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depende, antes, de sua lógica interna, da coerência que tem com sua própria realidade. Esta é
constituída por meio do desenvolvimento que o autor faz de seus elementos internos – enredo,
progressão, personagens –, mas também, como ressalta Candido, da combinação desses
elementos
106
. É necessário, portanto, um trabalho rigoroso para que o texto ficcional garanta
sua aceitação como tal. Qual o ganho, porém, do autor que empreende esse trabalho textual?
Enfim, qual é vantagem da ficção sobre a verdade dos fatos que, por ser comprovável,
irrefutável, não pode ser questionada pelo leitor?
Verificou-se que os relatos de viagem, embora contem com uma matéria real, não
deixam de elaborar-se, parcial ou integralmente, como textos de natureza ficcional. Uma vez
eliminada a necessidade de se atestar a veracidade do relato, com a consolidação do
conhecimento dos limites geográficos do mundo moderno, as viagens e descobertas poderiam
ser contadas tal qual aconteceram, sem medo da recusa do leitor. No entanto, a dimensão
ficcional incorporou-se ao gênero de modo que se tornou, inclusive, um de seus traços
constitutivos. Talvez se possa dizer que a verdade, em estado bruto, não tenha o mesmo apelo
que a invenção, que é capaz, segundo Candido, de “nos dar um conhecimento mais completo,
mais coerente que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres”
107
.
Estendendo a afirmação de Candido sobre os seres à realidade global, pode-se depreender que
o real nunca se oferece tão coeso, completo, lógico quanto a matéria reordenada pelo
narrador. Nesse sentido, podemos dizer que reinventar é ficcionalizar, transformar o fato
verídico, trazido pela observação e pela memória, em matéria ficcional
108
.
Assim como se tem observado na evolução do gênero ao longo dos séculos, no relato
de Lévi-Strauss é perceptível uma certa elaboração ficcional. Para além da composição de
planos e, dentro deles, de tramas narrativas, Tristes trópicos apresenta passagens que bem
poderiam ser pura ficção, visto que, em várias delas, mais do que retratar um fato, percebe-se
uma intenção de contar uma história – vide o trecho já transcrito sobre a fundação de Cuiabá.
106
“Cada traço [da estrutura do romance] adquire sentido em função de outro, de tal modo que a
verossimilhança, o sentimento de realidade, depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela
organização do contexto.” (CANDIDO, 2002, pp. 79-80).
107
Ibid., p. 64.
108
Joaquim Alves de Aguiar, em seu estudo sobre Pedro Nava, reproduz um trecho do escritor sobre os
memorialistas, que se aplica bem à questão aqui discutida, sobre a dimensão ficcional nos relatos de viagem:
“[...] para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança, onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis.
Os fatos da realidade são como pedra, tijolo – argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo
reboco da verossimilhança – manipulados pela imaginação criadora. [...] Só há dignidade na recriação. O resto é
relatório [...]”. (AGUIAR, 1996, p. 22).