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SYLVIA TAMIE ANAN
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Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Teoria
Literária e Literatura Comparada da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, sob orientação do
Prof. Dr. Joaquim Alves de Aguiar.
São Paulo, maio de 2006.
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Para minha mãe
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Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela
astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos
lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não.
São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo
recruzado.
“ – Você tem saudade do seu tempo de menino, Riobaldo?” – ele me perguntou,
quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha saudade
nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu
pudesse possível. Por certo que eu já estava crespo da confusão de todos.
( Grande Sertão: Veredas )
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao Joaquim, pelos anos de orientação atenta e
paciente, desde a Iniciação Científica, apesar de todos os meus atrasos e limitações.
Aos professores Vagner Camilo e Yudith Rosenbaum, pelas argüições
em meu Exame de Qualificação, repletas de preciosas sugestões.
Aos professores Alcides Villaça, Marcus Vinicius Mazzari, Jorge Coli,
Antonio Dimas de Morais e, novamente, a Vagner Camilo e Yudith Rosenbaum, pela
oportunidade de aprendizado em cursos de graduação e pós-graduação.
À FAPESP, pelo indispensável apoio à pesquisa desde a Iniciação
Científica, tanto financeiro quanto acadêmico, através da atenta leitura dos relatórios.
A Ana Paula, Bruno, Fernando, Ulisses e Valéria, amigos sem cujo apoio
o caminho teria sido muito mais longo.
À minha família: meus pais, Monika e Edson, e a Renato e Lieselotte.
RESUMO / BREF
Embora tradicionalmente vistas como textos menores da obra de Manuel
Bandeira, suas crônicas para jornal apresentam uma riqueza particular, relacionada e ao
mesmo tempo distinta de sua poesia: enquanto transportam para a prosa alguns dos
principais temas de sua lírica, entre eles a memória de infância, conferem-lhes um outro
tratamento que evidencia a sua presença no cotidiano do poeta, transcendendo o vínculo
primário do gênero com o tempo presente. Seja nas crônicas sobre a vida cotidiana, seja
naquelas em que o poeta faz crítica literária ou de artes plásticas, uma visão vinculada a
um passado muito particular pode ser depreendida e iluminar facetas pouco exploradas
de sua obra.
Bien qu’elles soient vues par tradition comme textes moindres de l’œuvre
de Manuel Bandeira, seus chroniques écrites pour journaux présentent une richesse
particulière, qui se rapporte et en même temps se distingue de sa poésie: pendant
qu’elles transportent à la prose quelques thèmes importants de sa lyrique, parmi lesquels
la mémoire de l’infance, elles leur donnent un autre traitement qui met en relief leur
présence au quotidien du poète, de manière à transcender la vinculation primaire du
genre avec le temps présent. Soit aux chroniques sur la vie quotidienne, soit auxquelles
où le poète fait de la critique litéraire ou de l’art, un point de vue lié à un passé très
particulier peut être découvert et éclaircir facettes peu explorées de son œuvre.
ÍNDICE
Introdução ................................................................................................. 07
Capítulo I: Infância Próxima....................................................................21
1. Quadros da Infância .................................................................... 23
Pintura Angélica ................................................................. 25
Eu vi o mundo... .................................................................33
2. A trinca do Curvelo .....................................................................42
Capítulo II: Infância Distante.................................................................. 55
1. Crônicas da Província ................................................................. 56
Menino de Engenho ............................................................ 61
O Mestre de Apipucos .........................................................67
2. Cidades de Interior ......................................................................73
Quixeramobim e Campanha ................................................74
Pernambuco e Bahia ........................................................... 79
3. Rua da União ...............................................................................81
Capítulo III: Infância e Paisagem Urbana ............................................. 91
1. Das Laranjeiras ao Castelo ..........................................................92
2. Ai, Árvores! .................................................................................103
O Largo do Boticário ...........................................................103
Um Pé de Milho .................................................................. 106
3. Carnavais .....................................................................................109
Carnaval Distante ................................................................110
Carnaval Próximo ................................................................116
4. O Retorno ao Lar .........................................................................124
Cachoeiro do Itapemirim .....................................................125
De Volta ao Recife ..............................................................128
Considerações Finais ................................................................................ 132
Bibliografia ................................................................................................134
7
Introdução
Conhecido como um dos maiores poetas brasileiros do século XX, Manuel
Bandeira foi também um cronista contumaz. Desde 1917, mesma data de publicação de A
Cinza das Horas, até pouco antes de sua morte, em 1968, conta-se mais de meio século de
contribuições em diversos jornais de vários Estados, principalmente do Rio de Janeiro. Mas,
embora constituam a parte mais significativa da obra em prosa de Bandeira, as crônicas foram
relegadas a um segundo plano pelo próprio autor, de forma que apenas um número limitado
de textos encontra-se disponível – justamente aqueles publicados em suas coletâneas em livro:
Crônicas da Província do Brasil (1937), Flauta de Papel (1957), que recebeu uma reedição
bastante ampliada no segundo volume de Poesia e Prosa (1958), da editora José Aguilar, e
Andorinha, Andorinha (1966).
Dessas crônicas, é possível apreender os temas pelos quais interessava-se o
poeta em seu cotidiano. Trata-se de textos em que a ambiência artística da época, através de
comentários críticos a respeito de novos livros, concertos, peças de teatro, filmes e
exposições, além das inúmeras amizades de Bandeira, convive com pequenos fatos da
vizinhança em que vivia, em seus vários endereços, e da vida mundana da então capital da
República. Entretanto, mesmo que abrilhantado pela perspectiva de um observador muito
particular, o valor dessas crônicas não reside apenas no registro histórico ou na simples
curiosidade. Captados por um olhar único, acontecimentos importantes ou insignificantes
ganham uma nova dimensão na prosa bandeiriana, que, através de um estilo claro e conciso,
transpõe o limite do relato de miudezas para alcançar uma forma rara de lirismo, muito cara
ao próprio Bandeira.
Dessa maneira, o cronista acaba transportando para a prosa alguns dos
principais temas de sua lírica, entre eles a vivência do cotidiano e a memória de infância. É
em suas crônicas mais ricas que estes dois temas se mesclam, transformando-as em
8
testemunhais de como o resgate das primeiras vivências estava presente no dia-a-dia do poeta.
É preciso, no entanto, que a leitura das crônicas não se oriente apenas como apoio à
interpretação dos poemas: os textos que encontramos nas coletâneas em livro, mesmo que
preservados à revelia do autor, que aceitava publicar em jornais para garantir a sua
subsistência e enviava os originais às redações sem guardar sequer uma cópia consigo, são
textos literários de primeira linha, não raramente à altura de seus melhores poemas.
Em todo caso, mesmo que produzida para uma publicação efêmera, a crônica
não depende de que se recuperem todas as suas informações contingentes para a sua
compreensão. Embora, algumas vezes, seja relevante recuperar alguns fatos de época, o
essencial à interpretação de uma crônica reside, como em qualquer outra obra literária, no
próprio texto. Nas crônicas de Manuel Bandeira, os fatos adjacentes mais fundamentais são de
conhecimento de todos que se interessam por sua obra; de resto, permanece apenas a fruição
da leitura, que flagra o poeta em seu cotidiano, datilografando a crônica com a máquina no
colo enquanto observa a vizinhança pela janela. A centralização da obra bandeiriana nas
miudezas do cotidiano transforma portanto as suas crônicas em uma peça fundamental.
Entre as características mais marcantes da crônica, os conceitos que
corriqueiramente se associam ao gênero, encontra-se certamente a idéia de leveza, tanto na
escolha dos temas quanto no seu tratamento, e até mesmo na sua forma original de
publicação, em que o recorte de jornal se contrapõe ao peso de um livro, por exemplo. Em
geral escrita em linguagem simples e breve, a crônica mantém relação com a sua origem
modesta, o folhetim ou nota de rodapé comuns nos jornais cariocas do século XIX, e que
resulta em um estilo despretensioso e na preferência por temas miúdos e cotidianos. Como
demonstra Antonio Candido, a crônica segue na contramão do gosto brasileiro pela
grandiloqüência, abandonando aos poucos sua função inicial de informar e comentar os
principais fatos do dia para dedicar-se à poesia e à ficção, através da vivência pessoal do
cotidiano do cronista e de uma escrita preocupada sobretudo em divertir: leveza que constitui
principalmente uma visão muito peculiar da literatura, da vida e dos homens.
“Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como
compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de
significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela
uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. (...) Há estilos roncantes
mas eficientes, e muita grandiloqüência consegue não só arrepiar, mas nos
deixar honestamente admirados. O problema é que a magnitude do assunto e a
9
pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da
verdade. A literatura corre com freqüência esse risco, cujo resultado é quebrar
no leitor a possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em conseqüência
disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a
dimensão das coisas e das pessoas.
1
O jornal é uma instituição moderna, diretamente ligada à mecanização da
imprensa, que tem como uma de suas conseqüências mais profundas a aceleração do tempo,
através de notícias que envelhecem rapidamente, e da informação que se espalha e desatualiza
simultaneamente sem que o leitor tenha o tempo de reflexão para assimilá-la. Se quisermos
definir a crônica, portanto, podemos afirmar que se trata de um gênero
essencialmente moderno, porque nascido em um meio de comunicação em massa. Nenhuma
crônica é escrita com a intenção de ser publicada em livro, pelo menos num primeiro
momento, e isso determina sua particularidade: ao contrário do escritor em outros gêneros, o
cronista não pretende, a princípio, eternizar-se. Também não se trata de uma obra que exige o
mesmo esforço e concentração de um romance; aparentemente, ela pode ser rabiscada às
pressas, minutos antes de ser enviada à tipografia e à gráfica. Em contrapartida, o que
caracteriza a crônica é o fato de surgir em função da publicação, que é praticamente anterior à
obra, ao lado de sua capacidade de permanecer, de sobreviver a um meio de publicação que se
torna obsoleto no dia seguinte, e de aparecer muitas vezes como objeto estranho em meio a
uma multidão de informações heterogêneas e mesmo superficiais que o jornal traz todos os
dias.
Ainda que alguns estudiosos considerem inadequada a publicação de crônicas
em livro, julgando que ela só pode ser compreendida no contexto do jornal
2
, na verdade a
crônica recolhida em livro pode ser vista como resultado de uma decantação, de um processo
em que se torna a única remanescente de sua publicação original, como as crônicas da
coletânea Andorinha, Andorinha, de Manuel Bandeira, cujos textos foram selecionados,
recortados e guardados pelos leitores dos jornais para os quais o poeta escrevia, e reunidos
anos mais tarde por Carlos Drummond de Andrade. De certa forma, a dimensão literária
atingida pela crônica brasileira está relacionada ao programa modernista: embora o final do
século XIX e o início do século XX seja um período repleto de cronistas interessantes, o gêne-
1
Antonio Candido. “A vida ao rés-do-chão”, em A Crônica, pp.13-14.
2
V. Temístocles Linhares. “O maior inimigo da crônica” e “Situação da crônica”, em O Estado de S. Paulo,
Suplemento Literário.
10
ro abandonou o tom jornalístico para se tornar francamente literário nos anos 20, quando os
escritores ligados ao Modernismo passaram a escrever em jornais – a maioria do Rio de
Janeiro –, em parte como meio de divulgação das idéias modernistas
3
, em parte como meio de
vida. É assim que escritores já reconhecidos em outros gêneros enveredaram pela crônica,
como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Alcântara Machado, Carlos Drummond de
Andrade, e posteriormente Rachel de Queiroz, João Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes e
Cecília Meireles, entre muitos outros. As crônicas de escritores brasileiros a partir desse
período constituem portanto um amplo campo de estudos, interessante para a compreensão do
movimento modernista e ainda pouco estudado.
O primeiro traço que une as contribuições de Manuel Bandeira para a imprensa
à atividade jornalística de outros escritores contemporâneos é justamente que a maior parte
deles escreve e, na maioria das vezes, publica no Rio de Janeiro, palco dos principais
acontecimentos políticos e sociais da época, sendo também a metrópole em que a imprensa
florescia desde meados do século XIX. Mas o cronista não era nascido na capital, condição
em que se igualava a tantos outros escritores a partir das décadas de vinte e trinta, como
Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga e Clarice Lispector. Ou seja, embora fosse o
cenário e ao mesmo tempo o grande assunto da atividade jornalística, a vida carioca não era a
base da experiência pessoal de alguns daqueles que a comentavam nas crônicas.
A condição de migrante, mesmo privilegiada em relação a tantos outros
migrantes que assomam às metrópoles em busca de melhores condições, traz uma outra
perspectiva da vida na cidade, que se faz sentir nas crônicas. As razões, principalmente de
ordem econômica, do deslocamento no espaço geográfico parecem fora de questão para estes
cronistas, que não raramente demonstram encarar a vida urbana como uma espécie de exílio,
talvez voluntário, mas sempre temporário. A questão da sobrevivência é legada a um segundo
plano, e o afastamento das “raízes” – compreendidas tanto como passado individual quanto
como laço familiar ou de grupo – torna-se a principal conseqüência da migração. O mundo
infantil, em relação à vida de subsistência e de responsabilidades do adulto, e o cotidiano das
cidades no interior do país, em contraste com a agitação da capital, abrem, no espaço e no
tempo, um outro leque de referências para a observação do que acontece no Rio de Janeiro. A
memória da infância, sentida direta ou indiretamente na prosa despretensiosa na crônica,
acrescenta novas possibilidades ao texto jornalístico, incluindo o lirismo.
3
Tome-se como exemplo a seção “Mês modernista”, mantida pelo jornal A Noite, em 1925.
11
A crônica, entretanto, é um gênero voltado para o presente e a vida pública,
apesar do tom pessoal utilizado geralmente pelo cronista, e da estrutura em que os assuntos
surgem por associação, sem a preocupação aparente de formar um sentido muito definido. A
coesão do texto é garantida por um vínculo preestabelecido entre o cronista e o leitor de
jornal, pela vivência de um mesmo cotidiano e um mínimo conhecimento comum dos
assuntos, por mais variados que sejam. De forma poética ou humorística, o cronista
dificilmente se ocupa de alguma situação que o leitor também não tenha vivenciado,
principalmente na rotina comum dos centros urbanos, em que predomina a leitura rápida do
periódico.
Provavelmente por esta razão, a memória de infância é um tema que demora a
surgir na crônica brasileira. Quando surge, em Lima Barreto ou Mário de Andrade, por
exemplo, é sempre em crônicas em que a recordação não é o tema principal, mas uma espécie
de tema subjacente que introduz ou conclui outro, este mais afinado com o gênero
4
. A
nostalgia da infância presente nas crônicas de Manuel Bandeira parece restrita à literatura de
memórias propriamente dita, e mesmo em sua obra o tema aparece aos poucos, levando
alguns anos até ocupar crônicas inteiras. Mesmo tendo se tornado comum em cronistas
posteriores, como veremos, é possível afirmar que a recordação de infância foi introduzida na
crônica por Manuel Bandeira.
Ao adoecer, aos dezoito anos de idade, Manuel Bandeira morava em São
Paulo. Como recorda em algumas crônicas e em Itinerário de Pasárgada, o futuro poeta
estudava arquitetura na Escola Politécnica e desenho no Liceu de Artes e Ofícios, “porque
desejava ser um arquiteto como hoje são Lúcio Costa, Carlos Leão e Alcides Rocha Miranda.
Tinha aspirações excessivas – construir casas, remodelar cidades, encher o Rio ou o Recife de
edifícios bonitos como Ramos de Azevedo fizera em São Paulo (...). Desforrei-me das minhas
arquiteturas malogradas reconstruindo uma cidade da Pérsia Antiga – Pasárgada.”
5
. Embora
nunca realizada, a vocação para a arquitetura acompanhou Bandeira vida afora, em desenhos,
poemas e crônicas. Pasárgada, porém, não foi a única cidade a ser reconstruída através da
literatura: nos textos de Bandeira, encontramos inúmeras cidades que o poeta conheceu –
como a própria São Paulo ou Petrópolis –, entre as quais algumas do interior do país, como
vimos, visitadas na procura de um clima mais adequado à sua saúde – Quixeramobim,
4
V. crônicas “Feiras e Mafuás”, em Feiras e Mafuás, de Lima Barreto, e “Macobêba”, em Táxi e crônicas no
Diário Nacional, de Mário de Andrade.
5
“Confidências a Edmundo Lys,”, de Andorinha Andorinha, p.43.
12
Campanha –, e mesmo grandes cidades européias, visitadas na maturidade – Paris, Londres,
Amsterdã. Mas encontramos, principalmente, as duas cidades centrais na formação de
Bandeira, presentes na citação acima – Rio de Janeiro e Recife.
O Recife e o Rio de Janeiro são, como se sabe, as duas cidades da infância do
poeta. O Recife, cidade natal, é a conhecida fonte da “mitologia pessoal” presente em poemas
como “Evocação do Recife” e “Profundamente”:
“Dos seis aos dez anos, nesses quatro anos de residência no Recife, com
pequenos veraneios nos arredores – Monteiro, Sertãozinho do Caxangá, Boa
Viagem, Usina do Cabo –, construiu-se a minha mitologia, e dito mitologia
porque os seus tipos, um Totônio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta
Tomásia, velha cozinheira do meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma
consistência heróica das personagens dos poemas homéricos. A Rua da União,
com seus quatro quarteirões adjacentes limitados pela rua da Aurora, da
Saudade, Formosa e Princesa Isabel, foi a minha Tróada; a casa do meu avô, a
capital desse país fabuloso. Quando comparo estes quatro anos da minha
meninice a quaisquer outros quatro anos da minha vida de adulto, fico
espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra
distante.”
6
Graças à profissão do pai, engenheiro civil, durante sua infância Bandeira
morou em diversas cidades: depois da natal Recife, Petrópolis, São Paulo, Santos, novamente
Petrópolis, Recife e Rio de Janeiro, onde a família se estabeleceu após a morte do avô
materno. A então capital federal tornou-se a segunda cidade no imaginário da infância do
poeta, que permaneceu ali até os dezoito anos, passando portanto no Rio a maior parte de sua
vida escolar. Anos mais tarde, já marcado pela tuberculose, sozinho e empobrecido, Bandeira
retornou ao Rio de Janeiro, onde morou até o final de sua vida, em diversos endereços e em
diferentes bairros: ao longo dos anos, o poeta veio a conhecer a cidade profundamente, no
tempo e no espaço. Esta circunstância marca uma diferença fundamental entre as duas cidades
no imaginário de Bandeira, e, portanto, daquilo que representam em sua obra. Ao contrário do
Recife, que na maturidade do poeta só voltaria a ser visto de passagem, o Rio de Janeiro é a
cidade que cresceu, modernizou-se, deixou de ser Capital Federal e continuou crescendo sob o
olhar atento e bastante crítico do poeta-arquiteto. De outro lado, o Recife também não
permaneceu parado no tempo, contrariando o desejo de Bandeira, que em mais de uma
ocasião criticou as deformações em sua cidade natal, mas que sempre retornava à distância
6
Itinerário de Pasárgada, em Poesia Completa e Prosa, p. 35.
13
necessária para continuar a idealizá-la. Impedido em seu sonho de remodelar, à sua maneira,
as duas capitais da sua infância, Bandeira acaba construindo uma terceira cidade, “intacta,
suspensa no ar”, diferente daquela que encontrou em sua vida adulta, mas que talvez também
não corresponda exatamente à que conheceu na infância, e sim mais provavelmente a uma
cidade que “podia ter sido e não foi”.
A primeira contribuição de Manuel Bandeira para jornal data de 1917, mesmo
ano de publicação de A Cinza das Horas: trata-se da crônica intitulada “Le Bateau Ivre”,
publicada no Rio-Jornal do Rio de Janeiro; depois disso, o Correio de Minas de Juiz de Fora
seria o primeiro jornal em que o poeta contribuiria com regularidade
7
. A partir dos anos trinta,
Bandeira viria a contribuir com regularidade para inúmeros jornais de diversos Estados,
principalmente do Rio de Janeiro, até o fim de sua vida. Por isso, as crônicas formam a parte
mais substanciosa da obra em prosa do poeta. Nelas, Bandeira trata de uma gama variada de
assuntos, desde temas relacionados a cultura até aqueles estritamente ligados ao cotidiano.
Partindo sempre da própria vivência, o cronista fala de literatura, arquitetura e artes plásticas,
música, teatro e cinema; ao mesmo tempo faz retratos de amigos e conhecidos, a maioria
ligada ao mundo da cultura e das artes, e acaba também retratando a vida e a cidade do Rio de
Janeiro de sua época.
Aqueles que são retratados nas crônicas de Bandeira, como observou Davi
Arrigucci Jr. em relação a Jaime Ovalle, chegam a se tornar verdadeiras personagens no
universo bandeiriano, fazendo destes textos praticamente uma extensão de seu mundo
poético
8
. Nesse sentido, as crônicas como um todo caracterizam-se pelo mesmo estilo
humilde que é traço marcante de toda sua obra. Afinal, como esclarece o próprio cronista,
“(...) o poeta não é um sujeito que vive no mundo da lua, perpetuamente entretido em coisas
sublimes. É, ao contrário, um homem profundamente misturado à vida, no seu mais limpo ou
no sujo cotidiano”
9
. Da mesma forma que tematiza a arte e a vida alheias, Bandeira fala
também de si mesmo e de sua poesia, sendo possível reconstituir, através das crônicas, um
retrato do poeta e de sua obra.
O objetivo inicial do presente trabalho é a leitura e análise das crônicas, a parte
mais importante da obra em prosa de Manuel Bandeira. Dado o volume e a complexidade da
obra em questão, que não se limita aos textos publicados em livro, optou-se por fazer um
7
Itinerário de Pasárgada, em Poesia Completa e Prosa, p.44.
8
Davi Arrigucci Jr. Humildade, Paixão e Morte: a poesia de Manuel Bandeira, p. 51.
9
“Correio da Espada”, em Andorinha Andorinha, p.18.
14
recorte que permitisse rastrear a presença de elementos autobiográficos nas crônicas, de modo
a reconstituir, através da obra, o perfil do poeta e do homem, “flagrado” nas representações do
seu cotidiano e do contexto histórico em que se move. O projeto de pesquisa teria,
inicialmente, se dedicado ao seu texto em prosa mais conhecido, a autobiografia Itinerário de
Pasárgada, mas considerou-se que o Itinerário já tinha sido comentado e analisado diversas
vezes, incluindo o capítulo “A poesia em trânsito: Revelação de uma poética”, em Humildade,
Paixão e Morte, de Davi Arrigucci Jr. No levantamento da fortuna crítica de Manuel Bandeira
foi encontrada a seguinte sugestão de Stefan Baciu, no capítulo “O Cronista” de Manuel
Bandeira de Corpo Inteiro:
“Notável lugar nas crônicas vem ocupando a parte de memórias, tanto no que
se refere ao apontamento humano, como à redação de páginas que, sem
nenhuma dificuldade, poderiam figurar em seu Itinerário de Pasárgada. Ao
correr dos anos, Bandeira escreveu sobre fatos, coisas e acontecimentos
grandes ou pequenos com uma ternura que se igualou ao sentido crítico com
que sempre encara os acontecimentos. Essa riqueza de material, essas
referências, essas evocações de tipos e nomes, ora do Brasil, ora do estrangeiro,
poderão constituir uma espécie de apêndice do Itinerário, no qual o autor, por
discrição ou devido ao fato de os capítulos terem sido escritos e publicados
mês após mês, deixou de dizer uma série de coisas, consignadas com riqueza
de cores em suas crônicas. A atividade de cronista de Manuel Bandeira
constitui complemento do memorialista, e em seus artigos de jornal temos rica
matéria-prima para aqueles que desejam penetrar no mundo do Itinerário de
Pasárgada.”
10
Em primeiro lugar, a forma de publicação original do Itinerário de Pasárgada,
em capítulos mensais no Jornal de Letras, o aproxima dos formatos do folhetim e da crônica.
Depois, a constância dos temas presentes na autobiografia nas crônicas, tanto anteriores
quanto posteriores ao Itinerário, acrescenta um fator de interesse a esses textos. Pouco
estudados pela crítica bandeiriana, eles retomam temas caros à sua poesia, além de
tematizarem a própria poética do autor, suas amizades e influências literárias, compondo um
rico painel de sua obra. Devido à qualidade da prosa em suas crônicas, Bandeira era
estimulado por seus amigos a escrever contos e romances, mas confessava ter feito algumas
tentativas e concluído “que não nasci com bossa para isso”
11
. Talvez tenha sido a crônica, em
10
Stefan Baciu, Manuel Bandeira de Corpo Inteiro, p.79 (grifo meu).
11
Itinerário de Pasárgada, em Poesia Completa e Prosa, p.83.
15
sua simplicidade e despretensão, o gênero em prosa que melhor se adequasse ao estilo de um
poeta que sempre se disse “de circunstâncias e desabafos”.
Como dissemos, Bandeira publicou três coletâneas de crônicas ao longo da
vida; é, inclusive, interessante notar que nenhum desses livros foi publicado por iniciativa do
poeta. O seu primeiro livro de prosa, Crônicas da Província do Brasil, reúne crônicas escritas
para o Diário Nacional de São Paulo, A Província do Recife e O Estado de Minas de Belo
Horizonte, escritas entre 1929 e 1933, e foi publicado em 1937 em homenagem ao
cinqüentenário do poeta pela Civilização Brasileira, tendo sido talvez a única coletânea em
que o poeta participou diretamente da seleção de textos. Duas décadas mais tarde, Bandeira
publicaria Flauta de Papel, cuja primeira edição, de tiragem limitada, trazia a seguinte
“Advertência”:
“As minhas Crônicas da Província do Brasil, cuja edição, que é de 1936, se
achava há muito esgotada, não mereciam reimpressão: alguma coisa delas foi
aproveitada em outros livros, como, por exemplo, o que se referia a Ouro Preto
e ao Aleijadinho; muita outra perdeu a oportunidade. Decidi, pois, reeditar
apenas o que nelas me pareceu menos caduco, juntando-lhe numerosas
crônicas escritas posteriormente, a maioria para o Jornal do Brasil. Chamei ao
volume Flauta de Papel, querendo significar, com tal título, que se trata de
prosa para jornal, escrita em cima da hora, simples bate-papo com os amigos.
Não lhes dou, a estes escritos, outra importância senão a de ver em alguns deles
o registro de fatos que desapareceriam comigo, se eu não os lançasse ao papel.
A idéia da publicação partiu de Irineu Garcia, Lúcio Rangel e Paulo Mendes
Campos, aos quais deixo aqui os meus agradecimentos.”
A edição original de Flauta de Papel é, portanto, uma reedição de Crônicas da
Província do Brasil, publicada por iniciativa de, entre outros, Paulo Mendes Campos, que
também incentivara Bandeira a escrever o Itinerário de Pasárgada, três anos antes. O título
da coletânea, além do sentido expresso na “Advertência”, também remete, indiretamente, à
infância; mais exatamente, ao poema “Infância”, de Belo Belo:
O urubu pousado no muro do quintal.
Fabrico uma trombeta de papel.
Comando...
O urubu obedece.
Fujo aterrado do meu primeiro gesto de magia.
16
Através da escolha do título, Bandeira estende, pela publicação das crônicas,
que alcançam um público relativamente amplo, aquele seu primeiro “gesto de magia”, que
não raramente suscitam uma reação inesperada do cronista: algumas crônicas de Flauta de
Papel e Andorinha Andorinha registram a resposta dos leitores a determinadas afirmações
suas no texto de jornal, deixando o poeta muitas vezes surpreso. Na réplica a estes leitores,
vemos que Bandeira considerava os seus textos freqüentemente sobrevalorizados pelo
público, que ampliava tanto sua importância quanto o seu significado. Uma prova disso são as
suas duas posteriores publicações em prosa: a segunda edição de Flauta de Papel, publicada
pela editora José Aguilar um ano depois da primeira e contida no segundo volume de Poesia e
Prosa, e a coletânea Andorinha Andorinha reúnem quase exclusivamente textos recolhidos
por leitores e amigos do poeta.
Os textos da segunda edição de Flauta de Papel, segundo a própria editora,
“ultrapassam de tal modo as enfeixadas no volume de igual nome, anteriormente dado a lume,
que se pode afirmar que só o título se conserva”: quase duzentos textos foram acrescentados
aos sessenta que, originalmente, participavam da coletânea. Da mesma forma,
aproximadamente trezentas crônicas, até então inéditas em livro, integram Andorinha
Andorinha, volume organizado por Drummond para publicação pela editora José Olympio em
comemoração ao octogésimo aniversário do poeta, em 1966, com uma reedição póstuma no
seu centenário, em 1986
12
.
Mesmo pouco conhecidas, portanto, as crônicas de Manuel Bandeira não
formam um volume pequeno de textos. Sua leitura permanece limitada a especialistas e
curiosos sobre a obra bandeiriana, geralmente em busca de referências para a interpretação de
seus poemas. De fato, o cronista recorda com freqüência a concepção de determinados
poemas e episódios recuperados mais tarde em poemas, e os temas de sua poesia surgem, de
forma quase automática, nas crônicas, razão pela qual estas normalmente são lidas em relação
quase exclusiva com os poemas e muito dificilmente em relação entre si. Davi Arrigucci Jr.
sinaliza a importância da crônica para o próprio programa modernista em geral e para a
mudança no conceito de literatura de Bandeira em particular, ao explorar possibilidades
12
As crônicas de Bandeira ainda receberam duas reedições recentes: a primeira, que reúne os textos originais de
Crônicas da Província do Brasil e Flauta de Papel, além de uma seleção de Andorinha Andorinha, entre outros
textos em prosa, foi organizada por Júlio Castañon Guimarães e publicada sob o título Seleta de Prosa pela
editora Nova Fronteira, em 1997; a segunda, uma pequena antologia pela coleção Melhores Crônicas, com
seleção e prefácio de Eduardo Coelho, publicada pela editora Global, em 2003.
17
poéticas contidas em fatos do cotidiano, naquilo que até então era considerado apenas
prosaico:
“As crônicas, favorecidas pelo modo de ser do gênero, que desde o século
passado vinha abrindo espaço para a entrada do prosaico e outros aspectos da
vida moderna na prosa literária, demonstram como a observação do cotidiano
não se desgarrava necessariamente da intenção artística e podia dar com a mais
alta poesia no terra-a-terra, constituindo, por isso mesmo sem desdouros, um
terreno propício para a sondagem lírica. Da mesma forma, um escritor
moderno que é principalmente cronista, como Rubem Braga, formado sob a
influência do Modernismo, poderá aprender muito com a lírica de Bandeira e o
mistério da simplicidade de sua forma poética, construída em grande parte com
palavras simples e imagens de todo dia.”
13
Como o crítico sintetiza de forma exemplar, não apenas os fatos narrados por
Bandeira revelam a sua importância na concepção das crônicas, mas o próprio gênero
contribui para a maturação de sua poética, quando não para uma reflexão constante a respeito
dela. De forma oculta, portanto, disfarçada pela aparente simplicidade, como é próprio do
poeta pernambucano, as crônicas constituem textos propriamente literários, não dificilmente
revelando um trabalho poético.
Entre as crônicas que apresentam um maior grau de lirismo, encontram-se
justamente aquelas que tratam de um tema caro à poesia bandeiriana – a memória de infância.
São textos que chamam a atenção do leitor de forma particular, por resgatarem o passado
individual do cronista na massa caótica do momento presente, principalmente no meio
urbano. Em função de sua natureza jornalística, entretanto, as crônicas, com algumas
exceções, recuperam o passado em uma relação muito íntima com o presente. Se, no dizer de
Emil Staiger, “o passado como objeto de narração pertence à memória; o passado como tema
do lírico é um tesouro de recordação”
14
, é possível afirmar que a crônica se localiza em uma
linha intermediária entre a narrativa e o gênero lírico e, em especial no caso das crônicas que
analisaremos, a recordação surge como resposta a uma série de contradições entre o sujeito e
o meio em que ele se encontra.
Não apenas dois tempos, o presente e o passado, como dois espaços, o da
infância e o da idade adulta, dividem o cronista, que por sua vez também exerce uma função
intermediária entre narrador e eu-lírico. A presença destes dois espaços é de fundamental
13
Davi Arrrigucci Jr., Humildade, Paixão e Morte – a poesia de Manuel Bandeira, p.53.
14
Emil Staiger, “Estilo Lírico: a Recordação”, em Conceitos fundamentais da poética, p.55.
18
importância ao refletirmos sobre o processo de urbanização e modernização sofrido, na
primeira metade do século XX, pelas duas principais cidades do imaginário bandeiriano – Rio
de Janeiro e Recife –, com a função de eliminar os traços do passado pré-republicano da
paisagem urbana e, em conseqüência, muito da paisagem da própria infância do cronista.
Por isso, escolheu-se analisar as crônicas de Manuel Bandeira, uma vez
focalizadas na memória de infância, através de sua movimentação no espaço urbano. O
presente trabalho concentrou o seu foco nas crônicas publicadas em livro, apesar da
possibilidade de recuperar textos publicados somente nos jornais em arquivos, por se
considerar que as coletâneas Crônicas da Província do Brasil, Flauta de Papel e Andorinha
Andorinha já formavam um corpus de trabalho bastante amplo e, ao mesmo tempo,
selecionado, seja pelo próprio autor ou por pessoas ligadas a ele. Ademais, a heterogeneidade
dos temas nas crônicas em livro, e mesmo no próprio gênero, não permitiria, mesmo com a
escolha do tema da memória de infância, a formação de um corpus de análise muito estrito.
Desta forma, o primeiro capítulo procura destacar, nas crônicas, as situações do
momento presente que suscitam a memória de infância, notadamente o contato com crianças e
com a obra de determinados artistas. Primeiramente, analisaremos como a nostalgia da
infância manifesta-se nos seus textos de crítica de arte, atividade que o poeta exerceu por
longos anos, de forma a também analisar o elemento de plasticidade em suas memórias, com
destaque para a pintura de seu conterrâneo Cícero Dias. Em seguida, nos voltaremos para uma
das séries de crônicas mais conhecidas de Bandeira, que narra a convivência com as crianças
da rua do Curvelo, em Santa Teresa, primeiro endereço em que o cronista morou sozinho no
Rio de Janeiro, de forma a tentar compreender como a influência daquelas crianças, vivendo
uma infância em quase tudo oposta àquela passada por Manuel em Pernambuco, o leva a
recuperar o passado.
O segundo capítulo volta-se para as crônicas que tratam de dois momentos
específicos na biografia do poeta: sua infância no Recife e os anos de peregrinação pelo
interior do país, em busca de um clima adequado à sua saúde. Da mesma forma que a crítica
de arte, a crítica literária presente nos textos de Bandeira também revela uma certa maneira de
recordar a infância, em especial nos seus textos sobre José Lins do Rêgo, que mostram uma
identificação com a decadência da economia canavieira; por isso, é preciso também relembrar
a amizade de Bandeira com Gilberto Freyre e o seu posicionamento ante as medidas
urbanistas e higienistas tomadas no Recife, quando o poeta já vivia distante da cidade natal.
19
Da mesma forma que defende a preservação do seu Recife, Bandeira também
revela toda uma visão do passado e do patrimônio histórico do país em crônicas em que
recorda períodos passados em cidades do interior do Nordeste, e que de certa forma também
constituem crônicas sobre uma infância prolongada sob os cuidados familiares. Finalmente,
ao final do segundo capítulo chegamos ao núcleo da presente pesquisa, nos textos em que
Bandeira recorda a sua infância na rua da União, no Recife.
No último capítulo, a análise amplia-se para as crônicas em que a memória de
infância e a vida adulta contradizem-se na vida cotidiana do poeta, no Rio de Janeiro. A
trajetória de Bandeira na então capital da República, onde viveu mais de setenta anos, pode
ser reconstituída através das crônicas, que mostram um movimento gradativo de
distanciamento da infância. Apesar disso, uma busca pelos pilares em que se apoiava o
passado permanece através da constância de certos temas, em especial a da preservação das
árvores na cidade do Rio, no que os textos de Bandeira dialogam com crônicas de Rubem
Braga e Carlos Drummond de Andrade, escritores que passavam pela mesma experiência de
migrantes na metrópole.
Entre as crônicas que contrapõem presente e passado, toda uma série de textos
sobre o carnaval destaca-se das coletâneas de Bandeira, em que não se recordam apenas
episódios da infância, mas também determinadas percepções do período da infância que o
cronista recupera. As lembranças carnavalescas, que pelo seu destaque na cultura brasileira
transformam-se num marco anual da passagem no tempo, levam o cronista a evidenciar certas
mudanças, não apenas na paisagem, mas nos costumes populares. Finalmente, a última parte
tenta analisar como a recordação do passado determina uma visão do presente, nos momentos
em que o cronista retorna à terra natal: para efeito de análise, aos textos em que Manuel
Bandeira retorna ao Recife contrapomos aqueles em que Rubem Braga, escritor considerado
essencialmente cronista e cuja obra traz muitos pontos em comum com a bandeiriana, revê a
cidade natal de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo.
Como já dito, a pesquisa considerou que as crônicas publicadas em livro
formavam um corpus de análise suficiente e bastante volumoso. Por isso, escolheu-se, para
cada tema a ser abordado, fazer referência às crônicas mencionadas e citá-las
convenientemente, uma vez que uma seleção fixa de textos limitaria a análise. Quando
resgatada em crônica, a memória da infância parece menos tensa e mesmo menos
comprometedora do que na escrita autobiográfica; de outro lado, a crônica assume, em sua
20
forma, o caráter fragmentário e instantâneo da reminiscência. Em função da brevidade que
caracteriza o gênero, as crônicas freqüentemente focalizam pequenos detalhes e eventos que
nos permitem recompor o enredo desta infância como num mosaico. No caso de Bandeira, as
peças desse mosaico encontram-se em parte nas crônicas, em parte na sua poesia, além de seu
livro de memórias, que aqui tentamos reconstituir.
21
Capítulo I: Infância Próxima
Em suas crônicas, freqüentemente encontramos Bandeira rodeado de crianças.
Filhos de amigos, como Eduarda, filha do escultor Edgard Duvivier, e o pequeno Alexandre
15
,
filho de Tiago de Melo e Pomona Polítis, ou simples crianças quase anônimas, que ele
encontra ou com quem convive por acaso, como o grupo de meninos que enchia de alegria e
balbúrdia o seu cotidiano na rua do Curvelo, em Santa Teresa. A cada uma delas, o poeta, que
não teve filhos, dedica a mesma atenção e carinho que transparecem em vários de seus
poemas.
Na coletânea Flauta de Papel, a crônica que se segue a “Antiga trinca do
Curvelo”, a última escrita por Bandeira em homenagem àqueles meninos, intitula-se “João”.
Nela, o cronista posa para “um poeta que virou escultor” e que é, possivelmente, Celso
Antônio de Meneses, que esculpiu a cabeça de Bandeira para ser erigida em uma praça do
Recife, e cujo trabalho é ainda descrito em “Depoimento do Modelo”, também de Flauta de
Papel. Em ambas crônicas, o poeta queixa-se do desgastante papel de modelo vivo, durante os
cinco meses em que precisou posar, tendo como única forma de distração que, “enquanto o
meu amigo vai modelando os meus traços cansados, conversamos sobre uma coisa ou outra –
poesia, pintura, bichos, mulheres, crianças”.
Ora, estes são os temas das próprias crônicas de Bandeira, que, segundo ele
mesmo, escrevia-as “em tom de conversa com os amigos”. E é para alguns desses temas que a
conversa com o escultor e com um amigo de visita, e por conseguinte a própria crônica, acaba
escorregando: bichos, com a história de um gato de Santa Teresa; mulheres, sobre uma das
amantes de João; e ainda crianças, com a chegada, logo no primeiro parágrafo, de Ratinho:
15
Apesar do menino chamar-se Alexandre Manuel, Bandeira trata-o de Manuelzinho, o que trai tanto a sua
ternura, através do diminutivo, quanto a sua identificação com a criança. V. “Manuelzinho”, em Flauta de Papel
Poesia e Prosa, vol. II, pp.419-420.
22
“Uma vez apareceu Ratinho. Ratinho é uma menininha de onze anos, filha de
um empregado da Light que tem sete filhos e ganha 350 cruzeiros por mês.
Perguntei a Ratinho se achava a cabeça do escultor parecida com o modelo.
Achou mas sem mostrar grande interesse pela arte. Estava evidentemente
fascinada pelo meu suspensório de vidro (sub-repticiamente começou logo a
arranhá-lo com a unha). Ratinho ganha 20 cruzeiros mensais para pajear um
pequenino-burguês laganho, e entrega todo o dinheiro ao pai. Quando soube
disso, propus-lhe jogarmos cara-ou-coroa: perdi para ela seis cruzeiros. Pedi-
lhe um beijo de indenização: não vê que me deu!”
Não há como saber o verdadeiro nome da menina, e muito menos de onde
provém o seu apelido, se não foi inventado pelo próprio Bandeira. Em “Ratinho”,
encontramos um elemento de degradação, de associação a um animal pouco nobre,
contrabalançado pela afetuosidade ligada ao uso do diminutivo, especialmente na poesia
bandeiriana
16
, e que se prolonga no substantivo “menininha”. Tampouco o leitor sabe por que
a menina se encontra na casa do escultor, onde é modelada a cabeça, se é vizinha à sua casa
ou à de seu patrão; em compensação, toda a situação social da família é comentada sem
preâmbulos.
O parágrafo é escrito em frases curtas e simples, como se transcrevessem as
falas do poeta e de Ratinho, com exceção do advérbio “sub-repticiamente” da frase entre
parênteses, que exerce a função de frase narrativa em meio a um diálogo. Também no tema da
conversa Bandeira compactua com a criança: depois da débil tentativa de fazê-la interessar-se
pela escultura, a atenção dele volta-se para o suspensório de náilon, material sintético que
ainda era novidade no início dos anos 50, e que a menina provavelmente não conhecia de
perto. Ele a deixa aproximar-se do caro objeto de fascínio e diverte-se com a sua curiosidade,
e continua a divertir-se com a menina ao disfarçar um pequeno gesto de caridade em uma
brincadeira: como veremos, no relacionamento de Bandeira com as crianças, percebe-se
sempre uma certa confusão entre trabalho e jogo infantil, como uma forma de mascarar a luta
precoce pela sobrevivência.
Ratinho deixa de aparecer, seja nesta crônica, seja em outras, o que já se previa
de início, na frase com um vago tom de conto de fadas: “Uma vez...”. Antes disso, porém, o
poeta ganha um beijo seu, como indenização pelo dinheiro perdido nas moedas: é assim que
16
“Notou Mário de Andrade como em minha poesia a ternura se trai quase sempre pelo diminutivo”. V. “Minha
mãe”, em Flauta de Papel Poesia e Prosa, vol. II, p.337.
23
essa criança, sem nenhuma descrição mais cuidadosa que a inclua no rol dos personagens
bandeirianos, despede-se da crônica, como uma figura híbrida de criança, bichinho e mulher,
para dar lugar à conversa dos homens. Mas não deixa de ser mais uma entre as várias crianças
que, em crônicas e poemas, prendem a atenção do poeta.
Algumas aparecem em grupos, como a trinca do Curvelo, mas outras são
assunto de crônicas inteiras, como Lenine e Eduarda Duvivier. Naturalmente, uma relação
entre o interesse do cronista por elas e a forma com que recorda a própria infância. As
crônicas sobre crianças antecedem em alguns anos as crônicas memorialísticas, adiantando
temas e imagens, além de se incluírem entre os textos mais líricos encontrados nas crônicas
em livro de Manuel Bandeira. Observar crianças é, enfim, uma forma de recordar a própria
infância, como é possível depreender de algumas de suas melhores crônicas.
1. Quadros da Infância
Entre as atividades que Manuel Bandeira exerceu através de suas crônicas de
jornal, uma que parece incluir-se entre as suas favoritas é a crítica de arte. Nas suas três
coletâneas em livro, destacam-se textos sobre pintura e escultura, teatro e cinema, música e
dança, além de, naturalmente, literatura. No volume Andorinha Andorinha, organizado por
Carlos Drummond de Andrade, cada uma destas manifestações chega a merecer uma seção
própria, em que se concentram as apreciações sobre exposições, concertos, apresentações e
novos livros. Mas as suas duas outras coletâneas, Crônicas da Província do Brasil e Flauta de
Papel, também contém numerosos textos significativos a esse respeito.
Sua importância não se limita ao testemunho de uma percepção
contemporânea, do registro de uma obra no seu surgimento, mas constitui também o
julgamento crítico de um profundo conhecedor e apreciador de arte. Em Crônicas da
Província do Brasil, por exemplo, encontram-se várias crônicas sobre os livros de Drummond
e Mário de Andrade publicados no início da década de trinta, e tanto neste período quanto nos
seguintes Bandeira manteve uma admirável disposição em utilizar o seu espaço no jornal para
esclarecer a arte moderna a leigos. Além disso, o se deve esquecer que nestes textos pesa a
proximidade do contato entre o cronista e a maioria dos pintores, escritores e músicos da
época, cujo aparecimento acompanhou de perto e com os quais travou longas relações de
amizade.
24
“Tempo houve em que, parte por necessidade, parte por presunção, ainda
escrevendo sobre música e sobre artes plásticas. Na Idéia Ilustrada, colaborei
com resenhas críticas de concertos, e certa revista musical (...) em certa época
era redigida por mim de cabo a rabo, com o meu nome ou com pseudônimos.
N’A Manhã, convidado por Cassiano Ricardo, mantive uma seção diária sobre
artes plásticas. Fiz parte da tropa de choque que defendeu, apregoou e procurou
explicar a arte nova de músicos, pintores, escultores e arquitetos modernos.
Pouco a pouco, porém, fui perdendo não só a presunção como também o
entusiasmo. É que os artistas só nos reconhecem, a nós poetas, autoridade para
falar sobre eles quando os lisonjeamos. Caso contrário, não passamos de
poetas.”
17
Apesar da erudição e do gosto, que afinal são os requisitos da boa crítica, ao
que tudo indica Bandeira sofreu ataques por não ser um crítico especializado, principalmente
no campo das artes plásticas: “Não me esquecerei nunca de certo sorriso de superioridade
com que um pintor, enciumado com os elogios dados a outro pintor por um poeta de fina
intuição para as artes plásticas, disse desenfadadamente: ‘Crítica de poeta...’.”
18
Contudo,
apesar dos textos de Bandeira serem de fato interessantíssimos, principalmente pela dimensão
histórica que adquirem agora, não se deve negar a dimensão pessoal sempre presente nestas
crônicas, o que aliás constitui uma de suas estratégias de aproximação das artes plásticas com
o público.
Ora, tanto a empatia pessoal de Bandeira com determinados artistas e obras,
quanto o seu espaço de divulgação da arte moderna e o seu julgamento crítico, mais acurado
mesmo diante das obras mais recentes e inovadoras, são justamente os elementos que mantém
o frescor de textos de um gênero a princípio datado como a crônica. Mais do que retratos de
artistas, resenhas de exposições ou testemunho da concepção de determinadas obras, a leitura
destas crônicas ajuda a recuperar um elemento de diálogo entre as artes plásticas e a literatura
no Brasil, diálogo que foi fundamental durante as décadas da atividade de cronista de
Bandeira. Elas tratam de uma época de desenvolvimento ímpar na história das artes plásticas
brasileiras, com a visão privilegiada de alguém que pôde conviver com alguns de seus
melhores representantes.
17
Itinerário de Pasárgada, em Poesia Completa e Prosa, pp.85-86.
18
O poeta é provavelmente Murilo Mendes, que também fazia crítica de arte, ou mesmo o próprio Bandeira. V.
“Velho Luís Soares”, em Andorinha Andorinha, p.70.
25
Não somente artistas consagrados são privilegiados pelas crônicas de Bandeira
publicadas em livro. Assim como encontramos, em suas crônicas de crítica literária, um
número de escritores hoje caídos no esquecimento, também alguns dos artistas plásticos
presentes nestes textos tornaram-se menos célebres do que outros. Naturalmente, para o
interesse específico do presente trabalho, não se analisará o conjunto da crítica de arte de
Manuel Bandeira, mas aqueles que representam, de alguma forma, sua relação com crianças e,
em conseqüência, com a infância. Apesar de haver uma relação entre as artes plásticas, em
particular a pintura, e a infância na obra em prosa de Bandeira, esta relação torna-se mais
nítida em textos sobre dois pintores em especial, que destacaremos mais adiante: Cândido
Portinari e Cícero Dias.
Pintura Angélica
Na organização do volume Andorinha Andorinha, Carlos Drummond de
Andrade reuniu sob o mesmo título, “Pintura Angélica”, crônicas de épocas distintas e
relativamente distantes – “Crianças Inglesas”, de 1941, e “Crianças francesas”, escrita
dezessete anos mais tarde, em 1958. Ambas crônicas tratam de exposições de desenhos
infantis vindas do exterior: a primeira, organizada pelo British Council de Londres e
apresentada aqui pelo “Museu de Belas-Artes, sob os auspícios do nosso Ministério da
Educação e de várias sociedades de Educação e Cultura”; e a segunda, exposta “num rés-do-
chão da Avenida Marechal Câmara”, com a qual estava a “Escolinha de Arte [uma escola de
belas-artes destinada às crianças] comemorando o décimo aniversário de sua Fundação”.
Bandeira não hesita em comentá-las no mesmo tom em que comenta as exposições de arte
“adulta”, chegando mesmo a fazer algumas comparações em tom de ironia: “Nunca, em toda
a minha vida, recebi numa exposição de artes plásticas mais deliciosa, mais completa e mais
alta revelação de poesia.” (“Crianças Inglesas”). “Às vezes se misturava ao sorriso algum
sentimento de admiração diante de certas manifestações que já traem um artistazinho.”
(“Crianças francesas”).
Em “Crianças Inglesas”, Bandeira começa avisando que “se trata de trabalho
guiado e selecionado” pelos professores das crianças. Mas, apesar da tentativa inicial de fazer
uma análise mais objetiva, chegando a tomar notas para “assinalar o que agradava mais, os
quadros mais ricos de sugestões estéticas”, aos poucos o cronista parece ceder ao encanto
puro de deparar-se com obras que, numa idade refratária a qualquer especulação de influência
26
artística, nada ficam a dever às escolas de vanguarda, como o surrealismo de um boneco cuja
mão tem dezesseis dedos, ou a possível sugestão impressionista de um quadro intitulado
“Noite Vitoriana”: “as crianças desenhavam sob orientação dos professores, cujo cuidado
principal residia em subtrair aos seus alunos às influências deformadoras, para que com toda a
espontaneidade se expandisse a faculdade criadora. Isto foi quase sempre conseguido.
Naturalmente é impossível suprimir o pendor imitativo das crianças. Assim, Wendy Coram,
que pintou aquela ‘Noite Vitoriana’, não terá visto quadros de Matisse? Ou será Matisse que
se terá deixado impressionar por alguma Wendy Coram do seu tempo?” (“Crianças
Inglesas”).
As duas crônicas, escritas no início da década de quarenta, quando entrava em
voga o abstracionismo, e no final da década de cinqüenta, quando surgia a arte concreta,
contêm ironias sem reserva para a pintura de vanguarda: “Um modernista, sem se lembrar de
que hoje sou um medalhão, um acadêmico
19
, tanto que já comecei a engordar, como convém,
aproximou-se de mim e disse, ferino: ‘Que lição para os passadistas!’. Eu sorri, com
duplicidade: para fora o sorriso concordava; mas para dentro acrescentava: ‘Que lição para os
modernistas!’.” “Notei que nenhuma daquelas crianças deu bola ao concretismo.
Positivamente, a infância é figurativista. Abstracionista uma vez por outra, mas nunca fugindo
inteiramente à palpável e gostosa realidade.” São comentários muito semelhantes a vários
outros encontrados em sua crítica de arte, como em “Cores da Miséria”, sobre Portinari:
“Toda essa miséria esplende, porém, em tonalidades ricas, em jogos de volumes capazes de
fazer inveja aos mais ousados concretistas”
20
.
Nas crônicas de “Pintura Angélica” assinalam-se vários fatos importantes para
as artes plásticas brasileiras das décadas de 40 e 60. Em primeiro lugar, a presença de grandes
exposições vindas do exterior com apoio e organização de departamentos governamentais de
cultura, todos fundados recentemente e dirigidos por profissionais da arte ligados ao
Modernismo, como Lúcio Costa, o que contribuiria, em conjunto com a profissionalização e a
ampliação do ensino da arte, para a sua divulgação junto ao grande público e sua expansão
para fora do eixo Rio – São Paulo. Também faz parte desse processo a formação de uma
19
1941, ano de publicação de “Crianças Inglesas”, é também o ano de ingresso de Manuel Bandeira na
Academia Brasileira de Letras.
20
Também dos anos 50 lemos uma crônica sobre uma exposição de Alfredo Volpi: “Decretaram mesmo outros
golpistas ou volpistas que ele era o primeiro pintor brasileiro e a sua pintura ‘a primeira manifestação de uma
arte autenticamente brasileira’. Ora, isso é fazer do excelente Volpi gato morto para bater na cara de Portinari, Di
e outros pintamonos estrangeiros”. Na mesma crônica, Bandeira explica que a arte concreta o deixava
“intelectualmente interessado, mas frio”. V. “Volpi”, em Flauta de PapelPoesia e Prosa, vol. II, p.554.
27
crítica de arte, através de publicações especializadas, como a revista Forma (1930), na qual
Manuel Bandeira publicou um artigo sobre Cícero Dias, e das colunas de arte nos jornais de
grande circulação, onde Bandeira exerceu um dos papéis centrais, divulgando e esclarecendo
o público a respeito das vanguardas e dos salões e exposições
21
. Antes de todo o contexto
histórico, porém, nessas crônicas encontramos o que Bandeira procura na obra de um artista
plástico: a capacidade de reelaborar o mundo, que nas crianças aparece de forma
espontânea
22
.
Nas duas crônicas, o movimento do narrador e crítico de arte é muito
semelhante à mudança de atitude que se percebe nas crônicas sobre arte de Bandeira em geral:
se durante a década de vinte e no início dos anos trinta a disposição do cronista é didática e
tem como objetivo ampliar a recepção da arte moderna entre o público leitor de jornais, com o
passar dos anos ele deixa de defender determinadas escolas artísticas e abandona suas
denominações, a não ser para mencioná-las como rótulos ou de forma irônica, para concentrar
suas observações apenas em artistas e obras que o agradassem em particular. Assim, se em
Crônicas da Província do Brasil, seu primeiro livro publicado em prosa, encontram-se textos
pontuais sobre escritores e artistas plásticos que se destacaram depois da Semana de Arte
Moderna, em Flauta de Papel e Andorinha Andorinha já é possível destacar séries de crônicas
sobre alguns artistas preferidos, cujo trabalho esses textos acompanham ao longo dos anos.
Alguns deles são de tal maneira constantes nas crônicas de Bandeira que
chegam a formar séries completas de textos que se destacam em suas coletâneas em livro,
como a que Drummond intitulou “O numeroso Portinari”, em Andorinha Andorinha. A série
de oito crônicas começa com “Um rapaz de 23 anos”, de 1928, quando Portinari ganhou uma
viagem de dois anos como prêmio do Salão da Escola Nacional de Belas-Artes, e se encerra
com “Câmara Ardente”, de 1962, ano de seu falecimento, com apenas 57 anos. Como o pintor
era filho de imigrantes italianos, nascido em uma pequena cidade do Noroeste paulista, com o
exótico nome de um engenheiro polonês, Portinari é sempre referido como “o menino de
Brodóvsqui”, mesmo depois de muitos anos de carreira, assim como Cícero Dias é sempre “o
menino de engenho da pintura”, como veremos a seguir.
21
Cf. Walter Zanini. História Geral da Arte no Brasil, volume II: Arte Contemporânea, pp.572-578.
22
No poema “Na rua do Sabão”, de O Ritmo Dissoluto, a mão da criança concentra a possibilidade de criação
artística: “O que custou arranjar aquele balãozinho de papel! / Quem fez foi o filho da lavadeira. / Um que
trabalha na composição do jornal e tosse muito. / Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os
gomos oblongos...”.
28
“Noite bonita foi a exposição de Portinari na Galeria Bonino. A grande sala
estava à cunha, havia muita alegria, quanta bonita mocidade se acotovelava ali!
Fiquei eufórico. De repente, Mário Barata me abraça e evoca o Salão de 31:
toda a minha alegria murchou. É que naquele zunzum de vozes comecei a
sentir a ausência de muitas vozes de antigamente (...). Em vez de viver o
minuto presente, passei a tentar reviver o extinto passado”.
A crônica “Exposição em Bonino”, de 1960, integra a série sobre Portinari e
comenta uma de suas exposições da fase madura; mas, a partir de certo momento, Bandeira
passa a procurar, entre as pinturas ali presentes, os retratos dos amigos mortos, de autoria do
próprio Portinari. “Na voragem do ubi sunt?”, misturam-se na memória as imagens dos
amigos e de seus retratos, as lembranças “dos dias tempestuosos do Salão de 31” e dos
ocorridos de então; misturam-se, enfim, a trajetória da pintura de Portinari e a própria história
da pintura brasileira, ambas inseridas na história pessoal de Bandeira, por envolverem o seu
círculo de amigos, incluindo o pintor.
O Salão de Arte Moderna realizado em 1931, no Rio de Janeiro, foi um marco
na história das artes plásticas no Brasil. “Sem o escândalo que cercou a Semana de Arte
Moderna, mas despertando a atenção pela afluência de artistas modernos e o confronto destes
com os acadêmicos, a XXXVIII Exposição Geral de Belas-Artes contribuiu para trazer mais
força de persuasão às novas tendências. Reestruturada por Lúcio Costa, e organizada por uma
comissão composta por ele mesmo, Anita Malfatti, Celso Antônio, Portinari e Manuel
Bandeira, a capital federal dava finalmente importante passo ao encontro da cultura plástica
em seu curso criador”
23
. Destinado a permanecer como um evento único, o Salão de 31, como
ficou conhecido, ou “salão revolucionário”, como a imprensa o chamou, exerceu um papel
fundamental ao formar uma visão abrangente do que se produzia de vanguarda nas artes
plásticas do Brasil daquele início da década de trinta, além de abrir as portas para a
receptividade do público e da imprensa.
À exceção de Oswaldo Goeldi, todos os artistas que haviam se destacado
durante a década de vinte, como Lúcio Costa, Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti, Lasar
Segall, Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Cícero Dias e Celso Antônio compareceram com a
maior parte de suas obras, além de novos talentos como Cândido Portinari, que acabava de
retornar da Europa. Portinari viveu em Paris durante dois anos, graças ao prêmio do Salão de
1928, e, quando retornou, esperava-se que o bolsista, como era costume entre os ganhadores
23
Walter Zanini. Op. cit., pp.578-579.
29
do concurso, tivesse feito inúmeros cursos com os professores célebres que lecionavam arte
em Paris na época, e que trouxesse um punhado de obras prontas que, por assim dizer,
justificassem o seu prêmio. Mas Portinari passara a maior parte do tempo visitando os museus
europeus e retornou ao Brasil decidido a pintar sua cidade natal
24
. Para o espanto dos críticos
e dos professores da Escola que o premiara, não voltou com um único quadro pronto. Na
opinião de muitos, tal atitude poderia desabonar o seu trabalho, mas não para Bandeira, que
chega a destacar o fato para ressaltar o que considera autêntico em sua obra. Para o Salão de
31, Portinari realizou uma série de retratos, a maioria de amigos e intelectuais que
participavam do Salão, obras que inclusive deixavam transparecer as influências de pintores
que conhecera na Europa – Picasso e Modigliani, por exemplo. Bandeira, que considerava
Portinari um excelente retratista, aprovou os quadros apresentados no Salão, incluindo o seu
próprio retrato.
Apesar do prazer que revela nas lembranças desta época, Bandeira procura
reintegrar-se ao presente, prosseguindo a crônica sobre a exposição de 1960: “Portinari
continua o grande pintor – o melhor que já tivemos, digam o que disserem os novos talentos e
seus entusiásticos pregoeiros. Dou graças ao céu de possuir ainda a mesma sensibilidade que
me fazia tremer de emoção diante dos meninos de Brodóvsqui com os seus papagaios de
papel e as suas arapucas”. Embora insista no esforço de voltar ao momento presente, a
lembrança do Salão contribui na verdade para a reflexão do cronista sobre a obra de Portinari,
mesclando os planos temporais para melhor avaliar a sua trajetória artística.
Poucos artistas detêm o privilégio de incluir, em sua fortuna crítica, uma série
de textos de Manuel Bandeira que acompanhe assim de perto a sua produção ao longo dos
anos. Em comum com as demais crônicas sobre arte, encontramos o trabalho de aproximação
às artes plásticas do grande público, através do uso de um tom muito pessoal que mescla as
impressões subjetivas do cronista diante de cada obra com comentários a respeito da vida e da
personalidade do artista. Nas crônicas de Portinari, há sempre uma referência à sua origem
italiana e à sua infância em Brodóvsqui, mas sempre procurando a justa medida da influência
dessas vivência na obra do pintor, sem deixar de anotar os progressos trazidos pela
maturidade: “a força de Portinari veio cada vez mais acrescendo com as experiências murais,
com a confiança em si próprio dilatada pelo sucesso, primeiro nacional, depois continental, e
24
Sobre as conseqüências do período em Paris sobre a obra de Portinari, v. Annateresa Fabris. Cândido
Portinari. São Paulo, Edusp, 1996.
30
agora, nestes painéis [da sede da rádio Tupi] se expande com uma liberdade para além da qual
não se pode distinguir onde irá ter.” (“A força do povo”).
Entretanto, apesar da relativa ponderação da apresentação estética de Bandeira,
o que interessa ao cronista – e ao presente trabalho – são os detalhes que remetem à infância
no interior: Portinari é sempre o homem de Brodóvsqui, “filho do menino que passava os dias
armando arapucas nos capões e destronco a coxa jogando futebol no Largo da Matriz, o
amigo de Balaim, a figura mais notável de Brodóvsqui, homem da rua.” (grifo meu). Na
crônica “Florentino quase caipira” – título que sintetiza as origens do pintor –, Bandeira
reafirma, quase de passagem, a asserção freudiana de que o menino é o pai do homem, e
além: somente torna-se pai do homem de um grande artista o menino que viveu em
Pasárgada, com a liberdade absoluta das crianças e seu universo de diversões sem
conseqüências: “E o homem de Brodóvsqui não se esqueceu de Brodóvsqui. Há nesta galeria
admirável do Palace Hotel um grande quadro a óleo e várias aquarelas inspirados em aspectos
e cenas da pequena cidade paulista. São as melhores cousas que já compôs Portinari, dir-se-ia
que o pintor esperava a maturação de todos os seus recursos para encetar a transposição
gráfica de suas reminiscências de infância.”
Tais observações não significam que Bandeira seja insensível aos demais temas
da pintura de Portinari ou mesmo de outro artista. Em diferentes crônicas da mesma série,
como “Força do Povo” ou “Cores da Miséria”, a começar pelos seus títulos, observa-se a
sensibilidade do poeta para temas sociais e populares, pelos quais a obra de Portinari ficaria
célebre. Mas, em Bandeira, a sensibilidade artística é despertada pela identificação com
vivências ou temas que também sejam importantes para quem vê a obra – e, por isso, mesmo
em “Cores da Miséria” não falta uma ligeira observação sobre “meninos brincando (há entre
eles um de bodoque, que é uma de suas obras-primas)”. Naturalmente, só se encontra mérito
artístico na infância recuperada, em poesia ou pintura – artes que Bandeira considera “irmãs
gêmeas” –, através do prisma da maturidade artística, como demonstra a seguinte versão da
trajetória do pintor:
“Portinari, estudante de pintura na Escola Nacional de Belas-Artes, vivia
sonhando com a Europa. Um dia ganhou, no Salão, o prêmio de viagem ao
estrangeiro e o sonho realizou-se. Mas, na Europa, um caso extraordinário se
passou: Portinari descobriu Brodóvsqui, o seu torrão natal, no fundo de São
Paulo. Na verdade, no fundo de sua subconsciência, e a princípio sob a forma
do mais pobrinho e mais humilde de seus conterrâneos. Escreveu então o pintor
uma página, que pode ser considerada como o prefácio de toda a sua obra de
31
artista plástico – a história de Balaim, um beira-córrego de Brodóvsqui (...).
Descoberta Brodóvsqui, estava definitivamente traçado o itinerário artístico de
Portinari: quando regressasse ao Brasil, iria pintar Brodóvsqui. ‘A paisagem
onde a gente brincou pela primeira vez e a gente com quem a gente conversou
pela primeira vez não sai mais da gente e eu, quando voltar, vou ver se consigo
fazer a minha terra’. Pondo de para a sua prodigiosa técnica, a sua estupenda
galeria de retratos, a melhor porção da obra de Portinari é isto: Brodóvsqui e
sua infância em Brodóvsqui, o menino e o povoado, o menino no seu povoado.
Por esse fundo vivencial é que Portinari se afirma profundamente brasileiro e
profundamente ele mesmo, mesmo quando influenciado por Picasso ou pelos
surréalistes.”
25
(“Poemas de pintor”)
O trecho acima faz parte de uma crônica que anuncia a publicação de um livro
de poemas de Cândido Portinari, intitulado O menino e o povoado. Tanto nas considerações
sobre a pintura quanto sobre a poesia de Portinari, que se mesclam e se confundem, o cronista
aborda questões fundamentais à sua própria obra: a ligação com a terra natal que emerge de
forma subconsciente em meio à vida adulta, a identificação com a gente simples daquela terra,
fazendo a figura portinariana de Balaim evocar o personagem Totônio Rodrigues, de tantos
poemas fundamentais de Bandeira, e finalmente a possibilidade de mesclar criativamente a
experiência pessoal da infância com as mais altas influências artísticas do século: a viagem e
o contato com as vanguardas européias não são momentos dispensáveis da experiência, mas,
pelo contrário, provam-se essenciais para o processo em que a memória é plasmada em
matéria artística.
Ao mesmo tempo, o comentário de Bandeira a respeito da pintura e da poesia
de Portinari reforça a aproximação entre as duas artes mencionada há pouco, uma
aproximação que tem uma longa história, marcada principalmente pelo livro Lacoonte ou
sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, de G. E. Lessing, e retomada por Joseph Frank.
Baseado na distinção entre as artes do espaço e as artes do tempo preestabelecida por Lessing,
Frank analisa o processo pelo qual a literatura moderna, a partir do romance do século XIX e
da poesia de Ezra Pound, tende à espacialização: “Através dessa justaposição entre passado e
presente (...) a história se torna anti-histórica: já não é mais vista como uma progressão
objetiva e causal no tempo, com diferenças distintamente marcadas entre cada período, mas é
sentida como um continuum em que as distinções entre passado e presente estão obliteradas.
25
Note-se também o deleite estético, de “pura iluminação verbal”, de Bandeira com o exótico nome polonês da
cidadezinha, que lembra o seu fascínio pelo nome de Pasárgada, e que ele repete nada menos que 22 vezes ao
longo de oito crônicas que ocupam nove páginas.
32
Assim como a dimensão da profundidade foi se esvanecendo das artes plásticas, ela também
foi se esvaecendo da história à medida que formava o conteúdo dessas obras”
26
.
Esse processo de espacialização, que o autor nota nos romances de Marcel
Proust e James Joyce, repete-se em menores proporções na crônica de Bandeira sobre a
exposição de Portinari, através do procedimento marcadamente proustiano de notar, no meio
da agitação do salão repleto, as conseqüências da passagem do tempo
27
: entre a “linda
mocidade” que ocupa a galeria presente surgem, através dos retratos de Portinari, os amigos já
mortos ao lado dos quais Bandeira enfrentara as rivalidades do passado. Da mesma forma, em
“Crianças Inglesas”, ao reproduzir ironicamente o comentário do “amigo modernista” sobre a
proximidade das pinturas infantis com a vanguarda, Bandeira marca a mesma passagem do
tempo que já o transformara em “um acadêmico, um medalhão”, e em obsoleta toda a verve
de seu companheiro contra os “passadistas”, ao contrário do frescor mantido pelos desenhos
das crianças. Mesmo quando alterna, nas descrições dos desenhos, os termos utilizados pelos
artistas de vanguarda, duas décadas antes, o cronista repete palavras desgastadas pelo uso, e
que já não dizem muita coisa a respeito das obras propriamente ditas, tendo se transformado
em meros rótulos.
Dessa maneira, a ironia do cronista não se volta exatamente em direção à
vanguarda, interpretação muito comum devido à participação passiva de Manuel Bandeira na
Semana de Arte Moderna, mas sim à passagem do tempo, que envelhece as escolas e os
manifestos, mas não as obras que contenham real valor artístico, e que se contrapõe ao
encanto atemporal da arte provinda da inncia. Um termo como “pureza”, por exemplo,
aparece com alguma freqüência na crítica bandeiriana de artes plásticas, usado para designar
determinadas técnicas e sínteses visuais, tendo uma importância particular em suas crônicas
sobre arquitetura; as esculturas de barro de Vitalino, por exemplo, são descritas pela sua
“plástica tão ingenuamente pura”, expressão que as relaciona duplamente à puerilidade dos
traços infantis.
Há, evidentemente, um caráter plástico muito acentuado nas memórias de
infância de Bandeira, na forma em que elas aparecem nas crônicas, razão pela qual vimos
analisando, em primeiro lugar, as crônicas sobre artes plásticas em que as crianças marcam
26
Joseph Frank, “A forma espacial na literatura moderna”. Revista USP, São Paulo, nº.58, pp.225-241, junho-
agosto de 2003.
27
Nas referências à obra de Marcel Proust na prosa bandeiriana, é conveniente recordar que Manuel Bandeira fez
parte da equipe da Editora Globo responsável pela primeira tradução brasileira de Em busca do Tempo Perdido,
do qual traduziu o quinto volume, A Prisioneira.
33
presença. Em Proust, por exemplo, as reproduções de obras de arte localizadas em museus
distantes servem para aproximá-las do narrador de Em busca do tempo perdido, diminuindo a
distância entre elas no espaço; nas crônicas de Bandeira, como veremos, fotos antigas e
pinturas de lugares vistos na infância trabalham para que o cronista recupere-os como
conheceu da primeira vez, aproximando-os dele no tempo, de forma que a memória opera
uma restauração imaginária, que contribui para que o indivíduo negue as transformações – ou
deformações, como prefere Bandeira – do presente. Em algumas crônicas, essa atitude pode
partir de visitas aos espaços da infância, mas é a partir da observação de suas imagens que a
atitude do cronista diante do presente se nota de forma mais marcante.
Eu vi o mundo...
Em “Notícias de Cícero”, de Flauta de Papel, o que primeiramente chama a
atenção do leitor, como em diversas outras crônicas de Bandeira, é a aparente contradição
entre o tom jornalístico do texto e a crônica em si, que se preocupa antes em fazer um
histórico da trajetória artística do pintor Cícero Dias que, naquela época – meados dos anos 40
–, já morava em Paris. O primeiro passo do cronista é uma quebras de expectativas: “Não se
trata do Cícero de Arpino, do Cícero das Cantilinárias e das Filípicas, mas o Cícero de
Cajazeiras, do Estado de Pernambuco. Cícero Dias, Cícero dos Santos Dias, pintor e poeta”. O
Cícero que pertence à História, o orador da Antigüidade Clássica, é colocado em segundo
plano, através da exploração do nome, para dar lugar a um Cícero particular do universo de
Bandeira, do artista conterrâneo, ex-vizinho e amigo do poeta, mais próximo no tempo e no
espaço
28
.
A quase duas décadas de distância, Bandeira recorda a primeira exposição de
Cícero Dias no Rio de Janeiro, em 1928, no edifício da Escola Politécnica em que funcionava
o Instituto de Psicanálise. Em carta a Mário de Andrade, o poeta registrou o assombro
causado pela primeira impressão das aquarelas expostas naquela ocasião, que ele descreveria
como “uma impressão de atropelamento”: “A novidade aqui é um rapaz de Pernambuco que
vive no Rio – Cícero Dias. Uma arte profundamente sarcástica e deformadora, por exemplo,
uma entrada da Barra com o fio do carrinho elétrico do Pão de Açúcar preso na outra
28
Nas crônicas de Bandeira, esse procedimento é comum a todos os textos sobre amigos cujos nomes remetam a
personagens da Antigüidade. V. “Orestes”, sobre o compositor Orestes Barbosa, e “Tasso e Gomide”, sobre o
poeta Tasso da Silveira, ambos em Flauta de Papel.
34
extremidade ao galo da torre da igrejinha da Glória, e a igrejinha toda torta. Acho muita
imaginação e verve nele. Entre os entendem e pintam está cotado. No meio modernista, claro.
Assim o [Oswaldo] Goeldi, o Di [Cavalcanti] e o [Ismael] Nery gostaram muito”
29
. Apesar de
escusar-se do mérito de ter descoberto Cícero, que cabia na verdade a Murilo Mendes,
Bandeira contribuiu para a divulgação do seu trabalho, inclusive acompanhando de perto a
composição do mural “Eu vi o mundo, ele começava no Recife”, exposto no Salão de 31.
Em ambas ocasiões – na sua primeira exposição carioca e na exposição de seu
mural no Salão – Cícero Dias enfrentou vários tipos de crítica: desde a acusação de que seria
apenas louco, em função do seu tratamento dos temas e de sua “técnica absurda em que
entrava até tinta de escrever”, apesar da propriedade em expor temas ligados ao universo
onírico em um instituto de psicanálise; passando pelo rótulo de pintor imoral, por causa do
forte erotismo das figuras femininas em “Eu vi o mundo, ele começava no Recife”; e por fim
a observação que competia ao seu estilo em particular e ao surrealismo em geral, de que
“qualquer criança” seria capaz de desenhos e aquarelas iguais às de Cícero, e da qual Mário
de Andrade já o defendera publicamente
30
. Em sua crônica, Bandeira ainda explica aos leigos
a estética surrealista, justamente pela analogia com os desenhos de crianças: se os quadros de
Cícero se assemelham aos desenhos infantis pela libertação das técnicas tradicionais e pela
“atitude ingênua diante dos aspectos humorísticos e mal-assombrados da vida”, que
caracteriza a sua sensibilidade, ele ainda se diferencia pelo “dom da expressão”, que
certamente não se desenvolve em tenra idade.
Apesar disso, para Bandeira – como já pudemos observar em outras crônicas –,
nunca deixa de haver uma relação bastante íntima entre arte e universo infantil. A ingenuidade
da criança parece expressar-se em duas atitudes: a primeira é o humor, que na infância
identifica-se com o espírito lúdico, e que se manifesta na capacidade de reorganizar o mundo
ou de criar um mundo próprio, interior, que no artista adulto é enriquecida pelo “dom
29
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, p.393.
30
“A aquarela de Cícero Dias é ingênua como expressão, bem sei. Até a compararam com os desenhos das
crianças, comparação que acho falsa. Não tem nada que afaste mais a sensação de infantilidade que a parecença
com criança. Aqui mesmo no hotel estão uns anõezinhos incompreensíveis, grande sucesso do dia no quarteirão
dos cinemas... E não há nada menos criança do que eles. Criança é vida, da mesma forma que manga ou ticotico.
Anão é ‘fenômeno’ no sentido popular da palavra. É esse contraste insubstituível na comparação da gente
perversa entre os desenhos de criança e os desenhos de Cícero Dias. Aqueles trazem essa eqüidade justiceira
com que a vida vulgariza as coisas. Já falei uma feita e repito: Se uma vez por outra a criança desenha uma obra-
prima é caso raro. No geral os desenhos infantis sob o ponto de vista da arte são perfeitamente idiotas e nos
interessam por valores que nada têm de plásticos ou de estéticos. Ora, Cícero Dias é justamente o contrário disso.
Possui uma personalidade surpreendente. Possui uma fatalidade de expressão formidável, cujos valores
35
complementar de exprimir plasticamente este mundo”, de modo a “suscitar nos outros a
emoção artística”; e a segunda é o que Bandeira gosta de chamar de “assombro”, a disposição
em encontrar mistério e de surpreender-se com pequenos detalhes do cotidiano que se
encontram a todo momento, nos grandes centros e nas cidades do interior:
“Possuí uma pintura de Cícero que era um quadro bem pernambucano: uma
casa de engenho encostada à igrejinha modesta. Foi uma casa que visitei no
Cabo em criança e que nunca mais se apagou da minha memória. O vazio triste
daquela igreja velha onde me contaram que havia à noite almas penadas, era
dentro de mim uma coisa sem voz que reclamava existência no plano da arte.
Cícero adulto viu-a com os olhos e a alma da minha infância, e realizou uma
admirável criação.” (grifo meu)
Bandeira refere-se a um lugar chamado Usina do Cabo, um dos retiros de
veraneio de sua família durante a infância no Recife. Se o quadrinho de Cícero Dias é “bem
pernambucano”, não é por captar a paisagem em si ou como qualquer criança a veria, mas sim
como o menino Manuel a viu um dia: “os olhos e a alma da minha infância”. A emoção
artística do quadro que descreve vem da capacidade do pintor de captar a sua imaginação
infantil, no espanto que relaciona a tristeza e o vazio do interior da igreja com a presença de
almas penadas, que resulta em uma imagem cristalizada no passado. Não lhe importa o
aspecto atual da casa de engenho e da igreja, nem mesmo o seu aspecto quando Cícero Dias a
pintou: em inúmeras crônicas, ele critica as restaurações em construções de cidades do
interior como deformações de seu aspecto autêntico, o que de certa forma traduz a sua
vontade de reencontrá-las sempre como as conheceu pela primeira vez – Bandeira não procura
uma reelaboração da paisagem, mas uma tradução da imagem fixada em sua memória.
Não são apenas imagens do interior de Pernambuco, entretanto, que agradam
Bandeira na obra de Cícero Dias, como indica o trecho já citado da carta de 1928. Há também
as imagens do presente da vida no Rio de Janeiro, que se destacam pela mesma combinação
de mistério e ternura: “Cícero tem tirado do noticiário policial dos jornais algumas obras da
mais tocante piedade, como fez do caso banal de uma mocinha de Niterói, a qual, abandonada
pelo namorado, se matou. Cícero ofereceu-se o que sempre oferece aos infelizes e às mulheres
que ama – flores e estrelas. O grupo da família da suicida à entrada do cemitério é uma das
imagens mais ingenuamente dolorosas que já vi. Quem pensa em técnica diante dessas
psicológicos principais são a sexualidade, sarcasmo e misticismo. Justamente as cousas que a criança menos
possui.” O Turista Aprendiz, 29 de novembro de 1928, p.204.
36
imensidades puras da piedade?”. Sequer seria preciso explorar as relações entre a descrição do
pequeno quadro e o célebre “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Libertinagem (1930):
a pungente tragédia suburbana e a morte banalizada pelo meio de comunicação em massa,
redimidos pela sensibilidade artística, em particular a de vanguarda. O quadro descrito foi
composto na mesma época de Libertinagem – trata-se da tela Enterro (Cortejo) (nanquim e
aquarela sobre papel, 47x 30cm, 1930), dedicada a Mário de Andrade e destinada,
originalmente, ao célebre Salão de 31, no qual Cícero Dias acabou expondo o escandaloso
painel Eu vi o mundo... ele começava no Recife (técnica mista sobre papel kraft com cola de
peixe, 2x 15m, 1929).
Parte da repercussão e do escândalo causados pelo Salão de 31 deveram-se à
obra de Cícero Dias, apesar do pintor já ser conhecido pelas tendências surrealistas em seu
trabalho. A princípio idealizada como homenagem ao abolicionista Joaquim Nabuco, a obra
surpreendeu tanto pelo seu tamanho e suporte incomuns quanto pelo erotismo cru de suas
figuras femininas, que causaram tamanho impacto a ponto de quase três metros do trabalho
serem cortados. O painel acabou esquecido em uma fábrica de Bangu, no Rio de Janeiro,
durante vinte anos, até ser reencontrado e encaminhado para restauro, com retoques do
próprio autor. Atualmente, restam apenas doze metros da obra, que pertence a uma coleção
particular
31
.
Pela sua extensão, o painel é repleto de detalhes que captam o olhar. Embora
pela força do hábito ele seja normalmente lido” da esquerda para a direita, os cantos
fornecem uma pista contrária: o canto inferior direito contém um semicírculo negro com os
dizeres “Entrada -$5,00” acima e ao lado, enquanto a assinatura “Rio de Janeiro/ Cícero Dias”
encontra-se no canto inferior esquerdo. Essa lógica é confirmada pela progressão de figuras
ao longo da obra, a começar pela representação dos ciclos de nascimento, com a imagem de
uma ama-de-leite, e morte. A extensão do painel é seccionada em três partes, onde as folhas
de papel kraft foram coladas uma à outra: a primeira sessão traz à direita um grupo de pessoas
que se despede estendendo lenços brancos, embora a margem direita mostre apenas um ramo
de flores e a saia branca de uma figura que foi cortada. Seguindo para a esquerda,
encontramos fileiras de casas – o Recife –, e uma casa de engenho, com a moenda de onde
31
Nos últimos anos, o painel Eu vi o mundo... ele começava no Recife foi exposto duas vezes ao público da
cidade de São Paulo: na mostra “Da Antropofagia a Brasília. Brasil 1920-1950”, realizada em dezembro de
2002, e na exposição “Cícero Dias – décadas de 20 e 30”, em novembro de 2004, ambas no Museu de Arte
Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado.
37
nasce o rio, uma casa-grande e a senzala. Logo acima há um carro de bananas puxado por dois
bois, açoitados por um homem de bigode e montados por duas crianças, uma branca e outra
negra. Mais ao fundo, um boi de cara preta dorme sob uma árvore.
Ainda há morros floridos com crianças dando de comer às galinhas, na seção
central entre as duas emendas de papel. Mas dominam a cena três mulheres gigantescas,
segurando vacas no ar, e um homem vestido de noivo que aparece na horizontal, arrastado por
uma vaca que usa uma guirlanda de flores brancas. A esta altura, as construções já
prevalecem, como as duas torres ligadas por um terraço quadriculado, sob cujas colunas vê-se
o Pão de Açúcar, presente na maioria de suas pinturas cariocas. O mar encontra-se ao fundo, e
sobre ele há um barco em que se deita um casal de amantes e o sol mergulha na água. A seção
à esquerda do painel também traz figuras femininas gigantes, como a mulher que toca
sanfona, e flores soltas em vasos e cestos que se distribuem pela tela e na imagem de um
velório. Animais, figuras com chicotes e morro com casinhas repetem-se por todo o painel. A
lateral esquerda mostra, assim como a direita, duas fileiras de casas, mas com uma rua
definida entre elas – sem dúvida a rua do Curvelo, onde morava Bandeira, bem próximo de
seu conterrâneo.
Uma abordagem descritiva da obra de Cícero Dias mais conhecida no Brasil
expõe de forma bastante clara as suas afinidades com Manuel Bandeira, o que também seria
possível constatar em várias de suas aquarelas das décadas de 20 e 30. O mundo começava no
Recife, onde Bandeira nasceu e Dias passou parte da infância, e no interior de Pernambuco
onde Dias nasceu e Bandeira passava os verões com a família, mas a sua outra ponta estava
no Rio de Janeiro, na casinha de Santa Teresa, cujo bonde aparece em Chegada a Muratori
(aquarela sobre papel, 1927, coleção IEB). “Perto da rua do Curvelo, na rua Aprazível,
número 8, morava Cícero Dias. A casa, preservada até hoje, faz esquina com a rua do
Aqueduto (...). Nas paredes que a circundam Cícero Dias pendurava as enormes tiras de papel
para secar, à medida que pintava. Foi assim que o artista pernambucano pintou o fantástico
painel Eu vi o mundo... ele começava no Recife
32
. No início dos anos 30, portanto,
encontramos dois artistas pernambucanos, morando no Rio de Janeiro em casas próximas e
convivendo com o mesmo grupo, ligado à vanguarda artística de seu tempo. O espírito
pernambucano que marca a obra de ambos os leva a resgatar plástica e liricamente a terra
natal através da memória, como sintetiza Bandeira: “Cícero fez pintando o mesmo que fez
32
Elvia Bezerra. A trinca do Curvelo, p.90.
38
José Lins do Rêgo escrevendo: desentranhou a poesia assombrosa dos meninos de engenho
(grifo meu). Voltando à crônica “Notícias de Cícero”, o cronista não chega a descrever
nenhum quadro carioca do amigo; como defesa da técnica surrealista que ele representa, o
cronista faz alguns flagrantes que causariam contrariedade caso fossem vistos em um quadro
de Cícero, mas que entretanto saíram diretamente da realidade cotidiana:
“Àqueles a quem chocam as extravagâncias de Cícero dedico este pequeno
quadro urbano: era numa das horas mais trepidantes da vida da cidade: Largo
da Carioca, calor danado e os homens cavando ferozmente a vida. O Rio de
toda gente. Mas no orifício de engate de um bonde enorme da Light que
passava, algum garoto tinha enfiado um ramo de hortênsias. Aquilo não era
mais o Rio: era outra cidade, cidade fantástica, alguma cidade lírica do mundo
delicioso de Cícero Dias”.
Em um tratamento oposto ao lugar privilegiado da memória que ocupa o Recife
natal, a emoção artística não se encontra no Rio de Janeiro em si, mas precisa ser buscada nos
detalhes em que o lirismo salta da paisagem urbana a ponto de subvertê-la, sentimento que só
pode ser expresso em uma pintura surrealista. É ainda a ingenuidade infantil que contribui
para o surgimento do quadro plástico em meio à agitação da cidade, através da mão do garoto
que enfia o ramo de hortênsias no engate do bonde, e que simboliza a mão do artista –
confirmando, pelo menos na perspectiva bandeiriana, a relação entre a arte surrealista e a
infância. Contrariamente à igrejinha no interior de Pernambuco, que se transforma em arte
quando rememorada, a “agitação feroz e sem finalidade” da metrópole precisa ser alterada
para ganhar expressão artística. Essa diferença reflete-se na linguagem: em contraste à prosa
nostálgica, macia e cadenciada que descreve a casa em Usina do Cabo, o ritmo que retrata a
metrópole é duro e entrecortado como um poema tirado de uma notícia de jornal:
“Mundo em que tudo é possível: aquele homem é uma pedra, o Pão de Açúcar
é gente e freqüenta o Cassino da Urca... Mundo absurdo, se quiserem, errado
no desenho e na perspectiva.”
Falando de Cícero Dias, Bandeira retorna mentalmente à rua do Curvelo. O
olhar do cronista percorre o Rio de Janeiro do momento presente, mas busca na verdade uma
outra cidade, “intacta, suspensa no ar”, preservada na memória do poeta e na pintura de Dias.
Apesar de “Notícias de Cícero” ser uma crônica que se propõe a falar da obra de Cícero Dias,
vemos que ela traz implícitas idéias muito importantes para o autor, à medida que ele se
39
identifica com a visão do artista plasmada em seus quadros, e à medida que o pintura de
Cícero é capaz de traduzir plasticamente as imagens da memórias e da imaginação do poeta.
A imagem final da crônica evidencia o caráter plástico das reminiscências de Bandeira: “A
casinha em que morei no Curvelo (e onde depois morou Raquel de Queirós) foi posta abaixo.
Outro dia passei por lá e me lembrei decero, porque vi o meu quarto no ar, como num
desenho de Cícero: meu quarto no mundo de Cícero”.
É somente no final da crônica que Bandeira constata: “E as notícias de Cícero?
É verdade. Estou aqui a falar, a falar, esquecido que tomei da pena para informar aos amigos
que recebi uma carta de Cícero. Carta à maneira de Cícero, escrita na folha de guarda de um
livrinho – Le Livre de Monele, de Marcel Schwab.” Já no parágrafo seguinte, porém, Bandeira
volta a esquecer a informação objetiva para retornar ao seu “quarto no ar” que relembra os
quadros de Cícero. Sequer o conteúdo da carta é mencionado, ou apenas de forma muito
indireta: “Essa carta veio dar-me a mim por minha vez saudades enormes de Cícero. Tanto
maiores quando imagino que ele ficará na França por muito tempo ainda, se não for para
sempre”. De fato, o pintor casou-se com uma francesa e morreu em Paris, em 2003.
Em uma resenha sobre Crônicas da Província do Brasil, primeira coletânea de
crônicas de Bandeira, publicada em 1937, comenta-se a ausência de uma crônica que
Bandeira teria escrito sobre Cícero Dias na revista Forma: “O poeta admira grandemente o
pintor pernambucano a quem ele próprio chamou de ‘menino de engenho da pintura
brasileira’. No entanto no volume das crônicas só aparecem umas poucas linhas de caçoada a
respeito de Cícero”
33
. Em uma de suas crônicas sobre Portinari, “Florentino quase caipira”,
Bandeira afirma que “só mesmo a vida de engenho do Nordeste poderia ter dado a arte de
Cícero Dias”. Provavelmente existem outras crônicas que Bandeira escreveu sobre o
conterrâneo, que reencontrou anos depois em sua viagem a Paris, como narra na crônica
“Paris”, de Flauta de Papel: “Entrei em Paris com o pé direito, caindo nos braços de Cícero
Dias, Raymonde, sua esposa, Sylvia, a sua filhinha – a parisiensezinha mais brasileira do
mundo”. Não deixa de ser digna de nota também a omissão do nome de Cícero Dias no
Itinerário de Pasárgada no capítulo sobre a rua do Curvelo, em que se citam tantas amizades
e vizinhanças marcantes para Bandeira, e escrito três anos antes de sua viagem à Europa.
33
“Cronista meio leviano”, em Andorinha Andorinha, p.232-233. O texto referido encontra-se na Revista Forma
nº.1, Rio de Janeiro, Pongetti, setembro de 1930, e foi republicado com alterações sob o título “Notícias de
Cícero”, em 1945, que acabamos de comentar.
40
A mudança para Paris costuma ser estabelecida como um marco na nova fase
da pintura de Cícero Dias, que começou a combinar tendências abstracionistas à sua pintura
34
.
Seus quadros deste período destoam francamente de sua produção brasileira, considerada até
hoje a sua fase mais importante: na França, o seu trabalho perdeu quase toda a tendência
figurativista e afastou-se dos temas pernambucanos, transformando a sua obra, nas palavras
de Bandeira, “num pastiche de si mesmo”. Cícero Dias e Manuel Bandeira viram-se pela
última vez, ao que tudo indica, na rápida passagem do poeta pela capital francesa, vinte anos
depois da mudança do pintor, sendo que pouco antes ficaram conhecidos os versos de
“Saudação a Murilo Mendes”, de Opus 10:
Saudemos Murilo
Grande amigo das Belas-Artes
Descobridor do falecido Cícero
(Hoje reencarnado num pintor abstracionista que vive em Paris onde o chamam Diás)
Em suas crônicas sobre Cícero Dias, Cândido Portinari e mesmo sobre pinturas
de crianças, vemos Bandeira cumprindo essa tarefa fundamental para as artes de seu tempo,
como membro de um grupo preocupado com a divulgação de novas obras, artistas e
tendências. Predomina, entretanto, o tom pessoal nesses textos: o cronista é sempre um
simples interessado em arte, que se dirige à exposição ou ao salão movido por um interesse
particular, e colhe das obras expostas impressões íntimas. Nas crônicas sobre Dias e Portinari,
em especial, as descrições dos quadros parecem buscar o lirismo presente naquelas obras, e
que Bandeira encontra, principalmente, na representação e na rememoração da infância: o
pequeno quadro que resgata a casa mal-assombrada, os meninos que brincam nas ruas de
Brodóvsqui com bodoques e papagaios.
Nos desenhos feitos pelas crianças, esse lirismo encontra-se ainda mais
evidente ao associar-se à obra de artistas consagrados, como Matisse e Djanira, e mesmo de
poetas como Vinícius de Moraes e Murilo Mendes. Bandeira compara a obra de pintores
renomados com o “calor da imaginação, capaz de impor-nos a sua visão interior, com o
despotismo de um delírio”, presente no traço desajeitado e espontâneo das crianças, assim
como determinadas escolhas de perspectiva, semelhantes às do moderno surrealismo: “o que
impressionou o menino (...) não foi o comprimento do pescoço da girafa, mas das pernas,
entretanto a sua girafa, com pescoço de cavalo quase, é indiscutivelmente girafa”.
34
Sobre a obra de Cícero Dias, v. Cícero Dias – uma vida pela pintura. Rio de Janeiro, Simões de Assis, 2002.
41
Capazes de tal carga de revelação de poesia a ponto de serem chamados de
“anjos”, em inúmeras crônicas o convívio com crianças encanta Bandeira, que muitas vezes
faz associações diretas entre esses pequenos episódios e a sua própria infância, de modo que a
sua nostalgia contribui para a formulação de uma nova perspectiva, tanto sobre arte quanto
sobre a vida cotidiana. A nostalgia da infância é o tema que liga a maior parte das crônicas de
Bandeira publicadas em livro, e o cronista parece buscá-la nas imagens mais tocantes que
encontra: “Sim, estou velho, mas na minha sensação de velhice não entra absolutamente o
peso morto do passado. Sou um velho sem passado. Quero dizer que o passado continua a
existir para mim como um presente, digamos uma enorme paisagem sem linhas de fuga, uma
paisagem sem perspectiva, onde todos os incidentes, os de ontem, os do passado, os de há
cinqüenta anos se apresentam no mesmo plano, como nos desenhos das crianças
35
(grifo
meu).
A metáfora da paisagem plana, sem profundidade, é surpreendente por
esclarecer a mescla de imagens do passado e do presente em uma única perspectiva, flagrante
em várias crônicas que leremos, ilustrada pela associação com as artes plásticas. A partir dela,
Bandeira estabelece uma relação bastante particular com o passado, sentindo-o à sua maneira,
a “que vale mais, que magoa menos”. Ecléa Bosi, tratando da velhice como “tempo de
relembrar”, observa que a “vontade de revivescência arranca do que passou seu caráter
transitório, faz com que entre de modo constitutivo no presente. Para Hegel, é o passado
concentrado no presente que cria a natureza humana por um processo de contínuo
reavivamento e rejuvenescimento”
36
. Nas crônicas, o processo de rememoração, em que o
passado se integra ao presente, aparece descrito de maneira espontânea, diferentemente do
que acontece em Itinerário de Pasárgada, onde o poeta procura, através do esforço consciente
de memória voluntária, separar os planos que espontaneamente lhe vêm mesclados, o que
reduz a densidade da narrativa em relação às crônicas.
Enquanto uma série inteira de crônicas cobre a trajetória artística de Cândido
Portinari, uma única crônica sobre Cícero Dias, reescrita a partir de seu artigo na revista
Forma, foi recolhida em livro. Mesmo sem ter acesso à totalidade dos textos escritos por
Bandeira para jornal, podemos presumir que ele dificilmente voltou a escrever sobre o pintor
conterrâneo. Vários fatores podem ter contribuído para tanto, mas entre eles conta-se
certamente o afastamento da pintura de Dias dos temas ligados à terra natal, agregado ao
35
“Variações sobre o Passado”, em Flauta de Papel – Poesia e Prosa, vol. II, p.294.
42
pouco interesse que as tendências não figurativistas nas artes plásticas – tanto o
abstracionismo quanto o concretismo – despertavam no poeta pernambucano; ainda em
Crônicas da Província do Brasil, Bandeira descreve o seguinte ambiente da casa de Jaime
Ovalle, no Rio de Janeiro:
“A saleta de entrada, minúscula e entupida por um piano de cauda, fora
decorada com painéis de Cícero Dias, pintados em lona. Uma das melhores
cousas do malogrado artista pernambucano, hoje inteiramente absorvido por
interesses comerciais. (...) Os painéis da casa do místico davam a impressão de
que neles o menino de engenho da pintura brasileira estava se despedindo
daquela infância meio louca que era a alma da sua arte tão longe do
mundanismo em que se atolou depois.”
37
Na crítica que Bandeira exerceu através das crônicas, em função do tom
pessoal que assumem, torna-se fundamental a identificação do observador com o objeto para
que haja expressão artística. Esta subjetividade torna-se possível devido ao gênero dos textos
de que estamos tratando; se exercesse a crítica de arte de outro modo, talvez Bandeira
escolheria uma outra perspectiva. O que nos interessa, porém, é observar como, em crônicas
sobre temas comuns ao seu tempo, o poeta começa a rememorar a própria infância, de forma
que esta passa a exercer influência sobre toda uma perspectiva do tempo presente encontrada
em sua obra em prosa.
2. A trinca do Curvelo
Quando começou a escrever regularmente para jornais, na década de vinte,
Manuel Bandeira morava na rua do Curvelo, no bairro carioca de Santa Teresa. Ali, tornou-se
vizinho do também poeta Rui Ribeiro Couto, através de quem faria contato com o grupo
modernista de São Paulo, e do pintor Cícero Dias, cuja produção inicial acompanhou de perto.
Deste período e destas amizades encontram-se dois registros significativos. O primeiro são as
lembranças registradas por Ribeiro Couto no discurso com que recebeu Bandeira na
Academia Brasileira de Letras, e reproduzidas por este em Itinerário de Pasárgada: “Das
vossas amplas janelas, tanto as do lado da rua em que brincavam as crianças, quanto as do
lado da ribanceira, com cantigas de mulheres pobres lavando roupas nas tinas de barrela,
36
Ecléa Bosi. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos, pp.74-75.
37
Crônicas da Província do Brasil, em Seleta de Prosa, p.87.
43
começastes a ver muitas coisas. O morro do Curvelo, em seu devido tempo, trouxe-vos aquilo
que a leitura dos grandes livros da humanidade não pôde substituir: a rua”
38
.
O segundo registro são dois quadros de Bandeira pintados em 1930 por Cícero
Dias. O primeiro, mais conhecido, é um retrato a nanquim, cuja versão colorida é capa de uma
das edições de Itinerário de Pasárgada
39
. O segundo é uma aquarela, em que Bandeira
aparece em primeiro plano, sentado no chão ao lado de uma mulher nua e de costas, tendo ao
fundo, à direita, o casarão em que ficava o seu apartamento, e à esquerda um bando de
meninos brincando junto a uma árvore. A rua do Curvelo aparece de fato ao nível da janela
mais alta, e nos fundos, em declive, o terreiro em que as mulheres trabalham, como descrito
por Bandeira em sua autobiografia:
“(...) o meu apartamento, o andar mais alto de um casarão quase em ruína, era,
pelo lado dos fundos, o posto de observação da pobreza mais dura e mais
valente, e pelo lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada
sem lei nem rei que infestava as minhas janelas, quebrando-lhes às vezes as
vidraças, mas restituindo-me de certo modo o clima de meninice na rua da
União em Pernambuco. Não sei se exagero dizendo que foi na rua do Curvelo
que reaprendi os caminhos da infância”
40
.
A descrição de Bandeira reitera a dicotomia presente na vivência da rua do
Curvelo, que se percebe tanto no discurso de Ribeiro Couto quanto no retrato de Cícero Dias:
de um lado, ao nível da rua e da janela do poeta, junto à qual ficava a sua mesa de trabalho, a
infância; de outro, em nível mais baixo, a pobreza. O poeta já conhecido, que se tornava
cronista por necessidade, situa-se espacialmente no ponto intermediário entre a infância que
deixava definitivamente para trás e a pobreza em que passaria a viver depois da morte do pai.
A importância do período em que morou no Curvelo reflete-se em sua obra, uma vez que,
entre 1920 e 1933, data em que mudou-se para a Lapa, Bandeira escreveu quatro livros: O
Ritmo Dissoluto (1924), Libertinagem (1930) e Estrela da Manhã (1936) – coletâneas de
poemas que marcam o início de sua obra madura –, e Crônicas da Província do Brasil,
publicado em 1936 e que reúne crônicas escritas para os jornais Diário Nacional de São Paulo
(1929-1930) e A Província do Recife (1930-1931).
Entre as crônicas escolhidas por Bandeira para integrar a sua primeira
coletânea em prosa, incluem-se “A trinca do Curvelo” e “Lenine”, que, junto com “A antiga
38
Poesia completa e Prosa, p.60.
39
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
44
trinca do Curvelo”, de Flauta de Papel, e ainda “Zeppelin em Santa Teresa”, de Andorinha
Andorinha, formam uma pequena série sobre a vida cotidiana e a convivência das crianças no
morro. Qualquer leitor bandeiriano que esquadrinhe as crônicas à procura de referências a
toda agitação cultural e política da década de vinte, e mesmo do início da década de trinta,
pode surpreender-se com o destaque reservado pelo cronista a simples crianças pobres de
morro, além do tom carinhosamente lírico que utiliza para retratá-las, claramente tendo em
vista transformá-las em matéria literária.
“A trinca do Curvelo” e “Lenine” são crônicas cujos títulos têm a função de
deslocar, ao invés de localizar o leitor no tema. Para o leitor de jornal da época, a trinca é um
termo usado em jogos de cartas, e Lenine é o líder a revolução russa de 1917. No primeiro
caso, amplia-se o sentido do termo para incluir, além do significado relacionado ao baralho –
um jogo bastante adulto, que geralmente envolve apostas em dinheiro –, o sentido de
brincadeira de rua, além de caracterizar os grupos diferentes de moleques de bairro, a
chamada “trinca de rua”: “a trinca do Curvelo, por oposição à trinca do Cassiano. Se
atendesse à nomenclatura atual, teria que dizer a trinca de Hermenegildo de Barros, o que soa
tão engraçado como antítese, aproximando a mais alta magistratura togada desse mundozinho
irresponsável dos piores malandros da terra...”. Logo de início, o leitor tem a consciência de
que esta infância é, na verdade, um contraponto permanente com o mundo adulto, através do
qual o cronista recusa este último, preferindo sempre o mundo infantil, com sua
irresponsabilidade sem maiores conseqüências, apesar da inserção precoce dessas crianças no
mercado de trabalho: “para muitos a luta começa como uma extensão da pagodeira da trinca”.
Uma das vias deste contraponto é, naturalmente, a política, assunto
considerado essencialmente adulto, e a que Bandeira reserva, em suas crônicas, um tratamento
irônico. Em “Lenine”, o cronista trabalha com mais vagar as expectativas do leitor a esses
respeito, descrevendo, em primeiro lugar, as impressões sonora e visual causadas pelo nome
do personagem: “O nome por si só vivia uma vida intensa. Dir-se-ia criação verbal de um
grande poeta, um desses grandes artistas que guardam toda a força mesmo nos gestos de
maior carinho – um Bach na música, um Villon na poesia. A pujante virilidade lhe vinha
daquela líquida inicial, rica de associações com o felino formidável: Le... Leo, Leonis. E toda
essa força se abrandava de súbito na doce dental nasal e com o ‘i’ claro, infantil e corajoso!”.
40
Itinerário de Pasárgada, em Poesia Completa e Prosa, p.60.
45
A exploração poética do nome de Lenine, repleta de referências, demonstra que
não se trata exatamente da figura histórica e política de Lênin, e prepara a quebra de
expectativas. Em primeiro lugar, Bandeira recorda o surgimento do nome no imaginário
coletivo, aproximando-se por um momento da linguagem jornalística: “Lembram-se de como
essas três sílabas começaram a aparecer no serviço telegráfico da guerra? No atordoamento
das derrotas russas o nome se insinuava misteriosamente como de um habilíssimo espião a
soldo de agentes alemães e servindo contra a própria pátria.”
À medida que o contorno da personagem se delineia, desarmam-se as
expectativas: curiosamente, ao pensarmos em um texto escrito originalmente para jornal, não
é o líder comunista russo que importa, mas o garoto Lenine, por quem Bandeira parece nutrir
um carinho especial, talvez por se tratar do menor da turma, merecendo por isso pouco
respeito dos companheiros, que o infernizam chamando-o de “tatuí da areia” – um apelido
que, ao contrário dos cognomes que o cronista atribui aos outros meninos, rebaixa Lenine ao
invés de valorizá-lo. Quando as expectativas do leitor são desarmadas, temos como resultado
o tratamento irônico da personagem histórica e política que cede lugar ao menino morador do
morro de Santa Teresa e constantemente caçoado pelos colegas.
Apesar da revelação de que o tema da crônica seria o menino e não o político
russo, percebe-se que o cronista mantém ambos em mente ao escrever, a ponto de, em certos
momentos, o leitor dificilmente distinguir qual dos dois seria o assunto do trecho: “Depois do
nome veio a imagem visual física. Essa também me cativou enormemente, sobretudo os olhos
pequeninos, com a sua expressão arguta, maliciosa, cautelosa”. Compare-se essa imagem com
a descrição de Lênin que chegava freqüentemente pelos jornais: “A única característica física
de Lênin que as pessoas achavam notável eram seus pequenos olhos castanho-claros, que elas
descreviam como penetrantes, rápidos e brilhantes”
41
. Mas a comparação mais marcante entre
o líder comunista e o menino do Curvelo é feita em relação a certas atitudes deste, nas quais o
cronista tenta enxergar o compromisso ideológico daquele:
“Primeiro que tudo conta com um Lenine autêntico. Uma tarde a polícia deu
uma batida na residência do comunista Otávio Brandão, pondo em verdadeiro
pé de guerra o minúsculo e pacato bairro do Curvelo. No entanto estava ela
então, como ainda está hoje, longe de suspeitar da existência desse Lenine,
cujo sonho mais caro é o comunismo integral. Tem sete anos apenas, mas já me
considera um infame pequeno-burguês.” (“A trinca do Curvelo”)
41
Edmund Wilson. Rumo à Estação Finlândia, p.422.
46
“Quando, porém, chegou ao hora de maiores intimidades intelectuais, Lenine
se me mostrou já imbuído do que há de mais odioso no espírito pequeno-
burguês: a preocupação do ganho, a cobiça dos bens materiais, o gozo e a
delícia da propriedade.” (“Lenine”)
Ironicamente, o retrato composto de Lenine mostra um personagem que sonha
com o “comunismo integral”, ao mesmo tempo em que mostra-se um “pequeno-burguês”: na
verdade, as duas analogias são feitas pelo cronista sob o mesmo pretexto de contar que o
garoto, ao vê-lo junto à janela do apartamento, pedia para si os objetos que encontrava na sua
sala e que, quando o poeta negava o que ele queria, atacava a porta do seu apartamento. Ao
colocar no mesmo nível o espírito do capitalismo e o egoísmo infantil, Bandeira não é irônico
apenas em relação ao homônimo de seu personagem, como também a todo o antagonismo
político que caracterizou sua época e ao qual permaneceu relativamente alheio. Assim,
quando a terminologia política é deslocada para as brincadeiras infantis, o que acontece com
freqüência nessas crônicas, seu uso carrega quase sempre a intenção de ironizar e rebaixar a
gravidade com que certos termos são tratados no contexto jornalístico. É o que acontece nos
momentos em que o poeta provoca o menino:
“– Lenine você é um malfeitor. O que você está fazendo não passa de uma
vesânia. É pura e simplesmente o rompimento unilateral de um contrato
sinalagmático! Toque de mal.
Lenine estende o dedo mindinho, toca de mal e vai agitar a Polônia, que é o
cortiço da travessa do Cassiano.” (“Lenine”)
“(...) só ali, naquele trecho de rua, se praticava a verdadeira democracia, com
absoluta liberdade de espatifar as vidraças nas vicissitudes do foot-ball de
calçada...” (“A antiga trinca do Curvelo”)
O “contrato sinalagmático” rompido com um “toque de mal”, a “democracia”
de poder quebrar as vidraças das janelas do apartamento de Bandeira se transformam,
simplesmente, em brincadeiras. Ao mesmo tempo, elas sinalizam que, por maior que seja o
encanto de Bandeira pelas crianças, ele nunca pode deixar de observá-las com olhos de
adulto. É nessa perspectiva, por exemplo, que Bandeira observa, em “Zeppelin em Santa
Teresa”, o menino que fica de guarda para avisar os moradores da aproximação dos fiscais da
prefeitura, com o objetivo de dar tempo às lavadeiras de tirar a roupa estendida nos paredões
do morro: “A província a dez minutos da Avenida Rio Branco. Não é delicioso? E só houve
intervenção federal uma vez, quando os comunistas quiseram reunir-se na casa do intendente
47
Otávio Brandão para escolher os seus candidatos à sucessão presidencial e às cadeiras do
parlamento. Sempre a política estragando o Brasil.” (“Zeppelin em Santa Teresa”, grifo meu)
A infância parece encarada por Bandeira como um período de inocência,
anterior à consciência moral, em que a criança pode ainda estar alheia à política e à lei. É
possível comparar a infância dos meninos a um estado “provinciano” do Brasil, a que o
cronista refere-se constantemente, como no trecho reproduzido acima, em que a lei e as
relações humanas se realizam ainda de forma ingênua e autêntica. Assim, Lenine representa a
própria vida do Curvelo, inocente no sentido de apolítica, que se identifica com essa vida de
província tão apreciada por Bandeira e “estragada” pela política.
A ingenuidade infantil encarnada em Lenine, que não tem consciência do que o
seu nome pode representar, é comparada assim à ingenuidade do ambiente provinciano do
morro. Toda esta vida fervilha sob a janela do apartamento do poeta, e a agitação das crianças
não permite que ela corra de forma separada da vida de Bandeira, invadindo-a através das
vidraças quebradas pela bola de futebol. Lenine, mais presente, ameaça destruir a porta do
apartamento: “A porta esquematiza duas possibilidades fortes, que classificam claramente
dois tipos de devaneios. Às vezes, ei-la bem fechada, aferrolhada, com cadeado. Às vezes, ei-
la aberta, ou seja, escancarada”
42
. Nas crônicas de Bandeira, Lenine é quem torna definitiva
essa “abertura para o mundo”:
“Uma tarde entrou-me quarto adentro um canarinho da terra. Devia ter fugido
de alguma gaiola porque se deixou prender com facilidade. Passarinho de
gaiola não sabe viver solto na cidade. Morre de fome ou de pancada. De
ordinário acaba caindo contente em algum alçapão. Meu vizinho do andar de
baixo tem sempre o alçapão armado para esses fugitivos. O canarinho, porém,
preferiu o alçapão maior do meu quarto, onde nunca cairá o passarinho verde
dos meus sonhos.” (“Lenine”, grifo meu)
Convocada a molecada da rua para arranjar uma gaiola, é Lenine quem a traz,
entrando logo em negociações para vendê-la. Novamente contrariado, agora com o preço que
Bandeira lhe paga, Lenine volta a atacar as suas vidraças. Talvez seja possível fazer, aqui,
uma analogia do menino com o canarinho, uma vez que ambos invadem, inesperadamente, o
quarto do poeta, o qual, mesmo surpreso, se apega afetivamente a eles, distraindo-o por
alguns momentos de seu cotidiano solitário. O garoto Lenine, entretanto, já aparecera em “A
trinca do Curvelo”, como o primeiro dos “exemplares interessantes” que Bandeira apresenta
48
ao longo desta crônica, e que, apesar do destaque posterior, não é o único a ser associado a
uma figura histórica: há um Ivan, o Terrível, um Castro Forte, e um ruivinho cuja avó é negra,
“colonial como a Marquesa de Santos e o Convento de Santo Antônio”. Lenine e Ivan, que
parecem ser os menores da turma e, consequentemente, os que levam desvantagem nos
brincadeiras e brigas infantis, são justamente aqueles que a crônica de Bandeira privilegia,
valorizando os seus nomes pelas referências históricas e, no caso de Lenine, transformando-o
em um personagem de ficção.
O carinho especial que Bandeira demonstra por Lenine, principalmente por ter-
lhe dedicado uma crônica inteira, estende-se ao longo de toda a série e à correspondência do
poeta, em que o menciona constantemente. Falando de sua produção de jornal, que começava
a tornar-se contumaz, Bandeira escreve a Mário de Andrade, em 29 de julho de 1931: “Ainda
estimulado por ele [Pedro Ferraz] escrevi a segunda crônica, sobre um garotinho da rua do
Curvelo chamado Lenine. Ele acha uma graça enorme na gurizada do Curvelo, que não larga
a minha janela, seu Manuel Bandeira praqui, seu Manuel Bandeira pra lá, pedindo papel de
jornal, fieira de pião, escada pra tirar bola do telhado, etc.”
43
. Mesmo anos mais tarde, ao
mudar-se do Curvelo para a Lapa, na rua Morais e Vale, Bandeira mantém o vínculo com os
meninos. Ernâni prestou serviços ao poeta durante alguns anos, encerando o chão do seu
apartamento. Logo depois de sair de Santa Teresa, escreveu novamente ao amigo paulista:
“Continuo me dando bem no arranha-céuzinho da Lapa. Noto que aqui trabalho com mais
entrain, creio que devido ao sossego. No Curvelo as minhas obrigações de Governador
interrompiam a cada momento o fluxo da consciência (pra falar a linguagem do psicólogo
Radecki): não era possível deixar o terrível Ivan ou o antena Antenor sem rabo para o
papagaio ou a dona Tibéria sem telefone para se comunicar com a filha infeliz em
Madureira.”
44
.
Note-se a expressão “Governador do Curvelo”, título que Bandeira atribui a si
mesmo e que não apenas complementa a denominação de província, atribuída ao morro, como
centraliza a vida da ruazinha em torno do cronista, que acompanha toda a agitação do entorno
de sua posição fixa, junto à janela do quarto. É nessa mesma posição que, nos anos seguintes,
o poeta observaria o beco de seu apartamento na rua Morais e Vale, o pátio do primeiro
apartamento da Avenida Beira-Mar, que aparece no filme O Poeta do Castelo, e o aeroporto
42
Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, pp.500-501.
43
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, pp.512-513.
44
Idem, p.559. Carta de 7 de junho de 1933.
49
de seu segundo apartamento no mesmo edifício. As sucessivas mudanças ao longo dos anos,
que acompanhamos nas crônicas e nos poemas que Bandeira publicava, mostram que a
passagem do tempo identificava, aos poucos, a vida adulta e a velhice, e portanto o
afastamento da infância, com o isolamento. O poeta empobrecido e só encontraria, na rua do
Curvelo, um reino praticamente apolítico que governaria nos anos anteriores ao seu
isolamento definitivo.
Em “Lenine”, Bandeira narra pequenos episódios da presença do menino no
seu cotidiano, quando exige para si os objetos que vê em sua mesa de trabalho, ou quando
tenta vender uma gaiola velha ao poeta e, quando não consegue o que deseja, “atacando” a
sua porta ou as vidraças da sua janela. Tanto nesta crônica quanto em “A trinca do Curvelo”,
as atitudes do menino, “esquivo, irascível, exigente”, parecem típicas de uma criança da sua
idade, mas em “A antiga trinca do Curvelo” percebe-se que a tolerância de Bandeira esconde
uma certa compaixão que só se revela quando os reencontra já adultos e fica sabendo da
doença de que sofria o garoto: “A única tristeza é a loucura de Lenine (já no tempo do
Curvelo sofria de ataques epiléticos)”.
“A antiga trinca do Curvelo” foi escrita quinze anos mais tarde, quando
Bandeira já morava no Castelo, depois de ter passado por endereços na Lapa e no Flamengo.
O cronista encontra-se com Álvaro, um dos meninos de Santa Teresa, e este lhe dá notícias
dos antigos companheiros. Percebe-se que o grande prazer de Bandeira ao ouvi-las é
confirmar o prognóstico otimista que fizera anos antes e constatar que todos eram agora
trabalhadores: “ ‘Os piores malandros da terra’, disse: ‘o microcosmo da política. Salvo o
homicídio com premeditação, são capazes de tudo. Mentir é com eles. Contar vantagens, nem
se fala. Valentes até à hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando homens vão todos
dar em assassinos, jogadores, passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando
pela vida, só com saudade do tempo em que foram verdadeiramente felizes...’ (...) Nenhum se
perdeu. Nenhum tem nota de culpa na polícia”.
As exceções são Ernâni, irmão de Álvaro, que anos antes morrera de
tuberculose, e Lenine, que enlouquecera. Mas antes de Bandeira destacar Ernâni, narrando a
última visita que lhe fizera, dias antes de morrer, e da alusão, mesmo passageira, ao
sofrimento de Lenine, em “A trinca do Curvelo” Bandeira já demonstrara uma certa ternura
pela imagem da criança doente. O único trecho em destaque nesta primeira crônica é o último
50
parágrafo, que conta a história de Panaco, ou Olavo, também irmão de Álvaro, que morrera de
sarampo:
“Criado nu na rua. Uma saúde de ferro e já andava. Era a borboleta do Curvelo.
Sarampo bateu nele. A mãe estava no emprego. Os irmãos entenderam de lavar
o quarto. Panaco apanhou um resfriado, e lá se foi para a trinca dos anjinhos de
nosso Senhor!”.
O parágrafo, que conclui a primeira crônica de Bandeira sobre os meninos,
assemelha-se, mesmo escrito em prosa, ao “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de
Libertinagem: a seqüência de frases curtas, mimetizando a velocidade da tragédia cotidiana, é
concluída por um verso longo, bárbaro, um dos célebres “versos espetados” da poética
bandeiriana, na expressão de Mário de Andrade
45
. Como no poema de Libertinagem, o último
verso conclui a tragédia banal de forma a redimir o personagem do desamparo e da crueldade
do meio urbano que o condena. Mas, se o personagem João Gostoso apenas se redime
morrendo afogado, Panaco “foi para a trinca dos anjinhos de nosso Senhor”, pois a sua
inocência infantil garante, após a morte, seu lugar junto ao amparo divino. Muito semelhante
é a descrição, em “A antiga trinca do Curvelo”, da agonia de Ernâni: “Mas Ernâni entisicou e
morreu. Quando estava nas últimas, mandou-me um recado, pedindo que o fosse ver. Fui.
Ernâni sofria sem nenhum sentimentalismo. Em certo momento a irmãzinha, um anjo louro,
não soube acudir-lhe a tempo com a escarradeira. – Dá um bofetão nessa burra! gritou o quase
moribundo para o irmão Álvaro. Dois dias depois morreu”.
A imagem da criança que adoece e morre aos cuidados dos irmãos, também
crianças, expressa uma situação de grande desamparo, além de recordar a Bandeira o fato de
que sua irmã mais nova, Maria Cândida, lhe servira de enfermeira desde 1904, quando
adoeceu, até 1918, ano da morte dela. De outro lado, as crônicas descrevem uma infância sem
recursos, que se interrompe justamente por causa dessa escassez, em meio a uma precariedade
em que resta apenas lavar o quarto ou acudir com a escarradeira. Não são, naturalmente, as
mesmas condições sob as quais o poeta adoeceu de tuberculose, aos dezoito anos de idade, e
pôde interromper os estudos e viajar pelo interior do país, e em seguida para um sanatório
suíço: pelo contrário, as condições das crianças no morro recordam-lhe a pobreza e a solidão
de sua maturidade.
45
Mário de Andrade. “Poesia em 1930”, em Aspectos da literatura brasileira, p.29.
51
Principalmente nessa terceira crônica, o mundo do trabalho infantil aparece
através dos “servicinhos” prestados pelos meninos a Bandeira, que por exemplo pagava a
Ernâni para encerar o chão do seu apartamento. A pobreza aparece de forma discreta, quase
velada, como no fato da descrição do cotidiano de crianças em diversas faixas etárias não
conter nenhuma alusão à sua vida escolar. Quando reencontra os meninos já adultos, embora
não marginalizados, Bandeira enumera as suas atividades, todas trabalhos manuais, com
gráfico e alfaiate.
Finalmente, note-se que a palavra “anjo” repete-se nos dois trechos sobre
Panaco e Ernâni, e também no final da crônica sobre Lenine: o desamparo material é
compensado por Bandeira com o suposto amparo divino, e a idéia, muito cara ao catolicismo,
de que a inocência e a pureza se preservariam com a morte precoce; à “garotada sem lei nem
rei”, enfim resta, como último recurso, a “fé”. Em trechos curtos e descrições breves, que por
isso mesmo se destacam, a imagem da criança doente, de apelo pessoal tão forte para
Bandeira, contrasta com o quadro habitual da infância alegre e despreocupada, que passa o dia
com jogos, brincadeiras ou pequenos trabalhos encarados como brincadeira. Mesmo com a
sombra da morte que às vezes passa pelo morro, a imagem da rua do Curvelo que permanece
é de agitação e mesmo de euforia, interferindo no cotidiano do cronista que datilografa suas
crônicas enquanto observa, pela janela, os meninos cuja história registra.
Na série que Bandeira escreve sobre a “trinca” do Curvelo, o que vemos são
retratos de uma infância que invade o mundo dos adultos, sendo que estes se mostram
receptivos a ela. Essa “invasão” traz, em primeiro lugar, uma inversão da relação
convencional entre idade e espaço, do conceito de que a criança limita-se ao espaço doméstico
e explora aos poucos o exterior até ser capaz de dominar a rua, já pronto para a vida adulta.
Aqui, o fechamento do espaço, quando Bandeira observa os meninos de seu apartamento,
parece mais relacionado à responsabilidade do mundo adulto, enquanto a rua é própria da
liberdade infantil, que o invade primeiro sonoramente, através de barulho e gritos, e depois
fisicamente, através da bola que quebra as vidraças e, por fim, com a entrada dos próprios
meninos na casa, como faz Lenine ao riscar, chutar e apedrejar a porta do quarto.
Observe-se também que Bandeira é o cronista já adulto, falando de uma
infância passada no momento presente, debaixo de suas janelas. Nota-se, aqui, uma condição
fundamental para a compreensão das crônicas de memórias: Bandeira começa a se recordar de
sua própria infância a partir de uma relação com o outro, a exemplo de sua amizade com os
52
garotos, ou ao revisitar espaços que conheceu ainda menino, ou ainda ao reencontrar seus
antigos professores do Colégio D. Pedro II, chamado Ginásio Nacional a seu tempo. O
sentimento saudosista em relação à infância é favorecido por um discurso que desmerece o
mundo adulto, destoando do tom jornalístico de seu contexto de publicação original. Ao
mesmo tempo, a infância parece acuada, espremida espacialmente: os meninos do Curvelo
brincam em um morro em meio à maior cidade do país de sua época – morro que Bandeira,
em “Zeppelin em Santa Teresa”, chama de “minha provinciazinha do Curvelo”. Limitada no
espaço, a infância que surge nessas crônicas lembra o seu limite no tempo: a doença e a
morte, a obrigação do trabalho, o conhecimento do certo e do errado, longe de serem sombras
passageiras em um período de perfeição, são os sinais que prenunciam o seu fim e de que tem
consciência apenas aquele que observa ou rememora.
***
Em sua última crônica publicada sobre os meninos do Curvelo, em Flauta de
Papel, Bandeira os relembra com carinho, apesar, segundo ele mesmo, dos aborrecimentos
com o barulho e com as vidraças quebradas, e narra um último episódio, à guisa de despedida:
“Raiva, raiva de verdade só me deram uma vez, em que saí de fraque para um
casamento. Não vos conto nada: a trinca suspendeu a partida de foot-ball e
começou a gritar: ‘Seu Manuel Bandeira de fraque! Seu Manuel Bandeira de
fraque!’. Também foi a última vez que vesti fraque na minha vida”.
O episódio, bem como a sua narrativa, não deixam de ser divertidos, por
relembrarem o espírito de brincadeira familiar a qualquer leitor. Apesar disso, a razão da raiva
do cronista não deixa de ser motivo de questionamento. Segundo outras crônicas do próprio
Bandeira, o fraque, tradicional traje formal, já era considerado, nos anos trinta, uma
vestimenta ultrapassada, mesmo em um casamento. Além disso, o poeta parecia ter aversão a
trajes formais em geral, como demonstra o capítulo de Itinerário de Pasárgada em que narra
o dia da sua posse na Academia Brasileira de Letras e declara que jamais voltaria a vestir o
“odioso fardão”
46
. De qualquer modo, o traje formal, meio antiquado, tem a propriedade de
“envelhecer” o indivíduo, aspecto que a molecada da rua, alheia ao seu significado, pontua in-
46
Poesia Completa e Prosa, p.88.
53
voluntariamente sob forma de brincadeira. A proximidade espacial da infância, enfim, não
apenas relembra Bandeira de sua própria infância, mas da passagem dos anos que o afasta
dela, complementado pelo movimento de saída da rua do Curvelo no trecho narrado, que
também o afasta dos meninos que lhe permitiram recuperar a alegria da infância vivida, antes
de se deixar tragar pela cidade que enfrentaria nos anos seguintes. Se a presença de crianças
ou do espírito pueril nos artistas modernos ajuda Bandeira a recuperar momentos de sua
infância, o cenário urbano, seja o carioca, seja o de outras cidades dão-lhe a sensação de
perdê-los junto com a paisagem, conforme ela se modifica. Se a experiência de “ilhamento”
vivida em Santa Teresa leva a um resgate da infância, ela prossegue, relatada nas crônicas,
como a vivência já madura da solidão.
Tanto em “A antiga trinca do Curvelo” quanto no seu livro de memórias,
Bandeira refere-se ao antigo endereço como “rua do Curvelo, hoje Dias de Barros”. As
mudanças nos nomes das ruas são apenas algumas das modificações relatadas em suas
crônicas, ora com revolta, ora com melancolia, e que dificilmente passam desapercebidas,
pois causam, de certa forma, modificações na forma em que o cronista percebe as próprias
lembranças. A demolição das casas em que Bandeira morou, por exemplo, toca
profundamente o poeta, pois não apenas o obrigam a mudar-se e evidenciam a sua solidão,
como o transformam em vítima direta da alteração do cenário urbano. Se esta condição é mais
fácil de ser aceita na metrópole, onde as reformas parecem fazer parte da paisagem, em
cidades do interior e capitais mais antigas do Nordeste que o cronista só revisitou em
intervalos de anos as modificações causam estranhamento no sujeito, com o argumento
agravante da deformação do patrimônio histórico nacional.
55
Capítulo II: Infância Distante
Bandeira definiu-se, em “Auto-retrato”, como “cronista de província”,
paradoxalmente para um escritor que passou a maior parte de sua vida na capital da
República. Geralmente as crônicas que tratam da vida cotidiana, principalmente urbana, do
cronista esperam um leitor que vivencie os mesmos problemas e o mesmo cotidiano. Se
analisarmos os jornais para que Manuel Bandeira colaborou ao longo de sua vida, entretanto,
percebemos imediatamente que tal observação é inválida: apesar da maioria deles ter se
localizado no Rio de Janeiro, o poeta ainda contribuiu para jornais de diversos estados, entre
eles São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco, escrevendo a distância para e sobre lugares que
conhecera havia muitos anos ou onde estivera apenas de passagem. Além disso, a definição
não contradiz o tom predominante em suas crônicas: mesmo nem sempre escrevendo sobre ou
para a província, o cronista a mantém sempre em mente, principalmente nas crônicas sobre a
cidade do Rio de Janeiro. A nostalgia da terra natal e a nostalgia da infância se mimetizam e
alternam na leitura das crônicas, de modo que parte substanciosa destes textos torna-se uma
reflexão sobre o afastamento da terra natal, além das observações sobre as mudanças que, a
distância, o cronista a vê sofrer.
Se vimos que Bandeira resgatava sua infância no Recife através da convivência
com os meninos do Curvelo e com a pintura de Cícero Dias, outras expressões artísticas,
como o romance regionalista, contribuíam para a mesma reflexão, no que destacaremos os
romances da cana-de-açúcar de José Lins do Rêgo. Da mesma forma, durante o início dos
anos trinta, Bandeira ainda escreveu crônicas e artigos para o jornal A Província do Recife, no
período em que este foi dirigido por Gilberto Freyre, em um período muito particular da
história da capital pernambucana; nesses textos, o ex-estudante de arquitetura viria a expressar
toda uma visão sobre a preservação e a restauração do patrimônio histórico dos estados do
Nordeste brasileiro, que não se limita ao Recife, estendendo-se a cidades que o cronista
56
conheceu apenas de passagem, e que analisaremos antes de nos aprofundar nas crônicas em
que, expressamente, Bandeira rememora sua infância na rua da União.
1. Crônicas da Província
Pode-se presumir que o interesse inicial, quando não o principal, de um leitor
de Manuel Bandeira que examina as suas crônicas seja a presença de alusões à movimentação
artística e literária de sua época: o surgimento de obras, autores e eventos que o poeta
conheceu de perto e que, por fazerem parte de seu cotidiano, suas crônicas relatam com
freqüência. Embora as crônicas que apresentam esse tema sejam numerosas e comentem obras
significativas, algumas fundamentais, como Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães
Rosa, outras caídas no esquecimento, decepciona-se o leitor que busca observações-chave
para a compreensão destas obras. Apesar de muito interessantes, estes textos limitam-se a
impressões de leitura, como cabe à natureza do gênero, e dizem talvez mais respeito à obra
em prosa do próprio Bandeira do que à fortuna crítica dos escritores lidos por ele.
Não se decepciona, entretanto, o leitor que procura o posicionamento de
Bandeira ante a maioria dos movimentos de vanguarda do período que cobrem as suas
crônicas. Nesse sentido, o poeta e cronista manteve, geralmente, uma posição bastante ativa,
de modo que se encontram, entre as suas crônicas, desde textos sobre movimentos
imediatamente posteriores à Semana de Arte Moderna, como o Antropofágico e o Pau-Brasil,
até debates acirrados em torno da Poesia Concreta. Por várias razões, as crônicas de Bandeira
tratam mais amiúde a poesia, sendo menos numerosas aquelas que abordam obras em prosa,
embora sejam igualmente interessantes.
Bandeira sempre afirmou não ter talento para a prosa. De fato, o poeta nunca
escreveu ficção a não ser sob a forma de crônica, e sua obra em prosa limita-se, desse modo,
às suas crônicas e seus textos críticos, além de seu livro de memórias. Em Itinerário de
Pasárgada, ele conta que suas crônicas ficcionais – que se resumem a poucas, como “Reis
Vagabundos” e “Golpe do Chapéu” – “deram a alguns amigos meus a impressão de que eu
poderia escrever contos e romances. Mas eu é que sei que não nasci com bossa para isso. Bem
que o tentei várias vezes. Um dia, em Campos do Jordão, há mais de vinte anos, Ribeiro
Couto, que me hospedava, teve de viajar para São Bento do Sapucaí, e eu fiquei sozinho na
casa da triste rua do Sapo, onde, para matar o tempo, comecei a escrever um conto de sabor
57
regionalista. Escrevi umas três páginas. Quando Ribeiro Couto voltou, mostrei-lhas, pedindo
opinião. O autor de Baianinha e outras mulheres tirou-me de golpe as ilusões, dizendo-me:
‘tudo isso podia ser dito em três ou quatro linhas’. Não escrevi as três ou quatro linhas. E
nunca mais me meti a tralhão na arte de José Lins do Rêgo e Marques Rebelo.”
Apesar de não ter sido exatamente um prosador, Bandeira foi um leitor tão
sensível à prosa quanto à poesia. Afinal, o poeta traduziu largamente tanto romance quanto
teatro, outro gênero no qual nunca foi autor. Entre as peças traduzidas por Bandeira incluem-
se Maria Stuart, de Friedrich Schiller, Macbeth de William Shakespeare e The Rainmaker de
Richard Nash; entre os romances, inclui-se A prisioneira, quinto volume de Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust. Desse modo, embora o número de crônicas em que
Bandeira trata de obras em prosa seja relativamente reduzido, nelas também é possível
conhecer um leitor fino das obras de sua época; e, como é possível perceber no trecho
autobiográfico acima, havia um interesse em particular pela literatura regionalista, o que
analisaremos a seguir.
Em função da questão da nacionalidade na literatura, que envolvia também a
poesia, Bandeira não ignorava a divisão estabelecida no romance brasileiro desde o
Romantismo, entre literatura regional e urbana; mas tampouco fazia muito caso dela. Suas
crônicas tratam com equilíbrio romances de ambas vertentes, mesmo porque, de acordo com a
sua crítica ao “Manifesto Pau-brasil”, o poeta não acreditava em uma expressão de arte
rigorosamente nacional, no sentido de exploração do que haveria de pitoresco e exótico na
cultura do país. A crítica, que se aplica tanto à poesia quanto à prosa e pode estender-se a
outros campos, como as artes plásticas e o estudo historiográfico, aparece de forma clara e até
mesmo bastante divertida na crônica “Impressões de um Cristão-Novo do Regionalismo”, de
Crônicas da Província do Brasil.
Trata-se de uma crônica com traços de ficção, em que se apresentam dois
personagens representantes de tipos: o Regionalista Aprendiz e o Ex-Regionalista, ambos
descritos de maneira naturalmente caricatural. O primeiro “vivia muito envergonhado de só
conhecer de livros o sabor regional da vida de engenho”. Bandeira descreve o Regionalista
Aprendiz como um indivíduo que ama profundamente a vida nos engenhos, embora com um
amor “sem experiência, muito desinfeliz, embora cheio de ternura”. Amor de certa forma
romântico, platônico, levado antes por uma motivação conceitual do que afetiva, e que
Bandeira ironiza sem rodeios. Complexado por não ter passado a inncia no interior do
58
Nordeste, o Regionalista Aprendiz lamenta o fato de ter estado numa casa de engenho apenas
uma vez na sua infância, “mas naquele tempo ainda não era regionalista”, tendo guardado
lembranças muito vagas na ocasião, como o vulto da bisavó de noventa anos.
“O Regionalista Aprendiz fazia muitas perguntas sobre os bangüês. Tinha
medo que se acabassem de todo. Queria sentir de verdade o famoso cheiro das tachadas que
respirado na infância, dizia Nabuco, embriagava para o resto da vida. Enfim, perguntava a si
mesmo se seria ainda possível embriagar-se agora”. Concluindo, o Regionalista Aprendiz
“ignorava tudo da alma profunda do Nordeste”. Tratava-se, portanto, de um amor ao Nordeste
baseado somente num conhecimento livresco, a começar pela leitura da Miscelânea do pai,
lida na infância: as recordações do Regionalista Aprendiz parecem, na verdade, anti-
recordações, pois sua marca está naquilo que ele não conheceu, no que não vivenciou, e
mesmo da cozinha nordestina, que ele afirma conhecer e apreciar sinceramente, conta-se que
ficou privado ainda na infância. Essa infância que o Regionalista Aprendiz não vivera e à qual
aspirava lembra, em vários pontos, a de José Lins do Rêgo, provável inspiração de Bandeira
para a crônica. Desse modo, seu personagem precisa lutar com a nostalgia da infância não
vivida, além de enfrentar a descrença do Ex-Regionalista, personagem que lhe faz
contraponto.
Concebido como antítese do Regionalista Aprendiz, o segundo personagem da
crônica é “um sujeito enfastiado que todas as manhãs, em frente a uma mesa repleta de
cuscuz, tapioca molhada e outras gostosuras, bebia um copo de leite condensado de Horlick, a
que misturava um pó esquisito feito com ovo, malte e cacau, tudo coisa de fábrica”
1
. Por
razões não mencionadas, o personagem despreza os ícones da cultura à qual se dedicara com
afinco, ao escrever livros “sobre cozinha pernambucana, sobre os negociantes dos fidalgos
vianeses que vieram com Duarte Coelho, sobre os negociantes portugueses que comiam nas
calçadas da rua nova em porcelana azul de Macau”. O agora Ex-Regionalista menospreza,
igualmente, o interesse e o amor do Regionalista Aprendiz pela cultura regional e sua
tentativa de aproximar-se dela.
Em primeiro lugar, o tratamento dos dois personagens não caracteriza a
condição de regionalista como intrínseca a nenhum deles; os qualificativos “ex” e “aprendiz”
indicam-na como temporária e, mais importante, adquirida. Da mesma forma, a expressão do
1
Neste trecho, Bandeira refere-se ao leite condensado e ao ovomaltine, produtos suíços criados no início do
século XX e que, como uma série de outros, começaram a ser importados pelo Brasil depois da I Guerra
Mundial.
59
título “Cristão-Novo do Regionalismo” evoca uma situação à qual o personagem teria sido
convertido, de certa maneira à força e por pressões externas, a considerar o significado
histórico do termo e sua importância no período colonial brasileiro: um indivíduo convertido
independente de sua vontade à fé dominante, mesmo que isto contradissesse suas origens e
crença verdadeiras, e que, mesmo a salvo da pena de morte, permaneceria estigmatizado. O
movimento regionalista compara-se aqui, embora de forma bastante sutil, ao domínio fé
católica.
Em função do conflito entre os dois personagens, o Regionalista Aprendiz faz
uma viagem a Vitória, no interior de Pernambuco, para conhecer um bangüê. Enquanto o Ex-
Regionalista espera que o outro se decepcione, o cronista narra os detalhes das dificuldades da
viagem, como o automóvel atolado na lama da estrada, e de seus prazeres, como a
hospitalidade, o clima e a arquitetura, todos seguindo o roteiro esperado. O Regionalista
Aprendiz, como se diria, não “dá o braço a torcer”, insistindo que a viagem seja perfeita, para
frustração de seu opositor, e mesmo omitindo um detalhe de suas impressões: “Não contou
para o outro a sua impressão do famoso cheiro que embriaga para a vida quando respirado na
infância. Pareceu-lhe que pode ser sentido numa simples xícara de mel de engenho e dispensa
a infância”. Aqui, o cronista faz uma segunda referência a Joaquim Nabuco, remetendo mais
exatamente ao seguinte trecho, que vale a pena transcrever:
“Há, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, pátrio; há
sentimento, tradição, culto de família, religião, no prato doméstico, na fruta ou
no vinho do país. A nós, do norte do Brasil, criados em engenhos de cana, o
aroma que recende das grandes caldeiras nos embriaga toda a vida com a
atmosfera da infância. E assim como há poesia na cozinha de cada país, há um
quid de arte na cozinha ornamental, cozinha de refinamento, que se procura
elevar pelo desenho e pela forma até o motivo do banquete – e fazer história,
fazer política...”
2
A citação de Nabuco, político pernambucano e filho de senhor de engenho que
se tornou um dos líderes do abolicionismo, indica a maneira bastante precisa a origem das
referências que organizam o que Bandeira chama de regionalismo e que são antes históricas
do que literárias, embora o cronista não dispense esta última, como demonstra sua última
observação: “O que não dispensa é o dom da poesia, como existiu em Nabuco”. Naturalmente
para Bandeira, o aroma sentido numa simples xícara de mel de engenho jamais dispensaria a
2
Joaquim Nabuco. Minha Formação, p.82 (grifo meu).
60
infância. A frase final conclui a o nota irônica em relação aos dois personagens,
amalgamando-os na mesma atitude, que constitui a principal crítica de Bandeira em relação à
literatura que se queria “tipicamente nacional” e à exploração do que era considerado
brasileiro: o estranhamento em relação à própria cultura, aos costumes e à cozinha nacionais,
tratando-as como se fossem exóticas para os próprios nativos, e priorizando-as na literatura e
nas artes como se a experiência livresca substituísse a vivência propriamente dita. O que falta,
enfim, é o “dom da poesia”, a capacidade de reelaborar esteticamente tais vivências, que por
si mesmas não constituem literatura.
Vale também lembrar que os textos de Crônicas da Província do Brasil foram
escritos ao longo dos anos trinta, período marcado, no romance brasileiro, pelo regionalismo e
pelo neonaturalismo, o chamado “romance de 30”, que inclui Graciliano Ramos e Rachel de
Queiroz entre seus principais representantes. Da mesma época data-se o “conto de sabor
regionalista” de Bandeira, sua única tentativa registrada de escrever prosa de ficção, e que
talvez também tenha resultado de uma exigência da época de uma literatura, principalmente
ficção, que retratasse as condições e os problemas sociais do povo brasileiro, notadamente das
regiões Norte e Nordeste do país. A caricatura do Regionalista Aprendiz e do Ex-
Regionalista, que afinal nunca alcançam ser bem regionalistas, chega a ser provocativa em
relação a uma das pedras de toque os intelectuais de sua época, embora sua paródia não se
dirija à literatura regionalista propriamente dita, mas sim à atitude intelectual que coloca o
critério sociológico acima do estético nas formas de expressão artística. Note-se, para tanto, a
conclusão tirada pelo Regionalista Aprendiz em relação à expressão de Nabuco: “pode ser
sentido numa simples xícara de mel de engenho e dispensa a infância”. Com o perdão da
citação repetida, que apenas se justifica numa sentença complexa, que encerra muitos
sentidos, vemos que além do indispensável dom da poesia, presente em Nabuco, Bandeira
inclui outro aspecto na literatura regionalista que a legitima como forma de expressão artística
– a vivência da infância, recuperada através da reminiscência.
61
Menino de Engenho
Mencionou-se o romance de José Lins do Rêgo, marcado pela memória da
infância desde sua primeira publicação, Menino de Engenho. Tanto a sua obra quanto as
memórias de Joaquim Nabuco, Minha Formação, foram consideradas possíveis referências
para a leitura da crônica “Impressões de um Cristão-Novo do Regionalismo”, para o que
considerou-se a admiração de Manuel Bandeira tanto pelo político conterrâneo quando pelo
romancista paraibano. Sua admiração pela obra de Lins do Rêgo, em particular, não se
demonstra somente no comentário breve em Itinerário de Pasárgada, acima transcrito, mas
também em uma série de crônicas sobre sua vida e obra: são quatro ao todo, entre as
publicada em seus livros, três em Flauta de Papel e uma em Andorinha Andorinha, datadas
entre 1956 e 1958, sendo, portanto, todas póstumas, com exceção da primeira, que resenha o
seu recém-publicado livro de memórias, Meus Verdes Anos. Lins do Rêgo é, desta forma, um
dos escritores mais recorrentes das crônicas de Bandeira, ao lado de João Guimarães Rosa.
A primeira crônica de Bandeira a seu respeito, no entanto, não se encontra em
nenhum de seus livros de prosa, mas sim no volume de Fortuna Crítica que reúne textos
sobre o escritor: “Ciclo da cana-de-açúcar”, publicado em 1936, logo depois do romance
Usina, que fecha o ciclo de romances da cana-de-açúcar. Sabemos que se trata de sua primeira
crônica sobre o romancista através do próprio Bandeira: “Até hoje eu não tinha escrito uma
linha sobre José Lins do Rêgo, senão para lhe dar o meu voto no concurso do príncipe dos
prosadores brasileiros”. Na primeira linha que escreve a seu respeito, portanto, o cronista trata
de alçá-lo ao posto de um dos maiores prosadores brasileiros, que a seguir caracteriza menos
pela qualidade de sua escrita do que pela sua ligação com a terra natal, que faz de sua obra “o
primeiro exemplo de pura prosa brasileira, cheirando a canavial e melaço da terra do
Nordeste, prosa de uma naturalidade, de uma espontaneidade, de uma força que fazem
esquecer tudo o que carregam de imperfeições, de desmazelo, de incúria estilística”.
Ao mesmo tempo, entretanto, Bandeira vê nesta mesma falta de cuidado
estilístico a riqueza de sua prosa, “porque o estilo de José Lins do Rêgo é um estilo de cheia
de rio, – barrento, libidinoso, arrastando tudo o que encontra na cabeça de água: troços de
mocambo, porteiras de engenho, árvores derrubadas, gado afogado, o diabo”. Mais do que
admirar a sua obra apesar do descuido na linguagem, pelo menos aparente, uma das
características por que ficou célebre, Bandeira o compreender como integrante dela, e, longe
de apenas elogiar a sua autenticidade, seja ela programática ou não, ele explora, em sua
62
crônica, a tensão entre forma e conteúdo através da metáfora da cheia de rio, imagem cara à
própria poesia bandeiriana. A heterogeneidade dos elementos mimetiza o estilo da prosa
irregular de Lins do Rêgo, muito embora a enumeração evoque apenas destroços de engenho,
elementos herdados de um passado em comum, seja do cronista ou do romancista, e que
sobrevivem apenas na corrente da memória.
O fato de que uma das crônicas de Manuel Bandeira sobre Lins do Rêgo, ao ter
“escapado” de suas coletâneas em prosa, pôde ser resgatado em um volume de crítica literária
demonstra o caráter heterogêneo destes textos, que a rigor não se enquadram nem em um,
nem em outro gênero. Se de um lado encontram-se neles observações pontuais e importantes a
respeito da obra do romancista, de outro lado não há, nas crônicas sobre literatura em geral,
uma separação rigorosa entre autor e obra, ou, melhor dizendo, entre a experiência da leitura e
a relação pessoal de amizade entre o cronista e o autor em questão. No caso de José Lins do
Rêgo, trata-se de uma amizade bastante estreita, seja pela origem geográfica próxima – Lins
do Rêgo nascera no Sul da Paraíba, que, no dizer de Gilberto Freyre, “é quase Pernambuco”
3
–, seja pela amizade comum de Gilberto Freyre. Na crônica “Ciclo da cana-de-açúcar”, da
mesma forma que escreve sobre as primeiras obras do romancista, cujo ciclo encerrava-se
com Usina, Bandeira descreve a sua primeira impressão sobre o autor: “Já tinha mais de vinte
e cinco anos quando apareceu pela primeira vez no Rio, falando feito cabra de engenho,
gaguejando muito, sempre com ar aperreado, e escrevendo esporadicamente umas notas
críticas meio bambas e meio erradas. Eu não tinha fé no matuto. Nunca que ninguém tivesse
fé, a não ser, talvez, o mestre do Karrapicho, o modesto sociólogo de Casa-grande e
Senzala.”
Na descrição comparecem, quase inevitavelmente, alguns dos elementos
essenciais de Carlos de Melo, o protagonista dos três primeiros romances do ciclo da cana-de-
açúcar e figurante dos outros dois: a passagem do rapaz crescido no engenho pela capital,
revelando sua inadequação ao meio urbano; o diletantismo, que no caso de José Lins do Rêgo
apenas antecede a revelação do seu talento; e a ligação permanente com a terra natal, seja
através das amizades ou de sua obra literária. Ela enfatiza não apenas o caráter autobiográfico
da obra de Lins do Rêgo, mas caracteriza a própria tessitura literária como mimese da
experiência. Oscilando entre o elogio ao estudo sociológico (“Que outros sujeitos de igual
tutano façam o ciclo do café, o ciclo da borracha, o ciclo do gado, o ciclo do coronel
3
“Prefácio” a Júlio Bello. Memórias de um senhor de engenho, p.X.
63
municipal, e com mais dois ou três teremos o vasto panorama da realidade brasileira.”), e à
memória da infância (“Tudo isso com ar de quem está fazendo apenas uma crônica de família,
de quem está somente desfiando lembranças da meninice”), a crônica acaba por sintetizar a
obra de Lins do Rêgo na fusão das duas vertentes, mas não deixando de enfatizar em primeiro
plano a vivência da infância:
“Falei em meninice. O menino José Lins do Rêgo é quem explica o milagre de
emoção que são estes cinco volumes. O homem foi quem escreveu a vida, a
paixão e a morte dos bangüês, mas quem sentiu tudo isso foi o menino de
engenho que fazia safadezas nas casas-grandes da Paraíba.”
Não chega a ser surpreendente a importância atribuída a Bandeira à memória
da infância na obra de Lins do Rêgo, seja pelo papel que ela reconhecidamente exerce em
seus romances, seja pelo significado da memória de infância na própria obra bandeiriana. De
fato, em suas crônicas sobre nenhum outro escritor Bandeira teve a oportunidade de equilibrar
melhor as impressões sobre autor e obra do que nos textos sobre Lins do Rêgo, mesmo
porque, dessa forma, elas mimetizam a própria obra de que tratam. Essa tensão não se desfaz,
naturalmente, na crônica a respeito da autobiografia Meus Verdes Anos, mas, ao contrário,
assume uma nova expressão, dado que o leitor reconhece com facilidade, no livro de
memórias, os pontos nodais do romance de estréia do escritor, atando de certa forma as duas
pontas de sua obra.
Aparentemente, Bandeira não voltou a escrever crônicas sobra o amigo nos
vinte anos que separam o romance Usina de sua posse na Academia Brasileira de Letras e de
Meus Verdes Anos, embora a série de crônicas iniciada em 1956 demonstre que os dois
escritores mantiveram um convívio próximo e contínuo. De qualquer forma, a crônica “Meus
Verdes Anos” localiza duplamente o livro, primeiro em um momento da literatura brasileira,
em que o gênero das memórias ganhava impulso, com a publicação de Minha Vida de
Menina, de Helena Morley e de História da Minha Infância de Gilberto Amado, sem contar o
próprio Itinerário de Pasárgada, publicado em 1954, que a crônica não menciona; e depois
no conjunto da obra de Lins do Rêgo, em função da óbvia ligação, muito além da semelhança
ou da evocação, da autobiografia com o romance Menino de Engenho. A Bandeira parece
agradar a ambigüidade do livro no tocante ao gênero, cuja questão dilui-se ao longo da
crônica: “Preciso reler Menino de Engenho. Todos nós sabíamos que o ‘ciclo da cana-de-
açúcar’ assenta na experiência do menino Dedé. Mas nos romances o escritor elaborava a sua
64
experiência. Aqui, em Verdes Anos, a experiência nos é servida ao natural. O autor, porém, é
tão visceralmente romancista, que as memórias lhe saíram organicamente romanceadas. Meus
Verdes Anos é um grande romance, tem a unidade de um grande romance”.
“Organicamente”, “visceralmente”: a qualidade que Bandeira destaca na obra
que José Lins do Rêgo é sua ligação física com a vivência da terra natal. O cronista não
parece preocupado em enquadrar a obra, que no início parece distanciar-se do romance, mas
ao final confunde-se com ele. Além da memória de infância, interfere na escrita a arte do
romancista que não deixa de elaborar a narrativa, da mesma forma que o homem saudoso da
infância e da terra natal intervinha na obra romanesca; e, finalmente, a memória distante da
leitura de Menino de Engenho influi na leitura de Bandeira, que enxerga na autobiografia um
romance que ombreia os demais. Bandeira, porém, não aprofunda a questão da elaboração
literária da experiência, um dos focos da crônica “Impressões de um Cristão-Novo do
Regionalismo”. Sua crônica concentra-se nas vivências infelizes da infância de José Lins do
Rêgo e no encanto de algumas passagens e personagens. O que importa ao cronista, afinal, é
saborear a experiência “servida ao natural” no livro de memórias, como o cheiro de uma
xícara de mel de engenho.
José Lins do Rêgo faleceu em 1957, um ano depois da publicação de suas
memórias e desta crônica de Manuel Bandeira, enquanto este fazia uma viagem à Europa,
durante a qual escreveu uma série de crônicas, verdadeira “crônica de viagens”, em que se
alternam textos com impressões das cidades que visitava e comentários de acontecimentos
recentes no Brasil. A crônica “José Lins do Rêgo”, escrita em Haia, na Holanda, também se
inclui entre os “necrológios” de Bandeira, crônicas em que procurava fazer uma síntese de
amigos recentemente falecidos: “A morte de José Lins do Rêgo em pleno apogeu da sua força
criativa nos empobrece dolorosamente. Ele era o romancista por excelência do nosso
Nordeste”.
Aqui, o leitor toma consciência da proximidade pessoal entre Bandeira e Lins
do Rêgo, graças à sua descrição do processo criativo do escritor: “Os seus romances
encantavam-me duplamente: quando eu os lia e antes, quando, na fase em que ele os estava
escrevendo, me ia narrando os sucessivos episódios. O romancista falava, então, não como se
me estivesse expondo a sua ficção, mas como se falasse de personagens reais de carne e osso.
Era uma delícia. E a obra sempre lhe saía da pena com aquele calor humano que fazia
esquecer certas falhas do escritor (...) que escrevia sem rasurar e só corrigia uma vez – quando
65
ditava o textos original para a datilógrafa”. Sendo este o parágrafo que ocupa metade do
“palmo de crônica”, esta descrição confunde definitivamente o escritor e homem na memória
do cronista: o contato com a obra em seu processo de criação não se distingue do contato
pessoal com o escritor, que trata suas personagens como pessoas da vida real, de forma a
ganharem vida na fala, e não apenas na escrita, de seu criador. Sem contar a generosidade do
homem – aspecto do caráter de Lins do Rêgo que Bandeira mais enfatiza – que, ainda durante
o processo de criação, compartilha os episódios de seus romances conforme os criava. Por
fim, a perda do artista e do amigo lamentam-se como uma coisa única.
Em dezembro de 1957, mesmo mês de retorno de Bandeira ao Brasil, uma série
de conferências celebrou a memória do escritor. “A celebração da pessoa e da obra de José
Lins do Rêgo num curso de conferências públicas alguns meses depois de sua morte não
significa nenhuma mudança de atitude do brasileiro diante de um nosso artista ilustre
desaparecido”, adverte Bandeira no início da crônica “Zé Lins”, ao noticiar as alterações que
atribui antes à gestão de Tiago de Mello no Departamento de História e Documentação do Rio
de Janeiro. A crônica comenta apenas em linhas gerais as conferências apresentadas,
assistidas ou não pelo cronista, mas nenhuma observação reporta à obra do romancista,
concentrando-se na figura de sua pessoa e tentando integrá-los apenas no último parágrafo,
sobre a conferência do usineiro e banqueiro Odilon Ribeiro Coutinho: “O avô de Zé Lins
morreu convencido de que o neto não dava para nada. ‘Não dar para nada’, na idéia do senhor
de engenho, era não saber administrar um engenho. O avô sabia. Mas de que valeu saber se
não podia trabalhar para a eternidade? Isto era o que o neto sabia e que como muito pouca
gente tem sabido no Brasil. Graças a ele os engenhos do avô viverão para sempre de fogos
acesos na memória dos homens”.
Com a morte do escritor, eterniza-se a sua obra, assim como os bangüês, que,
mortos na economia nordestina, são tocados adiantes pelo neto de senhor de engenho sob
forma literária, bem como de certa maneira pelo usineiro que, no ciclo de conferências, faz as
vezes de crítico literário. A herança recebida do avô, que é antes uma herança pela memória, é
administrada e perpetuada de forma inesperada pelo neto, caracterizando-o como um legítimo
“fazendeiro do ar”, utilizando a expressão drummondiana. Se um dos pontos de interesse das
crônicas de Bandeira sobre José Lins do Rêgo é perceber como tanto a crítica quanto o
público estabeleceram, desde as suas primeiras publicações, a origem de menino de engenho
como determinante em sua obra, não deixa de ser notável que, de uma série de conferências
66
póstumas, Bandeira destaque exatamente aquela proferida por alguém estranho ao círculo
literário e artístico da época, e que o cronista define como “usineiro e banqueiro”, embora
não, naturalmente, em função de quem a proferiu, mas pelo interesse em uma observação
particular, que estabelece a riqueza da obra de José Lins do Rêgo em seu conflito de herança,
um aspecto de sua obra que a crítica vem reiterando desde então.
Uma das riquezas da leitura das crônicas de Bandeira é justamente
compreender a recepção de uma obra, em particular a de José Lins do Rêgo, na época de seu
surgimento. Neste caso particular, tal recepção não parece ter sofrido grandes modificações:
Alfredo Bosi, por exemplo, reitera a afirmação de Bandeira: “A sua vida espiritual é um
assíduo retorno à paisagem do engenho Santa Rosa, ao avô, o mítico senhor de engenho
coronel Zé Paulino, às histórias noturnas contadas pelas escravas e amas de leite, às angústias
sexuais da puberdade, enfim ao mal-estar que o desfazer-se de todo um estilo de vida iria
gerar na consciência de um herdeiro inepto e sonhador. Não são memórias e observações de
um menino qualquer, mas de um menino de engenho, feito à imagem e semelhança de um
mundo que, prestes a se desagregar, conjura todas as forças de resistência emotiva e fecha-se
na autofruição de um tempo sem amanhã”
4
.
Bandeira, naturalmente, interessava-se pela literatura do Nordeste em geral e
pela obra de José Lins do Rêgo, por mais que a prosa dele se diferenciasse da sua, em
particular. Mas o que Bandeira busca, nos romances da cana-de-açúcar, mais do que a obra de
um grande artista, são os traços do menino de engenho, de uma infância centrada num
universo em desagregação, e que seus remanescentes, afastados dele no espaço e no tempo,
procuram reconstituir. Para aqueles que conheceram Lins do Rêgo pessoalmente e também o
seu mundo de origem, suas qualidades, tanto como escritor quanto como homem, não apenas
o absolvem de uma possível culpa pela decadência do engenho da família como a justificam.
De certa forma, as crônicas de Bandeira integram-se a todo um trabalho literário destinado a
manter a memória de um Nordeste que perdera a hegemonia econômica, e que encontraria um
de seus expoentes não na literatura, mas na sociologia.
4
Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, p.448.
67
O Mestre de Apipucos
Não é possível encontrar, entre as coletâneas em prosa, nenhuma crônica de
Manuel Bandeira a respeito, especificamente, de Gilberto Freyre. Sua presença, entretanto, é
constante principalmente nos textos sobre regionalismo e cultura nordestina, não apenas pelo
seu trabalho, mas também pela longa amizade que unia os dois. Basta lembrar que o
documentário O Poeta do Castelo, que retrata o cotidiano de Bandeira no seu apartamento no
Rio de Janeiro, foi produzido e distribuído em conjunto com O Mestre de Apipucos, que filma
Gilberto Freyre em sua casa no Recife. A expressão “Mestre de Apipucos” é utilizada com
freqüência por Bandeira para referir-se ao amigo, seguindo-se à expressão “Mestre do
Karrapicho” utilizada na crônica sobre José Lins do Rêgo em 1936; o cronista no entanto as
emprega para pontuar a referência ao sociólogo, diferindo-o do amigo, como neste parágrafo
da crônica “Vitalino”, de Flauta de Papel:
“Também a arte de Vitalino veio se complicando. Já não se limita aos simples
bichinhos de plástica tão ingenuamente pura. Atira-se a composições de
grupos, com meio metro de comprido e uns vinte centímetros de altura. Cenas
da terra: casamentos, confissões na igreja, o soldado pegando o ladrão de
galinhas ou o bêbado, a moenda, a casa de farinha, etc. Já vi Gilberto Freyre
esbravejar contra essa degeneração para o anedótico numa arte que encantava
tanto sem auxílio da anedota. Foi em casa de João Condé, que naturalmente
não ousou piar na frente do trovejante Mestre de Apipucos. Mas cá para nós,
ele bem que gosta do matuto trepado no pé de pau e atirando nas duas
onças...”
5
Aqui, o leitor tem contato direto com a face mais familiar do conservadorismo
de Gilberto Freyre, que defende a manutenção de uma forma considerada autêntica de uma
expressão de arte, mesmo que esta implique na representação da cultura local, mais
preocupado com a sua conservação do que com o deleite estético, ao contrário de seu
interlocutor, que entretanto não se atreve a “piar” – som discreto e musical – diante do
“trovejante” mestre, cujo título justifica a autoridade que inibe sua contestação.
Nas menções a Gilberto Freyre esparsas em suas crônicas publicadas em livro,
Bandeira não parece criticar tal aspecto conservador da obra do amigo, muito embora
tampouco o apoie. Em geral identificado como uma espécie de cidadão comum de poucas
opiniões formadas, o cronista evita tecer comentários à obra de Freyre, mesmo que algumas
5
Flauta de Papel, em Poesia e Prosa, vol. II, pp.332-333.
68
referências breves indiquem que ele a conhecia de perto. Como no caso de José Lins do Rêgo,
Bandeira prefere falar do amigo, em termos em geral muito semelhantes aos presentes na
crônica sobre Vitalino. De acordo ou não com as suas idéias, o fato é que Bandeira chegou a
trabalhar para o conterrâneo em algumas ocasiões, a começar por uma de suas primeiras
contribuições regulares para jornal: suas crônicas para o jornal A Província do Recife no
início da década de 30, período em que era dirigido por Freyre, algumas delas recolhidas em
Crônicas da Província do Brasil, cujo título justificou na seguinte nota:
“A maioria destes artigos de jornal foram escritos às pressas para ‘A Província’
do Recife, ‘Diário Nacional’ de São Paulo e ‘O Estado de Minas’ de Belo
Horizonte. Eram crônicas de um provinciano para a província. Aliás este
mesmo Rio de Janeiro de nós todos não guarda, até hoje, uma alma de
província? O Brasil todo ainda é uma província. Deus o conserve assim por
muitos anos!”
6
Os termos província, provinciano são bastante freqüentes nas crônicas de
Bandeira. Não por acaso, duas das crônicas em que menciona Gilberto Freyre intitulam-se
“Sou provinciano” e “Pernambucano, sim senhor”, ambas em Andorinha Andorinha,
demonstrando como o cronista compreendia seus significados como próximos, embora
naturalmente não tivesse a intenção de empregá-los por sua conotação pejorativa, como ele
mesmo esclarece: “É provinciano, mas provinciano do bom, aquele que está nos hábitos do
seu meio, que sente as realidades, as necessidades do seu meio”. A esta definição segue-se o
exemplo: “Conheço um sujeito de Pernambuco, cujo nome não escrevo porque é tabu e
cultiva grandes pudores esse provincianismo. Formou-se em sociologia na Universidade de
Colúmbia, viajou a Europa, parou em Oxford, vai dar breve um livrão sobre a formação da
vida social brasileira... Pois timbra em ser provinciano, pernambucano, do Recife”.
O uso ora descontraído, ora insistente do termo por Bandeira implica uma série
de significados. Por definição, província é a “divisão territorial e administrativa de muitos
países, sob autoridade de um delegado do poder central; partes do território de um país,
excluídas a capital e suas cercanias”. A palavra tem origem no latim provincia, utilizado
durante o Império Romano para se referir a um país vencido e reduzido à dependência do
Estado vencedor. Basicamente, portanto, a província define-se como um território sem
autonomia política, sendo neste sentido oposta à capital; embora não exatamente identificada
6
“Advertência”, em Crônicas da Província do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937.
69
com o campo, ela se liga aos mesmos conceitos de quietude e calma, atraso cultural e pouca
mobilidade social. Da mesma forma, o homem definido como provinciano é visto como
alguém apegado às suas raízes e a uma vida tranqüila, de hábitos simples e constantes.
Ao definir-se como cronista e mesmo como homem de província, embora
vivesse praticamente toda a sua vida na capital da República, Bandeira afasta-se desta, senão
geográfica, pelo menos sentimentalmente. Independente do meio em que de fato habitava, o
cronista define essa condição como intrínseca ao indivíduo, como um traço de caráter que o
distingue da agitação e da carência permanente de novidades que caracteriza a vida urbana no
século XX; a característica principal do provinciano e, em conseqüência, da província é,
portanto, a estabilidade, traço que Bandeira também busca na arquitetura urbana, embora sob
outros pretextos.
Algumas das crônicas recolhidas em Crônicas da Província do Brasil foram
escritas, como já dito, para o jornal A Província do Recife, no período em que o dirigiu
Gilberto Freyre. Nessa época – início dos anos trinta –, debatia-se publicamente a questão do
planejamento urbano na capital pernambucana. A discussão, como demonstra José Tavares
Correia de Lira
7
, passou das condições morais e salubres das habitações populares para a
questão da “casa brasileira”, de uma arquitetura que não apenas se adequasse às condições
climáticas e de solo, como também expressasse o caráter de seu povo, alinhado com o espírito
modernista pós- Semana de 22.
No contexto da discussão sobre vanguarda artística e identidade nacional dos
anos 20 e 30, surgira também uma discussão relativa à arquitetura residencial adequada às
cidades brasileiras. Embora sem uma preocupação suficiente sobre a origem do mocambo na
construção popular do Recife, dividiram-se entre aqueles que defendiam esse tipo de moradia,
como o grupo de Gilberto Freye, que tinha no jornal A Província um de seus principais
veículos, baseado em argumentos etnológicos e ecológicos, e outros profissionais influentes,
entre eles médicos higienistas e políticos, que defendiam a sua eliminação do cenário urbano e
sua substituição por casas operárias de alvenaria. Abre-se, desse modo, o problema da
construção brasileira, seja pela adequação ao clima, pela disponibilidade de material, por suas
raízes portuguesas no Brasil em geral e holandesas no Recife em particular, ou pela aceitação
das influências africana e ameríndia na nossa arquitetura.
7
José Tavares Correia de Lira. Mocambo e Cidade: regionalismo na arquitetura e ordenação do espaço
habitado. São Paulo, FAU-USP, 1996. (Tese de Doutorado)
70
De um lado, acreditava-se que o mocambo era a fonte dos principais problemas
urbanos do Recife, tanto pela suposta falta de condições de higiene quanto pelas condições
sociais e morais. Essa crença, baseada em dados levantados de forma pouco sistemática,
conduziu políticas de construção de casas populares pouco eficientes, que além de
permanecerem aquém de seus próprios objetivos limitavam-se a medidas sanitárias
descoladas de uma política de inclusão social. O mesmo gênero de políticas e medidas
aplicou-se à cidade como um todo, onde o urbanismo lusitano e costumes católicos impediam
a implementação de medidas de higiene, enfrentando a resistência da população. Cria-se,
desta forma, nos moldes de Haussmann em Paris e de Pereira Passos no Rio de Janeiro, o
projeto de uma grande reforma, corroborado pela visão história da cidade holandesa que
afirmaria uma “vocação recifense” para o planejamento, em oposição ao improviso português,
embora com os empecilhos topográficos e geológicos de uma cidade portuária, repleta de
mangues e canais.
Ora, esta imagem negativa do mocambo, porém, não seria, como vimos,
exclusiva. Com Freyre, muito particularmente, estaria longe de se tornar a mais
importante. Se é verdade que o declínio do patriarcado rural era várias vezes
relatado com a nostalgia de um tempo que se perdia, pode-se dizer que o
mocambo recolocava ainda a possibilidade de um resgate de raízes ainda mais
profundas que a história não teria podido extirpar. A persistência do tipo de
casa mais primitivo do Nordeste do Brasil recobria esteticamente a experiência
íntima da casa-grande arruinada; a casa mais pobre, ainda aqui, insinuava-se
como motivo de contemplação e nostalgia. O sentido de verticalidade
catapultava o aristocrata em direção ao povo.”
8
Do outro lado, o movimento urbanista e arquitetônico refletia, na verdade,
menos uma preocupação social do que um movimento regionalista mais amplo, que envolvia
a literatura e as artes plásticas e se inseria no contexto do modernismo dos anos vinte e trinta.
A arquitetura do Recife, se para uns deveria ser adaptada a condições higiênicas
pasteurizantes esteticamente, para outros deveria permanecer com a mesma fisionomia das
recordações de infância dos filhos da decadência canavieira, ou dos tempos em que a cidade
fora o primeiro núcleo urbano brasileiro. Opondo-se à identificação entre modernidade e
avanço técnico indiscriminado, defendendo a sabedoria arquitetônica popular, essa antiga elite
preservava na realidade as marcas de seu próprio período áureo, através da criação de uma
8
Op. cit., p.108.
71
mitologia em torno da origem da topografia recifense, dividida em duas facções principais: a
do predomínio da adaptabilidade portuguesa, adquirida em territórios ultramarinos orientais,
de que Casa-grande e Senzala talvez seja a maior expressão teórica; e o mito da cidade
holandesa, a “Mauricéia”.
A discussão de uma origem mítica, ainda que localizada historicamente, era
parte natural de uma tentativa de forjar uma identidade nacional e, principalmente, regional,
semelhante à engendrada pelos paulistas através do modernismo. Da mesma forma que estes,
e em outra escala os mineiros, os recifenses tinham tomado contato com a valorização da
cultura primitiva através da vanguarda francesa, que os ajudaria a ressaltar as particularidades
regionais, fossem elas a arquitetura dos mocambos, a culinária das casas-grandes, os
romances do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rêgo, a literatura de Manuel Bandeira e
Joaquim Inojosa, a gravura e a pintura de Cícero Dias, Manoel Bandeira, Ismailovitch e Lula
Cardoso Ayres, e finalmente os estudos sociológicos de Gilberto Freyre, além dos inúmeros
nomes da engenharia civil, do urbanismo e da política, que, se não conseguiram criar soluções
concretas para as questões da habitação popular e da cidade higiênica, souberam construir
todo um imaginário em torno do Recife.
Dentro desse contexto, Manuel Bandeira, que, ao contrário de José Lins do
Rêgo e Cícero Dias, não foi um menino de engenho, junta-se a estes e a Gilberto Freyre na
frente de defesa pela memória recifense. É possível destacar, entre As Crônicas da Província
do Brasil, aquelas que tratam, especificamente, da questão do urbanismo pernambucano: “Um
Purista do estilo colonial”, “Velhas igrejas”, “O que era Pernambuco de 1821” e “Arquitetura
Brasileira”. Nelas, Bandeira, ora critica a falta da preservação de construções do patrimônio,
ora critica a restauração ou reconstrução a seu ver malfeitas, que as descaracterizam:
“Mas chegado ao alto da colina [de Olinda], quebrou-se-me de súbito o doce
encantamento que eu vinha tendo por aquelas ladeiras velhinhas, quando me vi
em face da nova Sé. Tinham transformado a velha capela barroca num
detestável gótico de fancaria! Como havia sido possível desconhecer a tal
ponto o significado da igreja primitiva? Contaram-me então que o erro não se
limitara àquela monstruosa adulteração: o interior do templo fora também
despojado dos seus painéis de azulejos, que por muito tempo ficaram
amontoados num canto como caliça imprestável (...)”. (“Velhas Igrejas”)
72
Certamente não deixa de ser passível de crítica a restauração que descaracteriza
o aspecto original, transformando uma igrejinha barroca em um pastiche de igreja gótica, e a
negligência que despreza uma pilha de azulejos originais. Nesse sentido, as crônicas de
Bandeira localizam-se na origem do esforço de vários brasileiros cultos pela preservação do
patrimônio histórico brasileiro
9
. No contexto da crônica, entretanto, é possível fazer uma outra
leitura: “Quando em 1926 voltei a Pernambuco após uma ausência de trinta anos, era de
preferência para Olinda que se voltava a minha curiosidade. Para Olinda, cujo oiteiro nunca
subi em menino”. Há, portanto, uma expectativa por parte do cronista, que parece frustrar-se
ao, subindo o oiteiro, descobrir que a igreja fora restaurada, e portanto não conhecendo o seu
aspecto original, o que, conforme podemos ver em outras crônicas, Bandeira comprazia-se em
utilizar como comparação ao criticar as restaurações.
Ou seja, na visão de preservação arquitetônica presente nas crônicas de
Bandeira, em que pese sua grande cultura e conhecimento de causa, a memória da infância
influi até mesmo na avaliação de monumentos que ele não conheceu em criança, revelando
uma estranha necessidade de conhecer a igreja como poderia tê-la visto quando menino. Tal
necessidade permanece a respeito de cidades que o cronista conheceu apenas na juventude, e
que, se de um lado oferecem vislumbres do arquiteto que Bandeira teria sido, de outro
esclarecem uma visão do passado que não era exclusivamente sua, mas que expressava, como
é possível constatar, as ansiedades de todo um grupo.
9
Nesse contexto, é válido lembrar que um dos melhores amigos de Manuel Bandeira era Rodrigo Melo Franco
de Andrade, fundador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN.
73
2. Cidades do Interior
A crônica costuma caracterizar-se pelo seu tom de conversa sem compromisso,
que permite ao escritor transitar de um assunto a outro de maneira aparentemente distensa,
muitas vezes sem um fio lógico muito definido. Bandeira sempre afirmava escrever suas
crônicas nesse tom que conversa com os amigos, complementando que “conversa de velho
costuma ser um desfiar de reminiscências, qualquer coisa puxa por elas”
10
, o que volta a
ocorrer com freqüência, como na crônica “Saudades de Quixeramobim”, de Flauta de Papel:
“O cabeçalho desta crônica mais parece título de alguma valsinha. Aliás, se eu tivesse bossa
para música, gostaria de compor três valsinhas – ‘Saudades de Campanha’, ‘Saudades de
Teresópolis’ e ‘Saudades de Quixeramobim’. Poria num chinelo a Antenógenes Silva com as
suas ‘Saudades de Ouro Preto’ e ‘Saudades de Uberaba’, essas duas puras delícias (...). Tudo
isso virou saudades e sinto grandemente não ter bossa para escrever a valsinha que a
exprimisse, bem no estilo amolescente de Antenógenes Silva”.
Mas a saudade ficou expressa na crônica e é a saudade “daquilo que podia ter
sido e não foi”: segundo o poeta, doem-lhe as saudades de Paris e de Quixeramobim, de
lugares em que não esteve mas que não conheceu, condição que coloca, de certa maneira, em
pé de igualdade a capital francesa e a cidadezinha no interior do Ceará: “Porque a verdade é
que não estive em Paris
11
: estive durante três meses num quarto de hotel da rue Balzac. Do
mesmo modo, não estive em Quixeramobim: estive durante uns meses num sobradão da rua
principal (...)”.
Em primeiro lugar, o leitor deve perguntar-se a razão pela qual Bandeira nega
ter realmente estado em Paris ou Quixeramobim. Sabe-se que o poeta esteve na capital
francesa em 1913, a caminho do sanatório de Clavadel, em Davos-Platz, na Suíça, quando,
adoecido, precisou descansar alguns dias antes de seguir viagem. Antes disso, ele peregrinara
por várias cidades no interior do país, à procura de um clima mais adequado à sua saúde, entre
elas Quixeramobim, onde morou durante alguns meses. Tratam-se, portanto, de lugares
associados na memória ao repouso e ao isolamento da doença; lugares em que viveu à espera
de uma possível melhora ou da morte, mas em que viveu também sob os cuidados da mãe e da
irmã, num prolongamento forçado da infância, até o retorno praticamente definitivo ao Rio de
Janeiro, como ainda veremos.
10
V. “Monat”, em Flauta de Papel – Poesia e Prosa, vol. II, p.360.
11
No ano seguinte, em 1957, Bandeira conheceria Paris em sua viagem à Europa, também registrada em crônica,
ocasião em que visitou Cícero Dias. V. “Paris”, em Flauta de Papel – Poesia e Prosa, vol. II, pp.584-585.
74
Quixeramobim e Campanha
O sobrado que habitava em Quixeramobim, conta o cronista, ficava em frente à
matriz “como duas personagens de um apólogo dialogal”: de um lado, o sobradão, cuja
descrição lembra uma casa mal-assombrada, por trás do qual passava o rio Quixeramobim
seco, e de onde o rapaz doente e futuro poeta, contemplava a velha igreja; de outro lado, a
matriz, cujos sinos dobrando soavam-lhe como um presságio de morte. Na lembrança, o
sobrado e a igreja são os únicos habitantes da cidade, e os únicos companheiros de Bandeira:
fora deles, tem-se a impressão de que havia apenas poucas pessoas em torno, como a
cozinheira simplória que se perdia nas inúmeras peças da casa. Desse modo, o sobrado meio
abandonado – quase vazio, com mínima mobília – ganha um feitio quase labiríntico, em que
até mesmo as referências geográficas se perdem, como por exemplo o rio que deveria passar
atrás da casa mas que não se encontra lá, mas sim seco, morto. Sua única saída parece ser em
direção à igreja, de onde ecoam os dobres dos sinos fúnebres:
“De vez em quando morria um cidadão de Quixeramobim e o sino grande da
matriz entrava a dobrar. Era formidável. Sino de Quixeramobim, baterás por mim?, dizia eu
comigo pressagamente.” (grifo meu). O restante da população surge por ocasião do enterro de
algum cidadão local, aparecendo, portanto, sempre de luto; destaca-se do trecho a frase que
alude ao poema “Os Sinos”, de O Ritmo Dissoluto, em que se alternam os ecos dos sinos com
interrogações do eu-lírico que remetem ao tema do “ubi sunt?”. Mais especificamente, a frase
reproduz o verso “Sino do Bonfim, baterás por mim?”, que ecoa numa gradação de perguntas
nas quais o eu-lírico toma consciência do seu destino:
Sino de Belém,
Sino da Paixão...
Sino de Belém,
Sino da Paixão...
Sino do Bonfim!..
Sino do Bonfim...
*
Sino de Belém, pelos que inda vêm!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
75
Sino da Paixão, pelos que lá vão!
Sino da Paixão bate bão-bão-bão.
Sino do Bonfim, por quem chora assim?...
Sino de Belém, que graça ele tem!
Sino de Belém, bate bem-bem-bem.
Sino da Paixão – pela minha irmã!
Sino da Paixão – pela minha mãe!
Sino do Bonfim, que vai ser de mim?...
*
Sino de Belém, como soa bem!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
Sino da Paixão... Por meu pai? – Não! Não!...
Sino da Paixão bate bão-bão-bão.
Sino do Bonfim, baterás por mim?
*
Sino de Belém,
Sino da Paixão...
Sino da Paixão, pelo meu irmão...
Sino da Paixão,
Sino do Bonfim...
Sino do Bonfim, ai de mim, por mim!
*
Sino de Belém, que graça ele tem!
O repicar dos sinos, evocado pelo ritmo e pela musicalidade do poema, ecoa
através das repetições, como uma série de refrães alternados, cujas modulações revelam o
sentimento do eu-lírico. Se nos versos de abertura o sino de Belém – relativo ao nascimento –
e o sino da Paixão – que figura o sofrimento e a morte – alternam-se em harmonia, enquanto o
sino do Bonfim marca um destino desconhecido, gradativamente os dobres da Paixão
predominam sobre os demais, batendo, a cada vez, por um membro da família, até que o
toque de Belém desapareça e o Bonfim crie uma expectativa pelo conhecimento de seu
destino. No último verso, o dobre do sino de Belém aponta um sentimento de esperança, mas
o eu-lírico compreende antes disso a sua sina, que não é exatamente a morte, mas sim a
solidão, causada pelo desaparecimento de cada uma das pessoas próximas a ele – seus pais e
seus irmãos.
76
Na crônica, o dobre relembra um momento anterior a este destino, a uma vida
paralisada pela doença, mas em que Bandeira vivia na expectativa de uma melhora de saúde,
mas quando ainda se encontrava na companhia da sua família. O efeito de eco também se
encontra presente ao longo da crônica, associado à própria idéia de saudade, a começar pelo
título, “Saudades de Quixeramobim”, em que o nome da cidade, do tupi “ah, meus outros
tempos!”
12
, origina-se de uma exclamação de saudade, “ecoando” o sentimento da palavra
que o precede. Ao longo do primeiro parágrafo, transcrito acima, Bandeira enumera as suas
saudades sob a forma de títulos de valsinhas – “Saudades de Campanha”, “Saudades de
Teresópolis”, “Saudades de Quixeramobim” –, fazendo que, pela repetição, a saudade ecoe no
espaço e também no tempo, através da memória – que também são as saudades de sua família
desaparecida.
“Quantas vezes, a horas diversas, chegava eu a uma das sacadas de frente e
ficava a olhar a velha igreja! Onde nunca entrei e hoje tenho pena”. “Desfigurada” pela
restauração, a matriz de Quixeramobim, como o oiteiro de Olinda, não vale mais a visita. Nas
crônicas, em compensação, o que vemos é um movimento constante de retorno a esta e outras
cidades, como na crônica “Comunicações interessantes”, escrita no mesmo ano, em que
comunica a condecoração do amigo Gustavo Barroso para “Cidadão de Quixeramobim”: “A
cidadania de Quixeramobim vale pela honra mais rara do mundo, pois só se conceda de cem
em cem anos e a duas pessoas propostas pela Câmara Municipal. O título, como se vê, é igual
à flor de lótus de que falou o poeta, a qual ‘em cem anos floresce apenas uma vez’.”
Apesar de nunca ter chegado a entrar na igreja matriz de Quixeramobim,
Bandeira a coloca no foco central de suas lembranças, ou de suas saudades, afinal “se estou
batendo esta crônica de saudades
13
é porque vi no Cruzeiro umas semanas atrás uma
fotografia do templo, não como é agora, desfigurado pela restauração, mas como ainda era
em 1908.” (grifo meu), ou seja, como ainda era na época em que o poeta morou ali. Nesta
afirmação, revemos a dificuldade de Bandeira em, ao rever os lugares de seu passado, encará-
los como se encontram no presente: sua atitude é sempre a de tentar desvendar, com o olhar, o
que foi vivido naquele lugar, colocando afinal os dois tempos – passado e presente – num
mesmo plano, principalmente em relação a lugares a que nunca retornou ou a que dificilmente
retornaria, ou somente depois de muito tempo.
12
Segundo José de Alencar, a palavra compõe-se de Qui (“ah!”), xere (‘meus”), amôbinhê (“outros tempos”).
Cf. José de Alencar. Iracema. 25
a
edição. São Paulo, Ática, 1991.
77
Na crônica “O Fantasma”, de Flauta de Papel, temos a impressão, à primeira
leitura, de que um encontro harmonioso seria possível. “O Fantasma” é o próprio cronista/
narrador, que revisita a cidade de Campanha, em Minas Gerais, depois de mais de cinqüenta
anos de ausência. Como sugere o título, o tom que perpassa o texto é de um conto de mistério,
em que a redescoberta da cidade é narrada aos poucos, como uma revelação. Bandeira passara
ali uma temporada em 1905, procurando um clima adequado para a sua saúde, mesmo motivo
pelo qual moraria em Quixeramobim, algum tempo depois. No ambiente difuso, mal se
distinguem as imagens do passado e do presente: de início, o visitante sente-se deslocado na
cidade que encontra praticamente nova – a estação de trem e o largo da matriz estão
embelezados, e se misturam ao Teatro Municipal recém-construído, “edifício execrável”, e à
igrejinha barroca deformada por janelas abertas em ogiva. Ao mesmo tempo, descobrem-se
coisas que sempre estiveram ali sem serem percebidas, como “as velhas casas coloniais
autênticas, quadradas, as quinas os telhados com telhas em forma de asa de pombo”.
Em outros momentos, porém, o passado parece emergir em estado puro, como
no encontro com as casas em que o poeta morou e que trazem à tona uma série de lembranças.
O “fantasma” é o próprio Bandeira, mas Campanha, como Quixeramobim, pode ser
considerada uma cidade-fantasma, onde as construções – em especial as antigas, como as
casas coloniais e a igreja – parecem ser os únicos habitantes. A primeira pessoa que o
visitante encontra é, ao voltar para o hotel, o garçom, quando “janta meio horrorizado com a
cara do garçom, que parecia leproso”. Essa visão aterrorizante, que evoca a doença e a morte,
marca a passagem, na narrativa, do dia para a noite, quando Bandeira sai novamente para
rever a cidade, que agora se personificará em Donana. A moça que Bandeira conhecera
outrora também é encontrada mudada, transformada numa heróica mãe de família do interior;
mas, da mesma forma que algumas casas de Campanha, as quais, ao preservarem o aspecto de
antes, suscitam as lembranças do poeta, a “dentadura perfeita” de Donana, de que se lembrava
o visitante, continua intacta “como um reduto”. Assim, através dela, a cidade é como um baú
de recordações, de onde se revelam “coisas de minha mãe e de minha irmã, coisas que eu não
sabia e que me fizeram bem, como certos retratos que a gente não conhecia”.
13
A expressão “crônica de saudades”, como se sabe, foi cunhada por Raul Pompéia no subtítulo de seu romance
O Ateneu, referência na literatura brasileira de memórias a que Bandeira parece se reportar neste trecho.
78
O tom de mistério continua, entretanto, na volta para o hotel sob o luar da
cidade: “Quando saí de lá, a cidade estava deserta e silenciosa, fazia um luar estupendo. Vocês
sabem o que é um luar estupendo no Largo da Matriz de uma cidade do interior? A tal rua
Direita estava um encanto” (grifo meu). O “fantasma” deixa a cidade vigiado por esse mesmo
luar, ainda de madrugada, quase simbolicamente entre brumas, entre “neblinas se rasgando”.
“Às 6.35 o fantasma reencarnou no dia já claro da estação de Cambuquira e foi diretamente
lavar o fígado na fonte magnesiana”, num retorno que parece o despertar de um sonho, ou a
volta de uma viagem ao mundo dos mortos, com o detalhe da água bebida que se assemelha
ao rio Lethe, o rio do esquecimento das vidas passadas, bebido pelos espíritos na saída do
Hades. Como a rua da União, no Recife, a cidadezinha é um lugar fantástico, em que as
barreiras do tempo desaparecem e em que se estabelece, mesmo por um curto momento, uma
ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos.
O clima surreal, sobrenatural, vivido por Bandeira na cidade-fantasma é o que
impede o conflito habitualmente vivido pelo cronista ao reencontrar-se com velhos lugares,
quando se frustra por não os encontrar no presente da mesma maneira em que os recordava.
Aqui, é como se o passado estivesse imerso no presente, unindo em um único plano as
imagens percebidas e as imagens recordadas, de forma que a visão dos lugares não o
confronte com a passagem do tempo. Como é próprio à memória, a paisagem se altera para
corresponder a expectativas presentes no indivíduo: mas o que se nota, além disso, nestas
crônicas, é a forma em que Bandeira projeta a mesma visão e as mesmas expectativas em
cidades nas quais esteve apenas brevemente.
Pernambuco e Bahia
O caráter plástico do memorialismo de Bandeira talvez se explicite melhor em
“Álbum de Pernambuco”: o álbum, que o cronista resenha, é um livro de fotografias antigas
do Recife de meados do século XIX, ofertado ao poeta pelo então prefeito da cidade, presente
que o enche de orgulho e o leva a descrever as minúcias da edição com zelo de colecionador.
A descrição objetiva do álbum e das fotos, porém, é lentamente superada pelo fluxo de
recordações: “Recife tão amorável, que ainda subsistia nos dias da minha infância, de sorte
que contemplar as paisagens deste álbum não é para mim aprender nada de novo – é,
deliciosamente, recordar”. Uma linha tênue separa a contemplação da recordação no processo
79
de memória involuntária, em que o indivíduo, ao mesmo tempo, percebe e rememora. Desse
modo, a flutuação de assuntos, própria da crônica, não é, em Bandeira, de modo algum casual,
mas ocorre simplesmente ao sabor dos movimentos da memória. Assim, a admiração das
fotos, ainda mais antigas do que a infância do poeta, alterna-se com as próprias lembranças e
as deformações do presente. Bandeira não perde, tampouco, a oportunidade de rebater as
críticas em relação à sua cidade natal:
“Se os que me caluniam por pernambucano ingrato pudessem meter a mão na
minha consciência, veriam como andam errados supondo morto em mim o
amor da terra onde só vivi quatro anos, dos seis aos dez, mas que ficou para
sempre na minh’alma como a insuperável paisagem.” (grifo meu)
A memória sempre aponta, de alguma forma, para o passado mais distante da
infância, cuja nostalgia se torna um dos traços mais marcantes na formação do poeta e do
homem. É a identificação com o passado feliz no Recife a origem do encanto com o traço
ingênuo dos quadros de Cícero Dias, ou com os meninos de bodoque das pinturas de
Portinari. De outro lado, o processo de rememoração, tal como surge nas crônicas de
Bandeira, possui sempre uma dimensão plástica, visual, como quem busca nas construções
das cidades de Campanha e Quixeramobim, nas fotos do Recife e nas pinturas em que
aparecem crianças uma cristalização ou a realização pictórica de seu próprio passado. Como
já dito, a crônica é um gênero que, por seu caráter jornalístico, prende-se ao momento
presente, historicamente relacionada, como está, ao registro de fatos históricos ou cotidianos
de quem escreve. A crônica em Manuel Bandeira atinge uma outra dimensão, ao procurar
frestas naquilo que vê no presente, frestas que se abrem revelando uma “quarta dimensão, que
é a do tempo”, e que resgatam assim imagens do passado.
O título da coletânea Crônicas da Província do Brasil pode justificar-se, além
das razões apresentadas por Bandeira, já mencionadas, pela série de crônicas que, logo no
início do livro, tratam justamente de cidades do interior do país, a começar pelas célebres “De
Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes” e “O Aleijadinho”, que originaram o
livro Guia de Ouro Preto, publicado pelo SPHAN no ano seguinte. A ampliação e publicação
do texto em forma de livro demonstra bem a importância da crônica, senão atribuída pelo
próprio autor, pelo menos pelos seus leitores.
À crônica sobre Ouro Preto juntam-se, na coletânea, outros textos de cidades
visitadas pelo cronista, como Salvador da Bahia, tão longo quanto a crônica sobre a cidade
80
mineira, embora já menos preocupada com o registro da arquitetura e do passado histórico do
que com a experiência pessoal do cronista na cidade: “Ali a gente se sente mais brasileiro. Em
mim confesso que, mais forte do que nunca, estremeceram aquelas fundas raízes raciais que
nos prendem ao passado extinto, ao presente mais remoto. Raízes em profundidade e em
superfície”. Notavelmente, Bandeira procura a identificação com o passado mesmo em
cidades que não fazem, exatamente, parte do seu passado.
“– Vai ter uma péssima impressão disso aqui. Cidade sem higiene, sem água,
sem esgotos, sem iluminação.
Que bem me importava tudo isso! Estou farto de tanta luz crua voltaica. Um
dia virá em que um governador bem-nascido dará aos baianos todos esses bens
preciosos. Não lhes dê, porém, luz demais, como fizeram a este Rio de Janeiro,
que parece automóvel noturno de novo-rico. O que ninguém lhes poderia dar é
aquele aspecto tradicional, tão diferente do das velhas cidades mineiras, porque
na Bahia a tradição está viva, integrada ao presente mais atual, dominando
estupendamente o progressismo apressado, sovina e tapeador que tem
desfigurado as nossas cidades litorâneas, como estragou completamente o meu
Recife.
Há muita gente ingênua para quem progresso urbano é avenida e arranha-céu.
Modernidade – asfalto e cimento armado. Pois eu estou pronto a sustentar para
essas sensibilidades modernas, que os tais arranha-céus cariocas não passam de
casarões passadistas de muitos andares, ao passo que os velhos sobradões de
duas águas da Bahia, com três, quatro andares e sotéias, obedecem à estética
despojada, linear, sintética dos legítimos arranha-céus.”
Quando o próprio Recife não se mantém fiel ao aspecto que recupera o passado
do poeta, ele busca tal aspecto em outras cidades, no que Salvador corresponde precisamente,
pelo menos no que é descrito no texto, às suas expectativas, até chegar a uma inversão que
transforma os arranha-céus em casarões antiquados e os sobrados em obras legítimas do
modernismo: “Um velho quarteirão baiano lembra muito as sínteses plásticas dos pintores
modernistas quando representam uma cidade”. Como em tantas outras crônicas, Bandeira usa
uma metáfora das artes plásticas para estabelecer a relação entre o passado arquitetônico,
percebido visualmente, e o sentimento que ele proporciona, incluindo também a sua relação
com o indivíduo – no caso, com um passado individual recente e com o presente, uma vez que
a crônica, escrita nos anos trinta, é contemporânea do seu trabalho de crítica de arte, quando o
poeta defendia publicamente a estética modernista.
81
3. Rua da União
A “trinca” do Curvelo ajuda Manuel Bandeira a recuperar a “quadra distante”
de sua infância no Recife: segundo o Itinerário de Pasárgada, foi o ambiente da ruazinha o
principal responsável pelos temas que aparecem em sua poesia a partir deste período
14
. Como
forma de gratidão, sob pretexto dos “servicinhos” que os meninos lhe prestavam, Bandeira
dava-lhes linha e papel fino para construírem os seus papagaios, o que, por sua vez, também
remete à sua infância no Recife: “(...) E eu plantava e ela [a avó materna] comprava o bredo, e
com esse dinheiro comprava eu flecha e papel de seda para fabricar os meus papagaios... Essa
atividade não me fez agricultor nem negociante, mas as horas que eu passava no quintal eram
treino para a poesia” (grifo meu).
Neste ponto, as crônicas de Bandeira começam a margear, quase como
casualmente, o tema da infância na rua da União no Recife. Na verdade, a julgar pelas
crônicas publicadas em livro, são raras as vezes em que Bandeira rememora a cidade natal e a
casa do avô materno pelo jornal; tais textos incluem-se, entretanto, entre os de mais vivo
interesse do leitor, tanto pela familiaridade do temas, auxiliada pelas inúmeras referências,
quanto pelos textos em si. As duas crônicas disponíveis encontram-se na primeira seção de
Andorinha, Andorinha: “O Quintal” e “Cheia! As Cheias...”, além de um terceiro texto,
presente em Flauta de Papel e intitulado “Minha mãe”.
No entanto, é preciso assinalar, antes de tudo, algumas diferenças entre a
rememoração de infância nas crônicas e nos poemas, que fazem mais do que reproduzir as
diferenças entre os gêneros. Se, de um lado, temos a forma de relato adquirida pela crônica,
em que a recordação de certos fatos ajuda a preencher as lacunas da memória, incluindo o
próprio contexto da rememoração, de outro lado registram-se nas crônicas lembranças de
pequenos fatos mais curiosos e, aparentemente, menos importantes, e que não raramente
destoam daquelas encontradas em poemas como “Evocação do Recife” e “Infância”. Desse
modo, as crônicas mencionadas trazem novos elementos da infância de Bandeira, a saber, o
espaço da casa da família materna no Recife e as figuras maternas presentes nesta casa.
As crônicas “O Quintal” e “Cheia! As cheias...”, escritas nos anos 60, parecem
simplesmente resgatar fatos da infância pernambucana, acrescentando alguns detalhes aos já
14
“... o elemento de humilde cotidiano que começou desde então a se fazer sentir na minha poesia não resultou
de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do morro do Curvelo. (...) A
morte do meu pai e a residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933 acabaram de amadurecer o poeta que sou.”
Itinerário de Pasárgada, em Poesia completa e Prosa, p.60.
82
conhecidos do leitor. Em “O Quintal”, vemos que a contraposição entre mundo exterior e
mundo interior precede a vivência da rua do Curvelo: “Na rua, com os meninos da minha
idade, eu brincava ginasticamente, turbulentamente; no quintal sonhava na intimidade de mim
mesmo. Aquele quintal era o meu pequeno mundo dentro do grande mundo da vida...”. Este
“pequeno mundo” do quintal da casa na rua da União constitui, como a rua do Curvelo, um
universo particular em que as palavras ganham semântica (como “cambrone”, nome dado ao
sanitário no Recife da época, que Bandeira justifica com referências históricas) e mesmo
sonoridade especiais (como “coradouro”, chamado de “quaradouro”). O melhor exemplo
disso é o próprio termo “quintal”, cujo significado vernáculo é percorrido nos dicionários pelo
cronista. Ele busca uma definição que expresse não o conceito de quintal, mas “o” quintal que
ele conheceu:
“O quintal da rua da União era isso: uma pequena porção de terreno em
quadrado para onde dava a varanda da sala de jantar e em quina com esta a varanda com
acesso para a copa, a cozinha, o quarto de guardados; do lado oposto à segunda varanda, bem
mais estreita que a primeira, havia o paredão alto da casa vizinha, onde moravam umas tias de
José Lins do Rêgo; ao fundo ficava o galinheiro, e ao lado deste, o cambrone.” A partir deste
momento, é o sentido especial, que carrega a lembrança do quintal de sua infância na casa do
avô, o que importa para Bandeira. Nesse espaço, a história do Recife dialoga tanto com a
história do menino Manuel Bandeira quanto com referências à história e à literatura francesas:
trata-se, verdadeiramente, de um quintal que abriga um mundo e constitui, como enfatiza o
próprio Bandeira, um espaço de treino para a poesia.
Nessas crônicas, Bandeira descreve a casa da rua da União e narra um episódio
passado na casa de veraneio do avô em Caxangá. Trata-se de lugares bem conhecidos do
leitor bandeiriano, já referidos não somente nas memórias como em alguns de seus poemas
mais célebres: “Evocação do Recife”, “Infância”, “Profundamente”, “Boi morto”. As
referências aos próprios poemas permeiam os dois textos, introduzindo o leitor em território
conhecido e, principalmente, reforçando a afirmação contida em Itinerário de Pasárgada, de
que sua sensibilidade poética teria sido despertada por esta fase da infância no Recife: “O que
há de especial nessas reminiscências (...) é que, não obstante serem tão vagas, encerram para
mim um conteúdo inesgotável de emoção. A certa altura da vida vim a identificar essa
emoção particular com outra – a de natureza artística”. “O meu primeiro contato com a poesia
83
sob forma de versos terá sido provavelmente em contos de fadas, em histórias da carochinha.
No Recife, depois dos seis anos”
15
.
Desse modo, saltam à vista, na primeira leitura, as referências à “Evocação do
Recife”: “a cada da rua da União que celebrei num poema”; o contexto original, de um poema
de Rimbaud, do fragmento de verso “la fraîcheur des latrines!”; o título de “Cheia! as
cheias...” e suas alusões ao boi morto – eternizado no poema de Opus 10 – e aos caboclos em
jangadas lutando contra a corrente. Mas as crônicas não se limitam a uma transposição para a
prosa de seus poemas sobre a infância, que enfeixam imagens dispersas recuperadas pela
memória. Elas atêm-se a um outro ponto que aqui torna-se central, e que nos poemas é apenas
uma referência: o espaço em que essas recordações se desenrolam.
“O Quintal” descreve a casa da rua da União em que a família Bandeira
morava. Temos a impressão de uma casa em L, com a sala de jantar (e provavelmente a sala
de visitas, com os quartos no andar superior, uma vez que se tratava de um sobrado) na parte
da frente, e os cômodos menos “nobres” (“a cozinha, a copa, o banheiro e o quarto de
guardados”) numa lateral; na lateral oposta, o muro da casa da família Lins do Rêgo e, nos
fundos do terreno, o galinheiro. Mas essa descrição é feita da perspectiva do terreno do fundo,
o quintal onde Bandeira conta ter passado muitas horas de sua meninice, e que, a julgar por
esta mesma descrição, era o lugar reservado às tarefas de higiene e limpeza e às criações da
casa, ao trabalho doméstico portanto: a talha de água, o coradouro (que Bandeira corrige
como “quaradouro”, privilegiando a pronúncia regional e popular, da mesma forma que em
“Capiberibe – Capibaribe”), superfície utilizada para expor a roupa lavada e ensaboada ao sol,
para “branquear”, além do sanitário ou cambrone, do galinheiro, dos canteiros de flores e a
horta. É um espaço de trabalho que em geral pouco interessa à criança, e que Bandeira, neto
do dono da casa, não tinha necessidade de freqüentar.
Trata-se também de um espaço oposto ao da rua, não apenas fisicamente,
separado daquela pela construção do sobrado, como pelo seu uso: se a rua é a zona de
convívio com as outras crianças, o quintal é o lugar reservado onde Manuel Bandeira
distingue-se dos outros meninos, inclusive dedicando-se, ainda que de forma lúdica e sem
compromisso com a sua subsistência, a um trabalho braçal. Também no caso da crônica
“Cheia! As cheias...”, a casa que o avô mantinha em Caxangá não é descrita, mas somente o
seu quintal, por cujos fundos passava o rio Capiberibe, além de ser uma zona intermediária
15
Op. cit., p.33.
84
entre a estrada e o mato, permitindo a diversão dos banhos de rio e o contato com pássaros e
pequenos animais. Mas, ao contrário do quintal da rua da União, em que a horta e o galinheiro
têm limites nítidos e obedecem à mão do menino, e as folhas de bredo brotam para que ele
possa comprar matéria-prima para os seus papagaios, o quintal de Caxangá é dominado pelo
rio que se transforma com a cheia, e contra o qual as únicas armas do menino são toquinhos
de pau: “Fiquei siderado diante da violência fluvial barrenta. Puseram-me de guarda ao
monstro, marcando com toquinhos de pau o progresso das águas no quintal.” O quintal,
portanto, é o espaço de uma natureza “domesticada”, dominada pelo homem e ordenada por
ele, onde a provisão de água e de alimentos e as necessidades básicas se distribuem
racionalmente ao longo do espaço.
Note-se ainda outra diferença, também essencial em relação à casa da rua da
União já conhecida do leitor bandeiriano a partir dos poemas e do Itinerário de Pasárgada:
“Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.” (grifo meu) A figura
patriarcal do avô materno Costa Ribeiro, em torno do qual parece girar toda a cidade de
“Evocação do Recife”, cede o lugar à avó, que inicia o neto em pequenos trabalhos, ao
“estimular minhas veleidades de hortelão”. Ela surge na seqüência da enumeração de objetos
que descreve as tarefas realizadas nesse lado interno do terreno, oculto pela fachada, todas
tarefas domésticas e, em nossa cultura, tipicamente femininas: a fonte de água, a lavagem de
roupa, o galinheiro e o canteiro de hortaliças que provêem o alimento, as plantas medicinais.
Talvez se esteja, aqui, diante do espaço primordial de cenas como de “Poema Só para Jaime
Ovalle” e “Consoada”: se o quintal é o lugar de treino para uma poesia que se voltou,
principalmente e de forma tão marcante, para as miudezas do cotidiano, então a avó materna é
uma personagem fundamental, do mesmo modo que Totônio Rodrigues, Dona Aninha Viegas
e a preta Tomásia, embora não contemplada em outro texto que a crônica de Andorinha,
Andorinha.
Uma outra figura feminina raramente descrita aparece na crônica “Minha
Mãe”, de Flauta de Papel: “O livro mais precioso de minha biblioteca é um velho caderninho
de folhas pautadas e capa vermelha, comprado na Livraria Francesa, rua do Crespo, 9, Recife
e em cuja gina de rosto se lê: ‘Livro de assentamento de despesas. Francelina R. de Souza
Bandeira.’ Francelina Ribeiro de Souza Bandeira era o nome de minha mãe. Mas toda a gente
a conhecia e tratava por D. Santinha”. Ao longo da crônica, enquanto descreve o aspecto
físico e o caráter maternos, dando pistas sobre a sua influência sobre o poeta, Bandeira chega
85
a reproduzir um exemplo dos apontamentos encontrados no livrinho: compras de peças de
vestuário e mantimentos, o salário da cozinheira – gastos cotidianos ligados, como se espera,
às suas tarefas de dona-de-casa, e que ligam o cotidiano da casa onde Bandeira nasceu à sua
vida de homem adulto e solitário, que folheia o livrinho para recordar-se da mãe.
São elementos da infância de Bandeira raros em seus poemas ou em suas
memórias, que costumam privilegiar o pai e o avô materno do poeta, também mencionados
em “Minha Mãe”, mas deslocados de sua posição central naqueles textos. Nas crônicas, em
que o espaço do quintal representa, por metonímia, a figura da avó, e o livro de despesas
simboliza a figura materna, bem como o espaço doméstico interior, notadamente o da
cozinha. Mesmo que tais relações permaneçam apenas em referências passageiras, elas
contrastam com a imagens masculinas já representadas em suas memórias: com a figura do
avô, central em “Evocação do Recife”, e com o pai, considerado figura-chave na formação do
poeta em Itinerário de Pasárgada (“na companhia paterna ia-me eu embebendo dessa idéia de
que a poesia está em tudo – tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas
como nas disparatadas”).
A avó e a mãe de Bandeira aparecem com mais destaque nas crônicas, apesar
de sua ausência em outros textos, mas a recordação afetuosa não deixa dúvidas a respeito de
seu papel na sua formação. É possível mesmo considerar que relembrar o cotidiano doméstico
da casa em que nasceu e da casa em que foi criado seja uma forma de relembrá-las: trata-se,
primeiramente, de figuras femininas, mas não de algum ideal feminino, semelhante à imagem
freqüente do erotismo na poesia bandeiriana, e sim de personagens com uma identidade
determinada, e, segundo Bandeira, de personalidades bastante marcantes. Entretanto, elas se
distinguem igualmente de outras figuras de sua infância, como dona Aninha Viegas ou a preta
Tomásia, cozinheira na casa de seu avô, por não se ligarem estritamente ao imaginário da Rua
da União: além de serem familiares de Bandeira, ambas assumem o papel arquetípico da mãe
na infância do poeta, papel no qual as duas se complementam e mesmo se confundem, a
começar pelo fato de que mãe e filha partilhavam o mesmo nome, Francelina.
Apesar de serem, afinal, objeto da recordação do cronista, a avó e a mãe
aparecem, a princípio, por metonímia: o quintal e o livro de assentamento são inicialmente o
assunto de cada uma das crônicas
16
, mas revelam-se ao final como local e objeto,
16
Provavelmente esta observação não se aplique totalmente à crônica “Minha mãe”, em que a personagem
principal aparece logo no título, embora não haja informação de que este seja o título original.
86
respectivamente, de representação da infância e do cuidado materno. O quintal é claramente
um espaço ao mesmo tempo fechado – para a rua – e aberto – ao ar livre –, possibilitando o
recolhimento, mas não a clausura; o livro de assentamento, em compensação, é um símbolo
mais discreto daquilo que representa, incluindo-se entre os “símbolos daquilo que é essencial
na mulher, e portanto da própria mulher – como arcas, cofres, caixas, cestos, etc.”
17
, em
função de sua propriedade de abrir e fechar. Mesmo a descrição minuciosa, quase técnica
destes dois elementos, o primeiro definido através de dicionários, o segundo especificado em
suas origens quase como uma relíquia de colecionador, parece tentar ocultar o seu conteúdo
simbólico.
Tal simbologia é evocada por Sigmund Freud em sua análise do “tema dos três
escrínios”, em que tenta interpretar o tema da escolha de um homem entre três mulheres em
duas peças de William Shakespeare
18
. O psicanalista observa como, em narrativas mitológicas
e contos de fadas, a figura da mulher aparece sempre sob forma trina, sendo que a terceira é
sempre a escolhida, sendo a mais valorosa sob algum ponto de vista. “Poderíamos argumentar
que se acha representado aqui são as três inevitáveis relações que um homem tem com uma
mulher – a mulher que o dá à luz, a mulher que é a sua companheira e a mulher que o destrói;
ou que elas são as três formas assumidas pela figura da mãe no decorrer da vida de um
homem – a própria mãe, a amada que é escolhida segundo o modelo daquela e, por fim, a
Terra-mãe, que mais uma vez o recebe. Mas é em vão que um velho anseia pelo amor de uma
mulher, como o teve primeiro de sua mãe; só a terceira das Parcas, a silenciosa Deusa da
Morte, tomá-lo-á nos braços.”
Há inúmeros exemplos, citados pelo próprio Freud, que incluem arquétipos
míticos como as três Parcas ou três Moiras; mas prefiro mencionar um conto infantil que o
próprio Bandeira cita, em Itinerário de Pasárgada, como um de seus favoritos na infância: a
menina enterrada viva no conto “A Madrasta”, que é a terceira filha, maltratada pela madrasta
e as duas meias-irmãs
19
. O conto provavelmente corrobora esta análise, uma vez que a
menina, depois de enterrada viva, canta de dentro do túmulo para alertar o pai sobre as
maldades da madrasta e das irmãs. Se considerarmos tal hipótese para a análise das crônicas,
devemos procurar as três figuras maternas que marcam a infância de Bandeira: as duas
primeiras seriam, naturalmente, sua avó materna e sua mãe; a terceira, mantendo o foco
17
Freud, Sigmund. “O tema dos três escrínios”, Edição Standart das Obras Psicológicas Completas, p.368.
18
As peças são O Mercador de Veneza e Rei Lear. Op. cit., pp.367-379.
19
Poesia completa e prosa, p.33.
87
dentro de sua família, seria sua irmã Maria Cândida, que cuidou do irmão doente até morrer,
em 1918. Levando em conta as conclusões de Freud, a terceira figura feminina seria a própria
Morte, que, como a mãe e a avó, encontra Bandeira em seu reduto doméstico, em meio às
tarefas cotidianas: “Encontrará lavrado o campo, a casa limpa / a mesa posta / com cada coisa
em seu lugar”
20
.
A respeito deste mesmo poema “Consoada”, afirma Davi Arrigucci Jr. Que “na
verdade, ao que tudo indica, se está diante de uma espécie inesperada de elegia pastoral, como
produto de um poeta inteiramente urbano, embora saído de um meio provinciano e de uma
sociedade tradicional fundada numa economia de base agrária, como a do Nordeste brasileiro.
Mas logo se percebe que a relação com o campo que se nota no poema nada tem a ver com a
intenção realista de representar um quadro rural preciso e concreto. Ao contrário, como é
próprio da pastoral, a referência rústica parece um artifício para se falar de outra coisa. (...)
Por certo, como se está cansado de saber, essa tradição foi de fato uma invenção de poetas
urbanos, voltados para o campo como um lugar de desejo, espaço imaginário onde o artificial
toma a feição do real, pelo acercamento, através do rústico, à natureza”
21
.
Principalmente em sua crônica sobre o quintal evidencia-se o caráter idílico das
recordações de Bandeira, em especial as recifenses, em que, quando não se idealiza uma
relação com a natureza, projeta-se esse “lugar de desejo” no próprio espaço urbano,
convenientemente concebido, como se viu, como um “espaço ecológico”, cuja forma de
urbanismo adaptara-se perfeitamente às suas condições topológicas e climáticas. Longe de
discutirmos a validade de tais idéias no campo específico do urbanismo, vemos que a
concepção de um espaço da infância é perpassada, indiretamente, por uma acepção de cidade
que coincide com as transformações sociais sofridas por famílias como a de Bandeira no
século XIX: “Começa a surgir a idéia de que a cidade, não sendo mais patrimônio do clero e
das grandes famílias, mas instrumento pelo qual uma sociedade realiza e expressa o seu ideal
de progresso, deve ter um asseio e um aspecto racionais. A técnica dos arquitetos e
engenheiros deve estar a serviço da coletividade para realizar grandes obras públicas”
22
.
20
O poema “Consoada”, de Opus 10, segue imediatamente “Os Nomes”, no qual Bandeira fala sobre o apelido
da mãe, “Santinha”.
21
Davi Arrigucci Jr., Humildade, Paixão e Morte – a poesia de Manuel Bandeira, p.263.
22
Giulo Carlo Argan, Arte moderna – do Iluminismo aos movimentos contemporâneos, p.22.
88
Como é possível compreender, ao analisarmos a obra de Gilberto Freyre, concebeu-se um
urbanismo em que, através das obrigações exigidas modernamente, mascara-se a sua antiga
função de patrimônio histórico de alguns.
Por isso mesmo, o quintal e o livro mostram uma perspectiva de infância
bastante solitária: enquanto poemas como “Evocação do Recife” trazem um eu-lírico que
brinca entre uma multidão anônima de outras crianças, o menino que brinca no quintal conta
apenas com a atenciosa companhia da avó. O espaço da infância na poesia bandeiriana parece
ser, de fato, a rua, onde se ouvem os pregões dos vendedores de porta em porta e as cantigas
de roda; mas, nesta crônica, as brincadeiras tornam-se solitárias e recolhem-se para o interior
da casa. É certo que a crônica sobre o livro de apontamentos não descreve um espaço
propriamente dito; mas o livro, que Bandeira define como o mais importante de sua
biblioteca, contém a seguinte anotação, destacada por ele:
“Há alguns longos hiatos nesse registro quase diário. O que me interessa mais
particularmente é o que ocorre no dia 18 de abril de 1886, porque no dia
seguinte nascia eu. Lá para o fim do caderno vem esta nota: ‘Nasceu meu filho
Manuel Carneiro de Souza Bandeira filho, no dia 19 de abril de 1886, 40
minutos depois do meio-dia, numa segunda-feira santa. Foi batizado no dia 20
de maio, sendo seus padrinhos seu tio paterno Dr. Raymundo de Souza
Bandeira e sua mulher Dona Helena V. Bandeira’.”
Não deixa de ser digno de nota o fato de que o livro mais importante da
biblioteca de Bandeira, definição com que ele inicia a crônica “Minha Mãe”, seja aquele que
registra o seu próprio nascimento, do qual ele parte para a proteção uterina do quintal da casa
da avó, e que recorda com saudade. Misturada a elementos humildes e caseiros do cotidiano, a
anotação de seu nascimento marca uma origem, com a qual a crônica estabelece uma relação
bastante íntima e que se revela tanto em traços físicos ou psicológicos do indivíduo –
características como o sorriso, alguns elementos de caráter – e do poeta, como na revelação,
partindo de uma observação de Mário de Andrade, da origem dos diminutivos em sua poesia.
***
89
O curta-metragem O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo foi rodado em
1959 por Joaquim Pedro de Andrade
23
para o arquivo documental do Instituto Nacional do
Livro e, como indica o próprio título, passa-se em dois cenários: o sítio de Apipucos, no
Recife, residência do sociólogo Gilberto Freyre e sua esposa, Madalena, e o bairro e o
pequeno apartamento no Castelo onde morava Manuel Bandeira. Na realidade, o filme de
dezoito minutos é composto de dois documentários curtos, que compõem um diálogo entre os
dois intelectuais brasileiros através de sua justaposição, mais do que através das informações
expressas nas imagens.
A primeira parte é O Mestre de Apipucos, que começa com o sociólogo
andando pelo jardim junto à sua casa: “acordo com o canto dos maristas no convento próximo
e passeio entre as mangueiras e jaqueiras do jardim rústico”. A primeira cena, portanto, já
estabelece os dois elementos que determinarão os hábitos cotidianos retratados no filme: as
horas canônicas, que resguardam costumes ligados ao passado colonial, inclusive pela antiga
casa de engenho em que mora, e a natureza local. De fato, a ênfase nos usos consagrados pela
tradição pernambucana e nos elementos da terra está presente em todo o filme: quando mostra
o sociólogo trabalhando em sua biblioteca, este explica que escreve sempre em tábua de pinho
de riga, e interrompe o trabalho para o desjejum em um cômodo cujos azulejos trazidos de
Portugal no século XVII, sendo que a refeição é servida a ele e sua mulher por um empregado
negro, “há muitos anos com a nossa família”, que aparece usando uma casaca dólmã.
Mesmo nas cenas exteriores ao sítio, como a tomada na praia de Boa Viagem,
trazem uma relação íntima com o passado, senão histórico, individual: “não me canso de olhar
para as corres desse mar onde nado desde menino, e aqui ficaria para sempre (...)”. As
refeições prosseguem na mesma linha, quando Freyre aparece preparando, “quando
convidados, uma batida com pitanga, maracujá e hortelã, tudo do sítio de Apipucos”. É
importante que os elementos em cena apareçam como elementos “da terra”, herança de um
período em que o abastecimento das colônias era falho e demorado, e que de certa forma
ilustra o sentido de regionalismo defendido por Freyre em seu Manifesto. Mesmo as horas de
lazer parecem se reportar a tal ideário, uma vez que, “no final da tarde, deito-me na rede do
Ceará, fumando e relendo algum livro fora os da minha especialidade”, e que, no filme, trata-
se do volume de Poesias de Manuel Bandeira.
23
Joaquim Pedro de Andrade, o futuro diretor da versão cinematográfica de Macunaíma, era também afilhado de
crisma de Manuel Bandeira. Sobre as impressões de filmagem de Bandeira, v. a crônica “Fui Filmado”, em
Andorinha Andorinha, pp.6-7.
90
O close no livro que se encontra nas mãos de Gilberto Freyre estabelece uma
ligação visual com a segunda parte do documentário, O Poeta do Castelo, que não abre com
uma imagem de Manuel Bandeira, mas com uma tomada panorâmica da baía de Guanabara,
enquanto o poeta, ao fundo, recita o “Poema do Beco”. É importante notar que, ao contrário
da primeira parte do filme, o documentário sobre Bandeira não possui roteiro, mas o texto é
uma antologia de poemas seus. Assim, o “Poema do Beco” justifica o corte da panorâmica
para o beco, que não é mais a rua Morais e Vale, mais sim uma ruela no Castelo, onde o poeta
aparece caminhando e comprando uma garrafa de leite.
Ao contrário do filme sobre Gilberto Freyre, nesta parte do documentário
Bandeira está sempre sozinho, em atividades simples do cotidiano: cozinhar, tomar o
desjejum, escrever à máquina – provavelmente alguma crônica – e sair para a rua. O
apartamento dá para o famoso pátio de alguns poemas deste período, mas a ausência de outras
pessoas, bem como de algum elemento que determine uma rotina fixa, cria um contraste
muito nítido com a vida cotidiana que seu conterrâneo parece ter, ainda morando na cidade
natal: um sentimento de estabilidade e de ligação afetiva com os espaços do dia-a-dia aparece
de uma forma que está ausente neste cotidiano de Bandeira, de modo a confirmar, quase
involuntariamente, a oposição entre uma estabilidade própria da província e a ausência de
referências na vida da metrópole, pelas quais o poeta prosseguiria buscando em suas crônicas.
91
Capítulo III: Infância e Paisagem Urbana
No início dos anos trinta, Manuel Bandeira foi retratado por pintores de seu
círculo de amigos quatro vezes: em 1930, em um nanquim e em uma aquarela de Cícero Dias;
em 1931, em um quadro a óleo do alemão Friedrich Maron, hoje perdido; e por fim, no
mesmo ano, em um outro quadro a óleo de Cândido Portinari, feito especialmente para o
Salão de 31. De acordo com as peculiaridades do estilo de cada pintor e de sua visão e
convívio com o retratado, os retratos em conjunto nos ajudam, através de seus traços em
comum, a visualizar o poeta no início da década de 30. Entre essas quatro pinturas, a
semelhança que primeiro salta à vista é o fundo que aparece atrás da imagem de Bandeira – a
paisagem carioca.
“Lembro-me bem do largo da Glória e da praia da Lapa da minha meninice:
um desenho de Debret.”
Embora possa parecer exagerada a afirmação de que Bandeira procura, através
das crônicas, projetar as memórias de sua infância a um tempo não apenas anterior à
modernização das cidades do Rio de Janeiro e do Recife, mas a um tempo imemorial, muitas
vezes próximo ao período colonial brasileiro, a afirmação acima, da crônica “A festa de Nossa
Senhora da Glória do Oiteiro”, de Crônicas da Província do Brasil, sintetiza a visão do poeta
sobre o Rio de Janeiro. Não por acaso, Bandeira resume sua lembrança comparando-a a um
desenho de Debret: além de reportar-se a um dos artistas mais conhecidos que retratou o Rio
de Janeiro no século XIX, ele o faz remetendo a uma imagem plástica, mais particularmente
ao desenho, que, entre as artes plásticas, era a que mais o interessava
1
. Na crônica, Bandeira
1
“Sempre fui mais sensível ao desenho do que à pintura. Lembro-me ainda de certos momentos da minha
meninice em que me quedava maravilhado diante de certos desenhos dos grandes mestres do Renascimento,
especialmente de Leonardo.” Itinerário de Pasárgada, em Poesia Completa e Prosa, p.50.
92
descreve como a igreja da Glória manteve-se preservada apesar das mudanças nas construções
em torno, “que ela só e mais meia dúzia de palmeiras bastam a guardar a fisionomia
tradicional da colina”.
1. Das Laranjeiras ao Castelo
A série de Manuel Bandeira sobre a rua do Curvelo é completada pela crônica
“Zeppelin em Santa Teresa”, publicada somente mais tarde, em Andorinha, Andorinha. O
título faz com que a crônica pareça trazer uma visão panorâmica e do alto da vida no morro,
além da marca temporal de um fato histórico, a primeira passagem do Zeppelin pelo Brasil,
em 1930. A expectativa prossegue no primeiro parágrafo, que localiza geográfica (e mesmo
politicamente) o morro nas corografias brasileira e carioca, de modo a focalizar o miúdo – “a
minha provinciazinha do Curvelo”.
O que ocorre de fato na crônica, porém, é o movimento inverso: a passagem do
Zeppelin é um pretexto para que o cronista, que tem uma perspectiva de baixo, do morro,
percorra com os olhos a vida em Santa Teresa ao observar a passagem do dirigível. Em
primeiro lugar, Bandeira faz a crônica da vida da ruazinha – onde as brincadeiras das crianças,
as fofocas entre vizinhas, o trabalho das lavadeiras parecem reproduzir “a província a dez
minutos da avenida Rio Branco. Não é delicioso?”. Mas, por vezes, a vida do mundo de fora
parece tentar invadir esse reduto de paz e simplicidade, como no episódio, mencionado
também em “Lenine”, em que uma intervenção federal impede uma reunião partidária na casa
do comunista Otávio Brandão. Mas esse caso não parece tão importante quanto a passagem do
Zeppelin, anunciado com antecedência, não sem causar certa ansiedade no poeta. Bandeira,
então, imagina qual seria a reação na ruazinha a partir da emoção causada por um simples
balãozinho de São João, como aparece no poema “Na rua do Sabão”, de O Ritmo Dissoluto,
livro escrito nesse mesmo período da rua do Curvelo:
“Cai cai balão!
A molecada salteou-o com atiradeiras
assobios
apupos
pedradas
Cai cai balão!
93
Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas municipais.
Ele, foi subindo...
muito serenamente...
para muito longe...
Não caiu na rua do Sabão.
Caiu muito longe... Caiu no mar, – nas águas puras do mar alto.”
No poema, o espaço lírico da rua do Sabão se inspira no ambiente da rua do
Curvelo, e é dele que parte o balãozinho, que, escapando das mãos das crianças da rua, sobe
em direção ao mar, para cair “nas águas puras do mar alto”. “Pequena coisa tocante na
escuridão do céu”, transformado em estrela, o balãozinho representa o próprio cotidiano da
ruazinha, elevado à condição de matéria poética. O Zeppelin, por sua vez, é prenunciado pela
notícia de sua viagem ao Brasil, pelas fotografias e pela imaginação do poeta, que o
representa mentalmente nos pontos do Rio
2
. A aparição é anunciada, no morro, pela gritaria
da molecada: “Zipilim! Zipilim!”, que substitui o habitual “Olha lá um balão!”. Mesmo assim,
Bandeira flagra-se surpreso ao ver o dirigível que aponta à barra do Rio de Janeiro e avança
sobre a paisagem carioca com “estranha serenidade”, modelado pela luz que o faz parecer um
“escudo cintilante”, numa imagem que o assemelha à Lua. No momento em que o cronista sai
à rua para observar, sua visão é diferente do esperado: “Confesso que fiquei brutalmente
comovido: um Zeppelin por cima da ruazinha tão cotidiana! Também neste momento ela não
tem nada de cotidiano”, a começar pela turma da trinca do Curvelo, “toda arrumadinha
olhando o balão” (grifo meu).
Gradativamente, percebe-se que o centro da crônica não é o dirigível, mas o
povo simples da rua que o observa e que é observado pelo cronista, que vê tudo “como nos
desenhos de Cícero [Dias]”. À passagem quase mágica do Zeppelin, comparada a certa altura
à visão da mulher amada, também a visão da rua se transforma aos poucos não propriamente
em ficção, mas em quadro plástico, ao qual a imaginação do poeta acrescenta um toque
2
A crônica foi publicada pela primeira vez sob o título “Morro em polvorosa”, no Diário Nacional de 31 de
maio de 1930. Seis dias antes, em 25 de maio, Mário de Andrade lhe escrevera uma carta em que dizia: “Que é
isso de achar que já está vendo o fundo do cálice da amargura, Manu! Vai ver o Zeppelin, Manu! (...) Ora, Manu,
eu te digo que é preciso ir ver mesmo o Zeppelin, porque o fundo do cálice ainda não chegou (...)”.
Correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira, pp. 450-451. Note-se ainda que o título original da
crônica coloca em evidência a vida da rua do Curvelo, deixando o Zeppelin em segundo plano. Não mencionada
na crônica, a carta de Mário de Andrade também deve ter alimentado as expectativas do poeta a respeito da
aparição do Zeppelin.
94
surrealista ao lembrar-se dos desenhos de Cícero Dias. As imagens mescladas por Bandeira na
descrição da rua do Curvelo sobre a qual passa o Zeppelin trazem referências a diversas obras
de Cícero Dias, como as mulheres nuas de “Chegada de Muratori” (1927), para citar somente
um exemplo:
“Tem um sujeito tocando sanfona trepado numa palmeira da chácara de D.
Sebastião Leme! Tem mulheres nuas na platibanda das casas! Tem anjinhos
tristes oferecendo rosas ao corpo da mocinha que se matou em Madureira! Tem
sujeito jogando tênis com duas bolas! Tem um burro no teto de um bonde em
cima dos Arcos!”
Na crônica de Bandeira, não é somente a ruazinha do morro de Santa Teresa
que se transfigura em quadro surreal sob o olhar do cronista, mas também o Zeppelin que,
primeiramente chamado de “Zipilim”, se transforma, ao final, em simplesmente “balão” – ou
“balão de motô”, na linguagem das crianças –, pois é somente visto como balão, e nunca
como dirigível, que o Zeppelin poderia caber na rua do Curvelo. Assim, ao longo da crônica,
é delineado um duplo movimento: enquanto a vida no morro se eleva a quadro plástico, o
dirigível se reduz a um simples balão de São João, e o contraste que se anuncia no título –
“Zeppelin em Santa Teresa” – se concilia, ao final, numa harmonia que coloca os dois
elementos num mesmo plano, que privilegia a simplicidade. O dirigível precisa então seguir o
trajeto contrário ao do balãozinho de “Na rua do Sabão”, que se desprende do espaço da
ruazinha para, em direção ao mar, transformar-se em objeto de poesia: é a partir do momento
em que se transforma em um elemento do cotidiano, um balãozinho de papel, que o Zeppelin
pode se tornar matéria poética, integrando-se à paisagem do morro.
Esse movimento traduz, na verdade, a visão bandeiriana da cidade do Rio de
Janeiro, que o poeta conheceu em 1896, aos dez anos, quando sua família, vinda do Recife, se
muda para a travessa do Piauí e depois para a rua das Laranjeiras, onde “nunca brinquei com
os moleques de rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo”
3
. Aluno do
Colégio D. Pedro II, então Ginásio Nacional, Manuel deixaria a cidade em 1904, aos dezoito
anos, para estudar Arquitetura na Escola Politécnica, em São Paulo. Tendo adoecido no final
deste mesmo ano, tem início um longo período em que Bandeira percorre diversas cidades no
interior do país, à procura de um clima propício à sua saúde. Retorna ao Rio de Janeiro em
3
Itinerário de Pasárgada, em Poesia completa e Prosa, p.35.
95
1908, ao voltar de Quixeramobim, quando reside em Santa Teresa, com a família, pela
primeira vez.
A família se muda para o Leme em 1912, enquanto Bandeira parte para a
Suíça, para o tratamento no sanatório de Clavadel, em Davos-Platz, entre 1913 e 1914. Dois
anos mais tarde, em 1916, falece a mãe, D. Santinha, e sua família hospeda-se no hotel
Bellevue, na rua do Curvelo. Algum tempo depois, mudariam para outra casa, também em
Santa Teresa, onde faleceriam a irmã e o pai do poeta. “Definitivamente só”, Bandeira muda-
se para a rua do Curvelo, onde mora de 1920 a 1933. No seu endereço seguinte, na rua
Morais e Vale, no “coração da Lapa”, continuaria a ter contato diário com a pobreza “mais
dura e mais valente”, até mudar-se para o apartamento na Avenida Beira-Mar, no Flamengo,
onde passa a residir a partir dos anos quarenta.
Com o passar do tempo, a visão que Bandeira tem da cidade – ou, pelo menos,
a visão que deixa transparecer em suas crônicas – passa a se modificar, mais especificamente
a partir da década de 30, quando deixa o Curvelo, e ainda mais marcadamente a partir da
década de 50, já no apartamento da Avenida Beira-mar, período marcado, na História
brasileira, pelo acelerado processo de urbanização que culmina na fundação de Brasília. O Rio
de Janeiro deixa aos poucos de ser a província à beira-mar, tanto do gosto de Bandeira, para
se transformar em uma metrópole poluída e congestionada, diante da qual o cronista alterna
duas atitudes: ou a indignação do cidadão comum, que passa por apuros diante da burocracia,
colocando-se com “um homem misturado à vida, no seu mais limpo ou mais sujo cotidiano”
4
;
ou a fuga, pela imaginação, para cidades distantes – reais ou imaginárias – e para tempos
passados, nostalgia que não se abstém da crítica ao estado atual das coisas. Nesse contexto, o
Zeppelin seria o símbolo de um progresso que avança lentamente e domina a paisagem da
cidade: ao novo, Bandeira continua preferindo a sua ruazinha quotidiana.
Ponto de partida da rememoração da infância, o morro do Curvelo aparece, nas
crônicas de Bandeira, como um espaço ideal, quase idílico, isolado das agitações da
metrópole, apesar de próximo dela, e afastado das posturas municipais e instituições políticas,
como pertencente a um tempo anterior a elas. Protegido por uma muralha de imagens que
evocam um ambiente provinciano, descrito como um passado imemorial, o morro desenvolve
vida própria, com regras internas que desobedecem não somente as leis institucionais, mas as
da natureza: “(mas a paisagem que eu via da janela do meu quarto em Santa Teresa é obra de
4
V. “Correio da Espada”, em Andorinha Andorinha, p.17-18.
96
Deus, e também está errada, como posso provar aos interessados)”. Observando os garotos
que, aos treze e quatorze anos, ainda brincam de futebol na rua, mas também sustentam a
família vendendo jornais e ajudando a supervisionar o trabalho das mães, Bandeira parece
descrever um reino dominado pela infância, em que a lei é ditada por suas regras e
brincadeiras.
Com dez anos vim para o Rio.
Conhecia a vida em suas verdades essenciais,
Estava maduro para o sofrimento
E para a poesia! (“Infância”, em Belo Belo)
A crônica “Finados”, de Flauta de Papel, inclui-se entre os textos que
recordam o período da infância em que Bandeira viveu no Rio de Janeiro. Como sugere o
título, a crônica inicialmente discorre sobre o significado do dia de Finados para o poeta: com
o passar dos anos, ele alega dar maior importância à data em função da perda de pessoas
próximas, a começar pelos seus amigos e por artistas recentemente falecidos. Mas as suas
lembranças atêm-se àquela que chama de “sua mais velha amizade”, umas senhora “que
nunca foi outras coisa senão boa filha, boa esposa, boa avó, boa amiga...”. Dona Mariquinhas,
personagem desta crônicas, era vizinha da família Bandeira na travessa do Piauí, em um
ambiente que parece uma extensão da vida na rua da União, no Recife, contando mesmo com
a presença de uma filha de D. Aninha Viegas, D. Iaiá Viegas. Ela completa, desta forma, a
“mitologia” particular de Bandiera, da qual D. Mariquinhas também faz parte, integrando por
isso também um modo de vida “provinciano” que se aproxima do modo de vida
pernambucano, e parece encarnar a própria infância do poeta, ligando a rua da União ao início
da vida no Rio de Janeiro, onde a vida adulta começa a tomar o lugar. A lembrança de dona
Mariquinhas morta é, portanto, representativa da infância do poeta que chega ao seu fim: “Era
um pedacinho da rua da União no ambiente novo do Rio. Na rua das Laranjeiras, para onde
nos mudamos seis meses depois, o estilo de vida era outro: cada um em sua casa e não havia
que se meter com os vizinhos. A verdadeira infância começava a morrer”.
“Kafkaniana” parece ser o adjetivo mais adequado à cidade descrita em
“Ladainha”, de Flauta de Papel. Na crônica, a ladainha de Bandeira – aqui relacionada tanto
ao sentido religioso, de oração formada por uma série de invocações curtas, inspirada no caso
por São João Crisóstomo, quando ao sentido de cantilena, de discurso repetitivo e
interminável, como a fila enfrentada pelo cronista. O poeta alinha uma série de temas
97
freqüentes em suas crônicas, a maior parte delas relacionada à cidade: suas filas, seu trânsitos,
sua superlotação que a tornam “inabitável”, além de enfeada pelas novas construções e
monumentos, cuja arquitetura Bandeira desprezava. Em outras crônicas como esta, Bandeira
analisa a vida na metrópole a partir do ponto de vista do cidadão comum: o cronista se
encontra na rua, no meio de outras pessoas, obrigado como elas a idas e vindas e longas
esperas que, descritas num tom semelhante ao de uma ladainha, colocam em evidência a
absurda via-crúcis a que o cidadão é levado, fazendo assim uma crítica aberta à burocracia:
“Esperemos que em Brasília, onde, segundo o poeta Augusto Frederico Schmidt, o presidente
Kubitschek está fundando, como Enéas, uma nova Roma, as coisas se passem de maneira
diferente do que neste mundo de Kafka que é atualmente esta inabitável cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro”. (“O mundo de Kafka”, em Flauta de Papel)
A construção de Brasília, com a transferência da capital brasileira para o
planalto central, é um assunto recorrente nas crônicas do final dos anos 50 e do ano de 1960.
Durante o período de construção da nova cidade, desde a escolha do nome até o projeto
arquitetônico de Oscar Niemeyer, Bandeira comenta as notícias sobre a futura capital ou,
como no trecho acima, ao se sentir cansado da vida atribulada do Rio, projeta nela suas
esperanças de melhoria na vida cotidiana e mesmo política do país. Na crônica “Pêsames ou
parabéns?”, de Andorinha Andorinha, publicada dias depois da inauguração de Brasília e da
transferência da capital, em 21 de abril de 1960, refere-se às avaliações dos habitantes do Rio
de Janeiro da perda da condição de capital federal. Na manhã do dia em que Brasília se
tornaria definitivamente capital brasileira, o poeta “natural do Recife, pernambucano dos
quatro costados, mas cidadão carioca honorário” pergunta entre seus amigos nativos do Rio
sobre o seu sentimento em relação à mudança; e a conclusão do cronista é, naturalmente,
favorável aos benefícios do retorno da cidade à condição de província, graças ao
esvaziamento da cidade, subitamente silenciosa, sem movimento urbano nenhum, o que só
poderia ser salutar aos que ficaram:
“Rio querido! Conheci-te ainda Província, embora capital. Num tempo em que
as cidades não se construíam em três anos nem os homens enriqueciam em três
dias. Foi em 1896. Contando não se acredita: nas Laranjeiras da minha
infância, sossegado arrabalde (já sem Laranjeiras) os perus se vendiam em
bandos, que o português tocava pela rua com uma vara, apregoando ‘Eh peru
de roda boa!’. À porta da casa se tomava leite ao pé da vaca. Não havia
automóveis.”
98
Apesar da marca temporal, o Rio de outrora, o Rio da infância de Bandeira, é
descrito como se pertencesse a um outro tempo, quase imemorial, do qual surge uma cidade
que somente o poeta conheceu. É essa cidade mitológica, anteprojeto de Pasárgada, que o
cronista tem em mente quando contempla o Rio de Janeiro atua, vivendo-o “na quarta
dimensão, que é a do tempo, e não nas tristes três atuais dimensões”.
Bastante diferente, quando não oposta algumas vezes, é a visão de Rubem
Braga da mesma cidade. O cronista viveu em Cachoeiro do Itapemirim até os quinze anos,
quando, em 1928, expulso do Colégio Pedro Palácios, em sua cidades natal, mudou-se para o
Rio de Janeiro, para a casa de parentes no bairro de Vila Isabel, com o fim de terminar o curso
ginasial na cidade, onde também iniciou o curso de Direito, no ano seguinte. Ao contrário de
Bandeira, Braga ainda peregrinaria por diversas cidades, como Belo Horizonte, Recife, São
Paulo e países como Itália, França, Marrocos, Argentina e Chile, até os anos 60, quando se
fixa no Rio de Janeiro, numa cobertura em Ipanema. A primeira vez em que Braga foi ao Rio
de Janeiro data dos seus nove anos de idade, levado por uma irmã mais velha que também era
sua madrinha. Antes disso e, de acordo com as suas crônicas, e mesmo alguns anos depois, a
imagem que o cronista fazia era de um lugar mágico, chego de espaços enormes e coisas
misteriosas; esta imagem chegava de forma fragmentária, através de conversas entre os
adultos de sua casa, e dos embrulhos que traziam aqueles de Cachoeiro do Itapemirim que
viajavam ao Rio, trazendo encomendas e presentes, como Braga narra nas crônicas “Quando o
Rio não era o Rio”, de Ai de ti, Copacabana! e “Os Embrulhos do Rio de A Traição das
Elegantes.
Em primeiro lugar, a magia relacionada ao Rio de Janeiro atribuía-se, em parte,
aos nomes, a começar pelo nome da própria cidade. “Naquele tempo”, conta o cronista, “o
Rio não era o Rio. Eu me lembro muito bem quando começou essa moda de dizer: vou ao
Rio, cheguei do Rio. Até então nós todos dizíamos solenemente: Rio de Janeiro. E nos
debruçávamos sonhadoramente sobre os cartões-postais que as pessoas que iam ao Rio de
Janeiro mandavam: o bondinho do Pão de Açúcar (que era de Assucar) e o Corcovado, ainda
sem Cristo.” O uso do nome sempre completo indica uma espécie de reverência à cidade, uma
mistura de respeito e admiração que se estende a todos os seus lugares: o Pão de “Assucar” e
o Corcovado, além da Galeria Cruzeiro e do Pavilhão Mourisco, “dois palácios de maravilha
para a nossa imaginação; seus nomes soavam belíssimos”, e que os meninos de Cachoeiro do
Itapemirim imaginam, formando diversas imagens, todas remetendo a países distantes e terras
99
de contos de fadas. A imagem e o fascínio exercido pelo Rio de Janeiro chegam de forma
fragmentária, através de pacotes e embrulhos trazidos pelos parentes que viajam à cidade. No
retorno, a chegada e abertura das malas e distribuição dos presentes constitui, aos olhos das
crianças, um misto de espetáculo e cerimônia ao qual não se compara uma festa de Natal:
“Quando meus pais ou minha irmã voltavam de um passeio ao Rio, nós todos,
os menores, ficávamos olhando com uma impaciência quase agônica as malas e
valises que o carregador ia depondo, na sala. (...) os brinquedos e os presentes
para homens e coisas para uso caseiro eram visões sensacionais. Jogos de
papelões coloridos, coisas de lata com molas imprevistas, fósforos de acender
sem caixa, abridores de latas, sopa juliana seca, isqueiro, torradeiras de pão,
coisas elétricas, brilhantes e coloridas – todo o mundo mecânico insuspeitado
que chegava ao nosso canto de província. E também programas de cinema,
cardápios de restaurantes...
Na descrição que Braga faz dessa pequena festa, parece haver todo um
cerimonial, um rito que se repete com certa freqüência e de forma invariável: a chegada dos
carregadores e do “mistério inumerável” das malas, já cercadas pelas crianças; a abertura de
volumes que parecem infinitos, a começar pelas encomendas femininas, roupas e enfeites,
distribuídas na família e na vizinhança, pois “a alegria era para todos da casa e da família, e se
derramava em nossa rua pelos vizinhos e amigos”. Depois de uma longa espera, chegam os
presentes para as crianças: “ ‘Isto é para você!’ Era fascinante receber um embrulho de
presente com o nome da loja impresso na fita que o amarrava.” Finalmente, vem a abertura
das encomendas dos homens, objetos mecânicos e utilidades domésticas, objetos que são
trazidos para transformar a vida cotidiana mas que, para o cronista, só têm o efeito de aturdi-
la um pouco, antes de voltar à rotina anterior do “canto de província”.
Como nos brinquedos que as crianças produzem a partir dos restos da vida
adulta, os meninos de Cachoeiro fazem a sua própria viagem ao Rio de Janeiro, através de
coisas aparentemente sem valor: “programas de cinema, cardápios de restaurantes... Seriam,
afinal de contas, coisas de pouco valor; os grandes engenhos modernos estrangeiros estavam
fora de nossas posses e de nossa imaginação. Mas para nós tudo era sensacional”. As coisas
trazidas do Rio de Janeiro exercem um fascínio irremovível mesmo quando a sua utilidade
prática não era muito interessante: “Mas o que mais me impressionou foi uma sopa juliana.
Eu nunca tinha ouvido falar de sopa juliana, não era prato que se usasse em minha casa. E não
gostei da sopa: era de verduras e legumes. Mas o espantoso é que vinha seca, em um
100
envelope, e quando se punha n’água crescia, tomava cores. As coisas do Rio de Janeiro eram
assim, cheias de milagres e de astúcias.” (grifo meu)
Na crônica “Vingança de uma Teixeira”, por exemplo, o pomo da discórdia
entre as crianças que brincam na rua e as irmãs Teixeiras era a bola de futebol, questão que se
agrava quando os meninos ganham uma bola nova: “A troca da bola de meia para a bola de
borracha foi uma importante evolução técnica do association em nossa rua. Nossa primeira
bola de borracha era branca e pequena; um dia, entretanto, apareceu um menino com uma
bola maior, de várias cores, belíssima, uma grande bola que seus pais haviam trazido do Rio
de Janeiro. Um deslumbramento; dava até pena de chutar. Admiramo-la em silêncio; ela
passou de mão em mão; jamais nenhum de nós tinha visto coisa tão linda.” (grifo meu)
Quando a bola quebra uma vidraça e a vizinha a fura e corta, na frente dos meninos, toda a
indignação com que eles se vingam da Teixeira parece voltar-se contra o fato dela ter
destruído uma bola vinda do Rio de Janeiro, uma peça rara e preciosa, que passara de mão em
mão como se faz com as jóias.
A proximidade do Rio de Janeiro com países de lenda e contos de fadas,
sugerida pela sonoridade dos nomes de lugares, é reforçada pelas associações que, em
menino, Rubem Braga estabelece entre a cidade e as pessoas que viajam para lá: “As pessoas
grandes que chegavam do Rio traziam malas fabulosas, cheias de presentes para todos, além
de dezenas de encomendas, todas escritas cuidadosamente em uma lista com letra feminina.”
“E o dia inteiro ouvindo a conversa dos grandes, que davam notícias de amigos, comentavam
histórias, falavam da última revista de Araci Côrtes, no Recreio, da última comédia de
Procópio ou de Leopoldo Fróis ou da doença dos nossos parentes de Vila Isabel – ainda
ficávamos tontos, pensando nesse Rio de Janeiro fabuloso, tão próximo e tão distante.” “(...) E
à noite, quando vinham visitas, os viajantes contavam as últimas anedotas do Rio de Janeiro,
pois naquele tempo não havia dio.” (grifos meus) Por uma série de associações, que o
cronista tenta reconstituir, em menino Braga acreditava que o Rio de Janeiro não era um lugar
para a infância, mas exclusivo para os adultos, com lugares que somente adultos pudessem
freqüentar e assuntos sobre os quais somente adultos eram capazes de conversar. As
conversas sobre o Rio de Janeiro substituem, no interior do país, o rádio, e as notícias chegam
à cidade através dos viajantes, como nas antigas aldeias.
“Lembro-me que, apesar de sentir esse fascínio do Rio de Janeiro, eu não
pensava nunca em vir aqui. Isso simplesmente não me passava pela cabeça; o
101
Rio era um lugar maravilhoso, onde vinham pessoas grandes e até eu pensava
vagamente que no Rio de Janeiro só devia haver pessoas grandes. Era verdade
que havia, por exemplo, um menino, o Zezé, filho de seu Osvaldo, que vinha
ao Rio de Janeiro; ele usava sapatos, quando nós todos usávamos botinas. Mas,
mesmo pelo fato de usar sapatos e vir ao Rio era como se ele fosse uma pessoa
de outra raça, não uma criança como nós. Eu não chegava sequer a invejá-lo,
tão diferente de nós eu o achava. Zezé tinha até um sapato de duas cores,
branco e vermelho; e nós com nossas botinas pretas, sempre de bico
esbranquiçado de tanto chutar pedra na rua, sempre com os cadarços meio
arrebentados, difíceis de enfiar.”
Aqui, o uso de sapatos e não de botinas parece equivaler ao uso de calças
compridas, que na época diferenciava os rapazes crescidos dos meninos de calças curtas;
apesar de, aparentemente, ser da mesma idade do narrador, o menino Zezé não é encarado
com uma criança como as outras, mas quase como um adulto, o que reforça sua argumentação
de que o Rio de Janeiro seria um lugar somente de pessoas adultas. Esse pensamento explica o
espanto do menino Rubem quando, aos nove anos, sua irmã, que era também sua madrinha,
convidou-o para ir com ela e o marido ao Rio de Janeiro: “Ela disse que era um prêmio
porque eu tinha tirado boas notas nos exames. Lembro-me de que minhas notas tinham sido
apenas regulares, de maneira que achei aquele convite uma honra, uma distinção que eu
mesmo sabia que não merecia muito.”
Braga narra, em “Quando o Rio não era o Rio”, brevemente sua primeira visita
ao Rio de Janeiro, os lugares que visitou em uma roupa de marinheiro, traje de passeio
comum às crianças da época. Curiosamente, porém, conhecer pessoalmente esses lugares não
parece ter fascinado o menino da mesma forma que eles o encantavam à distância, na
conversa dos adultos e nos pacotes de embrulho; e, com muito humor, Braga conta que
“riram muito de mim em Cachoeiro quando perceberam que a coisa de que eu mais havia
gostado no Rio foi me deixarem ajudar a lavar a casa lá em Icaraí, despejar baldes d’água no
assoalho de tábuas largas; porque eu falava mais disso que da Exposição do Centenário da
Independência.” Em “Receita de Casa”, o cronista já tinha falado dessa tarefa doméstica como
uma diversão para as crianças, de modo que ao menino Rubem ainda agradava o que lhe
parecia mais familiar. O Rio de Janeiro continuava sendo um lugar para a vida adulta, no qual
tanto Rubem Braga quanto Manuel Bandeira só julgaram viver depois de passada a infância.
As crônicas que vimos analisando apresentam dois pólos espaciais básicos: a
cidade grande, ou metrópole, capital da República, de onde o escritor evoca suas memórias, e
a cidade do interior, encravada no meio rural, aonde remetem as lembranças e o cronista só
102
retorna ocasionalmente. Ambos espaços exercem funções opostas mas complementares na
memória e na identidade daquele que escreve e que associa, de maneira quase automática, a
capital à idade adulta e a província, à infância. Tanto Manuel Bandeira quanto Rubem Braga
reproduzem, em suas crônicas de memórias, essa oposição básica na história da literatura:
embora não tenham sido homens do campo, eles transfiguram o seu imaginário para a
província ou cidade do interior, que é o lugar de origem que cunha a identidade do sujeito –
Bandeira define-se como “Provinciano que nunca soube / escolher bem uma gravata” (“Auto-
retrato”, grifo meu) e Rubem Braga, como “menino da roça” –, integrando o seu passado mais
remoto que se confunde com um tempo edênico, enquanto a cidade e o espaço urbano
representam o presente imperfeito da idade madura, em que Bandeira se torna “um velho sem
passado” e “um tísico profissional”, e Rubem Braga, “um pobre homem de cidade”.
A importância dessa oposição se apresenta logo nos títulos das coletâneas de
crônicas publicadas ao longo da vida. Na bibliografia de Rubem Braga, ao lado de títulos
marcadamente urbanos como Ai de Ti, Copacabana! e A Traição das Elegantes, encontramos
um que expõe claramente essa contraposição: A Cidade e a Roça. Bandeira, por sua vez,
escolheu para sua primeira antologia de crônicas o título Crônicas da Província do Brasil,
pois “até mesmo escrevendo crônicas / ficou cronista de província” (“Auto-retrato”). Em
diversos textos, o modo de apresentação do cronista como um “menino de roça” ou
“pernambucano carioquizado”, diante de um público predominantemente citadino, revela a
intenção de marcar essa oposição em suas origens, que se tornam referência para a leitura.
“O homem a passeio lamenta a perda da alameda onde costumava tomar ar
fresco e se aflige ao ver desaparecer mais um detalhe pitoresco que o ligava a
este quarteirão. Um outro habitante, para quem esses velhos muros, essas casas
decrépitas, essas passagens escuras e essas ruas sem saída faziam parte de seu
pequeno universo, e cujas lembranças se ligam a estas imagens, agora apagadas
para sempre, sente que toda uma parte de si mesmo está morta com essas
coisas e lamenta que elas não tenham durado, pelo menos tanto tempo quanto
lhe resta para viver.”
5
5
Maurice Halbwachs. A Memória Coletiva, p.137.
103
2. Ai, Árvores!
Ó verões de antigamente!
Quando o Largo do Boticário
Ainda poderia ser tombado.
Carambolas ácidas, quentes de mormaço:
Água morna das caixas d’água vermelha de ferrugem:
Saibro cintilante...
O sol é grande. Mas, ó cigarras que zinis,
Não sois as mesmas que eu ouvi menino.
Sois outras, não me interessais...
Dêem-me as cigarras que eu ouvi menino.
Largo do Boticário
No poema “Elegia de Verão”, de Opus 10, o eu-lírico ouve as cigarras que
zinem em um passeio pela rua das Laranjeiras, primeiro endereço de Manuel Bandeira no Rio.
A estação marca e representa o tempo que passa, cuja melancolia é mimetizada pelo canto das
cigarras. Ao mesmo tempo, estas cigarras apenas imitam as mesmas de outro tempo, que o eu-
lírico realmente deseja ouvir. Este ‘outro tempo’, caracterizado apenas como “antigamente”,
de conotação referente a uma época distante, é precisado logo em seguida: “Quando o Largo
do Boticário / Ainda poderia ser tombado”. O Largo do Boticário é um dos temas persistentes
a que as crônicas de Bandeira retornam periodicamente: no anos 50, mesma época da
publicação de Opus 10, Bandeira escreveu duas crônicas, “Rio Antigo” e “Largo do
Boticário”, em que conta a sua versão da história e da arquitetura do lugar, inclusive com a
intenção de contradizer outras versões.
Em 1955, Bandeira acompanha a publicação original do livro Memórias da
Cidade do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy
6
. Inicialmente, a crônica comenta e elogia a
obra, que conta a história da cidade através de sua topografia e toponímia, que Bandeira
confronta com o que conheceu na sua infância. O cronista destaca, porém, deixando para o
final, a polêmica a respeito do Largo do Boticário, que havia sido tema de outra crônica,
publicada pouco antes e também incluída em Flauta de Papel: “Diz Coaracy que o pitoresco
recanto das Águas Férreas conserva intacto até hoje o aspecto das zonas residenciais da
104
Cidade Antiga. Ora, o atual Largo do Boticário é uma falsificação do século XX: casas,
calçamento, chafariz, tudo, salvo a mangueira. Conheci em menino o autêntico Largo do
Boticário. Por isso não posso ver ser revolta a sofisticação ali praticada” (grifo meu).
A partir do comentário a respeito do livro de Coaracy, o cronista, “com a
autoridade de quem conheceu o Largo do Boticário aí por 1897”, critica as reformas das casas
em que “o velho autêntico tinha sido substituído pelo velho fingido”, conferindo um estilo a
que chama “colonial enfeitado” a construções anteriormente caracterizadas por traços retos e
simples, dos acabamentos ao piso: ao lado de uma casa inteiramente nova, encontra-se outra
também nova, feita de materiais retirados de casas velhas, a que se seguem casas antigas,
reformadas com a intenção de “dar-lhes um ar mais colonial do que elas tinham”. Vemos que,
nesta crônica, Bandeira repete as críticas feitas a chamado estilo neocolonial, publicadas duas
décadas antes em “Arquitetura Brasileira”, de Crônicas da Província do Brasil: “Fabricaram
com detalhezinhos de ornato um estilo, deram-lhe um nome errado, e aí está, nas casinhas
catitas de telhas curvas e azulejos enxeridos, em que deu o renascimento da velha arquitetura
brasileira (...). Nada disso é ‘casa brasileira’, não basta azulejo e telha curva para fazer
arquitetura brasileira”.
Bandeira acrescenta um toque irônico final ao sugeria que se mudasse o nome
do lugar para, “com mais propriedade e modernidade, Praça do Farmacêutico”. No gesto em
que descreve e aponta, casa por casa, as alterações e, principalmente, as deformações sofridas
pelo Largo, o cronista liga o seu passado individual ao passado da cidades, transformando um
problemas de gosto arquitetônica em uma questão cultural, por envolver a memória do país;
em meio às alterações feitas no Largo, o olhar de Bandeira busca a simplicidade e a pureza de
linhas do “colonial autêntico”, sugerindo por fim a alteração de seu último elemento ainda
intacto, o nome.
Se a crônica “Rio Antigo” contesta a versão de Vivaldo Coaracy para a história
do largo, “Largo do Boticário”, ao qual pertence a citação anterior, é introduzida como uma
explicação feita a um amigo do cronista, que se mudara recentemente para o local e o
acreditava tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ao final da enumeração
das alterações produzidas no Largo, definidas sempre como deformações, Bandeira aponta o
único elemento “autenticamente velho” do lugar: a mangueira, uma árvore localizada à
6
Publicado originalmente em 1955, o livro seria reeditado por Bandeira e Drummond, dez anos mais tarde, em
uma coleção comemorativa dos 400 anos do Rio de Janeiro, coleção em que se incluiu também a seleção O Rio
de Janeiro em Prosa e em Verso, com poemas e crônicas de diversos autores, inclusive dos organizadores.
105
entrada do Largo, e que a crônica noticia ter sido então destruída por vândalos que tinham
ateado fogo ao seu tronco, já debilitado pelo veneno com que se combatiam os ratos nas
moradias. Dessa forma, a árvore quase destruída e prestes a ruir, como um monumento mal
preservado, com as raízes enfraquecidas, leva consigo toda a legitimidade histórica do local.
Isolada entre construções que apenas simulam um passado, imitando a época de construção do
Largo, sufocada pela terra coberta por um piso novo, de lajes, e pela ignorância da população
que joga veneno e ateia fogo sem pudores, a árvore representa um monumento solitário do
Rio de Janeiro descrito por Bandeira em suas crônicas, às vezes livres de reformas que o
descaracterizem, mas nunca da destruição.
De outro lado, o Rio de Janeiro que Bandeira conheceu em sua infância, e
muitas vezes também o seu Recife, é identificado por elementos isolados ou trechos da
paisagem que se destacam aos seus olhos e abrem fendas pelas quais é possível enxergar,
mesmo que por instantes, o passado do cronista. Em cada cidade revista ou revisitada, que
nunca se encontra da mesma maneira que na memória, o que se espera é encontrar o passado
intacto, como um objeto perdido em uma viagem a que se retorna e tenta recuperar. Para
Bandeira, apenas pode contar como histórica a construção que permaneceu intocada e
preservada; a restauração, quando realizada, nunca é considerada satisfatória para manter a
autenticidade histórica do lugar, e é nesta atitude que o leitor começa a ver o modo em que se
confundem o antigo morador saudosista e o ex-estudante de arquitetura, e mesmo para
aqueles que conhecem o Rio de Janeiro e os lugares descritos por Bandeira torna-se difícil
fazer essa distinção com clareza:
Não tens laranjas, mas cheiras
Aos frutos da minha infância
Ah inesquecível fragrância
Da que ainda és das Laranjeiras!
Como no poema “Elegia Inútil”, publicado em forma de crônica em 1959
7
,
como continuação a uma outra crônica, que comenta a alteração do nome de algumas ruas na
cidade, a certo ponto não se distinguem mais, na percepção dos habitantes, o limite entre as
árvores e a rua, entre a rua e aquilo que a nomeia: todos integram um passado que o sujeito
7
Andorinha, Andorinha, pp.376-377.
106
tenta a todo custo preservar, mesmo que seja em conversas com os amigos ou em crônicas de
jornal.
Um Pé de Milho
Se Manuel Bandeira busca no Rio do presente o mesmo Rio de sua infância,
Rubem Braga, que se mudou para a cidade apenas na adolescência, também não deixa de
procurar traços que remetam à sua infância capixaba no meio urbano. Bandeira encontra, na
mangueira à entrada do Largo do Boticário, o único elemento remanescente da cidade de sua
infância; Rubem Braga, por sua vez, dedica várias crônicas, algumas de suas mais marcantes,
a árvores encontradas nas cidades em que mora e que evocam outras, companheiras de sua
infância: pés de romã, cajueiros, tamareiras e até mesmo a ausência de árvores despertam a
nostalgia da infância. As crônicas a serem analisadas apresentam dois pólos espaciais básicos:
a cidade grande ou metrópole, especialmente a então capital da República, de onde o escritor
evoca as suas lembranças, e a cidade do interior, para onde elas remetem e a que o cronista só
retorna ocasionalmente. Ambos espaços exercem funções opostas, mas complementares, na
memória e na identidade daquele que escreve e associa a capital à idade adulta e a província à
infância.
Apesar de em meados do século XX o Brasil ainda ser um país
predominantemente rural, a maioria dos escritores vivia em centros urbanos. Principalmente
em crônicas, em função da relação muito próxima do gênero com o cotidiano do cronista, os
problemas imediatos do cotidiano urbano são a premissa de praticamente qualquer crônica,
especialmente daquelas em que se evoca o passado interiorano ou rural. Na contraposição que
se estabelece naturalmente, o campo ou a cidade de interior é o fulcro em que se repõem a
calma, a tranqüilidade e o bem-estar, e o simples pensamento de volta à cidade natal
transforma-se em bálsamo para os aborrecimentos da vida urbana e madura; quando esta
significa também o dilaceramento e a confusão em meio à multidão, o retorno à cidade natal
recupera o passado, notadamente o familiar, e a identidade, muitas vezes por metonímia: em
“Havia um pé de romã”, Braga localiza a árvore na “corografia íntima” das vivências de sua
infância: “Penso em muitas coisas aqui, neste chuvoso domingo, olhando um pé de romã no
107
quintal de uma cidade estranha; em mais coisas do que jamais conviria lembrar na manhã de
um domingo chuvoso, depois de tudo o que houve, e o que não houve, no tempo que passou”.
Em meio à arquitetura hostil, seja ela formada por construções novas, para
Manuel Bandeira, ou simplesmente por edifícios, para Rubem Braga, uma única árvore ergue-
se solitária para recordar a infância, como se fosse uma antiga foto de família, seja uma
romãzeira no quintal de uma casa alugada, seja a mangueira que resiste à entrada do Largo do
Boticário. Outras árvores surgem em crônicas, admiradas como monumentos do passado mais
confiáveis do que as construções que podem ser reformadas, demolidas, substituídas ou
mesmo ruir: as laranjeiras que desaparecem do bairro ao qual dão o nome, o cajueiro no
quintal da casa dos Braga, em Cachoeiro do Itapemirim. Mas a planta mais célebre das
crônicas de Braga, embora não remeta diretamente à infância, é “Um pé de milho”, crônica
publicada na coletânea homônima e escrita em dezembro de 1945, que narra o surgimento de
um pé de milho no quintal do cronista. Em contraposição à grande notícia da semana – o
primeiro contato dos americanos com a lua através do radar, um dos passos rumo à corrida
espacial –, o cronista privilegia o acontecimento em seu quintal. A crônica estende-se por três
parágrafos, que descrevem em detalhes o surgimento, o crescimento e a floração do pé de
milho. Se no início geram-se dúvidas sobre sua natureza e confundem-no com um pé de
capim ou de cana, em seguida o cronista a confirma com orgulho de quem fala de uma criação
própria:
“(...) é um esplêndido pé de milho. Já viu o leitor um pé de milho? Eu nunca
tinha visto. Tinha visto centenas de milharais – mas é diferente. Um pé de
milho sozinho em um canteiro, espremido junto ao portão, numa esquina de rua
– não é um número numa lavoura, é um ser vivo e independente. Suas raízes
roxas se agarram no chão e suas folhas longas e verdes estão imóveis. Detesto
comparações surrealistas – mas na glória do seu crescimento, tal como o vi em
uma noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, as crinas ao
vento – e em outra madrugada parecia um galo cantando.
O pé de milho não é propriamente a lembrança ou o símbolo de uma vida
campestre ou provinciana; ele representa uma vida que brota de forma independente no meio
urbano, remetendo a uma vida diferente deste, mas que já não é mais a vida interiorana, e sim
um fragmento idealizado dela. Livre da exploração econômica, do destino de ser um número
num milharal, o pé de milho do cronista ganha a liberdade de representar outras imagens,
deslocadas de sua incômoda situação, confinado junto ao muro numa esquina – posição
108
análoga à do cronista. Um elemento em comum em todas as descrições de árvores
encontradas em crônicas é a ausência de referências aos seus frutos: não estamos diante de um
agricultor que precisa garantir a sua sobrevivência, mas de um narrador que, à semelhança do
narrador dos romances de José Lins do Rêgo, desloca a atenção da perda de um meio de
subsistência para uma perda afetiva.
Da mesma forma que “O cacto” de Manuel Bandeira ou a rosa de Carlos
Drummond de Andrade, Rubem Braga cria o seu próprio símbolo que para o indivíduo que
vive deslocado no meio urbano, mas que tampouco pode voltar ao seu lugar de origem.
Mesmo aquele que cresceu na cidade grande e a ela retorna mais tarde pode sentir o mesmo
deslocamento, embora esta ocorra apenas na passagem do tempo, como na declaração
recolhida por Braga na crônica “As pitangueiras d’antanho”: “Em meu quarteirão não há só
uma cada do meu tempo de menina. Se eu tivesse passado anos fora do Rio e voltasse agora,
acho que não acertaria nem com a minha rua. Tudo acabou: as casas, os jardins, as árvores. É
como se eu não tivesse tido infância...”. (grifo meu)
“Assim, a perda mais lamentada – a das ‘coisas mais queridas’ – é a perda da
infância causada pela destruição da paisagem imediata (...) Uma maneira de se
ver foi associada a uma fase perdida da vida, e a associação entre a felicidade e
a infância deu origem a toda uma convenção, na qual não apenas inocência e
segurança, mas também paz e abundância, foram incorporadas, de modo
indelével, primeiro à paisagem, e depois, numa extrapolação poderosa, a uma
período específico do passado do campo, agora ligado a uma identidade
perdida, a relações e certezas perdidas, na lembrança do que é denominado, em
contraposição a uma consciência presente, natureza. O sentimento primevo é
tão intenso que inevitavelmente se associa a muitas outras experiências.”
8
No processo da memória, o tempo sobrepõe-se ao espaço; por esta razão, o
retorno a este nunca é inteiriço. Bandeira e Braga são homens da província que migraram para
o grande centro e forjam, em função do deslocamento no espaço, imagens idílicas do passado.
8
Análise da Pastoral Poesy de John Clare. Raymond Williams, O Campo e a Cidade na História e na
Literatura, p.196.
109
3. Carnavais
O tema do carnaval é uma das constantes na obra bandeiriana. Não apenas
título de seu segundo livro de poemas, as imagens ligadas à festa popular retornam em outras
obras, as imagens ligadas à festa popular retornam em outras obras, como o poema
“Mascarada”, de Estrela da Tarde, e em diversas crônicas: “Os maracatus de Capiba”, “Ecos
do Carnaval” e “Carnaval”, de Flauta de Papel, “Está morrendo mesmo”, de Andorinha
Andorinha e “Carnavais de Outrora”, de Colóquio Unilateralmente Sentimental. Nessas
crônicas, Bandeira rememora os antigos carnavais do Rio de Janeiro e do Recife, geralmente
em comparação com as festas do momento presente, estas sempre postas em desvantagem em
tais comparações. “Carnaval” e “Os maracatus de Capiba”, por exemplo, trazem lembranças
de carnavais vividos por Bandeira no Recife, ainda menino, e contam a história de seu
“primeiro carnaval”, datado de 1894, quando o poeta tinha oito anos:
“Os primeiros carnavais, no Recife, vocês sabem, uma cidade que existiu à
beira do Atlântico, em Pernambuco, mais ou menos a 8,0 e pouco de latitude
sul e 35,0 de longitude a oeste de Greenwich (era vizinha de Olinda, que ainda
existe, mas está sendo pouco a pouco devorada pelas marés).
O carnaval visto de um primeiro andar na rua da Imperatriz, os clubes
desfilando em cantorias, Vassourinhas, Lenhadores...
Quem foi, quem viu?
Quem deu sinal?
E um préstito com grandes carros, um deles representando o globo, e de uma
aberta, em cima, saía de vez em quando a cabeça de José Maria de
Albuquerque – Zé Maria no oco do mundo. O primeiro dominó preto que vi...
O mistério de uns olhos atrás da máscara negra. O maior mistério do mundo.
Se o mascarado mostrava o rosto, era uma cara como qualquer outra. Tornava a
pôr a máscara, o mistério reinstalava-se.”
110
Carnaval próximo
Bandeira recorda os carnavais do Recife como se pertencessem a um tempo
muito distante, no qual localiza a sua própria infância. Mesmo geograficamente, o Recife de
Bandeira já é descrito como um sítio histórico, engolido pelas marés que agora devoram
Olinda. Essa atitude do cronista é uma escolha de perspectiva, comum às suas crônicas sobre
cidades, como o Rio de Janeiro, mas especialmente sobre cidades do Nordeste. Em uma
atitude que sobrevaloriza as próprias recordações, ampliando o seu significado, Bandeira as
projeta em uma distância histórica e geográfica. O menino testemunha a festa de uma certa
distância, da sacada de uma das casas na rua pela qual passa o desfile de carnaval, como era o
costume em Olinda, Recife e mesmo no Rio de Janeiro. Dali ele observa cada grupo que
desfila, seus gritos de carnaval, os primeiros carros alegóricos e, especialmente, o fascínio das
máscaras, no encontro com um maracatu.
Embora não seja uma festa ligada à infância, lembranças de carnavais estão
presentes em textos do memorialismo brasileiro, nos quais as máscaras e as fantasias, menos
aquelas que as crianças vestiam do que as usadas pelos estranhos e pelos adultos, aparecem
como elemento central. Em Rubem Braga, por exemplo, a crônica “Receita de Casa” inclui,
entre as relíquias de família encontradas no porão, “as fantasias de carnaval do ano de 1920”,
data em que o cronista contava sete anos. Em “Carnavais de Antigamente”, de A Traição das
Elegantes, Braga recorda algumas impressões guardadas dos carnavais de sua infância em
Cachoeiro do Itapemirim:
“O que me encantava, e até hoje me seduz no carnaval, era a transfiguração das
pessoas. As pessoas grandes que eu via todo dia em Cachoeiro, sérias, em seus
trajes vulgares, de repente viravam piratas, cowboys, esqueletos, cossacos,
índios, sultões, mosqueteiros, palhaços, cozinheiros, almirantes. De um certo
ponto de vista parece que eu ‘acreditava’ um pouco nas fantasias, isto é,
passava a associar aquelas pessoas às fantasias que tinham usado no carnaval,
como se essas fantasias fossem a sua verdade secreta. O disfarce era uma
revelação, eis o que eu sentia inconscientemente.”
No porão, a descoberta, pelas crianças, das fantasias velhas de carnaval servia
para mostrar que “as pessoas grandes já foram crianças, a sua avó já foi a bailes, e outras
coisas instrutivas que são um pouco tristes mas que hão de restaurar, a seus olhos, a dignidade
corrompida das pessoas adultas”. Função semelhante é atribuída pelo menino à própria festa
de carnaval, em que as máscaras e as fantasias, ao contrário de esconder ou encobrir, revelam
111
as identidades sob a superfície. “O cheiro dos lança-perfumes, os confetes, a serpentina, a
música, tudo era transfiguração”. Como na própria crônica, aos olhos da criança assombrada
e desperta, os elementos cotidianos – as pessoas de convívio familiar e próximo, as ruas da
cidade – são capazes de revelar uma segunda vida através do acréscimo ou deslocamento de
um único elemento, como, em outro momento da mesma crônica, o rapaz de família que
desfilava com as prostitutas e se tornava, no dia seguinte, no baile do Clube dos Caçadores,
um intocável, rejeitado por todas as moças.
Da mesma cidade natal de Manuel Bandeira, em algumas de suas crônicas,
Clarice Lispector
9
também recorda os carnavais de sua infância no Recife, no início dos anos
30. Na crônica “Restos do Carnaval”
10
, a cronista recorda a sua expectativa e alegria contida
diante da festa de carnaval, da qual, no entanto, não participava – a frase “nunca haviam me
fantasiado” aparece em dois momentos – porque sua família, cuidando de sua mãe doente,
não tinha tempo para “carnaval de criança”. Por isso, a menina Clarice limitava-se a assistir
ao desfile da porta de sua própria casa, espaço intermediário entre o ambiente de cuidados em
torno de sua mãe e a rua onde acontecia a festa, “como se as praças e ruas do Recife enfim
explicassem para que tinham sido feitas”. O Carnaval, portanto, era para ela apensa registrar a
alegria dos outros, a música e as fantasias, das quais, naturalmente, o que mais fascinava eram
as máscaras:
“E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque
vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano
também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um
mascarado falava comigo eu de súbito entrava no contato indispensável com o
meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados,
mas de pessoas com o seu mistério. Até o susto com os mascarados, pois, era
essencial para mim.”
A criança assusta-se com a máscara, ou, mais exatamente, assusta-se com a
vida que se revela através de um rosto estático e aparentemente inanimado, ao falar. Como na
crônica de Braga, a máscara revela um mistério, antes de ocultá-lo, e coloca cada pessoa
fantasiada no mesmo universo mítico os personagens dos contos de fadas e nas antigas
histórias de família. Mesmo que relativamente protegida pelo espaço doméstico em que se
9
A escritora, nascida na Ucrânia em 1925, a escritora criou-se em Maceió, Alagoas e no Recife, Pernambuco,
antes de instalar-se no Rio de Janeiro aos doze anos de idade. “Guardo de Pernambuco até o sotaque. Quem vive
ou viveu no norte tem uma forma de ser brasileiro muito especial. O norte marca muito a gente”.
10
A Descoberta do Mundo, pp.63-65, 16 de março de 1968.
112
encontra – e é possível observar que os carnavais infantis destas crônicas se passam em
ambientes familiares à criança, como a rua defronte à casa ou a escola, sob proteção –, a
menina não pode evitar o contato ligeiramente chocante com os mascarados, que desencadeia
um processo de descoberta que, embora identificado com a infância, culmina na vida adulta.
Voltando às crônicas de Manuel Bandeira, em “Carnaval” não apenas as
máscaras intrigam o menino Manuel. A crônica não cita a idade, mas Bandeira, ao que tudo
indica, era muito pequeno quando teve o seu primeiro encontro com um maracatu, que narra
em detalhes em outra crônica de Flauta de Papel, “Os maracatus de Capiba”:
“O maracatu... espraiando-se à sombra da gameleira do cais da Rua da Aurora,
esquina de Imperatriz. Aquilo já não parecia carnaval. Era África. Até hoje
vejo a África através daquele maracatu. Me metia medo, a ponto que anos
depois, na praia José Menino, em Santos, morávamos numa chácara a que se
acedia por uma longa alameda de bambus e eu, no lusco-fusco das tardes,
receava que pelo portão me embarafustasse um maracatu como os do Recife.”
(“Carnaval”)
“Uma das mais fortes impressões que guardo do tempo de meninice foi o meu
primeiro encontro com um maracatu. Era terça-feira gorda e eu ia para a rua da
Imperatriz, no Recife, assistir de um sobrado à passagem das sociedades
carnavalescas – Filomonos, Pás, Vassourinhas...
De repente, na esquina da rua da Aurora, me vi quase no meio de um
formidável maracatu. De que “nação” seria? Porto Rico? Cabinda Velha? Leão
Coroado? Não me lembro. Dos melhores era, a julgar pelo apuro e dignidade
do Rei, da Rainha e seu cortejo – príncipes, damas de honra, embaixadores,
baianas.
Pasmei assombrado. Tudo o mais, em volta de mim, era carnaval: aquilo, não.
Mas o que é que me fazia o coração bater assim em pancadas de medo?
Analisando agora, retrospectivamente, o meu sentimento, creio que o motivo
do alvoroço estava na música, naquela música que mal parecia música,
percussão de bombos, tambores, ganzás, gongos e agogôs, num ritmo obsessor,
implacável, pressago..
Mesmo de longe (lembro-me de certas noites que, na velha casa de Monteiro, a
viração trazia uns ecos do batuque), o ritmo dos maracatus me invocava.” (“Os
maracatus de Capiba”)
A experiência de assombro e estranhamento com as máscaras e fantasias de
carnaval ganha, no encontro com o maracatu, em amplitude e profundidade. Não é mais o
espanto com um único indivíduo escondido em uma fantasia de dominó, mas com um grupo
inteiro que surge de repente, ao virar de uma esquina, quando o menino encontra-se “no meio’
do maracatu: não há mais a distância segura e familiar da janela ou da sacada do primeiro
113
andar de um sobrado, ou mesmo a porta de casa, mas o menino está no meio da rua, envolvido
fisicamente pelos sons e ritmos dos instrumentos de percussão, pelo batuque compassado e
constante que a memória registra e recupera, inconscientemente, durante a noite. O carnaval
era uma festa conhecida, familiar, mas “aquilo já não era mais carnaval”, e sim alguma coisa
que invocava outros tempos – como a Colônia, pelas roupas inspiradas pela realeza – e outras
terras – como os sons africanos que perseguem Bandeira através da noite.
Na leitura das duas crônicas encontramos uma discrepância cronológica: se em
“Carnaval” Bandeira recorda o seu medo de maracatus da época em que morava em Santos,
antes dos seis anos portanto
11
, em “Os maracatus de Capiba” ele data o seu primeiro encontro
com um maracatu como tendo acontecido aos oito anos. Relembrado de maneira diferente nas
duas crônicas, o primeiro encontro com o maracatu fica registrado como a primeira
experiência de estranhamento do poeta, que a confunde com temores mais primitivos,
anteriores a ela. De acordo com Freud, “o estranho é a categoria do assustador que remete ao
que é conhecido, ou velho, e há muito familiar”
12
. Principalmente para a criança, trata-se de
uma experiência que costuma se relacionar com bonecos, figuras de cera e máscaras, ou seja,
qualquer objeto que imite a aparência humana e deixe dúvidas quanto à sua natureza (animada
ou inanimada), e também se relaciona com elementos de convívio cotidiano e familiar.
Desse modo, mesmo sendo o carnaval uma festa conhecida para a criança, o
encontro súbito e inesperado com um grupo inteiro vestindo os figurinos do maracatu
transforma a festa familiar em algo “estranho”. Da mesma forma, o primeiro encontro com
um dominó também se assemelha, embora de modo menos impressionante, a uma experiência
de estranhamento, uma vez que o que chama a atenção do menino Manuel é o “mistério de
uns olhos atrás da máscara”, que revelam vida por trás de um objeto inanimado; em “O
Estranho”, Freud extraiu seus principais exemplos de histórias relacionadas a olhos e a olhos
arrancados, como o conto “O Homem da Areia”, de E.T.A. Hoffmann, em que a experiência
está ligada ao temor da castração. Semelhantes são as impressões de Clarice Lispector,
surpreendida quando um mascarado fala com eles, e de Rubem Braga, que reconhece as
pessoas de Cachoeiro do Itapemirim através das fantasias e lhes atribui uma segunda
identidade.
11
A família Bandeira morou em Santos, São Paulo e Petrópolis no período entre o nascimento do poeta e a
“quadra distante”, dos seis aos dez anos, de residência na rua da União no Recife, o que localiza a lembrança
como anterior à mudança de volta para a cidade natal.
12
Sigmund Freud. “O Estranho”, em Obras psicológicas completas, p.277.
114
Um outro traço comum entre as recordações dos cronistas é que, apesar da
festa e do desfile de carnaval serem assistidos a partir das casas, junto comas famílias, as
crianças parecem testemunhá-las sozinhas, o que reforça a sensação de estranhamento. Em
sua primeira recordação, Braga se vê ao lado do irmão, vestido de mexicano, mas na segunda
parte da crônica ele conta como, sozinho, aproveitava o baile de carnaval para aproximar-se
das moças da cidade, quando “havia momentos de quase êxtase no tumulto das danças”.
Clarice recorda a si mesma à porta do sobrado onde morava, momentaneamente de costas
para as preocupações familiares em torno da saúde materna; e, na mesma crônica, “Restos de
Carnaval”, a escritora conta que em um carnaval “minha mãe de súbito piorou muito de
saúde, um alvoroço se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na
farmácia. Fui correndo vestida de rosa (...), perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e
gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.” (grifo meu)
Em “Os maracatus de Capiba”, Bandeira está no meio da rua, a meio caminho
entre a rua de casa e o sobrado de onde assistir a passagem das sociedades carnavalescas,
quando encontra o maracatu e envolve-se com os seus personagens e os seus sons. Ele está
sozinho, espantado, no meio da rua, e se deixa envolver pelo grupo; os ecos dessa experiência
são retomados à noite, perto do sono, através dos ruídos do rio Capibaribe que chegam à casa
de veraneio em Monteiro. A impressão deixada pelo encontro permanece através dos anos,
fazendo do carnaval um dos elementos constantes das memórias de Manuel Bandeira em
crônica. Este encontro com o maracatu não é, entretanto, a última lembrança do carnaval
recifense presente nas crônicas; ainda em “Carnaval”, Bandeira conclui com a recordação
mais recente, de trinta anos antes:
“Quando em 28 fui a Pernambuco, hospedei-me em casa dos Freyres, no
Karrapicho (era assim mesmo, Karrapicho com K). O carnaval já estava se
ensaiando. Uma tarde, voltando com Gilberto da cidade, cruzamos, numa
travessa do arrabalde, com um maracatu pobrezinho. Aquele me teria metido
medo em pequeno. A boneca, porém, era linda. E desde então para mim toda
mulher bonita é boneca de maracatu.”
O maracatu encontrado na idade adulta não se compara, em suntuosidade e
surpresa, com aquele visto na infância. O carnaval sequer começara e Bandeira, caminhando
na companhia do amigo, não chega a se espantar com o encontro, limitando-se a apenas
observar o “maracatu pobrezinho”, que mesmo na infância não o teria assustado. De outro
115
lado, Bandeira volta-se para o detalhe esquecido da sua primeira lembrança, a boneca, que é o
símbolo do maracatu e se torna símbolo da sensualidade ligada no carnaval, que neste
momento ganha importância.
Da mesma forma, em “Carnavais de Antigamente”, além da recordação sobre a
sua infância e as fantasias, Braga narra, em uma segunda parte, a sua aproximação das moças
nos bailes de carnaval e, em uma terceira, o escândalo anual das prostitutas que desfilavam
em carro aberto, muitas vezes acompanhadas de algum rapazola de família, horrorizando os
cidadãos de Cachoeiro, mas se tornando, aos olhos do cronista, “um herói do vício”. O trecho
de maior sensualidade, entretanto, é a segunda, onde, “para o adolescente tímido, as mocinhas
deixavam de ser intocáveis ao mesmo tempo que ficavam muito mais maravilhosas ciganas,
piratas de coxas nuas, odaliscas, bailarinas, pierretes” (grifo meu). As fantasias usadas pelas
mocinhas de família remetem a culturas exóticas, mas também a mulheres de classes
inferiores, mais livres principalmente na forma de se vestir, mais desfrutáveis e acessíveis,
permitindo a aproximação “no tumulto das danças”.
Essa proximidade é provisória, a ponto destas mesmas mocinhas recusarem-se,
no baile do Clube dos Caçadores, a dançar com o rapaz que desfilara no carro das prostitutas.
Por sua vez, Clarice Lispector também percebia a sensualidade provisória que emergia
durante o carnaval, pedindo a uma das irmãs que lhe frisasse os cabelos e a deixasse usar
batom e ruge nas faces. “Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice”. O
carnaval torna-se, então, uma experiência de aproximação da vida adulta, embora estes
cronistas prefiram a recordação de seus carnavais de infância, especialmente Bandeira, o que
o transforma em um marco cíclico da passagem do tempo, como veremos nas demais crônicas
sobre o tema.
De qualquer modo, apesar destas crônicas sobre carnaval serem recordações de
infância, não temos, aqui, textos sobre a infância propriamente; as narrativas se situam em um
ponto intermediário, semelhante à posição das crianças, que se localizam em um ponto ainda
confortável entre o ambiente doméstico e a rua. Pode-se dizer que este posicionamento, junto
com às alusões ao despertar da sexualidade nestas crônicas, os inclui entre as crônicas sobre o
final da infância, percebida como um estranhamento, menos em relação ao outro do que a si
mesmo, mas que de qualquer forma provoca uma nova auto-percepção no sujeito, a princípio
não compreendida. Tais crônicas recolhem, desta forma, momentos de percepção da
passagem do tempo que se mascaram através da alegria e do barulho do Carnaval.
116
Carnaval próximo
Menos tranqüila e mais saudosista é a rememoração dos carnavais da infância
passados no Rio de Janeiro. “Ecos do Carnaval”, de Flauta de Papel, escrita em 1956, e “Está
morrendo mesmo”, de Andorinha Andorinha, escrita em 1959, são as crônicas em que
Bandeira recorda como eram os carnavais cariocas do final do século XIX e início do século
XX. Os títulos já indicam a visão do carnaval que se encontra expressa nessas crônicas:
enquanto “eco” define um som que se ouve a distância – espacial ou temporal – através de um
espaço vazio, “está morrendo mesmo” parece confirmar o “fim” do carnaval carioca, pelo
menos da festa tal como Bandeira a conhecia. A primeira crônica, “Ecos do Carnaval”,
começa retomando a importância da rua do Ouvidor na história da cidade, e a primeira
palavra é “antigamente”, que já estabelece a referência temporal:
“Antigamente, era na rua do Ouvidor que pulsava com mais força a vida desta
heróica Cidade. ‘Grande artéria’, chamavam-lhe os literatos e jornalistas,
inclusive Coelho Neto. Era, de certa maneira, uma imagem inexata, porque na
artéria está o sangue de passagem. Ora, não se passava pela rua do Ouvidor: ia-
se para a rua do Ouvidor. Ali se parava, se namorava, se conspirava. Ali se
situavam as redações dos grandes jornais, as lojas mais elegantes, os cafés e as
confeitarias mais freqüentados. Ali é que chegavam ao clímax os
acontecimentos mais notáveis da consagração pública (...). Nos três dias de
carnaval, então, a rua do Ouvido ficava de não se poder meter um alfinete: a
afluência do povo transbordava dali para as travessas, e a festa culminava com
a passagem dos préstitos rua abaixo.”
Com algumas alterações, este parágrafo repete-se em “Está morrendo mesmo”,
embora introduzido por uma outra frase: “O septuagenário me falou: – O Carnaval no Rio
houve mas foi no tempo em que ainda existia a rua do Ouvidor”. Escrita em 1959, quando
Bandeira contava 73 anos de idade, a história da rua é narrada por um alter-ego que rememora
os mesmos fatos do parágrafo acima, alguns anteriores ao nascimento do poeta. A descrição
da antiga rua do Ouvidor começa com imagens ornicas: “pulsava”, “artéria”, “sangue”, que
definem o papel essencial da via na cidade, e que Bandeira eleva a um papel central, ao
contestar o epíteto de Coelho Neto e, através dos verbos “pulsar” e “transbordar”, criar a
imagem de um grande coração em que se concentra a vida na Capital: jornais, lojas e cafés, a
117
imprensa, o comércio e a vida social e elegantes, além dos eventos culturais e políticos, como
a chegada de Rio Branco, que viera assumir o Ministério das Relações Exteriores do governo
Rodrigues Alves. O povo do Rio de Janeiro de Manuel Bandeira aperta-se inteiro na rua do
Ouvidor, e, no carnaval, dela aflui para as outras ruas da cidade.
A repetição de verbos no imperfeito indica a descrição de uma série de
costumes que permaneceram durante um longo tempo, mas que pertencem ao passado. Nas
duas crônicas, a longa recordação evoca não apenas um outro carnaval, mas uma outra rua do
Ouvidor e um outro Rio de Janeiro, que o poeta conheceu menino, do período da chamada
Belle Époque, caracterizada pelas modas importadas da Europa, notadamente francesas, o
florescimento da imprensa e a nova vida intelectual e jornalística surgida com a República
durante a época de Machado de Assis, João do Rio e Olavo Bilac. Bandeira refere-se aqui,
naturalmente, ao carnaval das elites, festejado no centro da cidade, na rua que simbolizava o
seu poder político e econômico e que festejava uma carnaval que, segundo Nicolau Sevcenko,
já fora “sanitizado para adquirir ares de festa civilizada, ao estilo do carnaval de Veneza, com
pierrôs vetustos, arlequins cerimoniosos e colombinas comedidas”
13
.
“A parte central da cidade mais procurada pela multidão, nesses dias de
esplêndidas loucuras, é a rua do Ouvidor, que se engalana de estandartes e
flâmulas mostrando vistosas sacadas com festões de folhas de mangueira,
flores de papel, além de mastaréus com coloridos pendões de todos os países.
Para a noite, arcos de iluminação, que ainda é toda a gás, festivos e
deslumbrantes arcos. Durante certo tempo existiam uns célebres coretos
chamados ‘de sacada’, indo de uma a outra casa, na rua estreita e onde se
metiam atroadoras charangas ou ensurdecedores Zé-Pereiras. Uma avisada
postura os extinguiu. Ardiam freqüentemente e serviam, além disso, de estorvo
aos préstitos carnavalescos.”
14
É no sentido descrito por Sevcenko e Luiz Edmundo que Bandeira considera
“morto” o carnaval do Rio. Não deixa de ser interessante a idéia da “morte” de uma festa
popular cuja origem é justamente a celebração da carne, ou seja, da efemeridade da vida. Na
Idade Média, o carnaval era um momento em que nobres e plebeus se misturavam e
igualavam em função da lembrança do destino comum a todos, a morte. No Rio de Janeiro
das primeiras décadas do século, a morte do carnaval de rua, espontâneo e popular, simboliza
13
Nicolau Sevcenko, “A capital irradiante – técnica, ritmos e ritos do Rio”, em História da Vida Privada no
Brasil – volume 3, p.596.
14
Luiz Edmundo da Costa, “O Carnaval de outrora”, em O Rio de Janeiro do meu tempo, volume IV, p.787.
118
o espírito de uma cidade que procura modernizar-se a qualquer custo, numa mentalidade
voltada para o progresso que não deixa espaço para uma reflexão sobre a morte. Além disso, a
extinção do carnaval de rua tinha a função de reiterar a segregação social, graças à
identificação, corrente na imprensa do final do século XIX, da festa como um barbarismo e
um comportamento pouco condizentes com a “civilização”: “Só depois de 1904, com a
remodelação da cidade e o natural cancelamento de certas tradições alienígenas, é que o Zé-
Pereira começa a esmorecer. O Rio civiliza-se, diz-se pelos jornais. E os ruídos bárbaros são
convidados a desaparecer de uma cidade que começa a cultivar a civilização!”
15
.
Naturalmente, a visão de Luiz Edmundo não é compartilhada por Manuel
Bandeira que, através do carnaval, continua a lamentar o desaparecimento do “Rio Antigo”.
Morador da Avenida Beira-mar, um dos ícones da remodelação sofrida pela então capital da
República, Bandeira passa pelos lugares que foram palco das alegrias dos foliões passados,
apenas para lamentar a sua ausência:
“Pois bem, este ano, terça-feira gorda, por volta das três da tarde, desci de um
lotação na Avenida e subi a rua do Ouvidor até a rua Primeiro de Março.
Estava deserta! Em certo trecho mesmo, entre Quitanda e Carmo, eu era o
único transeunte! Senti-me um pouco como fantasma. Por sinal que me pareceu
bom, só que um pouco melancólico, ser fantasma.
Situação privilegiada que desfrutamos, os moradores da Avenida Beira-mar, do
Obelisco até o Aeroporto: estamos no coração da Cidade e somos, no entanto,
paradoxalmente marginais. O carnaval das ruas está morrendo: já cabe todo na
Avenida e nem sequer a toma inteira. Dela para o mar é o deserto e o silêncio.”
Paradoxalmente, Bandeira encontra um inesperado instante de vazio e silêncio
em uma cidade que considerava cada vez mais superlotada e insuportável. A morte do
carnaval torna-se emblema de uma cidade que se enche de gente ao mesmo tempo que se
esvazia de vida – a palavra “deserto” aparece nos dois parágrafos. Em “Ecos do Carnaval”, o
silêncio do presente faz ressoar a música dos carnavais do passado, e pela atual grande artéria
da cidade não se vê a passagem dos préstitos. Repete-se aqui a figura do fantasma que aparece
em crônicas sobre cidades do interior que Bandeira revisita, como “Saudades de
Quixeramobim” e “O Fantasma”, sobre a cidade de Campanha. O fantasma é um ser
sobrenatural, provindo do passado e de além da morte – e, junto com outras figura históricas e
15
Idem, ibidem, pp.767-769. Note-se a ênfase nos termos “alienígena” e “bárbaro”, ambos com o significado de
“estrangeiro”, utilizados com o intuito de deslocar as versões mais populares da festa de seu contexto social.
119
a própria Morte, já foi uma popular fantasia de carnaval. Ao identificar-se com um fantasma,
Bandeira deixa claro o seu prazer em representar o Rio de Janeiro da virada do século,
anualmente relembrando seus leitores, através de suas crônicas, o carnaval que eles deixaram
de conhecer.
“Está morrendo mesmo” parece, sob este aspecto, mais conformada do que a
crônica escrita três anos antes. Apesar de repetir o parágrafo em que retoma a história da rua
do Ouvidor, o carnaval desta rua já não é rememorado com a mesma riqueza de detalhes. Na
verdade, a crônica preocupa-se mais em criticar o carnaval do momento presente, como a
festa que perdeu sua espontaneidade e ganhou características oficialescas e convencionais:
“Com a supressão dos alto-falantes nas ruas o fato se tornou evidente. Esses
insuportáveis aparelhos davam aos carnavais anteriores uma animação fictícia.
Emudecidos eles, verificou-se que o povo não cantava mais. Não brincava.
Espairecia. Esperava a passagem das escolas de samba. (...)
A abertura da Avenida Rio Branco foi o primeiro golpe sério no carnaval. A
festa diluiu-se, perdeu o calor que lhe vinha do aperto. Mas durante alguns
anos houve o corso, que era realmente lindo com o seu espetáculo de
serpentinas multicores. Os automóveis fechados vieram acabar com ele. Junte-
se a isso a comercialização das músicas, a intromissão do elemento oficial
premiando uma coisa cujo maior sabor estava em sua gratuidade.”
Não é apenas a larga avenida Rio Branco que substitui a rua do Ouvidor; a
animação do povo é substituída pelos alto-falantes, os préstitos dão lugar ao corso e, depois,
aos carros fechados, a espontaneidade cede lugar à intromissão do elemento oficial. Tudo se
perde, e o carnaval se descaracteriza aos olhos de Bandeira. Cada alteração realizada na
cidade contribui para tolher a festa popular, que não elege mais espontaneamente as suas
marchinhas preferidas e canções. A questão da memória parece, aqui, menos relevante do que
em outras crônicas; o passado é antes uma referência ao tempo presente, repleto de tristes
constatações. É preciso não esquecer que esta crônica foi escrita em 1959, um ano antes da
mudança da capital para Brasília, então em construção. Em suas crônicas a esse respeito,
Bandeira não expressa sua opinião diretamente, mas é possível presumir que o cronista não
aprovava a construção de uma nova capital, embora seu tom seja, em geral, resignado. O
elemento oficial acabava interferindo em elementos da vida da cidade do Rio considerados
inalteráveis, e Bandeira adquire lentamente um tom mais conformado, tornando-se um
cronista que assume a função de memória viva para a cidade:
120
“Vale a pena lamentar? Acho que não. O carnaval está morrendo, outras coisas
estarão nascendo. No tempo dos bons carnavais não tínhamos o espetáculo das
praias
16
. A vida é renovação. ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’,
disse o poeta máximo da língua, e outro disso que ‘isto é sem cura’. Quem não
estiver contente com o presente, viva, como eu, das saudades do passado.”
O cronista identifica-se com uma atitude voltada para o passado e o
descontentamento com o tempo presente. “Está morrendo mesmo” é a última crônica escrita
para jornal sobre o assunto, ao qual Bandeira só retornaria em uma crônica para o rádio. A
conclusão de “Ecos do Carnaval”, por sua vez, é menos melancólica, muito por ser voltada
mais exclusivamente para o passado. Depois de comparar o vazi do carnaval presente com os
ecos do passado, Bandeira abre uma outra seção, que contém um único parágrafo. É a única
crônica em que o poeta recorda os carnavais do período em que morou na rua do Curvelo,
através de uma de suas personagens mais célebres, Irene, do poema homônimo de
Libertinagem:
“Naturalmente, me lembrei muito de Irene – Irene preta, Irene boa e sempre de
bom humor. Passava ela o ano inteiro juntando dinheiro para gastar no
Carnaval. Também, graças a ela, o boqueirão da Travessa do Cassiano brilhava
nos três dias. Quarta-feira de Cinzas, às oito da manhã, estava à minha porta
para o serviço. Era uma preta gorda, feia e tinha não sei que doença que lhe
comia a beirada das orelhas, onde havia sempre um pozinho branco. A
especialidade de Irene era a limpeza dos metais. Nas mãos dela o cobre virava
outro; todo metal branco, prata. Se as almas envolvessem os corpos, Irene não
seria preta, não: seria da cor dos cobres que ela areava. Irene boa!”
Do tempo do Curvelo parece ser o último carnaval de que Bandeira sente
saudade. Metáforas de luz e brilho repetem-se ao longo do parágrafo: brilhava, metal, ouro,
prata, cobre, como se tentassem ofuscar a cor negra da empregada, que apesar de pular os três
dias de carnaval encontrava-se disposta, na quarta-feira de Cinzas logo pela manhã, para o
serviço doméstico no apartamento do poeta. Sem atrativos físicos e portadora de uma estranha
doença, Irene, que é valorizada pela sua força de fazer metais domésticos brilharem, tem
16
Em suas crônicas, Bandeira defendia o novo hábito do banho de sol e criticava a polícia que intervinha nas
praias para manter a moralidade. V. “De Nudez na Praia”, em Andorinha Andorinha, pp.355-356. Nicolau
Sevcenko lembra que “os banhos de mar eram originalmente feitos sob condições de estrita privacidade, donde a
necessidade das fortalezas em que se internavam sobretudo as moças, a fim de se submeterem ao tratamento
terapêutico, mais por exigência médica do que por sua vontade. Aos poucos os trajes foram se encurtando,
ganhando leveza, modelando o corpo, revelando as formas e expondo a pele ao sol e aos olhares indiscretos. Um
grande escândalo acompanhava cada inovação, ameaçando sobretudo as moças com o quinto dos infernos ou um
quarto no prostíbulo do Mangue”. Nicolau Sevcenko, op. cit., p.574.
121
como consolo gastar todo o seu dinheiro, economizado durante um ano, para a festa de
carnaval.
A última crônica de Bandeira sobre o carnaval é “Carnavais de Outrora”,
escrita em 1963, para o programa de rádio Quadrante e recolhida em Colóquio
Unilateralmente Sentimental. A diferença de tom, nesta crônica, começa pelo seu título, o
único em que a palavra “carnaval” aparece no plural: enquanto as crônicas anteriores
referiam-se a um Carnaval absoluto, que deveria ser imutável, este menciona vários carnavais,
de épocas e lugares diferentes, que o cronista viveu. De fato, aqui são descritos vários
carnavais: desde os vividos na infância no Recife, quanto os antigos carnavais cariocas, e
então como eram os carnavais no Rio de Janeiro nos anos 20, chegando aos anos sessenta.
Bandeira repete as referências à sacada da rua da Imperatriz, no Recife, e o pequeno histórico
da rua do Ouvidor, embora com menos detalhes; logo no início da crônica, porém, traz uma
nova recordação sobre os carnavais de sua infância:
“Em casa de meu avô, nas casas da vizinhança, muito antes dos dias gordos,
compravam-se as grandes folhas de papel de seda, brancas, verdes, azuis, cor-
de-rosa, e durante semanas as tesouras trabalhavam picando papel em
minúsculos quadradinhos. Eu ainda não tinha dez anos, mas já achava
insensato levar horas preparando um punhado de papel picado que se iria
embora pelos ares num gesto de mão que durava um segundo. Assisti ao
aparecimento dos primeiros confetti, que me deslumbraram, das primeiras
bisnagas, que eram como as de pasta dental atuais, das primeiras serpentinas.”
Esta é a única recordação de Bandeira referente aos preparativos do carnaval,
os quais ele parece mais observar do que participar. São preparativos longos e, para a criança,
sem sentido, uma vez que ela não compreende a vantagem de desperdiçar tantas horas de
trabalho manual em um único gesto. Em todas as casas da vizinhança da rua da União parece
ouvir-se o eco do barulho das tesouras trabalhando para transformar folhas inteiras de papel
de seda em “minúsculos quadradinhos”, expressão em que o diminutivo faz com que as folhas
quase desapareçam, desintegrando-se. Há uma certa efemeridade na festa de carnaval, que
exige longos preparativos desfeitos em poucas horas, que retorna a cada ano com tradições
semelhantes, mas diferente do ano anterior, que o cronista parece não aceitar.
Ao mesmo tempo, ele recebe com fascínio os confetes, serpentinas e bisnagas
de cheiro. Clarice Lispector, em “Restos do Carnaval”, também se refere a eles, ao narrar os
carnavais que assistia da porta de casa: “Duas coisas preciosas eu ganhava e economizava-as
122
com avareza para que durassem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete.”
Bandeira, por sua vez, da mesma forma com que apenas observava o trabalho de produzir
papel picado, “assistiu” ao surgimento das novidades, que, no entanto, parecem interessá-lo
mais do que o trabalho das tesouras.
A crônica passa para os carnavais da rua do Ouvidor, mas, como em outras
crônicas, Bandeira dá um salto ao passar para os carnavais posteriores à reforma do Rio de
Janeiro, em 1903, por não a ter testemunhado, morando em São Paulo e em outras cidades.
Embora mencione o fato, o cronista não faz nenhuma referência sobre os carnavais em outros
lugares, como se tivesse passado muitos anos sem ver carnaval algum. Chega, então, ao ano
de 1923, quando Mário de Andrade foi conhecer o carnaval carioca:
“Depois adoeci e durante anos, muitos anos, não vi senão os carnavais das
cidadezinhas do interior. No Rio abriu-se a Avenida. A rua do Ouvidor foi
perdendo o seu prestígio. Quando voltei a ver o carnaval carioca, já era ele
como o descreve Mário de Andrade no seu grande poema, que é de 1923.
O poema a que Bandeira se refere é “Carnaval Carioca”, escrito logo que
Mário de Andrade retornou de sua “aventura” no carnaval no Rio, como narra em sua carta a
Bandeira, em fevereiro de 1923: “Meu Manuel... Carnaval! Perdi o trem, perdi a vergonha,
perdi a energia... Perdi tudo. Menos a minha faculdade de gozar, de delirar... (...) Meu cérebro
acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigialidades
de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegrias, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar
um carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistanamente. Havia um
quê de neblina, de ordem, de aristocracia nesse delírio imaginado por mim. Eis que sábado, às
13 horas, desemboco na Avenida. Santo Deus! Será possível!”
17
.
Em sua carta, Mário de Andrade menciona a Avenida Rio Branco, onde passou
os quatro dias de carnaval, quando pôde, segundo ele mesmo, festejar muito próximo do povo
carioca: “Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só
carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me
entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem
sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café.
17
Correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira, pp.84-85.
123
Outra hora se gastou”. No poema “Carnaval Carioca”
18
reflete-se essa experiência, e Bandeira
concorda com as impressões do amigo: “O Carnaval do Rio é bem o que você diz. A alegria
popular e grossa, ingênua, desavergonhada, mas também sem bestialidade. O nosso povo tem
isso de bom, que é manso. Os estrangeiros, habituados aos furores do populacho europeu,
sentem-se encantados com as nossas festas. Parece que lá na Europa o regozijo plebeu é de
uma ferocidade repugnante”. No diálogo entre Mário e Bandeira, o Carnaval não é ainda
aquela festa que suscita a evocação das festas do passado, mas mais um motivo de exaltação
da cultura nacional e do povo, que leva à associação natural a uma festa livre e espontânea,
como os antigos carnavais cariocas.
“Depois... Depois o carnaval carioca passou a ter fama internacional. Criou-se
um Departamento de Turismo, que começou a fazer propaganda no nosso
carnaval. Instituíram-se prêmios. Não sei por que, se por isto ou por aquilo, ou
por coisa nenhuma, a festa entrou a murchar, e o certo é que o carnaval
verdadeiro, o carnaval de rua só serve hoje para fazer cinema ou tentar uma
Rita Hayworth a dar as caras por estas bandas. O carnaval visto por Mário de
Andrade em 1923 não existe mais...”.
Mário de Andrade envolvera-se o carnaval carioca sem as mesmas referências
nostálgicas de Bandeira que, por sua vez, ao recordar dos carnavais da década de vinte, os
associa à lembrança do amigo morto. Aparentemente, as saudades de Bandeira não são mais
dos carnavais da rua do Ouvidor, mas dos da década de vinte, ainda mais populares e com
menor interferência oficial dos que os do momento presente. Mas, ao final, destaca-se a
resignação do cronista, que, ao contrário das crônicas anteriores, afirma que a festa
“murchou”, não simplesmente “desapareceu” ou “morreu”.
18
Mário de Andrade, logo após compor o poema, enviou-o em carta a Manuel Bandeira, que em resposta
escreveu longos comentários e sugestões. V. op. cit., pp.88-92.
124
4. O Retorno ao Lar
Saudoso do Rio de Janeiro da virada do século, Bandeira reencontra-o com
freqüência em outras cidades, reais ou imaginárias: “A sua carta, com aquele fabuloso nome
de Barra da Jangada (conheço-o desde criança: meu pai tinha um amigo que falava
freqüentemente em Barra da Jangada, e toda vez que eu ouvia o nome, ficava com a cabeça
perdida nos sem-fim da poesia) me deu vontade de largar tudo isso aqui e correr para Barra da
Jangada: o Rio está se tornando uma cidade infernal, superlotada, cansativa, inabitável” (grifo
meu). A crônica “Carta devolvida”, de Flauta de Papel, ganha um tom de resposta a uma
carta cujo remetente ou conteúdo não são revelados, mas somente o local de origem – Barra
da Jangada, cujo nome, como Pasárgada ou Brodóvsqui, desperta no poeta o desejo de evasão,
da vida presente e do Rio de Janeiro, primeiramente em direção ao Rio antigo, o Rio da
infância de Bandeira em que “bebia-se boa cajuada, feita de caju espremido na hora à vista do
freguês”, e em que se ouviam ainda os pregões dos vendedores de rua; depois, o mesmo
desejo de evasão parte para “alguma cidadezinha morta do interior ou do litoral”, com
Ubatuba, mas ao final se revela um desejo mais profundo do que rever o Rio do passado, que
é o desejo de rever o Recife: “Soube que a casa da rua da União é hoje uma pensão de
estudantes. Seria capaz de me hospedar lá. Imagino, já me imagino num quarto do sobrado,
ouvindo a chuva bater na telha-vã! Tomara que isso aconteça”.
Uma outra crônica de Flauta de Papel transcreve ainda outra carta, sendo
intitulada, propriamente, “Carta do Recife”: “Do Recife me escreve um amigo: ‘vim para a
praia, sentir o mar, como Stevenson e os românticos. Infelizmente Boa Viagem já não é a
mesma. É quase Avatlântica, e o quase é terrível, põe o mundo a perder. Nem a Boa Viagem
de outrora, nem... nada. Vejo o mar por cima dos telhados. A vida em vez de mar deu-me
telhados...’.” A angústia, seja do correspondente, seja do cronista, vem da substituição, na
paisagem, da natureza pela construção, principalmente moderna, que se sobrepõe a ela. Não
por isso o cronista deixará de procurar, na cidade natal, os traços de sua infância.
125
Cachoeiro do Itapemirim
A casa da família Braga em Cachoeiro do Itapemirim é descrita de forma
fragmentária, conforme seus espaços importem para determinadas narrativas, sem que os
leitores de Rubem Braga alcancem uma visão total da fachada ou da arquitetura, embora
permaneça uma noção muito clara da sua importância para a formação do cronista, como
acontece nas crônicas de Bandeira logo acima. Um dos espaços privilegiados é, naturalmente,
a rua em frente à casa, “campo” das partidas de futebol descritas em mais de uma crônica,
além de ser cenário para suas crônicas escolares (a escola se localizava do outro lado da rua),
para as histórias de enchente do rio Itapemirim, e parece na verdade concentrar toda a vida da
pequena cidade: “se o arquiteto não providenciar para que na rua defronte passem bois para o
matadouro municipal ele é um perfeito fracasso.”
A crônica “Receita de Casa”, escrita em outubro de 1946 e publicada em Um
Pé de Milho, ao descrever a arquitetura da casa ideal para crianças não menciona, em
momento algum, que a descrição se refere à casa em que Braga passou sua infância; não
sabemos sequer se a sua casa tinha realmente um porão nos moldes descritos na crônica, mas
a casa dos Braga é o modelo constante de todas as habitações que aparecem em sua obra, de
modo que podemos inferir que esta “Receita de Casa” também inspire-se nela. Da mesma
forma que a crônica de Bandeira intitula-se “O Quintal”, esta crônica poderia chamar-se “O
Porão”, pois o cômodo inferior da casa, sobre o qual ela é erguida, parece dominar toda a
construção. Com entrada e saída independentes e inúmeros quartos abarrotados, esse Porão
lembra, sob muitos aspectos, um labirinto ou uma casa mal-assombrada, que as crianças
temem mas de que não deixam de se aproximar, e que contém mistérios que decifram ou que
se estendem aos demais cômodos da casa.
O estado do porão, segundo o narrador, deve ser uma combinação entre
intenção e acaso, entre a ação do homem e a ação do tempo: habitável porém inabitado,
mobiliado mas em desordem, coberto de pó e mergulhado na escuridão. Para o narrador, é
nesse espaço que a criança deve encontrar o lixo da História, o passado dos adultos de sua
família, as roupas e os móveis que eles usaram para, desse modo, adquirir uma nova
perspectiva sobre eles, talvez mais do que apenas descobrir que seus pais, tios e avós já foram
crianças, mas tomar consciência da passagem do tempo que se metamorfoseia no grande
monstro que assombra o porão. Por isso o porão, mais do que outro cômodo qualquer na casa,
126
é o lugar onde a criança pode aprender e principalmente começar a ver o mundo de sua
perspectiva desprivilegiada, de baixo para cima, em relação à dos adultos.
A escuridão e o mistério que cercam esses cômodos, ao estimularem a
imaginação da criança, também podem despertar nela a sensibilidade literária: “O único
perigo é que o porão faça da criança, no futuro, um romancista introvertido, o que se pode
evitar desmoralizando periodicamente o porão com uma limpeza parcial (...) ou percorrendo-o
com uma lanterna elétrica bem possante que transformará hienas em ratos e cadafalsos em
guarda-louças”. A falta de iluminação tem relação direta com o mistério e o medo que as
crianças têm do porão; além disso, delimitado pelo jardim, na frente e nos fundos, ele deve
servir de esconderijo a ladrões e anarquistas, e pela sala de jantar no andar superior, de
passagem para o interior da casa. Ao contrário do quintal de Bandeira, bem delimitado pelas
varandas da casa e pelos muros da vizinhança, uma das funções do porão de Braga é
justamente dar alguma sensação de insegurança às crianças, ao fazê-las crer que nele habitam
monstros ou por ele entram ladrões.
Além do porão, a crônica fala de mais duas partes da casa: o jardim, pelo qual a
criança entra e sai do porão, e a sala de visitas, que, ao lado da sala de jantar, é a via de
entrada dos ladrões, na imaginação das crianças. O jardim é o espaço daquela infância
descrita em “Passeio à Infância”, aqui girando em torno do cajueiro do jardim, sob o qual
agrupam-se pássaros, frutas e as crianças. Passando à casa propriamente dita, o narrador
descreve o assoalho de tábuas largas, cuja lavagem não deve ser mais uma das tarefas
domésticas, mas sim mais uma diversão infantil
19
. A sala de visitas, que fica acima do porão,
é um equivalente deste, pela aura de mistério produzida pelo fato de estar sempre fechada e
abrir-se apenas em ocasiões especiais; também é o espaço em que as crianças podem observar
os adultos, principalmente aqueles que visitam a família, além da própria família, e mais uma
vez tomam consciência da passagem do tempo, agora não mais sobre a avó que já foi menina,
mas sobre si mesmos, e o fato de crescerem.
Em sua Poética do Espaço, Bachelard analisa a simbologia do porão em
oposição à simbologia do sótão. Para o autor, a polaridade vertical entre esses dois cômodos
assegura a unidade da casa, mas o indivíduo que manifesta preferência pelo porão é bastante
peculiar: enquanto o sótão, junto ao telhado, cobre a casa e é mais propício à claridade e à
19
Mais uma vez, é possível observar a questão do trabalho infantil, que nas crônicas de Rubem Braga aparece
mais raramente do que em Bandeira, mas que da mesma forma confunde-se facilmente com o jogo e a
brincadeira.
127
racionalidade, o porão “é o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências
subterrâneas, o espaço da escuridão e do subconsciente e, portanto, do medo irracional, que se
carrega desde a infância, de assombrações e ladrões: “Mesmo com uma vela na mão, o
homem vê as sombras dançarem na muralha negra do porão.”
20
Em “Receita de Casa”, da mesma maneira que em “Passeio à Infância”, Rubem
Braga parece não reconhecer a diferença entre a memória de sua própria infância e a descrição
daquilo que considera a infância ideal. De modo geral, nas crônicas sobre sua infância, Braga
“receita” suas recordações como uma fonte de eterna felicidade, um elixir para os males
cotidianos da maturidade e da metrópole, algo que sirva de remédio e escape para o adulto
que recorda. Muitas vezes, as recordações não são feitas em primeira pessoa e muito menos
no passado, mas sim no presente e no imperativo, como um adulto que faz recomendações às
crianças, indicando-lhes o caminho dessa infância perfeita; sabemos, ou antes supomos, que o
cronista na verdade recorda, mas o tom é imperativo: “se não houver ao menos um cajueiro,
como poderá a família viver com decência? Que fará a família no verão, e que hão de fazer os
sanhaços, e as crianças que matam os sanhaços, e as mulheres da casa que precisam ralhar
com as crianças devido às nódoas de caju na roupa? Imaginem um menino de 9 anos que não
tem uma só mancha de caju em sua camisinha branca. Que honras poderá esperar essa
criança na vida, se a inicia assim sem a menor dignidade?” (grifo meu).
O passado também pode ser evocado através de objetos, como o relógio da
casa de família que Rubem Braga traz para o apartamento no Rio de Janeiro, e que, isolado, se
destaca, chamando a atenção dos amigos da casa: “Há poucos anos trouxe o relógio para
minha casa de Ipanema. (...) De vez em quando alguém me chama a atenção, dizendo que o
relógio está adiantado quinze ou vinte minutos, e eu digo que é a hora de Cachoeiro.
Novamente guiado por regras próprias, o lugar em que se tem a possibilidade de evocar a
infância movimenta-se em outro ritmo e outro tempo, repleto de imagens e sons particulares:
“Sua batida é suave, como costumam ser as desses Ansonias antigos; e esse som me carrega
para as noites mais antigas da infância. Às vezes tenho a ilusão de ouvir, no fundo, o
murmúrio distante e querido do Itapemirim.
Nesse movimento, o passado individual liga-se ao passado da cidade, e não se
trata mais da memória de Manuel Bandeira ou Rubem Braga, mas do Rio de Janeiro, do
Recife, de Cachoeiro do Itapemirim, e ainda da memória do país, de seu patrimônio histórico,
20
“Poética do Espaço”, in: Os Pensadores – Bergson e Bachelard, pp.336-337.
128
para Bandeira, ou simplesmente de sua vida anterior à urbanização, para Rubem Braga,
quando as maravilhas da cidade grande equivaliam às dos contos de fadas. Os cronistas
parecem precisar, a todo custo, encontrar os sinais de seu passado na paisagem urbana, sob o
risco de perderem-se nela.
De Volta ao Recife
Uma das primeiras crônicas de memória escritas por Bandeira encontra-se em
Crônicas da Província do Brasil e intitula-se, justamente, “Recife”. Ela trata, alternadamente,
de três momentos do poeta em sua terra natal: após ter passado ali alguns dias, ele se declara
“reabilitado” no amor à sua cidade, em contraposição a uma visita anterior, que o desgostara
por não ter encontrado nela o Recife da sua infância. Essa primeira atitude, considerada
“egoísta” pelo próprio poeta, reflete, na verdade, sua irritação contra a “pretensão do
moderno”, criticada por ele também em crônicas sobre cidades como Ouro Preto e Salvador, e
ainda sobre o Rio de Janeiro, como vimos. O inconformismo com as mudanças sofridas pela
cidade natal expressa-se ainda no poema “Minha terra”, de Belo Belo:
Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus...
É hoje uma bonita cidade!
Meu coração ficava pequenino.
Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudada.
Tem avenidas, arranha-céus,
É hoje uma bonita cidades.
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!
A primeira crônica de reminiscência de Bandeira que temos registrada em livro
também data dos anos trinta
21
, e foi escrita no retorno de uma viagem ao Recife:
129
“Este mês que acabo de passar no Recife me pôs inteiramente no amor da
minha cidade. Há dois anos atrás, quando a revi depois de uma longa ausência,
desconheci-a quase, tão mudada a encontrei. E sem discutir se essa mudança
foi para melhor ou para pior, tive um choque, uma sensação desagradável, não
sei que despeito ou mágoa. Queria encontrá-la como a deixei menino.
Egoisticamente, queria a mesma cidade da minha infância.”
“Recife”, de Crônicas da Província do Brasil, começa com um cronista que,
aparentemente, rejeita o saudosismo do passado, criticando sua própria atitude diante da
cidade em que passara a infância: revista depois de longos anos de ausência, a terra natal fora
criticada por não corresponder mais às lembraas de menino, que em Bandeira confundem-
se facilmente com o gosto pela preservação arquitetônica. O Recife reformado, cortado em
avenidas, “sem nenhum sabor provinciano”, ressente-se, na opinião do cronista, do
desaparecimento de seus bairros antigos, de suas casas com balcões “tão pitorescos com o s
seus cachorros
22
retangulares fortes e simples como traves (um arquiteto inteligente
aproveitaria esse detalhe tradicional bem característico do Recife)”. Gradativamente a crônica
deixa de descrever as mudanças sofridas pela cidade para deter-se nos detalhes remanescentes
da arquitetura antiga, que Bandeira conheceu em menino, até que o olhar do visitante que
vaga pela cidade surpreenda, finalmente, uma imagem familiar:
“No meio de tanto desapontamento um bem doce consolo: a rua da União, a
mesma de trinta anos antes (....). Exatamente como eu a deixei.” A reconciliação com a terra
natal só acontece, portanto, por causa desse reencontro com os espaços em que a infância foi
vivida, deixando o leitor em dúvida se eles se encontram realmente da maneira em que o
cronista os deixou, ou se o olhar somente ignora as mudanças evidentes: o Asilo Santa Isabel
volta a ser a casa de D. Aninha Viegas, e aos olhos do cronista que contempla o Recife do
presente vão surgindo os antigos personagens em substituição aos desconhecidos que passam
por ele na rua, desde nomes familiares ao leitor bandeiriano, como Bentinho e Totônio
Rodrigues até um certo “ ‘seu’ Alcoforado que nunca vi....”
23
. Finalmente, a cidade atual
21
Os textos da coletânea Crônicas da Província do Brasil não possuem data, mas sabe-se que foram escritas
entre 1929 e 1931, para os jornais A Província do Recife e Diário Nacional de São Paulo.
22
“Escora que sustenta a cimalha, o beiral e o friso” (Dicionário da Academia Brasileira de Letras, p.295.);
“peça de pedra que sustenta, ou finge sustentar, o forro dos beirais ou as sacadas das janelas” (Dicionário
Aurélio, p.213).
23
“ ‘Seu Alcoforado que nunca vi, mas cujo nome me impressionava...”. Nesta última observação da crônica, é
interessante ressaltar o constante fascínio de Bandeira por palavras e expressões “de pura iluminação verbal”, em
um exercício contínuo de sensibilização poética e musical descrito em diversos trechos do Itinerário de
Pasárgada, e que se repete em inúmeras crônicas.
130
deixa de ser criticada ou rejeitada para ser, simplesmente, ignorada: “Não havia nada para
quebrar a ilusão da minha saudade”.
Como na crônica de Braga, em “Recife”, um passeio pela cidade do presente,
no caso, a capital pernambucana em meados dos anos trinta, suscita uma série de lembranças
que vão sobrepondo diferentes tempos no narrador: a caminhada da véspera, o passado
recente e a recordação da infância. Ao contrário, porém, da visão noturna, enlameada e
fracamente iluminada de Rubem Braga, Bandeira descreve o Recife em imagens abertas e
solares: o passado não se encontra em cantos obscuros, mas nas sacadas das casas antigas, em
que “a luz dos trópicos” bate em fachadas de cores quentes e opõe-se aos tons cinzentos dos
climas frios. Essa diferença está ligada, naturalmente, à relação da cidade do Recife com o
passado individual de cada cronista; como é possível perceber em uma leitura simples das
crônicas de Rubem Braga, suas imagens de Cachoeiro do Itapemirim são muito semelhantes à
visão bandeiriana do Recife.
Em ambos os cronistas, acompanhamos o processo que suscita as
reminiscências infantis em meio à realidade atual da cidade do Recife, e que em crônicas
posteriores será transferido para a capital da República. A nostalgia da infância acompanha
uma frustração com o instante presente, em geral solitário, além de uma visão crítica da
realidade urbana em contraponto a um momento de exaltação do novo e do moderno no
Brasil, com intensa urbanização, incluindo a construção de Brasília na década de cinqüenta.
Entre outros aspectos, surpreende tanto em Bandeira como em Braga a constância com que o
tema da infância retorna às crônicas: as crônicas de memórias da infância estendem-se
cronologicamente por toda a carreira jornalística dos dois escritores.
Os dois últimos parágrafos da crônica narram a visita mais recente ao Recife,
visita que, segundo o poeta, o “repôs inteiramente no amor da minha cidade”. Apesar de
parecer mais consciente e conformada, a descrição é marcada pela frase “meus olhos não
esqueceram nada”, que abre o fluxo de recordações: na narrativa, a cidade rememorada
sobrepõe-se àquela que o sujeito encontra de fato, a ponto de, no texto, o leitor não poder
mais distinguir o passado do tempo presente: O Recife antigo ofusca, no olhar subjetivo, o
Recife atual, que o poeta continua se recusando a ver: o Asilo Santa Isabel volta a ser a casa
de D. Aninha Viegas e até Bentinho reaparece junto à janela. Assim como ela, as velhas
figuras de infância, “embora desaparecidas no túmulo”, ressurgem em substituição aos
estranhos com que o poeta cruza na rua. Como “não havia nada para quebrar a ilusão da
131
minha saudade”, aos poucos o Recife atual cede completamente lugar ao Recife da infância
do cronista, através dos personagens que o habitavam. Como vimos, o Recife da rua da União
nunca abandona a imaginação do poeta, para quem a terra natal é a referência constante em
contraposição ao presente da vida no Rio de Janeiro. Desse modo, as saudades de Bandeira
podem ser tanto a saudade daquilo “que podia ter sido e não foi”, quanto a saudade da
infância – do Recife antigo, do Rio antigo – provocada pelo descontentamento com o
presente. Por isso, é raro que o reencontro com os velhos lugares do passado aconteça de
forma harmoniosa, integrando passado e presente no sujeito.
***
Provavelmente não seja necessário reiterar o caráter urbano adquirido pela
rememoração da infância de Bandeira no modo em que ela se configura nas crônicas, em
parte em função da natureza do gênero, em parte pelas situações vida cotidiana enfrentadas
pelo cronista. De qualquer forma, seja na posição de cidadão comum, que reclama dos
incômodos próprios da vida na metrópole, seja como um indivíduo solitário que sente
saudades de uma casa derrubada ou de uma árvore da rua, seja como um intelectual ligado às
artes e à arquitetura, que reivindica a preservação da história urbana, Manuel Bandeira reitera
a todo momento a importância da memória da infância não apenas numa concepção de poesia,
mas de vida cotidiana que dialoga e não raramente depende dela.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O leitor familiarizado com a obra de Manuel Bandeira reconhece facilmente,
nas crônicas, os espaços e os personagens que marcam alguns de seus poemas mais célebres.
A coincidência de temas e imagens não explica, naturalmente, todo o potencial de interesse
presente nestes textos, mas constitui mesmo assim um ponto de partida para a análise que
amplia a aparente casualidade de um texto escrito para jornal, além de fornecer novos
elementos para a compreensão de sua obra.
A crônica é um gênero que, por ocupar um espaço intermediário entre a
literatura e o jornalismo, freqüentemente se rotula como ligado ao tempo presente. Embora
esta observação seja verdadeira em relação à maioria dos cronistas brasileiros do século
passado, incluindo escritores consagrados em outros gêneros que se tornaram cronistas, os
textos de Manuel Bandeira para jornal podem ser considerados um caso particular: enquanto
algumas de suas crônicas mais marcantes voltam-se para o passado e para a infância e
rompem os limites do gênero, influenciando mesmo os textos mais voltados para a sua
atualidade, sua leitura acrescenta elementos do presente da vida adulta do poeta em sua obra
lírica, de forma que seus poemas e seus textos em prosa iluminam-se mutuamente.
Assim, Manuel Bandeira é um cronista preocupado, essencialmente, com o que
na metrópole onde vive corresponde à sua imagem interiorizada e familiar. Pouco generoso
em relação a mudanças, com a exceção isolada da transferência da capital para Brasília, o
poeta pernambucano tenta reencontrar os espaços de sua infância, que não sobrevivem sequer
nos lugares em que ele a viveu, e que recupera provisoriamente no seu período no morro do
Curvelo. Através dessa rememoração, é possível que Bandeira esteja à procura de alguma
outra coisa, seja o cuidado materno e fraterno, seja a amizade de D. Mariquinhas, seja a
posição central ocupada por ele no quintal da rua da União, onde a sobrevivência fora apenas
uma brincadeira. O Recife e o Rio de Janeiro “de antigamente” aos poucos deixam, ao longo
133
da leitura das crônicas, de ser espaços de recordação lírica para representarem o isolamento de
um ego, exilado do ambiente patriarcal para a agitação de uma metrópole que custa a aceitar.
Dessa forma, apenas resignado com o destino solitário no Rio de Janeiro, o
cronista projeta o sentimento de solidão e de ausência de uma família primeiramente nas
crianças que encontra em seu cotidiano, representando-as, nos textos, com uma puerilidade e
uma alegria infantis que provavelmente não são mais rememoradas, e sim imaginadas,
hipótese que se sustenta na puerilidade dos episódios escolhidos para descrevê-las, apesar da
evidente diferença social entre o cronista e estas crianças.
“A redução de mitos de adultos a mitos da infância (de uma infância que já
não vem antes da nossa maturidade, mas depois – mostrando-nos as suas
gretas) permite uma recuperação: e essas crianças-monstros tornam-se, de
súbito, capazes de canduras e genuinidades que recolocam tudo em questão,
filtram todos os detritos e nos reconstituem um mundo que continua, apesar de
tudo, delicadíssimo e macio.”
1
Em um outro momento, que se origina daquelas crônicas iniciais sobre a rua do
Curvelo, vemos Bandeira operando a mesma projeção na paisagem urbana, enquanto busca a
recuperação da memória através de elementos físicos e arquitetônicos dos lugares em que
foca. A imagem do poeta isolado junto à janela, seja “acantoado” na sala da frente de seu
casarão em Quixeramobim, ou observando o morro, o beco e o pátio em seus vários endereços
no Rio de Janeiro, repete-se enquanto repetem-se as recordações, insistentes e permanentes,
da infância nos espaços.
1
Umberto Eco. “O mundo de Minduim”, em Apocalípticos e Integrados, p.287.
134
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VIDEOGRAFIA
O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo. Companhia Produtora: Saga Filmes Ltda.
Direção e Roteiro de Joaquim Pedro de Andrade. Produção: Sérgio Montagna. Fotografia:
Afrodísio de Castro. Montagem: Carla Civelli e Giuseppe Baldaconi. Brasil, 1959.
Documentário. Curta-metragem, sonoro, não-ficção. Película: 35 mm, preto-e-branco.
Duração: 18 min.
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