamente a uma peça teatral, malograda
pelo suicídio do Senhor de Wolfsegg, e em Auslöschung se estende a uma
alegoria da vida como encenação, e não se prende a um evento pontual, que
deixou de acontecer. Levando este raciocínio adiante, nota-se uma
concentração maior no romance de 651 páginas do que no fragmento de 10,
pelo processo de formalização dos temas no corpo do romance. Este temas
443
H. Höller, Antiautobiografie, p. 45.
359
serão superados e mantidos, em sentido dialético, ao serem assumidos pela
forma, nível da sedimentação social por excelência.
A passagem destes temas para a forma, no espectro que vai da década
de 60 para os anos 80, mostra o quanto este material social ganhou
profundidade, por um lado, e, por outro, a obra de Bernhard ganhou em vigor e
pertinência. Isto não ocorre em detrimento dos temas pois, por um mecanismo
estudado, a recepção da obra, seja por seu aspecto dito “formal” seja pelo
seu “tema”, volta à obra como forma, como provocação, estímulo, choque. Em
outras palavras: os temas, em Bernhard, sofrem uma redução (no sentido de
concentração), e o romance deixa de lado a elaboração de um enredo
tradicional, como se viu. O tema não tem como fugir de discutir a forma.
Mediação pela linguagem e imediação da realidade social em
Auslöschung
Em Auslöschung, de um modo mais explícito do que ocorre nas demais
obras, o ponto de fuga da composição aponta para o futuro, para “O Novo”,
sem no entanto desenhá-lo, contentando-se com sua alusão, com certeza mais
estimulante do que um exercício de futurologia qualquer poderia ser. Tanto o
futuro como o passado se atualizam e se presentificam na linguagem, e devo
me voltar a esta para tentar entender como se dá este procedimento no
romance, que, nas palavras de Weinzierl, seria o único livro decididamente
político de Bernhard
444
, o que não implica dizer que o livro não tenha seu
centro organizador na linguagem; antes no jogo extremo entre a mediação
nítida e afirmada, por um lado, e a imediação da forma social, trazida para a
superfície da narrativa, por outro, se pode encontrar a verdade formal desta
obra e desta forma social. Desta feita, a fuga seja para o formalismo que
chamo de vulgar, que se prende e se fecha na artificialidade desta escrita, seja
para os temas e a recepção das obras, deixando de lado seu material e sua
mediação, são caminhos vulneráveis e não fazem jus à obra.
Nas palavras pregnantes de Michael Scharang: “Diejenigen, die bei
Bernhard in Tod und Metaphysik flüchten, flüchten in der Realität leicht in den
444
U. Weinzierl, Bernhard als Erzieher. Thomas Bernhards Auslöschung”, em P. M. Lützeler
(org), Spätmoderne und Postmoderne, p. 192.
360
Faschismus”
445
. Se o medo e o temor que se extrai de Auslöschung são da
estirpe do Angst metafísico Heideggeriano, como quer Scheu
446
, para quem a
angústia de Murau é despida de objeto, visto os pais estarem mortos, então
todo o passado aqui em jogo, mais vivo que nunca e alegorizado na figura dos
pais, “nazistas de nascimento” mas que ainda se espraia à Era Metternich e
ao Austrofascismo, culminando na situação complexa e ambígua da Segunda
República Austríaca estará relegado a um segundo plano, enfraquecido e
esquecido. E quem se refugia no inegável realismo temático não as formas
de sua representação, eliminando a mediação, envernizando os temas com a
pátina da naturalização, e assim o assimilam, tomando como verdade o valor
de face da letra do texto de Bernhard, o que não está à altura da obra: “In
meinen chern ist alles künstlich” é uma das suas frases fundamentais e
insuperáveis. Bernhard não aceita nenhuma destas duas perspectivas, mas
conhecia o risco que corria e ainda corre por conta destas interpretações
unilaterais e, deste modo, aniquiladoras, dado que a recepção das obras as
recriam com o passar do tempo, em parte determinando sua interpretação. Daí
a exortação de Bachmann para que o futuro releia esta obra e a atualize.
Infelizmente leituras unidimensionais prescindem mesmo de uma intenção
malévola dos agentes, visto que o método científico tradicional prega e preza a
segmentação e isolamento das esferas analíticas como prerrogativa da
exegese, fórmula que ainda está longe de perder vigência e poder nos meios
acadêmicos, que com isso deixam evidente seu caráter conservador e mesmo
reacionário, não obstante tudo que se diz a respeito de mudanças
paradigmáticas na epistemologia das “ciências humanas”.
Com razão diz Betz: “Obwohl er [Bernhard] keine Ideologische Ziele
verfolge, käme es durch seine Form des Monologs zu einer Vermittlung zweier
Literaturlinien: Sie sei weder engagiert noch reine (auf Wort und Musik
konzentrierte) Literatur, aber beides zugleich.”
447
Noutras palavras, há um
entrelaçamento necessário entre a mediação pela linguagem e a imediação
445
M. Scharang, apud W. Schmidt-Dengler, “Die Tragödien sind die Komödien”, em W. Bayer
(org), Kontinent Bernhard, p. 23.
446
A. B. Scheu, “Ich schreibe eine ungeheure Schrift. Sprache und Identitätsverlust in Thomas
Bernhards Auslöschung”, em M. Huber et al. (orgs), Thomas Bernhard Jahrbuch 2004, p. 60.
Como por exemplo, quando fala do medo que Murau tem dos pais, dirá ela: “Die
‚Ungeheruerlichkeit’, die Murau nun bedroht, ist keine Furcht mehr, sondern objektlose Angst.
Gerade deshalb sind auch seine ganzen Fluchtversuche nutzlos”.
447
U. Betz, Polyphone Räume und karnavalisiertes Erbe, p. 220.
361
com a realidade social em certo sentido, este emaranhado aponta para seu
projeto clássico, acertando em cheio na forma social, explicitando-a, ao mesmo
tempo em que não abdica da participação ativa no debate daquele momento na
Áustria; importante ainda notar que estes projetos não se dão em paralelo, mas
pelo seu entrecruzamento, pois a relação complicada e complexa que explode
a partir da concepção de linguagem exige que se leve em conta aquele
momento histórico, envolvendo-o. A impureza da forma estética é exigida pela
busca do teor de verdade da expressão, em sintonia com a forma social. A
provocação imediata retorna como mediação literária.
Sendo assim, não se pode falar num movimento único no sentido da
concentração na linguagem, que se fecharia sobre si mesma como no sentido
geométrico de ponto, abstração pura, nem se deve restringir apenas à
dissolução de toda criação estético-literária no material social, na crítica à
Áustria e na tentativa de chocar o público, mas antes encontrar na dinâmica
entre estes dois pólos o teor de verdade da obra, alvo do trabalho da crítica,
que não se contenta em diluir-se em mero comentário, com Benjamin.
448
A crítica também se submete à essa dinâmica: Hans Höller resumirá isso
ao formular que não há, por parte da obra e da crítica, uma frase definitiva que
não seja, logo a seguir, desmentida por outra tão senão mais categórica
quanto a anterior
449
. Assim o movimento da obra alcança a recepção,
envolvendo-a e fazendo dela parte do projeto estético do autor, sendo
continuamente relida e revista. Como se sabe, esta é a estrutura mesma de
uma obra que se constrói pela destruição, e que quer tirar desta destruição
mais do que o aniquilamento, nada menos que o “Novo”, que no entanto não
ganha contornos, mas sim um espaço em meio às ruínas repisadas e
revolvidas.
(Doação) Final: Sobre a composição do romance e sua falha que acerta em
cheio
O projeto de composição, pautado por uma concepção de linguagem,
memória, história e, sobretudo, escrita da história, será abalado, abandonado,
448
W. Benjamin, “Goethes Wahlverwandschaften”, em GS I-1, p. 123 – 202.
449
H. Höller, “Rekonstruktion des Romans im Spektrum der Zeitungsrezensionen”, em H. Höller
et al (orgs), Antiautobiografie, p. 54.
362
numa palavra, extinto, pela doação do espólio à comunidade israelita de Viena.
Esta doação, sem dúvida, abre espaço para ser interpretada de diversas
maneiras. A crítica se divide entre entendê-la como a redenção da história de
Wolfsegg, num extremo, e o abandono de seu projeto de enfrentamento deste
passado, relegando o peso deste aos interessados, ou seja, àqueles que
sofreram, o que leva a uma amputação do passado, nas palavras de
Heidelberger-Leonard:
Die Erbverweigerung als solche, die sich [...] in Auslöschung ganz spezifisch auf
die im Schloß Wolfsegg verräumlichte NS-Geschichte bezieht, kann als
Amputation der eigenen Vergangenheit nur als Akt der Verdrängung schlimmster
Art verstanden werden. Sie ist in der Tat nichts anderes als explicite Verweigerung,
die Last der österreichischen Geschichte zu tragen.
450
Considero esta argumentação correta, o que em certo sentido bate de
frente com o projeto de escrita deste romance, levando-se em conta a
concepção de língua e de história e mesmo à de escrita da história nele
elaborado, no sentido de uma Abschaffen’, de atualizar este passado, projeto
de escrita desta Auslöschung, apontando para a fraqueza do narrador em
primeira pessoa, filho pródigo deste seio, mesmo sendo seu antagonista, o que
foi discutido nos capítulos anteriores. Heidelberger-Leonard centra esforços em
criticar o autor Bernhard por conta desta doação final, que equivaleria a algo
como comprar uma indulgência para o passado austríaco. Ela se esquece,
porém, que o autor Bernhard e o personagem Murau não podem ser
confundidos. O fracasso da forma do romance se reverte, dialeticamente, em
seu ponto alto, pois atesta um fracasso da forma social, e Bernhard tem isso
em vista.
A discussão sobre o passado austríaco trazida a lume nos anos 80
mudou radicalmente a discussão sobre este tema, é bem verdade, mas isso
não implica concordar que esta mudança tenha sido positiva, no sentido de
atualizar e reconhecer o próprio passado. O que se viu foi antes a continuação
da encenação, a céu aberto, do que antes permanecia escondido, e não a
realização de uma reescrita desta história, pelo menos de torná-la
questionável, argumentos que se apóiam em Menasse, Haslinger, Gehler,
450
I. Heidelberger-Leonard, “Auschwitz als Pflichtfach für Schriftsteller”, em H. Höller et al
(orgs), op. cit., p. 191.
363
Volcelka, Albrich, entre tantos outros autores. A vitória de Waldheim e o espaço
político ocupado por Haider deixam claro este estado de coisas: a ampliação
de seu peso político e seu discurso xenófobo deixam pouca margem para erro
de avaliação. Quando seu partido foi acusado de assumir parte do discurso
nazista como cálculo político, Haider saiu-se com a seguinte tirada: “Wenn die
FPÖ (seu partido então) die Nachfolgeorganization der NSDAP wäre, hätte sie
die absolute Mehrheit.”
451
Menasse dirá que, antes de Waldheim, um político
poderia ser antisemita, mas não poderia dizê-lo em público; pós Waldheim, não
pode dizê-lo, mas mesmo dispor dele como cálculo político, sabendo que
com isso receberá votos
452
.
Esta a grande mudança que Bernhard poderia anotar e que, como visto,
faz do momento o ideal para a publicação do romance: era hora da Áutria
falar.
453
As condições objetivas para a superação desta forma social não estão
dadas, o que impede o surgimento de algo qualitativa e efetivamente novo, e o
fracasso da concepção da obra Auslöschung indica esta impossibilidade
histórica. “Aber zu einer solchen grundlegenden und elementaren Revolution
sind wir heute noch zu schwach, wir sin noch nicht reif dafür, [...]” (AUS, 146)
Menasse conta o episódio significativo para minha argumentação.
Quando, nos idos dos anos 90, aventou-se a hipótese da criação de uma Casa
da História (Haus der Geschichte) em Viena para guardar a memória da
história da Áustria, um dos líderes do ÖVP (Andreas Kohl) sugere que, em
verdade, deveriam ser duas casas: Uma da Tolerância (Haus der Toleranz),
sobre o massacre dos judeus, e outra a Casa da História (Haus der
Zeitgeschichte), para tratar do sucesso da Segunda República. A Casa da
Tolerância não poderia ficar no Palácio Epstein, mas na periferia, segundo seu
plano. Menasse as chama de Casa da Crítica (Kritikhaus) e casa do bilo
(Jubelhaus).
Das Kritikhaus soll, so Kohls Vorschlag, ‘eine zeitgeschichtlich interessierte
Sponsorengemeinde’ finanzieren das ist das eleganteste Synonym für ‘die alten
451
Folheto sobre a montagem de Heldenplatz, citando jornais da época.
452
R. Menasse, “Ein verrücktes Land”, em Das war Österreich, p. 269.
453
Schmidt-Dengler diz que Bernhard faz a Áustria falar, o que foi citado neste trabalho, aqui
lembrado.
364
Geldjuden’, das ich je gelesen habe –, während das Jubelhaus ‘ein Projekt der
Bürgergesellschaft’ wäre – also natürlich der öffentlichen Hand.
454
Uma pessoa pode propor o que bem quiser, é bem verdade, mas já
ganha outra dimensão quando esta pessoa é um dos políticos mais influentes
de um dos dois maiores partidos do país. Mas não parou aí: a sugestão
recebeu sonoros elogios por parte do Kronen Zeitung, um dos maiores do país,
e praticamente nenhuma crítica, mesmo com a xenofobia explícita ali presente.
Nenhum escândalo, nada. O episódio vem bem a calhar com esta doação final
de Auslöschung, para deixar claro em que sentido se afirma que as condições
para uma outra perspectiva de altercação com a História não estão dadas.
Assim se pretende fazer: a Casa da Tolerância deve ficar fora do centro, paga
pelos interessados e desvinculada da História Austríaca. Assim também a
perspectiva da doação de Murau: os judeus, que não sabem onde se
pendurava a bandeira com a suástica, nem que os nazistas foram escondidos
na Kindervilla, ou seja, que não têm como fazer jus a esta História, recebem o
Castelo como uma compensação. Sendo assim, favorece que a Áustria se
desligue deste passado, tema para os “outros”. Neste sentido, a doação parece
estar bem afeita aos tempos. A doação funciona como uma evasão, é bem
verdade, contra o projeto do romance, o que o faz acertar em cheio.
Assim, tanto o projeto de, pela linguagem, “eliminar os seus”, quanto seus
projetos arquitetônicos, que ambicionavam reconstruir a Kindervilla, terminam
malsucedidos pois esbarram na impossibilidade de se contornar a história e de
reescrevê-la sem trazer para esta reescrita todos os seus momentos. Na última
página Murau relata ao leitor, de chofre, que realizou a doação incondicional de
Wolfsegg und alles Dazugehörende’ à comunidade israelita, com o quê
procura fazer o que sabe impossível: eliminar o passado, relegando-o a uma
questão de preço, realizando uma espécie de ressarcimento. Como se a
revisão e restauração de um passado pudesse ser realizada por um terceiro. A
regressão acaba sendo uma regressão em relação ao desenvolvimento da
concepção de linguagem e de escrita da história do romance, sendo assim fiel
ao próprio movimento supressivo e aniquilador , traindo seu princípio
constitutivo.
454
R. Menasse, “Pro- bzw. Analepse (Vor- bzw. Rückblende)”, em Das war Österreich, p. 291.
365
Que seja lembrada aqui a frase de Adorno: “die obersten Werke nicht die
reinsten sind sondern einen außerkünstlerischen Überschuß, zumal
unverwandelt Stoffliches zu enthalten pflegen, zu lasten ihrer immanenten
Komposition.”
455
A falha formal de Bernhard é desta cepa, que acaba sendo um
acerto. Hens irá notar:
Das wäre also ein Ansatzpunkt, das Stoffliche bei Bernhard, worunter die
zahlreiche autobiographischen und biographischen Durchbrüche genauso zählen
wie die Schimpftiraden auf Staat und Kirche, wie die Hinweise auf Nazizeit und
Holocaust, in ein Verhältnis zu dem ausgeprägten Kunstwillen des Autors zu
bringen. Anders gesagt: Der bekannte Bernhard-Satz ‚In meinen Büchern ist alles
künstlich (ITA, 82) ist über dieses Verständnis einer notwendig verunreinigten
Autonomie am Ende der Moderne mit den immer wieder in diese Prosa
einfließenden, zum Teil sogar als rührend zu bezeichnenden Lebenswirklichkeiten
zu vereinbaren.
456
Este desarranjo formal posto que se trata do pano de fundo formal da
obra, que inclui a concepção de linguagem, da escrita da história e atualização
da memória acaba, afinal, dialeticamente, sendo um grande acerto, visto que
aponta para a forma social subjacente, que é falha neste mesmo sentido no
que tange ao enfrentamento desta história. Em outras palavras: a doação não é
uma falha do romance, antes o seu ganho mais decisivo, posto que senão seria
mais uma ilusão ou sonho de emancipação do que fiel à matéria social que
formaliza, ou seja, perderia o chão da realidade. A doação extingue, nada
dialeticamente, as esperanças que o texto havia criado, o que não indica uma
disposição niilista do autor, mas uma exigência da forma, que com este passo
se extingue, mantendo-se, ao se destruir cedendo espaço para o “Novo” que
Bachmann vira na prosa de Bernhard.
O leitor deve ficar irritado e sentir-se traído mas, fosse diferente o final,
seria falso: este romance o nos apresenta uma utopia redentora, projeto
impossível, e frustra na mesma medida em que a realidade frustra. Terminando
com Brecht, faço minhas as palavras finais de Arturo Ui: “Daß keiner uns zu
455
T. W. Adorno, Ästhetische Theorie, p. 271.
456
G. Hens, “Jaja, sie schreiben...”, em M. Huber e W. Schmidt-Dengler (orgs) Wissenschaft als
Finsternis?, p. 100.
366
früh da triumphiert / Der Schoß ist fruchtbar noch, aus dem das kroch!”
457
,
aludindo o por acaso às continuidades das formas sociais que ensejaram o
nazismo em versos que, infelizmente, de Brecht até nós não perderam o fio.
457
B. Brecht, “Der aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui”, em Gesammelte Werke in 20 Bänden.
Band 4. Stücke 4, p. 1834.
367
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Wie vergeht Zeit in der Finsternis?
(Gerhardt Fritsch, Fasching)
A pergunta que consta no romance Fasching pode ser vista como um dos
pontos centrais da estética de Thomas Bernhard, conforme se acompanhou ao
longo desta tese: “como transcorre o tempo na escuridão?” Sua última peça de
teatro, Heldenplatz, escrita e encenada em 1988, funciona como a
materialização desta discussão: cinqüenta anos depois da anexação nazista,
os gritos de júbilo na “Praça dos Heróis” soam ainda mais altos.
Esta peça e o escândalo armado em sua volta trazem à tona as duas
linhas de estudo desenvolvidas ao longo desta tese. O alemão Claus Peymann,
então diretor artístico do Burgtheater de Viena, o mais respeitado palco da
Áustria, encomendara ao amigo e colaborador Bernhard uma peça para ser
montada no jubileu de cem anos da fundação do teatro, 1988, coincidindo com
os cinqüenta anos da anexação nazista. Um grande circo estava sendo armado
em torno destas comemorações, buscando repisar a velha tecla da vitimização
da Áustria e dos austríacos. Os eventos procuravam, em especial, esquecer o
escândalo da eleição à presidência de Kurt Waldheim, em 1986. Bernhard
posiciona-se exatamente na contramão desta leitura, recebendo inclusive a
crítica de Waldheim, que diz: “Ich halte dieses Stück für eine grobe Beleidigung
des österreichischen Volkes”. Bernhard responde prontamente: “Ja, mein Stück
ist scheußlich. Aber das Stück, daß jetzt drum-herum aufgeführt wird, ist
genauso scheußlich.”
458
Desta feita, Bernhard faz da realidade ficção, e mostra
como a mediação entre forma social e forma literária ilumina ambas. Se a
realidade é terrível, a obra de arte também o será, na mesma medida.
A peça apresentada para a ocasião intitulava-se Heldenplatz, local onde,
cinqüenta anos atrás (exatamente no dia 15 de março), Hitler fora recebido
com júbilo e festa pelos vienenses. Perto deste local, a família e os amigos do
professor Schuster estão reunidos para o enterro deste, que se suicidara após
constatar que a situação da Áustria estaria pior agora (1988) do que cinqüenta
anos antes, no que tange à disseminação de um ideário nazista.
458
T. Bernhard, Heldenplatz. Comentários na contracapa da edição utilizada.
368
A crítica teatral Sigrid Löffler consegue trechos da peça e os publica na
revista Profil, em primeiro de agosto e dezenove de setembro de 1988 (a peça
estréia em quatro de novembro), r qdelonsuq(ave, n2(i)1.87122(â(z)9.71032(e)-42.189d(q)5.67474(u)-4.331177(b)5.67476( )-42.188(r)34.332587( )-42.188(p)-4.331177(bb)5.774( )-52.1951(o)-4.33117(s)--4.33114(l)1.8712(o)-4.33117(o)-4.32995(v)9.71032co)-4.33117(s)-0.2955854(l)166347(o)-4.2765(n)-4.32873(o)1-4.393(a)-4.328738 0 12TJ-64Tf27.d056(i)1.87o20.88 Td[(e)-4.33056(s)-22.1656(p20.88 Td[-20.88 Td[(t)-2.1655s )-122.235(c)qudonsc cqat-2.8112(c)-0.297474s(()2.80439(a)22.1656(Á632 0 Td[uo)-4.33117(n)-4.33117(s)tl(ave os(ntu co())2.80439(,)22.16611c queq os)-4.33117(g)5.67474sbqagqu peçaielgeto-02.4014(e)-4.33117(n)-2.16436(o-02.40146558(i)1.87(c)-0.295585s )-122.235(c)o-02.4014( )-42.1892(d)5.67474(e)-4.33056( )278]TJ124.751
369
voltar-se sobre ela. Esta provocação não pode ser apenas fogo fátuo, mas
deve estar ancorada em questões históricas e sociais relevantes, como no
caso em questão: qual o papel dos austríacos no nazismo? Qual a situação
hoje? E como lidar com este passado, dado que estamos vivendo no escuro,
numa construção baseada na repressão e esquecimento de um passado
indesejável?
O final da peça foi discutido: a esposa do professor Schuster, que diz
escutar o júbilo em Heldenplatz de cinqüenta anos passados, ouve o discurso
de Hitler, assim como os espectadores. Permanece imóvel, sem mais tomar a
sopa à sua frente. O som se torna cada vez mais alto, perto do limite do
suportável, embora apenas ela o ouça, além da platéia, até que ela cai morta,
com a cara na sopa, fechando a peça.
Num outro texto de Bernhard, Der deutsche Mittagstisch, uma
personagem de nome Bernhard. Sua esposa, Frau Bernhard, querendo evitar a
discussão sobre o nazismo entre os familiares na mesa de jantar, diz:
F
RAU
B
ERNHARD
Hört auf mit der Politik
eßt die Suppe.
H
ERR
B
ERNHARD
springt auf
Jetzt hab ich aber genug
In jeder Suppe findet ihr die
Nazis
Schlägt mit den Händen in den noch vollen Suppenteller
und schreit
Nazisuppe
Nazisuppe
Nazisuppe.
461
Não há mais saída, não como fugir da discussão política nem durante
a refeição, pois as esferas da experiência social não podem mais ser isoladas
umas das outras, assim como a realidade do autor Bernhard torna-se ficção
neste Dramolette, como o autor o chama.
Tanto no que concerne à necessária atualização da história, por uma
releitura que não se quer isenta (Auslöschung), quanto no que diz respeito à
461
T. Bernhard, Der deutsche Mittagstisch, p. 92.
370
provocação formal (Holzfällen), nada falta a Heldenplatz, inclusive a mediação
estética necessária para a aproximação com a realidade, o que reforça o papel
da linguagem. Em Heldenplatz:
Professor Robert: Was die Schriftsteller schreiben
ist ja nichts gegen die Wirklichkeit
[...] die Wirklichkeit ist so schlimm
daß sie nicht beschreiben werden kann. (HELD, 115)
Mas não outro caminho para procurar o “teor de verdade” da
sociedade, a não ser na “mentira” estética, pela letra: esta “sopa nazista” se
pode entender pela letra viva.
371
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