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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA
Murilo Mendes:
da história satírica à memória contemplativa
Tese apresentada por Valmir de Souza ao Curso de
Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
como requisito para a obtenção do Título de Doutor, sob
a orientação da Profa. Dra. Ligia Chiappini Moraes
Leite.
São Paulo
2006
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Dedico
A minha mãe Maria Ferreira
A Joseli, amiga e companheira nessa e em outras viagens
Ao João e ao Fernando, filhos queridos
Aos meus irmãos, na resistência coletiva e na companhia
Ao meu pai João de Souza (in memoriam)
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Agradecimentos
À Professora Ligia Chiappini pela orientação segura e eficaz e que, apesar das
muitas ocupações e da distância oceânica, se prontificou a me acompanhar em
mais essa jornada.
A Jô, pelas múltiplas ações de companheira e arguta leitora dos textos.
Ao João, pelas leituras noturnas coletivas.
Aos Professores Alfredo Bosi e Fábio de Souza Andrade, pela Qualificação.
A Sra. Maria da Saudade Cortesão Mendes, pela atenção e autorização para
pesquisas em cartas de Murilo Mendes pertencentes ao acervo do IEB/USP.
Ao Luiz de Mattos Alves, do Setor de Pós-Graduação do DTLLC, pela atenção e
acompanhamento.
Aos Funcionários e Professores do Centro de Estudos Murilo Mendes (CEMM) de
Juiz de Fora, pela dedicação à memória literária do poeta e pelo atendimento
sempre pronto e eficiente.
Ao Professor Murilo Marcondes de Moura, pelo apoio na reflexão sobre a obra do
poeta e pelas indicações de textos.
À Professora Cláudia de Arruda Campos pela colaboração no início de meu
projeto junto ao DTLLC.
Ao Professor Júlio Pimentel Pinto, pelas importantes indicações teóricas.
Ao Professor André Figueiredo, pelas informações históricas e apoio bibliográfico.
A Maria Amélia da Silva Marques, pelo apoio nos afazeres cotidianos.
À Professora Angélica de Oliveira, pela leitura de tópicos da Tese.
Ao Hamilton Faria, pelo apoio nas referências poéticas.
Ao César Borges, pela força no texto e nos arquivos.
4
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo abordar as relações da história e da
memória brasileira na obra de Murilo Mendes. Essa tarefa de interpretação
engloba a releitura do País em chave satírica e chave religiosa, em duas do poeta,
História do Brasil (1932) e Contemplação de Ouro Preto (1954). Nelas
constataremos os usos que o poeta faz dos elementos acima, renovando o nosso
entendimento sobre o passado.
Demonstra-se no estudo que o poeta insere o Brasil em suas
preocupações, dando destaque à memória histórica do País em sua produção,
elaborando uma crítica à história sem deixar de lado a fatura poética. Assim,
nosso estudo coloca o escritor em coordenadas mais específicas da tradição
literária, o que tem sido tema de pouca presença nos estudos murilianos até o
momento.
ABSTRACT
The aim of this study is to analyze the relations between History and
Brazilian memory in Murilo Mendes’ poetry. This task of interpretation involves a
revision of the country with a satiric and religious key in two books of the poet,
History of Brasil (1932) and Contemplation of Ouro Preto (1954). The uses of
History and memory done by the poet are considered very different in various ways
promoting innovations in how we see images of the past.
The intention is to show that Brazil is an important reference in the books
analyzed emphasizing the reviews the poet does about our History and the poetical
composition at the same time. Then, our study analyzes Murilo Mendes in a
5
specific line of the Brazilian literary tradition considering a theme that few studies
have contemplated so far.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 6
1. O poeta no Modernismo e a crítica de sua obra
37
1.1. Dados biográficos do autor 37
1.2.O autor e o Modernismo 39
1.3 Críticas e estudos murilianos 47
1.3.1. A crítica nos anos 1930 e 1940 48
1.3.2.Crítica religiosa e impressionista 55
1.3.3. O poeta nas histórias, ensaios e estudos literários 60
2. Tradição e modernização do Brasil em Poemas
68
3. A sátira histórica em História do Brasil 81
3.1. O livro em questão 81
3.2. A sátira aos poderes reais
97
6
3.3. O índio de fraque no soneto “Marcha final do Guarani”
114
4. Memória contemplativa da história
126
4.1. Revisão poética em novo contexto
126
4.2. A obra na produção do autor
129
4.3. Memórias das sombras em Ouro Preto
132
4.4. Ouro Preto como referência cultural
138
4.4.1.O poeta e a viagem cultural a Ouro Preto
141
4.5. O resgate da cidade de flores e pedras 147
4.6. Religião e história em Contemplação de Ouro Preto 165
4.7. Revisitação da tradição literária
174
5. Duas poéticas dissonantes e complementares
178
5.1. Força e devoção de Aleijadinho
181
7
5.2. Desconstrução e consagração de Tiradentes
188
CONSIDERAÇÕES FINAIS 203
BIBLIOGRAFIA
209
ANEXOS
223
ANEXO I Antologia de História do Brasil
224
ANEXO II Antologia de Contemplação de Ouro Preto
231
8
INTRODUÇÃO
Só se pode estudar aquilo com que primeiro se sonhou.
Gaston Bachelard
1
O trabalho que aqui propomos tem por objetivo abordar as relações entre
literatura, história e memória na obra de Murilo Mendes (1901-1975)
2
. Escolhemos
esse poeta pelo modo diferenciado de tratar essas questões através de
perspectivas e formas literárias peculiares no contexto do Modernismo,
promovendo um diálogo denso com as versões consagradas da história e com a
tradição literária. Veremos como, nas relações entre literatura e história, mediada
por uma memória literária, se opera uma mudaa do olhar poético sobre a cultura
brasileira.
3
Queremos demonstrar que o poeta considera a história do País tema
relevante e, para isso, o inserimos em coordenadas mais específicas da história e
da literatura brasileira para analisar como ele interpretou poeticamente nosso
passado, com tratamentos diferentes em cada momento abordado.
Essa tarefa de interpretação engloba as releituras de eventos da história e
da memória do País em textos que acentuam, de um lado, a chave satírica e, de
1
In: Psicanálise do fogo. Lisboa, Pt: Litoral Edições, 1989, p. 28.
2
Murilo Mendes. Poesia Completa e Prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. Desta obra extraímos os textos do poeta e será citada da seguinte forma em nota de
rodapé: PCP, com a referida página. Em nota de rodapé o nome do autor será citado como MM.
Para introdução à vida e obra do autor, nos baseamos em dois excelentes estudos: Laís Corrêa de
Araújo. Murilo Mendes. Ensaio crítico, antologia, correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000
(1ª ed., Petrópolis: Vozes, 1972). Júlio Castañon Guimarães. Território/Conjunções: poesia e prosa
críticas de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
3
Mais adiante trataremos das referidas relações e dos conceitos de história e memória.
9
outro, o registro religioso. Para isso escolhemos duas obras importantes, História
do Brasil (1932) e Contemplação de Ouro Preto (1954)
4
. Nelas abordaremos os
usos que o poeta faz da história e da memória histórica, renovando a visão sobre
dados do passado. Além desses dois livros, desdobraremos as análises em outro
texto que também tocou no tema, por exemplo, o livro Poemas (1930). Para
embasar a pesquisa desse corpus, será levada em conta a prosa (textos
ensaísticos), parte da correspondência do autor e estudos sobre as obras
referidas.
Neste trabalho, juntamente com o campo da historiografia, se faz presente
o campo da produção da memória coletiva e histórica.
5
Se em História do Brasil
temos a desconstrução satírica da história, em Contemplação de Ouro Preto
podemos constatar a história mediada pelas memórias literária e religiosa do País,
mediação essa que, a partir de dados históricos (eventos e fatos do passado) e de
outros textos (documentos, tratados, literatura), produz novas realidades artísticas.
Ao se voltar para o País, o autor não abandona a densidade estética, ao
juntar produção da memória e elaboração artística, compondo textos que
encenam a memória coletiva.
A literatura muriliana trabalha com dispositivos próprios ao abordar o tempo
e o espaço e revela outras dimensões e versões socioculturais apagadas ao longo
do percurso histórico no Brasil. Mesmo o ethos religioso da segunda obra se
4
Estas duas obras serão citadas em nota de rodapé, como HB e COP respectivamente. As
edições que serão utilizadas estão publicadas em PCP.
5
Cf. Maurice Halbawachs, A memória coletiva. Trad. Laurent Leon Schaffter. São Paulo: Vértice,
1990, p. 71. Aí diz Halbawachs: “Temos freqüentemente repetido: a lembrança é em larga medida
uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada.”
10
aproxima do passado através de suas “sombras” revividas então como sombras
literárias já presentes nas primeiras obras, o que mostra a comunicação dos dois
momentos poéticos. Com isso a poesia desoculta certos campos das realidades
do País, numa focalização contraditória da história que leva em consideração o
reprimido e o marginalizado da sociedade brasileira.
Antes de entrar nas análises dos livros mencionados faremos uma
abordagem de questões relacionadas com a história e a literatura com
desdobramentos sobre a memória.
História, literatura e memória
As relações entre a história e a literatura têm sido objeto de intensa reflexão
parte dos mais variados pesquisadores, tanto de historiadores como de estudiosos
da literatura.
6
Por certo, são articulações tensas, como toda relação de fronteira,
seja quando se refere aos limites de cada disciplina, seja quando as diversas
concepções e visões de mundo entram em jogo na conexão de ambos os fazeres.
Aqui, nos propomos a pensar aspectos deste fenômeno, entendendo que se
constitui num dos pontos cruciais das duas áreas de trabalho. A proliferação de
estudos nesses setores demonstra ao mesmo tempo a amplitude da questão, mas
6
Cf. Ligia Chiappini. “Literatura e história. Notas sobre as relações entre os estudos literários e os
estudos historiográficos”. In: Revista Literatura e Sociedade, São Paulo, n. 5, 2000. Edição
comemorativa. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada; Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas; Universidade de São Paulo.
11
também o fascínio gerado por ela.
Faz-se necessário destacar que os trabalhos
sobre o assunto são diversos, inclusive na abordagem que fazer do tema.
7
Os problemas quanto aos usos tanto do termo história como do termo
literatura estão relacionados ao estatuto de ambas escrituras. Em geral, são usos
que se ligam a uma apropriação destes conceitos como “coisas”
substancializadas, isto é, por este uso cada termo possuiria um grau de autonomia
absoluto, uma origem essencial e, portanto, intocável por nenhuma das partes,
fato que os pesquisadores vêm tentando superar, em conjunto ou
individualmente.
8
No campo historiográfico, estudar as relações dos discursos literários e
históricos foi uma ação possibilitada pela problematização epistemológica situada
na diferença entre a “passeidade” - passado realmente acontecido - e o relato feito
dos acontecimentos, isto é, uma reinvenção plausível do passado elaborada pelo
historiador. Firmou-se, junto com isso, uma “convicção” de que os fatos passados
7
Entre os pesquisadores das áreas de história e literatura que desenvolveram reflexões sobre o
tema, podemos citar: Edgar Salvadori de Decca e Ria Lemaire (org.). Pelas Margens. Outros
caminhos da história e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp, Ed. da Universidade
- UFRGS, 2000. Erich Auerbach. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental.
Trad. George Bernard Sperber. São Paulo: Perspectiva, 1971. Hayden White. Meta-História: A
imaginação histórica do século XIX. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1992.
Jacques Leenhardt ; Sandra Jatahy Pesavento (org.). Discurso histórico e narrativa literária.
Campinas, São Paulo: Ed. da Unicamp, 1998. Ligia Chiappini. No entretanto dos tempos. Literatura
e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1987. Ligia Chiappini; Flávio
Wolf de Aguiar (org.). Literatura e história na América Latina. São Paulo: Edusp,1993. Ligia
Chiappini; Antonio Dimas; Bethold Zilly (org.). Brasil, país do passado?. São Paulo: Edusp;
Boitempo, 2000. Nicolau Sevcenko. A literatura como missão. 2ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003. Peter Gay. O estilo na história. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990. Sidney Chalhoub. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras,
2003. Estas obras tentam superar as referidas noções essencializadas de História e Literatura. A
lista acima é bastante limitada e lacunar, visto que há ampla bibliografia sobre o assunto. Nota-se
também o predomínio, nesses estudos, da narrativa literária em relação à poesia.
8
Essas posições tem a ver com a definição das autonomias dos campos intelectuais
Especificamente sobre o campo da literatura, cf. Pierre Bourdieu. As regras da arte. Gênese e
estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
12
não podem ser mais recuperáveis na sua concretude, mas são reconstituídos
através de representações. E estas seriam como que a “presentificação de um
ausente” instituída através de uma “imagem mental ou visual que, por sua vez,
suporta uma imagem discursiva"
9
.
Já no campo literário, observamos que hoje as pesquisas em literatura são
amplas e diversas e vêm propiciando um olhar interdisciplinar, com o cruzamento
de visões sobre a história e a literatura, superando assim a investigação literária
pautada por uma prática de análise somente sobre os elementos internos da obra
literária – por exemplo, Estruturalismo e New-criticism - sem associação com a
sua produção histórica.
10
Nessa direção, não propomos uma divisão absoluta entre o discurso da
história – que supere a historiografia de tipo positivista e “cientificista”,
tradicionalmente ligada à imposição de um sentido histórico único e verdadeiro
que estaria nos fatos ou numa versão dos fatos oficializada – e da literatura vista
como produto único da imaginação. Consideramos que há uma alimentação
mútua das duas formas de olhar e representar o mundo através da escrita: a
9
Todas as aspas são citações de Sandra Jatahy Pesavento. “Contribuição da história e da
literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade nacional”.In: Jacques
Leenhardt ; Sandra Jatahy Pesavento (org.). Discurso histórico e narrativa literária, p. 19.
10
Ria Lemaire. “O mundo feito texto.” In: Edgar Salvadori de Decca e Ria Lemaire (org.). Pelas
Margens, cit., p. 9 e 10. A palavra história tem o mesmo étimo da palavra vistoria, vinculando-se,
portanto, ao sentido da visão e, por extensão, à idéia de testemunha ocular. Isto é, rigorosamente,
a partir da origem do termo, só quem viu um fato, teria autoridade para relatá-lo como realmente
aconteceu. Quem não viu seria um “construtor” de relatos, um mediador. Este seria o papel do
historiógrafo que media e interpreta os fatos passados a partir de documentos e fontes. ”Istoreo,
que deu origem ao vocábulo ‘história’, significava fundamentalmente ‘informe de testemunhas
oculares’, passando com o tempo a ser compreendido com o sentido de ‘testemunho dos tempos’”
(Zilah Bernd. “O maravilhoso como discurso histórico alternativo”. In: Jacques Leenhardt ; Sandra
Jatahy Pesavento (org.). Discurso histórico e narrativa literária, p. 128.).
Willi Bolle,
grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004, p. 262.
Não podemos deixar de registrar que a história agrega elementos e técnicas de fabulação da
13
ficção poética está eivada de elementos da história social que se representam, de
alguma forma, no texto poético, sem que deixe de ser poesia.
Esses modos de escrita – o literário e o historiográfico - no parecer de Ria
Lemaire, são bastante assemelhados:
Tanto a narração literária quanto a historiografia pressupõem um
processo e estratégias de organização da realidade, uma procura de
uma coerência imaginada baseada na descoberta de laços e nexos,
de relações e conexões entre os dados fornecidos pelo passado.
11
Ambas as escritas fazem uma reconfiguração do passado. A história, ainda
segundo Lemaire, promoveria um tipo de reconfiguração do passado “autorizada”
pelas fontes e documentação, calcada numa metodologia científica, enquanto a
literatura “permite que o imaginário levante vôo mais livre e amplamente, que ele
fuja, numa certa medida, aos condicionamentos impostos pela exigência da
verificação pelas fontes.”
12
Para Hayden White, o trabalho histórico teria muito de ficção no aspecto
verbal, pois o modo aí utilizado para reconfigurar o passado se assemelharia aos
modos da narrativa literária. Em sua teoria sobre vários historiadores do século
XIX, White considera “o labor histórico como o que ele manifestamente é, a saber:
uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende
realidade e a imaginação pode ser um modo de descrever a história, enquanto que a literatura
ganha dimensões históricas. Cf. Hayden White, op. cit., p. 388.
11
Ria Lemaire, op. cit., p. 10.
12
Ibidem, p. 11.
14
ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de
explicar o que eram representando-os.”
13
Enfim, a idéia desse autor é mostrar que
o discurso historiográfico mantém relações íntimas com os modos de narrar
próprios da literatura.
Se para White a historiografia pensa o uso de elementos da narrativa
literária na escrita historiográfica, mostrando, de certo modo, a predominância e o
trabalho “artístico” do historiador, para outros historiadores a literatura estaria
marcada pela realidade histórica, como é o caso de Nicolau Sevcenko que
considera que a ética da criação literária marcar-se-ia pela condicionalidade do
social, sem que com isso o escritor precisasse ficar restrito à vida dos fatos.
Segundo Sevcenko, a literatura moderna se colocou na cena social menos como
“testemunho da sociedade” do que como “revelação dos seus focos mais
candentes de tensão e a mágoa dos aflitos.” Essa literatura, continua o historiador,
carregaria em seu interior mais o intuito de transformação do que a permanência
do status quo. E por estar na ordem do desejável, voltar-se-ia mais para o devir do
que para o estado atual das coisas.
14
A produção literária não estaria pautada somente pela factualidade, mas
pela esfera do vir-a-ser, o que a coloca numa dimensão “transcendente” em
13
Sobre o discurso histórico cf. Hayden White. Meta-história, p. 12. Nesta obra o autor estuda
grandes historiadores e filósofos da história do XIX (Hegel, Michelet, Tocqueville, Burckhardt, Marx,
Nietzsche, Croce) e seus modos de narrar ou pensar a história. Cf. também Peter Gay. O estilo na
história. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cia das Letras, 1990. Aí o autor estuda os estilos de
Gibbon, Ranke , Macaulay e Burckhardt. Em sua conclusão diz que “a dicotomia aberta entre arte e
ciência é absolutamente insustentável.” (p. 167). Entenda-se arte como literatura e poesia e ciência
como história. É evidente que os escritores dos livros acima enfatizam o papel da literatura na
estrutura de obras históricas, e também destacam esta importância em autores que levaram em
conta a literatura e a filosofia moderna em seus textos. Cf. ainda Hayden White. Trópicos do
discurso. São Paulo: Edusp, 2001. No capítulo “As ficções da representação textual”, o autor
estuda com mais detalhes os discursos do escritor de ficção e o do escritor de história.
15
relação à história. Esta, no entanto, apresentaria ao escritor os modos de
significação em situações que ele não controla, criando assim uma relação tensa
entre os dois modos de representar a história social. O que fica patente em
relação à ficção, é que ela teria a liberdade de narrar “sobre as possibilidades que
não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho
triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.” No
contraponto ao culto dos fatos, a literatura, especialmente a poesia, manifestaria,
ao projetar outras realidades possíveis, não só as dimensões funcional e
comunicativa, mas também a dimensão utópica da linguagem, sem se subordinar
às necessidades factuais do discurso histórico.
15
O que queremos assinalar aqui é que o texto literário não só reage aos
fatos históricos, mas propõe novas visões sobre os acontecimentos e, como mito,
não estaria sujeito ao “teste da verificação nem se vale daquelas provas
testemunhais que fornecem passaporte idôneo ao discurso historiográfico.”
16
No entanto, os textos considerados literários, criação social e simbólica, têm
como condição de produção a sua historicidade, por manter ligação com um
14
Nicolau Sevcenko, op. cit., p. 29.
15
Ibidem, p. 29 e 30. O autor cita a Poética de Aristóteles: “A história, então, diante do escritor, é
como o advento de uma opção necessária entre várias morais da linguagem; ela o obriga a
significar a Literatura segundo possíveis que ele não domina.” (idem, p. 30) . No Capítulo IX da
Poética, o filósofo grego propõe a distinção entre história e poesia, dizendo que o poeta é mais
filosófico do que o historiador, pois trataria de assuntos universais. Cf. Aristóteles. Arte retórica e
Arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difusão Européia do Livro, p. 286-288.
Evidente que a literatura, especialmente a poesia, pode propor novas realidades e não só registra
melancolicamente o passado. Quanto às dimensões funcionais e comunicativas, cf. Wolfgang Iser.
O ato da leitura. Uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999, v. Mas vale aqui
distinguir o que White, em “As ficções da representação factual”, (op. cit., p. 137) propõe como
relação entre “eventos históricos” e “eventos ficcionais”. Para ele, os historiadores tratam de
eventos específicos do processo histórico enquanto o os escritores de ficção trabalham tanto com
fatos como com elementos da imaginação. O que acontece entre os dois discursos é que eles
possuem graus de semelhança ou de correspondência. Segundo o autor, “Ambos desejam ofercer
uma imagem verbal da ‘realidade’.” (Ibidem, p. 138).
16
contexto imediato que os fazem tão históricos quanto qualquer texto ou discurso
da historiografia, ainda que mantendo a sua especificidade poética. Como “objeto
simbólico”, a literatura passa a fazer sentido a partir do momento em que sua
compreensão pode mostrar como seus sentidos são produzidos. O texto
historiográfico - guardando, em suas entranhas, certo grau de imaginário -, e os
textos poéticos - impregnados de história -, reinterpretam o passado com
estratégias próprias de cada discurso.
17
Ambos os textos são válidos, portanto,
para a verificação da memória coletiva, ainda que postos numa relação histórica
assimétrica, pela qual o passado, visto do presente, já não é o que era.
A literatura, assim como toda obra de arte, ainda que se constitua
autonomamente, traz em seu bojo questões de seu tempo, inserindo-se na
história. Dito de outra forma, o signo artístico, especialmente o literário, estaria
motivado, pelo menos parcialmente, pela realidade e, em alguns casos, “incorpora
esta parcela da realidade a seu significante, em vez de se contentar com sua
denotação pura e simples”.
18
16
Alfredo Bosi. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, p. 179.
17
Eni Puccinelli Orlandi. Análise de discurso. Princípios e procedimentos. 5 ed. Campinas, SP:
Pontes, 2003, p. 26. Cf. também Ria Lemaire, “O mundo feito texto”. In: Edgar Salvadori de Decca
e Ria Lemaire (org.), op. cit., p. 10 e 11. Cf. ainda Fredrick Jameson. O inconsciente político. Trad.
Valter L. Siqueira. São Paulo: Editora Ática, 1992. Diz o autor: “Dessa perspectiva, a conveniente
distinção entre textos culturais que são sociais e políticos e os que não o são torna-se algo pior que
um erro: ou seja, um sintoma e um reforço da reificação e da privatização da vida contemporânea.
Essa distinção reconfirma aquele hiato estrutural, experimental e conceitual entre o público e o
privado, o social e o psicológico, ou o político e o poético, entre a História ou a sociedade e o
‘individual’ – a tendenciosa lei da vida social capitalista -, que mutila nossa existência enquanto
sujeitos individuais e paralisa nosso pensamento com relação ao tempo e à mudança, da mesma
forma que, certamente, nos aliena da própria fala.” (...) “A defesa de um inconsciente político
propõe que empreendamos justamente essa análise final e exploremos os múltiplos caminhos que
conduzem à revelação dos artefatos culturais como atos socialmente simbólicos.” (p. 18).
18
Ivan Fónagy. “Motivação e remotivação”. In: Tzvetan Todorov et alli, Linguagem e motivação.
Uma perspectiva semiológica. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski et alli. Porto Alegre: Globo, 1974,
p. 74. “Um signo motivado é um signo que admite a presença parcial da realidade...” (idem).
17
Indo mais além no que se refere às relações entre história e literatura,
Jacques Rancière propõe a resolução da questão pela seguinte proposição:
A soberania estética da literatura não é, portanto, o reino da ficção.
É, ao contrário, um regime de indistinção tendencial entre a razão
das ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordenações
da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e
social.
19
Buscando superar a divisão dos discursos das duas “histórias” – a da
história e a da poesia -, Rancière, ao abordar a história como “sucessão empírica
dos acontecimentos”, em contraponto ao universo literário e sua “necessidade da
ordenação poética”, aponta a possibilidade, devido à transformação estética, de a
literatura e o testemunho histórico atuarem no mesmo campo de sentido. Para ele,
“A evolução estética transforma radicalmente as coisas: o testemunho e a ficção
pertencem a um mesmo regime de sentido.(...)”
20
.
O “diálogo” da literatura com a história tem sido uma operação de corte do
texto com a história, visto que esta, de certo modo, já está inscrita no texto
literário. Para além de fazer um retrato de um acontecimento, e além da
historicidade do texto em si, que inclui a sua produção e as suas relações com
outros textos, a literatura e, especificamente, a poesia, se constitui também num
modo de olhar e de fazer história.
Evidente que todo signo, e não só o artístico, é motivado por suas relações com a realidade. Sabe-
se que textos literários, seja ele de que caráter for, nasce de vivências sociais de seu autor.
19
Jacques Rancière. A partilha do sensível. Estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São
Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005, p. 55.
20
Idem, p. 56 e 57.
18
Dentre as várias possibilidades de equacionar as relações dos dois campos
podemos destacar três: história e literatura, história na literatura, história da
literatura e história/literatura. A “dimensão intervalar”
21
que caracteriza a equação
“história/literatura, seria a mais adequada para se pensar o texto literário nos
termos deste trabalho, pois não consideramos só os elementos externos na
produção do texto literário, nem na presença a história literária na literatura. Aqui o
texto literário - no caso, a poesia – é considerado como uma das possibilidades de
construção de sentidos históricos não explicitados ou até ocultados pelas versões
estabelecidas dos fatos.
Nosso ponto de vista se afirma mais na historicidade do texto do que numa
visão histórica que considera o texto como reflexo de um momento ou de uma
determinada ideologia social ou religiosa, ainda que com eles mantenha, muitas
vezes, estreitas relações. Aqui, lembramos as palavras de Alfredo Bosi:
Quando o conceito de historicidade da cultura se alarga e se
aprofunda, antigos mitos, símbolos e valores, bem como as
fantasias do inconsciente e os sonhos da utopia, entram no texto
com o mesmo direito que a mímesis das coisas rentes ao autor. E
volta-se à intuição de Machado de Assis: o indianismo não foi
patrimônio exclusivo do Brasil romântico, mas legado da cultura
universal. Histórico é, ao contrário do que diz a convenção, o que
ficou, não o que morreu. E enquanto a memória está viva, o
21
Cf. João Alexandre Barbosa. A leitura do intervalo.São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura;
Iluminuras, 1990. Principalmente os capítulos “O dentro e o fora: a dimensão intervalar da
literatura” e Forma e história na crítica brasileira de 1870-1950”. As equações utilizadas são de
João Alexandre são baseadas em anotações de aula de 27 de agosto de 1988, na FFLCH.
Evidentemente que o autor refina muito mais os conceitos com que trabalha.
19
passado continua presente, e a consciência assume o estatuto de
consciência histórica.
22
Assim, sem desprezar os direitos de cada campo de pesquisa, optamos por
ver na literatura o que ela sugere enquanto “transcendência” histórica,
considerando nisso a inserção, no presente do texto, de uma temporalidade
mediada pelo trabalho da memória literária. Isto é, o texto tanto dialoga com seu
tempo como com outros de forma singular, pois literatura, enquanto arte histórica,
faz uma leitura do tempo de forma a recuperar dimensões esquecidas pela
historiografia.
Passemos agora a considerar como os três elementos – história, memória e
poesia - se relacionam.
Relações entre história, memória e poesia
A poesia, ao transcender a história dos fatos, coloca em questão a
temporalidade historicista, recuperando elementos desprezados pelo processo
histórico. Ao reorganizar os fatos de forma não-linear, o texto poético se contrapõe
a uma concepção que vê a história linearmente, colocando assim a possibilidade
de se conhecer a realidade através de uma forma não “científica”.
22
Alfredo Bosi. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 52 e 53. Grifo
do autor.
20
Nesse sentido, o texto poético se assemelharia à visão de história de Paul
Ricoeur, para quem ela seria algo que não “consente nem no discurso absoluto,
nem na singularidade absoluta” por estar no campo das coisas inexatas, e não
poder ser absolutamente objetiva pelo fato de conseguir somente reconstrur o
passado
23
. Mas a poesia, assim como a história que tenta reconstruir o passado,
busca uma verdade que corresponda ao “não-esquecimento” social e histórico
24
.
Apesar de alimentada por informações da história, a poesia produziria uma
visão de mundo a contrapelo do “progresso inevitável” da história e da
“identificação afetiva” com os objetos do passado como são.
25
A versão poética
da história carregaria uma concepção dinâmica da realidade.
Como aponta Murilo Marcondes de Moura, “(...) a poesia, como expressão
das mais arcaicas e densas da experiência humana, pode formular, mesmo diante
da tragédia mais clamorosa, uma resposta própria, isto é primária, e não apenas
reagir de maneira circunstancial ou secundária”
26
. Apesar de a poesia se
configurar em parâmetros culturais definidos, e ainda que suas fontes sejam
eclipsadas por uma dicção marcadamente individual, é preciso notar que, na
elaboração poética, os eventos sociais são re-significados, obtendo sentidos não
compartilhados por um olhar eminentemente historiográfico.
23
Paul Ricoeur apud Jacques Le Goff, Memória/História. Enciclopédia Einaudi, v. 1. Lisboa:
Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 1984, p. 161.
24
“Não-esquecimento” em grego é Alétheia, palavra que é freqüentemente utilizada para significar
“verdade”. Cf. Marcel Detienne. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Trad. Andréa Daher. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, s/d.
25
Jeanne Marie Gagnebin. “Walter Benjamin ou a história aberta”. Prefácio. In: Walter Benjamin,
op. cit., p. 7-19.
26
Murilo Marcondes de Moura. Três poetas brasileiros e a segunda guerra mundial (Drummond,
Cecília Meireles e Murilo Mendes). Tese de Doutorado, São Paulo, 193 p. FFLCH/USP, 1998, p.
180.
21
Para Flávio Kothe, a literatura trata de seu presente, mas também das
possibilidades daquilo que não foi. A obra literária se relaciona com a história no
momento de sua produção, e carrega o outro que não foi oficialmente
reconhecido. Para o autor, a arte se constitui em “a alegoria que mostra a história
como ruína.”
27
A herança do passado é recuperada pela memória inscrita na poesia como
memória literária que produz um trabalho de redescoberta de visões que teriam
sido obliteradas pelos discursos históricos. Isto é, o que o texto histórico teria
“esquecido” pode ser reconsiderado pela poesia que, envolvida na teia da cultura,
entretém “relações vivas e estreitas com o passado, mesmo o mais remoto,
graças ao dinamismo da memória, e com o futuro, que já existe no desejo e na
imaginação”
28
.
Cabe aqui esclarecer as distinções entre memória e história, que
complementa as posições anteriores. Se as relações entre literatura, história e
memória são de difícil equação, junta-se a isso a dificuldade de conexão entre
memória e história, elas vivem em constante estado de disputa. Vejamos algumas
diferenças entre os termos na concepção de teóricos.
Para Pierre Nora, a memória é diametralmente oposta à história por vários
motivos. Resumindo as diferenças que o autor propõe, temos: a memória faz parte
de um acervo “vivo” conservado por grupos e está em permanente evolução, com
alterações e passível de modificações e recuperações; a história é uma
reconstrução do que passou. A memória é sempre atualizável; a história
27
Flário Kothe. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986, p. 70.
28
Bosi. Literatura e resistência , p. 33.
22
representa o passado. A memória tem bases no espaço, na imagem e no objeto; a
história está ligada a uma temporalidade contínua. Enfim, para o autor, a história
carrega um valor “destruidor” da memória viva, pois esta seria suspeita à
história.
29
Com o exposto, Nora desenha, com certo entusiasmo, um painel
instigante das diferenças entre os dois conceitos.
Um outro que acentua a diferença entre os dois termos é Carlo Ginzburg,
que levanta as origens da diferença dos conceitos e aponta a “irredutibilidade da
memória à história”
30
. Aí o autor mostra como, para os judeus, a memória coletiva
é uma prática que cria um nexo com o passado vital através de rituais de
“rememoração” como constante atualização do passado. Para o autor, as práticas
acima podem ser aplicadas também a outras culturas.
31
Quanto à historiografia, na
opinião de Ginzburg, teria a função de registrar os eventos dignos de ser
conhecidos, tendo por base a “perspectiva” (ou o “triunfo da vista”
32
) que, na
modernidade, faz com que o historiador tome distanciamento mais objetivo diante
29
Pierre Nora. “Entre mémoire et histoire”. In: Les lieux de mémoire. I La Republique. Paris,
França: Gallimard, 1984, p. XIX e XX. Utilizo também a tradução de Edgar Salvadori de Decca.
“Memória e cidadania”. In: Maria Clementina Pereira (org.). O Direito à memória. Patrimônio
histórico e cidadania. São Paulo: DPH/SMC, 1992, p.130. Estas definições de Nora estão ligadas
ao momento da história francesa de recuperação dos “lugares da memória” e, por isso, seu
entusiasmo em relação a esse novo objeto do desejo que é a memória. Para um esclarecimento
sobre o tema, conferir também: Ulpiano T. Bezerra de Meneses. “A crise da memória, história e
documento: reflexões par um tempo de transformações”. In: Zélia Lopes da Silva (org.). Arquivos,
patrimônio e memória. Trajetórias e perspectivas. São Paulo: Unesp/Fapesp, 1999, p. p.11-29.
30
Carlo Ginzburg. “Distância e perspectiva”. In: Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a
distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 178. Diz ele: “Em qualquer cultura, a
memória coletiva, transmitida por ritos, cerimônias e eventos semelhantes, reforça um nexo com o
passado que não pressupõe uma reflexão explícita sobre a distância que nos separa dele.”
31
Ibidem. O autor cita Yosef Yerushalmi, autor é Zakhor. Afirma Ginzburg: “Em qualquer cultura, a
memória coletiva, transmitida por ritos, cerimônias e eventos semelhantes, reforça um nexo com o
passado que não pressupõe uma reflexão explícita sobre a distância que nos separa dele.”
32
Idem, p. 189.
23
do passado, diferentemente do que ocorre com o trabalho da memória, mais
subjetivo.
E aqui entramos na questão da memória como “comportamento narrativo”
33
,
cuja função é a comunicação de algo que não existe no presente, a memória
presentificaria, pelo ato de narrar, eventos históricos e culturais. Contra a amnésia
coletiva, as narrativas de episódios, fatos, acontecimentos, localizados no tempo e
no espaço, servem para recordar o que foi esquecido. Desse modo, a memória
não luta contra a história, mas a resgata para o momento presente e, de certa
forma, a revivifica, dando-lhe dinamismo.
A memória, enquanto conjunto de símbolos que dá sentido a uma
coletividade - seja de tipo literária, artística ou urbanística -, é uma construção
social na qual entram em jogo as lutas pelo poder, e nessas lutas o domínio da
memória social significa controlar o espaço simbólico e, com ele, o espaço da
realidade. Quanto às relações de força presentes no momento de escolher o que
deve ou não ser preservado no espaço público, Jacques Le Goff afirma:
Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos
e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva.
34
33
Pierre Janet apud Le Goff, op. cit., p. 12.
34
Le Goff, op. cit., p. 13. “São as sociedades cuja memória social é sobretudo oral ou que estão
em vias de constituir uma memória colectiva escrita que melhor permitem compreender esta luta
pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.” (p. 46)
24
A essa construção intencionais da memória Edgar de Decca chama de
“memória histórica”, isto é, aquela definida pela instauração simbólica de
determinados sentidos. Então, a memória coletiva espontânea passa por uma
redefinição histórica, perdendo o elo com a experiência social. Para Edgar de
Decca, essa memória serviria para legitimar a dominação “(...) para destruir a
memória dos vencidos e para impedir que uma percepção alternativa da história
fosse capaz de questionar a legitimidade de sua dominação”
35
.
Por exemplo, a memória representada na preservação histórica do Brasil
tem sido, modernamente, a dos agentes que se identificaram com a construção de
uma identidade nacional.
Evidentemente que estas operações isolam exatamente
as “diferenças” que poderiam ter outras escolhas simbólicas na definição de
memória. Mas a reconstrução histórica da memória, que deveria incorporar o
“outro” (imigrante europeu, por exemplo), acabou por não incluí-lo no lugar da
memória nacional
36
.
Segundo Le Goff, a preservação da memória social, para além de uma
manipulação simbólica absoluta, também pode servir para emancipar os grupos
colocados à margem nas relações sociais, fazendo com que os monumentos
35
Edgar de Decca. “Memória e cidadania”, op. cit. p. 133.
36
Idem, p.134. “Em nome da memória histórica, por exemplo, a experiência do anarquismo no
Brasil ficou legada ao silêncio porque não corroborava com os mitos da identidade nacional.” (p.
134). Incluímos nesse “outro”, também o índio e o negro. Quando, por exemplo, o índio foi incluído,
isso só se deu às custas de uma integração forçada, pois as culturas “selvagens” dificilmente
seriam domadas pelo modo de simbolizar do branco. Mesmo José de Alencar, para construir uma
idéia de nacionalidade, utilizou o índio, “sacrificando-o”. (Cf. Alfredo Bosi. “Um mito sacrificial: o
indianismo de Alencar”. In: Dialética da colonização. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.. Cf. ainda Déa Ribeiro Fenelon. “Políticas culturais e patrimônio histórico”. In: Maria
Clementina Pereira Cunha (org.), op. cit.. Diz a autora: “No tocante às políticas de preservação do
patrimônio histórico, seja no âmbito federal como no estadual e municipal, estas ações guardaram
sempre a marca da improvisação e da empiria, ou da manipulação e do uso político da cultura.” (p.
29, grifo nosso). Essa manipulação fez com que alguns grupos perdessemo direito à memória’.
25
públicos passem a ser objetos de reflexão sobre a história, em vez de serem
somente objeto de veneração e culto de uma camada que se impôs pelo uso da
força simbólica ou material. Por isso, afirma esse autor, enfatizando a relação
entre memória e história: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a
alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos
trabalhar de forma a que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a
servidão dos homens.”
37
Mas isso pressupõe uma visão dinâmica sobre o passado, não mais
considerado em sua “passeidade”, mas como impulsionador do trabalho cultural
do presente.
Uma das formas de simbolizar uma unidade nacional, por exemplo, se
constitui no uso dos “mitos fundadores”, bases da história de grupos que se
perpetuam como principais agentes do poder, que têm sido a base da iconografia
e das edificações construídas e preservadas.
38
Desconstruir as imagens consagradas do País tem sido uma das tarefas de
historiadores e artistas, permitindo, assim, abordar problemas referentes ao tempo
e à história. E mesmo os textos literários, ainda que seja uma arte restrita às
classes cultivadas, propiciam a problematização da memória escrita sobre o País
bem como da memória edificada, como veremos na análise das obras que
escolhemos.
39
37
Le Goff, op. cit., p. 47.
38
A expressão “mitos de fundação” se encontra em Marilena Chauí. Brasil: Mito fundador e
sociedade autoritária. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2000.
39
Por exemplo, MM, ao atualizar a condição do índio colonizado, desfaz o mito de origem ao
apontar que o indígena não é visto mais como primitivo, como queriam os românticos e, em certo
grau, alguns modernistas “verde-amarelos”. No caso, por exemplo, do poema “Marcha final do
26
O poeta, a história e a memória
Murilo dialoga com a memória histórica, ao rever dados do passado. A sua
memória literária encena em História do Brasil momentos do passado em chave
satírica. Aí a memória poética entra em contraste evidente com versões
estabelecidas do passado. Noutro momento, em Contemplação de Ouro Preto, o
poeta revisa sua postura anterior, e sua poética se torna mais aderente ao objeto
histórico, agora de um ponto de vista religioso e mais grave.
O que abordamos no estudo de Murilo Mendes é exatamente a sua
tradução poética da história no que se refere a temas brasileiros, pois sua obra se
destaca na releitura de fenômenos da série histórico-social.
No da produção muriliana que se estende de 1920 a 1956, evidencia-se um
processo complexo de formação cultural do Brasil com intenso trabalho de
releitura da história.
40
Mas a leitura poética do passado é feita no sentido de
perceber um outro movimento da história, mais denso e mais intenso.
Uma das idéias defendida por Murilo é a da “abstração do tempo” entendida
como “a redução dos momentos, necessária à classificação dos valores para uma
Guarani”, o indígena acaba por ser “integrado” na civilização européia. É evidente que nem toda
obra literária coloca em questão as representações hegemônicas sobre o País. Algumas até
podem procurar consagrar o consagrado.
40
Os modos de produzir e interpretar a história do Brasil sofreu mudanças importantes no período
de 1902-56. Cf. Willi Bolle. grandesertão.br: o romance de formão do Brasil. cit. , p. 34.
27
compreensão total”.
41
Para Joana Matos Frias essa idéia corresponderia a uma
“negação do tempo” na obra do poeta
42
.
A abstração do tempo, e também do espaço, percorre praticamente toda a
produção do poeta (poemas, memória, aforismos, ensaios, retratos, etc). Por
exemplo, em O discípulo de Emaús, o aforismo 54 afirma: “O tempo e o espaço
são duas categorias anacrônicas que o homem deverá abstrair se quiser
conquistar a poesia da vida.”
43
Em Recordações de Ismael Nery, o poeta assinala,
em várias passagens, a importância desta abstração. Por exemplo: “O homem
deve representar sempre em seu presente uma soma total de seus momentos
passados. A localização de um homem num momento de sua vida contraria uma
das condições da própria vida, que é o movimento.”
44
A negação do tempo, no entanto, não se constitui numa negação absoluta
da história humana, e necessita, portanto, de outro tratamento. Ela se constitui
num paradoxo poético, pois se coloca em contradição com as temporalidades da
cultura moderna na qual o poeta está inserido. Aliás, o próprio escritor tinha
consciência da importância do tempo histórico.
41
Cf. Recordações de Ismael Nery. 2ª ed. São Paulo: Edusp; Giordano, 1996, p. 53. A idéia de
abstração de tempo e espaço está baseada nas conversas que teve com seu amigo Ismael Nery,
idéia registrada em detalhes na obra citada, em que é desenvolvida a teoria do Essencialismo; este
era baseado na abstração do tempo e do espaço, na seleção e cultivo dos elementos essenciais à
existência, na redução do tempo à unidade,(...) na representação das noções permanentes que
darão à arte a universalidade” (idem, p. 65). Cf. Murilo Mendes, “O eterno nas letras brasileiras
modernas”. In: Boletim da Sociedade Felipe d’Oliveira. N. 4, Rio de Janeiro, novembro, 1936, p. 44
e 45. Cf. também Raul Antelo, “a abstração do objeto”. In: Gilvan Procópio Ribeiro; José Alberto P.
Neves. (org.). Murilo Mendes: o visionário. Juiz de Fora: EDUFJF, 1997, p. 29.
42
Esta negação do tempo é uma das bases importantes para entender o mecanismo de tipo
religioso inerente à visão do poeta. Cf. Joana Matos Frias. Tempo e negação em Murilo Mendes.
Porto,Pt, 1998, Dissertação de Mestrado, 167 p. Faculdade de Letras, Universidade do Porto.
43
In: PCP. p. 821.
44
Recordações de Ismael Nery, p. 53.
28
A partir dos anos 1934, após sua conversão, sua poesia optou pela
“perspectiva do eterno”, isto é, pela solução transcendental com todas as
implicações culturais e poéticas resultantes da adesão ao Catolicismo.
Em seu livro autobiográfico, A idade do serrote, o poeta enuncia sua
inquietação com relação ao tempo.
Desde menino preocupei-me muito com o problema do tempo. (...)
As palavras ‘outrora’, ‘naquele tempo’, ‘antigamente’, ‘há séculos’
impressionavam-me muito. Queria saber se não seria possível colar
os tempos uns nos outros; se o tempo era horizontal ou vertical;
enfim, tinha mais presente a idéia de tempo que a de espaço.
Talvez por isso me tivesse desde cedo afeiçoado à música.
45
O depoimento acima indica a relevância do tempo em seus textos. Com
efeito, ele buscou dar a seus poemas uma ilimitação do espaço e do tempo,
propondo uma prática poética que pudesse vivenciar sincronicamente a literatura,
com o intuito de anular o tempo exterior para instituir “uma nova concepção de
simultaneidade e de coexistência.”
46
Na busca pelo eterno, mesmo em textos marcados pela religiosidade, o
poeta não menospreza o transitório ao registrar as vivências verificadas em livros
como História do Brasil, Contemplação de Ouro Preto. Em artigo que trata do livro
Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, o poeta afirma a importância do instante
fugaz na produção poética: “(...) não adianta renunciar ao efêmero sem conhecer
45
MM. In: PCP, p. 922-23
46
Joana Matos Frias. Tempo e negação em Murilo Mendes. cit., p. 39, 129 e 132. Em vários
momentos MM problematiza a noção de tempo. Por exemplo, emA Estátua do Alferes”, diz “No
29
os valores que ele traz consigo. A solução do problema, segundo me parece, é
esta: fixar o efêmero, suas formas mutáveis, suas categorias estéticas e sociais, e
transcendê-lo.”
47
Como afirma também no aforismo 273 de O discípulo de Emaús:
“Sem compreender o particular não se pode atingir o universal.”
48
As declarações acima evidenciam a valorização de elementos da história
necessários ao artesanato literário, por exemplo, em Contemplação, que o intuito
de transcender a realidade conta com dados da história.
Vale, ainda, o registro da seguinte passagem do artigo acima citado, e que
pode ser lida como uma chave do modus operandi do próprio poeta:
Aqui o problema se complica: o problema da conciliação entre a
chamada realidade e a transcendência. Como se apresentará a um
poeta cristão o imenso universo da matéria informe, contendo a
tradição do pecado, povoado de elementos separatistas, isto é,
elementos que parecem nos isolar do Criador?
49
O tempo histórico, apesar de aparentemente negado por uma visão cristã,
não é, todavia, totalmente dispensado pelo poeta, mas a ele é dado um tratamento
artístico e dinâmico.
meu corpo cabe tudo. / Cabe passado e presente, / Mais do que tudo o futuro.” HB. In: PCP, p.
158.
47
MM. “Invenção de Orfeu”. In: Jorge de Lima, Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: livros de
Portugal, 1952, p. 417 (O texto todo se encontra nas p. 415-420, e foi publicado também no
Suplemento literário de “A manhã”, 10 de junho de 1952).
48
In: PCP, p. 842.
49
MM. “Invenção de Orfeu”. In: Jorge de Lima, op. cit., p. 418. A busca de reaproximação do
“Criador” remete à idéia de restauração, presente em Contemplação de Ouro Preto. Observe-se
que o artigo é de 1952, portanto, no intervalo da produção (1949-50) e publicação (1954) do livro
sobre a cidade mineira.
30
A negação do tempo no poeta, com forte teor metafísico, desconfia da e
combate a linguagem mecanicista baseada em práticas de escrita historiográfica,
e nesse aspecto Murilo esteve próximo de vários outros artistas do século XX. O
tempo, uma dos traços da religiosidade do poeta, seria uma etapa a ser ultrapassa
pela solução do eterno. Nos termos de Murilo de Moura: “... o tempo nasce da
ruptura do humano com o sagrado, expande-se na busca da recuperação daquela
harmonia originária e morre quando esta é finalmente alcançada.”
50
A ação do
tempo que tudo degenera estará presente, assim, em Contemplação de Ouro
Preto, juntamente com a busca da superação do tempo humano em favor da
dimensão do sagrado.
Jorge de Sena, comentando a questão da transcendência, afirma que
“Seria um erro supor que a transcendência é sobrevivente das épocas teológicas
ou metafísicas, e que a imanência é o apanágio progressista das épocas
positivistas.”
51
Este raciocínio pode se aplicar à literatura moderna de tendência
metafísica que, de modo geral, busca uma revalorização do verbo enquanto
potência de salvação. O teórico português mostra que o ato dacontemplação do
universo” não conteria uma visão mística da ação artística, mas, ao contrário, “nos
explica como esta última [a atividade artística], ainda quando persiga
sistematicamente o ‘absoluto’, se interessa radicalmente por ampliar aquela
50
Murilo Marcondes de Moura. “Os jasmins da palavra jamais”. In: Alfredo Bosi. Leitura de poesia.
São Paulo: Ática, 2001, p. 114 e 115.
51
Jorge de Sena. Dialécticas da literatura. Lisboa: Edições 70, 1973, nota de rodapé n. 31, p. 46.
Itálico do autor.
31
contemplação, transformando-a numa obra em que à contemplação se acrescenta
a meditação organizada.”
52
E é a meditação organizada sobre o tempo e a história que vemos presente
nos livros de Murilo Mendes, mesmo que o absoluto se constitui no núcleo da
produção do poeta. Segundo Joana Matos Frias, desde os primeiros livros já
trabalhava com a “possibilidade de criar e recriar o passado” e com “a afirmação
do poder e do domínio do homem sobre esse passado”
53
. Recriação que tem a
ver com uma reconstrução muito particular e subjetiva do passado como coisa
imaginária. A reconfiguração do passado seria, então, da ordem da memória
enquanto vista pelo sujeito que buscaria recuperar através dela “não o passado e
a sua realidade mas o que no passado é irrealidade.”
54
No entanto, a visão religiosa da memória precisa ser retomada no que
tange aos dois livros em pauta. Já não é somente uma memória pessoal que entra
em jogo, mas uma memória social, apesar de esta ser construída através da
subjetividade poética.
55
Através da literatura, no trabalho de memória pessoal do escritor, se
recuperam dados desprezados pela história. Essa memória se posiciona, em
vários poemas, de forma radicalmente subjetiva que busca recuperar a irrealidade
ausente no passado.
56
Esse aspecto surge em poemas do tipo “Memória” (As
52
Idem, nota de rodapé n. 34, p. 49 e 50.
53
Joana Frias, op. cit., p. 106.
54
Ibidem, p. 106 e 107.
55
Embora saibamos que a subjetividade já traz consigo a coletividade, no caso de livros em que o
eu-lírico se manifesta de forma explícita; nos livros que estudamos o poeta comparece como autor,
mas também como participante da cena, produzindo uma inter-relação dinâmica entre eu e objeto
56
Joana Matos Frias. Tempo e negação em Murilo Mendes, p. 106-109.
32
metamorfoses, “Memória” (Mundo Enigma) e um terceiro de mesmo nome de
Poesia Liberdade.
57
Como veremos, a memória histórica e social vai tomando lugar de destaque
na obra do poeta ainda que, às vezes, de forma indireta. Mais do que uma
lembrança subjetiva desenraizada da vida, ela se torna uma recordação coletiva
concretizada e sistematizada em textos que remetem a eventos, monumentos e
documentos históricos.
Mas em certo sentido, ela também se coloca como uma
memória coletiva não contemplada nas construções históricas do passado, pois se
trata, nos dois livros, de eventos de grandes impactos socioculturais dos quais o
poeta dá testemunho e patenteia o pulsar dramático do processo de colonização
do Brasil.
A memória histórica se traduz em História do Brasil e Contemplação de
Ouro Preto de maneiras específicas.
Em História do Brasil as marcas da história são registradas em episódios
históricos, e aí a memória social é evocada diretamente
58
. Os “romances” da obra
registram, através do modo cômico-satírico, a história e a memória do ponto de
vista dos vencidos recompondo uma memória coletiva esquecida e fazendo falar o
que foi ocultado pela história. Esta operação é feita através de uma escrita
representativa e representacional da voz reprimida pelos modos de representação
oficial da cultura, o que identifica o poeta com as causas “perdidas” que são
57
Os primeiros cinco versos do primeiro poema citado dizem: “Virar a vida pelo avesso.//A fábula
com suas raízes / mergulha na esfera branca.//Passado presente futuro, / Tiro o alimento de tudo.”
(PCP, p. 365). O segundo poema se encontra em PCP, p. 377, e o terceiro em PCP, p. 415.
58
Luciana Picchio. “Murilo Mendes 1932: A história do Brasil revisitada”. In: Metamorfosi, Lisboa:
Edições Cosmos, 2001. Luciana sugere que a visão de Murilo se aproxima da de Leonardo da
Vinci: “Leonardo da Vinci escrevera: La pittura è cosa mentale. Poderemos dizer com a mesma
precisão que pelo menos para Murilo, a história era coisa mental?” (p..42)
33
reconsideradas poeticamente como um modo de advertir sobre as devastações
políticas e sociais da história brasileira. A implicação ideológica do livro se liga a
uma atitude radical, própria de um Murilo leitor e simpatizante, à época, de Marx,
Lênin e Trótski. A memória histórica nesta obra é narrada com base em episódios
registrados pela historiografia e pela literatura brasileira.
Já em Contemplação de Ouro Preto o tempo passado não é presentificado
através de datas ou episódios, mas está sinalizado pela presença de personagens
históricas da cultura brasileira e pela abordagem do espaço da cidade e também
pelos dados concretos da cultura popular, no caso, pela cultura religiosa. Assim,
apesar de haver a tentativa de abstrair o tempo e de não fazer referências
explícitas a conflitos e tensões sociais, como no livro de 1932, o registro da
memória acaba por se fazer com base em elementos não declaradamente
“críticos”.
Nessa obra, a relação do poeta com a história está pautada pela mediação
da memória meditada e reconstruída pela poesia e, portanto, artisticamente
seletiva. A memória social aí se funda e se concretiza na questão do espaço da
cidade, mostrando, através de uma narrativa mais pausada, a situação em que se
encontra o espaço no presente, mas com densa evocação do passado através de
artistas, escritores e figuras religiosas - como é o caso de Aleijadinho, Alphonsus
de Guimaraens e Santa Maria. Porém, o principal motivo que impulsiona a
meditação do poeta é o espaço da cidade (ruas, igrejas, Passos).
A memória de Contemplação remete à sacralidade católica, num complexo
ritual litúrgico. No entanto, isso não torna o livro menos histórico do que o primeiro,
34
também porque a obra tem elos com a questão da preservação do patrimônio
histórico em Minas Gerais.
Nessa obra, a história se torna presente porque, paradoxalmente, é omitida.
Aí, essas marcas são referenciadas pelas “cicatrizes do minério”. Como aponta
Francis Paulina sobre o posicionamento do poeta, “... consciente da condição de
colonizado, quis voltar às origens, vasculhar a memória nacional e redescobrir,
num espaço novo, o da escrita, o que poderia constituir sua identidade.”
59
Sua memória também se aproxima muito da visão escatológica, pois tenta
colocá-la fora do tempo, e isto a separaria da história e a aproximaria mais do
mito, o que poderia deixar supor que, neste esforço de rememorização,
aparentemente o poeta não se interessaria pelo passado e se deixaria levar por
uma busca do absoluto de forma abstrata.
Segundo Le Goff, a partir do momento em que a memória se aproxima da
visão escatológica acabaria não só por se distanciar da história, mas poderia
desenvolver até mesmo uma aversão pela história
60
. Isto aconteceria no caso de
discursos religiosos que propõem uma solução transcendental para os problemas
humanos.
No livro Contemplação de Ouro Preto, a história é relatada de modo indireto
pela evocação do passado. A arquitetura da cidade, como memória edificada,
emite sinais para evocações não só de um passado instituído, mas de uma
memória cultural que vai além do concreto, indicando um cruzamento de aspectos
59
Francis Paulina Lopes da Silva. Murilo Mendes: Orfeu transubstanciado: ensaio. Viçosa, MG:
UFV, 2000, p. 18.
60
Le Goff, op. cit., p. 21. Conforme Rodrigo Fontinha, “Escatologia” - “Estudo fisiológico dos
excrementos. Teoria teológica sobre as coisas que hão-de suceder, depois de acabar o mundo.”
35
literários e religiosos (e estéticos) que ultrapassam a comemoração oficial. O
lamento sobre a cidade, na poesia de Murilo, está despido do clima comemorativo
das festas da religiosidade oficial, ainda que as retome em seu aspecto popular.
A memória literária, então, dialoga com os esquecimentos da história, pois
no livro acerca de Ouro Preto a retomada do passado remete à “problemática da
imortalidade”
61
numa perspectiva mais abrangente do que a da “morte” individual,
mas que é concretizada na situação da cidade. O que é necessário ressaltar é que
a memória em ambos os livros se constitui em reatualização, não em lembrança.
Neles, o poeta recapitula a história, resumindo-a em seus poemas que condensam
certos momentos do passado.
62
A condensação se faz no sentido de trazer o
passado para o presente, e não registrar o passado como ele foi.
Pois ao contrário daqueles que se identificam com um passado cristalizado
e parado no tempo, a identificação afetiva do poeta, sua empatia, está com os
vencidos do passado.
63
Em tom satírico ou meditativo, transforma a matéria do
passado em uma crítica radical do presente e da história cultural.
A política literária dos primeiros textos - vazados no “truque” surrealista
como uma das formas mais criativas de se olhar o passado criticamente - substitui
Rodrigo Fontinha. Novo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Revisto por Joaquim
Ferreira. Porto/Portugal: Editorial Domingos Barreira, s/d, p. 701.
61
Joana Frias. Tempo e negação em Murilo Mendes, p. 107. A autora se refere ao conjunto da
obra de MM. Mas penso que no caso de Ouro Preto isto está presente de forma mais concreta.
62
Cf. Benjamin. “Sobre o conceito de história”, op. cit. Sobre a memória como reatualização,
baseamo-nos na citação de Y. H. Yerushalmi: “A memória não é mais lembrança – o que manteria
um sentimento de distância – mas reatualização.” Apud Michael Löwy. Walter Benjamin: aviso de
incêndio. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 124. Quanto à
recapitulação: G. Agamben apud Michael Löwy. Sup. cit., p. 138.
63
Benjamin. “Sobre o conceito de história”, op. cit., p. 225.
36
o olhar estritamente histórico pelo olhar politizado.
64
Como prática de
universalização, o Surrealismo foi encampado e adaptado ao contexto local, como
é o caso de História do Brasil em que esta vanguarda foi claramente utilizada pelo
autor para desmistificar e demitificar o passado. Então, a expressão de Walter
Benjamin - “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como
ele foi’”
65
-, pensada em nosso contexto, sugere uma prática poética criativa em
que se rearticula a tradição histórica em contextos atuais, num diálogo fértil que
constrói quadros com imagens concomitantes do passado e do presente.
Se isso é verdade para o primeiro Murilo, também o é para o segundo, pois,
apesar de mudar o tom e mudar o tema, o poeta não abandona totalmente suas
preocupações com o que ficou no meio do caminho da história.
Plano de trabalho
64
Benjamin. “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”. In: Magia e técnica,
arte e política, p. 25-35. O Surrealismo, em seus primórdios (1919), desfez muito do imaginário
burguês predominante nas práticas artísticas de então, e, como afirma Benjamin, foi um pequeno
riacho que impulsionou turbinas geradoras de energia, energia que deveriam ser colocadas a
serviço da revolução.
65
Benjamin. “Sobre o conceito de história”. In: op. cit., p. 224-5. “Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico
fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico,
sem que tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a
recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu
instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se
dela. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um
perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no
momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto
a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às
classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao
conformismo, que quer apoderar-se dela.”
37
O primeiro capítulo, “O poeta no Modernismo e a crítica de sua obra”, situa
Murilo Mendes e seus contatos com o Modernismo brasileiro e, em seguida, será
apresentado um panorama dos estudos mais consagrados e mais recentes da
obra muriliana. Esse levantamento da recepção de sua obra propicia olhar os
caminhos tomados por sua poética, ao mesmo tempo que elucida os enfoques dos
pesquisadores. Não será abordada a crítica do período em que o poeta morou em
Roma (1957-1975).
Para esse capítulo pesquisamos em cartas, documentos,
artigos.
66
Abordaremos suas primeiras produções poéticas, enfatizando dois poemas
dessa literatura. Em “Tradição e modernização em Poemas”, serão analisados
textos do livro, publicado em 1930, que já evidenciam um posicionamento crítico
quanto à representação da história do País. Este livro o situa na virada
modernista, interferindo no cenário nacional como já havia feito anteriormente
Oswald de Andrade, com seus poemas “descolonizadores”.
67
Em “A sátira histórica em História do Brasil”, comentaremos a obra de 1932,
resgatada por Luciana Picchio nos anos 1990
68
e considerada agora no conjunto
da produção do poeta sobre o País. Nesse livro, em que a história é narrada a
partir de fatos e episódios, a visão do poeta é impulsionada pela sátira
humorística: as revoltas populares e os costumes das classes dirigentes durante a
66
Em cartas escritas por MM para Mário de Andrade, arquivadas no Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB/USP), podemos perceber as posições do autor em relação ao Brasil; um
conjunto de cartas, do Centro de Estudos Murilo Mendes (CEMM) enviadas por MM a Alceu, e
trechos de missivas de MM a Carlos Drummond de Andrade apud Guimarães.
Território/Conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
67
Cf. Oswald de Andrade. Pau-Brasil. In: Cadernos de poesia do aluno Oswald. São Paulo: Círculo
do Livro, 1985.
68
MM. História do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
38
Colônia até os anos 30 são registrados pela ótica dos oprimidos da história
nacional.
Em “Memória contemplativa da história”, veremos as repercussões das
inquietações do primeiro momento em textos mais tardios, como é o caso de
Contemplação de Ouro Preto
69
, de 1954, livro em que são retomados aspectos da
história brasileira e mineira e da própria obra do autor, re-situados em outro
contexto e aderentes a outras perspectivas históricas, sociais e poéticas. Em
Contemplação, onde a memória literária aloja os “fantasmas” do passado, vemos
a postura do poeta religioso que procura exorcizar essas sombras através de uma
solução matafísica
70
.
No capítulo “Duas poéticas dissonantes e complementares”, procuramos
estabelecer uma comparação por contraste e complementaridade e, para isso,
voltaremos às obras estudadas, mostrando como cada uma, dentro de
perspectivas e tons diferentes, trabalha com a questão da história e da memória
nacional. Serão abordados dois poemas de cada livro para analisar as diferentes
nuances do poeta. Por exemplo, a memória oficial é criticada em um e depois
revista no outro livro, o que mostra uma reavaliação do autor em relação ao
passado brasileiro.
69
Cf. Paulina Francis Lopes da Silva. Murilo Mendes.Orfeu Transubstanciado. Viçosa: UFV, 2000.
Nesse trabalho a autora desenvolve algumas idéias sobre a “brasilidade” muriliana.
70
Murilo Marcondes de Moura. Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. (Carlos
Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes). São Paulo, 1998. Tese de Doutorado
FFLCH/USP, p. 177. Apesar de possuir um preponderância do caráter metafísico, consideramos
que essa obra deixa aberto o flanco para interpretações mais históricas.
39
40
1. O POETA
NO MODERNISMO E A CRÍTICA DE
SUA OBRA
1.1. Dados biográficos do autor
Murilo Mendes vem sendo assinalado pelos estudiosos como “um dos mais
altos poetas da modernidade” e considerado um dos principais líricos brasileiros.
Ainda moço, no início dos anos 1920, migrou de Juiz de Fora, onde nascera em
1901, para o Rio de Janeiro, perfazendo uma trajetória de inquietação e
inconformismo quanto aos modelos então vigentes na cultura brasileira. Atuou no
cenário da então Capital Federal de forma contundente e dramática, como
militante cultural, realizando reuniões com amigos em sua casa e intervindo em
apresentações no espaço público.
As interferências do poeta provocaram o conformismo da então Capital
Federal, fustigando o público e o bom comportamento burguês. Seu anedotário
registra que, certa vez, depois de cumprimentar os funcionários do Banco onde
trabalhava, tirou o chapéu para o cofre numa reverência ao “dono do Banco” (o
cofre).
Eventos como este indicavam seu grau de “desordem” e de insatisfação em
relação ao mundo estabelecido, mas também o localiza na “insurgente vaga
modernista” que provocava a ruptura com os valores vigentes.
71
71
Cf. Luciana Picchio. “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-poeta. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988, p. 5 e 6.
41
A fama de poeta incompreensível, estranho, fantástico, surrealista,
desarticulado, exótico se deve em parte a sua vida de agitador cultural, e sua
“máquina poética”
72
destoa de grande parte dos modernistas exatamente por seu
anarcovanguardismo individualista. O autor se considerava um homem solitário,
mas se juntou a Jorge de Lima para produzir colagens surreais.
Mesmo não estando vinculado a escolas literárias e outras instituições
formais, teve uma formação muito ampla, devido a seus vários interesses culturais
e aos contatos com amigos que lhe forneceram subsídios para o desenvolvimento
de sua obra. Com esta formação cultural, baseada em autores da alta cultura –
Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Marx, Engels, Trótski - suas provocações se
davam sempre no plano das idéias e do conhecimento, apesar de incidirem
também no campo dos comportamentos, pois era exigente consigo e com os
outros.
73
Enfim, um “Murilo observador do Caos, olho armado, católico ecumênico
e surrealista”, mistura explosiva, para sua época, que o poeta assumia contra os
dogmas doutrinários.
74
Sua conversão em 1934 marcou profundamente sua produção cultural, a
ponto de reestrutura o enfoque de sua poesia: da extroversão inicial passa a uma
introspecção espiritual.
75
72
José Guilherme Merquior. “Notas para uma Muriloscopia”. In: PCP, p. 11. Murilo participa desse
“estilo compósito” modernista, fazendo ele próprio este estilo em seus poemas; nesse sentido ele
se faz modernista da gema.
73
Desde adolescente o poeta já tivera contato com os poetas clássicos franceses - Racine,
Corneille, etc. Cf. Murilo Mendes. A idade do serrote. “Almeida Queirós”. In: PCP, p. 963-967.
74
Luciana Picchio. “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-poeta, p. 9.
75
Voltaremos a esse assunto adiante.
42
Em 1947, casa-se com Maria da Saudade Cortesão, filha do Historiador
Jaime Cortesão. Passou parte dos anos de 1952 a 1956 em viagens pela Europa,
proferindo palestras sobre literatura e cultura brasileira. Logo depois, em 1957, se
estabeleceu em Roma, a convite do Ministério das Relações Exteriores,
ministrando aulas em universidades de Roma e Pisa. Isto lhe deu uma “projeção
européia” que poucos autores brasileiros tiveram, não só por residir lá, mas
também pela notória cultura clássica e pelas suas amizades com artistas de
grande envergadura no cenário artístico europeu. No entanto, toda essa inserção
cultural não o desligou de suas raízes mineiras.
76
Morre em 1975, em Lisboa,
Portugal.
1.2. O autor e o Modernismo
Nos códigos modernos, uma das intenções artísticas foi a de provocar o
estranhamento ou a ruptura com práticas enraizadas na sociedade, criando o
atrito cultural para romper com o conformismo. Murilo foi um dos que levou isso a
seu trabalho diário, em sua prática de “liberdade total”
77
.
Em que pese sua carga subversiva, o conjunto da obra muriliana se insere
no contexto moderno sem propor-se a romper com o passado, como será
apontado nesse trabalho. O Modernismo, como um conjunto de tendências
artístico-literárias, questionou grande parte da tradição literária ocidental ao
76
Cf. Carta de Alceu Amoroso Lima apud Laís de Araújo, op. cit., p. 373.
77
Laís de Araújo, op. cit., p. 363.
43
mesmo tempo que fez uma reinterpretação do material social, político e cultural
acumulado ao longo dos séculos, pois essa tradição já não dava conta de toda
uma gama de culturas existentes pelo mundo. No caso do Brasil, o processo de
releitura dos paradigmas literários foi tenso e provocou rachaduras nas artes
tradicionais, acompanhando o que ocorria na Europa.
Murilo Mendes, antes de publicar seu primeiro livro - Poemas (1930), já
tinha composto alguns poemas modernistas e, como outros poetas com os quais
mantinha relações culturais, publicou em revistas e periódicos literários (Revista
de Antropofagia, Verde, Lanterna Verde, Festa, Dom Casmurro, Revista Nova,
etc). Mesmo antes de ir para o Rio de Janeiro, já havia publicado poemas e outros
textos em jornais de sua terra natal. Assim, a gênese do poeta não está no ato
inaugural do aparecimento de um livro, pois certas características próprias já
estavam presentes em textos anteriormente publicados, aliás, vários deles
incorporados na sua primeira obra.
Nos anos 20, incursiona pelo poema-piada, demonstrando uma
“irreverência cética”, diferindo, porém, do escracho de um Oswald de Andrade e
da “ironia ácida” de um Carlos Drummond de Andrade.
78
O humor poético
muriliano, marca de sua “fase carioca”, e o seu estilo poético, já estão presentes
em Poemas que, segundo o poeta, teriam sido escritos em 1925, o que mostra a
sintonia com o movimento modernista.
79
78
Ruggero Jacobbi apud Júlio Guimarães, op. cit. p. 31.
79
Cf. Carta a Alceu Amoroso Lima, 27 de fevereiro de 1931, pertencente ao Acervo Tristão
Athayde (CAALL). Arquivo do CEMM. Nela o autor diz: “Como é fácil verificar (a data da
composição está indicada no frontispício -) - os tais poemas-piadas foram escritos em 1925.”
44
Quanto à sua participação no movimento modernista, não foi ostensiva nem
oficial, pois, durante a Semana de Arte Moderna, o poeta afirma que “estava no
Rio, olhando de longe e com simpatia o movimento, mas sem aderir oficialmente,
porque nunca tive instinto gregário, o que sempre me impediu de fazer parte de
qualquer grupo.”
80
Suas relações, nos anos 20 e 30, com artistas plásticos e pensadores,
apontam para a incorporação produtiva das vanguardas européias, principalmente
do Surrealismo apresentado a ele por seu amigo Ismael Nery que tinha ido à
Europa. No livro de 1930, por exemplo, apontando para o diálogo com as
Vanguardas, o trabalho com o claro-escuro e com as imagens se fazem sentir de
maneira bem definida.
81
Desse primeiro grupo cultural de Murilo, é preciso destacar também o nome
de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) com quem teceu conversação
constante através de correspondência, inclusive depois de ir para a Itália. Já o
contato com Carlos Drummond de Andrade foi confirmado após a publicação de
Alguma poesia (1930).
82
Os estudos sobre o modernismo brasileiro registram comumente o grupo
paulista como o núcleo centralizador da produção literária e ensaística. Murilo,
80
Apud Júlio Guimarães, op. cit., p. 26.
81
Luciana Picchio. “Introdução”. In: Murilo Mendes. Poemas e Bumba-meu-poeta,. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1988, p. 7. Segundo esta autora, aí sente-se a presença de imagens “(...) que
evocam quadros de Chagall, ou as praças com estátuas brancas e paradas como em metafísicas
de De Chirico.
82
Carta datada de 18 de maio de 1930, em que cumprimenta Drummond pelo livro. Apud Júlio
Guimarães, op. cit.,
45
depois de dizer em carta que pensava em se “enfiar em algum movimento sério”,
diz que “O de S. Paulo é ridículo, atrasado e literário”.
83
Há grande diversidade do movimento modernista, não só no interior do
grupo paulista – com Mário de Andrade e Oswald de Andrade à frente -, mas
também em grupos considerados menores como o de Cataguases, o de Belo
Horizonte e o grupo carioca.
84
No caso da “dimensão mineira” do modernismo
ritualístico, reserva-se grande lugar poético a Drummond e, em parte ao Murilo
Mendes de História do Brasil.
85
O núcleo carioca, vinculado em parte com o de São Paulo, também tinha
suas divisões culturais. Antonio Candido aponta, no Rio de Janeiro, o caso de
Graça Aranha, que era “o líder nominal do movimento, convidado pelos jovens por
ser um escritor famoso e algo inconformado”. As idéias deste líder estavam
ancoradas numa “filosofia superficial, baseada numa loquacidade telúrica e
vitalista sem maior significado”
86
. Se alguns do Rio se afinavam mais com a linha
de São Paulo, outros nem tanto, como é o caso do grupo “Festa”, considerado por
alguns como conservadores em relação ao de São Paulo. Mário de Andrade, em
83
Carta a Alceu Amoroso Lima, de 23.03.31, arquivo do CEMM, pertencente ao Acervo Tristão
Athayde (CAALL) . Esse tom agressivo deverá mudar a partir da conversão do poeta.
84
Mário de Andrade. “O movimento modernista”. In: Carlos Eduardo Berriel. Mário de Andrade
hoje. São Paulo: Ensaio, 1990. Diz Mário: “O movimento modernista, pondo em relêvo (sic) e
sistematizando uma ‘cultura’ nacional, exigiu da Inteligência estar ao par do que se passava nas
numerosas Cataguazes” (p. 31).
85
Laís de Araújo. “Dimensão ‘mineira’ da poesia modernista”. In: Colóquio/Letras, n. 25, Lisboa,
maio de 1975, p. 20-33.
86
Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 3
a
. ed. São Paulo: Humanitas, 1999, p. 74.
46
1937, teria considerado o “Festa” como um grupo que não precisava do
Modernismo para ter existido, já que daria continuidade ao Simbolismo religioso.
87
Murilo se insere no contexto da literatura religiosa praticada por outros
poetas, como Jorge de Lima, Augusto Frederico Schimdt e Vinícius de Moraes,
tendência que, segundo Candido, teria animado o ambiente cultural do Rio, com
Alceu de Amoroso Lima à frente, com desdobramentos políticos direitistas, como a
do grupo Verde-Amarelo.
88
Em 1936, após sua conversão ao Catolicismo, o poeta aponta alguns
problemas do movimento modernista liderado por Graça Aranha, considerando-o
um relativista em filosofia. Afirma ele: “Os poetas, escritores e outros artistas que
com ele fizeram o movimento moderno acreditaram que se podia fazer uma
ruptura completa com a tradição, com a cultura classica (sic) e com os valores
eternos.”
89
Estes valores eternos são um diferencial do poeta, pois aí se sente a
presença de sua posição religiosa e a referência à Igreja Católica. Nota-se isso
também quando o escritor deixa claro que Graça Aranha, com seu elogio à
maquinização moderna, não seria o seu modelo, apontando para um
posicionamento avesso a um certo Futurismo.
90
87
Apud Ângela de Castro Gomes. “Essa gente séria... Intelectuais, Catolicidade e Modernismo no
Rio de Janeiro.” In: Lana Lages da Gama Lima et alli (org.). História e Religião ((ANPUH). Rio de
Janeiro: Fapesp; Mauad, 2002, p. 237.
88
Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira, p. 75 e 83.
89
Murilo Mendes. “O eterno nas letras brasileiras modernas”. In: Boletim da Sociedade Felipe
d’Oliveira. N. 4, Rio de Janeiro, novembro, 1936, p. 47. Neste artigo, o artista defende o
Catolicismo como resolução das contradições humanas. Mas revela-se também um conhecedor
das tendências marxistas - por exemplo, cita Trotski e o Engels de Anti Düring.(p. 43 e 44).
90
Carta a Drummond de 03/02/1931 apud Júlio Guimarães, op. cit. 1993, p. 29 e 30
47
O poeta recebe críticas de vários lados pelo fato de, após a conversão, ter
sofrido uma mudança de atitude e de posição política. Carlos Lacerda, em tom
ácido, por exemplo, critica seu caráter instável:
As opiniões políticas de Murilo Mendes intrometiam-se bastantes
vezes nos seus poemas. Politicamente ele era um vidro de mixed-
pickles. De tudo, com molho picante de não-conformismo. (...)
Preferia trotskista, não porque fosse a forma mais simples de não
ser nada, mas porque a sua rebeldia sem armas o levava para aí.
Sempre voava em torno das doutrinas, com vôo de beija-flor.
Adejante e pousa-pousante.
91
Quanto à sua conversão propriamente dita, Lacerda afirma que esta
mudança provocou no poeta uma “morte prematura”, e sua tendência ao
exibicionismo público teria ganhado força após a morte do amigo Ismael Nery.
92
Mas a veia irreverente segue com o poeta, apesar de ter mantido amizade
com o “sério” Alceu Amoroso Lima. Por exemplo, durante a Segunda Grande
Guerra, teria enviado um telegrama em nome de Mozart, protestando contra o
ataque de Hitler a Zalzburg.
93
91
Apud Júlio Guimarães, op. cit. p. 37 e 38. O próprio Lacerda anos depois será convertido num
anticomunista convicto, o que demonstra também a sua mudança “radical”, além de ser conhecida
sua tendência à aparição pública.
92
Apud Júlio Guimarães, op. cit., p. 38. Pedro Nava registra o momento dramático da conversão de
MM ao Catolicismo. Na noite de 6 para 7 de abril de 1934, durante o velório, de Ismael Nery, MM
teria tido um tipo de êxtase espiritual que transformaria radicalmente seu comportamento público.
De uma atitude irreverente passou a uma circunspecção extrema. Deixaria a pregação marxista
dos tempos anteriores para se dedicar ao estudo aprofundado das doutrinas católicas. Tanto é
que, após o velório do amigo, se dirigiu ao Mosteiro de São Bento. Nas palavras de Nava: “Quando
três dias depois ressurgiu para os homens, tinha deixado de ser o antigo iconoclasta, o homem
desvairado, o poeta do poema piada e o sectário de Marx e Lenine. Estava transformado no ser
ponderoso, cheio de uma seriedade de pedra e no católico apostólico romano que seria até o fim
de sua vida." Pedro Nava. O círio perfeito. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 318-9.
93
Laís de Araújo, op. cit. p. 16.
48
Para além de uma atitude religiosa ortodoxa, Murilo manteve contatos
abertos com diversos setores literários, bem ao sabor de uma religiosidade que,
para o autor, ofereceria abrigo aos vários atores sociais, apesar de a Igreja
Católica manter uma posição conservadora.
94
No meio da “reação” católica o poeta se coloca, por exemplo, em carta a
seu amigo Alceu, em defesa de algumas idéias soviéticas contra os colaboradores
católicos da “Coluna do Centro”. Comentando as publicações francesas, “Sept” e
“La vie intellectuelle”, que, segundo o poeta, aceitam “certos postulados no campo
da economia, interpretando como aventura mística a revolução russa, torna-se
grotesco achincalhar os homens e coisas da Rússia com expressões grosseiras e
despropositadas...”
95
Flora Sussekind localiza Murilo no campo do ecumenismo das artes e das
religiões. Segundo a autora:
Para ele [Murilo], diferentes tendências e opções no terreno da arte
como no da religião terão o mesmo valor e serão igualmente
utilizáveis: são todas moradas na casa do Pai. Ecumenicamente,
arte e religião se aproximam enquanto plurais. No entanto, na
independência de Murilo, que circula ecumênica e ecleticamente
94
Sergio Miceli. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.127-131. Cf.
também Carlos Lima, “Vanguarda e utopia – surrealismo e modernidade no Brasil.” In: Poesia
Sempre, ano 6, n. 9, Rio de Janeiro: março 1998. (todo o artigo, p. 287-307). Diz aí o autor: “(...)
em resposta à revolução soviética, o pensamento conservador no Brasil organizou-se em duas
frentes. Uma delas foi a fundação, em 1922, do Centro Dom Vital, por dom Sebastião Leme. Já no
ano anterior, Jackson Figueiredo havia criado a revista A Ordem, órgão de divulgação do
pensamento católico. Durante os anos 20-40 é intensa a cooptação de intelectuais pela Igreja.” (p.
295).
49
entre as diversas moradas e opções artísticas, está presente uma
indiscutível obediência: é a palavra divina que afirma o igual valor
das moradas, desde que junto ao Pai.
96
Seu catolicismo era “heterodoxo”, inconformista, com uma veia socialista,
apesar de não ter tido um engajamento político-partidário, o que incomodava
tantos os conservadores como os progressistas.
Quanto ao País, o poeta se identificava com preocupação dos intelectuais
modernistas no sentido de realizar reinterpretação da realidade brasileira, dado
que se faz presentes em seus textos, principalmente em História do Brasil (1932)
e em alguns textos de Poemas (1930), em que coloca nitidamente sua inquietação
em relação ao passado brasileiro.
Mas a interpretação muriliana do Brasil considerava que a cultura brasileira
deveria prolongar a européia de forma mais original, operando uma dialética entre
as culturas através de uma relação amistosa, mas firme, com escritores
estrangeiros e brasileiros, o que é sentido no trabalho de incorporação polifônica
de outros autores que aponta para um dinamismo cultural de sua obra.
Nota-se também a “heresia” do poeta em suas opiniões sobre modernistas
paulistas, posição esta notada em uma participação que cultivava o espírito
outsider em relação aos diversos grupos. O destaque do poeta em relação aos
diversos grupos culturais estabelecidos no Brasil dos anos 20 e 30 não se
95
Carta de 16 de janeiro de 1935, portanto após sua conversão, o que demonstra o “equilíbrio” na
análise da realidade, bastante distorcida pela direita católica da época. Na continuação da carta
MM exorta o amigo a corrigir os excessos dos colaboradores.
96
Flora Sussekind. “Murilo Mendes: um bom exemplo na história.” In: Encontros com a civilização
brasileira. N. 7. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, janeiro de 1979, p. 152.
50
configura simplesmente como uma idiossincrasia, pois a postura faz parte de uma
visão de mundo que questiona os postulados e o modus operandi das práticas
literárias tradicionais e, em certa medida, também das modernistas.
Apesar de ter dialogado com diversas correntes poéticas, artísticas e
religiosas de seu tempo, Murilo criou um projeto literário que se distinguia das
produções da época. Seu caso, atípico no Modernismo brasileiro, gerava
expectativas quanto aos desdobramentos futuros. Andrade Muricy já comentava:
“(...) não devemos esperar dêle (sic) poesia disso ou daquilo...Dará o que quiser!
E será favor.”
97
Sua vida poética se fez de forma intensa, com dedicação quase
integral para a produção literária. De uma produtividade imensa, e como um poeta
em constante construção, não se sentia satisfeito com as primeiras versões de
seus poemas e textos, operando contínua reelaboração de sua obra
98
. Consciente
da importância da linguagem poética, o autor afirma: “Sou um ‘torturado da forma’.
Desde há longos anos trabalho duramente nos meus papéis.”
99
1.3. Críticas e estudos murilianos
100
97
Andrade Muricy. A nova literatura brasileira. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1936, p. 128.
98
Luciana Picchio, “Introdução”. In: Poemas e Bumba-meu-poeta, p. 5.
99
“Resposta ao questionário de Laís de Araújo” apud PCP, p. 50.
100
Além dos críticos enfocados nesta parte, será mencionada a entrada do poeta nas histórias e
panoramas da nossa literatura, servindo assim para dar uma amostragem do que foi produzido
sobre o autor. Alguns pesquisadores que não estão incluídos nessa parte serão utilizados no corpo
das análises que faremos do poeta.
51
A crítica e os estudos sobre o poeta crescem dia a dia, apesar de se
caracterizar dentro do contexto das poéticas modernas brasileiras como um
exótico, quando se tem em vista os modos de recepção a que foi submetida sua
literatura excêntrica. Situamos a produção literária de Murilo Mendes no âmbito da
crítica literária moderna, abordando os diversos autores que a enfocaram, no
Brasil, em ordem cronológica, principalmente com base nas obras de sua primeira
fase, enfatizando os pontos relevantes da crítica e dos estudiosos. Como
veremos, as apreensões iniciais da crítica, boa parte delas elogiosas, englobam
aspectos que nortearam os estudos murilianos posteriores. Junto com o
mapeamento faremos alguns comentários sobre as críticas.
1.3.1. A crítica nos anos 1930 e 40
Segundo João Luiz Lafetá, o Modernismo em sua fase heróica, carregando
na preocupação formal e na experimentação, pretendia destruir os velhos cânones
artístico-literários e desnudar os procedimentos cristalizados pela rotina mimética.
O foco era a literatura enquanto linguagem. Em seguida, nos anos 1930, os
valores ideológicos, incluindo o nacionalismo e a ação social, deslocam a literatura
da experimentação para um certo tipo de engajamento. Os tempos são outros,
com Getúlio Vargas no poder. A produção literária toma “caminhos diferentes”,
ocorrendo uma espécie de “dissolução dos princípios estéticos modernistas”. O
projeto estético fica, no atacado, obnubilado pelo projeto ideológico. “O
experimento de linguagem cede lugar ao documento, a intenção inventiva curva-
52
se à necessidade de registro, a agressividade formal se perde na demagogia
verbalista das denúncias.”
101
Na verdade, é esta relação tensa que Lafetá estuda em quatro críticos
destacados, cada um a seu modo, em momentos agudos do modernismo. Fica
evidente que Mário de Andrade, entre os outros - Agripino Grieco, Tristão de
Athayde e Octavio de Faria -, é o que mais pensa na necessidade de os poetas
modernos adotarem uma atitude participante no interior da fatura poética.
Mário de Andrade abordou assuntos que iam da língua brasileira, passando
pela cultura popular, chegando à tradição literária no Brasil, bem como às relações
Brasil/Europa, tudo isso vazado numa abrangente formação cultural (música,
folclore, literatura, danças, artes plásticas, etc).
102
Este poeta-crítico foi quem norteou e lançou as bases para os estudos
murilianos, abordando o surrealismo, o hermetismo e o nacionalismo,
principalmente em dois ensaios, “A poesia em 30” e “A poesia em pânico”
103
.
No primeiro artigo, de 1931, o autor tece comentários sobre a melhor safra
de escritores que haviam lançado livros naquele ano: Carlos Drummond de
Andrade (Alguma poesia), Manuel Bandeira (Libertinagem), Augusto Frederico
101
João Luiz Lafetá. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades;Editora 34, 2000, p.
251. Nesta parte do caítulo, a citação será feita com base no pensamento dos autores, ao final de
cada parágrafo.
102
João Lafetá, op. cit. p. 215.
103
M. de Andrade. “A poesia em 1930”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Livraria
Martins Editora, s/d, p. 27-45. “A poesia em pânico”. Artigo publicado inicialmente em Diário de
Notícias. Rio de Janeiro: [9 abr. 1939]; publicados também em O Empalhador de passarinhos e em
A vida literária. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1993, p. 17-24. Mário, como se sabe, serviu de baliza
para muitos poetas iniciantes e escritores de todo o Brasil, que o consultavam sobre suas
produções, numa intensa troca de correspondência com os poetas modernos de primeira plana.
53
Schmidt (Pássaro Cego) e Murilo Mendes (Poemas), dois veteranos e dois
iniciantes no verso.
Após discorrer sobre os muito jovens que se aventuram pelos caminhos da
poesia, ele focaliza os poetas em pauta, apontando a dificuldade de se trabalhar
com o difícil verso livre. Mais tarde, em a “Volta do Condor” afirma que Murilo junto
com Drummond “conseguiram obter e realizar com idêntica intensidade e pureza o
estado de poesia”
104
; no entanto, pontua que o primeiro não teria realizado o
estado de arte.
Na chamada segunda fase do modernismo, estes e outros autores também
incorporam temas sociais e políticos, como afirma Afrânio Coutinho: “...a segunda
(fase), de 1930-1945, recolhe os resultados da primeira, substituindo a destruição
pela intenção construtiva: a poesia prossegue a tarefa de purificação de meios
incluindo novas preocupações de ordem política e social(...)”
105
De acordo com Mário de Andrade, devido à complexidade de valores,
Murilo Mendes se mostra em suas contradições e dicções dissociativas, contendo
belezas, defeitos (os poemas-piadas) e irregularidades simultaneamente, o que
seria índice de uma “inflexível desapropriação da Arte em favor da integralidade
do ser humano”. O crítico já tinha apontado o “vou-me-emborismo” exarcebado no
poeta, mas que se transforma “de estado-de-espírito em constância psicológica, já
independente da consciência, em toda a obra de Murilo Mendes.” No livro
Poemas, compareceria a “essencialização da poesia”, tanto no uso do tom satírico
104
M. de Andrade. “A volta do condor”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins
Fontes, s/d, p. 141-171.
105
Afrânio Coutinho. Crítica e Poética. 2
ª
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1980, p. 84.
54
como na integração da vida vulgar ao sonho e à alucinação, passando com
facilidade de um registro a outro. “É inconcebível a leveza, a elasticidade, a
naturalidade com que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação e
os confunde”.
106
Mário, católico, critica Drummond pelo humor e pela sensualidade
107
, assim
como em Murilo desabona a mistura de religião e sensualidade (catolicismo e
bordel). Acontece que com uma religiosidade não-canônica e uma diversificação
dramática do Catolicismo, Murilo fez aflorar no crítico o receio de que “...o seu
catolicismo guarda a seiva de perigosas heresias”
108
.
Em “A poesia em 30”, Mário de Andrade aborda o primeiro livro de Murilo
Mendes intitulado exatamente Poemas. Em 1930, há uma nova safra de poesia,
com os quatro autores analisados pelo crítico paulista. Desses, o mais importante
“historicamente” é o poeta mineiro de Juiz de fora. Apesar de não considerar
Murilo Mendes de uma escola surrealista, o crítico vê nele uma utilização intensa
das técnicas do movimento francês.
O crítico constata uma confusão de tal monta em Murilo que desaparece
fortemente a possibilidade da obra completa. O poeta realizaria uma indistinção
dos poemas, tornando difícil examiná-los individualmente, pois “(...) as obras se
enlaçam umas nas outras, vazam umas pràs (sic) outras, pairam numa indiferença
iluminada em que não é preciso mais distinguir a grande invenção da invenção
106
M. de Andrade. “A poesia em 1930”, op. cit., p. 32, 34 e 42.
107
Idem, p. 34.
108
M. de Andrade. “A poesia em pânico”, op. cit., p. 18.
55
menos forte.” Desse conjunto de poemas, Mário excetua os poemas satíricos de
Murilo Mendes, criados francamente sob a gestão do consciente.
109
Mário de Andrade aponta ainda a tendência muriliana de viver a poesia
como uma espécie de religião, e logo em seguida mostra a sua falta de destinação
poética. No início do artigo “A poesia em pânico” denota o espírito armado do
crítico paulista em relação ao poeta.
110
Aí, o estudioso focaliza somente o poeta,
exigindo dele uma melhor elaboração estética, reformulando, de modo mais
severo, algumas idéias lançadas em “A poesia em 30”.
111
Após fazer um excurso sobre as relações da poesia com a magia e as
religiões, considera que, depois de sua primeira obra, Murilo teria sucumbido às
facilidades dos jogos de palavras e da piada principalmente em História do Brasil.
O autor de Macunaíma critica a confusão de sentimentos do poeta, e
explica: “Por confusão de sentimentos, entendo aqui a identificação de
sentimentos profanos com religiosos, em relação a pessoas e conceitos religiosos,
identificação principalmente de ordem passional.” Mostra as contradições de um
poeta religioso que não vincula seu catolicismo ao dos padres, ainda que seja uma
espécie de “apologista” religioso. Enfim, Mário considera a religião de Murilo muito
heterodoxa.
112
Após a abordagem temática acima, relativa à “A poesia em pânico”, o crítico
aponta as “pequenas falhas técnicas” que demonstram a falta de zelo pelo ofício
literário. “(...) Os elementos da perfeição técnica, os encantos da beleza formal
109
M. de Andrade. “A poesia em 1930”, op. cit. p. 42-45.
110
M. de Andrade. “A poesia em pânico”, op. cit., p. 17.
111
João Lafetá, op. cit. p. 216.
56
estão muito abandonados. O verso livre é correto, mas monótono, cortado
exclusivamente pelas pausas das frases ou das idéias.”
113
Segundo o crítico, o ritmo é o ponto nevrálgico: nesse aspecto é apontado o
principal defeito da fatura poética do livro: “velocidade vertiginosa”, “falhas de
habilidade rítmica”. Enfim, o trabalho com a estética, para o crítico, estaria pouco
presente na obra analisada, obra “mais de lirismo que de arte”. Falta ao poeta uma
boa dose de “intenção artística”. Mas ele se pergunta se varrer esses “ciscos” não
tiraria o caráter da obra. O “tom de espontaneidade” exata de Murilo não seria algo
aconselhável. “Mas me parece uma grande lição que não deve ser seguida.
Porque poesia não é apenas uma essência de assunto. Porque poesia não é
apenas lirismo. Porque poesia não pode ficar nisso.”
114
Eliane Zagury se alinha com Mário sobre o “desleixo formal” de Murilo, mas
ela considera que “Boa parte da culpa (...) do retardamento do poeta em se
assumir como artesão da linguagem pode ser explicada pela sua singularidade
temperamental, pela falta de ressonância no ambiente e pela conseqüente solidão
no trabalho da sua matéria.”
115
. Estas afirmações mostram como o poeta se
singularizava dentro do Modernismo; seu isolamento e seu distanciamento
político-literário no contexto moderno lhe abrem os canais para uma maior
liberdade formal em relação aos outros autores. Como vimos, sua produção se
desvia tanto da tendência religiosa dominante como da tendência tradicional da
poesia.
112
Idem, p. 18 e 19.
113
M. de Andrade, op. supra cit. p. 20.
114
Idem, p. 20-22.
57
Terminada a crítica formal da obra, Mário volta à questão religiosa,
comentando “colaboração do pecado”, uma das bases do Catolicismo. Nesse
sentido, o poeta católico inconformista não se deixou levar pelas facilidades da
religião e “não se entregara ao mau recurso interior de uma paz. (...) A conquista
de uma religião não nos dá sono, mas apenas nos proporciona o encontro do
arcanjo com que iremos brigar a inteira noite.”Ao entrar para o Catolicismo, o
poeta não teria descansado o “sono dos justos”. Ao contrário, teria adquirido a
consciência de uma outra batalha. Com todas as suas críticas tanto de forma
como de conteúdo, o pesquisador paulista considera Poesia em Pânico “um livro
de amor, e porventura o nosso maior livro de amor”. Confessa que a poesia de
Murilo atingiria grande força passional. Apesar de os desequilíbrios da obra terem
colocado “a arte em fuga e a poesia em pânico”, o fato de ter sido produzida “por
um espírito excepcional, criaram um dos momentos mais elevados do lirismo
contemporâneo, e por certo o seu mais doloroso canto de amor”.
116
De certa forma, o crítico concorda com a irreverência do poeta, pois em “A
volta do condor”, no qual enfoca poetas católicos, espeta os sentimentalismos
deles e exclui Murilo de sua mira, pois o juizforano guardaria a seiva, não só da Fé
e da Caridade cristãs, mas a da Esperança de um mundo melhor, aspecto que
não está presente em um Schmidt com seu fatalismo anti-utópico.
117
Ao abordar o grupo católico, na verdade, Mário não critica a religiosidade
séria desses poetas, pois as contribuições de cada um deles - “universalismo
115
Apud Júlio Guimarães, op. cit. p. 138.
116
M. de Andrade, op. supra cit , p. 22 e 23.
117
M. de Andrade, “A volta do condor”, op. cit., p. 154.
58
libertário” (Schmidt), ”essencialismo apologético” (Murilo Mendes), “religiosidade
bíblica” (Jorge de Lima) -, seriam “grandes elevações que vieram dar à poesia
brasileira riqueza muito larga e realidade mais completa.” Mas estes poetas, ao
retomarem os chamados temas universais, fizeram-se condores piores que os
românticos, com uma “natural, admirável e fatal eloquência”. Este se constituiria
em um dos problemas, para o crítico, juntamente com outro de caráter estético-
simbólico, isto é, o uso excessivo de “imagens-símbolos”. A ressalva recai sobre o
poeta mineiro, “que a cada livro novo com admirável riqueza, cria novos mitos e
símbolos novos. Aliás, Murilo Mendes escapa muito destas observações pela sua
esplêndida variedade.”
118
Evidencia-se, assim, que o texto muriliano se distinguiria
precisamente na sua variação temática e formal, de uma riqueza imagética
extraordinária, principalmente porque não teria se acomodado no
convencionalismo confortável da religião.
A seguir, passamos a abordar a crítica de tipo religiosa e impressionista.
1.3.2. Crítica religiosa e impressionista
Se Mário de Andrade orientava uma visão estética sobre Murilo, Tristão de
Athayde
119
mantinha outros pontos de vista sobre o poeta ainda que convergentes
quanto ao aspecto religioso. A perspectiva crítica e ideológica do crítico do Rio de
118
Idem, p. 167-9.
59
Janeiro é bem distinta da de Mário. Tristão foi um dos primeiros a ter contato com
a obra inicial de Murilo. Considerado um dos melhores da época, o amigo de
Murilo foi tachado, pelo crítico paulista, de “comentador de idéias gerais
interessado no “fator religioso” e não um crítico literário stricto sensu
120
.
De fato a crítica de Tristão se pauta, principalmente a partir de sua
conversão em 1928, por uma linha ética, isto é, com uma mirada que contempla o
fenômeno literário por sua eficiência instrumental, definindo-o como um meio para
atingir a finalidade religiosa e moral. A sua conclusão é sempre em virtude de um
efeito instrumental da literatura, sobrepõe a leitura ético-ideológica à apreciação
estética. Ao contrário do verso de Murilo Mendes “as colunas da ordem e da
desordem”, o projeto crítico de um Tristão se localiza eminentemente na coluna da
Ordem, o que denotaria uma posição reacionária dentro do Modernismo
brasileiro.
121
Dada a sua formação cristã, Tristão comenta a literatura em função de sua
maior ou menor aderência à religião. Há evidência disso em seus texto “Poesia
em Deus”, no qual enfoca a obra de três grandes poetas católicos (Schmidt, Jorge
de Lima e Murilo Mendes) de uma perspectiva sectariamente religiosa, fazendo
algumas ressalvas quanto aos aspectos que não se coadunariam com suas idéias.
No caso de Murilo, analisa exatamente o livro A poesia em pânico. Inicia o texto
fazendo afirmações muito parecidas com as de Mário de Andrade sobre as
119
Tristão de Athayde. “Notícia de Poemas”. In: O Jornal. Rio de Janeiro: 1930. Tristão de Athayde
foi adotado como pseudônimo por Alceu de Amoroso Lima.
120
M. de Andrade. “Tristão de Ataíde”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. Cit., p. 27-45.
121
Cf. João Lafetá, op. cit. p. 77-150.
60
relações entre poesia e religião
122
. Assinala que o homem religioso “vê a vida em
dois planos, ambos reais, o visível e o invisível, o natural e o sobrenatural, o do
tempo e o da eternidade, o da criação e o do Criador.”
123
A “colaboração do pecado” de Mário aparece no amigo de Murilo como “a
luta com o Demônio que continua, como já se manifestava naquele primeiro rolo
de versos malucos que há oito anos eu recebia de um empregado de banco,
anônimo,(...)”
124
, o que mostra uma certa convergência quanto ao fator religioso.
Ambos são católicos, mas Mário agrega um ingrediente estético-social distinto do
de Alceu que fecha a sua análise orientado pelo norte católico. Esta ênfase
religiosa cerra as portas para outras possibilidades do fazer literário. Mas Tristão
mostra-se mais complacente do que o crítico paulista, talvez pela falta de análise
estética, porém os dois vêem a poesia de Murilo como tendo alta densidade
metafísica e elogiam sua “inquietação” poética no contexto do Catolicismo da
época.
Em “Poesia em Deus”, Tristão opta por uma crítica impressionista, voltada
para as relações constantes entre poesia e religião de modo explícito ou de modo
implícito. Ao tomar essa atitude, o crítico indica ao poeta certas posturas
conceituais que o acompanham em sua trajetória. Tristão mantém suas idéias
sobre as relações entre “Poesia e Religião”, práticas que, no seu entender,
sempre estiveram juntas nos “grandes momentos poéticos”. Cita o Simbolismo
122
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde). Poesia Brasileira Contemporânea. Belo Horizonte:
Livraria Editora Paulo Bluhm, 1941, p. 113.
123
Idem. P. 114. Esta frase repercute em textos MM. Por exemplo, em O discípulo de Emaús,
aforismo 8 que diz: “O invisível não é o irreal: é o real que não é visto.” Essas coincidências
mostram as relações íntimas de pensamento entre o crítico e o poeta que, aliás, mantiveram
amizade ao longo de suas vidas.
61
como movimento poético que “teve o grande mérito de trazer de novo a poesia ao
seu berço nativo – o mistério”. Nesse ano – 1941 -, considerado já como pós-
modernismo quando então “(...) processou-se a reação religiosa, que a corrente
‘espiritualista’ do modernismo e a ação do anti-modernismo de ‘Pascal e a
inquietação moderna’ haviam encaminhado”. O poeta, consagrado, estaria
marcado “pela insatisfação do universo meramente sensível e pela incorporação à
poesia dos domínios imensos da Fé ou da inquietação mística”.
Sobre o livro Poesia em Pânico, de 1938, o crítico afirma que o poeta,
através da religião, constrói uma poesia dramática. Tristão não se desvia de sua
visão transcendentalista da poesia. Para ele, o texto de Murilo “(...) leva-o a
poemas elásticos, duros, violentos, dramáticos, com aquela precisão de estilo que
nos dera páginas católicas magníficas, em “Tempo e eternidade”. A força dos
contrastes, pela luta dramática entre o bem e o mal, já se encontrava nos
primeiros versos do poeta nos quais sinalizava a “expressão de uma alma
cristã.”
125
Outro que pensou sobre a produção inicial do poeta foi historiador do
Simbolismo brasileiro, Andrade Muricy que, em A nova literatura brasileira, de
1936, produz uma crítica, também impressionista, porém mais aberta do ponto de
vista da estética e desvinculada de conceitos religiosos. Apesar do tom ameno, o
ensaísta apresenta uma visão instigante do poeta. Ao abordar o livro de Poemas,
afirma que no campo da anedota e do epigrama, o autor concretiza “o milagre da
estabilização do instantâneo”, fazendo uso justo do tom e da expressão.
124
Ibidem. P. 122.
62
Os poemas são vistos, pelo crítico, como episódios em que “está refletida
uma sombria paisagem interior, dum cromatismo lívido e duma cordialidade
serpentina”. Identifica o espírito brincalhão do poeta ao dizer que os textos
produziriam sons de realejo de onde saem “música perturbadora e insólita”.
Apesar de acusar o uso de algumas expressões débeis, vazias e tediosas, elogia
o verso livre, que não é uma facilidade, mas expressão pautada por um “rigor
subtil e a consciente obediência aos autênticos livres ritmos dos movimentos
interiores.” Entretanto, na toada do autor de Paulicéia Desvairada, este crítico
aponta falhas no texto muriliano quando afirma que o mesmo está repleto de
“palavreado mole, infindável, absolutamente incolor”.
O crítico-historiador destaca, ainda, o trabalho realizado com certo
artificialismo, principalmente quanto ao “supra-realismo” (sic), adotado pelo poeta
com alguma desmesura, apesar de considerar que em tempo de cansaço mental e
de materialismo a técnica seria legítima. Segundo o crítico, este embriagamento
teria a ver com a velocidade e com a artificialidade do mundo moderno. Num ritmo
cantante de “embolada”, o poeta se comportaria como um desafiante sem
parceiro. Apesar de atacar o artificialismo, as facilidades e uma dose de populismo
dessa poesia, Muricy reconhece que o mesmo soube acondicionar espiritualmente
a emoção e usar a expressão de forma correta. Elogia também as habilidades
satíricas e a capacidade de paixão poética em tempos difíceis, com um lirismo
liberto das amarras das convenções. Num tempo em que o mundo estava voltado
para “ideais utilitários”, a literatura não deveria inspirar-se num só ponto, mas
125
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), op. cit. p. 113-125.
63
abranger temas que empolgariam, pois, para o crítico, o texto poético “deixa de
ser poesia quando ao serviço de finalidades interessadas, sejam quais forem:
revolução ou edificação moral...”
. Finalmente é assinalada em Murilo sua
liberdade poética: “Poeta de programa ou sem programa, não é o programa que
interessa,(...) Murilo Mendes canta como entende, e o que quer. Como ninguém o
força a cantar a questão social, deixemo-lo (sic) gastar com ela da sua cera, que é
de boa qualidade aliás.” Sem ser um poeta de engajamento irrestrito (“nunca é
muito ‘sabiá’”.), as suas preocupações sociais estariam eivadas de Marxismo.
126
Ainda na linha impressionista, comparece Sérgio Milliet, nos idos de 1940-
43, em seu famoso Diário Crítico, apontando para questões mais abertas, com
observações poeticamente agudas, trazendo uma ponta de crítica à religiosidade
do vate. Como se estivesse dialogando com o poeta, num estilo mais intimista (um
“diário” permite certas licenças nas observações), o estudioso faz intervenções
invocativas. “Ó Murilo Mendes, o urubu ‘dará milho ao fantasma de Deus’. Não te
parece esse Deus muito anglo-saxão demais? Acredita na hipocrisia e se ilude
com a trapaça: e em nome de fórmulas ocas abandona a oficiais ineptos a defesa
de seu Império!”. Anota que o poeta não teria receio de trabalhar com os altos
assuntos modernos e expressar uma sincera angústia diante das questões
pungentes de seu tempo. Já no aspecto formal, o poeta não apresentaria o melhor
de si, sem inovação quanto ao ritmo ao manter a toada de versos brancos
126
Andrade Muricy. A nova literatura brasileira. Porto Alegre: Edições da Livraria do Globo, 1936,
p. 122-130. Mantenho a grafia original. O crítico conta uma anedota que vale registrar. “O homem
comprou o Capital, e, conciencioso (sic), fechou-se em casa, rigorosamente, para estudar o
enorme cartapácio. Decorreram os anos. Só quando o homem julgou estar ewm condições de
compreender alguma coisa das teorias de Marx é que decidiu sair à rua e começar a agir. Levava
calçadas as luvas que costumava usar ao tempo em que tinha decidido enclausurar-se. Vestia bem
64
heptassílabos com versos mais amplos que rompem com a monodia, ritmo este
que dá o tom melancólico e à sua busca de unidade. Os poemas de Murilo
permitem, ao autor dos Diários, divagações sobre temas diversos, como o da
morte, por exemplo.
127
1.3.3. Histórias, ensaios e estudos
128
Um pouco mais tarde, nos anos 50, o poeta ganha também espaço nas
histórias literárias. O mesmo Sérgio Milliet coloca Murilo no Panorama da moderna
poesia brasileira, enfatiza o poeta “aristocrático” em tempos democráticos, devido
à sua incompreensibilidade. “Sem concessões, por isso mesmo difícil e de
reduzida popularidade, bastante esotérica também, essa poesia mantém-se
sempre em nível extremamente elevado(...)”. A poesia hermética, hostil à retórica,
é de difícil penetração pela percepção comum, também ao colocar-se como
atemporal e alheia aos anseios democráticos da época. O crítico refere-se aos
livros Metamorfoses e Mundo Enigma, anotando a dificuldade de leitura de um
e tinha o típico do intelectual solitário e ensimesmado. Foi executado como o último burguês.” (p.
128.
127
Sérgio Milliet. Diário Crítico de Sérgio Milliet; introdução de Antonio Candido. 2
a
ed. São Paulo:
Martins, 1981. v. 1, 1940-43, p. 40 e 44.
128
A partir de agora, nesta parte, os estudos sobre o autor serão mencionados de forma sucinta,
pois a maioria deles estará inserida nos capítulos sobre as obras específicas do autor,
notadamente História do Brasil e Contemplação de Ouro Preto.
65
autor que se descolaria da realidade e partiria para uma poética de tipo
transcendental.
129
Manuel Bandeira reafirma a posição singular de Murilo na sua
Apresentação da poesia brasileira, publicada em 1957. Aí toca nos pontos comuns
aos outros pesquisadores: o poema-piada carioca, a poesia do cotidiano, o
essencialismo de Murilo e Ismael Nery, a “incorporação do eterno ao contingente”,
e a genial comparação do poeta com o bicho-de-seda. O poeta-crítico não poupa
elogios à complexidade muriliana bem como à sua criatividade fecunda e à sua
atividade diária e constante, considerando que é função do artista “desenvolver a
visão poética do mundo nos outros”.
Pontua também que uma das idéias principais
de Murilo é a relacionada à abstração do tempo. Para Bandeira, o “lirismo
dialético” do poeta católico leva-o à famosa expressão “conciliação dos
contrários”, chegando a ser considerado herético por aqueles que não
compreendem essa poética do visionário.
130
Bandeira teve uma percepção mais abrangente de produção “surrealista” de
Murilo, ao mostrar seus “mecanismos” conceituais. Vale a pena transcrever dois
passos esclarecedores dessa poética:
(...) a abstração do espaço acaba por abolir a perspectiva dos
planos, confundidos todos numa super-realidade, com a tangência
do invisível pelo visível. Não se trata porém do super-realismo (sic)
no sentido da escola francesa: sente-se sempre na poesia de Murilo
129
Sérgio Milliet. Panorama da moderna poesia brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação
e Saúde, 1952, p. 52-55.
66
Mendes a força da inteligência e do coração dominando o tumulto
das fontes do subconsciente.
131
Alfredo Bosi, em a História concisa da literatura brasileira, também
contempla o autor de Poemas. O pesquisador salienta em Murilo o pensamento
que multiplica o real, elevando-o, e potenciando “as imagens cotidianas”, ao
conseguir um “efeito estético” que beira o caos. Antes, porém, de cair no vazio, “o
poeta recompõe os mil estilhaços da sua imaginação em um vitral desmesurado
de crente surrealista”. Eis o modo como o historiador descreve a “desordem”
muriliana, enfatizando as formulações religiosas na poética sem deixar de
abranger a pesquisa experimental das últimas obras de Murilo.
132
O crítico-poeta Haroldo de Campos, em seu famoso ensaio “Murilo e o
mundo substantivo”, percebeu no poeta o trabalho de aproveitamento das formas
barrocas de produção da discordia concors. A produção de um “mundo
substantivo” na obra muriliana estaria pautada pela “substantivação” que cria uma
dissonância no campo da imagem” juntamente com um ritmo dissonante. Para
ele, a poética muriliana “nega o discurso pela violência com que o corta em
arestas sucessivas, arrombando com a alavanca da imagem imprevista e
imprevisível a porta blindada do silogismo.” Fora dos padrões e motivos clássicos
de produção poética, o universo do poeta vive em estado de transformação,
principalmente em Poesia Liberdade, do qual são extraídos vários exemplos de
130
Manuel Bandeira. Apresentação da poesia brasileira. 3
ª
ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante
do Brasil, 1957, p. 166-171.
131
Idem, p. 168.
132
Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 37
ª
ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 446-
451. Obra escrita nos anos de 1968-69.
67
dissonância imagética que acentuaria a plasticidade visual da obra. Junto com a
dissonância imagética aparece a “rítmica dissonante”. “A poesia muriliana é
estranhamente amelódica (entendida a melodia no sentido da música tradicional,
aferido pela sensibilidade romântica)”. A poesia, porém, não estaria fincada numa
falta de ritmo, mas estrutura o padrão rítmico através de procedimentos mais sutis,
apontando por exemplo a anáfora ou repetições que garantem a “armação sonora”
dos poemas. Com tudo isso, o poeta assim “escandaliza a lógica”.
133
Um outro estudioso que dedicou vários textos ao poeta mineiro, dentre os
quais se destaca “Murilo Mendes ou a poética do visionário”, foi José Guilherme
Merquior.
134
Depois de destacar Murilo Mendes da corrente lírica predominante
em língua portuguesa e afirmar que seus poemas não carregam na regionalidade
mas na generalidade e universalidade, o autor o coloca como criador de “poesia
da ação” que lembraria os românticos revolucionários franceses e a poesia social
de Victor Hugo. O poeta não seria um surrealista “evasionista”. Para ele, o sonho
seria uma forma de participação no mundo, conjugando o onirismo como um modo
de engajamento. Ao misturar “indignação” e crítica de seu tempo, seu visionarismo
seria uma maneira de ser realista, ainda que com visões perturbadoras.
A amplitude dos temas da poesia de Murilo, segundo Merquior, levaria em
consideração a complexidade da existência. Ao pretender abranger todas as
classificações enciclopédicas, seu realismo penetra os objetos de seu interesse,
mas abrindo-se ao social e aos temas cruéis de seu mundo - a guerra, por
133
Haroldo de Campos. “Murilo e o mundo substantivo”. In: Metalinguagem & outras metas. São
Paulo: Perspectiva, 1992, p. 65-75. O texto foi publicado no Suplemento Literário de O Estado de
São Paulo, em 26.01.1963, p. 66 e 67.
68
exemplo - fazendo uma vigilância sobre a realidade conflagrada do mundo e
denunciando a crueldade e as desgraças, numa reação poética de alta densidade
humana.
Suas práticas poéticas não seriam uma fuga da realidade mas um modo
potente de imaginar a realidade, já que no mundo moderno seria legítimo
considerar o imaginário como uma espécie de realismo.
Ao concentrar seu lirismo
numa poética visionária, o poeta se ligaria diretamente às propostas do
Surrealismo que via a junção de sonho e realidade como uma possibilidade
poética.
Merquior faz um excurso sobre a distinção entre a literatura fantástica e a
visionária para, ao final, demonstrar que a literatura de Murilo está vazada na
poética do visionário. Na literatura fantástica, “o extraordinário” domina todo um
universo, fazendo com que haja uma rebelião dos objetos que escapariam de
nosso controle. Este tipo literário compõe-se com o absurdo que é uma forma
extrema do non sense, sem nenhuma finalidade. No mecanismo dessa literatura
não se encontra a força humana para “elaborar significações”, abandonando
qualquer possibilidade de projetar o futuro. Na verdade, no modo fantástico, o
sentido cifrado do mundo estaria oculto, sem possibilidades de ser traduzido para
a experiência humana. Ao contrário desta linha, a corrente visionária seria
composto na diversidade de modo a misturar o extraordinário e a realidade, o
diferente e o comum, possibilitando a transição de um plano a outro de forma
natural e sem causar espanto. Neste sentido, o visionário seria mais dinâmico. No
universo do visionário o humano toma o controle de suas ações dando-lhes uma
134
José Guilherme Merquior. “Murilo Mendes ou a poética do visionário.” In: Razão do poema. Rio
de Janeiro: Top Books, 1992.
69
finalidade, se contrapondo à falta de sentido imposto pelo absurdo e à ocultação
de significação colocada pelo fantástico. Finalizando, para o crítico, a obra
muriliana seria tão densa que os estudos sobre ela teriam que levar em conta as
grandes linhas do pensamento filosófico e estético. O poeta teria questionado as
bases da atividade artística.
135
João Alexandre Barbosa,
136
na análise do livro Convergência, após
repassar os problemas dos estudos acerca do poeta, reconhece essa poesia torna
difícil uma integração artificial devido ao seu hermetismo. Retoma famoso ensaio
de Luciana Stegagno Picchio, no qual Mário de Andrade é considerado pioneiro na
crítica de MM, mas ele traria “o germe de todas as falsificações posteriores, de
todas as interpretações simplistas de que a obra de Murilo Mendes será depois
objeto no Brasil”.
137
Para o Barbosa, termos como surrealismo, hermetismo e
nacionalismo, colados ao poeta, são tidos como equivocados. Apesar de apontar
evoluções na fortuna crítica do poeta na ensaísta italiana, para Barbosa, esta
autora, ao afirmar conceitos como elegância e equilíbrio, também incorreria no
mesmo “equívoco crítico” das generalizações anteriores.
O crítico desenvolve uma reflexão sobre as técnicas literárias de Murilo, nas
quais veria uma poética baseada num projeto e numa trajetória dissonante, não
aderente às modas, cuja linguagem sabe de seus dilemas e de sua direção. Não
um projeto premeditado pela predominância da razão sobre o texto, mas um
135
J. G. Merquior. “Murilo Mendes ou a poética do visionário.” In: Razão do poema. Rio de Janeiro:
Top Books, 1992, p. 69-89. O ensaio é de 1964.
136
João Alexandre Barbosa. “Convergência Poética de Murilo Mendes”. In: A metáfora crítica. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
137
O ensaio citado pelo autor é “O itinerário poético de Murilo Mendes”. In Revista do Livro 16, Ano
IV, 1959. Apud João Alexandre Barbosa. Op. cit. p. 118 e 119.
70
esquema que seria percebido pelas análises posteriores. O livro Convergência
“responde a um roteiro de adequações entre o escritor e sua circunstância, isto é,
a de seu tempo histórico e a do tempo, por assim dizer, intertextual de que a sua
obra é espaço privilegiado.”
Para o crítico, em Convergência há um trabalho de metalinguagem,
consciente das modificações possíveis no campo da linguagem poética, mas
também consciente da relação entre o plano real e o poético, configurando-se aí
um lirismo singular na poesia brasileira. A linguagem seria sentida pelo poeta
como algo real, como sendo a própria fala. Nos “Grafitos” haveria um tipo de
escrita efêmera, associado ao processo de dessacralização. No desdobramento
de sua poética, haveria um movimento da “dispersão dos primeiros livros” que
abarcavam da “sensibilidade jogada por entre as excitações da realidade” até o
trabalho de artesania literária: “o poeta foi transformando a realidade da linguagem
na própria poesia do real para o qual sempre teve olhos e ouvidos atentos.” A
linguagem e a realidade não teriam mais disjunções de nenhum tipo.
138
A imagem de poeta complexo persiste nos discursos de historiadores,
ensaístas e críticos brasileiros. Percebe-se, nesses discursos, a constância de um
fio condutor na produção de uma poesia que não se rende e que se mantém na
sua dignidade diante de um mundo entregue às facilidades do mercado. Nas
críticas sobre o poeta, verifica-se uma tentativa de reencontrar certas tendências
subestimadas no Modernismo Brasileiro, bem como a sua abordagem de temas
pungentes do século XX.
138
João Barbosa, op. supra cit., p. 120-136. Segundo esse autor, em Tempo Espanhol, o poeta se
dirige para o real com “uma linguagem cada vez mais consciente de seu direcionamento”. (p. 122).
71
Como anunciamos no início deste capítulo, nos limitamos a pontuar
algumas linhas de pesquisa, elaborando um panorama dos estudos e críticas
acerca da poética muriliana. É uma obra que leva a crítica a ousar vôos mais
generalizantes, indo além de sua obra específica. E, para repetir, Merquior, com o
qual concordamos, “Quando o interesse crítico se eleva ao nível de reflexão
estética, é porque o peso de uma obra chegou a pôr em questão os próprios
fundamentos do gesto artístico”
139
.
Há outros estudos mais recentes sobre o autor que não abordamos aqui,
pois estão incorporados aos capítulos sobre as obras.
O que se constata também com esse panorama é que são poucos os
estudos que se dedicaram a abordar, na produção do poeta, as questões voltadas
para a história brasileira e, especificamente sobre os aspectos históricos em
História do Brasil e Contemplação de Ouro Preto, objetos de nossa pesquisa.
139
Merquior. “Murilo ou a poética do visionário”, p. 83 e 86. Além disso, o poeta também tem
servido de inspiração a vários artistas e criadores que o leram com entusiasmo, como poeta
audacioso em sua liberdade.
72
3. TRADIÇÃO E MODERNIZAÇÃO EM POEMAS
O trabalho de desconstrução de motivos e temas tradicionalistas, bem
como de práticas político-poéticas começa a se configurar já no primeiro livro,
Poemas, de 1930 (escritos em 1925-29), além de continuarem em Bumba-meu-
poeta, de (1932) e em História do Brasil (1932), obras que formam um conjunto
em que as visões sobre o País são revisitadas de modo contundente. O poeta já
vinha publicando textos em afirmando-se como figura importante no cenário
mineiro e nacional por ter participado em periódicos “da insurgente vaga
modernista.” Nas obras acima estão presentes temas e sugestões especiais que
farão de sua poesia uma das mais singulares no contexto literário modernista.
140
No quadro da poesia brasileira, este é o primeiro livro que coloca seu autor
como o primeiro a produzir uma “forte confusão de tempos, formas, planos(...)”.
141
Aí já são colocadas algumas visões do Brasil de modo muito peculiar. Não são
idealizações de um País mítico, mas representações atravessadas pelas
aquisições da modernidade que tensionam tanto as imagens forjadas pela tradição
como as criadas pelos modernistas.
Antes de entrar na explicação do primeiro poema do livro, “Canção do
Exílio”, cabe comentar a estrutura do livro Poemas, dividido em seis partes: “O
jogador de diabolô”, “Ângulos”, “Máquina de sofrer”, “O Mundo Inimigo”, “A Cabeça
140
Luciana Picchio. “Introdução”. In: MM. Poemas e Bumba-meu-poeta, p. 6 e 7. O primeiro livro foi
lançado em Juiz de Fora pelo Estabelecimento Gráfico Companhia Dias Cardoso, financiado pelo
pai do poeta.
141
Afrânio Coutinho. A literatura no Brasil. Modernismo. V. 5. Rio de Janeiro: Editorial Sul
Americana S.A., 1970, p. 167.
73
Decotada”, “Poemas sem tempo”. “Canção do exílio”, estrategicamente, abre a
primeira parte do livro, “O jogador de diabolô”. A prática do Diabolô, é bastante
sugestiva quanto aos temas tratados nessa parte do livro, pois se trata de uma
brincadeira que “consiste em aparar num cordão preso pelas pontas a duas varas
uma espécie de carretel formado por dois cones opostos”
142
, o que sugere o
trabalho do poeta como aquele que oscila entre os opostos, buscando a sua
conciliação.
Abaixo, transcrevemos o poema:
CANÇÃO DO EXÍLIO
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
Com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
Em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
142
Caldas Aulete. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. V. 2. Rio de Janeiro: Ed. Delta,
1958, p.1489-90. Cf. também Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário Aurélio . Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, p. 584. Diabolô. [do fr. diabolo.] S. m. “Brinquedo que consiste em
74
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
143
Paródia de Gonçalves Dias
144
, o poema dialoga com a tradição de um
imaginário grandioso da natureza do País, produzindo reelaboração inteligente
das tradições internas e externas. Aí outras imagens são construídas do espaço
brasileiro e não mais aquelas de “gigante pela própria natureza”. A imagem passa
a ser de “natureza cultural”, sendo distorcida e fragmentada no contexto artístico.
O ser natural se transforma em artefato de cultura, pois os ingredientes são
importados. A visão irônica sobre a realidade nivela os aspectos culturais e
naturais no espaço ficcionado do poema, desfazendo a visão mítica de uma
natureza grandiosa.
O poema mostra a assimilação de “produtos, valores, estéticas e sistemas
filosóficos para o Brasil, de modo que o produto local torna-se raridade luxuosa e
inacessível.” A paisagem pintada pelo poeta não ativa mais os elementos naturais
oriundos de uma formulação romântica, pois a natureza naturalizada cede “espaço
para um olhar que percebe as peculiaridades brasileiras como mascaradas pelo
aparar num cordel atado pelas pontas a duas varas uma espécie de carretel com o centro mais fino
que o resto, que se atira ao ar” (p. 584). Na origem grega a palavra também significa “diabo”.
143
MM. Poemas e Bumba-meu-poeta. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 21. Cf. também
PCP, p. 87. Publicado no livro Poemas (1930). Poema integrante da série O Jogador de Diabolô.In:
MM. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959. Paródia da "Canção do Exílio", do livro
Primeiros cantos (1846), de Gonçalves Dias. O texto de Murilo foi inicialmente publicado na
Revista de Antropofagia, em 1924. Publicado também em PCP, p. 87.
144
Cf. Aires da Mata Machado. Crítica de estilos. Rio de Janeiro: Agir, 1956, p. 11-55. Nesse
estudo o autor aborda a história e as reescritas do poema de Gonçalves Dias.
75
‘culto’ da importação”.
145
Isso tem a ver com a desmistificação de uma certa
história literária nacional, inválida para explicar os novos tempos, mas necessária
ainda e sobrevivente nos discursos modernistas, pois a paródia moderna não
suprime totalmente a tradição.
E, como aponta Francis Paulina Lopes da Silva, o poeta, crítico da
brasilidade, ”reconhecia nessa civilização mestiça uma pluralidade de culturas,
uma assimilação dos moldes europeus...”
146
. Note-se que a rejeição do poeta não
é em relação à cultura estrangeira, mas quanto ao tipo de assimilação: o que
ocorre, na verdade, é o uso da cultura como verniz e como distinção social.
147
A composição plástica do poema se reflete logo nos dois primeiros versos,
quando a imagem comum da paisagem é desarticulada, misturando objetos
importados de Califórnia/Veneza
148
, referências geográfico-culturais
acentuadamente díspares. Ao juntar dois elementos distantes, o texto provoca um
ruído artístico próprio das Vanguardas Européias, especialmente do Surrealismo,
estilo predominante em seus primeiros livros.
Nos versos 3 a 6, procede-se à crítica de várias artes e a aplicação dos
saberes: aponta para o distanciamento social da poesia (“torre de ametista”). O
exército é pintado com caracteres diversos, compondo um ideário monista numa
145
Guilherme Amaral Luz. “Semeadores do Exílio: poemas para a história das raízes do Brasil”. In
Mneme – Revista de Humanidades. v. 2 - n.3 - fev./mar. de 2001. Disponível em:
<www.seol.com.br/mneme/ed3>. Acesso em: 23 jul. 2004.
146
Francis Paulina, op. cit. p. 23.
147
Adélia Bezerra de Meneses. “As Canções do Exílio”. In: Viviana Bosi et alli (org.). O poema:
leitores e leituras. São Paulo: Atelier Editorial, 2001, p. 105-138. A referência ao poema de MM se
encontra nas páginas 123-127.
148
Luciana Picchio, indicando as variantes, afirma que, na edição do poema, na Revista de
Antropofagia, na 2
a
. dentição, de 11/07/29, em lugar de Veneza, aparece, “Versailles” (In: MM.
Poemas e Bumba-meu-poeta, p. 101). O poema vem com data de 1924. Portanto, pode-se
depreender que houve mudança de referência cultural, mas manteve-se o diálogo com o
internacional.
76
moldura cubista. Os filósofos da terra são comparados a simples vendedores,
rebaixando assim o conhecimento da época. Nos versos 7 e 8, o poeta nivela as
realidades díspares: “oradores” e “pernilongos” têm o mesmo tratamento, o que
caracteriza uma sátira aos modos vazios de expressão da oratória empolada da
época (própria dos epígonos parnasianos), e tocando em dois pontos ao mesmo
tempo: os problemas de ordem sanitária (mosquitos) e as questões de ordem
cultural.
No verso 9 (“Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda”), a
pintura pendurada na parede adquire funções decorativas e de distinção de
classe, ao passo que a fruição estética é deslocada para segundo plano, o que
confirma também as colocações sobre o saber acima destacadas.
A presença da ironia, que percorre o poema, nos versos 10 e 11(“Eu morro
sufocado / Em terra estrangeira.”), denota um país colonizado, sem cultura
própria, principalmente nas camadas médias e altas do momento Belle Époque,
que se identificar com os modelos parisienses.
149
Em seguida (vv. 12, 13 e 14),
ataca também os valores das mercadorias num País onde tudo é mais bonito, mas
não é acessível a todos.
O final do texto revela que as produções discursivas são artefatos culturais
são clichês que não refletem a vida da cultura nacional. O desejo de se aproximar
de uma realidade mais palpável (“carambola de verdade”, “sabiá com certidão de
idade!”), é precedido pelo desejo (“Ai quem me dera”) desejo de um discurso não
mimético. Sente-se, ironicamente, a dificuldade de uma escrita que possa
expressar a realidade local “tal qual ela é”. Nesse sentido, o termo carambola
77
exemplifica esse dilema, pois na gíria significa “trapaça”, “engodo”, o que enfatiza
o efeito paradoxal da expressão “carambola de verdade”.
150
Voltando, então, para as relações entre o texto muriliano e a primeira
“Canção”, presenciamos um confronto cultural. Com o objetivo desarticular a visão
romântica do Brasil, aliás, uma das propostas do Modernismo, o texto de Murilo
faz uma releitura radical do poema de Gonçalves Dias. Varia desde a medida dos
versos até o vocabulário. O início do poema – “Minha terra” - insere o leitor no
universo romântico com citação direta, desconstruindo em seguida a expectativa
do lugar comum e, ao contrário de um Oswald de Andrade que mantém o verso de
sete sílabas, Murilo rompe com a métrica do fixa do primeiro poema.
151
O poeta monta, surrealisticamente, pelo uso de um conjunto de imagens
deslocadas para “repetir”, em novo contexto, os usos deslocados de idéias
importadas no Brasil, fazendo com que a estrutura do poema reflita a estrutura de
uma sociedade que está em relação com a Europa.
Se G. Dias utiliza os elementos da natureza como referência de
estruturação do poema, o poeta modernista junta elementos semanticamente
díspares tanto na escala sociocultural – poetas, pretos, sargentos -, como na
escala natural – pernilongos, flores, frutas. Desse modo, o poema promove um
“ruído” na forma que reflete a “bagunça” social do tempo do poeta, com o intuito
não só de demolir um imaginário romântico sobre o País, mas atacar os vícios
149
Nicolau Sevcenko, op. cit. p. 51.
150
Caldas Aulete. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Vol. 1. Rio de Janeiro: Ed.
Delta, 1958, p. 844.
151
Adélia de Meneses, op. cit., p. 123.
78
burgueses do presente.
152
O passado é recuperado por releitura que coloca o
Romantismo numa chave contemporânea. Mas esta recuperação se torna algo
impossível no momento presente, pois a única aspiração de objetos da natureza,
valorizados (carambolas e sabiá) é contraposta pelo uso da conjunção adversativa
“mas” do último verso.
A atualização do poema se dá pelo uso do verbo, na maioria das vezes, no
tempo presente do indicativo ou no infinitivo tem, cantam, são, vivem, pode,
morro, custam, chupar, ouvir – o que denota a o trabalho de atualização do poeta,
quando joga com os momentos dos dois poemas. O verbo “ter” é usado uma única
vez e a expressão “minha terra” é repetida somente uma vez no final do verso
terceiro, ao contrário do texto romântico.
O tom informal do poema se concretiza pelo uso de orações diretas e
repercute em expressões que manifestam a busca de coloquialidade anti-oratória
e não sentimentalista, o que denota um diálogo de rompe com a continuidade da
tradição do século XIX.
153
A paródia, que opera uma inversão de sentidos de outro
texto, não atua só no conteúdo, mas também na forma. Por exemplo, a repetição
anafórica de “nossas”, nos versos 12 e 13, enfatiza a expressão da coletividade,
mas é empregada ironicamente, pois os objetos não são ”nossos”.
Concluindo esta abordagem do poema, vale citar, para arrematar, um
trecho da análise de Luciana Picchio que sumariza bem o espírito muriliano:
152
Idem, p. 123 e 124.
153
Antonio Candido. “A Revolução de 30 e a cultura”. In: A educação pela noite & outros ensaios.
São Paulo: Ática, 1987, p. 186. Para o crítico, as transgressões heróicas dos anos 1920 serão
assimiladas nos anos 1930, quando “o inconformismo e o anticonvencionalismo se tornaram um
79
(...) Murilo terá sido sempre um poeta modernista, de matriz
surrealista e que, quando ele irrompe na cena, o faz em moldes de
suprema ironia modernista: um discurso que é, sim, sempre
referencial, mas cujo referente (o sorriso enigmático da Gioconda, a
saudade romântica de Gonçalves Dias, bem reconhecível pelo
público de formação escolar burguesa a quem se dirige, é virado,
invertido, tornado de sinal oposto: o equivalente lúdico e imagético
do “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade, ou do
antropófago de Oswald.
154
Além de dialogar com o passado, o poeta também está atento às mudanças
de seu tempo. Assim, um dos motivos constantes de sua produção se refere aos
impactos da modernização técnica, antecipando de anos a crítica do pensamento
de esquerda à “modernização conservadora”
155
. Sem se opor aos aprimoramento
científico como instrumento “positivo”, Murilo não simpatizava com o entusiasmo
pela máquina e pela América do Norte, o que pode ser constatado na oposição às
idéias de um Graça Aranha.
156
A posição de Murilo não era de entusiasmo quanto à tradição e às
transformações técnicas operadas pela modernização, e sua veia satírica ataca
principalmente os costumes arraigados no que concerne às coisas ridículas tanto
do passado quanto do presente
157
, mas também no que toca às importações
ideológicas.
direito.” No caso de MM, como veremos, a postura do poeta será objeto de reavaliação por ele
próprio ao longo de sua obra.
154
Luciana Picchio, op. cit., (1988), p. 6 e 7.
155
Cf. Nicolau Sevcenko, op. cit.
156
Carta a Drummond datada de 3 de fev. de 1931, apud Júlio Guimarães, op. cit., p. 30. O poeta
continuará ao longo de sua trajetória ironizando a cultura americana e seus efeitos.
157
Manuel Bandeira. Apresentação da poesia brasileira. 3
ª
ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante
do Brasil, 1957, p. 166.
80
O processo de modernização, entendido como contraditório, produzia,
simultaneamente, ganhos e perdas. Esse processo inclui evidentemente a
“importação” dos movimentos estéticos. Antonio Candido afirma que esses
movimentos traziam alguns estímulos que “agiam também sobre nós: a
velocidade, a mecanização crescente da vida nos impressionavam em virtude do
brusco surto industrial de 1914-1918, que rompeu, nos maiores centros urbanos, o
ritmo tradicional”.
158
Os efeitos “perversos” da modernização acelerada serão atacados pelo
poeta ao registrar em seus poemas a tensão cultural daí advinda, Em Poemas
percebe-se a perda das tradições e lendas locais, compensadas pelas novas
aquisições no contexto de troca culturais do mundo contemporâneo.
O poeta ironiza a sociedade submetida pela máquina, parodiando “o
descompasso entre o sonho e a realidade, entre o passado e o presente”,
159
e
propõe repensar as perdas causadas pela modernização, satirizando tanto as
lendas passadas como o processo de transformação cultural advindo das
mudanças modernas. Nesse sentido, vale o exemplo do poema “O menino sem
passado”, em que esses elementos estão presentes. Vejamos o poema:
O MENINO SEM PASSADO
160
Monstros complicados
não povoaram meus sonhos de criança
158
Antonio Candido. “Literatura e cultura de 1900 a 1945’. In: Literatura e sociedade. 8ª ed. São
Paulo: T. A. Queiroz, 2000, p. 111.
159
Maria Lúcia Aragão. Murilo Mendes. Poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1983, p. 10.
160
Poemas. In: PCP, p. 88.
81
porque o saci-pererê não fazia mal a ninguém
limitando-se moleque a dançar maxixes desenfreados
no mundo das garotas de madeira
que meu tio habilidoso fazia para mim.
A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.
De noite eu ia no fundo do quintal
pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos
que ia me levar dentro dum surrão,
mas não acreditava nada.
Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas
estou diante do mundo
deitado na rede mole
que todos os países embalançam.
Nas duas primeiras estrofes, os “monstros complicados” que não fizeram
parte do imaginário da criança referem-se às figuras monstruosas das historietas
para crianças. Essas personagens não assustavam o poeta-criança (saci, mãe-
d’água), pois faziam parte da vida imaginária, misturando-se ao cotidiano: por
exemplo, o saci “não fazia mal a ninguém” e dançava junto com as bonecas de
madeira feitas pelo tio. A seguir, há uma esperança de encontrar um “gigante”,
mas, no fundo, não “acreditava nada.”
A relação do fantástico com a vida comum compõe a realidade do poema,
de forma que a intimidade com os fenômenos sobrenaturais misturados ao mundo
82
infantil se torna prática normal. Essa prática indiferenciação entre natureza e
cultura, efeito principalmente da estética surrealista e comum aos modernistas
brasileiros, se constitui traço estruturante da poética muriliana.
161
As três primeiras estrofes estão compostas de tal forma que não há uma
pausa, havendo encadeamentos constantes que traduzem uma idéia.
Na estrofe seguinte, o arremate e a conseqüência dos sonhos perdidos. O
primeiro verso detecta um desencantamento do universo infantil, com as perdas
da tradição local, apontando para a falta de uma experiência cultural deslocada
no mundo moderno (“Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas”). O verso,
na enumeração sem virgula, transita do geral (“tradição”) para o particular
(“lendas”), o que aponta de novo para um trabalho de tipo cubista.
O estar “diante do mundo” denota uma outra posição que não aquela da
“infância” em que o poeta convivia com as criaturas numa “equalização” própria do
imaginário infantil. O mundo agora está aberto ao contato com outras culturas.
A fusão de figuras lendárias e de situações proposta desde a primeira
estrofe, é concretizada não só no nível das imagens como também no da sintaxe e
da pontuação que aparece só no final do período, podendo-se ler a estância sem
pausas.
A ambigüidade dos termos na última estrofe é flagrante (“estou diante do
mundo / deitado na rede mole/ que todos os países embalançam”), já que o termo
“mole” pode se referir tanto à rede, termo mais imediato (adjunto adnominal),
161
MM afirma que Sinhá Leonor, sua prima, ao contar histórias, “evocava sempre boitatás, o saci-
pererê, almas do outro mundo, mumucas e bitus; foi uma das minhas mestras de
83
quanto ao sujeito (podendo ficar: estou diante do mundo / deitado mole na rede)
funcionando, então como predicativo do sujeito. Já a inversão, presente nos dois
últimos versos, na ordem direta (podendo ficar: todos os países embalançam a
rede mole.
A perda de referência ocasionada pelo aparecimento de um outro mundo,
agora sob o regime econômico provoca o desenraizamento cultural, o que está,
ainda que com menos acento, na “Canção do Exílio” muriliana.
162
Quase trinta
anos depois, Murilo afirma:
(...) estamos entrosados na nova civilização técnica e admito que
uma forma diversa de poesia possa interpretá-la; mas qualquer
artesão, por mais rigoroso e lúcido, se pensa, não poderá deixar de
plantar os problemas fundamentais do espírito, que nasceram com o
homem e viverão sempre com ele.
163
O poema sinaliza, assim, para uma mudança que ocorre na passagem de
um mundo a outro, evidenciando a inquietação poética em relação ao movimento
da história.
164
O tema da modernização perpassa a produção do poeta que a
supranaturalismo.” Cf. A idade do serrote. In: PCP, p. 948.
162
Entretanto, tal exemplo não serve para justificar uma idéia regressiva da cultura, idéia esta fora
do horizonte do poeta.
163
MM. “A poesia e o nosso tempo.” Disponível em: <http;//www.cemm.ufjf.br/poesia.htm>. Acesso
em: 26 jan. 2001.
164
O poeta lamenta os efeitos da modernização também em outro poema do mesmo livro,
“Noturno resumido”. Nos versos 12, 13 e 14, temos: “As namoradas não namoram mais / porque
nós agora somos civilizados, / andamos no automóvel gostoso pensando no cubismo.” In: PCP, p.
89.
164
São “narrativas” de subjetividade marcada por acontecimentos, atualizando experiências
significativas. O evento, ao ser narrado, é universalizado pelo poeta como algo que transcende
uma localidade e um tempo, para além de uma experiência pessoal. Cf. Alfredo Bosi. “A
interpretação da obra literária.” In: Céu, Inferno. São Paulo: Ática, 1988, p. 276.
84
critica irônica e parodicamente.
165
Sua poesia, na verdade, dialoga de forma
pungente com uma cultura voltada para a reprodução do status quo,
166
mas
também coloca em questão a representação de um pretenso real através de uma
subjetividade esgarçada pelos efeitos da modernização.
165
Maria Lúcia Aragão, op. cit., p. 10 e 11.
166
Em Bumba-meu-poeta, segundo livro do autor, cujo tema é o poeta e a cultura brasileira, o
tratamento satírico se acentua. Aí os costumes do País são repassados e várias personagens da
vida brasileira são satirizadas. Cf. Eva Aparecida Pereira Seabra da Cruz. A função de Orfeu e a
pedra no caminho em Bumba-meu-poeta e outras obras. São Paulo, 2005, 162 p.,Tese de
Doutorado – DTLLC/FFLCLH/USP.
85
3. A SÁTIRA HISTÓRICA EM HISTÓRIA DO BRASIL
A história para mim é um excitante, e não um alimento.
167
Paul Valéry
3.1. O livro em questão
A publicação do livro História do Brasil gerou e continua gerando debates.
As controvérsias sobre a publicação giram em torno dos anos de 1932 e 1933. Em
resposta à carta de Laís Corrêa de Araújo, de 07.11.1969, o poeta afirma
categoricamente que a obra “foi publicada em 1932 (Ariel), com capa de Di
Cavalcanti.”
168
Há também a hipótese de que os poemas foram produzidos pelos
anos de 1920, bem antes de sua publicação, pois os mesmos teriam sido “escritos
no ímpeto da festa nacionalizante do modernismo, anteriormente aos textos
editados em 1930.”
169
Ponto em comum nesta produção inicial de Murilo Mendes - Poemas,
História do Brasil e Bumba-meu-poeta - são o poema-piada e “a paródia, o
brasileirismo da linguagem, o cotidiano da vida brasileira”. Ler estas obras, hoje,
pode auxiliar na compreensão da produção literária do autor, bem como da
história da literatura brasileira, mais especificamente do movimento modernista, do
qual o poeta participou ainda que à distância. Esta leitura propicia ainda abordar
idéias sobre o passado e o presente do País. Nelas, são recontados, de forma
167
Paul Valéry. “Nota e digressão”. In: Método de Leonardo da Vinci. Trad. de Geraldo Gérson de
Souza. Edição Bilíngüe. São Paulo: Editora 34, margem da p. 113.
168
Apud Laís de Araújo. Murilo Mendes, p. 197. Note-se que alguns desses poemas podem ter
sido escritos em 1925. Cf. Maria Betância Amoroso. “Passeio na biblioteca de Murilo Mendes”. In:
Remate de Males. Campinas, SP: Unicamp, 2001, p. 126-7.
86
satírica, episódios e eventos da história brasileira, principalmente em História do
Brasil, um dos objetos de nosso estudo.
170
O livro de 1932 foi saudado por alguns de maneira um tanto quanto
exagerada. Em artigo, Aníbal Machado comenta assim o aparecimento do livro: “O
livro de Murilo estabelece também uma cordial intimidade com o Brasil. Eruditos,
estudantes, militares, patriotas de todo gênero, leiam a História do Brasil de Murilo
Mendes, mais fiel que a de Rocha Pombo, mais sintética que a de João Ribeiro e
a única verdadeira.”
171
Exageros à parte, o que Aníbal percebe é que esta obra do
poeta relata nossa história de modo mais divertido, observando os fatos heróicos
pela ótica do oprimido e percebendo o intuito de transformação da realidade a
partir do enfoque poético. A comparação de entre Murilo Mendes e Rocha Pombo
- o primeiro considerado melhor -, se justifica, segundo Machado pelo tratamento
diferenciado aos fatos e pela maior fidelidade à história nacional.
Segundo Luciana S. Picchio, que vê o livro não como um tratado, o poeta
tinha lido vários historiadores, entre eles esse que publicara uma História do Brasil
sem nenhum sinal de crítica ou reflexão.
172
Veja-se, a título de exemplo, como a
escrita da história aparece no prefácio de Rocha Pombo, em que o autor explica
sua abordagem:
O que é preciso para isso, a meu ver, é ir começando por aliviar da
massa dos fatos o contexto histórico, reduzindo a narração aos
sucessos mais significativos, de modo a esclarecer a conciência
169
Apud Júlio Guimarães, op. cit., p. 34.
170
Cf. Júlio Guimarães, op. cit. p. 31, 33 e 34.
171
Aníbal Machado. “História do Brasil”. In: Parque de diversões. Belo horizonte: Ed. UFMG, 1994,
p. 88.
87
(sic), a infundir sentimento, poupando o mais que for possível a
memória....O primeiro trabalho, e o mais interessante, é este – o de
mostrar como nossa história é bela, e como a pátria, feita, defendida
e honrada pelos nossos maiores, é digna do nosso culto.
173
Murilo Mendes se contrapõe a esse tipo de visão acerca do País, apesar de
se assemelhar ao livro de Pombo no que tange ao ordenamento dos momentos e
episódios. Assim, enquanto o de Pombo dá um enfoque a partir do ponto de vista
de uma história em que as tensões sociais são apontadas ilustrativamente, o
tratamento do poeta é declaradamente a partir da ótica dos dominados. E é nesta
mesma direção, isto é, de uma visão histórica a partir de um olhar crítico, que
alguns o consideravam um poeta comprometido, neste período, com uma “poesia
proletária” e com uma “idéia revolucionária”, tanto é que seu amigo Mário Pedrosa
“via História do Brasil como um dos poucos livros nossos em que afirma forte
simpatia pelos oprimidos”.
174
O poeta mesmo ratifica, em artigo posterior, esta
identificação com as camadas populares.
175
172
Luciana Picchio. “Pequena história da História do Brasil de Murilo Mendes”, p. 6.
173
Cf. Rocha Pombo. “Esta pequena história”. In: História do Brasil. 19
a
ed. São Paulo; Caieiras;
Rio de Janeiro: Companhia Melhoramentos de São Paulo, s/d, p. 3. Observe-se que o prefácio de
Rocha Pombo é de 1918. Evidente que MM leu a obra de Rocha Pombo, como base para suas
sátiras, visto que a obra deveria ser adotada pelas escolas, o que é sugerido no mesmo prefácio
onde o autor afirma que os editores estariam promovendo uma cruzada para “renovar a nossa
bibliografia das escolas e dos lares, convencidos de que este é o esfôrço (sic) fundamental de tudo
o que se tiver de fazer no sentido de levantar a alma da pátria.” (p. 3).
174
Júlio Guimarães, op. cit. p. 34 e 35. A frase “poesia proletária” é de Willy Lewin e “idéia
revolucionária” é de Aníbal Machado apud Júlio Guimarães, p. 35. Mário Pedrosa apud Sérgio
Cláudio de Franceschi Lima. Surrealismo Polêmica de sua recepção no Brasil modernista. São
Paulo: 1998, Tese de Doutorado - FFLCH/USP, p. 40.
175
Cf. Laís de Araújo, op. cit.; Ulisses Infante. “O carioca passa a vida musicando” ou o carioca
Murilo Mendes e a música popular urbana. In Teresa Revista de Literatura Brasileira, n. 4/5 (2003).
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas,, Universidade de São Paulo. São Paulo: Ed. 34, 2003. Havia “claro juízo de MM sobre a
importância da música popular no conjunto das manifestações culturais brasileiras”. p. 231. MM via
a música popular “como um dado cultural significativo do cenário urbano que queria
caracterizar”.(p. 235).
88
Com este livro divertido, o autor se desloca um pouco de seu momento
histórico, pois as fileiras de combate modernistas já estavam entrando em outra
etapa. Nele o poeta “troçava não só dos portugueses, mas também dos
brasileiros”
176
, e desenvolvia o “embrião” dos primeiros Poemas, com dicção muito
peculiar com o intuito de se contrapor às interpretações históricas estabelecidas
sobre o País, rompendo, assim, com as versões oficiais.
177
Fábio de Souza Andrade indica como, em seu primeiro livro (Poemas), ao
juntar imagens estranhas, o poeta se propôs o trabalho “de uma apreensão crítica
da bagunça brasileira” presente no cotidiano das ruas, proposta que teve
continuidade em História do Brasil, de 1932, ainda que a busca da conexão entre
o efêmero e o eterno (“mito e história”) se dissimule “sob as vestes do risível”,
intervenção esta muito de acordo com as desconstruções dos primeiros
modernistas.
178
No entanto, a ruptura do poeta juizforano não está em completa sintonia
com o espírito demolidor da primeira safra modernista, pois o que intriga o leitor de
História do Brasil é a presença mais constante de formas literárias tradicionais,
como o soneto e o romance de origem popular com métrica fixa (decassílabos e
176
MM. Retratos-Relâmpagos e Janelas Verdes. In: PCP, p. 1287 e 1431.
177
Cf. Tarcísio Gurgel. Pai, filhos, espírito da coisa. Natal: Edição do Autor, 1988. Apud Isabel
Lustosa. “Introdução”. In: Mendes Fradique. História do Brasil pelo Método Confuso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 11. Júlio Guimarães aponta ainda outras obras publicadas em tom
satírico anteriores a Murilo e mesmo textos do poeta, feitos em Juiz de Fora, que já indicavam para
essa tendência do poeta. O autor cita Juiz de Fora (1926) de Austen Amaro, República dos
Estados do Brasil (1928) de Menotti Del Picchia, Martim-Cererê de Cassiano Ricardo. Cf. Júlio
Guimarães, op. cit. p. 35. Cf. Manoel Bonfim e Olvao Bilac. Através do Brasil. Org. Marisa Lajolo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. A ênfase na idéia de “rompimento com a história oficial”,
que ecoa em História, já tinha surgido em obras poéticas de outros escritores do primeiro
modernismo: por exemplo, História do Brasil pelo Método Confuso (Mendes Fradique, 1922),
Poesia pau-brasil (Oswald de Andrade, 1925).
178
Fábio de Souza Andrade. “Prefácio.” In: As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 11.
89
redondilhas), formas literárias ainda presentes nas práticas modernistas,
sugerindo uma “permanência da tradição” poética, cujos recursos poderiam ser
reativados num contexto moderno de inovação literária.
179
Entretanto a tradição clássica não será assimilada de forma acrítica. O
soneto muriliano, por exemplo, inova em relação à poesia parnasiana, ao tratar de
temas históricos de modo simples, não grandiloqüente, e sem idealizar os temas
universais, com o que o poeta combate as estruturas de um certo parnasianismo
que utilizava esta forma literária como padrão poético (com regras formais do
verso, referências ao universo clássico, eloqüência grandiosa, e o trabalho lapidar
da palavra).
180
Como Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, Murilo também
compusera poemas que procuravam achar esteticamente o Brasil, o que
significava tratar o País de modo artisticamente novo.
181
Assim como Bandeira e Oswald, a obra muriliana, também derivaria de uma
percepção crítica mais ampla da história do País. Esse reencontro entusiástico
“permite o reconhecimento de uma poesia nos fatos, como se estes estivessem
179
Silviano Santiago, “Permanência do discurso da tradição no modernismo.” In: Alfredo Bosi
(org.). Cultura Brasileira. Tradição contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor/Funarte, 1987,
p. 111-145.
180
Davi Arrigucci Jr. “Poema desentranhado”. In: Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel
Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 102. O autor se refere especificamente aos
anos 20. No caso de Murilo, podemos alongar o período para os inícios dos anos 30. A sua
adoção de poemas em forma fixa em História do Brasil é interpretada como um “desvio” em
relação a outros poetas, o que se sustenta pelo fato de o poeta deixar clara sua discordância
quanto aos rumos do movimento modernista, por exemplo, no caso de Graça Aranha, cujas idéias
futuristas criticou. A máquina poética muriliana destoa de grande parte dos modernistas ao mesmo
tempo que faz parte dessa vaga inovadora.
181
Idem. p. 103. Sobre o poema “Poema tirado de uma notícia de jornal” de Manuel Bandeira. Na
mesma página diz o autor que “... o achado estético era também o achado de um país, pois
equivalia a um modo de tratar esteticamente uma visão do Brasil.”
90
imantados, em si mesmos, por sua novidade, de um potencial de surpresa
estética.”
182
No caso de Murilo, são os fatos históricos que entram em questão.
No momento heróico do Modernismo, o que entrava em questão eram as
formas “arcaicas” da vida cultural e social do País. Murilo Mendes encarna de
forma exemplar o “espírito novo” e, desse modo, está perfeitamente sintonizado
com a estética modernista.
Vivian Schelling, ao estudar o pensamento de Mário de Andrade e Paulo
Freire, resume muito bem a proposta de desmontagem das estruturas tradicionais
que davam sustentação aos padrões de vida cultural predominantes. Afirma a
autora:
O Movimento Modernista será considerado como um fenômeno que
submeteu as formas tradicionais de autoridade e legitimação a uma
reflexão crítica, elaborando e validando, nesse processo, novas
interpretações da realidade social. Como fenômeno artístico e
ideológico, ele formulou seu projeto em termos de uma revisão
crítica da natureza e função da cultura na sociedade brasileira, em
termos da elaboração de novas formas estéticas e em termos de
uma crítica às normas que sustentavam o arcabouço institucional
vigente.
183
No contexto de reinterpretação crítica da cultura produzida pelo
Modernismo, a intervenção de História do Brasil se destaca como uma “perversão”
poética que, mesmo se aproximando das inovações modernistas, não compactua
182
Idem, p. 103.
183
Vivian Schelling. A presença do povo na cultura brasileira: ensaio sobre o pensamento de Mário
de Andrade e Paulo Freire. Trad. Federico Carotti. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990, p.74
e 75.
91
totalmente com a ideologia nacionalista.
184
Em Poemas, por exemplo, o poeta
estabelece um diálogo com a tradição diferentemente do que faz um Oswald de
Andrade, por exemplo, em seu Pau-Brasil (1925), ponto que se reflete no todo de
sua obra.
185
Maria da Glória Bordini, ao comentar Murilo, aponta para as diferenças
entre os dois escritores acima:
Mais do que uma incursão ‘inquietante’ aos fatos da história
pátria, por puro entusiasmo juvenil, sem nenhuma qualidade
salvo o humor, História do Brasil parece representar essa
‘impaciência’ ante a visão oficial da historiografia brasileira sobre
a formação do País, cultivando uma espécie de poesia cujo
caminho já fora aberto por Oswald de Andrade, sem, contudo,
reproduzir o ponto de vista aderido ao pensamento burguês que
este contraditoriamente queria denunciar.
186
A dissonância do poeta se reflete no interior de seus poemas plenos de
tensão entre a tradição e a inovação modernista. Seus ritmos, sons e vocabulário
expressam o intuito de desorganizar os discursos fundadores do País e as
práticas culturais enraizadas. A derrisão destes discursos de fundação do País -
184
Laís Corrêa, op. cit, p. 165. A ensaísta não utiliza o termo perversão, mas indica que o poeta
considerava como “antipoéticos” certos temas do modernismo, como por exemplo, “a ideologia
nacionalista mal digerida”.
185
Como pontua Bosi, sobre as descontinuidades poéticas: “O primeiro Murilo Mendes tem muito a
ver com Oswald de Andrade, mas, no conjunto de sua obra, é o seu oposto.” (”Mário de Andrade
crítico do modernismo”. In: Céu, inferno, p. 238).
186
Maria da Glória Bordini. “A representação da história na poesia: o caso Murilo Mendes”.
Disponível em: <http:www.unicamp.Br/ie/histlist/Murilo.htm>. Acesso em: 29 set. 2001. Cf. posição
de Francisco Foot Hardaman. “Algumas fantasias de Brasil: o modernismo paulista e a nova
naturalidade da nação”. In: Edgar Salvadori de Decca & Ria Lemaire. Pelas Margens, p. 317-332.
Aí, o autor aponta que O. de Andrade concede uma pseudovoz aos marginalizados.
92
sacralizados pelo olhar da historiografia oficial da época - faz parte da estratégia
de atuar nas lacunas das formações discursivas, realizando uma contra-leitura
histórica.
A apropriação das formas do passado tem o sentido de lhes dar novas
significações. Seus poemas, assim, atuam em duas frentes: numa frente,
dialogava com a leitura nacionalista do primeiro modernismo; noutra, contrastava
com a visão passadista, colocando sobre a tradição um olhar atualizado.
Segundo Joana Matos Frias, o poeta também tensionava a posição
nacionalista dos modernistas, no sentido de que promoveu a “ridicularização
dessa atitude, num posicionamento exterior e não interior ao movimento.” Ela cita
Renault, para quem o poeta teria contribuído fortemente para uma visão moderna,
pois, tendo surgido quando o modernismo “finalizava a sua luta de destruição,
Murilo Mendes não deixou de satirizar, no seu ‘História do Brasil’, o toque
nacionalista com que o Modernismo se inaugurara e substituíra o helenismo
parnasiano por motivos nacionais, tão falsos, a nosso ver, como os reflexos da
Grécia”.
187
Assim, é possível considerar o livro História do Brasil como uma paródia
dentro da paródia modernista, não só pelo modo como trata os temas da história
do Brasil, mas também pela forma de composição ao utilizar versos metrificados
das formas tradicionais,
188
o que não significa um retrocesso parnasiano, mas um
187
Joana Matos Frias. Tempo e negação em Murilo Mendes. Porto/Portugal, 1998, Dissertação de
Mestrado - Universidade do Porto/Faculdade de Letras, nota de rodapé, p. 23.
188
Não se sugere aqui uma postura antimodernista ou regressiva do poeta juizforano: por exemplo,
ao se apropriar das técnicas então vigentes, mormente do surrealismo, ainda que fora do primeiro
tempo em que as vanguardas forneceram o arsenal de ataque aos poetas paulistas, o poeta
demonstra a sua “atualização artística” (Cf. Mário de Andrade. O movimento modernista. ...)
93
modo particular de abordar a realidade brasileira já presente em Poemas, de
1930.
Respondendo a Homero Senna, já nos anos de 1960, o poeta mesmo
chegou a negar o poema-piada praticado pelos modernistas, quando diz que o
poema anedótico, que antes o havia seduzido, foi superado, “e deve ser entendido
como uma reação dos poetas contra o espírito burguês e a superstição da
sagrada Forma, que o Parnasianismo nos legou.”
189
Em artigo sobre História do Brasil, ao levar em consideração a estética e a
memória documental, Luciana Picchio “ressuscitou” esta obra. Ela mostra a
importância do livro durante as comemorações do chamado Descobrimento do
Brasil. A história nacional é comentada cronologicamente. Os “minutos de
poesia”, carregavam, “por detrás da aparência lúdica, uma carga subversiva” em
poemas plenos de provocação visionária pela qual o poeta “continuaria até o fim a
minar as convenções obsoletas: miná-las na forma e na substância.”
190
O estilo do poeta justifica seu posicionamento subversivo com relação aos
padrões estéticos e morais da época, estilo que se identificava com as visões
anarquistas do começo do século XX. Segundo Merquior, as práticas mescladas
189
Apud Júlio Guimarães (org.). Murilo Mendes: 1901-2001. Juiz de Fora: CEMM/UFJF, 2001, p.
108 e 109. 13 de maio de 2001, CEMM (Juiz de Fora). Catálogo de Exposição. A referida
entrevista foi reproduzida de República das Letras, de Homero Senna. Rio de Janeiro: 2
a
ed.
Olímpica, 1968. Murilo Mendes considera o poema-piada como algo ultrapassado, apesar deste
tipo de poesia ter sido um instrumento importante de reação e a tônica do momento heróico do
Modernismo. Ele faz ressalvas quanto a seus equívocos de humorista, passando a levar a sério
sua produção, pois o deboche não seria o único elemento caracterizador da cultura nacional. Em
carta a seu mestre Alceu Amoroso Lima, diz, sobre seu livro Poemas: “Vejo que você me toma a
sério, o que para mim é muito importante: não ver no sujeito dos “Poemas” um jogral, nem um
mistificador – mas sim um indivíduo dissociado, mas que se esforça por atingir uma ordem.” Maria
Betânia Amoroso. “Passeio na biblioteca de Murilo Mendes”. In Remate de Males, n. 21. Campinas,
SP: Unicamp, 2001, p. 125.
190
Luciana Picchio. “Murilo Mendes 1932: A história do Brasil revisitada.” In: Metamorfosi, Lisboa,
Pt: Edições Cosmos, 2001, p. 41.
94
de Murilo estariam identificadas com o estilo artístico “complexo”, em que se
articulariam várias correntes num mesmo texto. Sua produção desse momento, se
articularia mais explicitamente às tendências anarcovanguardistas.
191
Quanto à rejeição dessa obra por parte do autor em 1959, não deve ser
considerada de modo absoluto, pois pensamos que a obra é relevante de um
momento da trajetória do poeta. Laís de Araújo pensa História como um livro que
não convence literariamente e que se limitou a um experimento que não se
ajustava mais ao autor
192
.
Silviano Santiago aponta o “fato curioso” sobre a não publicação de História
do Brasil. Segundo ele, o poeta não permitiu a inclusão do livro na obra completa
“porque nele estava manifesta a sua preocupação estreita com o nacional, através
do estilo parodístico”, já que com o discurso religioso universalizante o poeta
negaria uma literatura voltada para o nacional, e também por estar em Roma o
que “tornava praticamente impossível a relação cotidiana do poeta com o
Brasil”.
193
Já para Guilherme Amaral Luz, a recusa do livro por parte do poeta:
(...) se insere numa perspectiva maior de observação e de
reavaliação da produção poética do autor não pautada por uma
visão subjetiva do gosto mas por uma mudança em relação à
191
Merquior. “Notas para uma muriloscopia”, p. 12.
192
Apud Elisabet Gonçalves Moreira. Murilo Mendes: uma representação operacionalizada. São
Paulo, 1982, Dissertação de Mestrado - DLLO/FFLCH/USP, p. 22 e 23. Não compartilhamos
dessa opinião, poisse projetam certos valores do poeta, por exemplo, o da inversão poética e o
da contestação social que se vê ao longo de sua obra.
193
Silviano Santiago, op. cit. p. 109. Quanto ao discurso religioso e sua dimensão universal, o
poeta mesmo já havia se colocado a favor, mas o preconceito religioso por parte da crítica desloca
a compreensão da poética muriliana, já que em relação à religiosidade o escritor coloca em xeque
95
própria obra devido ao modo linear de apresentar a história do Brasil
poeticamente numa visão evolucionista pressuposta incompatível
com o declarado pelo autor que diz que a obra não mais condiz nos
anos 50 ao seu projeto e às suas idéias naquele momento.
194
Luciana Picchio observa que a não edição da História “risonha e
heterodoxa” não significa que Murilo rejeitasse sua pátria, ao contrário, percebe-
se a simpatia e o carinho que nutria por seus conterrâneos, mesmo com todos os
problemas e questões não resolvidas do Brasil.
195
De fato, História do Brasil talvez tenha sido publicado em momento
impróprio, pois o Brasil já não vivia o fervor de 1930, atravessando uma fase que
desaguaria na Revolução Constitucionalista de 1932, o que explica, em parte, as
várias reações dos intelectuais ao livro que nasce em boa parte deslocado, e sob
o signo da polêmica.
196
os próprios dogmas do Catolicismo. (Cf. Mário de Andrade, “A poesia em pânico”. Vida Literária.
São Paulo: Hucitec/Edusp, 1993.).
194
Guilherme Amaral Luz. “Semeadores do Exílio: poemas para a história das raízes do Brasil”. In:
Mneme – Revista de Humanidades. v. 2 - n. 3 - fev./mar. de 2001. Disponível em:
<www.seol.com.br/mneme/ed3>. Acesso em: 23 jul. 2004.
195
Luciana Picchio. “Murilo Mendes 1932: A história do Brasil revisitada.”, p. 42. “E talvez a recusa
de 1959 de incluir nas suas Poesias Completas até então a própria ectópica História do Brasil,
ainda mais que razões de conteúdo tinham na sua base razões de forma com que o Murilo
europeu e universal do fim dos anos Cinqüenta já não concordava. Desde as primeiras linhas a
História do Brasil de 1932 estava feita de modismo, coloquialismos, carioquismos de matiz
modernista que a literatura “alta” dos anos pós-1930 acabaria por recusar.” (p. 44)
contradições, por parte do poeta, sobre a recusa do livro: em carta de 1969, o poeta afirma: “Note
que não reneguei nenhum livro: não incluí o dito volume a ‘História do Brasil’ porque assim o
declaro no prefácio – achei que prejudicaria a unidade do mesmo.” (Apud Laís de Araújo, p. 194)
Já em carta Laís de Araújo, de 1973, afirma que o livro foi “renegado por mim.” (idem, p. 228).
196
Idem, p. 42. Seria essa a apreensão que faz com que o poeta mude de idéia ao não publicar o
livro. O próprio autor não estava alheio aos julgamentos de sua obra “herética”. De qualquer
maneira a história não é um elemento fora da cogitação do poeta.
96
Quanto ao intuito da obra, podemos notar a idéia do riso como forma de
pedagogia
197
contra uma literatura “sorriso da sociedade”, subjacente em Murilo,
se coaduna com a estratégia da sátira dos modernistas no sentido de afirmar o
humor na reeducação do olhar. O riso de Murilo não propunha terminar em
nihilismo infértil, mas se constituía numa estratégia de ataque ao que considerava
os males do País. Junto com o peso do caráter estético do humor, assinala-se no
caso muriliano o fundamento ético do cômico. Pois a satirização, em sua
aparência pejorativa, poderia exercer uma ação positiva na realidade. Conforme
aponta Alfredo Bosi sobre a sátira, “o sentido construtivo, a aliança com as forças
vitais, em suma, a boa positividade, que nela se confunde com a negatividade.”
198
Isto é, o que poderia ser considerado como algo sem dimensão axiológica,
ocultaria uma ética de combate às estruturas conservadoras da época.
Com outro olhar sobre a obra muriliana, Cassiano Nunes, aventa a hipótese
de que Murilo teria se interessado pelo Brasil, no início de sua carreira, porque
“(...): a sua pátria decerto lhe pareceria a negação do racionalismo filistino.”
Apesar de o ensaísta considerar História do Brasil “desrespeitosa”, supõe que,
para o poeta, “em nossa terra um happy end poderia surgir de maneira inesperada
e cômica em qualquer situação penosa.” Assinala ainda que o poeta “(...) explode
197
Oswald de Andrade também tinha uma intenção pedagógica em seus primeiros poemas,
enfatizando a desestruturação do verso. Cf. Francisco Foot Hardmann, op. cit., p. 317-332.
198
Alfredo Bosi. “Poesia-resistência”. In: O ser e o tempo da poesia. 6 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 191. Continua o autor: “Na luta contra a ideologia e o estilo vigentes, o satírico
e o parodista devem imergir resolutamente na própria cultura. É dela que falam, é a ela que se
dirigem. Tal imersão não se faz sem riscos e arrepios: não há nenhum outro gênero que denuncie
mais depressa o partido do escritor, as suas antipatias, mas também as suas ambigüidades morais
e literárias.” (p. 191e 192)
97
em humor carioca, que contém alegria, uma visão dionisíaca da vida, elementos
ausentes em Drummond.”
199
Suas fantasias vinham acompanhadas de um “aspecto educativo” em
relação às obras do passado e à história do Brasil tal como vinha sendo ensinada.
Reeducar a percepção sobre a história do País e “desenvolver a sensibilidade
crítica de todos” implicava em re-situar eventos históricos tratados arbitrariamente
em novos contextos.O poeta tematizou a transformação política e a artística como
“dois movimentos paralelos”. Seu texto lúdico buscava operar sobre uma
determinada visão de mundo, no intuito de reorganizar a inteligência e a
sensibilidade.
200
Cabe aqui registrar o valor e a posição do poeta, através da opinião de
outro escritor, seu contemporâneo, Aníbal Machado:
Evidentemente, o Brasil de Murilo Mendes está em contradição com
o que foi ministrado em pílulas ao aluno da escola primária, pílulas
preparadas nos arquivos entorpecentes e museus falsificados...
Dessa irreverência e malandragem lírica, reverso da nossa mitologia
cívica (o Rui Barbosa, o Clemenceau das montanhas, o Santos
Dumont) Murilo Mendes tem sido entre nós a expressão diabólica e
familiar. Por certo, o seu maior prazer é faltar com respeito às
coisas ‘sérias’. Murilo não deixa nada parado em seu lugar.
201
199
Cassiano Nunes. “O humor na poesia moderna do Brasil”. In: Breves estudos de literatura
brasileira. São Paulo: Edição Saraiva, 1969, p. 108-110.
200
Luciana Picchio. “Murilo Mendes 1932: A história do Brasil revisitada.”, p. 42 e 43.
201
Aníbal Machado. “História do Brasil”. In: Parque de diversões. Belo horizonte: Ed. UFMG, 1994,
p. 86 e 87.
98
Ao mostrar que um poeta com tal grau de irreverência só é possível devido
aos problemas vividos naquele momento, Ademar Vidal aponta que “O seu bom
humor parece mais fruto do desencanto proporcionado pelo choque violento da
vida direta em que o Brasil acha-se apenas no pórtico.”
202
Já Carlos Drummond de
Andrade, ao comentar a “molecagem” de Murilo, considera que ele faz parte da
“melhor tradição poética brasileira” ao realizar um trabalho que “a renova pela
natural modernidade de seu espírito.”
203
No entanto, como se depreende dos estudos sobre as primeiras obras, nem
todos tinham a mesma idéia sobre o deboche na poesia de Murilo. Entre os que
reavaliaram a ridicularização, na primeira poesia de Murilo, está Mário de
Andrade, que apontou a falta de consistência das palavras juntamente com os
“jogos de espírito” e os “trocadilhos” do poeta, vendo com preocupação “o Sr.
Murilo Mendes soçobrar no jogo de espírito, e na própria piada, com seus
romances cômicos inspirados na história do Brasil.” Ainda assim, o crítico lamenta
o abandono, por parte do poeta, daquele “seu saboroso jeito de dizer, tão carioca,
do primeiro dos seus livros.”
204
Andrade Muricy considera Murilo um poeta multifacetado, com rompantes
surrealistas, que produz uma “eficácia real” e que consegue, através da anedota e
do epigrama, a “estabilização do instantâneo”.
205
Porém este autor via
discrepâncias nos poemas de Murilo: “O livro História do Brasil: artifício e
202
Apud Luciana Picchio, op. supra cit., p. 43.
203
Apud Elisabet Moreira, op. cit., p. 23
204
Mário de Andrade. “Poesia em pânico”, p.17, 18 e 20.
205
A. Muricy. A nova literatura brasileira, p. 123.
99
facilidade! Supra-realismo e didatismo: contradição por vezes saborosa... Por
vezes, absurda e aborrecida.”
206
Os estudos mais recentes sobre o livro ainda o colocam sob a égide da
recusa, deixando-o à sombra da obra mais “séria” do poeta. Para Elisabet
Moreira, os poemas humorísticos permaneceriam em latência na obra posterior do
poeta. Nesse sentido, a autora afirma:
Dentro da produção poética de Murilo Mendes, pela não-
continuidade deste tipo de poemas, pelo momento que eles
representam em sua obra, pode-se dizer que esta HISTÓRIA DO
BRASIL é um livro bissexto, particular, revelando o lado bizarro e
humorista do poeta. Mas esse humor, a veia lúdica do poeta
continua em todos os seus livros, não abertamente como nesses
poemas-piada tão a gosto do início do nosso modernismo, mas
camuflados até mesmo sob as imagens estranhíssimas do seu
surrealismo.
207
A História do poeta pode ser lido também como uma “continuidade” de
Poemas, o que não justifica a idéia de um livro “bissexto”, pois, além destas obras,
neste mesmo período aparece Bumba-meu-poeta
208
com o mesmo espírito
irreverente.
História do Brasil caçoa evidentemente das patriotadas da época. Ao
mesmo tempo, na leitura que o poeta faz de acontecimentos históricos ou
lendários, há uma alusão constante a fatos contemporâneos. Por exemplo, “O alvo
de Caramuru” se inicia com a citação de um anúncio de “fortificante”: “Eu era
206
Idem, p.125.
207
Elisabet Moreira, op. cit., p. 84. Ao tratar de Contemplação de Ouro Preto, abordaremos esta
retomada ou continuidade, do primeiro Murilo, em tom sério.
208
Cf. Eva Aparecida Pereira Seabra da Cruz, op. cit.
100
magro, era assim / Cheguei a ficar quase assim.” No anúncio do produto, estas
palavras eram acompanhadas de duas representações de um homem, que era
magro e depois aparecia vigoroso e sorridente na outra imagem, do tipo “antes e
depois”. Aí se vê seu diálogo com as vozes contemporâneas de sua obra. Já no
final do poema “O padre de ferro”, verifica-se uma relação com vozes da política
da época: “Antes deixar como está / Para ver como é que fica!”, versos que
ressoam a famosa frase atribuída a Getúlio. Mas esse tom galhofeiro certamente
se tornaria insuportável para o poeta, preocupado com o sentido religioso da
existência que vem a seguir.
209
Enfim, História do Brasil aprofunda a sátira anterior, pelo estilo maroto, a
coloquialidade, a paródia e temas prosaicos. Como afirma Ulisses Infante, o livro:
Radicaliza porque constrói um conjunto de poemas que têm unidade
como reinterpretação irreverente do percurso histórico e cultural do
país. E faz isso percorrendo uma ampla gama de atos e de falas,
num levantamento complexo de fatos históricos, discursos sobre
esses fatos e manifestações culturais envolvidas – como é o caso
da música popular urbana, que se constitui concomitantemente à
“construção da nacionalidade” – que o livro vislumbra como
edificação de uma “bagunça transcendente”, para usar uma
expressão do próprio Murilo.
210
Chama a atenção do leitor de História do Brasil a sua leveza e
superficialidade. Entretanto, na camada da linguagem se explicita a posição do
209
Boris Schnaiderman. “Bakhtin, Murilo, prosa/poesia.” In: Revista Estudos Avançados, São
Paulo, Instituto de Estudos Avançados, Vol. 12, N. 32, jan./abr., 1998, p. 75-81. Os dois poemas
citados entre aspas pertencem a HB (In: PCP).
101
autor quanto aos oprimidos da história. A estratégia de resistência poética se dá
numa perspectiva clara de opção pelo mais fraco, pois os acontecimentos
reaparecem no relato que desvela a realidade histórica e fazem falar os que não
tiveram nem vez nem voz.
211
210
Ulisses Infante. “’O carioca passava a vida musicando’ ou o carioca Murilo Mendes e a música
popular urbana”, p. 264-5.
211
E uma das formas de incorporar as vozes reprimidas da cultura brasileira na poesia muriliana se
daria pela referência às práticas culturais marginalizadas da música popular urbana, principalmente
nos textos anteriores a História do Brasil, o que denota um posicionamento poético-político. Cf.
Ulisses Infante, op. cit., p. 228-270.
102
3.2. A sátira aos poderes reais
Ao sintetizar a organização de História do Brasil, Maria da Glória Bordini,
assinala que “a série principal de poemas tematiza episódios conhecidos da
história brasileira”: a invasão dos holandeses; a carta de Caminha; os feitos de
Caramuru; a divisão das capitanias; os poemas de Anchieta; a resistência a
Nassau, com a traição de Calabar; o episódio de Felipe Camarão; a revolta de
Palmares; as Bandeiras; a morte de Tiradentes. Os poemas do livro se
desenvolvem em ordem cronológica, desde a colonização, passando pelo Império,
a República Velha, chegando à Revolução de 30. Os heróis populares recebem
tratamento positivo, “sejam eles defensores de uma idéia de Brasil independente
ou não tiranizado ou simplesmente menos injusto.”
Todos são tratados com
simpatia e respeito - Felipe Camarão, os rebelados de Palmares, Frei Caneca,
Marcílio Dias, João Cândido e Lampião -, exceto Tiradentes, “cujo heroísmo é alvo
de certa zombaria”.
212
Dentre os heróis, Zumbi, João Cândido e, em parte, Lampião, seriam os
que teriam mais inserção nas camadas populares, enquanto que os outros
estariam em função de grupos mais organizados (Felipe Camarão, Frei Caneca,
Marcílio Dias).
Evidencia-se, na ordenação do livro, um modo descentralizado de
apresentar os episódios da história do Brasil, isto é, o poeta distribui os episódios
por várias regiões do País, não só os acontecimentos ocorridos nas Sedes de
Governo ou Capitais. Nesse sentido, o autor cobre grande parte do território
103
nacional, compondo um cenário literário abrangente. Além disso, as vozes
representam várias camadas e posições de poder.
Apesar de ter um arranjo linear na medida em que os eventos são dispostos
em ordem cronológica, ao tratar de episódios fragmentados da série histórica, o
livro trabalha com a descontinuidade do olhar sobre os fatos. Ao mesmo tempo
que questiona no modo como trata a produção historiográfica e os conteúdos
evidenciados, ao ordenar os episódios de modo seqüencial, o autor, aderindo “à
ficção de uma linearidade do tempo”
213
, aparentemente simpatiza com as práticas
tradicionais de escrita da história. Mas isso não significa que sua visão histórica
seja regressiva, visto que o olhar sobre o passado atua dinamicamente a partir de
uma visão do presente. A coerência interna do livro está em ser construído com
uma noção de continuidade e unidade, ao dar aos acontecimentos uma aparência
de totalidade.
214
O riso e o humor satírico de Murilo têm a intenção de atacar os vícios da
vida política e costumes arraigados no Brasil, encarnados nas figuras
governamentais, e é por isso que vai além do meramente cômico. Afirma Henri
Bérgson que o riso “(...) não é da alçada da estética pura, pois persegue (de modo
inconsciente e até imoral em muitos casos particulares) um objetivo útil de
212
Maria da Glória Bordini, op. cit. A Antologia do Anexo I traz alguns poemas do livro
213
Michel de Certeau. A escrita da história. 2ª ed. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 10.
214
Nesses poemas são encenados vários “quadros”, momentos diferentes, onde passado e
presente interagem num mesmo tempo de elocução, isto é, a história é desmontada e
reorganizada por uma visão atual, criando uma compatibilidade entre o assunto e a posição do
discurso e assimilando, na ordem deste, a variedade de assuntos. (Cf. Michel de Certeau, op. cit.,
p. 96).
104
aperfeiçoamento geral.”
215
A estruturação simbólica de seu discurso promove o
desarmamento do superego da história oficial na forma de escárnio.
216
Mas esse tom não se caracteriza somente como uma série de
escarnecimentos triviais, pois sob a aparência do deboche, o livro lança novas
luzes sobre os eventos históricos. Vários estudiosos consideraram os textos desta
obra de forma equivocada, quando, como faz Andrade Muricy, afirmam que seus
“romances” eram inconseqüentes.
217
Mas há uma conseqüência nos modos de
poetizar desse livro.
Quanto às formas poéticas utilizadas no livro, História do Brasil trabalha
com duas formas: uma mais “elevada”, o soneto; outra, mais popular, os
romances. O soneto é mais elaborado, com inversões sintáticas e uso elaborado
de figuras, tendo uma “estrutura de demonstração”; já os romances estariam mais
“próximos da oralidade”, com maior grau de redundância e simplicidade e com
uma sintaxe “menos complexa”.
218
No caso de Murilo, porém, estas formas se
juntam. O soneto se apropria da simplicidade dos romances, como será visto.
A forma do livro está carregada das tensões vividas nos anos 30, com a
presença da ambigüidade da forma, entendida como a dualidade poética. Por
215
O Riso. Ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo,
Martins Fontes, 2001. P. 15.
216
O protesto popular muitas vezes se insinua na forma da piada. A estruturação simbólica da
cultura, na forma da sátira, serve para atacar os poderes do superego, pois a piada teria um
caráter agressivo. Há também um caráter sádico do humor. Essa matéria psíquica que se projeta
no outro é a “Forma que o impulso encontra para se manifestar contra o superego.” O escárnio
muriliano contra a História oficial . Devo a Thales Ab´Saber as informões acima.
217
Cf. A. Muricy, op. cit., p. 122-30. Em termos de finalização dos poemas, tem razão o crítico,
mas não em relação às intenções do poeta.
218
João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São
Paulo: Cia das Letras, Secretaria de Estado da Cultura, 1989, p. 42. O autor se refere às
construções poéticas do século XVII, especificamente, a um grupo de textos (sonetos, romances)
atribuídos a Gregório de Matos, “da edição James Amado”. Uso esta diferenciação por achá-la
conveniente ao caso muriliano.
105
exemplo, o uso do soneto quando tematiza o governante “reflete”, na forma, a
cultura erudita. Já nas várias vezes em que cita os revoltosos do povo usa o
romance, forma mais popular da Idade Média. No caso do índio guarani o uso do
soneto coloca tensões culturais mais amplas, como veremos.
A seriedade da forma soneto, quando ligada às classes governantes sérias,
sofrem um tratamento em que o poeta demole, pelo jocoso, a estrutura
envernizada do “sério”. Ocorrem aí as inversões audaciosas e, assim, dentro de
uma forma tradicional considerada séria, opera a desconstrução pela derrisão.
Já a variedade de forma e de medida dos versos, no conjunto do livro
História do Brasil, aponta para uma diversidade de pontos de vista. Observa-se
essas oscilações, por exemplo, nas mudanças de vozes poéticas, variando as
perspectivas do locutor, quando o poeta incorpora a voz do oprimido, ou quando
imita a voz do opressor ou das classes altas, num registro cômico, fazendo o
rebaixamento destes últimos, que é uma tônica de seu trabalho de desmonte da
cultura oficial.
Em História do Brasil o eu-lírico não é exposto abertamente enquanto eu,
mas inserido nas diversas vozes dramatizadas nos poemas. Predomina uma
dispersão sob controle: a liberdade poética é relativa, mas indispensável, pois a
pauta estava dada e há um consentimento com certas constrições da tradição
literária, ainda que subvertendo esta mesma tradição ao debochar, por exemplo,
da forma soneto. Porém, a autonomia da persona se reflete no uso e na finalidade
que dá aos objetos poéticos do passado. No livro, o detalhe biográfico não é uma
constante, ele está presente, mas do lado de fora.
106
A alternância das vozes nos poemas, ora deixando falar as autoridades, ora
passando a voz aos revoltosos, opera uma equalização, ou melhor, uma
desierarquização das vozes. Assim, ao dar a voz a D. João VI, coloca-o ao nível
de um papagaio, numa ação satírica que promove o escracho e a zombaria em
relação aos colonizadores.
A mescla de vozes – promovida por uma espécie de carnavalização -,
também denota a mistura da crítica social operada pelo poeta: todos, em graus
diferenciados, estariam envolvidos nos maus costumes desse universo cultural,
tanto os opressores como os oprimidos. Esta mistura refletiria ainda um gosto pela
indiferenciação de classes incentivada pelos modelos de dominação local.
Então a forma e as vozes estão articuladas no sentido de promover um
ataque às estruturas sociais tanto do passado como do presente, mas o fato de
estar numa posição contrária à metrópole colonial não justifica uma complacência
com a cultura local, pois o poeta percebe o interesse de políticos que, no momento
presente do livro, se “arrancham” na estátua de Tiradentes para deixar tudo como
está. Esse livro, de 1932, reage ao momento da Revolução de 30 e ao Governo
Provisório, que teriam se esquecido de parte daqueles que apoiaram o
movimento
219
.
219
Conforme Boris Fausto, a Revolução de 30 foi uma mudança na correlação de forças, mas na
essência manteve as estruturas sociais funcionando e até mesmo certos “hábitos” políticos da
Oligarquia. Quanto à participação dos operários na Revolução. (Cf. Boris Fausto. “A revolução de
30”. In: Carlos Gulherme Mota (org.). Brasil em perspectiva. 15ª ed. São Paulo: Difel, 1985, p. 227-
255. “Certamente, o proletariado não interveio na revolução como classe, tomada a expressão em
sentido estrito, isto é, como categoria social composta de indivíduos que não só exercem papel
semelhante no processo produtivo, mas têm objetivos definidos de ação, oriundos de uma
consciência comum do papel que desempenham nesse processo e na sociedade. Sua reduzida
vanguarda manteve-se alheia ao movimento e criticou-o em bloco, formulando a única análise, na
época, onde há uma crítica coerente à estrutura econômica e social do país.” Apesar de a
participação dos líderes dos movimentos operários não ter sido muito ostensiva, sinais de que
107
Os pontos acima podem ser melhor verificados pela análise de alguns
poemas em que o poeta se coloca explicitamente quanto aos poderes históricos
do País. Passamos a analisar, então, “Embarque do papagaio real”, um dos mais
divertidos e ao mesmo tempo mais pungentes, onde se demonstra o jogo de
composição de várias vozes e cruzamentos de pontos de vista. O poema é
exemplo que se destaca por sua sátira às personalidades históricas.
EMBARQUE DO PAPAGAIO REAL
220
Je suis pobre, pobre, pobre,
Je m’en vai d’aqui.
Esse tal de Napoleão
Vem tomar conta da minha quinta,
Vem tomar minhas pipas de vinho,
Vem tomar meus p’rus,
Meus frangos,
Minhas galinhas d’Angola.
Tô fraco, tô fraco, tô fraco.
Vou-me embora, vou-me embora,
Vou chupar laranjas,
Vou comer minhas papas,
Vou gozar no Rio de pijama...
Se Carlota minha mulher deixar.
“a massa operária simpatizava com os revolucionários”, como se viu em várias localidades do País.
(Idem, p. 246).
108
O tema do poema está relacionado aos feitos heróicos, e aí entram em
cena os grandes chefes do período, o invasor e o fugitivo.
D. João VI é ridicularizado, ao narrar sua fuga de Portugal durante a
invasão de Napoleão. Pelo título, o governante é colocado no nível de uma ave,
indo para uma situação subalterna logo na saída de Portugal. O colonizador,
representado pelo Rei, é rebaixado para “papagaio real”, real por ser da Família
Real e por ser “realmente” um papagaio. Essa mesma autoridade é ligada a uma
cultura da qual repete expressões, no caso da cultura francesa (“je suis”), mas que
trata o invasor ou o representante maior dessa nação como “esse tal de
Napoleão”. A expressão francesa “je suis” funciona como ironia, pois é
exatamente o francês quem está perseguindo o português. Sabemos que a
França não queria somente pegar “as riquezas” de Portugal (quinta, vinho, p´rus,
frangos, galinhas...), pois havia um plano estratégico maior, o chamado “Bloqueio
Continental” contra a Inglaterra.
Há dois princípios com que o poeta estrutura o texto: a repetição e a
inversão. A repetição busca enfatizar algo e, no caso da poesia cômica, procura
provocar o riso. Ao dar informações detalhadas sobre algo ou alguém provoca o
efeito da amplificação e enfatiza algum traço que poderia ser mais fraco. Ao
mesmo tempo ela chama a atenção do leitor para determinado objeto. O princípio
220
História do Brasil. In: PCP, p. 159.
109
da repetição se dá em vários planos: em relação ao tema, faz variações ao longo
do livro, usando novos tons para a mesma matéria.
221
Na primeira estrofe, se evidencia o aspecto sonoro do poema que se traduz
nos procedimentos do papagaio falante repetindo, no primeiro e último versos da
estrofe, respectivamente, as expressões “je suis pobre” e “tô fraco”. Estes
sintagmas repetidos produzem uma mistura enfática da onomatopéia, figura de
sonoridade que faz parte da “orquestração” do poema, a qual tenta aproximar o
som “às coisas significadas”
222
, o que evidencia a nivelação do Rei com o
papagaio, numa degradação dos poderosos, bem como desmistifica a viagem da
Família Real para o Brasil.
Para além do “efeito imitativo”, lingüisticamente rebuscado, o poeta fabrica
um tipo específico de sonoridade que tem a ver com a “pintura sonora”, isto é, “a
reprodução de sons naturais por meio de sons da fala num contexto em que as
palavras, em si próprias desprovidas de efeitos onomatopaicos, sejam integradas
numa estrutura sonora(...)
223
. Prática esta que lembra a “faculdade mimética”
221
“Tomar séries de acontecimentos e repeti-las em novo tom ou em novo meio, ou invertê-las
conservando ainda um dos seus sentidos, ou misturá-las de tal maneira que seus significados
respectivos interfiram uns nos outros, tudo isso é cômico, dizíamos, porque com isso se consegue
tratar a vida mecanicamente.” Henri Bergson. O Riso. Ensaio sobre a significação da comicidade.
Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 88. Dentro de uma forma
mágica a repetição está ligada à busca de um efeito desejado (cf. Segismundo Spina. Na
madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ática, 1982, p. 24).
222
René Wellek e Austin Warren. Teoria da Literatura. Trad. José Palla e Carmo. 2 ed. Lisboa:
Publicações Europa América, 1971, p.197 e 199. Para os Autores, a “(...) [imitação dos sons tem
atraído muito as atenções, tanto pelo facto de algumas das mais conhecidas passagens
virtuosísticas da poesia visarem esse efeito, como pelo de este problema se encontrar ìntimamente
(sic) ligado à antiga concepção mística segundo a qual o som devia, de qualquer modo,
corresponder às coisas significadas.” (p. 199)
223
Idem, p. 199 e 200.
110
como aquela que exerce certa influência sobre a linguagem, isto é, a onomatopéia
teria “o papel do comportamento imitativo na gênese da linguagem”.
224
Esta criatividade poética se põe a serviço da estratégia de rebaixar a
personagem histórica, e isto é alcançado de modo eficiente e eficaz ao integrar a
voz do Rei a uma repetição do papagaio. Com isso, o uso do aparato verbal
aproxima os dois pólos - o alto e o baixo -, colocando-os no mesmo plano. Como
afirma Bordini, “Os fatos relacionados com o governo, entretanto, têm o espaço
que lhes é cedido ocupado pela sátira impiedosa.”
225
O movimento de rebaixamento repercute na mistura de dois tipos de aves:
o papagaio e a galinha d’Angola. Na primeira estrofe temos no primeiro verso: “Je
suis pobre, pobre, pobre,”; e no último verso: “Tô fraco, tô fraco, tô fraco.” Isto é
enfatizado quando o rei “papagaeia” o francês, com “Je suis...”.
226
Ainda no aspecto sonoro, há uma figura de repetição que se junta à
onomatopéia e se distribui pelos versos: a anáfora. O esquema anafórico é usado
no sintagma verbal “vem tomar” e se desdobra nos versos que começam com
pronomes (“Je suis”, “Meus”, “minhas”), esquema que retorna na segunda estrofe
(“vou-me embora”, vou chupar...”), observando-se, neste caso, uma mudança da
pessoa verbal, juntamente com a mudança do verbo vir para ir (ele vem torna-se
eu vou), o que indica o movimento da invasão e da fuga. A repetição de palavras e
expressões tem a função de realçar certos caracteres de quem se fala, ao mesmo
224
Walter Benjamin. “A doutrina das semelhanças.” In: Magia e técnica, arte e política, p. 110. O
autor desenvolve as teorias místicas da onomatopéia.
225
Maria da Glória Bordini, op. cit.
226
É muito comum a associação de características de homens a tipos de animais, principalmente
em fábulas. Neste caso, o poeta duplica esta identificação. Sobre a repetição de “pobre” visando a
enfatizar a pobreza, cf. Gilberto Mendonça Teles. Drummond. A estilística da repetição. 2ª ed. Rio
de Janeiro: J. Olímpio, 1976, p.48 e 49.
111
tempo que “simboliza certo jogo particular de elementos morais, símbolo por sua
vez de um jogo material.”
227
O ridículo
228
, então, é enfatizado pelas repetições, com a reprodução da
onomatopéia da “voz” do papagaio que não sabe falar, mas só repetir, idéia esta
reforçada pela referência à cantiga infantil. Na repetição de expressões, do tipo:
“je suis pobre, pobre, pobre” ecoam a onomatopéia das aves incorporadas no
texto; já “Vem tomar/ Vem tomar/ Vem tomar” são repetições anafóricas que
enfatizam o ato do adversário que, para o rei, vai pegar tudo.
A intenção presente nos procedimentos de repetição é retomada em outro
princípio poético, muito forte em Murilo, que é o da inversão, o qual busca
promover uma mudança nas estruturas do raciocínio rotineiro. As inversões de
funções das personagens históricas, ao colocar o “mundo às avessas”, são
exemplo de topos poético muito freqüente em Murilo, e que também se encontra
em grande parte da literatura ocidental.
229
Segundo Merquior, a audácia do poeta estaria em inverter o universo,
mostrando o “mundo às avessas, o que denota também a idéia do poeta como
agente muito poderoso a ponto de manifestar um poder de criação que
contrarresta o mundo tal como se coloca.” Aí se percebe o sentido da produção do
227
Idem, p. 53.
228
Ridículo é o que provoca o riso, rebaixando a pessoa ou idéia e condenando ou criticando ao
fazer com que algo seja risível; é um método poderoso de crítica social porque não pode ser
imediatamente contestado ou porque algumas pessoas temem ser alvo de chacota. É uma arma
muito comum aos poetas satíricos. “O humor não é um estado de espírito, mas uma visão de
mundo.” (Wittgenstein apud Elias Thomé Saliba, Raízes do riso. São Paulo: Cia das Letras, 2002,
p. 15.) Cf. Quentin Skinner. Hobbes e a teoria clássica do riso. Trad. Alessando Zir. São Leopoldo,
RS: Editora Unisinos, 2002; Henri Bérgson. O riso. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
229
Sobre a audácia poética - Audatia, adynaton, impossibilia, cf. Augusto Meyer. Camões, o bruxo
e outros estudos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958, p. 69-82.Heinrich Lausberg. Manual de
retórica literaria. Versión española de José Pérez Riesco. Madrid: Editorial Gredos, 1966.
112
poeta que pretende a contínua transformação do real, pois, na visão de Merquior,
“a significação do mundo reside essencialmente em seu constante dinamismo”, e
que esse movimento de mudança poderia estar sob a “vontade criadora” do
artista. Assim, nessa linha surrealista, o imaginário e o real se confundem e se
tocam mutuamente.
230
Trabalha a língua para extrair suas possibilidades e causar um impacto no
pensamento do leitor satisfeito de si. Essa inversão, no entanto, combina a
tradição com a inovação, e busca “refutar uma idéia em termos mais ou menos
jocosos.”
231
A bufonaria de Murilo, com seu “porrete de desordeiro”, persegue a
desestruturação da ordem através da linguagem. Seu procedimento é paródico na
medida em que muda do tom solene para o familiar, numa operação de
transposição de um nível para outro que se liga à intenção de degradação. “O
risível nasceria quando nos apresentem uma coisa, antes respeitada, como
medíocre e vil.’”
232
Essa coisa “respeitada” é exatamente para o poeta a História
do Brasil.
Ao fugir, a autoridade-papagaio também cita o vou-emborismo como
performance das estéticas do Modernismo. Como se tornou improdutivo, visto que
está “de pijama” – o que a “vontade“ de governar e a informalidade no trato da
coisa pública -, vivendo de forma parasitária, o governante parte para a Colônia,
para comer e usufruir da riqueza das novas terras.
230
J. G. Merquior. “Murilo Mendes Ou a poética do visionário”, p. 69-89.
231
Henri Bérgson, op. cit., p. 89.
232
A idéia da comicidade como degradação está em Alexandre Bain, citado por Bergson, op. cit., p.
92 e 93.
113
O poema finaliza com mais uma ironia de um governante aparentemente
forte que precisa da autorização da mulher para fazer as coisas: “Se Carlota
minha mulher deixar”.
Isto é, numa época em que o poder está nas mãos dos
homens, uma mulher que comanda pode soar como ridículo. O verso final
recoloca ainda a fraqueza do Rei, arredondando o poema em seu intuito de
debochar das classes altas. No texto isto se reflete estruturalmente. Antes do
último verso há uma série de enumerações anafóricas de caráter afirmativo que
são colocadas em dúvida pela conjunção “se” do último verso. Isto é, a repetição
afirmativa é contraditada por um elemento “suplementar”, a mulher, o qual
reafirma todo o movimento do poema.
233
O poeta compõe seu texto numa interação ativa com o passado,
atualizando-o de modo a dar-lhe novos significados, bem ao estilo da poética
modernista: o passado não é visto como cristalizado, mas com um olhar dinâmico
da cultura do presente, interferindo na direção do passado e do presente ao
mesmo tempo. Esta relação ativa com a história se manifesta no ataque aos vícios
da vida política nacional, usando vários registros e misturas insólitas (surreal,
literário, histórico).
Nessa série de poemas que desmontam o imaginário histórico da vida
nacional, temos “A pescaria”. Aí o autor continua de forma burlesca fazendo o
depreciamento moral e político dos governantes, agora tematizando um episódio
bastante enfatizado pela historiografia, a Independência, inculcado pelos manuais
233
Há no texto, ainda, mais um elemento de rebaixamento da autoridade. Quando
se reforça a utilização de canções infantis pela ave, promove-se uma infantilização
da personagem que, além de ser comparada à ave, também é colocada ao nível
pueril.
114
de história pátria através de textos e da iconografia. Nesse caso, o autor dialoga
com o “Hino da Independência” (D. Pedro I
234
) e também com a famosa tela
Independência ou Morte!, de Pedro Américo
235
. Nas duas produções a informação
histórica é trabalhada no sentido de montar um cenário heróico da nação. A tela -
objeto de culto por parte de alguns professores incautos – traz elementos
totalmente incompatíveis com os documentos históricos.
236
O poema produz um deslocamento para baixo no tratamento do episódio
consagrado pela memória histórica construído na tela de Pedro Américo com
pomposidade, apontando para uma visão heróica da personagem D. Pedro I.
No texto muriliano a representação histórica é colocada ao rés do chão, ao
deslocar a magnitude do evento para o que há de mais comezinho, uma cólica
intestinal D. Pedro devido ao cuscuz. O deslocamento para as partes baixas do
corpo reflete a intencionalidade do poeta no sentido de depreciar o poder instituído
e uma certa concepção historiográfica. Assim, o rebaixamento histórico tem seu
correspondente nas partes baixas do corpo de D. Pedro.
A dança popular, o maxixe, “vence” o fado português, mostrando a força
cultural do movimento corporal
237
. Ainda que o sorriso e o levantar das pernas das
mulatas possam indicar alegria também apontam para um certa subserviência. “E
234
Doze anos antes de publicar HB, o poeta já tinha informações sobre as personagens históricas
do Brasil. Sob pseudônimo, escreve: “Geralmente, os heróis mais afamados são heróis de
pacotilha; d. Pedro I, por exemplo, foi verdadeiro sultão; só cuidava das mulheres; desconhecia o
seu país, julgando que o Brasil era uma sucursal da África.”Murilo Mendes pseudônimo De
Medinacelli. Jornal A Tarde, de Juiz de Fora, 2 de outubro de 1920, apud Júlio Guimarães, op. cit.,
p. 35.
235
Pertencente ao acervo do Museu Paulista.
236
Sabe-se, por exemplo, que a “Casa do Grito” não existia no período da Independência e que o
Riacho do Ipiranga não se localiza tão perto da Casa como aparece no quadro de Pedro Américo.
237
Maxixe é “primeira dança genuinamente brasileira”. Cf. Enciclopédia da música brasileira apud
Ulisses Infante, op. cit., p. 262.
115
a colônia brasileira/ toma a direção da farra”: estes versos finais do poema
guardam uma visão bastante informal da história, mas também sugerem que a
farra (indício de festa) levam ao descompromisso das classes dirigentes.
Em outro poema-piada da série que trata dos governantes, “O Brasileiro D.
Pedro II ou no Brasil não há pressa”
238
, alguns elementos se repetem, o que
demonstra a coesão do poeta em torno do ataque aos membros da Família Real.
A personagem em foco agora é o Imperador Dom Pedro II, famoso por sua
ilustração francesa.
Como nos dois poemas anteriores, este aborda os modos de governar e de
representar o País. A veia satírica do poeta funciona aí como desmascaramento
poético-político da situação do Brasil na segunda metade do século XIX. Neles, ao
montar um aparato de crítica ao desleixo das classes dominantes nacionais, é
estabelecida, por contraste, uma relação de empatia com os excluídos, ao propor
que essa a moleza não se coaduna com o discurso da Historiografia oficial que
engrandece os grandes e, por ricochete, desqualifica as classes “menores”.
Logo no início se nota a idéia de uma economia estática das classes
dominantes (“vasta sonolência” na fazenda); o Brasil já é chamado de fazenda
logo no primeiro poema do livro.
Esta idéia da falta de projeto para o país é evidenciada na seqüência dos
versos 3 a 8: as lutas pelos ministérios e as guerrilhas. Aliás, os dois movimentos
são colocados no mesmo patamar no uso do mesmo verbo “suceder” invertido nos
versos (“Sucedem-se os ministérios,/ As guerrilhas se sucedem/ Pro povo se
divertir.”) como se ambas servissem para a distração popular. Mas essa inversão,
116
ao colocar um termo na seqüência do outro, denota também a equivalência entre
guerrilha e ministérios. Nesse Enquanto isso a Corte está interessada em outras
modalidades de ações: piquenique, quadrilhas, bailes, denotando um desprezo da
parte da Corte pelas questões públicas.
A seguir (vv. 9 ao 12), com as decisões de intervenções monetárias por
parte da Inglaterra, mostra-se a condescendência e falta de ação governamental,
pois “Todos acham muito bom” esse tipo de interferência. Esse tipo de solução
financeira são comemoradas por “entrudos famosíssimos”. Esses folguedos,
brincadeiras inofensivas e sem maiores conseqüências, junto com os piquenique,
quadrilhas e bailaricos cortesãos, servem como contraponto às “guerrilhas” como
opção de diversão popular.
A vestimenta do imperador (pijama) e o lugar da leitura (rede), na última
estrofe, são um reforço da inatividade inicial do poema, complementada com a
“calma” de meio século sem resolver os graves problemas do Pais. Esta
inoperância também é enfatizada pela indiferença do imperador que, assistindo à
cena política, está mais interessado na cultura francesa do que nas questões
nacionais. O poema encena uma situação em que as tensões sociais da época,
aparentemente branda e calma, aparecem discretamente, dando-se destaque
para a “idade de ouro”, quando na verdade as lutas ministeriais e a Guerra do
Paraguai eram fatos importantes que não interessavam realmente à Corte.
239
238
Cf. Antologia do Anexo I.
239
Luciana Picchio. “Pequena história da História do Brasil de Murilo Mendes”, p. 102.
117
Outro poema desta série, “Soneto do Dia 15”
240
, trata da passagem de
guarda que foi o dia 15 de novembro de 1889. Aí, além do evento, a própria forma
literária é satirizada, pois D. Pedro II está escrevendo um soneto dentro do soneto
em heptassílabos. O início do texto sugere que a indiferença do Imperador quanto
ao momento vivido. “Seu Deodoro tem gente/ Mas já sai agora mesmo.”, pois ele
tem “sangue frio”. No primeiro terceto, pede para que cuidem de seus “moleques”
(referência a escravos e a protegidos do Imperador). E o gesto maior do
Imperador: escreve um soneto. “O papel está acabando,/ Chego já no último
verso, / Já lhe cedo o meu lugar.”
Nesse poema se vêem índices da referência historiográfica da época, por
exemplo, a de um Rocha Pombo, por exemplo, no dois primeiros versos do
segundo quarteto, “Cedo o império brasileiro/ Ao dito das circunstâncias” e no
último verso, para arrematar o soneto, repete “Já lhe cedo o meu lugar”.
241
A título de comparação, vejamos um outro texto, agora de Poemas, em que
o poeta já tinha ridicularizado a passagem do Império para a República. O poema
“Quinze de novembro”, agora retomado em forma de soneto, o que revela
coerência e continuidade de um livro para outro, o que denota que há um diálogo
entre os dois livros.
242
A verve satírica da vida nacional já estava presente nesse
poema que pode servir de mote para o livro História do Brasil.
240
Cf. Antologia do Anexo I.
241
Aí há uma referência explícita da História do Brasil, de Rocha Pombo. A coincidência é notória
e, mesmo que não tivesse lido o livro referido, há semelhança com o que registra o historiador
sobre o episódio da passagem do Império para a República: “O imperador, cedendo à injunção do
destino, que o vinha encontrar já no fim da vida e enfermo, embarcou para a Europa com toda a
sua família.” (Op. cit., p. 288).
242
No aspecto da continuidade dos temas de um livro para outro pode-se observar um fio condutor
na obra do poeta, uma linha crítica constante.
118
O poema “Quinze de novembro”, já publicado em 1928 na Revista de
Antropofagia, sob o título de “República”, serve para exemplificar o modo como os
eventos políticos são reformulados poeticamente:
QUINZE DE NOVEMBRO
Deodoro todo nos trinques
bate na porta de Dão Pedro Segundo.
_ Seu imperadô, dê o fora.
que nós queremos tomar conta desta bugiganga.
O imperador bocejando responde
“Pois não meus filhos não se vexem
me deixem calçar as chinelas
podem entrar à vontade:
só peço que não bulam nas obras completas de Vítor Hugo”.
No diálogo do Marechal com o Imperador fica a impressão de que a
educação do segundo, valorizando o “livro” é superior à do primeiro, que usa
inclusive de aspereza (“dê o fora”). Evidente que Murilo não era pró-império, no
entanto, a substituição de um governo centralizado por outro poderia não mudar
em nada o cenário político, o que ecoa retrospectivamente a rejeição do poeta em
relação à política tradicional. Isso mostra a posição de Murilo quanto ao trabalho
dos políticos, pois constata-se em sua obra a visão de quem coloca sob suspeita o
119
trabalho do político tradicional. Por exemplo, um aforismo do poeta registra essa
posição num contexto mais geral: “A política é a arte de errar.”
243
Também a referência à cultura francesa (“não bulam nas obras completas
de Vítor Hugo”) denota o apego de uma prática oficial em valorizar o que vinha da
Europa, onde “não bulir” pode significar não mudar a cultura praticada pelas
velhas elites das letras do século XIX.
No primeiro poema, da nossa seqüência, um soneto, a única voz é a do
Imperador, na forma do monólogo; no segundo, em forma livre, ocorre uma
dramatização pelo diálogo das personagens.
3.3. O índio de fraque no soneto “Marcha final do guarani”
Uma das propostas básicas desse livro é desmontar os imaginários de
fundação do Brasil. O livro não é só conjuntural como o próprio poeta gostaria,
mas estrutural, isto é, remexe em estruturas profundas do ethos nacional, como
podemos observar ao longo do “percurso histórico” traçado.
O livro é um forte instrumento de desfossilização do passado cultural e
político e, ao promover essa operação, o autor atua com um olhar atento e
inovador do intelectual que não é tradicional ao “aproveitar a sabedoria popular em
suas obras”.
244
No caso, o saber popular está relacionado a uma forma literária
243
MM. O Discípulo de Emaús. Aforismo 61. In: PCP, p. 822. Não acreditamos com isso numa
indiferença em seu trabalho artístico, mas sim um alto grau de participação e de posicionamento
em relação às práticas da cultura nacional.
244
Marilena de Souza Chauí. Seminários. O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1983, p. 15 e 16.
120
(“romance”) composta em redondilhas maiores. O modo descontraído com que
trata o tema também aponta para um saber oriundo das camadas populares.
O que entra em jogo no livro é a representação do oprimido que toma a
palavra. Sua poesia pode não se pretender popular, mas se torna popular no
sentido de dar voz aos que não tinham como se expressar. O fato de o poeta não
se declarar popular não contradiz suas práticas poéticas.
Vejamos o poema:
MARCHA FINAL DO GUARANI
245
Ninguém mais vive quieto na terra.
Outros deuses povoam o país
Ando agora vestido de fraque,
Pus no prego a gentil açoiaba.
O tacape enferruja num canto,
A bengala não largo da mão.
Sons agudos de inúbia não ouço,
Na vitrola só tangos escuto.
Já não tarda o fim desta raça.
245
História do Brasil. In: PCP, p. 183. Mantenho a disposição visual do soneto da página citada.
121
Manitôs abandonam as tabas.
Meus irmãos, azulemos pra Europa:
O inimigo já chega bufando,
Na maloca já fogo tocaram...
Ó desgraça! ó ruína! ó Rondon!”
Em História do Brasil, as soluções imaginárias do poeta, aparentemente no
nível superficial da zombaria, se transformam numa crítica radical dos modos de
se representar os eventos e personagens históricos do País. A simpatia do poeta
pelos derrotados da história se dá em vários poemas.
246
No poema “Marcha final do guarani” patenteia-se a identificação do autor
com os “esquecidos” da história, mas de forma que, ao abordar o habitante da
terra antes do descobrimento - o indígena -, não o mostre de modo idealizado e
sim pela via irônica própria dos modernistas. Observe-se que o tema indigenista
não é um dos prediletos do poeta, havendo pouca referência aos índios em sua
obra.
A tensão histórica é atualizada pelo poeta através da representação da
decadência da cultura nativa, representação esta realizada com base em diversas
produções culturais (poemas, romances, música e documentos históricos),
246
Em carta, de 27 de dezembro de 1930, a Alceu Amoroso Lima, MM afirma: “Questão social
operaria política me interessa bastante...”. (Acervo Arquivo Tristão de Athayde – C.A.A.L.L.). Em
outra carta o poeta também critica a postura de alguns escritores, da Revista Ordem, que
criticavam grosseiramente o Comunismo da época, sem ponderar os aspectos positivos do
mesmo.
122
cruzadas num único poema. Isso denota a releitura produtiva feita pelo poeta dos
modos de figurar um evento histórico de longa duração.
No poema estabelece-se um jogo de paródia satírica, com fortes
referências a Gonçalves Dias (“O Canto do Piaga”), do qual produz paródia em
“tom operístico”
247
, ao mesmo tempo que cita O Guarani, de José de Alencar,
além da referência à música de Carlos Gomes. Aí o poeta retoma uma
literatura romântica aparentemente sintonizada com um imaginário destituído
de contradições históricas que, no entanto, constrói duas visões distintas sobre
o processo de colonização. Primeiro, a visão do massacre produzido pelas
invasões no poema de Gonçalves Dias, visão esta pouco e muito favorável aos
primeiros habitantes da terra brasilis. Depois, a da assimilação do indígena
pela cultura do colonizador presente em José de Alencar d’O Guarani, o que
denota, no poeta modernista, um diálogo intencional com os dois modos de
representar a história do país.
248
Já o termo inicial no título, marcha, denota uma ação militar que,
paradoxalmente, anuncia uma derrota, pois é “final”, o que já indica o tom
irônico do poema. O termo marcha também está associado à música que cita o
“canto” do poeta romântico, mas também remete à Marcha de Carlos Gomes e
à Marchinha como estilo musical.
247
Maria da Glória Bordini, op. cit.
248
Em Poliedro (Setor a palavra circular, “Os índios”), o poeta faz algumas observações sobre os
índios que importa registrar aqui. “Nunca tive ocasião de ver um índio, um índio brasileiro de carne
e osso. Até agora só conheci alguns índios de papel e tinta, construídos por José de Alencar,
Gonçalves Dias, Mário de Andrade e outros.” Sua visão sobre os nativos é altamente positiva:
“Como todos os povos que atingiram um alto nível de civilização, eles não usavam trabalhar.“ In:
PCP, p. 1019.
123
O gesto triunfante de um a marcha dá lugar ao evento da destruição de
povos colonizados. Não se opera aí, como no caso de Alencar, com a
idealização do indígena. Esta postura “realística” faz parte de uma estratégia
geral do livro, pois não se idealiza o marginalizado que também não é
totalmente vencido. Ao passar a voz lírica ao índio, o poeta também se inclui
nesse procedimento, disfarçando-se nela, o que aponta para a empatia com os
oprimidos já mencionada.
Os efeitos da catástrofe são anunciados de forma genérica e de modo
solene logo no primeiro verso da primeira estrofe: “Ninguém mais vive quieto na
terra.” Instaura-se uma inquietação nos habitantes da terra.
249
Na seqüência, o
poema indica a causa da perturbação e as mudanças operadas: primeiro pela
entrada de nova fé como se deduz do segundo verso: “Outros deuses povoam o
país”. Os “deuses”, por metonímia, se referem aos homens com armas de fogo,
evidenciando-se uma releitura do Arcadismo, com alusão específica ao Caramuru
de Santa Rita Durão. Indiretamente, estas divindades também indicam práticas
politeístas em contraposição ao monoteísmo cristão.
No terceiro verso é apontada a transformação no modo de trajar: o fraque
substitui as vestimentas ou adereços corporais próprios dos povos da terra. E no
último verso dessa estrofe o dado econômico comparece (“Pus no prego a gentil
açoiaba.”). Estabelece-se um jogo semântico aí presente quando se afirma que o
índio penhora sua açoiaba, termo que significa “manto ou turbante de penas
249
Aí evidencia-se uma idealização da forma de vida quieta do nativo, pois a disputa por território
sempre foi uma prática comum.
124
usado pelos índios na suas cerimônias”
250
. Seu manto é duplamente gentil, tanto
no sentido de agradável como no de pertencente aos povos “gentios”, não
cristãos. Revela-se a perda da cultura indígena.
A segunda estrofe inicia com a descrição da arma (“tacape”) inutilizada,
pois já não tem mais função, sendo substituída pela bengala, símbolo da velhice e
da dificuldade de ação, mas também ao ócio, nobreza, arrogância de outra
cultura
251
. O tacape como instrumento de uma cultura ativa e viril se transforma
em algo que só serve de apoio. Para reiterar a idéia de debilidade, a inúbia,
instrumento de guerra, perde sua função. O uso de vocábulos da língua tupi-
guarani e de termos franceses coloca em cena as duas culturas num mesmo
contexto poético. Além disso, o uso tango como elemento trágico, reforça a idéia
de tragédia do Guarani
252
.
Na terceira estrofe, o anúncio do fim de um povo pela retirada de seus
deuses que fogem (“Manitôs abandonam as tabas”). Em oposição ao Anhangá,
o Manitô é espírito da energia boa, e está deixando a tribo, o que revela como
em “O Canto do Piaga”, a desesperança dos nativos em relação ao que
aconteceria.
Ao propor a fuga para a Europa, o poeta muda a forma verbal de
primeira pessoa singular (“ando”) para a primeira pessoa do plural
250
Luciana Picchio. “Pequena história da História do Brasil de Murilo Mendes”, p.107. Cf. Teodoro
Sampaio, O tupi na geografia nacional. 5 ed. São Paulo: Editora Nacional; Brasília/DF, INL, 1987,
p.191. Aí o termo “Açoiaba” significa cobertura, teto, tampa, anteparo.
251
Cf. Antonio Dimas. “Gregório de Matos Guerra ao português”. In: Roberto Schwarz (org.). Os
pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 13-20. O autor faz análise de
poema de Gregório de Matos, na qual observa a substituição da garlopa pela bengala. O verso de
MM ressoaria o seguinte verso de Gregório de Matos: “Bengala hoje na mão, ontem garlopa”.
125
(“azulemos”), desdobrando eu para o nós, como numa invocação coletivo, não
mais para a guerra, mas para a fuga para outro espaço. Ironicamente, o índio
busca refúgio exatamente na Europa, numa operação de “integração” com o
civilizador e, nesse sentido, o poema retoma o romance O Guarani, no qual a
personagem assimilada os valores do branco ao se deixar batizar com outro
nome, por exemplo. O movimento de ida aos europeus indicia a opção do
colonizado pela cultura européia.
Mas isso também indica o procedimento da atualização, presente no
livro, através do qual o poeta remete ao seu próprio tempo histórico. A elite
cultural brasileira de fin-de-siècle e do início do séc. XX elegeu a França como
ponto de referência, o que revela a crítica do poeta à opção pela cultura
européia. A ênfase no papel da Europa como matriz pode ser interpretada no
sentido de que não daria para simplesmente recusar ou anular o papel do
“Velho” Continente como referência para a cultura brasileira, pois, como vimos,
o próprio Murilo considerava que a cultura brasileira deveria ser uma extensão
da européia.
O “ando agora” do primeiro quarteto indica o momento tanto o momento da
enunciação do poema, momento esse que é resultado de uma operação anterior
da colonização – o advérbio “agora” é usado para mostrar que antes não vestia o
fraque. Esse advérbio é redistribuído nas duas últimas estrofes pelo uso de “já” (o
final da raça, já chega o inimigo, já tocaram fogo), indicando o ato realizado por
completo. A integração do nativo simboliza a assimilação da cultura nativa pela
252
Note-se que a referência ao tango já tinha sido feita por M. Bandeira em “Pneumotórax”, de
126
civilização branca e cristã, mas, no texto muriliano, o que se dá é uma integração
irônica diferentemente da que ocorre, por exemplo, em O Guarani, mais “feliz” e
aceita como uma “doce escravidão” pelo autor do romance, como o preço da
construção conflituosa da nacionalidade.
253
O último terceto (“O inimigo já chega bufando,/ Na maloca já fogo
tocaram.../ Ó desgraça! ó ruína! ó Rondon!”), mostra os efeitos da chegada do
colonizador (inimigo) que, ao incendiar a maloca, sintetiza, pela imagem do
fogo, o massacre da cultura indígena no Brasil. O inimigo vem de outro espaço,
pois “chega” e incendeia a maloca.
254
O segundo verso do primeiro terceto (“Manitôs abandonam a taba”) e o
último do soneto retomam os dois últimos versos do “Canto do Piaga” de
Gonçalves Dias (“Manitôs já fugiram da Taba / Ó desgraça, ó ruína!, ó Tupã!“),
substituindo o verbo fugir por abandonar e Tupã por Rondon, de novo num
processo de atualização do elementos.
A invocação, no último verso, ao protetor dos índios (“ó Rondon!”) apela
para o trabalho que o Marechal desenvolvia junto aos nativos. O termo Rondon,
quando decomposto em ron - don, sugere ainda o som de tambores indígenas,
Libertinagem (1930)
253
Cf. Alfredo Bosi. Dialética da colonização. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.
179. Aí afirma o crítico: “O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou
em um regime de combinação com a franca apologia do colonizador. Essa conciliação, dada como
espontânea por Alencar, viola abertamente a história da ocupação portuguesa no primeiro século
(é só ler a crônica da maioria das capitanias para saber o que aconteceu), toca o inverossímil no
caso de Peri, enfim pesadamente ideológica como interpretação do processo colonial.”. “Doce
escravidão” é expressão de Machado de Assis, em artigo sobre Iracema, citado por Bosi na
mesma obra, p. 179.
254
Renato Ortiz. “O guarani: mito de fundação da brasilidade”. In: Românticos e folcloristas. Cultura
popular. São Paulo: Olho d´Água, s.d. “Nas sociedades primitivas, a concepção do mal es
sempre associada a algo que vem de ‘fora’; ele é externo e ameaça a ordem social quando não é
controlado.” (p. 94).
127
não mais chamando para a guerra ou para festa, mas evoca indiretamente a
tristeza pela perda de uma cultura,
255
perda esta que já está presente no próprio
título do poema “Marcha final do Guarani”, em que o termo “final” – significando
última -, indica a decadência de uma cultura que, devido ao processo de
colonização destrutiva implantada no Brasil, foi soterrada.
Estes versos eneassílabos, com as tônicas na terceira e sexta sílabas,
ressoam práticas poéticas de Gonçalves Dias, por exemplo “I-Juca-Pirama”, como
aponta Manuel Bandeira, o que reforça a releitura paródica do texto indianista.
256
O movimento dos versos, embalado em duas breves e uma longa,
configura um ritmo anapéstico que faz ecoar no poema o tom marcial. O ritmo
de guerra, porém, funciona ironicamente, a partir do momento em que a
derrota ou a assimilação do indígena seria o tema central do texto.
257
A escolha deste ritmo no poema, então, remete a uma tradição literária que
optou pela imagem de índio como símbolo nacional, mas esta escolha incide ainda
255
A idéia de repetição em duplicação está em Gilberto Mendonça Teles. Drummond. A estilística
da repetição. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. Teles aborda o poema “Pranto geral dos
índios”, de Drummond, sobre o falecimento do Marechal Cândido Rondon que tinha se dedicado “à
recuperação social dos indígenas.”. No caso, a repetição Ron-don sugere para o Autor “uma
atmosfera de consternação geral, sugerindo o ritmo dos tambores indígenas.”. (p. 105).
256
Manuel Bandeira. Seleta em prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. Bandeira cita a
estrofe do poema: “Tu choraste em presença da morte?/ Na presença de estanhos choraste?/Não
descende o cobarde do forte:/ Pois choraste, meu filho não és!” Cf. também o texto iluminador de
Alfredo Bosi. “O mito sacrificial: o indiainismo de Alencar”. In: Dialética da colonização, p. 184-187.
Nas páginas citadas, diz o autor: “Nos Primeiros Cantos do maranhense [G. Dias] lateja a
consciência do destino atroz que aguardava as tribos tupis quando se pôs em marcha a conquista
européia. O conflito das civilizações é trabalhado pelo poeta na sua dimensão de tragédia. Poemas
fortes como O Canto do piaga e Deprecação são agouros do massacre que dizimaria o selvagem
mal descessem os brancos de suas caravelas.”
257
O termo anapesto deriva do verbo grego anapaiô que significa “dou golpes à toa”, o que ressoa
no poema a impossibilidade de o indígena conseguir o intento de defender sua cultura, ou de uma
luta inglória contra o opressor. Cf. Rodrigo Fontinha, Novo Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa. Revisto por Joaquim Ferreira. Porto/Portugal: Editorial Domingos Barreira, s/d., p.140.
128
na referência ao índio “cobarde” de “I-Juca-Pirama” - no trecho citado por Bandeira
-, que não teria conseguido resistir aos outros povos indígenas.
O gesto do guarani do poema, assimilado pela cultura ocidental-européia,
ao vestir o fraque tem uma correspondência no trabalho literário de vestir o
assunto com a roupagem do soneto, um dos paradigmas literários da cultura
parnasiana. Isto é, ao compor na forma soneto, o poeta, como o índio em sua
mudança de roupa, também imita, ironicamente, a cultura européia.
Amarram-se, assim, as duas vestimentas, a roupa do branco no índio e a
linguagem poética padrão. Aparecendo duas vezes em História do Brasil, o
soneto, como forma fixa priorizada pela tradição literária, se faz pouco presente
nas práticas modernistas da primeira safra. Apesar de esta espécie poética, em
geral, ter uma estrutura complexa, este em particular trabalha com uma estrutura
sintática simples e com métrica que se destaca do tradicional decassílabo. O que
mostra um alinhamento relativo à perspectiva da construção literária tradicional.
Por exemplo, a partir do segundo verso da segunda estrofe, a inversão sintática –
hipérbato simples – denota uma prática muito associada ao Parnasianismo, mas
apesar da construção sintática simples, a inversão pode ganhar um valor que está
sugerido ao longo do poema: a inversão cultural do índio.
Vale aqui uma pequena comparação entre Murilo e outro autor do primeiro
modernismo, Oswald de Andrade. O índio de Murilo é diferente, por exemplo, do
índio do escritor paulista que seria uma atualização da figura romântica do nativo
que fundamentaria a idéia de nação, não mais como figura subserviente, mas
resistente à dominação cultural e política de uma Europa expansionista. Como
assinala Vera Chalmer, “O índio histórico, derrotado pela expansão do capital
129
comercial, pelo genocídio e pela escravidão, é alçado a resíduo cultural de
resistência ao capital industrial moderno, nos anos vinte e trinta.”
258
O índio de Murilo não se constituiria como figura de resistência a uma
cultura dominante, mas seria assimilado dialeticamente pela cultura Ocidental.
Como o de Oswald, o “índio de papel” no poema muriliano não seria mais o ser
exótico, mas, a seu modo, teria digerido como um antropófago a forma literária e,
através dela, sobrevivido literariamente. A luta desse índio, menos explícita que a
do índio de Oswald, se dá dentro dos limites culturais impostos pelo colonizador.
Não seria uma “descida antropofágica” à procura das “raízes étnicas e
culturais”
259
, mas um diálogo com a cultura branca que, ambiguamente, também
dá sustentação à formação cultural brasileira.
Ao desvelar o processo civilizatório instalado no Brasil, a produção
muriliana se aproxima da do Oswald “primitivista” de Pau Brasil e do Manifesto
Antropófago, no que se refere à subversão da perspectiva do europeu sobre o
País,
260
mas se distingue do paulista, como se vê no soneto estudado, tanto no
que se refere à imagem do índio como na forma de composição.
Assim, quanto ao aspecto da expressão, no caso do soneto de Murilo o
combate é feito internamente ao poema, ao contrário de Oswald de Andrade que
fez de sua “poesia-minuto” a arma de combate externa às estruturas arcaicas da
258
Vera Maria Chalmers. “O outro é um: o diagnóstico antropófago da cultura brasileira.” In: Ligia
Chiappini e Maria Stella Besciani (org.), Literatura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São
Paulo: Cortez, 2002, p. 110. Em Poliedro (Setor a palavra circular, “Os índios”), afirma o poeta
mineiro: “Nunca aceitei a teoria da existência de índios antropófagos: eles não eram nazistas.
Perdão, Montaigne.” In: PCP, p. 1019.
259
Vera Chalmers, op. supra cit., p. 108
260
Idem, p. 107.
130
sociedade da época, isto é, a partir de um ponto de vista “externo” às formas
tradicionais.
261
Neste caso, a memória étnica é recobrada pelo viés da civilização, mas
dentro de uma “forma ambígua”. Na situação de aporia final, em que há uma
perda cultural, o poeta compensa pela atuação dentro da cultura incorporada.
Assim, a opção pelo soneto, indica ainda outras possibilidades. Na forma do
soneto, se dramatiza o lado trágico da colonização, mas, como aponta Antonio
Candido, numa “dialética do localismo e do cosmopolitismo”.
262
Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem
realmente consistido numa integração progressiva de experiência
literária e espiritual, por meio da tensão entre o dado local (que se
apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da
tradição européia (que se apresentam como forma da expressão).
263
O tom satírico, característico do livro, corrói, por dentro da forma, num
movimento dialético, os modelos artísticos mais tradicionais, ao mesmo tempo
que, ao usá-los, realiza a sua preservação. Neste poema, ao atuar por dentro da
forma tradicional, o autor debate de modo tenso com esta forma de escrita. Assim,
261
Sobre a poesia de Oswald de Andrade, cf. Francisco Foot Hardman. “Algumas fantasias do
Brasil: o modernismo paulista e a nova naturalidade da nação”. In: Ria Lemaire e Edgar Salvadori
de Decca (org.), op. cit., p. 317-332. Isto não significa que o poeta paulista não tenha dado
importância às formas tradicionais fixas, como é o caso de “Canto de regresso à pátria”, composto
em heptassílabos, mas isso não se constitui numa constante de seu livro Poesia Pau-Brasil.
262
Antonio Candido. “Literatura e cultura de 1900 a 1945”. In: Literatura e sociedade. ed. São
Paulo: T. A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000, p. 101-126. “Se fosse possível estabelecer uma lei de
evolução da nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do
localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos.”
263
Idem, p. 101.
131
a roupagem da linguagem – “a forma de expressão” - se espelha na formalidade
da linguagem tradicional, incorporando o seu conteúdo, a sua “substância”.
Enfim, o “olho armado” de Murilo, com sua dissonância paralela ao
modernismo, demonstra uma tensão entre forma tradicional e os efeitos de um
processo cultural arrasador. Produz-se, assim, um “ruído”, atuando ironicamente
por dentro da forma ao apontar que, no processo civilizador, houve um movimento
de vitória e derrota parciais, visto que o oprimido usa de uma astúcia de
sobrevivência ao se apropriar das “armas” culturais do colonizador.
O poema pode ser considerado uma síntese do tratamento que o poeta
concede aos revoltosos em outros poemas do livro, alguns dos quais anexamos
ao final do trabalho.
264
264
Cf. Antologia do Anexo I, os poemas “Cantiga dos Palmares”, “Milagre de Antonio Conselheiro”,
“O chicote de João Cândido”.
132
4. MEMÓRIA CONTEMPLATIVA DA HISTÓRIA
Toda história é remorso.”
265
(Drummond)
4.1. Revisão poética em novo contexto
Há uma forte diferença de perspectiva e de tom entre História do Brasil
(1932), e Contemplação de Ouro Preto (1954, e também uma mudança de
enfoque, pois, se no primeiro a história do País é satirizada, no segundo a
memória histórica e literária entra em cena. O tom muda, mas não o ethos da obra
do poeta, já que a oscilação de tom implica o abandono de uma visão aguçada da
história, ainda que matizada pelo ponto de vista da religiosidade.
266
Esta guinada ocorrida de História para Contemplação é, em grande parte,
conseqüência da conversão religiosa do poeta, mas se deve também aos contatos
com a cultura portuguesa através do historiador Jaime Cortesão, com cuja filha se
casa em 1947. Nesse período o poeta viaja a Ouro Preto com o historiador que
teria definido a cidade de Minas como “a mais portuguesa das cidades”. A escrita
265
Carlos Drummond de Andrade. “Museu da Inconfidência”. Claro Enigma. Selo de Minas. In:
Obra completa. Volume único. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967, p. 257.
266
Quanto aos termos, perspectiva, tom, pathos e ethos, cf. Alfredo Bosi. “A interpretação da obra
literária”. In: Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades, 2003. “O termo tom, que na linguagem da
música adquiriu um sentido preciso, e até matemático (tons maiores e menores), designa em
literatura as modaliddes afetivas da expressão.”(p. 468-9). Observe-se que a dualidade de tons – o
satírico e o elegíaco - perpassa a trajetória literária de Murilo Mendes. O social aparece em seus
primeiros livros pela sátira, enquanto o religioso se representa pelo tom sério. Ainda quanto ao
ethos, Jérôme Meizoz. “Ethos et posture d´auteur”. In: Études de Lettres, Revue de la Faculté des
lettres de l´Université de Lausanne. Sciences du texte et analyse de discours. Enjeux d´une
interdisciplinarité. 1-2-2005. Edité par Jen-Michel Adam et Ute Heidmann. “...le ton est un parti pris
unique et unifiant, une manière d´investir le discours d´une émotion centrale du sujet capable de
colorer l´ensemble de ses énoncés.” (p. 186). (“... o tom é um parti pris único e unificador, uma
133
do livro sofre o influxo de intensas conversas com o historiador português,
conhecedor da cultura ibérica, o que teria levado o poeta a repensar sua visão
sobre a colonização, antes vista de forma ridícula.
267
Isso evidencia outras percepções da cultura brasileira na interação poética
com a Europa, o que se dá através da revalorização do legado português bem
como de outras formações discursivas mais antigas que embasarão
Contemplação. Se nos inícios de sua produção as conexões culturais com a
Europa se deram, em boa parte, pelo Surrealismo, nesse outro momento, sem
abandonar de vez as atitudes surrealistas, o poeta se volta para as formas
tradicionais portuguesas e ibéricas.
268
A valorização da contribuição dos portugueses para a cultura brasileira se
que se relacionava com o contexto histórico, pois, segundo Leandro Konder, havia
maneira de investir o discurso de uma emão central do sujeito capaz de dar cor ao conjunto de
seus enunciados.”(tradução nossa)
267
Murilo Mendes. Retratos-Relâmpagos. “Jaime Cortesão”. In PCP, p. 1289; cf. Murilo de Moura.
Murilo Mendes, p. 139. A suposição de que o poeta aprendia com as visitas aos lugares ganha
peso com estas informações. Suas conversas com o sogro “giravam em torno do folclore ou do
linguajar brasileiro.” (In: PCP, p. 1287). Com certeza esse contato lhe deu subsídios para as
questões históricas. Sobre Cortesão, cf. site: <http://www.unicamp.br/~franchet/cortes.htm>. Note-
se ainda que várias obras de cunho histórico foram publicadas neste período, principalmente
romances históricos (Cf. Tatiana Batista Alves, em “Literatura e História como reinvenções do
passado.” Disponível em <http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/orientando06.htm>.
Acesso em: 30 out. 2005). Além das questões históricas brasileiras, o poeta estava bem informado
sobre Ouro Preto que estudou em livros de Lourival Machado, onde aparecem grifadas passagens
sobre igrejas da cidade (Cf. Francis Paulina, op. cit., p. 76).
268
Interessa registrar aqui que também um outro poeta católico, Jorge de Lima, em Invenção de
Orfeu, de 1952, estava retornando aos portugueses (Camões, por exemplo) depois de tê-los
renegado. Cf. Murilo Mendes. “Os trabalhos do poeta”. In: Invenção de Orfeu, p. 429. Ítalo Moriconi
resume bem esse momento do poeta: “Cabe também assinalar que a presença do histórico na
poesia e prosa de Murilo tende a mudar de figura à medida que a relação superestrutural com o
discurso bíblico, sem nunca desaparecer, vai diminuindo de importância frente à relação com o
discurso da alta cultura, já na fase européia, e mesmo antes, em Contemplação de Ouro Preto,
considerando-se inclusive que, para Murilo, Ouro Preto é cifra de um viés lusitano que constitui a
interface entre brasilidade e ocidentalidade mediterrânea.” (Grifo nosso). (“Murilo Mendes e o
cânone.” In: Gilvan Procópio Ribeiro e José Alberto Pinho Neves (org.). Murilo Mendes: o
visionário. Juiz de Fora: EDUFJF, 1997, p. 69.
134
nos anos cinqüenta uma construção histórica francamente favorável a respeito das
origens das lideranças do País, pela qual, por exemplo, os primeiros portugueses
não seriam mais representados como degredados, mas como superiores
culturalmente e como se tivessem índole fraternal em relação ao colonizado.
269
Em certo sentido, em Contemplação, a negação do que tinha escrito em
História do Brasil sobre os colonizadores reflete uma reação ao contexto dos anos
1950, adotando novas posturas em relação ao mesmo objeto.
270
Na nova
conjuntura histórica em que se colocava o dilema entre uma cultura mais brasileira
ou mais americanizada, o poeta toma partido de uma “ancestralidade” cultural
européia, o que o alinhava, em certo sentido, ao ideário da tendência
nacionalista.
271
Vale ressaltar que a década de 50 foi um momento de transformações
aceleradas, contrastando com o final da década anterior e os discursos de então
passaram a se apoiar nas transformações visíveis. A apreensão diante da “guerra
quente” deixava no ar a expectativa de um grande conflito mundial que foi sendo
substituído pela política de distensão de Krushov a partir da morte de Stalin em
1953.
272
269
Leandro Konder. “História dos intelectuais nos anos cinqüenta”. In: Marcos Cezar de Freitas.
(org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 360-1. Esta
representação tem muito a ver com os estudos de um Gilberto Freire que já tinha proposto a
confraternização das três raças no Brasil.
270
Quanto ao papel do intelectual Leandro Konder aponta: “Quem reage diante dos movimentos
sociais, diante dos conflitos políticos, adota sempre, implicita ou explicitamente, normas e
princípios que fundamentam a decisão a respeito do que deve ser alterado e do que deve ser
conservado. Ou às vezes, a respeito do que deve ser destruído e do que deve ser preservado. Ou,
ainda, a respeito do que deve ser eternizado e do que precisa ser inventado”. Leandro Konder.
“História dos intelectuais nos anos cinqüenta”, p. 358.
271
A aversão de MM à invasão cultural americana pode ser sintetizada na frase de O discípulo de
Emaús: “A vulgaridade ao alcance de todos – eis a fórmula da civilização norte-
americana.”Aforismo 178. In: PCP, p. 832.
272
Leandro konder, op. cit., p. 355-56.
135
Segundo Boris Fausto, em 1951, Getúlio Vargas volta ao poder pelo voto
popular e isso redimensiona o valor dessa personalidade histórica. A sua queda
em 1945 foi resultado de uma densa trama política e, além de estar em sintonia
com o desejo da intelectualidade crítica aos seus desmandos, foi apressada por
grupos apoiados pelo governo norte-americano. No Brasil, há um olhar que
começa a se voltar para a indústria multinacional e o aparelhamento tecnológico
da vida.
273
4.2. A obra na produção do autor
No interregno das duas obras, a produção do autor de 1935 a 1947 não
explicita as questões relativas ao Brasil, pois nesse momento passa a abordar
temas universais em obras como Tempo e eternidade (1935), Poesia em pânico
(1937), O Visionário (1941) As Metamorfoses, (1944), Mundo enigma (1945)
Poesia Liberdade (1947). Aí se nota a Segunda Guerra e seus impactos globais,
questão que requer grande envolvimento subjetivo, mas também essa poética
está eivada de erotismo e religiosidade temas que o poeta enfrenta. Mas a
abrangência dos temas não significa que haja uma recusa da história, pois aí o
273
As idéias aqui resumidas se encontram em Boris Fausto. História concisa do Brasil. São Paulo:
Imprensa Oficial; Edusp, 2002, p. 224-5. Segundo Fausto, havia, então, duas correntes
predominantes no contexto político-econômico brasileiro. A nacionalista, a favor da
industrialização, se posicionava contra a política de aproximação com os EUA e contra o capital
estrangeiro, e a não-nacionalista, que se importava menos com a industrialização do país e
simpatizava com o anti-comunismo norte-americano (no contexto da Guerra da Coréia), e a favor
da entrada regulada do capital estrangeiro.
136
poeta assume um “aspecto cada vez mais concreto”, como é o caso de As
metamorfoses.
274
O aprofundamento histórico será intensificado em Contemplação. Aí, o
autor mergulha na memória histórica e nos subterrâneos do Brasil, revendo o
passado mineiro através de seus fantasmas ressurgentes.
275
O tom humorístico
da primeira fase desliza para a elegia nostálgica da segunda, numa linguagem que
assimila o tom grave. Comentando as obras acima mencionadas, Merquior
confirma a direção tomada pelo poeta e mostra a sintonia do autor católico com as
questões de seu tempo. Afirma o autor:
O estilo muriliano assume depois da Guerra uma direção
classicizante, análoga à que conheceram o Jorge de Lima de
Invenção de Orfeu e o Drummond de Claro Enigma. (...) Filtrando a
dicção 'mesclada' (o falar de temas ultragraves em linguagem
'baixa') e certo tipo mais frontal de humor lírico, esse estilo
classicizado não abandonará, porém, a figuração surreal.
276
A linguagem solene do poeta, marca de um “mundo sério” se insere na
perspectiva de uma tradição moderna aberta à incorporação do novo, e esse tom
não se configura como uma “simples reação cultural, desesperada ante a vitória
274
Fábio de Souza Andrade. “Prefácio.” In: As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002. Esta
“poesia de resistência” se posiciona contra a barbárie imposta pela guerra, o que pressupõe uma
interação com os fatos históricos. Neste caso, não é a história do País que está em pauta, mas os
reflexos de um evento mundial que penetra não só a poética muriliana, mas também os textos de
um Drummond e de uma Cecília Meireles. (p. 16).
275
Cf. Francis Paulina, op. cit.
276
José Guilherme Merquior. “À beira do antiuniverso debruçado ou introdução livre à poesia de
Murilo Mendes”. In: Murilo Mendes. Antologia poética. Seleção de João Cabral de Melo Neto. Rio
de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976, p. XVII e XVIII.
137
das novas formas, e tristemente absorvida pelo esforço inútil de condená-las, em
nome de uma descabida e lúgubre ‘seriedade’”.
277
Desde Tempo e Eternidade, com o sagrado como núcleo de inquietação, o
poeta já havia assimilado o tom grave, o que aponta para uma mudança meditada
e não abrupta da poética muriliana. Além disso, no período histórico de 1943 a
1953, são publicadas ou escritas obras afinadas com a atmosfera da fase
ouropretana, formando conjunto coeso, tais como O Discípulo de Emaús (1945),
Sonetos Brancos (escritos em 1946-48), Parábola (1946-52), Contemplação de
Ouro Preto (1949-50) e O infinito íntimo (1948-53). Elas carregam no tom reflexivo
e compõem um corpus literário unificado pelo ethos metafísico.
Como exemplo desta contaminação poética de uma obra para outra, “Ouro
Preto”, de Sonetos Brancos, é poema cujos elementos - poetas, doidos, etc – são
retomados em “Motivos de Ouro Preto” de Contemplação. O título daquele livro
anuncia o uso de uma das formas mais clássicas na literatura brasileira, o soneto.
A experiência com poemas brancos de métrica variada seria mais uma
experimentação formal que propicia a contenção do verso. Ainda para confirmar
este conjunto, há dois poemas que, a princípio, faziam parte de Infinito íntimo
(“Romance das igrejas de Minas” e “Romance da visitação”), mas que são
incorporados ao livro sobre ouropretano, reforçando a unidade temática do
período. Além disso, são incluídos dois sonetos em Contemplação, mais
adequados, enquanto forma, ao livro Sonetos brancos (1959)
278
.
277
Merquior. “MM visionário”, p. 85.
278
Quanto ao soneto, forma extremamente “fechada” e meditada de composição poética, Luciana
Picchio afirma que ele foi “o banco de prova dos poetas que surgiram nas letras brasileiras
138
Enfim, Contemplação é considerada por Luciana Picchio, como o início de
um novo momento muriliano, no qual passaria a dar mais ênfase “às coisas, às
paisagens, com sua história, tradição (..)”
279
.
Assim, tal poética meditada tem como ponto destacado o retorno ao
passado pelas “sombras” de personagens históricas, agora com um enfoque
religioso. É dessas sombras que passamos a tratar no próximo capítulo.
4.3. Memórias das sombras de Ouro Preto
A tônica de Contemplação é colocada na memória histórica agora revista e
reconstruída através das “sombras”, com poemas plenos de uma memória
ocultada pelo tempo, recuperada agora pela volta a momentos dramáticos do
País. Mas aí se faz também uma arqueologia do passado do próprio poeta – ao
fazer uma releitura de sua obra transformando significados da primeira fase -,
além de integrar outros autores - leituras apreciadas - em novo contexto poético.
O livro se abre em tom grave e deveras cavernoso, o que se reflete na
dimensão e estrutura dos poemas. O primeiro deles está dividido em 5 partes,
com estrofação irregular e metros longos. Pelo título, “Motivos de Ouro Preto”,
imediatamente depois do fim da segunda guerra mundial: poetas para quem MM sempre foi um
modelo e uma insígnia, além de um experimentador companheiro de rua.” (“Notas e variantes”. In:
PCP, p. 1679-80).
279
“Notas e variantes”. In: PCP, p. 1680.
139
observam-se as motivações históricas e sociais da cidade: as causas que levaram
a cidade ao abandono.
280
Na obra, os motivos, reiterados constantemente, referem-se aos elementos
que fizeram a história da cidade, impulsionando a escrita poética. Vejamos, no
início do poema, como esses elementos são configurados através de sombras que
articulam praticamente todo o livro.
MOTIVOS DE OURO PRETO
281
.
1
Assombrações que sobem do barroco,
Das ladeiras e dos crucifixos esquálidos,
Frias portadas de pedra, anjos torcidos,
Passantes conduzindo aos ombros o passado,
Cemitérios aéreos de adros largos
Onde noturnos seresteiros cantam,
Seguindo-se de violas e violões,
Aos defuntos colados nas gavetas:
A experiência de sombras trasladadas
De procissões civis, eclesiásticas,
Dum antigo túnel de conspiração;
A água escapando pelos chafarizes,
As cicatrizes que o minério abriu;
Tantos Passos fechados o ano inteiro,
Ruínas de solares e sobrados
Onde pairam espectros de poetas,
De padres doidos, de reformadores;
280
O termo “motivos” mantém conexões com várias artes, entre elas a música - como fragmento
melódico, harmônico ou rítmico predominante num trecho musical. Em arte, motivo significa ornato
isolado ou repetido utilizado na decoração de algo.
281
Cf. Partes do poema se encontram na Antologia do Anexo II.
140
Algarismos gravados nas carrancas
A presença do tempo traduzindo.
O silêncio ao silêncio juntando
Nesses becos e vielas embuçados;
A reunião de natureza e arte
Por um gênio severo combinadas,
O espírito levando à sua origem
Despojado de efêmeros enfeites,
A pátina paciente de Ouro Preto
Sobre aparências estendendo um véu:
Tudo aparelha a mente para a morte,
Mas a morte em si mesma, a própria morte,
Privada de artifício, a morte chã.
E contra a dispersão das ossadas no tempo,
Que o amor à forma e a Promessa rejeitam,
Da pedra o testemunho antigo se levanta,
Poder do Itacolomi – e o da Pedra perene.
O poema se inicia com versos longos - decassílabos e dodecassílabos -,
compondo o ritmo de uma litania das sombras, o que causa o efeito de uma
procissão ou cortejo que se arrasta, modo apropriado ao tom religioso do livro.
O léxico do campo semântico negativo - “Assombrações”, “esquálidos”,
“frias portadas”, “passado”, “cemitérios”, “noturnos seresteiros”, “defuntos”, e
correlatos – são redistribuídos ao longo da obra.
Desse campo, a sombra é a que mais aparece em Ouro Preto, aliás,
bastante freqüente também em escritores da época, alguns citados por Murilo.
282
282
Cf. Dantas Mota. Elegias do país das gerais. Poesia completa. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: INL, 1988; Carlos Drummond de Andrade. Claro Enigma. In: Obra Completa. Volume
único. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1967, p. 255-263. Neste,
141
O próprio poeta, comentando Cecília Meireles, observa que os historiadores não
tinha ainda dado a devida importância ao episódio da Inconfidência Mineira e que
caberia à poetisa trabalhar com as “lendas”, “tradições”, bem como com a
“atmosfera de almas penas, de bruxas, de enforcados, de suicidas.”
283
Esses
elementos sombrios são incorporados por Murilo nessa obra, mas, enquanto
Cecília em seu Romanceiro da Inconfidência assume uma postura abertamente
política, o poeta entra na história pelos silêncios.
Mas essas sombras saem também do diálogo que Murilo mantém com
outros autores. Por exemplo, com Lourival Gomes Machado, nos trechos a seguir:
“(...) cidade onde se refugiam as sombras potentes de Vila Rica.”
284
(grifo nosso).
Em Murilo apresentam-se as “sombras que sobem do barroco”, como parte do
“legado” colonial. Nessa passagem e em outras, os sinais do estudioso da arte
barroca se fazem presentes. A relação do poeta com o pesquisador pode ser
referendada também pelas marcas de leitura do poeta em livros de Lourival.
285
Apesar de associadas a valores culturais negativos, as sombras
“inquietantes” aparecem também como instrumentos de conhecimento do mundo
e de desvelamento do que está oculto. Roberto Casati, em estudo sobre o
assunto, afirma que
as
sombras “São chatas, incorpóreas e sem qualidade, sem
cor. O perfil delas encerra um interior indistinto. Mas, principalmente, são
principalmente nos poemas da seção “Selo de Minas” (“Evocação Mariana”, “Estampas de Vila
Rica”, etc).
283
Apud Cecília Meireles. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 52.
284
Lourival Machado, op. cit., p. 179.
285
Cf. Manuel Bandeira. Guia de Ouro Preto. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,
1957, p. 51. MM também se apropria das sombras de Manuel Bandeira em seu Guia de Ouro
Preto, onde o poeta pernambucano afirma: “As duas grandes sombras de Ouro Preto, aquelas em
que pensamos invencìvelmente (sic) a cada volta de rua, são Tiradentes e o Aleijadinho.”
142
ausências, coisas negativas. Uma sombra é uma falta de luz. (...) a informação
contida na sombra é um auxílio fundamental para a visão”(grifos nossos).
286
Assim, ao evocar as sombras, o poeta invoca um passado problemático e
uma realidade ausente da história. Na verdade, a sombra tem como função realçar
a perspectiva religiosa que busca iluminar o homem através dela, pois na
penumbra do passado busca o efeito contrário, o da luz, numa manobra que faz
parte da estratégia de salvação da cidade ao iluminar o passado e o espaço com a
luz divina.
O “descenso” ao mundo das sombras será seguido por uma “ascensão”
caracterizada pela luz, operação que reflete um jogo antitético no qual se opera o
resgate intimamente ligado à visão redentora do poeta. O esquema utilizado na
em Contemplação direciona o olhar das trevas para as luzes. Nisso o livro
comporta uma “concepção mágico-soteriológica, isto é, salvacionista,
regeneradora e redentora, da criação artística,” traço marcantes da poesia
simbolista muito presente nesse Murilo.
287
No momento inicial do poema, as sombras aparecem em movimentos que
sugerem a ação de subida de algo que está em baixo, as ladeiras, os crucifixos,
portadas de pedra, anjos torcidos. Esta ascensão sugere o clima do barroco
brasileiro, transformado pelo trabalho de Aleijadinho e outros artífices, aliás, um
barroco menos imponente, o que evidencia uma reconstrução poética da cidade
286
Roberto Casati. A descoberta da sombra. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001. Casati diz: “Pegas pelo lado certo, as sombras se revelam um magnífico instrumento
de conhecimento.” (...) “Platão não convence. As sombras podem ser usadas para reconstruir o
mundo. E de fato nós as usamos continuamente para compreender como é feito o ambiente que
nos circunda.” (p. 9, 11-13).
143
com o foco voltado para uma perspectiva popular, o que se reflete também nas
práticas religiosas mencionadas.
288
As assombrações levam o peso de uma história de violência dos inícios da
nacional, violência referida de forma metafórica, por exemplo, no uso do vocábulo
“cicatrizes” no verso “As cicatrizes que o minério abriu”, marcas que podem se
referir tanto ao espaço físico da cidade como às práticas de uma sociedade
escravocrata e extrativista. A grande sombra é a dos vencidos e dos
“desclassificados do ouro”
289
que reaparecem ressentidos no poema muriliano,
pois os mortos se transformam em “sombras de sombras” na cidade. Enfim, fazem
parte dos vestígios históricos que voltam na obra do autor.
Nesse sentido, podemos afirmar que a cidade se torna palco de uma
reencenação histórica, como parte de uma construção da memória nacional
290
,
memória a partir do ponto de vista que foi relegado a segundo plano.
Na primeira estrofe, “Os cemitérios aéreos” reforçam a origem das sombras.
Os mortos são, através dos cantos dos “noturnos seresteiros”, rememorados,
trazidos à memória. Já na segunda estrofe, a cidade se mostra esvaziada de seu
dinamismo e esplendor pois, os Passos estão fechados, solares em ruínas, e só
os espectros de poetas, padres, reformadores “vivem”. Os versos 20 e 21, “O
287
José G. Merquior. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1996, p. 184. Para Mallarmé, a poesia é vista como um rito. No caso de Murilo,
ainda que bastante mallarmeano, há um ingrediente moderno, que é o elemento “crítico-lúdico”.
288
Veja-se como exemplo, o caso de Aleijadinho que não tinha o status de artista porque o
trabalho manual não era considerado “artístico”, ajuntando-se a isso o fato de ele ser mestiço.
289
“O desclassificado social é um homem livre pobre – freqüentemente miserável -, o que, numa
sociedade escravista, não chega a apresentar grandes vantagens com relação ao escravo.”
289
Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro. A pobreza mineira no século XVIII. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1986, p. 14.
290
O nacional pode ser uma categoria unificante que tenta inviabilizar o debate das contradições
políticas. Cf. Marilena Chauí. “Cultura do povo e autoritarismo das elites”. In: A cultura do povo.
São Paulo: EDUC, 1982, p. 119-134.
144
silêncio ao silêncio juntando / Nesses becos e vielas embuçados;” sugerem o
apagamento da memória da cidade que um dia foi próspera e centro do poder
colonial.
291
A descrição da cidade empobrecida, despojada de adornos coloca o
problema correspondente que é o da morte (da cidade e da morte em geral). Diz o
verso 29 “Tudo aparelha a mente para a morte.”
Esta abertura da obra define a direção a ser tomada que é a do resgate da
cidade e através da solução “transcendental” pela arte, no trabalho estético
comparado ao trabalho, em vários lugares do livro ao da criação divina. O escopro
genial de um Aleijadinho esculpiu o Anjo “na tradução humana” (cf. vv. 134-35)
Tal solução vai se realizar também na cidade de Ouro Preto, que passamos
a abordar.
4.4. Ouro Preto como referência cultural
As cidades históricas mineira redimensionam a poética de vários autores
modernistas, gerando novo foco de inquietação sobre as origens do Brasil.
Desloca-se, desse modo, o eixo São Paulo - Rio de Janeiro para Minas Gerais, ao
mesmo tempo que, paradoxalmente, a consciência cultural desses escritores se
torna mais abrangente.
292
291
Outras partes desse poema serão objeto de análise em outros momentos do trabalho.
292
John Gledson. Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. Trad. Frederico
Dentello. São Paulo: Companhia das Letras, p. 71. Entre os que pensaram a cidade estão Mário de
Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira.
145
Esta região histórica, por fazer parte da construção de um passado e de um
patrimônio histórico da Nação, passa a ser considerada básica para se pensar a
cultura brasileira. Não teria sido por acaso que Mário de Andrade visitara a cidade
em 1924 com outros artistas, numa viagem de redescoberta do Brasil. Já nos anos
de 1930, Ouro Preto foi escolhida como sítio histórico, isto é, como espaço
delimitado para simbolizar o passado, tornando-se uma forte marca cultural. Como
toda referência, naquele momento as cidades históricas deveriam servir como um
novo símbolo da nacionalidade, mas no período em questão a busca de uma
identidade cultural no passado conflitava, em parte, com o projeto de
modernização proposto pelo governo Getúlio Vargas.
293
No que se refere à construção de marcas culturais que representassem o
País, os modernistas tiveram papel fundamental na defesa e descoberta de
valores desconhecidos, redescobrindo produções tanto cultas como populares,
dentre as quais se destacaram a arte produzida no passado (pintura, escultura,
arquitetura, música). Essas pesquisas se ligavam à “busca da autenticidade
própria e o encontro de um passado precioso que se desconhecia.”
294
A volta ao “lugar da memória”
295
- lugar imaginário construído com
dedicação e trabalho de tantos Aleijadinhos - estaria associada à política getulista
compartilhada pela elite intelectual ligada ao Modernismo que se via com a missão
de “modernizar” ou “civilizar” o País, alçando-o ao nível da Europa. Desde a
293
José Reginaldo Santos Gonçalves. A retórica da perda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ;
Ministério da Cultura/IPHAN, 2002, p. 41.
294
Franciso Iglesias. “Lourival Gomes Machado e o barroco mineiro”. In: Lourival Gomes Machado.
Barroco Mineiro. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 20.
295
Pierre Nora, op. cit.
146
década de 20, os escritos sobre patrimônio cultural colocam a necessidade de
proteção do patrimônio histórico brasileiro.
296
Buscava-se resgatar as perdas culturais da nação, dando-lhe novo fôlego
para enfrentar a modernidade que despontava com a industrialização. Para isso,
fazia-se necessário elaborar uma “retórica da perda”, e um grupo de intelectuais
que se preocupava em resgatar a memória nacional se empenhou em formular
propostas para preservação dos bens culturais do Brasil.
297
Dentre os que trabalharam na área de patrimônio histórico, Rodrigo Melo
Franco Andrade foi o que mais se empenhou para que o estabelecimento das
bases de uma cultura brasileira com fundamento na construção de um conjunto de
referências concretas que pudessem simbolizar o País e ombrear com a cultura
tradicional do Ocidente. E a cultura colonial do Brasil serviu como referência
simbólica. Por isso, para valorizar a cultural local, ele considerou que as
edificações religiosas e a estatuária significariam mais para os brasileiros do que
as construções clássicas da cultura ocidental, chegando a afirmar que as
construções religiosas do Brasil colônia tocariam mais a sensibilidade e
296
Reginaldo Gonçalves, op. cit., p. 41.
297
A efetivação de um projeto de preservação do Patrimônio Cultural brasileiro se realizou em
1937 com o convite feito por Capanema a Rodrigo Melo Franco de Andrade, para dirigir o SPHAN
que tinha como uma de suas mais importantes funções a de fazer a proteção do “patrimônio
histórico e artístico nacional brasileiro”. Como primeiro diretor do SPHAN, elaborou a estratégia de
realizar “uma obra de civilização”, com o propósito de “registrar, do modo mais rigoroso, os
acontecimentos, personagens e objetos associados ao ‘patrimônio histórico e artístico’”. Verificou-
se com o SPHAN, uma sistematização de estudos sobre arte brasileira, para profissionais,
buscando sustentar e servir à “causa nacionalista”.
Cf. Reginaldo Gonçalves, op. cit., p. 42 e 43.
Sobre a proteção ao patrimônio cultural, cf. Lídia Avelar Estanislau. “Memória brasileira: este
insaciável objeto de desejo.” In: Cultura e memória: perspectiva da administração pública brasileira
hoje. Brasília: Cadernos Enap, dez.93 – vol. 1, n. 2.
147
imaginação brasileira do que as produções da alta cultura européia.
298
Daí seu
empenho em restaurar e preservar os setores da cultura material.
No entanto, este autor não se alinhava com o grupo passadista que via a
arte congelada no passado e como “idealidade abstrata”. O grupo modernista, ao
qual ele pertencia, valorizavam a arte em seu “enraizamento histórico” no
passado, mas com uma projeção para o futuro. Na afirmação de Mariza Veloso
Motta Santos, tratava-se “...de estabelecer um conhecimento do passado, da
tradição que o ilumina, para construir uma consciência nova para o futuro”. Este
seria um dos conflitos entre os modernistas progressistas e o grupo dos
neocoloniais que objetivavam pensar a arte apoiados num “atitude de submissão”
ao passado.
299
4.4.1. O poeta e a viagem cultural a Ouro Preto
É no contexto dos movimentos de preservação que Murilo viaja a Ouro
Preto, e Contemplação poderia ser considerada uma tradução em registro poético
298
Afirma textualmente o autor: “A poesia de uma igreja brasileira do período colonial é, para nós,
mais comovente do que a do Partenon. E qualquer das estátuas que o Aleijadinho recortou na
pedra-sabão para o adro do santuário de Congonhas nos fala mais à imaginação que o Moisés de
Miguel Ângelo.”
(Rodrigo Melo Franco Andrade apud Reginaldo Gonçalves, op. cit., p. 45). É de se
notar a diferença de nosso Barroco, mais humilde, em relação ao Barroco ibérico. Basta comparar
a Igreja-Matriz de Toledo, na Espanha, enorme e contendo várias capelas dentro dela, com sua
opulenta ostentação, com as várias igrejas de Ouro Preto. Esta última observação devo ao
Professor Alfredo Bosi no momento da Qualificação deste trabalho.
299
Cf. Mariza Veloso Motta Santos. “Nasce a academia SPHAN”. In Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, número 24 - Cidadania/ Rio de Janeiro, IPHAN,1996, p. 80. A
projeção para o futuro terá seu correspondente na atitude religioso-escatológica de MM na qual
baseia a redenção da cidade.
148
ou “chancela artística”
300
dos estudos sobre a cidade, bem como dos acervos
arquitônicos e históricos. Nesse sentido, a conexão poética é articulada pela
reelaboração de uma formação discursiva baseada na arquitetura e na história da
região. Em tal perspectiva, Contemplação poderia ser considerada, no campo
literário, um objeto-síntese do ideário da geração de intelectuais voltados para a
preservação do patrimônio histórico-cultural no Brasil. As relações culturais de
Murilo Mendes com Ouro Preto denota a finalidade do livro que buscaria uma
síntese cultural de outros discursos. Isso pode ser verificado pela referência, na
obra, a vários nomes de arquitetos, urbanistas
301
A obra se volta para uma localidade de importância histórica, exercendo
então a “vocação para o real” que viria desde Sonetos Brancos, a partir do qual o
poeta teria sido levado “a avizinhar-se da paisagem e dos objetos em busca de
formas e dimensões concretas.”
302
O “real” no caso de Contemplação é a cidade
que, de certa forma, estrutura o livro, construído a partir do diálogo que mantém
com a arquitetura e a escultura barroca.
Contemplação de Ouro Preto é primeiro livro que se volta para um espaço
geográfico como tema, que ganha caráter cultural. Segundo Júlio Guimarães, na
300
A expressão é de Murilo de Moura, em conversa sobre o livro COP.
301
Esses nomes estão relacionados a algum trabalho sobre a cidade ou às questões de patrimônio
histórico-cultural no Brasil e mostram o grau de inserção que o poeta tinha nos problemas poético-
urbanísticos no Brasil, especialmente em Minas Gerais. Rubem Navarra (crítico de arte); Lourival
Gomes Machado; Rodrigo Melo Franco de Andrade (Patrimônio Histórico); Bandeira (sobre a
cidade); Lúcio Costa (urbanista); Carlos Pinto Filho; Gustavo Capanema (ministro da Saúde e
Educação de Getúlio Vargas); Sylvio de Vasconcelos; Dantas Motta, autor de Elegias do país das
gerais.; Alberto da Veiga Guignard (pintor que viveu em Ouro Preto). Sobre a proteção ao
patrimônio cultural, cf. Lídia Avelar Estanislau. “Memória brasileira: este insaciável objeto de
desejo.” In: Cultura e memória: perspectiva da administração pública brasileira hoje. Brasília:
Cadernos Enap, dez.93 – vol. 1, n. 2, p. 19.
302
Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 37ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 450. O
autor aponta para o questionamento estético quanto à objetividade e à autonomia da obra literária.
149
obra “(...) a cidade mineira, se em muitos poemas é descrita em sua constituição
física, é também tratada por meio de seus escritores e artistas - sua paisagem
tende, em última instância, a se resumir a elementos culturais.”
303
Mas nos elementos culturais, que dramatizam os vestígios do passado, se
cruzam os tempos passado, presente e uma projeção para o futuro. O autor faz
uma literatura de testemunha ocular sobre algo vivido, contemplando o
apagamento histórico-social nas ruínas do passado. Como afirma Francis Paulina:
Neste livro, escrito entre 1949 e 1950, irá tecer, em versos, a
etnografia do povo mineiro, como uma confissão de amor às suas
raízes barrocas, a contemplar as marcas da tradição histórica,
religiosa e cultural. Retoma o passado, que se fez mítico e místico
pelo sangue dos seus mártires, pela luta de um povo capaz de
esbanjar arte e poesia e que soube preservar os traçados de sua
cultura na arquitetura da cidade e nas obras de arte.
304
Em Contemplação de Ouro Preto os “ecos da memória”
305
se fazem
presentes a partir da dedicatória aos pais do poeta e na reconstrução da memória
histórica levantada através de vários suportes e fontes: os escritos de diferentes
modalidades (literários, ensaios, estudos etc), o patrimônio construído, a imagética
(o livro é composto com fotografias da cidade
306
), o artístico, o popular, o ritual
303
Júlio Guimarães. “Prefácio”. In: Tempo Espanhol. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 11.
304
Francis Paulina, op. cit., p. 72.
305
Idem, p. 75.
306
Cf. Contemplação de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1954. Nesta
primeira edição de Contemplação, são registrados, através de 11 fotografias, alguns lugares de
Ouro Preto. As fotos do livro são de Humberto de Moraes Franceschi e Erich Hess, principalmente
de exteriores e interiores de igrejas (fachadas, anjos, Cristo), estátuas, bustos, aspectos da cidade,
ruas etc. Esses pontos fotografados faziam parte do livro, jogando com o texto. Nessas imagens há
poucas referências à paisagem natural, para além da cidade, paisagem esta que é mencionada em
seu livro. Isto indica que o interesse se coloca na construção cultural da paisagem urbana, e não
150
religioso, etc. A história é contemplada na poesia que agencia várias linguagens
artísticas, pois os suportes acima servem à construção da memória social na
obra.
307
A reconstrução da memória no livro tem como base o espaço local que
produz uma compactação dos eventos históricos e é na interação com esta
localidade geradora de sentidos que o poeta constrói seu texto. Maria Ivonete
Santos Silva mostra, na passagem a seguir, a importância da cidade na obra do
autor:
O espaço plural da cidade Ouro Preto, berço de tradições e
rupturas, animado pelo rit mo das ladeiras, povoado pelo diálogo
cruzado dos sinos das igrejas, pelos motivos de vida e morte que se
correspondem no interior das igrejas, enseja ao poeta ocasião para
organizar o olhar. A memória de artistas, inconfidentes,
mineradores, escravos conecta o poeta com o drama humano, e
exige uma elaboração em palavras que leva Murilo a passar da
desarticulação à construção, para compartilhar com o leitor a
experiência da busca da harmonia na diversidade. (...) Tais
composições surpreendem o espectador, para depois transportá-lo
a um espaço regido por suas próprias leis, que responde ao anseio
humano por equilíbrio e harmonia.
308
na natureza em estado bruto. Como afirma Simon Schama, “É evidente que o próprio ato de
identificar (para não dizer fotografar) o local pressupõe nossa presença e, conosco, toda a pesada
bagagem cultural que carregamos.” (In: Simon Schama. Paisagem e memória. Trad. Hildegard
Feist. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 17). A afirmação acima se refere à paisagem
natural, mas pensamos que pode também se referir a outros lugares também.
307
A memória é, sempre, invenção seletiva. A memória histórica também é “inventada” ou
inventariada pelos historiadores. O poetar está mais voltado em “monumentalizar” a história do que
em documentá-la. “De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas
uma escolha efectuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da
humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os
historiadores.” Cf. Enciclopédia Einaudi. Vl. 1, Memória – História. “Documento/Monumento”, Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, s/d, p. 95.
308
Maria Ivonete Santos Silva e Maria Cristina Franco Monteiro. “O conceito de convergência, de
Otavio Paz, e sua realização nas obras de Murilo Mendes e de Antonio Francisco Lisboa, o
151
Saliente-se que, apesar de ser mencionado no título somente Ouro Preto, a
obra trata ainda de outras localidades. Por exemplo, Mariana, no poema
“Contemplação de Alphonsus”, onde é referida a cidade em que o poeta simbolista
passou a maior parte de sua vida, além da referência a outras localidades
presentes em “Igrejas de Ouro Branco” e em “Romance das igrejas de Minas”.
Assim, é toda uma região que está exposta no livro, região não
geográfica, mas também literária e cultural. Mas Ouro Preto, como símbolo da
restauração arquitetônica desde 1938 quando foi tombada como monumento, se
constitui o núcleo principal da meditação poética de Murilo Mendes.
Essa revisitação faz parte de uma retomada da memória da cidade e,
descendo às origens barroco-coloniais do País.
309
Alfredo Bosi, comentando o
livro, confirma a volta ao passado:
Nesta obra a história e a paisagem de Vila Rica desdobram-se em
compactas séries de nomes e verbos para se fundirem depois na
música envolvente da evocação. O poema procura colher a
essência mesma do barroco mineiro – tacteando ainda nos ternos
labirintos, / palpando-se nos planos pensativos / das origens, de
antigas estruturas, - e da arte do Aleijadinho feita de espanto e de
unção.
310
Aleijadinho.” Disponível em <http://www.ufop.br/ichs/conifes/anais/LCA/lca2803.htm>. Acesso em:
04 mai. 2005.
309
Laís de Araújo, op. cit., p. 102. A autora chama COP de “suíte barroca”. “Murilo Mendes não
exibira até então, ao menos linear e discursivamente, a sua mineiridade, tão entranhada, por
exemplo, no itabirano Carlos Drummond de Andrade. Emigrado fisicamente de Minas, também
emigrou para o ontologismo profético, no seu projeto de engajamento político-cristão, profanizando
o sobrenatural e teatralizando a sua pródiga e ostensiva paixão pelo tempo e pelo homem.” (p.
102)
310
Alfredo Bosi. História concisa..., p. 450. Em carta de 20 de fevereiro de 1971, diz Murilo Mendes
sobre os comentários de Bosi em relação ao seu livro: “Na parte que me toca, apreciei sobretudo
sua opinião sobre Contemplação de Ouro Preto, livro que não despertou interesse, e que considero
dos melhores que escrevi.” Apud Júlio Castañon Guimarães (org.). Murilo Mendes: 1901-2001. Juiz
152
A evocação aí realizada não se apresenta sob a passividade, mas é
constituída por reescrita ativa da história, com um aproveitamento mais
aprofundado da tradição poética e cultural, por exemplo, na recuperação do
barroco e de uma atmosfera simbolista, ao mesmo tempo que procede a uma
reavaliação histórica do País, mas revisão do passado que reintegra as formas
poéticas tradicionais.
Joana Frias mostra bem a estratégia poética muriliana do período ao
afirmar:
A tentativa de retorno às “construções que resistem ao tempo”
resultou numa adopção generalizada das formas fixas, que o
versilibrismo modernista fizera esquecer, concentrada
essencialmente no verso decassilábico e no soneto. É neste
contexto que Murilo escreve, (...) e publica, em 1954, a obra
Contemplação de Ouro Preto, maioritariamente constituída por
composições em verso decassílabo, endecassílabo ou alexandrino,
e integrando ainda alguns sonetos. (...) A simpatia pelos poetas da
Geração de 45 deve-se, portanto, não a uma qualquer ruptura com
a sua poética, mas a uma exploração assumida daquilo que desde o
início o poeta defendia com Valéry: perfection c´est travail.
311
No conjunto de poemas dessa época, Contemplação acompanha, de certo
modo, a vaga dos poetas da “Geração de 45” ou neomodernistas que “curavam
de Fora: CEMM/UFJF, 2001, p. 139. 13 de maio de 2001, CEMM (Juiz de Fora), Catálogo de
Exposição.
311
Joana Matos Frias. Tempo e negação em Murilo Mendes. Dissertação de Mestrado.
Porto/Portugal: Universidade do Porto/Faculdade de Letras, 1998, p. 42. Mantemos a grafia
“portuguesa” da autora.
153
com certo esmero da forma”.
312
Não se pode dizer, no entanto, que houve
simplesmente um retorno às formas clássicas, mas a continuidade de formas
tradicionais dentro da condição poética moderna, o que evidencia a revitalização
de práticas antigas. As “construções que resistem ao tempo” podem ser
representadas pela arquitetura barroca e sua duração no tempo histórico, bem
como pelo uso de métricas mais tradicionais.
313
O livro sobre Ouro Preto procura realizar uma síntese cultural e religiosa,
onde história e memória se cruzam exatamente no local-texto que retoma a
história das Minas e os “efeitos” da mineração.
314
Na lógica poética, o livro junta
“diferentes” textos no gesto discursivo dos poemas, reunindo os cacos e as ruínas
do religioso nas fendas da cidade, e jogando com duas reconstruções: a da cidade
e a da religiosidade, uma se imbricando na outra.
Aí, o poeta trabalha com a idéia de tirar a cidade do esquecimento. Para
isso, propõe uma representação da cidade religiosa dos conflitos históricos no
Brasil.
Além disso, o livro tenta resgatar os veios dos mitos e memória presentes
nos subterrâneos da cidade. Por exemplo, o tom fúnebre que perpassa a obra,
312
Hernani Cidade apud Manuel Bandeira e Walmir Ayala. ”Geração de 45”. In: Antologia dos
poetas brasileiros. Fase moderna. Depois do Modernismo. Rio de Janeiro: Edições de
Ouro/Tecnoprint Gráfica S. A., 1967, p. 9.
313
A revitalização da linguagem poética poderia ser o equivalente da recuperação do espaço da
cidade, proposto por arquitetos e urbanistas.
314
Lúcia Machado de Almeida. Passeio a Ouro Preto. São Paulo: Martins, 1973, p. 37. Outros
autores já tinham produzido obras sobre a mineração, tais como, Olavo Bilac, Raimundo Correia
que viveram em Ouro Preto. Assim como houve a garimpagem do ouro, também o poeta
procederia a uma garimpagem poética, selecionando lugares e temas da cidade que possam ser
representativos literariamente. Mas ele lamenta também, no caso, a anexação econômica da
natureza que, além de levar o ouro, construiu uma arquitetura voltada para o poder senhorial e a
religião católica. Nessa cidade vê-se, portanto, a contradição dos gestos coloniais.
154
denota a recuperação de uma memória funerária, fazendo referência explícita aos
mortos.
4.5. O resgate poético da cidade de flores e pedra
O poema “Flores de Ouro Preto” possibilita fazer uma discussão sobre o
sentido do livro Contemplação de Ouro Preto. Esse texto será, assim, um dos
núcleos para uma análise mais geral da obra. Nele estão colocadas, a nosso ver,
a situação da cidade mineira a partir do olhar de modo poético.
Este quarto poema do livro é dedicado a Cecília Meireles, autora do
Romanceiro da Inconfidência, publicado em Portugal, em 1953, antes de
Contemplação de Ouro Preto - que o poeta já tinha lido e apreciado no artigo “A
poesia social”.
315
Antes de analisarmos o poema, vejamos como a predominância da visão se
e o trabalho com ênfase na imagem é estruturante neste livro sobre Ouro Preto. A
315
Cf. “Poesia social” In: Cecília Meireles. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 52
e 53. Nesse texto, Murilo considera que, se os historiadores não tinham ainda dado tanta
importância ao episódio da Inconfidência Mineira, este pode ser admitido, pela poetisa, “no seu (do
episódio) quadro de lendas, de tradições, sua atmosfera de almas penas, de bruxas, de
enforcados, de suicidas.” (p. 52) O resgate que a poetisa faz de Ouro Preto é a partir da história
política, já o poeta juizforano recupera a história de forma indireta. A sua história de Ouro Preto é
mais concentrada do que a de Cecília Meireles que narra episódios da Inconfidência Mineira e, se
em Cecília há uma explicitação de eventos históricos, em Murilo a história e as “lendas” são
integradas no quadro da literatura. Mas na forma, assim como a poetisa, Murilo trabalha com
formas ibéricas e portuguesas.Cf. Silvia Paraense. Cecília Meireles: mito e poesia. Santa Maria:
UFSM, CAL,Curso de Mestrado em Letras, p. 11-23. Quanto aos estudos sobre Tiradentes, o
poeta se equivoca, pois há uma longa tradição de estudos sobre o herói. (Ver, por exemplo,
Cláudia Regina Callari. “’Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do
Tiradentes”. Revista Brasileira de História, 2001, vol.21, no.40, p.59-82. Callari, Cláudia Regina.
“Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do Tiradentes”. Rev. bras. Hist.,
155
imaginação muriliana sobre a história (tempo) é de uma imagem mental,
construída a partir da relação com o espaço.
316
O termo Contemplação do título do livro, desdobrado na obra pelo uso do
verbo “contemplar” e seu congênere “ver”, indica uma falta de ação e de
intervenção direta sobre o mundo, sugerindo uma atitude de abstração do poeta
perante o mundo. Além disso, o verbo “contemplar” aparece em poemas de outros
livros, como é o caso de “Novíssimo Prometeu”, de O visionário.
A etimologia do verbo sugere, além do sentido mais comum - olhar
atentamente, meditar, considerar -, uma tomada de posição metafísica, pois cum
templum, significa estar no templo, no lugar sagrado
317
. Este contemplar
metafísico busca o mistério pela via do concreto, o que combina com as intenções
religiosas da obra.
318
O verbo ver, que corrobora a prioridade da imagem sobre o discursivo,
ocorre enfaticamente em Contemplação, e se desdobra em um verbo com íntimo
2001, vol.21, no.40, p. 59-82. Disponível em <http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/>. Acesso
em: 09 abr. 2006.
316
A memória de Murilo está relacionada ao “triunfo da vista“ ou ao “regime escópico da
modernidade” (Cf. Carlo Ginzburg, op. cit.. 189)
317
Cf. F. R. dos Santos Saraiva. Dicionário latino-português. 10ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
Garnier. 1993, p. 298. Aí se registra: “Olhar atentamente, meditar, considerar.”
318
Cf Jacques Maritain. Arte e poesia. Trad. Edgar de Godói da Mata-Machado. Rio de Janeiro:
Agir, 1947. É possível que MM tenha lido este livro de Maritain, pois consta de seu acervo. O autor
explica aí a diferença entre “metafísica” e “poesia”. Para ele, “Enquanto a metafísica permanece na
linha do saber e da contemplação da verdade, a poesia se mantém na linha do fazer e da
deleitação da beleza. A diferença é capital e não pode ser desconhecida, sem grave dano. Uma,
capta o espiritual em uma idéia e pela intelecção mais abstrata, a outra o entrevê na carne e por
uma extremidade do sentido que a inteligência aguça: uma, para gozar de sua posse, tem de
retirar-se para regiões eternas, a outra o acha em todas as encruzilhadas do singular e do
contingente; ambas procuram um supra-real, que a primeira deve atingir na natureza das coisas e
à segunda basta tocar em qualquer símbolo. A metafísica anda à cata de essências e definições, a
poesia se contenta com qualquer forma que brilhe, de passagem, com o menor reflexo de uma
ordem invisível.” (p. 09 e 10). Como já vimos, no caso de Murilo, no entanto, considerar a obra
somente como uma proposta religiosa pode levar a um engano devido às tomadas de posição do
poeta em relação ao período e ao lugar de localização de sua obra.
156
parentesco semântico – contemplar. Aí o sentido da visão predomina sobre outros
sentidos como se o “olhar físico” fosse uma figura do “olhar intelectual” e teórico: o
olhar material seria uma ponte que levaria o poeta a vislumbrar uma realidade
maior.
319
Manuel Bandeira, caracterizando os poetas da Geração de 45 pela “atitude
intelectualista”, afirma que eles produzem “como se os versos e as estrofes
fossem construídos para os olhos e não somente para o ouvido”.
320
Esta
observação de Bandeira se aplica também à poética muriliana dos anos 50.
321
O poeta manifesta apreço especial pela visão, como mostra o texto abaixo:
Cedo começou minha fascinação pelos dois mundos, o
visível e o invisível. E não escreveu São Paulo que este mundo é
um sistema de coisas invisíveis manifestadas visivelmente? Não
vivemos inseridos num contexto de imagens e signos? (...) O prazer,
a sabedoria de ver, chegavam a justificar minha existência. Uma
curiosidade inextinguível pelas formas me assaltava e me assalta
sempre. Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver,
319
Quanto às expressões “olhar físico” e “olhar intelectual”, estão em João Adolfo Hansen. “A
máquina do mundo”. In: Poetas que pensaram o mundo. Adauto Novaes (org.). São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p. 172. Neste estudo sobre Camões, o autor se refere ao
partilhamento deste com as idéias dos platônicos florentinos, segundo os quais a visão seria
superior aos outros sentidos. A visão na pintura, estudada por Maurice Merleau-Ponty, tem uma
prevalência quando se trata de observar a realidade. Assim define o filósofo a “palavrinha” ver: “A
visão não é um certo modo do pensamento ou da presença a si: é o meio que me é dado de estar
ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo da qual eu me fecho
sobre mim.” Maurice Merleau-Ponty. “O olho e o espírito”. In: Os pensadores. Textos escolhidos.
Tradução e notas de Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 108. O texto
todo consta das páginas 105-111.
320
Apud Bandeira e Walmir Ayala,, op. cit., p. 9.
321
Destacamos aqui o aspecto da visão do livro, mas evidente que o ouvido esta presente na obra
conforme observa Alfredo Bosi, que detectou o aspecto sonoro-visual dessa “obra-prima de visão e
ritmo” (Cf.Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 37ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p.
450.
157
rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a
vida.
322
No caso de Contemplação, a imagem não surge de um vácuo cultural ou da
imaginação pura do escritor, mas se vincula ao espaço geográfico, o qual funciona
como motivador e gerador das imagens na obra, impulsionando a meditação
poética. Ao das costumeiras imagens insólitas e aqui a construção das imagens
são compatíveis com o universo histórico e religioso da cidade que é tomado
como tema unificador das idéias e como motivo inspirador que dá solidez à forma
literária. Essa relação é operada pela referência histórico-espacial, pela qual a
história penetra no texto sem se expor abertamente.
Eu-lírico, religião e espaço se cruzam numa operação de combinação na
nomeação poética, associados à recuperação do espaço depauperado. Na escrita
da cidade, há uma correspondência entre o espaço exterior e o interior do poeta
alinhada pela visão metafísica. Apesar de se referir a uma cidade real, o poema
constrói uma cidade escrita onde se encontram dois interiores: o geográfico e o
subjetivo. Expõem-se aí, ao mesmo tempo, as condições materiais e a construção
da cidade imaginada.
Assim, o trabalho poético procura construir no espaço da cidade uma
unidade imaginária que corresponda à forma mentis produzida pela interação do
poeta com espaço.
322
MM. “O olho precoce”. A idade do serrote. In: PCP, p. 973-4. A expressão usada pelo poeta,
“olho armado”, é mais um índice da presença da imagem na sua obra. É preciso observar ainda
que o poeta relativiza essa importância da imagem, por exemplo, quando mistura dois sentidos, no
verso “Vejo ouvindo, ouço vendo”, de “Aproximão do terror” (Cf. Murilo de Moura em “Os jasmins
da palavra jamais”. In: Alfredo Bosi. Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2001, p. 101-123.) Cf.
ainda aforismo 281, de O discípulo de Emaús, “O que vejo, toco.” In: PCP, p. 842.
158
A percepção visual se constitui numa dos pilares da construção textual de
“Flores de Ouro Preto”, que transcrevemos abaixo.
FLORES DE OURO PRETO
323
a Cecília Meireles
Vi a cidade barroca
Sem enfeites se levantar,
Nem flores eu pude ver,
Flores da vida fecunda,
Nesta áspera Ouro Preto,
Nesta árida Ouro Preto:
Nem veras flores eu vi
Nascidas da natureza,
Da natureza lavada
Pelo frio e o céu azul.
Tristes flores de Ouro Preto!
Só vi cravos-de-defunto,
Apagadas escabiosas,
Murchas perpétuas sem cheiro,
Só vi flores desbotadas
Nascidas de sete meses,
Só vi cravos-de-defunto
Que se atam ao crucifixo,
Que se levam ao Senhor Morto.
Vi flores de pedra azul...
Eu vi nos muros de canga
A simples folhagem rasa,
A avenca úmida e humilde,
Brancos botões pequeninos
323
Contemplação de Ouro Preto. In: PCP, p. 470 e 471
159
A custo se entreabrindo,
Mas não vi flores fecundas,
Não vi as flores da vida
Nascidas à luz do sol.
Eu vi a cidade árida,
Estéril, sem ouro, esquálida;
Eu vi a cidade nobre
Na sua pátina fosca,
Desfolhando lá das grimpas
No seu regaço de pedra
Buquê de flores extintas
Eu vi a cidade sóbria
Metida na eternidade,
Severa se confrontando
À cinza das ampulhetas,
Sem outro ornato apurado
Além da pedra no chão.
Eu vi a cidade barroca
Vivendo da luz do céu.
O texto se inicia com a marcação do eu-poético observando a cidade, com
o verbo em primeira pessoa, no pretérito (“Vi a cidade barroca / sem enfeites se
levantar.”) que denota uma posição ativa na interação com o espaço,
diferenciando-o do gesto meditativo passivo. O verbo no passado também reforça
o gesto realizado. O objeto visto – a cidade - está despojado dos adornos da
época de esplendor, mas se levanta, o que sugere a presença de movimento já
presente no primeiro poema do livro (“Motivos de Ouro Preto”).
160
A coesão do poema e da obra toda se dá pela repetição e retomada de
termos em vários poemas num trabalho intencional de redundância anafórica
324
. A
ênfase no verbo em primeira pessoa do presente do indicativo (“vi”), usado várias
vezes, reforça a idéia de uma visita in loco à cidade feita pelo poeta, e confirma a
situação em que a cidade se encontra. A repetição anafórica - “Vi”, “Só vi” “eu vi”,
“não vi” – sugere, assim, a importância do evento da visita e a intensidade da
contemplação (ativa) de uma testemunha ocular da história da cidade, e indica, ao
contemplar as ruínas urbanas que lembram a ação econômica no espaço, uma
releitura do apagamento histórico-social.
O procedimento anafórico repercute no texto, não só com a repetição do
verbo, mas também de outras palavras e expressões, tais como: “nesta”, “nem”,
“que se”. Esta repetição, como um ritual, também se refere à percepção do espaço
principal (cidade: barroca, nobre e sóbria) e seus lugares específicos (“muros de
cangas” e “grimpas”), num movimento visual que vai do geral para o detalhe, o
que mostra uma aguda percepção do eu-lírico.
Nessas “Flores”, o espaço é descrito de modo a salientar o sentido elegíaco
do eu-lírico. Ao buscar a grandiosidade perdida da cidade lamentada, o poema
evidencia a decadência reiterada ao longo da obra pela situação da “flor na
pedra”.
As figuras que estruturam o poema, a flor e a pedra, se entrecruzam de
forma dinâmica. As flores, como elementos orgânicos e mais leves, enunciam a
324
Como estilo, esta repetição confirma o processo de repetição na poética modernista. Gilberto
Mendonça Teles, op. cit. p. 156. O uso da visão pelo poeta é corroborado pelo verbo ver que
comparece repetidamente ao longo do livro, como emLuminárias de Ouro Preto” no verso:Em
161
relação do mundo espiritual com o material.
325
A fragilidade das flores - murchas,
sem vida - corresponde à situação da cidade, num denso jogo metonímico, pelo
qual aquelas remetem a essa numa relação de contigüidade. Na cidade só se
encontram as espécies “pobres” de flores, o que repercute a situação de
abandono em que o lugar se encontra (a cidade é descrita como “áspera”, “árida”,
“estéril”, “esquálida”, “sóbria”, “severa”, “sem ouro”). Este abandono é enfatizado
também pela falta de espécies verdadeiras e naturais (“Nem veras flores eu vi/,
Nascidas da natureza”, vv. 7 e 8) que seriam essenciais para o adorno da
cidade.
326
As flores – referência ao aspecto feminino e à fecundidade -, fazem parte
da sensibilidade poética que exalta a mulher, e no caso evocam o aspecto
feminino do espaço. Um elemento feminino enfeitaria um outro elemento feminino,
a cidade. (“Nem flores eu pude ver, / Flores da vida fecunda,”). O fato de ser
dedicado a uma mulher também amarra a idéia do feminino no poema.
327
O plural da palavra - “flores” – indica uma generalização e as únicas
espécies de flores nomeadas são os cravos-de-defunto (referidos às coroas
fúnebres, e à morte de Cristo), a avenca “úmida e humilde” (normalmente
Ouro Preto/ - Viva sua luz-/ Vi luminárias/ Dependuradas”. Também são usadas variantes do tipo
“mirar”.
325
As flores evocam a primavera, vitória sobre a morte, desejo carnal, erotismo, vida. Na tradição
cristã indica relação com o sagrado e transitoriedade. Cf. Udo Becker. Dicionário de símbolos.
Trad. Edwino Rayer. São Paulo: Paulus, 1999, p. 132; cf. Juan-eduardo Cirlot. Dicionário de
símbolos. Barcelona, Esp: Editorial Labor, 1969, p. 215. “Por su naturaleza, es símbolo de la
fugacidade de las cosas, de la primavera y de la belleza.” Como simbologia geral, é umprincípio
passivo”, mas há também a referência ás virtudes e figura da alma (“alma dos mortos”), infância,
estado edênico, instabilidade”.
326
Quanto à pobreza, o poeta tem um poema em COP sobre Igreja de o Francisco “São
Francisco de Assis de Ouro Preto” PCP, p. 490; e também escreveu sobre São Francisco de Assis,
em seus “Retratos-Relâmpgos” (In: PCP, p. 1201), onde o poeta chama o místico de “pobre da
coisa perecível”. O que reflete a simpatia pelo despojamento e a adesão à linha franciscana.
162
ambientada em lugares sombrios e úmidos), as escabiosas “apagadas”, e as
perpétuas “murchas”.
O vegetal flor, que simboliza, entre outras coisas, a consciência da
fugacidade do tempo e da transitoriedade da vida está muito marcada na visão do
poeta e o leva a solucionar seu texto com o contraponto de uma iluminação
racionalizadora. Este contraponto à passagem do tempo através de uma poesia
metafísica que, ao invocar o paraíso religioso de forma insistente, propõe a
superaçaõ da passagem do tempo, e se insere numa linha de poesia utópica.
As flores do poeta entram em relação com uma longa tradição poética de
abordar o tema, desde uma linhagem mística mais antiga até às práticas
românticas para as quais a flor está associada à mulher e, de certo modo, à
fertilidade.
328
Mas, para além das representações das flores como índices de uma visão
mística, há algumas referências históricas sobre as flores de Ouro Preto
registradas, por exemplo, no Guia de Ouro Preto. A partir da leitura deste livro, o
poeta teria estabelecido um diálogo com alguns autores-viajantes que relataram,
em seus textos sobre as flores da cidade. Um deles foi John Mawe, citado no
Guia, onde diz que “Nunca vira eu tão grande quantidade de belas flores,...”. Já
outro autor-viajante, Saint-Hilaire, dá outra versão, caçoando de Mawe, ao se
referir aos “Jardinzinhos mal cuidados” – “Entre as flores as preferidas, cravos e
rosas de Bengala.” Bandeira anota que a percepção de “decadência do lugar” foi
327
Outras figuras femininas comparecem em vários outros poemas do livro: igrejas e ruas, por
exemplo.
328
Primeiro, observemos que MM é leitor dos místicos, o que aponta para sua apropriação da
simbologia religiosa; depois o poeta mesmo afirma, quanto às suas leituras de Castro Alves, que
163
algo decepcionante para os viajantes europeus.
329
Ao registrar o descaso das
flores de Ouro Preto, Murilo se alinha com Saint-Hilaire.
A outra figura central do poema é a da pedra. As ruínas da cidade
aparecem no poema como uma paisagem petrificada. A idéia de uma petrificação
da paisagem se concretiza pela utilização da metáfora da pedra e de vocábulos de
campo semântico análogo ao da dureza (áspera, rígida, fria, severa)
330
. Mas as
ruínas aparecem como pedras resistentes em relação ao passado, e não como
índices de uma destruição sem vestígios, pois o poeta considera que a cidade
teria subsistido ao trabalho demolidor da história e das técnicas modernas de
intervenção urbanística. Neste ponto entra a referência religiosa que estrutura o
texto, isto é, no caso, a resistência teria sua força na “luz divina”, o que reitera a
opção pelo resgate espiritual, base ideológica do livro.
A resistência da cidade, assim, é enfatizada pelo uso de elementos da
natureza e pela referência constante ao elemento “pedra” em sua solidez e por aí
o poeta justifica a permanência da cidade, por ser construída de pedras mas que
não dispensa a sustentação espiritual concretizada pela luz divina, dois elementos
- pedra e luz - estruturantes do livro, que ao contrário das flores, dariam o sentido
de resgate para a cidade.
Ouro Preto e a natureza - figuradas claramente como produção simbólica -
interagem entre si como, por exemplo, no poema “Motivos de Ouro Preto” que
sua “magnólia cálida” filia-se à “camélia pálida” do poeta romântico o que justifica a referência a
estas tradições.Cf. PCP, p. 1213.
329
Apud Bandeira. Guia de Ouro Preto, p. 33 e 36.
330
Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário de língua portuguesa. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p.1292. “Pedra. [Do gr. pétra, pelo lat. petra.] s.f. Entre outros
sentidos da palavra temos: Matéria mineral dura e sólida, da natureza das rochas; Montanha de
pedra: rocha, rochedo; Lápide sepulcral; Pedra preciosa”.
164
registra o Monte Itacolomi. A esta montanha de pedra, ao contrário do sentido tupi
registrado por Teodoro Sampaio, qual seja, o de um menino com o pai, o poeta faz
uma leitura de cunho religioso ao associar o poder da rocha física ao da pedra,
apontando para cima, indicando a direção que leva a Deus:
E contra a dispersão das ossadas no tempo,
Que o amor à forma e a Promessa rejeitam,
Da pedra o testemunho antigo se levanta,
Poder do Itacolomi – e o da Pedra perene. (vv. 31-34)
O “Poder de Itacolomi”, como dado concreto e histórico, remete à “Pedra
perene”, adquirindo a função de metáfora da solidez, do permanente, do eterno. O
Itacolomi adquire uma funcionalidade histórica e sagrada ao testemunhar a busca
de riqueza que produziu morte e, neste aspecto, “ficou sendo a baliza que
orientava os batedores de ouro para o recinto do Tripuí.”
331
.
A pedra - termo que remete a minério explorado na região mineira traz a
idéia de durabilidade, estabilidade e, portanto, aquilo que resiste ao tempo. A
cidade, feita de pedras, permanece ao longo do tempo, apesar do abandono a que
foi relegada.
332
Isto, aliás, ecoa em vários poemas do livro, quando em alguns destes
comparece o termo pedra, com outros sentidos. Em “Flores de Ouro Preto”, seu
331
Bandeira. Guia de Ouro Preto, p. 12.”Itacolomi, corr. Ita-murumi, o menino de pedra; alusão ao
fato de ser o pico formado por um grande penedo com outro menor ao lado lado à guisa de filho”.
(Teodoro Sampaio, O Tupi na geografia nacional.) Popularmente o referido Monte é conhecido
como o “Dedo de Deus”.
332
O lamento sobre a situação da cidade também se encontra em outros poetas, como Bandeira e,
numa mirada diversa, também em Drummond.
165
uso enfatiza mais a precariedade e pobreza da cidade, mas a pedra também
contrapõe à idéia de fugacidade presente no elemento vegetal flor, e, portanto,
funciona como elemento de resistência.
A metáfora da pedra
333
, disseminada pelo livro, remete à idéia da
resistência espiritual e aos fundamentos da Igreja Católica, por exemplo, na leitura
que os Padres fizeram de Pedro como a Pedra em que Cristo teria construído sua
Igreja
334
. Isso reforça a idéia de algo que perdura como a Igreja.
Nos versos 29-35, é indicada a idéia de pobreza da cidade que, antes
“nobre”, agora aparece pobre e estéril:
Eu vi a cidade árida,
Estéril, sem ouro, esquálida;
Eu vi a cidade nobre
Na sua pátina fosca,
Desfolhando lá das grimpas
No seu regaço de pedra
Buquê de flores extintas. (grifos nossos)
Por estes versos se percebe a resistência da cidade, quando de seu corpo
de pedra (“regaço de pedra”) brotam as “flores extintas”. A pedra no caso seria o
suporte de onde saem as flores que, como elementos orgânicos rompem o
concreto.
A sobriedade da cidade enfatizada pela “pedra” e não mais pelo ouro é
compensada pelo uso da pedra como elemento de permanência.
333
Outros poetas trataram da pedra, como Drummond em “No meio do caminho” e Cabral, na
Educação pela pedra.
166
Outro dado importante que reitera a austeridade é o da forma utilizada no
texto. Em Contemplação, o estilo varia entre o registro mais elevado e pesado -
em alguns poemas, a linguagem atua no registro culto e clássico, ligando-se à
seriedade do tema -, e o registro mais “humilde” e leve, o qual, aliás, prepondera
no livro. O uso das redondilhas - consideradas típicas da cultura popular – é
contraditório pelo fato de que esta composição prevê um tom alegre, mas o poeta
expressa, com ele, um sentimento em tom grave, aproximando-se dos modos
presentes nos “romances” da cultura popular. Na verdade são romances que
trazem um “sentido trágico” da existência.
335
Luciana Picchio chama a atenção para a “forma poética” predominante no
livro. Além do soneto branco, destaca “o gosto pelo metro breve, ditirâmbico, dos
romances em que a tradição religiosa e mariana da litania se une à sabedoria dos
metros frottolati italianos do Ditirambo de Bacco in Toscana do Redi, por exemplo,
que nos seus anos de Roma MM (sic) amava citar como uma das fontes da sua
inspiração formal.”
336
Mesmo o sermo humilis - reproduzido na utilização de versos breves e no
uso de imagens de coisas simples, como flores – tem a ver com a busca do
sublime através das coisas pequenas, o que confirma o propósito geral da obra.
334
Evangelho segundo... “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja.”verificar na
Bíblia
335
“Ángel Valbuena Prat, em sua Literatura Castellana, atenta para o sentido trágico das
personagens nos “romanceros” espanhóis como se vê em o El Cid, a derrota de D. Rodrigo, em
seu desterro para Burgos, neste que é o maior documento literário da Espanha Medieval. O
‘sentido trágico’ é, na verdade, um dos temas dos romanceros – é, por assim dizer, quase que a
sua matéria principal.” Benilton Cruz Vozes do romanceiro em “Romance” de Mário Faustino”.
Disponível em: <http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/index.html>. Acesso em: 29 mar.
2006. O tipo romance usado no livro traz um “sentido trágico” o que é compatível com o sentimento
do poema de Murilo.
336
Luciana Picchio. “Notas e variantes”. In: PCP, p. 1680.
167
Além disso, a simplicidade do poema corresponde à sobriedade da cidade,
estabelecendo-se uma relação de reciprocidade entre o estilo literário e o concreto
da cidade. Isto é, a cidade-tema pede um texto “pobre” e o poeta, então, ajusta a
linguagem à situação do espaço, produzindo uma arte despojada.
337
A busca da transcendência não se dá de modo explícito. A naturalidade dos
poemas simples, como a alternância de acentos nos versos – que desmente em
parte o pressuposto da obrigatoriedade de acentuação tônica em sílabas
determinadas – índice de uma possível desatenção do autor para com o ritmo,
passa a ser manifestação natural dos elementos do poema que levariam ao
absoluto.
338
A simplicidade e a aparente despreocupação formal são reforçadas,
ainda, pela falta de rima nos versos brancos. Isso tudo é um modo que opera na
configuração da paisagem da cidade, não mais a cidade física existente, mas a
construída pela poesia. Nesse sentido, a construção poética mimetiza a
arquitetura da cidade.
Na última estrofe, destaca-se o confronto entre a transitoriedade e a
permanência da cidade: apesar de sua sobriedade (“Além da pedra no chão”), a
cidade está “Metida na eternidade” e se contrapõe à passagem do tempo (“cinza
das ampulhetas”). A cidade que se confronta com a ampulheta, agora sem a
riqueza do ouro, só sobreviveria pela luz divina.
Eu vi a cidade sóbria
Metida na eternidade,
Severa se confrontando
337
Pobre significa isento de adornos literários,
338
Manuel Said Ali. Versificação portuguesa. São Paulo: Edusp, 1999, p. 67-75.
168
À cinza das ampulhetas,
Sem outro ornato apurado
Além da pedra no chão.
Eu vi a cidade barroca
Vivendo da luz do céu.
O poema conclui com a luz do céu sustentando a vida da cidade. Esta
ênfase na luz divina está presente em outros poemas do livro, pois, no caso, só
ela pode resgatar a cidade corroída pelo tempo, e que em sua pobreza, contém o
elemento positivo da luz divina, o que remete à busca da solução metafísica.
339
A visão da pobreza da cidade repercute a visão de Manuel Bandeira, do
referido Guia. Vale transcrever a passagem deste livro em que é exposta a
percepção do poeta sobre o espaço da cidade:
Não se pode dizer de Ouro Prêto que seja uma cidade
morta. (...) Ouro Prêto é a cidade que não mudou, e nisso reside o
seu incomparável encanto. Passada a época ardente da mineração
(em que foi, de certo, um arraial de aventureiros, a sua idade mais
bela como fenômeno de vida), e a salvo do progresso demudador,
pelas condições ingratas da situação topográfica, Ouro Prêto
conservou-se tal qual, em virtude mesmo da sua pobreza.
340
O texto de Murilo conversa, assim, com o do poeta pernambucano, onde se
registra ainda que a cidade de Ouro Preto “conservou, mercê de sua pobreza,
339
A luz, como elemento restaurador, faz parte de outros poemas, por exemplo, “Luminárias de
Ouro Preto” Em Ouro Preto/ - Viva sua luz – / Vi luminárias/ Dependuradas,/ Vi luminárias/ Que a
mão conduz,/ Vi luminárias/ Verdes, vermelhas,/ Vi luminárias/ Roxas azuis.
(PCP, p. 501)
340
Bandeira. Guia de Ouro Preto, p. 43. Mantemos a grafia original.
169
uma admirável unidade. De todas as nossas velhas cidades é ela talvez a única
destinada a ficar como relíquia inapreciável do nosso passado.“
341
A preocupação com as condições materiais da cidade de Ouro Preto é
objeto da atenção de outros textos de Manuel Bandeira que, além de Guia de
Ouro Preto (de 1938), publica, em 1952, Opus 10, onde se encontra o poema
“Minha gente, salvemos Ouro Preto”, praticamente contemporâneo do livro
Contemplação. Bandeira estava interessado no “lado pobre” da cidade – nos
“casebres de taipa de sopapo” -, e não só em seus casarões e “monumentos
veneráveis”
342
.
Uma das idéias predominante em “Flores de Ouro Preto”, e que atravessa
Contemplação, é a da amarração em torno da preservação e recuperação do
espaço, apontando o problema e a solução religiosa. Ao racionalismo da cidade
moderna o poeta opõe a cidade parada no tempo que precisa ser resgatada pela
“luz divina” ao mostrar reiteradamente que a resistência do espaço se daria pela
via da humildade e pobreza, o que denota uma posição religiosa de tipo
“popular”.
343
341
Idem, p. 47.
342
Manuel Bandeira. Poesia completa e prosa. Volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985,
p. 107, 293-312. Opus 10 faz parte do acervo de MM. O Guia de Ouro Preto e o veio poético e
Bandeira estão presentes na poética muriliana e justificam a dedicatória ao poeta pernambucano
em “Romance de Ouro Preto” de Contemplação. Como se sabe, Bandeira também teve
participação em questões relacionadas à proteção dos bens culturais do País.
343
O grupo do patrimônio histórico e cultural no Brasil (personalidades que estavam ligadas ao
tema e que produziram estudos, poemas, ou que e envolvidos nos planos de reforma de Ouro
Preto).Cf. Mariza Veloso Motta Santos, op. cit., p. 77-95. Estes incluíam personalidades como
Rodrigo Melo Franco de Andrade e Bandeira que, além de estar ligado ao ensino de literatura, era
membro do conselho consultivo do SPHAN. Cf. Sérgio Micelli. Intelectuais à brasileira. São Paulo:
Cia das Letras, 2000, p. 274. Os discursos sobre patrimônio impulsionaram vários poemas de
Murilo Mendes em Contemplação, na qual é mantido intenso diálogo com eles. Além dos dois
mencionados, Lourival Gomes Machado, paulista-mineiro dedicado à reflexão sobre a arte das
Minas Gerais e que, na continuidade das conquistas modernistas, tinha o intuito de trabalhar pelo
renovação da inteligência brasileira.
343
É desse incansável pesquisador que o poeta absorve
170
O último verso (“Vivendo da luz do céu.”) fecha o círculo do poema. Este
verso propõe a saída metafísica exatamente pelo fato de o espaço ter sido
abandonado pelos homens, mas sugere também que a cidade teria sobrevivido
pela providência divina. A memória do espaço em Murilo remete, assim, à
sacralidade católica, num complexo ritual de rememoração via liturgia católica.
A “resistência pela pobreza” se verifica ainda em outros poemas. Por
exemplo, em “Motivos de Ouro Preto” (na parte 4, vv. 76-88), no qual também se
mostra a preocupação do poeta em relação à situação da cidade e às possíveis
intervenções urbanísticas sobre ela.
As novas técnicas usadas por especialistas da área não transformarão a
cidade, pois, como é acentuado no poema, a cidade por sua “pobreza e solidão“
está preservada da reforma. Apesar da aceleração da história, com seus
deslocamentos dramáticos, a cidade guarda em si as possibilidade de novas
tradições, já que “Ouro Preto para o futuro um dia se voltara, / Gerando no seu
bojo a nova tradição...”
344
Isso é exemplificado em um trecho de “Motivos de Ouro Preto”, abaixo
transcrito:
Ouro Preto se inclina com elegância,
Ouro Preto se inclina, e um dia cairá.
informões a partir de uma leitura meticulosa e sistematizada, por exemplo, do texto “Viagem a
Ouro Preto”. Em “Viagem a Ouro Preto”, publicado na Revista do Arquivo Municipal / São Paulo em
1949, o autor registra informalmente sua passagem pela cidade. Ao viajar para Ouro Preto,
Lourival anotou que “(...) a arte que a civilização colonial semeou e nutriu, como a prever que, uma
vez apagadas as luzes de seu esplendor, algum testemunho deverá restar de sua grandeza.
”Lourival Gomes Machado. “Viagem a Ouro Preto”. In: Barroco mineiro, p. 177. Mantenho a grafia
original
344
Estes versos remetem aos investimentos dos modernistas na questão do patrimônio histórico.
171
Nova técnica transfigura a terra,
Mas os futuros engenheiros e arquitetos
Não mudarão o corpo de Ouro Preto
Que ainda se preserva da reforma
Por sua mesma pobreza e solidão.
Ouro Preto para o futuro um dia se voltara,
Gerando no seu bojo a nova tradição...
Acelerando a história, a vida deslocou.
Mas a lenda combate aqui a história:
Seus espectros e igrejas permanecem
Pelo ciúme da morte resguardados.
A relação com o ambiente físico, em Contemplação, traz a dimensão
subjetivo-metafísica, produzindo uma fecunda relação em que mundo e sujeito
estão implicados um no outro: o poeta “objetifica-se” na cidade, identificando-se
com o espaço, sendo o elemento mediador dessa relação a informação religiosa.
A aproximação do poeta com a cidade, ao se confundir com os templos vive uma
“disposição para o elevado”
345
.
Vejamos alguns poemas em que se registra a interação do eu-lírico com o
espaço. Em “Procissão do enterro em Ouro Preto” (quinto poema do livro), bem
como em outros poemas, o poeta também contempla as cenas e paisagens da
cidade e nele descreve uma procissão na cidade, e sua posição é de quem ,
observa de longe. “Debruçado ao balcão do solar Vasconcelos / De onde toda
Ouro Preto estende-se a meus pés,” (vv. 2 e 3 ).
345
Miguel Sanches Neto. “Cidades mortas – Um cânone tropical 10”. Gazeta do Povo, 14.06.2001.
Disponível em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/msanches021.html>. Acesso em: 13 nov. 2004. A
172
Já em “Romance das igrejas de Minas” (segundo poema do livro), o eu-
poético caminha e se relaciona com o espaço de várias cidades – não só de Ouro
Preto -, mas neste caso a observação recai sobre objetos específicos, as
edificações religiosas (“templos soberanos”, v. 32). O poema começa com o
movimento pelos espaços públicos das cidades: “Minha alma sobe ladeiras, /
Minha alma desce ladeiras.” Aí se denota uma ambigüidade da atuação do eu-
lírico, pois o movimento é espiritual – da alma - e não físico. Na busca de uma
interação com o espaço, como as personagens que aparecem nos poemas como
sombras, a subjetividade poética se aproxima mais da cidade.
4.6. Religião e história em Contemplação de Ouro Preto
A redescoberta do Brasil em Contemplação em tom menor coroa o projeto
ético-poético muriliano, pois o discurso religioso, ainda que eivado de elementos
surrealistas, torna-se aí elemento fundante do poético. Aí a poesia se torna opaca
e clara ao mesmo tempo. Opaca por adentrar um universo religioso ensimesmado
num estilo barroquizante e clara por revelar entre as brumas do texto a presença
de espectros coloniais e resíduos do período, retomados em outra chave. Não só
no estilo barroco é reinserido em novo contexto, mas também os subprodutos
incorporação da paisagem barroca e o exílio nos espaços metafísicos, aparentemente sem
preocupação com o momento histórico reflete o isolamento do poeta.
173
sociais e políticos (loucos, padres, poetas, viúvas, Aleijadinho, Tiradentes). Às
ruínas barrocas agrega-se o peso da tradição católica.
346
Observa Alfredo Bosi que o ethos, poderia ser traduzido por “uma
disposição constante da alma”, sendo que, no caso da literatura, seria o caráter da
obra que permaneceria independente do estado de ânimo passageiro do poeta, o
pathos.
347
Contemplação se constrói com base no ethos em que predomina, o
religioso, suficiente para o definirmos esse livro como uma obra de caráter
religioso, reforçado pelo tom menor quase que inalterado.
348
Afrânio Coutinho
considera que a perspectiva religiosa se manifesta na totalidade do livro:
Poesia religiosa, com uma atmosfera de endoenças, ostenta uma
novidade na obra muriliana, a da ordem em geral e a da ordenação
em metros como o decassílabo, o alexandrino e outras. (...) O livro,
em última análise, constitui um tributo ao catolicismo e à terra, às
cidades patinadas pelo tempo, sobre as quais pesa a sombra do
Aleijadinho.
349
Como se sabe, a partir de 1934, o escritor já tinha adotado o Catolicismo,
desde Tempo e Eternidade, como “horizonte de universalização”, mas uma
346
Carlos Drummond de Andrade, nos anos 1943, em “Religião e Poesia” não atribui qualquer
força à religião quanto a potencializar Murilo para a função poética, negando assim a intuição
religiosa de um Alceu Amoroso Lima (1941). “Confissões de Minas.” In Obras Completas, p. 598.
Todavia, negar a religiosidade ou pelo menos as manifestações religiosas nessa poesia, seria
obliterar o próprio signo poético muriliano.
347
Alfredo Bosi. “A interpretação da obra literária”, p. 468 e 469. O autor retoma o pensamento de
Quintiliano, que considera o pathos (latim: affectus), um sentimento forte e passageiro, enquanto
que o ethos seria mais permanente.
348
O livro tem o tom monótono da ladainha, e com vibrações que criam linhas tênues entre um
poema e outro, em degradé. Uma poesia que experimenta a relação com o espaço muito próxima
da representação realista, mas que matiza com um discurso eminentemente literário.
349
Afrânio Coutinho. A literatura no Brasil. Modernismo, p. 169.
174
religiosidade aberta a outras tradições, como o misticismo oriental, o que denota
uma posição anti-dogmática.
350
As estratégias simbólicas de Contemplação se organizam em torno da
religiosidade articulada com o passado histórico e literário. Realizam-se, na cidade
imaginária do poeta, rituais, tais como missa, procissões, fazendo do espaço
urbano uma espécie de “palco do sagrado” e também lugar de evocação poético-
cultural de tempos remotos.
351
À primeira vista, a intencionalidade metafísica que perpassa o livro pretende
suplantar a visão histórica, mas a marca desta e dos dados factuais se insinuam
de modo oblíquo no espaço textual. A história, não seria, assim, um dispositivo
secundário, pois o poeta não prescinde dela para transcender o real com o ethos
religioso.
Por se constituir num discurso poético-religioso, o de Murilo não se
configura como uma fala unidirecional e irreversível, como o discurso da
teologia
352
. E apesar da tessitura homogênea e consistente do texto, as tensões
350
Mário de Andrade afirma que, por mais ortodoxo que o poeta seja, peca precisamente pela
falta de universalidade de seu catolicismo, pois “veste de modas temporárias as verdades que se
querem eternas”, e “regionaliza” a religião. Em seguida, vem a polêmica expressão do crítico que
se refere à heresia do poeta: “...o seu Catolicismo guarda a seiva de perigosas heresias”. Acusa,
ainda, a “confusão de sentimentos” que pensa ser “a identificação de sentimentos profanos com
religiosos, em relação a pessoas e conceitos religiosos, identificação principalmente de ordem
passional.” Em seu “delírio classificatório”, Murilo faria cruzamentos inusitados ao comparar a
mulher amada com Cristo (“Eros Christina”- mistura de Cristina com Christus). Para o Mário
católico essa associação soaria como um exagero, e nomeia o procedimento como “tragédia
herética”. Um outro aspectos que o crítico levanta no poeta é o do pecado e da abjeção de si
mesmo. (In: M. de Andrade. ”A poesia em pânico”, p. 18 e 19). Cf. acervo do poeta, ondetextos
de Zen-budismo e da cultura indiana.
351
André Figueiredo, op. cit., p. 63-66.
352
Quanto à irreversibilidade do texto teológico, cf. Eni Pulcinelli Orlandi. “O discurso religioso”. In:
A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso. 2ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1987. Diz
a autora: “E entendo a reversibilidade como a troca de papéis na intenção que constitui o discurso
e que o discurso constitui.” (p. 239).
175
religiosas, políticas e culturais são neles dramatizadas, o que não seria permitido
por um discurso teológico stricto sensu.
Na busca de unidade semântica do livro, há índices que nos levam a
considerar as relações tensas com a realidade histórica, apesar da estratégia do
texto com delimitação formal que o estancaria nas relações com o exterior, o que
não é tão realizável devido ao parentesco com outras formações discursivas além
da católica. Apesar de ter a religião como base ideológica, o livro traz as
preocupações de ordem urbanística. Desse modo, a centralidade religiosa aí
presente não submete a poesia a uma teologia, ainda que o texto literário possa
servir de veículo à religiosidade.
Na relação com o sagrado a poesia não é regulada totalmente por eles,
embora se verifique que o poeta estetiza o sagrado e sacraliza o poético, prática
bastante comum na literatura européia entre escritores convertidos ao
Catolicismo.
353
Porém Contemplação se mostra permeável ao seu entorno e
mantém diálogo com o momento e com a história da cidade. O diálogo com o
momento se dá, por exemplo, quando medita na situação de Ouro Preto. A
relação com a cidade na poesia se dá pela busca de “recuperação” do espaço
353
Karl-Josef Kuschel. Os escritores e as escrituras. Retratos teológico-literários. Trad. Paulo Astor
Soethe (et al.) São Paulo: Edições Loyola, 1999. Nesta obra, é estudado o fenômeno da conversão
religioso e também ideológica de alguns escritores, entre eles Paul Claudel, André Gide, T. S. Eliot.
Cf. o caso de Gottfried Bem, às páginas 14-19. Para este escritor, “a arte é hoje a única forma
possível de transcendência.” “A arte é transcendente na medida em que logra atingir a
conformação do inconformável, a atribuição de forma ao que é amorfo, de modo a contribuir para a
‘desbanalização’ da vida. Todo poema é um ato de transcendência como este, um transcender
sem transcendência.”(p. 18 e 19).
176
decaído, o que estaria em consonância com as práticas de arquitetos e artistas do
período envolvidos nos projetos de preservação do patrimônio cultural.
354
Mas também há o diálogo com a história, pois, ao contrário de abordagens
que consideram a religião como um fator de isolamento do poeta em relação ao
contexto histórico, sua poética está sustentada em boa parte na história.
No Brasil dos anos 1950, o espírito religioso conservador se manifestava
em várias áreas do saber, inclusive no campo da história, no qual se sentia
marcada influência da linha tradicionalista católica que se inclinava para “enxergar
nas vicissitudes da história a marca da Providência divina”. Esta atitude religiosa
no campo do saber daria uma resposta aos dilemas político-econômicos apoiada
numa escatologia divina.
355
A poesia de Murilo Mendes, heterodoxa em relação às doutrinas da Igreja,
traz as marcas da catolicidade baseada na redenção divina, prática que se
aproxima muito de uma “secularização da linguagem religiosa”
356
. Isto é, o poeta
traduz para o discurso poético as idéias católicas. No entanto, esta secularização
abriga um conflito entre a história social e a história sagrada.
354
Há também a relação com a religião e com os espaços simbólicos de Minas que, na obra de
Murilo dos anos 50, se deu pela experiência e pelo contato com escritores mineiros. Cf. Eneida
Maria de Souza. “vozes de minas nos anos 40”. In: Gilvan Procópio Ribeiro e José Alberto Pinho
Neves. (org.). Murilo Mendes: o visionário, p. 72, 74 e 76.
355
Leandro Konder, op. cit. “História dos intelectuais nos anos cinqüenta”, p. 360. Cf. Otto Maria
Carpeaux. “Literatura católica”. In: Tendências contemporâneas da literatura. São Paulo: Edições
de Ouro, 1968. A obra de vários escritores católicos do século XX, na Europa, era de cunho
conservador, mas isto não significava que houvesse intenção deliberada, por parte dos autores
religiosos, de se ajustarem a uma ideologia política de direita. Alguns desses escritores, como A.
Breton e Apolinaire, se identificaram com o Surrealismo e com o Marxismo. Cf. Karl-Josef Kuschel,
op. cit. Cf. também Han Jürgen Baden. Literatura y convesion. Trad. do alemão de Luis Alberto
Martin Baro. Madrid, Espanha: Ediciones Guadarrama, 1969. Nesta obra, é estudado o fenômeno
da conversão religiosa e também ideológica de alguns escritores, entre eles Paul Claudel, André
Gide e T. S. Eliot.
356
Karl-Josef Kuschel, op. cit., p. 21. O autor usa a expressão ao tratar de um texto de Brecht em
relação à conversão de A. Döblin.
177
Mas em Murilo não há uma aceitação incondicionada das diretrizes da
Igreja, pois desde seus primeiros textos de cunho mais surrealistas que marcam
um posicionamento singular dentro do contexto religioso. Mesmo no caso de
Contemplação, quando a interiorização do eu se mostra como reação à crise da
humanidade - o que, aliás, mostra a sintonia do poeta com a solução moral
pregada pela Igreja – não podemos dizer que o poeta se alinha com uma linha
conservadora.
357
Na obra sobre Ouro Preto predomina a visão cristã de história que se pauta
pela salvação da humanidade, perspectiva que se baseia nos princípios da Queda
humana e da Redenção divina, o que já teria sido concluído com a vinda e
sacrifício de Cristo.
358
A concepção acima inclui a mistura do sagrado e do
profano, com a evidente subordinação do último ao primeiro, e inclui também a
unidade dos acontecimentos no tempo e no espaço, bem como a “ambigüidade do
indivíduo na história, já que seu próprio destino acha-se vinculado a desígnios
divinos e não inteiramente cognoscíveis.”
359
A correlação entre história sagrada e história social aí operada patenteia-se
ao se cruzarem imagens religiosas com personagens históricas, por exemplo,
quando Cristo se mistura com as sombras que “sobem do barroco” em “Motivos de
357
Carlos R. Jamil Cury. Ideologia e educação brasileira. Católicos e liberais. 4ª ed. São Paulo:
Cortez; Autores Associados, 1988, p. 27-62 (Capítulo I – “A ideologia católica”). “Para o grupo
católico o mundo, e em especial o mundo ocidental, está em crise. É uma crise generalizada que
atinge os aspectos materiais, sociais, jurídicos e principalmente morais. Esta crise, que se
apresenta sob a forma de desmoronamento das instituições vigentes e da desorientação das
consciências individuais titubeantes ante seus deveres, atinge também o Brasil.” (O autor cita P.
Wust. “A crise do homem do Occidente”, A Ordem, Outubro, 1934, p. 438-436).
358
Murilo de Moura. Murilo Mendes, p. 170-171. O autor não se refere especificamente a Ouro
Preto. Cf. Hannah Arendt. “O conceito de história”. In: Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W.
Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 60-126.
359
Murilo de Moura. Murilo Mendes, p. 172.
178
Ouro Preto”. A postura ambígua do sujeito se dá quando, em alguns momentos do
livro o poeta se aproxima da cidade e em outros e se distancia dela para
“contemplá-la” pela perspectiva divina.
O salvacionismo “híbrido” dos textos murilianos é apontado por vários
estudiosos de sua obra, como Merquior, que considera a caridade do poeta como
a capacidade de “jogar a luz do sagrado contra as misérias do real.”
360
Mas o
misticismo poético combinou-se “a uma leitura crítica da história e de seus
elementos materiais, políticos e culturais.”
361
A religiosidade muriliana dos anos 50 é arquitetada por uma construção
com lastro na teologia católica, mas mais ainda na religiosidade popular – “a rude
religião” – que finca raízes profundas no Cristianismo primitivista. A dimensão
popularé incorporada num discurso elaborado, sinal de uma prática intelectual
que assume a diversidade da religiosa no contexto poética. A dimensão popular se
revela pelo uso de formas simples, como o romance, prática essa muito associada
ao cordel.
As práticas do poeta denotam também a existência de uma grande
quantidade de “religiões” no interior do Catolicismo. Sabedor dessa possibilidade,
o poeta compõe um discurso que instaura uma diversidade religiosa. Aí ele
mistura as dimensões da doutrina e a das práticas religiosas populares. A mistura
dessas duas dimensões é demonstrada em Contemplação pela valorização, por
360
Merquior apud Laís de Araújo, op. cit., p. 375.
361
Eva Seabra da Cruz, op. cit., p. 7.
179
exemplo, da arte de um Aleijadinho e das várias manifestações da religião popular
(cantorias, procissões, ex-votos).
362
No palco da cidade, o poeta registra os rituais civis e religiosos. Daí sua
referência tanto ao ritual da missa como evento popular, em “Romance das igrejas
de Minas”
363
, que passamos a abordar.
O poema se inicia com a “alma” do poeta que “sobe e desce ladeiras”,
portando andando à pé pelas cidades mineiras, e portando uma “candeia na mão”.
Podemos dividir o poema em partes marcadas pelo estribilho “Minha alma sobe
ladeiras”. Na primeira parte do poema (vv.1-46), a alma procura “O gênio das
Minas Gerais/ Que marcou estas paragens,//(...)Com o sinal de seu lirismo,/ Com
a cruz da sua paixão.” (vv.6 e 6 // 16 e 17). Aí o poeta vê as marcas da arte e do
trabalho nas paisagens mineiras. Pensa na presença de “templos soberanos” com
elementos eróticos e populares (“De linhas voluptuosas,”/ Íntimos, doces,
profanos,/ Refinados, populares,/ Que inspiram poesia e dó.” (vv. 35-38). Pensa
nas igrejas mais destacadas, mas também meditou nas capelas humildes (“Na
colina levantadas,/ Vestidas de branco e azul.” (vv. 45 e 46).
Depois de elencar o que encontra “fora” das igrejas, na segunda parte (vv.
47-129), o eu-lírico adentra os templos e descreve o cenário interiores (Cristo,
Santas, pinturas emolduradas que representam a mitologia católica, e todos os
362
Antonio Gramsci aponta duas dimensões na religião: uma é a concepção de mundo e a outra é
a atitude prática. A primeira corresponde ao trabalho dos formuladores de doutrinas, e a segunda,
às práticas da religião popular constituída pelo folclore e o senso-comum. Gramsci apud Eni
Pulccinelli Orlandi. “O discurso religioso”. In: A linguagem e seu funcionamento: as formas do
discurso, p. 248-9. A autora cita Gli intelletuali e la organisazione della culttura para explicar a
heterogeneidade social e ideológica na religião católica. Sobre a sociabilidade, no período colonial,
em torno de elementos religiosos, cf. Cf. Julita Scarano. Fé e milagre: ex-votos pintados em
madeira: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Edusp, 2004.
363
Cf. Antologia no Anexo II.
180
elementos que compõem o ambiente de uma igreja tradicional, juntamente com as
intervenções de Aleijadinho).
Na terceira parte (vv. 130-296), no interior da igreja a alma “ilumina” os
santos de sua devoção, e então o poeta descreve a realização de uma missa. O
que chama a atenção nessa parte é a valorização do mito popular, a Santa Maria.
Tanto é que o celebrante “lê meio apressado” o texto do Evangelho de São João,
enquanto que ao recitar a Santa-Maria o tom solene aumenta. E o próprio poeta
assume em seu discurso partes da reza, por exemplo, “Mãe de esperança e
doçura” (v. 278).
Na quarta parte, (vv.292-6) a alma se compenetra e “Evoca no ar lavado/ O
drama da Redenção.”( vv.295-6). Na quinta parte (vv.297-316), o poeta mostra a
comoção da alma em sua procura pela “cruz da sua paixão”, e registra que
escreveu um canto “Inspirado na grandeza/ da rude religião” (vv. 307-8). Faz ao
final um elogio da “rude religião” “Doutrina de vida inteira,/ Em louvor do Cristo,
amém.” (vv. 315-6).
Para além do intenso fervor que dá vida ao poema, o que nos chama a
atenção é a referência a uma religiosidade marcadamente popular. E isso não se
reflete só no conteúdo do poema, mas na forma popular, o romance com laivos
dos ritmos de cordel.
Como praticamente em todo o livro, o sentido da visão aí também é
privilegiado pelo poeta que “divisa” e “vê” todo o cenário das igrejas nas cidades,
tanto os internos como os externos.
A religiosidade aí presente se coadunaria com o espírito das cidades
históricas que não se adaptavam aos novos tempos o que patenteou um conflito
181
entre o moderno e o tradicional
364
. Ouro Preto e outras cidades históricas
passaram ao largo da modernização que se implantava no País, mantendo seus
rituais impregnados de uma religiosidade “rude”. E, nestas cidades, as igrejas
ganham centralidade na vida da população que estava “à sombra dos tempos
idos, das grandezas perdidas e das pessoas desaparecidas, num profundo estado
de prostração religiosa.”
365
Como aponta Maria Ivonete Santos Silva, a cidade de Ouro Preto se
constitui em espaço diversificado, com suas tradições e rupturas, embalada pelas
ladeiras e pelos sinos, pelas imagens da vida e morte presentes nas igrejas. Tudo
isso dá ao poeta a oportunidade de articular as lembranças das sombras do
passado, ligando-o às questões dramáticas de seu tempo, o que requer um
trabalho com a linguagem “que leva Murilo a passar da desarticulação à
construção, para compartilhar com o leitor a experiência da busca da harmonia na
diversidade.”
366
No fundo, para apreciação da cidade e região histórica o poeta se confronta
com o moderno e o tradicional. E é no encontro desses dois pólos que o poeta
constrói sua poesia, com valorização da o universo “pré-moderno” muito
condizente, aliás, com a ambiência de Contemplação.
364
Eneida Maria de Souza. “vozes de minas nos anos 40”. In: Gilvan Procópio Ribeiro e José
Alberto Pinho Neves (org.). Murilo Mendes: o visionário. Juiz de Fora: EDUFJF, 1997, p. 76. Para a
autora, a Igreja da Pampulha, simbolizando a modernização, com seu “aspecto desmistificador”, se
coadunava mais com o espírito humorístico de MM.
365
Miguel Sanches Neto. “Cidades mortas – Um cânone tropical 10”. Disponível em:
<http://www.secrel.com.br/jpoesia/msanches021.html>. Acesso em: 13 nov. 2004.
366
Maria Ivonete Santos Silva & Maria Cristina Franco Monteiro. “O conceito de convergência, de
Otavio Paz, e sua realização nas obras de Murilo Mendes e de Antonio Francisco Lisboa, o
182
4.7. Revisitação da tradição literária
Além dos discursos preservacionistas (já vistos) e dos religiosos, há uma
assimilação de textos literários. O diálogo com a tradição literária se dá através de
escritores eleitos, e através dele o autor propõe a revitalização poética ao
trabalhar uma linguagem de inspiração simbolista em tempos modernos. Um
desses é Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)
367
, considerado, pelo poeta,
como um modelo da tradição simbolista e religiosa, também porque trabalhou com
dois temas pertinentes à Contemplação, o amor e morte. O poeta simbolista é
tema do grande “Contemplação de Alphonsus”
368
(422 versos), considerado por
Murilo como um dos melhores poemas que já produziu. O texto é significativo por
imbricar os temas referidos a Alphonsus e fazer parte da volta às profundezas das
tradições culturais de Minas.
No poema muriliano os versos lembram a estética simbolista, mas que,
segundo Merquior, são contraponto ao poeta mariano, pelo fato de Murilo se
afirmar “no sentido existencial e filosófico da religiosidade.”
369
Segue o início do
poema “Contemplação de Alphonsus”
370
Aleijadinho.” Disponível em http://www.ufop.br/ichs/conifes/anais/LCA/lca2803.htm. Acesso em: 04
maio 2005.
367
Como se saber, Alphonsus, nascido em Ouro Preto, vai para São Paulo, mas volta para Minas
Gerais, terminando seus dias como o “Solitário de Mariana”.
368
O poema é considerado um dos melhores que realizou. Sobre a familiaridade “alphonsina” de
COP, cf. Ivo Barroso. “Alphonsus, o poeta das sonoridades siderais”. Disponível em:
<http://www.secrel.com.br/jpoesia/ibarroso1.html>. Acesso em: 06 mai. 2005.
369
José G. Merquior. De Anchieta a Euclides, p. 180 e 202. Entretanto, o marianismo é uma das
bases que sustentam as idéias de COP.
183
No cume da colina de Mariana
Que guarda a igreja morta do Rosário,
Adonde antanho oravam os escravos,
Três poetas desdobrando o mesmo rito
No movimento sêxtuplo das mãos,
Limpam a tumba rústica de Alphonsus
Na dúbia luz que dos seus versos vem.
O tom elegíaco do poema é trabalhado numa linguagem fechada que
corrobora a idéia de nostalgia.
371
O uso de sons vocálicos fechados e nasalizados
instila conotação umbrosa à atmosfera poética.
No poema, assim como no livro, o sagrado se relaciona a um tempo
passado. A igreja do Rosário, por exemplo, aparece como “morta” conota a ação
no passado remoto que é verbalizado através de expressões arcaicas (“adonde”,
“antanho”, “rústica”) que reiteram a nostalgia. A linguagem “arcana” é construção
contrapontística que indicia a retomada de uma corrente poética deslocada
temporalmente. Além dos modos arcaicos, acima referidos, a incorporação de
hipérbatos representa, na forma, a revisitação da poesia alphonsina. Assim como
Alphonsus, Murilo “poliu” o verso, fazendo uma reconstrução do passado
literário.
372
Um outro poeta citado por Murilo é Dante Alighieri, na parte final do poema
intitulada “Invocação à Santíssima Trindade”. Aí é referido especialmente o Canto
370
Outras partes do poema se encontram na Antologia do Anexo II, a título exemplificação.
371
Cf. Alfredo Bosi. “O som no signo”. In: O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo: Cia das
Letras, 2000, p. 48-76.
372
Joana Frias, op. supra cit., p. 42. A respeito do trabalho com o verso, afirma a autora: ”A Murilo
Mendes interessava igualmente, como à Geração de 45, a valorização dos autores do passado
antigo, em cujas leituras se havia iniciado. É significativo que, no que diz respeito a Alphonsus de
184
33 do “Paraíso”, onde aparece São Bernardo pedindo à Virgem que dê a Dante a
visão de Deus. O poeta brasileiro roga à Santíssima Trindade a redenção da
humanidade, inclusive a conversão da “alma dos milionários”.
373
Ainda há outros
exemplos de citação nos versos murilianos.
374
Assim, a prática de releitura de nosso poeta o situa na história literária
brasileira - Alphonsus - e também nas grandes coordenadas da literatura
universal - Dante. No poema alphosino, como em toda sua obra, nas palavras de
Bosi, “(...) o poeta chega a um diálogo-adesão, a um diálogo-convívio,(...)
375
.
Porém a escrita que se junta ao objeto focalizado traduz um poeta que não se
perdeu no meio do caminho, mas que encontrou a sua forma. Aí o poeta cruza a
tradição local com a tradição universal para gerar, nesse “diálogo-convívio”, os
sentidos de sua poética.
376
Guimaraes (sic), um dos poetas brasileiros que Murilo leu na juventude, o autor chame
precisamente a atenção para o rigor do seu ofício e para os seus versos polidos.” (grifos da autora)
373
Dante Alighieri. A divina comédia. “Paraíso”. Trad. Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo: Ed. 34,
1998, p. 229-235. Note-se como este mesmo poeta e Camões estão presentes também em Jorge
de Lima, conforme aponta. “As presenças de Camões e de Dante explicam-se pelo próprio
desígnio de Jorge de Lima: construir uma epopéia centrada no roteiro do homem em busca de uma
plenitude sensível e espiritual.” Cf. Alfredo Bosi. História concisa..., p. 456. Observe-se que o
Catálogo do acervo do poeta, arquivado no CEMM, registra uma edição em italiano. Dante
Alighieri. La divina commedia. Milano: Rizzoli, 1949.
374
Ainda mais um exemplo de citação está nos seguintes versos murilianos: “Que o amor, a morte
e outras estrelas mais/ Com teu fogo e energia vais movendo/ E até o sem-fim dos tempos
moverás.” (PCP, p. 501). Estes versos ecoam o final da obra de Dante, o verso “o Amor que move
o sol e as mais estrelas”. Dante Alighieri. A divina comédia, p. 234.
375
Boris Schnaiderman, op. cit., p. 78.
376
O verbo “gerar” é de uso freqüente e distribuído em vários poemas da obra. Cf. João Adolfo
Hansen. “A máquina do mundo”. In: Adauto Novaes (org.). op. cit., p. 162. Do Latim gignere,
“gerar” “designa o talento intelectual da inventio retórico-poética a que geralmente se associa
instrumentum, de instruere, ‘dispor’(...)”.
185
5. DUAS POÉTICAS DISSONANTES E COMPLEMENTARES
Propomos a seguir algumas análises para efeito de comparação entre
História do Brasil e Contemplação de Ouro Preto.
377
Com isso pretendemos
apontar as relações da poesia com a história e a memória. Estas fazem convergir
para o texto literário questões da cultura nacional de forma crítica, a partir de
reelaborações de poemas na chave satírico-secular por um lado e, por outro, na
linha de uma religiosidade simples e sóbria do barroco mineiro.
A comunicação entre as duas obras é evidente, apesar de não haver uma
relação de causa e efeito entre elas. Em ambas verifica-se uma busca que visa
transformar certos materiais históricos dentro das respectivas visões, uma, da
retomada satírica de eventos históricos e a outra, a partir da memória literária que
tanto se refere à história do País como à própria produção literária do autor.
A articulação dos textos se dá pela continuidade temática e pelo trabalho de
desocultamento de elementos presentes nos interstícios silenciosos da memória
histórica. Essa conexão, além de se manifestar na retomada de motivos e temas
de História em Contemplação, também se expressa nos contextos de
aparecimento dos livros que são publicados em períodos distintos da história
nacional, mas durante os Governos de Getúlio Vargas.
Num plano mais geral, História do Brasil se apresenta mais linear,
superficial, clara, secular, cronológica, com multiplicidade temática, enquanto que
377
O trabalho comparativo aqui adotado não opera uma metodologia específica da literatura
comparada, mas apenas um estudo no nível temático e quanto às significações dos poemas
analisados.
186
Contemplação de Ouro Preto se demonstra pictórica, profunda, obscura, religiosa,
atemporal, com unidade temática, submetendo a diversidade de motivos ao tema
da cidade de Ouro Preto.
Ao refazer, em Contemplação, as primeiras abordagens sobre o Brasil de
História, no plano da memória pessoal e cultural, o poeta recompõe as
informações do passado de modo a transformar sua visão histórica.
Na rememoração opaca de Contemplação, sente-se, através da sugestão
poética, a presença de um projeto de iluminação com base na ética e na estética
religiosa tendo as sombras como contraparte da luz (dinvina), diferentemente do
projeto “claro” de História que, em sua ética contestatória e com seus ataques
diretos aos governantes, expõe de forma direta a posição do poeta.
Na obra ouropretana, há um trabalho de luto em relação ao que foi perdido
apresentado na forma da elegia, e nesse trabalho de luto, alguns episódios e
personagens de História são revisitados numa relação espectral com o
passado.
378
Em História o poeta recupera textos históricos e literários - como a Carta de
Caminha, Tratados dos viajantes, poemas árcades. Já em Contemplação, além de
textos árcades e de viajantes, também é revisitada a cultura barroca e a literatura
378
As reaparições de poetas mineiros funcionam como fantasias associadas com suas vivências,
de alguém que não tinha ainda abordado sua terra (Minas) como tema explícito de sua poética.
Como vimos esta volta às Minas também está em Carlos Drummond de Andrade. Claro Enigma In:
op. cit., p. 255-263. O livro de Drummond é de 1948-51, mesmo período em que o juizforano
estava escrevendo Contemplação.
187
simbolista. Além desses legados literários mais “introspectivos”, são revisitadas e
incorporadas obras universais como Luís de Camões e Dante Alighieri.
379
Nos dois textos verifica-se a presença e o apagamento do eu-lírico,
modulando a subjetividade conforme a circunstância. Se em História do Brasil
uma multiplicação do sujeito poético que se projeta em outras personagens e com
vários pontos de vista, em Contemplação destaca-se a centralização e
participação mais intensa do sujeito na cena de alguns poemas. Isso se reflete na
presença do eu-lírico na cidade ao lado de outros espectros, amalgamando-se o
eu e o mundo. Por exemplo, no poema “Romances das igrejas de Minas”, o poeta
vagueia pela cidade como alma que “sobe e desce ladeiras” (vv. 1 e 2).
Assim, a paisagem exterior reflete a paisagem interior, uma sendo
absorvida pela outra, num esquema de projeção eu-mundo em que o eu assimila o
mundo e o mundo absorve o eu. O fenômeno ocorre também em História do
Brasil, onde o narrador observa a paisagem social através da identificação com
algumas personagens históricas, porém de forma mais distanciada e com menos
profundidade.
Nos dois livros há uma apropriação paródica de textos originais e dos
modos como foram reconstruídos ao longo do tempo. No primeiro livro, textos e
dados são visivelmente citados, já no segundo, textos e eventos do passado são
379
Em ambos os livros o poeta transita com grande liberdade e densidade poética, mostrando sua
participação nos âmbitos nacional e universal. Esses objetos do passado passam a ter novos
sentidos e ganham autonomia do momento em que foram produzidos, ao serem recompostos em
outras dinâmicas históricas. Com esse procedimento, o poeta relê o passado de forma a dar-lhe o
sentido atualizado, e não mais o de uma forma aurática e única.
188
“integrados” ao corpo dos poemas de modo indireto, o que denota um
aprofundamento na observação dos fatos socioculturais.
Nos dois casos, o passado ressurge por um movimento poético ambíguo.
Assim, se no primeiro a transparência da linguagem pode se tornar opaca, por
iludir o leitor com a sátira aparentemente livre das tensões culturais e sociais, no
segundo, a opacidade do código se abre para uma clareza histórica na medida em
que, devido ao trabalho de decodificação dos versos, a memória histórica passa a
ser questionada pela memória literária.
Enfim, o que aproxima os dois livros é o trabalho de representação do
passado articulado pelo tempo presente e, nesse aspecto, eles dão testemunho
das tensões históricas presentes nas lembranças do poeta. Isso revela que o
projeto poético de Murilo Mendes, mesmo oscilando entre uma postura
apaixonada e reação mais contida do sujeito poético, é perpassado por uma ética
alerta dos riscos e do devir histórico.
380
Passemos agora para a concretização de algumas dessas características
presentes em dois textos dos livros.
5.1. Força e devoção de Aleijadinho
380
Jorge de Sena. Op. cit., p. 59 e 60. “A paixão de que se trata aqui é a força, a veemência, a
energia, as quais podem revelar uma paixão de qualquer ordem, e até uma paixão pela própria
expressividade obtida, aspecto tão relevante da criação estética e tão dela, na crítica, divorciado ou
esquecido.“ (p. 60). Cf. Heinrich Lausberg. Manual de retórica literaria. Versión española de José
Pérez Riesco. Madrid: Editorial Gredos, 1966, p. 229-233; Cf. também Jérôme Melzoz, op. cit.
189
FORÇA DO ALEIJADINHO
381
A mão doente parou,
Fica suspensa no ar,
Inutilizada no ar.
Lá fora os lundus dos escravos
Acordam a lua do sono.
A escultura bem que pede
Uma força bem maior.
- Homem homem se me acabas
Eu acabo te abraçando. –
E a mão nunca que chega
Até o fim do caminho,
Ela está presa, bem presa,
Desde o princípio do mundo.
Então de dentro do corpo
Do homem disforme e triste
Sai uma boca de fogo,
Sopra no corpo da estátua
Que respira já prontinha,
Dá um abraço no escultor.
Afirma Manuel Bandeira que “As duas grandes sombras de Ouro Preto,
aquelas em que pensamos invencivelmente a cada volta de rua, são o Tiradentes
e o Aleijadinho.”
382
De fato, estes dois personagens históricos são contemplados
por Murilo Mendes. Mas o único que tem nos dois livros um poema específico é o
381
HB. In: PCP, p. 158-9.
382
Manuel Bandeira. Guia de Ouro Preto. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,
1957, p. 51.
190
Aleijadinho, ainda que Tiradentes seja visto em dois poemas do primeiro livro, o
que revela, em certo sentido, a tendência de cada obra.
Comparado aos poemas de Tiradentes, em História há uma maior simpatia
do poeta em relação ao escultor, já que o Inconfidente é tratado de modo bastante
sarcástico. O Aleijadinho é valorizado na feitura de sua obra de cunho religioso,
aspecto embutido no primeiro livro.
383
“Força do Aleijadinho”
384
, vigésimo poema de História do Brasil, destoa,
assim, dos demais do livro pela falta de uma sátira mais explícita, como é o caso
do tratamento dados às classes dirigentes, até porque o tema a ser abordado não
seria dos mais risonhos. Mas mesmo assim, a abordagem da situação do escultor
se enquadra na tonalidade do livro.
Devido ao assunto tratado, o poeta utiliza um tipo de chiste que mistura
graça e zombaria. Por exemplo, os elementos surrealistas – a boca de fogo e o
movimento da estátua – propiciam leveza ao gesto de esculpir. Tal procedimento
estético, que remete ao topos do “mundo às avessas”, registra o dinamismo
poético da inversão deste primeiro Murilo.
No poema, como em outros do livro, com estrofes irregulares (estrofes de 9,
4 e 8 versos) e com versos heptassílabos, repercute a leveza com que o tema é
tratado.
A primeira estrofe apresenta a situação do escultor impossibilitado de
produzir sua arte, com sua mão parada por causa da doença (“A mão doente
383
Observar que a sátira de MM em relação à religião é muito leve no primeiro livro. Nos anos
1920 o poeta mantinham contatos com Alceu Amoroso Lima, a quem admirava. Vale destacar
também que os Sonetos brancos registram um poema que faz referência ao Aleijadinho.
384
In: PCP, p. 158-9.
191
parou, / Fica suspensa no ar / Inutilizada no ar”, vv. 1-3). Em seguida, com um
corte de cena, registra-se o que se passa na rua (“Lá fora os lundus dos escravos
/ Acordam a lua do sono.”, vv. 4 e 5), como uma paisagem externa que dialoga
com o interno do ambiente do poeta.
Na seqüência da mesma estrofe, o olhar volta para o interior, onde a
escultura conversa com o poeta e pede a ele “uma força bem maior” (v. 7),
dizendo textualmente: “- Homem homem se me acabas / Eu acabo te abraçando.-
”. O gesto da estátua reflete a presença do espírito surrealista pela mudança
brusca de cena e inversões, o que também se nota pela música dos escravos que
desperta e anima a lua que “dorme”.
Mas a mão do escultor não consegue dar conta da obra, pois está “presa
desde sempre”. (vv. 10-13). Por causa de uma estranha doença, o escultor teria
perdido os dedos dos pés e quase todos os dedos das mãos, mas trabalhava com
instrumentos atados ao braço.
385
O texto apresenta um ritmo dinâmico ao tratar de atitudes inesperadas,
como a boca de fogo que sai do escultor, bem como a movimentação de
elementos imóveis, como a estátua que abraça o Aleijadinho (vv. 14-19). O
poema, marcado pelo signo da sátira próprio da fase carioca, destoa de outros do
livro por poupar o artista da chacota que direciona aos heróis consagrados.
Já no texto de 1954, em que trata da mesma personagem histórica, nota-se
a diferença de perspectiva e de tom operada pelo poeta.
385
Manuel Bandeira. Guia de Ouro Preto, p. 55 e 56. Bandeira menciona a ”atrofia dos músculos
das mãos, que depois curvaram e chegara a cair; as nevralgias fortíssimas; a atrofia do orbicular
das pálpebras com ectrópio (‘as pálpebras inflamaram-se e permanecendo nesse estado ofereciam
à vista a sua parte inferior’); paralisia facial; a queda dos dentes.”
192
AO ALEIJADINHO
386
Pálida a lua sob o pálio avança
Das estrelas de uma perdida infância.
Fatigados caminhos refazemos
Da outrora máquina da mineração.
É nossa própria forma, o frio molde
Que maduros tentamos atingir,
Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados
Sem crispação, matéria já domada,
O exemplo recebendo que ofereces
Pelo martírio teu enfim transposto,
Severo, machucado e rude Aleijadinho
Que te encerras na tenda com tua Bíblia,
Suplicando ao Senhor - infinito e esculpido –
Que sobre ti descanse os seus divinos pés.
O poema acima, décimo-sexto de Contemplação, adota a forma do soneto,
poema de contenção lírica, o que aponta para um tratamento mais sério e para
386
COP, In: PCP, p. 532-3. De origem “ilegítima”, de mãe escrava com pai português, Antonio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho, ligado à Ordem Franciscana, foi o introdutor da pedra-sabão, em
substituição ao trabalho sobre madeira, desenvolvendo obra de caráter original. Cf. Maria Ivonete
Santos Silva
& Maria Cristina Franco Monteiro. “O conceito de convergência, de Octavio Paz, e sua
realização nas obras de Murilo Mendes e Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho’.” Disponível em:
<http://www.ufop.br/ichs/conifes/anais/LCA/lca2803.htm>. Acesso em: 04 mai. 2005. As autoras
citam Lourival Gomes Machado. “Os púlpitos de São Francisco de Assis de Ouro Preto”. In:
Barroco mineiro, São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 223-56. Também em Sonetos brancos, livro
anterior a COP, no poema “Ouro Preto”, o escultor se faz presente: “A cavalo sobre as igrejas de
pedra / Irrompe o Aleijadinho na sua capa.” (vv.5 e 6). In: PCP, p. 445.
193
uma mudança axiológica radical do poeta que passa a valorizar o plano mais
existencial-metafísico, mas no qual a história não deixa de falar.
Desde os primeiros versos da primeira estrofe, com a introdução de
elementos da natureza - lua e astros - há o uso de termos que remetem a uma
frieza. A lua “pálida”, sem brilho, percorre o céu de uma infância que se perdeu, o
que aponta para uma ambigüidade, pois a perda tanto pode ser considerada no
nível pessoal, a do poeta, como geral, a da humanidade.
387
A integração do poeta com a humanidade se dá pela introdução impessoal
concretizada no uso da primeira pessoa do plural que surge em seguida nos
versos terceiro e quarto (“Fatigados caminhos refazemos / Da outrora máquina da
mineração.”) e também no quinto verso “É nossa própria forma”. A presença de
um dado histórico, a mineração, é ambígua no sentido de que no poema a “outrora
máquina da mineração” se coloca no âmbito mais geral da existência humana.
O embricamento do particular no universal remete ao trabalho árduo do
escultor que, através de seu exemplo, deveria levar a um aperfeiçoamento do
indivíduo rumo a uma transcendência. Para atingir o modelo de Cristo é preciso,
então, refazer o caminho antigo da mineração. No caso do escultor é o trabalho
sobre a pedra, que remete à frieza, referida no poema por “frio molde” e pela
“laje”, o que enfatiza a idéia inicial de imobilidade, mas também remete à
maturidade artística, à “nossa própria forma” (v. 5), mais estável à qual o poema
se direciona.
387
O verso “Pálida a lua sob o pálio avança” cita textos de Alphonsus de Guimaraens que também
tematiza a lua em seus poemas. O poeta simbolista se relacionou intensamente com o espaço de
Ouro Preto, já o modernista, apesar de não ter residido na região, liga-se com a cidade pelo caráter
religioso aí presente.
194
A frieza, junto com pedra, de certa forma articula o poema, e carrega o
sentido da estabilidade que deverá ser atingida pelo sofrimento, exemplificado na
figura do escultor que, “Severo, machucado e rude” (v. 11), pelo auto-martírio,
tenta extrair do trabalho a perfeição através de paciente elaboração estética na
forma mineral pedra, elemento bruto da natureza, moldando o elemento pedra
para gerar a criação artística, comparando-se ao ato da criação divina.
Para atingir a referida forma faz-se necessário voltar “à laje”, “à pedra de
olhos facetados”, lapidada de forma a aparecer lisa, “sem crispação” (vv. 7 e 8),
numa alusão à morte, momento então da perfeição, aliás referência que também
percorre a obra.
A comparação mostra ainda a oscilação do poeta entre o plano do profano
e do sagrado, este com sentido complexo do tempo histórico e cosmológico e
aquele com a “simplicidade” do tempo caracterizado pela referência biográfica da
personagem. Junto disso, percebe-se uma mudança na tonalidade: de uma atitude
mais apaixonada passa a uma atitude mais reflexiva o que, aliás, caracteriza o
movimento geral da obra do poeta.
A mudança de ponto de vista de um para outro poema também se revela
pela mudança na ação da estátua, no primeiro, para a ação do escultor no
segundo, pois ao final desse é o artista que, fechado, suplica à sua própria obra
que o abençoe, num gesto contraditório, em relação ao primeiro texto, em que é o
escultor que passa a pedir à estátua que o abençoe, mas também uma atitude de
inversão pela qual o criador se transforma em criatura.
195
Segundo Manuel Bandeira, Aleijadinho, de pouca instrução, na vida adulta,
tinha a Bíblia como leitura única e só saía de casa para ir à missa. Trabalhava em
uma tenda para que ninguém o visse.
388
Estas informações se refletem, quase que
de modo literal nos últimos versos do poema: “Que te encerras na tenda com tua
Bíblia, / Suplicando ao Senhor - infinito e esculpido – / Que sobre ti descanse os
seus divinos pés.” A alusão ao texto bíblico (“Deus fez o homem à sua imagem e
semelhança”) é invertida pela ação do homem que faz Deus à sua imagem e
semelhança, e o adora.
Os dois elementos, a lua e a pedra, adquirem nos poemas funções
diferentes. A “lua” é apresentada de modo direto em “A força de Aleijadinho” e em
“Ao Aleijadinho” de forma aberta. Já a “pedra” é representada de modo indireto no
primeiro poema, na referência à escultura, mas de forma clara no segundo. Mas
no segundo poema, a pedra se torna elemento articulador.
389
A valorização de Aleijadinho é realmente preponderante em Contemplação,
pois reforça a perspectiva e a atitude religiosa que sustentam o tom da obra. Sua
imagem comparece ainda em “Romance de Ouro Preto” (vv. 376-451) e também
em “Acalanto de Ouro Preto”, aparecendo neste como um dos espectros.
388
Bandeira. Guia de Ouro Preto, p. 52. A ele o poeta dedica cinco páginas de seu livro sobre a
cidade e região, o que não é pouca coisa. Alguns dados do poema são alusões diretas ao
Aleijadinho de Bandeira.
389
Lua e pedra são peças fundamentais em Contemplação de Ouro Preto. As duas perpassam o
livro, quando não são temas de poemas, como é o caso de “Lua de Ouro Preto”. No caso da pedra,
por exemplo, no poema “São Francisco de Assis de Ouro Preto” cujo verso 19 diz: “Traslado, em
pedra vivente”.
196
5.2. Desconstrução e consagração de Tiradentes
O trabalho de apropriação do passado histórico e literário, operado nesses
poemas, é bastante evidente. Por um lado utiliza referências históricas
consolidadas pela história oficial, por outro, trabalha com referências da tradição
literária e religiosa estabelecida.
É o caso da construção do mito de Tiradentes que serviu à implantação do
imaginário republicano no País. Segundo José Murilo de Carvalho, Joaquim José
da Silva Xavier, o Tiradentes faz parte de uma construção imaginária da República
que, se para se consolidar simbolicamente, teve “dificuldade de construir um herói
para o novo regime.” Para Carvalho, os heróis são “instrumentos eficazes para
atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos.” Quando os heróis não correspondem a um valor coletivo, ou são
“ignorados pela maioria” ou “ridicularizados” por aqueles que têm acesso a
instâncias culturais onde se travam as lutas simbólicas com instrumentos da
cultura letrada e iconográfica.
390
Tiradentes pode ser definido como um dos “mitos fundadores”, referidos por
Marilena Chauí, no sentido de ser utilizado como uma “solução imaginária para
tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem
resolvidos no nível da realidade.” Este mito fundador, carrega em seu vínculo com
o passado, uma relação perene com o presente, o que dificulta “o trabalho da
diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal.” Ainda segundo
390
José Murilo de Carvalho. A formação das almas.o Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.
55-73.
197
Chauí, seria uma repetição no nível do imaginário que bloquearia a percepção da
realidade presente.
391
Murilo Mendes, consciente tanto da heroificação e legitimação quanto da
ridicularização de personagens da história, como pode ser detectado em seus
versos, zomba desses heróis “fabricados”. Essa atitude estabelecia elos com uma
das inquietações das vanguardas artísticas, isto é, compromisso com uma visão
menos idealizada do País, e que se inseria no campo da luta simbólica travada
nos inícios do século XX, fazendo com que a arte se aproximasse do ponto de
vista das camadas populares.
Abordaremos dois poemas, “O Alferes na cadeira” de História e “Acalanto
de Ouro Preto”, de Contemplação. Ambos tratam de Tiradentes de forma
diferente, ainda que haja dois traços comuns: a personagem histórica como vítima
e herói.
O ALFERES NA CADEIRA
Antes eu fosse Dirceu,
Vivesse aos pés da mulata
Desfiando o lundu do amor,
Fazendo crochet de noite,
Do que estar como estou:
Os dentes me arrancaram,
Incendeiam meu chalet;
Não pude livrar ninguém
Da escravidão atual;
391
Marilena Chauí. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora da Fundação
Perseu Abramo, 2000, p. 9.
198
Arranjei foi mais um escravo,
Eu mesmo, entrei na cadeia;
Tirei retrato de herói,
Mostrei a mestre Silvério
Os planos desta revolta;
Pareço com aviador
Que faz viagem no pólo,
Queria mesmo morrer;
Sentei na cadeira elétrica,
Morro, inda mesmo que tarde
A morte que sempre sonhei,
_ Não essa morte vulgar,
Apagada, clandestina:
Eu quero morrer de herói,
Eu amo a posteridade;
Comecei me lamentando
De não ser como Dirceu,
Mas é só pra tapear;
Acabei me convencendo
Que não há nada melhor
Do que a gente ser herói;
Eu amo a posteridade,
Quero nome no jornal,
Estátua na praça pública,
Vejam a minha vocação!...
Vamos, apertem o botão.
Nesse poema, dois participantes da Inconfidência Mineira são
abordados: Tiradentes e o poeta de origem portuguesa Tomás Antonio
Gonzaga. No poema, em primeira pessoa, o Alferes começa ironizando o
segundo participante da revolta mineira (vv. 1-4), cujo pseudônimo é Dirceu.
Em seu ideal de vida amorosa e doméstica, este poeta vive cantando o “lundu
199
do amor” e passa “fazendo crochet de noite” (v. 4). Faz-se aqui uma crítica ao
ideal Árcade do locus amoenus, registrado em Marília de Dirceu, e também à
elite intelectual da época que não tinha interesse na emancipação da vida
política do País, pois se sabe que a Inconfidência tinha muito de inconformismo
de grandes proprietários da época.
Registre-se que Tiradentes, segundo Manuel Bandeira, não teria sido
bem visto por seus companheiros da Conjuração. Provavelmente, no texto que
estamos abordando, Murilo esteja respondendo a Dirceu que, na Lira 38, teria
chamado Tiradentes de “um pobre, sem respeito e louco”
392
. O poeta dialoga
com o passado e, ao mesmo tempo, se insere no seu tempo, começo do
século XX, quando também percebia a existência de uma elite mais
interessada em modelos europeus do que propriamente brasileiros.
393
O contraste de Tiradentes com outros personagens é evidente, pois o
tratamento dado aos inconfidentes “intelectuais” e ao Alferes foi bastante
distinto no julgamento. Os primeiros foram desterrados, mas, do grupo,
somente Tiradentes, por ser um simples Alferes de origem pobre, foi degolado
e sua cabeça exposta em praça pública de Vila Rica.
394
No poema, enquanto
Dirceu está voltado para o ideal de vida doméstica, Tiradentes sofre agressões
(vv. 6 e 7).
392
Bandeira. Guia de Ouro Preto, p. 52.
393
Pode-se fazer uma leitura no sentido de considerar que “o pobre” do momento de MM seriam os
poetas que procuram fazer uma segunda “Inconfidência”, dessa vez cultural.
394
Utilizo aqui informações de Luciana Picchio, da Introdução “Pequena história da História do
Brasil de Murilo Mendes”, p. 99 e 100.
200
O uso de técnicas surrealistas, no livro, é refletido nos anacronismos e na
atualização (aviador, cadeira elétrica, jornal, nos vv. 15, 18, 32, respectivamente),
e no fato de dar voz às personagens. Com tais procedimentos, são confundidos os
planos da temporalidade histórica e da relação poeta - personagens, e isto se
verifica pelo fato de a história (o enunciado) ser narrada a partir do presente
(enunciação). A voz do narrador passa com naturalidade do presente para o
passado, confundindo assim os dois tempos. o que enfatiza sua intervenção no
presente. Por exemplo, nos versos 5, 6 e 7 – “Do que estar como estou / Os
dentes me arrancaram / Incendeiam meu chalet;” – verifica-se, pelas mudanças
verbais, a mescla das temporalidades.
A inversão também faz parte destes procedimentos surrealísticos. No verso
19 - “Morro, inda mesmo que tarde” -, o poeta cita o lema da Inconfidência -
Liberta quae sera tamen -, mas colocando-o noutro patamar, pois a liberdade se
transforma em morte. Uma citação que troça de uma insígnia séria da cultura
latina que, na boca de Tiradentes, é traduzida para o vernáculo de modo a se
integrar ao tipo de construção do poema.
395
A auto-derrisão da personagem, visível em boa parte do poema, se
manifesta de maneira mordaz e por uma forma de composição poética leve. O
fato de o herói, oportunisticamente, ter querido morrer para se tornar famoso e
ganhar uma estátua pública, é índice de uma desconstrução das boas intenções
dos chamados heróis da pátria. Aliás, o Tiradentes é a única figura dentro da
categoria dos populares que é representada num tom de chacota, com forte carga
395
Bandeira, no Guia citado, anota que os viajantes estrangeiros que passaram por Ouro Preto
ridicularizaram o emprego incorreto do Latim.
201
de ambigüidade, pois ainda que fosse o herói escolhido pela República, não teria
tido antes disso uma correspondência no imaginário popular.
396
Murilo Mendes, sabendo que está lidando com uma gama de informação
que construiu o mito, na verdade, debate com essas formulações oficiais e com
dados históricos naturalizados sobre Joaquim José da Silva Xavier. E, então, a
derrisão recai também sobre um modo de fazer história que, por exemplo,
recompôs a figura do Alferes em trajes e por inteiro, quando a possibilidade de
Tiradentes estar com barbas no momento de seu enforcamento não se justifica,
pois na cadeia ele teria os cabelos e barba cortados.
A ironia sobre a personagem, então, se constitui, simultaneamente, em
ataque pungente à pseudo-transformação política construída pela versão
republicana da história brasileira, pois, como se sabe, a Conjuração Mineira de
1792 não se originou de nenhuma revolta popular como costumavam anunciar
alguns manuais escolares. Foi, ao contrário, um movimento de uma parte da
classe dirigente ou das chamadas “pessoas grandes” da época.
397
Em suma, é
através da voz do herói que se ouvem as vozes das classes dirigentes e, ao
mesmo tempo, a desmitificação dessas.
No poema, então, vê-se a identificação do poeta com uma posição crítica
da história construída, apontando para o não reconhecimento, por parte da
população, dos símbolos nacionais e para uma expressão do sentimento e das
aspirações populares, fazendo um contraponto a uma memória histórica e cultural.
396
Os outros revoltosos assinalados no livro não teriam ganhado estátuas públicas, resultado de
uma consagração política da Nação, pois não a representavam. Apesar de que no Romantismo o
índio tenha representado como herói, ainda assim, ele não se tornou representante oficial.
397
Alfredo Bosi. História concisa..., p. 60.
202
Por isso, a irrisão de Tiradentes como “representante” de uma visão oficial e
também de uma vítima dentro da Inconfidência coloca em questão os símbolos
nacionais através do próprio mito, pois o poeta opera duas críticas simultâneas, a
da intelectualidade e a das formas de se representar os eventos históricos.
Este mesmo tratamento já não se manifesta em outro poema sobre
Tiradentes, “A estátua do Alferes”
398
, em que não se encontra o auto-deboche
399
,
o que relativiza o rebaixamento do poema anterior.
Os dois poemas se entrelaçam como se continuassem a mesma história. O
primeiro narra o sacrifício do herói, enquanto que o segundo mostra o resultado,
isto é, o reconhecimento e a consagração do herói ao ganhar estátua na praça. No
segundo poema, Tiradentes volta a carga contra as elites que apoiavam a
“revolução”, mas que não se colocavam em ação: “Há mais de cem anos guardo /
No meu ventre generoso / Uma turma de poetas / Que vivem o dia inteirinho /
Tangendo as cordas da lira, / Em vez de atirarem bombas / No marquês de
Barbacena / E no rei de Portugal.” (vv.3-10). Está bem claro aí a intervenção do
poeta no tempo presente, pois estão no ventre da estátua “há mais de cem anos”,
o que denota a continuidade histórica de um evento que permanece e se
“presentifica” ao longo do tempo.
Após demonstrar que o símbolo perene, “No meu corpo cabe tudo. / Cabe
passado e presente, / Mais do que tudo o futuro.” (vv.12-14), deixa claro que a
elite do passado e seus procedimentos se refletem na elite do presente,
encarnada no papel de políticos que se utilizam dos símbolos nacionais para seus
398
Cf. Antologia de História do Brasil, no Anesxo I.
399
Guilherme Amaral Luz, op. cit.
203
interesses: “Senadores, deputados, / Se arrancham na minha sombra, / E outros,
dentro de mim.” (vv. 15-17). Fica claro, assim, que o poeta ao tratar a história de
modo satírico, intervêm no momento presente.
Quanto ao estilo, na forma do romance, ambos os textos são escritos em
ordem direta, sem muitos adornos retóricos, e sem rodeios. Essa simplicidade da
linguagem poética reflete também um posicionamento mais simpático ao
interlocutor.
Como dissemos no primeiro capítulo, o poeta, apesar de não pegar em
armas, utiliza as armas da linguagem para atacar as estruturas “arcaicas” da
sociedade brasileira sua contemporânea. Em 1931, na tranqüilidade da casa de
um irmão em Pitangui, o poeta diz em carta a Alceu A. Lima: “Si eu conseguir
escrever um grande poema, terei trabalhado mais para o Brazil do que si fôsse pra
praça pública pregar liberalismo, etc, a multidão. Para qualquer classe que me
transfira, serei infeliz.”
400
Pelo tom e pela linguagem de História não há dúvida que o poeta nesse
momento alimenta simpatia pelos de baixo. A linguagem, espelha um
posicionamento contra a retórica empolada de uma intelectualidade passadista.
Em Contemplação, a figura de Tiradentes é retomada de forma indireta,
como “sombra”, em referências esparsas de vários poemas. A título de ilustração,
vejamos alguns exemplos de tais aparições no cenário das cidades históricas.
Logo no início do livro, em “Motivos de Ouro Preto” (vv. 15-17), aparece junto com
outras sombras (poetas, padres) que pairam nas “Ruínas de solares e sobrados“.
Em “Romances das Igrejas de Minas” também há alusões deste tipo (vv. 105-9:
204
“Paredes em faiscado, / consistórios, corredores / Onde vagueiam fantasmas / De
poetas inconfidentes, / De padres conspiradores”). Também em “Romance de
Ouro Preto” (vv. 85—91: “Torsos de Minas / Dependurados, / Restos roídos / De
Inconfidentes / Na cal propícia / Recolocados,/ Sombras vencidas,/ sombras
severas/ estranho espólio,/ Solene expõe;”).
Somente “Acalanto de Ouro Preto” - último poema do livro - se refere
diretamente ao herói, junto com os “espectros familiares” da cidade que
perpassam a obra, como a figura do herói.
Vejamos os versos 9-38 de “Acalanto de Ouro Preto
401
”:
Desponta o primeiro espectro:
Duras algemas arrasta,
Veste a camisa marcada
Dos criminosos infames.
Conversando o crucifixo
Logo a morte se descobre.
Ao mirar o povo, exclama:
“O meu Redentor morreu
Por mim também deste modo...”
Ao próprio carrasco beija,
Curvando-se, a mão e os pés.
Retido pelo baraço
Oscila o corpo no espaço
Em terrível convulsão.
Mantendo a corda, o carrasco
Sobre os ombros do paciente
Cavalga, abrevia a morte,
400
Carta a Alceu Amoroso Lima, de 23 de março de 1931, citada. Mantemos a grafia original.
205
Apressa a consumação.
Tambores rufando abafam
Do povo infeliz o grito.
Logo é o corpo esquartejado
- Germina o sangue do herói –
E a cabeça trasladada
Para Minas, pendurada
Na praça pública, ôi!
Dorme, dorme, inconfidente.
Nos teus membros reunidos
Pela técnica divina,
Dorme, dorme, Tiradentes,
O sono da perfeição.
O tom grave dos versos acima produz a elevação do herói, retomado agora
sob as vestes divinas. Aí Tiradentes reaparece em primeiro lugar, agora como
herói comparado a Cristo (vv. 9-38) e, para reforçar isso, o Inconfidente é
confundido com “criminosos infames” (v.12) cena que remete à situação do
Calvário em que Jesus é representado entre malfeitores. A consagração do herói
é afirmada, aqui, através de um forte pathos religioso. Tiradentes se volta ao povo,
mirando-o e afirmando a proximidade de sentido entre sua morte e a de Cristo, ao
mesmo tempo que reafirma a figura de Cristo, imitando-o no tipo de morte e de
atitude em relação aos adversários - “Ao próprio carrasco beija / Curvando-se, a
mão e os pés.”.
A consagração é reforçada pela descrição mais detalhada do enforcamento
e do esquartejamento (vv. 20-33), ao montar uma cena realística com os dados da
401
In: PCP, p. 535-6.
206
imagem histórica do herói, que inclui acentuado tom dramático, lembrando as
narrativas dos Evangelhos sobre a Paixão e Morte de Cristo.
402
Embora os versos finais (34-8), nos quais os membros do herói são
reunidos “pela técnica divina”, continuem com a ênfase num pathos religioso e na
solução metafísica para a morte, constatam-se elementos que apontam para uma
mirada crítica sobre a história que contemple a presença do povo no momento da
execução de Tiradentes.
Os sons dos tambores como que obliterassem a presença popular no
evento histórico. A repetição de sons graves e nasalados no verso “Tambores
rufando abafam” (v. 27), alternada e contraposta pelo som agudo do verso
seguinte (“Do povo infeliz o grito”) sugerem uma ocultação da manifestação
popular no evento representado, porque “infeliz” e “grito” se referem ao povo que
assistia ao enforcamento. E, portanto, aponta para uma visão em que a população
não teria tido participação efetiva nos episódios da Conjuração, a não ser como
assistentes.
403
Assim, a condição religiosa do poeta não lhe confere uma posição
402
Ao longo da história religiosa cristã, há uma presença de mártires que foram entronizados no
panteão da Igreja, como é o caso dos seguidores de Cristo cultuados como santos. Cf. Michael
Löwy. W. Benjamim: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Trad.
Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005. Afirma Löwy: “Encontramos o culto
aos mártires, de uma outra forma no cristianismo, que fez de um profeta crucificado seu Messias e
de seus discípulos torturados seus santos.”(p. 110).
403
José Murilo de Carvalho afirma: “A falta de envolvimento real do povo na implantação do regime
leva à tentativa de compensação, por meio da mobilização simbólica.” (op. cit., p. 55). Na descrição
da leitura da sentença: “Cenas lamentáveis de alegria, seguindo-se a cenas lamentáveis de pavor,
na sala do Oratório, deixaram-nos provas da fraqueza dos conjurados. Um homem se conservou
superior a tudo isso, como o único capaz de salvar a dignidade de seus patriotas, prestes a
soçobrar em lamentável naufrágio – Tiradentes.” Lúcio José dos Santos apud Cláudia Callari, op.
cit. Diz a autora: “Esta descrição, amparada em narrativa de um religioso, conserva a marca do
local (visão de mundo) de sua produção. Quando historiadores, políticos, pintores procuram
aproximar Tiradentes de Cristo, ‘transformando-o’ em herói cristão, não estão criando uma
representação nova: estão apenas bebendo em uma fonte contemporânea ao evento. E pelo fato
de ser contemporânea acabou sendo vista, por muitos, como mais fidedigna.”.(Cf.ltimos
momentos dos Inconfidentes de 1789, pelo frade que os assistiu em confissão", de frei Raimundo
207
política desconectada da opção pelos vencidos em História do Brasil. O pathos
religioso incorpora, de certa forma, aquela primeira simpatia pelos rebeldes da
história nacional.
Mas o Tiradentes consagrado aqui dialoga com o Cristo da quarta parte de
“Motivos de Ouro Preto” (versos 89 a 100), que, no meio dessas sombras, é
considerado a “extrema assombração”, sendo equiparado aos mártires nacionais
e, de certa forma, humanizado e historicizado pelo poeta (“Parece que em sua
imensa humanidade/ Aos espectros o Cristo se aparelha,”), fazendo-se carne “de
novo” mas que tem o poder de amar a todos, independentemente de seu pecado
(“Sua caridade a todos estendendo,/ Mesmo a Joaquim Silvério dá o pão”).
Tal tipo de operação demonstra que, em Contemplação há um reforço
religioso operado pela reiteração de imagens ao longo do livro, mas isso também
denota uma relação dialética entre o sagrado e o profano, pois aí a história
sagrada se confunde com a história social. Há um movimento ambivalente pelo
qual a imagem do perdão de Cristo humanizado que, retirada do plano da história
sagrada, é inserida no da história humana e, inversamente, a história social de
Tiradentes é alçada ao plano do sagrado.
Acentua-se, novamente, a transformação nos modos de abordar a história
de um livro para outro, indicando também que a mudança ocorrida não se dá de
modo a abandonar totalmente o primeiro pathos do poeta agora retomado em
outro registro.
da Anunciação Penaforte. In: Autos da devassa da Inconfidência Mineira. Brasília: Câmara dos
Deputados, 1976, vol. 9. Vê-se por isso que o poeta estava sintonizado com o assunto.
208
Mas é preciso considerar que o aspecto religioso do segundo livro retoma o
mito fossilizado pela versão oficial e, portanto, conectado com os mitos de
fundação, ao mesmo tempo que inclui o personagem na história sagrada mais
geral, por exemplo, ao comparar o Alferes a Cristo, o que mostra que o livro está
vazado na “sagração da história” proposta pela Igreja Católica.
404
Se História do Brasil já seria sintoma das perdas históricas - do que poderia
ter acontecido, mas não ocorreu -, assim também as sombras de Contemplação
podem ser lidas como “sintomas”, não só das perdas históricas, mas também de
uma reestruturação poética do autor.
405
Assim, a releitura dos eventos do passado
em História preenche os vazios históricos deixados pela memória histórica que
consagrou mitos nacionais, bem como Contemplação relê os vazios deixados na
própria obra do autor.
Estas releituras são modos de articulação entre passado e presente nos
dois textos. Dito de outro modo, há uma reapropriação da história nos livros.
Enquanto Tiradentes é retomado como herói, o Aleijadinho é valorizado por sua
obra e isso se dá evidentemente pela forma de atuação de cada um, o primeiro
pela ação política e o segundo pela ação artística.
No caso de Contemplação a releitura do passado literário brasileiro se
transforma num trabalho mais lento, mediado pela referência a episódios,
escritores e personagens agora revistos por outra lente.
404
Marilena Chauí. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, p. 70-79.
405
“[Os sintomas] Ocupam o lugar de alguma coisa que está , que insiste na nossa vida, apesar
de nunca ter chegado à completa consistência ontológica. Assim, os sintomas são, em certo
sentido, os arquivos virtuais dos vazios – ou talvez melhor, defesa contra os vazios – que
persistem na experiência histórica.”
Erich Santner apud Slavoj Zizek. Bem-vindo ao deserto do real!
São Paulo: Boitempo, 2003, p. 38.
209
O espaço comum de aparecimento dessas “sombras” é um cenário
específico no qual se cruzam os acontecimentos históricos: a cidade de Ouro
Preto. Este lugar, onde se passam os eventos relidos pelo autor, traveja os
eventos, dando sustentação à versão do poeta, e se constitui no lugar ideal da
memória sagrada, pois possibilita abordar a história eclesiástica, dramatizando a
combinação da história profana e da sagrada, duas vertentes claramente
articuladas no texto.
Em História este espaço está oculto, só se mostrando indiretamente no
relato sobre Aleijadinho e Tiradentes, personagens pelas quais se identifica a
cidade de modo metonímico. Já em Contemplação, as descrições oriundas de
uma visão acurada do lugar resvalam para a meditação metafísica, numa
perspectiva visionária e complexa em que o espaço arquitetônico e a escultura de
Aleijadinho são refletidos na arquitetura da obra.
406
Num esforço de síntese comparativa, e relembrando traços já abordados
das duas obras, pode-se dizer que História do Brasil desconstrói poeticamente a
visão consagrada pela memória histórica, enquanto em Contemplação a
reconstituição de tal memória se faz pela chave religiosa. Há diferenças de
registro: um seria polifônico e aberto, o outro seria monofônico e fechado pela
ideologia religiosa, apesar de isso não ser obstáculo para a polivalência da
linguagem poética.
406
A tensão entre a religiosidade tradicional e as idéias modernistas está presente em
Contemplação. O que a modernização do País recusou, sua religiosidade, retorna aí de modo
explícito. Um país em que as ilusões da modernização a qualquer preço repudiam o “atraso
mental” daqueles que optam por outras vias de expressão individual e coletiva.
210
Se História, com a visão brasileira e carioca amparada no “porrete
desordeiro” do primeiro Murilo, resiste pelo choque da sátira contra a ordem de
uma memória instituída, Contemplação, retomando a cultura portuguesa colonial,
o faz pelo contínuo rememorar de tradições soterradas.
No primeiro predomina o tempo cronológico, enquanto no segundo a
temporalidade subjetiva e literária substitui a marcação física do tempo. Os
“romances” sobre episódios, fatos históricos e personagens são retomados pelos
“romances” do segundo livro sobre temas religiosos e fantasmas do passado.
Estilisticamente, História trabalha com uma linguagem ligeira e leve, com
ritmo martelado, substituída pela linguagem em ritmo lento das ladainhas de
Contemplação.
Em História do Brasil a incorporação de personagens se dá numa
ordenação seqüencial de aparecimentos das figuras o que aponta para prioridades
e valorizações dadas pelo autor. O Brasil arlequinal da modernidade e o País
mítico das origens afro-indígenas da fase heróica do Modernismo, apesar de não
serem o núcleo principal das duas obras, estão presentes de modo indireto.
211
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A produção poética de Murilo Mendes, abordada nesse trabalho, nos
interessou por possibilitar a reflexão sobre a história e memória histórica no
contexto literário que as representa de modo oblíquo e tenso.
Optamos por estudar dois momentos do poeta que permitem analisar como
o autor releu a história País, mas que também colocam questões difíceis quanto
às tomadas de posição do autor. A reinterpretação que ele faz da história dialoga
com representações historiográficos e também literárias do Brasil. Suas imagens
poéticas de figuras e eventos históricos estão impregnadas de tensões dos
sentidos dos símbolos nacionais.
Entrar no universo conflituoso da poesia significa enfrentar as tensões
subjacentes na linguagem que a produz em meio a outras formações discursivas,
já que as formas poéticas entretecem relações com as ideologias de sua época,
podendo exercer uma função crítica das visões cristalizadas de mundo.
O ponto de vista muriliano sobre a história do País indica, no momento de
História do Brasil, para uma rejeição de padrões históricos vividos em sua época,
assumindo uma forma explícita de combate. Nesse livro, o autor passa em revista
alguns momentos da história documentada e se opõe aos imaginários
consagrados e às formas estabelecidas de se representar o passado. Sua história
satírica do Brasil, com a carga lúdica, subverte valores entranhados na cultura
brasileira. O lúdico do livro, com sua leveza, carrega uma tensão cultural no
212
interior da linguagem poética, o que já ocorria no primeiro livro (Poemas), em que
é representado um País embevecido com a modernização.
O livro de 1932 é escrito em um período bastante turbulento na história do
País. Nele, o poeta dialoga com um momento (Revolução de 30) que poderia ser o
de uma transformação social, mas que acaba por continuar com valores e
interesses arraigados. Os novos governantes fizeram alianças com as elites
econômicas para dar sustentação ao novo Governo (Provisório), o que indicava
para um conformismo político. O poeta ridiculariza essas “permanências”, por
exemplo, no poema “1930”.
Nesse momento, o escritor trabalhou intensamente com elementos da
nacionalidade através da linguagem literária, absorvendo claramente expressões e
formas da linguagem popular, mas dialogando também com a cultura
internacional. Seu ataque aos vícios da vida política, se utilizava, por exemplo, do
registro surrealista, pelo qual criticava a cultura ilustrada brasileira como adorno e
como imitação dependente. Sua proposta poética se contrapunha ao mimetismo
estético, propugnando uma assimilação crítica dos padrões europeus, o que es
presente, por exemplo, em “Canção do Exílio”. A primeira fase muriliana está o
signo do Surrealismo que, com a idéia de transformação permanente da realidade,
foi decisivo para o dinamismo poético do autor e serviu, nesse momento, como
estética de universalização.
O segundo momento aqui considerado se relaciona à Contemplação de
Ouro Preto, período em que o poeta procede a uma revisão sobre a formação do
País e à própria obra, quando, então, a contribuição dos portugueses e da cultura
213
colonial brasileira são reinterpretadas com base em outros valores, numa
operação em que se cruzam a memória e a história do País.
As posições e conflitos anteriores não são tratados mais de modo explícito,
mas estão embutidos no livro ouropretano. Por influxo da arquitetura e escultura
religiosa, a história é recuperada pela via da memória literária, através de um
trabalho de adensamento da forma e da reflexão sobre o espaço e a história de
Ouro Preto.
Nessa fase, o signo religioso se afirma como discurso universalizante na
poética de Murilo, ainda que mantenha laivos da estética surrealista. Após sua
conversão pública ao Catolicismo, houve uma transformação radical na visão do
escritor, passando a considerar a religião como uma tradição universal. Ao mesmo
tempo que adere ao Catolicismo como tradição universal, Murilo penetra no
interior do País em Contemplação de Ouro Preto.
As duas obras reinterpretam, a seu modo, uma cultura nacional tensionada
tanto por elementos internos como por dados externos, o que se reflete na
transformação operada de um livro para outro. No primeiro livro, a interpretação
poética da história se faz pela ótica de personagens que ficaram à margem das
construções simbólicas do Brasil, já no segundo, a interpretação incorpora essas
mesmas personagens no contexto de uma obra de caráter religioso, consagrando-
as.
Cabe notar a junção da cultura erudita e da popular, realizada nos livros em
questão. Em História o soneto é tratado de forma irônica, mas não é descartado
inteiramente, aliás, é utilizado nas estratégias de ataque do poeta. Já em
214
Contemplação, a mesma forma é voltada para a contenção lírico-metafísica. Ao
lado do soneto, o poeta utiliza do “romance”, forma de cunho popular, que
sustenta boa parte das “narrativas” de ambas. A linguagem das obras é simples,
mas em alguns poemas do segundo livro torna-se opaca devido à perspectiva
religiosa, o que também marca um conflito entre tema tratado e forma utilizada.
A retomada de eventos passados, ocorre nos textos estudados pela
reintegração de informações passadas em novos contextos histórico-estéticos. A
partir da reconstrução do passado, a linguagem poética se constitui em
instrumento estético na luta contra os paradigmas da memória histórica
cristalizada em símbolos. A memória, em suas relações com a poesia, seria,
assim, a base de uma compreensão criativa e crítica da história.
Nossa análise tentou captar no diálogo entre as obras, as tonalidades de
ambas, e nos permite dizer que, por trás da “tinta azul” de Contemplação subsiste,
de modo velado, a “tinta vermelha” de História do Brasil.
Aqui propomos que a poesia, não sendo só registro das ruínas históricas -
além de representar personagens ou eventos - faz, ela própria, uma história
poética do presente e do passado, construindo novos olhares sobre a realidade. O
que ela produz é uma outra forma de olhar o passado, traduzindo, ora aderindo,
ora negando, poeticamente os fatos que, tidos como algo “realizado”, são
transformados pela vivência artística. Assim, os acontecimentos, ao passarem
crivo da experiência poética, transformam-se em evento significativo para as
considerações do presente, indo além de um registro frio da realidade.
A prioridade que demos aos textos literários não significa, porém, uma
aceitação de que eles seriam portadores de uma aura intocável, pois sabemos
215
que vários desses textos trabalharam pela construção de uma identidade nacional
problemática, portando não propusemos uma visão idealizada do fenômeno
literário.
Enfim, a linguagem poética pode propor novas visões sobre a história,
sendo ela mesma história viva por instaurar, no tecido da realidade, elementos
novos com outras dimensões do social. É no diálogo vivo entre história e literatura
que se dá uma outra reconstrução da memória histórica, agora pela via da
subjetividade e dos valores poéticos.
Por esses retratos murilianos, mostramos como o poeta assume uma visão
dinâmica do País, e portanto, não opera um movimento imobilizante entre passado
e presente. Nas imagens poéticas pulsa uma esperança que suplanta uma ótica
paralisante da realidade. O seu dinamismo se reflete no modo como trabalha as
múltiplas temporalidades, fazendo com que o presente volta ao passado e este
seja reenviado ao presente.
Enfim, essas visões do Brasil permitiram a revisitação de um tema de suma
importância para a atualidade, pois as imagens que pulsam nos textos do poeta
cifram e decifram os enigmas da história e memória nacional, incentivando o leitor
a uma releitura da história oculta brasileira, bem instigando a uma percepção mais
aguda das representações do Brasil.
216
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Correspondência
Cartas escritas por Murilo Mendes para Mário de Andrade, arquivadas no Instituto
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Cartas de Murilo a Alceu Amoroso Lima - Acervo Tristão Athayde (CAALL).
217
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231
ANEXOS
232
ANEXO I
ANTOLOGIA DE HISTÓRIA DO
BRASIL
407
IV
CARTA DE PERO VAZ
A terra é mui graciosa,
Tão fértil eu nunca vi.
A gente vai passear,
No chão espeta um caniço,
No dia seguinte nasce
Bengala de castão de oiro.
Tem goiabas, melancias.
Bananas que nem chuchu.
Quanto aos bichos, tem-nos muitos.
De plumagens mui vistosas.
Tem maçado até demais.
Diamantes tem à vontade,
Esmeralda é para os trouxas.
Reforçai, Senhor, a arca.
Cruzados não faltarão,
Vossa perna encanareis,
Salvo o devido respeito.
Ficarei muito saudoso
Se for embora d´aqui.
407
Esta seleção de poemas foi extraída de
Poesia completa e prosa. Org. Luciana
Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994. Esta antologia procura
destacar alguns poemas que não estão por
inteiro no corpo da Tese, mas que são
referidos ou parcialmente citados, e ainda
servem para dar uma visão de conjunto e
para o entendimento do livro estudado.
XIII
CANTIGA DOS PALMARES
Seu branco dê o fora,
Deixe os nego em páis.
Nóis tem cachachinha,
Tem coco ded sobre,
Nóis tem iaiá preta,
Nóis dança de noite;
Nóis rezacom fé.
Seu branco é demais.
Praquê que vancêis
Foi ruim pros escravo,
Jogou no porão
Pra gente morrê
Com falta de ar?
“Seu branco dê o fora,
Sinão toma pau
Aqui no quilombo
Quem manda primero
Deus nosso sinhô,
233
Depois é São Cosme
Mais São Damião,
A Virge Maria,
Depois semo nós.”;
Exerço de branco
Não vale um real,Zumbi aparece,
Mostrou o penacho,
Vai branco sumiu
Crúiz credo no inferno.
Seu branco, dê o fora,
Não volte mais não.
XIX
ESTÁTUA DO ALFERES
Eu sou o supremo herói.
Choquei a revolução...
Há mais de cem anos guardo
No meu ventre generoso
Uma turma de poetas
Que vivem o dia inteirinho
Tangendo as cordas da lira,
Em vez de atirarem bombas
No marquês de Barbacena
E no rei de Portugal.
Quem dorme mais é Dirceu.
No meu corpo cabe tudo.
Cabe passado e presente,
Mais do que tudo o futuro.
Senadores, deputados,
Se arrancham na minha sombra,
E outros, dentro de mim.
Se eu não tivesse sofrido
- Por iniciativa própria -
Eles nunca poderiam
Viver nesta pagodeira.
Sou como o cavalo troiano,
Aqui dentro cabe o mundo,
O Avô da farra sou eu.
XXIV
FICO
Eu fico, pois não,
Se a todos dou bem.
Preparem as mulatas,
Recheiem os p´rus,
Avisem os banqueiros,
Suprimam os chuveiros,
Me comprem mercúrio,
Afinem as guitarras,
Previnam o Chalaça,
Aprontem o troley,
Eu fico, mas vou
Falar com a Marquesa,
Já volto pra ceia.
Falando em comidas
Eu fico, pois não.
234
XXVII
A PESCARIA
Foi nas margens do Ipiranga,
Em meio a uma pescaria.
Sentindo-se mal, D. Pedro
- Comera demais cuscuz –
desaperta a barriguilha
E grita, roxo de raiva:
“Ou me livro d’esta cólica
Ou morro d’uma vez!”
O príncipe se aliviou,
Sai no caminho cantando:
“Já me sinto independente.
Safa! vi perto a morte!
Vamos cair no fadinho
Pra celebrar o sucesso.”
A Tuna de Coimbra surge
Com as guitarras afiadas,
Mas as mulatas dengosas
Do Club Flor do Abacate
Entram, firmes, no maxixe,
Abafam o fato com a voz,
Levantam, sorrindo, as pernas...
E a colônia brasileira
Toma a direção da farra.
XXVIII
O PADRE DE FERRO
Este homem não entendeu
O caráter brasileiro.
Quis deitar muita energia,
Acabou se dando mal.
Antes deixar como está
Para ver como é que fica!...
XXXVII
MILAGRE DE ANTONIO
CONSELHEIRO
O homem não sai
De dentro da igreja.
Há mais de seis meses
Que ele está ali.
O homem não sai.
O exército avança,
O fogo dispara,
A igreja está firme,
O fogo redobra,
O homem não sai,
Não sai nem a pau.
- Demônio de home,
235
Está com o demônio. -
Atiram água-benta
Na porta da igreja,
O homem não sai.
O homem se ajoelha
No altar lateral
Do arcanjo Miguel.
O santo pegou,
Na torre subiu,
Mostrou a espingarda
Que tem dois canudos,
O exército volta,
Faz pelo-sinal,
O fogo apagou,
O santo respira...
O homem não sai.
XXXVIII
O CHICOTE DE JOÃO CÂNDIDO
Seu marechal, dê o fora,
Senão leva chibatada.
Meu chicote é sem piedade,
Sabe responder ao seu.
Seu chicote é de chicote
Você fez o seu chicote
Foi com crina de cavalo
Mas não deu no seu cavalo,
Deu foi no lombo da gente.
Nos chamou com seu chicote,
Nós agora respondemos.
Você zuniu seu chicote,
Com força, na direção
Da ilha das Cobras, ai!
Nós agora respndemos
Pela voz deste chicote
Que não é feito de crina
Mas que é feito de mar;
Quem zune o chicote é o vento,
Cai no lombo do navio
Onde você se escondeu.
Responda a este assobio,
Depressa, seu marechal.
236
XXXV
ELEGIA DO DIA 16
Ó amigos do coração,
Muito obrigado a vocês,
Me tiraram duma encreca.
Isto aqui não dá mais nada.
Quem não foi imperador
Não avalia o que é pau.
A herança que lhes deixei
Muito mal poderá dar
Para o buraco de um dente.
Isabel minha filha leu
“A choça do Pai Tomás”,
Teve uma pena do escravo;
Nabuco queria mostrar
Que tinha estatura mesmo,
Patrocínio precisava
Provar que tinha garganta;
Fui dar um giro na Europa;
Caiu a sopa no mel.
Num átimo abrem as senzalas,
Foi tudo por água abaixo.
Ninguém sustenta a fazenda:
Quem há de plantar café,
Quem há de colher café,
Quem catará cafuné
Pro fazendeiro indolente?
Mas fizeram muito bem!...
O navio está apitando,
Enfeitado com a bandeira
Formosa que o vento beija.
Vou passear em Paris,
Todo ancho na sobrecasaca,
Vou visitar a Sorbonne;
Ô meus filhos brasileiros,
Saúde e fraternidade,
Não quero saber de encrenas,
Comigo não violão.
XLIII
HINO DO DEPUTADO
Chora, meu filho, chora.
Ai, quem não chora não mama,
237
Quem não mama fica fraco,
Fica sem força pra vida,
A vida é luta renhida,
Não é sopa, é um buraco.
Se eu não tivesse chorado
Nunca teria mamado,
Não estava agora cantando,
Não teria um automóvel,
Estaria caceteado,
Assinando promissória,
Quem sabe vendendo imóvel
A prestação ou sem ela,
Ou esperando algum tigre
Que talvez desse amanhã,
Ou dando um tiro no ouvido,
Ou sem olho, sem ouvido,
Sem perna, braço, nariz.
Chora, meu filho, chora,
Ante-ontem, ontem, hoje,
Depois de amanhã, amanhã.
Não dorme, filho, não dorme,
Se você toca a dormir
Outro passa na tua frente,
Carrega com a mamadeira.
Abre o olho bem aberto,
Abre a boca bem aberta,
Chore até não poder mais.
LVII
FUGA
Lampião fugiu, Lampião.
Quem é que prende Lampião?
Aviador nem dinamite
Não liquida Lampião.
Nem polícia nem marinha,
Nem os “secretas” de Deus
Ninguém segura Lampião.
Quem te viu e quem te?
Lampião corre que corre,
Lampião nunca que morre
- Nem ao menos no jornal. –
Lampião rouba tesouros,
Oferece aos jejuadores
238
Lá na ponta do sertão.
Lampião faz aliança
Com bispos e generais.
Lampião pega toda virgem
E solta as velhas que vê.
Lampião clareou, sumiu,
Relampejou, estourou,
Lampião virou é cometa,
Só volta daqui três anos
Com o rabo do seu cavalo
Zunindo que nem o vento.
Eu sei, Lampião não é home,
Nem demônio, lobisome,
Nem mesmo ele é Lampião,
Corre, gira, salta, pula,
Lampião é isto, é pião.
LIX
1930
1) O Clemenceau das montanhas
No dia 3 de outubro de tardinha
O doutor Olegário Maciel
Em vez de um fuzil
Tinha um relógio na mão.
2) Festa familiar
Em outubro de 1930
Nós fizemos – que animação! –
Um pic-nic com caravinas.
3) Coração do povo
O povo há muitos anos que sofria,
Vai daí resolveu pôr abaixo o papão.
Chamou o cardeal,
Lá se foi o papão
Comer paisagens de queijo na Suíça
E arejar o cavaignac.
Mas na hora do navio sair
O povo ficou com muita pena,
Contratou banda de música
Pra tocar dobrados,
Mandou um bouquet de flores ao
paão.
Quase que botou ele
No governo outra vez.
239
4) Itararé
1
A maior batalha da América do Sul
Não houve.
2
Soldado desconhecido
Não falta em Itararé.
3
Um padre meu conhecido
Mal chegou no Itararé
Fez o sinal da cruz,
Regimento caiu no chão.
Ninguém poderá negar,
De alma limpa e boa-fé,
Que esta revolução representa
A vitória do “pelo-sinal”.
4
No meio do caminho
Me atacou um delírio patriótico,
Resolvi embarcar pra Itaraté.
No meio do caminho
Entrei num botequim,
Tomei um bruto pifão.
Quando acordei
O papão já estava deposto
E eu já era major.
240
ANEXO II
ANTOLOGIA DE CONTEMPLAÇÃO DE
OURO PRETO
408
M
OTIVOS DE
O
URO
P
RETO
A Rubens Navarra
2 (vv. 55-75)
A Viúva de Ouro Preto sobe a rua
[cantando,
Apoiada ao bastão, na cabeça um
[penacho
De três cores, vestido velho e desbotado
Cuja invisível cauda arrasta com
[desdém.
A Viúva de Ouro Preto fala em frases
[cifradas,
Pesa em partes iguais o mito e a
[realidade,
O passado e o presente, a alegria e a
[tristeza,
Declara que decide a guerra no
[estrangeiro,
Rico e pobre entretém com igual polidez.
A trama da sua vida é feita de fantasmas
Que só se extinguirão no seu último dia:
A Viúva de Ouro Preto é de grande
[família
408
Esta seleção de poemas foi extraída de
Poesia completa e prosa. Org. Luciana
Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994.
Que possuiu fazenda, escravos e
[palácios,
Privou com a Imperatriz, refinou-se na
[Europa,
Serviu banquetes em baixelas persas,
Depois tudo perdeu, os membros
[dispersou,
Resta Dona Adelaide Mosqueira de
[Meneses,
Vítima da jogatina, a Viúva de Ouro
Preto
Que vive numa toca de espectros
[rodeada,
Que inda tem uma pedra onde apóia a
[cabeça...
A Viúva de Ouro Preto desce a rua
[rezando.
5 (vv101-142)
Repousemos na pedra de Ouro Preto,
Repousemos no centro de Ouro Preto:
São Francisco de Assis! Igreja ilustre,
acolhe,
À tua sombra irmã, meus membros
lassos.
Confrontamos aqui toda a miséria,
Da matéria o desgaste deduzindo
Em nossa vida universal e pessoal.
O rude tempo de aniquilamento,
O rude tempo de desproporção!
Nem nos transforma a companhia do
[Anjo
Que estendido no teto desta igreja,
Rumando para a terra, em vôo certeiro
241
Despede ao chão a lâmpada de prata!
Entretanto ele é belo: dançarino
Do sopro da saúde modelado,
Asas de larga envergadura tem,
E seus panejamentos apresenta
Com delicada graça, mas viril.
Respira o rosto, máquina rosada,
Um mesmo movimento aparelhando
A boca, os olhos diurnos e o nariz;
Carnal vivência o busto manifesta,
Os cabelos castanhos esparzidos
Numa desordenada simetria
O ritmo ajudam da composição;
Os pés calçados de sandálias gregas
Formam sólida base ao corpo inteiro.
Mas não se vale apenas de suas asas:
Os braços desenvoltos deslocando
O espaço em torno, rápido, oferecem
Flores, frutos da terra ao povo fiel.
Seus ornamentos só brios sintetizam
Do barroco mineiro austera força.
Assim o esculpiu na tradução humana
O escopro genial do Aleijadinho.
Mas de que serve a gratuidade do Anjo,
Que pode o Anjo ante a angustura do
[homem
E a força da caveira desarmada
Que elevada se vê no tapa-vento?
Que pode o Anjo ante a manopla imóvel,
Ante a pátina da morte em Ouro Preto?
Kyrie eleison. Memento mori. Kyrie
[eleison.
ROMANCE DAS IGREJAS DE MINAS
A Rodrigo M. F. de Andrade
Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando nas igrejas
Da cidade e do sertão
O gênio das Minas Gerais
Que marcou estas paragens,
Estas sombras benfazejas,
Estas frescas paisagens,
Estes ares salutares,
Lavados, finos, porosos,
Minerais essenciais,
Este silêncio e sossego,
Estas montanhas severas,
Esta antiga solidão,
Com o sinal do seu lirismo,
Com a cruz da sua paixão.
Templos de Minas Gerais,
Das cidades e arraiais,
Templos em pedra-sabão
De Sabará e Mariana,
De Ouro Preto, de Ouro Branco,
De Brumado a Catas Altas,
De Santa Rita Durão,
Santa Bárbara, Congonhas,
Cachoeira, São João del Rei,
Tiradentes, Caeté,
242
Quantas vezes meditei
Os novíssimos do homem,
Que o século não consome
Nem a ciência destrói,
Nesses templos soberanos,
De riscos audaciosos,
De curvas acentuadas,
De linhas voluptuosas,
Íntimos, doces, profanos,
Refinados, populares:
Que inspiram poesia e dó,
Nesses Carmos e Pilares,
Nesses Rosários e Dores,
Nesses Perdões e Mercês,
Em São Francisco de Assis,
Em Nossa Senhora do Ó!
Em capelinhas caiadas
Na colina levantadas,
Vestidas de branco e azul.
Minha alma desce ladeiras,
Minha alma sobe ladeiras,
Desce becos, sobe vielas
Com uma candeia na mão,
Procurando a forma altiva
Da cruz, viva tradição,
Pedra de ângulo, base
De rude religião.
Diviso 1ívidos Cristos,
Diviso Cristos sangrentos,
Monumentos de terror,
O Cristo da Pedra Fria.
O Senhor da Cana Verde,
O Cristo atado à coluna,
O Senhor morto esticado
Envolto em roxo sudário
Debaixo do próprio altar.
Vejo agora mãos chagadas,
Nossa Senhora de espadas
Cravadas no coração,
Coroas de espinhos, vasos
Por onde escorreu o fel,
Tíbias, caveiras coroadas,
Pinturas já desmaiadas
Nas telas emolduradas
Em forma de medalhão,
Figurando o Paraíso,
A Trindade, a Anunciação,
O Lava-pés, o Batismo,
A Morte e a Ressurreição;
Relicários, oratórios,
Pelicanos de coral,
Sinistro baixo-relevo
Das almas do Purgatório
Libertas por São Miguel,
Longas lanças de Longuinho,
Atlantes do Aleijadinho,
Portas, púlpitos, profetas
Marcados por seu cinzel,
Redondos anjos barrocos
Que o toreuta retorceu,
Arabescos sensuais,
Apóstolos duros, secos,
Peregrinos medievais
Revestidos de amplos sacos,
Marchando com seu bastão;
Calvários extraordinários,
Tarja com estrelas e asas,
Tocheiros, lâmpadas, lustres,
243
Galerias, balaústres,
Grades em jacarandá,
Querubins, anjos-aurora
De estranhos panejamentos,
Com as asas espalmadas,
Lavabos de sacristias
Feitos de pedra-sabão,
Tetos altos do Ataíde
Exaltando a religião;
Paredes em faiscado,
Consistórios, corredores
Onde vagueiam fantasmas
De poetas inconfidentes,
De frades conspiradores;
Oleogravuras mostrando
A Via-Sacra da Paixão,
Çarátulas, gárgulas negras,
Colunas tremidas, gregas,
Caixas pedindo dinheiro
Em antiquados letreiros
De oremus e ora pro nobis,
Ex-votos comemorando
Curas por intercessão:
E a nobre talha dourada,
Patinada, trabalhada,
As imagens ressaltando
De nossos oragos, tantos
Santos de esgarçados mantos,
De arbitrárias cabeleiras,
Roxas, pisadas olheiras,
Os membros caídos, feridos,
Desfeitos, desmilingüidos,
Contemplando comovidos
O descimento da cruz.
Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Çom uma candeia na mão,
Ilumina embevecida
Seus santos de devoção,
Companheiros vigilantes
Da cruz da sua paixão,
Que deu corpo, força e vida
Aos templos de pedra-sabão:-
São Pedro, Santo Isidoro,
São Gregório, São Leão,
Santa Bárbara, São Jerônimo,
São Paulo, Santa Juliana,
Sant'Ana, São Sebastião,
Santa Águeda, Santa Mônica,
São José, Santa Verônica,
São Francisco, Santa Clara,
São Policarpo, São João.
A igreja agora agasalha
Uma densa multidão
Que procura comovida
Nos mistérios redivivos
Da nossa religião
Novo alento, luz e vida,
Sustento, consolação.
Sinos de bronze ressoam,
Ressoam sonoros sinos:
Vejo figuras de orantes,
Orantes e comungantes
Com os abraços estendidos
Orando íntima oração:
Assim se vê nas pinturas
Das antigas catacumbas,
N os mosaicos bizantinos,
244
Mulheres, moços, meninos,
Catecúmenos, anciãos,
Assim oravam outrora
Qs primitivos cristãos.
Vejo beatos sofredores
Trazendo bentinhos, fitas,
Rezando gastos rosários,
De olhos fIxados no céu,
Velhas bíblicas, severas,
Nos ombros escapulários,
Perfil talhado a formão,
Muitas vestem à maneira
De senhoras de outras eras
Com filó preto, fichu,
Dona Engrácia, Dona Urbana,
Don' Ana, Dona Juju;
Irmãos da santa Irmandade
Encostados às paredes,
Pensando na procissão,
Vaidosos nas opas verdes,
Vermelhas, brancas, violetas;
Pretos de vela na mão,
Pretinhas de laçarotes,
Rapazes em seus capotes
Cor de cinza e vermelhão,
Garotinhos retorcidos
Descendentes dos garotos
Que inspiraram o Aleijadinho
Nos anjos do medalhão.
A grande ação começou:
A sublime teologia
Revela a sabedoria
Do sacrifício inefável,
Do mistério universal
De que todos participam
Na terra, no ar, no céu,
Unidos na comunhão
Do Deus eterno, uno e trino,
De um só e mesmo batismo,
Uma só fé, um só pão.
Vozes ascendem aos ares
Que desprezam o cantochão,
Rompe um canto pela nave
A Santa Maria Eterna,
Um canto sentimental
Que ofende a liturgia.
Fonte viva, genuína,
Da santa religião,
Mas que toca a alma ingênua
Do povo rústico e chão.
Agora um baixo-profundo
Canta um hino de paixão,
Esconjura o diabo imundo,
Clama os pecados do mundo
Em longa lamentação,
Chorando com gravidade,
Chorando oculto nas grades
As saudades de Sião.
Mas chega a missa ao momento
De maior concentração,
Surdo silêncio se faz.
Abre-se agora o sacrário,
No seu recesso repousa
O Cristo em sua nova lei,
Já que o antigo documento
Cede ao novo testamento,
Cede ao novo mandamento,
Mistério de caridade,
245
Mistério de santidade
E total despojamento
O sacramento do altar,
Ação da Comunidade,
Saúde, força, sustento,
Ante o qual todo elemento
Se inclina para adorar.
O celebrante apresenta
À Santíssima Trindade,
Em nome da humanidade,
Ao Pai eterno clemente,
Ao Filho, Verbo humanado,
Ao Espírito Divino,
Unidos na caridade
Por um nó que não desata,
O corpo de Nosso Senhor
Na santa cruz imolado,
Vencendo assim o pecado
Pela presteza do amor.
O Cristo, homem compassivo,
Deus trasladado do Céu,
Transferido à dura terra,
Solidário na sua dor,
Se reparte nos fiéis
Que traçam cruzes nos ares
Relembrando a salvação,
Curvando-se ante os altares
Onde se aprende, esculpida,
Em silêncio oferecida,
Na talha e pedra-sabão,
Ao culto do Deus criador,
A história da Encarnação,
Paixão e Ressurreição
De Cristo Nosso Senhor.
Murmuram o Agnus Dei.
O celebrante despede
O povo “Ite missa est"
Para este cumprir na rua
O que no templo aprendeu,
Depois lê meio apressado
O evangelho de São João,
Cosmogonia do Verbo;
E afinal com o povo todo
Recita a Salve-Rainha,
Santa e solene oração.
Senhora benigna e pura,
Mãe de esperança e doçura
A quem todos nós bradamos,
Gememos e suspiramos
Neste desterro do céu
Os olhos consoladores,
Clementes, a nós volvei,
Vossos filhos pecadores,
E mais tarde nos mostrai,
Espelho de todo o bem,
Depois de serena morte,
A face do Cristo, amém.
A multidão se dispersa
Nos seus trajos domingueiros,
Cada um retoma ao lar.
Minha alma sobe ladeiras
De Ouro Preto e Mariana,
De Sabará e São João,
Evoca no ar lavado
O drama da Redenção.
Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
246
Procurando comovida,
Procurando comovida
A cruz da sua paixão,
Que deu corpo, alento e vida
Aos templos de pedra-sabão.
Por isso escrevi um canto
Com palavras essenciais,
Baseado na beleza
Da antiga Minas Gerais,
Inspirado na grandeza
Da rude religião,
Princípio e fim da existência,
Essência da perfeição,
Origem de todo o bem,
Penhor de ressurreição,
Doutrina de vida inteira,
Em louvor do Cristo, amém.
ADÃO E EVA
A Antônio Joaquim de Almeida
e Lúcia Machado de Almeida
Concebido da terra, traz o signo
Da ciência na fronte soberana.
Astros aponta há pouco modelados,
O prosperar das plantas acompanha,
Percorre o boi, sopesa a pedra, absorve
[o vento,
Os dedos dedicados à delícia
De palpar, de tocar, de presumir.
Homem feito surgiu, salvo da infância,
Ei-lo que se percebe e se harmoniza à
[terra:
Pai do universo criado, afim com o
[Criador,
A todo ser formado o nome próprio daí.
No jardim de grandezas espaciais
Sob o dossel das árvores descansa,
Mas no centro das outras não distingue
Árvore basilar de alta raiz
Que no seu cerne esconde o livre-arbítrio
Do autômato separa o ser consciente.
Profundo sono o Criador lhe inspira.
Ajudam esse primeiro sono espesso
Nuvens, celestes panos desdobrados,
O abismo, o caos, e a noite sobre a
[noite,
Total, íntima noite do princípio,
Pesada noite, e cega no seu eixo:
O amplo sono da noite enfaixa Adão.
E Adão ainda no sono se percebe,
Liga-se a Deus nessa visão noturna.
Rios, florestas, animais esperam.
Sobre o primeiro homem Deus se inclina,
E outro tipo lentamente elaborado
Pelo Espírito pairando sobre as águas,
Desenha-se acabado, nova ação.
Agora forma e fôrma se conjugam,
Duas sombras primeiras justapostas,
Pela força unitária aproximadas,
Ativos elementos a buscarem-se
Tacteando ainda nos eternos labirintos,
Palpando-se nos planos pensativos
247
Das origens, de antigas estruturas,
De camadas espirituais profundas,
Da ciência plástica de Deus
Prevendo a encarnação do próprio Filho.
Repousa Adão nas pálpebras pesadas,
Repousa Adão nos membros satisfeitos.
No seu repouso o Criador opera,
Com os dedos sábios o Criador
[consagra.
A primeira criação tirou do nada,
Do próprio homem extrai seu
[complemento.
No pó não sopra mais: opera o homem.
Conhecendo a matéria Ele intervém;
E o pensamento, em forma concluído,
Ao seu Espírito integral se mostra.
Logo convoca o homem do seu sono:
E na noite de formas familiares,
De água, animais e astros conjugados,
No expectante silêncio nupcial,
No silêncio total da noite sacra,
Deus lhe diz: “Toma a tua companheira
Que os Três tiramos de ti mesmo: Eva,
Carne da tua carne e osso dos teus
[ossos.
E desde agora macho e fêmea sois.
Feitos à Nossa imagem e semelhança:
À Nossa mesma imagem e semelhança
Em eterno desígnio vos formamos.
Dominai sobre a terra e os elementos,
Fundai a vida, perfazei o mundo
Com gerações que esperem Nossa
[benção”.
E, completando assim o plano eterno,
Sobre o primeiro par impõe as mãos.
ROMANCE DE OURO PRETO (vv. 376-
451).
Do Aleijadinho
- Pernas de pedra,
Tronco de igreja,
Testa de morro
Da Minas bíblica
Que a Santa Bárbara,
Grã domadora
Da trovoada,
Se consagrou,
Do Aleijadinho,
Macho escapado
Ao próprio escopro,
- Sua obra inteira
É auto-retrato
De corpo inteiro
Revelador -,
Do Aleijadinho
Severo ancestre
Mal-encarado,
Encapuzado
No seu furor,
Alma barroca,
Fundos refolhos
248
De obscura raiva
Guardando em si,
Na dura entranha
De penha humana
Com fortes peitos
Gerado à luz,
Do Aleijadinho
Sóbria lição
- Suma piedade
Rígida, austera,
Na bruta Bíblia
Cedo assentada,
De um mundo novo
Mantido em pedra
Consolidada
Na criação,
Do Aleijadinho
Força fogosa,
Grã-liberdade
Na disciplina
Do antigo amor
Movendo os dedos,
Movendo o engenho
Com seu vigor,
Força madura,
Fundamental,
Que à alma imprime
Imperecível,
Sempre impassível,
Grave postura,
Nobre feição,
Do Aleijadinho
- Simplicidade
Dentro do excesso,
Transbordamento
Não sem rigor,
Conselho altivo
Que vence a morte,
Nutrido a sangue,
Na chaga inscrito,
Rasgado a escopro
- Transverte a dor -,
Do Aleijadinho
Que transfixado
No seu grabato,
Contempla o Cristo
Com febre e amor,
Do Aleijadinho
Sopro do eterno
Rolando Minas,
Gravado em pedra,
No pau esculpido,
Firme palpei.
SÃO FRANCISCO DE ASSIS DE OURO
PRETO
A Lúcio Costa
Solta, suspensa no espaço,
Clara vitória da forma
E de humana geometria
Inventando um molde abstrato;
Ao mesmo tempo, segura,
Recriada na razão,
Em número, peso, medida;
Balanço de reta e curva,
Levanta a alma, ligeira,
249
À sua Pátria natal;
Repouso da cruz cansada,
Signo de alta brancura,
Gerado, em recorte novo,
Por um bicho rastejante,
Mestiço de sombra e luz;
Aposento da Trindade
E mais da Virgem Maria
Que se conhecem no amor;
Traslado, em pedra vivente,
Do afeto de um sumo herói
Que junta o braço do Cristo
Ao do homem seu igual.
CONTEMPLAÇÃO DE ALPHONSUS
(vv.30-74)
Contemplo, amigo, tua ação na terra.
Em Ouro Preto que te viu nascer
E te abrigou durante a mocidade,
A experiência da morte muito cedo
O eixo transfere da tua vida vã.
Na igreja do Bom Jesus de Matozinhos
Plantada lá no topo das Cabeças,
E onde na pedra o Aleijadinho expõe
A purificação das almas pelo fogo
E a piedade do Arcanjo São Miguel,
A frágil e suave Constança tu noivaste
Que logo o céu ciumento arrebatou
-Corpo cruzado em campo de açucenas.
Nesse tempo de resgate e iniciação,
Tempo de roxo e lágrimas de sal,
Gerou-te a morte para a luz eterna.
Desse funesto eclipse a arte irrompe,
Que austera sobre si própria se curva,
Liberta de impurezas, e diamante
De oculta força, aos poucos
despontando
Na solidão de áspera clausura.
Menino eu era, e a estátua se formava
Ante mim desse Alphonsus exigente
Que, do mundo nas Minas isolado
Entre silêncio e torres, trabalhava
No ofício rigoroso da poesia.
Desde cedo meu espírito impelido
Pela força da morte, que alterando
Minhas próprias origens e meu rumo,
À borda do vazio me inclinara,
Desde cedo meu espírito gemendo
Achou adequação exata nos teus livros
Que nos lentos serões assimilei.
O que o clarão de Halley começara
Anos antes, teus livros perfizeram:
As galerias da poesia perfurei
E tua alma encontrei nos corredores,
Tua alma de presságios contemplada
Sofrendo na medonha carruagem:
E o espectro permanente dos teus
goivos,
Teus crisântemos, tuas passifloras,
A aridez de tuas gândaras desertas,
A nova organização do teu céu roxo
250
E o palor das tuas estrelas conheci.
Quase não distinguia mais amor e
morte...
.............
(vv.364-422)
Ó Figuras supremas do universo
Que no perpétuo amor vos contemplais,
Pelos símbolos vivos alterando
A neutralidade cinza da matéria,
A rotação dos Três se processando
Enquanto o germe antigo renovais:
Fazei vibrar os sinos da consciência,
Os espectros da fome desatai;
A alma dos milionários convertei
Que, agora pastando seu cadáver,
O penacho da raiva dos planetas,
Sem o saber, já fazem se inclinar!
Prendei o Cão, os cárceres soltai,
Dissolvei fortalezas de terror,
O clarão dos clarins logo abafando;
O povo errante desta dura terra
(Entre esportivo e tigre) transformai.
Vesti o triste manequim das almas
.Da rubra túnica da Encarnação!
Aos poetas devolvei o alumbramento,
Devolvei-lhes ainda a assombração:
Que outrora o amor, o sonho e a
natureza,
Suas amplas analogia~, alternando,
Porta maior da Esfera lhes abriu!
O sol tríplice da imensa criação,
Sol absoluto distribuindo sempre
Do teu peito geral, transformador,
Tua própria substância que se aumenta
À medida que vão girando os Três,
O sol tríplice da imensa criação,
Tu que geras, redimes e 1umeias,
Desdobra sobre os homens teu amor:
Paz ao mundo sanguento e feridento
Suspenso à cruz de dúvida e pavor;
Paz aos seres moventes sobre a terra
Que solidários são da tua luz,
Mesmo a todos os seres negativos;
Que sem o teu poder desnasceriam;
Paz aos mortos no escuro semeados
-Aguardam o som da tuba metuenda
Que, nos últimos tempos retumbando,
Nova criação à vida chamará;
Paz ao cimeiro Alphonsus acordado
Seja no purgatório ou paraíso,
Ou na chama votiva dos amigos,
Seja no Livro de volutas graves
Que sua mão ilustre levantou;
Glória a ti, luz e núcleo do universo,
Glória a ti, uno e trino, sempre igual,
Sempre diverso, ó tu, sol absoluto,
Sol barroco da enorme criação.
De mil mundos forrado e constelado
Que soberbos ornatos infinitos,
Por dentro e pelo avesso, multiplicas
Na tua ânsia de tudo dilatar:
O sol tríplice da imensa criação,
Que o amor, a morte e outras estrelas
mais
Com teu fogo e energia vais movendo
E até o sem-fim dos tempos moverás.
251
ACALANTO DE OURO PRETO
(vv.49-64)
Dorme, dorme, Aleijadinho,
liberto da zamparina,
Dorme, dorme, Aleijadinho,
Dorme o sono dos teus santos
Em seus terraços de lájeas.
Dorme, dorme, Aleijadinho:
Os profetas que geraste
Nas entranhas da tua arte
Dão solene testemunho
Da tua ressurreição.
Dorme, dorme, Aleijadinho,
Na tua tenda de Ouro Preto
Figurada pela noite,
Com Maurício e com Justino,
Dorme, dorme, Aleijadinho,
O sono da pedra-sabão.
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