Download PDF
ads:
A Lira Paulistana de Mário de Andrade:
a insuficiência fatal do Outro
José Emílio Major Neto
Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a
obtenção do grau de Doutor em Teoria
Literária e Literatura Comparada.
Orientação: Profª. Drª. Iumna Maria
Simon.
S
ÃO PAULO
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar o último livro de poesia de Mário de
Andrade, Lira Paulistana, com especial atenção para o longo poema “A meditação
sobre o Tietê”, cujo aspecto mais importante é a figuração do estado de derrelição
da voz poética, manifestado num permanente efeito de pungência em todo o
poema.
A derrelição é fruto da percepção de uma impossibilidade — experimentada
como contradição insolúvel — de encontrar a alteridade autêntica e, por meio dela,
o sentido da própria identidade. A raiz desse conflito é social.
Pela análise do poema, procura-se demonstrar que a contradição insolúvel
encontra sua formalização literária no limiar da morte.
Palavras-chave: Mário de Andrade, Lira Paulistana, “A meditação sobre o Tietê”,
derrelição; símiles da morte.
Abstract
The objective of this paper is to analyze the last poetry book from Brazilian
author Mário de Andrade, Lira Paulistana, giving special attention to the long poem
"A meditação sobre o Tietê". The most important aspect of this poem is the
portraying of the state of dereliction of the poetic voice. This state is manifested by
a permanent effect of poignancy throughout the poem.
The dereliction is born from the perception of an impossibility —
experienced as an insoluble contradiction — of finding genuine otherness and,
through it, the sense of the own identity. This conflict has a social source.
The analysis of the poem tries to demonstrate that the insoluble
contradiction finds its literary formalization in the threshold of death.
Key-words: Mário de Andrade, Lira Paulistana, “A meditação sobre o Tietê”,
dereliction, death similes.
ads:
3
Agradecimentos
À professora Iumna Maria Simon, que sabe conjugar com equilíbrio a crítica
sempre sincera e a capacidade de dizer com afeto.
Aos professores Valentim Facioli e Telê Porto Ancona Lopez, pelas
importantes contribuições oferecidas no exame de qualificação.
Aos professores Joaquim Alves Aguiar, José Antônio Pasta Júnior e
Roberto Daud, pelo afetivo diálogo ao longo dos anos.
Aos amigos sempre presentes: César Mota, Clenir Bellezi de Oliveira,
Emília Amaral, Mário Cantoni Callari, Marlene Alves Tavares e Paula Arbex.
E ao amigo Antonio Carlos Moreira de Souza (Cacá), pelo inestimável
auxílio na conclusão do trabalho.
4
Índice
Apresentação..........................................................................................................8
Introdução: Lira Paulistana: a insuficiência fatal do Outro....................................12
Capítulo I
A questão da classe: o intelectual e as elites nacionais
O poeta e a rainha................................................................................................31
Experiência e criação: as figurações do escritor
O poeta e a preceptora........................................................................................40
A caneta e o Arlequim..........................................................................................49
Capítulo II
Livro Azul, A Costela do Grã Cão e Lira Paulistana.............................................56
Sistema de oposições e o conflito social............................................................. 62
Capítulo III
A ira de Tânatos, a dissolução de Narciso e a solidão de Orfeu.........................78
5
Leitura de poemas
Os tortuosos caminhos da cidade e a insuficiência fatal do outro
1. Garoa do meu São Paulo,............................................................................82
2. A catedral de São Paulo.......................................................................85
3. Agora eu quero cantar..........................................................................94
4. Moça linda bem tratada....................................................................................104
5. Quando eu morrer quero ficar..........................................................................108
6. Num filme de B. de Mille...................................................................................117
A guerra em nós
1. O sabor de uma promessa falhada .................................................................120
Capítulo IV
“A meditação sobre o Tietê”
1. “Louvação da tarde”: marco de viração............................................................136
2. O poema e suas imagens: o espelho negro e uma ronda de sombras............154
3. O arco admirável da morte...............................................................................180
4. A ponte das Bandeiras: simbolismo e história..................................................183
5. O poeta e seus rios: “Eu sou aquele que veio do imenso rio”..........................199
6. A ponte e o poeta melancólico..........................................................................214
7. São Paulo: entre Babel e Sião..........................................................................218
8. Os três poemas finais: um tríptico?..................................................................226
Anexo I
“Agora eu quero cantar”........................................................................................231
6
Anexo II
“A meditação sobre o Tietê”..................................................................................234
Anexo III
Nota sobre a ortografia de “Grã Cão”...................................................................244
Anexo IV
Carta LXXXVII.......................................................................................................246
Iconografia
Foto da catedral de São Paulo.............................................................................255
O “Arlequim” na Commedia dell’Arte....................................................................256
O “Dottore” na Commedia dell’Arte......................................................................257
O “Doutor” no Bumba-meu-boi.............................................................................258
Mapa de São Paulo e o rio Tietê..........................................................................259
Melancolia de Dürer.............................................................................................260
Bibliografia..........................................................................................................261
7
Não importa, repito, que Mário de Andrade não esteja
satisfeito consigo mesmo, nessa “fase integralmente política da
humanidade” que o seu pensamento mais recente denuncia. Nós
estamos satisfeitos com ele pelo que foi, pelo que é, pelo que não
deixou de ser, na sua absoluta dignidade de homem consciente,
apaixonado, companheiro e estímulo de outros homens
desnorteados ou frágeis.
1
Carlos Drummond de Andrade
1
Andrade, Carlos Drummond. Suas Cartas. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p.
1354.
8
Apresentação
O presente trabalho tem como objetivo analisar o último livro de poesia de
Mário de Andrade — Lira Paulistana —, concentrando-se no estudo de “A
meditação sobre o Tietê”, poema concluído poucos dias antes da morte do autor.
Na introdução geral, é discutida inicialmente uma parcela da fortuna crítica
existente sobre a produção poética do escritor paulista: a análise se concentra em
dois críticos que estabeleceram um instrumental analítico visando a uma
compreensão global da obra poética de Mário de Andrade: Antonio Candido e
João Luiz Lafetá. Ao longo do trabalho, surgirão referências à leitura de Victor
Knoll, que buscou interpretar — também na totalidade — o sistema de imagens
que percorre a obra do modernista.
O primeiro capítulo analisa em linhas gerais as mudanças sociais ocorridas
no Brasil entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930, que
produziram profundas alterações da posição social do intelectual e do escritor no
Brasil. Em Mário de Andrade, as duas funções — de intelectual e de escritor —
sempre se confundem. Essas mudanças obrigaram o poeta a estabelecer um
confronto cada vez mais duro com uma questão fundamental: a aguda consciência
da forma particular que o conflito social assume na periferia do capitalismo.
O ápice dessa consciência se encontra justamente na poesia da década de
1940 e tem sua plena expressão no longo poema “A meditação sobre o Tietê”.
Pari passu com a crescente consciência social do poeta, vai se presentificando —
de forma cada vez mais intensa — o seu sentimento de isolamento diante dos
“donos da vida”
2
: a crise das velhas oligarquias, que culmina na revolução de
1930, abala profundamente as relações, sempre conflitivas, do escritor com as
2
Andrade, Mário de. A meditação sobre o Tietê. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São
Paulo: Edusp, 1987, p. 393.
9
elites tradicionais do país, por conseguinte a derrelição do poeta moderno adquire
dimensão irrefutável
3
.
No segundo capítulo, encontra-se uma análise genérica de todos os
poemas da Lira Paulistana, procurando demonstrar que há neles um procedimento
formal e estilístico recorrente — provisoriamente designado como sistema de
oposições ou sistema dualístico —, que funciona como regulador formal do fluxo
imagético. Esse procedimento percorre os poemas do livro e, por meio desse
recurso, inscreve-se na linguagem poética a consciência cindida diante da qual as
contradições nacionais são representadas por uma espécie de dialética truncada:
um movimento permanente de oscilação entre pólos opostos sem que se enuncie
uma síntese autêntica, pois neste universo imagético se concentram figuras da
indeterminação ou da tensão insolúvel. Em suma, esse fenômeno pode ser
considerado expressão de profundos conflitos que atravessam a ordem subjetiva
(a questão da identidade), projetam-se nas relações sociais e se ramificam na
consciência da precária formação nacional.
Quanto maior é a precisão e a clareza com que o poeta estrutura e explicita
nas imagens o jogo das oposições, tanto melhor é o efeito poético obtido, pois os
conflitos são registrados num movimento pendular permanente que pode ser
designado pelas expressões: eterno retorno do mesmo ou eterno retorno do mal,
em que o interior e o exterior se confundem de maneira inextricável e dão forma
poética a um processo caracterizado pela má-infinidade permanente.
Em Mário de Andrade, os conflitos internos e os externos se imbricam
visceralmente: a crise de identidade do indivíduo se alastra pela obra e encontra
ressonância na (in)definição da própria identidade nacional. Sob esse aspecto, a
comparação da “alma” do poeta com a “catedral” que nunca se conclui, no poema
“A catedral de São Paulo”, da Lira Paulistana, é uma imagem poderosa desse
processo.
3
A palavra “derrelição” está sendo usada aqui não na acepção metafísica heideggeriana, mas
como expressão do profundo sentimento de abandono que marca a experiência dos pobres no
Brasil.
10
O que está em jogo nessa conjunção é a idéia moderna de bildung
(formação), que tem sua melhor definição no famoso romance Os anos de
formação de Wilhelm Meister, de Goethe. Como se sabe, na obra do escritor
alemão, a “formação” se dá em três níveis: a do indivíduo, a da obra e a da nação.
No Brasil — devido à precária constituição desses três níveis —, paira
sempre a sensação de incompletude e de fracasso que só pode ser simbolizada
num movimento circular infernal de eterno retorno, em que o “eu” e o “outro” se
mesclam incessantemente: identificação, desidentificação e indistinção regem a
formação incompleta da própria subjetividade em conexão com modos de
socialização particulares do país que pode ser resumida na expressão “o mesmo
que é o outro”.
No terceiro capítulo, analisam-se detidamente sete poemas, selecionados
em função da sua relevância para a sedimentação da proposta central da tese.
São eles:
1. Garoa do meu São Paulo
2. A catedral de São Paulo
3. Agora eu quero cantar
4. Moça linda bem tratada
5. Quando eu morrer quero ficar
6. Num filme de B. de Mille
7. Entre o vidrilho das estrelas dúbias
Finalmente, o quarto capítulo é integralmente dedicado à análise e à
interpretação de “A meditação sobre o Tietê”: poema marcado por intenso efeito
de pungência que está em conexão direta com a derrelição do poeta moderno, isto
é, complexo existencial que, por sua vez, parece ser expressão do isolamento
social do poeta desamparado pela antiga e decadente ”aristocracia tradicional”
que “nos dava mão forte”
4
. Trata-se da intensa solidão da voz lírica que não
4
Essas expressões foram retiradas do famoso ensaio “O Movimento Modernista”, que se encontra
em Aspectos da literatura brasileira, de Mário de Andrade (p. 238). Elas dão, por si só, a dimensão
11
encontra ecos na alteridade autêntica, o que parece ser o núcleo do dilaceramento
encenado em “A meditação sobre o Tietê”.
O poema “A meditação sobre o Tietê” é marcado, do princípio ao fim, pela
oscilação permanente entre o desejo de desvelamento crítico da experiência da
voz poética e o desejo de produzir um efeito de pungência que solicita
integralmente a adesão do leitor à obra: o discurso poético se mostra
simultaneamente “iluminista” e “iluminado”
5
. Dessa forma, ao mesmo tempo em
que o poema constitui o leitor como seu oposto dialético e diferenciado, ele o
suprime.
O discurso poético oscila permanentemente entre o histórico e o mítico, que
impõe ao leitor, ao mesmo tempo, o distanciamento e a fusão. A leitura oscila
entre o contrato e o pacto. O poema parece ser expressão de uma possessão
lúcida e sua manifestação mais evidente é o transe que lança o leitor no espaço
do rito — do rito de morte.
Destarte, a busca da alteridade autêntica, que se fundamenta na
consciência da luta de classes, vem sempre associada nos poemas da Lira
Paulistana a um sistema imagético regido por símiles da morte. A grande questão
a ser compreendida na produção final da lírica de Mário de Andrade é justamente
esse cruzamento complexo e indissolúvel entre a consciência do conflito social e a
pulsão de morte que perpassa todos os poemas do livro, de modo mais ou menos
explícito.
da proximidade existente entre os modernistas de 1922 e a elite paulistana do período. Paulo
Prado e D. Olívia Guedes Penteado são figuras mais visíveis envolvidas no processo.
5
Pasta Júnior, José Antônio. Pompéia: a metafísica ruinosa d’O Ateneu. São Paulo: USP, 1991.
12
Introdução
Lira Paulistana:
a insuficiência fatal do Outro
6
A obra lírica de Mário de Andrade abrange um período de vinte e oito anos
7
e demonstra continuidade e permanência relevante ao longo de toda a trajetória
criativa do escritor. Sua produção poética é testemunho dos requisitos que o
próprio autor atribui ao movimento modernista na famosa conferência de 1942:
O que caracteriza esta realidade que o movimento
modernista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios
fundamentais: o direito permanente à pesquisa; a atualização da
inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma
consciência criadora nacional.
8
A poesia do autor paulistano acompanha e registra boa parte das
transformações e oscilações sofridas na sensibilidade e nos modos de
representação poética da primeira metade do século XX
9
. Nela é perceptível o
6
A expressão “a insuficiência fatal do Outro” foi retirada de uma carta de Mário de Andrade
destinada a Carlos Drummond de Andrade. Ver o anexo IV, que se encontra no final deste
trabalho.
7
Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, primeiro livro de poesia de Mário de Andrade, é de
1917. Já o último, Lira Paulistana, é de 1945. Cabe observar que o livro de 1917 se encontra no
volume das obras do autor intitulado Obra Imatura; já o de 1945 se encontra no livro Poesias
Completas.
8
Andrade, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Martins, s/ d, p. 242.
9
Esta é a tese central do livro Figurações da Intimidade de João Luiz Lafetá.
13
diálogo com as enormes contradições impostas ao processo de criação e
expressão, num momento marcado pelo desejo de modernização do país.
A lírica de Mário de Andrade parece sempre operar em duas chaves
distintas e complementares. De um lado, ela atende aos requisitos da
modernidade estética constituída na tradição literária dos países mais
desenvolvidos da ordem capitalista internacional. De outro, enfrenta as
particularidades culturais típicas de um país na periferia desse universo. País onde
o próprio caráter nacional motivava apaixonada discussão nas primeiras décadas
do século. Em síntese, sua obra é marcada por um sopro de compromisso com as
grandes questões de seu tempo, tanto no âmbito nacional quanto no universal.
Desde a euforia dos primeiros anos do Modernismo até a amargura que
acompanha o final de sua existência, desenvolve-se a inquietação criativa e
humana que impede a acomodação aos padrões já instituídos e estabilizados pelo
próprio Modernismo. Essa inquietação confere a sua produção lírica o aspecto de
oscilação muitas vezes surpreendente, pois, de um livro a outro, o tom, a dicção, a
temática, as resoluções formais, o registro lingüístico etc., mudam completamente
e apontam para direções muitas vezes opostas e aparentemente contraditórias,
expressas no famoso verso “Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta”
10
.
Outro aspecto marcante e sempre lembrado da sua obra é o diálogo entre a
multiplicidade de gêneros cultivados pelo autor paulistano: poesia, romance,
conto, pesquisa etnográfica, ensaio, crítica literária, musical e de artes plásticas
etc. Essa multiplicidade de interesses aponta com clareza para o papel do
intelectual e do artista num contexto socialmente marcado por relações produtivas
que não permitiam ainda a especialização plena dos agentes de cultura. A obra de
Mário está sempre encenando a posição do artista e do intelectual na sociedade
brasileira de seu tempo.
Entretanto, cada vez mais, torna-se perceptível que os desdobramentos
existentes na obra do autor paulistano ocultam um núcleo coerente de questões
prismadas e focalizadas de maneiras diversas, à medida que o tempo vai impondo
reavaliações fundamentais das perspectivas: sob a capa da aparente
10
Verso do poema “Eu sou trezentos”, que abre o livro Remate de Males.
14
multiplicidade de interesses e áreas de atuação, esconde-se uma unidade que
paulatinamente é desvendada pela crítica.
Segundo Antonio Candido, a chave dessa unidade está no fato de que
Mário de Andrade “Tinha o culto da solidariedade humana, e quem não partir
deste ponto não lhe entenderá a obra nem a vida”
11
. Desde os primeiros anos de
congregado mariano até a politização crescente de sua fase final, o sentido de
adesão solidária às grandes questões do tempo percorre sua obra e dá-lhe
coloração cada vez mais comprometida com tudo o que produziu ou simplesmente
esboçou. A politização crescente do seu discurso poético é acompanhada pela
intensificação do tom amargurado e desencantado, cujo ápice está em “A
meditação sobre o Tietê” — poema paradoxalmente revelador tanto do grau de
comprometimento do autor com os conflitos sociais quanto da intensidade de sua
desilusão decorrente da ineficácia do discurso.
Esse movimento é, por sua vez, marcado por um outro centrado na
interiorização do discurso poético, pois é no núcleo dos conflitos subjetivos
encenados pela voz lírica que todas as contradições sociais se materializam,
todavia só a aguda consciência da forma poética moderna pode impedir que o
discurso deságüe no engajamento esquemático. A sua forma lírica assume de
dentro para fora o que a constitui enquanto tal: a materialidade das relações
sociais que são o seu verdadeiro e necessário oposto dialético. Essa consciência
da interiorização crescente da poesia de Mário de Andrade é claramente definida
por Antonio Candido:
“Louvação da tarde”, de Mário de Andrade, foi escrito em
outubro de 1925 e publicado em 1930 como penúltimo poema da
série denominada “Tempo de Maria”, no livro Remate de Males.
Ele ocupa na sua obra uma posição chave, porque representa a
11
Candido, Antonio. Mário de Andrade. In: Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: DPH, 1990, p.
70.
15
passagem da poesia mais exterior dos primeiros tempos de luta
modernista para a poesia mais interior da última fase.
12
Na mesma direção, segue João Luiz Lafetá, que, a partir de outras
observações de Antonio Candido, busca dividir a obra de Mário de Andrade em
fases relativamente bem delimitadas. Apesar de longa, a citação que se segue é
de fundamental importância para que possamos localizar com clareza a posição
que a Lira Paulistana ocupa na obra do escritor:
Quero registrar agora a leitura de Antonio Candido,
também apresentada num ensaio curto de 1942, e que concorda
em pontos importantes com as afirmativas de Álvaro Lins.
Examinando o volume de Poesias de 1941, o crítico vê ali um
balanço de toda a atividade do poeta, capaz de ressaltar a grande
coerência “que manifesta através da precisão cada vez maior de
sua maneira poética.” E tenta – creio que pela primeira vez –
esquematizar os “vários aspectos, várias maneiras, e vários
temas” dessa atividade.
Quanto aos vários aspectos, Antonio Candido assinala os
seguintes: o poeta folclórico, no Clã do Jabuti; o poeta do
cotidiano, na Paulicéia Desvairada, no Losango Cáqui e em parte
do Remate de Males; o poeta de si mesmo, ao lado do qual, e
sempre agarrado a ele, está o poeta eu mais o mundo, no Remate
de Males, n’ A Costela do Grã Cão e no Livro Azul; e, por fim, o
criador de Poética. Entre as várias maneiras, o crítico nota
sobretudo três: a maneira de guerra do período inicial do
Modernismo; a fase de encantamento rítmico, cheia de
virtuosismos saborosos; e a maneira despojada que baixa o tom,
esquece o brilho e busca o essencial. Quanto aos temas, a sua
variedade escaparia a qualquer enquadramento, e ele limita-se a
chamar a atenção para três ou quatro; o tema do Brasil, o tema
do conhecimento amoroso (e do amor falhado), o tema do
autoconhecimento e da conduta em face do mundo.
12
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
1998, p. 257.
16
Essa esquematização — “medrosamente aventurada’”
como ele diz — cumpre o seu objetivo, que é o de indicar a
riqueza da pesquisa poética de Mário de Andrade. Tem a
vantagem, também, de tirar-nos das afirmativas vagas sobre a
diversidade da poesia, e mostrar com clareza os modos dessa
diversidade. Ainda hoje, olhando o conjunto das Poesias
Completas, só nos seria possível acrescentar mais um aspecto,
uma maneira e um tema, que àquela altura não se poderia mesmo
conhecer porque ainda não eram públicos: o poeta político, a
maneira de combate engajada e o tema do choque social,
presentes em O Carro da Miséria, Lira Paulistana e Café.
Mas mesmo assim isso já está, de algum modo, insinuado
no pequeno ensaio crítico, quando Antonio Candido observa que
ao lado do poeta de si mesmo, e ”sempre agarrado a ele, está o
poeta eu mais o mundo”.
13
Partindo do esquema proposto por Antonio Candido e das análises de
Anatol Rosenfeld
14
sobre o tema da sinceridade e do cabotinismo em Mário de
Andrade, Lafetá propõe a noção de “máscara” para sistematizar as “fases” da
poesia do autor na sua relação complexa e mediada pelos impasses históricos e
sociais vividos no período de sua produção. Segundo ele, seriam cinco as
“máscaras”:
À preocupação cosmopolita, que sucede às grandes
transformações urbanas do começo do século, corresponde a face
vanguardista, a máscara do trovador arlequinal, do poeta
sentimental e zombeteiro que encarna o espírito da modernidade
e de suas contradições; às preocupações com o conhecimento
exato do país e de suas potencialidades, corresponde a imagem
do estudioso que compila os usos e os costumes (procurando
entendê-los e organizá-los numa grande unidade), a máscara do
poeta aplicado; à preocupação com as mudanças estruturais em
1930, que para a burguesia significavam o realinhamento e o
13
Lafetá, João Luiz. A Figuração da Intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1986, pp.6-7.
14
Rosenfeld, Anatol. Mário e o cabotinismo. In: Texto / Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969.
17
reajuste de suas forças em um novo equilíbrio, corresponde a
imagem do escritor dividido, do poeta múltiplo, a própria máscara
da diversidade em busca da unidade; à preocupação com as
crises sucessivas da hegemonia com que se defronta o Estado
nos anos imediatamente posteriores à revolução, corresponde a
imagem da crise (ou crise da imagem?), a máscara de uma
intimidade atormentada, feita de mutilações e desencontros, uma
espécie de espelho sem reflexo; à preocupação com a luta de
classes, que floresce nos anos 30 e que a burguesia soluciona
através da ditadura e da traição aos seus princípios igualitários,
corresponde o último rosto desenhado pelo poeta, a figura da
consciência cindida que protesta, a máscara do poeta político.
15
Observa-se que o conceito de “máscara” traz implícita uma visão dualista, a
pressuposição da existência de uma face atrás do artifício, de uma “verdade”
dissimulada. Roberto Schwarz, ao abordar o mesmo tema na obra de Machado de
Assis, afirma:
Eu acho problemática a utilização de máscara porque
naturalmente supõe que atrás dela exista a cara propriamente dita.
E uma das grandes novidades de Machado de Assis é a ausência
de uma cara atrás da máscara. (...) Quando se pensa,
burguesamente, em máscara, tem-se em mente um disfarce útil e
que encobre uma outra coisa, a qual é realmente a vida. No limite,
a máscara poderia desaparecer, e apareceria a verdade. Em
Machado de Assis, não.
16
Acreditamos também que o termo “máscara”, por ser uma categoria
interpretativa problemática, é insuficiente para explicar a complexidade da poesia
de Mário de Andrade. As oscilações poéticas do modernista são máscaras? Trata-
se mesmo de máscaras ou de oscilações expressivas? Não seria melhor pensar
15
Lafetá, João Luiz. Op. cit, pp. 15-16.
16
Bosi, Alfredo et alli. Mesa-redonda. In: Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p. 334.
18
que “máscara” é na verdade a “mediação da forma” como expressão do trabalho
artístico?
Ao analisar o Livro Azul, parece que Lafetá contraditoriamente caminha
nessa direção e define melhor o termo “máscara” como consciência da expressão
e da forma, citando o próprio Mário de Andrade:
Escrevo demais. Jogo sessenta por cento fora e o resto
inda dá pra publicar uns três livros por ano, é fantástico. Isso
me desgosta bem. E já não são mais eu! Só uns poucos
permanecem eu, pelo menos no meu eu permanente, o que
subsiste através de todas as minhas mudanças... O eu atual é
dos "Poemas da Negra" e do "Crepúsculo", deste eu não estou
gostando absolutamente nada. Foi como amostra apenas.
Estou atingindo, Manu, creio que o cume da minha
invisibilidade. E é nisso que estamos atualmente no máximo de
separação: você todo sensibilidade, todo impulsivo, eu cada vez
mais recatado, mais artífice, mais principalmente invisível. E me
compreendo na minha invisibilidade. (...) eu quero palavras
líricas, refletindo em antípodas discretos e quase sempre bem
silenciosos os meus sentimentos e vida. Uma espécie de dupla
verdade, as palavras criando, absolutamente castigadas pelo
artista, um jogo vocabular com tudo o que um jogo vocabular
pode dar de sugestão e boniteza pros outros. Pode ser que esta
explicação não esteja clara pra você mas tenha certeza que sei
muito conscientemente e bem o que quero.
17
Ao comentar essas palavras do escritor paulista, Lafetá marca o termo
“invisibilidade” empregado pelo poeta como modo de explicitar o seu trabalho
particular com a forma poética naquele exato momento de sua produção:
Sem dúvida, trezentos-e-cinqüenta eus. Mas o que me
interessa aí é a idéia de "invisibilidade". Se entendi bem, ele
quer dizer que a poesia desta fase esconde, sob o
encantamento do jogo vocabular, a personalidade do "eu” lírico,
17
Apud: Lafetá, João Luiz. Op. cit., pp. 163-164.
19
os arroubos de sensibilidade e os impulsos de inspiração que o
"Prefácio Interessantíssimo" elevara tanto. Uma espécie de
objetividade lírica, confiada no poder poético da linguagem do
texto e desconfiada da expressão imediata do sujei
t
o — um
desaparecimento do sujeito por detrás do poema.
18
A “invisibilidade” ou “objetividade lírica” não é o que preside toda e qualquer
expressão poética, mesmo as que acreditam na total sinceridade expressiva
como, por exemplo, o romantismo oitocentista? Toda poesia é “objetividade lírica”
porque toda “subjetividade pessoal” já é mediação social. O indivíduo carrega
consigo o próprio tempo, a linguagem é o melhor exemplo, pois, enquanto, ela se
atualiza nos discursos individuais, é também um sistema coletivo, uma convenção
social submetida aos ritmos da história. Dizer “eu” já é dizer mais que “eu”.
É possível que Lafetá tenha tomado o rastro pela onça e encampado as
teorias estéticas de Mário de Andrade ao pé da letra. Já Roberto Schwarz, num
breve mas muito esclarecedor ensaio, demonstra como o escritor paulista possuía
uma visão pouco dialética do fenômeno poético em seus principais escritos sobre
o tema.
Segundo Schwarz, o poeta paulista oscilou durante a maior parte de seu
percurso crítico entre duas posições diametralmente antitéticas e conflitantes.
Inicialmente Mário de Andrade defende o subjetivismo profundo baseado na
manifestação livre e indomável dos elementos “subconscientes” que regeriam o
fluxo do discurso poético, teoria desenvolvida no “Prefácio Interessantíssimo”, de
Paulicéia Desvairada:
Para resumir esta primeira posição de Mário de Andrade,
subjetivista, podemos dizer que criou um universo conceitual para
explicar a poesia no qual ela não tem lugar; vista como igual à
verdade psicológica, perdeu sua especificidade. No quadro
maniqueísta de oposições que Mário aceita não existe superação,
a única possibilidade é mudar de lado: ser lírico ou técnico,
obedecer ao subconsciente ou à consciência, ser individualista ou
18
Idem, ibidem, p. 164.
20
político (...) A superação dessas antinomias, a dialética do
particular e do universal, do individual e do significado, núcleo
justamente da experiência estética, torna-se inconcebível na
oposição absoluta em que são mantidos os pares conceituais.
19
No segundo momento, a teoria recai no pólo oposto, defende-se o controle
que os móveis conscientes devem desenvolver sobre as pressões das forças
subconscientes, muitas vezes movidas por “feias intenções”. A poesia deveria ser
expressão de um projeto maior que vencesse o psicologismo da primeira
concepção. Nesse momento, está no horizonte das preocupações do poeta, o
projeto nacionalista que deveria conduzir os esforços da criação. Essa posição
vem expressa na teoria das “duas sinceridades” e da “sinceridade total” presentes
no ensaio sobre o cabotinismo do livro O empalhador de passarinhos:
Estamos no avesso do primeiro esquema. Os valores
positivos estão vinculados à consciência e a convenção, na
medida justamente em que estas tomam às fontes originárias a
virulência caótica. O que fora fonte de todo o bem, passa agora a
ser visto como raiz da desordem. (...) A inversão de valores que
presenciamos pode ser sintetizada: a ênfase abandona o que é
(verdade psicológica) para prender-se ao socialmente útil e
tangível. Os valores passaram para os propósitos, estes
impregnados todos pela idéia do nacionalismo. A poesia passa a
ser tarefa que exige cultura e estudo, pois deve ser um passo
construtivo na tradição que se elabora
20
.
A oscilação entre essas duas concepções divergentes teria como efeito o
fato de que “Sua reflexão habita como que um poço de paredes lisas, sem saída
natural, no qual circula e do qual somente por um salto poderia escapar”
21
. Para
Roberto Schwarz, só na fase final de sua reflexão, o modernista paulista caminhou
19
Schwarz, Roberto. O psicologismo na poética de Mário de Andrade. In: A sereia e o desconfiado.
São Paulo: Paz e Terra, 1981, p. 18.
20
Idem, ibidem, pp. 19-20.
21
Idem, ibidem, p. 19.
21
para uma concepção menos estanque e dualista sobre a poesia e que se
manifesta no conceito de “técnica pessoal”:
É pela expressão mais rigorosa de sua verdade pessoal,
diz Mário, que o indivíduo se universaliza; ao mergulhar em sua
própria subjetividade encontrará ao fundo, o social. A técnica deixa
de ser negação do lirismo, pelo contrário torna-se a condição de
sua realização. Nesta dialética estará a moralidade do artista,
assim como a possibilidade de pensar filosoficamente a obra de
arte. O apoio de texto que encontramos para esta última
superação é mínimo, mas pensamos que bastante convincente.
22
Não obstante o conceito utilizado (máscara ou face), o leitor se defronta
continuamente com a questão da pluralidade da obra de Mário de Andrade: “… os
muitos rumos da obra de Mário constituem sem dúvida um dos motivos da
paralisia da nossa crítica, que tem esbarrado na sua espantosa complexidade, até
hoje não assimilada de forma completa
23
”.
O famoso verso “Eu sou trezentos, trezentos-e-cincoenta...”, repetido
insistentemente por todos os estudiosos do poeta, ganha foro de verdadeira
recitação ritualística, porquanto diante dele todos sucumbem siderados pelo seu
poder de re-velação da interioridade mais profunda da obra do escritor paulista.
Velar e revelar constituem o movimento paradoxal e pendular desse verso,
câmara ardente, que, simultaneamente, ilumina o morto e ofusca-o pelo excesso
de luz
24
.
Segundo Lafetá, a questão da pluralidade da obra de Mário de Andrade
está diretamente associada à pesquisa da própria identidade, fenômeno já
percebido por Anatol Rosenfeld, e salientado por Álvaro Lins e Antonio Candido:
22
Idem, ibidem, p.21.
23
Lafetá, João Luiz. Op. cit., p. 2.
24
Pasta Júnior, José Antônio. Pompéia: a metafísica ruinosa d’O Ateneu. São Paulo: USP, 1991.
22
E é nesse ponto que sua crítica parece convergir com a de
Álvaro Lins, destacando uma face importante que nos desvenda,
não mais a diversidade da poesia, mas a sua unidade. Ambos
vêem com muita clareza que o melhor Mário de Andrade é aquele
que explora “o seu sentimento íntimo de homem” (Álvaro Lins),
aquele “que se retira em si mesmo” (Antonio Candido). Ambos
compreendem, também, que esse movimento de exploração da
subjetividade acaba por revelar o mundo de forma mais clara de
que os poemas intencionais.
25
Portanto o mergulho em direção à interiorização do discurso poético implica
adensamento da expressão lírica. O mergulho profundo na crise subjetiva produz
um sistema de imagens que é capaz de revelar muito mais do que a simples crise
da identidade:
E aqui estamos no centro do problema. O fato é que, se a
poesia de Mário de Andrade constitui uma exploração do ”eu” e
conta, como afirma Álvaro Lins, a história “de um homem
multiplicado que procura encontrar-se a si mesmo” (e isso
explicaria a sua pluralidade de temas e técnicas), ela constitui
também uma tentativa de explorar a multiplicidade da cultura
brasileira e de contar a história de um intelectual que procura
encontrar a identidade de seu país (e isso explicaria melhor as
determinações sociais da pluralidade). O movimento é simultâneo
e solidário: a busca da identidade nacional (enredada como
veremos nos interesses da classe a que pertence o escritor) liga-
se “ao problema mais íntimo da descoberta da própria
identidade”.
26
Dessa forma, as “figurações da intimidade” são na verdade “figurações da
exterioridade” e vice-versa, portanto o núcleo que alimenta toda a lírica do poeta
paulistano — provavelmente toda a sua obra — está no fato de que ela tem de
atender a dois “regimes” diferentes e contraditórios, apesar de solidários: a
25
Idem, ibidem, pp. 7-8.
26
Idem, ibidem, p. 8.
23
constante oscilação entre o “eu” o “outro”, entre a interioridade e a exterioridade,
entre o indivíduo e a nacionalidade, entre o indivíduo e a classe e entre a unidade
e a multiplicidade, desdobrando-se e alastrando-se em outras oscilações: o
nacional e o universal, o popular e o erudito, a música e a literatura, a criação e a
crítica.
O fenômeno descrito indicia uma fratura muito mais profunda e complexa
que transita diretamente pela função do intelectual e do artista num país periférico,
como é o Brasil, oscilando também entre dois “regimes contraditórios” formadores
de nossas estruturas sociais e subjetivas. Em suma, a nossa eterna conjunção de
traços e heranças arcaicas associadas a um processo irregular e heterogêneo de
modernização, que não nos permite atingir a modernidade. Num ensaio recente
sobre o Grande Sertão: Veredas, José Antônio Pasta Júnior aponta para um
problema similar:
Neste ponto, embora precocemente e para desenvolver
adiante, tocamos em algo de essencial para o livro: essa junção
inextricável, em um mesmo princípio, de movência obrigatória e
fixidez inamovível, de metamorfose contínua e pura repetição,
indica a fórmula de base que aqui se trata de identificar, o estatuto
da contradição insolúvel. Agitada internamente por uma movência
interminável ou movimento contínuo, ela se mexe
incessantemente sem , no entanto, sair jamais do lugar. Assume,
assim, a configuração de uma espécie de dialética negativa, que a
contradição faz bascular sem parada, mas que não conhece
superação ou síntese propriamente ditas
27
.
E a explicação desse fenômeno estaria no processo histórico particular de
formação do país, que estrutura todos os níveis de relações, sociais ou subjetivas:
Nação colonial e pós-colonial, o Brasil já surge na órbita
do capital e como empresa dele, mas se estabelece e evolui com
27
Pasta Júnior, José Antônio. O romance de Rosa in: Novos estudos Cebrap. São Paulo: Cebrap,
1999, n. 55, p. 63.
24
base na utilização maciça, praticamente exclusiva e multissecular,
do trabalho escravo. Essa contradição de base forma uma espécie
de enigma histórico e sociológico que as ciências humanas
permanecem a interrogar entre nós. Quem acompanha o debate
brasileiro sabe os trabalhos a que se dão sociologia, história,
filosofia, economia para identificar, enfim, o modo de produção
que diz respeito à nossa formação histórica, numa querela que
segue aberta. Ao longo de séculos, e de um modo que nunca
superam completamente seja a Independência, sejam as
sucessivas modernizações conservadoras, o Brasil praticou a
junção contraditória de formas de relações interpessoais e sociais
que supõem a independência ou a autonomia do indivíduo e sua
dependência pessoal direta
28
.
Essa “contradição insolúvel” é evidente na experiência do escritor brasileiro
e dela Mário de Andrade demonstra ter consciência. Percorre constantemente sua
obra figurações mais ou menos veladas da posição conflituosa que o escritor
moderno ocupa em solo nacional e, sobretudo, na periferia do capitalismo.
Retomando a apresentação das linhas gerais de interpretação proposta por
Lafetá, é necessário ressaltar que o autor de Figuração da Intimidade insiste na
necessidade de se estudar a poesia de Mário de Andrade como uma totalidade
complexa, no entanto o crítico admite a enorme dificuldade de se executar tal
tarefa. Por isso ele se concentra numa das “máscaras”, designada “espelho sem
face”.
Embora empregue de forma provisória e distanciada a terminologia do
crítico, o presente trabalho se propõe a analisar a última “máscara” do poeta
paulistano, buscando no pólo da “exterioridade” a contrapartida do processo lírico
do autor. Lira Paulistana poderia ser enquadrada no “último aspecto” (“o poeta
político”), na “última maneira” (“a maneira de combate engajada”) e no “último
tema” (“o tema do choque social”) propostos por Lafetá à luz do ensaio de Antonio
Candido (“o poeta eu mais o mundo”). Além disso, como último livro de poesia
28
Idem, ibidem, p. 67.
25
lírica de Mário de Andrade, condensa um horizonte mais amplo de articulação.
Trata-se, pois, de uma síntese da trajetória do poeta.
Ao lado do “poeta político”, da “maneira de combate engajada” e do “tema
do choque social”, afloram no livro quase todas as grandes preocupações que se
disseminam na produção poética de Mário de Andrade, agora lidas em nova
chave: a consciência plena do conflito social.
Em suma, desejamos resenhar o longo percurso do escritor paulista em
direção a concepções cada vez mais precisas e agudas, como as que concluem
Café:
Eu me sinto mais recompensado de ter feito esta épica.
Dei tudo o que pude a ela, pra torná-la eficaz no que pretende
dizer, lhe dei mesmo com paciência os mil cuidados de técnica,
pra convencer também pelo encantamento da beleza. Mas
duma beleza que nunca perde o senso, a intenção de que devia
ser bruta, cheia de imperfeições épicas. Nada de bilros nem de
buril. Pelo contrário, muitas vezes a perversidade impiedosa da
idéia definidora por exagero, fiz acompanhar da perversidade
tosca da voluntária imperfeição estética.
(...) Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre,
tenha uma liberdade mais estética em que o homem possa criar a
sua forma de beleza mais convertido aos seus sentimentos e
justiças de tempo da paz. A arte é filha da dor, é filha sempre de
algum impedimento vital. Mas o bom, o grande, o livre, o
verdadeiro será cantar, as dores fatais, as dores profundas,
nascidas exatamente desta grandeza de ser e de viver
.
29
Para a compreensão da complexidade da Lira Paulistana, faz-se necessário
compreender que tipo de poeta político é este, o seu modo de combate engajado,
a sua perspectiva do choque social — considerações que se impõem aos modos
de representação empregados pelo poeta em conexão com a busca de novas
soluções formais e expressionais e às redefinições particulares impostas às
29
Andrade, Mário de. Café. In: Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp,
1987, pp. 421-422.
26
obsessões temáticas, formais e estilísticas que percorrem toda a lírica do
modernista paulistano.
Uma dessas obsessões, entre muitas, está nos modos particulares de
representação do espaço urbano paulistano, que é um corte temático iluminador
das contradições internas dessa poesia. São Paulo atravessa a poesia de Mário
de Andrade e constitui-se na exteriorização tanto dos dramas individuais quanto
dos coletivos internalizados na dinâmica particular do sujeito lírico que os
dramatiza e lhes dá sustentação.
O presente trabalho se propõe, então, a analisar a Lira Paulistana de Mário
de Andrade, buscando demonstrar que esse livro apresenta uma síntese do
percurso poético do autor, pois nele se encontram as principais linhas de força que
percorrem toda a sua lírica.
Partindo desse pressuposto é de fundamental importância transcrever uma
declaração do próprio escritor que elucida, em parte, a gênese do livro:
Assim mesmo, uma semana faz, deu a louca, fiz uma série
de poesiazinhas, umas quinze, curtas, que não sei como chamo:
Poemas Paulistanos, Cuíca Paulistana, Lira Paulistana, tem de ser
um nome assim, porque são poemas de São Paulo. Ou melhor:
poemas urbanos. (...) A história da invenção desses poemas é
engraçada, embora seja mesmo um feito meu. Em 1936, lendo um
livro de Paul Radin, Primitive Man as Philosopher fiquei
impressionado com uns cantos maoris que achei nele. Dias depois
li na Revista Lusitana umas poesias do jogral Martim Codax,
galego, não me lembro mais se dos séc. XII ou XIII. Achei lindo,
veio a idéia (sempre falsa mas acatável em poesia) de fazer uns
poemas naquele espírito e renovando aquelas técnicas. Peguei
uns caderninhos de fazer versos, tomei nota de tudo e datei.
30
30
Apud: Diléa Zanoto Manfio. In: Andrade, Mário. Poesias Completas. Belo Horizonte: Itatiaia / São
Paulo: Edusp, 1987, p. 34.
27
Em primeiro lugar, cumpre observar a hesitação na escolha do nome
(Poemas, Cuíca, Lira) e a permanência do adjetivo (Paulistano/a); este expressa
claramente a consciência de que os poemas que compõem o livro são urbanos e
paulistanos. Portanto a identidade da voz lírica se funda na relação particular com
um espaço urbano determinado.
Outro aspecto importante são os substantivos que antecedem o adjetivo
“Paulistana(o)”: “Poema”, “Cuíca” e “Lira”. Os dois últimos termos fazem referência
a instrumentos musicais. A cuíca, da tradição popular; a lira, da tradição erudita.
Esta associa poesia e música — relação com raízes na cultura clássica (Hermes/
Apolo/ Orfeu). A simples indefinição cuíca/lira expõe oscilações muito mais fortes
e relevantes no universo particular da obra de Mário de Andrade: o popular e o
erudito, o nacional e o universal, o mítico e o histórico, o arcaico e o moderno.
Ao citar os cantos maoris, o poeta paulistano recua até as fontes primitivas
do lirismo (o livro de Paul Radin), explicitando as preocupações antropológicas de
que a obra de Mário de Andrade está saturada; recua, ainda, também até as
fontes mais antigas do lirismo em língua portuguesa, as cantigas medievais
(Martim Codax, o Trovadorismo).
No entanto a regressão estético-literária é perpassada pela consciência
moderna de que é preciso incorporar a tradição renovando-a (“…fazer uns
poemas naquele espírito e renovando aquelas técnicas.”), de que Macunaíma é o
melhor exemplo: sobreposição de tempos e de espaços em que os elementos
modernos e os arcaicos se fundem de forma inextricável.
Essa consciência da relação contraditória na modernidade entre tradição e
renovação é exemplarmente explicada por Antonio Candido no contexto particular
da obra de Mário Andrade, em “O poeta itinerante”, que retomaremos em seguida.
Na “Louvação da tarde”, durante um passeio de carro por um cafezal, a voz
lírica medita sobre a própria trajetória criativa. Ao longo dos versos, como
demonstra a análise de Antonio Candido, o poeta vai assimilando, de maneira
quase paródica — vale dizer moderna — os elementos da tradição poética (os
versos decassílabos brancos, a poesia meditativa romântica, em especial a
inglesa etc.). Sua consciência da tradição é tão avançada que ele é capaz de
28
superar o próprio repertório do Futurismo Italiano e, por conseqüência, o repertório
de parte expressiva da retórica modernista.
Segundo Antonio Candido, Mário de Andrade vê com distanciamento
crítico um elemento fundamental da constituição do moderno: o elogio da máquina
representada pelo automóvel:
Percebemos então que o poema assenta sobre uma base
de paradoxos, porque a tarde é devaneio gratuito, mas
reservatório de trabalho; é repouso e é construção. O movimento
da fatura reúne os dois pólos e extrai deles a unidade pela fusão
dos contrários, que são complementares. Este paradoxo afina com
o da forma e o do gênero: o poema de um modernista em
decassílabos brancos; a meditação romântica reinventada para
exprimir uma situação atual.
31
A justaposição de termos, em princípio opostos e, por isso, paradoxais,
revela um sistema imagético regido pela oposição, pela “contradição insolúvel”,
que percorre a totalidade da obra de Mário de Andrade e apresenta, segundo o
nosso ponto de vista, o seu momento máximo na Lira Paulistana. Esse aspecto
será o centro da intuição geral que conduz o segundo capítulo deste trabalho.
Retomando Antonio Candido:
Paradoxo talvez mais importante do ponto de vista de uma
estética do Modernismo é o que contrapõe o automóvel,
instrumento de velocidade, à quietude vesperal do devaneio. Mas
aqui, em vez de destruí-la pela rapidez do percurso, ele ajuda a
construí-la. Neste poema, tudo o que o Futurismo queria revogar
(inclusive o “chiaro di luna” ) está no cerne do discurso, e em lugar
da velocidade domesticar o mundo é o mundo que domestica a
velocidade, submetendo-a ao ritmo natural. O automóvel perde
características de máquina e adquire um toque de vida, facilitando
a citação quase paródica dos traços românticos. E os dois
31
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
1998, pp. 277-278.
29
momentos históricos se enlaçam, porque o tema de “Louvação da
tarde” parece transcender o tempo, na medida em que encarna
também o andamento da tradição literária, mostrando que Mário
de Andrade era capaz de passar do modernismo propriamente dito
à modernidade, que recupera a tradição ao superá-la.
32
“A meditação sobre o Tietê” pode ser lida, com certeza, nessa mesma
chave apresentada por Antonio Candido, pois é possível localizar na Lira
Paulistana recorrências e constâncias temáticas que percorrem a lírica de Mário
de Andrade: a poética da cidade; a relação entre poesia e música; o cruzamento
entre tradição e renovação estética; a questão do popular e do erudito; do nacional
e do universal; do arcaico e do moderno; do mítico e do histórico etc.
A primeira intenção é rastrear essas constantes presentes no livro para, a
seguir, demonstrar como a representação delas se altera ao longo da atividade
criativa do autor em função das novas circunstâncias em que foram atualizadas:
sob a diversidade da produção marioandradina existe um eixo organizador que lhe
confere intensa unidade.
E, por último, é necessário destacar que o núcleo da obra poética de Mário
de Andrade contém um conflito central constantemente apontado pelos críticos: a
busca da própria identidade que passa necessariamente pela busca da identidade
do “outro”. O “outro” reconhecido e materializado na mítica da modernidade
urbana (“o trovador arlequinal”); na mítica da identidade nacional (“o poeta
aplicado”); na síntese da própria tradição poética (o poeta da “Louvação da
tarde”); na perda da própria imagem (“o espelho sem reflexo”); finalmente, na
consciência de classe (“o poeta político”).
Há na poesia de Mário de Andrade, portanto, um movimento travado entre
as “figurações da intimidade” e as “figurações da exterioridade”. Somente no
trânsito constante entre esses dois pólos é que os impasses de sua produção
revelam sua complexidade e sua capacidade de formalizar contradições de
alcance muito maior que estão na base da moderna cultura brasileira. A obra de
32
Idem, ibidem, p. 278.
30
Mário de Andrade se conforma em complexa tentativa de atender a dois regimes
diversos de exigências: o da esfera da exterioridade e o da esfera da interioridade.
A oscilação entre “arte de circunstância”, de participação nos conflitos do
tempo presente e a “arte de permanência”, autônoma e válida em si mesma, é
apenas mais uma dessas oscilações.
O conflito poético de Mário de Andrade obviamente tem raízes subjetivas
fundadas na experiência do escritor e, por isso, pode ser iluminado pela
psicanálise, está amplamente fundado nas relações sociais e humanas
particulares do país, fundadas no entrelaçamento de elementos modernos e
arcaicos jamais superados ao longo da nossa própria história.
A busca pungente e constante pela identidade é sintoma claro de sua
perda, de sua indeterminação ou de sua inexistência: estamos diante do complexo
caminho que vai da euforia desvairada dos anos vinte à amargura do final da
década de quarenta.
31
Capítulo I
A questão da classe: o intelectual e as elites nacionais
O Poeta e a Rainha
A idéia central deste capítulo baseia-se na intuição de que a poesia final de
Mário de Andrade está em conexão direta com a consciência que o poeta paulista
possuía da posição do escritor no quadro das novas relações sociais e políticas
existentes no país a partir da revolução de 1930.
Há uma declaração de Mário de Andrade que é de fundamental importância
para a compreensão do núcleo de conflitos que permeiam os poemas de Lira
Paulistana:
Só mais uma explicação. E um esclarecimento. Pra
confirmar a fase sócio-estourante da minha vida, esse período
1929-1935, ainda tem a talvez mais trágica das arrebentações, o
“Grã Cão de Outubro” que é de 1933, de quando me vieram as
preocupações feias de ter feito quarenta anos. (Agora, nos 50, não
tive preocupação nenhuma.) De maneira que as datas do
desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha
classe são essas: 1930, “O Carro da Miséria”; 1932, 2ª versão
definitiva do mesmo; 1933, “Grã Cão de Outubro” e enfim, fins de
1934, o artigo me confessando “coram populo” comunista. Sem
sê-lo e sem selo nenhum, helás!
33
33
Apud: Lafetá, João Luiz. A Figuração da Intimidade. São Paulo, Martins Fontes, 1986, p.118.
Torna-se necessário acrescentar os comentários do poeta sobre O carro da miséria: “E esse
assunto do poema, que agora vai esclarecer o sentido dele todo e de numerosos versos e mesmo
partes inteiras dele, é a luta do burguês gostosão satisfeito das suas regalias, filho-da-putamente
encastoado nas prerrogativas da sua classe, a luta do burguês para abandonar todos os seus
preconceitos e prazeres em proveito de um ideal mais perfeito. Ideal a que a inteligência dele já
tinha chegado por dedução, lógica e estudo, e que a noção moral aprovava e consentia, mas a que
tudo o mais nele não consentia, não queria saber. Simplesmente porque estava gostoso”. Apud:
32
A década de 1930 marcou uma ruptura fundamental na composição social e
política da nação. A secular elite agrária nacional paulatinamente cede lugar às
novas forças sociais que representavam o desejo de modernização capitalista do
país.
Mário de Andrade é um escritor que desde cedo percebeu criticamente as
complexas relações que mediavam as ligações existentes entre os escritores
modernistas e essa mesma elite agrária decadente. Em torno de 1930, o laço que
os unia se dissolve e o poeta se vê entregue a um novo mundo de relações
sociais em que as alianças de classe — mesmo que conflitivas — não são mais
possíveis
(“desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha classe”).
Resta ao poeta a consciência de seu estado de derrelição.
Em princípio, procuraremos demonstrar como Mário de Andrade elabora
ficcionalmente em diversos textos suas complexas relações com a elite agrária
paulista, pois uma das mais importantes questões presentes na obra do
modernista diz respeito às condições objetivas de produção artística e intelectual
no Brasil ao longo da primeira metade do século XX.
As relações entre o intelectual e os representantes das elites nacionais
estão diretamente ligadas a esse problema, pois a autonomia do artista é aspecto
central na constituição de um sistema literário moderno. Nas sociedades
capitalistas, o mercado literário assume papel preponderante na produção,
circulação e consumo da literatura, definindo o espaço específico do escritor e
suas relações de maior ou menor autonomia em relação aos “donos da vida”
34
.
No Brasil, o mercado literário ao longo da primeira metade do século XX era
de tal forma precário que obrigava à convivência muitas vezes contraditória entre
o escritor e as classes dirigentes, estabelecendo relações de dependência focadas
no favor. A posição do artista brasileiro se assemelhava em muito à do agregado,
permanentemente orbitando, então, entre a dependência e o favor, o que, por sua
Knoll, Victor. Paciente arlequinada. São Paul: Hucitec / Secretaria de Estado da Cultura, 1983, pp.
128-129.
34
Andrade, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia /
São Paulo: Edusp, 1987, p. 393.
33
vez, reduzia drasticamente a autonomia do criador e seu poder de discordância no
que tange à crítica radical.
Mário de Andrade, artista consciente dessas contradições iniludíveis, em
vários momentos e, de maneira mais ou menos explicita, dá expressão literária a
esse problema.
Nas suas relações pessoais muito próximas, principalmente com Paulo
Prado e D. Olívia Guedes Penteado, fica patente o mal-estar que permeia o
trânsito entre eles. A constante contradição entre a proximidade afetiva e a
distância crítica, entre a dependência e a autonomia aparece nos seus
depoimentos e serve de base para a elaboração da própria obra.
Na famosa conferência intitulada “O Movimento Modernista” — proferida em
1942, na Casa do Estudante do Brasil no Rio de Janeiro, a convite de Carlos
Drummond de Andrade —, em meio ao seu contundente balanço crítico da
Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos, Mário se refere aos salões
literários que alimentaram o movimento modernista. É perceptível na descrição
desses salões justamente a convivência bem próxima entre os artistas e as elites
nacionais.
Segundo ele, foram quatro os salões mais importantes: o da Rua Lopes
Chaves; o da Av. Higienópolis, de Paulo Prado; o da Rua Duque de Caxias, de D.
Olívia e, finalmente, o da Alameda Barão de Piracicaba, de Tarsila Amaral. Ao se
referir ao segundo, o poeta declara:
A aristocracia tradicional nos deu mão forte, pondo em
evidência mais esta germinação do destino — também ela já
então autofagicamente destruidora, por não ter mais significação
legitimável. Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no
princípio e sempre nos olharam com desconfiança. Nenhum salão
de ricaços tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu.
Os italianos, os alemães, os israelitas se faziam mais guardadores
do bom-senso nacional que Prados e Penteados e Amarais…
35
35
Andrade, Mário de. O Movimento Modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Martins, s / d, p. 241.
34
Noutro momento, Mário de Andrade, ainda falando sobre os salões
modernistas, afirma:
Havia o salão da avenida Higienópolis que era o mais
selecionado. Tinha por pretexto o almoço dominical, maravilha de
comida lusobrasileira. Ainda aí a conversa era estritamente
intelectual, mas variava e se alargava. Paulo Prado com o seu
pessimismo fecundo e seu realismo, convertia sempre o assunto
das livres elocubrações artísticas aos problemas da realidade
brasileira. Foi o salão que durou mais tempo e se dissolveu de
maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornando-se, por
sucessão, o patriarca da família Prado, a casa foi invadida, mesmo
aos domingos, por um público da alta que não podia compartilhar
do rojão dos nossos assuntos. E a conversa se manchava de
pôquer, casos da sociedade, corridas de cavalo, dinheiro. Os
intelectuais, vencidos, foram se arretirando.
36
Observa-se nesse trecho, principalmente nas linhas finais — cujo estilo
apresenta uma formulação extraordinária —, o mal-estar dos intelectuais diante
da gente endinheirada que freqüentava a casa de Paulo Prado. A expressão “a
casa foi invadida” e “a conversa se manchava” são exemplares do deslocamento
do intelectual, mesmo no seio da aristocracia que supostamente “nos deu mão
forte”.
Em outro momento, fica mais clara ainda a consciência do escritor paulista
das relações tensas que sempre evolveram o trânsito dos modernistas entre as
elites que os apoiaram:
Mas dos três salões aristocráticos, Tarsila conseguiu dar
ao dela uma significação de maior independência, de comodidade.
Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os
dirigiam, havia tal imponência de riqueza e tradição no ambiente,
que não era possível nunca evitar tal ou qual constrangimento. No
36
Idem, ibidem, p. 239.
35
de Tarsila jamais sentíamos isso. O mais gostoso dos nossos
salões aristocráticos.
37
A consciência da dissonância, que passa objetivamente pela classe social,
não poderia ser mais clara. Por mais amplos que fossem os horizontes dessa
aristocracia decadente, a diferença de origem é intransponível e os interesses da
vanguarda estética irreconciliáveis com esse mundo de relações pessoais e
sociais. A produção crítica exige distanciamento e autonomia por parte do escritor.
Sintomáticas dessa posição contraditória do intelectual brasileiro, oscilando
sempre entre a dependência objetiva e a autonomia relativa, são as relações
estabelecidas entre Mário de Andrade e D. Olívia Guedes Penteado. O mal-estar
permanente do autor da Paulicéia é facilmente detectável no livro O Turista
Aprendiz, “diário” da viagem empreendida pelo poeta, a grande dama e duas
jovens ao Amazonas no ano de 1927. Nas páginas iniciais do livro, já é patente o
desconforto do escritor pelas circunstâncias envolvidas na aventura:
…não me despedi de ninguém direito, nem percebi certo
quantos companheiros de viagem iam no bando. Já de São
Paulo sabia que eram uma porção e gente de circo, disposta e
bem divertida. Pois quando dou tento mesmo definitivo no caso,
toda a gente roera a corda! Estamos apenas dona Olívia, e as
duas moças, Dolour e Mag. Dona Olívia com aquele sorrizinho
dela, me fala:
— Você deve estar bem descontente de ser o único
homem da expedição…
— Se soubesse que era assim, não vinha, dona Olívia.
Meio áspero, sincero. Ela não teve o que dizer. Nem eu.
Estava com raiva dela e das moças. Ela se lembra de contar que
Washington Luís telegrafou aos presidentes de estado e pro
Peru.
38
37
Idem, ibidem, p. 240.
38
Andrade, Mário de. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1983, pp. 53-54.
36
O poeta não esconde sua irritação com a posição delicada que ele ocupa
na expedição (“único homem”), uma espécie de guardião. Nota-se a ironia
presente em “aquele sorrizinho dela”. Além disso, o interesse de Washington Luís
está claramente ligado ao fato de dona Olívia ser quem é: a “Rainha do Café”. Ou
nas palavras de Oswald: “Nossa Senhora do Brasil”. Mais tarde ela será também
designada, na ficção que corre paralela ao diário, como “Juízo Final”. Essas duas
últimas designações não podem ser compreendidas sem o pano de fundo do
catolicismo brasileiro, em conexão direta com a aristocracia paulista do café.
A reverência e a ironia contraditoriamente se dão as mãos nas designações
dadas à D. Olívia, o que por si só dimensiona a complexidade da questão:
dependência objetiva e autonomia relativa. A oscilação existente entre a
proximidade afetiva e a distância crítica é que dá o balanço tão sugestivo e
particular do estilo do fragmento.
Em outro momento, o real motivo da irritação de Mário de Andrade fica
ainda mais explicito, porque revela a posição por ele ocupada na “comitiva” de
Dona Olívia:
Pelas oito horas chegou-se a Porto Velho, com o Sto.
Antônio do Mato Grosso, na mesma margem, no outro estado do
Brasil, a meia hora de olhar. Recepção oficial. Uma escola pública,
com a professora num estado maravilhoso de elegância
gorduchinha, coisa linda! acompanhando dona Olívia.
Apresentações em penca. Visitas. Mercado sem caráter. Jornal.
Almoço de bordo. Enfim posso sair mais livremente. Telegrafo.
Fotografias.
— Dr. Mário de Andrade, secretário da Rainha do Café.
Desta vez me arrebentei, porque arrebentei!
— Mas… eu não sou secretário de dona Olívia…
— Mas!… o sr. não veio na companhia dela, então!
— Sim… somos muito amigos, viemos…
— Então o sr. está fazendo a viagem por sua conta!!!
Nem era possível zangar com o homem tal o pasmo dele,
vendo alguém que não era uma rainha enfarada e decerto meio
maluca, andar por aquelas paragens. Então expliquei com muita
37
paciência pra ele, espécie de expedição coletiva embora tardia,
dada a centenas de pessoas que já tinham privado comigo nesta
viagem, expliquei que não, que éramos um grupo de amigos
paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, viajando cada qual
por conta própria, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas.
39
É evidente a necessidade de o poeta explicitar sua independência de dona
Olívia, pois tudo passa pela questão do dinheiro, da classe, obviamente, da
dependência (“não sou secretário”). Mário de Andrade faz questão de explicitar
sua relação de “igualdade” com dona Olívia (“somos muito amigos”) e, assim,
afirmar sua autonomia.
A presença da professora provinciana, no início do fragmento, explicita a
sua condição de subserviência (“num estado maravilhoso de elegância
gorduchinha... acompanhando dona Olívia”), ironizada pelo poeta (“coisa linda!”).
Outro momento marcante da permanente dissonância se dá num episódio,
em que, dessa vez, a ironia parte de dona Olívia em direção ao modernista:
Dona Olívia com as moças vão no baile. Me recuso com
tanta energia, que dona Olívia me olha como surpreendida. Depois
sorri. Depois ri francamente em cima de mim.
— Mário, você não esqueça de adquirir sua liberdade
quando quiser…
Desaponto:
Eu sei, dona Olívia… mas não é isso não!
Ela sorri um “está bom” meio irônica e se transforma numa
garça real.
Bom, mas desta vez, francamente já era demais! Resolvo
gastar o tempo da noitinha no cinema (…)
40
Bentinho ou José Dias, ao se dirigirem à dona Glória, não seriam mais
enviesados do que o escritor na resposta à dona Olívia: “Eu sei, dona Olívia…
mas não é isso não!”.
39
Idem, ibidem, pp.149-150.
40
Idem, ibidem, p. 153.
38
Num trecho da correspondência de Mário de Andrade, destinada a Manuel
Bandeira e selecionado por Drummond, encontra-se a seguinte explicação sobre a
viagem à Amazônia em que a questão do dinheiro também é tema central e está
associada à figura de dona Olívia:
Dona Olívia faz tempo que vinha planejando uma viagem
pelo Amazonas adentro. E insistia sempre comigo pra que fosse
no grupo. Eu ia resistindo, resistindo e amolecendo também. Afinal
quando quase tudo pronto, resolvi ceder mandando à merda esta
vida de merda. Vou também. Isto é, inda não sei bem se vou, só
falta saber o preço da viagem. Se ficar aí por uns quatro contos,
vou, se ficar pra cima de cinco não vou. Tenho que emprestar
dinheiro pra ir e isso vai me deixar a vida bem mais difícil depois e
os projetos no tinteiro. O Clã prontinho da silva, capaz de entrar
agora mesmo prá máquina, agora pra quando?… Ora! Que bem
me importa…
41
No fragmento, fica visível que a oscilação apresentada — a viagem ou a
publicação da obra (Clã do Jabuti) — é determinada pelo dinheiro. No final da
expedição à Amazônia, a questão do custo da aventura também aflora. Após
contar a entrevista que ele concedeu a um jornalista, o poeta anota:
A segunda anedota, bem podia se chamar “O preço da
Amazônia”. Parto, apenas com quatorze mil-réis no bolso, o
dinheiro evaporou. Além dos meus gastos, andei emprestando às
meninas, que já estão com vergonha de pedir mais dinheiro a
dona Olívia, e o resultado é esse, gorjetas dadas, tudo pago, estou
com quatorze mil-réis apenas. (…)
Mário…
Até me assustei.
— O que é, Rainha!
— Com as despedidas, não pude tirar dinheiro no banco.
Você pode me emprestar algum pra viagem?…
41
Andrade, Carlos Drummond. A Lição do Amigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 254.
39
Tomo com um soco na boca do estômago: fico
inteiramente desorientado. Ela inteirada da situação, apenas sorri,
viajadíssima. Terá uns vinte ou trinta mil-réis consigo. Faremos
dívidas, pagáveis no Rio de Janeiro. Mas não me conformo com o
vexame. Vou dormir sem graça nenhuma.
42
O constrangimento do poeta é visível. E, mesmo sem dinheiro, dona Olívia
possui mais do que ele. Na verdade, a expressão “faremos dívidas” coloca-o na
posição de dependência que tão zelosamente ele procurou evitar. O Turista
Aprendiz é fértil em exemplos do permanente mal-estar diante do favor. Em outro
momento, o escritor faz referência a um episódio interessante, em que dona Olívia
se vê na posição de custear a viagem de uma cabocla:
Me esqueci de contar. Aqui, vaticano é bonde, embarcam
num seringal pra descer logo adiante noutro, e assim. Pouco
depois de partidos de Porto Velho, na volta, vieram perguntar a
dona Olívia se ela garantia mesmo pagar a passagem até
Manaus, da mulher da terceira classe. O que é, o que não é?
Quando foram pedir a passagem da velha, passageira nova da
terceira, ela respondeu muito sossegada:
— A Rainha do Café paga.
Dona Olívia não sabia de nada, mas pagou, está claro.
43
No fragmento, fica explícito que a mediação se dá pelo favor, já introjetado
nas relações sociais: para a cabocla nada é mais natural (“— A Rainha do Café
paga.”), ao que o escritor conclui:
“... está claro”.
A distância entre o modernista e a cabocla é imensa, o que não impede
haver semelhanças nos modos de dependência, tanto da velha quanto do poeta,
pois certamente não era das experiências mais agradáveis ser considerado,
durante a expedição, um mero “secretário” na comitiva da Rainha: um camareiro
de luxo (culto e letrado).
42
Andrade, Mário de. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1983, pp. 184-185.
43
Idem, ibidem, p. 170.
40
Queremos demonstrar que Mário de Andrade tinha plena consciência das
conflituosas relações entre os artistas brasileiros e a “aristocracia tradicional...
também ela autofagicamente destruidora”, que “nos deu mão forte”. Em outro
momento, ele afirma com maior clareza ainda que aquela classe “nos dava mão
forte e... nos dissolvia nos favores da vida. Com as profundas transformações
acontecidas durante a década de 1930, essa contraditória aliança social se rompe
(“... as datas do desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas da minha
classe...”).
Nas duas citações, o sentido dos verbos “dissolver” e “desfazer” é
semanticamente quase o mesmo, apontando para um fenômeno lento, mas
irrefutável. O poeta se vê diante de um impasse intransponível presentificado na
consciência de seu crescente isolamento diante das novas elites que comandam o
país e na incapacidade de formar uma nova aliança de classe capaz de envolver a
massa dos trabalhadores. O sentimento de derrelição do poeta moderno se aguça
e deságua nos poemas da Lira Paulistana.
Experiência e criação: as figurações do escritor
O poeta e a preceptora
A consciência do isolamento e do estado de abandono do poeta no mundo
se manifesta tanto nos escritos pessoais de Mário de Andrade quanto na sua
produção ficcional e poética. Como inicialmente abordamos a questão a partir dos
testemunhos do escritor, queremos, mesmo que sucintamente, resenhar as
formas que essa consciência assume na elaboração ficcional.
A viagem de 1927 foi, sob muitos aspectos, frutífera para Mário de Andrade.
Basta uma leitura, mesmo que superficial, do diário O Turista Aprendiz para
perceber as ressonâncias da experiência amazônica na obra do escritor. É óbvio
que os desdobramentos mais explícitos se encontram em Macunaíma, publicado
em 1928.
41
Numa carta a Drummond — ao se referir a seu processo particular de
criação —, Mário de Andrade comenta a gênese do conto “Atrás da Catedral de
Ruão”, do livro Contos Novos
44
. Segundo o escritor, a idéia seminal do conto
brotou durante a viagem à Amazônia e foi desenvolvida ao longo de anos. A lenta
gestação do conto revela a permanência de certas questões no imaginário do
poeta, cujas resoluções formais nem sempre foram atingidas imediatamente.
Muitas vezes a matéria ultrapassa a forma e exige soluções que somente a longa
maturação pode produzir.
Nesse conto, um dos mais “freudianos” do livro, o escritor paulista analisa e
disseca as angústias sexuais de uma humilde professora de francês, verdadeiro
apêndice de uma família burguesa de Higienópolis.
Mademoiselle trabalha para D. Lúcia, ensinando francês para as duas filhas
adolescentes, que estão no alvorecer sexualidade. Mãe e filhas acabaram de
retornar de uma longa viagem pela Europa e pelo Oriente Médio (“Não decidiram
nada, mas cinco anos de viagens, colégios, camelos, freiras, Dinamarcas e
Palestinas, quando voltaram não supunham mais um pai.”
45
).
Durante a viagem, D. Lúcia foi abandonada pelo pai das meninas e, ao
chegar a São Paulo, readmite Mademoiselle como uma espécie de dama de
companhia para as filhas. Como preceptora, sua posição contrasta com a das
meninas principalmente na questão da sexualidade, já que as jovens
44
Andrade, Carlos Drummond de. A Lição do Amigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 232.
Veja-se o depoimento do próprio escritor: “Às vezes o mando vem com a idéia e a coisa se cria
imediatamente, mais isto é mais raro. E às vezes espero, espero, e a coisa dura anos pra chegar.
Como Café ideado por 1933 e que só chegou em outubro de 42. Olhe: agora termino um conto,
cuja primeira idéia veio dumas anedotas que me contaram na viagem do Amazonas, as duas
moças daqui que iam comigo. Isso foi em 1927!” Numa nota a este trecho, o poeta mineiro
esclarece: “Atrás da Catedral de Ruão”, em Contos Novos (...) onde aparece esta nota: (‘Primeiros
esboços, Amazonas, julho e agosto de 1927; primeira versão escrita, 9.I.1943 a 17.I.1943;
segunda versão completa, 3.III.44 e 4.III.44; versão definitiva, junho a 15 de julho de 1944’)”.
45
Andrade, Mário de. Atrás da Catedral de Ruão. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983,
p. 49. No livro No Tempo dos Modernistas: D. Olívia Penteado, a Senhora das Artes, encontra-se
um bom número de fotografias das viagens da grande dama paulista. Nelas, pode-se ver desde o
interior do apartamento de Paris até as pirâmides do Egito e, claro, camelos. (Ver bibliografia).
42
experimentam o despertar do sexo com “maior” naturalidade que a professora
velhota e virgem. Alvorecer para uns, crepúsculo para outros.
Nesse conto, muitas vezes os papéis se invertem, pois são as adolescentes
que estimulam a libido recalcada da professora e encaminham-na pelas trilhas da
malícia e dos duplos sentidos, sempre expressos em francês.
A associação entre educação e erotismo na obra de Mário de Andrade faz
pensar imediatamente no romance Amar, Verbo Intransitivo. Nele, os dois temas
estão indissoluvelmente associados como pressuposto de toda educação
sentimental moderna. Fräulein é professora de amor ao mesmo tempo em que
exerce o papel de educadora no sentido convencional do termo. Ela é um agente
moderno e civilizador em meio à sociedade patriarcal tradicional. É possível
interpretar Fräulein como uma figuração oblíqua e dissimulada do intelectual na
periferia do capital.
46
A comparação entre o conto citado e vários trechos de O Turista Aprendiz
pode ser reveladora das complexas relações existentes, na obra de Mário de
Andrade, entre experiência pessoal e criação ficcional.
Num determinado momento da viagem ao Amazonas, o poeta relata uma
cena envolvendo o desregramento das meninas (Dolour e Mag) que o coloca
numa situação delicada diante de dona Olívia: Mário de Andrade parece ser
obrigado a se comportar como se fosse um(a) preceptor(a) das moças durante a
viagem. Aliás, durante a viagem, essa parece ser mesmo a sua função.
Se assim o for, questiona-se o quanto de amargura pessoal preside a
composição do conto citado? Com que grau de profunda auto-ironia a sexualidade
de Mademoiselle é dissecada? Eis a cena:
Eram quase três horas da manhã e a Rainha do Café fazia
muito se recolhera. Acordamos o homem do bar, na intenção de
tomar um alcoozinho forte, evitando algum resfriado. Tomei meu
gole, e fui na cabina trocar minha roupa encharcadíssima,
deixando as moças com o moço fiscal. Não demorei talvez quinze
46
Sobre a figuração do intelectual como preceptor é fundamental consultar o livro Em busca do
inespecífico, de Priscila Figueiredo (Ver bibliografia).
43
minutos, mas assim que cheguei no bar, percebi o estrago. Não
sei o que o rapaz apostou com as moças, e elas, liberdosas de
educação, tinham bebido muito, cálice de pinga sobre cálice. Não
demorou muito, mandei tudo para a cabina, principiou uma bulha
excusa na cabina delas que, se de um lado pegava com a minha,
do outro, vizinhava com a da criada de dona Olívia, esta logo em
seguida. Aos poucos a bulha aumentou. Eram lamentos doloridos
de Trombeta, ao passo que Balança me chamava pelo nome,
entre risadas de não poder mais. Eu incomodadíssimo, se a
Rainha acordasse e fosse ver… encontrava as duas totalmente
bêbadas. E eu que estava desde o princípio da viagem engolindo
coisas para evitar desgostos a dona Olívia…
47
Para melhor compreensão, é necessário lembrar que, antes desse
incidente, o poeta e as meninas haviam participado de um baile de casamento em
que dançaram, cantaram e se divertiram livremente. Numa outra passagem do
“diário”, encontra-se este depoimento:
E por ali ficamos nós dançando, ao som dos dois
instrumentos e dum soldado que cantava de olhos baixos, creio
que não nos olhou uma vez, de vergonha. E era soldado! O
vaticano berrava lá embaixo nos chamando. Fazia luar. Alguém
tinha ido buscar nosso casquinho, que estava ali no porto. E fomos
de rodada rio abaixo, ao luar, cantando o “Luar do Sertão”,
inchados de romantismo, com um sofrimento bom dentro do
peito.
48
A posição do poeta como mediador entre as meninas e dona Olívia, ao
longo da viagem, fica explícita neste fragmento
(“E eu que estava desde o princípio
da viagem engolindo coisas para evitar desgostos a dona Olívia…”). Ao mesmo
tempo, ele é amigo, companheiro e aquele que acoberta os desvarios da
educação “liberdosa” das moças, função bastante similar à de Mademoiselle no
conto referido.
47
Andrade, Mário. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 108.
48
Idem, ibidem, p. 108.
44
Em outras passagens do diário, o escritor registra a presença de figuras
femininas investidas da função de professora, apresentando muitos traços
elaborados na construção de Mademoiselle:
Estávamos visitando o Colégio N. S. da Assunção, e a
professora, uma dona respeitável, com sua idadezinha bem à
mostra, fazendo de bedéquer. Como trocássemos umas palavras
em inglês, ela se botou falando inglês, com mais perfeição que eu
inda é facílimo, porém com a naturalidade e muito maior firmeza
que as meninas. Neste momento ela estava mostrando os andores
e mais coisas, flores, véus, capelas de virgens de uma procissão
que se realizara hoje de-manhã, e como nos assustássemos do
inglês perfeito dela, contou meia melancólica que tinha sido virgem
em Londres e Paris, quanto heroísmo.
49
No fragmento, Mário de Andrade revela o seu precário domínio da língua
inglesa, comparado com o da professora e com o das meninas. Mademoiselle,
como professora de francês, apresenta desempenho inferior ao das alunas, o que
nos leva a pensar numa possível transposição da experiência para a ficção:
Além do inglês e do alemão em que Mademoiselle nem de
longe podia agora competir com elas, voltavam falando um francês
bem mais moderno e leal que o da professora, estagnada no
ensino e nas suas metáforas.
50
Mademoiselle também conhece o alemão, que sempre foi uma língua
cultivada por Mário de Andrade, o que remete diretamente a Amar , Verbo
Intransitivo.
Em outro momento do conto, o narrador delineia o perfil da mãe das
meninas. Dona Lúcia estava sempre cercada pela política:
49
Idem, ibidem, p. 102.
50
Andrade, Mário. Atrás da Catedral de Ruão. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989, p.
48.
45
A cidade vinha se arrepiando de pretensões políticas
porque afinal tinham lançado mesmo o já muito proposto partido
de oposição, o Democrático. Dona Lúcia embarcara na onda que
lhe trazia um gosto novo de volúpias. Tinha parente importante no
P. D. e nessa tarde, pela primeira vez depois de sete anos, os
salões dela se abriam para o “cocktail” aos chefes do Partido.
Dona Lúcia decidiu que as filhas haviam de aparecer nem que
fosse um momento. Fazia questão de se apresentar ornada de
resultados, bem matrona, imponente em seus traços de infeliz.
Mademoiselle devia comparecer, como preceptora.
51
Ao longo de toda a viagem ao Amazonas, são inúmeras as descrições de
cerimônias oficias a que Mário de Andrade teve de comparecer acompanhando D.
Olívia e as meninas. Em muitas vezes, ele se viu na obrigação de fazer pequenos
discursos de agradecimento aos discursos feitos em homenagem à “Rainha do
Café”. Essa função se tornou tão previsível, que, segundo o próprio escritor, ele
desenvolveu um modelo de resposta em que bastava mudar o nome das
localidades, pois o texto era o mesmo
52
. Interessante observar a conjunção do
oficialismo (discursos) com a ironia modernista (a blague do discurso em forma
fixa).
Na conferência O Movimento Modernista, o poeta alude às permanentes
relações de D. Olívia com a política. O Partido Democrático também é citado:
E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa
mulher excepcional que foi dona Olívia Guedes Penteado. A sua
discrição, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela soube
dirigir, manter, corrigir essa multidão heterogênea que se chegava
a ela, atraída pelo seu prestígio, artistas, políticos, ricaços,
cabotinos, foi incomparável. O seu salão, que também durou
51
Idem, ibidem, p. 56.
52
Ao descrever a estadia em Iquitos, na Venezuela, Mário de Andrade anota em O Turista
Aprendiz: “Em palácio, recepção alinhada, tudo de branco. Tive que fazer de novo o improviso que
fizera pela primeira vez em Belém e repetira já várias vezes, sempre que encontrava discurso pra
dona Olívia pela frente. Só que desta vez, quando chegou o momento de dizer que não sentíamos
‘limites estaduais’, mudei pra ‘limites nacionais’ e a coisa foi aceita da mesma maneira.” (p. 113).
46
vários anos, teve como elemento principal de dissolução a
efervescência que estava preparando 1930. A fundação do Partido
Democrático, o ânimo político eruptivo que se apoderara de muitos
intelectuais, sacudindo-os para os extremismos de direita e
esquerda, baixara um malestar sobre as reuniões. Os
democráticos foram se afastando. Por outro lado, o integralismo
encontrava algumas simpatias entre as pessoas da roda: e ainda
estava muito sem vício, muito desinteressado, para aceitar
acomodações. Sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, Dona
Olívia Guedes Penteado soube terminar aos poucos o seu salão
modernista.
53
No depoimento, Mário da Andrade marca com clareza a data de 1930 como
momento de virada na vida nacional. Os intelectuais se vêem obrigados a tomar
partido à “direita” ou à “esquerda”; as rupturas de velhas alianças são inevitáveis e
a consciência do conflito social vai ganhando densidade.
É possível, pois, perceber que existem vários pontos de intersecção entre
os relatos presentes em O Turista Aprendiz e o conto “Atrás da Catedral de Ruão”,
o que sugere que há trânsito permanente entre a experiência pessoal do escritor e
a sua produção literária. Assim, as relações entre Mário de Andrade e D. Olívia
Guedes Penteado estão espelhadas de alguma forma nas figuras de
Mademoiselle e D. Lúcia.
Nesse processo de comparação, registramos uma última semelhança, ao
mesmo tempo reveladora e enigmática. Ao narrar uma noite no Recife, o escritor
nos conta a seguinte experiência:
Jantar no Leite. Está chovendinho um ar tristonho na noite.
Os meus companheiros vão para bordo. Enquanto busco Inojosa.
Não está no Recife, me respondem no jornal. Vou para bordo,
nada de Ascenso. Chuvisca fino frio. Saio à procura do Ascenso.
De repente dou com o rio. Volto em sentido contrário e de repente
dou com rio de novo. Chove fraco agora. O centro comercial está
53
Andrade, Mário de. O Movimento Modernista. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Martins, s / d, pp. 239-240.
47
deserto. Não sei para onde hei-de ir. Lembro tomar um auto, não
tenho dinheiro. Nem sei direito o novo endereço do Ascenso.
Estou completamente molhado. Sinto frio. Passam homens
retardatários na rua completamente deserta. Penso que vêm me
prender. Não, vêm me roubar. Dou uma risada alta. Os homens
me olham meio assustados.
— Os srs. podem me dizer pra que lado fica o cais?
Com grande gentileza me indicam tudo.
Muito obrigado.
— Não por isso.
Chego a bordo destroçado, é meia-noite.
54
Na cena transcrita, é patente a desorientação geográfica do poeta que dá
vazão a uma “fantasia persecutória”. A imagem do rio associada à noite e à
angústia já está presente, remetendo-nos imediatamente à atmosfera de “A
meditação sobre o Tietê”.
No conto “Atrás da Catedral de Ruão”, há uma passagem similar à
anteriormente transcrita:
Mademoiselle percebe nítido, mas com uma nitidez
inimaginável de tão fatal, que chegou no largo de Santa Cecília.
Seguirá reto? É só atravessar o largo pela frente da igreja e, uns
cem passos mais, a porta salvadora da pensão… Mademoiselle
sabe disso, decide isso, quer decidir isso, mas agora é tarde, os
passos a contrariam e a conduzem atrás da catedral de Ruão. É
um silêncio de crime, o bairro dorme em paz burguesa. Mas tinha
que suceder. Duma das ruas que desembocam na curva da
abside, saltam dois homens, “avec une barbe?” não viu bem, mas
“très louches”, que se atiram a persegui-la. (…) Os dois
perseguidores vinham apressados, passo igual. E o som dos
sapatões possantes, eram possantes, devorava o atchim
espavorido da pucela. E as passadas reboam mais vitoriosas
ainda no silêncio infeliz do largo, ninguém para a salvar, só as
árvores inúteis como “cochonneries”, enquanto os dois homens a
vão alcançar. Não pode mais. Cairia nos braços deles, e eles a
54
Andrade, Mário de. O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 193.
48
violariam sem piedade, exatamente como sucedera atrás da
catedral de Ruão.
55
Tanto no conto quanto na passagem do diário, torna-se patente que a
atmosfera noturna vem carregada de angústia e solidão. O mundo pesadelar se
funde à imagética do insone
56
e apresenta dimensão similar à presente em “A
meditação sobre o Tietê”. O solitário poeta, que contempla o rio em cima da ponte
das Bandeiras, repassa melancolicamente toda a sua trajetória e só encontra
equívocos e desconcerto.
Não é, pois, indevido apontar para o fato de que as relações estabelecidas
entre Mademoiselle, as meninas e D. Lúcia espelham oblíqua e ficcionalmente
muitos dos conflitos vivenciados pelo escritor modernista que se aguçam no
decorrer dos anos seguintes e explodem no poema acima citado.
Durante toda a viagem, é perceptível, como procuramos demonstrar, o mal-
estar permanente de Mário de Andrade em função de vários fatores: único homem
num grupo constituído por mulheres; a equivocada consideração como mero
secretário da “Rainha do Café”; a realização de discursos oficiais e burocráticos; o
dinheiro curto etc. No entanto, apesar de todas as suas contradições e do
desconforto pessoal, manifesta-se o prazer constante da descoberta do Brasil.
Sob muitos aspectos, as relações existentes entre Mário de Andrade e D.
Olívia são bem sintomáticas das relações gerais que envolvem o intelectual e as
elites brasileiras na primeira metade do século passado: a autonomia e a
dependência entrelaçadas de modo tortuoso. Nelas estão implicadas proximidade
afetiva e distanciamento crítico de que as relações de ambos dão testemunho.
A década de 1930 e os anos posteriores trarão consigo novas formas de
organização social em que o favor implica necessariamente a cooptação com a
Ditadura Vargas. Nesse momento, a consciência do artista encontra o limite
intransponível, a impossibilidade de uma aliança de classe com as novas elites se
justapõe à impossibilidade de aliança com qualquer classe. O impedimento define
55
Andrade, Mário de. Atrás da Catedral de Ruão. In: Contos Novos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989,
p. 58.
56
Sobre o poeta insone falaremos no capítulo relativo ao poema citado.
49
o limite de atuação do poeta moderno. Manifesta-se, então, o sentimento de
derrelição que nos parece ser o núcleo de grande número de poemas presentes
na Lira Paulistana.
Observa-se que é recorrente no escritor a consciência dos tênues limites
existentes entre autonomia e dependência nas relações entre o artista e as elites
tradicionais da sociedade brasileira, da primeira metade do século XX. Trata-se
de relações conflituosas fatalmente rompidas que lançam o poeta numa espécie
de vácuo social intensificador da sua consciência negativa do mundo, cujo
horizonte final é a total dissolução, a morte. “A meditação sobre o Tietê” é um
poema escrito no limiar da morte do poeta e, para muitos críticos, representa uma
espécie de testamento de Mário de Andrade:
Na Lira Paulistana se encontra a impressionante
“Meditação sobre o Tietê”, senão o maior, certamente o mais
siginificativo dos poemas que compôs, e que, datado de fevereiro
de 1945, o mês da sua morte, tem um sentido quase misterioso
de testamento.
57
O arlequim e a caneta
A figuração do poeta como mediador de classe aparece em vários
momentos na produção de Mário de Andrade. Um outro bom exemplo desse
complexo temático seria “O poço”, também pertencente a Contos Novos.
Nele, alguns trabalhadores rurais são obrigados a procurar no fundo de um
poço uma caneta-tinteiro do proprietário das terras. A caneta caiu ali
acidentalmente quando o patrão verificava o andamento da obra de perfuração. O
dia está gélido e úmido, e dois trabalhadores se revezam na tarefa de descer e
subir em busca do objeto perdido.
57
Candido, Antonio. Mário de Andrade. In: Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: DPH, 1990, p.
73.
50
O mais magro e frágil tem tuberculose e considerado, pelo tipo físico, o
mais apto para o serviço, já que o poço é estreito. Ele se vê obrigado a trabalhar
sozinho, quando o companheiro, no limite da exaustão, desiste do serviço e se
demite, o que aumenta em muito a fúria do “coronel”
58
.
Após horas de esforço brutal dependurado numa corda, sem nada
conseguir encontrar, a busca é encerrada, para desgosto e fúria do proprietário.
No outro dia, a atividade recomeça cedo, e a caneta é reencontrada e devolvida
ao fazendeiro. Ao perceber que ela se encontra inutilizada, ele ofende
verbalmente os trabalhadores, já distantes. Em seguida, joga a caneta no lixo. Na
última cena do conto, ele vai até a escrivaninha do escritório e abre uma gaveta
em que há canetas iguais àquela que foi reencontrada e uma outra de ouro.
O voluntarismo e o autoritarismo do patrão ficam explícitos: ele levou um
trabalhador ao limite da exaustão e da submissão por um simples capricho
pessoal. A descrição do funcionamento das elites patriarcais brasileiras não
poderia ter melhor expressão do que essa.
A mediação entre o Coronel e os trabalhadores se dá por meio da caneta,
objeto por excelência associado ao fazer intelectual e literário. Tanto para o
Coronel quanto para os trabalhadores o objeto em si está carregado de gratuidade
e de funcionalidade precária, portanto, facilmente descartável. Para o primeiro, é
expressão de seu privilégio de classe; para os outros, é símbolo de uma
submissão abjeta e violenta.
A caneta poderia ser a figuração dos conflitos do próprio escritor dilacerado
entre os compromissos de classe e os compromissos intelectuais. Essa figuração
materializa habilmente a função do escritor numa sociedade patriarcal que não
superou seu passado colonial.
58
O termo “Coronel”, de largo emprego na primeira metade do século XX no Brasil, é uma herança
do Império, do patriarcalismo escravocrata brasileiro. Sobre esse tema é fundamental consultar o
livro de Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto. (Ver bibliografia). No conto em questão,
encontram-se várias referências ao negro como trabalhador rural e são visíveis no comportamento
do “Coronel” os resquícios da escravidão, principalmente no trato com os funcionários da fazenda.
51
Outro elemento importante na mediação entre Joaquim Prestes e os
trabalhadores é o “visitante” que acompanha o Coronel até o pesqueiro. Ele
parece muito mais uma sombra do que uma figura claramente delineada. O
“visitante” é uma espécie de espectro do proprietário das terras e, de alguma
forma, representa a má-consciência que o fazendeiro possui da exploração dos
trabalhadores.
Justamente no momento de maior tensão entre os personagens, o visitante
se ausenta com a desculpa de ir à venda comprar um pescado para a mulher,
quando, na verdade, o motivo era adquirir a bebida — que poderia ajudar os
trabalhadores no dia frio de inverno —, negada pelo fazendeiro.
Da mesma forma que a caneta, o visitante é uma figuração literária da
posição problemática do escritor nacional diante das elites brasileiras patriarcais e
conservadoras. Ao mesmo tempo em que depende dessa classe para sobreviver,
uma vez que no país o mercado literário não se definiu plenamente, o escritor se
sente comprometido visceralmente com o destino das camadas produtivas da
nação.
No entanto, no momento em que o enfrentamento de classe se apresenta
aberto e franco, o visitante se ausenta. Quando ele retorna, nem os trabalhadores
nem o Coronel lhe prestam atenção, o alívio das tensões que ele transporta
consigo (a cachaça)
59
não interessa a nenhum deles. Se o visitante é uma
figuração do escritor, consciente de seu papel, fica visível, nessas circunstâncias,
a gratuidade de sua função.
A virada estética-política do poeta modernista se adensa a partir de 1930. A
consciência do “desfazimento em mim dos prazeres e prerrogativas de minha
classe” demonstra bem a profunda relação existente, na obra de Mário de
Andrade, entre a posição social do escritor e a função da arte
60
.
59
Lembre-se do famoso verso de Drummond, no poema “Explicação” de Alguma Poesia: “Meu
verso é minha consolação. / Meu verso é minha cachaça”. (Ver bibliografia).
60
Ver o depoimento do escritor citado na página 33 deste trabalho. No Turista aprendiz, como já
apontamos, é visível o desconforto da dependência. No entanto, ao que parece, como “arlequim”
numa sociedade decadente — para empregarmos uma terminologia cara ao poeta —, o poeta
ainda acredita na sua função civilizatória.
52
No Brasil, a década de 1930 marca transformações fundamentais que vão
determinar novos conflitos e intensificar outros. A decadência do patriarcado
tradicional, a falência da nossa “aristocracia” rural abrem caminho para novas
composições sociais, e o poeta desamparado é convidado a dar seu testemunho
amargo. As relações de dependência anteriores eram figuradas como conflituosas;
agora, o poeta dá adeus aos pequenos privilégios e prazeres de sua classe.
Viajar com D. Olívia acirrou as percepções da gratuidade do trabalho
intelectual. Nesse contexto, o poeta se sente reduzido à função de preceptor,
bufão culto de uma sociedade ilustrada, embora fosse do interesse do poeta
conviver com essa mulher inteligente e sensível.
Como se sabe, uma das imagens mais importantes da poesia de Mário de
Andrade é o Arlequim. Muito já se especulou sobre o seu significado, e a maioria
dos críticos associa a personagem da Commedia dell’Arte ao binômio: unidade x
diversidade, presente na obra do poeta modernista. A roupa do arlequim feita de
retalhos de tecido (losangos coloridos) seria homóloga ao famoso verso “Eu sou
trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,”.
O arlequim é associado à figura do fauno ou do diabo. Suas roupas são
coloridas, mas a máscara é negra. Além disso, ele carrega um bastão de madeira
com projeções claramente fálicas. Faz-se necessário observar a iconografia
tradicional da personagem para constatar que o bastão funciona tanto como
símbolo fálico investido de intenções cômicas quanto como arma, o que
estabelece a junção entre erotismo e violência:
Consta que Arlequim vem do alemão hoellenkind, que
designa uma criança infernal, uma criança do diabo. (...) Nos
italianos designavam sob este nome uma personagem também
diabólica, uma personagem infernal que atemorizava os
camponeses fazendo grande ruído. (...) Em França era uma
mistura de ignorância, de ingenuidade e de espírito, de astúcia e
de tolice, de graça e de bobice. Uma personagem que
53
apresentava também um duplo caráter ou um comportamento
dividido.
61
A descrição do Arlequim trás imediatamente à memória o comportamento
de Macunaíma, caracterizado pela oscilação permanente, pela volubilidade
elevada ao grau máximo, e o caráter duplo dos dois personagens aponta para
elementos fundamentais da formação nacional. Importa-nos, sobretudo, observar
— ao lado da motivação estética e psicológica da imagem — sua motivação
social:
A Commedia dell’arte possui duas características básicas:
a organização em torno do princípio do personagem fixo, e a ação
parcialmente improvisada. Esta improvisação, provavelmente,
variava de acordo com um repertório anteriormente determinado, o
que criava uma impressão de improvisação irrestrita, espontânea
de grande virtuosismo por parte do ator. Os principais
personagens eram divididos em duas categorias, a dos patrões e
a dos criados, ou “Zanni”. Dentre os patrões destacavam-se o
Capitão, Pantaleão, e o Doutor. Os criados compreendiam o
Arlequim, a figura mais popular da Commedia, Polichinelo e
Colombina.
62
O arlequim pertence então à categoria dos criados submetidos ao mando
do patrão. Nesse personagem da Commedia dell’Arte, reside o mesmo dilema, a
mesma oscilação existente no comportamento do artista na periferia do
capitalismo, a permanente oscilação entre dependência e autonomia que deve ser
encenada com rigorosa precisão — posição também confirmada pelo folclore
brasileiro que Mário de Andrade conhecia em profundidade:
Brigão, provocador, metido a valentão, galinho-de-
campina; personagem do auto popular do bumba-meu-boi,
61
Knoll, Victor. Paciente Arlequinada: uma leitura da obra poética de Mário de Andrade. São Paulo:
Hucitece / Secretaria de Estado da Cultura, 1983, p. 52.
62
Vasconcelos, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. Porto Alegre: LPM, 1987, pp. 52-53.
54
espécie de ajudante-de-ordens, ou moço de recados do cavalo-
marinho, capitão, o chefe de folguedo, tipo esse que vem do
arlechino do antigo teatro italiano, em cujas peças
contemporâneas do aparecimento daquele nosso auto
invariavelmente figurava, revestido, porém, de um caráter
burlesco, apalhaçado (...). Só conheço o arlequim no bumba-meu-
boi pernambucano. O cavalo-marinho, que é tratado por “capitão”
e representa ser o proprietário da fazenda, dirige-se aos
vaqueiros, por intermédio do arlequim:
“Ó arlequim
Ó pecados meus,
Vai chamar Fidélis
E também Mateus.
Ó meu arlequim,
Vai chamar Mateus,
Venha com o boi
E os companheiros seus.”
E o arlequim dá conta do recado:
“Ó Mateus, vem cá
Sinhô está chamando
Traze teu boi
E venhas dançando.
Só achei o Mateus,
Não achei Fidélis;
Bem se diz que negro
Não tem dó da pele.”
63
63
Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Melhoramentos, 1980, p.
75. Outra aproximação possível entre o “Bumba-meu-boi” e a Commedia dell’Arte se encontra na
figura do “Doutor”, personagem presente nas duas manifestações. Ver o anexo que se encontra no
final deste trabalho.
55
Segundo o folclorista, o “Cavalo-marinho” (“Capitão”) “representa ser o
proprietário da fazenda” e
dirige-se aos vaqueiros, por intermédio do arlequim”. A
idéia de mediação de classe é explícita. Portanto, o arlequim — figura cara ao
imaginário europeu — apresenta um entroncamento popular nacional. Mais: o
arlequim é o mediador entre o “capitão”, o “cavalo-marinho” (proprietário de terras)
e os vaqueiros.
No “Arlequim”, encontra-se representada a posição do escritor como
apêndice das elites patriarcais, cujo comportamento, em pleno século XX,
apresenta resquícios do regime escravocrata
(“Bem se diz que negro / Não tem dó
da pele”). Desaparecida essa “aristocracia tradicional” que “nos dava mão forte”, a
sensação de isolamento e de bloqueio cresce exponencialmente a partir década
de 1930 e culmina no balanço amargo que é “A meditação sobre o Tietê”, poema
em que é visível a insulação absoluta da voz lírica:
Porque os homens não me escutam! Porque os governadores
Não me escutam? Por que não me escutam
Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
64
Nesses versos materializa-se, em grau máximo, a consciência da derrelição
do poeta moderno. Este é, sem dúvida alguma, o eixo central sobre o qual “A
meditação sobre o Tietê” se organiza: a ausência da alteridade verdadeira, que
analisaremos em seguida. A pergunta lançada pelo eu poético não encontra eco.
Sozinho em cima da ponte, o poeta contempla a dissolução de todas as coisas. E
a poesia é “flor” inútil que flutua nas águas putrefatas do “Pai Tietê”. A palavra flor
aparece sempre isolada entre dois pontos ou entre vírgulas ao longo do poema.
65
64
Andrade, Mário de. A meditação sobre o Tietê. In: Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia /
São Paulo: Edusp, 1987, p. 393.
65
Talvez a forma sintética deste complexo de emoções se encontre no famoso poema o “Áporo“
de Drummond em que a sensação de bloqueio também é esmagadora. Os dois poemas citados
terminam com a afirmação da “vitória” contraditória da poesia sobre a dura realidade. Neles
também a metáfora flor / poesia está presente. Em Mário:
56
Capítulo II
A Costela do Grã Cão, Livro Azul e Lira Paulistana
A Lira Paulistana, O carro da miséria e Café constituem — segundo Lafetá
— a quinta e última fase poética de Mário de Andrade: a do poeta político.
Partindo do percurso analítico proposto pelo crítico, a intenção deste trabalho é
demonstrar que Lira Paulistana e o longo poema “A meditação sobre o Tietê”
representam a síntese de muitas contradições que percorrem a poesia de Mário
de Andrade, desde a Paulicéia Desvairada até Café.
Ao longo dos anos de 1930 e 1940, o acirramento das contradições sociais
e políticas advindas da modernização do país, resultou em fechamento político
radical: ditadura. O país repete em chave local o percurso do capitalismo
universal: a explosão dos diversos fascismos do período que deságuam na
No entanto eu sou maior..
Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!
Em Drummond:
em verde, sozinha,
antiueclidiana,
uma orquídea forma-se.
57
Segunda Guerra. Nossa modernização conservadora participa de um processo
universal de consecutivas crises do capital internacional.
Lafetá, ao concluir a análise da “quarta máscara” (“o espelho sem face”)
opõe A Costela do Grã Cão ao Livro Azul, partindo do princípio de que esses dois
livros dão respostas opostas a um mesmo núcleo de questões essenciais que
absorviam o poeta modernista já no início da década de 1930. O crítico assinala
ainda que o tema da busca da identidade, fortemente presente na literatura
ocidental a partir do romantismo, encontra em Mário de Andrade uma tonalidade
muito particular, fruto da realidade nacional.
Consciente da complexidade da passagem do interno ao externo na
poesia de Mário de Andrade, Lafetá busca as mediações no processo particular
de produção do escritor paulista:
Ao leitor que por acaso se assuste com a analogia
achando-a vertiginosa demais, confesso que ela também me
espanta, mas advirto que indícios muito fortes a alicerçam. É
fácil perceber e aceitar, no interior da crise pessoal-sexual
muito íntima, determinações maiores que estão ligadas a
problemas genéricos, como a reificação do sujeito e a ampla
alienação produzida pela sociedade. Menos fácil é perceber e
aceitar que a mesma crise esteja ainda ligada a motivos mais
concretos e próximos, como estamos agora afirmando. No
entanto, seja pela correspondência com amigos, seja pelas
crônicas publicadas na época, seja pelo testemunho de
contemporâneos, percebe-se que em Mário de Andrade os
acontecimentos imediatos repercutem de maneira imediata — e
profunda
66
.
A consciência da ruptura tem data marcada: a virada da década de 1920
para a década de 1930. No plano internacional, a crise da Bolsa de Nova Iorque,
e, no plano nacional, a Revolução de Trinta. Essas tensões ecoam das mais
diversas formas no processo criativo de Mário de Andrade. Em Mário de Andrade,
66
Lafetá, João Luiz. Op. cit, p. 198.
58
a relação entre experiência e criação se constitui numa via de mão dupla
bastante intrincada.
O crítico aponta dois caminhos trilhados pelo poeta modernista em busca
de soluções para seus conflitos internos mais intensos. Diante do mesmo núcleo
de conflitos presentes naquela fase da lírica de Mário de Andrade, sua obra
responderia inicialmente de duas formas diferentes e opostas:
Insisto nesses pontos, já abordados atrás, apenas para
mostrar aquilo que articula os poemas de A Costela do Grã Cão
e do Livro Azul: no primeiro, o conflito introjetado arrebenta em
fragmentos e náusea; no segundo, a recusa concretiza-se na
regressividade das imagens, no elogio da "morte benfeitora" e no
ensimesmamento amoroso. Em ambos, o "eu" procura compor
para si (e, no caso de Mário, para o Brasil) uma face e uma
identidade, mas enquanto n'A Costela do Grã Cão elas são
demoníacas ou se rasgam em mil pedaços, no Livro Azul elas
surgem para se dissolverem depois, na morte, no ar e na água.
Nesse sentido, o "Rito do Irmão Pequeno" parece-me o
poema mais abrangente, o que vai mais longe e questiona
melhor os fundamentos de nossa civilização. Nele, Mário de
Andrade elabora uma síntese parcial de suas inquietações e
ergue, na linguagem poética, uma utopia em que Eros e Tânatos,
reconciliados, deixam de disputar os destinos dos homens e se
complementam numa aliança que acaba com o dilaceramento e
a dor
67
.
No “Rito do irmão pequeno”, encontramos o ápice das tensões
experimentadas pelo poeta na fase final de sua produção. O poema citado
representa uma “síntese” dessas contradições profundas que se intensificam na
consciência do escritor no período.
Segundo Lafetá, o poema pode ser interpretado como a expressão de um
profundo desejo de regressão e aniquilamento, cujo objetivo seria o alívio das
insuportáveis tensões que dilaceram a voz poética. Diante das imensas
67
Idem, ibidem, p. 199.
59
contradições individuais e sociais, manifesta-se, no poema, o profundo desejo de
quietação que implica necessariamente morte e diluição do ser no nada. No
entanto essa desmaterialização seria o passo inicial para um futuro renascimento
que permitiria a criação de relações mais autênticas e verdadeiras entre os
homens.
Chegamos talvez ao núcleo da questão que norteia a significação do último
livro de poesia de Mário de Andrade, principalmente, de “A meditação sobre o
Tietê”: a consciência do poeta se debate entre dois caminhos opostos que podem
ser percorridos por ele e pelo país. Por um lado, há a experiência da
modernização capitalista que deságua em destruição, despedaçamento e morte,
presente em A costela do Grã Cão; por outro, o desejo de regressão ao mundo
mítico que, por sua vez, desemboca num estado próximo do estado de morte,
presente no Livro Azul.
Passado o período da eufórica “Redescoberta do Brasil”, o poeta é
obrigado a enfrentar questões que transcendem ao problema da identidade
nacional. Os conflitos históricos impõem a consciência de classe como
mediadora da identidade em oposição à simples busca de uma suposta mítica
da nacionalidade.
Há, no “Rito do irmão pequeno”, uma fusão entre o rio (Amazonas) e o
Brasil (o “irmão pequeno”). O elemento que permite o amálgama de um no outro
é a consciência dilacerada da voz poética que anseia profundamente pela
solução das tensões, que a encaminha para os símiles da morte:
As duas primeiras estrofes não deixam dúvida sobre a
analogia proposta entre o "irmão pequeno" e o Brasil. É a este
que o "eu" se dirige, lamentando que ele prefira o caminho do
progresso, do avião, do telefone, do arranha-céu — curiosa
atitude e negação, partida de um poeta moderno que tenta
esconjurar aquilo que está na base da modernidade capitalista: o
movimento, a vida no tempo cronológico, a atividade
transformadora do mundo. A alternativa proposta a essa base é o
repouso, o alheamento do tempo, a inatividade, ponto por ponto
tudo o que signifique uma retirada da libido dos objetos e sua
60
reabsorção no mundo indiferente do id. De fato, um sentido
religioso, muito primitivo, é alcançado através dessa postura
retraída, que anula a diferença e pode, portanto, reunir-se ao
todo; o "sentimento oceânico" (já vimos atrás a propósito do
"Girassol da Madrugada") é também o sentimento de unidade
com o universo, e tem relações com o sentimento religioso.
68
A travessia dos anos vinte aos anos trinta do século XX foi realizada
penosamente pelo poeta modernista seguindo paralela ao caminhar das
contradições brasileiras acirradas progressivamente no período, todavia, com a
chegada da década de 1940, o horizonte torna-se muito mais sombrio e tudo
intensifica a sensação de bloqueio. A atmosfera torna-se irrespirável. A mais
remota e diminuta possibilidade de refúgio revela-se como mais uma ilusão. Nem
no mais extremado desejo regressivo o poeta encontra refúgio: a luta de classes
não deixa espaço para ilusões. Ao que parece, a última “saída utópica” (regressus
ad uterum) revelou-se utópica.
Prova da evolução desse processo na consciência do escritor paulista se
encontra numa declaração sobre a própria produção daquele momento. Segundo
o escritor, ele estava escrevendo nesse período um romance que deixou
inacabado
69
, e os motivos da não conclusão da obra revelam o grau de angústia
do poeta diante do horizonte histórico em que o mundo mergulhara no início da
década de 1940. Mário de Andrade afirma em carta a Oneyda Alvarenga: “…
68
Idem, ibidem, p. 210.
69
Trata-se do romance Quatro Pessoas, em que dois casais amigos (Carlos e Maria; João e
Violeta) — após a tentativa de suicídio de Violeta — evolvem-se em sutis inter-relações subjetivas
e afetivas. Nas orelhas da edição crítica deste romance, Telê Porto Ancona Lopez afirma: “Iniciado
em 1939 quando Mário de Andrade vive no Rio de Janeiro, Quatro Pessoas retoma um projeto de
1924, o da investigação sobre o caráter nacional, semente de Amar, Verbo Intransitivo e
Macunaíma. Cruza suas águas com o conto ‘Frederico Paciência’, iniciado também em 1924, pois
seqüências dele lhe foram emprestadas, para, finalmente, em 1942, voltarem ao conto de origem.
Em Quatro pessoas acentua-se o narrador perplexo que não domina as causas ou explicações e,
mais uma vez, a singularidade machadiana volta a construir a mulher na galeria de Mário”. (Ver
bibliografia).
61
quando começou a arrancada alemã fiquei envergonhado de estar escrevendo
romance fazendo crochet sobre a psicologia de 4 pessoas e parei tudo”
70
.
Num outro depoimento tocante, Mário de Andrade revela:
— Do romance Quatro Pessoas, o que posso revelar?
— Que não existe mais. Eu o estava escrevendo no Rio de
Janeiro quando a notícia da queda de Paris me estarreceu. Não
era mais possível preocupar-me com o destino de quatro
indivíduos – envolvidos em dois casos de amor – quando o mundo
sofria tanto e a cultura recebia um golpe profundo. Desisti.
71
A Lira Paulistana parte dessa constatação de impedimento ou de
impossibilidade histórica. O poeta está sozinho, nem mesmo o “Irmão Pequeno”
pode auxiliá-lo. A solidão é infinita e a consciência dos dramas individuais e
coletivos ultrapassam o limite do suportável. A morte não redime nem justifica o
vivido. Não há redenção na história. O fluxo do tempo é regido pelo absurdo que
se repete em circularidade viciosa: o eterno retorno do mesmo, o eterno retorno do
mal.
A “anagnórisis” se realiza pelo avesso: reconhecimento da impossibilidade
de reconhecimento em qualquer dimensão. Todo espelho em essência não reflete,
deforma:
O ensaio poderia agora prosseguir. À imagem expandida
do ego, figura de um narcisismo cósmico que é resposta
sonhada e erguida contra o dilaceramento, poderíamos tentar
opor o passo seguinte, a perturbação de Narciso, a descoberta
da luta de classes e suas repercussões na obra do escritor. As
águas do Tietê, dura realidade de detritos, vêm substituir as
águas primordiais em que o "eu" se dissolve, embevecido. Do
"arco admirável da ponte das Bandeiras" o poeta verá
desfilarem sua poesia, sua vida, sua demagogia, seu amor —
comprimidos pelas margens estreitas, emudecido pelos donos
70
Andrade, Mário de e Alvarenga, Oneyda. Cartas . São Paulo: Duas Cidades; 1983, p. 234.
71
Andrade, Mário de. Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 96.
62
da vida, envenenados pela corrente suja do rio. Outra “viagem
na noite” se iniciará então para este poeta, debruçado sobre si
mesmo e sobre a realidade de seu país
72
.
Sistema de oposições e conflito social
Onde até na força do verão havia
tempestades de ventos e frios de crudelíssimos
invernos.
Fr. Luís de Souza
73
Durante os anos iniciais da década de 1940, Mário de Andrade — sem abrir
mão das conquistas radicais acumuladas pelo primeiro modernismo — conduz sua
produção lírica em direção às grandes questões sociais do tempo, em especial, a
da consciência da luta de classes e seus descaminhos, cujas ressonâncias ecoam
no interior do poeta, sismógrafo sensível tanto dos dramas individuais quanto dos
coletivos, tão bem ilustrados em:
Abre-te boca e proclama
Em plena praça da Sé,
O horror que o Nazismo infame
É.
Abre-te boca e certeira,
Sem piedade por ninguém,
Conta os crimes que o estrangeiro
Tem.
Mas exalta as nossas rosas,
Esta primavera louca,
Os tico-ticos mimosos,
Cala-te boca.
74
72
Lafetá, João Luiz. Op. cit., pp. 218-219.
73
Essa epígrafe pertence ao poema “Inspiração” do livro Paulicéia Desvairada.
63
A presença do dualismo é visível no poema e rege o movimento interno de
suas imagens (Abre-te x cala-te; Sé x Nazismo; crime x rosas). Uma leitura atenta
de todos os poemas que compõem a Lira Paulistana demonstra o jogo imagético
baseado num sistema de oposições que se manifesta ao longo de cada peça.
É possível observar ainda que o aspecto antitético — conflituoso e
paradoxal que rege o sistema imagético dos poemas — infiltra-se na própria
estrutura lingüística e rege a estrutura morfossintática dos poemas. Portanto esse
procedimento é tão marcante, que preside a estrutura estilística mais íntima do
texto: a formulação antitética rege o ritmo da própria frase, como demonstram
inúmeros exemplos. Trata-se de um traço marcante da obra de Mário de Andrade
revelador, no nível da linguagem, da permanência de uma problemática central
que a percorre do começo ao fim.
Em Contos Novos, vários são os exemplos. Em “Frederico Paciência”, o
bordão lítero-musical: “Puro. E impuro”, verdadeiro “leitmotiv” da narrativa, para
empregar uma linguagem musical tão ao gosto de Mário de Andrade. Essa
conjugação vocabular sintetiza o conflito central da maioria das narrativas da obra.
Luiz Dantas, num ensaio dedicado ao estudo de “Atrás da catedral de
Ruão”, detecta e analisa com profundidade esse procedimento estilístico:
Note-se como Mário de Andrade alinha adjetivos,
superlativos e diminutivos, com uma intenção claramente
antitética: “e Mademoiselle, sempre na sua blusinha alvíssima, de
rendinhas crespas”; “Mademoiselle soltava ‘petits cris
excitadíssima”; “Mademoiselle deu um galeio para frente com o
pescocinho, mais uma corridinha e conseguiu se distanciar do
monstro” etc. O comportamento da professora resulta de um jogo
de contrastes morais ou gestuais, com se um mecanismo, outrora
voluntariamente contido, redondo, se desregulasse subitamente. E
passa-se de um movimento do pêndulo ao outro, sem as
transições que normalizariam a trajetória. A máquina perdeu o
controle. E toda a desordem, a crise de Mademoiselle, a sua
histeria, por que não nomeá-la, não é descrita de um modo clínico,
74
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987, p. 356.
64
propriamente, mas encontra um sistema de representação verbal.
Talvez nessa elaboração se encontre uma das fontes de interesse
do conto, tão acentuadamente experimental.
75
Anatol Rosenfeld também observa esse aspecto relevante da escrita
literária de Mário de Andrade e o associa à questão da duplicidade e da
sinceridade que estaria na base do projeto criativo do escritor paulista. Ao se
referir justamente aos contos do livro citado, o crítico austríaco afirma:
A linguagem participa da recriação do contraditório que é
sugerido pelo oximoron ou por figuras estilísticas como “havia, não
havia, mas sempre como que havia...”, “meu desejo era fugir, era
ficar...” , “aqueles companheiros fortes tão fracos...” , “talvez
houvesse, havia...”, “E puro. E impuro.”, “depois, depois não, de
repente...”. O próprio abrasileiramento da língua é parte desta
reconstrução, na medida em que representa lingüisticamente a
busca do autêntico; mas na medida em que é uma estilização
cuidadosamente elaborada, partilha também dos fingimentos,
tornando-se a máscara do genuíno. A intenção de sinceridade
implica sempre a “segunda intenção”.
76
Para Anatol Rosenfeld essa característica estilística está em profunda
sintonia com a busca da sinceridade que percorre toda a obra de Mário de
Andrade e que constituiu o seu “cabotinismo” particular.
O próprio escritor revela a importância do “cabotinismo” num ensaio famoso
em que explica a sua teoria da “dupla sinceridade”. Segundo Mário de Andrade,
a cisão é o traço definidor de qualquer personalidade humana e se mostra
mais aguda no artista que, ao mesmo tempo em que é movido por interesses
muitas vezes não confessáveis, é também movido por razões que transcende
seus interesses pessoais. Ainda, segundo Mário de Andrade, é do jogo
75
Dantas, Luiz. Amar sem aulas práticas. In: Remates de males. Campinas: Editora da Unicamp,
1987, n° 7, p. 65.
76
Rosenfeld, Anatol. Mário e o cabotinismo. In: Texto / Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1985, p.
194.
65
conflituoso dessas tensões que nasce a verdadeira obra de arte. A arte é fruto
de tensões individuais e sociais com que o artista permanentemente convive
77
.
Para Anatol Rosenfeld, a teoria do “cabotinismo nobre” de Mário de
Andrade está diretamente associada ao desejo profundo de representar não
só a identidade pessoal completa, mas acima de tudo a identidade nacional:
Daí a curiosa teoria das duas sinceridades — uma
transmitindo a "paisagem profunda", outra trabalhando no nível
artesanal da comunicação, isto é, do espírito coletivo que, pelo
menos na sua manifestação lingüística, tem de ser adaptado aos
"interiores arlequinais" e ao "mato impenetrável do meu ser". Ás
duas sinceridades correspondem os dois cabotinismos (do artigo
mencionado) — um feio, dos motivos profundos que impelem o
artista e o homem à criação (motivos "inconfessáveis" ou
"perniciosos"); é, outro, o cabotinismo da máscara, das razões
oficialmente confessadas, dos "móveis aparentes", que acabam
tendo igualmente influência marcante (...).
78
A busca da identidade, individual ou nacional, é sintoma de sua perda
ou inexistência. O trabalho do escritor modernista em busca de uma síntese
lingüística nacional mostra pelo avesso a impossibilidade de realização do
projeto de revelação da identidade nacional, uma vez que a idéia de nação é
fortemente ideológica. A consciência de classe, que passa necessariamente
pela consciência de si mesmo, emperra qualquer visão positiva do processo
de formação nacional e coloca a cisão individual e coletiva no centro do
discurso poético. Destarte, no corpo mesmo da linguagem, inscreve-se a má-
consciência permanente obrigando o poeta a manter-se em estado de
absoluta tensão consigo mesmo, com a própria subjetividade e com o mundo
que o rodeia:
77
Andrade, Mário de. Do cabotinismo. In: O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins, 1972,
pp. 79-80.
78
Rosenfeld, Anatol. Op. cit., 191-192.
66
Como encontrar a unidade e auto-identidade, aquela
pureza sem mescla, aquela transparência total, se é necessário
confessar o "mato impenetrável do meu ser", o "coração
arlequinal", expressão que não sugere apenas a multiplicidade
incoerente da própria natureza e da do "herói sem caráter", por
ter caracteres demais, mas também o elemento cabotinesco do
disfarce e da máscara? Como descobrir a auto-identidade se
"sou tudo que vocês quiserem, mas que sou eu?", se apenas
"me aproximo de mim mesmo", se "sou trezentos", se "Não sou
mais eu nunca fui eu decerto/ Aos pedaços me vim-eu caio-aos
pedaços disperso/ Projetado em vitrais nos joelhos nas
caiçaras/ Nos Pirineus em pororoca prodigiosa/ Rompe a
consciência nítida: EU TUDO AMO" (Vol. Il, págs. 303/4). Pelo
menos nestes últimos versos, em que os vitrais substituem os
espelhos da quase obsessiva seqüência de "Oh! espelhos, oh!
Pirineus, oh! caiçaras", não pode haver dúvida sobre o sentido
de fragmentação expresso nela através dos contrastes
violentos entre altura e nível do mar, elementos europeus e
indígenas, sugestão de pedra e fluidez; ainda que em outros
contextos as mesmas palavras ambíguas talvez se avizinhem
do sentido de obstáculo inerente às "pedras" e "cercas" do
Prefácio Interessantíssimo.
79
A consciência da dualidade é a consciência da cisão. Eis a questão central:
a consciência da dualidade insolúvel, sem síntese possível. No pensamento
hegeliano-marxista, quando a passagem do dois ao três não se realiza, não se
alcança uma superação, mesmo que provisória, dos opostos dialéticos e produz-
se um fenômeno caracterizado com dialética truncada, cuja melhor definição se
encontra num regime de representação modalizado pelo ritmo do paradoxo em
que os conflitos insolúveis permanecem ecoando um sobre o outro.
Essa oposição dilacerada parece ser o fio condutor de Macunaíma, obra
regida pela bipolaridade constante. Na rapsódia, esse aspecto parece evidente,
79
Idem, ibidem, pp. 190-191.
67
uma vez que a dualidade estrutural se constitui em princípio regulador. Podemos
afirmar sem medo: ela é o fio condutor de toda a obra de Mário de Andrade.
Eis algumas das duplicidades que regem o livro: seu nome é composto de
maku (mal) e ima (grande); tem dois irmãos: Maanape e Jiguê; tem cabeça de piá
e corpo de homem com peito cabeludo; perde a muiraquitã duas vezes; sua
viagem é de ida e volta; dois são os seus opositores: Piaimã e Vei; morre e
ressuscita duas vezes; e, finalmente, do ponto de vista estrutural, o livro é dividido
em duas partes pela “Carta prás Icamiabas”, nono capítulo numa obra composta
por dezessete.
O regime da dualidade também fica explicito no subtítulo: Um herói sem
nenhum caráter. Todas as palavras apresentam duplicidade: herói pode ser
entendido tanto como protagonista da narrativa quanto como personagem
elevada, idealizada, no entanto, por seus atributos comportamentais, ele é um
anti-herói. É herói e não é. A “Rapsódia” é regida pelo ritmo do “é mas não é”, do
que não é passível de definição cartesiana.
Sem e nenhum são palavras com carga semântica negativa e constituem a
personagem com dupla negação. Macunaíma é um duplo negativo. O subtítulo da
narrativa é ambíguo e aponta o caráter ambivalente do personagem. O que esse
processo revela do nosso herói? Por extensão, o que ele revela do próprio país?
Trata-se de uma tentativa de figurar o processo interno que estrutura todas
as relações constitutivas da nacionalidade, o nosso processo particular de
constituição histórico-social marcado pela “modernização conservadora”, em que
as heranças de país colonial, escravocrata e patriarcal jamais são superadas, ao
contrário, agravadas com a passagem do tempo.
A mutilação final do herói e seu despedaçamento violento pela Uiara
simbolizam a impossibilidade de integridade, de completude. A Ursa Maior
associada ao Saci relembra a ausência da totalidade. Como já observamos
anteriormente, na periferia do capital, o histórico e o mítico se (con)fundem tão
profundamente e na mesma proporção em que os elementos arcaicos e modernos
são indissociáveis.
68
Gilda de Mello e Souza sintetiza este aspecto particular de Macunaíma
afirmando que ele se encontra fortemente presente também na poesia de Mário
de Andrade:
Deste modo, se a exclamação ai que Preguiça! exprimia o
desejo ancestral de se ver reincorporado ao âmbito do Uraricoera e
da muiraquitã — a tudo aquilo, enfim, que nos definia como
diferença em relação à Europa —, a metonímia geminada (“ou o
Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil") instalava
no discurso a exigência de uma escolha, que só podia ser feita do
lado dos valores ocidentais do trabalho. Os dois dísticos resumiam,
por conseguinte, as contradições insolúveis espalhadas pela
narrativa, a tensão entre o princípio de prazer e o princípio de
realidade, entre a tendência espontânea a mergulhar no repouso
integral do mundo inorgânico, no Nirvana, e o esforço de obedecer
aos imperativos da realidade, da luta pela existência, das restrições
e das renúncias, que caracterizam a civilização e o progresso,
simbolizados em Prometeu.
A referência a Marcuse não é gratuita, pois a descrição que
faz em Eros e Civilização da grande tensão que dilacera o homem
contemporâneo se adapta, de maneira adequada, não só ao
universo dividido de Macunaíma e ao corpo de idéias de Mário de
Andrade mas, sobretudo, à sua poesia.
80
Segundo a autora de O Tupi e o Alaúde, a dualidade, que representa
contradições insolúveis, está no núcleo de estruturação da poesia de Mário de
Andrade e a percorre do princípio ao fim. O permanente choque de contrários é
motor de todo o processo imagético do poeta e vai se aguçado ao longo de sua
trajetória de produção. Parece-nos que este processo atinge o seu ápice justamente
em A Lira Paulistana, livro em que o choque de opostos se constitui num verdadeiro
sistema de oposições que ecoa — de dentro para fora — as imensas contradições
com as quais a consciência poética se debate incessantemente:
80
Souza, Gilda de Mello. O Tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas
Cidades, 1979, p. 58.
69
Nas grandes meditações que representam uma das partes
mais importantes de sua obra poética, o destino do Brasil se cruza e
confunde com o destino pessoal do escritor, e os temas se
organizam quase sempre aos pares, opondo-se simetricamente
como as duas faces da mesma medalha. É assim que se a
Louvação da Tarde canta o descanso do fim do dia, o momento de
sonho e evasão que é também o da criação artística, a Louvação
Matinal celebra o início da jornada de trabalho, da decisão e do
projeto. O mesmo ocorre com os dois grandes poemas fluviais A
Meditação do Tietê e o Rito do Irmão Pequeno, onde o curso paciente
do rio paulistano e as silenciosas regiões alagadas da Amazônia
delimitam dois campos opostos, onde se situam; de um lado, a
personalidade construída, o ethos, de outro, o ser primordial.
Esta fratura que cinde curiosamente as meditações, fazendo
com que uma desdiga aquilo que a outra afirma, também pode se
localizar no interior de um único verso ou no jogo de oposição de
duas imagens. É o que ocorre com o belo verso de mocidade, que
tomamos como epígrafe:
Sou um tupi tangendo um alaúde;
ou com o uso sistemático de certas imagens antitéticas como
montanha e margem, rio e lagoa, boi e preguiça (bicho)
81
.
Gilda de Mello e Souza insiste ainda na análise de um dos versos mais
importantes e citados de toda a poesia de Mário de Andrade, verdadeiro brasão de
sua obra e das grandes contradições que a percorrem do início ao fim:
Com efeito, uma das imagens antitéticas prediletas de Mário
de Andrade é Pirineus e caiçaras. Ora, se o primeiro termo da
oposição designa a cordilheira entre a França e a Espanha, e é por
conseguinte, uma metáfora de bloqueio e de altitude européia, o
segundo, de origem indígena, significa, na acepção que em geral
Mário de Andrade lhe dá, "cercado de madeira, à margem de um
81
Idem, ibidem, pp. 58-59.
70
rio, para embarque de gado", tendo, por conseguinte, uma
conotação brasileira de planura. Coisa semelhante acontece com
a oposição rio/ lagoa, em que rio indica caminho, aventura,
ambição inquieta, e lagoa — muitas vezes identificada a porto
lugar estável, ponto de chegada, paz dissolvente, indiferença.
Quanto à antítese boi / preguiça, representa, de modo geral, uma
duplicação da oposição anterior, podendo os dois pares de imagens
funcionar como pares intercambiáveis. No entanto, como já foi
assinalado no início deste ensaio, boi é a grande marca do destino
escolhido, a metáfora preferencial para a personalidade ética e
portanto européia; enquanto preguiça encarna o ócio e a
indiferença, o abandono àquela “filosofia fatigada da existência”,
desprovida de prazeres e dores, fundamentada “no calor e na
umidade", que Mário de Andrade pretendia realizar no fim da vida,
junto a um dos pequenos rios da Amazônia.
Em resumo — e concluindo a digressão — foi o
conhecimento da fissura profunda que fere todos os setores da
reflexão de Mário de Andrade, e se manifesta na poesia de maneira
obsessiva pela oposição incessante das imagens, que me levou a
destacar o episódio de Vei.
82
Quanto maior é a precisão e a clareza com que o poeta estrutura e explicita
nas imagens o jogo das oposições tanto melhor é efeito poético obtido. O jogo das
oposições impõe aos poemas um incessante movimento pendular entre extremos
que nunca encontram um momento de síntese. Os conflitos são registrados em
movimento cíclico permanente que pode ser designado pelas expressões: eterno
retorno do mesmo ou eterno retorno do mal, em que a aparência e a essência, o
interior e o exterior se confundem de maneira inextricável.
Por clareza demonstrativa, segue um levantamento esquemático dessas
oposições e imagens presentes em cada poema, para em seguida especificá-las
mais detalhadamente na análise de sete poemas (Capítulo III) considerados
relevantes para a condução da argumentação proposta neste trabalho:
82
Idem, ibidem, pp. 59-60.
71
1. Minha viola quebrada:
“Arábias, Granada” X “São Paulo”
“Viola bonita, namorada” X ”viola ferida, quebrada”
2. São Paulo pela noite:
“São Paulo pela noite” X “São Paulo na manhã”
“Meu espírito alerta” X “Corpos flácidos”
“O coração alçado” X “O espírito cansado”
“Coração aberto, alçado” X “Espírito alerta, cansado”
“Luz sinfônica” X “Marchas fúnebres”
“São Paulo noite e dia”
“A forma do futuro” X “O crime do presente”
“E tudo é glória.” X “E tudo é cólera.”
3. Garoa do meu São Paulo:
Negro X branco
Pobre X rico
São Paulo X Londres
4. Vaga um céu...:
“O mal das almas” X “Quase parece um bem na linha das calçadas”
“Toda forma de ação se esvai numa atonia”
5. Ruas do meu São Paulo:
“A busca” X “A ausência”
“Onde está o amor vivo” X “Onde está?”
72
“Corro em bisca do amigo” X “Onde está?”
“Amor maior que o cibo” X “Onde está?”
“Resposta ao meu pedido” X “Onde está?”
“A culpa do insofrido” X “Onde está?”
6. Abre-te boca e proclama:
Abre-te X cala-te
O Nazismo X nossas rosas
7. Esse homem que vai sozinho:
O homem X a mulher
“Tem consigo um segredo enorme” X “Traz uma surpresa cruel”
8. Meus olhos se enchem de lágrimas:
“Partir eu parto” X “Mas eu não sei para onde vou
9. O bonde abre a viagem:
“No banco ninguém” X “Estou só, stou sem.”
“O bonde está cheio” X “Não sou mais ninguém.”
10. Eu nem sei se vale a pena:
“Miséria, dolo, ferida,” X “Isso é vida?”
“Todos cantando vitória,” X “Isso é glória?”
“E se ama seja o que for,” X “Isso é amor?”
“E a gente de trás pra trás” X “Isso é paz?”
“Sem paz, sem amor, sem glória,” X “Isso é vida”
73
11. O céu tão claro...:
“É ver uma criança adormecida” X “Os homens estão mais longe”
“Ôh espelhos, Pirineus, caiçaras”
12. Tua imagem se apaga...:
“Tua imagem se apaga em certos bairros,” X “Mas tua dor rasga nos ares,”
13. Numa cabeleira pesada:
“Numa cabeleira pesada” X “Que ondula defronte de mim”
“Que eu perco pelas multidões.”
“Que construirão a outra São Paulo”
14. Na rua Barão de Itapetininga:
“Minha namorada não passeia aqui” X “Minha namorada vem passear”
“Porque a mulher que eu amo está longe,
15. Beijos mais beijos,:
“Beijos mais beijos” X “Implacáveis.”
“Rosas mais rosas” X “Implacáveis.”
“Luzes mais luzes” X “Implacáveis.”
“Ideais mais ideais” X “Implacáveis.”
“Notícias que enchem e esvaziam,”
16. Silêncio em tudo. Que a música:
74
“Silêncio em tudo. Que a música”
“Abrir e fechar de portas”
“Faz que diz mas não diz...”
17. Bailam me saltos fluidos:
“Bailam em saltos fluídos” X “Mas o goleiro alvo explode”
“— Adeus, meninas e violas! — X “Menino que me recusas”
“Bailam em saltos fluidos” X “Corpos,corpos, corpos.”
18. A catedral de São Paulo:
“É uma catedral horrível” X “Feita de pedras bonitas”
“Sacro e profano edifício”
“Um dia há-de se acabar,” X “mas depois se destruirá”
19. ...os que esperam, os que perdem:
“Afirma, afirma e te abrasas” X “Pelas milícias do não!”
20. Agora eu quero contar:
Pedro X a serra
A oficina X a escola
O dedo X a máquina
O operário X o poeta
Aleijadinho X Beethoven
A serra X o túmulo
75
21. Na rua Aurora eu nasci:
“Na rua Aurora eu nasci” X “Nesta rua Lopes Chaves / Envelheço”
22. Vieste dum futuro selvagem:
“Todo fera e diamante bruto”
“Mas a devastação fraterna”
23. Moça linda bem tratada:
“Burra como uma porta” X “Um amor.”
“Grã-fino do despudor” X “Um coió.”
“Mulher gordaça, filó/ De ouro por todos os poros” X “Burra como uma porta:”
“Plutocrata sem consciência” X “Uma bomba.”
24. Quando eu morrer...:
“Um coração vivo e um defunto / Bem juntos.”
“As tripas atirem pro Diabo,” X “Que o espírito será Deus.”
25. Num filme de B. de Mille:
Filme X “Rei dos Reis.”
Pênis X “Rei dos Reis.”
Burguês X “Rei dos Reis.”
Homens X “Rei dos Reis.”
26. Entre o vidrilho das...:
“Luisito! Tens um sabor de promessa falhada!”
76
“Jamais direi, jamais direi, ficarei mudo, mudo,”
“Alguém que se quebrou em dois irremediavelmente,”
27. Nunca estará sozinho:
“nunca estará sozinho.” X “O rancor do inimigo.”
“Em amigos e inimigos.”
28. A meditação sobre o Tietê:
Como esse poema será alvo de discussão no último capítulo deste trabalho,
faremos posteriormente o cotejo das imagens que se articulam nele.
29. Nasceu Luís Carlos no Rio:
“Sofre o sonho amordaçado,”
“Criança, nasces num cúmulo” X “Homem, morres nessa lida”
O que se avulta nesse jogo de oposições na obra de Mário de Andrade é o
fato de que ele vai ganhando força e concretude cada vez maiores, à medida que
a crise subjetiva, de um modo ou de outro, vai se atritando com a consciência
crescente do conflito social ao longo das décadas de 1930 e 1940.
Essa “dialética truncada”, que rege profundamente o ritmo do próprio
discurso e se encontra no núcleo da maioria das obras de Mário de Andrade,
permite ao poeta expressar contradições cada vez mais entranhadas no ritmo
histórico particular daqueles anos. Esse fenômeno é tão complexo e tão
importante que é possível acreditar que seja ele o verdadeiro responsável pela
enorme força expressiva de um poema como “A meditação sobre o Tietê”, em que
o mais “individual” e o mais “subjetivo” são contraditoriamente e, ao mesmo
tempo, o mais “universal” e o mais “objetivo” .
Esse “sistema de oposições” revela que todas a imagens mais importantes
da obra de Mário de Andrade são regidas por um “sistema dualístico” impondo o
77
“registro da indeterminação”. A impossibilidade de determinar é sua marca, e sua
figura é a báscula oscilando permanentemente entre pólos que não se suprimem
ou se condensam numa síntese qualquer. Esse movimento pendular é a
expressão de uma má-infinidade: figura poética que mimetiza os impasses
insolúveis da constituição da própria identidade e da identidade nacional, agora
atritadas mais violentamente pela consciência da classe — mimese profunda.
O momento maior dessa figuração na obra de Mário de Andrade se
encontra justamente em “A meditação sobre o Tietê”. A imagem de um homem
solitário durante a noite, em cima de uma ponte, olhando fixamente o fluir
inexorável das águas “túrbidas” do rio, representa, salvo engano, a imagem
arquetípica do suicida e do insone, daquele que diante do eterno retorno do
mesmo — representado pelo fluir do rio e das águas —imobiliza-se. O movimento
circular ou pendular é a representação mais visível do angustiante movimento
imóvel que prende o melancólico ao círculo vicioso da má-infindade.
Em “A meditação sobre o Tietê”, como já dissemos na introdução do
presente trabalho, o tom da voz poética oscila entre a mais profunda ironia e a
mais intensa expressão das emoções; o discurso oscila entre o histórico e o mítico
e impõe ao leitor, ao mesmo tempo, o distanciamento crítico e a fusão emotiva. A
leitura oscila entre o contrato e pacto, que, ao mesmo tempo, em que o constitui,
suprime o leitor. Leitura e rito se confundem. O poema parece ser recitado sob o
domínio do transe, a que o leitor também é arrastado pelo efeito de pungência
almejado pela voz poética que rege meticulosamente o fluxo das imagens: o
discurso poético se mostra simultaneamente “iluminista” e “iluminado”. Em suma,
é o poema de um possesso lúcido, seu fluxo imagético é expressão de um transe
e por isso ele se constitui num rito, num rito de morte.
Buscaremos demonstrar esse percurso interpretativo no decorrer da análise
do poema, no quarto e último capítulo deste trabalho. Por enquanto,
percorreremos alguns outros poemas da Lira Paulistana, buscando explorar esses
aspectos apresentados sucintamente.
78
Capítulo III
A ira de Tânatos, a dissolução de Narciso e a solidão de Orfeu
Como afirmamos no início do capítulo anterior, Lafetá, ao concluir a análise
da quarta “máscara” presente na poesia de Mário de Andrade, faz uma síntese
das diferenças existentes entre A costela do Grã Cão
83
e o Livro Azul. Segundo o
crítico, no primeiro livro, predomina uma visão dilacerada e angustiada da própria
interioridade, traduzida na imagem do despedaçamento (sparagmós) e no desejo
de reconhecimento (anagnórisis) sempre marcado pela consciência irônica da
impossibilidade de realizá-lo. A morte se traduz em força motriz do mundo e atinge
o universo erótico: são poemas regidos pela pulsão de morte. Tânatos está
impregnado em todas as relações humanas e esse fenômeno, segundo Lafetá, é
fruto de um mundo marcado pela divisão social alienante determinado pelas forças
produtivas modernas.
No segundo livro, há uma dicção menos tormentosa. A interioridade está
marcada por um profundo desejo de repouso. O tom azul percorre os poemas em
diferentes gradações até atingir o branco total: símbolo do desejo de pacificação
dos conflitos. Aqui também o crítico percebe a figuração dos desejos tanáticos da
voz lírica, mas a direção agora é outra. Há nos poemas da “fase azul” um profundo
desejo de sublimação das tensões da vida por meio do desejo de morte.
A morte apresenta agora uma dimensão narcísica intensa: ao contemplar-
se, o “eu” contempla a unidade essencial de todas as coisas. A dissolução total do
“eu” é uma espécie de retorno ao seio da natureza, reintegração cósmica
fundamente ansiada pela voz lírica. Ao comentar o “Rito do irmão pequeno” que
constituiria o núcleo dessa conjunção temática, Lafetá afirma:
Um breve comentário nos bastará aqui, e através dele
poderemos (talvez) chegar à interpretação do núcleo do poema.
83
Ver anexo III.
79
Estamos no centro da cerimônia ritual, o acesso terrível da
maleita, última resistência que as tensões da vida opõem ao
nivelamento nirvânico. Ao mesmo tempo, a confusa visão do
acesso é consciência da unidade do sujeito com o universo: as
árvores fazem a tempestade berrar; na "coincidência vegetal"
que é a solidariedade entre "os elementos da criação". Viver o
momento da dor, "exercer o rito da agonia", é encontrar "a
exatidão misteriosíssima do ser". Em outras palavras: é
descobrir, por trás da individuação, a força da vida que une tudo
em um só corpo.
84
Para o crítico, há, nesse processo de fusão do “eu” com o “mundo”
representado pela natureza, a presença de uma componente dionisíaca na
poesia final de Mário de Andrade (“O ‘Rito do Irmão Pequeno’, como o leitor já
percebeu, é um rito dionisíaco.
85
”). A dissolução da subjetividade no mundo
natural não representa a aniquilação maligna do ser, mas o reencontro com as
forças primordiais do cosmo, que representam a última possibilidade de
equilíbrio no mundo em que o sentido verdadeiro está ausente:
Mas o homem não é somente um ser limitado pelo
princípio de individuação; ele tem ainda a consciência de si
mesmo como de uma vontade; ele se sente como uma parcela
dessa vontade esparsa por todo o universo, ele se sente
identificado a tudo o que vive e que sofre, no universo inteiro. É
nos estados de embriaguez e de êxtase causados pelos
narcóticos ou provocados pelos fenômenos naturais como o
retorno da primavera, que o homem sente de um golpe abater-
se a barreira da individualidade que o separa do resto do
universo, e toma consciência de sua união com a natureza
inteira. Aí está o que Nietzsche chama de estado dionisíaco.
(...) No estado dionisíaco o homem toma consciência de sua
eternidade, pois sua vontade individual é idêntica à vontade
universal. Em face do espetáculo aterrorizador da destruição de
84
Lafetá, João Luiz. Op. cit., p. 214.
85
Idem, ibidem, p. 214
80
tudo o que é perecível — por exemplo, em presença da morte
de um herói trágico — sente levantar-se em si a consciência de
que a vida eterna da vontade não foi atingida pela morte de um
indivíduo. O homem dionisíaco escapa do pessimismo porque
percebe a eternidade da vontade sob o fluxo perpétuo dos
fenômenos; ele diz à vida: Eu te desejo, pois tu és a vida
eterna
86
.
As imagens regressivas que perpassam os poemas do Livro Azul são
marcadas por essa força, por essa “vontade” primordial e fundadora do ser
autêntico, que está na base do próprio fenômeno lírico desde suas mais
remotas origens. Essa fusão representa também a única possibilidade — ainda
que mito-poética — de plenitude diante da fragmentação do mundo,
experimentada pela voz lírica presente em A costela do Grã Cão como uma
forma de mutilação:
No regressus há esta dialética que não podemos
perder de vista: volta-se ao princípio não por amor à morte, mas
pelo desejo de vida, para recobrar no contato com a força da
origem a plenitude que está na raiz do ser. A vivência corajosa
da dor (porque "cumprir a dor é também cumprir o seu porto
seguro”) é um modo de reencontrar, depois de removidas as
aparências do mundo fenomenal, o fluxo constante de energia
que é a vida e que liga todo o universo; a vivência da dor não é,
no caso, mera catarse de uma paixão perigosa do nada, mas,
como nota Nietzsche, seu significado é que ela deseja, para
além da piedade e do terror, "ser ela mesma a alegria eterna do
devir, esta alegria que compreende também a alegria de
aniquilar". Compreendemos assim o espírito dionisíaco que
dita este verso obsessivo de Mário de Andrade: A própria dor
é uma felicidade. Ao medo da dissolução e do nada, Dioniso
contrapõe o sentimento do Uno, da vida eterna da vontade, da
potência que permanece intocável para além dos atos. Esse
86
Apud: Lafetá, João Luiz. Op. cit., 1986, pp. 214-215.
81
sentimento unifica e dá sentido à dissolução que está presente
em todos os poemas da "fase azul"
87
.
Se essas conclusões do crítico forem realmente procedentes, podemos
imaginar o conjunto desses dois livros que antecedem a Lira Paulistana — A
Costela do Grã Cão e Livro Azul — como uma máscara de Jano, que com dois
lados opostos e contraditórios, expressa a profunda cisão interna do sujeito lírico e
a impossibilidade de qualquer reconciliação subjetiva. Nem nos braços de Tânatos
(A Costela do Grã Cão) nem no espelho de Narciso (Livro Azul), o poeta
encontraria o repouso autêntico, pois nesse período final de sua poesia sempre
ronda de forma fantasmática outra consciência: a da luta de classes.
A consciência aguda do conflito social se constitui na verdadeira mediadora
das pulsões de morte que povoam a sensibilidade da voz lírica. O “outro”,
enquanto alteridade fantasmática, está sempre no horizonte da identidade
conflituosa. Segundo Lafetá, é justamente no livro seguinte aos dois citados
anteriormente, Lira Paulistana, que o conflito de classe ganha concretude e aflora
explicitamente na obra de Mário de Andrade
88
.
A Lira Paulistana representa uma terceira via de formalização dos
conflitos mais fundos da consciência lírica e se encontra entre o tom
“apocalíptico” de A Costela do Grã Cão e o tom “dionisíaco” do Livro Azul. O
verdadeiro enfrentamento está não no recesso do “eu” mas no “mundo”, ou nas
palavras de Antonio Candido: “o poeta eu mais o mundo”.
87
Idem, ibidem, p. 215.
88
Ver a citação da p. 31 do presente trabalho.
82
Leitura de poemas
O nosso propósito é analisar alguns poemas da Lira Paulistana, procurando
mostrar a recorrência de temas fundamentais que percorrem todo o livro e
culminam no poema “A meditação sobre o Tietê”.
Começaremos por um dos mais característicos do livro e da obra de Mário
de Andrade, pois nele se encontra presente a identificação entre o poeta e a
cidade de São Paulo, que se dá por meio de um aspecto tradicionalmente
considerado como um dos traços distintivos da Paulicéia: a garoa.
Os tortuosos caminhos da cidade e a insuficiência fatal do Outro
1
Garoa do meu São Paulo
Garoa do meu São Paulo,
— Timbre triste de martírios —
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco
Meu São Paulo da garoa,
— Londres das neblinas finas —
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.
Garoa do meu São Paulo,
Costureira de malditos —
Vem um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos ...
83
Garoa, sai dos meus olhos.
89
Como se nota, o poema é composto por quatro estrofes, num total de
quinze versos distribuídos de forma não regular e numa sucessão decrescente (5,
5, 4, 1). As duas primeiras são compostas por cinco versos; a terceira pela quadra;
a última, um verso solitário que sintetiza profundamente o conflito central da voz
lírica. Formalmente essa distribuição aponta para uma redução progressiva do
espaço poético, uma redução incontornável da perspectiva da voz lírica diante do
mundo.
Nesse poema, três aspectos da mesma questão (a identidade) se mesclam
na dialética complexa regida pelo binômio distante x próximo, o que “é” e o que
“não é”, resumindo a busca de verdade e de sinceridade do poeta modernista.
Na primeira estrofe, o jogo se dá em função da etnia (branco / preto). Na
segunda, a classe (rico / pobre) e o conflito entre o nacional e o estrangeiro
(Londres / São Paulo). Ainda na terceira estrofe, a recorrência dos elementos
presentes nas outras duas (rico; branco), acrescida da denúncia da dominação de
classe, no verso final: “São sempre brancos e ricos”.
As três grandes contradições que atravessam a obra de Mário de Andrade
— a consciência da miscigenação elemento determinante na “formação” da
identidade do Brasil associada ao permanente movimento pendular entre o
nacional e o estrangeiro e finalmente a consciência de classe como elemento
mascarador / definidor dessas contradições — estão reiterados no poema.
A organização formal do poema: o segundo verso das três primeiras
estrofes sempre entre travessões (— Timbre triste de martírios —; — Londres das
neblinas finas —; — Costureira de malditos —) é um traço regularidade estrutural.
No plano semântico, o elemento comum aos três versos é a consciência da morte
que infiltra todos os aspectos da existência.
Em “— Timbre triste de martírios —“, a palavra “martírios” está associada a
“Timbre [triste]”. “Timbre” lembra brasão e registro vocal, apresenta dimensão
89
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 353.
84
heráldica e constitui a marca definidora do poeta. A presença das aliterações e da
assonância produz no campo fônico do verso a fusão dos significados das
palavras que convergem para um símile da morte: o “martírio”.
Em “— Em Londres das neblinas finas —“, a idéia da dissolução está
presente no caráter fumarento da neblina, que produz indefinição de formas e
dificulta a percepção do movimento verdadeiro das coisas do mundo e remete a
uma espécie de caos original ou final.
Em “— Costureira de malditos —“, há uma referência cifrada, mas
inquestionável, à morte. O termo “Costureira” determinado pela expressão “de
malditos” contém ressonâncias das ”fiandeiras” gregas (as Moiras) e latinas (as
Parcas), as tecelãs Cloto, Láquesis e Átropo:
Personificação do destino de cada um segundo a
sorte que lhe coube neste mundo, as Moiras são geralmente
representadas como três deusas irmãs que zelam pela sorte
dos homens, mais do que a determinam. De origem abstrata
e impessoal, a Moira (Moïra), cujo nome significa "o quinhão
atribuído", é tão inflexível como o Destino: todos, homens e
deuses, lhe estão submetidos e ninguém pode transgredir a
sua lei sem pôr em perigo a ordem do mundo. O próprio Zeus
mais não pode do que retardar o seu cumprimento, sem
jamais conseguir impedi-lo quando é chegada "a hora".
Na seqüência das epopéias homéricas, nasce a imagem
de uma trindade de dupla genealogia: as três deusas são quer
filhas de Zeus e de Témis e, portanto, irmãs das Horas, quer filhas
de Nix, a Noite, pertencendo assim à geração primitiva pré-
olímpica. Passando a ser representadas como velhas fiandeiras,
Cloto, "a Fiandeira", Láquesis, "a Sorte" e Átropo, "a Inflexível”,
regem a vida de cada ser, desde o nascimento até á morte, com a
ajuda de um fio de lã simbolicamente fiado pela primeira, medido
pela segunda e cortado pela terceira
90
.
No último verso, isolada numa estrofe solitária, a garoa paulistana que
invade o olhar do poeta e lembra as “neblinas finas” de uma Londres “mítica”. É
90
Martin, René. Dicionário cultural da mitologia greco-romana. Lisboa: Dom Quixote, 1992, p. 172.
85
possível imaginar, num primeiro momento, que na imagem da “garoa”, nos “olhos”
do poeta, encontra-se a fusão do dado subjetivo (lágrimas) com o dado objetivo
(garoa: fenômeno atmosférico): procedimento comum em Mário de Andrade.
Ainda, é possível interpretar o verso como revelação do desejo do eu lírico de
desembaciar a visão, livrar-se do que impede a percepção clara das coisas e dos
seres, em suma, estabelecer o limite entre o que é externo e o que é interno.
Traduzindo essa idéia em outra chave: separar claramente o que é nacional
do que é europeu, o que é herança da miscigenação e o que é fruto do processo
histórico particular de acumulação capitalista no país. A consciência dessa
necessidade convive com a presença da garoa e com tudo o que nela está
implicado: “martírios”, “neblinas finas” e “malditos”. A pulsão de morte parece-nos
ultrapassar todos os esforços do poeta na direção de encontrar um sentido para
as agudas diferenças entre os homens (etnia, nacionalidade e classe).
2
A Catedral de São Paulo
A catedral de São Paulo
Por Deus! que nunca se acaba
— Como minha alma.
É uma catedral horrível
Feita de pedras bonitas
— Como minha alma.
A catedral de São Paulo
Nasceu da necessidade
— Como minha alma.
Sacro e profano edifício,
Tem pedras novas e antigas
— Como minha alma.
86
Um dia há-de se acabar,
Mas depois se destruirá
— Como o meu corpo.
E a alma, memória triste,
Por sobre os homens arisca,
Sem porto.
91
Esse poema é composto por seis tercetos. Os dois primeiros versos de
cada estrofe são redondilhas maiores, e o último, refrão, um tetrassílabo. Como
não há um esquema regular de rimas, os versos podem ser considerados brancos.
Do ponto de vista formal, é possível afirmar que o poema reelabora alguns traços
característicos da poesia medieval da língua portuguesa.
O reaproveitamento da tradição trovadoresca era um dos projetos de Mário
de Andrade, ao escrever os poemas da Lira Paulistana. Aspecto já apontado na
citação transcrita no início deste trabalho e que parece representar um desejo de
comunicação abrangente como o mundo
92
. Sob este prisma, podemos afirmar que
há uma homologia entre “forma” e “conteúdo” no poema, pois, ao comparar a sua
há alma com a catedral da Sé, imediatamente se presentifica na consciência do
leitor o estilo gótico (medieval) do edifício, agora, relido no influxo das
contradições modernas.
Além disso, a relação de identidade estabelecida entre o poeta, a catedral e
a cidade (São Paulo) pode ser esclarecedora de contradições maiores que estão
diretamente associadas às transformações sociais ocorridas no Brasil da primeira
metade do século XX. O longo período de gestação da nova catedral da Sé de
São Paulo revela muitos impasses que, de alguma forma, calam fundo na
consciência do poeta. A identificação (“—Como minha alma”) com o estado
“inconcluso” da catedral aponta para contradições insolúveis.
91
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 370.
92
Ver a página 26 deste trabalho.
87
A catedral da Sé foi construída ao longo de quarenta e um anos (1913-
1954)
93
, o que explicaria o lamento irônico presente no verso “Por Deus! Que
nunca se acaba”. Do ponto de vista estético, a arquitetura do edifício reproduz
canhestramente o estilo consagrado das catedrais medievais européias. Trata-se,
na verdade, de um “pastiche” de gótico inscrito na velha tradição brasileira de
imitação dos estilos prestigiosos europeus.
O longo período de construção da catedral contrasta com o acelerado
processo de transformação de São Paulo de velha e provinciana cidade colonial
em moderna metrópole capitalista. Convivem na mesma cidade dois tempos
diferentes: o circular, do mito (a catedral), e o linear, da história (a metrópole). A
sobreposição destas duas temporalidades revela o processo geral de formação do
país em que a fusão dos opostos impõe a indeterminação como marca prioritária:
A cidade que recebia sua nova Catedral era, no
entanto, muito diferente daquele que engendrou as primeiras
discussões que permitiram que a obra viesse a acontecer. No
final do império e início da República, com o forte
desenvolvimento econômico resultante das exportações do
café, em São Paulo, segundo o relato de um viajante, "uma
cidade nova tende a substituir a antiga".
"0 último quartel do século dezenove — como os
primeiros anos do século vinte" — escreveu Ernani Silva
Bruno — "representou período de muita demolição, de muita
reforma e de muita construção na cidade e em seus
arredores. As próprias edificações religiosas não escaparam
a esse processo de substituição. (...) E quase todas as
igrejas mais tradicionais da cidade foram desaparecendo —
Inclusive a do Colégio —, algumas para dar lugar, no começo
93
A inauguração oficial do edifício foi realizada no IV Centenário da cidade de São Paulo. No
entanto a obra não estava verdadeiramente terminada. Em rigor, a Sé só foi concluída no ano de
2002: durante as obras da restauração foram finalmente anexadas ao prédio os torreões que
faltavam, portanto quase noventa anos após o início das obras. Pelo menos, nesse sentido, ela é
uma catedral medieval, pois quase atravessou um século para ser concluída.
88
do século atual, a templos monumentais, de linhas mais
modernas, embora estranhas ao passado da povoação".
Nesse período, na parte central da cidade, a maioria
das igrejas tinha origem no período colonial, "nuas de
ornamentos, de grandes curvas pesadas, privadas quase
sempre até da nota risonha dos azulejos — a dos Remédios
foi uma exceção —, nem uma só das igrejas escapou ao
insosso tipo apelidado jesuítico", na descrição de Vicente de
Azevedo.
94
É interessante observar a consciência dos contemporâneos do
processo de recriação do espaço urbano paulistano no final do século XIX e
início do século XX. O antigo estilo “jesuítico” predominante nas construções
antigas da cidade foi paulatinamente substituído pela imitação de estilos
mais prestigiosos do ponto da história da arte ocidental. O singelo e o
pedestre estilo das igrejas coloniais paulistas foi soterrado pelo desejo de
dar a cidade um aspecto de metrópole moderna. Essa sanha modernizadora
harmoniza-se com o projeto de demolição da tradição, característica do
momento inicial do Modernismo brasileiro
95
:
O orgulho dos paulistanos, que expressavam seu
poder econômico também no crescimento urbano, exigia que
São Paulo pudesse ostentar uma Catedral compatível com o
progresso da futura metrópole e mais grandiosa do que
muitas que já haviam sido construídas no interior
-
paulista e
em outros Estados. Em 1882, Jules Martin propôs que a nova
Sé fosse construída na Praça dos Curros (atual Praça da
República), voltada para o centro da cidade. Seis anos
depois, constituiu-se a comissão responsável pela
construção, sendo seu Presidente o Senador Antonio Prado.
Os recursos iniciais da obra teriam origem em uma Loteria
94
Braz, Pedro José. Uma igreja em pé. In: Catedral da Sé: arte e engenharia na recuperação do
patrimônio. São Paulo: FormArte, 2002, pp. 24-25.
95
No entanto opõe-se ao profundo desejo, alimentado por Mário de Andrade, de preservar
o passado para melhor entender o verdadeiro processo de formação do país.
89
Provincial, prática comum no Governo Imperial para
beneficiar construções civis e religiosas, com a colaboração
da população, como ocorreu, entre outras, com o Museu
Paulista. Em 1889, nova reunião confirmou a Praça dos
Curros como o local para a construção e o seu estilo, o
gótico.
As turbulências políticas do período, porém;
impediram que o projeto da nova Catedral se concretizasse.
Com o regime republicano, foi decretada a separação da
Igreja e do Estado, expressando-se em vários políticos
sentimento anticlerical. Os recursos arrecadados pela loteria
Pró-Catedral, 200 contos de réis, foram destinados à
construção de uma nova Escola Normal, no local definido
para a Catedral.
96
Durante o Império, o lugar escolhido para a edificação originalmente
foi a Praça dos Curros (atual Praça da República). Com o advento da
República, em lugar da nova Sé, na praça foi construído o prédio da Escola
Normal Caetano de Campos. A sobreposição simbólica dos espaços é
marcante: no lugar do tempo cristão, o templo iluminista em que o saber e as
luzes afastam o obscurantismo e a fé
97
.
A discussão sobre a construção da nova catedral tem suas raízes no
final do período imperial e está nitidamente relacionada à modernização
capitalista do país, cujo epicentro era São Paulo. A presença das elites
paulistanas tradicionais se faz marcante na figura do senador Antonio Prado.
Trata-se de mais um representante daquela “aristocracia tradicional”, que
“nos deu mão forte”. Com a chegada da República, as relações sociais e
políticas apontam para mudanças que levarão ao colapso da aristocracia do
96
Braz, Pedro José. Uma igreja em pé. In: Catedral da Sé: arte e engenharia na recuperação do
patrimônio. São Paulo: FormArte, 2002, pp. 25-29.
97
Irônica é a semelhança deste fato histórico com a famosa passagem das “tabuletas” no romance
Esaú e Jacó de Machado de Assis: Confeitaria do Império ou Confeitaria da República? Praça da
Sé ou Praça da Escola Normal?
90
café, culminando na Revolução de 1930 — momento de ruptura
inquestionável na história do país:
Os planos de uma nova Catedral retornariam com
maior intensidade com Dom Duarte Leopoldo e Silva, que
tomou posse na Diocese de São Paulo em abril 1907. Uma
de suas primeiras decisões foi indicar um novo local para
construção, com a demolição da antiga Sé, mesmo que mais
de dois séculos estivessem representados em suas paredes.
Para obtenção dos recursos financeiros, Dom Duarte
mobilizou, a partir
-
de 1912, as ricas famílias da cidade,
organizando uma Comissão Executiva presidida pelo Conde
de Prates (...)
Seu estilo, que provocaria grandes debates nas
décadas posteriores, coroava o desejo de que a cidade
pudesse apresentar obra compatível com outras grandes
metrópoles, conforme destacou o primeiro relatório da
Comissão Executiva: "0 estilo gótico foi o escolhido para o
novo templo, justificando-se a preferência por ser o estilo
que, pela elegância e esbelteza de seus elementos
ornamentais, se recomenda especialmente para vestir
grandes monumentos desta natureza, em que predominam
as fortes linhas verticais. As catedrais católicas de Paris,
Viena, Nova York, Colônia, Munich, Anvers e Milão,
conhecidas obras-primas da arquitetura gótica cristã,
justificam o nosso acerto".
98
É visível o desejo de aproximar a cidade de São Paulo dos modelos
arquitetônicos de outras grandes cidades do capitalismo central. Era necessário
dotar a cidade de um perfil de metrópole moderna, mesmo que, paradoxalmente,
fosse necessário recorrer à regressão estética no campo das formas de
arquitetura. Fenômeno que dá dimensão, ainda que pálida, das contradições
existentes na periferia do capital:
98
Braz, Pedro José. Uma igreja em pé. In: Catedral da Sé: arte e engenharia na recuperação do
patrimônio. São Paulo: FormArte, 2002, pp. 29-30.
91
A Catedral da Sé é uma das principais referências
urbanas de São Paulo, seu mais importante monumento
religioso, mas também símbolo do momento de afirmação
de um assentamento que deixara de ser aldeia, saltando
para a condição de metrópole, em função das rápidas
transformações econômicas que a enriqueceram
Tem um significado especial a substituição da velha
Matriz, de traços coloniais, por outra mais imponente, no
início da segunda década do século passado, em estilo
arquitetônico predominantemente gótico. Construída com
granito, delicadamente esculpido em seus capitéis,
pináculos, frontões, arcos botantes e ogivas, a Catedral
enriqueceu-se também com um importante acervo de
elementos artísticos agregados, seja nos ornatos de cobre
da cobertura, seja no conjunto de vitrais, mosaicos, talhas e
esculturas que exibe.
Como aspirar ser uma grande cidade do mundo, sem
possuir uma Catedral gótica, como as da velha Europa,
superando assim um passado recente e pobre de aldeia
rústica?
99
A explicação justificadora da “mélange” estilística da Sé de São Paulo é
uma obra-prima da retórica “pós-moderna” que repõe, por sua vez, sem
distanciamento crítico, a retórica da época em que a catedral foi projetada: os
descompassos estilísticos são naturalizados, quando na verdade o atrito neles
existentes dá dimensão de outras contradições fundamentais para a compreensão
do país. O visível choque dos estilos (gótico e renascentista) e a heterogeneidade
dos materiais (granito, cimento, tijolos etc.), empregados na construção da
catedral revelam o período histórico em que se inserem. A consciente mescla de
99
Braz, Pedro José. A catedral da Sé no III milênio. In: Catedral da Sé: arte e engenharia na
recuperação do patrimônio. São Paulo: FormArte, 2002, p. 149.
92
elementos nativos brasileiros com o estilo predominantemente gótico do edifício
exemplifica as afirmações anteriores
100
.
De novo se impõe a consciência do deslocamento que advém da busca da
identidade a partir de modelos estrangeiros e extemporâneos. A retomada do
gótico no século XX soa como anacronismo conservador. A retomada das formas
da tradição só se justifica se investida de consciência crítica. Assim, a homologia
inicialmente apontada entre “forma” e “conteúdo”, no poema de Mário de Andrade,
pois o poeta se vale de elementos formais do Trovadorismo para representar a
catedral “gótica”, em verdade, aponta para a fratura revelada na comparação entre
a catedral e a “minha alma”. Em Mário de Andrade, a regressão estética é
intencional e crítica, por isso emprega a estrutura poética medieval para
representar um edifício em estilo gótico cuja construção sintetiza profundamente
todas as contradições e impasses presentes no processo de modernização da
cidade.
O refrão (“— Como a minha alma”), repetido nas quatro primeiras estrofes,
soa como um bordão irônico que ecoa por todo o poema como se fosse o sino da
catedral. Esse bordão contém ressonâncias de um famoso verso do poema
“Tristura” de Paulicéia Desvairada: “Minha alma corcunda como a avenida São
João”. A imagética da identidade sempre funde o poeta (“minha alma”) com o
espaço urbano paulistano (“avenida São João”, “a catedral de São Paulo”).
A arquitetura da cidade parece ser o espelho em que o poeta vê refletida a
própria imagem e nela projeta sua consciência sempre tortuosa (“corcunda”;
“nunca se acaba”) do mundo e do próprio ser. Há na voz lírica o permanente
sentimento do inacabado (“nunca se acaba”) e da privação (“nasceu da
necessidade”) permeado profundamente pela consciência do paradoxo (“catedral
100
Veja-se, por exemplo, na página 38 do livro Catedral da Sé: arte e engenharia na recuperação
do patrimônio, a reprodução dos ornamentos que se encontram na base de uma das colunas
internas e que traz a seguinte legenda: “As referências brasileiras no projeto em estilo gótico da
Catedral surgiram com elementos da fauna e da flora nas colunas internas”. O que se vê na
fotografia é a escultura de um tatu e de tucanos na base da coluna: estamos diante de um “gótico
tropical”. No final deste trabalho, na Iconografia, encontra-se a reprodução dessa imagem.
93
horrível / Feita de pedras bonitas”; “Sacro e profano edifício”; “pedras novas e
antigas”; “há-de se acabar, / Mas depois se destruirá”), culminando na imagem da
ausência de destinação: a “alma” pairando “... sobre os homens arisca, / Sem
porto”.
A catedral é uma construção cristã associada ritualisticamente aos mistérios
da fé baseados no sacrifício e na ressurreição mítica de Cristo. A paixão da figura
central do Cristianismo repõe a presença da morte como elemento essencial da fé.
As dores de Cristo estão arquetipicamente associadas aos rituais de
despedaçamento que aparecem em mitos pagãos como Dionísio e Orfeu,
apresentando correlatos na cultura popular, como na festa do Bumba-meu-Boi. O
sacro e o profano participam do mesmo imaginário norteador da criação poética
de Mário de Andrade. O verso “Sacro e profano edifício” se encontra justamente
no centro formal do poema. Ele é o décimo verso numa seqüência de dezoito. A
oposição entre “sacro” e “profano” materializa enfaticamente o conflito primordial
que percorre os versos.
Os dois últimos versos do poema apresentam velada referência à morte
como viagem aquática, pois fazem referência à “alma pairando ... / Sem porto”. A
associação de morte e água encontra sua expressão maior no poema “A
meditação sobre o Tietê”.
As imagens do inacabado, do ausente, da privação e do paradoxo insolúvel
percorrem todos os poemas da Lira Paulistana e revelam uma aguda percepção
da experiência negativa “que floresce / no caule da existência mais gloriosa,”
101
.
Essas imagens em conjunto são sutis símiles do sentimento de morte. Elas cifram
a persistência da pulsão de morte invadindo todas as coisas, todos os seres e os
envolvem com o sem sentido da existência.
Tudo se acaba no tempo, inclusive a catedral e o corpo do poeta. E a alma
(“memória triste”) paira “Sem porto”. O verbo “acabar” é ambíguo, pois significa
tanto “por fim” (terminar) quanto morte. A imagem da cisão permanece na
101
Andrade, Carlos Drummond de. A máquina do mundo. In: Poesia e Prosa. Rio de Janeiro:
Aguilar, 1992, p. 244.
94
separação entre alma e corpo. A dimensão religiosa da cisão é paralela a sua
dimensão identitária: a catedral representa o “outro que é o mesmo”.
3
Agora eu quero cantar
102
.
Por mais que possa parecer insólito começar a análise de um poema
citando outro muito distante no tempo em relação àquele que é o verdadeiro alvo
do estudo desenvolvido, ainda assim, essa associação denuncia proximidades
que passaram despercebidas, mas que são reveladoras de certas linhas de força
contínuas que atravessam um determinado sistema literário nacional.
O poema de Mário de Andrade “Agora eu quero cantar” traz à memória a
conhecida peça de teatro de João Cabral de Melo Neto intitulada Morte e vida
severina (Auto de Natal pernambucano). As proximidades formais e temáticas
entre as duas peças são grandes. Delimitaremos uma passagem dos dois textos
que nos permite estabelecer sucintamente as filiações e as afinidades que os
unem.
No poema cabralino, duas ciganas predizem o futuro da criança “Severina”
recém-nascida: o seu lento e sofrido processo de transformação de sertanejo em
operário. Inicialmente a “lama” que se vê no seu corpo é do mangue, onde ele
caça caranguejos. Ao correr do tempo, ela se transforma em “graxa” da oficina:
Não o vejo dentro do mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é de lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui vestido
102
Devido à extensão do poema, preferimos transcrevê-lo na parte final deste trabalho. Ver o
anexo I.
95
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.
103
No poema de Mário de Andrade, há imagens e dicções muito semelhantes
às do poema de João Cabral. O emprego das redondilhas nos dois poemas dá-
lhes um andamento cadenciado que possibilita a imediata adesão do leitor aos
dramas por eles narrados, isto é, o verso popular e medieval de raiz ibérica —
largamente retomado na poesia popular brasileira, em especial, na produção dos
cantadores nordestinos — permite que a comunicabilidade ocorra direta e
facilmente.
Soma-se a isso a presença da realidade proletária marcando a existência
dos personagens dos dois poemas (Pedro e filho do Carpina), reveladora do
desejo de aproximar a poesia da temática social em que a consciência da luta de
classes é o eixo central. Novamente nos dois poemas, a morte também é
elemento fundamental para o dimensionamento da enorme violência a que os
pobres são submetidos no Brasil:
Logo no dia seguinte
Quando a oficina parou,
Machucado, sujo, exausto,
Pedrinho a escola rondou
E eis que de repente, não
Se sabe porque, Pedrinho
Para a serra se voltou:
— Havia de ter por certo
103
Melo Neto, João Cabral de. Morte e vida Severina. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar,
1995, p. 199.
96
Outra vida bem mais linda
Por trás da serra! pensou.
Vida que foi de trabalho,
Vida que o dia espalhou,
Adeus bela natureza,
Adeus, bichos, adeus, flores,
Tudo o rapaz obrigado
Pela oficina, largou.
Perdeu alguns dentes e antes,
Pouco antes de fazer quinze
Anos, na boca da máquina
Um dedo Pedro deixou.
Mas depois de mês e pico
Ao trabalho ele voltou,
E quando em frente da máquina,
Pensam que teve ódio? Não!
Pedro sentiu alegria!
A máquina era ele! a máquina
Era o que a vida lhe dava!
E Pedro tudo perdoou.
Foi pensado, foi pensando,
E pensou que mais pensou,
Teve uma idéia, veio outra,
Andou falando sozinho,
Não dormiu, fez experiência,
E um ano depois, num grito,
Louca alegria de amor,
A máquina aperfeiçoou.
O patrão veio amigável
E Pedro galardoou,
Pôs ele noutro trabalho,
Subiu um pouco o ordenado:
— Aperfeiçoe esta máquina,
97
Caro Pedro e se afastou
104
.
Nesses versos está resumida a trajetória de operário, marcada pela
mutilação e pela exploração. O patrão lhe concede um pequeno aumento depois
de Pedro ter aperfeiçoado a máquina que o mutilou. Certamente, o avanço
produzido pelo trabalhador vai permitir ao patrão acumular mais capital. Nesse
ritmo, caminhará a vida de Pedro até a morte. A mutilação, no plano histórico,
constitui uma metonímia do processo de alienação permanente do operário, sua
lenta morte em vida; no plano mítico, associa-se imediatamente à idéia de
despedaçamento de que forma vítimas Dionisio, Orfeu, Cristo e Boi Paciência
105
;
no plano profundo do psiquismo, remete à idéia de castração
106
.
No poema, depois de muito esforço e sofrimento, Pedro, como também
previram as ciganas no poema de João Cabral a respeito da criança severina,
consegue se mudar, pois adquiriu um pedaço miserável de terra, miserável, mas
seu. O que se infere dessa dinâmica é a lentíssima acumulação material das
camadas populares brasileiras, fruto da injusta distribuição de riquezas. Os
trabalhadores neste país são submetidos a um processo violento e primitivo de
extração da mais-valia, característico de uma sociedade capitalista ainda
incipiente em que os direitos trabalhistas mínimos não foram consolidados:
Com a terceira namorada,
Na primeira roupa preta,
Pedro de preto se casou.
E logo vieram os filhos,
Vieram doenças... Veio a vida
Que tudo, tudo aplainou.
104
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, pp.
374-375.
105
O Boi Paciência, figura central da obra de Mário de Andrade como símbolo do povo brasileiro,
será analisado em “A meditação sobre o Tietê”, pois é um de seus elementos mais importantes.
106
Em “Nelson”, de Contos novos, o protagonista também é um mutilado, perseguido pelo regime
de Vargas. A coincidência da imagem revela a persistência de certas recorrências temáticas na
obra de Mário de Andrade.
98
Nada de horrível, não pensem,
Nenhuma desgraça ilustre
Nem dores maravilhosas,
Dessas que orgulham a gente,
Fazendo cegos vaidosos,
Tísicos excepcionais,
Ou formando Aleijadinhos,
Beethovens e heróis assim:
Pedro apenas trabalhou.
Ganhou mais, foi subindinho,
Um pão de terra comprou.
Um pão apenas, três quartos
E cozinha, num subúrbio
Que tudo dificultou.
Menos tempo, mais despesa,
Terra fraca, alguma pera,
Emprego lá na cidade,
Escola pra filho; ofício
Pra filho, um num choque de
Trem, invalido ficou.
Sono! único bem da vida!...
Foi essa frase sem força,
Sem História Natural,
Sem máquina, sem patente
De invenção, que por derradeiro
Pedro inventou.
107
Faz-se mister observar a citação de Aleijadinho e Beethoven na seqüência
do poema. O primeiro é reconhecido como uma das primeiras e mais notáveis
expressões do “gênio” nacional brasileiro. O segundo, um dos maiores
representantes do Romantismo europeu e da música ocidental. Ambos marcados
por infortúnios terríveis, respectivamente, lepra e surdez. Contrapostos aos
sofrimentos desses artistas, os sofrimentos de Pedro são comuns e banais. No
107
Idem, ibidem, pp. 376-377.
99
entanto, ao poeta, é mais relevante o sofrimento do proletário do que as angústias
dos gênios criadores, marca de uma visão moderna e não romântica da função da
poesia, principalmente no contexto da periferia do capitalismo.
A última invenção de Pedro é uma frase e nela se encontra a idéia do sono
como “único bem da vida”. Morfeu, Hipnos, Tânatos e Nix são entidades míticas
muito próximas: o sono é um estado de consciência que se aproxima do estado de
morte. A imagem lembra em muito o universo do poema “Rito do irmão pequeno”
e no faz recordar das palavras de Lafetá sobre a visão da morte no Livro Azul.
A matéria presente no poema de Mário de Andrade — escrito uma década
antes do Auto do poeta pernambucano — é em síntese a mesma. Ao que parece,
o destino dos pobres no Brasil também é marcado pela repetição cíclica e
infindável da mesma miséria social.
O poeta da Lira Paulistana narra a dura vida de Pedro desde a infância até
a morte: o seu lento e sofrido processo de acumulação social que se resume
numa cruz no cemitério. Sob esse aspecto, o poeta paulista é muito mais radical
que o pernambucano, porquanto Mário de Andrade não divisa, na história de
Pedro, nenhuma esperança no universo da existência do proletário. Já Morte e
vida Severina termina com o discurso “consolador” do mestre “José Carpina” ao
“Severino retirante”.
Do ponto de vista formal, o poema “Agora eu quero cantar” é o segundo
mais longo da Lira Paulistana, composto de duzentos e dois versos, distribuídos
em dezoito estrofes sem um padrão regular e constante no número de versos por
estrofe. Mário de Andrade faz uso da forma narrativa em redondilhas
predominantemente brancas, que remete à tradição ibérica e européia das
canções de gesta medievais e à tradição dos cantadores nordestinos que o poeta
estudou assiduamente.
Gilda de Melo Souza descreve, com acuidade, o processo de criação do
cantador nordestino — conhecido como “tirar o canto novo” —, que exerceu forte
influência sobre o poeta paulista. O processo de “tirar o canto novo” consiste em
incorporar por meio de variações infinitas um material musical alheio e de domínio
popular até que a sua internalização possibilite ao cantador produzir novas e
100
diferentes possibilidades de expressão musical. Ressalta-se nesse contexto a
figura do cantador de cocos conhecido como Chico Antônio, que tanto encantou
Mário de Andrade
108
.
Segundo a autora de O Tupi e o Alaúde, a influência da poesia popular na
obra do escritor paulista seria mais visível em Macunaíma. Mário de Andrade
empregou dois processos característicos da música (nivelamento e
desnivelamento) na elaboração da narrativa do “herói sem nenhum caráter”:
Chama-se nivelamento estético ao fenômeno de ascensão
de um gênero inferior a um nível superior de arte culta: foi o que
ocorreu quando os compositores introduziram a canção popular na
polifonia católica, tecendo à sua volta uma série de variações
contrapontísticas; ou quando Haendel se aproveitou da siciliana,
transformando-a de dança folclórica em ária dramática “dotada de
valores até expressivos”; ou quando Chopin submeteu a mazurca
e a polonesa ao virtuosismo do piano. (...)
O desnivelamento estético consiste no processo contrário,
quando é o povo que apreende e adota a melodia erudita. Mário
de Andrade julga este caso muito raro; no entanto ele ocorreu
entre nós com as modinhas imperiais, canções de salão que, a
partir da segunda metade do século XVIII e por todo o século XIX,
“dominaram a musicalidade burguesa do Brasil e de Portugal”.
109
É visível em “Agora eu quero cantar” o emprego do nivelamento, a elevação
de uma forma de expressão de origem popular à dimensão de arte erudita. O
poema também apresenta analogias com o processo de “tirar o canto novo”: essa
narrativa é determinada pelo profundo conhecimento que Mário de Andrade
possuía do cancioneiro popular brasileiro. É necessário lembrar que o cantar
nordestino, por sua vez, descende do processo contrário, do desnivelamento: a
apropriação popular da tradição ibérica. Sob esse aspecto, o texto de João Cabral
é também exemplar, pois funde o “Auto” medieval vicentino às tradições populares
108
Melo e Souza, Gilda. Op. cit.
109
Idem, ibidem, p. 20.
101
pernambucanas (o presépio vivo). É difícil determinar com clareza onde se
encerra o popular e onde começa o erudito, onde se encerra o nacional e onde
começa o europeu, pois o Brasil é um país fronteiriço, um país do limite.
Se do ponto formal o poema é marcado por processos eruditos de
composição (o nivelamento), a trajetória da personagem central — um homem
simples chamado Pedro — é marcada do começo ao fim por uma negatividade
crescente que culmina na negatividade absoluta: a morte. O requinte e a
depuração formal do poema contrasta com a “matéria impura” que o perpassa de
ponta a ponta.
Mário de Andrade se apropria tanto da métrica medieval quanto do canto
popular para narrar a miséria nacional materializada num proletário, num indivíduo
claramente submetido ao brutal processo de extração da mais-valia.
A história de Pedro pode ser dividida em nove etapas, narradas após uma
pequena introdução de cinco versos:
Agora eu quero cantar
Uma história muito triste
Que nunca ninguém cantou,
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou
110
.
Após essa rápida introdução, seguem-se as estações da trajetória do
protagonista, verdadeira “via crucis” da vida proletária nacional:
1. Nascimento (do verso 6 a 17)
2. Infância (do 18 ao 38)
3. A escola (do 39 ao 68)
4. A oficina (do 69 ao 115)
5. O primeiro amor (do 115 ao 134)
6. O segundo amor (do 135 ao 143)
7. O terceiro amor: o casamento (do 144 ao 146)
110
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 372.
102
8. A vida adulta: os filhos (do 147 ao 169)
9. A morte: o túmulo (do 170 a 202)
Em todas as fases de sua existência, Pedro é movido pela ilusão de uma
vida melhor: a esperança guia seus atos contra a negatividade do mundo. Ao final
de cada etapa, ele sempre se desilude, e sua primeira reação é dormir: “Um sono
bruto o prostrou” — uma espécie de bordão que percorre todos os momentos de
desilusão de Pedro.
Retomando, dormir é uma das imagens mais comuns para a materialização
poética da morte. A dimensão mítica das duas experiências é inegável: Morfeu e
Tânatos são fraternos. Porém, após o sono, Pedro desperta e conscientiza-se de
algo que ele nunca percebera antes:
Por trás do quarto alugado
Tinha uma serra muito alta
Que Pedro nunca notou,
Mas num dia desses, não
Se sabe porquê, Pedrinho
Para a serra se voltou:
— Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou
111
.
A imagem da serra é um símbolo da esperança, motivando Pedro a persistir
e encaminhanho-o a outra ilusão e a outra serra. O processo se repete num fluxo
infinito de ilusão e desilusão, o que formalmente é acentuado pelo ritmo regular e
previsível das redondilhas maiores. O uso do verso tradicional é uma escolha
adequada, não uma arbitrariedade do poeta.
111
Idem, ibidem, p. 373. Significante é a presença do nome Manduca na seqüência de nomes
apresentados nestas estrofes. Manduca é o nome de um personagem de Dom Casmurro, de
Machado de Assis. Como Aleijadinho anteriormente citado, ele padecia de lepra e sua morte é um
dos episódios mais críticos do romance machadiano.
103
Finalmente, após uma vida inteira de ilusões seguidas de decepções, Pedro
descobre a verdade verdadeira:
Por trás da murada nova
Não tinha serra nenhuma,
Nem morro tinha, era um plano
Devastado e sem valor,
Mas um dia desses, sempre
Igual ao que ontem passou,
Pedro, João, Manduca, não
Se sabe porque, Antônio
Para o plano se voltou:
—Talvez houvesse, quem sabe,
Uma vida bem mais calma
Além do plano, pensou.
Havia, Pedro, era a morte.
Era a noite mais escura,
Era o grande sono imenso;
Havia, desgraçado, havia
Sim, burro, idiota, besta,
Havia sim, animal,
Bicho, escravo sem história,
Só da História Natural!...
Por trás do túmulo dele
Tinha outro túmulo. . . Igual
112
.
Os versos finais — “... era a morte / Era a noite escura, / Era o grande sono
imenso” — declaram abertamente o destino do proletariado: a mesma morte
severina. Mais uma vez as imagens da noite, da morte e do sono profundo já
antecipam o universo simbólico de “A meditação sobre o Tietê”, o mesmo universo
de absoluta negatividade.
112
Idem, ibidem, p. 377.
104
A identificação de Mário de Andrade com figuras que representam o
proletariado — lembre-se do 35 de “Primeiro de Maio”, de Contos Novos — aponta
para a consciência da própria condição do escritor submetido ao processo de
divisão social do trabalho intelectual, num período de intensa modernização
capitalista do país. Na mesma linha, corrobora a nossa intuição de que as
mudanças sociais impostas pela “Revolução de 1930” implicaram profunda
alteração do papel do artista na sociedade brasileira: de Arlequim do patriarcado a
carregador de malas do período Vargas — profundas mudanças determinantes do
sentimento de derrelição do poeta, cerne de “A meditação sobre o Tietê”.
Por último, Pedro é um nome de forte apelo na consciência cristã: é Petrus,
a pedra sobre a qual se ergue a obra. A velha idéia de petrificação é também uma
imagem da morte
113
.
4
Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra com uma porta:
Um amor.
Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.
Mulher gordaça, filó
De ouro por todos os poros,
Burra com uma porta:
Paciência...
113
Um dos antagonistas de Macunaíma é o Gigante Piaimã, conhecido como Venceslau Pietro
Pietra (Pedro Pedra).
105
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba
114
.
Esse poema é composto de quatro quartetos. A quadra é dos recursos mais
comuns empregados tanto pelo cancioneiro medieval quanto pelo cancioneiro
popular. Denota-se, mais uma vez, o domínio técnico do poeta das mais diversas
formas de expressão de que a língua dispõe. Na Lira Paulistana, Mário de
Andrade produz uma súmula dos recursos expressivos que transitam desde a
redondilha medieval e popular até o verso livre modernista.
Os três primeiros versos de cada estrofe do poema são justamente
redondilhas maiores e o último verso é um trissílabo. Quanto às rimas, o poema
possui um esquema bastante incomum: abcd decf fhci ih’jj, ou seja, a última
palavra de cada estrofe rima com a primeira da estrofe seguinte, e a palavra
“porta” funciona como refrão, pois ecoa três vezes pelo poema.
Esses recursos sonoros associados a outros (aliterações; assonâncias etc)
criam sutil rede de aproximações que se reflete no campo semântico,
aproximando as quatro figuras mais importantes do poema: a “moça”, o “grã-fino”,
a “gordaça” e o “plutocrata”.
A diferença de superfície não suprime a igualdade de essência que, nesse
caso, é dada pela classe. A “moça” não é o “grã-fino”, a “gordaça” não é o
“plutocrata”, mas no fundo todos eles representam uma única e mesma categoria:
as elites nacionais. As quatro personagens, independentemente de seus atributos
particulares (“linda bem tratada”; “coió”; “filó de ouro” e “bomba”), são também
representantes das elites locais (“Três séculos de família”): os atuais
“quatrocentões”, que, àquela altura (década de 1940), ainda eram “trecentões”.
Outra simetria formal no poema, que mimetiza expressivamente a isonomia
da posição social das personagens, está na distribuição das figuras femininas nas
114
Idem, ibidem, p. 380.
106
estrofes ímpares, e das masculinas, nas pares. Assim temos: “moça” / “grã-fino” e
“gordaça” / “plutocrata”.
Salta aos olhos uma diferença: o “plutocrata” é qualificado como “nada
porta”. O que, nas outras personagens pode ser entendido como inconsciência de
classe, no “plutocrata” é ação consciente, cujas conseqüências são gravíssimas:
“terremoto / Que a porta do pobre arromba: / Uma bomba”. A palavra “plutocrata”
representa a junção de duas forças nefastas: o poder político e o poder
econômico. Há de se notar outro aspecto fundamental: na palavra, encontra-se
ressonância clássica de sabor mítico. A raiz “pluto” é grega e está associada ao
nome do rei do mundo dos mortos, conhecido como Hades ou Pluto. É preciso
considerar, ainda, que “pluto” ironicamente quer dizer “o Rico”. O senhor dos
mortos é “o Rico”:
Plutão
Nome ritual de Hades, deus grego dos Infernos.
Significando "O Rico”, evoca não o seu aspecto terrível mas
o seu poder, protetor da fecundidade do solo. Por associação
a uma divindade latina primitiva, Dis Pater, tornou-se a
designação comum do deus dos mortos entre os Romanos.
Estes chamam-lhe também Orco, nome que, originariamente.
nas crenças populares, pertencia a um demônio da morte,
freqüentemente representado nas pinturas fúnebres
etruscas
115
.
É conhecido o desdobramento cristão do mito clássico do Hades, que
resulta na noção de inferno, cujo senhor é o “Grã-Cão” Lúcifer. No mesmo
corredor semântico, “plutocrata” condensa rica polissemia: poder econômico e
poder político; riqueza e morte; dimensão demoníaca e dimensão metafísica. Na
ampliação metafórica desse vocábulo, o conflito social está subterraneamente
gravado: mito e história se (con)fundem no poético.
A fusão do mítico e do histórico, do arcaico e do moderno formaliza a idéia
de eterno retorno do mesmo, um dos elementos chaves para a compreensão de
115
Martin, René. Op. cit., p.200.
107
“A meditação sobre o Tietê”. O “mito” é sempre a recordação do essencial sob
forma enigmática e hermética
116
. Na progressão aparente do movimento linear,
permanece a circularidade maligna da história que, paradoxalmente, muda para
não mudar , responsável pelo acúmulo incessante de ruínas
117
.
No Brasil, esse processo é fruto de nossas sucessivas tentativas de
modernização conservadora. A fusão desses elementos no poema (o arcaico e
moderno) parece-nos ser a de figurar, na literatura, questões complexas que
atravessam os campos, aparentemente tão antagônicos, do histórico e do
metafísico.
A presença de signos normalmente associados ao universo mítico tem
como objetivo cifrar como “estranho” aquilo que parece “natural”. O efeito desse
processo é a inversão do sentido determinada pela banalização do real: o “natural“
é que é o “estranho”. O despertar da consciência da luta de classes pressupõe o
reconhecimento dessa aporia e, principalmente, a consciência de que a morte
permeia todas as relações sociais:
Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta do pobre arromba:
Uma bomba.
Bomba é artefato bélico associado à guerra, destruição e morte. O
capitalismo potencializou aquilo que é a essência mesmo da existência: a pulsão
de morte contra a qual arte e o pensamento sempre se rebelaram.
116
Para a redação dessas observações — além dos estudos já clássicos de W. Benjamim sobre
Baudelaire — gostaria de assinalar a importância da leitura de outros dois ensaios: Oehler, Dolf.
Um socialista hermético. In: Praga: estudos marxistas 5. São Paulo: Hucitec, 1998, pp. 95-111. E
Oehler, Dolf. Art névrose. In: Revista Cebrap 32. São Paulo: Cebrap, 1992, pp. 110”.
117
É impossível esquecer as palavras proféticas de W. Benjamim no nono segmento do ensaio
“Sobre o conceito de história“, em que se fala do Angelus Novus.
108
5
Quando eu morrer ...
A profunda identificação de Mário de Andrade com a cidade de São Paulo é
inegável e percorre a sua produção, lírica ou narrativa. O exemplo mais explícito
dessa identificação se encontra justamente num famoso poema da sua Lira
Paulistana: “Quando eu morrer...”. Nele, o mais explícito símile da morte é a idéia
do despedaçamento do corpo do poeta.
A imagética do despedaçamento encontra raízes no imaginário mítico
universal e na cultura popular brasileira. Em solo nacional, o melhor exemplo é o
despedaçamento ritualístico do boi, no “Bumba-meu-boi”, tão familiar a Mário de
Andrade.
No universo imaginário da poesia de Mário de Andrade, o “eu” se identifica
com a cidade de São Paulo, que, por sua vez, é a síntese do país. O “boi” é
considerado uma das “imagens totêmicas” do Brasil, portanto nele repousam
traços fundamentais da nacionalidade e do universo subjetivo do poeta. A imagem
identitária representada pelo animal totêmico, presente na obra de Mário de
Andrade, representa a questão fundamental da busca da identidade do indivíduo e
da coletividade. A configuração da identidade pressupõe o reconhecimento da
alteridade plena.
A obra do poeta modernista está repleta de imagens expressivas desse
universo particular e uma das características marcantes desse sistema simbólico
identitário é a presença de imagens que articulam sempre a binômia unidade /
pluralidade.
A primeira dessas figuras é o “Arlequim”
118
, cujas vestes são feitas de
retalhos multicoloridos alinhavados em forma de losango. Nessa composição,
destaca-se a oposição existente entre a vestimenta cromática e a máscara negra.
Associa-se a isso o bastão / espada, que, nas representações cômicas, é
ambiguamente investido de simbolismo erótico.
118
Sobre o “Arlequim”, ver a imagem que se encontra na Iconografia, no final deste trabalho.
109
No título do terceiro livro de poesia de Mário de Andrade, aparece o
“Jabuti”, animal que habita o imaginário popular e o folclore brasileiro. O casco do
jabuti é formado pela solda de placas irregulares: imagem da fragmentação
figurativizando totalidade precária. É conhecida a lenda sobre a origem da
fragmentação da carapaça:
Cágado e a festa no céu
(Sergipe)
Uma vez houve três dias de festa no
céu; todos os bichos
lá foram; mas nos dois primeiros dias o cágado não pôde ir, por
andar muito devagar. Quando os outros vinham de volta, ele ia no
meio do caminho. No último dia, mostrando ele grande vontade de
ir, a garça se ofereceu para levá-lo nas costas, o cágado aceitou,
e montou-se; mas a malvada ia sempre perguntando se ele ainda
via terra, e quando o cágado disse que não avistava mais a terra,
ela o largou no ar e a pobre veio rolando e dizendo:
“Léu , léu, léu”,
Se eu desta escapar,
Nunca mais bodas ao céu.
E também: "Arredem-se, pedras, paus, senão vos
quebrareis". As pedras e paus se afastaram, e ele caiu; porém
todo arrebentado. Deus teve pena e ajuntou os pedacinhos e deu-
lhe a vida em paga da grande vontade de ir ao céu. Por isso é que
o cágado tem o casco em forma de remendos.
119
O folclorista Luís Câmara Cascudo explica a ocorrência dessa fábula em
diversas culturas, apontando a repetição de certos núcleos produtores de sentido
nos diversos registros existentes. Há também a transcrição de uma outra versão:
Havendo uma festa no céu em honra de Nossa Senhora,
todos os animais foram convidados. 0 Jaboti, como o mais moroso
119
Romero, Sílvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, pp. 278-280.
110
deles, não tinha meios de transportar-se ao céu. Pediu então ao
Urubu (corvo) que o levasse. Acedeu este e deitou-o às costas.
Quando chegou a uma certa altura, para fazer mal ao Jaboti,
atirou-o de cima de si, vindo o pobre animal quebrar o casco
numas pedras sobre que caiu. A Virgem então desceu do céu,
uniu os pedaços do casco do Jaboti, deu-lhe vida, abençoou-o e
amaldiçoou o Urubu”. E continua Romero : — "Daí, contínua
Celso, conclui o povo, a razão do Jaboti ter o casco em mosaico,
formado por polígonos mais ou menos regulares, e poder-se
guardar preceito com a sua carne, e a razão também do Urubu
ser ave maldita.
120
Salienta-se, nessas duas versões, o emprego das expressões “o casco em
forma de remendos” (do conto) e “casco em mosaico” (do crítico). Remendo e
mosaico remetem imediatamente ao simbolismo da roupa do arlequim. Além
disso, a lenda da “Festa no céu”, ao mesmo tempo em que está presente no
imaginário nacional, também se encontra em outras tradições populares, o que
não passou despercebido a Sílvio Romero, que a transcreve em “Contos de
origem européia”. O Arlequim e o Jabuti simbolizam a fusão do elemento nacional
com o elemento estrangeiro
121
.
Mário de Andrade, nos seus estudos sobre o folclore brasileiro, realça a
importância da festa do “Bumba-meu-boi” no imaginário popular nacional,
justamente porque o núcleo temático gravita em torno da morte e da ressurreição
mediadas pelo esquartejamento do animal.
Essa recorrência pode ser detectada em outros momentos da produção do
autor: a imagem do “Grã Cão” é também a do “Mildiabos”, que, por sua vez,
120
Idem, ibidem, pp. 282-283.
121
Como já apontamos, além do “Arlequim”, há no Bumba-meu-boi nacional a presença de outra
figura similar da Commedia del’Arte: o “Doutor” (il Dottore). Ver a Iconografia que se encontra na
parte final deste trabalho.
111
associa-se à da legião demoníaca dos “gatos na madrugada” e dos “vinte-e-nove
bichos”
122
.
No “Grifo da Morte”, do Livro Azul, constata-se o aspecto híbrido do animal
mitológico misto de águia (cabeça, bico e asas) e leão (as demais partes do
corpo). No Grifo, a duplicidade do masculino / feminino é evidente, sua dupla
natureza é inequívoca
123
:
Ser misto adotado do Oriente pelos gregos (leão, rei dos
animais, e águia, ave divina), possui significado solar entre os
povos das estepes euro-asiáticas (citas, avaros). Os grifos são
guardiões do fogo sagrado (Pérsia) e da água da vida (arte
medieval). Devido à sua natureza dupla, o grifo é o símbolo de
Cristo (Deus e homem), assim em Isidoro de Sevilha e em Dante
(Purgatório 29, 108). Participando do significado da águia, é
símbolo da ascensão; a viagem de Alexandre Magno em direção
ao céu sobre um grifo é uma indicação ao atrevimento contra a
divindade (gr. hybris). Como expressão de poder e de domínio, o
grifo foi introduzido na heráldica (...).
124
Em “O Grifo da Morte”, ressalta um paradoxo similar ao que existe no título
”Girassol da Madrugada”, parte que o antecede no Livro Azul. Tanto o “Girassol”
quanto o “Grifo” (seres solares) são associados — nos títulos de Mário de
Andrade — à noite e às trevas, símiles da morte. Soma-se a essas considerações
a dupla natureza do Grifo, apontando para o embaralhamento dos sexos e das
distinções entre os seres, o que remete diretamente a hybris clássica.
122
A palavra hebraica “Satanás” — traduzida em grego por demônio — significa “acusador”,
aquele que causa a cizânia, a cisão. Leia-se a divisão, a separação e o desmembramento das
coisas e dos homens.
123
Atente-se para a polissemia da palavra “grifo”, que além do significado já apresentado pode
também se referir ao enigmático e à marca tipográfica (o ato de grifar um texto).
124
Lurker, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 300-301.
112
Finalmente, temos o “Pai Tietê”, o rio invertido que corre da serra para o
interior contrariando os desejos atlânticos do eu poético e a tendência “natural” da
maioria dos rios. Além disso, o Tietê divide rigorosamente o Estado de São Paulo
ao meio no sentido Leste-Oeste
125
.
Poderíamos nos debruçar sobre a obra de Mário de Andrade e encontrar
mais e mais imagens da duplicidade, da cisão, da fragmentação e da mutilação
que representam, no campo simbólico, a consciência da incompletude, do
processo inconcluso, da formação híbrida, da ausência da definição clara dos
limites embaralhando as idades, os sexos e as posições sociais. A clara definição
dos limites é fundamental para a constituição plena do sujeito moderno.
O processo imagético do poeta paulista desde o seu nascedouro é marcado
pela consciência do dilaceramento, que vai se ampliando até atingir o grau
máximo na sensação de bloqueio absoluto presente em “A meditação sobre o
Tietê”. A impossibilidade de resolução de qualquer dessas tensões leva ao desejo
de dissolução e morte.
Na obra de Mário de Andrade, é comum a fusão do mítico e do histórico, do
arcaico e do moderno, que está na base do sistema imagético regulador do fluxo
de seu discurso poético e literário. Esse sistema se constitui numa forma de
registrar as contradições insolúveis de um país periférico — como era o Brasil na
primeira metade do século XX —, marcado pela modernidade incipiente em que
os requisitos mínimos da constituição do sujeito autônomo não foram alcançados.
Vamos ao poema:
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paiçandu deixem meu sexo,
125
Ver a reprodução do mapa de São Paulo na p. 308. A acepção erótica do termo “invertido” não
é desconhecida ou incomum, e remete à androginia.
113
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos no Jaraguá
Assistirão ao que há-de vir,
Os joelhos na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro diabo
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
126
No poema, a identificação do corpo do poeta com o “corpo” da cidade é
intensa e profunda, perpetuando-se mesmo após a morte. Entre irônico e
brincalhão, o eu lírico, ao pensar na própria extinção, parece acalentá-la como
forma de realização do desejo de fusão permanente e completa com o “objeto
126
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987, p. 381.
114
amoroso”, que parece ser a única justificativa plena de sua existência, portanto
destino do próprio sentido da vida.
Salta aos olhos o caráter irônico da voz lírica do poema, que se enquadra
perfeitamente na releitura crítica da tradição literária ocidental e de seus lugares-
comuns e dicções poéticas já cristalizadas. Essa releitura irônica está em sintonia
com a proposta crítica do Modernismo e das Vanguardas do início do século
127
.
Valentim Facioli sintetiza bem a complexidade da lírica de Mário de
Andrade a partir de suas contraditórias relações com o espaço da cidade:
Talvez pudéssemos esquematizar o núcleo problemático
desse modo de composição da lírica amorosa de Mário de
Andrade, dizendo que ao poeta resta na modernidade a decifração
sempre problemática do indecifrável enigma da cidade moderna,
paisagem onde ele desconfia que a alienação e a fragmentação
127
É possível comparar esse poema com outros da literatura brasileira como, por exemplo, os
famosos Se eu morresse amanhã! ou Lembrança de morrer, de Álvares de Azevedo, em que a voz
lírica se compraz na exteriorização de desejos post mortem. Deve-se lembrar também que em
Álvares de Azevedo, tanto quanto em outros românticos, encontra-se um certo distanciamento e
uma certa auto-ironia em relação aos próprios padrões da tradição lírica, como se vê nos poemas
da segunda parte da Lira dos Vinte Anos. A título de ilustração, observe-se o início de “O Poeta
Moribundo”, que faz parte do famoso “Spleen e Charutos”: “Poetas! Amanhã ao meu cadáver /
Minha tripa cortai mais sonorosa!... / Façam dela uma corda, e cantem nela / Os amores da vida
esperançosa!” (p. 189). A semelhança entre esses versos e os de Mário é bem perceptível. Outro
exemplo desta dissecção anatômica, com caráter alegórico, é o famoso poema de Augusto dos
Anjos, intitulado “Budismo Moderno”: “Tome, Dr., esta tesoura e...corte / Minha singularíssima
pessoa.” (p. 84). Esse tema, na verdade, tem ressonâncias clássicas, exemplificáveis numa das
canções de Camões, cuja terceira estrofe termina do seguinte modo: “Aqui, nesta remota, áspera e
dura / parte do mundo, quis que a vida breve / também de si deixasse um breve espaço, / por que
ficasse a vida / pelo mundo em pedaços repartida.” (p. 67). Os versos citados foram retirados das
edições relacionadas na bibliografia. O número das páginas entre parênteses corresponde a essas
edições.
115
da consciência humana impedem a produção da totalidade
integradora prevista pelo sentimento amoroso.
128
Aqui se encontra a explicação de um processo central na poesia de Mário
de Andrade: a projeção da experiência amorosa no espaço público da cidade. A
respeito desse fenômeno, servem de ilustração os versos que abrem “Poemas da
Amiga”, de Remates de males:
A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei porquê, te percebi.
Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estava longe, doce amiga; e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranhacéu cor-de-rosa
Mexendo asas azuis dentro da tarde.
129
A presença da amada se confunde com a arquitetura da cidade. Ao mirar o
céu num fim de tarde, o poeta pressente a proximidade da figura feminina. Logo
em seguida, ele admite se tratar de uma lembrança que, paradoxalmente, revela
com mais força a ausência (“estava longe”). Nesse momento o “arranhacéu cor-
de-rosa” se transforma num “arcanjo... / Mexendo asas azuis dentro da tarde”. A
figura feminina e o arranha-céu se fundem na imagem mirífica do arcanjo de asas
azuis.
Voltando ao poema da Lira Paulistana, é importante observar que todas as
partes do corpo, principalmente as associadas a funções vitais, são destinadas a
lugares também vitais da cidade e, por sua vez, fortemente associados às
experiências subjetivas do poeta. Cada parte vital do corpo deve ser enterrada
num lugar preciso:
128
Facioli, Valentim. Facioli, Valentim. Mário de Andrade e a cidade de São Paulo:
aspectos.In:Revista da Biblioteca Mário de Andrade (vol. 50, jan./ dez.). São Paulo: Prefeitura do
município de São Paulo, 1992, p. 78.
129
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987, p. 273.
116
1. “Meus pés” na “rua Aurora”.
2. “Meu sexo” no “Paiçandu”.
3. “A cabeça” na “Lopes Chaves”.
4. ”O meu coração paulistano” no “Pátio do Colégio”.
5. “O ouvido direito” no “Correio”.
6. “O ouvido esquerdo” nos “telégrafos”.
7. “O nariz” nos “rosais”.
8. “A língua” no “alto do Ipiranga”.
9. “Os olhos” no “Jaraguá”.
10. “O joelho” na “Universidade”.
11. “As mãos” ... “por aí”.
12. “As tripas”: “ao diabo”.
13. “O espírito”: “será de Deus”.
As associações entre as partes do corpo e os lugares da cidade a que se
destinam são mais ou menos explicitas, ou mais ou menos enigmáticas, de acordo
com cada exemplo, exigindo um processo de decodificação que inicialmente não é
o objetivo desta análise sucinta. Essas associações cifram de maneira
inconfundível a identificação do poeta com o espaço público paulistano. É preciso
assinalar que todas as localidades e instituições citadas têm em comum o fato de
não pertencerem à esfera do controle político e econômico da cidade.
Estão arroladas as ruas (Aurora; Lopes Chaves); o largo (do Paissandu); o
local da fundação, ou seja, o coração do poeta (o Pátio do Colégio); as instituições
públicas ligadas à comunicação (Correios; Telégrafos); os jardins (os rosais); os
pontos geográficos marcantes e característicos (o Ipiranga; o Jaraguá); a
instituição educacional (a Universidade) e finalmente o que é relativo ao
transcendental (espírito; Deus; Diabo). Não há uma referência sequer a qualquer
centro de poder político ou econômico da cidade. E contradição das contradições:
o despedaçamento projetivo do poeta representa paradoxalmente a síntese do
seu ser.
117
6
Num filme de B. de Mille
Um dos mais estranhos poemas da Lira paulistana — que mereceria
largamente a famosa designação de “esquisito ruim” atribuída por Manuel
Bandeira à poesia de Mário de Andrade — é o conhecido “Rei dos Reis”, que se
encontra na parte final do livro. Ele é o vigésimo quinto poema de uma sucessão
de vinte e nove:
Num filme de B. de Mille
Eu vi pela primeira vez
A triste vida de Cristo,
Rei dos Reis.
Num mictório de São Paulo
Pouco depois li uma vez,
Sobre o desenho de um pênis,
Rei dos Reis.
Num automóvel de luxo,
Sessenta vezes por mês,
Bem barbeado, bom charuto,
Rei dos Reis...
Oh, vós todos, homens, homens,
Homens, o escravo sereis,
Si dentro em breve não fordes
Rei dos Reis
130
!
Sua estrutura formal também está inscrita nos cânones da tradição. Ele é
composto de quatro estrofes de quatro versos: novamente encontramos quatro
130
Idem, ibidem, p. 382.
118
quartetos ou quadrinhas de sabor medieval / popular. O último verso (“Rei dos
Reis”) funciona como refrão. Já a métrica é marcada pelas redondilhas, que
dominam os três primeiros versos de cada estrofe, e pelo emprego dos trissílabos,
no refrão. Quase não há rima, predominando versos brancos, com grande
flexibilidade rítmica, o que os aproxima dos versos livres característicos do
primeiro modernismo.
Esses procedimentos formais apontam novamente para a possibilidade de
assimilação crítica da tradição no âmbito da poesia moderna. Em suma, os
recursos formais empregados no poema demonstram a assimilação da técnica
literária tradicional, em especial, a assimilação do cancioneiro medieval e popular
(redondilhas, quadras e refrão), aspecto comum a vários dos poemas da Lira
Paulistana.
O trovador medieval
131
é inserido em novo contexto histórico e literário, o
que se manifesta no tom irônico do poema modernista. Na tradição medieval, as
cantigas líricas de amor ou de amigo convivem com as cantigas de maldizer e
escárnio, da mesma maneira como o sagrado e o profano se justapõem no
imaginário coletivo. Aliás, nas cantigas de maldizer o emprego de vocabulário de
baixo calão é regra. No poema de Mário de Andrade, é explicita a referência à
sexualidade e ao baixo corporal (pênis e mictório) justaposta à referência cristã
(“Rei dos Reis”).
O “Rei dos Reis” é um exemplo esclarecedor do projeto geral que norteou a
execução dos poemas da Lira paulistana
132
, em que a recuperação do esquema
formal tradicional é acompanhado de imagens modernas marcadas por forte teor
crítico. São imagens capazes de revelar aspectos fundamentais das contradições
que estão na base da experiência poética da primeira metade do século XX.
131
A referência ao trovador aparece inicialmente no segundo poema do primeiro livro de poesia
modernista de Mário de Andrade, Paulicéia Desvairada, “O trovador” em que se encontra o famoso
verso final: “Eu sou um tupi tangendo um alaúde”.
132
No trecho citado na introdução deste trabalho, na página 26, estão claramente definidas as
motivações conscientes do escritor.
119
A partir de um filme (“Rei dos Reis” de C. B. de Mille) — assistido cinco
vezes segundo o autor
133
—, o eu lírico vai modulando o significado da expressão
“Rei dos Reis” em função de novos objetos a que ela se refere, dispostos na
seguinte sucessão:
1. O filme / Cristo
2. O órgão sexual / o pênis
3. A classe social / o burguês
4. A humanidade / os escravos (os trabalhadores / o proletariado?)
A aproximação imagética entre “Cristo”, “pênis”, “burguês” e “humanidade”
é, no mínimo, contundente e insólita. Leve-se em conta que — no contexto
nacional fortemente marcado por heranças patriarcais e católicas —, a
transferência do título reservado a Cristo (Rei dos Reis) ao órgão sexual
masculino é bastante violenta. A subseqüente transferência ao rico burguês
completa a virulência do ataque. Nesse contexto, a fachada pseudocristã (o filme
hollywoodiano), a sexualidade “baixa” e os signos do moderno (o automóvel e o
charuto) se confundem e estão umbilicalmente associados.
Em outra perspectiva: no contexto nacional, a tradição (o cristianismo) e a
modernidade (o filme) estão associados ao signo escatológico (o “mictório de São
Paulo”) e à sexualidade brutalizada (o “desenho de um pênis”). Catolicismo e
patriarcalismo são uma das faces da precária modernidade nacional.
O alto e o baixo, o sério e o vulgar, em solo nacional e na sua
representação cultural, confundem-se permanentemente numa dialética entre o
nacional e o estrangeiro, o arcaico e o moderno.
Sob esse aspecto, é útil relembrar que o famoso filme de C. B. de Mille é o
“gatilho”, a célula geradora do sentido do poema. A película citada, de 1927, narra
133
Sobre este poema, há uma extensa carta de Mário de Andrade destinada a Carlos Drummond
de Andrade. Nela, o poeta paulista se estende longamente sobre a gênese e as intenções que o
moveram ao escrever o poema. Ela se encontra transcrita no anexo IV deste trabalho.
120
a trajetória de Cristo e, como todo produto da indústria cultural, é destinado às
massas. A história de Cristo foi convertida em mercadoria.
A conjunção do arcaico e do moderno, no contexto dos países capitalistas
centrais, é também fenômeno importante. O mais moderno — o cinema, arte
industrial por excelência — mescla-se ao mais tradicional, isto é, os evangelhos e
suas parábolas edificantes. Cinema e evangelho para as massas, eis o “Rei dos
Reis”, o capital e, com ele, o fetiche da mercadoria: o puritanismo moral e religioso
e a indústria cinematográfica de mãos dadas. E o conseqüente amálgama do
sagrado e do profano.
A regressão social inerente ao capital é ironicamente reproduzida na
regressão formal empregada no poema — o que as difere é a consciência crítica
do poeta. Para o eu lírico, a forma de superação dessas contradições se manifesta
na antítese: ser “escravos” ou “Rei dos Reis”.
Cinema, Cristo, mictório, São Paulo, pênis, automóvel de luxo, charuto,
homens e “Rei dos Reis”, elementos heterogêneos que compõem a complexa
equação nacional normalmente designada como modernidade conservadora.
A guerra em nós
O sabor de uma “promessa falhada”
Após as sucintas análises de alguns poemas da Lira Paulistana, em que
buscamos apontar certas recorrências formais e temáticas — em especial, a
presença dos símiles da morte associados à consciência dos conflitos sociais —,
analisaremos um poema que antecede e serve de preâmbulo para “A meditação
sobre o Tietê”.
Trata-se de “Entre o vidrilho das estrelas dúbias”. Nele, aparece
explicitamente a questão da guerra — tema que ultrapassa os limites do nacional
até então ressaltados nos demais poemas da Lira Paulistana analisados —, em
121
que a pulsão de morte se mostra claramente. O poema confirma, na poesia da
fase final de Mário de Andrade, a persistência de um universo temático.
A questão da guerra está presente na poesia do autor desde o início. Em
1917, durante o primeiro conflito mundial, o jovem poeta paulistano publica
uma gota de sangue em cada poema, livro declaradamente pacifista, em que
manifesta repúdio radical a toda forma violência que os homens podem exercer
sobre os homens. A esse respeito, Mário de Andrade declara numa entrevista
datada de 06 de Janeiro de 1944:
Sempre fui contra a arte desinteressada. Para mim, a
arte tem de servir. Posso dizer que desde o meu primeiro livro
faço arte interessada. Naquele tempo, em 1917, se quisesse
poderia ter arranjado um livro de versos menos ruim para
aparecer em público. Tinha cadernos e mais cadernos cheios
de sonetos e poesias, que reputava melhores que os de
uma gota de sangue em cada poema. Mas não. Senti que
precisava publicar o meu livrinho de poemas pacifistas, escritos
sob as emoções da guerra de 14. Eles pareceram mais úteis
que os sonetos e as poesias rimadas
134
.
Na mesma entrevista, o escritor insiste na tese de que sua arte sempre foi
interessada, mesmo quando o “empenho” não parece ocupar a aparência mais
imediata da obra.
Em outro momento da mesma entrevista, o poeta deixa claro que a sua
concepção de arte “que tem de servir” não o dispensa da pesquisa estética. Na
contramão, a pesquisa estética, contraditoriamente, torna a “arte socialmente
válida” incompreensível para o público, fenômeno que é um dos dilemas
centrais da arte moderna:
A arte tem de servir. Venho dizendo isso há muitos
anos. É certo que tenho cometido muitos erros na minha vida.
Mas com a minha "arte interessada", eu sei que não errei.
134
Andrade, Mário de. Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, pp. 104-105.
122
Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais
brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os
aproximasse do povo. Esta noção proletária da arte, da qual
nunca me afastei, foi que me levou, desde o início, às
pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Ás
vezes com sacrifício da própria obra de arte. Cito, para
esclarecer, o meu romance Amar, verbo intransitivo. Não fosse
a minha vontade deliberada de escrever brasileiro, imagino que
teria feito um romance melhor. O assunto era bem bonzinho. O
assunto porém me interessava menos que a língua, nesse livro.
Outro exemplo é Macunaíma. Quis escrever um livro em todos
os linguajares regionais do Brasil. O resultado foi que, como já
disseram, me fiz incompreensível até para os brasileiros. Bem
sei que minha literatura tem muito de experimental. Que me
importa. Disso não me arrependo
135
.
Consciente de que “arte válida” é aquela que é “socialmente válida”,
Mário de Andrade tem clareza de que esse aspecto não pode estar dissociado
da elaboração da linguagem, pois são ambas dialeticamente autodeterminadas.
O escritor modernista investe duramente contra o fascismo e contra os
intelectuais que a ele se filiaram em maior ou menor grau. A consciência da
“arte interessada” que ele propõe implica necessariamente a consciência do
repúdio às tendências fascistas:
Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das
competições sociais. É assim com a guerra, na luta das
democracias contra os fascismos de todas as categorias. A
guerra não é um teatro, que a gente possa assistir
comodamente, como se estivesse sentado num camarote.
Todos participam da luta, mesmo contra a vontade. Queiram ou
não queiram. E se é assim o escritor tem de servir fatalmente:
ou a um ou a outro lado. Os intelectuais brasileiros, que
135
Idem, ibidem, p. 105.
123
continuam colaborando em jornais fascistas, precisam se
convencer de que estão errados.
136
.
Ao comentar a permanente cooptação do intelectual e do artista
brasileiro aos poderes escusos diretamente associados à desumanização
da sociedade e à neutralização do poder crítico da arte, o escritor é ainda
mais contundente nas críticas que faz. Em suma, ele denuncia a ilusão do
absenteísmo, da “arte pura”:
E de fato quando eu considero que uma grande parte da
inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida, estou longe
de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de assinar uma
transação com contratos legalizados em cartório. Mas por não
possuir uma legítima técnica de pensar, essa intelectualidade
se entrega facilmente a sofismas e confusionismos de mil e
uma espécies, de que é malignamente a maior essa tal de "arte
pura". (...) E o intelectual sofisma que tem liberdade de
pensamento, simplesmente porque não tem técnica de pensar
suficiente que lhe dê coragem pra levar o seu pensamento até o
fim. Porque na verdade a pseudoliberdade dele consistiu em
seqüestrar das suas manifestações intelectuais todos aqueles
assuntos momentosos, cuja qualidade de interesse era social,
que o haviam de deixar desagradável com o chefe da repartição
em que trabalha, o diretor do jornal em que escreve, e mesmo
lhe trariam complicações com as gestapos
137
.
Retornando à questão da temática pacifista, é imperioso lembrar que um
dos aspectos mais marcantes do Futurismo italiano é justamente a “estetização da
guerra” e, em estreita ligação com esse fenômeno, o movimento criado por
Marinetti possui claras filiações fascistas.
Do princípio ao fim de sua trajetória de escritor, as posições de Mário de
Andrade estão em franca e aberta oposição ao ideário político futurista, tanto no
136
Idem, ibidem, p. 104.
137
Idem, ibidem, pp. 107-108.
124
que diz respeito à temática da guerra quanto na sua relação com o fascismo. Nos
depoimentos sobre a segunda visita de Marinetti a São Paulo, explicita-se o
distanciamento do nosso modernista em relação ao Futurismo e ao Fascismo e as
divergências de Mário de Andrade com as ligações de Marinetti com Mussolini
138
.
Dos anos vinte aos anos quarenta do século XX, a clareza de Mário de
Andrade dessas questões se consolida e o repúdio à guerra retorna com
contundência na fase final da obra do poeta paulista.
“Entre o vidrilho das estrelas” é um dos mais belos poemas da Lira
Paulistana. Nele, Mário de Andrade dá vazão à sua profunda angústia diante da
Segunda Guerra Mundial.
Antes de analisar o poema citado, gostaríamos de apontar dois outros
poemas — em que o repúdio à guerra está presente —, como forma de
demonstrar a transformação da visão do escritor paulista sobre o tema.
O primeiro pertence ao livro Há uma gota de sangue em cada poema e
parece-nos um dos mais bem realizados da fase inicial da poesia de Mário de
Andrade. Esse livro com um todo é um canto de repúdio à guerra:
Os carnívoros
Quando a paz vier de novo, nova e franca,
passar nestas estradas e caminhos,
novas aves talvez e novos ninhos
hão-de agitar-se pela manhã branca ...
Novos ventos virão da serra,
úmidos, rindo-se, esfusiar no prado;
e novamente, regoando a terra,
ir-se-á, rangindo, o arado...
Pouco tempo depois, pela estrada, os viandantes
138
Mário de Andrade, em carta destinada a Carlos Drummond de Andrade (de 08 de Junho de
1926, que se encontra na página 78 do livro A lição do amigo.), comenta a passagem do poeta
italiano pelo Brasil. (Ver bibliografia).
125
verão, cobrindo os campos marginais,
os brocados trementes, ampliondeantes,
as roupagens custosas dos trigais ...
Virão novas colheitas,
virão risadas a remir fadigas,
virão manhãs de acordar cedo,
virão as tardes feitas
de conversas à sombra do arvoredo,
virão as noites de bailados e cantigas!...
Toda a população ir-se-á nos vales
colher o trigo novo e lourejante;
e, na pressa afanosa, bem distante
lhe passará da idéia tanta luta,
tantos passados males!
Pelo campo ceifado, à Ave-Maria,
na tarde enxuta e fria,
enquanto o vento remurmura, meigo e brando,
mulheres de Milliet, robustas e curvadas,
irão glanando, irão glanando ...
Tudo será colheita e riso. — Então,
depois de tantas fomes e misérias,
de tantas alegrias apagadas,
de tantas raivas deletérias,
os celeiros de novo se encherão.
Mas o trigo abastoso dos celeiros
relembrará o sangue, a vida,
os penosos momentos derradeiros
duma geração toda destemida...
Olhai! hoje o trigal é mais verde e mais forte!
O chão foi adubado a carne e sangue ...
Que importa haja caído um exército exangue
si deu a vida ao trigo tanta morte!
126
Este é o trigo que é pão e alento!
Vós que matastes com luxúria e sanha,
vinde buscar o prêmio: é o alimento...
Ei-lo: em raudal, em nuvem, em montanha!
Este é o trigo que nutre e revigora!
É para todos! Basta abrir as mãos!
Vinde buscá-lo! . . . — Vamos ver agora,
quem comerá a carne dos irmãos!
139
A imagem final da devoração universal dos homens pelos próprios homens
é fortíssima e define a insânia do estado bélico que, mesmo após o seu término,
persiste e se infiltra nas mínimas relações sociais. No poema, a guerra tem a
capacidade de transformar a luta de classes — um processo eminentemente
histórico — numa catástrofe de dimensões metafísicas que transcende o sentido
da própria história: o tom elegíaco do poema e sua dicção elevada dão à
catástrofe a dimensão de um crime primitivo e fundador que estaria na base de
toda a civilização.
Há algo de “genesíaco” no poema — recordação do primeiro assassinato
cometido por Caim ecoando por toda a história com uma marca que não pode ser
apagada ou superada: “— Vamos ver agora, quem comerá a carne dos irmãos!”.
A experiência histórica concreta da guerra é sublimada num registro mito-poético
que denuncia de alguma forma o caráter postiço e inautêntico desses primeiros
poemas do escritor. Neles, a experiência da guerra parece ser puramente literária.
Outro poema admirável do modernista paulista é “Pela noite de barulhos
espaçados”, de Remate de Males. Apesar de não se referir explicitamente à
guerra, ele é marcado pela atmosfera pesadelar e pela dicção que oscila entre o
premonitório e o profético anunciando um universo de catástrofes, uma espécie de
antevisão apocalíptica de uma tragédia coletiva inexplicável e inexorável.
139
Andrade, Mário de. Há uma gota de sangue em cada poema. In: Obra imatura. São Paulo:
Martins, 1960. pp. 39-40.
127
A dimensão pesadelar, em última instância, é expressão de um mundo
mergulhado na guerra. As imagens de teor “visionário” têm suas matrizes mais
fundas na poesia simbolista do final do século XIX, universo literário em relação ao
qual o poema “Os carnívoros” também parece ser caudatário:
Pela noite de barulhos espaçados
(Junho de 1929)
Pela noite de barulhos espaçados,
Neste silêncio que me livra do momento
E acentua a fraqueza do meu ser fatigadíssimo,
Eu me aproximo de mim mesmo
No espanto ignaro com que a gente se chega pra morte.
Meu espírito ringe cruzado por dores sem nexo.
Numa dor unida, tão violentamente física,
Que me sinto feito um joelho que dobrasse.
A luz excessiva do estúdio desmancha a carícia do objeto,
Um frio de vento vem que me pisa talqual um contato,
Tudo me choca, me fere, uma angústia me leva,
Estou vivendo idéias que por si já são destinos não escolho mais minhas visões
A aparência é de calma, eu sei. Dir-se-ia que as nações vivem em paz ...
Há um sono exausto de repouso em tudo,
E uma cega esperança, cantando benditos, esmola
Em favor dos homens algum bem que não virá...
Me sinto joelho. Há um arrependimento vasto em mim.
Eu digo que os séculos todos
Se atrasaram propositalmente no caminho,
Me esperaram, e puxo-os agora como boi fatal.
Me sinto culpado de milhões de séculos desumanos...
Milhões de séculos desumanos, me fizeram, fizeram-te, irmã;
E pela noite de barulhos espaçados
Não quero escutar o conselho que desce dos arranhacéus do norte!
Eu sei que teremos um tempo de horror mais fecundo
Que as rapsódias da força e do dinheiro!
128
Será que nem uma arrebentação...
Os postos isolados das cidades
Se responderão em alarmas raivacentos,
Saídos das casas iguais e da incúria dos donos da vida.
Havemos de ver muitos manos passando a fronteira,
Haverá pão grátis muito duvidoso,
As salas de improviso se encherão de discussões apaixonadas,
Mortas no dia seguinte em desastres que não sei quais.
Será tempo de esforço caudaloso,
Será humano e será também terribilíssimo...
Só há-de haver mulheres que não serão mais nossas mulheres.
Os piás hão-de estar sem confiança catalogados na fila,
E os homens morrerão violentamente
Antes que chegue o tempo da velhice.
140
As últimas duas estrofes apresentam imagens que materializam um
universo de experiências profundamente negativas marcadas pela angústia
das multidões e pela destruição de que serão vítimas as mulheres, as
crianças e os homens não totalmente idosos. Atente-se para o fato de que o
poema é datado de “Junho de 1929”. Alguns meses após — mais
precisamente ao meio-dia de uma quinta-feira, 24 de outubro
141
—, a Bolsa
de Valores de Nova York entra em colapso e tem início a grande depressão
que culminará na Segunda Guerra Mundial.
O clima da guerra antecipada parece dominar o poema com sua
atmosfera sufocante e esmagadora de que nada e ninguém escaparão: ”Eu
sei que teremos um tempo de horror mais fecundo / Que as rapsódias da
força e do dinheiro!”.
A angústia do poeta, marcante nas primeiras estrofes, adquire
dimensão quase cósmica, pois a destruição traz consigo algo do “Juízo
Final” com todas as suas conseqüências funestas: “Tudo me choca, me fere,
140
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, pp.
268-269.
141
Este dia ficou conhecido como a “quinta-feira negra”, marcado por uma onda de suicídios.
129
uma angústia me leva, / Estou vivendo idéias que por si já são destinos não
escolho mais minhas visões”.
O que interessa nesse poema é a constatação de que as “visões
apocalípticas”, presentes na poesia de Mário de Andrade no final da década
de 1920, são em si mesmas vagas e desfibradas de substância histórica
palpável. O que diferencia esses dois poemas sucintamente comentados é o
discurso marcado pela indeterminação histórica de sua substância
verdadeira.
Durante os anos de 1940, essa questão irá ganhar adensamento
histórico na poesia de Mário de Andrade. Acrescentando: “Pela noite dos
barulhos espaçados”, bem como “Os carnívoros”, apesar de esteticamente
bem realizados, padecem de “experiência verdadeira” que lhe confira
densidade histórica.
O oposto desse processo poético se encontra justamente no poema
que pertence a Lira Paulistana. “Entre o vidrilho das estrelas dúbias”
representa a aguda tomada de consciência do poeta da substância
verdadeira da guerra presentificada nas suas relações afetivas mais caras:
Entre o vidrilho das estrelas dúbias
Entre o vidrilho das estrelas dúbias,
Luisito, voas na guerra italiana...
És minuto e depois minuto, e inteiro
O corpo novo se retesa
Na contenção dos esforços finais.
Cada momento de tua vida é um fim final.
Dentro da luz do sol das mil cores,
Luisito, voas no teu avião de combate,
E és único. Tão só! Estás tão destinadamente abandonado
Num céu de tocaia, tecido a fogo e destruição.
Cada gesto, cada vontade tua é destruição...
130
Pousado na terra sem sono,
Dormes envolto num cenário insatisfeito,
E tudo o que é não é: teu luar, tuas namoradas,
Teus estudos e a promessa não cumprida.
Luisito! Tens um sabor de promessa falhada!
Em pleno olho sem pálpebras dás morte,
Armado de morte, cercado de morte, amante da morte,
Voas e há somente morte em ti.
Como te fizeram antigo, Luisito, que pena!
Quando voltares, si voltares, jamais te perguntarei nada,
Jamais direi, jamais direi, ficarei mudo, mudo,
Jamais sequer me perguntarei o que sinto...
Mas como te fizeram antigo, meu Luisito!
Rajadas de sino, rajadas de bandeiras, músicas e danças:
Tudo será esquecido na alegria,
Tudo será futuro em busca do homem novo.
Mas eu sei que em tua face não culpada
Estará inscrita a lágrima que eu choro.
Ah, que ninguém nos deixe aos dois sozinhos
Neste nosso lar familial!
Quem são os dois inimigos que se cumprimentam formalizados?
Por que escurece a sala o friúme de um rancor?
Como te fizeram antigo, meu Luisito, que pena!
Como te medalharam de passados horríveis!
Não poderei perdoar quando estiver comigo!
Não deverás perdoar pra que sejas perfeito!
A porta vai bater fechando sem adeus.
E alguém, não serei eu, não serás tu, alguém,
Alguém que se quebrou em dois irremediavelmente,
131
Soluçará: — Que pena...
142
Dois aspectos são marcantes nesse poema: no plano formal, o absoluto
domínio estilístico do verso livre; no plano do conteúdo, a comovente meditação
sobre as catástrofes de guerra.
A intensidade emocional do texto é sabiamente orquestrada por meio de
uma solução poética eficiente: o conflito de proporções mundiais é registrado na
chave das relações íntimas e afetivas, o que reforça o clima de desesperança e
angústia do poeta.
A voz lírica se dirige a Luisito, um ouvinte distante, lutando na guerra. A
referência a essa figura não é arbitrária, pois encontra explicação na biografia de
Mário de Andrade. Diléa Zanoto, na edição crítica da poesia do autor, informa-nos:
Luisito: cremos tratar-se de Fernando Moraes Rocha, primo e afilhado de
Mário”
143
. Em seguida, transcreve o seguinte trecho da correspondência do
escritor a Fernando Sabino, de 3 de dezembro de 1944:
Eu tenho um afilhado, tenente de aviação que está na
guerra. Amo ele como um filho, ou diferente: com uma
angústia exacerbada e insatisfeita, e sem compensações, do
solteirão que se bota amando uma criança com amores
macaqueados de um pai. É uma sofreguidão de lembrança
que me persegue e atinge a obsessão. É horrível, Fernando,
e por sinal que ele se chama Fernando, também Fernando
Morais Rocha, meu priminho. Outro dia, faz uns quinze dias,
era de-tarde, eu estava lendo aqui o Álvaro Lins, num artigo
de crítica falando em romance. De repente larguei o livro e
principiei escrevendo assim numa espécie de estado
142
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 383-
384. A palavra “vidrilhos” aparece no primeiro verso do “Noturno de Belo Horizonte”: “Maravilha de
milhares de brilhos vidrilhos”. Nesse poema, a solidão e o silêncio da capital mineira servem de
estímulo para a profunda comunhão do poeta com a nação. O clima é totalmente diverso do
apresenta neste poema da Lira Paulistana, em que predominam a disjunção, a separação, a
consciência negativa.
143
Idem, ibidem, p. 512.
132
mediúnico (não acredito em espiritismo), era um verso. A
primeira estância ainda foi bem, era a saudade, a lembrança
do outro Fernando. Mas a segunda estância já terminava
com uma reflexão muito amarga. E de repente, mesmo
ansiando de amor pelo afilhado bem querido, eu percebi que
estava escrevendo contra ele! Acabei o poema chorando.
144
Como se vê ao final da citação, o poeta está se referindo a “Entre o vidrilho
das estrelas dúbias”. Nessa declaração, o escritor revela que o poema teria sido
escrito em estado de transe mediúnico, aspecto também presente na dicção
dominante de “A meditação sobre o Tietê”.
O comentário que encerra o trecho, por si só, dimensiona o grau de
conflito resultante de suas relações afetivas em confronto com o seu
veemente repúdio à guerra e ao fascismo.
A expressiva imagem do jovem aviador, ao cruzar solitário o céu
noturno pleno do brilho das estrelas, redunda na profunda solidão a dois
numa sala de visitas, num bairro de classe média na cidade São Paulo. A
guerra deixa cicatrizes e marcas permanentes que separam e desagregam:
Quem são os dois inimigos que se cumprimentam formalizados? / Por que
escurece a sala o friúme de um rancor?”.
A imagem final aponta para a consciência da cisão (“Alguém que se
quebrou em dois irremediavelmente”) tão característica do universo particular do
poeta modernista, exaustivamente assinalado pela crítica. Cumpre observar que a
cisão, nesse poema, não diz respeito à identidade pessoal e nacional marcada
pelo impasse e pela indefinição, mas, sobretudo, é produzida pelo sentimento da
história contemporânea do poeta. A imagem do homem quebrado ecoará nos
famosos versos de Drummond, de A rosa do povo: “Este é tempo de partido /
tempo de homens partidos”
145
.
144
Idem, ibidem, p. 513.
145
Andrade, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, p. 102. A relação
intelectual e afetiva entre Mário de Andrade e o poeta mineiro é uma das mais intensas de nossa
literatura. O profundo diálogo entre eles ainda está para ser estudado. É possível que haja
133
A imagem do aviador solitário está envolvida por uma complexa rede
significados no imaginário do poeta. A esse respeito, é esclarecedora uma
declaração de Mário de Andrade, ao ser interrogado sobre a gênese de sua obra
de ficção, numa entrevista de Janeiro de 1944. Ao comentar o protagonista de
Amar, verbo intransitivo, ele afirma:
Era o Carlos, o meu Carlos, que em vez de seguir
chatamente sua vida de burguezinho reles, dera pra aquela
profissão lírica e perigosa de aviador. Fiquei preocupadíssimo, não
podia me conformar com tamanha traição, até que bati na testa
com um eureca. É que no tempo em que construí o "meu" Carlos,
a aviação comercial ainda não surgira no Brasil, só a aviação
esportiva, cheia de elegância e do perigo. De forma que no futuro
do meu Carlos eu não podia imaginar um aviador mesmo
comercial. Mas a aviação comercial viera, era uma profissão
honesta, modesta e sem perigo. Porque isso de morrer, tem
moléstias que matam você até por profissão, o obrigar a viver
sentando o dia inteiro. Eureca! Não fora o Carlos que me traíra,
mas a vida que progredira, criando profissões novas ainda não
existentes entre nós no tempo em que eu criei meu burguezinho
besta.
146
Nessas declarações, é perceptível que Mário de Andrade insiste no
permanente trânsito que há, em sua obra, entre o vivido e o criado. Ao falar do
indivíduo que deu origem à personagem Carlos, o autor revela sua surpresa ao
vê-lo como piloto de avião e o próprio imaginário sobre o tema: profissão heróica
que envolveria perigos e aventuras. No entanto, rapidamente, ele percebe que,
com o correr dos tempos, a aviação se transformou numa atividade profissional
como outra qualquer do mundo moderno.
paralelismo similar ao existente entre José de Alencar e Machado de Assis: o trabalho de
depuração estético-literária de Drummond está em conexão com o processo de acumulação
temático-formal de Mário de Andrade.
146
Andrade, Mário de. Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 113.
134
No poema “Entre o vidrilho das estrelas dúbias”, Luisito é um aviador militar.
Não pratica, portanto, a aviação por esporte e muito menos como atividade
profissional. Ele está envolvido na guerra, luta ao lado dos aliados contra o
fascismo na Europa. É perceptível a radical rejeição ao afilhado querido, que não
é fascista nem burocrata da vida, pois, para Mário de Andrade o problema é
guerra em si: Luisito participa dela, é um dos “Carnívoros”, “comerá a carne dos
irmãos”; é, por conseguinte, um dos que colaboram para o sombrio espetáculo em
que “Os homens morrerão violentamente / Antes que chegue o tempo da
velhice”.
Na fase final, a poesia de Mário de Andrade caminha para uma radical
tomada de posição diante dos conflitos do mundo. Nele, o ”sentimento do mundo”
vem permeado pela consciência da luta de classes e pelo repúdio extremado a
“incúria dos donos da vida”.
A atmosfera noturna — síntese da percepção da catástrofe generalizada na
história — está presente tanto em “Pela noite de barulhos espados quanto
em “Entre o vidrilho das estrelas dúbias” e se opõe à atmosfera solar de “Os
Carnívoros”. Esses três poemas representam significativamente três
diferentes momentos da produção poética do escritor e revelam a sua
crescente angústia diante dos destinos do homem no mundo moderno.
O ponto culminante de sua consciência cindida pela historicidade se
encontra no poema seguinte da Lira Paulistana, ”A meditação sobre o Tietê”:
o imaginário noturno ganha a dimensão da catástrofe histórica representada
pela Segunda Guerra Mundial e pela ascensão do fascismo em escala
universal.
O poema “Entre o vidrilho das estrelas dúbias” é constituído por quarenta e
um versos. Novamente a morte comparece em seu núcleo, é explicitamente
invocada nos versos de 17 a 19:
Em pleno olho sem pálpebras dás morte,
Armado de morte, cercado de morte, amante da morte,
Voas e há somente morte em ti.
135
A imagem do “olho sem pálpebra” é por demais enigmática. Remete às
potências associadas à morte — especialmente à Medusa, cujo olhar é a
presentificação da morte:
GÓRGONAS (em grego “gorgós”, “assustador”) — figuras
amedrontadoras da antiga mitologia (...). Chamam-se Ésteno,
Euríale e Medusa e são descritas como seres alados, com
cabeleiras de serpentes com as Erínias, e com presas
pontiagudas. Apenas Medusa é mortal. Sua visão é tão
assustadora , que transforma em pedra qualquer um que a fite.
(...). — Também as grotescas irmãs das Górgonas formam uma
tríade: são as Gréias (do grego “Graiai”, as velhas), anciãs que
apenas possuíam um olho e um dente: Enio, Pefredo e Dino.
Perseu conseguiu exigir que o auxiliassem na luta contra Medusa
roubando-lhe seu único olho e seu único dente, e restituindo-os
apenas quando elas prometeram ajudá-lo.
147
O olhar que não se fecha pode ser também um dos símbolos do maligno,
daquele que não dorme, permanece em vigília constante: o Insone. A imagem do
poeta insone pode ser considerada uma precisa figura do artista moderno, a quem
não é dado o direito de dormir diante da catástrofe permanente do mundo. A
imagem do poeta insone e em estado de derrelição é o centro de “A meditação
sobre o Tietê”, poema sobre o qual nos deteremos em seguida.
147
Biedermann, Hans. Dicionário ilustrado de símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1993, p. 178.
136
Capítulo IV
“A meditação sobre o Tietê”
A recitação do mito cosmogônico deve-se
dar nas grandes ocasiões: a procriação de um
filho, o restabelecimento de uma situação militar
comprometida, o instante da morte (para que ela
se torne criadora), ou a cura de um equilíbrio
psíquico ameaçado pela melancolia e pelo
desespero.
148
1
“Louvação da tarde”: marco de viração
“A meditação sobre o Tietê” se aproxima formal e tematicamente de dois
outros poemas longos de Mário de Andrade relacionados a duas grandes cidades
brasileiras: “O carnaval carioca” e “Noturno de Belo Horizonte”, de Clã do Jabuti.
Aproxima-se também, pelo tom meditativo, de mais dois poemas do autor: “A
louvação da tarde” e a “Louvação matinal”, de Remate de males.
No ensaio intitulado “O poeta itinerante”, Antonio Candido percorre a poesia
de Mário de Andrade analisando exatamente “A louvação da tarde”. O crítico
desdobra — a partir desse poema central na obra do escritor modernista — três
questões complexas e entremeadas: a análise global da obra do poeta, sua posição
no contexto nacional e a incorporação da tradição literária em confronto com as
grandes questões da modernidade.
Para a compreensão da importância de “Louvação da tarde” no conjunto da
obra poética, Antonio Candido destaca como um dos aspectos mais importantes
148
Lafetá. João Luiz. Op. cit., p. 204.
137
presentes no poema a relação entre a criação poética e a máquina (o automóvel),
entre a subjetividade e a modernidade.
A noção de poeta itinerante aponta precisamente para um núcleo de
questões centrais da obra de Mário de Andrade na sua totalidade, pois o adjetivo
(“itinerante”) tem como principal acepção a noção de deslocamento, de movimento,
de errância, de busca, de mobilidade. Em resumo, de processo, de coisa não
concluída, movência permanente. Tudo isso é, do nosso ponto de vista, uma
definição precisa do próprio país e de seu processo particular de constituição. O
termo comporta, ainda, as noções de função, de destinação, de empenho, de estar-
se ligado a uma atividade que transcende o mero capricho individual e se constitui
em tarefa coletiva, pública ou privada
149
.
O tema central do poema “Louvação da Tarde” é a criação literária, de que
o verso “De-dia eu faço, mas de-tarde eu sonho”
150
é a síntese, verdadeira metáfora
do processo de criação poética (“faço”) associado à necessidade de devaneio
(“sonho”).
Após localizar “Louvação da Tarde” no conjunto da poesia do escritor
paulista
151
, Antonio Candido faz uma afirmação fundamental para a compreensão
da importância desse poema: ”A partir de ‘Louvação da tarde’ a sua poesia se
constituirá cada vez mais em torno do próprio eu, numa linha meditativa e analítica
acentuada.”
152
“Louvação da Tarde” é um “marco de viração” da poesia de Mário de
Andrade e sinaliza o adensamento da exploração da subjetividade em sua obra.
O crítico inicia a análise do poema observando o emprego do verso
decassílabo branco como elemento fundamental de organização formal do discurso
149
Houaiss, Antônio e Villar, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1660.
150
Andrade, Mário. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo|: Edusp, 1987, p. 240.
151
“Louvação da tarde” pertence à série denominada “tempo da Maria”, que se encontra no livro
Remate de Males.
152
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
1998, pp. 257-258.
138
poético, recurso que remete tanto para a tradição quanto para a capacidade de
renovação exigida pela modernidade.
O princípio que rege o discurso poético nacional moderno é marcado pela
permanente oscilação entre a tradição e a renovação, o dado local e o elemento
estrangeiro. Movimento sem ponto de repouso ou de parada, algo que se constitui
num processo ao mesmo tempo afirmativo e negativo, numa espécie de “dialética
truncada”, que talvez seja a melhor descrição para o processo particular de
formação nacional na periferia do capitalismo, marcado pela oscilação permanente
entre o arcaico e o moderno.
Num recente ensaio sobre o Grande Sertão: Veredas, José Antônio Pasta
Júnior aponta para um problema similar ao aqui descrito:
Neste ponto, embora precocemente e para desenvolver
adiante, tocamos em algo de essencial para o livro: essa junção
inextricável, em um mesmo princípio, de movência obrigatória e
fixidez inamovível, de metamorfose contínua e pura repetição,
indica a fórmula de base que aqui se trata de identificar, o estatuto
da contradição insolúvel. Agitada internamente por uma movência
interminável ou movimento contínuo, ela se mexe
incessantemente sem , no entanto, sair jamais do lugar. Assume,
assim, a configuração de uma espécie de dialética negativa, que a
contradição faz bascular sem parada, mas que não conhece
superação ou síntese propriamente ditas.
153
A explicação desse fenômeno reside no processo de formação do país. A
movência permanente é o elemento central que estrutura todos os níveis de
relações no Brasil, subjetivas ou sociais. Um significativo exemplo dessa junção
constante de elementos contraditórios se encontra no início da “Louvação da
tarde”:
Tarde incomensurável, tarde vasta,
Filha de Sol já velho, filha doente
153
Pasta Júnior, José Antônio. Op. cit., p. 63.
139
De quem despreza as normas da Eugenia,
Tarde vazia, dum rosado pálido,
Tarde tardonha e sobretudo tarde
Imóvel… quase imóvel: é gostoso
Com o papagaio louro do ventinho
Pousado em minha mão, pelas ilhotas
Dos teus perfumes me perder, rolando
Sobre a desabitada rodovia.
Só tu me desagregas tarde vasta,
Da minha trabalheira. Sigo livre,
Deslembrado da vida, lentamente,
Como o pé esquecido do acelerador.
E a maquininha me conduz, perdido
De mim, por entre cafezais coroados,
Enquanto meu olhar maquinalmente
Traduz a língua norteamericana
Dos rastos dos pneumáticos na poeira.
O doce respirar do forde se une
Aos gritos ponteagudos das graúnas,
Aplacando meu sangue e meu ofego.
154
Nessa abertura magnífica, estão postos todos os elementos poéticos
centrais a partir dos quais o texto se articula. Entre eles ressalta-se a profunda
intersecção dos elementos naturais com os símbolos mais explícitos do mundo
moderno. A síntese existente entre esses elementos é tão paradoxal, que os gritos
das graúnas são “ponteagudos”, o Ford “respira” e o olhar é “maquinal”. Essa fusão
tão complexa da máquina e do mundo natural assume no Brasil uma dimensão
particular, pois um não suprime o outro, muito pelo contrário, porquanto parecem
conviver “harmoniosamente”.
Nos termos do poema, encontramos a incorporação da tradição (o
decassílabo, o poema longo, a forma da meditação etc.) no seio da modernidade
nacional (o automóvel, a estrada em meio à fazenda), cuja mediação é a
154
Andrade, Mário. Poesia Completa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987, pp. 236-
237.
140
consciência crítica do eu lírico que deambula em meio a um cafezal, num
automóvel. E nessa itinerância ele acredita encontrar um momento de síntese —
mesmo que precário — na sua dura lida, na contemplação da tarde:
Não és tu que me dás felicidade,
Que esta eu crio por mim, por mim somente,
Dirigindo sarado a concordância
Da vida que me dou com o meu destino.
Não marco passo não! Mas si não é
Com desejos sonhados que me faço
Feliz, o excesso de vitalidade
Do espírito é com eles que abre a válvula
Por onde escoa o inútil excessivo;
Pois afastando o céu de junto à Terra,
Tarde incomensurável, me permites,
Qual jaburus-moleques de passagem,
Lançar bem alto nos espaços essa
Mentirada gentil do que me falta.
155
O tom meditativo e elegíaco do poema denuncia que a possível harmonia é
mera idealização da contradição intransponível e sem síntese verdadeira, a
“Mentirada gentil do que me falta”. Cumpre observar que o último verso é um dos
mais densos de toda a obra de Mário de Andrade e constitui uma excelente
definição da poesia, principalmente no universo da modernidade.
Seguindo esse raciocínio, o crítico passa em revista alguns autores da
tradição, principalmente os poetas românticos, que se valeram da “meditação”
como forma poética. Antonio Candido percorre a obra de Pope, Wordsworth,
Rousseau etc., mostrando as afinidades e deslocamentos propostos por Mário de
Andrade ao incorporar os elementos da tradição ao discurso moderno.
Ele resenha também o desdobramento da “meditação” em poetas do alto
modernismo internacional, como Valéry e Aragon, e mesmo em Baudelaire, cuja
poesia da itinerância é indissociável da urbe moderna. Ainda, segundo o crítico,
155
Idem, ibidem, p. 240.
141
também na literatura brasileira anterior ao Modernismo, o tema está presente nos
românticos ou em poetas como Augusto dos Anjos. Não é, portanto, uma novidade
temática. Antonio Candido passa a especificar, então, o que nesse poema é
renovação e novidade:
Meditação da mais completa modernidade, seja dito, a
começar pelo fato de não ir o poeta a pé, como o viajante de
Wordsworth, o flâneur de Baudelaire, o noctâmbulo de Augusto
dos Anjos ou os personagens tresmalhados de Eliot. Nem a cavalo
(apesar de estar no campo) como Julian e Maddalo no poema
onde Shelley figurou a si próprio e a Byron sob estes nomes. Em
“Louvação da tarde” o poeta vai de automóvel, que designa por
um diminutivo carinhoso e trata como ser vivo, pois em vez de
dirigi-lo, abandona-se a ele, ao modo de montaria confiável cujas
rédeas foram soltas (…)
156
O crítico faz referência à fusão imagética incomum entre o homem e
máquina, mediada pela experiência ancestral do homem com o animal. O carro
parece substituir o cavalo e com ele se confunde. A fusão do animal e da máquina
é equivalente à fusão inextricável entre o arcaico e o moderno que se manifesta
permanentemente na formação nacional:
Trata-se portanto de uma meditação itinerante entrosada
na era da mecanização, e tanto quanto sei é a primeira onde o
deslocamento no espaço se faz por este meio. É claro que há
poemas anteriores nos quais o automóvel aparece, mas não
conheço outro onde esteja em contexto semelhante, isto é, o do
poema-meditação. Creio que Mário de Andrade realmente
inventou, ao aproveitá-lo como traço moderno inserido em texto de
ressonância tradicional, gerando a modernidade através de uma
atitude de quase paródia.
157
156
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
1998, p. 265.
157
Idem, ibidem, p. 265.
142
Antonio Candido aproveita o tema da máquina para demonstrar o grau de
invenção do modernista brasileiro, pois se valendo da comparação com as
vanguardas européias, o crítico ressalta a mestria de Mário de Andrade que — ao
operar com um dos maiores símbolos da modernidade poética (automóvel) inserido
no contexto problemático da periferia do capitalismo —, soube registrar a
verdadeira dimensão contraditória dos elementos modernos em solo nacional. A
discussão sobre a apropriação particular que o Modernismo brasileiro fez das
Vanguardas européias permite perceber o livre trânsito entre o dado local e o
elemento estrangeiro presente na obra de Mário de Andrade:
Enquanto objeto de poesia o automóvel já estava em
diversos poemas de Marinetti. Por exemplo, “Ao automóvel de
corrida” (“All’automobile de corsa”, publicado primeiro em francês),
que glorifica a velocidade por meio da máquina, dentro do típico
espírito futurista (…)
Faço a citação sobretudo para demonstrar a diferença,
indicando um segundo nível da invenção de Mário de Andrade:
nos modernismos europeus, sobretudo o Futurismo, o automóvel
estava ligado à potência da velocidade, à vertiginosa conquista do
espaço, como sinal da nova era. Marinetti escreveu em 1909 no
“Manifesto futurista”: “(…) o esplendor do mundo foi enriquecido
por uma beleza nova: a beleza da velocidade”. E elevou este
conceito a verdadeira teoria noutro manifesto, de 1916, intitulado
“A nova religião-moral da velocidade”. Como agente desta é que o
automóvel era geralmente celebrado. Mas neste poema de Mário
de Andrade ele aparece despido dos sinais vanguardistas de
identidade. Como verdadeiro figurante da poesia lírica romântica é
doce, meigo, lento, assimilado a um animal integrado no ritmo da
natureza.
158
O procedimento particular do poeta paulista, que poderia ser facilmente
interpretado como recuo criativo ou dissidência das principais conquistas das
158
Idem, ibidem, pp. 265-266.
143
vanguardas, em suma, como regressão estética, segundo Antonio Candido tem
dimensão totalmente diversa:
Estamos portanto diante de um exemplo de fusão de
perspectivas, épocas, processos, justificando o ponto de vista que
este poema é um momento de viragem e maturação não apenas
de Mário de Andrade, mas do próprio Modernismo brasileiro, cuja
fase de guerra estava começando a se estabilizar. No caso, pela
transposição de práticas literárias cuja origem é em boa parte
romântica.
Mas que fique claro: não se trata de apostasia, e sim uma
demonstração da validade do Modernismo por meio de seu
entroncamento na tradição. De fato, este poema consolida a
ruptura, ao provar que ela garante a perenidade dos valores,
desde que estes se reencarnem nos requisitos da tradição.
159
A consciência das contradições envolvidas no processo histórico de
validação das Vanguardas e do Modernismo revela o grau de complexidade com
que a obra de Mário de Andrade se confronta, pois ao desejo de permanecer fiel às
conquistas do Modernismo se justapõe a necessidade de não perder de vista o
universo particular da cultura brasileira e do processo de formação particularíssimo
que constitui o país. Com o objetivo de mostrar a assimilação meramente
epidérmica das Vanguardas em solo nacional, tão diferente daquela proposta por
Mário de Andrade, tenha-se como exemplo o seguinte poema:
Automóvel
Massa em disparada,
com cavalos invisíveis,
que o cálculo escondeu
na alma oca dos cilindros.
Soma de energias,
159
Idem, ibidem, p. 267.
144
multiplicadas e dóceis,
que se concentram nos punhos fechados
no volante.
Carro que corre
pelos âmbitos abertos
dos horizontes atropelados.
Visão de vida, formidável e forte,
com apetites metálicos
de oxigênios distantes.
Num galope, rasando o chão,
vai, com seus cascos elásticos,
riscando um fôlego surdo,
de borrachas inchadas.
Canção do aço que passa,
rasgando rumos e roncos
pelo espaço parado.
Canção da força, raivosa e quente,
onde batem metais;
e as engrenagens se mordem,
arrancando as moléculas,
na volúpia loura do óleo mole.
São Paulo, 1920
Américo R. Netto
160
.
No poema de Américo R. Neto, escrito na década de 1920, é visível o
elogio deslumbrado à máquina em si. Não há no poema o menor deslocamento
entre a voz lírica e o objeto central por ela louvado. O recuo crítico foi suprimido por
uma adesão irrestrita ao objeto da louvação lírica. Esse fenômeno ilustra com
160
Hünninghaus, Kurt. História do automóvel. São Paulo: Boa Leitura, s / d, p. 195.
145
propriedade as afirmações de Antonio Candido sobre a “ingênua” visão futurista
presente na temática da velocidade, cujo símbolo maior é o automóvel.
O simples contraste do poema “Automóvel” com “Louvação da tarde” é
suficiente para confirmar a consciência crítica de Mário de Andrade da transposição
pura e simples de temáticas européias para o contexto nacional.
Chegamos, pois, ao cerne do ensaio, a quarta parte, em que o crítico faz
uma minuciosa descrição do movimento temático interno do poema, que, segundo
ele, divide-se em cinco movimentos e uma conclusão:
1. sonho x criação (v. 1-58)
2. o amor (v.59-91)
3. as viagens pelo Brasil (v. 92-112)
4. a prosperidade econômica do artista (v. 113-135);
5. a retomada da questão central do poema exposta na primeira seqüência (v.
136-165).
Para Antonio Candido, a temática central do poema gira em torno da
“…importância da imaginação e do sonho como arsenais da criação e do
comportamento; as partes intercaladas aludem à necessidade da fantasia para
construir uma plenitude fictícia, que compensa as frustrações da vida diária e é
chamada a certa altura ‘a mentirada gentil do que me falta’.”
161
Esse aspecto da criação poética é o que mais espaço físico ocupa no
poema e obviamente é aquele sobre o qual mais se detém Antonio Candido,
permitindo-lhe realizar uma síntese impressionante — pelo seu caráter de
totalização — da obra de Mário de Andrade. Empregando o recurso da comparação
com dois outros poemas importantes do autor, Antonio Candido descreve a longa
trajetória criativa de Mário de Andrade, em mais de quatro décadas:
161
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
1998, pp. 268-269.
146
“Louvação da tarde” se relaciona com outros poemas do
autor. Principalmente dois, que formam com eles os pilares de
uma trajetória: “Louvação matinal”, pouco posterior, e “A
meditação sobre o Tietê”, do fim de sua vida.
Comparando-os percebemos uma função diferente das
horas do dia. Em “Louvação matinal” a manhã corresponde à vida
consciente e à luta diária. É o momento da vontade e da razão. A
noite d’ “A meditação sobre o Tietê” sintetiza todas as noites da
poesia de Mário de Andrade e corresponde entre outras coisas à
vida recalcada, aos desejos irregulares, ao inconsciente que
assusta e a tudo o que a sociedade oprime. É o momento das
rebeldias e dos impulsos arriscados. Situada entre as duas, a
tarde de nosso poema é o momento do sonho e do devaneio,
quando a pessoa concede a si mesma o direito de imaginar qual
seria a sua melhor forma, e a imaginação procura afeiçoar o
mundo à veleidade. Momento de contemplação serena,
pressupondo o esforço de paz interior
162
.
Manhã, tarde, noite, respectivamente, vontade, fantasia e dissolução do
sujeito lírico em confronto com a alteridade do mundo. Ao mesmo tempo em que
esta afirma aquele, nega-o e o inviabiliza. A mediação é sempre a consciência do
poeta em busca da verdade mais funda em confronto com a impossibilidade de
uma síntese autêntica, aspecto de que poesia de Mário de Andrade, mesmo nos
momentos de maior “harmonia”, é um exemplo. A “Louvação da tarde” representa
esse momento de busca de um possível equilíbrio entre o poeta e as coisas que o
cercam.
Essa tentativa de fazer um balanço e compreender o modo de ser também
está presente em “A meditação sobre o Tietê”, ressaltando-se, porém, que a
possibilidade imaginária do repouso e da tranqüilidade estão absolutamente
ausentes no poema.
Antonio Candido faz uma rigorosa descrição de cada uma das seqüências
do poema, demonstrando como o amor, as viagens pelo Brasil e a sonhada
“prosperidade econômica expressa nos termos paulista dos anos Vinte, com base
162
Idem, ibidem, pp. 267-268.
147
na lavoura do café e na pecuária do civilizado gado caracu”
163
, são os elementos
fundamentais para a elaboração da “Mentirada gentil do que me falta”
164
, para a
elaboração da criação poética.
Ao longo do movimento cadenciado pelos versos brancos e pelo tom
paródico que embalam o poema, a voz lírica revela a cisão entre a experiência e a
fantasia, centro da frustração existencial, que, por sua vez, é o elemento essencial
da experiência subjetiva moderna. A percepção cada vez mais aguda da frustração
existencial culminará em “A meditação sobre o Tietê”, aspecto que o próprio
Antonio Candido assinalou anteriormente.
Na “Louvação da tarde”, a consciência da cisão é figurada como se
pudesse ser apaziguada no interior do sujeito lírico via imaginação compensadora.
A criação poética é capaz de harmonizar o “Ford” ao “cafezal”, o que não deixa de
ser uma metáfora precisa do contraditório projeto social de modernização
conservadora que marcou a década de 1930. No entanto é perceptível que o tom
levemente paródico, percorrendo essa “meditação” em decassílabos brancos, já é
sintoma da impossibilidade tanto de superação quanto de síntese no interior do eu
lírico.
A estilização do tom elegíaco e levemente melancólico percorrendo o
poema revela que o que se deseja é justamente o que se perdeu, ou o que não se
pode ter ou o que jamais se possuiu. No fundo da consciência lírica, repousa a
percepção de que todos os elementos essenciais da existência — o amor, o país, a
estabilidade material — estão irrevogavelmente envolvidos pela negatividade e pela
impossibilidade de plenitude, reveladas pelo término do passeio. A pastoral se
transforma em despedida. Ao retornar à sede da fazenda, o fenômeno explicita-se:
Ciao, tarde. Estou chegando. É quase noite.
Todo o céu já cinzou. Dependurada
Na rampa do terreiro a gaiolinha
Branca da máquina “São Paulo” inda arfa,
163
Idem, ibidem, p. 274.
164
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987, p. 240,
v. 155.
148
As tulhas de café desentulhando.
Pelo ar um lusco-fusco brusco trila,
Serelepando na baixada fria.
Bem no alto do espigão, sobre o pau seco,
Vem um carancho, se empoleira a Lua,
— Condescendente amiga das metáforas…
165
Nesse trecho, encontra-se a junção de neologismos (serelepando, cinzou),
coloquialismo (gaiolinha), multiligüísmo (ciao), registro do nacional (café,
carancho) — elementos poéticos exemplares do primeiro Modernismo. Em meio a
tudo isso a “máquina ‘São Paulo’ inda arfa” e o “lusco-fusco brusco trila /
Serelepando na baixada fria” enquanto “Vem um carancho, se empoleira a Lua”: a
velha e contumaz lua dos românticos, encharcada de simbolismo amoroso e
poético, ironicamente representada por “— Condescendente amiga das
metáforas”.
A Lua é um símbolo tradicional da poesia e da contemplação melancólica
que rege o poema e lhe dá o tom elegíaco fusionado ao ritmo dos tempos
modernos representado pelo arfar da máquina desentulhando o café (elemento
brasileiro). De um lado, o automóvel e a máquina (o moderno) ; de outro, o cafezal
e a tarde (a nota nacional) . Entre eles, o poeta e a lua, numa busca de síntese e
de repouso, só é possível na metáfora. Porém, a criação poética se encontra
invadida de estilização paródica (os decassílabos brancos) e de melancolia mal
dissimulada (a “meditação”), que desembocam na noite e nas águas oleosas do
Tietê ou, nos termos da “Louvação da tarde”, “É quase noite”, em cujo final já se
anuncia o início de “A meditação sobre o Tietê”:
A meditação feita durante o rodar do automóvel termina
com duas alusões que resumem bem o movimento do poema
entre dois planos (sonhado e real; céu e terra). Chegando, o
passeante vê a máquina de beneficiar café marca São Paulo ainda
arfando do trabalho como um animal. Mas contrastando com este
traço da nossa era mecanizada, no alto do espigão é a velha lua
165
Idem, ibidem, pp. 240-241.
149
romântica de sempre que sanciona o devaneio, porque favorece a
transformação da realidade pela poesia. E para situar no
Modernismo a sua aparição, ela é compara a um gavião
empoleirado na árvore seca (…)
166
A síntese de elementos tão divergentes é precária e passageira, constitui-
se apenas no estreito âmbito da poesia. Ao término do devaneio automotivo pelo
cafezal, a noite lentamente vai se impondo da mesma forma que a consciência de
que as propostas iniciais do Modernismo se confrontarão com a dura realidade
dos novos tempos. A voz lírica dissimula precariamente a própria melancolia, ao
perceber a falência de suas ilusões. Na “Louvação da tarde”, a voz lírica deseja
acreditar nessa síntese:
“Louvação da tarde” mostra como o sonho-devaneio
promove a fuga provisória do real e como nasce dele o sonho-
construção, que é o processo de que resulta a obra literária. Esta
é sonho, porque deriva da fantasia; mas é realidade, porque
importa num ato positivo de fatura. A obra feita liga o mundo da
fantasia (tarde) ao mundo real, mostrando que são solidários e
interdependentes. Por isso, “Louvação da tarde” é uma oscilação
constante entre eles, e desse jogo vai surgindo o poema.
167
A oscilação entre esses dois pólos opostos, a realidade e a criação poética,
só pode criar uma síntese provisória na verdade plena de negatividade. A criação
poética revela — por meio da idealização — a ausência do sonhado na realidade,
uma vez que sua existência só é possível no devaneio, marcado pela consciência
crepuscular do mundo (“É quase noite”). O poema é atravessado do princípio ao
fim por uma dissonância mal disfarçada que condiciona, internamente, todos os
seus elementos constitutivos. A consciência do poeta gira no vazio ao perceber
que o desejado não é o realizado e que a possibilidade de sua realização é cada
166
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas Cidades,
1998, p. 276.
167
Idem, ibidem, p. 277.
150
vez mais utópica, mesmo no centro do discurso poético que tem de enfrentar uma
negatividade crescente:
Percebemos então que o poema assenta sobre uma base
de paradoxos, porque a tarde é devaneio gratuito, mas
reservatório de trabalho; é repouso e é construção. O movimento
da fatura reúne os dois pólos e extrai deles a unidade pela fusão
dos contrários. Este paradoxo afina como o da forma e do gênero:
o poema de um modernista feito em decassílabos; a meditação
romântica reinventada para exprimir uma situação atual.
168
O poema é regido por um fluxo de paradoxos, por um sistema de
oposições, mal disfarçado pela voz lírica, o que revela justamente o grau de
consciência dos impasses insolúveis com que se defronta. A vontade “hercúlea”
do poeta não é suficiente para suprir o que é fundamental para a sua existência
plena. O “eu” não pode independer do “outro”, sempre no seu horizonte de
afirmação e definição. A poesia não pode repor o que o mundo não fornece e, ao
que indica, não fornecerá nunca. Entretanto o que o poema afirma é o contrário
desse movimento, demonstrando o quanto a consciência do poeta irá se alterar
nas décadas seguintes:
Paradoxo talvez mais importante do ponto de vista de uma
estética do Modernismo é o que contrapõe o automóvel,
instrumento da velocidade, à quietude vesperal do devaneio. Mas
aqui, em vez de destruí-la pela rapidez do percurso, ele ajuda a
construí-la. Neste poema, tudo o que o Futurismo queria revogar
(inclusive o “chiaro di luna”) está no cerne do discurso, e em lugar
da velocidade domesticar o mundo é o mundo que domestica a
velocidade, submetendo-a ao ritmo natural. O automóvel perde as
características de máquina e adquire um toque de vida, facilitando
a citação quase paródica dos traços românticos. E os dois
movimento se enlaçam, porque o tema de “Louvação da tarde”
parece transcender o tempo, na medida em que encarna também
168
Idem, ibidem, pp. 277-278.
151
o andamento da produção literária, mostrando que Mário de
Andrade era capaz de passar do modernismo propriamente dito à
modernidade, que recupera a tradição ao superá-la.
169
Progressivamente, ao longo da década de 1920, a consciência dos
impasses avança e transita de uma visão inicial “ingênua” — baseada na crença
de que seria possível ultrapassar o atraso nacional e de que a poesia teria uma
grande contribuição a dar na construção de uma nova realidade — para uma
consciência melancólica da impossibilidade de concretização desse projeto. Com
o avançar dos tempos, as ilusões vão se desnudando e o amplo projeto nacional
vai se infiltrando da consciência de classe, o conflito prevalece sobre a síntese.
Nesse universo particular, insere-se a poesia final de Mário de Andrade.
Se na “Louvação da tarde” o elemento percorrido pelo poeta é a terra, em
“A meditação sobre o Tietê” o elemento fundamental é o rio (a água) e seu fluxo
ao mesmo tempo imóvel e visceralmente dinâmico: espelho da própria consciência
da voz lírica. Em “A meditação sobre o Tietê”, o poeta está imóvel e o
deslocamento é atribuído à natureza simbolizada no fluir permanente do rio. O rio
flui, o poeta permanece e, entre eles, há a angústia infiltrada em todas as coisas.
Há, dessa forma, uma antítese importante entre os dois poemas aproximados: a
atmosfera solar é substituída pela noturna.
A água é elemento primordial no poema e sua primeira ocorrência explícita
se encontra na imagem: “Água noturna, noite líquida”
170
. A fusão do aquático com
o noturno — céus e água, noite e rio se confundem numa espécie de “antigênesis”
— está na base de toda a imagética subseqüente do poema. A indistinção dos
elementos aponta para um universo de valores mesclados em que o “eu“ e o
“outro” também se (con)fundem. Os contornos do mundo subjetivo se encontram
embaralhados.
A água turva do rio pode ser tanto símbolo da consciência torturada do
poeta moderno quanto do inconsciente tornado visível. Daí decorre o fluxo
169
Idem, ibidem, p. 278.
170
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 386.
152
“alucinatório” — em estado de transe — das imagens que percorrem o poema (“O
ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas...”
171
), que lenta e pesadamente
vão estabelecendo o ritmo incessante da meditação poética. Trata-se, pois, da
expressão de um mundo pesadelar.
“A meditação sobre o Tietê” se inicia com uma seqüência de três versos
inesquecíveis, que, certamente, estão entre os mais representativos já produzidos
pela moderna poesia brasileira. Neles, o poeta encontra a fusão perfeita dos
elementos formais e temáticos altamente depurados. Por essa razão, seu poder
de síntese e de materialização do conflito interior da voz lírica lança de chofre o
leitor no labirinto conflituoso presente em todo o poema:
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
172
A descrição do rio em terceira pessoa, a ocultação da voz lírica na
prosopopéia “o rio / Murmura...” têm como efeito a imediata supressão da
distância entre a voz lírica e o leitor, inadvertidamente arrastado pelo fluxo
alucinatório, pesadelar e mediúnico do poema, cujo centro é a consciência do
limiar da morte.
Após essa introdução, surgem as “soturnas sombras”, rondando e
oprimindo a consciência do poeta e se desdobrando na seqüência de
fantasmagorias que o assombram: a cidade, os homens, os amigos, os inimigos,
as “Juvenilidades Auriverdes”, os “donos da vida”, os políticos, os plutocratas, as
instituições intelectuais da cidade, a própria demagogia etc.
A negatividade constituinte das imagens do poema é irrefutável. A voz lírica
se debate numa espécie de beco sem saída, labirinto existencial que se adensa
em direção à morte. Por paradoxal que pareça, a morte é contestada numa
admirável estrofe do final do poema. Nessa passagem, estão presentes a única
171
Idem, ibidem, p. 386.
172
Idem, ibidem, p. 386.
153
certeza e a única positividade do texto: a capacidade do poeta de transcender à
própria destruição pelo poder da poesia — tema presente, como vimos, em
“Louvação da tarde” :
Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!
173
Todavia essa certeza não é suficiente para produzir a síntese ainda
afirmada em “Louvação da tarde”. No penúltimo poema da Lira Paulistana,
prevalece, ao final, o tom de negatividade e de dissolução que o percorre do
começo ao fim:
Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.
174
A partir dessa descrição sumária do poema, passemos a análise detida da
seqüência de imagens que o caracteriza, buscando localizar seus modos
particulares de inflexão.
173
Idem, ibidem, pp. 395-396.
174
Idem, ibidem, p. 396.
154
2
O poema e suas imagens
175
O espelho negro e uma ronda de sombras
Quando, numa tentativa enérgica de fitar de frente
o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos
olhos, como uma espécie de remédio, manchas
escuras: inversamente, as luminosas aparições dos
heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara,
são produtos necessários de um olhar no que há de
mais íntimo e horroroso na natureza, como que
manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite
medonha.
176
Analisaremos “A meditação sobre o Tietê”, objetivando estabelecer uma
visão geral de seu complexo fluxo de imagens e símbolos que possa permitir uma
interpretação mais profunda de seus eixos temáticos mais importantes.
Na abertura do poema, precisamente na sua primeira estrofe, manifestam-
se alguns elementos fundamentais para a compreensão do poema em sua
totalidade. Uma das imagens centrais do poema é, com certeza, a que aponta a
fusão da água e da noite:
É noite. E tudo é noite.Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta
175
Em função da extensão, o poema completo se encontra transcrito no anexo II deste trabalho.
176
Nietzsche, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, 63.
155
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. (...)
177
A imagem da fusão da água e da noite apresenta ressonâncias bíblicas,
pois inverte o processo de criação descrito no Gênesis:
Primeiro relato da criação — No princípio, Deus criou o
céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas
cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as
águas.
Deus disse: "Haja luz" e houve luz. Deus viu que a luz
era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz
"dia" e às trevas "noite". Houve uma tarde e uma manhã:
primeiro dia.
Deus disse: "Haja um firmamento no meio das águas e
que ele separe as águas das águas", e assim se fez. Deus fez
o firmamento, que separou as águas que estão sob o
firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus
chamou ao firmamento "céu". Houve uma tarde e uma manhã:
segundo dia.
Deus disse: "Que as águas que estão sob o céu se
reúnam numa só massa e que apareça o continente" e assim
se fez. Deus chamou ao continente "terra" e à massa das
águas "mares", e Deus viu que isso era bom. (...)
178
.
A passagem do informe ao formado, do caos à ordem preside a criação
do mundo, pressupondo o claro limite entre os elementos. A fusão dos
elementos — presente nas expressões “Água noturna, noite líquida” —
caminha em direção contrária e simboliza a volta ao caos, ao “incriado”. São
formas evanescentes antecipando a presença da morte, pois se perfazem
desfazendo-se. Nesse universo não há limites precisos entre as coisas e os
177
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 386.
178
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000, p. 31.
156
seres, o que impede a nítida percepção do “outro”, apontando, novamente,
para o estado de derrelição do poeta no mundo.
Essa imagem inaugural do discurso poético presente em “A meditação
sobre o Tietê” já apresenta um sistema baseado nas figuras da
indeterminação — na incapacidade de separar claramente o limite entre as
coisas e os seres —, que percorrerá todo o poema e contaminará o seu
sistema imagético: bichos, coisas, símbolos, etc. Tudo é marcado pelo
indeterminado.
Outra manifestação fundamental desse processo se dá justamente na
permanente alteração do tom do discurso oscilando entre o crítico-irônico e o
emotivo-sentimental, o que produz, como efeito, um permanente movimento
entre o distanciamento crítico necessário à leitura e a adesão subjetiva que o
poema impõe. Ao mesmo tempo discurso esclarecedor e medusante, o poema
hipnotiza o leitor que corre o risco de se perder no labirinto da enunciação.
A fusão e a oscilação do tom estão diretamente associados ao tipo de
imagem que a voz poética assume como forma de representar a si mesma: ao
mesmo tempo ela elucida criticamente o percurso existencial marcado pela
negatividade e lamenta o que se constitui como impedimento do ser no
sentido amplo do termo. Voz “iluminista” de um “iluminado”, sua dicção é a da
possessão lúcida e o seu registro, o do transe acordado. Daí decorre o caráter
ritualístico da maioria das imagens que percorrem a meditação.
Ainda na primeira estrofe, a voz lírica faz referência à verticalidade “interior”,
recuperando — com modificações — um verso que se encontra no poema “Dor”,
de A costela do Grã Cão: “Eu venho das altas torres, venho dos matos alagados”.
Em “A meditação sobre o Tietê”, encontramos: “Água noturna, noite líquida,
afogando de apreensões / As altas torres do meu coração”. Lafetá ao analisar a
imagem presente no poema “Dor” tece um comentário importante sobre sua
dimensão mítico-mágica:
...
o sintagma "Eu venho das altas torres" foi retirado por
Mário de Andrade de cantos pertencentes à feitiçaria brasileira
— mais precisamente, dos versos iniciais de linhas do catimbó,
157
versos que servem como invocação e também como
apresentação dos "mestres" que devem descer às sessões. Em
Música de Feitiçaria no Brasil ele registrou duas vezes a
expressão, em duas linhas diferentes (de Luís dos Montes e de
Manuel Cadete). A linha de Luís dos Montes diz assim:
“Eu venho de altas torres
Do reino de Juremá,
Que eu me chamo Luís dos Montes
Trabáio com Vajucá,
Com três galhinhos de alecrim
E os três reis orientais!
Preciso eu dum mestre
Para me ajudá!
— É o Mestre Luís dos Montes
De jurema e Juremá!”
Transcrevi o texto para que o leitor possa comprovar a
oportunidade e o alcance do aproveitamento feito por Mário de
Andrade. (...) O que é aproveitado é menos a expressão
transcrita quase literalmente do que o tom sacralizante que
resulta do modo de construir — imaginação estrutural, como tem
notado a crítica do escritor
179
.
O catimbó é um rito amazônico associado ao Deus-menino, Mestre Carlos,
figura explícita no poema “Brasão”, sobre o qual Mário de Andrade afirma “meu
grande sinal”. A referência ao verso retirado do ritual de incorporação (Catimbó)
assinala o espaço ritualístico em que “A meditação sobre o Tietê” se move.
O termo “banzeiro” remete à idéia de confusão e de perturbação da ordem
e ao movimento violento das águas do rio (“pesada e oliosa”): água e óleo, em
princípio dois elementos que não se misturam, estão fundidos na imagem. O
elemento predominante é a opacidade presente na substância fluvial que, ao
mesmo tempo em que turva a visão, funciona como espelho em que se projetam
179
Lafetá, João Luiz. Op. cit., pp. 125-126.
158
as imagens da cidade e do mundo interior da voz poética. O espelho negro,
paradoxalmente, absorve e reflete a luz emanada das coisas. Há uma espécie de
epifania demoníaca, visto que a fonte da luz são as trevas.
Outro aspecto merece destaque: óleo pode ser compreendido como
metonímia do mundo moderno, particularmente da produção capitalista,
contaminando o elemento natural e ratificando a idéia de morte.
Após a imagem da fusão do noturno e do aquático, e do aquático com o
oleoso, aparece a dos dinossauros (seres pré-históricos) que “caxingam” pela urbe
moderna apresentando também o caráter revelador das contradições que
assombram a voz lírica
180
. A imagem é síntese: o “mais arcaico” e o “mais
moderno” estão justapostos de maneira insólita. Seu poder de revelação é
surpreendente, pois demonstra que o passado permanece e retorna
insistentemente. Novamente, tem-se uma espécie de eterno retorno do mesmo
que funda a má infinidade do processo histórico, um movimento de báscula
anunciando os impasses insolúveis de um tempo estático, apesar da aparência de
dinamismo: o fluir incessante do rio e o movimento da cidade. Esse jogo de
imagens tem o poder de mimetizar de forma profunda os próprios impasses
históricos do país submetido ao ritmo que justapõe e fusiona dois “regimes”
produtivos e subjetivos antagônicos (“escravidão” e “capitalismo”), de acordo com
as concepções de José Antônio Pasta Júnior anteriormente citadas.
Na seqüência dos dinossauros, aparecem os “bichos blau” e os “punidores
gatos verdes” saltando de arranha-céus. Nas duas imagens, destaca-se a
presença do cromatismo (“blau” e “verdes”). É oportuno observar que a cor “blau”
180
Num filme recente intitulado “Encontros e desencontros”, de Sofia Copolla, há uma cena muito
semelhante a essa. Um decadente ator americano chega a Tóquio para gravar alguns comerciais
para a televisão japonesa e conhece uma jovem recém-casada e mergulhada no tédio. Durante um
passeio pelas ruas da metrópole, ela se defronta com a cidade da hiper-mídia e vê projetado —
num imenso e moderno painel — a imagem virtual em tamanho real de um dinossauro que passeia
pela urbe moderna. A imagem é em si bastante eloqüente das crises modernas da subjetividade. O
dinossauro é o mais “primitivo”, o “arcaico”, o “estranho”, “outro”, o “incognoscível”, que permanece
com imagem fantasmática de um tempo circular e que sempre retorna como mal-estar inexplicável.
159
corresponde na heráldica ao tom “azul”
181
. A cor “verde” também possui
simbolismo ligado ao universo de significação da heráldica que tem, no poema
“Brasão”, de A costela do Grã Cão, seu momento máximo na obra de Mário de
Andrade.
Sobre o cromatismo presente no Livro Azul, Lafetá explica que os tons
esmaecidos presentes no Livro Azul estariam associados ao universo das
imagens evanescentes caracterizadoras do impulso regressivo próprio dos
poemas daquela fase de Mário de Andrade. O apagamento da individualidade está
cifrado nesses tons que gradualmente avançam até a reflexão de todas as cores,
que é o branco (ausência de cor
182
): o “tom mais doirado”, presente no “Girassol
da Madrugada”; o “cinza claro”, em “O Grifo da Morte” e finalmente o “quase
branco”, no “Rito do Irmão Pequeno”
183
.
No poema “A meditação sobre o Tietê”, aparecem o “blau” e o “verde”. Além
disso, a presença da noite — associada à escuridão — remete à absorção de
181
A palavra “blau” em alemão significa também “falar a esmo”, como um bêbado. Informação
fornecida por Telê Porto Ancona Lopez.
182
Rigorosamente o “branco”, o “preto” e o “cinza” não são considerados cores, mas valores.
Sobre o tema consulte o livro de Israel Pedrosa, Da cor à cor inexistente. (Ver bibliografia).
183
A esse respeito, considere a seguinte declaração de Mário de Andrade. “Eu desejei mesmo um
certo olimpismo, uma certa sobreelevação acima dos tumultos terrenos, desprezando o terra-
a-terra ... Deu no tom azul dos ‘Poemas da Negra’ e da ‘Amiga’ no tom mais doirado do
Girassol e quase branco do ‘Rito do Irmão Pequeno’. E acabou dando este cinza claro do
‘Grifo da Morte’, em que só o último poema, certamente o menos bem feito e talvez o melhor,
se movimenta um bocado e atinge alguma vivacidade comovida’. É interessante o modo de
assimilar a dicção dos poemas a cores, assinalando a cada um deles uma tonalidade diferente,
mas com algo em comum: são todas suaves e desmaiadas, cores que não agridem. O
olimpismo do poeta, sua ‘sobreelevação acima dos tumultos terrenos’, busca a tranqüilidade
do céu; ao mesmo tempo em que se trata de uma descida ao interior do ‘eu’, trata-se também
de uma ascensão aérea, de uma espiritualização do corpo que se, transforma em luz. O título
privilegia o azul (que aliás não se refere a qualquer dos poemas do livro) porque esta é realmente
a cor simbólica da serenidade, e dela derivam as outras: aquecida pelo sol do amor, ganha um
‘tom mais doirado’; diluída pela, água vasta do Amazonas, vira ‘quase branco’; descolorida pela
aproximação da morte, transforma-se em ‘cinza claro’. “ Apud: Lafetá, João Luiz. Op. cit., pp. 165-
166.
160
todas as cores, que é o preto. Os tons presentes no poema caminham em direção
oposta da neutralidade cromática, pois o preto é, no espectro cromático, o oposto
do branco, representa a síntese de todas as ondas cromáticas. Ele é um espelho
“negativo”, um espelho “negro”, porque absorve a luz impossibilitando a formação
de qualquer imagem: Narciso sem reflexo — eis o máximo da negatividade. As
“águas oliosas” do Tietê impedem que o poeta veja nitidamente seu reflexo nas
águas noturnas: a crise da identidade atinge o ápice associando ao estado de
derrelição.
Além disso, para Victor Knoll, ao analisar o poema “Brasão”, os “bichos
blau” são uma representação das aristocracias tradicionais fundadoras de São
Paulo e do Brasil. Presentes desde o período de colonização do país, elas
permanecem como ponto de referência para a compreensão do próprio processo
de formação da nação. Para Lafetá, os “punidores gatos verdes” representam, por
sua vez, os desejos inconfessos de um erotismo torturado e regido pela pulsão de
morte, são expressão, no imaginário do poeta, da tanatização do desejo erótico
em relação direta com os impedimentos profundos do ser.
Nessa complexa primeira estrofe e ao longo do poema, enigmaticamente,
aparece a palavra “flor”. Na maioria das ocorrências, ela se encontra emparedada
entre pontos ou separada dos outros elementos sintáticos por vírgulas, como se
estivesse desconectada do que a antecede e do que a sucede, construção
próxima do anacoluto.
“Flor” é uma das mais velhas metáforas do amor e da poesia. No fluxo do
poema, esse processo metafórico se especifica como os atributos que separam o
poeta dos outros homens e, principalmente, dos “donos da vida”. O isolamento do
vocábulo em meio ao fluxo da meditação amarga e melancólica é a mais
contundente imagem da solidão do poeta moderno, pois para ele a vida se
converteu em experiência negativa marcada pela incomunicabilidade
intransponível: a “insuficiência fatal do Outro”, como Mário de Andrade registra em
carta a Carlos Drummond de Andrade
184
.
184
Ver o anexo IV.
161
Na seqüência das imagens citadas, aparece novamente o reflexo da cidade
nas “águas oliosas” e anuncia-se “um caminho de morte”. Repete-se o bordão “É
noite. E tudo é noite”. O poeta interroga novamente o rio e deseja saber para onde
ele o leva:
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...
185
Até as primeiras décadas do século XVIII, o rio chamava-se Anhembi, que,
segundo Sérgio Buarque de Holanda, significa “rio das Anhumas ou das Anhimas”:
... aves que causavam espanto ao europeu com seu
unicórnio frontal, os esporões das asas, os pés
desproporcionalmente grandes e o grito que, segundo o Padre
Anchieta, fazia pensar num burro zurrando.
186
O Anhembi — pássaro esquisito — era muito procurado pelos caboclos por
ser considerado remédio para todos os males: o unicórnio, os esporões e os ossos
eram usados no preparo de várias mesinhas. Para Teodoro Sampaio Anhembi
queria dizer “perdiz”, ave também comum nas margens do rio. Afonso de Freitas
traduz o termo tupi como “rio de veado”.
Somente em 1748 aparece a designação Tietê, segundo José Gonçalves
Fonseca e Teodoro Sampaio, nome de outras duas aves de suas margens: o Teté
185
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 387.
186
Ohtake, Ricardo.O livro do rio Tietê. São Paulo: Estúdio Ro, 1991, p. 14.
162
e o Tié, respectivamente. Teodoro Sampaio levantou outra possibilidade que seria
“rio bastante fundo” significando “rio verdadeiro”, por ser o primeiro curso de água
apreciável que o desbravador encontrava ao penetrar no sertão
187
.
Etimologicamente, o nome do rio deriva da fauna que habita suas margens
ou do aspecto de suas águas, a profundidade simbolicamente associada à
verdade. Interpretação que agrega uma dimensão importante no contexto do
poema: as águas do rio são a fonte da verdade, ainda que tenebrosa. A
profundidade também remete ao caráter opaco do rio.
Em conexão estreita com essas etimologias está o processo de
povoamento de suas margens que implicou a fusão — tão característica do Brasil
— de vários universos culturais, em particular o amálgama do imaginário indígena
com o do colonizador europeu:
Na alimentação, no uso de redes, nas formas de pescar,
na fabricação de potes, na confecção de instrumentos — em tudo
o indígena foi deixando seu traço, e não só no mundo material. Se
seu universo místico era mais difícil de ser assimilado, nem por
isso suas representações sobre a terra sem males e sobre o
paraíso, a criação e o renascimento, o dilúvio e a origem do fogo,
deixaram de povoar a cabeça do colonizador que descia pelo
Tietê.
188
As manifestações folclóricas e, principalmente, as práticas religiosas serão
marcadas pelo secular processo de aglutinação dessas diversas fontes culturais,
com destaque para o misticismo indígena em confronto com o europeu. No
processo dá-se uma fusão paradoxal de elementos pagãos e cristãos
inexoravelmente sublimados na órbita da cultura caipira paulista:
Algumas das mais remotas manifestações do folclore
paulista tomaram forma na área do antigo povoamento do Tietê.
187
Todas as informações sobre o nome do rio foram retiradas do livro citado na nota 183.
188
Ohtake, Ricardo. Op. cit., p. 81.
163
De lá vem história de mães d’água, que levantavam grandes
ondas e atraíam os navegantes ao fundo do rio; de cobras
gigantescas (...); de almas penadas de sertanistas sumidos em
redemoinhos ou mortos por doenças, flechados por índios,
estraçalhados por onça ou picados de urubu, que nas noites de
bruma subiam e desciam o rio em embarcações misteriosas; de
religiosos, como o Padre Anchieta, que teria sido resgatado seco e
rezando sentado sobre uma pedra no fundo rio (...).
189
Violência, doença, morte, despedaçamento, dados da bruta realidade
histórica advinda do processo de povoamento da terra paulista, têm como
correlato simbólico “mães d’água“, “almas penadas”, “religiosos católicos”.
Estamos diante do esquisito imaginário metafísico do Brasil em que as potências
sobrenaturais de alguma maneira exorcizam, em especial para os pobres, os
horrores das truculentas relações de dominação, que desde a raiz estiveram
presentes no processo de formação da nação:
Aos poucos, essas histórias foram se incorporando à
sociedade que se expandia à beira do rio, transformando-se em
lendas e integrando-se às manifestações locais da cultura caipira
em formação — cultura essa, permeada de elementos mágicos e
místicos, de origens indígenas, católicas e próprias, para a qual o
mundo natural era povoado de assombrações, lobisomens, mulas-
sem-cabeça, sacis e outras entidades.
190
Portanto o Tietê é um rio que apresenta forte apelo no imaginário paulista e
está sobrecarregado com dimensões místico-mágicas. O seu universo é
ritualístico e possui uma alta carga simbólica no imaginário do poeta: o pai Tiete é,
sob vários aspectos, a síntese contraditória do próprio país e da identidade
conflituosa da voz lírica. Todos os elementos do rio remetem diretamente aos
conflitos apresentados em “A meditação sobre o Tietê”
189
Idem, ibidem, p. 82.
190
Idem, ibidem, p. 82.
164
Uma das chaves mais importantes para a compreensão do poema é, então,
a direção do curso do rio Tietê, considerado um rio endógeno, contraria a
tendência “natural” dos rios — desaguar no mar. O Tietê corre em direção
contrária, invertido, pois nasce na serra e caminha para o interior do país. Por
esse motivo, é um curso de água associado aos Bandeirantes e ao início da
colonização do Brasil. É um rio que une civilização e barbárie. Ele afasta,
portanto, o poeta das aventuras oceânicas e atlânticas, obriga-o a mergulhar nas
duras realidades da terra “turrona paulista”. É necessário repetir que ele divide
rigorosamente ao meio o estado de São Paulo na direção Leste-Oeste,
representando também uma cisão, o que espelha o estado e o país: contradição
insolúvel
191
.
Finalizada a primeira estrofe, a voz poética afirma a superação da
“felicidade” e da “dor” e enuncia várias imagens associadas a animais e seres
reais e / ou míticos. Todos esses símbolos possuem em comum a duplicidade de
significação que repõem a idéia do indeterminado:
Já nada me amarga mais a recusa da vitória
Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
A me reconciliar com a dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.
Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor
Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por
Estas minhas próprias mãos que me traem,
Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,
Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada
Se perdeu em cisco e polem, cadáveres e verdades e ilusões.
192
191
Ao final deste trabalho, na Iconografia, encontra-se a reprodução do mapa do estado que
permite visualizar o dado referido.
192
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 387.
165
A aranha é um animal que apresenta um simbolismo negativo e, por suas
artimanhas e veneno, é considerado um ser associado às potências malignas e
mortíferas. Por isso muitas vezes é oposta à laboriosa e benéfica abelha. No
entanto a aranha também pode simbolizar o esforço permanente, pois ela tece a
própria teia que a sustém e, como o poeta afirma: “Eu que decido”. É necessário
assinalar que a oscilação constante do significado dos símbolos sempre os remete
à indeterminação. Nos manuais de simbologia, tudo se reverte facilmente no seu
oposto, produzindo um regime em que o “mesmo é o outro”, centro do fluxo
imagético materializado em “A meditação sobre o Tietê”.
Outro esclarecedor exemplo é a referência às mãos, pois ao mesmo tempo
em que são os instrumentos do trabalho, são os agentes da traição do poeta por si
mesmo. A positividade se contamina de negatividade e não há como separar um
elemento do outro, o que resulta em experiência dolorosa do próprio ser: a cisão
se presentifica e a consciência reflexiva se auto-martiriza. O poeta desiste da
“felicidade deslumbrante” e se vê obrigado a se “reconciliar com a dor humana
pertinaz”.
Nem mesmo o direito de ser melancólico o poeta se arroga, pois sabe ser
sua função anunciar o que virá e, em especial, o homem que fatalmente há-de
nascer depois de tanto dor e desilusão:
Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,
Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,
Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!
Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,
Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado
De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,
Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,
Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,
À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!
Eu desisti! Mas do ponto entre as águas e a noite,
Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,
De que o homem há de nascer.
193
193
Idem, ibidem, pp. 387-388.
166
Nos versos que seguem, surge uma comparação da poesia (versos) com
um animal altamente simbólico, a serpente:
Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando
As cordas oscilantes da serpente, rio.
Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.
194
Eis outra imagem ambivalente, pois a serpente, ao mesmo tempo em que
possui um simbolismo negativo, apresenta um simbolismo positivo. Animal
demoníaco, associa-se ao crime fundador: o pecado original. Sua proximidade
com o curso do rio mostra que as águas estão envenenadas. No entanto, o
mesmo serpentear simboliza a forma sinuosa dos versos livres, que mimetizam o
rio. Nas águas do Tietê, rio sinuosíssimo, o poeta vê refletida a malignidade do
mundo, ao mesmo tempo em que medita sobre as fontes dela. Sem o rio e suas
imagens, seria impossível o poeta dar vazão ao seu balanço negativo da
existência.
A sinuosidade e a opacidade natural das águas do rio são investidas de
caráter simbólico e estão diretamente a associadas ao sentimento de morte. Há
nessas águas algo de labiríntico e de estranho. O rio de alguma forma representa
paradoxalmente o conhecido que se desconhece, o estanho próximo.
Do mesmo modo que a serpente é ambígua, o verbo poético também o é:
eles são como “fármacos”, curam e matam, esclarecem o mal e o tornam evidente.
A consciência do mundo nos salva e nos leva à perdição. Por conseguinte o poeta
moderno, em estado de derrelição, oscila entre as “luzes” e as “trevas”. Seu
discurso é marcado pela possessão ritualística que invoca os saberes mais
primitivos e arcaicos e revela a negatividade intrínseca ao mundo moderno.
No âmago dessas contradições, nasce a próxima e complexíssima
passagem do poema em que a voz lírica contempla o “Boi paciência”, cujo
simbolismo é altamente expressivo na obra de Mário de Andrade:
194
Idem, ibidem, p. 388.
167
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal
195
.
O simbolismo do “Boi Paciência” foi amplamente estudado por Victor Knoll,
no livro Paciente Arlequinada. Segundo o estudioso, essa imagem está associada
ao universo particular da cultura brasileira, com especial destaque para a cultura
popular e folclórica, por meio da festa do “Bumba-meu-boi”, cujo ritualismo implica
tanto a dança quanto o canto — tão apreciáveis ao poeta.
Dança e canto são elementos marcantes do universo poético do escritor
paulista e estão, segundo o crítico, fortemente associados à dimensão dionisíaca,
de forte apelo no imaginário de Mário de Andrade.
Durante a festa do boi — animal identitário, agregador e coletivizador —, o
momento culminante é a morte, o despedaçamento e a sua ressurreição, que
traduz a possibilidade de uma comunhão profunda do homem com as força
essenciais da natureza. Esse ritual de matriz pagã remete às fontes míticas
primevas, em conexão como vários outros mitos universais de que Dionísio e
Orfeu são apenas alguns exemplos.
195
Idem, ibidem, p. 388.
168
Ao lado do simbolismo arquetípico que ritualiza as forças da natureza no
seu eterno retorno — cuja expressão mais visível é o ritmo das estações —,
encontra-se outro simbolismo mais restritivo ligado diretamente à imagem do povo
brasileiro: o Boi seria o correlato do antigo Bandeirante, do primitivo povoador
desta terra, que fez do Tietê um condutor seguro para a penetração no território
nacional.
O boi, em substituição do Bandeirante é, segundo Knoll, o elemento de
unidade nacional, representa o “pathos” do brasileiro, a sua paixão. Para Mário de
Andrade, o boi é uma verdadeira obsessão do imaginário nacional, uma das
imagens em que o brasileiro inconscientemente se reconhece como povo.
Mais uma imagem ambivalente estrutura o universo da indeterminação que
permanece no centro do imaginário do poeta e reproduz o imaginário da nação,
pois o boi é constantemente comparado ao touro, de quem se diferencia pelo
caráter domesticado. Dessa forma, enquanto os dois são símbolos de fertilidade e
força, o boi é símbolo de “paciência”, de passividade e de espera. Sujeito
“paciente”, recai sobre ele a ação do mundo, mas não reage. Animal marcado pela
força e pela domesticação, ele é o povo brasileiro e, por analogia, ele é o Brasil
com quem o verbo poético se identifica e desidentifica-se incessantemente. O
caráter indeterminado do Brasil, do seu povo e do próprio poeta aparece na
imagem das “águas completas no bem e no mal”.
O Boi é o povo brasileiro, o país e o poeta. Sua morte implica diretamente
os três elementos da equação e revela a intensidade da disjunção da voz poética
consigo mesma: a auto-negação é evidente. A ligação do “Boi Paciência” com o
Brasil é visceral.
O boi é liquefeito pelo Tietê, rio de significação dupla, pois, se suas águas
estão envenenadas, é da identificação com elas que nasce “o cio de amor” que
move o poeta:
Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são águam que se beba, eu descobri!
169
E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela
Engruvinhado de dor que não se suporta mais.
Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!
Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!
Nordeste de impaciente amor sem metáforas,
Que se horroriza e enraivece de sentir-se
Demagogicamente tão sozinho! Ó força!
Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,
Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me
Demagogicamente tão só.
196
Paradoxalmente, o “cio de amor” é o que salva o poeta e o arrasta à
perdição, “fármaco” que se encontra no cerne de todas as contradições da voz
lírica, do povo e do país — contradições insolúveis indicando o ritmo marcado pela
circularidade infernal de que as águas do rio, em incessante fluir, são o símbolo
mais notório.
O movimento invertido das águas do rio paulista constitui-se no símbolo
mais perfeito da morte, em “A meditação sobre o Tietê”: as águas estão podres, a
vida está podre. Os oceanos distantes são inatingíveis.
O intenso estado de derrelição da voz poética revela a separação
irreconciliável do eu com o mundo. O sentimento de solidão é investido da carga
da demagogia, pois se baseia na hipertrofia do eu, que apresenta resquícios
românticos inadequados à dura crítica que a voz poética faz do mundo: o poeta
não se dá o direito de sentir-se sozinho.
Estamos no núcleo do poema e da crise do sujeito lírico: a ausência da
alteridade autêntica (“a insuficiência fatal do Outro”). A partir desse momento, o
poeta faz desfilar, diante dos olhos do leitor, as figuras e instituições históricas da
cidade e do país, segundo ele, marcadas pela demagogia. Até mesmo “Cristo” é
demagogia:
A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua
Si as tuas águas estão podres de fel
196
Idem, ibidem, pp. 388-389.
170
E majestade falsa? A culpa é tua
Onde estão os amigos? Onde estão os inimigos?
Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e
Os iletrados?
Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!
E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos e os línguas
Do Instituto Histórico e Geográfico, e os mu-
seus e a Cúria, e os senhores chantres reverendíssimos,
Celso nihil estate varíolas gide memoriam,
Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima
E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as
Novas ruas abertas e a falta de habitações e
Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!...
197
Tudo e todos são demagogia, inclusive o poeta e sua poesia:
Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha
De ti em tua ambição fumarenta.
És demagogia em teu coração insubmisso.
És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico
E antiuniversitário.
És demagogia. Pura demagogia.
Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.
Mesmo irrespirável de furor na fala reles:
Demagogia.
Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:
Demagogia.
Tu és em meio à (crase) gente pia:
Demagogia.
És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia:
Demagogia.
És demagogia, ninguém chegue perto!
Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto
Esperto Ciumento Peripatético e Ceci
E Tancredo e Afrodísio e também Armida
197
Idem, ibidem, p. 399.
171
E o próprio Pedro e também Alcibíades,
Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,
O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem
Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas,
E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,
Porque és demagogia e tudo é demagogia.
198
A essência da demagogia, portanto, é a política. Nas relações e nos jogos
do poder, a demagogia se expõe objetivamente. Para afirmar o caráter
demagógico de tudo, o poeta se vale de um recurso retórico tradicional: a
comparação dos homens com o reino animal — o “zoológico humano”. Surge
então uma seqüência de metáforas “piscatórias”, por meio das quais as relações
de poder se explicitam:
Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes!
São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento
Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,
Esse é um presidente, mantém faixa de crachá no peito,
Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda
O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene
Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo
E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro.
Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes,
Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas
Em zás-trás dos guapos Pêdêcê e Guaporés.
Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares,
E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;
Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,
Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada,
Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando
De dirigir a corrente com ares de salva-vidas.
E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes
Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,
E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas
198
Idem, ibidem, p. 390.
172
Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar
No bicho o corpo do crucificado. Mas as águas,
As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem
Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão.
199
Esse sistema de imagens baseado na associação entre os homens e os
peixes tem largo uso na tradição literária e retórica da língua. Sua matriz é
claramente bíblica. Nos evangelhos, é comum a associação entre o pregador
e o rebanho, o pescador e o cardume. O anel papal é chamado de “piscatório”
em homenagem a São Pedro pescador.
Na língua portuguesa, um dos momentos mais elevados desse
processo de metaforização calcado no imaginário marinho ou fluvial se
encontra no famoso “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, do Padre Antônio
Vieira. Nele é visível a carga crítica de que as metáforas “piscatórias" estão
investidas. O orador, ao começar o sermão, diz que não vai pregar aos homens,
mas aos peixes. Ele principia pelo elogio das virtudes e termina pela crítica aos
vícios dos peixes que, se comparados com os dos homens, em tudo são
semelhantes: fala-se de peixes, criticam-se os homens. E o centro da crítica é a
devoração universal, o “açougue” humano, em que os “grandes” devoram os
“pequenos”, os ricos exploram os pobres, os poderosos massacram os fracos:
Grande escândalo é este, mas circunstância o faz
ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os
grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era
menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um
grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem
os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só
grande.
200
199
Idem, ibidem, pp. 390-391.
200
Vieira, Antônio. Sermão de Santo Antônio aos Peixes. In: Obras completas do Padre António
Vieira. Lisboa: Lello & Irmão, 1959, vol. 7, p. 260.
173
A visão bíblico-moralizante de Vieira está atualizada em Mário de Andrade
na consciência irredutível da “luta de classes”. As associações entre peixes e
homens revelam ironicamente a rede de relações sociais marcadas pela
abominável dominação dos fracos pelos “os donos da vida”. A relação entre os
peixes e seus atributos oscila entre a ironia brincalhona e o sarcasmo amargo:
1. “o peixe dourado” — “presidente, mantém faixa de crachá no peito”
2. “tubarões” — “O perrepismo dos dentes” (PRP)
3. “tubarão-martelo” e o “lambari-spitifire” — armas mortíferas (spitifire, avião de
guerra inglês)
4. “boto-ministro” (político + peixe)
5. “peixe-boi” — “mil mamicas imprudentes”
6. “golfinhos saltitantes” — as “Juvenilidades Auriverdes”
7. “tabaranas em zás-trás” — guapos Pêdêcês (PDC) e Guaporés”
8. “o peixe-baleia” — (peixe + mamífero)
9. “os peixes muçuns lineares”
10. “os bagres do lodo oliva
11. “bilhões de peixins japoneses” (os imigrantes)
12. “o peixe-baleia” — “asnático”; “vai logo encalhar na margem, / Pois quis engulir
a própria margem, confundido pela facheada.”
13. “peixes mil a mil” — “brincabrincando / de dirigir a corrente, com ares de salva-
vidas.”
14. “os interrogativos peixes / Internacionais” — “vem por de baixo e por de-
banda”; “uns rubicundos sustentados de moscas,” (Referência aos comunistas).
15. “os espadartes” — “a trote chique”
16. “os mariscos, as ostras e os trairões” — “fartos de equilíbrio e / Pundhonor”
À esquerda e à direita não faltam alfinetadas do poeta às diversas formas
de máscara que a demagogia assumiu no mundo moderno e no contexto
particular do Brasil. Misturam-se na mesma rede de relações o PDC, o PRP e os
Internacionais (Trotiskistas).
174
Na seqüência, a voz lírica invoca o rio Tietê e retornam as imagens
noturnas que lhe deram início e, com elas, os “dinossauros imponentes de luxo e
diamante”.
O efeito de pungência presente no poema, encontra sua expressão máxima
e dá livre vazão à consciência do estado de derrelição da voz poética, isolada de
todo contato humano verdadeiro. Todas as coisas do mundo trazem em si
mesmas as marcas da inautenticidade e da demagogia:
Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo
A cauda do pavão e mil olhos de séculos,
Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo
Da por todos chamada Civilização Cristã...
Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,
Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.
Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens
Não querem me ajudar no meu caminho.
Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente
De luzes inimagináveis e certezas...
Eu não seria tão-somente o peso deste meu desconsolo,
A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme
Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite,
Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.
Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rio
Murmura num banzeiro. E contemplo
Como apenas se movimenta escravizada a torrente,
E rola a multidão. Cada onda que abrolha
E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto
Mirim dum crime impune.
201
Surge novo símbolo marcado pelo caráter da duplicidade e da
indeterminação: “a cauda do pavão e mil olhos de séculos”. O pavão é outro
animal, cujo simbolismo oscila entre o positivo e o negativo, pois, ao mesmo
tempo em que é símbolo da vaidade extremada e enganosa, representa a dupla
201
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 392.
175
natureza do Cristo: humano e divino. Não é sem razão que a ave citada
comparece no trecho em que o poeta faz referência explicita a “por todos
chamada Civilização Cristã...”.
A consciência da identificação / disjunção existente entre o poeta e os
homens se torna iniludível. Diante da opressão, os homens querem e desejam se
comportar como “escravos” (“E contemplo / Como apenas se movimenta
escravizada a torrente“), e o poeta se lamenta de sua impotência diante do
mundo:
Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!
Quem pode compreender o escravo macho
E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre
Entre injustiça e impiedade, estreitado
Nas margens e nas areias das praias sequiosas?
Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero
Que o rosto do galé aquoso ultrapasse esse dia,
Pra ser represado e bebido pelas outras areias
Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam
A trágica sina do rolo das águas, e dirigem
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,
Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida
Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,
Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,
E rola mansa, amansada imensa eterna, mas
No eterno imenso rígido canal da estulta dor.
202
Nesse momento, a voz lírica atinge o auge de sua angústia e de seu
desespero, lançando seu grito aos homens e aos “donos da vida”. Na passagem
que se segue, fica patente o estado de absoluto abandono em que se encontra o
202
Idem ibidem, pp. 392-393.
176
poeta diante do mundo e dos homens. Ele dá livre vazão à consciência de sua
derrelição num complexo de relações que pressupõe a impossibilidade de
qualquer interação legítima entre o artista e o mundo:
Porque os homens não me escutam! Por que os governadores
Não me escutam? Por que não me escutam
Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
203
A voz lírica continua afirmando que se o escutassem ele daria coisas
inimagináveis aos homens, apontaria para caminhos que dariam aos homens a
vida verdadeira, não o arremedo de existência em que todos patinam como se
estivessem misturados ao lodo do rio. É necessário enfatizar que, no poema
iniciado pelo verso “Eu nem sei si vale a pena”, todas as estrofes terminam com o
bordão “Isso é vida?”, síntese das contradições humanas e sociais em “A
meditação sobre o Tietê”. A vida presente está marcada pelo signo da
inautenticidade e a consciência do poeta revela a precariedade do mundo:
Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,
Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito
Metálico dos números, e tudo
O que está além da insinuação cruenta da posse.
E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam
A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem
O retrato a ólio das inaugurações espontâneas,
Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior.
E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,
Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante
De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.
Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes
De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,
Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:
Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,
203
Idem, ibidem, p. 393.
177
Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,
Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações
204
.
A capacidade excepcional do poeta de regenerar a vida danificada decorre
do fato de ele ser movido pelo mais puro amor, por isso o poeta poderia recriar o
sentido verdadeiro da vida. A partir desse momento, ele passa em revista a
própria existência e a própria obra (a “Maria”, o “Irmão Pequeno”, o “Amazonas”
etc.). O balanço que se segue é marcado pela enorme desilusão de todas as
coisas:
Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,
E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,
E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor...
Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado
Ao fogo irrefletido do amor.
...eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também
O amor do amor, Maria!
E a carne plena da amante, e o susto vário
Da amiga, e a inconfidência do amigo... Eu já amei
Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido
Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.
E também, ôh também! na mais impávida glória
Descobridora da minha inconstância e aventura,
Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei
Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!
E eu não sabia! eu bailo de ignorâncias inventivas,
E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!
Quem move meu braço? quem beija por minha boca?
Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?
Quem? sinão o incêndio nascituro do amor?...
Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,
Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda
Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece
204
Idem, ibidem, pp. 393-394.
178
Úmido nas espumas da água do meu rio,
E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.
205
Uma vez admitida a consciência de que os homens são surdos aos seus
apelos e insensíveis àquilo que ele traz como oferenda divina, o poeta com seu
“Verbo divino”, não pode mais se refugiar em sua “demagogia” particular. Em
síntese, o sentido último da existência (a poesia) se transformou numa oferta sem
destinatário. O amor e a poesia são, portanto, impotentes diante das inextricáveis
contradições da vida concreta dos homens:
Eu converteria o humano crime num baile mais denso
Que estas ondas negras de água pesada e oliosa,
Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem
Do incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.
Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.
Como é possível que o amor se mostre impotente assim
Ante o ouro pelo qual o sacrificam os homens,
Trocando a primavera que brinca na face das terras
Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!
206
Apesar de todos os esforços, persiste a noite geral. A solidão do poeta o
encaminha ao seu próprio fim e — num rasgo final de desespero e profunda
angústia diante da incomunicabilidade intransponível —, o poeta afirma a sua
força e a crença de que “... há-de haver com certeza / Outra vida melhor do outro
lado de lá / Da serra!”
207
. Oscilando entre o tom afirmativo e a profunda
consciência da inutilidade de tudo, ele conclui paradoxalmente:
Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
205
Idem, ibidem, p. 394.
206
Idem, ibidem, p. 395.
207
Versos do poema “Agora eu quero cantar”.
179
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!
Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.
208
A recusa da ”paciência” e da “esperança”, associada à consciência de que
o “boi morreu” e de que não há “renascimento”, representa o ato mais radical do
poeta e se constitui, provavelmente, no seu mais profundo divórcio com a vida. O
“boi” significa na poesia de Mário de Andrade a dimensão de “imagem identitária”
e de “animal totêmico”. O “boi morto” é o Brasil. Ao poeta só resta sua negação,
seu estado de derrelição insuperável cujo resultado só pode ser morte e
desagregação: “Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.”
A hipertrofia pletórica do eu, duplicada pela forma caudal do poema, não
produz síntese, por conseguinte, no embate com o mundo, a supressão da
subjetividade é inevitável.
208
Idem, ibidem, pp. 395-396.
180
3
O arco admirável da morte
A partir desse momento, ampliaremos a discussão sobre alguns aspectos
constitutivos do universo imagético presente em “A meditação sobre o Tietê”,
fundamentais para a compreensão dos conflitos encenados no poema, cujos
sentidos solicitam muitas vezes remissão a aspectos exteriores à matéria poética
anteriormente analisada. São elementos necessários para o entendimento da
complexa relação que a obra de Mário de Andrade estabelece com o seu
momento histórico particular.
Escrito no limiar da morte, “A meditação sobre o Tietê” é um poema
póstumo
209
. Seus três primeiros versos são marcados pelo imaginário trevoso em
que a noite aponta para a dissolução final:
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
210
Poema composto de 330 versos distribuídos assimetricamente em 20
estrofes, é um texto movido pelo desejo de totalização da experiência da voz lírica.
Há nele demanda de absoluto, que se espelha no ritmo espraiado e fluvial de seus
versos, diretamente ligado às heranças modernistas. Esses versos livres contêm
dicção elevada e pungente compatível com o tom da meditação, que, por sua vez,
insere o poema moderno na tradição, processo similar ao empregado em
“Louvação da Tarde”.
Esse é o aspecto mais importante que procuraremos desdobrar nas
páginas seguintes: as profundas mas nem sempre evidentes relações entre a
209
Ao final do poema, encontra-se a seguinte anotação com as datas que balizam a sua produção:
30-XI-44 a 12-II-45. Mário de Andrade viria a falecer pouco depois, em 25 de fevereiro de 1945,
vítima de um enfarte.
210
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 386.
181
forma moderna de expressão e as heranças da tradição literária de que “A
meditação sobre o Tietê” está saturada.
Ao lado dos aspectos formais, cinco elementos são fundamentais na sua
constituição poética: o poeta (a voz lírica), a noite, o rio / água (Tietê), a ponte
(das Bandeiras) e a cidade e seus fantasmas (a Paulicéia). A cidade aparece
registrada de forma expressionista como reflexo distorcido nas águas oleosas e
noturnas. O rio é especular, é ao mesmo tempo imagético e reflexivo.
A imagem do poeta sobre a ponte é comum na literatura e nas artes em
geral; no caso específico da arte moderna, remete imediatamente ao
Expressionismo
211
: uma das imagens mais emblemáticas desse movimento é
justamente “O grito” (1893), de Munch, em que, sobre uma ponte, vê-se a imagem
de uma figura humana deformada e em estado de profunda angústia. Do próprio
Munch, há outras obras que sugerem a mesma situação: “Ansiedade” (1894) e
“Quatro moças sobre a ponte” (1905).
No contexto da poesia das primeiras décadas do século XX, citaremos um
dos poemas mais famosos de Apollinaire, intitulado “Le pont Mirabeau”:
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu‘il m’en souvienne
La joie venait toujours aprés la peine.
Vienne le nuit some l’heure
Les jours s’en vont je demeure
Les mains dans les mains restons face à face
Tandis que sous
Le pont de nos bras passe
Dês éternels regards l’onde si lasse
Vienne le nuit some l’heure
Les jours s’en vont je demeure
211
Um dos grupos do expressionismo alemão chamava-se Die Brücke (a ponte).
182
L’amour s’en va comme cette eau courante
L’amour s’en va
Comme la vie est lente
Et comme l’Espérance est violente
Vienne le nuit some l’heure
Les jours s’en vont je demeure
Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennt
Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Vienne le nuit some l’heure
Les jours s’en vont je demeure
212
O universo emocional do poema francês é em muito semelhante ao do
poema de Mário de Andrade. Em “Le pont Mirabeau”, o eu lírico se recorda dos
amores perdidos e do tempo que se esvai sem retorno. Invade o poema a
melancolia funda, porém não tão amarga, desesperada e negativa quanto aquela
presente no modernista brasileiro. A noite também se faz presente com sua
atmosfera de desilusão e de recordação permanente da morte, destino do tempo e
dos amores.
Nos dois poemas, a referência geográfica é objetiva: Apollinaire cita uma
das pontes mais famosas de Paris (Mirabeau) e Mário de Andrade cita a das
Bandeiras, em São Paulo. A conexão lírica se estabelece com dados da realidade
objetiva presentes na experiência de seus respectivos autores. Interessa-nos,
pois, no poema de Mário de Andrade, as referências ao espaço urbano de São
Paulo.
212
Apollinaire, Guillaume. Oeuvres poétiques. Paris: Gallimard, 1956, p. 45. Um de seus poemas
mais famosos é “La chanson du Mal-aimé”, título que se aproxima do primeiro poema da Costela
do Grã Cão, “O canto do mal de amor”.
183
A ponte das Bandeiras faz parte do megalomaníaco projeto de remodelação
urbanística da capital paulista proposto pelo prefeito Prestes Maia, interventor
nomeado por Vargas durante o Estado Novo. As principais alterações no espaço
urbano de São Paulo, propostas por Prestes Maia, têm como foco de irradiação o
centro velho da cidade, pois é lá que os conflitos afloram, ou estão na iminência
de aflorar, portanto é fundamental reordenar o espaço urbano e impor novas
diretrizes para o desenvolvimento da urbe moderna.
Não é gratuito, pois, ser sobre a Ponte das Bandeiras (a antiga Ponte
Grande) — monumento paulista construído durante o período Vargas — que o
poeta se debruça para criar sua meditação.
4
A ponte das Bandeiras: simbolismo e história
Mário de Andrade, com certeza, conhecia as reformulações urbanísticas
propostas para São Paulo pelo regime varguista, visto que sua saída da prefeitura
em 1938 está intimamente ligada à ascensão de Prestes Maia. Como se sabe, o
escritor paulista, em sua atuação na Secretaria de Cultura, sempre almejou a
democratização do espaço urbano, em especial dos destinados à cultura. É de
sua autoria, por exemplo, o projeto de parques infantis para a cidade.
Já o modelo urbanístico proposto por Prestes Maia, em seu gigantismo
triunfalista, estava voltado para os problemas da circulação viária e para o
crescimento capitalista acelerado da cidade. Num trabalho recente sobre o
período, Benedito Lima de Toledo demonstra que as propostas do então prefeito
estavam em sintonia com as mais importantes e avançadas correntes do
urbanismo da época, cujo objetivo era preparar a cidade para o inevitável
desenvolvimento industrial.
Benedito Lima de Toledo, na análise das propostas de Prestes Maia, não
aborda a relação entre o aspecto técnico do projeto e o contexto político e social
184
em que ele foi elaborado. A bem da verdade, somente no último parágrafo, ao
comparar o projeto do prefeito paulista com o do arquiteto francês Donat-Alfred
Agache para o Rio de Janeiro, a questão assoma:
A execução dos planos foi iniciada na mesma época. A
Revolução de 1930 levara ao adiamento da implementação de
ambos, mas, no Estado Novo, foram retomados. Prestes Maia
assumiu a execução de seu próprio projeto, quando nomeado
prefeito de São Paulo em 1938, levando a efeito principalmente
suas propostas para circulação. O de Agache foi parcialmente
retomado durante a administração de Henrique Dodsworth (1937-
1945), ocasião em que uma nova comissão foi encarregada de
adaptá-lo às condições de então. Muitas das sugestões de Agache
foram aceitas, sobretudo as referentes à circulação e ao transporte
de superfície. Aí estão mais alguns pontos comuns entre os dois
planos, a sua época de concretização e de efetivação, sobretudo,
de suas proposições para a circulação em superfície. O
cumprimento desses planos, durante um regime autoritário, não
era contrário à maneira como os dois urbanistas encaravam a
realização de planos diretores, pois defendiam a centralização e a
participação ativa do Estado na elaboração e execução de ambos
projetos.
213
O monumentalismo dos dois projetos (Agache / A porta de entrada do Brasil
e Prestes Maia / A sala de visitas do Brasil) joga holofotes sobre os seus criadores
e suas criaturas. A grandiosidade na concepção dos prédios e dos espaços
públicos está associada ao desenho de sabor clássico. Ainda que apresentem
traços modernos característicos da época, o academicismo de sabor classicizante
predomina nos elementos da composição arquitetônica e tende ao triunfalismo.
213
Toledo, Benedito Lima de. Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo.
São Paulo: Empresa das Artes, 1996, p. 273.
185
O gosto estético público e o gosto estético privado do período parecem
convergir para o decalque, o pastiche “sem-vergonha” de estilos e dicções
estrangeiras, e deságuam numa espécie de “kitsch fascista”
214
de tom clássico.
Em outro estudo sobre a modernização do espaço urbano em São Paulo,
encontra-se a seguinte referência sobre a decoração externa da Estação Júlio
Prestes: “As fachadas, cuja composição arquitetônica foi de responsabilidade de
Christiano das Neves, foram descritas como ‘concebidas no estilo da renascença
francesa (época de Luís XVI) modernizada’.
215
A permanência dos estilemas superficiais do classicismo europeu, no
contexto do capitalismo periférico, é um fato, que a cúpula renascentista da
Catedral da Sé exemplifica.
Retornando à questão dos resquícios da cultura clássica na arquitetura
fascista, a idéia de uma nova Roma cultivada pelo nazi-fascismo europeu também
é expressão desse gosto kitsch, com fortes ressonâncias em solo nacional.
Walter Benjamin, em seu estudo sobre Baudelaire, insiste na constante
relação imaginária entre a modernidade e a Antigüidade Clássica:
A estatura de Paris é frágil; está cercada de símbolos da
fragilidade. Símbolos de criaturas vivas (a negra e o cisne); e de
símbolos históricos (Andrômaca, “viúva de Heitor e… mulher de
Heleno”). O traço comum aos dois é a desolação pelo que foi e a
desesperança pelo que virá. Nessa debilidade, por último e mais
profundamente, a modernidade se alia a antigüidade. Sempre que
aparece em As Flores do Mal, Paris carrega esta marca.
216
.
É evidente que a dimensão crítica e alegórica apresentada pela antigüidade
na poesia de Baudelaire está ausente na arquitetura de extração fascista. Ao
contrário, a dicção clássica do “kitsch fascista”, em verdade, inverte o significado
214
A expressão é de autoria do professor Valetim Facioli.
215
Kühl, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: reflexões
sobre a sua preservação. São Paulo: Ateliê / Fapesp: Secretaria da Cultura, 1998, p. 126.
216
Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense,
1989, p. 81.
186
alegórico da poesia de Baudelaire. No entanto a relação entre o arcaico e
moderno permanece latente nos dois fenômenos.
A recorrência regressiva aos modelos clássicos, tão caros ao “kitsch
fascista”, é visível no urbanismo nacional do período: a proposta do arquiteto
Agache para a entrada do Rio de Janeiro é um misto do fórum romano com o
porto de Alexandria, tão a gosto da concepção cinematográfica hollywoodiana do
período
217
.
Aqui se impõe o cruzamento do dado histórico com o processo literário: a
poesia de Mário de Andrade caminha na mesma direção de assimilação da
tradição no universo da poesia moderna. Porém o sentido é contrário, uma vez
que a incorporação se faz pelo distanciamento crítico, cuja função é apontar para
as contradições irrefutáveis do que se desejaria ocultar. O processo de
modernização capitalista na periferia do sistema produz dissonâncias e atritos de
ordem tão violenta, que a impossibilidade de síntese vai se intensificando
progressivamente.
A regressão estética pode ser usada tanto com fins fascistas quanto com
finalidade crítica: eis a inversão dialética representada pela poesia da fase final de
Mário de Andrade diante dos discursos e práticas dominantes no processo de
modernização nacional. Desde o discurso político até as práticas arquitetônicas, a
modernização conservadora deseja ocultar os atritos, as dissonâncias, em
síntese, a consciência da luta de classes. Essa negatividade social só pode ter
como resultado a crescente consciência da “insuficiência fatal do Outro”, que se
expressa na “pulsão de morte”, invadindo progressivamente a interioridade lírica
confrontada com a objetividade negativa do mundo.
A partir desse intrincado conjunto de questões, gostaríamos de destacar a
importância da ponte das Bandeiras para o projeto urbanístico de Prestes Maia e
para o poema “A meditação sobre o Tietê”:
217
Sobre esse aspecto, basta consultar as imagens reproduzidas no livro do professor Benedito
Lima de Toledo. A relação entre cultura de massa (cinema) e a poesia de Mário de Andrade é
explícita no poema “Rei dos Reis” da Lira Paulistana, anteriormente analisado.
187
A nova Ponte Grande, locada no eixo da maior artéria
paulista (Avenida Tiradentes), que além do rio se bifurca e
prolonga até a colina de Santana, será o mais importante acesso à
margem direita do Tietê. A dois passos da Estação geral, do
aeroporto e do porto fluvial, será verdadeiramente a “principal
entrada da cidade”.
Acrescentemos a circunstância de transpor o Tietê, o
curso histórico das penetrações sertanejas, e fica explicado por
que erigímo-la em “memorial bridge”, que completará ainda as
obras do Tietê, a conquista e a urbanização da várzea, — o maior
dos nossos empreendimentos municipais.
Os acontecimentos memorandos pela Ponte Grande são
as bandeiras.
218
O caráter simbólico de que a construção da ponte está revestida faz dela
um dos pontos altos da remodelação proposta por Prestes Maia. A substituta da
“Ponte Grande” possuía forte simbolismo: as Bandeiras, os Bandeirantes. Nas
palavras do interventor, o simbolismo profundo da ponte para a cidade de São
Paulo se revela associado ao simbolismo do próprio rio Tietê: ponto de partida
para os que adentravam o país durante o processo de colonização.
A antiga “Ponte Grande” era assim designada por oposição à “Ponte
Pequena”, que se encontrava no Tamanduateí. Sua origem data dos tempos da
fundação da cidade:
....
muito cedo a pequena povoação de Piratininga ultrapassou a
barreira natural que era então o Anhemby. Do histórico Colégio até
a aldeia de Sant’Ana, era pela Ponte Grande, construída com as
árvores de suas margens, que os jesuítas difundiam sua fé e seus
ensinamentos.
219
A associação com os Jesuítas aponta novamente para o caráter simbólico e
ritualístico da construção. Em função de sua importância, a “Ponte Grande”
218
Apud:Toledo, Benedito Lima de. Op. cit., p. 238.
219
Ohtke, Ricardo. Op. cit., p. 121.
188
acompanhou as transformações da cidade e, em especial, o acelerado
crescimento de São Paulo a partir das últimas décadas do século XIXI. O
processo social interferiu diretamente na arquitetura da construção:
De sua posição estratégica, a Ponte Grande acompanhou
o crescimento da cidade em sua direção e, já em ferro fundido
sobre pilares de pedra, tornou-se um dos pontos mais aprazíveis
para a população, local preferido desde de fins do século XIX para
fotografias pitorescas. (...) Com a retificação do leito do Tietê, A
Ponte Grande foi demolida. Em seu lugar foi erguida outra, em
arco de concreto, marco da modernidade paulista. A Ponte das
Bandeiras foi inaugurada em 1942.
220
Em outro estudo sobre o Tietê há fotografias mostrando o processo de
construção da nova ponte ao lado da antiga. Num desses registros fotográficos —
revelador do imaginário paulista ainda hoje associado à nova construção —,
encontra-se a seguinte legenda: “Em 25 de janeiro de 1942, a modernidade
derrotou a história. A Ponte das Bandeiras substitui a histórica Ponte Grande. O
velho contempla o aparecimento do novo”
221
. A importância simbólica da nova
ponte está profundamente associada ao passado da cidade. Nela se materializa
concretamente a luta entre o arcaico e o moderno que caracteriza as relações
fundadoras do país.
Benedito Lima de Toledo informa que, no projeto original da nova ponte,
encontrava-se no pilar central um grande conjunto escultórico em homenagem às
Bandeiras:
Esse conjunto seria a evocação de um batelão à base do
pilar central da ponte, constituindo uma ilhota e as margens do
cais nos dias de festa.
As avenidas marginais iriam se afastar contornando o
parque.
220
Idem, ibidem, p. 121.
221
Nicolini, Henrique. Tietê: o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001, p. 36.
189
Em todas essas disposições vê-se a retomada do conceito
consagrado ao longo da história da arquitetura, de que uma ponte
é mais que um meio de transpor um rio. É uma obra de arte e um
compromisso com a cultura de um povo, como, ademais, vemos
em toda produção urbanística de Prestes Maia.
222
Um aspecto importante, não apontado por Benedito Lima de Toledo,
envolvendo a antiga “Ponte Grande”, diz respeito à população mais humilde que
ocupava a várzea do Tietê, constantemente assolada pelas enchentes de verão.
Desde sempre, sua convivência com a cidade foi marcada
por um problema cíclico, o das chuvas de verão, quando o rio
invariavelmente invadia as áreas vizinhas. Nessa época, as
várzeas se transformavam numa vasta lagoa, e as águas quase
estagnadas pela diminuição da velocidade tornavam-se focos
transmissores de doenças causadas pela grande proliferação dos
insetos ali existentes. Tão antigo quanto o problema são as
tentativas de solucioná-lo. As primeiras iniciativas de retificar o rio
e recuperar suas várzeas datam do século XVIII, mas nem por
isso a questão foi resolvida. Até pelo contrário, ela vem se
agravando com o tempo...
223
As referências à morte associadas às águas do rio apresentam, portanto,
sólida base na realidade. Seu simbolismo reveste-se de historicidade profunda,
pois, as constantes enchentes de verão, transformavam o rio numa “lagoa” e,
dessas águas estagnadas, a morte brotava irremediavelmente. No poema
encontramos esses versos:
(...) Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
222
Toledo, Benedito Lima de. Op. cit., p. 238.
223
Ohtake, Ricardo. Op. cit., p. 122.
190
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
(...)
Isto não são águas que se beba, conhecido!Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são água que se beba, eu descobri!
224
O rio Tietê reproduz em escala metonímica o Brasil. O movimento cíclico do
rio e das estações se constitui num problema insolúvel, agravado com o tempo.
Essa imagem do eterno retorno do mesmo, mítica e histórica, sintetiza o universo
imagético de “A meditação sobre o Tietê” ao mesmo tempo em que faz vir à tona
as matrizes profundas da formação nacional. A grande vítima é o “Boi Paciência”,
os pobres do Brasil. No entanto essa consciência é pura “demagogia” de fundo
cristão: o povo é uma idealização burguesa obnubladora da consciência de classe.
A miserável população ribeirinha contrasta com o monumentalismo do
projeto de Prestes Maia. A construção da ponte implicou a remoção dos pobres, o
que, em última instância, não trouxe muitos problemas éticos para um país há
muito acostumado com o massacre dos miseráveis:
Um exemplo eloqüente dessa última atitude, de como
as vicissitudes de indivíduos ou de partes da população
estavam se tornando um entretenimento ou espetáculo a outros
grupos, sem despertar qualquer impulso de identificação — ao
contrário, graças mesmo a uma deliberada persistência do
estranhamento —, podia ser testemunhado nas inelutáveis
enchentes catastróficas do verão. Dadas a condição vulnerável
das várzeas e as anfractuosidades dos rios que cingiam os
arredores da cidade, bem como o sistema de represas e
barragens da Light, mantido sempre deliberadamente no seu
nível máximo, qualquer precipitação mais intensa na estação
chuvosa redundava em cheias que submergiam o casario
224
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1987, p. 388.
191
humilde das planícies. Sua concentração nessa área se dava
justamente pelos preços mais baixos dos terrenos e aluguéis
nas áreas alagadiças. Logo no início de janeiro de 1919, os
temporais vieram com uma violência implacável. As enchentes
foram torrenciais. Ao redor da área de confluência dos rios
Tamanduateí e Tietê, densamente povoada, as conseqüências
do dilúvio foram calamitosas.
225
Nota-se inicialmente a atitude dos indivíduos não atingidos pela tragédia.
São visíveis os traços de comportamento sádico que transforma a desgraça
alheia em entretenimento público. O historiador prossegue os comentários
reproduzindo a descrição de um cronista da época que retratou a catástrofe no
calor da hora
226
.
É interessante observar que o cronista só se conscientiza da gravidade da
situação após o relato do italiano flagelado pela enchente e afirma: “só então me
revolto contra as troças divertidas que os curiosos faziam na Ponte Grande e até
contra os lindos versos de Alberto de Oliveira que um de nós murmurava
tranqüilamente, sem um pensamento para os desgraçados...”
227
.
Um dos “espectadores”, diante da miséria da população ribeirinha,
recitava versos do parnasiano Alberto de Oliveira. Ao desejo de diversão de
grande parte dos “apreciadores” da tragédia alia-se o descaso das autoridades
pela calamidade. A explicação desses comportamentos chega a ser tão
inacreditável quanto os versos do “poeta dos vasos”, recitados em face ao
desastre:
É bem verdade que, nas áreas mais atingidas, tendiam a
predominar os imigrantes estrangeiros, que constituíam parte
substancial das classes operárias e do esforço produtivo da
225
Sevcenko, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes
anos vinte. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 29.
226
Os leitores interessados na descrição completa do fato podem consultar o livro do Nicolau
Sevcenko, em especial, as páginas 29 a 31.
227
Apud: Sevcenko, Nicolau. Op. cit., p. 30.
192
cidade: italianos sobretudo, e também portugueses, espanhóis,
alemães e eslavos, árabes e israelitas. O cosmopolitismo da
população adventícia, assinalando um nítido recorte de
discriminação social, como um estigma a mais a se acrescentar
ao das gentes negras e mestiças, vinha reforçar a disposição de
estranhamento intrínseca ao processo de metropolização. O
passado escravista, ainda recente, palpitava nos tratos sociais
e na atitude discricionária, peremptória, brutal das autoridades,
conferindo às relações hierárquicas um acento lancinante,
quando não atroz.
228
Fica evidente que a condição dos imigrantes pobres reverbera as heranças
do passado escravocrata nacional, características das relações entre as classes
sociais mais abastadas e os pobres no país. O comportamento dos que observam
com desinteresse a tragédia da população majoritariamente constituída por
imigrantes que habitava as várzeas do rio deriva do comportamento tradicional
dado aos negros no Brasil. O “sadismo”, o “descaso” e o “esteticismo”, marcantes
no comportamento dos observadores do “espetáculo”, estão fundados em nossas
heranças coloniais mais profundas, especialmente no comportamento das elites
tradicionais e da população em geral para com a escravidão. Porém agora o
elemento complicador é presença do imigrante, essa “população adventícia”:
De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso,
que envolvia a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não
era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de
mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem
americana, nem européia, nem nativa; nem era industrial, apesar
do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola,
apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem
subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha mais
passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente,
como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para
228
Sevcenko, Nicolau. Op. cit., pp. 30-31.
193
seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-lo como
podiam, enquanto lutavam para não serem devorados.
229
Esse parágrafo apresenta uma brilhante síntese das indefinições que regem
a formação da cidade de São Paulo. Todos os elementos nela presentes se
embaralham de maneira tão inextricável, que se torna impossível determinar com
clareza os limites do “eu” e do “outro”. A autonomia plena do indivíduo moderno,
requisito fundamental da modernidade, nunca se constitui verdadeiramente no
seio das relações regidas pela indistinção e pela indeterminação. Dessa forma, a
identidade individual e a identidade de classe se tornam fantasmáticas e
presentificam o que Mário de Andrade designa como a “insuficiência fatal do
outro”.
A cidade de São Paulo é descrita como um lugar marcado pelo “híbrido”,
pelo “indefinido”, por aquilo em que o “limite” não se estabelece com clareza, o
“entre-lugar”. O que não pode ser dito só tem voz na morte.
O processo social recorrente — fruto de subseqüentes surtos de
modernização conservadora — tem seu correlato nas imagens marcadas pela
duplicidade que percorre a poesia de Mário de Andrade: o arlequim, o jabuti, o Boi
Paciência, o grifo, o Pai Tietê etc...
Entre a década de 1920 e a década de 1940, a cidade cresceu
assustadoramente e as reformas urbanísticas são prova do vigor de seu ritmo de
modernização. Para que possamos ter uma dimensão dos efeitos desse processo
no imaginário do poeta, faz-se necessária a leitura do seguinte poema, de
Paulicéia Desvairada:
Tietê
Era uma vez um rio...
Porém os Borba-Gatos dos ultranacionais esperiamente!
Havia nas manhãs cheias de Sol do entusiasmo
229
Idem, ibidem, p. 31.
194
as monções da ambição...
E as gigânteas vitórias!
As embarcações singravam rumo do abismal Descaminho...
Arroubos... Lutas... Setas... Crianças... Povoar!
Ritmos de Brecheret!... E a satisfação da morte!
Foram-se os ouros!... E o hoje das turmalinas!...—
Nadador! Vamos partir pela via dum Mato-Grosso?
— Io! Mai!... (Mais dez braçadas.
Quina Migone. Hat sotres. Meia de seda)
Vado a panzare com la Ruth.
230
Paulicéia Desvairada é de 1922 e sintetiza O espírito eufórico do primeiro
Modernismo frente ao progresso acelerado da cidade. A diferença de tom em
relação “A meditação sobre o Tietê” é visível, apesar de o bandeirantismo e a
morte estarem também presentes no poema Tietê” (“os Borba-Gato”; “E a
satisfação da morte”). No poema da Lira Paulistana, encontramos uma referência
semelhante ao bandeirante citado:
E os Prados e os crespos e os pratos e os
barbas e os gatos e os línguas...”. O que falta é a ponte.
A São Paulo da década de 1920 é muito diferente da cidade de 1945.
Naquela década, nadava-se ainda no rio (“Nadador!”), entretanto as
transformações sociais do país e do mundo impuseram uma nova realidade:
separando o nadador da década de 1920 do poeta de 1945, há uma ponte
construída não para ser “um mero meio de trânsito de um lado para outro do rio”,
mas com a finalidade de ser um marco simbólico da origem da cidade e de suas
tradições
231
.
230
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 87.
231
Apud: Toledo, Benedito Lima de. Op. cit., p. 238. Tradução da citação em inglês presente no
texto de Prestes Maia sobre a ponte: “uma grande ponte deveria ser algo além de um mero meio
de trânsito de um lado para outro do rio. Tem um significado imaginativo que não foi perdido de
vista pelos construtores de pontes do passado e que ainda está à espera de ser resgatado.”
195
Em suma, sobre a tragédia social nenhuma palavra, nem em Prestes Maia
nem no modernista da década de vinte: o caminho percorrido por Mário de
Andrade, nas duas décadas seguintes à Paulicéia Desvairada, foi vertiginoso.
Voltemos à construção da ponte das Bandeiras.
Nas palavras de Prestes Maia: “Os acontecimentos memorandos pela
Ponte Grande são as bandeiras”, cujo monumento ficaria no “centro mesmo do rio,
como uma grande proa a emergir das águas, voltada para jusante, justamente na
direção do sertão, que o paulista devassou e que é ainda, dentro do Estado, a
terra prometida”
232
.
A linguagem messiânica e mosaica do trecho (“a terra prometida”) revela
claramente uma concepção teológica / teleológica da história. Um triunfalismo em
tudo avesso ao tom da meditação do poeta modernista.
No universo teológico, a palavra ponte pertence ao mesmo campo
semântico de pontífice, isto é, refere-se ao mundo papal, ao vigário de Cristo, ao
vicário, àquele que está no lugar de, aquele que religa. Miticamente, “ponte”
contém o sentido de caminho a ser percorrido em direção a um fim harmônico
entre “Deus” e suas “criaturas”: a aliança.
Modernamente, ponte é por definição o lugar das multidões, portanto
deveria ser o espaço do encontro do poeta com os “despossuídos”. Estes estão
ausentes; o poeta, “demagogicamente” solitário. O estado de insônia permanente
caracteriza a voz lírica de “A meditação sobre o Tietê”.
Esse estado também caracteriza a figura central do Cristianismo. Cristo é
marcado por uma insônia sem tréguas diante de ”uma realidade colhida na raiz
por uma sensibilidade insone, em solitária vigília, em contínuo Getsêmani”
233
. No
entanto o verdadeiro insone bíblico é Satanás.
No texto bíblico há pelo menos uma referência ao sono de Cristo, pois
dormir uma vez ao menos é forma de demonstrar sua humanidade. Outro dado
232
Apud: idem, ibidem, p. 238.
233
Mota Pessanha, José Américo. Clarice Lispector: o itinerário da Paixão. In: Remate de Males.
Campinas: Unicamp, 1989, p. 186.
196
pertinente na referência ao sono de Cristo é que ele dorme num barco — a
proximidade com o universo aquático é evidente :
Depois disso, entrou no barco e os seus discípulos o
seguiram. E, nisso, houve no mar uma grande agitação, de modo
que o barco era varrido pelas ondas. Ele, entretanto, dormia. Os
discípulos então chegaram a ele e o despertaram, dizendo:
“Senhor, salva-nos, estamos perecendo!” Disse-lhes ele: “Por que
tendes medo, homens fracos na fé?” Depois, pondo-se de pé,
conjurou severamente os ventos e o mar. E houve uma grande
bonança. Os homens ficaram espantados e diziam: “Quem é este
a quem até os ventos e o mar obedecem?”
234
A presença da água como elemento perigoso aproxima “A meditação sobre
o Tietê” das matrizes imagéticas bíblicas. O poder de Cristo sobre os elementos
naturais também está presente no mito de Orfeu, que, como se sabe, é uma das
figuras mais óbvias do poeta.
A relação da Lira Paulistana com o mito órfico é profunda
235
. A referência à
lira no título do livro imediatamente impõe a aproximação entre poesia e mito, pois
esse instrumento é um dos símbolos mais universais do poético.
O mito órfico apresenta algumas constantes temáticas da poesia de Mário
de Andrade, em especial a noção de “despedaçamento do poeta”:
Nos relatos em que o herói é esquartejado, as mulheres
lançam os pedaços do cadáver ao rio Ebro, que os conduz ao mar.
A cabeça e a lira do poeta, vagando sobre as águas, dão às
costas da ilha de Lesbos, onde os habitantes lhe constroem um
234
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Vozes, 2000, p. 1853.
235
A aproximação de Mário de Andrade a Orfeu se encontra explicitamente no título do famoso
“poema despedida” de Carlos Drummond de Andrade, “Mário de Andrade desce aos infernos”, de
A Rosa do Povo. A presença fantasmática do poeta paulista também é elaborada em outro “poema
despedida” de autoria de Manuel Bandeira, “A Mário de Andrade Ausente”, de Belo Belo. Esses
dois poemas citados foram motivados pela morte repentina de Mário de Andrade e foram escritos
sob o impacto do desaparecimento do poeta.
197
túmulo. Durante muito tempo continuarão a sair dele cantos
dolorosos e o som da lira. Assim, lesbos tornar-se-á o lugar de
eleição da poesia lírica grega.
236
O caminho do mar percorrido pelos restos mortais de Orfeu é um dos
aspectos do mito que nos interessa particularmente, pois, ironicamente, a epígrafe
de “A meditação sobre Tietê” se refere ao desejo do poeta pelo mar, bloqueado
pelo movimento invertido do rio:
Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
— Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
237
Desejo que se expande depois no próprio corpo do poema:
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
238
A explicação do assassinato de Orfeu varia. Em algumas versões, a
justificativa da fúria das mulheres seria a fidelidade inabalável do poeta-cantor à
Eurídice. Em outras, a motivação teria origem no repúdio de Orfeu às mulheres
porque se entregara a jovens rapazes. Orfeu é um ser marcado pela ambivalência:
poeta e músico, ele liga o mundo dos mortos ao dos vivos.
A sua associação tanto com Dionísio (o despedaçamento do deus) quanto
com o simbolismo do Cristo, de quem é considerado uma prefiguração pagã (a
descida aos infernos e a ressurreição), já foi exaustivamente explorada pelos
236
Martin, René. Op. Cit., p. 185.
237
Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 386.
238
Idem, ibidem, p. 387.
198
mitólogos e estudiosos dos arquétipos míticos. Orfeu, como todos os mortais,
chega ao Hades com o auxílio do barqueiro Caronte, condutor dos mortos pelo rio
Estige.
Todos esses elementos míticos convergem para a questão da derrelição do
poeta moderno representada pelo estado insone: em “A meditação sobre o Tietê”
— poema escrito em estado de insônia — a maligna e incessante vigília é um
sintoma profundamente associado ao caráter melancólico que domina o discurso
lírico. A imobilidade noturna e melancólica do poeta assinala o trânsito
interrompido, algo que não se completa ou se conclui: o eterno retorno do mal sob
a força da morte, da pulsão tanática em escala global.
A oposição existente entre o rio (elemento natural) e a ponte (construção,
cultura) é talvez da mesma ordem da oposição entre o “id” e o “super-ego”. Nela
estão entrelaçados de forma indissolúvel o erótico e o tanático, uma vez que as
águas do rio (vida) estão podres (putrefação e morte):
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febres, dão morte decerto, e dão garças e antíteses. (...)
Isto não são águas que se beba, isto são
Águas do vício da terra. (...)
Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. (...)
239
“A meditação sobre o Tietê” apresenta um jogo paradoxal entre imobilidade
e dinamismo: o silêncio externo da cidade adormecida e a turbulência ruidosa do
mundo interior da voz lírica. O ritmo monótono e pesado das “águas oliosas” —
mimetizado no andamento solene característico da meditação — contrasta com
agitação intensa que atravessa o longo balanço existencial do poeta imóvel.
239
Idem, ibidem, p. 388.
199
Nesse poema, há uma dimensão imagética que pode ser resumida na
paráfrase: alta madrugada, na ponte das Bandeiras, um homem solitário (o poeta)
faz um longo e amargo balanço da existência observando a cidade e suas luzes
refletida na água oleosa, podre, insalubre do Tietê.
A imagem do poeta noturno sobre esse conjunto de pedras é expressiva,
pois pétreo é velha metáfora da morte: as Górgonas clássicas. A ponte liga, mas
também interdita.
5
O poeta e seus rios
“Eu sou aquele que veio do imenso rio”
Outro elemento importante em “A meditação sobre o Tietê” diz respeito à
tópica da contemplação das “forças cósmicas”, de um ponto de vista privilegiado
que permite abarcar a totalidade do ser.
Em língua portuguesa, o melhor exemplo encontra-se em Camões. Trata-
se do famoso episódio da “Máquina do mundo”, presente no Canto X de Os
Lusíadas. A contemplação da “Máquina do mundo” se reveste de simbolismo
profundo. Refere-se à contemplação da harmonia cósmica, da perfeição
divina, da música das esferas tal como a concebia a mentalidade
renascentista platônica do poeta português: a harmonia universal que a tudo
preside permitindo ao homem transcender o “desconcerto do mundo” e sua
finitude inexorável.
A concepção do equilíbrio universal será substituída lentamente por
uma visão desencantada diante do destino do homem. E a tópica da “Máquina
do mundo” sofrerá uma violenta inversão: não mais a perfeição universal, mas
a visão da devoração universal, do aniquilamento total para o qual tende
todas as coisas e todos os seres.
200
Na tradição literária nacional, a melhor expressão desta nova conjunção
de sentido encontra-se certamente no famoso capítulo “O delírio” de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
240
. Em Machado de
Assis, não há nenhum traço de caráter positivo que advenha da contemplação da
totalidade em Camões. No “Delírio”, tudo se resume na destruição e na devoração
universal presidida pela absoluta ausência de sentido.
O limite máximo dessa negatividade se encontra no poema “A máquina do
mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, em que a representação da
contemplação do espetáculo — magnífico ou macabro — da existência é
transformada em recusa da contemplação: a “máquina do mundo” se oferece; o
poeta a repele.
“A meditação sobre o Tietê” fica a meio caminho entre o delírio
machadiano e a negação do poeta mineiro: em todos esses autores nacionais —
em maior ou menor grau —manifesta-se profunda expressão da “pulsão de morte”
que atravessa a história recobrindo tudo até atingir dimensões cósmicas e
metafísicas.
Outra ressonância possível, na órbita da literatura universal, é a famosa
cena do Hamlet, em que o espectro do pai aparece ao príncipe melancólico nas
ameias do castelo, na parte elevada do edifício, onde o jovem herdeiro oscila entre
o “ser” e o “não ser” ao contemplar as formas evanescentes em que tudo o que foi
vivo se perfaz se desfazendo.
O momento maior dessa “contemplação de cima”, no imaginário ocidental, é
o seqüestro de Cristo pelo Demônio que, do “pináculo do templo” o desafia a
saltar, e, em seguida, do alto de um monte, oferece-lhe todo poder deste mundo:
Tornou o Diabo a levá-lo, agora a um monte muito alto. E
mostrou-lhe toso os reinos do mundo com seu esplendor e disse-
240
Trata-se de uma coincidência interessante: em meio ao delírio de Brás, aparece a figura do
Arlequim como personificação do mal: “Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a
víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim; em
derredor da espécie humana”.
201
lhe: “Tudo isto te darei, se, prostrado me adorares”. Aí Jesus lhe
disse: “Vai-te Satanás, porque está escrito:
Ao Senhor teu Deus adorarás
e só a ele prestarás culto.
Com isso o Diabo o deixou. E os anjos de Deus se
aproximaram e puseram a servi-lo.
241
Há, ainda, no texto bíblico, inúmeras passagens em que os “profetas” são
alçados aos céus após fazerem suas imprecações contra os homens. O transporte
de Elias, num carro de fogo, é uma das mais célebre. A palavra “transporte”, além
de movimento ascendente, pode se referir também a transe, momento de conexão
com o divino. Elias é literalmente arrebatado e transportado aos céus num carro
ardente. O arrebatamento é também uma das formas do transe.
A imagem central de “A meditação sobre o Tietê” é a do poeta sobre a
ponte. Seu ponto de observação lhe permite ver de cima o mundo refletido nas
“águas oliosas” do rio e define o próprio modo em que a visão se registra, isto é,
ela se dá do alto.
Nos versos iniciais de “A meditação sobre o Tietê”, aparecem os seguintes
versos: “Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões / As altas torres do
meu coração”, que fazem referência explícita ao Catimbó, rito amazônico baseado
na incorporação dos mestres. Entre eles destaca-se a figura de “Mestre Carlos”,
que o poeta designa como “meu grande sinal”, no poema “Brasão”. O sortilégio de
que os versos estão imbuídos nos lança na órbita do rito e da possessão.
Lafetá especifica o significado profundo da reelaboração do universo
popular na poesia de Mário de Andrade. Procedimento comum no escritor
paulista, Macunaíma é seu exemplo mais óbvio. Os mitos nacionais estão em
conexão direta com os arquétipos presentes em vários sistemas mitológicos, o
que quer dizer que estamos diante dos fundamentos do “pensamento primitivo”.
Novamente a regressão estética se faz presente na fusão do poético e do mítico:
241
Mateus 4, 8-11. In: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000, p. 1843.
202
Entretanto, examinemos o significado das expressões.
Disse acima que as "altas torres" e os "matos alagados" indicam
a origem, circunscrevendo um espaço que é sagrado, como todo
espaço primordial. O jogo de alto e baixo que compõe o verso
tem este sentido simbólico bastante evidente: de um lado, as
torres apontam para o Céu, estabelecendo contato com o mundo
superior; de outro lado, as terras baixas e alagadas comunicam-
se com o mundo ínfero, as profundezas originais, anteriores à
criação. Um e outro são sucedâneos dos pontos que, nas
sociedades tradicionais, sacralizam o espaço humano,
construindo-o como Cosmos habitável e relacionando-o com os
outros níveis do universo. As "altas torres" são avatares do "pilar
cósmico", das Colunas e das Montanhas que constituem o
Centro do Mundo, o axis mundi que liga a terra ao Céu; os
"matos alagados" são transformações das aberturas para baixo,
da "Porta de Apsû" babilônica ou da hebraica "boca do tehôm",
passagem para o Caos aquático, que simboliza tanto a
”modalidade pré-formal da matéria cósmica” como “o mundo da
Morte, de tudo o que precede a vida e a segue”.
242
O elemento aquático está associado profundamente à idéia de caos e
dissolução, o que, por sua vez, remete ao universo tanático. No âmbito desse
processo poético — em que o aquático aparece como o elemento central —,
outro poema importante de Mário de Andrade é o enigmático “Brasão”, de A
Costela do Grã Cão. Nele encontra-se uma simbologia cifrada e hermética que
sintetiza paradoxalmente o eixo de toda a obra do escritor modernista:
Brasão
(10-XII-1937)
Vem a estrela dos treze bicos,
Brasil, Coimbra, Guiné, Catalunha,
E mais a Bruges inimaginável
E a decadência dos Almeidas.
242
Idem, ibidem, pp.126-127.
203
E sobre a estrela dos treze bicos
Pesa um coração mole
De prata coticada trezemente,
Em cujo campo há-de inscrever-se
"Eu sou aquele que veio do imenso rio".
E sobre o campo do meu coração,
Todo em zarcão ardendo,
Há em ouro a arca de Noé com vinte-e-nove bichos blau,
E a jurema esfolhando as folhas derradeiras
Sobre Mestre Carlos, o meu grande sinal.
E a seguir a trombeta, essa trombeta
Insiste pela Catalunha,
Mas desta vez eu que escolhi!
Ôh, meus amigos,
Perdão pelos séculos pesados de cicatrizes infinitas,
Perdão por todas as sabedorias,
Pela esfera armilar das conquistas insanas!
Essa trombeta eu que escolhi, toda de prata,
Com treze línguas de fogo na assustadora boca,
E a inscrição "Que-dele eles?",
Eles, os bandeirantes ...
E falta o boi Paciência, o boi que pertence a Armida,
Traz por guampas os cornos da luna
E um peitoral de turmalinas.
Mas esse vem no outro coração mole,
Não se mostra a ninguém.
O boi Paciência serão treze preguiças assustadas,
No porto do imenso rio esperando,
Esperando pelos treze caminhos
Das mil cavernas das quarenta mil perguntas.
Ai, que eu vou me calar agora,
204
Não posso, não posso mais!
243
Esse poema pertence A Costela do Grã Cão e, como o título sugere,
representa a marca heráldica da voz lírica que percorre a poesia de Mário de
Andrade. Em “Brasão”, encontram-se, altamente concentrados, todos os
elementos poéticos que constituem o universo imagético expandido do penúltimo
poema da Lira Paulistana. A decifração de sua complexa simbologia é
fundamental para a compreensão de “A meditação sobre o Tietê”.
Lafetá se detém longamente sobre “Brasão”, e a leitura proposta por ele é
esclarecedora e pertinente, por isso a comentaremos em função da importância
dos elementos poéticos aí presentes para a compreensão da última fase da
poesia de Mário de Andrade:
Lido sem ligação, com a obra de Mário de Andrade, o
poema é absolutamente misterioso: não é possível entender
quase nada (ou só muito pouco) daquilo que ele diz. Mesmo
assim, entretanto, é possível gostar dele, isto é, encontrar em
sua configuração verbal o tom evocativo e mágico que se
desprende de signos repletos de conotações, e da maneira ritual
de os ir indicando. Sem a significação é uma beleza abstrata, um
jogo fascinante de palavras encantatórias: estrela, coração,
trombeta, etc. O texto vale por si, como aquelas orações de
feitiçaria brasileira que ocuparam o poeta.
244
Inicialmente, o poema se impõe pelo jogo sonoro e imagético nele
presente, que corre paralelo à significação truncada. Conseqüentemente, em
vários momentos, por mais detida que seja a análise, permanece o elemento
enigmático, que ronda algumas imagens presentes na obra. Em “A meditação
sobre o Tietê”, muitas passagens mergulham no universo do indecifrável.
243
Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo:
Edusp, 1987, pp. 319-320.
244
Lafetá, João Luiz. Op. cit., p. 151.
205
Lafetá procede à análise explorando o simbolismo da estrela, que se
constitui em enigma inicial do poema. Símbolo antigo e universal, ela
representaria no universo da obra do escritor paulista um papel muito particular
que a aproximaria de outros símbolos recorrentes nela. A grande maioria
desses símbolos enigmáticos é expressão da crise identitária do sujeito lírico e
representa a sua permanente busca pelo sentido possível da ausência /
presença fantasmática, a partir da pesquisa dos elementos constitutivos da
nacionalidade.
Levando em conta o elemento arbitrário que, por ventura, possa estar
associado à escolha particular da “estrela dos treze bicos”, Lafetá se vale —
para a decifração do seu significado no conjunto das imagens poéticas que
percorrem a obra de Mário de Andrade — da análise proposta por outro
estudioso da poesia do escritor paulista. Trata-se da leitura levada a cabo por
Victor Knoll: as treze pontas indicam o conflito central do poeta, a busca da
identidade que se defronta sempre — tanto no nível pessoal quanto no nacional
— com a multiplicidade, com a mescla, com o elemento heterogêneo. Em
suma, com a impossibilidade de síntese, mesmo que precária.
Outro exemplo da recorrência do símbolo está em Macunaíma, pois o
“herói sem nenhum caráter” se transforma ao final da narrativa na constelação
da Ursa Maior: o herói da nacionalidade metamorfoseia-se num conjunto de
estrelas e, portanto, não se reduz à unidade de um único corpo celeste. Dessa
forma, a totalidade é composta da multiplicidade / fragmentos tal qual a veste
do Arlequim. Nosso “herói” ascende aos céus, o movimento para cima, o
transporte celeste, são formas de sublimação radical da contradição insolúvel e,
de alguma maneira, associam-se ao discurso inspirado presente em “A meditação
sobre o Tietê”.
Ao insistir no aspecto da arbitrariedade presente em alguns momentos na
poesia de Mário de Andrade, o autor de Figuração da Intimidade aponta para um
procedimento igualmente importante em “A meditação sobre o Tietê”, como
afirmamos anteriormente: o fluxo verbal é elaborado muitas vezes a partir do seu
apelo sonoro-musical em detrimento dos elementos sintáticos e / ou semânticos.
206
Enfatiza-se o fluxo, o ritmo, o encantamento verbal, que exerce poderoso efeito,
seqüestrando o leitor.
Atento a essa complexidade estrutural, Lafetá arrisca uma leitura
interessante e muito percuciente de certos conflitos permanentes do poeta que
se ligam também ao universo poético presente na Lira Paulistana. Um desses
elementos é a presença do “rio”, como fundamento da identidade poética da
voz lírica, o que o quinto verso da segunda estrofe de “Brasão” sintetiza (“Eu
sou aquele que veio do imenso rio”).
Victor Knoll acredita que Mário de Andrade se referia ao rio Amazonas.
Na contramão, Lafetá insiste que pode ser uma referência a qualquer grande
rio brasileiro (Amazonas, São Francisco ou o Tietê), ressaltando a importância
do universo imagético fluvial na obra do poeta paulista e, principalmente, a
revelação, a partir dele, dos profundos conflitos do escritor.
Outro simbolismo que pode ser associado ao rio é a dimensão mítica
clássica a que Lafetá não faz referência. Em “A meditação sobre o Tietê”, a voz
lírica afirma:
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.
245
245
Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo:
Edusp, 1987, p. 388.
207
É evidente, nessa passagem, que as águas do rio Tietê são malignas e
mortais, são tão fatais quanto as águas do mítico Estige. A morte e a água não se
separam no imaginário ocidental, por isso, constantemente, um elemento evoca o
outro. A água e o seu fluir incessante podem simbolizar o movimento permanente
de tudo o que vive, bem como a imobilidade delas pode simbolizar o fim de todas
as coisas:
Estige é o filho de Oceano cuja água corre das últimas
profundezas da terra, nessa morada da Noite onde brotam
conjuntamente, ainda contíguas e como misturadas umas às
outras, as fontes, pegai, da Terra, do Tártaro, do mar e do Céu:
lugares tenebrosos, caóticos (...), de que “os deuses têm horror”,
(...). Esta fenda original, na qual o mundo organizado finca raízes,
as águas primordiais de Estige, representam-na não só pelo kôma
com que envolvem os deuses perjuros, ou pela morte que levam
aos vivos, como também pelo cenário em que se situa seu fluxo.
Já em Hesíodo, Estige, situado sobre a terra, no mundo tenebroso
da casa de Hades, na noite negra, habita ao mesmo tempo uma
morada “coroada por rochas elevadas e de todos os lados erguida
para o céu por colunas de prata”. O valor “primordial” de Estige
estabelece-se ao mesmo tempo no mais baixo e no mais alto,
como se ele assumisse simultaneamente os dois extremos, à
maneira como as Graias conjugam o jovem e o velho, e as
Górgonas, o mortal e o imortal. (...) A água do Estige, água das
profundezas infernais, que leva a morte a todo ser vivo e que
nenhum recipiente, nenhuma matéria, nem mesmo o ouro (exceto,
é claro, “a beira do casco de um cavalo”) pode conter, pinga de
uma inclinação rochosa elevadíssima, sobre a qual Pausânidas
precisa que não se conhece “nenhuma outra que se erga a uma
tal altura”. Água de baixo escorre, assim, por cima, como vinda do
céu
246
.
A imagética do Estige — baseada na fusão paradoxal do alto e do baixo —
246
Vernant, Jean-Pierre. A morte nos olhos — figurações do Outro na Grécia antiga: Ártemis e
Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. pp. 90-91.
208
de alguma forma se duplica na imagética do rio Tietê de Mário de Andrade. O rio
paulista é também um rio invertido (endógeno), que corre do “litoral” para o
interior; é um rio anti-atlântico, correndo do alto para o baixo, confundindo e
embaralhando a ordem “natural” de todas as coisas. Ademais, divide
rigorosamente ao meio o estado de São Paulo no seu movimento Leste-Oeste.
Como a face da Medusa em que os limites entre o humano e o animal são
confusos, o rio Tietê funde malignamente o “eu” e o “outro” — fonte de toda
angústia da voz lírica em estado derrelição.
O paradoxo (“Água de baixo escorre, assim, por cima, como vinda do céu”)
produz a contradição insolúvel que só é simbolizada pela morte, estágio extremo
do ser, momento exato que, ao se presentificar, impõe a dissolução. O caráter ao
mesmo tempo evanescente e opaco das águas do Tietê é um dos símiles da
morte (o paradoxo indizível), em cujo limite estão presentes as figurações do
insolúvel.
A associação do Tietê ao Estige apresenta caráter alegórico. Lafetá, ao
passar em revista a análise de Victor Knoll, demonstra a pertinência da leitura
alegórica de “Brasão”, motivada pela presença de fortes referências simbólicas
universais, também visíveis em “A meditação sobre o Tietê”:
As diferentes regiões e cidades indicam a miscigenação
étnica do brasileiro; o “imenso rio" é o Amazonas, sinal de uma
civilização pueril, nova, que o poeta sonha para o país; a arca
de Noé é signo da ressurreição e do renascimento de um novo
mundo; o mestre Carlos, deus-menino, é a figura do catimbó
que se liga à Amazônia e recorda os valores autênticos da
terra; o boi Paciência, substituto dos bandeirantes na
colonização do Brasil, é representação do páthos do povo
brasileiro, do sacrifício pelo trabalho que traz vantagens e cria o
futuro paradisíaco; as treze preguiças são de novo a marca da
civilização amazônica, ligada à autenticidade da terra. E todo o
poema é atravessado pela tensão da identidade incompleta e
dilacerada, repartida entre o trabalho e o lazer, os valores
209
europeus e os valores autóctones, o passado e o presente, o
presente e o futuro etc.
247
No poema antecessor de “A meditação sobre o Tietê”, “Nunca estará
sozinho”, ressalta a ligação profunda entre o rio paulista e o Amazonas,
compondo, no imaginário poético, um contínuo simbólico:
A ponte das Bandeiras
Indaga das remotas
Zonas, imaturas zonas,
Meu sinal do Amazonas...
Nunca está sozinho!
Nem há noite que o salve
Da angústia que o dissolve
Em amigos e inimigos
248
Do alto da Ponte das Bandeiras, a voz lírica evoca o mundo amazônico
impregnado de sortilégio e morte.
Ainda sobre “Brasão”, Lafetá levanta importantes dados para a
compreensão da poesia da fase final de Mário de Andrade. A citação que segue
é esclarecedora para o entendimento do processo particular de produção de
sentido de que se vale a poesia do escritor modernista:
A carta constitucional outorgada a 10 de novembro de
1937 aboliu os símbolos estaduais. Com grande solenidade foi
organizada a queima de tais símbolos, prestigiada pelas altas
autoridades civis, militares e religiosas do país. A cerimônia foi
marcada para o dia 19, dia da bandeira, não tendo sido realizada
em conseqüência do mau tempo. No dia 27, na praia do Russel,
no Rio de janeiro, em altar cívico-religioso, queimaram-se uma a
247
Lafetá, João Luiz. Op. cit., p. 154.
248
Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo:
Edusp, 1987, p. 385.
210
uma as bandeiras levadas processionalmente por 21 jovens
pertencentes a associações católicas, sob a emoção e a revolta
de milhares de espectadores. Com a queda do chamado Estado
Novo todas as unidades da Federação voltaram a cultuar suas
bandeiras.
249
A expressão “altar cívico-religioso” contém uma imagem apurada do
processo de formação nacional em que dois regimes de relações socais e
subjetivas visceralmente opostos se fundem.
A queima dos símbolos estaduais — como ato de afirmação simbólica da
Ditadura de Vargas e de uma suposta unidade nacional construída pelo desejo
manifesto de apagar os traços de qualquer diferença e oposição ao poder
constituído — é expressão do caráter claramente fascista daquele período. Esse
ato terrorífico, indubitavelmente, calou fundo na consciência crítica do poeta:
Procuro a gênese do poema. E fácil supor os efeitos
terríveis que a queima de bandeiras terá tido na São Paulo pós-
constitucionalista. É fácil também conjecturar os efeitos que terá
provocado em Mário de Andrade, bairrista por sentimento e
"brasileiro" por procurada convicção. A queima simbólica se dá a
27 de novembro; o poema "Brasão" está datado de 10 de
dezembro. Ambos, o Estado Novo e o poeta, procuravam afirmar
sua identidade. É um tempo difícil para o país, dividido em
facções que disputam o poder, com lutas sangrentas. (...) O
poeta perdido no Departamento de Cultura retruca com "Brasão",
imagem da unidade na diversidade, resposta da diferença que
não quer desaparecer sob o peso da homogeneização.
São meras suposições, verdade que autorizadas pela
cronologia e pelo conhecimento biográfico do temperamento de
Mário. Mas se não são certas em seus pormenores, pouco
importa. Importa é que o país, neste exato instante, vivia uma
249
Apud: Lafetá, João Luiz. Op. cit., p. 155. Segundo Lafetá, a citação que se encontra nesse
trecho foi retirada de: Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo / Rio de Janeiro:
Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., 1976, v. 3, p. 1179.
211
"crise de identidade", aparentemente resolvida pelo golpe que
instituiu um "novo estado" de coisas. E importa que o poeta, no
mesmo instante, recapitule suas preocupações e tenha a visão
inspirada de um país novo, em que disparatadas origens se
harmonizem nas figuras de uma estrela de treze bicos e de um
"coração mole / De prata coticada trezemente"
250
.
É inquestionável que a destruição dos símbolos estaduais macerou
profundamente a sensibilidade aguçada de Mário de Andrade, e a elaboração
desse “Brasão” poético-subjetivo, como expressão do estado de revolta,
contém prenúncios de “A meditação sobre o Tietê”. Nesses dois poemas,
enigmáticos e radicais, o poeta sinaliza sua discordância visceral do momento
vivido.
Lafetá analisa o movimento interno de “Brasão”, localizando nele três
momentos fundamentais. O primeiro diz respeito à determinação da origem
sempre marcada pela pluralidade. Avulta, nesse contexto, a questão da
identidade do “imenso rio”.
A ligação de Mário de Andrade com os rios nacionais é mais um dos
elementos que compõem a sua infindável busca da identidade tanto no âmbito
da subjetividade quanto no da nacionalidade. Os rios nacionais são o Brasil e o
Brasil é o poeta:
A divisa — e aqui discordo num primeiro instante de
Victor Knoll — não se refere necessariamente ao Amazonas;
pode também aludir ao Tietê, ou ao São Francisco, ou a
qualquer um dos rios imensos — e este último dado é o
importante — que serviram de caminhos para a penetração no
país. A simbologia dos rios sagrados, berços de civilizações,
origem da vida, é também de conhecimento geral; aquele que
vem do "imenso rio" pode ser entendido, portanto, como aquele
que vem das origens, das águas que carregam a vida e a
civilização.
251
250
Idem, ibidem, pp. 155-156.
251
Idem, ibidem, p. 156.
212
A simbologia do “aquático” está claramente associada às origens e à
formação do país, em sentido amplo. No mais restrito, refere-se aos
bandeirantes. Em “A Meditação sobre o Tietê”, um dos elementos fundamentais
é exatamente a Ponte das Bandeiras. A relação entre esse lugar social e o
Estado Novo é intrínseca.
No segundo momento, o hermetismo intensifica-se, tornando denso o
seu caráter enigmático. A imagética do poema se volta para o elemento
apocalíptico e demoníaco presente em outros poemas de Mário de Andrade,
das décadas de 1930 e 1940. Suas ressonâncias bíblicas são indiscutíveis e
cifram as contradições subjetivas e sociais com que convivera Mário de
Andrade naqueles anos.
O terceiro movimento do poema, que deveria apresentar a síntese
possível dos elementos tão contraditórios, reduz-se bruscamente a dois versos
denunciando a impossibilidade visceral de qualquer solução para os impasses
que dilaceram a voz lírica e a projetam num silêncio comovido. O fecho do
poema é marcado por um corte brusco, uma interrupção sintética reveladora da
aguda impossibilidade de continuação, que caracteriza um processo truncado à
espera de uma conclusão:
O terceiro movimento é o dístico que, fecha o poema,
ainda mais misterioso: "Ai, que eu vou me calar agora, / Não
posso, não posso mais!" É como se o poeta, aproximando-se
de um núcleo qualquer de verdade terrível, fosse obrigado a
interromper o discurso por algum motivo: a emoção que corta a
voz, o impedimento do sagrado, a manifestação de algo
nefasto que não pode ser dito. Ou — o que é mais provável —
a nuvem do descontentamento, a interrogação assustada das
quarenta mil perguntas.
252
252
Idem, ibidem, p. 157.
213
Perguntas sem reposta, expressão de um problema insolúvel que faz a
voz lírica silenciar, símbolo dos impedimentos que a cercam e a indigitam. A
consciência circula pelos elementos do mundo e neles não encontra nenhum
sentido verdadeiro. Dessa forma, o caminho da dissolução torna-se inevitável e
sinaliza o estado de abandono em que se encontra o poeta:
O poema, que vinha se desenvolvendo das origens o
passado / presente — para o anúncio o presente / futuro —,
interrompe-se aqui, no silêncio. Os símbolos harmoniosamente
traçados sobre o campo do "Brasão", hieráticos e solenes,
esbarram na impossibilidade do dizer. Dispersos pelo corpo do
poema, os signos deveriam ao final configurar uma totalidade,
apontar uma certeza. Mas há algo na identidade que não pode
ser dito, e eles permanecerão soltos, sem encontrar sua unidade:
porque aquilo que não pode ser dito é e centro dessa unidade, o
nó que reuniria os opostos; e para o poeta, moderno o centro
está vazio, a transcendência é impossível, não há uma Trindade
que concilie o uno e o plural. Por isso, a realidade visionária do
"Brasão" não se completa: acerba seda, suas palavras coexistem
no mesmo espaço, mas de forma contraditória e tensa. O
significado nunca pode ser claro — não há a visão do todo — e o
fim deve ser mesmo o silêncio
253
.
A experiência da cisão insolúvel traduzida pelo poema pode ser
sintetizada na imagem do coração duplicado, mais uma ocorrência do duplo na
poesia de Mario de Andrade, apontando mais uma vez para a impossibilidade de
síntese que redunda no silêncio final: a impossibilidade de dizer (“Ai, que eu vou
me calar agora,/ Não posso, não posso mais!”). Silêncio e morte são
congênitos.
Presa nesse círculo vicioso — necessidade premente e impedimento
visceral de nomear —, a voz lírica gira no vazio e percorre um labirinto
infernal sem fim: o eterno retorno do mesmo, o eterno retorno do mal. É
253
Idem, ibidem, p. 158.
214
visível nesse processo a etiologia dos estados melancólicos marcados pela
ausência do que não pode ser nomeado, marcados pela perda de um
“objeto” que se elidiu da consciência: o próprio “ego”.
No entanto o silêncio do melancólico pode se reverter facilmente em longa
e amarga lamentação do vazio que a proximidade da morte presentifica. A
(in)consciência do vazio está no centro da disposição melancólica.
6
A ponte e o poeta melancólico
A visão noturna de um homem solitário sobre uma ponte presente em “A
Meditação sobre o Tietê” é, salvo engano, a imagem emblemática do suicida, um
indivíduo, cujos traços revelam a compleição melancólica.
A melancolia apresenta uma sintomatologia muito próxima da do estado de
luto, em que narcisismo e pulsão de morte se confundem. A dissolução narcísica
do “eu“ no “outro”, isto é, no mundo, representa o desejo de regressão a estados
de imobilidade primitivos em que a subjetividade mal se diferencia de si mesma. O
desejo de fusão e indiferenciação da voz lírica com a objetividade, em última
instância, dá vazão à pulsão de morte que a governa e se confunde com o
“princípio de prazer”. Esse fenômeno produz paradoxalmente a erotização do luto
e do estado melancólico.
O apagamento da distância entre o “eu” e o “outro”, entre o ”eu” e o
“mundo” lança a voz lírica numa atmosfera marcada pelo “estado de nirvana”,
muito próximo da elisão total da consciência que encontra sua plenitude na morte.
Erotismo e morte constituem assim os dois lados da mesma moeda e
estão fundidos no núcleo da experiência melancólica de tal maneira, que um se
reverte incessantemente no outro. Essa maligna reversibilidade pede resolução e
seu ritmo impõe uma verdadeira luta de morte no interior da subjetividade. O
lirismo dá voz ao profundo desejo de dissolução com única forma de cessar o
215
turbilhão em que está envolvido. A ausência da alteridade verdadeira coloca a
voz lírica diante do vazio especular, como Narciso, ela fenece diante de sua
própria imagem vazia.
Lafetá revela que o próprio Mário de Andrade não ignorava o
paradoxal complexo que a pulsão narcísica encerra: por trás de todo desejo
erótico de fusão, encontra-se mal disfarçada a pulsão de morte. Na
ausência da alteridade autêntica, o desejo, que não encontra um objeto em
que se fixar, é transferido ao próprio ego. Essa transferência pressupõe a
dissolução sádica do ego em si mesmo:
Na verdade ela não tem carne de girassol, é
branquíssima, assustadoramente branca e vermelho, com uma
lesão no coração, dizendo os médicos que ela morre cedo. Não
sei, tive uma espécie de alegria quando sube disso. Depois quis
pensar sobre a razão que me levava pra essa espécie de
alegria e fiquei tão horrorizado, vendo possíveis razões tão
feias, fiquei tristíssimo, me sinto covarde, me sinto egoísta,
porque o amor prejudica tanto, me senti sadista, não vale a
pena falar porque sofro estupidamente. Enfim, estou grandioso
de tão feliz e talvez seja melhor você rasgar esta carta (...)”.
254
E comenta Lafetá: “Ele tomava consciência, com espantosa exatidão
psicológica, das ambigüidades do mito de Narciso. Por que insistiria, então?”
255
.
As componentes sádicas da pulsão de morte estão claramente enunciadas
por Mário de Andrade no trecho da carta a Manuel Bandeira transcrito por Lafetá.
O comportamento melancólico é marcado pela circularidade infernal em que o
auto-flagelamento é elemento crucial. Preso ao vazio do próprio “ego”, o
melancólico se entrega à infinita e labiríntica reflexão cujo núcleo é a permanente
auto-acusação.
Albrecht Dürer, em 1514, cristalizou numa famosa gravura a iconografia
clássica da melancolia
256
. Inicialmente, observamos que muitos dos elementos
254
Apud: Lafetá, João Luiz. Op. cit., p. 194.
255
Idem, ibidem, p. 194.
216
simbólicos presentes no trabalho do artista alemão remetem diretamente ao
universo poético de “A meditação sobre o Tietê”, em especial, à água: elemento
por excelência associado ao “humor” melancólico.
Na gravura, está representada uma figura solitária e ensimesmada, com o
olhar fixo num ponto indeterminado e completamente absorta em suas reflexões. O
olhar está dirigido para um "objeto" fora dos limites estabelecidos na obra.
Nota-se a tensão constante estabelecida entre o olhar oblíquo e a rigorosa
construção racional do espaço tridimensional, centrada na perspectiva e no ponto
de fuga. A tensão revela a não conformidade aos estreitos limites impostos pelo
mundo à existência humana.
Outro aspecto importante na representação da melancolia é o emprego do
branco e do preto, responsáveis pelo jogo de claro-escuro, sombra e luz, e
variação tonal. Esse dado remete à própria ambigüidade da figura, ser dividido
entre mundos, vivendo no intermediário. No melancólico, a luz brota das trevas
(epifania demoníaca), processo também presente em “A meditação sobre o Tietê”.
A descrição da representação de Dürer revela de imediato um caráter
alegórico: a cabeça da figura acha-se coroada de louros e está levemente inclinada,
apoiando-se no punho esquerdo. A mão direita segura, displicentemente, um
compasso com o braço apoiado sobre um livro fechado. A figura, junto a um edifício
inacabado, reveste-se de ambigüidade. Ela está assentada, como que presa a terra,
índice de uma tensão contida, já que se trata de um ser alado. À sua volta,
caoticamente espalhados, encontram-se múltiplos objetos ligados às mais diversas
atividades e ofícios humanos, em completo abandono:
256
“O ponto culminante do pensamento humanista de Dürer encontra-se sem dúvida na gravura
em cobre mais famosa do artista, Melancolia (...) [que] exprime o problema da apatia e do
desalento, o sofrimento do intelectual desalentado pelos enigmas que suas especulações não
conseguem resolver (...). Esta estampa é de certo modo, o seu retrato interior, a imagem de um
homem criador, exposto na sua solidão e tristezas, a dúvidas e incertezas.”. Heiden, Rüdiyer an
der. Dürer. In História da Arte: vol. 6. Rio de Janeiro: Editora Salvat, 1978. p. 306. Há uma
reprodução da gravura no final deste trabalho. Ver a Iconografia.
217
A melancolia está plenamente acordada, com o olhar fixo
em busca desejada mais infrutífera. É inativa não por preguiça, mas
porque o trabalho perdeu o sentido: sua energia está paralisada não
pelo sono, mas pelo pensamento. A melancolia não é deste ponto
de vista, somente um caso mental, mas um ser pensante em
perplexidade.
257
Na gravura encontram-se três seres vivos: o anjo melancólico, um cachorro
que dorme e uma criança também alada. Alguns dos objetos chamam
imediatamente a atenção: o compasso, símbolo do rigor da ciência que “... revela
a impotência da razão abstrata e calculadora em remover o sentimento de
incoerência da vida."
258
. A ampulheta, marca do fluir inabalável do tempo; a
escada encostada no edifício diz da obra inacabada; a balança completamente
imóvel e vazia, sem ter o que pesar e medir; a criança alada absolutamente
absorta nas suas atividades remete à figura de Eros, mas um Eros totalmente
inativo e abandonado; a esfera, símbolo do homem contemplativo e da perfeição
absoluta; a pedra angulosa representando aspereza da matéria; o cão, animal
irracional, completamente imóvel e desligado do mundo. Finalmente acima da
cabeça da "Melancolia" encontra-se um sino imóvel, “... a sineta dos mortos
fendida"
259
.
Alguns desses objetos apresentam clara função apotropáica, pois estão em
conexão com o desejo de afastar o maligno e a morte. Há algo de hermético no
simbolismo dos objetos da gravura: o anjo sombrio, o Eros apático, o cão
adormecido, o compasso, a ampulheta, a esfera, a pedra angulosa, o edifício
inacabado, a escada apoiada, a balança imóvel compõem um conjunto enigmático
regido pela proximidade da noite, a sombra da morte.
257
Matos, Olgária. A melancolia de Ulisses: a Dialética do Esclarecimento e o canto das sereias.
In: Os sentidos da paixão. Rio de Janeiro: Funarte / São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.
151.
258
Idem, ibidem, p. 152.
259
Heiden, Rüdiger an der. Op. cit. p. 306.
218
De um lado, os objetos de transformação da matéria, inertes e abandonados;
de outro, um ser completamente absorto em seus pensamentos e reflexões,
mergulhado na dúvida, sufocado pela angústia e pela impotência da razão e da
sensibilidade diante do mundo. A apatia, o desalento, o sofrimento confrontados
com os enigmas, com os problemas não resolvidos, enfim, com o abismo. Entre
eles, a reflexão e a consciência do fluir inexorável das coisas no tempo — a morte.
A idéia da derrelição do poeta moderno encontra o seu correlato nessa imagem.
Essa gravura renascentista se tornou um emblema, um brasão do
estado melancólico, pois seu caráter alegórico tem o poder de transcender
a história como forma de representação. No entanto o sentido da
experiência melancólica só pode ser verdadeiramente definido a partir do
diálogo com o seu lugar histórico particular.
Em Dürer, a “Melancolia" está com a cabeça reclinada e aparece adornada
com os louros do lirismo, referência inequívoca ao mundo da poesia. Do alto da
ponte, o poeta solitário contempla o reflexo das coisas e não as coisas em
si. Há algo de fantasmático e de vicário: tudo se desmancha no fluir do rio.
Imagem arquetípica, modernamente atualizada em “A meditação
sobre o Tietê”, revela que a complexidade do poema é resultado da densa
assimilação da tradição literária e de seus modelos universais de
expressão.
7
São Paulo: entre Babel e Sião
A proximidade da “Melancolia” do elemento aquático é importante para a
compreensão de “A meditação sobre o Tietê”, pois possui ressonâncias da
tradição literária. Insistimos na idéia de que esse poema de Mário de Andrade
deita fundas raízes na tradição literária ocidental, lançando luzes importantes
para a compreensão do poeta e de sua poesia.
219
A dimensão mítica está entranhada na poética e a rememoração das
forças cósmicas que presidem a criação / destruição do mundo está presente
não somente nos rituais de feitiçaria popular, mas também em toda a tradição
religiosa, em especial na bíblica (“Gênesis” e “Apocalipse”). Nesse universo em
particular, a água desempenha papel preponderante.
O texto bíblico apresenta vários momentos em que profetas lamentam o
destino do povo e de Jerusalém. Entre as lamentações, as mais famosas são as
cinco proferidas por Jeremias.
Na tradição literária em língua portuguesa, há um conhecido exemplo da
lamentação poética — amarga e desencantada — em que a imagética fluvial é o
centro da elocução lírica. Trata-se do famoso poema camoniano “Sôbolos rios”,
também conhecido como “Babel e Sião”:
Sôbolos rios que vão
por Babilônia, me achei,
onde, sentado, chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado:
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
260
Nos versos seis e sete, há um hábil jogo entre “rio” e “lágrimas”,
confundidos na experiência dolorosa da recordação do perdido na decadência do
presente. As águas do “rio” e as “lágrimas” convergem para concretização da dor
que domina a voz lírica. O final de “A meditação sobre o Tietê” também é
marcado pela fusão da lágrima com a corrente fluvial:
Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
260
Camões, Luis de. Líricas. Lisboa: Sá da Costa, 1981, pp. 29-30.
220
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.
261
O poema camoniano apresenta outra dimensão: seus versos são
marcados pela intertextualidade, constituem-se numa reelaboração poética do
Salmo 136 (137), conhecido em latim como Super flumina Babylonis. O aspecto
mítico do tema da lamentação à beira rio liga o poema de Mário de Andrade à
tradição literária e religiosa, conferindo-lhe dimensão de rito. O salmo começa
justamente com a referência ao fluvial:
À beira dos canais de Babilônia
nos sentamos, e choramos
com saudades de Sião;
nos salgueiros que ali estavam
penduramos nossas harpas.
262
A referência à “harpa” é relevante, pois vem associada, tanto no texto
quinhentista quanto no bíblico, à canção. A harpa é um instrumento lítero-
musical que aproxima poesia e música, arte e melancolia, lamentação filosófico-
religiosa e lírica, tudo motivado pelo fluir do rio que recorda o fluir do tempo e as
dores acumuladas. “Harpa” e “Lira” pertencem ao mesmo campo semântico.
A referência à destruição da Babilônia (Babel), presente no salmo (“feliz
quem devolver a ti / o mal que nos fizeste!”), é retomada explicitamente no
Apocalipse com uma variação dos versos anteriores (“Devolvei-lhe o mesmo que
ela pagou”). O capítulo dezoito do Apocalipse se divide em três partes: Um anjo
261
Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo:
Edusp, 1987, p. 396.
262
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000, p.1102.
221
anuncia a queda de Babilônia, O povo de Deus deve fugir e Lamentações sobre
babilônia. Nele, encontram-se expressões, como, “grande prostituta”, “cidade
prostituída”, “moradia de demônios”, “reis da terra”, “mercadores da terra”, “glória
e luxo”, “tormento e luto”.
A lamentação dos “mercadores da terra” é motivada pelo desprezo dos
homens às mercadorias (“... porque ninguém compra mais suas mercadorias...”)
e é sucedida pela aparição da figura Angélica encarregada de anunciar o fim da
Babilônia:
.
..um Anjo poderoso levantou uma pedra, como uma
grande mó, e atirou ao mar dizendo:
“Com tal ímpeto será lançada
Babilônia, a grande cidade
e nunca mais será encontrada;
e o canto de harpistas e músicos,
de flautistas e tocadores de trombeta,
em ti não mais se ouvirá;
e nenhum artífice de qualquer arte
jamais em ti se encontrará;
e o canto do moinho
em ti não mais se ouvirá;
e a luz da lâmpada
nunca mais em ti brilhará;
e a voz do esposo e da esposa
em ti não mais se ouvirá,
porque os teus mercadores eram os magnatas da terra,
e com tua magia as nações todas foram seduzidas:
e nela foi encontrado o sangue de profetas e santos,
e de todos os que foram imolados sobre a terra.”
263
Esse anjo da destruição (anjo exterminador, anjo da morte), pode ser
considerado uma prefiguração da “fúria santa” do poeta moderno contra as
263
Ibidem, pp. 2322-2323.
222
potências “demoníacas” do capital e de suas mercadorias. Expressões como
“mercadores da terra” ou “magnatas da terra” trazem imediatamente à memória
uma das expressões chaves de “A meditação sobre o Tietê”: os “donos da vida”.
O mais arcaico (o “Apocalipse”) e o mais moderno (a “Meditação”) se fundem de
forma paradoxal numa espécie de eterno retorno do mesmo no universo das
relações imaginárias e poéticas.
A aproximação entre São Paulo e Babilônia era corrente no imaginário
paulista dos anos vinte. No livro Orfeu estático na metrópole, Nicolau Sevcenko
elabora essa associação imagética num tópico intitulado “Carnaval na Babilônia”,
revelando um complexo simbólico entranhado no imaginário coletivo — cuja
expressão mais evidente é a designação da capital paulista como “Babel
invertida” —, habilmente manipulado pelas elites da cidade durante aquela
década.
Na expressão “Babel invertida”, proliferam significados ideológicos
sintomáticos do imaginário social criado a partir do crescimento acelerado da
cidade de São Paulo, no início do século XX. Para esse complexo imagético,
contribuiu decisivamente a presença do imigrante, que fez de São Paulo a
“Canaã” de pedra.
Para o historiador, o “mito” se explica pela necessidade de evidenciar um
“sentido”, uma “teleologia” para o processo de modernização capitalista em
curso na cidade, que legitimasse a ação das elites locais responsáveis pelo
processo.
A expressão “Babel invertida” denota o oposto da Babel bíblica, pois São
Paulo seria o espaço do encontro harmonioso dos homens. O crescimento da
cidade é interpretado, então, em chave positiva: São Paulo realizaria o que
outras civilizações — em especial, a européia — não haviam conseguido. A
concepção do desenvolvimento capitalista se dá pela analogia mítica, cujo
objetivo paradoxal é encobrir a brutalidade verdadeira do processo histórico.
O processo como um todo está em sintonia com as profundas mudanças
ocorridas no país desde o início do século XX. O crescimento capitalista atraiu
para São Paulo um fluxo de imigrantes sem precedentes que darão à cidade a
223
fisionomia moderna, ao mesmo tempo em que os resquícios arcaicos da
formação nacional não serão totalmente eliminados das relações sociais
estabelecidas nesse novo contexto:
Nesse quadro, estabelecido pela expansão internacional
da economia cafeicultora, a cidade de São Paulo, subproduto
imprevisto e até inoportuno dessa evolução, aparece aos
agentes desgarrados e itinerantes enredados nela, como a
possível bóia salva-vidas no descomunal naufrágio que os
flagelara. Desenganados das falácias do “ouro verde", da
"sociedade livre", da "economia competitiva", pela realidade
restrita da monocultura extensiva, esses homens e mulheres,
das mais variadas culturas e extrações sociais, buscariam em
São Paulo uma válvula de escape, um abrigo temporário ou, no
melhor dos casos, uma segunda chance, na indústria ou nos
serviços. Para os negros, desde os últimos tempos da
escravidão, a cidade era um foco de quilombos e agitação
abolicionista, onde o ar recendia a liberdade. Mas a
discriminação, a competição em condições desvantajosas com
os imigrantes e a brutal repressão policial cedo anuviaram essa
perspectiva. Aos caipiras, acuados e pressionados pelo avanço
das fazendas, a demanda crescente da cidade poderia oferecer
uma alternativa de pequenos serviços e vendas, muito limitados
porém, dados os custos implicados pela concorrência dos
"chacareiros" imigrantes, pelos controles oficiais do acesso aos
mercados: pela ação inelutável dos açambarcadores. Aos
imigrantes, em boa parte coligados em comunidades de
patrícios, nos casos ainda mais felizes, em Associações de
Ajuda Mútua, Uniões Operárias, sindicatos ou círculos
paroquiais, a situação nem por isso era promissora.
Defrontados com jornadas de dez, quatorze ou dezesseis horas
de trabalho, preferencialmente propostos a mulheres e
crianças, salários congelados, custo de vida e aluguéis em
escalada permanente e completo desamparo legal, sua vida na
cidade pouco diferia das fazendas de que se haviam esquivado.
224
Mais do que o mito de Babel, nessa ordem de metáforas, São
Paulo para estes grupos evocaria o Cativeiro da Babilônia.
264
A descrição aponta com clareza para as formas e as conseqüências
imediatas do processo de modernização conservadora que marca a
transformação da provinciana São Paulo numa metrópole capitalista. As
ressonâncias do imaginário social inevitavelmente se projetam no imaginário
poético: a “Babel invertida” é mito, mas, na realidade, o “cativeiro da Babilônia”.
Um exemplo desse processo imagético, na poesia de Mário de Andrade
anterior à “A meditação sobre Tietê”, encontra-se em Paulicéia desvairada:
Colloque sentimental
Tenho os pés chagados nos espinhos da calçada...
Higienópolis!... As Babilônias dos meus desejos baixos...
Casas nobres de estilo... Enriqueceres em tragédias...
Mas a noite é toda um véu-de-noiva ao luar!
A preamar dos brilhos das mansões...
O jazz-band da cor... O arco-íris dos perfumes...
O clamor dos cofres abarrotados de vidas...
Ombros nus, ombros nus, lábios pesados de adultério...
E o rouge — cogumelo de podridões...
Exército de casacas eruditamente bem talhadas...
Sem crimes, sem roubos o carnaval dos títulos...
Si não fosse o talco adeus sacos de farinha!
Impiedosamente...
— Cavalheiro... — Sou conde! — Perdão.
Sabe que existe um Brás, um Bom Retiro?
— Apre! respiro... Pensei que era pedido.
Só conheço Paris!
264
Sevcenko, Nicolau. Op. cit., p. 39.
225
— Venha comigo então.
Esqueça um pouco os braços da vizinha...
— Percebeu, hein! Dou-lhe gorgeta e cale-se.
O sultão tem dez mil... Mas eu sou conde”
— Vê? Estas paragens trevas de silêncio...
Nada de asas, nada de alegrias... A Lua...
A rua toda nua... As casas sem luzes...
E a mirra dos martírios inconscientes...
— Deixe-me por o lenço no nariz.
Tenho todos os perfumes de Paris!
— Mas olhe, em baixo das portas, a escorrer...
— Para os esgotos! Para os esgotos!
— .... a escorrer,
Um fio de lágrimas sem nome!...
265
No poema “As Babilônias dos meus desejos baixos...” se fundem a “Casas
nobres de estilo...” e o ritmo do “jazz-band”, que dá o tom dos “ombros nus”, dos
“lábios pesados de adultério” e do “Exército de casacas eruditamente bem
talhadas...”. O “Brás”, o “Bom Retiro” e “Paris” se misturam da mesma forma que
o “Conde” e o Sultão”, e o eu lírico, em sua caminhada de “... pés chagados nos
espinhos das calçadas...”, observa “... Para esgotos! / ... a escorrer, / Um fio de
lágrimas sem nome!...”. Imagem idêntica à da lágrima a escorrer nos versos
finais de “A meditação sobre o Tietê”: “Uma lágrima apenas, uma lágrima, / Eu
sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.”
É visível que o complexo social, descrito por Sevcenko e representado
no imaginário poético dos anos vinte, está associado à simbologia mítica cristã
265
Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Poesia Completa. Belo Horizonte:
Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, pp. 99-100.
226
que opõe “Babel” a “Sião”. O universo poético “feérico” de Paulicéia Desvairada
encontra expressão na analogia com a Babilônia bíblica. Esse complexo
simbólico, presente no texto bíblico e reposto pelo poema camoniano, também
fornece o substrato de imagens que orienta o fluxo poético em “A meditação
sobre o Tietê”. Em síntese, a reposição do mito assinala um horizonte histórico
específico, uma vez que o lugar de fala do poeta contém uma dimensão
arquetípica.
No embate com o momento histórico objetivo, a sensibilidade lírica de
Mário de Andrade reelabora criticamente o imaginário de seu tempo (a “Babel
invertida”) e as fontes da tradição literária repostas e atravessadas agora pela
consciência crítica das contradições do país.
8
Os três poemas finais: um tríptico?
“A meditação sobre o Tietê” é antecedida pelo poema “Entre o
vidrilho das estrelas dúbias” e sucedida por “Nasceu Luís Carlos no
Rio”
266
.
A seqüência que eles compõem parece apontar uma
intencionalidade do poeta. O poema “Entre o vidrilho das estrelas dúbias”
é uma angustiada meditação sobre a guerra centrada nas profundas
relações afetivas entre Mário de Andrade e “Luisito”. O choque entre o
afeto e a consciência ética do poeta produz tensão aguda que deságua na
impossibilidade de comunicação com o objeto do afeto. A amargura é
imensa e, de alguma forma, prefigura o clima de “A meditação sobre o
Tietê”.
266
Em verdade “A meditação sobre o Tietê” é antecedida pelo poema “Nunca estará sozinho”.
“Entre o vidrilho das estrelas dúbias” vem imediatamente antes desse poema. Estamos
aproximando os três poemas, por acreditarmos que há entre eles um diálogo importante.
227
Há um continuum de tensão nos dois poemas: o choque do poeta
com o “afilhado”, choque do poeta consigo mesmo, choque do poeta com
o mundo — condensado em “Entre o vidrilho das estrelas dúbias”;
transbordante em “A meditação sobre o Tietê”. Como as águas do rio, os
versos se espraiam e se ampliam de um poema a outro.
Em contraposição, ao final do livro, encontramos um poema em que
o poeta revela débil esperança do mundo que há-de nascer. Somente a
negatividade absoluta é capaz de criar a consciência de sua possível
superação.
Parece-nos que a ordem estabelecida pelos três poemas citados
não é aleatória. No movimento marcado pela oscilação entre luz e trevas,
eles constituem uma totalidade triádica, que, de alguma forma, elucida as
contradições insolúveis da voz lírica, ao longo dos poemas da Lira
Paulistana.
O último poema desse livro é intitulado “Acalanto”: uma sensível
homenagem ao nascimento de Luís Carlos. Nele, manifesta-se um tom
aparentemente menos amargo, se comparado ao de “Entre o vidrilho das
estrelas dúbias” e de “A Meditação sobre o Tietê”:
(Acalanto para Luís Carlos, filho de
Guilherme de Figueiredo com Alba.)
Nasceu Luís Carlos no Rio
E todo me transportei,
Luís Carlos do meu carinho.
Vive um Luís Carlos sozinho
E todo me apaixonei,
Luís Carlos do meu respeito.
Luís Carlos, dorme em meu peito,
Goza a infância sossegado,
Sonha, brinca, dorme, dorme!
228
Luís Carlos, fecundo, enorme,
Sofre o sonho amordaçado,
Não cede, não vive, flâmula!
Criança, nasces num cúmulo
De nuvem rubra e pletora
Que dará volta na vida.
Homem, morres nessa lida
Pra que a criança de agora
Viva outra vida mais branca.
Dorme, Luís Carlos, a franca
Perfeição desse teu sono,
Enquanto o mundo é mudado
Pelo homem sacrificado,
Por amor do teu futuro
Que vivas íntegro, como
Hoje puro, amanhã puro
267
.
O “Acalanto” é composto de oito estrofes: as sete primeiras são
tercetos, e a última, quarteto. Escrito em redondilhas maiores, marcado
por sonoridade delicada e suave, o poema lembra uma canção de ninar. O
ato de cantar e de embalar expressa um desejo do poeta de acolher o
recém-nascido e de protegê-lo da “pletora” do mundo.
Outro elemento importante na estrutura do poema é o esquema das
rimas (abc cdb def feg g’hi ihj jkl lmk’n): progridem sutilmente de uma
estrofe para outra. Um ou dois sons da estrofe anterior aparece(m) na
seguinte numa espécie de relação especular. A nova sonoridade é
introduzida sem que ritmo da leitura seja segmentado.
267
Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Andrade, Mário de. Poesia
Completa. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987, p. 397.
229
O poema desliza de maneira suave e envolvente criando uma
atmosfera de afeto sincero, que não abdica da consciência da fratura do
tempo presente (“nasces num cúmulo / De nuvem rubra e pletora...”;
“Enquanto o mundo é mudado / Pelo homem sacrificado / Por amor do teu
futuro.”).
A imagem de possível redenção associada ao nascimento de uma
criança contém ressonâncias cristãs e se desdobra na cultura popular,
cujo exemplo mais óbvio no imaginário de Mario de Andrade é “Mestre
Carlos” (“meu grande sinal”), o Deus-menino do Catimbó.
O cruzamento da tradição erudita com a popular, elegendo a
Natividade como elemento de tênue esperança, está presente no poema
de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida Severina. Mestre Carpina, ao
responder a Severino se não seria melhor “saltar fora da ponte e da vida”,
argumenta que o nascimento da criança, por si só, contém uma
pequeníssima fonte de esperança.
O simbolismo profundo da natividade cristã se reproduz no último
poema do último livro de poesia de Mário de Andrade. A idéia suicida de
saltar da ponte explícita no Auto pernambucano é o demônio que “não diz
o seu nome” em “A meditação sobre o Tietê”.
A Lira Paulistana termina com um acalanto, que “não aquece”, pois,
ao mesmo tempo em que aponta para destino do homem futuro, enfatiza
que o poeta está excluído desse tempo, apesar do muito que trabalhou
para que ele se tornasse possível:
Nalgum lugar faz-se esse homem...
Contra a vontade dos pais ele nasce,
contra a astúcia da medicina ele cresce,
e ama, contra a amargura da política.
Não lhe convém o débil nome de filho,
pois só a nós mesmos podemos gerar,
e esse nega, sorrindo, a escura fonte.
230
Irmão lhe chamaria, mas irmão
por quê, se a vida nova
se nutre de outros sais, que não sabemos?
Ele é seu próprio irmão, no dia vasto,
na vasta integração das formas puras,
sublime arrolamento de contrários
enlaçados por fim.
Meu retrato futuro, como te amo,
e mineralmente te pressinto, e sinto
quanto estás longe de nosso vão desenho
e de nossas roucas onomatopéias...
268
268
Andrade, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992, pp. 206-207.
231
Anexo 1
Agora eu quero cantar
Agora eu quero cantar
Uma história muito triste
Que nunca ninguém cantou,
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou.
Não houve acalanto.Apenas
Um guincho fraco no quarto
Alugado. O pai falou,
Enquanto a mãe se limpava:
— É Pedro. E Pedro ficou.
Ela tinha o que fazer,
Ele inda mais, e outro nome
Ali ninguém procurou,
Não pensaram em Alcebíades,
Floriscópio, Ciro, Adrasto,
Que-dê tempo pra inventar!
— É Pedro. E Pedro ficou.
Pedrinho engatinhou logo
Mas muito tarde falou;
Ninguém falava com ele,
Quando chorava era surra
E aprendeu a emudecer.
Falou tarde, brincou pouco,
Em breve a mãe ajudou.
Nesse trabalho insuspeito
Passou o dia, e nem bem
A noite escura chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o prostrou.
Por trás do quarto alugado
Tinha uma serra muito alta
Que Pedro nunca notou,
Mas num dia desses, não
Se sabe porquê, Pedrinho
Para a serra se voltou:
— Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou.
Sineta que fere ouvido,
Vida nova anunciou;
Que medo ficar sozinho,
Sem pai, mesmo longínquo,sem
Mãe, mesmo ralhando, tanta
Piasada, ele sem ninguém...
Pedro foi para um cantinho,
Escondeu o olho e chorou.
Mas depois foi divertido,
Aliás prazer misturado,
Feito de comparação.
O menino roupa-nova
Pegava tudo o que a mestra
Dizia, ele não pegou!
Porquê! ... Mas depois de muito
Custo, a coisa melhorou.
Ele gostava era da
História Natural, os
Bichos, as plantas, os pássaros,
Tudo entrava fácil na
Cabecinha mal penteada,
Tudo Pedro decorou.
Havia de saber tudo!
Se dedicar! descobrir!
Mas já estava bem grandinho
232
E o pai da escola o tirou.
Ah que dia desgraçado!
E quando a noite chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o prostrou.
Por trás da escola de Pedro
Tinha uma serra bem alta
Que o menino nunca olhou;
Logo no dia seguinte
Quando a oficina parou,
Machucado, sujo, exausto,
Pedrinho a escola rondou
E eis que de repente, não
Se sabe porque, Pedrinho
Para a serra se voltou:
— Havia de ter por certo
Outra vida bem mais linda
Por trás da serra! pensou.
Vida que foi de trabalho,
Vida que o dia espalhou,
Adeus bela natureza,
Adeus, bichos, adeus, flores,
Tudo o rapaz obrigado
Peta oficina, largou.
Perdeu alguns dentes e antes,
Pouco antes de fazer quinze
Anos, na boca da máquina
Um dedo Pedro deixou.
Mas depois de mês e pico
Ao trabalho ele voltou,
E quando em frente da máquina,
Pensam que teve ódio? Não!
Pedro sentiu alegria!
A máquina era ele! a máquina
Era o que a vida lhe dava!
E Pedro tudo perdoou.
Foi pensado, foi pensando,
E pensou que mais pensou,
Teve uma idéia, veio outra,
Andou falando sozinho,
Não dormiu, fez experiência,
E um ano depois, num grito,
Louca alegria de amor,
A máquina aperfeiçoou.
O patrão veio amigável
E Pedro galardoou,
Pôs ele noutro trabalho,
Subiu um pouco o ordenado:
— Aperfeiçoe esta máquina,
Caro Pedro e se afastou.
Era um cacareco de
Máquina! e lá, bem na frente,
Bela, puxa vida! bela,
A primeira namorada
De Pedro, nas mãos dum outro,
Bela, mais bela que nunca,
Se mexendo trabalhou
O dia inteiro. Nem bem
A noite regra chegou,
O rapaz desiludido
Um sono bruto prostrou
Por trás da fábrica havia
Uma serra bem mais baixa
Que Pedro nunca enxergou,
Porém no dia seguinte
Chegando pra trabalhar,
Não se sabe porque,
Pedro Para a serra se voltou:
— Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou.
233
Oh, segunda namorada
Flui
-
de abril! cabelo crespo,
Mão de princesa, corpinho
De vaca nova ... Era vaca.
Aquele riso que faz
Que ri, nunca me enganou...
Caiu nos braços de quem?
Caiu nos braços de todos,
Caiu na vida e acabou.
Com a terceira namorada,
Na primeira roupa preta,
Pedro de preto se casou.
E logo vieram os filhos,
Vieram doenças... Veio a vida
Que tudo, tudo aplainou.
Nada de horrível, não pensem,
Nenhuma desgraça ilustre
Nem dores maravilhosas,
Dessas que orgulham a gente,
Fazendo cegos vaidosos,
Tísicos excepcionais,
Ou formando Aleijadinhos,
Beethovens e heróis assim:
Pedro apenas trabalhou.
Ganhou mais, foi subindinho,
Um pão de terra comprou.
Um pão apenas, três quartos
E cozinha, num subúrbio
Que tudo dificultou.
Menos tempo, mais despesa,
Terra fraca, alguma pera,
Emprego lá na cidade,
Escola pra filho; ofício
Pra filho, um num choque de
Trem, invalido ficou.
Sono! único bem da vida!...
Foi essa frase sem força,
Sem História Natural;
Sem máquina, sem patente
De invenção, que por derradeiro
Pedro na vida inventou.
E quando remoendo a frase.
A noite preta chegou,
Pedro, Pedr
-
inho, José,
Francisco, e nunca Alcibíades,
Um sono bruto anulou
Por trás da murada nova
Não tinha serra nenhuma,
Nem morro tinha, era um plano
Devastado e sem valor,
Mas um dia desses, sempre
Igual ao que ontem passou,
Pedro, João, Manduca. não
Se sabe porque, Antônio
Para o plano se voltou:
— Talvez houvesse, quem sabe,
Uma vida bem mais calma
Além do plano, pensou.
Havia, Pedro, era a morte.
Era a noite mais escura,
Era o grande sono imenso;
Havia, desgraçado, havia
Sim, burro, idiota, besta,
Havia sim, animal,
Bicho, escravo sem história,
Só da História Natural!...
Por trás do túmulo dele
Tinha outro túmulo. . . Igual.
Anexo 2
A Meditação sobre o Tietê
Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
— Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
235
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...
Já nada me amarga mais a recusa da vitória
Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
A me reconciliar com a dor humana pertinaz,
E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.
Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dor
Por minhas mãos, por minhas desvividas mãos, por
Estas minhas próprias mãos que me traem,
Me desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,
Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada
Se perdeu em cisco e pólem, cadáveres e verdades e ilusões.
Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,
Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,
Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!
Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,
Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado
De infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,
Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,
Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,
À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!
Eu desisiti! Mas do ponto entre as águas e a noite,
Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,
De que o homem há de nascer.
Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando
As cordas oscilantes da serpente, rio.
Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
236
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas,
fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.
Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são água que se beba, eu descobri!
E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, se encapela
Engruvinhado de dor que não se suporta mais.
Me sinto o pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!
Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!
Nordeste de impaciente amor sem metáforas,
Que se horroriza e enraivece de sentir-se
Demagogicamente tão sozinho! Ó força!
Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima que me inunda,
Me alarma e me destroça, inerme por sentir-me
Demagogicamente tão só!
A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tua
Si as tuas águas estão podres de fel
E majestade falsa? A culpa é tua
Onde estão os amigos? Onde estão os inimigos?
Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, e
Os iletrados?
237
Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis Quiroga!
E os Prados e os crespos e os pratos e
os barbas e os gatos e os línguas
Do Instituto Histórico e Geográfico, e os museus e a Cúria,
e os senhores chantres reverendíssimos,
Celso niil estate varíolas gide memoriam,
Calípedes flogísticos e a Confraria Brasiliense e Clima
E os jornalistas e os trustkistas e a Light e as
Novas ruas abertas e a falta de habitações e
Os mercados?... E a tiradeira divina de Cristo!...
Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonha
De ti em tua ambição fumarenta.
És demagogia em teu coração insubmisso.
És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico
E antiuniversitário.
És demagogia. Pura demagogia.
Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.
Mesmo irrespirável de furor na fala reles:
Demagogia.
Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:
Demagogia.
Tu és em meio à (crase) gente pia:
Demagogia.
És tu jocoso enquanto o ato gratuito se esvazia:
Demagogia.
És demagogia, ninguém chegue perto!
Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto
Esperto Ciumento Peripatético e Ceci
E Tancredo e Afrodísio e também Armida
E o próprio Pedro e também Alcibíades,
Ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,
O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bem
Sutis!... E as tuas mãos se emaranham lerdas,
E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,
Porque és demagogia e tudo é demagogia.
238
Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os carcomidos peixes!
São eles que empurram as águas e as fazem servir de alimento
Às areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,
Esse é um presidente, mantém faixa de crachá no peito,
Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotunda
O perrepismo dos dentes, se revezam na rota solene
Languidamente presidenciais. Ei-vem o tubarão-martelo
E o lambari-spitfire. Ei-vem o boto-ministro.
Ei-vem o peixe-boi com as mil mamicas imprudentes,
Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranas
Em zás-trás dos guapos Pêdêcê e Guaporés.
Eis o peixe-baleia entre os peixes muçuns lineares,
E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;
Mas és asnático o peixe-baleia e vai logo encalhar na margem,
Pois quis engolir a própria margem, confundido pela facheada,
Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincando
De dirigir a corrente com ares de salva-vidas.
E lá vem por debaixo e por de-banda os interrogativos peixes
Internacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,
E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! e as duas
Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa-lufa de ganhar
No bicho o corpo do crucificado. Mas as águas,
As águas choram baixas num murmúrio lívido, e se difundem
Tecidas de peixe e abandono, na mais incompetente solidão.
Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe!
Berra de amor humano impenitente,
Cega, sem lágrimas, ignara, colérica, investe!
Um dia hás de ter razão contra a ciência e a realidade,
E contra os fariseus e as lontras luzidias.
E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.
E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos de equilíbrio e
Pundhonor.
Pum d'honor.
Qué-de as Juvenilidades Auriverdes!
Eu tenho medo... Meu coração está pequeno, é tanta
Essa demagogia, é tamanha,
Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,
239
Em busca apenas dum sabor,
Em busca dum olhar,
Um sabor, um olhar, uma certeza...
É noite... Rio! meu rio! meu Tietê!
É noite muito!... As formas... Eu busco em vão as formas
Que me ancorem num porto seguro na terra dos homens.
É noite e tudo é noite. O rio tristemente
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
Água noturna, noite líquida... Augúrios mornos afogam
As altas torres do meu exausto coração.
Me sinto esvair no apagado murmulho das águas
Meu pensamento quer pensar, flor, meu peito
Quereria sofrer, talvez (sem metáforas) uma dor irritada...
Mas tudo se desfaz num choro de agonia
Plácida. Não tem formas nessa noite, e o rio
Recolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,
E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.
Si todos esses dinossauros imponentes de luxo e diamante,
Vorazes de genealogia e de arcanos,
Quisessem reconquistar o passado...
Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculo
A cauda do pavão e mil olhos de séculos,
Sobretudo os vinte séculos de anticristianismo
Da por todos chamada Civilização Cristã...
Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,
Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.
Não posso continuar mais, não tenho, porque os homens
Não querem me ajudar no meu caminho.
Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescente
De luzes inimagináveis e certezas...
Eu não seria tão-somente o peso deste meu desconsolo,
A lepra do meu castigo queimando nesta epiderme
Que encurta, me encerra e me inutiliza na noite,
Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.
Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rio
Murmura num banzeiro. E contemplo
240
Como apenas se movimenta escravizada a torrente,
E rola a multidão. Cada onda que abrolha
E se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surto
Mirim dum crime impune.
Vêm de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,
E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,
E lá na frente são outros, todos soluçantes e presos
Por curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.
Há de todos os assombros, de todas as purezas e martírios
Nesse rolo torvo das águas. Meu Deus! meu
Rio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!
Quem pode compreender o escravo macho
E multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorre
Entre injustiça e impiedade, estreitado
Nas margens e nas areias das praias sequiosas?
Elas bebem e bebem. Não se fartam, deixando com desespero
Que o rosto do galé aquoso ultrapasse esse dia,
Pra ser represado e bebido pelas outras areias
Das praias adiante, que também dominam, aprisionam e mandam
A trágica sina do rolo das águas, e dirigem
O leito impassível da injustiça e da impiedade.
Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rio
Que sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, e em vez
De ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,
Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,
Dando sangue e vida a beber. E a massa líquida
Da multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,
Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,
E rola mansa, amansada imensa eterna, mas
No eterno imenso rígido canal da estulta dor.
Porque os homens não me escutam! Por que os governadores
Não me escutam? Por que não me escutam
Os plutocratas e todos os que são chefes e são fezes?
Todos os donos da vida?
Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,
Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do grito
241
Metálico dos números, e tudo
O que está além da insinuação cruenta da posse.
E si acaso eles protestassem, que não! que não desejam
A borboleta translúcida da humana vida, porque preferem
O retrato a ólio das inaugurações espontâneas,
Com béstias de operário e do oficial, imediatamente inferior.
E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a profunda comoção,
Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade deslumbrante
De que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.
Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezes
De mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,
Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:
Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,
Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,
Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.
Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,
E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,
E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor...
Eu estalo de amor e sou só amor arrebatado
Ao fogo irrefletido do amor.
...eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei também
O amor do amor, Maria!
E a carne plena da amante, e o susto vário
Da amiga, e a inconfidência do amigo... Eu já amei
Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido
Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.
E também, ôh também! na mais impávida glória
Descobridora da minha inconstância e aventura,
Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei
Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!
E eu não sabia! eu bailo de ignorâncias inventivas,
E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!
Quem move meu braço? quem beija por minha boca?
Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?
Quem? sinão o incêndio nascituro do amor?...
Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,
Bardo mestiço, e o meu verso vence a corda
242
Da caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, e enrouquece
Úmido nas espumas da água do meu rio,
E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.
Por que os donos da vida não me escutam?
Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontes
Da água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.
Meu baile é solto como a dor que range, meu
Baile é tão vário que possui mil sambas insonhados!
Eu converteria o humano crime num baile mais denso
Que estas ondas negras de água pesada e oliosa,
Porque os meus gestos e os meus ritmos nascem
Do incêndio puro do amor... Repetição. Primeira voz sabida, o Verbo.
Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição logo ignorada.
Como é possível que o amor se mostre impotente assim
Ante o ouro pelo qual o sacrificam os homens,
Trocando a primavera que brinca na face das terras
Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!
É noite! é noite!... E tudo é noite! E os meus olhos são noite!
Eu não enxergo siquer as barcaças na noite.
Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,
E me disfarça numa queixa flébil e comedida,
Onde irei encontrar a malícia do Boi Paciência
Redivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,
Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,
Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintar
Nos ares, nas luzes longe, no peito das águas,
No reflexo baixo das nuvens.
São formas... Formas que fogem, formas
Indivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidias
Que mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes inacessíveis,
Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!...
Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza
Outra vida melhor do outro lado de lá
Da serra! E hei-de guardar silêncio
243
Deste amor mais perfeito do que os homens?...
Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.
No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável!
Eu sou maior que os vermes e todos os animais.
E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,
Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado,
Maior que a estrela, maior que os adjetivos,
Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias,
Transfigurado além das profecias!
Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
... e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.
30/11/1944 a 12/2/1945
244
ANEXO III
Um aspecto interessante do ensaio de João Luiz Lafetá está justamente
associado à expressão “Grã Cão”. Em todas as referências encontradas no seu
livro, o crítico emprega a expressão “Grão Cão”, ou seja, ele opta sempre por
empregar a forma “grão” em detrimento de “grã”. No entanto, a escolha do poeta
recai sempre sobre “Grã”. Basta compulsar as edições do livro para verificar este
fato. É bem verdade que as edições oscilam no emprego de “Grão” e “Grã”. Veja-
se:
1. Na edição de 1941, no índice e na página de rosto aprece como título do livro A
costela do Grã Cão. Na segunda parte também consta Grã Cão do Outubro. No
“Poema Tridente” a expressão empregada é “Grã Cão” (duas vezes). No poema
“Dor” a forma empregada é “Grã Cão” (duas vezes).
2. Na edição de 1955, no índice e na página de rosto aparece A costela do Grão
Cão como título do livro. Já a segunda parte é intitulada Grã Cão do Outubro. No
“Poema Tridente” a expressão é “Grão Cão” (duas vezes). No poema “Dor” se
encontra “Grã Cão” (também duas vezes).
3. Na edição de Diléa Zanotto Manfio, considerada edição crítica, a lição é a
seguinte: índice e título A costela do Grã Cão. A segunda parte também apresenta
a expressão Grã Cão de Outubro. No “Poema Tridente” temos “Grã Cão” (duas
vezes). No poema “Dor” repete-se “Grã Cão” (duas vezes).
O motivo que leva o crítico a empregar unicamente a forma “grão” se deve
ao fato de seguir a edição de 1955, na qual a oscilação está presente. Porém,
Lafetá não levanta este aspecto e explica numa nota de roda-pé no início do
ensaio:
Cito os versos sempre de acordo com a lição das Poesias
Completas. (1.ª ed.) São Paulo, Liv. Martins Ed., 1955. Cotejei,
245
quando possível com a edição das Poesias. São Paulo, Liv.
Martins Ed., 1941. Embora todas apresentem erros tipográficos, a
edição de 1955 pareceu-me a menos ruim. Atualizei a ortografia:
até que tenhamos uma edição crítica, este é, a meu ver, o
procedimento melhor
269
.
Já Diléa Zanotto Manfio — ao comentar a edição de Poesias, de 1941 —
afirma:
Esta edição seleciona onze poemas de Paulicéia
Desvairada e dezenove de Losango Cáqui, englobados sob o
título “O Estouro”; dezenove de Clã do Jabuti, sob o título Prisão
de Luxo; e vinte e um de Remate de males. A costela do Grã Cão
e Livro Azul aparecem aí, pela primeira vez. (...).
Poesias caracteriza-se pela seleção de poemas e pela
revisão do autor; essa revisão nos deu a oportunidade de sanar
alterações indevidas feitas pelas Poesias Completas, em 1955
270
.
A importância da questão da substituição de um termo por outro está no
fato de “grão” é semanticamente diferente de “grã”. Grão pode ser grande,
semente ou testículo. Já a palavra “grã” é forma arcaica para grande e significa
também carmim, vermelho. O vermelho é cor demoníaca por excelência, além de
ser a cor do socialismo.
269
Lafetá. João Luiz. Op. cit., p. 17.
270
Andrade, Mário de. Op. cit., pp. 31-33.
246
ANEXO IV
Sobre o poema “Rei dos Reis”, Mário de Andrade se estende longamente
numa carta destinada a Carlos Drummond de Andrade. O poeta paulista explica a
gênese do poema. Ei-la:
LXXXVII
S. Paulo, 23-VII-44 Carlos
(Não repare o t que pus em Carlos, já conto a razão disso) (1).
Recebi sua carta agora.
Fiquei contentíssimo com a notícia de que o Capanema vai me mandar a tiragem melhor do
Graal (2), mais, muito mais porém com a carta de você. Ontem lhe escrevi reclamando sua
resposta e ela veio como um alívio pelo que me repôs mais em mim. Deus queira que seja um
alívio por algum tempo, que estou carecendo disso.
Desde anteontem, umas três horas antes de escrever o "Rei dos Reis" que você deve
estar recebendo, me voltou um estado poético, essa coisa enfim de quando a gente fica "em
poesia" por dentro, de dentro pra fora e faz, vira poesia objetivada no papel, pouco importa se
ruim ou boa. Foi o mesmo que se deu na semana em que fiz os 16 poemas primeiros da Lira
Paulistana, e de tantas outras vezes, Paulicéia, Macunaíma, o "Noturno de Belo Horizonte",
"Danças" etc. Mas desta vez sinto, sei que tem um aspecto tão doloroso, tão eriçado de
angústias e obsessões, que tem momentos em que fico totalmente alucinado. Ontem de-noite
quando ia deitar, depois de andar sozinho pelas ruas perto de três horas, cheguei a ficar com
lágrimas nos olhos, de desespero. Os poemas da Lira, os mais revoltados, me voltam com
seus ritmos, e mesmo sem querer, vou dizendo mentalmente eles, desesperado, querendo não
dizer, mas não consigo. Nem leitura, nem cinema, nem nada consegue. Dos amigos tenho
horror, a presença deles, a insuficiência fatal do Outro, me dá uma desilusão tão física que
preciso fugir, pra ficar só dentro comigo. Mas então os poemas voltam, voltam, voltam sempre
os mesmos ...
Sabe? Quando fiz o "Rei dos Reis", principiei lendo ele e não podia parar, acabava de
ler e sem o menor espaço mais que o respiro reprincipiava fatalizado. Sem a menor espécie de
exagero, dando o número por baixo, por certo que li o poema umas trinta vezes sem parada.
Absolutamente fascinado.
Está claro que não era nenhuma "beleza" estética ou ideológica que me fascinava, era,
eu sinto, é fácil de perceber isso, é principalmente uma questão de ritmo, de dinâmica
247
fisiológica, o refrão implacável, com os seus érres roendo, corroendo, afirmando. Cheguei a
ficar tão alucinado, que o imperativo negativo da última estrofe "não mais espereis!", que de
fato soa mal, eu não sabia não conseguia saber se estava com a sintaxe certa! E remoía (comi
mi) (está vendo, como estou intelectualmente fatigadíssimo? também faz duas estas noites
que não consigo dormir! ia escrever "comigo", mas ia ortografando "com mi. . ." , quando
reparei, quis corrigir e me bateu que bastava acrescentar um i em com!
2
E remoía comigo:
"Não mais esperai", "Não mais esperais", "Não mais espereis": re-dizia a regra, me auxiliava
de outros exemplos "Não façais". Ontem estava jantando sozinho, de repente pensei "Não
permiti!" esse é que é o certo. A cabeça doeu tão agudo por dentro, e ficou doendo o tempo
todo em que pelas ruas tentava saber se era "não permiti" ou "não permitais", que quando
cheguei em casa precisei procurar a gramática. E dizia "preciso telegrafar ao Carlos (só você
conhece esse poema até agora, mais ninguém) que corrija o verso".
Porque na fuga pelas ruas me surgiram correções, porque eu tinha a pré-certeza de
que "não mais espereis!" estava errado. Lembrei duas mais aceitáveis (ao menos, mesmo que
estivesse certo, pra evitar o "não espereis" desagradável, eu me dizia), que temei nota no meu
caderninho, pra não esquecer. São assim:
1ª versão: Oh vós todos, homens, homens,
Homens, escravos sereis,
Se não fordes, todos juntos
Rei dos Reis.
2ª versão: Oh vós todos, homens, homens,
O Escravo sempre sereis,
Se hoje ou amanhã não fordes,
Rei dos Reis.
E em casa, já deitado, depois que a gramática me sossegou, ainda variei assim, pra
não perder a ternaridade transbordante de "homens, homens, homens" que gosto muito:
Oh vós todos, homens, homens,
Homens, não mais espereis!
Sede, não escravos (não o Escravo) mas
Rei dos Reis.
Mande sua opinião sobre qual prefere. O que eu mais gosto nestas versões novas, é
evitarem o "nós" da já mandada. Me ajuntar me desagrada, me fere mesmo o meu pudor
pessoal, pelo "burguês" que eu tenho sido.
248
Aliás na carta de ontem não poderia lhe contar estas coisas tão da fragilidade dolorosa
de mim, porque sucederam depois da carta, mas quis lhe contar como nasceu esse sacré de
poema na véspera, e só não contei porque estava exigindo de mim trabalhar. Mas agora
mando tudo plantar batata, porque preciso antes de mais nada me livrar destas obsessões.
Foi curioso. Estava escutando uma conferência do prof. Zabel (3) sobre Walt Whitman,
interessadíssimo. E vaidoso. Porque eu tenho uma dificuldade enorme de compreender o
inglês falado. A bem dizer isso já ficou como um complexo em mim que não consigo vencer.
Mas três dias antes, obrigado a apresentar Zabel ao público, fui também obrigado a escutar a
conferência dele sobre Cooper e Irving, que não me interessava nada. Mas fiquei
deslumbrado: entendia tudo que o homem falava! De forma que na 2ª conferência dele,
Whitman me interessando, fui contente. Estava interessadíssimo, o homem é bom mesmo, o
assunto era meu, eu entendendo tudo, quando de repente me bateu esta idéia na cabeça:
Preciso reler Whitman, quem sabe se ele me sugere mais alguns poemas prá Lira Paulistana.
Tanto bastou, não foi possível entender mais nada. Fazia esforço mas eu tinha um tumulto
nebuloso por dentro. Foi num esforço desses que o prof. Zabel conseguiu me prender todo,
dizendo por sinal que bem, único que disse bem, aquele poema de Whitman que repete de
quando em quando o refrão Oh pioneers, oh pioneers (4).
Gostei muito e surgiu assim, de
chapa e de supetão, esta idéia: "Aquele filme da vida de Cristo, de... (não me lembrava de
quem, e ainda não tenho a certeza que é de Cecil B. de Mille - que não sei como se escreve! -
e tudo ainda preciso tirar a limpo) de quem (5)?
não me lembro agora, tem um nome, que
posso aproveitar, com o contraste da anedota verdadeira do mictório. Mas como é o título
mesmo?. . . " E fiquei nisso, meu Carlos. Todo o resto da conferência era um esforço danado
pra me lembrar do título do filme, não conseguia. A idéia insistia em que principiava "O
grande..." qualquer coisa, e assim descaminhada, não conseguia atinar mesmo com o título.
Bem, conferência acabou, larguei de todos os conhecidos, vim sozinho, matutando com dor,
até que enfim me bateu na lembrança que decerto o título não principiava por "O grande" não-
sei-o-que, e eu carecia procurar doutro jeito. Mesmo assim, até em casa não foi possível
lembrar. Mas já conseguira firmar (do que não tenho ainda certeza) de que era de Cecil B. de
Mille, e ficava fácil procurar. Ou nos meus livros sobre cinema ou perguntando.
Mas como sempre faço, quando tenho a idéia dum poema, tomo nota em caderno
(aliás, não sei se lhe contei, foi uma nota dessas, tomada em 1936, descoberta agora que
provocou a nascença da Lira Paulistana) tomo nota e fico esperando que a coisa venha. Posso
até "forçar" que o poema chegue, pelos processos psicológicos e físicos existentes pra isso,
mas sou incapaz de sentar e escrever coisa nenhuma (em poesia) sem já estar fatalizado pra
isso.
Mas agora é que vem o mais divertido. Lhe mando a página arrancada do caderninho,
pra você seguir o caso. É a parte riscada por lápis azul, que quando uma poesia está "vencida"
risco pra não estar relendo. Você vê a nota e vê bem a "pureza" de espontaneidade da poesia
249
em fazer-se. A primeira idéia surge, está claro, em espontaneidade perfeitamente pura. Tomei
depois nota dela, mas sem saber ainda no que ia dar. Datei pelo meu gostinho "histórico" de
datar tudo.
Ora assim que acabei de tomar a nota, inesperadamente, nem tinha a menor idéia nem
desejo de fazer o poema imediatamente, o título do filme voltou á lembrança. Então escrevi
depressa ele junto com a nota. Mas foi o bastante. A coisa explodiu, e como você pode ver,
mesmo metrificado e com rima, o verso e as estrofes foram surgindo correntes. Só corrigi o
qualificativo primeiro que dei à vida de Cristo, e imediatamente, porque era falso. No final da 2ª
estrofe entreparei. A primeira noção foi terminar o poema só com uma 3ª estrofe sobre a
criança, o futuro infantil, "rei dos reis". Mas repudiei imediato o lugar-comum, "a criança é que
governa" que não sei quem falou e não falou por essas palavras. Mas entreparei apenas. O
plutocrata, rei dos reis atual se impôs, e me deu uma grande raiva interior. Raiva que resultou
na quarta estrofe, única que senti dificuldade em construir. Dificuldade ainda não solucionada.
E você compreenderá porque substituí o "caralho" por demais violento da 1ª versão. Sabia que
era insustentável desde que o escrevi. Mas escrevi pra evitar, no fazer, qualquer quebra de
espontaneidade. Nem tanto por causa da espontaneidade, que não tenho o menor gosto ou
respeito pela espontaneidade "espontânea", mas porque o pensamento crítico mata sempre o
estado de poesia. Deixo sempre, em casos assim, pra corrigir depois.
Como você verá, aliás, essa página tem mais notas. Uma nota e um início de poema,
anteriores, tomados em 1 ou 2 de julho quando já estava se acabando a "louca" que provocou
a Lira. O poema, desisti, não consegui. A nota deu um poeminha sobre o futebol, que também
não lhe mandei, mas por esquecimento. Mas não consigo gostar dele, não consigo saber o que
falta. É assim:
Bailam em saltos fluidos
Na graça flébil da tarde
— Adeus, meninas e violas!
Mas o goleiro alvo explode
Num fulgor que salva o gol.
Insultos, urros, estertores,
Menino que me recusas
Tua verdade em cruzeiros. . .
A massa bruta se esgueira
Buscando os refúgios.
Onde andam os perdões?
A dor fugiu para as ilhas,
250
Enquanto a noite nega
Enfermos e agitados
Corpos, corpos, corpos.
Mais tarde talvez corrija isso. Ou não. Não sei nada por enquanto (6).
E na página do
caderninho ainda vai mais uma nota curiosa, tomada ontem (7). A idéia poética, a inspiração
(pra você ver em que estado dinâmico de obsessão exclusivamente rítmica eu estou) me deu
apenas um ritmo. Sinto que as palavras quase nem interessam aí. O poema vai ser, se eu
conseguir fazer, apenas um ritmo. Mas agora não posso mais e a sua carta e esta minha, sinto
que estão me fazendo um bem enorme. Neste momento está me batendo uma primeira calma,
depois de dois dias horríveis.
Sua carta então, a compreensão de mim, o prazer discreto pelos poemas, me fortalece.
Me esclarece e me torna mais leal, mais franco, mais com saúde espiritual pra comigo mesmo.
Os problemas ficam transferidos pra outro campo de preocupações artísticas. Mais tarde
pensarei nisso. Esta semana, desde esta assinatura que ponho aqui, vai ser dedicada inteira a
um estudo sobre o lundu, prá Rev. Bras. de Música (8) e á pintura do Clóvis Graciano que ele
me pediu pra um livro de fotos de trabalhos dele (9). Já os dois estudos têm boa parte escrita e
que me satisfaz bem. Em agosto fico mais livre. Com o abraço mais afetuoso e grato do
Mário
(Não releio).
Carlos
Depois que lhe escrevi esta carta, me ocorreu um pensamento. Talvez que o que se
passou comigo estes dois dias, e quem sabe mesmo se em toda esta Lira Paulistana, não seja
exatamente a ebulição, o esplendor de um verdadeiro "estado de poesia". Seja mais uma
obsessão, uma crise de obsessão rítmica. Pelo menos estes dois dias já estou certo que foi.
Porque doloroso, insuportável. Ao passo que o estado de criação, traz angústia sim,
ansiedade, mas não é desagradável. É extasiante. Como nos casos que citei na carta. Bota a
gente pra fora do mundo, mas num mundo estupendo.
M.
Carlos
Mais este acréscimo. Fui nojentamente egoísta nessa carta toda e não falei em você.
Estou precisando falar de você com você, ainda um assunto largo de hora e meia e mais que
passamos o Manuel (10)
e eu nesta casa, foi você. Não você, sua poesia, que na sua última
fase é pra mim e pra muitos aqui, a melhor que estão fazendo no Brasil, e das maiores, mas
você em pessoa. Em 2ª pessoa, porque a lª pessoa deve ser pra você a sua poesia. Agora
releio sua carta pra guardar e não guardo, deixo no lugar das ainda sem resposta. Porque só
251
agora, estava tão egoistamente beatizado, me tocou bravo o tom fundo de melancolia e
sofrimento íntimo da sua carta. Eu sei que você está sendo muito atormentado aí pelos seus
e "nossos" inimigos. Desta vez o bode expiatório é você ... Mas ainda hoje saiu um artigo
aqui, mas do Antônio Cândido. Apenas toca em você, mas veja de que maneira. Agüenta
firme, me'rmãozinho, e mande à puta que os pariu os filisteus e os filisteus mascarados. E
acredite sobretudo no carinho e inquietação com que os seus amigos e os da sua poesia
estão junto com você.
Mais este abraço do
Mário
NOTAS
1. A Demanda do Santo Graal.
2. Raramente MA cometia lapsos em suas cartas, manuscritas ou datilografadas. Esta, do
seu punho, está cheia deles, a começar pelo nome do destinatário, escrito primeiro como
Cartos, depois corrigido para Carlos. Deixo a futuros analistas o exame e o comentário
desses enganos, justificados pelo estado de fadiga e tensão intelectual, em fase dolorosa de
criação.
3. Morton Dauwen Zabel, primeiro professor de literatura norte-americana na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de A Literatura
dos Estados Unidos, suas tradições, mestres e problemas. Trad. de Célia Neves (1947).
4. O refrão que dá título ao poema é Pioneers! O pioneers!
5. The King of Kings ("O Rei dos Reis"), filme do diretor norte-americano Cecil B. de Mille
(1881-1959), produzido em 1927.
6. É o poema da p. 31 de LP e p. 401 de OC, II, sem alteração, salvo o acréscimo de
travessão no final do 3.° verso da l.a estrofe.
7. Copiei as anotações constantes da folha do caderninho, que devolvi a MA. São as
seguintes:
[De um lado]
Avenida S. João
Que sobes e desces
252
Às 6 horas para os pobres
Às 9 horas para os ricos
Quando os bondes diminuem
E os automóveis aumentam,
Eu vivo por ti jogado
Ás 6 e às 9 horas
Um poema sobre jogo de futebol, versos livres.
Aqui um poema em 2 ou 3 estrofes contando o título dado por creio Cecil B. D. Mille
para o filme da sua Vida de Cristo (1ª estrofe). Na segunda o mesmo título aproveitado num
mictório, no desenho dum sexo masculino. E aproveitar possivelmente o mesmo título (3ª
estrofe) pro que surgir. Se surgir. . . "Rei dos Reis" 21-VII-44
Num filme de B. de Mille
Eu vi pela quinta vez
A [inútil] triste vida de Cristo
"Rei dos Reis"
Num mictório de São Paulo
Li pela primeira vez
Escrito sobre um caralho:
[Sobre o desenho dum sexo]
"Rei dos Reis"
Num automóvel de luxo
Sessenta vezes por mês
Bem barbeado, bom charuto
Rei dos Reis.
Oh vós todos, homens, homens
Homens, homens, que fazeis?
(Porque não) seremos juntos
Um dia
Rei dos Reis
S. Paulo, 21.VII. 44
[Do outro lado]
253
Não mais espereis
Sejamos [enfim] todos unidos
Rei dos Reis
Fazer um poema "metralhante" no ritmo, em versos rápidos de 4 sílabas e de vez em
quando, irregularmente, um verso de uma sílaba só, em agudo batido. No finalzinho então
metralhar bem, intercalando esses dois ritmos, um verso de um, outro do outro. S. Paulo,
22.VII. 44.
8. "Cândido Inácio da Silva e o lundu". Rev. Brasileira de Música, Rio, vol. X, 1944, p. 17-39.
9. Clóvis Graciano (Araras, SP, 1907). Pintor, co-fundador da chamada Família Artística
Paulista. Não consta haja sido publicado o livro sobre ele, mas o texto de MA, sob o título
"Ensaio sobre CG", está reproduzido na Rev. de Estudos Brasileiros, SP, n.º 10, 1971.
Resumo de sua análise, intitulado "El artista CG", saiu em Correo Literario, Buenos Aires, 15.
XI, 1944. MA citou ainda o artista em Lira Paulistana (OC, II, 419) :
Nunca estará sozinho.
A estação cinqüentenária
Abre a paisagem ferroviária
Graciano vem comigo.
Na coleção de arte do escritor, recolhida ao Instituto de Estudos Brasileiros, figuram
os seguintes trabalhos de CG: dois retratos de MA (óleo e creiom); caricatura de MA
(nanquim); cabeça de homem (tinta); cabeça de negro (tinta); cabeça de mulher (tinta);
mulher sentada (tinta); homem com violoncelo (tinta); retirantes (óleo); vaso com flores
(óleo).
10. Manuel Bandeira.
271
271
Andrade, Carlos Drummond de. A Lição do Amigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, 223-
230.
254
I
CONOGRAFIA
255
256
257
258
259
260
261
BIBLIOGRAFIA
Edições da Lira Paulistana
Andrade, Mário de. Lira Paulistana. In: Poesias. São Paulo: Martins, 1941, (1
a
edição).
________________. Lira Paulistana. In: Poesias Completas. São Paulo: Martins,
1955 (1
a
edição).
________________. Lira Paulistana. In: De Paulicéia Desvairada a Café (Poesias
Completas). São Paulo: Círculo do Livro, s / d.
________________. Lira Paulistana. In: Poesias Completas. Belo Horizonte:
Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1987.
Obras do autor
Andrade, Mário de. Obras Completas. São Paulo: Martins (20 v.):
I - Obra Imatura (1960);
II - Poesias Completas (1955);
II I- Amar Verbo Intransitivo (1972);
IV - Macunaíma – O herói sem nenhum caráter (1965);
V - Os Contos de Belazarte (1972);
VI - Ensaio sobre a Música Brasileira (1972);
VII - Música, Doce Música (1976);
VIII - Pequena História da Música (1967);
IX - Namoros com a Medicina (1972);
X - Aspectos da Literatura Brasileira (s./d.);
262
XI - Aspectos da Música Brasileira (1965);
XII - Aspectos das Artes Plásticas no Brasil (1965);
XIII - Música de Feitiçaria no Brasil (1963);
XIV - O Baile das Quatro Artes (1963);
XV - Os Filhos da Candinha (1963);
XVI - Padre Jesuíno de Monte Carmelo (1963);
XVII - Contos Novos (1947); XVIII- Danças Dramáticas do Brasil (1959);
XIX - Modinhas Imperiais (1964);
XX - O Empalhador de Passarinho (1972).
_______________. Táxi e Crônicas do Diário Nacional . São Paulo: Duas Cidades
/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
_______________. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1989.
_______________. As Melodias do Boi e Outras Peças. Belo Horizonte: Itatiaia,
2002.
_______________. Vida do Cantador. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Vila Rica,
1993.
_______________. Quatro Pessoas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985.
_______________. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter. Paris: Archives /
Brasília: CNPQ, 1988.
_______________. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro:
LTC / São Paulo, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1978.
_______________. Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
_______________. Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
263
_______________. Cícero Dias e as Danças do Nordeste. In: Teresa: Revista de
Literatura Brasileira. São Paulo, FFLCH / USP, n
o
1, 2000.
_______________. Os cocos. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
Correspondência do autor
Andrade, Carlos Drummond de. A Lição do Amigo. Rio de Janeiro: José Olympio,
1982.
Andrade, Mário de e Bandeira, Manuel. Correspondência. São Paulo: Edusp.
2000.
Andrade, Mário de. Correspondente Contumaz (Cartas a Pedro Nava 1925 /
1944). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
_______________. Mário de Andrade: Cartas de trabalho: Correspondência com
Rodrigo Mello Franco de Andrade, 1936 – 1945. Brasília: Secretaria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Pró-Memória, 1981.
_______________. Cartas a Murilo Miranda (1934 – 1945). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1981.
Santiago, Silviano (org.). Carlos e Mário: correspondência de Carlos Drummond
de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-te-vi, 2002.
264
Sobre o autor
Alvarenga, Oneyda. Mário de Andrade, Um Pouco. Rio de Janeiro: José Olympio /
São Paulo: SCET-CEC, 1974.
Ayala, Maria Ignez Novais e Duarte, Eduardo de Assis. ltiplo Mário: Ensaios.
João Pessoa: UFPB / Editora Universitária; Natal: UFRN / Editora Universitária,
1997.
Batista, Marta Rossetti e Lima, Yone Soares. Coleção Mário de Andrade: Artes
Plásticas. São Paulo: IEB, 1998.
Bosi, Alfredo. “O Movimento Modernista” de Mário de Andrade. In: Colóquio /
Letras (n
o
12, mar.) Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1972.
Campos, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973.
Candido, Antonio. O Poeta Itinerante. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1998.
__________________. Mário de Andrade. In: Revista do Arquivo Municipal. São
Paulo: DPH, 1990.
Colóquio / Letras. Almada Negreiros / Mário de Andrade. Lisboa: Fundação G.
Gulbenkian, n
o
149/150, jul. / dez., 1998.
Costa Lima, Luís. Lira e Antilira (Mário, Drummond, Cabral). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
Dassin, Joan. Política e Poesia em Mário de Andrade. São Paulo: Duas Cidades,
1978.
265
Duarte, Paulo. Mário de Andrade por Ele Mesmo. São Paulo: EDART, 1971.
Faccioli, Valentim. Mário de Andrade e a Cidade de São Paulo: Aspectos. In:
Revista da Biblioteca Mário de Andrade (vol. 50, jan. / dez.), São Paulo, 1992.
Figueiredo, Priscila. Em Busca do Inespecífico: leitura de Amar, Verbo Intransitivo,
de Mário de Andrade. São Paulo: Nanquin, 2001.
Lafetá, João Luiz. Figuração da Intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
________________. A Representação da Cidade de São Paulo em Dois
Momentos da Poesia de Mário de Andrade. In: Mário Universal Paulista:
Algumas Polaridades. São Paulo: SMC, 1997.
________________. Mário de Andrade: o arlequim estudioso. In: A dimensão da
noite. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2004.
________________. Batatas e desejos. In: A dimensão da noite. São Paulo: Duas
Cidades / Editora 34, 2004.
________________. “A Meditação sobre o Tietê”. In: A dimensão da noite. São
Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2004.
Lopez, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: Ramais e Caminhos. São Paulo:
Duas Cidades, 1972.
______________________. Mariodeandradiando. São Paulo: HUCITEC, 1996.
______________________ . (org.). A Imagem de Mário: A Fotobiografia de Mário
de Andrade. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1984.
266
Knoll, Victor. Paciente Arlequinada: Uma Leitura da Obra Poética de Mário de
Andrade. São Paulo: HUCITEC / Secretaria de Estado da Cultura, 1983.
Moraes, Eduardo Jardim de. Limites do Moderno: O Pensamento Estético de
Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
Proença, M. Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira / Brasília: INL, 1977.
Rabelo, Ivone Daré. A Caminho do Encontro. São Paulo: Ateliê, 1998.
Revista do Arquivo Municipal (fac-símile). São Paulo: DPH, 198, 1990.
Rosenfeld, Anatol. Mário e o Cabotinismo. In: Texto / Contexto. São Paulo:
Perspectiva, 1969.
Schwarz, Roberto. O psicologismo na Poética de Mário de Andrade. In: A Sereia e
o Desconfiado. São Paulo: Paz e Terra, 1981.
Souza, Eneida Maria de. A Pedra Mágica do Discurso. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1999.
Souza, Gilda Melo e. O Tupi e o Alaúde. São Paulo; Duas Cidades, 1979.
___________________. “O Banquete”. In: Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas
Cidades, 1980.
___________________. Vanguarda e Nacionalismo na Década de Vinte. São
Paulo: Duas Cidades, 1980.
267
___________________. O Mestre de Apipucos e o Turista Aprendiz. In:Teresa:
Revista de Literatura Brasileira. São Paulo, FFLCH/ USP, n
o
1, 2000.
Travassos, Elizabeth. Os Mandarins Maravilhosos: Arte e Etnografia em Mário de
Andrade e Béla Bartók. Rio de Janeiro: FUNARTE / Jorge Zahar, 1997.
Wisnik, José Miguel. Dança Dramática (poesia / música brasileira). São Paulo:
USP, 1979 (tese de doutorado).
_________________. Mário e a Música. In: Revista da Biblioteca Mário de
Andrade (vol. 50, jan. / dez), São Paulo, 1992.
_________________. Obsessão Musical Molda o Escritor. In: Caderno Especial
“Mário”. São Paulo: Folha (26.09.1993), p. 6.
Bibliografia Geral
Abrams, M.H. El Espejo y la Lámpara: Teoría Romántica y Tradicción Clásica.
Buenos Aires: Editorial Nova, 1962.
Adorno, Teodor W. e Horkheimer, Max. Ulisses ou Mito e Esclarecimento. In:
Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1986.
Adorno, Theodor W. Teoria Estética. Lisboa, Edições 70; São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
_________________. Conferência sobre Lírica e Sociedade. In: Os Pensadores.
São Paulo: Abril, 1975.
268
Aguiar, Joaquim Alves de. Espaços da Memória: um estudo sobre Pedro Nava.
São Paulo: EDUSP, 1998.
Andrade, Oswald de e Galvão, Patrícia. O Homem do Povo (fac-símile) São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1984.
Argan, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Arrigucci Jr., Davi. Humildade, Paixão e Morte: A Poesia de Manuel Bandeira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
______________. O Cacto e as Ruínas. São Paulo: Duas Cidades / 34, 2000.
Ávila, Afonso. O Modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.
Bandeira, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.
Bardi, P. M. O Modernismo no Brasil. São Paulo: Sudameris, 1968.
Batista, Marta Rossetti e outros. Brasil: 1
o
Tempo Modernista – 1917 / 1929
documentação. São Paulo: IEB, 1972.
Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
______________. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Berriel, Carlos Eduardo Ornelas. Tietê, Tejo, Sena: A Obra de Paulo Prado.
Campinas: Papirus, 2000.
Bosi, Alfredo et alli. Mesa-redonda. In: Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982
269
__________. (org.). Leitura de Poesia. São Paulo: Ática, 1996.
__________. O Ser e o Tempo da Poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.
__________. Situação de Macunaíma; Moderno e Modernista na Literatura
Brasileira. In: Céu, Inferno. São Paulo: Ática, 1988.
Bürger, Peter. Teoria da Vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.
Camilo, Vagner. Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. São Paulo:
Ateliê, 2001.
Candido, Antonio. Literatura e Cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e Sociedade.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973.
______________. A Revolução de 1930 e a Cultura. In: A Educação pela Noite.
São Paulo: Ática, 1987.
______________. O Estudo Analítico do Poema. São Paulo: Humanitas / FFLCH
/ USP, 1996.
Delellis, Rosana. Catedral da Sé: arte e engenharia na recuperação do patrimônio.
São Paulo: FormArte, 2002.
Duchartre, Pierre-Louis. La commedia dell’Arte. Paris: Éditions d’art e industrie,
1955.
Eulálio, Alexandre. A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars: Ensaio, Cronologia,
Depoimentos, Antologia (por) Alexandre Eulálio (e Outros). São Paulo: Quíron /
Brasília, INL, 1978.
270
Freud, Sigmund. Luto e melancolia. In: Novos Estudos Cebrap. São Paulo:
Cebrap, 1992, n˚ 32.
Friedrich, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna: da Metade do Século XIX a Meados
do Século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Gonçalves, Agnaldo José. Laokoon Revisitado. São Paulo: EDUSP, 1994.
Guinsburg, J. O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
Guiomar, Michel. Principes d’une esthétique de la mort. Paris: José Corti, 1998.
Heiden, Rüdiyer an der. Dürer. In História da Arte: vol. 6. Rio de Janeiro, Editora
Salvat, 1978.
Hünninghaus, Kurt. História do automóvel. São Paulo: Boa Leitura, s / d, p. 195.
Klaxon – Mensário de Arte Moderna (fac. simile). São Paulo: Martins, 1972.
Klibansky, Raymond; Panofsky, Erwin e Saxl, Fritz. Saturne et la Mélancolie. Paris:
Gallimard, 1989.
Kühl, Beatriz Mugayar. Arquitetura do Ferro e Arquitetura Ferroviária em São
Paulo: Reflexões sobre sua Preservação. São Paulo: Ateliê / FAPESP:
Secretaria de Cultura, 1998.
Lafetá, João Luiz. 1930: A Crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades / 34,
2000.
271
______________. Estética e ideologia: o Modernismo em 30. In: A dimensão da
noite. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2004.
Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Matos, Olgária. A melancolia de Ulisses: a Dialética do Esclarecimento e o canto
das sereias. In: Os sentidos da paixão. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
Melo Neto, João Cabral. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001.
Miceli, Sergio. Imagens Negociadas: Retratos da Elite Brasileira (1920 – 40). São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Moraes, José Geraldo Vinci de. Metrópole em Sinfonia: História, Cultura e Música
Popular na São Paulo dos Anos 30. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
Mota Pessanha, José Américo. Clarice Lispector: o itinerário da Paixão. In:
Remate de Males. Campinas: Unicamp, 1989.
Nicolini, Henrique. Tietê: o rio do esporte. São Paulo: Phorte Editora, 2001.
Nietzsche, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e
pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Oehler, Dolf. O Velho Mundo Desce aos Infernos: auto-análise da Modernidade
Após o Trauma de 1848 em Paris. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
272
__________. Quadros Parisienses (1830 – 1848): Estética anti-burguesa em
Baudelaire, Daumier e Heine. São Paulo; Companhia das Letras, 1997.
Ohtake, Ricardo. O livro do rio Tietê. São Paulo: Estúdio Ro, 1991, p. 14.
Pasta Júnior, José Antônio. Pompéia: a metafísica ruinosa d’O Ateneu. São Paulo:
USP, 1991 (tese de doutoramento).
_____________________.O romance de Rosa. In: Novos estudos Cebrap. São
Paulo, Cebrap, 1999, n. 55, pp. 65.
_____________________. Changement et idée fixe : l’autre dans le roman
brésilien. In : Au fil de la plume. Paris : Crepal, s / d.
Paz, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
____________. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
Pedrosa, Ismael. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: Léo Christiano, 2002.
Praz, Mário. A Carne, A Morte e o Diabo na Literatura Romântica. Campinas:
Editora da Unicamp, 1996.
Raymond, Marcel. De Baudelaire au Surréalisme. Paris: José Corti, 1985.
Revista de Antropofagia. Reedição da Revista Literária publicada em São Paulo –
1
a
e 2
a
“Dentições” – 1928 / 1929 (fac-símile). São Paulo: Abril / Metal Leve
S.A., 1975.
Romero, Sílvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
273
Schwarz, Roberto. Que Horas São? São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______________. Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis.
São Paulo: Duas Cidades, 1990.
______________. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
______________. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Segawa, Hugo. Prelúdio da Metrópole: Arquitetura e Urbanismo em São Paulo na
Passagem do Século XIX ao XX. São Paulo: Ateliê, 2000.
Sevecenko, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 17-18.
Simon, Iumna Maria. Drummond: uma Poética do Risco. São Paulo: Ática, 1978.
________________. Esteticismo e Participação. In: Novos Estudos CEBRAP. São
Paulo: CEBRAP, no 26, mar., 1990.
________________. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século. In:
Novos Estudos CEBRAP. São Paulo: CEBRAP, no 55, nov., 1999.
Sontag, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: LPM, 1978.
Staiger, Emil. Conceitos Fundamentais de Poética. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975.
Toledo, Benedito Lima de. Prestes Maia e as Origens do Urbanismo Moderno em
São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996.
274
Vernant, Jean-Pierre. A morte nos olhos — a figuração do Outro na Grécia antiga:
Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
Vovelle, Michel. La morte à l’occident de 1300 à nos jours. Paris: Gallimard, 1983.
Wisnik, José Miguel. O Coro dos Contrários: a Música em Torno da Semana de
22. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
Textos literários consultados:
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2000.
Anjos, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1971.
Azevedo, Álvares de. Poesias completas. Campinas: Editora de Unicamp; São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.
Andrade, Carlos Drummond de. Poesia Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1992.
Apollinaire, Guillaume. Oeuvres poétiques. Paris: Gallimard, 1956
Bandeira, Manuel. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958.
Camões, Luis de. Líricas. Lisboa: Sá da Costa, 1981.
Melo Neto, João Cabral de . Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
Vieira, Antônio. Sermão de Santo Antônio aos peixes. In: Obras completas do
Padre António Vieira. Lisboa: Lello & Irmão, 1959.
275
Dicionários
Houaiss, Antônio e Villar, Mauro salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
Biedermann, Hans. Dicionário ilustrado de símbolos. São Paulo: Melhoramentos,
1993.
Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo:
Melhoramentos, 1980.
Chevalier, Jean et alli. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro : José Olympio,
1990.
Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.
Lurker, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Tosi, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
Vasconcelos, Luiz Paulo. Dicionário de teatro. Porto Alegre: LPM, 1987.
Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro, Editora Delta S. A., 1970.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo