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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS INGLÊS
A Mídia e as Mulheres: Feminismos, Representação e Discurso
Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês, do
Departamento de Letras Modernas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Professora Doutora Anna Maria G. Carmagnani
São Paulo
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2005
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS
A Mídia e as Mulheres: Feminismos, Representação e Discurso
Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira
São Paulo
2005
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...at least at the level of the Western societies from which we derive, they have their
generality, in the sense that they have continued to recur up to our time: for example, the
problem between sanity and insanity, or sickness and health, or crime and the law; the problem
of the role of sexual relations; and so on...What must be grasped is the extent to which what we
know of it, the forms of power that are exercised in it, and the experience that we have in it of
ourselves constitute nothing but determined historical figures, through a certain form of
problematization that defines objects, rules of action, modes of relation to oneself.
(Michel Foucault – What Is Enlightenment?)
Dedicatória
Para Marcelo de Souza, 1978-2003
In Memoriam
...o passado que vive no presente e o futuro que germina no
presente são reais e, de fato, constituem o próprio presente.
(Collingwood, 1926)
Ao meu marido, pelo apoio.
À memória de meus pais, pelo incentivo aos estudos.
Aos meus queridos irmãos, espelhos de mim.
Aos meus amigos, aqueles que sabem que os levo comigo... sempre.
A todas as mulheres, mas principalmente
àquelas que sabem que se pode ir muito além dos limites.
Agradecimentos
À Anna Maria G. Carmagnani, pelo apoio, pela orientação e pela oportunidade de discussão das
leituras realizadas em reuniões mensais com os colegas orientandos. Mas, principalmente, por
acreditar neste projeto;
À Marisa Grigoletto, pelas valiosas opiniões;
À Lynn Mario T. de Souza Menezes e Walkyria Monte Mór, pela análise do trabalho e pelas
sugestões no exame de qualificação, contribuição ímpar na realização deste projeto;
Aos meus colegas do grupo de estudos de s-graduação, principalmente à Margarete Campelo e
Cynthia Pichini, pelo carinho e pela amizade;
A Kleber R. Ceribelli Pacca e à Silvana Fimene, pelo apoio constante;
À Secretaria de Pós-graduação, pelo suporte.
Sumário
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO...................................................................................................................01
CAPÍTULO 1: DISCURSO, IDENTIDADE E O SUJEITO..........................................11
1. Análise do discurso
................................................................................................................
12
1.1
Interdiscurso e Condições de Produção
.....................................................................
13
1.2
Ideologia e sujeito
.............................................................................................................
15
2. Identidade e Diferença
..........................................................................................................
19
2.1
Sexo e Gênero
....................................................................................................................
19
3. O Texto Jornalístico
...............................................................................................................
26
CAPÍTULO 2: FEMINISMOS: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO
DA MÍDIA IMPRESSA..........................................................................29
1. O Movimento Feminista Norte-Americano
e A Construção do Sujeito
do Feminismo
.........................................................................................................................
30
CAPÍTULO 3: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NOS JORNAIS
CANADENSES..........................................................................................48
1. Domesticidade
:
Contexto Familiar..................................................................... 51
1.1
Contexto Profissional
.......................................................................................................
59
2. Sexualização
.............................................................................................................................
64
2.1
Erotização: A Mulher-Atleta..........................................................................64
2.2
Infantilização: A Mulher Negra Atleta
......................................................................
70
2.2.1
A Executiva Girlish
...............................................................................................
74
2.3
Objetificação
.....................................................................................................................
82
3
.
Vitimização
:
Battered Woman - A Síndrome da Mulher Espancada....................87
3.1
A Violência Contra a Mulher e o Discurso Jurídico..............................101
3.2
FGM: Female Genital Mutilation - A Mutilação Genital Feminina
.......
112
CONCLUSÕES.................................................................................................................121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
..........................................................................................
.128
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo a análise das representações das mulheres em textos
publicados em jornais canadenses na década de 1990. A imprensa escrita tem grande influência
na criação ou na perpetuação de representações e/ou imagens de categorias sociais. Buscamos
examinar os discursos construídos sobre a “categoria” mulher, os seus estereótipos e as posições
de sujeito assumidas que, por meio de um discurso representacional, ora se apresenta como
mulher-mãe, ora como mulher-erótica, ora como mulher-vítima. A hipótese central é a de que a
mídia, através de um discurso que celebra a diversidade sexual, na verdade, legitima e
marginaliza identidades. Como resultado, algumas categorias de mulheres sobrepujam outras.
Analisamos o funcionamento das representações nos textos selecionados utilizando os
elementos teóricos da Análise do Discurso de Linha Francesa, que entende que a linguagem é
constituída sócio-historicamente, estabelecendo uma relação necessária entre o dizer e as
condições de produção desse dizer. Como conclusão, constatamos que as representações das
identidades das mulheres estão atravessadas pelo discurso político-liberal-humanista, pelo
discurso vitoriano do século XIX, pelo discurso feminista, bem como pelos discursos
criminológico e científico. Assim, as identidades das mulheres brancas, heterossexuais e de classe
média são legitimadas e as identidades de outras mulheres, como negras, homossexuais e pobres,
são excluídas ou marginalizadas.
O movimento feminista norte-americano influenciou a linguagem jornalística pedindo o
fim do sexismo e da desigualdade dos gêneros na mídia, o que provocou certos efeitos de
sentidos. Verificamos, que sob o manto aparente de uma representação das mulheres nos textos
jornalísticos isenta das relações de poder, a identidade feminina produzida é a do “outro” que é
“diferente” da norma. O leitor, no seu processo de interação com o texto, é influenciado,
(re)produzindo os sentidos ali constituídos, ajudando na perpetuação das relações estabelecidas.
Os textos jornalísticos, dessa maneira, homogeneizam sentidos, promovendo certas identidades e
excluindo ou silenciando outras por meio de um discurso que aparentemente celebra a
diversidade das identidades sexuais.
Palavras-chave: mulher, mídia, representação, identidade, Análise do Discurso.
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to analyse women’s representations in jornalistic texts
published in Canadian newspapers in the 90’s. The written media has great influence in creating
and perpetuating representations or images of social categories. We show how the woman’s
category and its stereotypes are socially produced through a representational discourse
presenting women as mothers, sexual objects or as victims, assuming subject positions
accordingly. The central hypothesis is that the media through a discourse that seemingly praises
sexual diversity, in fact, legitimates and excludes identities. As a result, some categories of
women overshadow others.
The analysis of how the representations functions within the context of the selected texts is
based on the conceptual framework of the French perspective to Discourse Analysis which
assumes that language is social-historically constituted, establishing a necessary relation
between discourse and its conditions of production. In conclusion, we have observed
representations of women identities constituted by a liberal political humanist discourse, by the
Victorian discourse of the 19
th
century, by the feminist discourse and by the scientific and
criminological discourses. Consequently, the identities of white, heterosexuals and middle class
women are legitimated and others like black, homosexuals and poor are excluded or silenced.
The North-American Women’s Movement has influenced the language in the news
fighting for the end of sexism and for equality in the press colaborating in the formation of new
identities. We have examined that women’s identities are portrayed in the media homogeneously,
as if detached from power relations. Thus, women’s identity is produced as the “other” –
“different” from the norm. As the reader interacts with the text and is influenced by the media to
which she/he is exposed to, the meanings of the text are (re)produced by her/him, leading to the
perpetuation of the established power/knowledge relations. Thus, jornalistic texts homogeneize
meanings, promoting certain identities and disregarding others, excluding or silencing them by a
discourse that apparently celebrates the diversity of sexual identities.
Key-words: women, media, representation, identity, Discourse Analysis
Introdução
2
Esta dissertação tem como objetivo refletir sobre as representações de identidades das
mulheres constatando a abrangência temática do discurso feminista na imprensa escrita
canadense da década de 1990. Concordamos com Fairclough (1995:52) quando diz que os textos
da dia são barômetros de transformação sociocultural e valioso material de pesquisa e que eles
são representações da realidade. Para esse autor, as notícias são socialmente construídas e todo
contexto social influencia a escolha do artigo de jornal como notícia.
Através da leitura de vários periódicos, por exemplo, os jornais The Toronto Star, The
Globe and Mail, The National Post e The Toronto Sun, pudemos perceber que a imprensa escrita
canadense estava afetada por vários discursos - dentre eles, o feminista - naquele momento
histórico.
Leituras como Backlash: The Undeclared War Against American Women de Susan Faludi
(1991), The Revolution from Within de Gloria Steinem (1992), The Beauty Myth de Naomi Wolf
(1990) e o The War Against Women de Marilyn French (1992), corroboraram a constatação de
que o discurso feminista atravessava o discurso jornalístico naquele contexto. Pudemos
depreender que a existência de um feminismo norte-americano - considerado como um
movimento político de ativismo social que se alia a outros grupos minoritários, como os dos
homossexuais e os dos negros, que questionam a inclusão e a exclusão social ou considerado
como uma filosofia - afetou a sociedade e a imprensa escrita que procuravam representar a
mulher dentro de um contexto mais “politicamente correto”.
A escolha desse tema deve-se ao fato de termos “experimentado” a imprensa canadense
nos muitos anos de vivência fora do Brasil e de ter nos causado estranheza as matérias referentes
às mulheres: a imprensa não tratava dos problemas “femininos” e sim dos problemas das
“mulheres”, o pronome he não generalizava o ser humano e a expressão sexual harassment (=
assédio sexual), uma inovação feminista, era manchete nos periódicos. Os adjetivos descritivos,
principalmente aqueles que podiam passar uma imagem negativa de mulher e reforçar certos
estereótipos, eram “controlados” pelas organizações feministas e pelo próprio discurso
jornalístico, por meio da não-utilização de uma linguagem que pudesse ser considerada como
3
sexista, como se pode comprovar no Canadian Press Stylebook (1992), o principal guia de uso de
linguagem no jornalismo canadense.
Treat the sexes equally and without stereotyping. A woman’s marital or family
status single, married, divorced, grandmother is pertinent only to explain a
personal reference or to round up a profile. The test always is: Would this
information be used if the subject were a man?” (:22)
Observamos também que o tema “violência contra as mulheres” era constante nos textos
jornalísticos da década de 1990. Por que se falava tanto de violência contra a mulher, na
imprensa? Seria a sociedade canadense - considerada de Primeiro Mundo, em um país
reconhecido pela Organização das Nações Unidas como o melhor lugar mundo onde se viver por
três vezes seguidas - tão violento com suas mulheres? A imprensa não deixava dúvidas, por meio
de vários textos jornalísticos da época, de que as mulheres eram não mães e profissionais, mas
também vítimas da violência masculina.
Toda essa “nova linguagem” - quando comparada à dos periódicos brasileiros com os
quais estava acostumada - causou estranhamento inclusive quanto ao uso de palavras ou
expressões até então desconhecidas, que começaram a ganhar significado quando passei a
interpretar a sociedade na qual estava vivendo sob uma ótica diferente: a do discurso feminista.
Dessa maneira, algumas das palavras que passaram a fazer parte dos dicionários de língua
inglesa nos últimos anos - como pro-choice (adjetivo usado desde 1975 que se refere à defesa da
legalização do aborto), battered woman (termo que se refere ao espancamento de mulheres),
sexism (substantivo de 1968 relacionado ao preconceito ou à discriminação baseados na condição
sexual e é especialmente usado quando se refere à discriminação contra as mulheres, mas que
também indica atitudes ou comportamentos que reforçam os estereótipos dos papéis sociais
baseados no gênero sexual) e glass-ceiling (substantivo de 1986 que significa a “muralha” dentro
do sistema hierárquico a qual impede mulheres e/ou minorias sexuais ou raciais de alcançarem
posições mais elevadas nas empresas) - ganharam sentido quando inseridas naquele contexto
social específico, no qual eram debatidas pela sociedade as várias questões sobre as mulheres,
como a desigualdade social e a violência contra elas.
4
Além disso, pudemos constatar a criação de novas leis de proteção às mulheres, por
exemplo, as que se referiam à violência doméstica e à molestação. As regras de comportamento
social, ditadas pelo “tolerância zero” e pelo “politicamente correto” alteraram as relações sociais
uma vez que novas figuras penais foram (re)criadas como no caso do sexual harassment e do
date rape (estupro entre pessoas que se conhecem).
Ao mesmo tempo, as grandes reuniões mundiais patrocinadas pela ONU, como a
Conferência das Mulheres em Pequim, em 1995, por exemplo, considerada como um marco
histórico pelo movimento feminista norte-americano, imprimiram marcas definitivas no discurso
jornalístico canadense da década de 1990.
Podemos dizer, sem receio, que a língua inglesa foi afetada pelo movimento feminista,
modificando-a mais do que qualquer outro movimento social. Anne Soukhanov, editora executiva
do dicionário American Heritage Dictionary, considera a preocupação com uma linguagem não-
sexista a mais importante mudança do uso da linguagem nos últimos quatrocentos anos.
1
Ela diz
que the concern for words that are gender-tagged is the most important shift in English usage in
the last 400 years.
Constatamos, assim, que o movimento feminista contribuiu para alterar comportamentos
na sociedade através do ativismo político, por exemplo, a campanha No means no
2
- que ditou
normas de comportamento sexual -, bem como através da teoria feminista que reestruturou certos
conhecimentos.
A imprensa canadense, ao reportar essas mudanças sociais através dos textos jornalísticos,
promoveu e tornou visíveis “assuntos” que se referiam a mulheres, principalmente a questão da
violência contra elas. Percebemos que havia poucas dúvidas sobre a relevância de certos
conhecimentos que são propagados através desses textos, por exemplo, a representação da
identidade feminina e/ou da mulher.
1
Anne H. Soukhanov, citada no artigo Liberating Language de Casey Miller, Kate Swift e Rosalie Maggio, na
revista Ms., edição de setembro/outubro de 1997, página 50.
2
A campanha “Não significa não” deixou claro que o ato sexual passara da esfera privada e pessoal para a esfera
pública.
5
O leitor de jornais busca basicamente a informação e a “verdade” dos fatos, assim, se a
identidade feminina é representada constantemente como “vítima”, por exemplo, podemos
considerar que certos efeitos são gerados. Quais seriam eles?
Os textos jornalísticos são consideradas “objetivos”, “verdadeiros” e, portanto, não
apresentam espaço para questionamentos. Nas palavras de Carmagnani (1996), a empresa
jornalística, por meio do jornal, busca controlar a unidade para criar o efeito da objetividade.
Pretendendo talvez a verdade jornalística dos fatos, percebemos que a imprensa canadense, por
meio de uma postura “politicamente correta”, aparentemente garantia o espaço das minorias - e
aqui enquadramos a categoria “mulher”.
Nos periódicos canadenses, o espaço para as feministas também estava garantido por
meio de suas colunas, nas quais as questões como a violência contra as mulheres, o aborto e a
equiparação salarial, por exemplo, podiam ser interpretadas sob sua ótica.
Assim, a imprensa canadense garantiu o espaço às mulheres e veremos, no desenrolar
desse trabalho, como a mídia as representou.
O texto da mídia, como qualquer outro, é afetado por fatores sociais, pela história, pelos
estereótipos e os jornalistas são interpelados enquanto sujeitos (Althusser, 1998) e interagem com
todas essas forças discursivas.
Assim, o significado não é intrínseco ao texto e o sujeito deixa marcas de sua presença na
produção de um enunciado. O discurso jornalístico, nas palavras de Carmagnani (1996:124), é
caracterizado pela imposição de uma homogeneização que cria e busca manter a ilusão de um
sujeito uno, um narrador onisciente de todos os passos de sua produção.
Para Fairclough (1995:104), os textos da mídia constituem versões da realidade que
dependem das posições sociais, interesses e objetivos de quem os produz. Então, eles são
socialmente construídos. Podemos considerar, dessa maneira, que o contexto social influencia a
escolha da matéria como notícia.
Reforçando essa linha teórica, Fowler (1991) afirma que notícia é o produto final de um
complexo processo que se inicia com uma seleção e escolha sistemáticas de eventos e assuntos,
de acordo com uma série de categorias socialmente construídas. Notícia não é somente o fato, o
6
acontecido. Ela precisa ter também o que ele chama de “valor de notícia”, que se por causa de
um específico momento histórico-político.
Podemos, então, entender a mídia como socialmente construída e que serve como função
para as relações de poder geradas pela oposição binária homem/mulher. Fowler (op. cit.) nos diz
que:
The formation of news events, and the formation of news values, is in fact a
reciprocal, dialectical process in which stereotypes are the
currency of
negotiation. The ocurrence of a striking event will reinforce a stereotype
,
and,
reciprocally, the firmer
the stereotype, the more likely are relevant events to
become news. (p.17)
De certo modo, simples, mas que nos serve nesta análise, podemos dizer que a década de
1990 trouxe marcas para o Canadá não pela recessão política e econômica, pelo debate intenso
sobre a identidade nacional canadense - acirrado pela questão separatista da província de Quebec
-, mas também pelas regras de comportamento social ditadas pelo “politicamente correto” e pelos
movimentos de minorias, como o das mulheres, dos negros e dos homossexuais que buscam
justiça social e discutem a questão do multiculturalismo.
A partir da verificação deste contexto social, desenvolvemos um estudo sobre o discurso
feminista na mídia, com o objetivo de analisar o funcionamento das representações de
identidades das mulheres. As questões tratadas pelo feminismo - tais como: a mulher no mercado
de trabalho, a maternidade, o aborto, o lugar social e a violência - estão em franca expansão para
o debate. É importante, então, (re)conhecer como as representações e o funcionamento das
notícias sobre mulheres (re)conhecem e reforçam certas identidades e silenciam e excluem outras.
Lembramos Silva (2000) ao dizer que é por meio da representação que a identidade e a
diferença adquirem sentido. Para ele, quem tem o poder de representar tem o poder de definir e
determinar a identidade. É através da representação que a identidade e a diferença se ligam a
sistemas de poder. Poder que, forma “saberes” e produz discursos (Foucault).
Neste contexto, gostaríamos de mostrar como os textos jornalísticos publicados na
imprensa escrita, mais especificamente em jornais, apresentam representações que legitimam as
7
identidades construídas das mulheres e produzem conhecimento da condição de mulher que
restringem as mulheres a certas imagens da sexualidade feminina.
Verificaremos, também, como funciona um discurso oposicionista - como é o discurso
feminista dentro da sociedade patriarcal - e quais as posições de sujeito construídas para as
mulheres. Verificaremos como o movimento norte-americano de mulheres e a mídia constróem o
sujeito-vítima, cedendo espaço a um discurso feminista radical a respeito da violência contra a
mulher.
A hipótese desta dissertação é a de que, apesar de a mídia representar as mulheres dentro
de uma aparente perspectiva de igualdade dos sexos, essas representações, de fato, mostram as
mulheres homogeneamente, representando-as em oposições que trazem à superfície uma luta pela
hegemonia onde certas identidades predominam sobre outras.
Veremos como a mídia, cedendo a um discurso feminista liberal, por um lado, contribuiu
para a construção da imagem da mulher que simultaneamente é profissional, mãe, companheira,
deixando a impressão que o problema da desigualdade dos gêneros estava resolvido e por outro,
através de um discurso feminista radical, construiu a mulher-vítima, oprimida e violentada pela
sociedade patriarcal.
Esta hipótese será estudada a partir de um corpus de 15 artigos sobre mulheres publicados
nos jornais canadenses The Toronto Star e National Post, com circulação na cidade de Toronto
entre os anos 1990 e 2000. Os jornais foram escolhidos por terem público expressivo.
Como linha teórica, adotamos a abordagem da Análise de Discurso de Linha Francesa, ou
AD (Pêcheux, 1988). Para a AD, o sujeito é disperso, cindido, assujeitado pela ideologia; ele
acredita ser a origem do dizer tendo a ilusão de que o discurso espelha o conhecimento objetivo
do que é chamado realidade. O sujeito acredita serem suas as palavras da voz anônima produzida
pelo interdiscurso ou “memória do dizer” (Orlandi, 2001a), sendo na verdade constituído pelos
discursos e, consequentemente, pelas ideologias.
A AD interpreta a ideologia como uma concepção de mundo de uma determinada
comunidade social numa determinada circunstância histórica. Assim, não necessariamente um
discurso ideológico, mas todos os discursos são ideológicos materializados na superfície
lingüística. Para Orlandi (2004), é a ideologia que sustenta, sobre o “já-dito”, os sentidos
8
institucionalizados, reconhecidos como “naturais”. Determinados ideologicamente, os sentidos
são construídos dentro de certas arenas histórico-culturais e é aí que a AD se inscreve.
Considerada essa abordagem, veremos como o espaço discursivo dos textos jornalísticos
selecionados introduz um saber que reforça certos estereótipos femininos. Além disso, veremos
como a imprensa escrita canadense expressa significados construídos social e culturalmente,
almejando produzir certos tipos de identidades sociais por meio de diferentes formas de
representação.
Discutiremos ainda como o feminismo, por meio de um discurso representacional da
categoria das mulheres, funciona também no sentido de homogeneizar e legitimar certas
identidades em detrimento de outras. O discurso feminista, na narrativa jornalística, constrói na
materialidade lingüística representações ideológicas de determinadas formações discursivas,
buscando a produção das identidades femininas.
O discurso dos textos jornalísticos apresenta representações das identidades femininas
que procuram convencer o leitor de que o espaço das mulheres na imprensa está assegurado.
Porém, esta dissertação irá mostrar que, por trás das representações, é possível perceber que as
mulheres são apresentadas através de estereótipos e categorias estanques, o que limita e fixa as
identidades femininas, normalizando-as, mantendo-se o status quo.
Ao leitor cabe a crítica, a reflexão e a interpretação sobre as representações apresentadas
nos textos selecionados. Ao buscar a informação, o leitor produz, confirma e modifica
construções mentais, a fim de que se enquadrem a sua experiência de vida. No entanto, os jornais,
ao retratarem a realidade de maneira “objetiva” e “isenta”, fecham sentidos e reforçam certas
identidades excluindo outras. Através dos enunciados jornalísticos, as informações se apresentam
homogeneizadas e aparentemente transparentes na superfície lingüística, mas há fatores que
comprometem a transparência, a objetividade e a homogeneização pretendidas.
O que é social e culturalmente legitimado e o que é excluído ou silenciado passa
desapercebido ao leitor que crê na objetividade dos discursos que constituem o texto jornalístico.
No entanto, a presença no texto de ideologias muitas vezes colocadas como conflitantes entre si -
por exemplo, ser atleta e feminina - produzem significados diferenciados. O leitor, ao interagir
com o texto, pode produzir sentidos diferentes dos desejados a priori pelo enunciador.
9
Os discursos que evocam o masculino ou a masculinidade como norma estão presentes
nos textos jornalísticos e interpretam as mulheres como minoria, e portanto, como o “outro”
(termo entendido aqui como aquele que é diferente do sistema ou da estrutura (pré)estabelecida).
A linguagem jornalística, ao se utilizar de argumentos romanescos na sua narrativa,
apresenta personagens como vilões, heróis ou vítimas. Dessa maneira, os fatos noticiosos são
tratados como conflitos entre forças opostas: uma força heróica e outra vilã. Assim, o “outro” é
construído de maneira que certas posições privilegiadas sejam mantidas.
Gostaríamos ainda de ponderar que a identidade da pesquisadora deste trabalho é lugar
crítico na qual a ótica analítica foi formada. Por um lado, ser mulher, heterossexual, branca (na
concepção latina), de classe média e profissional liberal, mas, por outro, ter sido imigrante e
portanto, considerada algumas vezes como minoria visível e outras tantas como minoria invisível
- de acordo com a política de representação e cor canadenses - deve ser levado em consideração
no interesse pelo tema desta dissertação.
O encontro de tantas categorias de identidade com certeza molda este trabalho,
levantando, inclusive, ainda muitos questionamentos no tocante à construção da identidade
feminina e/ou da mulher. No entanto, espero que este sujeito parcial (moi), se reflita na pesquisa
ocupando uma posição de sujeito que fala supostamente de um locus crítico, no mínimo.
Esta dissertação é formada por três capítulos, além desta introdução e da conclusão. No
primeiro capítulo, consideramos a linha teórica da Análise de Discurso de Linha Francesa, na
qual nos baseamos para analisar o discurso dos textos jornalísticos. Discutimos, além disso,
conceitos como os de identidade e representação dentro de uma visão s-estruturalista dos
Estudos Culturais. Abordamos também, ainda que de maneira geral, a teoria pós-colonialista em
relação ao feminismo.
No segundo capítulo, apresentamos as condições de produção do discurso dos textos
jornalísticos e verificamos como o discurso patriarcal, o político-humanista-liberal, o legal, o
vitoriano do século XIX, o científico e o feminista constituem o discurso daqueles textos.
No terceiro capítulo, analisamos o funcionamento do discurso dos textos jornalísticos dos
jornais canadenses através das análises dos textos selecionados.
10
Por fim, apresentamos as conclusões a que chegamos, seguidas das referências
bibliográficas e anexos.
Capítulo 1
Discurso, Identidade e o Sujeito
12
Este capítulo tem como finalidade apresentar e discutir os conceitos teóricos que
sustentam a análise do discurso dos textos jornalísticos sobre mulheres publicadas em jornais
canadenses.
Inicialmente, apresentaremos os principais conceitos teóricos concernentes à Análise de
Discurso de Linha Francesa, ou AD. Utilizando essa concepção de discurso, abordaremos
conceitos da área de Estudos Culturais, tais como identidade e representação, para verificarmos
como são as representações das mulheres nos textos jornalísticos e como são estabelecidas as
relações de poder e conhecimento. Discutiremos, ainda, como as identidades e representações são
construídas e também perpetuadas pela mídia escrita.
1. ANÁLISE DE DISCURSO
A Análise de Discurso (AD) percebe a linguagem, nas palavras de Orlandi (2001a:15),
como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, na
visão dessa autora, seria o próprio discurso tornando acessível a permanência, a continuidade, o
deslocamento e a transformação dos indivíduos e da sua realidade. Dessa maneira, a Análise de
Discurso opera com a não-transparência de uma linguagem que não fixa os sentidos no texto, mas
que significa e produz sentidos, os quais são socialmente construídos.
Assim, a AD se interessa pelo texto como uma unidade que permite a passagem ao
discurso, explicando as relações dele com as variadas formações discursivas (FD), relacionando-
as com a ideologia (Orlandi, op. cit.). Para a AD, o interdiscurso é o mecanismo que estrutura o
processo de significação que se materializa na linguagem, fazendo parte do seu funcionamento.
Parafraseando Brandão (1991:40), ao trabalhar o discurso - objeto da AD - relacionando
língua com história, o que se procura são as contradições ideológicas na materialidade lingüística.
Esta dissertação está embasada nessa visão de Análise de Discurso que vislumbra a
linguagem como uma estrutura socialmente construída e, portanto, sujeita aos fenômenos sócio-
históricos. Desta maneira, os discursos das notícias referentes às mulheres serão vistos como um
13
processo socialmente construído, com articulações entre o lingüístico e o social, considerando
que a produção de um discurso está ligada a um determinado momento histórico, social e
ideológico.
1.1. Interdiscurso e Condições de Produção (CP)
Na visão de Orlandi (2001a), faz-se necessário relacionar os sujeitos, o contexto e a
memória ao se falar de condições de produção (CP) tanto em sentido estrito (isto é, as situações
específicas da realização da enunciação, a situação imediata) quanto em sentido mais amplo,
incluídos o contexto sócio-histórico e ideológico. A autora afirma que a memória, na perspectiva
discursiva, “é tratada como interdiscurso” (op.cit.:31).
Pêcheux (1988), afirma que os discursos nos quais as palavras são utilizadas e os sujeitos
assumem posições são antagônicos como o resultado de conflitos externos, mas esses conflitos
também os atravessam. O autor vislumbra o conceito de interdiscurso para explicar a hegemonia
da textualidade nos oferecendo um melhor entendimento dos processos discursivos que formam
sujeitos e mantém o consenso. Na sua visão, o interdiscurso funciona como força ideológica
homogeneizante, memória do dizer - o “já-dito” - do sentido constituído sócio-historicamente. Na
esfera do interdiscurso se a interpelação-assujeitamento do sujeito pela ideologia (Grigoletto,
2002:37).
Na colocação de Pêcheux (op. cit.), o interdiscurso consiste no pré-construído e na
articulação. O pré-construído, articulado pela ideologia, é a característica de qualquer formação
discursiva que produz o efeito - através do hábito ou do uso - do “já-dito”, que nos dá a
impressão do fato “já-conhecido”, “já-sabido por todos”.
O sujeito tem a impressão de que controla o discurso, que o produz “naturalmente”, que
não está assujeitado, o sujeito pensa assumir posições pessoais, quando, de fato, assume posições
afetadas ideologicamente, segundo Indursky, que afirma:
...o sujeito: este acredita ser a fonte do sentido, ignorando a existência de um
discurso socialmente preexistente por trás da aparência da livre enunciação de um
14
indivíduo...a segunda ilusão reside na forma de sua enunciação, que o sujeito do
discurso supõe controlar plenamente (1998:116).
Na visão de Henessy (1995:13), o interdiscurso funciona como um limite na formação das
subjetividades e da realidade social e atua como força ideológica de homogeneização. O efeito
“naturalizante” do pré-construído atua perpetuando paradigmas e ratificando diferenças. Em
outras palavras, o interdiscurso perpetua as categorias de alteridade dadas como universais.
Parafraseando Charaudeau & Maingueneau (2004:34), a alteridade define o ser na relação
embasada na diferença; a consciência do “eu” é possível devido a existência do “não-eu”, do
outro que é diferente. Conforme Hennessy (op.cit.),
As the discursive space where the “always already there” secures a hierarchical
social arrangement through an “obvious” system of oppositions, the
preconstructed serves as an anchor in the symbolic order for the articulation of
subjectivities across race, class, and gender differences...the hierarchical
structuring of the difference in the preconstructed constitutes a mechanism by
which hegemony operates across social formations.
A autora explana que, para Gramsci, hegemonia é o processo onde o grupo dominante
estabelece as regras e se impõe através do consenso - que é exercido pela articulação discursiva
forjada através das lutas ideológicas -, ou seja, certos valores e crenças existem sem a
necessidade de serem mencionados em determinada formação discursiva. Ela ainda nos diz que:
According to Gramsci, hegemony is the process whereby a ruling group comes to
dominate by establishing the cultural common sense, that is, those values and
beliefs that go without saying...is negotiated and contested through a process of
discursive articulation. The concept of articulation is crucial feature of hegemony
because it makes possible analysis of very specific discursive practices but
without relinquishing an explanatory framework that can make visible their
connections to larger social totalities.
As relações entre o consenso e um discurso oposicionista, como o discurso feminista, por
exemplo - que discute os papéis tradicionais destinados aos homens e às mulheres na sociedade -
são complexas e, podemos entendê-las melhor ao utilizarmos o conceito do pré-construído.
Segundo Pêcheux (1988), as condições de produção do discurso englobam o contexto histórico-
social e ideológico, os interlocutores e as imagens pressupostas, e também, o lugar que os
15
interlocutores ocupam na sociedade enquanto espaços de representação social. O texto, então,
adquire significado a partir de suas condições sócio-históricas.
1.2. Ideologia e Sujeito
Trabalharemos com noção de ideologia que a identifica com a produção de sujeitos que
reconhecem o mundo social como o único possível e não em termos de um sistema de idéias ou
concepção de mundo. Ideologia é força material porque (re)produz o que é tido como realidade,
mas, ao mesmo tempo, outras forças materiais, econômicas e políticas são formadas pela
ideologia (Althusser, 1998).
No indivíduo, a ideologia é material no sentido em que suas idéias são seus atos materiais
inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, definidos, por sua vez, pelo
aparelho ideológico material pertinente às idéias desse sujeito (Althusser, op.cit.:42). Entende-se
aqui o material como práticas sociais inscritas em instituições concretas.
Orlandi (2004:31) afirma que é a ideologia que produz o efeito de evidência, e da
unidade, sustentando sobre o dito os sentidos institucionalizados, admitidos como naturais”.
Podemos inferir que o interdiscurso - memória discursiva - funciona como força
homogeneizadora da ideologia.
Nas palavras de Brandão (1991:37), o discurso é uma das instâncias em que a
materialidade ideológica se concretiza, é um dos aspectos materiais da existência material”
das ideologias. Para essa autora, os discursos são governados pelas formações ideológicas que
contém uma ou várias formações discursivas (FD) interligadas.
Os discursos que constituem as estruturas materiais, através das quais a ideologia opera,
são formados pelas relações materiais que compreendem práticas econômicas e políticas. Isso
significa que a “realidade” é sempre afetada pelo conjunto das relações sociais e é uma
construção ideológica na qual parâmetros contraditórios e desiguais são formados.
Uma formação discursiva (FD) é mais bem entendida como um conjunto de princípios
reguladores que contém discursos, mas que se mantém separada dele, aquilo que em uma
determinada formação ideológica (FI) limita o que pode e deve ser dito (Pêcheux, 1988:160).
16
Palavras, expressões e proposições ganham sentido em determinadas formações
discursivas (FD) nas quais são produzidas e ordens de discurso determinadas, intrincadas dentro
de uma formação ideológica, garantem o seu sentido. Para Pêcheux (1988:161):
:
Os indivíduos são “interpelados” em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu
discurso) pelas formações discursivas que representam “na linguagem as
formações ideológicas que lhe são correspondentes.
Foucault (2000c:179) considera que as formações discursivas (FD) não são textos ideais,
mas espaços de dissensões múltiplas; um conjunto de oposições diferentes cujos níveis e papéis
devem ser descritos a fim de que seja delimitado, na prática discursiva, o ponto em que as
contradições se constituem - que formas e relações assumem e estabelecem entre si - e o domínio
que comandam (op.cit.). As FDs são sempre heterogêneas e formadas por contradições. Na
hipótese foucaultiana, elas determinam e limitam as formas de saber. Historicamente, as práticas
discursivas dominantes são maneiras de controle e de preservação de relações sociais de
exploração.
O sujeito é o efeito dessas práticas discursivas e, na visão de Pêcheux (1988), é
constituído como tal pelo “esquecimento” daquilo que o determina na formação discursiva a qual
o domina. O sujeito “esquece” a causa que determinou o discurso, levando-o a acreditar na
“autoria” de seu discurso. Brandão (1991:39) diz que:
O conceito de FD regula, dessa forma, a referência à interpelação-assujeitamento
do indivíduo em sujeito de seu discurso. É a FD que permite dar conta do fato de
que sujeitos falantes, situados numa determinada conjuntura histórica, possam
concordar ou não sobre o sentido a dar às palavras, “falar diferentemente falando
a mesma língua”. Isso leva a constatar que uma FD não é “uma única linguagem
para todos” ou “para cada um sua linguagem”, mas que numa FD o que se tem é
“várias linguagens em uma única”.
O sujeito então, para a AD, não é aquele sujeito universal nem o sujeito consciente,
intencional, autor de seu discurso, origem do seu dizer. É, antes, o sujeito constituído
historicamente, interpelado pela ideologia e atravessado pelo inconsciente. Assim como o sujeito,
o sentido é constituído no discurso e pelo discurso. Portanto, o sujeito não é a origem nem a fonte
dos sentidos.
17
Foucault (2000a) afirma que os regimes de poder operam para produzir sujeitos que são,
ao mesmo tempo, objetos e veículos de poder. Na visão foucaultiana, os sujeitos são construídos
nas relações de poder, sendo, então, efeitos desse poder, assujeitados, “corpos dóceis” impressos
pela história. Esse poder disciplinário-normativo “amarra” o indivíduo à sua identidade, fixando-
a e restringindo-a. Se o sujeito e a identidade são produzidos pelos vários discursos que
permeiam as relações sociais, podemos dizer, então, que as relações entre poder/saber e o corpo -
de uma perspectiva genealógica - produzem específicas formas de subjetividade. O autor nos diz
que:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do
corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no
mesmo mecanismo que o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho
sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de
seus comportamentos...A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. (Foucault, 2000a: 119)
Para Foucault (op. cit.: 26), o corpo é “força útil” somente se for concomitantemente
produtivo e submisso. Para o autor, na sociedade moderna, os indivíduos são controlados por
padrões de normalidade que se forjam através dos “saberes” normativos (como a medicina, a
psicologia e a criminologia) e considera que o marco da passagem para a modernidade é
justamente o fato de a lei ter sido substituída pela norma como instrumento de controle social
Assim, o indivíduo moderno, panopticamente observado o tempo todo, ao internalizar a
disciplina, sofre um processo de auto-regulação, normalizando-se. Para Foucault (op. cit.), essa é
a característica do sujeito moderno: ele é o agente da sua própria normalização. O sujeito
“assujeitado” é o objeto das normas e das classificações disseminadas pelos discursos científicos
e administrativos que se propõem revelar a “verdade” de suas identidades. Então, podemos
considerar que um efeito relevante das relações de saber/poder é justamente a formação de novas
identidades político-sociais.
Se considerarmos o sujeito como o efeito das estruturas sociais, teremos que concebê-lo,
então, como o efeito de uma sociedade patriarcal e capitalista, a qual o apresenta - dentro dos
ideais do liberalismo humanista - como indivíduo livre, senhor dos seus atos e dono do seu
18
próprio corpo. Em outras palavras, o sujeito revela-se como o senhor de um discurso que reflete
os seus pensamentos e a sua realidade. Porém, qual será a realidade refletida se a linguagem é
opaca e os sentidos são construídos?
Em nossa análise da mídia escrita canadense (através dos textos jornalísticos publicados
nos jornais já mencionados), o sujeito do discurso das notícias se situa em um momento histórico
no qual o movimento feminista, por força das “bandeiras” de igualdades sociais, materializa
mudança de regras de comportamento na sociedade e de leis concernentes às minorias
desprivilegiadas, construindo, através deste discurso, um espaço diferenciado para as mulheres na
imprensa.
Nesse aspecto, os textos jornalísticos constróem conhecimento e produzem “saberes”,
legitimando-se determinadas identidades e excluindo-se outras. Em determinado contexto sócio-
histórico, prevalece uma determinada ideologia que favorece determinadas posições feministas,
por exemplo, o discurso de violência contra as mulheres no discurso feminista, estratégia
utilizada pelo movimento feminista para dar visibilidade às mulheres na imprensa.
A análise genealógica da história proposta por Foucault (2000b) é valiosa para
entendermos como operam, na sociedade patriarcal, as diversas representações da mulher em
diferentes momentos históricos e formações discursivas. Assim, a investigação das forças
disciplinares que produzem o sujeito “assujeitado” e a inseparabilidade de poder e saber são
importantes instrumentos de entendimento da questão da subordinação feminina, sob a ótica
feminista.
Foucault (op.cit.) não entende a história organizada de maneira cronológica como
convencionalmente é interpretada, mas traz uma visão genealógica da história, ou seja, uma
perspectiva crítica que leva em consideração a formação do saber e as relações de poder,
reconhecendo como os sujeitos foram produzidos e como as identidades coletivas foram
formadas.
Essas identidades coletivas se constituem pela exclusão e pela opressão de outras
identidades, sendo efeito das lutas pela hegemonia e poder. Ilustrativo é o exemplo de Benhabib
(1993) ao analisar o significado de “nós, o povo” na Declaração de Independência Americana.
Segundo a autora, “nós, o povo” significa o proprietário branco, o chefe de família das colônias.
19
Mulheres, escravos negros e os aborígenes não fazem parte do “nós” coletivo.
1
Quando discute
as relações de poder e saber, Foucault examina um sujeito que não pode existir fora do discurso;
o sujeito é analisado em relação ao discurso que o constitui. No entanto, as relações de poder e
saber são afetadas e redirecionadas pelo sujeito que se forja nessas relações.
Podemos depreender que não se trata de relações de poder que são opressivas, emanadas
“de cima para baixo” e negativas. Não se trata de poder “jurídico-discursivo” (Foucault, 2001:81)
característico das sociedades pré-modernas; trata-se de poder “de baixo para cima”, invisível, que
circula dentro do corpo social discursivo e opera nas micro-práticas. Portanto, é poder produtivo.
Eis o que o autor nos diz:
Essas relações de “poder-saber” não devem então ser analisadas a partir de um sujeito
do conhecimento que seria ou não livre em relação ao sistema de poder; mas é preciso
considerar ao contrário que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as
modalidades de conhecimento são outros tantos efeitos dessas implicações fundamentais
do poder-saber e de suas transformações históricas. Resumindo, não é a atividade do
sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-
saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as
formas e os campos possíveis do conhecimento. (2000a: 27)
2. IDENTIDADE E DIFERENÇA
2.1 Sexo e Gênero
Dentro da concepção pós-estruturalista, o sujeito pós-moderno é descentrado, multi-
facetado e produzido pelas práticas discursivas, atravessado pelas condições sócio-históricas,
políticas e econômicas; portanto, assujeitado e com múltiplas identidades. A identidade é
constituída dentro de uma concepção dialógica, na relação do “eu” com o “outro”, o ser que o
outro não é, construída no espaço da diferença (Hall, 1998).
O pós-estruturalismo, dentro de uma perspectiva feminista, também questionou a
homogeneidade da categoria “mulher” - sujeito do feminismo -, promovendo a discussão sobre as
1
Exemplo citado por BENHABIB, Seyla em seu artigo From Identity Politics to Social Feminism: A Plea for the
Nineties - The Paradigm Wars of Feminist Theory. http://www.farhad. org/gm - p.4, acesso em 11/10/2003.
20
questões da relação binária sexo/gênero. Como fixar o gênero ao sexo se os atributos não são
fixos? De acordo com Meyers:
2
Postmodern challenges to the idea of a stable self and to the coherence of the
category woman’ have sparked a lively debate about the relation between gender
and the self. If there is no such thing as a self with persistent attributes, it seems
that gender cannot be a feature of every woman’s identity. But if there is nothing
that all women have in common, it seems that there are no interests that all
women share, and there is nothing for feminism to be about. (p. 11)
De acordo com uma visão construtivista, o gênero significa culturalmente e está
contingentemente ligado ao corpo sexuado. Assim, se o gênero é entendido como socialmente
construído (e não mais oriundo do corpo natural), o corpo biológico posa como irrelevante para a
identidade cultural do gênero do indivíduo. Assim, o sexo biológico passa a desempenhar um
papel bem menos importante na construção da identidade.
Simone de Beauvoir (1949)
3
afirma que não existe uma ligação direta entre o lugar social
e o fato de se nascer biologicamente mulher (ou homem), sendo socialmente construídos os
lugares sociais a eles destinados: uma pessoa não nasce, mas se torna uma mulher. De acordo
com Kruks,
4
Beauvoir antecipou o que mais tarde Foucault chamaria de panoptismo. As
mulheres, sujeitas constantemente ao olhar masculino, aprendem as práticas de autodisciplina
vivenciando a objetificação.
To be subjected to a gaze that one cannot reciprocally return is, indeed, to
experience objectification, or an alienation of one’s subjectivity. I experience a
loss of my immediate, lived subjecthood as I become fixed or immobilized in my
own eyes as the object that I am (or believe myself to be) in the eyes of the one
who looks at me. (Kruks, p. 09)
2
MEYERS, Diana (1999). Feminist Perspectives on the Self – Stanford Encyclopedia of Philosophy,
http://cd1.library.usyd.edu.au/stanford/entries/feminism-self/ - acesso em 23/04/2002.
3
BEAUVOIR, Simone (1949). Le deuxième Sex. Paris, Gallimard.
4
KRUKS, Sonia (1999). Panopticism and Shame: Reading Foucault through Beauvoir. Labyrinth, Vl. 1, No. 1,
Winter. http://h2hobel.phl.univie.ac.at/~iaf/Labyrinth/Kruks.html - acesso em 22/03/2002.
21
No entanto, para Stavro-Pearce,
5
Beauvoir não vê “homens” ou a ordem masculina
capitalista produzindo a mulher-vítima ou a mulher-objeto, porque as mulheres não são
simplesmente oprimidas ou reduzidas a uma posição negativa de sujeito - como o “outro” inferior
- pois elas, na verdade, são cúmplices em afirmar/confirmar a existência do master, aceitando as
“recompensas” recebidas ao aceitarem a posição de subordinadas.
Irigaray (1985a) afirma que a identidade sexual das mulheres é imposta de acordo com
modelos que lhe são estranhos (modelos masculinos) e que, portanto, a inferioridade feminina é
reforçada pelo não-acesso à linguagem.
De acordo com a autora, as mulheres estão em uma situação de exploração sexual, social,
econômica e cultural porque não são sujeitos participantes, mas meros objetos da transação
sexual, econômica, social e cultural. Elas conseguem acessar a linguagem pelo sistema
“masculino” de representação:
Women’s social inferiority is reinforced and complicated by the fact that woman
does not have access to language, except through recourse to “masculine”
systems of representation which disappropriate her from her relation to herself
and to other women. The “feminine” is never to be identified except by and for
the masculine, the reciprocal proposition not being “true”. (1985:85)
Ao interpretar a teoria freudiana sobre a sexualidade humana, Irigaray (op.cit.) afirma que
Freud na verdade está se referindo à sexualidade masculina, que é o parâmetro, a norma,
ignorando a sexualidade feminina que é sempre discutida em termos de falta, de negação. Daí
nasce a idéia da “inveja do pênis” (op.cit.: 69), comprovando que o uso da anatomia é
fundamental para Freud justificar as suas teorias. De acordo com a autora, toda a teoria freudiana
é suspeita porque:
a) ignora a possibilidade de que a sexualidade feminina tenha uma especificidade
inerente e,
b) falha em localizá-la em um contexto histórico.
Qual o mundo social em que os pacientes viviam? O resultado é a mulher enterrada sob o
discurso
dominante da “Lei do Pai”. Segundo a autora, para Freud não há valor no sexo feminino
5
STAVRO-PEARCE, Elaine (1999). Transgressing Sartre:Embodied Situated Subjects in The Second Sex.
Labyrinth, Vol. 1, No. 1, Winter. http://h2hobel.phl.univie.ac.at/~iaf/Labyrinth/EStavro.html – acesso 22/03/2002.
22
que se utiliza da biologia para “culpar” a natureza pela condição feminina e que mantém secreto
o verdadeiro responsável pela opressão feminina. Ele ignora a construção do discurso científico
dentro de um determinado contexto histórico e social, bem como as diferenças de interpretação
dos dados científicos. Ela afirma que:
Heir to an “ideology” that he does not call into question, Freud asserts that the
“masculine” is the sexual model, that no representation of desire can fail to take it as the
standard, can fail to submit it. In so doing, Freud makes manifest the presuppositions of
the scene of representation: the sexual indifference that subtends it assures its coherence
and its closure...he never carries out the potential articulation between the organization of
the unconscious and the difference between the sexes. (1985:72).
Irigaray (op.cit.) apresenta uma intrigante questão ao perguntar o que aconteceria ao
processo simbólico que governa a sociedade caso as mulheres se tornassem “sujeitos falantes” e
não fossem objetos de troca e consumo. Ela propõe que a discussão sobre a materialidade do “ser
mulher” seja substituída pela repetição e interpretação do modo pelo qual, dentro do discurso, o
gênero se encontra definido como “falta, deficiência, ou imitação e imagem negativa do sujeito”
(op.cit: 78).
Então, o processo dialético de construção da identidade se pela relação com o gênero.
Uma identidade do gênero leva em consideração as limitações do corpo em relação às
construções culturais e, quando desenvolvemos uma identidade do gênero, relacionamo-nos com
aquelas construções.
Butler (2003) afirma que a identidade sexo/gênero é um processo performativo de
repetição das normas culturais, processo pelo qual as práticas normativas se materializam.
Identidade, então, não deriva do sexo biológico manifestado através dos genitais.
Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou
produz sua significação cultural, são performativos, então não identidade
preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de
gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma
identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora (...) as
próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras
ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o
caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação
das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação
masculinista e da heterossexualidade compulsória. (op. cit.: 201)
23
Butler (2003) rejeita a idéia de que seja natural a divisão do ser humano entre homens e
mulheres ou entre masculino e feminino. Na visão da autora, não nada de “natural” nessa
separação biológica. O sexo, biologicamente colocado, é como a cor do cabelo: existe um
continuum natural, e este continuum não é determinado por alguma coisa inerente a ele.
O gênero, assim, é o efeito de uma série de atos performativos e não se limita a um
suposto papel que deve desempenhar pela sua condição sexual. De acordo com essa autora, os
atos de gênero produzem a idéia de gênero, e sem eles o gênero não existiria, pois não
nenhuma “essência” que o gênero expresse ou exteriorize,... porque o gênero não é um dado de
realidade...a construção “obriga” nossa crença em sua necessidade e naturalidade (op. cit.:
199). A autora ressalta que:
...o substantivo “eu” aparece como tal por meio de uma prática significante
que busca ocultar seu próprio funcionamento e naturalizar seus
efeitos...compreender a identidade como uma prática, e uma prática significante,
é compreender sujeitos culturais inteligíveis como efeitos resultantes de um
discurso amarrado por regras, e que se insere nos atos disseminados e
corriqueiros da vida lingüística (2003:208).
Nessa linha teórica, depreendemos que não existe nada que possa ser chamado de sexo ou
gênero que preceda aos nossos conceitos ou concepções do que seja o sexo ou o gênero:
“mulher” só existe dentro da concepção construída do que seja mulher.
Utilizamos ainda Butler (2003) para entender que a existência de um masculino e um
feminino implica sempre na identificação com um dos lados, criando inevitavelmente uma
oposição binária entre os dois sexos, que fixa identidades e legitima uma delas em detrimento da
outra. Na concepção pós-estruturalista, o gênero é construído socialmente através da linguagem e,
portanto, se considerarmos que a sociedade é patriarcal, podemos afirmar que a definição do que
seja o “real” - a realidade - é patriarcal.
Butler (op. cit.), assim, reconsidera a categoria do “sexo” e afirma que a distinção entre
homem e mulher não é natural, mas sim uma construção. Para ela, na verdade, esta distinção não
é neutra. Em realidade, um regime político é imposto através desta prática.
A autora critica algumas teorias feministas dominantes, principalmente aquelas que
percebem o gênero e o patriarcalismo como essencialistas. Ao estudar Foucault, analisa que para
24
o autor o corpo não é “sexuado” em nenhum sentido significativo antes de sua determinação
num discurso pelo qual ele é investido de uma “idéia” de sexo natural ou essencial (op.cit.:137);
a sexualidade produz o sexo que suprime as relações de poder que o constitui.
Então, de acordo com Butler (2003), o gênero não está para a cultura como o sexo para a
natureza; o sexo tem significado discursivo e cultural. O “sexo natural” não é constituído e
estabelecido fora do discurso, isto é, pré-discursivamente, como se fosse uma área de
neutralidade política, sem oposições, “sobre a qual age a cultura.” (op. cit.: 25)
A crítica da distinção entre sexo e gênero, feita por Butler, permite que ela enfoque como
tem sido debilitada e opressiva a lógica compulsória heterossexual para alguns homens e
mulheres. Considerando que a heterossexualidade é assumida como pré-requisito de cultura, a
autora postula a visão foucaultiana do feminino, do bissexual e do homossexual como efeitos de
uma lei paternal que reprime e produz os objetos de sua repressão dentro das relações de poder e
saber que os constróem.
Butler (1993) sugere que o modelo dominante pode ser quebrado pela proliferação de
possibilidades corporais alternativas, encorajando-se configurações que parodiam a concepção do
gênero natural.
A reflexão sobre a construção do gênero é necessária para a realização da análise de
identidades principalmente se considerarmos que a identidade é construída no espaço da
diferença, no espaço do conflito entre os gêneros. Assim, as identidades, coletivas ou individuais,
são construções sociais e, portanto, sem essência antropológica: não são dadas pelo natural ou
pela anatomia.
A principal conseqüência de entender o sexo/gênero como socialmente construído é
justamente a possibilidade de desconstruí-lo: admitindo a não-existência de identidades sexuais
naturais, fixas e estáveis, as oposições binárias homem/mulher, feminino/masculino bem como
masculinidade/feminilidade são desconstruídas.
Como dito, os estudos foucaultianos afirmam que a sexualidade não é uma qualidade
natural do corpo, mas sim o efeito histórico de relações de poder específicas. Assim, podemos
dizer que as experiências vividas pelas mulheres são controladas dentro de uma imagem
culturalmente determinada do que seja a sexualidade feminina. Nas palavras de Foucault (2001):
25
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à
realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da
superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a
incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e
das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes
estratégias de saber e de poder. (op.cit.:100)
Foucault (op. cit.) identifica o corpo e a sexualidade como o locus direto do controle
social. Então, as diferenças sexuais legitimam as desigualdades dos gêneros. Podemos tecer duas
importantes considerações sobre esse conceito:
a) os corpos das mulheres são julgados inferiores porque a referência está baseada na
capacidade física masculina e,
b) as funções biológicas femininas - e também as masculinas - se transformam em
características sociais, definindo-as.
Podemos depreender que as mulheres, então, se definem ou estão definidas pela sua
capacidade de reprodução e maternidade. O autor analisa que:
O sexo, ao longo de todo o século XIX, parece inscrever-se em dois registros de
saber distintos: uma biologia da reprodução desenvolvida continuamente segundo
uma normatividade científica geral, e uma medicina do sexo obediente a regras
de origens inteiramente diversas...Por trás da diferença entre a fisiologia da
reprodução e a medicina da sexualidade seria necessário ver algo diferente e a
mais do que um progresso desigual ou um desnivelamento nas formas da
racionalidade: uma diria respeito a essa imensa vontade de saber que sustentou a
instituição do discurso científico no Ocidente, ao passo que a outra
corresponderia a uma vontade obstinada de não-saber. (op.cit.:54)
Operando dentro da visão foucaultiana, entendemos que vários discursos sobre a
“verdade” do sexo foram construídos. O poder - que gera efeitos - está implícito em relações
onde existam diferenças; ao se institucionalizar um discurso sobre o gênero, mais
especificamente sobre o gênero feminino, vários tipos de conhecimento ou “saberes” foram
produzidos.
Na era vitoriana (1837-1901), o discurso predominante em relação às mulheres era o de
uma mulher frágil, emocional, valorizada pela sua capacidade reprodutora. Quais os efeitos
gerados por esse discurso? Um efeito que podemos verificar é que a mulher na sociedade é
definida de acordo com aquelas características consideradas como “verdadeiras”, inerentes ao
26
sexo biológico e, portanto, ao feminino. Uma vez definido o seu papel social - de acordo com as
características “femininas” - outros efeitos são (re)produzidos, como os legislativos, por exemplo.
Além disso, o discurso vitoriano sobre a condição da mulher gerou também o saber da
falta de capacidade feminina para o gerenciamento de uma vida pública fora da esfera privada,
isto é, familiar.
3. O TEXTO JORNALÍSTICO
Johnson
6
(1997) postula que, assim como Freud conseguiu fazer a leitura dos sonhos e do
inconsciente, Derrida entrevê a força significante das descontinuidades, contradições e
ambigüidades do texto. Se um texto é usado para dominar, apagar ou distorcer outros, então
questões de poder e autoridade envolverão a sua leitura. Como Johnson analisa:
One field of conflict and domination in discourse that has been fruitfully studied
in this sense is the field of sexual politics. Alice Jardine, in Gynesis (1985), points
out that since logocentric logic has been coded as ‘male’ the “other” logics of
space, ambiguity, figuration, and indirection are often coded as “female,” and that
a critique of logocentrism can enable a critique of “phallocentrism” as well (...).
The writings of Western male authorities have often encoded the silence,
denigration, or idealization not only of women but also of other “others”.
As teorias pós-estruturalistas rejeitam a visão de que a categoria mulher - e também a de
homem - bem como a noção de feminino e masculino existam pré-discursivamente, ou seja,
existam “naturalmente”. Assim, podemos indagar que papel a mídia desempenha na produção do
sujeito sexual mulher e quais as estratégias utilizadas para criar e manter as imagens consideradas
femininas, por exemplo. De acordo com Ungerleider,
7
uma das estratégias é a estrutura da
narrativa utilizada nas notícias; assim, a narrativa jornalística apresenta vilões, heróis, vítimas e
um narrador invisível.
6
JOHNSON, Barbara. On Writing, Citada por LYE, John. Deconstruction: Some Assumptions.
http://www.brocku.ca/english/courses/4F70/deconstruction.html- acesso em 11/04/2002.
7
UNGERLEIDER, Charles (1991). Media, Minorities, and Misconceptions: The Portrayal by and Representation of
Minorities in Canadian News Media. In Canadian Ethnic Studies, Vol. XXIII, No. 3. http:// www. media-
awareness.ca., p.2 - acesso em 27/02/2002.
27
Essa estrutura - que é ideológica - irá filtrar os acontecimentos atribuindo ao evento, à
notícia, uma hierarquia de significados. Em seus estudos sobre a minoria na mídia canadense, o
autor constata que, quando as notícias envolvem minorias, estas normalmente se enquadram na
categoria de vilões ou timas, mas raramente na categoria de heróis. Um efeito causado por esse
tipo de representação é o de que as minorias sub-representadas tornam-se estereótipos. Diz ele:
A narrative structure creates unity among events separated by time and space,
implies intentionality to the actions of the participants involved in the events
beyond that which they may have had, and creates the impression that the
separate events share a common meaning thus providing a single
interpretation to the many events (Mannof, 1988). Interpretations which are
repeated with frequency become accepted understandings among those to whom
alternative interpretations are not evident. (Hallin, 1988)
Em estudos realizados pelo MediaWatch (organização feminista sem fins lucrativos que
estuda a representação feminina na dia) em 1990 sobre jornais canadenses, foi notado que os
homens são consultados ou citados mais freqüentemente como especialistas do que as mulheres e
que as matérias sobre problemas ou assuntos considerados femininos são esporádicas e
superficiais. Concluíram, além disso, que os homens determinam o que é notícia e como será
passada ao público, uma vez que eles ocupam os cargos executivos dentro das empresas
jornalísticas. As referências às mulheres eqüivaleram a 18% naquele ano contra 82% das
referências a homens.
Fairclough (1995:104) postula que os textos da mídia constituem versões da realidade que
dependem das posições sociais, interesses e objetivos de quem os produz. Em outras palavras, as
notícias são socialmente construídas e o contexto social influencia a escolha do texto jornalístico
como notícia. Reforçando essa idéia, Fowler (1991) diz que notícia é o produto final de um
complexo processo: notícia não é somente o fato, precisa ter “valor” de notícia.
Lembramos Carmagnani (1996) ao dizer que o discurso jornalístico também é regulado
por normas que buscam manter o consenso por um dado tempo, e esse consenso é aparente nas
formas de apresentação, nos conteúdos publicados, e na reação esperada dos leitores. Assim,
tem-se a impressão de que “todos” estão (re)apresentados pelo grupo hegemônico que “assume”
estar representando os interesses e falando em nome de um grupo ou categoria indivisível e,
portanto, sem contradições.
28
Resumo do Capítulo
Neste capítulo, apresentamos a linha teórica a partir da qual nos baseamos para analisar o
discurso dos textos jornalísticos. Nesta linha, o sujeito é constituído pelas relações sociais e
históricas, portanto, multifacetado e afetado pela ideologia.
Mostramos como o conceito de interdiscurso, através do pré-construído e da articulação, é
importante no entendimento da construção do sujeito e como o consenso é mantido nos processos
discursivos. Portanto, podemos dizer que a “mulher” foi construída no encontro de discursos
articulados, que assumiu diferentes posições de sujeito em vários momentos históricos.
Como visto, Foucault (2001) desenvolve uma teoria anti-essencialista do corpo sexual,
isto é, ele entende que o corpo é produzido pelas e nas relações de poder e saber; é o locus do
controle social. O autor discute que as funções sexuais aparentemente “naturais” que disfarçam as
operações produtivas de poder em relação à sexualidade.
Para esse autor, então, a sexualidade deve ser entendida como construída através do
exercício das relações de poder. Ao afirmar que o corpo é atingido e produzido pelo poder
(sendo, portanto, desconhecido fora de sua significação cultural), Foucault (op. cit.) desafia a
distinção entre sexo natural e gênero culturalmente construído.
Assim, mostramos como a questão da identidade e da diferença está colocada nas teorias
pós-estruturalistas e, através delas, pudemos observar a desconstrução das categorias de “gênero”
sexual (masculino/feminino) bem como da categoria “sexo” (homem/mulher).
Finalmente, pudemos considerar o texto jornalístico e lembramos que os textos são
mediados pela linguagem, pelos sistemas culturais - incluindo ideologias e símbolos - e também
são mediados pelo que está convencionado como gênero. Assim, as “verdades” devem ser vistas
como sistemas, construções, estruturas; como históricas e contingentes, operando através das
diferenças e dos deslocamentos, em um embate de discursos contraditórios. Em outras palavras,
os signos significam pela diferença em relação a outros signos.
29
Capítulo 2
Feminismos: condições de
produção do discurso da mídia impressa
30
Almejamos, neste capítulo, discutir as condições de produção do discurso dos textos
jornalísticos, publicados na década de 1990 e no ano 2000 em dois jornais canadenses: The
Toronto Star e o National Post. Para isto, realizaremos a delimitação do corpus de análise para
depois discutirmos as condições de produção do mesmo.
Enfocamos, em nosso corpus, a análise dos processos de representação das identidades
femininas e/ou das mulheres nos jornais mencionados.
Um recorte dos artigos publicados no período 1990 a 2000 delimita o nosso corpus. Como
mencionamos, a mídia não é transparente, uma vez, que ao mediar eventos e fatos, seleciona,
constrói e representa a “realidade”. Assim, a dia reforça certos valores e imagens que
interessam aos centros do poder econômico e político. Não podemos deixar de atentar para o fato
de que a mídia é um empreendimento corporativo e que, portanto, visa ao lucro econômico.
No Canadá, percebemos que a indústria da mídia está monopolizada, ou seja, diferentes
periódicos pertencem a uma mesma corporação que controla as fontes informativas. Um dos
principais conglomerados da indústria da comunicação, por exemplo, é a Hollinger Corporation,
um dos principais editores de jornais de língua inglesa nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá
e Israel. No Canadá, 61% dos jornais são regionais, incluindo o jornal National Post, periódico
nacional fundado em 1998.
Como conseqüência dessa monopolização que concentra a indústria da informação em
poucas mãos, podemos inferir que a diversidade de opinião e as fontes alternativas de informação
ficam comprometidas. Constatamos também que, como qualquer outro empreendimento
corporativo, existe a necessidade de alcançar lucros. Portanto, notícias que “vendem”, isto é, as
notícias que atraem a atenção do leitor/consumidor devem ser apresentadas. De acordo com
Ungerleider (1991):
The pressure for profitability leads assignment editors and reporters to present
“news that sells” involves the use of dramatic forms with intense conflicts and
easy characterizations which celebrate the individual, critically extol corporate
and entrepreneurial capitalism, and reinforce elite politics. In the reports of news
media about these topics, minorities do not figure prominently, if at all.
31
Um estudo realizado pelo grupo Southam Newspaper Group’s Task Force on Women’s
Opportunites
8
- um outro grande conglomerado - constatou que nos periódicos pertencentes ao
grupo, os homens, na grande maioria das vezes, determinam o que é notícia e como vendê-la. Os
homens ocupam as posições “chave” nas corporações e, portanto, através da mídia, ajudam a
definir o que é normal, aceitável e ideal. Então, a representação das mulheres na mídia, como
minoria é, muitas vezes, estereotipada. Através do filtro masculino, as mulheres são retratadas
dentro do contexto familiar, como objetos sexuais que existem para servir aos homens ou como
vítimas “naturais” da violência masculina.
Ao apresentar um pouco da história “oficial” do movimento feminista, esperamos poder
relacionar as representações de diferentes identidades femininas e/ou das mulheres no discurso
dos textos jornalísticos com o contexto da sociedade canadense da década de 1990.
Como percebido, nos referimos a uma história do feminismo dentro do contexto norte-
americano, uma vez que se trata de universo bastante amplo definir e localizar o feminismo, as
suas concepções filosóficas bem com o resgate do seu lugar de origem.
No entanto, consideramos o século XIX como o seu nascimento, período em que um
crescimento da percepção de que as mulheres eram oprimidas numa sociedade patriarcal,
concordando assim, com a visão de vários historiadores feministas norte-americanos. Para um
melhor entendimento histórico, o movimento feminista norte-americano às vezes é entendido em
três fases: o grande movimento pelo sufrágio universal, da metade do século XIX até meados de
1920, com a aprovação da emenda número 19, chamado de First Wave Feminism; a década de
1960, que ressuscitou o movimento feminista depois das duas guerras mundiais e que trazia um
discurso radical de reconstrução ou eliminação dos papéis sexuais e a luta por direitos iguais, o
Second Wave; e o Third Wave, o momento atual, que trouxe a crítica pós-modernista à segunda
fase do movimento feminista.
8
Media Watch. Introduction. http://www.mediawatch.ca/involved/media/Default.asp?pg=2 – acesso em 16/03/2002.
32
1. O MOVIMENTO FEMINISTA NORTE-AMERICANO: A CONSTRUÇÃO DO
SUJEITO DO FEMINISMO
De acordo com a enciclopédia Wikipedia,
9
o feminismo não está associado com nenhum
grupo, prática ou evento histórico. Sua base está na consciência política de que toda estrutura
de poder é desigual entre grupos com a crença de que algo teria que ser feito a respeito.
Para entendermos a trilha percorrida pelos feminismos que estaremos expondo,
partiremos da era vitoriana inglesa, ou o segundo Renascimento inglês, que compreende os anos
de 1837 a 1901, período do reinado da rainha Vitória do Reino Unido.
A era vitoriana - precursora da idade moderna - emoldurou vários movimentos modernos
como o socialismo, o feminismo e o movimento democrático. Este é um período de muitas
contradições e paradoxos: a cultivada ideologia da dignidade e do recato, por exemplo,
contradizia os fenômenos relacionados ao período, como o da prostituição, da exploração do
trabalho infantil e o da exploração das classes operárias e das colônias através do imperialismo.
Ao falarmos da era vitoriana,
10
temos que mencionar também o vitorianismo, movimento
cultural do século XIX associado à cultura das classes médias inglesa e americana. Os seus
valores enfatizavam a propriedade, a racionalidade e o recato sexual.
Victorianism was one of the cultural movements that separate us from the 18th
century and earlier we’re still the heirs of them, and in some ways still trying to
overcome their prudish ways. Victorian culture elevated women, but as ideals of
the domestic sphere: the “cult of domesticity” put women “on a pedestal.”
O movimento vitoriano casa-se com a glorificação da civilização, no sentido específico da
civilização branca ocidental que era parte majoritária do movimento imperialista
no final do
século
XIX.
A posição da mulher na sociedade européia nessa época era a mesma desde o começo
da Revolução Industrial (período normalmente compreendido entre o final do século XVIII e o
9
Wikipedia. Feminism. http://en.wikipedia.org/wiki – p. 1 - acesso em 02/10/2003.
10
Wikipedia, the free encyclopedia. Victorian Era. http://en.wikipedia.org/wiki/Victorian_era - acesso em
30/0/2004.
33
começo do século XIX), e não houve mudanças até praticamente 1850; as mulheres estavam
excluídas das organizações científicas e da maior parte das profissões.
As primeiras formas de expressão do feminismo não foram beneficiadas pelo modelo
vitoriano de conduta, uma vez que este considerava impróprios os estudos sexuais e do corpo
humano.
As teorias freudianas retrataram as mulheres como seres inferiores que invejam os
homens inconscientemente e, portanto, destinadas a uma vida infeliz. Os sociólogos mantinham
também posições conservadoras relativas ao casamento, à família, ao divórcio e à criação dos
filhos.
Ainda nessa época, as feministas começaram a pedir que os papéis sexuais fossem
repensados e se concentraram em “conseguir” o poder através da educação para as mulheres e
dos direitos políticos totais. A agenda feminista estabelecida para o século XX demandou que as
mulheres tivessem os mesmos direitos dispensados aos homens perante à lei, como o direito ao
voto. As feministas desafiaram também a dualidade da moralidade sexual: uma para as mulheres
e outra para os homens. Constatavam que essa duplicidade punia as mulheres por crimes sexuais
muito mais do que os homens, por exemplo. Procuravam melhorar a vida das prostitutas,
consideradas prisioneiras - pela sua situação econômica - de uma vida degradante e que punha em
risco sua saúde. Elas
se esforçavam para disponibilizar informação sobre as doenças venéreas e
métodos contracepcionais para as mulheres das classes mais inferiores.
11
De maneira geral, o século XIX abarcou uma série de correntes intelectuais como o
Romantismo, o Realismo, o Marxismo e as filosofias industrialistas. Por causa das mudanças
trazidas pelo industrialismo e pelo desenvolvimento das ciências e da tecnologia, novas correntes
de pensamento foram geradas em um mundo que se transformava rapidamente e que preservava
os princípios do Iluminismo (século XVIII), apesar do questionamento do racionalismo e da
ordem do universo. Freud, com a sua teoria da psicanálise, trouxe o inconsciente para aquele
sujeito racional, centrado e autônomo, descentrando-o.
Na teoria política, pensadores como Marx e Weber discutem o racionalismo - que daria as
bases para a filosofia liberal - ao questionar o papel de indivíduos racionais como força histórica
11
19
th
Century Intellectual Currents – Victorianism – http://www.loyno.edu/~seduffy/victorianism.html -acesso em
30/08/2003.
34
maior. Enfocam, então, a coletividade tida como agente de transformação devido à influência das
forças que atuam fora de seu controle.
Ao final do século XIX, as conquistas imperialistas e a dominação econômica do mundo
pela América e pela Europa ocidental espalham o pensamento moderno por boa parte do planeta:
as idéias ocidentais são os modelos pelos quais as maneiras tradicionais de pensamento seriam
desafiadas.
Entendemos o movimento feminista como o movimento organizado nos Estados Unidos
da América e Canadá e, para tanto, partimos de uma definição cronológica para um melhor
entendimento. O ano de 1848 é considerado o marco do nascimento do movimento feminista,
com a realização da primeira Conferência de Mulheres em Sêneca Falls, no estado de Nova
Iorque, nos Estados Unidos.
Na Conferência de Sêneca Falls, 68 mulheres e 32 homens assinaram a Declaração de
Sentimentos que teve por modelo a Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Retrocedendo historicamente, relembramos que, no século XIX, o conceito de Direitos Humanos,
produto da Revolução Francesa, foi inicialmente expresso na Declaração de Direitos da Virgínia
dos Estados Unidos da América em 1776 e novamente em 1789 na Declaração dos Direitos dos
Homens e Cidadãos.
Nenhum desses documentos se referiam às mulheres como “cidadãos”. Enquanto isso,
documentos como a Declaração das Mulheres e o Direito das Cidadãs de 1791, escritos pela
francesa Olympe de Gouges - guilhotinada em 1793 por se rebelar contra as forças do poder e por
defender a idéia de que as mulheres tinham direitos como cidadãs - e o livro Defesa do Direito
das Mulheres de 1792, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, serviram como inspiração para
muitas ativistas do século XIX.
De acordo com o Modern History Sourcebook, Elizabeth Cady e Lucretia Mott, duas
abolicionistas americanas, convocaram a conferência de Sêneca, principalmente pelo fato de
Lucretia, por ser mulher, não ter podido participar como delegada na convenção mundial anti-
escravocrata, realizada em Londres, em 1840.
Os abolicionistas britânicos convocaram a reunião mundial e para lá se dirigiram os mais
famosos abolicionistas americanos, entre os quais Lucretia Mott - uma das organizadoras do
35
movimento abolicionista da Filadélfia - e Elizabeth Cady Stanton, esposa de outro famoso
abolicionista.
Ellen Dubois, em seu artigo Feminism: Old 1Wave and New Wave de 1971, nos informa
que os abolicionistas ingleses se ofenderam com a idéia da participação de mulheres na
convenção em igualdade política com os homens e decretaram que as mulheres não poderiam
participar da conferência como delegadas, mas sim atrás de uma cortina do salão de convenções a
fim de que pudessem somente escutar aos procedimentos. As abolicionistas americanas, então, se
recusaram a participar da convenção.
Aplicando os princípios básicos desenvolvidos na luta abolicionista, como o de liberdade
e o do fim da opressão, a Declaração de Sêneca, com onze resoluções, além de proclamar a
tirania dos governos sobre as mulheres, demandava que lhes fossem concedidos direitos iguais
aos dos homens e que estes direitos fossem reconhecidos e respeitados pela sociedade.
O movimento feminista emergiu, então, dos movimentos pelas reformas sociais, como o
abolicionismo: as ativistas feministas do século XIX, ao comparar a situação das mulheres com a
dos escravos africanos, passaram a culpar os homens por toda limitação ou restrição sofridas por
elas e proclamaram que as relações entre os sexos eram controladoras e opressivas.
À parte do movimento abolicionista, as mulheres brancas e de classe média estavam
participando em outros movimentos de protesto, por exemplo, pelos direitos dos imigrantes e
pelos direitos dos pobres bem como o movimento contra as bebidas alcoólicas, o temperance, que
responsabilizava o uso de bebidas alcoólicas pelos problemas familiares. O movimento feminista
se ampliou contando com as ativistas desses movimentos sociais e à metáfora da escravidão se
juntou a do estereótipo do marido bêbado e “espancador” de esposas.
De acordo com Linda Gordon,
12
as feministas do final do século XIX acreditavam na
superioridade moral feminina e o “diferente” das mulheres era enfatizado, contrariamente às
feministas renascentistas que tinham uma visão “andrógina da humanidade inerente aos homens e
mulheres”. Portanto, a maternidade era a definição do “ser mulher”,
De acordo com a legislação da época, o casamento praticamente anulava a vida civil das
mulheres, uma vez que o comando financeiro e pessoal do casal pertencia ao marido. Caso
12
GORDON, Linda. What’s New In Womens’ History. http://Xroads.virginia.edu/g/DRBR/gordon.html – acesso em
12/03/2002.
36
permanecessem solteiras, continuavam “menores” perante a lei e não podiam assinar testamentos;
em caso de divórcio, não podiam ter a custódia dos filhos. Além disso, não lhes era permitido o
acesso à educação escolar formal.
Os direitos civis eram, assim, desiguais na medida em que, contrariamente às mulheres, os
homens não precisavam ser pais para serem considerados maiores, podiam permanecer solteiros
sem perder seus direitos civis plenos e podiam assinar testamentos.
Com o início da Guerra da Secessão, em 1861, as mulheres se concentraram no conflito,
deixando as atividades feministas em favor das atividades assistencialistas de ajuda aos
necessitados de guerra, além de assumirem as funções “masculinas” de gerenciamento da família.
Após a guerra, foram incorporadas emendas à Constituição dos Estados Unidos. A
emenda 14 definiu os direitos do cidadão, proibindo sua privação com base na raça, cor ou
condição prévia de servidão. Entende-se que o governo americano considerou “cidadão” somente
as pessoas do sexo masculino e, pela primeira vez, a palavra “homem” apareceu na Constituição
Federal. Como diz Ellen Dubois:
13
...the federal government was extending its protection only to all citizens of the
male sex. Not only were women ignored by the Amendment, but they discovered
that, after its passage, they were considerably worse off than before. For the first
time, the word “male” appeared in the Federal Constitution.
Esta fase, com enfoque na igualdade entre homens e mulheres, estendeu-se até meados do
século XX, com a concessão do direito de voto às mulheres, uma vez aprovada a Emenda 19 da
Constituição dos Estados Unidos, em 1920. De acordo com Carrie Chapman Catt and Nettie
Rogers Shuler:
To get the word “male” out of Constitution cost the woman of this country 52
years of pauseless campaign...During that time they were forced to conduct 56
campaigns of referenda to male voters, 480 campaigns to get legislatures to
submit suffrage amendments to voters, 47 campaigns to get state constitutional
conventions to include woman suffrage planks, 30 campaigns to get presidential
partly conventions to apt woman suffrage planks in party platforms and 19
13
DUBOIS, Ellen (1971). Feminism Old Wave and New Wave. The CWLU Herstory Website Archive.
http://www.cwluherstory.com/CWLU/archive/wave.html – acesso em 2003.
37
campaigns with 19 successive Congresses (Woman Suffrage and Politics, New
York, 1923, Chas. Scribners Sons, p. 107).
Para entendermos mais especificamente a conjuntura canadense, devemos
necessariamente mencionar um popular movimento de mulheres dos séculos XIX e XX,
conhecido como Feminismo Maternal.
14
As mulheres participantes deste movimento
consideravam-se feministas e transformaram os interesses femininos em um movimento
significativo pela melhoria da condição das mulheres e das crianças.
Segundo Janelle Collett,
15
o maternalismo é um conceito criado por historiadores para
explicar as mulheres ativistas que utilizavam as qualidades tidas como inerentes ao sexo feminino
para lutarem pelas causas públicas. Assim, por se acharem mais puras e piedosas do que os
homens, elas acreditavam que poderiam não só ajudar aos pobres, mas também fazer uma
reforma moral, com a finalidade de beneficiar a vida de todos. As mulheres também discutiam
sobre os direitos das mulheres e do sufrágio, na crença de que o voto seria um importante
instrumento de transformação do país.
O século XIX
encontrou um Canadá colonial que também clamava, assim como os seus
vizinhos americanos, por melhores condições de trabalho e pela igualdade dos sexos. Desta
maneira, a sociedade canadense também desafia as concepções vitorianas de trabalho e de
mulher. O movimento organizado de mulheres - brancas e de classe média - ajudava crianças
carentes e pedia leis de divórcio mais equilibradas e justas, direito de acesso à escolaridade e
melhores condições de trabalho para as mulheres. Aqui, falamos do trabalho “tradicional”,
considerado apropriado para uma dona de casa e não das condições de trabalho da proletária,
trabalhadora de uma fábrica, por exemplo.
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-18), o movimento feminista do Canadá
se dividiu entre pró-império e facções anti-guerra. Em 1918, dois anos antes das mulheres
americanas, as canadenses conquistaram o direito ao voto, a “mesada das mães” e ganharam a
Sociedade Protetora das Crianças, os jardins de infância, as associações de casa e escola, além de
14
Maternal Feminism: Mothering the World, p.1 - http://www.suite101.com/mypage.cfm/womens_history/266
15
Equally Through Difference – http://www.feminist.com/resources/artspeech/remember/rtl7- acesso em
12/03/2002.
38
“cortes” juvenis e prisão de mulheres separadas, de acordo com informação da colunista
feminista Michele Landsberg.
16
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) fez com que as mulheres rompessem a prática
social da vida em esfera privada, doméstica: requisitadas pelo mercado de trabalho, elas o
adentraram, desafiando os estereótipos femininos da formação discursiva de acordo com a qual a
posição ideológica do sujeito-mulher vinculava-se à esfera privada e não à pública.
Esse deslocamento profissional provocou outros efeitos, por exemplo, a discussão a
respeito da responsabilidade estatal sobre a família: ora, se as mulheres não mais podiam cuidar
dos filhos em regime integral - os maridos estavam na guerra e elas fora de casa - nada mais
lógico que coubesse ao Estado a solução de tal problema. Sendo assim, se intensificou o clamor
por creches financiadas pelo governo, bem como pelo auxílio governamental de provimento para
a família e para os desprivilegiados da sociedade - welfare system ou welfare state (Estado do
Bem-Estar Social).
De acordo com o Status of Women Canada,
17
uma preocupação “obsessiva” com a volta
dos papéis sexuais à normalidade caracterizaram o período pós-guerra e a década de 1950.
Parafraseando o artigo, a mídia representava as mulheres nesse período como as “rainhas do lar”,
nascidas para a vida doméstica e a feminilidade. Eram esquecidos ou ignorados -, assim, os
anos de Guerra quando as mulheres não desempenharam tais funções, mas também assumiram
outros papéis tradicionalmente representados pelo homens.
em 1949, a filósofa Simone de Beauvoir publicara a obra O Segundo Sexo, considerado
fundamental para o movimento de liberação feminina em sua segunda fase: o Second Wave. Um
dos pontos centrais de seu estudo estava na afirmação de que ser biologicamente mulher não
implica necessariamente numa determinada situação social. A diferença entre homens e mulheres
é natural, mas os papéis que desempenham são socialmente construídos, e não forças naturais.
Esse entendimento abre a possibilidade para que os papéis tornem-se mais igualitários através das
mudanças sociais.
16
LANDSBERG, Michele colunista do jornal canadense The Toronto Star: Feminist Rebels Opened Doors -
publicado em 11 de novembro de 2002.
17
SWC - órgão federal canadense que promove a igualdade dos sexos e a participação integral da mulher na vida
econômica, social, cultural e política do país - Women’s History Month 2002 – Adult Fact Sheet: Women and Sports
in Canada – An Historical Overview - www.swc.ca – acesso em 01/02/2004.
39
A entrada da mulher no mercado de trabalho e a popularização da pílula anticoncepcional
transformaram o papel tradicional da “dona-de-casa” e, as décadas de1960 e 1970 vislumbraram
um movimento radical feminista comandado pelas mulheres norte-americanas, que demandava o
direito ao aborto, creches custeadas pelo Estado e salários equiparados aos dos homens.
A luta pela emancipação das mulheres da década de 1960 trouxe à discussão a questão da
diferença entre sexo e gênero. Sexo é o biológico, natural, a maneira como se nasce e, portanto,
imutável. Gênero é o que se constrói culturalmente e, portanto, pertencente ao campo discursivo.
Colocando ainda de outra maneira, a identidade tem a ver com o gênero, e não com o sexo
biológico, que passa a ter um papel menos importante na construção da identidade; os corpos
sexuados se contrapõem ao gênero construído socialmente.
Como já dito, a era vitoriana fala de uma mulher emocionalmente frágil e maternal, sendo
sua identidade fixada o que a levou a ter determinado papel na sociedade dentro de uma esfera
privada, doméstica, a-política. Com a teoria da construção social na distinção entre sexo e gênero,
questionou-se a visão essencialista da categoria social ‘mulher’ como aquela com funções
biológicas inferiores às dos homens e reprodutoras.
O enfoque desta fase do movimento recai sobre como se livrar do poder dominante do
mundo masculino, poder este repressivo para as mulheres que, enquanto categoria, estão
subordinadas a ele. Depreendemos que esta fase do movimento, conhecida como Movimento de
Liberação Feminina, estendeu-se até os anos 1980 e concentrou-se em aspectos econômicos e em
estilos de vida das mulheres. Emprestando as armas teóricas de Simone de Beauvoir, o
movimento feminista preocupou-se com a reconstrução dos papéis destinados a homens e
mulheres - transformação da sociedade patriarcal - e com a luta por direitos iguais.
No começo da década de 1960, a sociedade canadense desafiava as idéias tradicionais
sobre guerra e paz e sobre os direitos civis. O debate sobre o nacionalismo de Quebec e os
direitos das mulheres também se colocava. As feministas pressionavam o governo canadense no
sentido de que fossem tomadas medidas governamentais contra a desigualdade entre homens e
mulheres. Elas trabalhavam pelas reformas das estruturas econômicas, legais e sociais da
sociedade dentro do sistema capitalista.
Podemos constatar a crença, nesse período, de que a igualdade dos sexos somente poderia
ser alcançada através das reformas estruturais. As reformas pleiteadas diziam respeito
40
basicamente à reforma da legislação no tocante a: equiparação salarial entre homens e mulheres,
licença maternidade remunerada, criação dos centros para mulheres vítimas de estupros, abrigo
para mulheres vítimas de violência doméstica e mudanças nas leis de aborto.
Como pode ser percebido, a segunda fase do movimento feminista abrangeu uma gama
variada de discussões que questionava desde a discriminação da mulher no local de trabalho -
diferença de salários, falta de promoções (glass ceiling); restrição de oportunidades profissionais
naquelas áreas consideradas “masculinas” e assédio sexual (sexual harassment) - até as questões
relativas a educação feminina, creches, contracepção e reprodução, saúde feminina e violência
contra a mulher.
Essa fase do movimento feminista canadense também contribuiu para uma expansão das
organizações feministas empenhadas em comprometer os governos provinciais e federais na
questão da igualdade sexual, isto é, nas reformas estruturais. Em conseqüência, em 1967 o
governo canadense criou a Comissão Real do Status da Mulher (Royal Commission on the Status
of Women – RCSW).
Essa comissão, guiada pela crença na igualdade de oportunidades e na divisão de
responsabilidades, privilégios e prerrogativas da sociedade, era especialmente orientada por
quatro princípios:
as mulheres devem ser livres para escolher se querem trabalhar fora de casa ou não;
a criação das crianças cabe à mãe, ao pai e à sociedade;
a sociedade é responsável pela mulher por causa da gravidez e do parto;
a mulher deve receber tratamento especial para a superação de problemas provocados
por discriminação.
Em conseqüência, medidas legais foram aprovadas, o que afetou a posição da mulher no
Canadá. Algumas delas incluíram:
- mudanças nas leis do divórcio: ao reconhecer que o trabalho doméstico feminino
contribui para o crescimento profissional do marido, às mulheres foi garantido não
a pensão alimentícia, mas também a metade do patrimônio adquirido durante o
casamento;
41
- um fundo governamental para a licença-maternidade;
- os governos provinciais e federais adotaram as leis dos Direitos Humanos que
proíbem discriminação contra as mulheres em matérias referentes ao trabalho
- mudanças nas leis criminais no que se refere à violência contra as mulheres, inclusive
revogando a lei de estupro que não considerava crime o estupro marital e adotando a
provisão pela qual as cortes de justiça não mais poderiam examinar o passado sexual
das vítimas de crimes sexuais.
Para completar este quadro, especialistas em questões femininas foram destinados para os
departamentos federais de Justiça, Trabalho, Imigração e Saúde e, em 1971, o ministério federal
responsável pelo status da mulher foi criado. Grupos de mulheres, como o Comitê de Ação
Nacional (National Action Committee) tornaram-se elegíveis para a obtenção de fundos
governamentais para o financiamento das suas atividades.
Considerado o ponto alto dessa chamada segunda fase do feminismo canadense foi a
garantia em 1982, de que a Carta de Direitos e Liberdades (Canadian Charter of Rights and
Freedom) contivesse uma lei geral prevendo tanto a igualdade para homens e mulheres como
para outros grupos considerados em desvantagem social, sem a possibilidade de alteração por
qualquer outra provisão.
Esse reconhecimento alterou profundamente a lei canadense, uma vez que significou uma
ruptura com o sistema colonialista e escravocrata e com a tradição patriarcal do common law e da
lei civil, ou seja, uma ruptura com os sistemas baseados em dominação e subordinação. Um
efeito causado por essa legislação foi justamente o fato de as cortes de justiça poderem decidir,
com base no texto legal, sobre as questões de discriminação.
18
Retomando o conceito de Liberalismo, resumidamente, que se baseia no princípio da
liberdade individual e da liberdade de escolha sem a interferência da opinião pública ou da lei,
podemos constatar que o discurso liberal dominou essa fase do movimento feminista. Este
discurso legitimava a mulher como agente, propondo mudanças dentro da estrutura ou sistema
sociais existentes através da alteração de legislação e da propaganda da causa feminista.
18
Informações obtidas do Canadian Politics on Line – CD 2/Chapter 2: Gender Equality - tradução livre –
http://qsilver.queensu.ca/polscd/reviewq/CD4C2/CD4C2qB.html – acesso em 20/08/2003.
42
De acordo com Baym,
19
o feminismo se origina do liberalismo Iluminista ocidental, no
sentido de que a natureza humana é universal e, portanto, todos os seres humanos são racionais e
iguais. Em uma visão feminista liberal, as desigualdades entre os sexos se originam justamente
pela negação de direitos iguais a homens e mulheres. Podemos afirmar então, que o sistema legal
e a mídia são instrumentos fundamentais para o movimento feminista que acredita que a
igualdade será alcançada dentro das instituições.
O movimento feminista, através de um discurso representacional da “mulher”, fala em
nome de todas elas. A categoria “mulher”, portanto, se apresenta homogênea, uma vez que nessa
fase, as discussões sobre as diferenças entre as mulheres, por exemplo, as diferenças raciais,
étnicas, de classes sociais e as de nacionalidade ou religião, não eram enfocadas.
Benhanbib
20
nos diz que, na década de 1980, a mudança do paradigma para um
feminismo pós-modernista foi influenciado por pensadores franceses como Foucault, Derrida,
Lyotard, Cixous e Irigaray. Estes autores, segundo Benhanbib, se tornaram o centro de uma
crítica política exercida por lésbicas, negras, brancas do Terceiro Mundo, da Europa ocidental ou
norte-americanas e as heterossexuais do movimento feminista. Essa crítica política veio
juntamente com a mudança filosófica de paradigmas marxistas e psicanalíticas para os tipos
foucaultianos de análise do discurso e para as práticas desconstrucionistas do texto de Derrida.
A autora afirma que o modelo de pesquisa social também foi alterado, uma vez que se
passou da análise da posição da mulher em relação à divisão sexual do trabalho e do trabalho
em geral para uma análise da constituição e construção da identidade, problemas do eu”
coletivo e outras representações, e questões sobre contestação cultural e hegemonia.
A teoria feminista, através das ferramentas de análises fornecidas pelos autores pós-
modernistas e pós-estruturalistas, questionam a dicotomia sexo/gênero e analisam a produção da
categoria sexo e a sua função em regimes de poder que querem controlar o corpo sexual.
Foucault (2001) explana que a construção das funções “naturais” do sexo é uma
camuflagem da operação produtiva de poder em relação à sexualidade. A sexualidade deve ser
entendida como um fenômeno construído por meio do exercício de relações de poder. Se o corpo
19
BAYM, Nina (1995). The Agony f Feminism: Why Feminist Theory Is Necessary After All –
http://www.english.uluc.edu/baym/essays/feminism.htm - acesso em 17/07/2004.
20
BENHANBIB, Seyla (1993). From Identity Politics to Social Feminism: A Plea for the Nineties.-The Paradigm
Wars of Feminist Theory. http://www.farhad.org/gm/asp/show1.asp?id=191 - acesso em 11/10/2003.
43
é o locus do controle, então, a categoria “sexo” é importante para a identidade cultural do
indivíduo. Para esse autor, a sexualidade não pode ser vista simplesmente como uma força
natural e opressiva porque ela é construída pelo exercício das relações de poder.
Em outras palavras, oposições binárias como homem/mulher e masculino/feminino geram
a separação do gênero - socialmente construído - dos corpos sexuados, dando a impressão de que
o corpo não é relevante para a identidade cultural do gênero do indivíduo. Foucault refuta essa
posição quando não descarta o corpo biológico em sua análise.
A teórica feminista Linda Hutcheon
21
considera que o pós-modernismo foi possível
devido à existência de movimentos sociais tão importantes na década de 1960 quanto o
movimento feminista e o movimento por direitos civis norte-americano. Na visão dessa autora, a
sociedade começou a discutir os sexos e as diferenças raciais, tornando-se a “diferença” o
enfoque do pensamento: escolhas sexuais, história pós-colonialista, religião e classes sociais. A
identidade e a diferença, sob a ótica do feminismo, é questão complexa e temas como a
marginalização social e cultural vêm à tona.
Na visão da autora, assim como as mulheres são colocadas à margem da cultura
masculina, o próprio Canadá “se sente” marginalizado, uma vez que tem que se reportar à Grã-
Bretanha e à França por causa da herança colonial e se deparar constantemente com uma força
cultural ainda maior do que a européia: os Estados Unidos. Ela nos diz que:
I think feminisms (in the plural) were important for articulating early on the
variety of political positions possible within the umbrella term of gender from
liberal humanist to cultural materialist. Feminist discussions “complex-ified”
questions of identity and difference almost from the start, and raised those
upsetting (but, of course, productive) issues of social and cultural marginality.
Na década de 1970 se percebia a mudança de certas práticas sociais, por exemplo, a
introdução de medidas em várias universidades americanas contra a discriminação e a molestação
sexual, embriões do discurso de esquerda do “politicamente correto” que iria se desenvolver na
década posterior.
21
HUTCHEON, Linda. Em: O’GRADY, Kathleen. Theorizing – Feminism and Postmodernity: A Conversation with
Linda Hutcheon (1977), p.3 – http://english.ucsb.edu/faculty/ayliu/research/grady-hutcheon.html – acesso em
03/04/2002.
44
O feminismo norte-americano, nos anos 1980, ao se interessar pelas teorias pós-
modernistas francesas, é influenciado principalmente por pensadores como Foucault, Derrida,
Irigaray e Cixous, como visto. Questionando a política de identidade e diferença -
principalmente pela fragmentação e pelo “choque de identidades” característicos da década de
1990, o movimento inaugura uma importante mudança de paradigma na teoria feminista. O
interesse pela teoria francesa coincidiu com um momento de lutas político-culturais dentro do
movimento feminista norte-americano (Benhanbib, 1993). A feministas Nicholson e Fraser
(1990:33) afirmam que:
...the practice of feminist politics in the 1980’s generated a new set of pressures
which have worked against metanarratives. In recent years, poor and working-
class women, women of color, and lesbians, have finally won a wider hearing for
their objections to feminist theories which fail to illuminate their lives and
address their problems. They have exposed the earlier quasi-metanarratives, with
their assumptions of universal female dependence and confinement to the
domestic sphere, as false extrapolations from the experience of the white, middle-
class, heterosexual women who dominated the beginning of the second wave.
Verificamos que o discurso feminista assume que “mulher” é um grupo com interesses e
características comuns o que, de acordo com Butler (2003), reforça a lógica das oposições
binárias criadas pela dicotomia entre homem/mulher e masculino/feminino, limitando ou
silenciando outras possíveis identidades.
Os pensadores Derrida e Foucault fornecem à teoria feminista instrumentos para a
realização de uma análise mais complexa sobre as relações de poder e gênero que questiona a
oposição binária vitimização/dominação.
Ao estabelecer que o corpo e a sexualidade são socialmente constituídos, Foucault
apresenta os
elementos teóricos para que a teoria feminista exponha não somente o gênero como
socialmente construído, mas também o sexo, desconstruindo assim o binarismo sexo/gênero.
Analisam-se mais complexamente as formas de controle social dos corpos e mentes das
mulheres. O efeito provocado por esse deslocamento teórico - a utilização dos conceitos ou
pressupostos teóricos foucaultianos - se traduz ao repensar as teorias e as práticas de
emancipação do feminismo.
45
De acordo com Butler (2003), tanto o sexo quanto o gênero são socialmente construídos;
consequentemente, a questão da sexualidade e da identidade sexual saem da esfera privada,
pessoal, e são trazidos para o campo político, público e coletivo.
A noção de corpo é fundamental para a análise da teoria feminista da opressão das
mulheres, porque as diferenças entre os sexos servem para legitimar as desigualdades dos
gêneros. Assim, por meio dessas características consideradas biológicas e não-históricas, a idéia
de que as mulheres são inferiores aos homens é considerada natural e legítima; daí a sua
importância para a teoria feminista de que o corpo seja entendido como socialmente construído.
No pós-estruturalismo, a dicotomia entre os gêneros, isto é, entre o masculino e feminino,
é rejeitada como diferença biológica ou como diferença presenteada a mulheres e homens pela
natureza. O gênero, como visto, é construído socialmente por meio da ordem da linguagem
patriarcal. Por meio da linguagem aprendemos a cultura - preexistente - de nossa comunidade,
isto é, a cultura nos é dada por esse sistema de representação que nos define a “realidade”. De
acordo com a visão foucaultiana, o discurso produz “saberes” e a sociedade “sabe” como ordenar
os seus discursos, exercitando assim, o poder.
Quem controla os discursos define também o que é “realidade” ou o que é considerado
“verdade”, que varia de sociedade para sociedade, de cultura para cultura, de época para época,
sempre de acordo com uma negociação e com os conflitos discursivos. Assim, a “realidade” é o
produto entre o texto e o leitor, o qual “negocia” ativamente com o texto.
Apesar de não nos referirmos às teorias pós-colonialistas, segundo as quais as
representações das culturas que tiveram contato com a expansão colonial foram consideradas o
Outro, que não fazia parte da norma ocidental - negativamente diferentes -, elas também
contribuíram para que a categoria “mulher”, sujeito do feminismo, fosse desconstruída. Por causa
disso, outras identidades femininas e/ou das mulheres foram incluídas no discurso
rerpresentacional feminista, como a mulher negra, a homossexual e a mulher do Terceiro Mundo.
46
Resumo do Capítulo
Neste capítulo, mostramos como foi estruturado o corpus dos textos jornalísticos e
discutimos como o feminismo foi construído nas relações histórico-sociais e como suas origens
se relacionam diretamente com determinadas ideologias em determinadas formações discursivas.
Pudemos perceber as ligações entre um movimento feminista de princípios liberais humanistas e
a perspectiva de
mudanças por meio de reforma estrutural em relação ao reconhecimento de
igualdade sexual e dos direitos igualitários - dentro do próprio sistema que supostamente oprime.
Vimos como a modernidade foi fundamental para a organização do movimento feminista,
que emergiu dos movimentos de reformas sociais, como o movimento abolicionista, uma vez que
as feministas do século XIX começaram a comparar a situação das mulheres com a dos escravos
africanos, a culpar os homens por toda restrição sofrida e a proclamar que as relações entre os
sexos eram controladoras e opressivas.
Verificamos que o movimento feminista se empenhou em dois campos de ação para
alcançar os seus objetivos: a mudança legislativa e a utilização da mídia como meio de tornar
pública as suas demandas, tornando as questões feministas visíveis. Para s, essa constatação é
importante porque mostra que é a aparente a transparência e a objetividade jornalísticas, bem
como a neutralidade das informações.
Percebemos que, ao falar das mulheres neste contexto, falamos da mulher branca e de
classe média, que participou em diversos movimentos de protestos contra o álcool e a escravidão,
pelo direito dos imigrantes e dos pobres. Com a concessão do direito de voto às mulheres,
encerra-se a chamada primeira fase do movimento feminista que teve como foco principal a
igualdade.
Com o advento das duas grandes guerras mundiais, as mulheres entram para o mercado de
trabalho e vários estereótipos são desafiados. Vimos também que com a publicação do livro O
Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, a questão da diferença entre sexo (natural) e gênero
(culturalmente construído) torna-se fundamental para o movimento de libertação feminina. A
ideologia agora fixa-se na posição binária dominação/subordinação, cabendo ao movimento
feminista lutar pela emancipação das mulheres do poder opressivo masculino. Notamos que,
47
“mulheres”, para o discurso feminista representacional, são as mulheres brancas, de classe média
e ocidentais.
Vimos ainda que a teorização foucaultiana e as práticas de desconstrução textual de
Derrida deslocam a teoria feminista dos paradigmas marxistas e psicanalíticos e questiona-se o
binarismo vitimização/dominação, principalmente pela concepção de poder estabelecida por
Foucault; o poder está relacionado com
o corpo, a sexualidade e é o locus do controle social.
Baseadas nos conceitos teóricos de Foucault, as feministas pós-estruturalistas
desconstróem a categoria “mulher”, e passam a considerar o sexo também como fenômeno
socialmente construído. Assim, o binarismo sexo/gênero é desconstruído e os mecanismos do
poder patriarcal são expostos pelas análises das formas de controle social dos corpos e das mentes
das mulheres. Dessa maneira, o movimento feminista passa não somente a lidar com as lutas de
emancipação, mas também a analisar a representação e a construção da identidade.
Capítulo 3
A representação da mulher
nos jornais canadenses
49
Este capítulo tem como objetivo discutir as representações de identidade das mulheres nos
textos jornalísticos publicados na década de 1990 no Canadá. Entendemos a representação como
construção de significados e de sentidos - construídos social e culturalmente nas diferenças, não
como um reflexo da realidade nem manifestação dos indivíduos (Hall, 1997). As representações
são manifestações sociais que se dão por meio da linguagem. Assim, as práticas representacionais
são sempre uma tentativa de estabelecer um sentido. A construção da diferença passa sempre
pelas construções binárias: homem/mulher, preto/branco. De acordo com Derrida (1998),
nenhuma construção dicotômica, binária, é neutra: um pólo é sempre privilegiado.
Nesse sentido, mostraremos como os textos jornalísticos analisados sugerem
representações que legitimam as identidades de determinados grupos de mulheres, produzindo
conhecimento a respeito do gênero feminino. Conforme discutido por Fowler (1991), os textos
jornalísticos não devem ser entendidos como um reflexo da realidade, mas como o resultado de
um processo de criação e interpretação social, atravessado por relações de poder.
O texto é a unidade que conduz ao discurso e, portanto, o texto jornalístico não deve ser
entendido como lugar de informação neutro, mas como um lugar heterogêneo, afetado pelas
condições de produção e que, assumindo significado, busca produzir as identidades por meio de
diferentes formas de representação.
Abordaremos, neste capítulo, o funcionamento do discurso do texto jornalístico, buscando
discutir a forma como as representações das identidades femininas e/ou das mulheres são
construídas. Analisaremos como as mulheres têm a sua identidade definida dentro de certos
estereótipos, como o da mulher-mãe, mulher-objeto e mulher-vítima.
Verificaremos como as representações nos textos jornalísticos reforçam essas identidades,
silenciando outras, e como o discurso feminista de violência contra as mulheres, através da
narração das histórias das vítimas, (re)construiu - “vítimas” - através da imprensa, a qual, ao
denunciar a vitimização, transformou as mulheres em personagens centrais de uma narrativa
jornalística afetada pelo discurso feminista da década de 1990. A narrativa da violência contra as
mulheres na imprensa, por exemplo, produziu sentidos, gerou identificação e, portanto, construiu
identidades, politizando-as.
50
Basearemos nossa análise nos trabalhos de Michel Foucault, principalmente na sua teoria
de que o social gera relações de saber/poder e dominação. Um dos efeitos das relações de
saber/poder é a criação de novas identidades políticas e sociais.
De acordo com Hall (1997), a identidade não somente é formada, mas também
transformada de maneira contínua em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Desse modo, a identidade está
interrelacionada com o processo de representação. Numa visão discursiva, a identidade é formada
dialogicamente, dentro da demarcação do que não é, ou seja, pela diferença, pelo outro.
Baseando-nos nos ensinamentos de Hall, podemos afirmar que a identidade “mulher” não
nasceu mãe, objeto ou “vítima”. A mulher não possui “naturalmente” essas características, mas as
identidades mulher-mãe, mulher-objeto ou mulher-vítima são produzidas e reformuladas dentro
da representação.
Durante os anos 1960, na segunda fase do movimento feminista, as mulheres firmaram-se
no mercado de trabalho, assumram o controle da natalidade através da pílula anticoncepcional e
trouxeram a público o debate de questões amplas, como a discriminação no trabalho, a limitação
das oportunidades de educação, a necessidade de creches para os filhos, a concepção e a
reprodução, a saúde e a violência contra as mulheres. Nesse quadro, também estavam implícitos
assuntos relacionados à vitimização das mulheres na esfera privada, como o incesto, o estupro e a
violência doméstica.
A violência contra as mulheres, ao sair daquela formação discursiva (FD) doméstica,
privada, passa a se inserir em outra FD, pública e internacional, que reconhece a violência sexual
contra as mulheres como uma forma de violação de direitos básicos. Aqui estamos falando de
violação dos Direitos Humanos que, igualmente com outros instrumentos internacionais de leis,
têm como premissa o direito de igualdade.
O discurso da violência contra as mulheres torna homogênea a identidade “vítimas”,
buscando firmar uma única identidade de “mulher”, como se todas elas pertencessem à mesma
raça e classe social, tivessem a mesma opção sexual ou, em outras palavras, como se as
experiências vivenciadas pelas mulheres fossem todas iguais; como se todas sofressem o mesmo
tipo de violência.
51
Relembramos que a própria teoria feminista, ao utilizar os pressupostos teóricos
foucaultianos, desenvolveu uma análise mais complexa principalmente sobre as relações entre os
gêneros e o poder. De acordo com a visão foucaultiana, o poder circula no corpo social, é
praticado e não possuído, é produtivo e não repressivo e o seu principal locus é o corpo e a
sexualidade, instâncias de controle social. Esses instrumentos serviram para que os teóricos
feministas desafiassem o binarismo vitimização/dominação.
Como afirma Foucault (2001), os objetos do discurso são produzidos pelos próprios
discursos. Ao retratar as mulheres como agentes passivas e vulneráveis, que necessitam ser salvas
e protegidas da brutalidade masculina, a mídia reforça a visão de que as mulheres são, em sua
essência, vítimas naturais dessa brutalidade e, portanto, dependentes de proteção. Assim, constrói
através da linguagem a identidade feminina de mulher-vítima.
Como já dito, ao analisarmos os artigos encontramos as seguintes representações:
Representações que definem a identidade das mulheres dentro de um contexto
familiar - a domesticidade;
Representações de uma sexualização irrelevante que objetificam e fragmentam a
mulher, erotizando-a;
Representações que infantilizam a mulher;
Representações que definem a mulher enquanto vítima.
1. DOMESTICIDADE: Contexto familiar
Partiremos das representações que definem a mulher dentro do contexto familiar, expondo
os efeitos de sentido provocados e as formações discursivas (FD) que atravessam os enunciados.
Verificaremos como os sentidos do universo patriarcal vitoriano aparecem nos textos
jornalísticos, tornando homogêneo o gênero feminino, congelando a identidade feminina
principalmente no papel de mãe e esposa, isto é, dentro de uma esfera privada e, por isso, “a-
política”. Para tanto, analisaremos os excertos de artigos de dois periódicos canadenses e
52
discutiremos como os textos jornalísticos que se referem às mulheres fixam sentidos sobre a
identidade feminina.
Artigo 1: publicado no jornal The Toronto Star, em 14 de julho de 1994, na seção de
obituários. (Vide anexo 01)
Excerto 1:
MARY ROWELL JACKMAN PIONEERED DAY CARE
Liutenant-Governor Is One Of Her Sons
Mary Rowell Jackman was a gracious, old-fashioned woman who was born into
one distinguished Toronto family and married into another / She was a product
of her generation but she was certainly very much a person in her own right,” her
son, Ontario Liutenant-Governor Hal Jackman, said.
Como podemos constatar, a experiência vivida pela mulher é representada no obituário
por meio de adjetivações e classificações que reforçam certos estereótipos e certos padrões a
serem seguidos. Ao analisarmos esse excerto 1, percebemos que o texto jornalístico - o obituário
de Mary Rowell Jackson - produz o sentido de que a identidade da mulher está vinculada à
família, nas seguintes formulações: Liutenant-Governor is one of her sons / her son / married
into another.
Pode-se notar, primeiramente, que a representação da mulher está intimamente
relacionada com o contexto, ou seja, a identidade feminina está definida de acordo com o seu
relacionamento familiar. De acordo com Fowler (1991), a identidade pública feminina depende
das suas relações familiares dentro do contexto de casa e família. O autor explica, por exemplo,
que a profissão ou o trabalho dos homens são sempre mencionados, ou seja, a identidade
masculina é construída fora do contexto familiar, o que não acontece freqüentemente com as
matérias sobre as mulheres. Ele nos diz que:
Men, in serious stories, are not usually presented in such insistently domestic
terms, but often have their professions or jobs mentioned identity outside the
home and family. (op.cit.:102)
53
Percebemos como são utilizados vários adjetivos que servem para “localizar” o sujeito-
mulher quanto à sua feminilidade como, por exemplo, gracious / old fashioned e o uso de
palavras como distinguished para determinar o lugar social, o status do sujeito que, neste caso,
trata-se de mulher branca, de família “tipicamente” canadense e de classe média alta.
Em frases como who was born into one distinguished Toronto family and married into
another ou She was a product of her generation, que designam e definem a mulher como
categoria social, notamos que, neste locus de enunciação a mulher é apresentada como a que
sofre a ação e os seus efeitos e não como a agente, aquela que decide.
Observamos os adjetivos descritivos como gracious, old-fashioned que representam
atributos, qualidades pessoais e sociais como consensuais, ou melhor, naturais. No texto em
questão, os atributos são qualidades femininas. O locutor-jornalista quando enuncia, traz a voz da
ideologia da classe média, branca, do main-stream da sociedade canadense e resgata o ideal
feminino da era vitoriana que, como mencionado, baseava-se na domesticidade: às mulheres
cabia a devoção familiar, a religiosidade e a pureza sexual.
Em She was a product of her generation but she was certainly very much a person in her
own right, o advérbio “certamente” indica a modalização que pode ser entendida como um
“comentário” ou uma “atitude”, explícita ou implícita, dentro do texto (Fowler, 1991:85). Em
outras palavras, modalização quando o enunciador, pela sua fala, expressa uma atitude “em
relação ao destinatário e ao conteúdo de seu enunciado.”
1
Fowler (op.cit.) distingue quatro tipos de comentários: os de verdade, de obrigação, de
permissão e de desejo. No caso, temos uma modalização de verdade explícita, em que o advérbio
“certamente” é elemento interpessoal de mediação entre o social e o papel desempenhado pelo
gênero feminino. O sujeito-falante é categórico ao afirmar que, apesar de Mary ser um produto de
sua própria geração, ou seja, representar todos os valores de uma determinada formação
discursiva que ideologicamente preservava certos valores femininos, ela era “certamente”
também uma pessoa que tinha poder de ação. A modalização explícita mostra a opinião do filho e
trabalha como que preservando uma integração entre o “velho” e o “novo”, entre o papel
tradicional reservado às mulheres, na esfera privada, e aquele que permite a sua participação na
esfera pública.
1
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique (2004). Dicionário de Análise do Discurso – p. 334.
54
Excerto 2:
Mrs. Jackman was a great supporter of Metropolitan United Church and it was
there, during the Depression of the 1930s, that she founded the first day-care
centre in Canada, now known as Bond St. Nursery School /... She was a daughter
of Newton Rowell, the lawyer who in 1929 won a famous victory in the Persons
Case, when the British Privy Council ruled that women in Canada were legal
persons and could not be excluded from public office. /He was a Liberal who
served as a federal cabinet minister and subsequently became chief justice of
Ontario/ His daughter was also involved in Liberal politics as a young woman
but she developed an even bigger interest in the Student Christian Movement as
a student at Victoria College / On graduating she became its organizing secretary
and then she married Henry R. (Harry) Jackman, a financier who later became
a Conservative MP for Rosedale.
Ao examinar esse excerto 2, que corrobora a análise apresentada anteriormente,
lembramo-nos de Silva (2000:91), segundo o qual é através da representação que a identidade e a
diferença adquirem sentido; quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar
a identidade. Por meio da representação, a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder.
Neste caso, a identidade da mulher é marcada ou fixada como imagem “feminina” de filha, mãe,
esposa, prestadora de serviços comunitários, em oposição à identidade do homem, que é
construída fora do contexto familiar, isto é, na esfera pública.
O excerto demonstra que o sujeito-mulher está identificado dentro do contexto familiar
uma vez que a ênfase na atuação na vida pública e no sucesso profissional é reservado ao pai - foi
ele quem ganhou uma ação contra o governo inglês, o qual passou a reconhecer as mulheres
enquanto pessoas jurídicas e, portanto, participantes da vida pública. Este feito é considerado
pelo locutor-jornalista uma grande realização e uma grande vitória.
Vejamos algumas das palavras que definem Mary além de gracious e old-fashioned
(excerto 1): a person in her own right, a great supporter, young woman, married to, daughter of,
a student, generous, “gave” and “donate”.
A representação é sempre feita de um ponto de vista ideológico e construído pelas forças
estruturais da transitividade e da categorização lexical (Fowler,1991:85). Notamos, além da
excessiva categorização familiar, o fenômeno da lexização exagerada para os atributos femininos.
55
Fowler (op.cit.) sustenta que mais termos para designar as mulheres do que para designar os
homens, o que indica que a sociedade entende a mulher como tendo um status anormal.
Para corroborar com a afirmação do autor, levantamos uma lista de alguns termos em
inglês que se referem às mulheres:
woman, lady, girl, girlie, lass, sister, bimbo, crack, broad, chick, babe, dame, doll, damsel,
crone, dish, honey, miss, nympho, skirt, sugar, toots, wench, hag, tramp, bag, bitch,
whore, tease, harpie, darling, sweetie, witch, ho, tart, vamp, squaw, angel, cookie, hussy,
gossip, airhead, dog, dyke, lebian;
e aos homens:
man, gent, boy, guy, fellow, gentleman, lad, brother, bloke, chap, codger, dude, geek,
geezer, nerd, schmuck, sport, stag, stud, hunk, jock, bum, buddy, wimp, jerk, creep,
redneck, bastard, prick, asshole, fairy, gay, faggot, motherf---er, queer.
Os excertos mostram como a mulher está representada dentro da esfera privada, com valor
atribuído por vocábulos que definem o feminino, nesta FD, como gracious, old-fashioned
woman, daughter of, married to e, portanto, implicitamente “mãe”.
Vejamos agora as palavras que definem o pai e o marido mencionados no artigo: Ontario
Liutenant-Governor, lawyer, won a famous victory, Liberal, federal cabinet minister, chief
justice, a financier, a Conservative MP.
Concordamos mais uma vez com Fowler (1991) quando afirma que, quando se trata de
política ou lei, os verbos de ação são muito usados nos textos jornalísticos. No excerto acima,
podemos perceber o uso dos verbos ativos won e ruled no trecho referente às realizações
masculinas, contrastando com as formas passivizadas de were legal persons e could not be
excluded, ligadas a fatos femininos.
Quando o texto se refere a homens, percebemos que estes se caracterizam pela ocupação e
pelo sucesso na vida pública. Podemos constatar que uma diferença na escolha das palavras
usadas para qualificar o gênero masculino e o feminino, o que produz o efeito de “naturalizar”
uma categoria reforçando a distinção entre os gêneros.
Para que o mundo possa significar, operamos pelas categorias pré-existentes em nossas
mentes, isto é, os valores atribuídos ao sujeito-mulher a personificam como certo modelo e
56
passamos a pensá-la de acordo com aquelas qualidades dadas, e não em termos individuais
(Fowler, 1991).
O texto was a great supporter of Metropolitan United Church / was also involved in
Liberal politics / but she developed an even bigger interest in the Student Christian Movement
mostra a importância da religião e da política na representação do sujeito. Podemos depreender
um narrador no enunciado, mas outras vozes implícitas no excerto: um enunciador diz que ela
se envolveu com política, mas outro afirma que ela teve um maior interesse pelo movimento
cristão de estudantes. Podemos afirmar, então, que várias vozes constituem esse discurso, isto é,
as falas não são apenas daqueles que falam - a este conceito damos o nome de polifonia. De
acordo com Brandão (1991:57):
Ducrot (1984), retomando o conceito de Bakhtin e operando-o num nível
lingüístico, vai mostrar, segundo a perspectiva da Semântica da Enunciação,
como num mesmo enunciado isolado é possível detectar mais de uma voz.
Ao enunciar “mas” o locutor sugere ao leitor que o sujeito-mulher tentou se engajar na
vida pública por meio da política liberal, a qual não teria despertado no sujeito do enunciado -
Mary - tanto interesse quanto a cristã, fortalecendo este segundo enunciado. Seguindo Fowler
(1991:16), a personificação é perigosa (grifo nosso); o mundo é organizado culturalmente pelas
categorias e não pelos indivíduos. A mídia, ao usar pessoas como símbolos, não discute questões
mais sérias como as econômicas e sociais, por exemplo. Assim, ao personalizar o sujeito, como
no texto analisado, através dos inúmeros detalhes da vida pessoal, o que fazemos é estabelecer a
pessoa enquanto um modelo construído de acordo com uma escala de valores e, portanto,
ideológico.
Observamos como a mulher está representada na formação discursiva em que os ideais
femininos da era vitoriana encontram-se claramente presentes. Mas, para um maior entendimento
desta mesma FD, utilizando o interdiscurso como instrumento de análise, encontramos um outro
discurso ou outra formação ideológica que atravessa o enunciado: o discurso feminista maternal
canadense.
57
Podemos perceber no excerto alguns valores do maternalismo canadense presentes na
enunciação, como os sentimentos de “piedade” e “pureza” que nos são apresentados como
qualidades eminentemente femininas.
Excerto 3:
She was also an active supporter of the arts, serving on the women’s committee of
the Art Gallery of Ontario, and she was a generous benefactor of her old college
at the University of Toronto. / ...Mrs. Jackman leaves her daughter Nancy, a
feminist, philanthropist and Tory politician, three sons, Hal, the Liutenant-
Governor, Edward, a Dominican priest, and Frederick (Eric), a psychologist, and
eight grandchildren.
O texto sugere que Mary seguiu os padrões ou princípios religiosos na sua vida pessoal,
principalmente no tocante ao papel reprodutivo destinado às mulheres de acordo com os preceitos
religiosos. O texto fala da Mary - mãe de quatro filhos e Mary - avó de oito netos. Percebemos
que a menção do número de filhos tem um valor, ou seja, “ser mãe” tem um significado, mas “ser
mãe de quatro”, tem outro, talvez o de que os filhos não foram evitados. O dever religioso da
reprodutividade estaria, por assim dizer, cumprido.
Podemos dizer que o sujeito-mulher, nesse caso, está representado como filha, esposa,
mãe, avó. Neste contexto, a sua identidade está aparentemente fixada. A representação da mulher
com ênfase no contexto familiar gera alguns efeitos como o de induzir o interlocutor a um
pensamento monolítico sobre a perpetuação do sujeito como modelo do ideal feminino vitoriano,
o que contribui para homogeneizar a categoria “mulher”. Então, “mulher” casa-se, tem filhos, é
graciosa, religiosa e preserva valores tradicionais familiares. É permitido a ela atuar na esfera
pública e, portanto, política, mas desde que preserve todos os ideais da maternidade e da vida
familiar, o que reforça o estereótipo da “super-mãe”.
Um efeito de sentido que o sujeito provoca ao falar dessa posição, é o de que a sociedade,
consensualmente e, portanto, hegemonicamente, é organizada de forma patriarcal e
heterossexual. Ser mãe, esposa, filha e avó são características “naturais” da experiência de ser
mulher.
58
Para finalizar, comparemos o obituário publicado no mesmo jornal em 16 de novembro de
1996, na mesma seção, com o obituário analisado. (Vide anexo 02).
ALGER HISS, 92, FELL FROM GRACE AS ACCUSED SPY THANKS TO NIXON.
NEW YORK (AP) – Alger Hiss, the patrician public servant who fell from grace in
a Communist spy scandal that propelled Richard Nixon to higher office, died
yesterday afternoon at the age of 92. / Hiss died at Lenox Hill Hospital in
Manhattan just four days after his birthday, said hospital spokesperson Jean Brett.
/ Hiss’ life can be neatly broken into two parts. The first was a stellar rise a
brilliant academic career, clerking for U.S. Supreme Court Justice Oliver Wendell
Holmes, a series of important posts in the New Deal the welfare initatives
created to solve the Depression and the foreign policy establishment, foundation
work. / Then, on Aug. 3, 1948, a rumpled, overweight magazine editor named
Whittaker Chambers alleged that 10 years earlier, Hiss had given him state
department secrets which Chambers, in turn, passed to the Soviet Union.
HIDDEN MICROFILM
At the end of the investigations and trials that followed, after spetacular
developments involving microfilm in a hollowed-out pumpkin and an ancient
typewriter, Hiss was convincted of two counts of perjury and imprisoned for three
years and eight months. / For the rest of his life, he worked for vindication, both
in court and in the court of public opinion. / He proclaimed that it had come
finally in 1992, at age 87, when a Russian general in charge of Soviet intelligence
archives declared that Hiss had never been a spy, but rather a victim of Cold War
hysteria and the McCarthy Red-hunting era. / During the decades of controversy,
such conservatives as William F. Buckley Jr. backed Chambers and felt justice
was served by jailing Hiss. / Hiss’ establishment credentials were impeccable: He
attended private schools, then Johns Hopkins University and Harvard Law
school. After three years in private law practice in Boston, Hiss joined the New
Deal. / He left government at the end of 1946 to take the presidency of the
prestigious Carnegie Endowment for International Peace.
Como o leitor pode constatar não no texto uma única referência à vida familiar de
Alger Hiss, mas apenas ao seu “sucesso” na vida pública.
No próximo tópico analisaremos as representações de mulheres profissionais que
“contribuíram para o desenvolvimento profissional ou influenciaram positivamente outras
mulheres”, de acordo com o texto jornalístico. Trata-se de prêmio de reconhecimento concedido
pelo grupo feminista Older Women’s Network - OWN para mulheres profissionais com mais
idade.
59
1.1 Contexto profissional
Artigo 2: publicado no jornal The Toronto Star, em 21 de setembro de 1998, na seção
“Life”. (Vide anexo 03).
Excerto 1:
ADVOCACY GROUPS HONOURS OLDER WOMEN (by Nancy J. White)
At the Hockey Hall of Fame, Irma Coucill, a white-haired 80-year-old
grandmother, smiles up at her boys –Gordie Howe, Bobbie Orr, Rocket Richard.
The portrait artist is intimately familiar with all the hockey greats’ faces, their
smiles, wrinkles, scars./ Oh, I put in the scars. The scars are their trophies”,
jokes Coucill, standing by the rows of portraits on the Honoured Members’ Wall. /
Since 1958, Council has painted 315 portraits of players, owners, officials for the
Hall of Fame.../ ... She’s one of six women, aged 57 to 80, to be honoured with
achievement awards by the Older Women’s Network (OWN), a feminist advocacy
group... The other award winners are Dr. Ricky Schachter, a leading
dermatologist; Alda Arthur, a business-woman and activist; chemical engineer
Carole Burnham and educators Hazel Andrews and Madaline Wilson...In
choosing its honorees, the group looked for those who enhanced the lives of other
women, were advocates or mentors for women and children, had broken new
ground or barriers, or achieved success in their field.
Primeiramente, notamos que o artigo está publicado na seção “Life do jornal, que
normalmente trata de assuntos cotidianos como estilos de vida, horóscopo, receitas culinárias,
aconselhamento, etc. A publicação do artigo na seção “Life” tem a ver com a ênfase dada à
família e à vida familiar do sujeito-mulher. Assim, parece natural que um artigo sobre profissões
de mulheres seja publicado na seção do jornal que enfoca problemas cotidianos e estilos de vida.
A mulher profissional está representada a partir de estilo de vida, sendo valorizada quando
consegue enquadrar a profissão dentro da vida familiar. Implicitamente, entende-se que a
carreira profissional não deve interferir na vida pessoal e familiar das profissionais.
No excerto 1, a sentença a white-haired 80-year-old grandmother já posiciona o sujeito
dentro do contexto familiar passando a imagem da avó de 80 anos e de cabelos brancos, a qual se
contrapõe a uma imagem pública de “profissional”. Dificilmente associaríamos a imagem de uma
avó à de uma profissional brilhante. Em Dr. Ricky Schachter, a leading dermatologist; Alda
60
Arthur, a business-woman and activist; chemical engineer Carole Burnham and educators Hazel
Andrews and Madaline Wilson...as mulheres parecem estar com as suas identidades definidas
como mulheres profissionais.
Excerto 2:
Dr. Ricky Schachter, 79, has certainly achieved success...The Toronto physician
has won many honours, including the Order of Canada and the RoseHirschler
Award, named for the first female dermatologist in the United States. Entering the
male-dominated medical profession in the 1930s wasn’t easy for Schachter. The
dean of medicine at the University of Toronto, she says, told her he had no place
for her because she had “two congenital anomalies: I was a woman and I was
Jewish.” But, over the years, the mother of two gained respect in the male
medical world.
Percebemos que nesse excerto 2, com a descrição de cada uma das vencedoras, além dos
detalhes relativos à vida profissional, são fornecidos “gratuitamente” para o leitor detalhes da
vida pessoal e, apesar de a matéria tratar especificamente das conquistas profissionais das
mulheres, estas estão relacionadas com o contexto familiar. É interessante a escolha das palavras
na construção do sentido: foi a “mãe de dois” que ganhou o respeito profissional no mundo
médico.
Mills (1998), citando o trabalho de Fowler, lembra que o uso das estruturas lingüísticas
está relacionado com o lugar do texto dentro do sistema sócio-econômico e, portanto, a escolha
de certas palavras em detrimento de outras não tem a ver necessariamente com uma escolha
pessoal, individual. Na verdade, as escolhas são determinadas por forças sociais operantes.
Podemos dizer, assim, que as interpretações existem antes da produção dos textos.
Any texts embodies interpretations of its subject, and evaluations based on the
relationship between source and addressee. Those interpretative meanings are not
created uniquely for the occasion. The systematic use of these linguistic structures
is connected with the text’s place in the socio-economic system, and hence they
exist in advance of the production of text and our reception of it. (Fowler et al.
1979:185)
61
Percebemos que o uso das palavras no excerto 2 tem a função de consolidar a identidade
feminina dentro das relações familiares, mantendo convenientemente o gênero feminino no papel
de mãe e preservando seu lugar social.
Excerto 3:
The theme running through Alda Arthur’s life is helping women. In 1982, she
founded the Association of Black Business Women and in 1984 started a monthly
newspaper, Women in Business...Arthur, a former counsellor at the Addiction
Research Foundation and owner of a woman’s clothing boutique, currently cares
for her two grandchildren during the day, is a trustee of her church and works on
the Older Women’s Network's female abuse committee. The other two winners are
Hazel Andrews, 59, and Madaline Wilson, 57, both retired teachers...Andrews,
mother of two, has been active in anti-violence campaigns in her
community...Wilson, who has four children, has served as a board director for a
battered women’s housing group. “What got me in activities,” says Andrews, is
others faith in me, other women drawing me in.”
Observamos, com a descrição das outras ganhadoras, que a contextualização da vida
familiar é recorrente.
Excerto 4:
Carole Burnham is also a female pioneer in her field, chemical engineering. At
McGill University in 1961, she was the only woman studying that area and
graduated first in her class. “I had a real desire to understand how things
worked,” says Burnham, 58, about choosing her field. There were career
roadblocks along the way one prospective employer told her flatly he wouldn’t
hire her because she was a woman. But Burnham went on to be named the director
of the environment at Ontario Hydro, becoming, she says, the first woman
director, a level just below vice-president. Burnham, now a director with a
consulting engineering company, speaks to women’s groups about her
experiences, advises young female graduates and is active in professional and
trade groups.
Surpreendentemente, percebemos que, nesse excerto 4, houve uma quebra no padrão que
vinha sendo seguido. Deparamos com Carole dentro de um contexto exclusivamente profissional
62
e bastante ênfase no fato de ela ser mulher entre homens o que, paradoxalmente, nos leva a
suspeitar do porquê do silenciamento sobre a sua vida pessoal e familiar.
A matéria de duas páginas traz as fotografias de Rick Schachter, branca, judia, mãe de
dois filhos; a de Irma Coucill, branca, avó; e de Alda Arthur, negra e avó. Hazel Andrews, mãe
de dois filhos, e Madaline Wilson, mãe de quatro filhos, não estão nas fotografias. Carole, além
de não estar nas fotografias também não está definida dentro do contexto familiar, havendo
referências exclusivamente ao aspecto profissional. Por quê? (Vide anexo 03)
Uma primeira hipótese é a de que o locutor-jornalista não tinha a informação disponível.
Uma segunda hipótese é a de que Carole não tinha família, ou pelo menos não tinha uma família
dentro dos moldes tradicionais. Uma terceira hipótese é a de que ela não representava o ideal
feminino, ou seja, não era mãe, casada, heterossexual.
É curioso o fato de diferentes categorias de mulheres terem sido representadas: há a
mulher branca, a judia, a negra, todas “mães”, sem que nenhuma menção fosse feita à categoria
das mulheres homossexuais. O fato desperta interesse uma vez que as representações constatadas
parecem ilustrar a diversidade feminina ou incluir todas as categorias de mulheres. Constatamos
que foi excluída pelo menos uma identidade feminina: a da mulher lésbica.
Veremos agora como um texto que aparentemente representa a mulher de uma maneira,
diremos, masculina, pois inteiramente enquadrada no “mundo dos negócios”, também está
comprometido. O artigo foi publicado na seção “Business”, e não na seção “Life”, como
geralmente ocorre quando a matéria jornalística se refere à mulheres.
Artigo 3: publicado no jornal The Toronto Star em 8 de março de 1998, na seção “Smart
Money” do encarte “Your Business”. (Vide anexo 04).
Excerto 1:
SHE JUST DID IT BOUGHT NIKE JOYCE EISEN SAYS THE BLOODIED
STOCK LOOKS GOOD (Choice Portfolios, by David Cruise e Alison Griffths)
Six months ago, when Joyce Eisen started investing her Stars and Stripes portfolio,
any experts were saying that American blue chips were overbought and there was
no value to be had. Today, they’re saying the same thing as the Dow Jones
industrial average surges to new records. Eisen ignored them and has quietly
piloted her portfolio to a tidy 20 per cent gain, find value where none supposedly
63
existed. She has done so well she has to rebalance her holdings...she feels that
Nike is positioning itself better ...She particularly likes moves by the company to
re-focus its attention away from its tradition products and more toward
apparel...We need to look as far as our daughters’ feet to know the truth of what
the pundits speak. For years neither wore anything but mini-Michael Jordan’s,
but they are now bored with the same old clodhoppers that haven’t changed much
in a decade...Both are saving their pennies for what looks suspiciously like a
cooler version...
O texto discorre sobre o sucesso profissional e, portanto, contextualiza o sujeito em
relação a uma esfera pública. Mas, atentemos para o final do texto. Em We need to look as far as
our daughters’ feet to know the truth, percebemos que mais uma vez, apesar da palavra “mãe”
não ter sido utilizada, a profissional não escapou da contextualização de uma situação familiar.
Nas sentenças our daughter’s feet / they are now bored e both are saving / o leitor é informado
que o sujeito-mulher é mãe de duas filhas.
Depreendemos também que, implicitamente, o enunciado sugere a importância da
experiência familiar para o mundo dos negócios. Em We need to look as far as our daughters’
feet to know the truth of what the pundits speak, “aprendemos” através da experiência da mulher-
profissional que, para se fazer um negócio milionário, é necessário somente olhar para os pés das
filhas, isto é, a “verdade” que os especialistas conhecem é confirmada pela experiência familiar
da mulher-profissional, a qual é “guiada” pela família no mundo dos negócios e na sua realização
profissional. A experiência familiar seria, então, fundamental para o conhecimento da “verdade”.
Para efeitos comparativos, o nosso próximo excerto é um artigo publicado também no
encarte “Your Business”, na seção “Business Today do mesmo jornal em 20 de outubro de
1999. (Vide anexo 05).
Excerto 2:
MUNK MAY BAIL OUT TRIZECHAHN HOLDERS
Real State Giant Could Go Private, Chairman Says – From Canadian Press
Peter Munk, chairman of TrizecHahn Corp., confirmed yesterday that he is
considering taking his giant real estate company private. Munk told reporters in
Toronto that he is willing to do whatever is necessary to increase shareholders’
value in the company.The Toronto financer said although TrizecHahn has
“performed exceptionally well” over the last three years, the market has not been
64
kind to its share(...)Munk said the market “has not behaved, has not responded to
what we’ve done. We have a fabulous array of assets; our cash level has more
than doubled over the past three years.” Munk promises to do everything in his
power, and to explore every option, to increase investors’ value(...)
Como podemos verificar, não há uma única menção à vida pessoal ou familiar de Munk: o
texto termina sem que saibamos qualquer informação sobre o seu status pessoal, se é casado, se
tem filhos, etc. Nesse excerto, não se alude à importância da vida familiar no mundo dos
negócios, na vida profissional, importância esta atrelada à identidade feminina e não à masculina.
A falta de detalhes pessoais e familiares da vida do homem-profissional se deve ao fato de
que a identidade masculina é vinculada à esfera pública, não à privada. A vida familiar é
aparentemente fundamental para a atuação da mulher-profissional no mundo dos negócios, mas o
mesmo não ocorre com o homem-profissional, para o qual as relações familiares não têm tanta
importância. Então, podemos dizer que existem dois mundos dos negócios: um masculino e outro
feminino.
2. SEXUALIZAÇÃO
2.1 Erotização – A Mulher-Atleta
Como já discutido anteriormente, para Foucault (2001), a construção da sexualidade se
pela utilização de uma das estratégias que formam as relações de poder e saber em torno do sexo,
qual seja, a histerização do corpo feminino, isto é, o corpo da mulher se sexualizou por causa da
sua capacidade reprodutora. Na visão do autor, a prática social de silenciamento sobre a
sexualidade acabou criando um discurso em torno da reprodução, fazendo com que, na verdade, a
sexualidade se tornasse um tema onipresente.
Foucault (op.cit.), considerando o corpo e, conseqüentemente, a sexualidade como
historicamente construídos nas relações de poder, identifica-os como o locus direto do controle
social. Nas palavras de David Spurr (1993:170), a preocupação de Foucault se encontra em saber
como o corpo é construído como um signo erótico e (re)produtivo no discurso da sexualidade.
65
Nos textos jornalísticos, a sexualização se manifesta em matérias que retratam a mulher
como objeto, isto é, que associam a imagem feminina a um produto para fins de venda ou que
utilizam os corpos femininos para atrair a atenção do consumidor. Observe-se o próximo texto.
Artigo 4: publicado no jornal National Post em 18 de junho de 1999, na seção “Sports
Television”. (Vide anexo 06).
Excerto 1:
CROWDS, HYPE, REFS ALL A TAD THINNER FOR WOMEN’S SOCCER
Even comentators won’t have to go far to notice differences (by Chris Cobb)
During the Women’s World Cup of Soccer beginning this weekend, a so-called
Technical Study Group will be analyzing the games and attempting to isolate the
differences, and similarities, between the male and female versions of the game.../
In the men’s game, pressure to succeed is sadly immense and the rewards for
doing so enormous. The women’s game is light years away from that so we’re
unlikely to see any punch-ups or excessive use of red cards. Women tend to play
fast and hard but not dirty – in soccer, at least.
O artigo em questão, publicado na seção de esportes, trata das diferenças entre o futebol
masculino e o feminino. A manchete informa que o futebol feminino não conta com o mesmo
número de torcedores nem com o mesmo entusiasmo do futebol masculino. A sentença Even
comentators won’t have to go far to notice differences sugere que, para o locutor, as diferenças se
encontram de tal maneira à mostra, que não seria necessária uma análise feita por parte de um
grupo especializado, uma vez que “até” os comentaristas podem dar um parecer sobre as
diferenças entre o futebol masculino e o feminino.
De acordo com Maingueneau (2002), a enunciação irônica apresenta a particularidade
de desqualificar a si mesma, de se subverter no instante mesmo que é proferida. Para ele, a ironia
é um caso de polifonia porque o enunciador expressa a fala de um outro, desqualificado, ao qual
se atribui a responsabilidade pela fala. A ironia é ambígua, porque encontra-se entre o que é
assumido e o que é rejeitado.
O jornalista usa de uma frase irônica para reforçar a imagem da fotografia que mostra a
atleta - jogadora de futebol - Brandi Chastain, nua, calçando um par de tênis de marca conhecida
mundialmente, segurando uma bola de futebol (vide anexo 6). Em nossa pesquisa, constatamos
66
também que é comum as fotos na imprensa retratarem as atletas femininas em situações que não
têm relação direta com o esporte praticado. No caso da fotografia de Brandi, o tipo de calçado
que veste e a bola que segura - os objetos “à venda” (além da própria nudez da esportista) -
parecem ser a única referência ao fato de ela ser uma atleta do futebol.
Em estudos realizados por Pat Griffin
2
fica demonstrado que as mulheres-atletas são
retratadas em “poses hipersexualizadas”, isto é, as mulheres-atletas não são somente
feminilizadas, mas sexualizadas. De acordo com a estudiosa:
Instead of hearing, ‘I am a woman, hear me roar,’ we are hearing ‘I am
hetero-sexy, watch me strip.’
De acordo com Holste,
3
correspondente do Women’s e News, Griffin entende que a
cultura do esporte masculino gerou uma mensagem cultural rígida quanto aos papéis sexuais
binários. As mulheres estão subordinadas aos homens e, portanto, não podem ser retratadas em
posição de igualdade com relação a eles. Ainda de acordo com Griffin, a mulher-atleta “deve”
falsamente se enquadrar na categoria heterossexual e não na homossexual. A hipersexualização
da atleta funciona, então, para normalizar o papel feminino no esporte. A mulher-atleta é
“colocada em seu lugar”, não representando assim nenhuma ameaça (grifo nosso) à supremacia
masculina no esporte.
O artigo está voltado para as diferenças entre os gêneros e tenta fixar essas diferenças
como “verdades”, o que contribui para reforçar estereótipos. Um exemplo são as asserções abaixo
geradoras de um processo argumentativo que limita os sentidos. Vejamos como as características
masculinas são identificadas ao futebol: In the men’s game, pressure to succeed is sadly immense
and the rewards for doing so enormous. The women’s game is light years away from that so
we’re unlikely to see any punch-ups or excessive use of red cards.
Na oposição binária succeed / not succeed, podemos reconhecer que o futebol feminino
está fadado ao “insucesso” uma vez que para as mulheres não a característica masculina da
2
GRIFFIN, Pat. Media Coverage of Women and Women’s Issues – http://www.media-awareness.ca – acesso em
27/03/2005.
3
HOLSTE, Glenda Crank (2000). Women Athletes Often Debased by Media Images –
http://www.womensenews.org/article acesso em 27/03/2005.
67
pressão para o “sucesso”. Parece que uma tentativa de revelar/fixar o caráter “delicado” da
mulher através da descrição do jogo feminino. Quando o locutor-jornalista diz que não haverá
uso excessivo de cartões-vermelhos, ele está sugerindo que o futebol feminino é “café-com-
leite”, um jogo de exibição, sem a validade do jogo masculino ou, em outras palavras, esse
esporte é uma aventura masculina e não feminina.
Mas, se existe o cartão vermelho - a agressividade feminina existe. Então, como se pode
representar as mulheres como “delicadas” e “femininas” se se mostra a mulher como
“agressiva”? Em outras palavras, o locutor-jornalista “feminiza” o futebol em consonância com
um discurso do final da década de 1930, época em que, preocupados com a inclusão progressiva
das mulheres nos times esportivos e nas competições, os profissionais da área e os comentaristas
esportivos pregavam a separação dos esportes por gênero - masculino ou feminino - de maneira
que se pudesse, para o caso das mulheres, limitar o jogo que fosse considerado agressivo e mudar
as regras existentes (Status of Women Canada).
O Canadian Association for the Advancement of Women, Sports and Physical Activity
nos informa que as mulheres atletas contam com 3% das coberturas jornalísticas sobre esportes
nos principais jornais canadenses e que, de acordo com pesquisas realizadas por Duncan and
Messner,
4
97% dos comentaristas esportivos - que são homens - usam uma linguagem diferente
quando se referem às mulheres-atletas. Homens, por exemplo, são descritos como big, strong,
brilliant, gutsy, e aggressive enquanto as mulheres são descritas como weary, fatigued,
frustrated, panicked, vulnerable e choking. Também foi constatado que as mulheres são
chamadas pelo primeiro nome mais vezes do que os homens. Duncan considera que essa prática
infantiliza as mulheres-atletas; o status de adulto ficando reservado para os homens brancos
(grifo nosso) atletas.
Excerto 2:
Women have played soccer internationally for 30 years but it was only in 1991
that FIFA, the game’s international governing body, threw its all-important
weight behind the game. The U.S. captured the first title in China eight years ago
and were dislodged in Sweden in 1995 by Norway. / In North America, soccer is
the most played game among young people of both sexes but hits a brick wall at
4
DUNCAN, Margaret Carlisle e MESSNER, Michael estudaram a cobertura de notícias sobre esportes em três redes
afiliadas de Los Angeles.
68
the professional level when it becomes overshadowed by the traditional pro
games such as football, baseball, hockey and basketball, which suck most of the
TV revenues, attract the big audiences and are surrounded by the most hype.../
This tournament will represent the best exposure yet for women’s soccer. When
the FIFA study group completes its analysis, it may well decide that comparing
the men’s and women’s game is self-defeating. Like hockey, the two are destined
to exist in different sporting universes. / That doesn’t mean one is better than the
other. But like men and women, they are different.
Diante do trecho Women have played soccer internationally for 30 years but it was only
in 1991 that FIFA..., podemos nos perguntar por que somente depois de 30 anos o futebol
feminino mereceu a atenção da FIFA. Será que a resposta reside no fato de a década de 1990 ter
vivenciado um momento “politicamente correto”? Assim sendo, não levar em conta a
“igualdade” sexual não seria uma má idéia?
Uma vez mais, o que está em discussão são as diferenças entre homens e mulheres. O
jornalista afirma que não adianta comparar o jogo feminino ao masculino ou as mulheres aos
homens, pois não se chegará a conclusão alguma uma vez que ambos (co)existem em universos
diferentes, ou seja, não interagem. Assim como no mundo dos negócios, podemos constatar que
no esporte também o mundo feminino está separado do masculino e, portanto, não são iguais.
A voz que o enunciador traz é a de um discurso patriarcal onde os valores masculinos
estão distanciados dos femininos. Aos homens cabem determinadas características consideradas
masculinas como sucesso profissional, perseverança, agressividade e reconhecimento público, ao
passo que às mulheres cabem características como a passividade, docilidade e o maternalismo.
É interessante notar que a foto escolhida para ilustrar a matéria é a de uma jogadora
fisicamente forte, nua, vestida apenas com uma par de tênis e maquiada. Nessa foto (que poderia
ser classificada como soft porn), se celebra a aparência da jogadora e não propriamente a sua
capacidade como atleta, isto é, o que a ganha a atenção não é o esporte feminino, uma vez que a
mulher-atleta não está representada praticando o esporte. O foco está na imagem hiper-
sexualizada da mulher.
De acordo com Holste,
5
as imagens das atletas mostradas nas principais mídias passaram
de hiperfeminilizadas a hipersexualizadas. Normalmente, as mulheres-atletas são representadas
5
HOLSTE, Glenda C. Correspondente do Women’s e news (WE) no artigo Women Athletes Often Debased by Media
Images – 10/07/2000, http://www.womensenews.org/article.cfm?aid=310 – acesso em 27/03/2005.
69
como banais, românticas ou hipersexualizadas, de acordo com a autora, porque, de outro modo,
poderiam representar uma ameça ao esporte masculino. A correspondente Mary Jo Kane
6
nos
informa que as mulheres são rotineiramente mostradas fora das quadras ou dos campos de
esporte, sem uniformes e em poses super-sensuais, como já visto anteriormente. Uma das funções
dessa exposição, de acordo com a jornalista, é a de afastar a idéia de que as atletas possam ser
lésbicas, o que representaria uma forma de competição com os atletas masculinos.
De acordo com artigo do Status of Women Canada, Adult Fact Sheet: Women and Sports
in Canada An Historical Overview,
7
esportes e jogos eram parte integrante da cultura
aborígene para homens e mulheres. No século XVII, com o estabelecimento da Nova França, as
colonas não tinham muito tempo para se dedicarem à pratica de esportes, apesar de as mulheres
da elite cavalgarem e aprenderem danças como atividade física. Parafraseando o artigo, as
mulheres estavam limitadas pelos espartilhos, saiotes, pelas saias volumosas e pelas concepções
vitorianas, segundo as quais as mulheres eram física e mentalmente frágeis.
Podemos concluir que as mulheres não tinham acesso a muitas atividades físicas.
Algumas mudanças, começaram a ocorrer pelos idos de 1870, na chamada primeira fase do
feminismo. As mulheres lutavam pelo direito ao voto e também pela criação de parques e
programas recreacionais para as crianças e pela melhoria da saúde pública, o que lhes permitiu o
acesso a certas atividades físicas.
Aos poucos, elas também passaram a ser admitidas, como associadas e espectadoras, nos
exclusivos clubes esportivos urbanos nos quais os maridos e os pais eram sócios praticantes de
esportes, como o golfe, o curling
8
e o tênis. Como consequência, foram criadas associações
femininas.
Outro fator importante para o acesso feminino ao mundo dos esportes foi a invenção da
bicicleta que tanto revolucionou a moda feminina quanto forneceu às mulheres outro meio de
locomoção, o qual as deixava mais independentes.
6
KANE, Mary Jo -Director of the Tucker Center for Research on Girls & Women in Sport – University of
Minnesota.
7
Women’s History Month 2002 – www.swc-cfc.gc.ca/dates/whm – acesso em 2004.
8
De acordo com o The New Lexicon Webster’s Encyclopedic Dictionary of the English Language – Canadian
Edition – curling significa “a game playing on ice by sliding curling stones across a rink towards a target circle”.
70
As more women became physically active, however, the medical profession
issued warnings against women’s vigorous physically activity, especially for
teenage girls, claiming it was likely to disturb their menstrual cycles or causes
damage to their reproductive systems. (Women’s History Month 2002 An
Historical Overview – Status of Women Canada)
No começo do século XX, as escolas introduziram o basketball e o ice hockey. Com o
advento da Primeira Guerra Mundial, com as mulheres participando ativamente do mercado de
trabalho, muitas começaram a procurar atividades recreacionais. Muitos times femininos jogavam
para levantar a moral e para arrecadar dinheiro para a guerra, o que se repetiu na Segunda Guerra
Mundial. De acordo com o artigo, o final da década de 1920 contou com várias colunistas que
escreviam nos maiores jornais e revistas canadenses sobre as mulheres no esporte. Aos poucos,
influenciadas pelos americanos, as profissionais da educação física, juntamente com os jornalistas
esportivos, procuraram defender no Canadá uma “feminização” no esporte, temendo que as
mulheres atletas estivessem se tornando “masculinizadas”.
Depois da Segunda Guerra Mundial, como visto, a dia passa a representar a mulher
como a rainha do lar: às mulheres agora cabia a vida doméstica e a feminilidade, inclusive no
esporte.
Beauty-producing sports which featured grace and “femininity,” like gymnastics,
figure skating and synchronized swimming, as well as individual sports like
skiing, tennis, badminton and golf, which was perceived as less “sweaty,” became
the ideal for women’s participation in sport. (Women’s History Month 2002 An
Historical Overview – Status of Women Canada)
Se nos orientarmos pelos últimos trabalhos de Foucault (2001) sobre a subjetividade e
problematizarmos o sujeito, podemos entender como a categoria “mulher” é sujeito e assujeitada
aos regimes de verdade sobre a feminilidade, que a insere em discursos e em instituições nos
quais o poder é exercido através da linguagem, como na mídia, por exemplo.
2.2 Infantilização: A Mulher Negra Atleta
Pudemos constatar pelo artigo anterior a imagem da mulher-atleta atrelada a de uma
beleza hipersexualizada. O texto e a imagem fotográfica revelou a atleta fora do contexto do
71
esporte, o que nos parece ser fato comum na representação das atletas pela mídia. A nossa
pesquisa também mostra que a mídia representa as mulheres, de maneira geral, como mães e
esposas, o que funciona para silenciar ou marginalizar certas identidades femininas, como a das
lésbicas.
Juntamente com a natação e o golfe, como visto, o tênis é um esporte considerado
“feminino”. Vejamos como acontece a representação da mulher-atleta pertencente à minoria
visível, isto é, uma atleta negra (vide anexo 07).
A fotografia apresentada mostra a atleta em campo, praticando o esporte. A matéria foi
publicada na seção de esportes e não na que se refere a estilos de vida, comum na representação
da mulher profissional ou atleta. Serena Williams, uma atleta negra, transmite uma imagem
feminina ligada à força e à vitória. É a imagem de uma mulher poderosa e, portanto, uma imagem
positiva.
No entanto, a legenda nos deixa saber que Serena was a straight set loser. O
substantivo loser, em inglês, se refere a alguém ou alguma coisa que perde, além de, no jargão do
tênis, nomear a jogada que não ganha pontos.
9
Assim, como será interpretada a frase Serena was
a straight set loser... Williams é uma “perdedora” ou a frase se refere à jogada perdida por ela?
Artigo 5: publicado no jornal National Post, em 7 de setembro de 2000, na seção
“Sports”.
Excerto 1:
ALL-WILLIAMS FINAL DENIED BY DAVENPORT – Defending Champion Out
Serena Williams fractured her racket on the court as her game fell apart, and
Lindsay Davenport emerged from the shadows as a forgotten former champion to
a berth in the U. S. Open semi-final. / Williams, the defending champion who was
so eager to meet her sister, Venus, in the final, succumbed to her own
impatience.../ The 1998 champion never fell for all the hype over a Williams
sisters final, never worried about her record against Serena five straight losses
over three years. / “That’s the best she ever played against me,” Williams said.
“She should take that attitude toward everyone.”.../... Davenport knew she could
beat Williams if she could hold serve, keep the pressure on her and pin her to the
baseline /...and Williams finally cracked...slapping forehands long on the final
two shots of her service game and screaming in frustration as she was broken. /
Williams rapped her racket on the court, but not nearly as hard as she did in the
9
The New Lexicon -Webster’s Encyclopedic Dictionary of the English Language Canadian Edition – 1988.
72
next game when she netted a backhand for a second set point. The racket frame
broke this time, leading to an automatic code violation for racket abuse, and for
all practical purposes her game was undone, too. /...and take 4-0 lead in the
second set as Williams lost control of her shots. It wasn’t a case of Williams
simply missing close shots. She was too excited, too caught up in trying to blow
Davenport away with power, and she never found a backup plan.
Ao observarmos as asserções fractured her racket on the court as her game fell apart /
was so eager to meet her sister, ... succumbed to her own impatience / finally cracked / slapping
forehands long and screaming in frustration as she was broken rapped her racket on the court /
as Williams lost control of her shots /, não podemos deixar de fazer uma analogia sobre o olhar
que o “branco” colonizador tem do “negro” colonizado.
De acordo com Spurr (1993:105), Georges Hardy, ideólogo do colonialismo francês,
reconhece seis características da mente africana: a falta de memória; a falta de senso de justiça, a
incapacidade de julgamento e de abstração, a incapacidade de esforço prolongado, o respeito
somente pela força e o instinto comunitário. Spurr define as cinco primeiras características do
africano, apontadas por Hardy, como “falta” ou “limitação”; a sexta característica implica a
negação da consciência subjetiva do africano, o qual não conseguindo operar no nível individual,
necessitaria do apoio e da autoridade do grupo social.
Lyde, outro autor citado por Spurr (op. cit.:162), tem a seguinte explicação para a
“inferioridade” negra: as condições climáticas dos trópicos. De acordo com Lyde, essas
condições produzem elementos minerais e ossificadores que petrificam a estrutura cranial,
impedindo o crescimento cerebral, interrompido depois de alcançado determinado limite. Com
isso, o desenvolvimento intelectual é prejudicado e os negros - aqueles que vivem nos trópicos -
não atingem o estágio adulto da consciência da dignidade e do auto-respeito.
Portanto, os negros seriam mentalmente comparáveis às crianças. Quando voltamos ao
excerto, podemos notar que as características atribuídas à jogadora de tênis são “infantis”: a
teimosia, a indisciplina, a violência e a rebeldia. Tais atributos são vistos como parte de uma
essência, como naturais na minoria negra. Podemos nos remeter ainda a Spurr (op.cit.:167)
quando diz que:
73
...primitive peoples reside with nature at one end of a historical continuum that
measures the difference between nature and culture, instinct and reason, savagery
and civilization. The evident lack of history attributed to primitive or non-
Western peoples confirms, within this dicourse, the truth of history as the process
by which human society becomes rational and productive.
Relembramos que, durante a expansão colonial, o Ocidente construiu outras culturas
como a do outro, que é diferente da norma, que não é a norma. Essas culturas não foram
representadas só como diferentes, mas também como negativamente diferentes (Said, 1978).
Então, temos os “outros”, descritos pelos europeus do século XIX - aqueles europeus que tiveram
contato com outras culturas através da expansão imperialista - como bárbaros, selvagens, não-
civilizados e preguiçosos, em oposição aos civilizados e racionais ocidentais.
Em She was too excited, too caught up in trying to blow Davenport away with power, and
she never found a backup plan, notamos a construção do binarismo emoção/razão onde
normalmente a emoção é relacionada com o feminino e a razão, ao masculino. Essa oposição
binária reforça a idéia da falta de civilidade e de racionalidade do sujeito-atleta, incapaz de traçar
uma estratégia para ganhar a competição. Em outras palavras, a atleta não teria inteligência
suficiente para ganhar o jogo.
No texto jornalístico a mulher está representada de acordo com o estereótipo do negro
violento e irracional, o que é reforçado pela voz do sujeito da enunciação. Como visto, o
estereótipo é a fetichização da ausência. A ansiedade gerada pela ausência de certa característica
leva à necessidade de criar o estereótipo. Trata-se de uma tentativa desesperada de esquecer a
ausência. Os estereótipos precisam reforçar, por exemplo, que o português é burro, o negro é
inferior e a mulher não é agressiva. A necessidade de enfatizar o estereótipo torna positivo algo
que está ausente. O fetichismo, como veremos mais detalhadamente, é o jogo onde se pressupõe a
percepção anterior da falta e a necessidade de supri-la. É preciso criar o estereótipo como uma
compensação do que está faltando.
A idéia da mulher submissa, por exemplo, é um estereótipo criado para deixar claro que
ela não deve ter o poder masculino, visto que se o tivesse, seria uma ameaça. Desse modo, o
estereótipo da mulher submissa é constantemente (re)criado. Assim, fetiche não é a marca da
ausência, mas é uma lembrança constante de que a ausência é apenas fictícia. Como demonstrado
por Hall (1997:267):
74
Fetishism, as we have said, involves disavowal. Disavowal is the strategy by
means of which a powerful fascination or desire is both indulged and at the same
time denied. It is where what has been tabooed nevertheless manages to find a
displaced form of representation. As Homi Bhabha observes, ‘Its is a non-
repressive form of knowledge that allows for the possibility of simultaneously
embracing two contradictory beliefs, one official and one secret, one archaic and
one progressive, one that allows the myth of origins, the other that articulates
difference and division’ (1986a, p. 168).
O fetichismo, então, para Hall, é a estratégia para representar e para não-representar o
objeto de prazer e o desejo que é tabu, perigoso ou proibido. Ao lançarmos outro olhar sobre a
fotografia de Williams, após a interpretação do texto jornalístico, uma imagem de força
destrutiva, e portanto perigosa, se (re)apresenta. Agora, a imagem fixada na fotografia é a de uma
criança teimosa e briguenta, em vez da imagem feminina “forte” do primeiro momento.
De acordo com Miller and Prince,
10
somente doze fotografias de profissionais
pertencentes à categoria “minoria” foram publicadas em seis dos maiores jornais canadenses de
língua inglesa no período de uma semana e 27 na seção de “estilo de vida”. Os autores afirmam
que este fato prova que as minorias não representam as suas comunidades. Em contraposição, as
fotos de atletas da “minoria visível” foram contabilizadas em 149, dentro do mesmo período de
tempo.
Os autores ainda ponderam que, apesar de ser positiva a representação da minoria visível
em fotografias, esta tem duas vezes mais chances de ter a sua imagem publicada nos periódicos
por causa de conquistas realizadas ou por notoriedade e não por participar da vida social e
política cotidiana.
2.2.1 A Executiva Girlish
Apesar de as fotografias retratarem as minorias de uma maneira considerada favorável,
positiva, muito provavelmente um membro das minorias terá a sua fotografia publicada nos
jornais por alguma realização ou empreendimento alcançado, ou por ser uma figura de destaque,
10
MILLER, John e PRINCE, Kimberly. The Imperfect Mirror – Analysis of Minority Pictures and News in Six
Canadian Newspapers – http://www.meda-awareness.ca/eng/issues – acesso em 2/12/2002.
75
como um(a) atleta, por exemplo, mas não por participar da vida política, econômica e social
cotidiana, de acordo com os estudos realizados sobre as minorias em jornais canadenses.
De acordo com Fowler (1991), o recurso da personificação é muito utilizado na narrativa
jornalística, uma vez que proporciona um processo emotivo de identificação entre a capacidade
de comunicar a experiência da injustiça e a sua reparação e as experiências diárias vividas pelo
público.
Lembramos Carmagnani (1996), quando diz que os fatos serão melhor compreendidos, se
forem atribuídos a uma pessoa, ao invés de instituições ou outro tipo de sistema. Podemos
perceber que o leitor é induzido a não suspeitar das representações apresentadas e a “congelar” as
imagens estereotipadas.
Passamos a analisar a representação da mulher-profissional pertencente a uma sub-
categoria dentro da categoria de “minoria visível” canadense, isto é, como é construída a
identidade feminina da mulher imigrante.
Artigo 6: publicado no National Post em 15 de fevereiro de 2000, na seção “Life”. (vide
anexo 08).
Excerto 1:
HEY, THERE, COSMO GIRL The girl who didn’t get invited to the prom
grows up to become editor-in-chief of the new teen bible (by Andrew Goldman)
From behind her desk, Atoosa Rubenstein took a deep breath and knitted her
brow, a signal that the 28-year-old-editor-in-chief of ‘Cosmogirl’ magazine was
going to get serious and talk about that night a decade ago. Now Rubenstein is
the boss of 27 young women, most of them under 30, and one young man. (“Our
Cosmo guy,” she said). / “I was the girl who as a senior in high school cried when
Liz Tilberis’ Harper’s Bazaar came out with Linda Evangelista on the cover,”
Rubenstein said, throwing her arm in the air to mimic the famous cover pose. “I
cried. I cried. I cried because I thought it was so beautiful, and I thought it was so
special.”
A manchete Hey, There, Cosmo Girl nos leva a pensar no porquê do uso da palavra girl
para definir uma mulher de 28 anos, executiva de sucesso no mundo editorial feminino. De
76
acordo com Hall (1997), a infantilização é uma estratégia representacional comum a homens e
mulheres, como no exemplo do uso da palavra boy pelos homens brancos quando se referiam aos
homens negros na época da escravidão. Entre outras estratégias, o senhor de escravos exercia a
sua autoridade tratando os escravos como crianças, privando-os de responsabilidades e da
autoridade familiar e paternal. Esta infantilização, segundo o autor, também servia para privar o
homem negro de sua masculinidade; simbolicamente, era a maneira de o homem branco “castrar”
o homem negro que, imaginariamente, era dotado de grande desejo e potência sexual.
Assim, por analogia, podemos dizer que, quando se define a mulher como girl, são
conferidos a ela atributos não-condizentes com aqueles que definem uma profissional de sucesso,
como maturidade, racionalidade e seriedade. A mulher fica, então, reduzida ou limitada a uma
condição “tradicional” de feminilidade; a definição “garota” a separa do mundo adulto e por
conseqüência, do sério e responsável mundo masculino. Para reforçar essa afirmação, atentamos
para o fato de o artigo ter sido publicado na seção “Life” do jornal, não na seção de negócios, por
exemplo.
A mulher-profissional é apresentada fora do contexto da esfera pública, do mundo dos
negócios; o enfoque recai sobre o lado pessoal, isto é sobre a esfera privada, como mostram os
inúmeros detalhes sobre a vida pessoal ou a menção a atividades que nada têm a ver com o
mundo de negócios propriamente dito. Podemos verificar, assim, que parece ser importante aliar,
às características de mulher profissional de sucesso, que atua na esfera blica, aquelas
características femininas da esfera privada.
Percebemos, na fotografia publicada (vide anexo 08), que não há a imagem de uma
profissional, ativa, no comando; ela parece estar ali, atraentemente exposta, “fazendo nada”.
Excerto 2:
Instead, she was an unpopular, gawky immigrant from Iran in the days when
Americans were convinced that Iranians were the only thing that sucked more than
disco. / Young Atoosa had a lisp, and had trouble in elementary school because
of dislexia. / But Madonna videos changed her life. “I remember, like, how
empowering it was to hear Madonna say, ‘I want to rule the world,’ said
Rubenstein. “When I would say, ‘I want to be famous,’ my mother would say,
Don’t say that. You’ll just be disappointed when it doesn’t happen.’
77
O locutor-jornalista define Atoosa utilizando-se dos adjetivos unpopular e gawky e a frase
had a lisp (e) dislexia. O substantivo gawk significa uma “pessoa estúpida e estranha” de acordo
com o The New Lexicon Webster’s Encyclopedic Dictionary of the English Language – Canadian
Edition (1988) e a forma adjetivada gawky immigrant pode ser definida como uma imigrante
estranha, sem refinamento ou elegância, sem tato. Além disso, podemos perceber que as palavras
lisp e dislexia corroboram a representação da imagem negativa da imigrante médio-oriental.
Retomamos Said (1978), que analisou como a Europa dos séculos XVIII e XIX
representou as várias culturas com as quais os europeus tiveram contato por meio das políticas de
expansão imperiais. Os povos de outras culturas foram descritos como preguiçosos, incivilizados
e bárbaros. Se o Outro é “inferior”, ao colonizador cabe “civilizar” e educar o selvagem, em uma
missão “divina”, para que o bem-comum seja alcançado. Assim, o ocidente não produziu
somente o Outro; ele também se construiu através da construção do Outro.
Em nosso caso, os deos da cantora Madonna cumpriram a função de ensinar à imigrante
que ela poderia ter o poder, poderia ser uma mulher “poderosa” e famosa, mesmo contra a voz
materna - que representa os valores de sua cultura de origem - dizendo não ser possível. A
narrativa tenta “provar” que os valores ocidentais do “sucesso” individual, do self-made e do
sonho americano são uma “realidade” possível até mesmo para o Outro.
Excerto 3:
Prom nightto which nobody at Valley Stream North High School in Long Island
bothered to invite her. “You know, at the end of that day, it was fine,” she said,
nodding her head in earnest. “It was fine.” Back then, Rubenstein was not the
porcelain-skinned, 5-foot-11-inch woman with a wild mane of black hair falling
over an Alessandro dell’Acqua sleeveless shell. But now, Rubenstein is indeed a
prom queen of sort / at 26, the youngest editor-in-chief in Hearst memory /
Powered by some ugly adolescent memories, Rubenstein / the unpopular and the
flat-chested, someone they can look to as an example of one who emerged from
the same crummy situation, and got beautiful. And rich. And married /
Analogicamente, o excerto nos leva a pensar em um conto de fadas, no qual a pobre
menininha imigrante, cheia de problemas físicos e complexos, vinda com a família do Irã se
transforma numa princesa, linda, rica e casada (provavelmente, com um homem lindo e
78
perfeito!). Apesar de ela, em um primeiro momento, ter sido rejeitada pela sociedade rejeição
que tinha a ver com o seu lugar de origem, o que pode ser percebido pela asserção in the days
when Americans were convinced that Iranians were the only thing that sucked more than disco –,
Atoosa se transformou, de fato, em uma verdadeira “rainha do baile”.
O uso da metáfora prom queen ou rainha do baile, na modalização - Rubenstein is indeed
a prom queen -, nos a idéia de vitória, uma vez que o prom é um baile de estudantes colegiais
ou universtários norte-americanos que elege tradicionalmente um “rei” e uma “rainha”.
Normalmente os eleitos são os alunos mais “populares” da escola, não necessariamente pela
inteligência - que essa sociedade classifica de nerds - mas pela beleza e aptidão física, quando
não pela simpatia e habilidade de conquistar amigos. Portanto, ser eleita “rainha” significa ser
“vitoriosa” e ser reconhecida como tal publicamente.
Excerto 4:
“Ayatolla Atoosa,” the kids called the girl from the strict Moslem home, who was
forbidden to shave her legs (much less pluck her eyebrows) and who had to be in
the house every night by 6 p.m.
Pelas frases was forbidden to shave her legs (much less pluck her eyebrows) and who had
to be in the house every night by 6 p.m., podemos verificar que o locutor-jornalista fala de uma
determinada formação ideológica em que certas regras de comportamento para as mulheres -
como não depilar as pernas, não tirar as sobrancelhas e “ter” que estar em casa antes das 18:00
horas - é visto com estranhamento. É interessante a forma apassivada was forbidden que denota a
proibição categórica do ato de depilar as pernas. Por quem? Pela mãe, pelo pai, pela comunidade
cultural? Pela religião? Pela tradição?
Em strict Moslem home, a escolha do adjetivo strict relaciona-se com as proibições
impostas à Atoosa, isto é, as proibições tinham origens nos padrões rígidos de comportamento
muçulmano, o que nos remete à idéia de um “fundamentalismo” religioso.
No entanto, strict não é sinônimo de “fundamentalismo”, como nos esclarece o dicionário
Webster’s New Dictionary & Thesaurus (1995). As palavras sinônimas são: absolute, accurate,
austere, authoritarian, close, complete, exact, faithful, firm, harsh, meticulous, no-nonsense,
79
particular, perfect, precise, religious, restricted, rigid, rigorous, scrupulous, severe, stern,
stringent, thoroughgoing, total, true, unsparing, utter, Victorian. E os antônimos: easy-going,
flexible e mild.
Comparativamente, percebemos que, os valores religiosos do cristianismo, com suas
normas rígidas de moral e conduta, norteiam a vida familiar ocidental e são, geralmente,
respeitadas e celebradas; portanto, podemos dizer que o fundamentalismo ocidental é
representado positivamente. Porém, a rigidez moral ou religiosa muçulmanas ou mesmo a cultura
do Oriente Médio, são implicitamente relacionadas com repressão, opressão e coerção e,
portanto, vistas e representadas negativamente.
Assim, o enunciado narrativo leva o leitor a concluir que, por razões culturais ou
religiosas, todas as mulheres iranianas são proibidas de algumas práticas, - entre elas, a depilação
- as quais, pelos padrões ocidentais, são consideradas normais. No entanto, atentemos para o que
nos diz a Enciclopédia Internacional de Sexualidade: Irã:
11
Prior to puberty...their mothers take them to the public baths with them on
“women’s day.” The public baths consist of waist-deep bathing pools for
communal bathing and private shower rooms for families. No one bathes
completely alone. Women of all ages are unclad. Most use loose drawers in the
public areas, but are otherwise nude. Within the privacy of the shower rooms,
little boys therefore observe their grandmothers, mothers, aunts, sisters, and
female cousins taking showers and being depilated of all body hair. Female bath
atendants, who assist in applying the leefah and pumice stone, also assist in the
removing of facial and leg hair with a kind of scissor made of twisted threads, and
in the shaving of pubic regions and armpits...They themselves are devoid of all
body hair.
Pelo que podemos depreender, a depilação faz parte da tradição cultural iraniana que
permanece mesmo em tempos de rigidez religiosa. É interessante constatar também que, de
acordo com alguns teóricos do feminismo, a depilação é vista como uma prática opressiva, pois
impõe à mulher uma prática estética anti-natural (visto que o natural é nascer com pêlos).
Vejamos agora como a mulher está descrita profissionalmente no seu ambiente de
trabalho.
Excerto 5:
11
DREW, Paula - The Encyclopedia International of Sexuality: Iran – www2.hu-berlin.de/sexology/IES/iran.html –
acesso em 06/08/2005.
80
And she kept reading teen magazines. “I was sitting in my political science class
and I would be nodding my head as if I was understanding, but I would be
reading Sassy magazine under the table,” she said / In the girlie environs of her
office...a scented candle burning on the windowsill, it was clear that Rubenstein
takes her job seriously / One person who works in the office described the work
environment as a “little like sorority. Everybody’s jumping around telling each
other how cute they are.” Rubenstein advises her employees that if they are
having difficulty getting into the heads of teenagers, they should eat a hot dog.../
Para o enunciador, está muito claro que ela é uma profissional séria, não sabemos se o
leitor terá essa mesma impressão, ao conhecer sua formação cultural - political science class and
I would be nodding my head as if I was understanding / I would be reading Sassy magazine - e a
descrição do ambiente de trabalho de Atoosa, que é girlie, isto é, um ambiente femininamente
juvenil, com velas acesas, gritos, os colegas de trabalho pulando e dizendo uns aos outros que
eles são umas gracinhas, como nos mostra o excerto 5.
Rubenstein, no comando da equipe de 28 funcionários, a estes a seguinte orientação
quando tiverem dificuldades para entender a mentalidade dos adolescentes: é só comer um
cachorro-quente (!).
Constatamos o que Maingueneau (2002) afirma quando diz que a imprensa popular se
utiliza do discurso direto quando quer privilegiar a narração, de maneira a possibilitar a um
público leitor popular, menos instruído, uma relação mais direta com a experiência vivida pelo
enunciador. Ao utilizar as mesmas palavras do enunciador, o narrador inclui o leitor na situação.
As histórias de mulheres ou de minorias de “sucesso” tornam-se um exemplo de conduta a ser
seguido, uma receita de felicidade com a qual o leitor pode facilmente se identificar.
O binarismo sucesso profissional/feminilidade parece ostentar perfeita harmonia e
ausência de contradições, enquadrando-se perfeitamente na narrativa da super-mulher, que é mãe,
esposa, bem-sucedida profissionalmente, bonita e eternamente jovem. As mulheres, portanto, são
bem-vindas ao mundo profissional masculino desde que não percam as suas próprias
características femininas.
Relembramos que as biografias pessoais têm a capacidade de comunicar as experiências
vivenciadas pelo enunciador a partir de pontos de contato com as experiências vividas pelo
público em geral. Não podemos nos esquecer que o Canadá é um país de imigrantes: histórias de
81
imigrantes bem sucedidos reforçam certas imagens com as quais o leitor pode se relacionar
facilmente.
Excerto 6:
Cosmogirl is that big sister. It’s that voice of support that says, ‘Gosh, I know
you’re confused, but here’s the advice we can give you. It’s OK that she has big
boobs and you don’t. It’ll all work out.
Utilizando os instrumentos de análise foucaultianos
12
podemos dizer que a feminilidade é
um discurso de identidade fundamental para a construção do sujeito “mulher”, que limitou a
própria experiência de ser mulher. Essa construção foi possível pelos vários discursos e práticas
discursivas que tinham por alvo o corpo das mulheres e a sua sexualidade.
Podemos depreender que o conceito de feminilidade e a sua perpetuação têm a ver com
uma das práticas disciplinares sugeridas por Foucault (2000a); as práticas panópticas de sujeição.
O panoptismo é um método de observação hierárquica (op.cit.:148) onde o indivíduo “é visto,
mas não vê; (é) objeto de uma informação, mas nunca sujeito numa comunicação”. Tal vigilância
gera um estado “consciente e permanente de visibilidade” que garante o “funcionamento
automático do poder” (op. cit.:166). Um dos efeitos desse método é a produção da auto-
disciplina, uma vez interiorizado o olhar que vigia permanentemente, que normaliza e define o
sujeito moderno. Foucault nos diz que:
Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua
conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo;
inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os
dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição (2000a:168).
Considerando o papel normalizador da nossa sociedade, podemos também afirmar que as
mulheres estão sujeitas às práticas panópticas do nosso cotidiano, uma vez que aprendem a se
perceber através do olhar que inspeciona continuadamente, o olhar masculino, sob e através do
qual a mulher se torna e permanece mulher (Beauvoir, 1949).
12
FOUCAULT, Michel. What is Enlightenment?http://www.knuten.liu.se/rbjoch509/works/foucault/enlight.txt. –
acesso em 26/03/2002.
82
Ao leitor, é perpetuado o estereótipo da competitividade feminina estar limitada à disputa
pela beleza, e que ela é o aspecto mais importante da experiência feminina como está implícito no
enunciado It’s OK that she has big boobs and you don’t. It’ll all work out. Traduzindo: mesmo
que a “outra” tenha os seios maiores do que os seus; “ainda” assim chances para o seu sucesso
pessoal e profissional. Relembramos que “seios grandes” é atributo de beleza feminina na
sociedade americana.
Passaremos a analisar como a sexualidade feminina ou as suas qualidades biológicas são
equacionadas com objetos, o que estimula a noção de que as mulheres podem ser desejadas,
“adquiridas”, possuídas e, como conseqüência, descartadas.
2.3 Objetificação
Artigo 7: publicado no jornal National Post, em 15 de fevereiro de 2000, na seção “Arts”
– “CD reviews”. (Vide anexo 09).
Excerto 1:
Shelby Lynne mixes soul, jazz and just a touch of country in an album that seduces
with repeated listenings.
HEAR HER ROAR pop – Shelby Lynne - I am Shelby Lynne (Island Def Jam)
From the title on down, this disc announces not only that Shelby Lynne exists but
that she wants you to listen. Lynne is a true original, synthesizing various, mostly
southern musical strains into a style that is one-of-a kind as a person’s DNA.
Scattered about this engaging, enigmatic disc is a bit of Dusty in Memphis, a
touch of Bobbie Gentry’s swamp-country persona, a hit of Prince’s instinct for
making voices and rhythms sound positively libidinous, and a whole lot of Shelby
Lynne.../ What you will find is a genuine evocation of country, which is to say,
the rural landscape and the associations it triggers. Where I’m From is Lynne’s
fond, vernacular-filled tribute to her home state of Alabama, and the title much of
‘I Am’ it moves on a lazy river of sound, seducing you after repeated listening
rather than bowling you over from the outset...Parke Puterbaugh, Rolling Stones
De acordo com o Webster’s New Dictionary & Thesaurus, a palavra roar do título HEAR
HER ROAR significa a loud deep hoarse sound as of a lion, thunder, voice in anger, etc. Em
83
português, rugido, bramido, urro. Metaforicamente, o locutor-jornalista nos incita a escutar o
“rugido da leoa”, a escutar a mulher “feminina”.
Mills (1995), seguindo os trabalhos de Lakoff e Johnson, considera a metáfora como
elemento fundamental da estruturação dos pensamentos e das palavras. São os tijolos do
pensamento no nível do uso e da aquisição de linguagem. Mills (op.cit.) também ratifica o
trabalho de Roger Tourangreau, segundo o qual as metáforas funcionam de modo conservador ao
reforçar um tipo estereotipado de conhecimento, isto é, as metáforas levam a pensar certas
situações de uma maneira estereotipada, por exemplo, quando dizemos que a mulher é “galinha”.
Essa metáfora tem a ver com a sexualidade feminina, referindo-se à mulher que é promíscua. A
mulher é uma “galinha” por causa de um sistema metafórico de sentido pré-existente.
Percebemos ser comum a utilização de metáforas relacionadas a animais quando se
descreve a sexualidade feminina ou masculina no português do Brasil: os homens são
“galinhões”, “gaviões”, “garanhões”, “galos”, e as mulheres são “vacas”, “galinhas”, “peruas”.
Assim, ao dizermos que um homem é “gavião”, damos a entender que ele é promíscuo, que
“caça” as suas vítimas. A expressão “mulher-galinha” também tem a conotação de
promiscuidade, mas sem a agência, isto é, a mulher não caça; ela está para ser utilizada
sexualmente, assim como acontece dentro de um galinheiro.
De acordo com Mills (1995:162), quando a personagem (grifo nosso) feminina é descrita,
uma preocupação em estabelecer o seu grau de atração sexual e disponibilidade e também
uma grande concentração nas supostas características sexuais. Ela afirma que:
Characters are made of words; they are not simulacra of humans – they are
simply words which the reader has learned how to construct into a set of
ideological messages drawing on her knowledge of the way texts have been
written and continue to be written, and the views which are circulating within
society about how men and women are. (1995:160)
O verbo seduzir, tradicionalmente usado para descrever uma atividade masculina, aqui é
usado para caracterizar a mulher como sedutora e, portanto, a agente da ação. Tem-se a
impressão de que o homem é vítima da sedução feminina, tornando-se ele o objeto, mero
recipiente da ação feminina. uma inversão dos papéis tradicionais destinados aos gêneros, de
acordo com os quais ao homem cabe a sedução.
84
Nessa inversão dos papéis tradicionais, a sexualidade masculina torna-se subordinada ao
prazer feminino. Contudo, seguindo as análises realizadas por Hall (1997:272), um estereótipo
não é subvertido nem derrubado por ter sido revertido. No exemplo em questão, não se escapa à
estrutura binária de masculino/feminino, apenas saímos do estereótipo de que as mulheres são a
caça, as vítimas, para cair no estereótipo de que são caçadoras, predadoras – the femme fatale.
A fotografia de Shelby nos traz a imagem de uma mulher hiperfeminilizada, associada à
idéia de “leoa”, como já visto. Podemos dizer que as mulheres são colocadas na posição de objeto
de consumo, no caso, objeto para ser ouvido, uma vez que a agência da “personagem” feminina
acontece em relação ao narrador. Constatamos a ligação entre a sexualidade feminina e a venda
do produto, no caso, os CD’s. Em outras palavras, perpetua-se a noção de que a mulher é objeto
sexual e de que a sexualidade feminina está subordinada ao prazer masculino.
Podemos inferir pelas frases hear her roar / enigmatic disc/ instinct for making voices and
rhythms sound positively libidinous / the rural landscape and the associations it triggers / moves
on a lazy river of sound, seducing you after repeated listening, que o interlocutor deve encontrar
no texto escrito a mesma sexualidade encontrada pelo enunciador ao escutar a música de Shelby.
Na descrição do CD, podemos notar que as palavras escolhidas têm conotação “sexual”, pois
estão implicitamente se referindo a sexo e convidam o leitor a participar dessa sexualidade,
disponível para ele, caso adquira o produto. Como mencionado, a mulher é vista como objeto
de consumo masculino. Ela é descrita em relação aos desejos sexuais masculinos o que contradiz
a “mulher fatal”, a “leoa” que supostamente seduz a sua “caça” e, portanto, age. Se o sujeito-
mulher “aparece” condicionada aos anseios sexuais masculinos, ela é a mulher-objeto, the sex
kitten.
13
A metáfora da expressão roar também nos remete para a imagem de um animal silvestre
que vive uma vida selvagem e, portanto, pratica sexo selvagemente. Aí, deparamos com um outro
aspecto dos estereótipos - o fetichismo - que na visão de Hall (1997) está baseado na fantasia e na
projeção, o que acarreta os efeitos da divisão e da ambivalência. Hall (op.cit.) nos diz que:
Fetishism takes us into the realm where fantasy intervenes in representation; to
the level where what is shown or seen, in represention, can only be understood in
13
De acordo com o The New Lexicon Webster’s Encyclopedic Dictionary of the English Language Canadian
Edition, Lexicon Publications, Inc. New York – 1988, kitten significa um gato novo, especialmente, um gato
domesticado.
85
relation to what cannot be seen, what cannot be shown. Fetishism involves the
substitution of an ‘object’ for some dangerous and powerful but forbidden force
(...) The phallus cannot be represented because it is forbidden, taboo. The sexual
energy, desire and danger, all of which are emotions powerfully associated with
the phallus, are transferred to another part of the body or another object, which
substitutes for it. (op.cit.:266)
O autor afirma que o fetichismo é uma estratégia que nos permite representar - ou não - o
tabu, o perigoso ou o objeto proibido do prazer e do desejo. Freud, citado por Hall (1997:267),
diz que:
...the fetish is the substitute for the woman’s (the mother’s) penis that the little
boy once believed in and for reasons familiar to us does not want to give
up...It is not true that the (male) child...has preserved unaltered his belief that
women have a phallus. He has retained the believe, but he has also given
up...Yes, in his mind the woman has got a penis, in spite of everything; but the
penis is no longer the same as it was
before. Something else has taken its place,
has been appointed its substitute...
O fetichismo não é, portanto, somente a indicação de uma ausência, mas é lembrança
constante de que a ausência é apenas fictícia. Lembramos que, para Irigaray (1985a:84), a
feminilidade é um papel, uma imagem e valor imposto às mulheres pelo sistema masculino de
representação.
Relembrando, de acordo com a autora, a mulher fica fora do sistema, sujeita às normas
masculinas; ela não tem acesso à linguagem a não ser através do sistema “masculino” de
representação, o que a aliena do relacionamento com outras mulheres e com ela mesma. A
mulher, portanto, é objeto utilitário, com valor de troca. As propriedades do corpo feminino têm
que ser suprimidas ou subordinadas para que se realize a transformação do corpo em objeto de
circulação entre homens (Irigaray, 1985:187).
Na opinião de Irigaray, isso acontece por razões históricas: os sistemas de propriedade,
filosóficos e religiosos, além das teorias e práticas da psicanálise, descrevem e definem o destino
da sexualidade feminina. Ela diz que:
If Freudian theory indeed contributes what is needed to upset the philosophical
order of discourse, the theory remains paradoxically subject to that discourse
where the definition of sexual difference is concerned. ...psychoanalysis itself has
86
commited its theory and practice to a misunderstanding of the difference between
the sexes (1985:72:160)
A crítica se dirige, então, ao fato de Freud interpretar o fetichismo como uma experiência
masculina.
O termo fetiche está também associado a Karl Marx e sua análise das commodities ou
mercadorias. Marx, isentando o termo do caráter psicossexual que lhe foi imposto, considerou
fetiche uma boa metáfora para certos tipos de pensamentos mágicos das sociedades primitivas e
modernas. Ele ponderou que o mais poderoso e persuasivo tipo de fetichismo nada tinha a ver
com os desejos sexuais por objetos estranhos, mas sim com o desejo pelos objetos da vida
ordinária e cotidiana, ou seja, as mercadorias. Então, o fetichismo, para ele, é um traço recorrente
das relações sociais capitalistas, aparentemente normais e “naturais”, socialmente construídas. Na
visão de Marx, a cultura ocidental é fetichista porque confunde coisas fixas e estáveis com
relações sociais. Derrida (1994)
14
lembra o que Marx afirma em O Capital:
Commodities cannot themselves go to market and perform exchanges in their
own right...(T)heir guardians must place themselves in relation to one another as
persons whose will (Willen) resides (haust) in those objects, and must behave in
such a way that each does not appropriate the commodity of the other, and
alienate his own, except through an act to which both parties consent.
(op.cit.:178)
O autor afirma que as commodities não podem levar a si mesmas para o mercado e,
portanto, seus “guardiães” ou “possuidores” fingem morar nelas, fazendo com que características
ou propriedades humanas passem a “habitar” a mercadoria. Então, podemos dizer que, segundo o
marxismo, os homens, nas sociedades capitalistas, atribuem às mercadorias características
humanas. Assim,
The difference between inhabit and haunt becomes here more ungraspable than
ever. Persons are personified by letting themselves be haunted by the very effect
of objective haunting, so to speak, that they produce by inhabiting the thing.
Persons (guardians or possessors of the thing) are haunted in return, and
constitutively, by the haunting they produce in the thing by lodging there their
speech and their will like inhabitants. (Derrida, 1994:09)
14
DERRIDA, Jacques (1994). From Spectres of Marx – What’s Ideology?
http://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/fr/derrida2.htm - acessado em 22/03/2002.
87
A descrição deste processo fantasmagórico, onde as pessoas se cobrem com os objetos das
relações capitalistas, irá constituir a premissa do discurso do fetichismo na analogia com o
“mundo religioso” (Derrida op.cit.).
Irigaray (1985a) interpreta o status da mulher tomando o conceito marxista dos
commodities como forma elementar da riqueza capitalista. Na visão da autora, enquanto
mercadorias, as mulheres são ao mesmo tempo objetos utilitários e com valor de troca.
Parafraseando a autora, a mulher serve como um reflexo, uma imagem para e do homem,
faltando-lhe qualidades inerentes a si mesma. Como já visto, para a filósofa, o valor da mulher ou
do feminino é dado pelo masculino. Ela nos diz que:
- just as commodities cannot make exchanges among themselves without the
intervention of a subject that measures them against a standard, so it is with
women. Distinguished, divided, separated, classified as like and unlike, according
to whether they have been judged exchangeable. In themselves, among
themselves, they are amorphus and confused: natural body, maternal body,
doubtless useful to the consumer, but without any possible identity or
communicable value;... (Irigaray, 1985a:187)
Na estratégia discursiva baseada na articulação de conceitos, como selvagem e sedução,
que constróem uma identidade feminina de “sedutora”, “selvagem”, sexual, enfim, constatamos
que, além de outras identidades femininas serem marginalizadas ou excluídas, o estereótipo da
mulher-objeto - sex kitten - é reforçado, uma vez que a imagem de feminilidade do sujeito-mulher
está associada à venda de um produto e à satisfação dos anseios masculinos.
3. VITIMIZAÇÃO: Battered Woman - A síndrome da mulher espancada
Passamos a analisar agora a vitimização e como a imprensa, ao representar a mulher como
recipiente natural da violência masculina, construiu a identidade da mulher-vítima, o que gerou
deslocamentos nos discursos, como aqueles que se relacionam com as mudanças das leis
criminais canadenses.
Partindo desse ponto, tomaremos “vítima” como sujeito do discurso feminista de
violência contra as mulheres. Verificaremos como esse discurso se apresenta como representativo
88
da categoria “mulher” e como (re)define o poder das timas utilizando a mídia e o sistema
jurídico, o que afeta o próprio discurso criminológico.
Vários textos jornalísticos canadenses da década de 1990 exploram, por meio das
biografias pessoais, o tema da violência contra as mulheres, refletido em abuso sexual, abuso
psicológico, crimes sexuais, estupro, relacionamentos abusivos e, dessa maneira, constróem a
identidade do sujeito do discurso feminista como vítima natural, vulnerável, passiva e, portanto,
subordinada ao poder masculino.
Relembramos que o movimento feminista trouxe a público, a partir da década de 1970,
matérias relacionadas à vitimização das mulheres na esfera privada, como o estupro, a violência
doméstica, etc., afetando dessa maneira o discurso criminológico que introduziu os tópicos da
vitimização feminina, ou seja, o gênero e as suas relações passaram a integrar a criminologia. No
Canadá, o reconhecimento formal dos direitos igualitários aconteceu em 1982, através da
constituição canadense, nos parágrafos 15 e 28, que concedeu direitos iguais para mulheres e
outros grupos historicamente desprivilegiados, o que levou à reforma do Código Penal.
Constatamos que a discussão sobre a violência contra as mulheres, em um primeiro
momento, dentro dos movimentos feministas, se voltou para os crimes sexuais e para a violência
doméstica. Infere-se que “violência” está associada à idéia de agressão física, especificamente.
Consagra-se o “crer cultural” de que as mulheres, inferiores aos homens, estão sujeitas ao
domínio e/ou à proteção masculina.
Violence is a general term to describe behaviour, usually deliberate, that causes
or intends to cause physical injury to people, animals, or non-living objects.
Violence is often associated with agression. (Wikipedia)
De acordo com a enciclopédia Wikipedia,
15
nos crimes de violência doméstica, o
conceito abrange tanto a violência física, a mental ou a emocional, como a econômica ou o abuso
social. Classifica-se, seguindo essa orientação, a violência física em direta - estupro, homicídio e
contato físico indesejado - e indireta, por exemplo, a destruição de objetos ou o abuso de
animais.
15
Wikipedia - http://en.wikepedia.org/wiki/Violence – acesso em 09/07/2004.
89
Ameaças verbais de violência física contra a vítima, contra si mesmo ou outros, aí
incluídas as crianças, ameaças que podem ser implícitas ou explícitas; violência verbal, como
insultos e humilhações verbais; e ameaças não verbais, como gestos e expressões faciais, fazem
parte da violência mental ou emocional.
Na categoria de violência econômica ou abuso social, enquadram-se o controle sobre o
dinheiro, ou outras fontes econômicas, e sobre o contato com amigos ou parentes. O isolamento e
a “sabotagem” da vida social também podem constituir abuso social.
Dentro da concepção feminista, podemos dizer que crimes como o estupro ou a agressão
física são violências diretas e que todo tipo de opressão ou restrição - na sociedade patriarcal -
pode ser considerado violência indireta. Assim, em resposta à pergunta “O que é violência contra
a mulher?”, podemos dizer que, segundo o Media Watch,
16
espancamento, assassinato, estupro,
prostituição, pornografia, linguagem grosseira, piadas sujas, ridicularização, banalização,
negação de direitos, invisibilidade, racismo, sexismo e ageísmo
17
são formas de violência contra
a mulher.
Podemos observar por meio da análise dos textos jornalísticos sobre violência contra as
mulheres que a ênfase está na violência doméstica, ou seja, a violência direta, aquela em que
existe uma agressão física, como é o caso do estupro, espancamento ou homicídio. A ênfase dada
pela mídia para os casos de violência direta torna invisível outras formas de violência.
The term “domestic violence” replaced “wife beating” or “wife battering” which
came before. In its turn, is has begun to be replaced with more descriptive terms
such as “relationship violence”, “domestic abuse”, and “violence against a
spouse”. The term has been defined legally in some jurisdictions, which can add
further confusion when members of the justice system interact with domestic
violence advocates. (Wikipedia)
Assim, como mencionado anteriormente, matérias sobre mulheres espancadas por seus
maridos ou namorados, aparecem na primeira página ou compõem encartes especiais dos jornais,
16
Organização feminista sem fins lucrativos que estuda a representação feminina na mídia.
17
De acordo com o The New Lexicon Webster’s Encyclopedic Dictionary of the English Language – Canadian Ed.-
o substantivo ageism significa “discriminação contra os mais velhos” e, de acordo com o Oxford Advanced Learner’s
Dictionary of Current English 6
th
ed. – 2000 significa “tratamento injusto dispensado às pessoas por serem
consideradas velhas”.
90
enquanto a pornografia, a prostituição e o tráfico de mulheres, ou a pobreza extrema, por
exemplo, que também são formas de violência, são silenciadas.
Vejamos como a imprensa retratou uma das criminosas mais “famosas” do Canadá, Karla
Homolka. No final da década de 1980, uma série de estupros ocorreu na cidade de Toronto e a
polícia torontoniana procurou por muitos anos o “estuprador de Scarborough”. O caso finalmente
foi resolvido em 1993, depois que o estuprador, Paul Bernardo, se tornou ousado o suficiente
para seqüestrar e assassinar as adolescentes Leslie Mahaffy e Kristen French, despejando os seus
restos mortais no lago Gibson. É claro que a mídia escrutinou o caso e o que chamou a atenção,
tanto da dia quanto do leitor, foi o fato de a esposa do criminoso, Karla Homolka, tê-lo
ajudado nos delitos. Além de ser fascinante a horrível narrativa criminosa, que se tornou
conhecida internacionalmente, a “personagem” Karla era intrigante.
Artigo 09: publicado jornal The Toronto Star em 2 de setembro de 1995, no caderno
“Insight”. (Vide anexo 10).
Excerto 1:
Karla Homolka was a 17-year-old St. Catharines high school student. Her main
goal in life was to get married, something she had talked about constantly when
she was a child playing with her collection of Barbie and Ken dolls./ Her dream
was to have a pretty house with a white picket fence, and a house full of smiling
babies./ She also loved mystery books, like the Hardy Boys and Nancy Drew. /
Although a bright student in school, she could be very naive when it came to
assessing people.
91
No excerto, percebemos a descrição de Karla a partir do estereótipo da mulher-esposa-
submissa, isto é, como uma menina romântica que sonha com o amor que conduz ao casamento e
que a transforma, portanto, na esposa perfeita para o seu futuro marido. O texto jornalístico nos
informa que ela só queria uma casa, com uma cerca branca, cheia de crianças.
A foto escolhida para a ilustrar o texto é a de um casal “normal”, canadense,
aparentemente feliz e, podemos até arriscar a dizer, motivo de “inveja”; um casal jovem, bonito,
obviamente pertencente ao main stream canadense. Em outras palavras, o texto trata de crimes
considerados bárbaros cometidos pelo casal, mas a foto o contradiz porque nos leva a indagar:
Como um casal como este pode ser o autor de tantas atrocidades? Bernardo é o típico boy next
door e é olhar para a imagem de Homolka para a associarmos com a de uma mocinha ingênua
e sonhadora de que nos fala o excerto 1, e não como a imprensa canadense os denominou
posteriormente: The Ken and Barbie of Mayhem and Murder.
18
O operador argumentativo although que está colocado na sexta linha do excerto justifica
o fato de Karla ter sido considerada uma pessoa inteligente (supostamente com 134 de QI) pelos
psiquiatras e psicólogos que a analisaram, e se contrapõe ao naive: uma pessoa inteligente,
porém, ingênua. Notamos que, no texto, o operador “apesar” atenua a inteligênca de Karla, e que
cria um paradoxo: Como uma pessoa inteligente pode ser ingênua? Então, podemos afirmar que
não simplesmente uma oposição de enunciados, mas uma oposição entre dois interlocutores
(Maingueneau, 1997:166).
É interessante perceber que esse jogo argumentativo ajudou na construção de uma
imagem positiva de Karla, para o público, uma vez que, dentro do estereótipo do “feminino”,
ingenuidade não cria uma imagem negativa. Em contraposição, a identidade feminina de
“inteligente” poderia ser associada a uma imagem negativa de mulher: a mulher que sabe o que
quer, tem controle e, portanto, manipula, é maquiavélica e até demoníaca; em outras palavras, a
inteligência do “mal”. A construção da imagem positiva da personagem Karla fez-se necessária
para que o público não a repudiasse de imediato, pois a “delação premiada” - plea bargain -,
celebrada com a promotoria canadense, tinha que ser justificada diante da opinião pública. O
inimigo “número 1”, naquele momento, teria que ser necessariamente Paul Bernardo, o marido
18
Ken e Barbie (os bonecos) da mutilação e do homicídio.
92
estuprador, torturador e assassino. Um fato interessante é que a mídia, por força de impedimento
legal, não pôde divulgar o acordo realizado até o julgamento de Bernardo.
Excerto 2:
“Too trusting...no street smarts,” was how a relative put it. / There had been no
shortage of boyfriends for the attractive blonde, but “all they want is sex,” she
once complained to a friend. / Ironically, she ended up marrying a man whose
sexual appetite rivalled that of a satyr. It was one of the many ironies in their six-
year relationship./ For Homolka, it was love at first sight with the strapping six-
footer who exuded the air of a winner, a man who was going places, she would
later say.
Podemos verificar como o excerto acima corrobora o que foi dito anteriormente,
principalmente pelas frases too trusting / no street smarts. O leitor é induzido a pensar que Karla
era uma “menina”, uma mocinha ingênua, que acreditava em amor à primeira vista. Apesar de ter
tido inúmeros namorados, ela esperava, aparentemente, o homem certo, moralmente correto, que
não tivesse somente interesse sexual por ela. O uso dos verbos no passado nos sugere que os fatos
narrados são “verdadeiros” e que, portanto, Karla não tinha interesse nos relacionamentos que
tivera porque eram baseados em sexo, como nos demonstram as asserções but all they want is
sex” e she would later say.
De acordo com Carmagnani (1996), o discurso jornalístico se vale do discurso relatado -
direto ou indireto - para isentar o jornalista da responsabilidade da formulação, o que o torna um
simples “porta-voz”: quem fala é o outro e não o jornalista, o que reforça a ilusão de objetividade
e de transparência desse discurso. Sobre o tema, Maingueneau (2002) nos diz que:
Mesmo quando o DD relata falas consideradas como realmente proferidas, trata-
se apenas de uma encenação visando criar um efeito de autenticidade: eis as
palavras exatas que foram ditas, parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se
com efeito pelo fato
de supostamente indicar as próprias palavras do enunciador
citado:diz-se que ele faz menção de tais palavras. (op.cit.:141)
Contudo, podemos perceber como a “verdade” do locutor-jornalista não escapa à
subjetividade, que pode ser constatada pela modalização que o advérbio ironically apresenta para
marcar a voz do enunciador no discurso. Então, se Homolka não tinha interesse em relações
93
amorosas que tinham por base o sexo, como explicar o fato de ter se casado com um estuprador e
ter se tornado cúmplice dele?
Excerto 3:
She got drawn in by his magnetism / It would be fair to say she didn’t know what
she was getting into / he endeavored to control all aspects of her life / he was
molding her / Homolka was so blinded by her love for Bernardo. At his trial,
Homolka testified she went along with all Bernardo’s demands because she so
desperately wanted to please him. / She was ready to try anything he wantedbe
available for sex when he wanted, help him get young virgins, even help to cover
up murder.
Pela análise do excerto, constatamos a construção da personagem Homolka como
totalmente submissa e que, cega pelo amor, atendia a todos os desejos e comandos do marido. A
asserção categórica he endeavored to control all aspects of her life congela os sentidos e
demonstra que ela era dominada, controlada, “hipnotizada” pelo marido. A frase he was molding
her, nos faz lembrar a figura mitológica grega do rei de Chipre, Pigmaleão, que esculpiu, em
marfim, a mulher perfeita Galatea. Ajudado por Vênus e pela sua própria fé, a estátua - fruto de
seu sonho - se transformou em ser humano, na mulher perfeita, “de verdade”. O sonho se tornou
realidade principalmente porque Pigmaleão acreditou ser possível que a estátua se transformasse
na mulher ideal.
Então, é possível “tornar-se” ou “transformar-se” para que o sonho ou a expectativa do
outro se realize. Assim, o efeito de Pigmaleão funciona para justificar o comportamento da
mulher cega de amor, que quer satisfazer a todas as vontades do ser amado para que a profecia se
realize. Assim como a figura mitológica, é sugerido ao leitor que Karla Homolka foi construída a
partir do sonho do seu criador. O efeito de sentido gerado é o de que o locus de controle é externo
à Homolka, isto é, ela não é responsável por suas ações. Isto faz soar os sentidos do discurso
patriarcal das diferenças de gênero que entende a mulher como infantil e, portanto, irresponsável,
ou menos culpada de crimes bárbaros, simplesmente pelo fato de pertencer ao sexo feminino.
Nas asserções acima, percebemos uma afirmação da submissão da esposa ao marido
absoluta - da mulher ao homem - “até” mesmo para a realização de atos ilegais ou criminosos.
Por meio dos verbos no presente, que produzem efeitos de verdade, a mulher é representada
94
como subordinada incondicionalmente ao comando masculino e reforça-se ao interlocutor a idéia
de que está em posição inferior ao homem.
Excerto 4:
She was everything he wanted in a woman: good-looking, great body, naive,
trusting, someone he could control, dominate, and use as a sexual playtoy and
later enlist as a partner in his crimes. She, meanwhile, was looking for a confident,
self-assured male who had the ability to give her the up-scale lifestyle she had
been yearning for all her life. It would be fair to say she didn’t know what she
was getting into.
Observamos como a identidade feminina de Karla é representada pelos termos good-
looking, great body, naive, trusting, someone he could control, dominate, and use as a sexual
playtoy. Parece-nos que houve o encontro de duas representações em dois imaginários: um
masculino e outro feminino: Karla representa o ideal feminino no imaginário masculino,
enquanto Paul representa o ideal masculino no imaginário feminino.
Podemos depreender pelo excerto que o locutor-jornalista “naturaliza” a idéia da
ingenuidade de Karla através da asserção she didn’t know what she was getting into. A
modalização explícita do enunciador demonstra a sua opinião e apaga outros sentidos contrários.
Percebemos como a asserção She was everything he wanted in a woman / a partner in his
crimes antecipa para o leitor a quem pertencia a liderança dos crimes cometidos. É sugerido ao
interlocutor que os atos criminosos de Homolka podem ser justificados e desculpados ou de que a
sua culpabilidade, mesmo reconhecida, seja considerada menos grave. A ênfase nesta
representação faz parte da política da diferenças dos gêneros que constrói a identidade feminina
como “ingênua”, passiva, não-agressiva e não-pertencente ao mundo fora da esfera privada ou da
vida doméstica. Como ela poderia saber o que se passava fora de sua casa? Como poderia ser
responsabilizada por atos praticados pelo marido?
Excerto 6:
Homolka, and crown prosecutors, would later say in court that she was a victim
of battered wife syndrome, forced into rape and murder because of his constant
physical and mental abuse... According to Homolka, he beat her, stabbed her,
95
made her eat his feces, pushed her down the stairs, threw knives at her, cursed
her constantly, anally raped her when the mood hit him, all the while
demanding that she tell him she still loved him.
Podemos afirmar que Karla é (re)apresentada como uma mulher vulnerável e passiva,
dependente e controlada, recipiente da violência masculina e a ela subordinada. Portanto,
podemos também dizer que ao leitor foi sugerido a imagem de uma Karla tima, submetida e
vulnerável ao poder do marido. Aqui, a voz do discurso feminista de violência contra as mulheres
se faz audível e posiciona a mulher, contraditoriamente, como vítima natural do homem e, sendo
assim, sujeito do discurso de proteção. Homolka alegava ser vítima da “síndrome da mulher
espancada”, explicação para a sua cumplicidade nos crimes de estupro e assassinato e é
interessante constatar que a promotoria concordava com essa teoria.
O jogo argumentativo que “criou” a imagem de Homolka como vítima, imagem reforçada
em um primeiro momento pela mídia, serviu aos interesses da promotoria, tornando-se um
instrumento fundamental para a condenação do estuprador e assassino Paul Bernardo. Durante o
julgamento, ele tentou várias vezes provar - sem conseguir - que a participação de Karla teria sido
por livre e espontânea vontade. Aliás, um tema levantado no julgamento de Paul Bernardo foi a
questão da violência doméstica, do abuso, da síndrome do battered woman sofrida por ela. Ou
seja, Homolka alegou que ela havia participado dos crimes de Bernardo porque era vítima da
violência do marido, que também a violentava, espancava e torturava. Bernardo por sua vez,
durante o julgamento, alegou que, de fato, ele havia violentado as duas adolescentes, porém,
Homolka as teria matado.
Algumas provas, que apoiariam Paul Bernardo em suas alegações, foram trazidas à
público no seu julgamento, e não quando do acordo de Homolka com a promotoria, como por
exemplo, as várias fitas de vídeo gravadas no período em que as meninas seqüestradas estavam
em poder do casal e que mostravam uma Karla ativa e participante dos atos criminosos.
Constatamos, como dito, que a representação da mulher-vítima faz parte do discurso
feminista de violência contra a mulher que a constrói como vítima natural do homem. A
representação da mulher-vítima foi recorrente na década de 1990 na imprensa canadense, como
discutido anteriormente.
96
Excerto 7:
Experts hired by the crown at an estimated cost of more than $ 100,000
painted Bernardo as the sicker of the two. Others pointed out that the abuse
could only go so far in explaining Homolka’s behavior. At some point, she had
to take responsibility for her actions, they said.
Psychiatrists later theorized that Homolka developed survival strategies to try
and reduce her abuse./ While the experts had trouble analyzing Homolka,
apparently they had no problem labelling Bernardo as someone with an anti-
social personality disorder.
Psychiatrists later theorized about the dynamics of the Bernardo/Homolka
relationship at that point. The couple was in a tension-building phase where he
was using minor verbal and physical abuse to get what he wanted, while she was
trying to placate him to avoid further troubles.
Through her, he found an outlet for his urges, a person willing to gratify his kinky
desires, they said. During sex, he made increased demands for fellatio, and anal
sex. He wanted her to refer to him as “the King,” and “the Master.”
Vejamos como a estratégia da utilização de especialistas funciona para reforçar o
argumento de que Karla, ao atender aos pedidos de seu marido, se comportou da única maneira
que uma pessoa vítima de abuso poderia se comportar. Podemos verificar como o jogo
argumentativo nos sugere que o comportamento criminal de Homolka é justificado: ela procurava
satisfazer a todos os desejos de seu “dono” na esperança de que os abusos contra ela fossem
minimizados. Participar dos atos criminosos é visto como um ato de auto-defesa; em outras
palavras, ser parceira nos crimes do marido foi a maneira que ela encontrou para sobreviver.
Percebemos, através da asserção at some point, she had to take responsibility for her
actions, que uma reprovação à conduta de Karla, como uma criança sendo “julgada” pelo pai
que a irá repreender, mesmo que este queira perdoar o deslize na conduta dela. Assim,
constatamos que Karla é posicionada mais uma vez infantilmente - mulher = criança - e, portanto,
irresponsável.
Como podemos constatar pelo excerto, o sistema legal criminal confiou na psicologia,
psiquiatria e na psicoterapia para traçar o perfil criminoso de Karla, que se submeteu a
confissões, análises e “verificações”. De acordo com Foucault (2001), a sociedade ocidental criou
97
a scientia sexualis, que se originou no século XVII, baseada na confissão; a necessidade de se
falar e de procurar a “verdade” sobre a sexualidade. O autor diz que:
...a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente
valorizada para produzir a verdade. (...) A confissão difundiu amplamente seus
efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas
relações amorosas (...) confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os
desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; (...) Confessa-se
– ou se é forçado a confessar. (2001:59)
A confissão que acontece tanto nos consultórios de psicanálise quanto nos escritórios de
advocacia parece-nos que foi fundamental para a construção da personagem legal de Karla como
vítima. Pelo que podemos depreender do texto jornalístico, ela confessou para a polícia,
promotores, advogados, psiquiatras, psicólogos e psicopterapeutas. Foucault (2001) a
psicanálise - intérprete da sexualidade - como uma legitimização da confissão sexual que explica
tudo em termos de uma sexualidade reprimida. O sistema legal e o próprio público tiveram a
responsabilidade de decidir entre uma Karla Homolka mocinha, aterrorizada, forçada a cometer
atos criminosos, e uma bandida, criminosa sem arrependimentos que ajudou espontaneamente o
marido para satisfazer os seus próprios anseios sexuais.
Como uma mulher, “feminina”, bonita, que queria simplesmente se casar e ter filhos,
vítima da brutalidade masculina, poderia ser a algoz da história? Podemos relacionar essa
pergunta com a questão da posição de sujeito, da agência e da própria subjetividade das mulheres
em confronto com a sociedade patriarcal.
Verficamos, na análise dos textos jornalísticos, que a mídia representa os gêneros de
maneira diversa, polarizando-os. A representação de Karla girou em torno de vários estereótipos:
o da mulher-infantil, romântica e ingênua que acredita em príncipe encantado; o da mulher-objeto
sexual que existe basicamente para servir ao homem; e o da mulher-vítima e, portanto, passiva e
vulnerável que não pode se proteger sozinha, recipiente natural da brutalidade masculina, sujeita
a agressão física, molestação, estupro e homicídio. Constatamos que o gênero masculino foi
descrito e definido como agressivo, violento e abusivo psicopata, em uma definição médico-
legal.
98
Na análise do interdiscurso, pudemos constatar a presença do discurso feminista de
violência contra a mulher que atravessa o discurso jornalístico, o discurso centífico e o discurso
criminológico, gerando efeitos de sentido. A construção da identidade médico-legal mulher-
vítima faz diminuir a gravidade do delito no direito penal, por exemplo. A representação da
mulher acontece dentro do estereótipo da inferioridade feminina, tanto física como mental,
excluindo outras identidades femininas. Percebemos que uma negação da agressividade
feminina, como se essa não existisse, como já tivemos a oportunidade de discutir anteriormente.
Verificamos como o discurso jornalístico, em um primeiro momento, contribuiu para a
construção da imagem de mulher-vítima ao representar Karla dentro daqueles estereótipos
femininos.
Assim, a mídia acabou contribuindo para que o acordo entre Karla e a promotoria não
fosse tão criticado pela opinião pública na época, uma vez que a identidade da mulher estava
representada pela violência sofrida, afirmando-se a posição-sujeito de vítima, e não de
criminosa.
19
Por que a personagem Karla é tão intrigante? Podemos especular que por ser branca,
heterossexual, pertencente a classe média, jovem, loira, bonita e casada, em outras palavras, por
pertencer ao que é considerado “normal” na sociedade canadense, o que não condiz com o “ser”
criminosa, e portanto, “anormal”, o outro que não pertence à norma.
Outra questão que podemos levantar tem a ver com o “assumir” o esteréotipo: ao
reconhecer a “mulher” como vítima da violência masculina - vítima “natural” do homem -
reconhece-se também que ela está subordinada a ele; então, a mulher-vítima não pode ser
totalmente responsabilizada por suas ações uma vez que ser “vítima” funciona no sistema legal
para justificar, no caso, os atos criminosos praticados.
Constatamos, assim, a construção de um discurso institucional por meio do uso das
experiências vividas pelas mulheres - as histórias de violência contadas pelas vítimas -
“personagens” indispensáveis na narrativa jornalística. As narrativas de vitimização, como
19
Atualmente, a imprensa canadense faz um mea culpa por ter sido, no mínimo, condescendente com
aquela que hoje é considerada, também, de acordo com a mídia, como uma das mais “odiadas” criminosas do Canadá
e, portanto, sem “moral” para desculpas e/ou justificativas.
99
percebido até aqui, enfocam as mulheres e transformam-se em “verdades”, exemplos da opressão
feminina que espelham o discurso feminista de violência contra a mulher.
A mídia, narrando as inúmeras histórias de violência das mulheres, fixa as “verdades”
sobre as vítimas, reconhecendo a mulher-vítima como vítima “natural” do homem. As vítimas
“declaradas”, por sua vez, fornecem material para que outras se identifiquem, se reconheçam nos
relatos, e venham a público.
Podemos constatar que as representações do sujeito-vítima do discurso de violência contra
as mulheres no texto jornalístico, aparecem como:
A mulher-vítima que necessita da proteção institucional e
A mulher-vítima que fala a “verdade”.
De acordo com Hall (1997):
The conscious attitude amongst whites – that ‘Blacks are not proper men, they are
just simple children’ – may be a ‘cover’, or a cover-up, for a deeper, more
troubling fantasy – that ‘Blacks are really super-men, better endowed than whites,
and sexually insatiable’...Thus when blacks acts ‘macho’, they seem to challenge
the stereotype (that they are only children) but in the process, they confirm the
fantasy which lies behind or is the ‘deep structure’ of the stereotype (that they are
aggressive, over-sexed and over-endowed). (:263)
De acordo com Hall (op.cit.), o estereótipo “reduz, essencializa, naturaliza e fixa a
diferença”, separa o normal do anormal, o “eu” do “outro”, e surge geralmente quando o poder é
desigual e, está direcionado contra o subordinado ou o grupo social excluído. O autor ressalta que
estereotipar é um tipo de jogo das relações de poder/saber (assim denominadas por Foucault), que
categoriza as pessoas de acordo com as normas sociais e que constrói o excluído enquanto o
“outro”. Hall diz que:
Power, it seems, has to be understood here, not only in terms of economic
exploitation, and physical coercion, but also in broader cultural or symbolic
terms, including the power to represent someone or something in a certain way
within a certain ‘regime of representation’. It includes the exercise of symbolic
power through representational practices. Stereotyping is a key element in this
exercise of symbolic violence. (op. cit.:259)
100
Assim, podemos dizer que o discurso produz, através das diferentes práticas de
representação - no caso, as da mulher objeto, infantilizada e vítima - um saber da categoria
mulher que está imbricado nas relações circulares de poder.
Então, as mulheres são ao mesmo tempo esposas, objetos sexuais, infantis, ingênuas e
perigosas. Constatamos que o “ser mulher” tem a ver com as fantasias que estão por trás das
representações (Hall, op. cit.).
A mídia, desafiada a interpretar Karla, retratou-a, em um primeiro momento, com
condescendência, como já visto: a menininha caipira e sonhadora, que amava os animais e
também a vítima das brutalidades e do deturpado apetite sexual do marido, usada e manipulada
por Bernardo para que ele conseguisse atingir aos seus objetivos criminosos.
Enquanto se decidia em qual categoria ela se enquadraria - vítima ou vilã - ou se ela
representava o Bem ou o Mal, Homolka negociava com a promotoria: seria a testemunha-chave
da acusação no julgamento de Paul Bernardo, escapando assim de ser julgada pelos crimes para
os quais ela teria colaborado. O acordo - plea bargain - fez com que Homolka fosse sentenciada,
em meio a controvérsias, a doze anos de reclusão ao se declarar culpada por homicídio culposo
nas mortes de Kristen French e Leslie Mahaffy e pelo seu envolvimento na morte de sua irmã
Tammy, que foi drogada e violentada sexualmente pelo casal. Vale a pena acrescentar que Paul
Bernardo foi condenado à prisão perpétua em confinamento solitário por homicídio doloso pela
morte das adolescentes.
Uma das condições do acordo entre Karla e a promotoria, mais tarde conhecido como o
deal with the devil, previa que ela não falaria direta ou indiretamente com a mídia e não poderia
obter qualquer tipo de lucro pelos crimes cometidos, como a venda da sua história, por exemplo.
Karla, que foi recebida no sistema correcional como a esposa, mulher-vítima das
agressões físicas provocadas pelo marido, passou depois de algum tempo a cumprir pena em uma
prisão de segurança máxima - Joliette - próxima à cidade de Montreal. Ela foi libertada em julho
de 2005, depois de cumprir a pena integralmente e alguns meses antes da estréia do filme Karla
(produzido em Hollywood e anunciado como Deadly durante vários meses), que conta a história
criminosa do casal. Calcula-se um lucro de cem milhões de dólares com a exibição do filme
mesmo sem a venda de um único ingresso de cinema ou DVD em solo canadense, onde foi
boicotado.
101
Verificamos como o discurso legal se utilizou do discurso centífico para definir e explicar
a identidade da mulher-criminosa; em outras palavras, somente a psicologia e a psquiatria
conseguiram justificar o comportamento delituoso de Karla. Na articulação de dois discursos
conflitantes, como o discurso científico e o jurídico, pudemos constatar que o primeiro negava a
agência da mulher-vítima e o segundo não aceitava a síndrome da mulher espancada como
exclusão da culpabilidade de Karla.
Talvez não possamos responder: Quem é Karla?. Mas podemos entender as condições que
a tornaram foco e alvo de atenção constante da mídia por tantos anos. Ela é uma espécie de
“celebridade” do “mal”. Ela simboliza o que é considerado errado na própria sociedade
canadense. Por meio de Karla, várias mensagens morais foram transmitidas para a sociedade: o
mundo está cheio de “demônios”, agentes do mal, que às vezes vêm disfarçados e podem estar
em qualquer lugar. Então, leis mais rígidas são necessárias para coibi-los, a fim de que se
mantenha a ordem na sociedade.
Por que Karla cometeu crimes tão bárbaros? Aliás, como pôde cometer tais crimes se ela
era a típica “menina” canadense? Constatamos que a dia respondeu a essas questões, em um
primeiro momento, quando da representação de Karla como vítima e, portanto, inocente.
3.1 A violência contra a mulher e o discurso jurídico
Partiremos da análise dos excertos de um encarte especial Spousal Abuse: The Shocking
Truth - Hitting home publicado em 23 de março de 1996, (vide anexo 11), no jornal The
Toronto Star, a fim de verificar como o discurso jornalístico, o discurso feminista e o discurso
criminológico se articulam gerando efeitos e (re)criando certas identidades.
Os textos jornalísticos que abordam o tema da violência promovida pelos homens contra
as mulheres propõem a exposição das histórias e as suas conseqüências sociais, psicológicas,
médicas e legais. Além disso, o enfoque na construção da mulher como recipiente “natural” da
violência masculina, agente passiva e sem agência. Assim, a categoria mulher é (re)apresentada
como uma categoria una e homogênea, congelando-se identidades e criando-se ou fortalecendo-
se estereótipos.
102
O uso dos estereótipos é recurso efetivo nos textos jornalísticos uma vez que simplifica e
explica a categoria “mulher”. De acordo com Fowler (1991:17), a ocorrência de certos eventos
reforçam estereótipos e, reciprocamente, mais forte (grifo nosso) o estereótipo, mais chance terão
os eventos considerados relevantes de se tornarem notícia. Freqüentemente, a representação na
mídia reforça certos medos da sociedade, por exemplo, o medo dos crimes, fazendo com que a
opinião pública reinvidique das instituições governamentais formas mais autoritárias de controle
social.
Podemos considerar, então, que a mídia tem um interesse especial por histórias de crimes
e que ela busca freqüentemente identificar um tema que justifique um grande interesse, por
exemplo, o “pânico”, na sociedade.
Como já dito, o special reprint reuniu uma série de matérias jornalísticas sobre a violência
contra a mulher que foram publicadas diariamente na seção Insight durante sete dias (de 9 a 16 de
março de 1996 – confira no anexo 11) e que acabaram se tornando o encarte especial do jornal.
De acordo com o editorial, o encarte foi motivado pelo impacto em que o caso O. J.
Simpson havia causado na mídia e no público, trazendo à tona o tema da violência doméstica.
Embora o tema tivesse sido abordado muitas vezes anteriormente, o interesse em denunciar as
falhas do sistema jurídico canadense em casos de crimes de violência doméstica justificava a
publicação de mais matérias.
O encarte trouxe os seguintes textos: 7 Days, The Accused, Managing Anger, Culture
Clash, Repeat Offender, The Costs, Crown’s Dilemma, Hitting Back, The Star’s View e Where to
Turn, dos quais passaremos a analisar alguns excertos.
Pela análise da fotografia podemos observar, em primeiro plano, uma mulher sentada,
sozinha, com as mãos na cabeça, em atitude de desespero e angústia, e um segundo plano pouco
legível.
A legenda diz Aftermath of an assault: Domestic assault victim slumps to the ground in
anguish while her common-law husband is being arrested for attacking her last July 2., que
reforça a idéia da mulher completamente desprotegida e solitária: o desespero dela não se devia,
no entanto, ao ataque que havia ocorrido, mas porque o parceiro-agressor estava sendo preso.
Podemos perceber que a imagem reforça a concepção da “lealdade” feminina e de que às
instituições cabem decidir o que é “melhor” e “certo” para essas mulheres, no caso. Podemos
103
conjecturar que a imagem e a legenda não deixam dúvidas de que a mulher seria incapaz de agir
sem a proteção institucional, que decide por ela, mesmo causando sofrimento.
Vejamos o artigo 10.
Hitting Home (by Rita Daly, Jane Armstrong and Caroline Mallan) - Brian
Skinner is an innocent man. In the eyes of Ontario’s criminal justice system, the
34-year-old store manager did not beat, choke or try to smother his girlfriend. /
The neighbors who called police never testified. On the day of the trial, the
victim, a 19-year-old waitress, told the judge she didn't remember a thing. / The
judge never heard this part. We did. / The Star tracked those cases and discovered
that vicious assaults were virtually going unpunhished by a legal system that has
been unable to deal effectively with the problem. / The assaults were violent.
Women were slammed to the floor, pummelled with fists, jabbed with brooms,
beaten with telephones, cut with knives, chocked, smothered, kicked and raped.
They were threatened with death. / All this from husbands, boyfriends and ex-
lovers. / The Star study found a justice system failing at every step, with judges,
crown attorneys, defence lawyers and police pointing the finger of blame
elsewhere.
Podemos constatar pelo excerto que o sujeito do enunciado é o porta-voz do discurso
institucional jornalístico que denuncia o sistema legal como ineficiente quando se trata de
penalizar os agentes da violência contra a mulher. Além disso, a comunidade e a própria vítima
são apontadas como responsáveis pelas falhas do sistema judiciário. Pelas asserções The
neighbors who called police never testified. / The Star study found a justice system failing at
every step, podemos verificar que uma mensagem moral é passada ao leitor: a sociedade como
um todo é culpada e, portanto, “todos” devem colaborar e “tudo” deve ser feito para que o “mal”
não volte a acontecer.
A instituição jornalística se (re)apresenta como a detentora da “verdade” porque, ao fazer
um trabalho investigativo, conclui que o sistema judiciário é ”realmente” falho quando se trata de
punir culpados nos crimes de violência contra a mulher e apresenta ao leitor as razões de tal
falha: a passividade da comunidade e das próprias vítimas. Mas, não somente a “verdade” é
mostrada, como também a solução para tal falha é dada como veremos mais adiante.
104
Artigo 11:
7 DAYS (by Jane Armstrong, Rita Daly and Caroline Mallan) 133 cases of
domestic violence. 230 charges. That was one week in Metro, The Canada Day
week, last summer. Few of the accused were jailed; most received little more than
a slap on the wrist. And case after case fell apart because the victim, often
coerced, changed her story.
O artigo 11 corrobora o que foi dito: o sistema é inoperante por causa da vítima que muda
seu depoimento diante da polícia. Podemos perceber que o uso dos verbos fell, coerced e changed
no passado torna o fato inquestionável, uma “verdade” absoluta. Assim, os processos criminais
não foram levados adiante porque as vítimas falharam. Percebemos o caráter homogêneo da
afirmação: é como se todos os processos criminais de crimes de violência contra as mulheres
resultassem em fracasso legal porque todas as vítimas não relatam o crime ou mudam o
depoimento durante o processo. Contudo, o texto menciona que, muitas vezes, as mulheres são
coagidas a mudar o depoimento - often coerced -, porém este fato não é levado em consideração,
uma vez que a vítima é responsável de qualquer maneira pelo fracasso do sistema. Então, a
formulação ignora as condições sociais e culturais das “vítimas” e desconsidera a subjetividade
delas.
A feminista Vivian C. Fox
20
afirma que a visão ocidental de “mulher” e o tratamento a
ela dispensado tem a ver com a influência das idéias religiosas da cultura judaico-cristã, da
filosofia grega e do código legal do direito comum - common law - uma vez que essas tradições
assumiram a forma patriarcal como um sistema natural da vida em sociedade: os homens, sendo
“naturalmente” superiores, são os que dominam e protegem. Na visão da autora, essas ideologias
justificaram um modelo de sociedade militar e patriarcal e justificaram também a violência contra
as mulheres, vista como “uma expressão natural da dominação masculina”.
My general approach is to construct an argument, which demonstrates the
relationship between the three belief systems mentioned above, and violence
towards women. I do this by deconstructing the ideas that reveal attitudes towards
women, which place them in inferior positions to men. I further maintain that in
their explanation of difference-as-inferior, and in their long-standing cultural
20
FOX, Vivian C. Historical Perspectives on Violence Against Women, publicado no Journal of International
Women’s Studies -Vol. 4 # 1 November 2002 – www.bridgew.edu/SoAS/jiws/fall02/historical.perspectives.pdf
105
acceptance, they have imprinted a psychic cultural memory that lingers and
continues to motivate belief and behavior, despite historic change. Thus,
reinforced by ideology and by long-held patriarchal cultural practices, the cultural
psyche retains the long-held beliefs even when circumstances alter. (op. cit.:2)
A sociedade patriarcal tem como base a subordinação feminina e a heterossexualidade
compulsória (Skinner, 2002). Apesar de o Liberalismo ter questionado a superioridade biológica
masculina e rejeitado os preceitos do patriarcalismo (Fox, 2004), carregamos em nossa memória
cultural essa representação da violência. Como dito anteriormente, para as idéias liberais de
liberdade, os gêneros são irrelevantes; o sujeito racional constitui as pessoas e não os seus corpos.
Excerto 1:
And he and Laura were back together again. I worked really hard for a life
with Luc and I never really planned a life without him. You don’t just drop your
feelings for the persons,” Laura said later.
Pelo excerto verificamos que é reforçado o estereótipo da mulher-vítima como ingênua,
emocionalmente frágil, vulnerável e necessitada de proteção. Mesmo sofrendo a violência física,
a mulher ainda assim prioriza o relacionamento com seu parceiro, o agressor. A citação da fala do
enunciador, através do discurso direto, confere veracidade ao fato, homogeneizando os sentidos;
isto é, a importância das relações familiares na constituição da identidade de mulher-vítima.
A Conferência Mundial das Mulheres, realizada em Pequim em 1995, considerou a
violência contra as mulheres com “Área Crítica de Preocupação” e no parágrafo 113 da
Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres da O.N.U., encontramos a
seguinte definição de violência:
The term “violence against women” means any act of gender-based violence that
results in, or is likely to result in, physical, sexual or psychological harm or
suffering to women,
including threats of such
a
cts
,
coercion or arbitrary
deprivation of liberty, whether ocurring in public or private life.
Relembramos que, nos séculos XII e XIII, no direito comum - sistema de leis baseados
em decisões judiciais - se desenvolveu na Inglaterra, e o estupro foi considerado crime, havendo
portanto uma pena estipulada para o estuprador. O estupro era definido como a penetração sexual
106
forçada, contra a vontade da mulher. Porém, uma mulher não podia acusar o próprio marido de
estupro, uma vez que o direito comum considerava a esposa como propriedade do cônjuge.
Assim, nenhum marido seria punido se usasse de violência para obter sexo de uma esposa e estas,
aliás, não podiam recusar sexo aos maridos, pois estavam impedidas legalmente de fazê-lo por
força dos contratos de casamento.
21
No entanto, como resultado da exposição da violência doméstica, as leis foram alteradas a
partir da década de 1980 pelo Parlamento Canadense, que reconheceu a existência da molestação
sexual doméstica e permitiu que cônjuges pudessem ser condenados pelo crime de violência
sexual - sexual assault. Atualmente, o código criminal canadense prevê que tantos os homens
quanto as mulheres podem ser condenados pelo crime de violência sexual. Em acréscimo, a
imunidade marital é rejeitada, o que desloca a questão da violência doméstica da esfera privada
para a esfera pública.
A alteração jurídica da definição de estupro gerou outras relações de poder e criou outros
significados, por exemplo, o homem também ser passível e, portanto, vítima do crime de estupro,
além da criação da figura do acquaintance rape ou date rape que se referem a estupros entre os
indivíduos que sejam conhecidos ou amigos ou os que estejam namorando.
22
Em outras palavras, uma vez que o tópico da vitimização feminina foi inserido dentro do
discurso criminológico e as teorias criminais passaram a considerar o gênero e suas relações, o
próprio discurso jurídico foi alterado, gerando outros efeitos, outras relações de poder,
produzindo outros conhecimentos. Então, podemos afirmar que o discurso jurídico tem um papel
importante na formação das identidades femininas.
Nas últimas duas décadas do século XX, a mídia passou a dedicar grande atenção ao tema
da violência contra as mulheres. No entanto, pelo que podemos constatar, o discurso da violência,
principalmente nos jornais, parece limitado às violações sexuais e às violações dentro do contexto
familiar, ou seja, o debate sobre violência encontra-se limitado a uma categoria que talvez mais
convenha ao formato da notícia e, portanto, ao que “vende” mais. Ungerleider (1991) nos diz
que:
21
Rape (law) em MSN Encarta Premium – http://encarta.msn.com/encyclpedia_761564013/Rape_(law).html -
acesso em 24/08/2004.
22
Em Wikipeda Rape p. 01– http://en.wikipedia.org/wki/Rape - acesso em 20/8/2004.
107
This is not to suggest that the media are part of a conspiracy to deny diversity, nor
even to suggest the existence of a conspiracy...The media, like any other
corporate interests, are animated primarily by a concern for profits...A factor
which intensifies these processes...is the concentration of media ownership in
Canada (Eamon, 1987). In fact, the concentration of media ownership is
unsurpassed by any other democratic nation. The patterns include vertical
integration, multiple media ownership in single markets, and media
conglomerates.
Podemos constatar como os artigos descrevem detalhadamente a agressão sofrida pelas
mulheres e, a partir de nosso próximo artigo, exploramos como a instituição jornalística lida com
a questão das minorias no discurso de violência contra as mulheres.
Artigo 12:
CULTURE CLASH - For many immigrant women caught in the web of domestic
abuse, the situation is magnified by the isolation that comes with living outside
mainstream society. Often the pressure to drop charges is overwhelming.
For Sushma Jhamtani, being chocked and slapped was caused by her
“misbehaving”. For Lan Nguyen, dishes were smashed over her head because of
a misunderstanding. For Jaswinder Sabdhu, it was easier to turn off the lights
and cower in her apartment than to answer the door and accept the subpoena
that would call her to testify against her husband. These women are immigrants
for whom the pressures of the law are magnified by the isolation that comes with
living outside mainstream Canadian society because they don’t speak English or
are unfamiliar with Canadian-style justice. At least 30 of the 127 women who
were the complainants in the 133 cases studied by the Star were immigrants, many
of them recent newcomers to Canada. The abuse is no different, the violence no
less intense. But for them, the pressure from within their homes and their
communities to drop the charges against their husbands is overwhelming.
Sushma Jhamtani’s husband hasn’t hired a lawyer for his Oct. 30 trial in North
York’s courtroom 302. Jai Jhamtani, an Indian immigrant who has been in
Canada five years, doesn’t think he needs one. His 32-year-old-wife will take the
stand and explain that her husband is an innocent man who should never been
arrested for assaulting her shortly after midnight on July 7, 1995. She is going to
explain that it was all her fault..Sushma tells the judge that she wants her
husband back. “oh, yes, I sincerely want to live with him.”
Lan Naguyen’s name is called outside the courtroom on Dec. 21, but there’s been
no response. That’s because she isn’t going to testify against her husband of 25
years, despite being served with a subpoena the night before and assuring the
officer that she would attend...a new crown attorney assigned to the case
withdraws the charges after realizing Lan will recant her story.
108
Podemos perceber, pelas frases living outside mainstream / because they don’t speak
English, que as minorias visíveis, isto é, os grupos étnicos e raciais identificados pelo
Departamento de Estatísticas do Canadá – Statistics Canada – como os chineses, asiáticos,
negros, filipinos, sul-americanos e aborígenes, são representadas de uma maneira negativa, uma
vez que estereotipada. Percebemos pelo excerto que os sujeitos-vítimas são três mulheres
imigrantes de países diferentes, mas representadas homogeneamente: todas sofrem violência, não
falam o inglês, não conhecem o sistema jurídico e sofrem pressão da comunidade para não levar
adiante o processo criminal iniciado contra os maridos.
Segundo Spurr (1993), quando se nega a capacidade lingüística da minoria, nega-se o seu
valor cultural. Podemos depreender que, implicitamente, está a idéia de que na civilização
ocidental, se a mulher sofrer violência, ela agirá, a sociedade irá apoiá-la e protegê-la, a justiça
será feita e o criminoso será devidamente punido (sic!). Mas isso não significa, conforme os
excertos 3 e 4 mostram, que o problema da violência cessará, uma vez que a própria vítima aceita
o predador de volta. Em outras palavras, quando se trata de mulher-vítima, o sistema jurídico-
penal poderia funcionar perfeitamente, mas isso não acontece; a violência continuará por “culpa”
da vítima e não do sistema.
Um efeito provocado quanto à categorização homogênea das minorias é a impressão de
que sendo os seus valores culturais outros que não os ocidentais, todas as mulheres que sofrem
violências calam-se, submissivamente protegendo os promotores da violência, ou, quando não se
calam, não têm o entendimento de que podem contar com o sistema jurídico-criminal, que está à
disposição delas. Outro efeito gerado é o de que as mulheres imigrantes que sofrem violência são
as próprias culpadas do abuso. Isso faz sentido se entendermos que a mídia opera dentro de um
sistema ideológico que celebra a ordem social existente, a qual valoriza o individualismo dentro
dos princípios do capitalismo liberal.
De acordo com Côté, Sheehy e Majury,
23
a mulher, vítima da violência doméstica, não
pode ser forçada a testemunhar contra o marido, mesmo no caso de lesões corporais. O princípio
da “unidade marital” historicamente “privatizou” a sua queixa, o que a obriga a arcar com todos
os ônus do procedimento criminal envolvidos no caso. As autoras citam o fato de que, na
23
CÔTÉ, Andrée, SHEEHY Elizabeth e MAJURY Diana (2000) NAWL’s Brief Defense on Provocation.
http://www.nawl.ca/provocation.htm – acesso em 19/07/2004.
109
província de Quebec, até 1982, e em Saskatchewan, até 1990, as esposas eram impedidas
inclusive de processar civilmente os maridos por perdas e danos, por exemplo.
Em sua visão, as mulheres que denunciam os maridos violentos deparam-se com um
sistema jurídico que as revitimiza (grifo nosso) porque a segurança e a liberdade não são
garantidas às vítimas da violência doméstica. Além disso, as autoras afirmam que os homens que
espancam as mulheres se beneficiam de uma série de exclusões de culpabilidade oferecidas pelo
sistema penal. Uma delas é a teoria da provocação, que legaliza, ainda que parcialmente, a
violência privada. Elas nos dizem que:
The judicial discourse on women’s propensity to “cause” male homicidal rage
and men’s inability to control their anger is fraught with sexist assumptions that
lay the blame for male violence on female behaviour. Provocation has been a
constant theme in a wide-range of crimes of violence against women from rape,
to sexual harassment, wife assault and incest. (:23)
A ênfase dada ao comportamento da vítima nos remete à mencionada ideologia
judaico-cristã que culpa as mulheres por todos os “demônios” da humanidade (Côté, op. cit.).
Podemos, então, dizer que é considerado provocação quando a mulher denuncia a
violência, isto é, ela está “comportando-se” mal, o que “permite” e “justifica” uma reação de
“defesa” por parte do “provocado”.
Como dito, verdades são apresentadas de maneira inquestionável e a instituição, depois do
trabalho investigativo, propõe soluções, como veremos na análise do próximo texto.
Artigo 13:
THE STAR’S VIEW Editorial - / For eight months, The Star team tracked each
and every charge through the system, watching the emotional and legal fall-out of
a violence so pervasive and insidious that it respects no social, cultural, economic
or educational barrier. It is not easy reading. The pain is palpable, the human cost
sometimes unberable. But neither is it rare: Despite what may seem like an
unusual spate of feverish attacks on women, police report that this is the norm
each week in our city. /...our reporters reveal another terrible truth. Despite
mandatory charging policies, repeat arrests and a heightened public intolerance
of domestic violence, the justice system is still failing miserably. Victims who
called police entered a strange netherworld. Most were never contacted by the
110
Ministry of the Attorney-General’s victim services, or by crown attorneys’s
prosecuting their cases, even though government policy requires it. Despite
sufficient surronding evidence to prosecute, cases were routinely thrown out if the
woman was too scared to testify against her abuser. / The inescapable
conclusion may be that society’s war against domestic violence is being lost. But
as the Star’s series will show, there are solutions.
Podemos constatar como o excerto acima é ilustrativo de “episódios, condição, pessoas ou
grupos de pessoas” que nessa formação discursiva são “definidas como uma ameaça aos valores e
interesses das sociedade”, o que Cohen (1972:9). denominou de “pânico moral” - The Moral
Panic. De acordo com a Wikipedia,
24
o “pânico moral” é um movimento de massa baseado na
percepção de que indivíduos ou um grupo, freqüentemente um grupo minoritário ou subcultura
(grifo nosso), divergem perigosamente dos valores tradicionais e se apresentam como uma
ameaça à sociedade. Esse “pânico” é geralmente incrementado pela mídia que relata questões
sociais, às vezes causando uma histeria pública.
A moral panic is specifically framed in terms of morality, and usually expressed
as outrage rather than unadulterated fear. Though not always, very often moral
panics revolve around issues of sex and sexuality. A widely circulated and new-
seeming urban legend is frequently involved. (Wikipedia)
No trecho do artigo acima, podemos verificar pelas asserções police report that this is the
norm each week in our city. /...our reporters reveal another terrible truth. / the justice system is
still failing miserably / there are solutions, que não a menor dúvida para o leitor de que é fato
inquestionável a mulher ser vítima da violência masculina, uma vez que isso foi comprovado
pelos relatórios policiais. A instituição jornalística “descobre” também, como apontado
anteriormente, que o sistema judiciário canadense é falho, mas ela (a mídia) sabe como
solucionar o problema.
Artigo 14:
24
http://en.wikipedia.org/wiki/Moral_panic - acesso em 29 de julho de 2005.
111
HITTING BACK in San Diego (by Jane Armstrong, Rita Daly and Caroline
Mallan) This southern California city is winning the batlle against domestic
violence by using all the evidence available. Prosecutors prefer that the abused
not testify. / It’s based on the premise that victims – mainly women – are
reluctant, unreliable witnesses in domestic crimes because of the emotional
complexity of the crime. So they’re rarely asked to testify against their batterers.
Instead, the work of sending a guilt defendant to jail is left up to police and
prosecutors, who have devised a three-pronged method of prosecution.
No excerto, encontramos as seguintes representações:
- as vítimas são as mulheres
- as mulheres são culpadas pela falha do sistema legal
- as mulheres são emocionais
- as mulheres não são confiáveis
- as mulheres necessitam da proteção institucional
Assim sendo, a instituição jornalística apresenta a solução para o problema da violência
doméstica, ou seja, a condenação do acusado: o exemplo californiano. Na Califórnia, as mulheres
não são obrigadas a testemunhar contra os acusados e, portanto, são isentas da responsabilidade
de “agir” e de serem “culpadas” da possível condenação do agressor. Às instituições policiais e
jurídicas cabe a função de proteger e decidir pela mulher-vítima.
Como discutido, a mídia colhe as informações que transmite ao público e, neste
processo, ela também escolhe, seleciona e decide como “contar” a notícia. Assim, uma versão da
“realidade” é passada ao público. Violência é a “chave” da narração jornalística sobre a violência
contra as mulheres. Ao narrar as histórias sobre crimes, a mídia contribui para que o medo se
generalize, o que leva o leitor a apoiar, nesse caso, uma justiça criminal mais autoritária. O
“pânico”, então, pode gerar efeitos legais, por exemplo, a alteração de legislação concernente à
violência. Assim, às instituições cabem proteger a vítima e decidir por ela sem que esta precise
sequer se manifestar.
Mais uma vez mostramos que no backstage das representações das identidades femininas,
estereótipos são constantemente (re)produzidos, uma vez que os textos jornalísticos não
questionam a categoria “mulher” e nem a sua subjetividade.
112
3.2 FGMFemale Genital Mutilation - A mutilação genital feminina
Vejamos outra narrativa jornalística, a qual também tem a ver com a vitimização e com o
discurso de proteção, mas na qual foi dada ênfase à agência da mulher-vítima.
Artigo 15: publicado no jornal The Toronto Star, em 14 de julho de 1994, na primeira
página. (Vide anexo 12).
Excerto 1:
WOMAN GIVEN REFUGEE STATUS TO SAVE DAUGHTER FROM SEXUAL
MUTILATION (by Laurie Monsebraaten – social policy reporter)
A Somali woman who wants to protect her 10-year-old daughter from ritual
genital mutilation has been granted refugee status in Canada in what is believed
to be the first case of its kind in this country. /”When they told me my case was
positive, I couldn’t believe my ears,” said a grateful Khadra Hassan Farah in a
telephone interview from her Ottawa home yesterday.
Uma primeira observação diz respeito à posição do texto no jornal, pois trata-se de
matéria inserida no espaço superior da primeira página, lugar considerado de destaque nos
periódicos. Conforme Gregolin (1998:26) a primeira página é um lugar textual em que devem
predominar as mensagens referenciais, que pretende oferecer ao leitor uma espécie de síntese
do conteúdo do noticioso. Os destaques selecionados dizem respeito aos principais
acontecimentos do país e do exterior, como uma súmula da História-em-curso.
Gostaríamos de relembrar que o Canadá, além de movimentar uma indústria da
imigração (grifo nosso), que tem por cota o recebimento de 200.000 novos residentes
anualmente, é um país que oferece refúgio aos perseguidos por motivos religiosos, políticos ou
de guerra. A partir de 1993, passou a aceitar refugiados “supostamente” perseguidos por sua
condição sexual conforme mencionado no texto jornalístico.
O texto jornalístico conta a história de uma mãe somaliana que conquista a condição
social de refugiada no Canadá ao alegar que a filha sofreria a mutilação genital caso fosse
deportada para a Somália, o seu país de origem. Conforme já discutido anteriormente, pelo
113
processo de personalização (Fowler, 1991:16) as pessoas são usadas como símbolos através de
suas biografias pessoais, evitando-se uma discussão mais ampla nos níveis social e econômico.
Ungerleider (1991) nos diz que a mídia influencia o que os canadenses pensam sobre as
minorias. No texto que passamos a analisar encontramos as seguintes representações no
enunciado:
- as mulheres são vítimas dos homens,
- as mulheres muçulmanas são sexualmente mutiladas,
- as minorias precisam de proteção,
- a identidade feminina inclui as posições de mãe, vítima, minoria.
Excerto 2:
“I was prepared to leave my daughter here for adoption if my case was rejected.
I couldn’t take her back. It’s torture.” / More than 90 per cent of Somali women
are forced to endure the brutal “de-sexing” procedure that involves cutting the
external female sexual organs and sewing the opening shut except for a small hole
for urination, she said. /
O uso da voz passiva na manchete - Woman given refugee status - e nas sentenças ...has
been granted refugee status / women are forced / They did it to me reforça o estereótipo de que a
mulher não é agente, ela apenas sofre as ações das quais não tem nenhum controle, é passivizada
pelas ações “masculinas”. Percebemos que a identidade feminina de “vítima”, sujeito do discurso
feminista de violência contra a mulher, é reforçada. O sujeito-vítima, ao enunciar implicitamente
que você o é uma pessoa completa, normal, se comparada com os homens e os homens não
são costurados, traz a voz do discurso feminista da violência contra a mulher. Podemos dizer
que o tema está constituído pela voz e pelo olhar da mulher-vítima, sujeito do enunciado.
Contudo, nas modalizações de verdade I was prepared to leave my daughter here for
adoption / I couldn’t take her back / They did it to me and I didn’t want my daughter to go
through the same thing, que descrevem a possível realização de um evento, a agência do sujeito-
114
vítima no jogo discursivo faz-se presente quando a mãe diz que deixaria a filha para adoção, que
não poderia levar a filha de volta porque não gostaria que ela passasse pela mesma coisa, isto é,
sofresse a mutilação genital. Essa estratégia discursiva subverte a identidade feminina fixada na
vitimização. Na articulação do discurso de violência contra a mulher e do discurso institucional
de proteção às minorias desprivilegiadas, o sujeito enunciador “vítima” é ao mesmo tempo
sujeito e objeto do confronto desses discursos.
Excerto 3:
They did it to me and I didn’t want my daughter to go through the same thing,
the pain, the infections, the scars,” said Farah, 30. “It’s another way of telling
you you aren’t complete, normal person compared to men. Men don’t get
stitched.”.../
As sentenças More than 90% of Somali women are forced to endure the brutal “de-
sexing” procedure that involves.../ do excerto 2 e They did it to me.../ Men don’t get stitched.../
conduzem o leitor a pensar que o pronome “eles” se refere a homens. De acordo com
Maingueneau (2002), os locutores normalmente utilizam-se do pronome substantivo “eles” dito
coletivo para se referir a um sujeito indeterminado que designa um grupo e não tem antecedente.
O autor nos diz que:
Esse “eles” coletivo é usado somente no masculino plural e designa uma
coletividade, uma pluralidade, considerada globalmente e constituída de
indivíduos indeterminados. A coletividade assim designada por “eles” é sempre
um grupo...bem identificado, e jamais o conjunto do gênero
humano...(op.cit.:135)
Podemos depreender que o “eles” do excerto 1 se refere ao grupo que pratica a
clitorectomia. Será este grupo composto por homens? por mulheres? Por homens e
mulheres?
De acordo com o texto, a prática de “de-sexualização” consiste em cortar os órgãos
externos femininos, costurando-se a abertura vaginal e permitindo somente um pequeno espaço
para a saída da urina. Observamos que as palavras excisão, clitorectomia e mutilação genital
definem uma prática “contra” a sexualidade feminina que está relacionada ao prazer sexual da
mulher.
115
Foucault (2000a) nos afirma que “como membros de comunidades organizadas, os
indivíduos são sujeitos do poder disciplinar na forma de práticas habituais, métodos, desempenho
de papéis, as quais se submetem e aceitam por várias razões práticas”. Assim, o poder tem a
“forma de auto-controle”, um “sistema de regras” que se auto-impõem, gera e mantém a
comunidade funcionando. Em outras palavras, nos impomos os regimes de verdade.
Podemos constatar que em algumas sociedades, o prazer é considerado pertinente somente
ao sexo masculino. French (1992:114), em sua pesquisa com indianas de Delhi, muçulmanas que
acreditam que a prática da excisão e/ou da circuncisão feminina garante a salvação religiosa, a
entrada no paraíso, nos informa que, quando perguntadas sobre a perda sofrida com a circuncisão
ou excisão do clitóris, as mulheres, atônitas, não entendiam a que perdas a pesquisadora se
referia. Evidentemente, tratava-se do prazer sexual durante a copulação. French não obteve
nenhuma resposta e, assim, presumiu, pelos olhares e pela situação de constrangimento gerada,
que aquele grupo de indianas não sabia ser possível obter prazer das relações sexuais.
De acordo com French (op.cit.), em algumas sociedades os homens não se casam com
mulheres que não foram circuncidadas (grifo nosso), pois à mulher não caberia sentir prazer
sexual. Dessa maneira, os pais se sentem na obrigação de submeter as filhas à clitorectomia.
Muitas mães explicam a mutilação como um costume inquestionável, uma tradição. A não-
circuncisão ou excisão, isto é, a “completude”, tornaria a jovem diferente e, portanto, implicaria
marginalização e separação da sociedade, de acordo com a análise da autora.
Portanto, o sujeito do enunciado, através da asserção “It’s another way of telling you you
aren’t complete, normal person compared to men”, nos traz a voz da ideologia ocidental e não
da sua cultura de origem. As mães têm o papel de proteger, salvaguardar as filhas da
marginalização pela comunidade (French, 1992:113) e, portanto, participam da mutilação, quer
acreditando no valor da mesma, quer se encarregando elas próprias do procedimento. Vale
lembrar que, em muitas sociedades, a extração parcial ou total do clitóris não é feita dentro de um
padrão médico-cirúrgico, mas de maneira rudimentar; as mulheres, geralmente as parteiras, agem
como “cirurgiães”, ainda nos informa a pesquisa realizada por French.
116
Mas, de acordo com a Anistia Internacional,
25
o procedimento também pode ser realizado
por mulheres mais velhas, por uma curandeira, por um barbeiro, por uma parteira qualificada ou
por um médico. Normalmente, as mulheres presenciam a mutilação. Os “economicamente
privilegiados” se submetem à excisão em hospitais com a assistência de médicos e o uso de
anestesia.
Passando à análise da fotografia que acompanha o texto (vide anexo 15), percebemos que
ela está colocada à direita do artigo e, portanto, em uma posição de destaque. Na imagem, a
“mãe” está em primeiro plano e, em segundo plano, estão as filhas. A foto ilustra uma situação
familiar, curiosamente representada sem a figura paterna, com destaque para a mulher,
pertencente àquela categoria denominada pela política do multiculturalismo canadense de visible
minority. Ser interpelado como “minoria visível” significa ser minoria não-branca e, portanto,
minoria política..
Na visão de Carmagnani (1996), a linguagem visual utiliza recursos argumentativos
semelhantes aos da linguagem verbal:
...a fotografia, longe de ser um registro fiel da “realidade” (como pretendem
alguns especialistas e fotógrafos), é um registro parcial de personagens situados
historicamente, do ponto de vista de um sujeito-histórico (aquele que fotografa).
O resultado desse registro - a foto - é explorado pela imprensa de modos diversos
no convívio diário com seu público leitor. Desse modo, seu objetivo maior -
convencer o leitor da veracidade de sua versão dos fatos - é atingido, e o grande
potencial persuasivo da imagem visual é explorado dentro dos limites
determinados historicamente numa dada cultura. (1996:166)
Depreendemos da fotografia que se trata de uma mulher muçulmana, porque está usando
o chador, véu com que algumas mulheres islâmicas cobrem a cabeça. Portanto, podemos concluir
que a fotografia nos revela que o destaque, a notícia, na verdade, não é sobre a mutilação sexual
(problema que atingiu 135 milhões de mulheres no mundo, de acordo com a Anistia
Internacional), mas sim sobre a “nova” proteção governamental oferecida sob a forma da
concessão do status de refugiado às minorias que alegam perseguição por motivo de gênero e da
mutilação genital. Em nosso caso, o governo está oferecendo proteção à mulher que está na
25
Female Genital Mutilation - A Human Rights Information Pack. -
htpp://www.amnesty.rg/ailb/intcam/femgen/fgm1.htm - acesso em 25/05/2005.
117
iminência de sofrer violência por parte de homens e explica-se a ausência da figura paterna na
fotografia.
Excerto 4:
Canada officially began accepted refugee claims in early 1993 from
women who say they are being persecuted because of their gender.
But this is believed to be the first case of a woman claiming
refugee status based specifically on the fear of genital mutilation,
Rafuse said.
Lembrando Ungerleider (1991), quando as minorias recebem a atenção da mídia, elas são
retratadas como vilãs ou como vítimas por causa da estrutura de narrativa das notícias.
Ungerleider afirma que:
The under-representation and mis-representation of minorities by news-media are
not accidental. They are the product of the convergence of the mechanics of news
gathering and dissemination with the desire of those in position of influence to
maintain their privileged positions...thus, one mechanism for maintaining social,
political and economic inequality.
French (1992) informa que o islamismo não é o único responsável pela prática da
mutilação, que é também adotada por algumas religiões cristãs e animistas. Apesar de a
mutilação incentivada por alguns líderes muçulmanos ocorrer majoritariamente entre as
muçulmanas, é importante lembrar que em 80% do mundo islâmico ela não se verifica. A autora
ainda constata que a excisão foi amplamente praticada na Europa e nos Estados Unidos,
principalmente na segunda metade do século XIX. A prática da clitorectomia estava
aparentemente relacionada com a “cura” de distúrbios sexuais como a masturbação, a ninfomania
e o lesbianismo (op.cit.:110). Supostamente, de acordo com a autora, milhares de mulheres
sofreram esse tipo de operação e, em 1897, por influência da opinião de um médico-cirurgião de
Boston que considerava uma doença o orgasmo feminino, a extração clitoriana passou a ser
executada freqüentemente em hospitais para doentes mentais até meados de1935.
118
Na narrativa jornalística analisada, o tema foi apresentado como um conflito entre forças
opostas: de um lado, o vilão, o Mal e, de outro, o herói da narrativa, as forças do Bem. Nesse
caso, o vilão é o povo somaliano, capaz de atrocidades como o barbarismo da mutilação genital.
Ao governo canadense, através do seu departamento de imigração, coube o papel de herói da
história. Na frase When they told me my case was positive, o “eles” é o “grupo” protetor, paternal,
que concede o refúgio, outorga uma cidadania e que resgata pelo menos uma das vítimas do
barbarismo selvagem. O personagem-vítima foi representado pela minoria visível canadense:
mulher, não-branca e refugiada.
Lembramo-nos de Bhabha (1994) e sua concepção de “espaço intersecial”, que é o espaço
entre, “in-between”, um terceiro espaço no qual os indivíduos que estão entre culturas podem
articular as experiências vividas para construir o sentido de suas identidades múltiplas e
contingentes. Para o autor, os significados não são fixos, mas sim contingentes; o hibridismo -
terceiro espaço - é produtivo, pois gera contradições, considerando-se que o dizer não está
separado do fazer, a teoria não está separada da prática e o narrar não está separado do agir.
Bhabha (1996) sustenta ainda que a performance da narrativa pessoal é capaz de
desconstruir as representações binárias de antagonismos sociais. Assim pode-se (re)significar o
passado e reinterpretar o futuro, criando um espaço dentro da narrativa nacional. Na análise do
interdiscurso, constatamos a presença do discurso feminista radical da violência contra a mulher,
que sai da esfera privada e passa para a esfera pública e, portanto, política, criando “saberes”. Um
dos efeitos gerados é o de que, uma vez reconhecida a mutilação genital como uma violação aos
direitos humanos, reconhece-se o direito da vítima ao pedido de refúgio político, por exemplo.
Por outro lado, os imigrantes que se originam de comunidades em que a mutilação genital
é prática comum, em seu novo país, mantêm ou tentam manter as mesmas práticas sociais.
Assim, por exemplo, os somalianos, que passam a viver em países como o Canadá ou os Estados
Unidos, tentam perpetuar a prática da mutilação genital, realizando-a quer seja através de
médicos da própria comunidade quer enviando a “paciente” para o país de origem ou
“importando” mulheres com experiência para a realização da operação, que normalmente é
considerada ilegal.
Então, levando em consideração que o dito é inseparável do contexto e o contexto é
atravessado pelo social, pelo histórico e pelo ideológico, constatamos que a palavra “proteção”
119
significa, de acordo com o contexto, com o locus da enunciação, o que demonstra a arbitrariedade
do signo. Para grande parte das mulheres somalianas, proteção significa passar pelo processo da
mutilação ou excisão clitoriana. Mas, quando se muda o locus, proteção significa justamente o
contrário, isto é, protegê-las contra a excisão.
Na articulação entre um discurso masculinista
26
de proteção em que o objeto é a
mutilação genital - considerada necessária para que a mulher se torne mulher e, portanto,
completa - e um discurso feminista também protecionista, mas que tem por objeto a proteção do
sujeito-vítima da violência - sendo a excisão ou mutilação genital considerada como tal -, nos
deparamos com um mesmo discurso protecionista, mas com dois objetos distintos.
Na narrativa de sua história pessoal, tanto “minoria” quanto “vítima” parecem ter a sua
identidade fixada, congelada e individualizada como tal, o que contradiz a concepção
foucaultiana segundo a qual a identidade é produzida pelo vários discursos que estão em
circulação. Os significados dessas identidades múltiplas e contingentes são criados na articulação
da experiência pessoal através da narrativa, em um processo que confere visibilidade às vozes
excluídas da narração oficial. Ao narrar, a “vítima” se (des)coloca em outro espaço, fazendo
valer o conceito de Bhabha (1994) para o qual o sujeito parcial, brido e habitante do “terceiro
espaço”, isto é, aquele que está “entre-espaços” culturais, deve ter reconhecido o seu direito de
narrar, que é na verdade o seu direito de existir dentro de uma narrativa oficial nacional.
Resumo do Capítulo
Neste capítulo foram analisados os modos de funcionamento dos discursos de alguns
textos jornalísticos da imprensa canadense.
Constatamos como os textos propõem uma abordagem que aparentemente celebra a
mulher por meio da exposição de questões como a vida familiar, a profissão e a violência contra
elas, mas que na verdade produzem representações que legitimam certas identidades e
marginalizam ou silenciam outras.
26 Usamos a palavra masculinista em oposição à feminista.
120
As representações se originam da construção da identidade feminina como mulher-mãe,
mulher-objeto e mulher-vítima que produzem enunciados atravessados por discursos muitas
vezes conflitantes que provocam diferentes efeitos de sentido.
Verificamos como a mulher é representada dentro de um contexto familiar, construindo
discursos de subordinação e de definição da identidade feminina dentro de uma esfera privada,
em contraposição ao mundo masculino e público.
Como conseqüência da mulher-objeto, verificamos representações que contróem a mulher
como objeto de consumo e de prazer masculinos a partir de uma visão “masculinista” da
sexualidade feminina.
A mulher é representada implícita ou explicitamente, na mídia, como tima “natural” da
brutalidade masculina, necessitada de ajuda institucional, uma vez que a “verdade” da violência é
exposta através das “denúncias” jornalísticas e publicamente reconhecidas.
Na aparente tentativa de proteção à mulher pelas instituições patriarcais, a construção da
mulher-vítima reforça e confirma estereótipos e cria efeitos de sentidos negativos, na medida em
que a mulher-vítima é um tipo de caricatura do estereótipo de mulher recipiente natural da
violência masculina.
Cedendo espaço a um discurso liberal, a mídia ajudou na construção de uma imagem
feminina de super-mulher, mas (re)construiu a mulher-vítima através do discurso feminista
radical de violência contra a mulher.
Assim, pudemos constatar que o discurso feminista, o discurso liberal-humanista, o
discurso legal, o discurso vitoriano e o discurso centífico se fazem presentes nos textos
jornalísticos, favorecendo a formação das identidades das mulheres brancas, heterossexuais e
ocidentais.
Conclusões
122
I can´t help but dream about a kind of criticism that would try not to judge but to bring a
work, a book, a sentence, and idea to life; it would light fires, watch the grass grow, listen to the
wind, and catch the sea foam in the breeze and scatter it. It would multiply not judgements but
signs of existence; it would summon them, drag them from their sleep. Perhaps it would invent
them sometimes all the better. Criticism that hands down sentences send me to sleep; I’d like a
criticism of scintillating leaps of the imagination. It would not be sovereign or dressed in red. It
would bear the lightning of possible storms.
(Foucault, 1997:323)
123
Tivemos por objetivo, nesta dissertação, discutir como os textos jornalísticos -
instrumentos de informação utilizados pela população de maneira geral - produzem “saberes”
sobre as identidades femininas neles representadas. Realizamos uma análise dos discursos que
atravessam o texto jornalístico com a finalidade de comprovar a nossa hipótese de que a aparente
celebração da diversidade das identidades femininas e/ou das mulheres pela dia, na verdade,
exclui, marginaliza ou silencia outras identidades.
Ao ceder espaço para o discurso liberal feminista de igualdade entre os gêneros - o qual
aparentemente representa as mulheres em posição de igualdade na sociedade -, a mídia construiu
a imagem da super-mulher, que é mãe, profissional, bonita, jovem e sexy.
Na década de 1990, a mídia também construiu a “mulher-vítima”, sujeito do discurso
feminista radical de violência contra a mulher, que congela a identidade feminina em uma
posição de inferioridade e de subordinação ao mundo masculino. Constatamos como a mídia
representa a mulher de maneira estereotipada, num formato “consagrado” do que seja mulher e
feminilidade, fixando certas identidades, limitando a própria experiência da subjetividade
feminina.
A nossa análise foi possível dentro da abordagem da Análise do Discurso (AD), que
entende que a linguagem não é transparente e objetiva e opera ideologicamente nas relações
sociais de “saberes” e “poderes”. Portanto, a argumentação a partir do contexto sócio-histórico e
ideológico na qual a enunciação está inserida provou ser de fundamental valia.
Verificamos que, ao representar as mulheres, os jornais funcionam como veículo
ideológico de construção de conhecimento: portanto, não são um veículo neutro de transmissão
de informação ou de verdades; eles são instrumentos de mediação entre os vários discursos que
circulam na sociedade. Assim, a mídia é uma das principais arenas na qual acontece a luta pelo
significado com a finalidade de (re)definir e (re)construir verdades.
Como foi visto, nos norteamos por uma visão pós-estruturalista do texto que entende a
realidade como o produto da negociação entre o texto e o leitor, no qual o gênero é
constantemente (re)definido.
124
Nos excertos analisados, são legitimadas e valorizadas as identidades femininas que se
relacionam com a vida doméstica, isto é, as de mãe, profissional, mulher-objeto e vítima.
Os enunciados que analisamos representaram a mulher como mães “naturais”, mesmo
quando inseridas em um contexto profissional. Partimos, depois, para a análise da representação
das mulheres como objetos sexuais, seres que existem para satisfazer e servir às necessidades
sexuais e econômicas masculinas. Analisamos também a representação da mulher como
“minoria”, como o “outro” negativamente diferente; uma questão complexa, mas que serviu para
mostrar que algumas instituições canadenses aparecem como “heróis” e/ou homogêneas, como se
estivessem livres de suas próprias contradições sociais.
Constatamos que as representações das mulheres na mídia canadense são atravessadas
pelos discursos liberal humanista, vitoriano, científico, criminológico e por um discurso patriarcal
que entende a mulher como inferior. O discurso feminista também atravessa as representações e,
contraditoriamente, reforça - através do discurso radical de violência contra as mulheres - a noção
de inferioridade e/ou de subordinação feminina.
De acordo com Naomi Wolf (1990), a imagem construída pela mídia, no período pós-
guerra, foi a da mulher-esposa e dona-de-casa feliz, imagem esta que servia aos interesses da
emergente indústria de produtos eletrodomésticos. Essa imagem foi superada pelo modelo da
super-mulher, ou seja, aquela que é mãe, profissional, bela, magra e jovem. Dessa vez, de acordo
com a escritora, a indústria da dieta e dos cosméticos estava por trás dessa objetificação, o
chamado mito da beleza (the beauty myth).
Como conseqüência, as identidades femininas da mulher-mãe e da mulher-objeto são
exaltadas, representadas como padrão a ser seguido, como modelo de “perfeição”.
Concomitantemente, a identidade da mulher-vítima é construída como marca da brutalidade e
violência do homem, e reforça o estereótipo da “superioridade” biológica e da supremacia
masculinas.
Relembramos que as categorias são limitadoras, rígidas, e constatamos, através da
categorização imposta das muitas representações das identidades femininas e/ou das mulheres,
que elas (as categorias), na verdade, se enredam e estão determinadas pelas relações de poder.
Nesse contexto, pudemos verificar como o patriarcalismo é silenciado e certas identidades
femininas são legitimadas, o que produz o efeito “naturalizante” de que “mulher” é uma categoria
125
una, homogênea e desprovida de ideologia. O próprio feminismo, ao representar a categoria
mulher, também contribui para a sua homogeneização.
Pudemos comprovar que, quando se trata da representação das mulheres, várias
“verdades” são construídas ao longo do processo.
Na mídia, os discursos político-liberal, científico, criminológico, assim como o discurso
feminista, posicionam o sujeito da enunciação - mulher -, que não assume certas posições de
sujeito e, se as assume, é dentro de certas imagens e concepções claramente patriarcais.
Os textos jornalísticos, portanto, não propõem reflexões sobre a mulher e/ou suas
diferenças. Assim, os leitores são levados a aceitar as representações constituídas como sendo
verdades inquestionáveis.
Parafraseando Foucault (1982), a filosofia tenta resolver o “problema do tempo presente”
e o de saber “quem somos”. O autor argumenta que descobrir quem somos não é tão importante
quanto recusar o que somos. Assim, é necessário promover outros tipos de subjetividades através
da recusa do tipo de individualidade que nos foi imposta por séculos (op. cit: 216).
Segundo Irigaray (1985a), Freud descreveu a sexualidade da mulher simplesmente como
o outro lado, ou o lado errado, da sexualidade masculina. De fato, como pudemos perceber, as
identidades femininas estão representadas de maneira fixa e estável, como o outro. Podemos
argumentar, então, que “sexualidade feminina” ou “feminilidade” limitaram a experiência da
mulher sobre a sua própria sexualidade.
Para Lois McNay,
1
a concepção foucaultiana sobre a sexualidade não ser uma qualidade
natural ou inerente ao corpo, mas sim o efeito de relações específicas e históricas de poder,
forneceu um importante instrumento de análise para as feministas explicarem porque a
experiência feminina é empobrecida e controlada dentro de determinadas imagens da sexualidade
feminina.
Assim, o sujeito sofre as influências sociais, porém, não é determinado por elas.
Ao longo do trabalho tentamos responder a várias perguntas: Quais os efeitos de sentido
provocados pela representação da mulher como mãe, objeto ou vítima? Como essas identidades
1
McNAY, Lois. Michel Foucault, Feminism and Identity (idea) de frandeluxe –
http://www.everything2.com/index.p1 - acesso em 11/10/2003.
126
femininas foram construídas pela mídia? Quais os discursos que atravessam o discurso
jornalístico? O que acontece na articulação de discursos conflitantes e oposicionistas, como o
discurso feminista na sociedade patriarcal? Afinal, de que “mulher” fala o discurso
representacional feminista? Acreditamos ter podido responder tais questões, dentro da nossa
concepção da função dos discursos que atuam na sociedade.
No entanto, algumas outras tantas surgiram e mereceriam ser respondidas, por exemplo: O
que são a subjetividade e a sexualidade “femininas” na tentativa de entendimento do processo
que fez com que chegássemos ao “ser mulher” neste momento histórico? Em outras palavras,
como pudemos constatar, através das várias análises das representações das identidades
femininas, algumas dessas identidades estão congeladas em estereótipos, quer seja o da “mãe”, o
do “objeto sexual” ou o da “vítima”. Como chegamos às categorias históricas de “mulher”,
“outro” ou “objeto”?
De acordo com Chris Dunning (1997), a linguagem simbólica escrita e a invenção da
mídia impressa mudaram radicalmente a forma de comunicação e a própria formação do
pensamento, o que nos estimulou a perceber a informação sobre o mundo como algo
desassociado de nós mesmos e fora de contexto, em contraposição a um mundo que conhecia a
palavra falada e, portanto, contextualizada no presente e que deixava de existir no momento em
que era pronunciada.
Alguns teóricos afirmam que vivenciamos uma revolução no pensamento humano com
algumas mudanças de paradigmas, principalmente pelos novos sistemas conceituais que se
baseiam em multilinearidade, link e network. É inquestionável para eles que a mudança do texto
impresso para o texto eletrônico não afeta somente o modo como nos relacionamos com o texto
per se, mas afeta também o modo como o conhecimento humano é “catalogado”.
A desconstrução dos sistemas representacionais de “mulher”, “feminina” e “feminilidade”
através da análise dos discursos sobre a mulher pode levar ao (re)dimensionamento e
(re)interpretação de suas posições de sujeito em nossa sociedade e, compreender mesmo que
parcialmente, a constituição de suas identidades.
E, por construção positiva, no mínimo, estamos nos referindo a uma identidade de mulher
fragmentada, mas não transformada em pedaços - de carne ou de mente.
127
Talvez tenhamos que nos perguntar por que aceitamos, nos submetemos e até
concordamos com uma representação que é, no mínimo, estereotipada.
Estrategicamente, mulher talvez seja “minoria”. Mas, com certeza, mulher vai além dos
“limites” preestabelecidos pelas inúmeras categorias classificatórias que norteiam suas
identidades. Fica por nossa conta esse (re)descobrimento.
Portanto, parece-nos interessante explorar como as definições do sexo e dos gêneros, ou
seja, como as definições congeladas dos papéis sexuais estão se deslocando em todo esse novo
mundo da comunicação digital, que pode se tornar uma nova arena de (re)definição da
“categoria” mulher.
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