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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
A Linguagem do Corpo em São Bernardo de Graciliano Ramos
Maria Sólis de Castilho Lázaro
Dissertação apresentada ao Departamento
de Teoria Literária e Literatura Comparada
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de o Paulo,
para obtenção do título de Mestre em Teoria
Literária e Literatura Comparada.
Orientadora: Profª Drª Cleusa Rios Pinheiro Passos
São Paulo
– 2006 –
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Para João e Paulina: escora da coragem, aventura e alegria.
Para Lázaro: meu amor!
Para Mariana, Tiago e Júlia: paixão incondicional.
Para Joãozinho: nosso amor zinho.
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3
Agradecimentos
A realização deste trabalho aconteceu graças à colaboração de
um grupo. Sou grata de forma especial a:
Profª. Drª. Cleusa Rios Pinheiro Passos pelo acolhimento
competente e afetuoso.
Profª. Drª. Sonia de Camargo Vollet Sachs pela generosidade
intelectual e solidariedade humana.
Profª. Drª. Yudith Rosembaum pelas idéias valiosas, atando
Psicanálise e Literatura.
Vivaldo, Shirley e Tuta, irmãos queridos, pela amizade e apoio.
Mônica, Luzimar e Oscar pela contribuição amigável e
prazerosa.
Edu, Ana e Paulo pela ajuda técnica.
Lena, Cláudia e Zé pelos afazeres domésticos.
Luiz Mattos, funcionário do Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, pela atenção paciente.
4
Resumo
Apoiado na psicanálise e nas questões históricas e sociais, o
trabalho busca para o centro de interesse de discussão a personagem
Madalena, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos. A ênfase recai
sobre a opacidade dessa mulher configurada por um narrador ressentido que,
frustrado diante da impossibilidade de apropriar-se da esposa, deixa-se tomar
pelo ciúme obsessivo, sentimento responsável pelo ressentimento.
Divido em três capítulos, o texto procura, inicialmente, traçar o
desejo de Madalena e retirar o véu encobridor do brilho feminino, mostrando o
falseamento das memórias de Paulo Honório e sua cumplicidade no suicídio
cometido por ela, devido à desconfiança contra o comportamento diferenciado da
esposa, em relação às mulheres da época.
Por fim, no confronto dos desejos masculino e feminino, a leitura
da linguagem do corpo erógeno possibilita a decifração das marcas deixadas
pelo social em cada uma das personagens. Amarrada à proposta literária, está a
intenção de mostrar a posição da mulher na década de 30 e interpretar o suicídio
de Madalena como ato de recusa de viver o desejo masculino.
Palavras-chave: psicanálise, opacidade, ressentimento, desejo,
corpo erógeno.
5
Abstract
Based on Psychoanalysis and on some historical and social
issues, this dissertation aims at discussing the role of Madalena in the novel São
Bernardo by Graciliano Ramos. The focus of this analysis will be on the opacity of
that woman as depicted by a resentful narrator who, facing the impossibility of
taking possession of his wife, gives in to obsessive jealousy source of his
resentment.
Divided in three chapters, the text initially sketches Madalena’s
desire and seeks to unveil the feminine luminosity hidden underneath, by
showing how misleading Paulo Honório’s memories can be and how his
suspicions made him an accomplice in her suicide, by not accepting his wife’s
out-of-ordinary behavior.
Finally, by confronting the masculine and the feminine desires,
the reading of the erogenous body will be the key to decipher the marks left by
social circumstances on both characters. Tied to the literary approach is the
intention of showing the place of women during the 30’s and interpret Madalena’s
suicide as a refusal to live the masculine desire.
Key words: Psychoanalysis, opacity, resentment, desire,
erogenous body
6
A palavra do corpo e o corpo da palavra. O
bom é que se complementassem. Mas é pedir
demais. Uma das duas já nos salvaria.
Affonso Romano de Santa’Anna
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 8
1 – O percurso do desejo de Madalena...................................................................... 21
1.1 A retirada do véu da opacidade ................................................................ 28
1.2 A esposa................................................................................................... 37
1.3 A mãe: a maternagem recusada............................................................... 42
1.4 A dor simbólica da mulher......................................................................... 45
2 – O desejo de Paulo Honório..................................................................................... 49
2.1 O desejo encoberto................................................................................... 54
2.2 O ciúme..................................................................................................... 63
2.3 A inveja ..................................................................................................... 68
2.4 O narrador ressentido ............................................................................... 73
2.5 Articulações da narrativa........................................................................... 77
3 – Corpo-a-corpo........................................................................................................... 82
3.1 Embate dos desejos: feminino e masculino.............................................. 84
3.2 Corpos presentes...................................................................................... 88
3.3 Corpos ausentes....................................................................................... 93
3.4 O corpo habitado por pulsões................................................................. 100
3.5 A linguagem do suicídio.......................................................................... 102
3.6 A pulsão escópica e invocante................................................................ 107
4 – Conclusão................................................................................................................ 110
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 116
8
INTRODUÇÃO
O objetivo de elaborar e executar um projeto de pesquisa a
respeito da condição feminina traduzida na expressão literária motivou-me
bastante tempo, quando completei os créditos de mestrado em literatura
brasileira na Universidade de Taubaté, em 1986. Na época, elaborei uma
dissertação, cujo tema atendia à motivação de pesquisar personagens
femininas na literatura brasileira. Estabeleci um percurso temporal de 70 anos
de 1860 a 1930 – e elegi três autores nacionais, criadores de personagens
femininas que morreram no decorrer da narrativa, após viver na opacidade,
imposta pelo mundo patriarcal, opacidade agravada pela óptica de narradores
masculinos. As personagens Lúcia, do romance Lucíola de José de Alencar,
Capitulina, do livro Dom Casmurro de Machado de Assis, e Madalena, de São
Bernardo de Graciliano Ramos, compõem a referida seleção de personagens
femininas.
O desejo de entender um pouco do universo feminino ampliou-se
e desencadeou um outro que estava em latência: atuar as duas pontas de
meu próprio desejo, estabelecer conexões entre literatura e psicanálise, e, nelas
retomar a pesquisa inicial centrando-me no romance São Bernardo de Graciliano
Ramos. Ainda caberá colocar que as amplitudes das personagens citadas
levaram a escolha de uma delas, ficando as outras como contraponto para
entender a recusa do corpo feminino a ser tomado como palco de ação do
desejo masculino.
Portanto, em função da complexidade das três mulheres
ficcionais reunidas em minha pesquisa inicial, escolho, nesta retomada, o
aprofundamento da personagem Madalena, que vive num espaço social que lhe
retira a voz e a vez, deixando-lhe no corpo as cicatrizes e os sintomas da dor
psíquica. Para demonstrá-lo, impõe-se a leitura das marcas que ficaram
registradas nos corpos físico, psíquico e moral das duas personagens principais.
9
São Bernardo, narrativa construída em primeira pessoa, começa
com a ambição material de Paulo Honório, protagonista da história e criador de
Madalena. Fazendeiro ambicioso, enérgico e dominador, que veio do nada,
Paulo Honório chegou a tornar-se proprietário da fazenda São Bernardo, onde,
no passado, trabalhara na enxada. Sua ascensão foi pautada pelo sonho de
trabalhar, construir e progredir, não importando por que métodos. A trajetória da
decadência que ao final o vitimou manifesta-se a partir do casamento com
Madalena, após o qual as posições se invertem: ele, que domina a primeira parte
do romance pelo tom seguro e prepotente, passa a adotar uma postura reflexiva
e amargurada, provocada pela convivência fracassada no casamento.
O narrador Paulo Honório, que escreve sua história após a morte
da esposa, situa-se no presente de sua solidão. Rememora fatos passados e
relata-os em forma de livro, o que o conduz ao enfrentamento da verdade sobre
si mesmo. De pronto chama atenção o fato de que a narração em primeira
pessoa possibilita ao narrador masculino ofuscar a mulher com a qual
contracena. Usufruindo a condição de superioridade que lhe assegura a
autonomia, ele narrador envolve em opacidade a mulher, privando-a da sua
construção de sujeito. Embutida nessa instrução estaria a submissão psíquica e
moral impingida à mulher pelo narrador masculino, postado em primeira pessoa.
Em Madalena, construída na fôrma prepotente de Paulo Honório,
ecoam as vozes do conflito entre o desejo feminino da professora intelectual,
revolucionária, solidária com os humildes, que supera seu tempo histórico-social
e a interdição anteposta pelo desejo masculino obstinado pela posse da
mulher. Assim enjaulado no casamento, ao corpo fragilizado de Madalena resta
um impulso extremo em busca da libertação: optando por ser sujeito da ação, ela
faz do suicídio sua escolha.
Para examinar e esclarecer os mecanismos de relação
existentes entre a prepotência do homem e a opacidade feminina, de início se
verificada na obra a maneira pela qual o discurso masculino espelha a
submissão psíquico-social da mulher da época, mediante a composição do
retrato ao mesmo tempo físico, psíquico e moral da personagem feminina, o que
10
revelará o perfil de um narrador ressentido. Na seqüência, será desvelada a
imagem de Madalena, pelo levantamento de sua história de vida anterior ao
casamento. Em seguida será descrito o percurso dos desejos, tanto os de
Madalena quanto os de Paulo Honório, de cujo confronto emergem os contrastes
que desequilibram a união do casal.
A linguagem do corpo, aqui considerada como agente de
expressão dos desejos, será o viés interpretativo que se prestará como vereda
na busca dos conteúdos latentes, entranhados nos componentes cultural e social
das relações humanas e conjugais, e manifestados, assim como no corpo da
escritura, também nos corpos das personagens que contracenam com os
fantasmas que as invadem. Nesse sentido, chama atenção a imagem de
Madalena, lesada pela submissão que lhe foi imposta pelo narrador detentor da
fala.
Discutir a questão, tendo em vista a possibilidade de apreender e
compreender a linguagem do corpo em o Bernardo, é uma forma de resgatar
o porte da imagem dessa mulher. Vasculhando o discurso do narrador
masculino, será possível verificar quanto ficou contida a voz de Madalena.
Ao final, o enfoque da dimensão social alcançada pelo problema
exposto poderá elucidar determinadas marcas que não tiveram representação
simbólica na vida de Madalena e, por isso, se materializaram através da morte:
as cicatrizes do corpo social irromperam na mulher, sintomaticamente morta na
narrativa de Paulo Honório.
A abordagem metodológica das questões sugeridas não deverá
contemplar apenas o núcleo temático-textual. Outras vertentes de interpretação
concorrerão para ampliar o alcance das observações, em particular a psicanálise
que, entre tantas direções existentes, seescolhida para nortear a proposta
deste estudo.
Contudo, todas as vezes que se estabelecem aproximações
entre psicanálise e literatura na análise de um texto, surge o risco de psicanalizar
o personagem, resvalando em um reducionismo que empobrece e limita a obra
11
de arte. Fugir desse perigo implica reconhecer no texto uma fonte inesgotável de
construções interpretativas. Portanto, para dispor de outros saberes que auxiliem
na investigação do suicídio praticado por Madalena e permitam entender a
decisão da recusa de submeter-se ao desejo masculino o que não era conduta
habitual entre suas coevas –, serão precisos outros olhares.
Adotar aspectos psicanalíticos como apoio teórico é optar pelo
discurso do sujeito do inconsciente, privilegiando, na observação dos textos,
inversões, contaminações, falhas e interrupções, de tal modo que se justifica, no
presente trabalho, a intenção de cobrir e descobrir o texto de Graciliano Ramos,
num corpo-a-corpo com a palavra, partindo do manifesto para as entranhas do
latente. É importante destacar que este estudo inscreve-se no campo da teoria
literária, cabendo à psicanálise o papel de subsidiar o entendimento do
comportamento das personagens.
Dentre as correntes psicanalíticas existentes, o alicerce para a
elaboração deste estudo encontra-se nos textos de Freud, complementados por
alguns de seus leitores críticos de ambas as áreas, a crítica literária e a
psicanálise, entre os quais, Lacan e Julia Kristeva. A escolha da teoria freudiana
se deve a sua relevância junto aos estudos sobre a sexualidade feminina e a
feminilidade. Além disso, mediante a organização das questões apresentadas
em torno da recusa do corpo feminino como palco do desejo masculino, serão
levantados aspectos à altura de justificar alguns conceitos da psicanálise, tais
como pulsão
1
de vida, pulsão de morte, desejo, princípio do prazer e princípio da
realidade.
Porém, cabe reiterar, não bastam as considerações da
psicanálise: a história de Madalena caracteriza a condição social feminina de sua
época, momento em que tentava emitir sua voz perante uma sociedade que,
1
Na tradução das Obras Completas de Freud pela editora Imago aparece o vocábulo instinto em
lugar de pulsão. A escolha pela palavra pulsão se justifica porque em português o termo instinto
também é usado no sentido biológico genérico, diferentemente do emprego em alemão que
abarca vários significados. Quando Freud utiliza a palavra Trieb, ele menciona que muitas
línguas modernas invejam a precisão da língua alemã. HANNS, Luiz. Dicionário Comentado do
Alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 339.
12
marcada por uma tônica patriarcal, mal começava a abrir suas portas para a
participação social das mulheres, com avanços e recuos.
As reflexões sociológicas revelam-se, pois, importantes como
ponto de partida externo para acompanhar a viagem interior de Madalena, para a
elucidativa composição do painel cio-cultural em que a história se desenrola e
no qual as personagens trafegam. Foram selecionados, dentre os mais
significativos, autores como Gilberto Freire, em Sobrados e Mucambos, Antonio
Candido, em Literatura e Sociedade, e Caio Prado Junior, em Formação do
Brasil Contemporâneo, que fornecem bons fundamentos para a análise do
contexto da época. Também contribuem para o conhecimento contextual
pretendido, com o acréscimo da formação histórica, os artigos que tratam
especificamente da história da mulher no Brasil, tais como os contidos nas
coletâneas de: Mary Del Priore, em História das mulheres no Brasil e Fernando
A. Novais e Nicolau Sevcenko, em História da vida privada no Brasil – República:
da Belle Époque à Era do Rádio.
Com efeito, Madalena, personagem de ficção, emerge de um
chão histórico e tem seu drama vinculado às questões sociais que envolvem a
sociedade brasileira dos anos 30. Desse modo, a trajetória da recusa da
personagem, revelada na linguagem do corpo, não perderá de vista o pano de
fundo social do qual ela sai para se lançar em direção à realidade opressiva de
esposa e e. Paulo Honório, por sua vez, reflete a economia agrária do
Nordeste, entregue à mobilidade dos espertos do regime capitalista. Está
evidente, ambas as personagens detêm nas próprias raízes históricas elementos
motivadores de suas ações e, por isso mesmo, instigam a investigação
psicanalítica que os poderá elucidar.
Interpretar, entretanto, é um risco. Assumindo a abordagem
psicológica, o risco pode se alargar ainda mais, na medida em que o delírio
permeia com mais liberdade as interpretações literárias. Sendo assim, o diálogo
e as justificativas textuais, juntamente com a força da resposta provocada nos
leitores deste ensaio, poderão conferir ou atestar a fecundidade da proposta.
13
Para o conhecimento do objeto que concentrará a presente
análise são, pois, oportunos e recomendáveis certos mecanismos de
interpretação literária que, em sua relação com outros saberes aqui
especialmente a psicanálise, balizada pelos fundamentos históricos e sociais –,
favorecerão a compreensão das personagens ficcionais em sua força de
representação analógica.
Trata-se de procedimento de importância, na medida em que
favorece um conhecimento mais completo da obra ficcional, que leve em conta
os diversos aspectos do contexto. Na perspectiva da análise sociológica, o
Bernardo, dos anos 30, tem sido objeto de inúmeros estudos que exploram as
circunstâncias de vida de uma sociedade controlada e oprimida por valores
oligárquicos. Trata-se de uma vertente analítica que se mostra bastante prolífica,
pelas contribuições que ajudaram a inserir a obra de Graciliano Ramos nos
cânones da literatura brasileira.
Entretanto, ao se debruçar sobre o romance por um viés novo, o
leitor poderá perceber que a riqueza de interpretação que a obra suscita não se
resume apenas aos aspectos sócio-econômico-culturais da sociedade e que as
personagens apresentam perfis complexos, graças a uma vida interior a ser
explorada mais atentamente.
Com o objetivo de fugir do estereótipo das análises que
destacaram Paulo Honório, nosso trabalho sugere uma nova questão: a de
propor Madalena como protagonista das reflexões a serem desenvolvidas.
Personagem singular ao recusar viver o desejo do cônjuge e optar pelo suicídio,
ela não transcende seu tempo histórico-social como também, dominando os
meandros da narrativa masculina em primeira pessoa, chega a exceder seus
limites.
A inversão dos valores convencionais vale dizer: a substituição
de Paulo Honório por Madalena – não se prende, porém, ao simples exercício da
diversificação de abordagem analítica na busca do foco de atenção; ao contrário,
vem da reação de uma sensibilidade feminina, atenta ao valor negado ou não
14
reconhecido no universo sócio-cultural. Efetivamente, a sociologia e a história se
ocupam dos fatos e de suas relações processuais; entretanto, o mesmo universo
poderá ter sua interpretação ampliada mediante a contribuição da psicanálise.
No enfoque psicanalítico, o que marca a diferença desta
proposta é a análise da linguagem do corpo para orientar a leitura da obra,
norteando-a para a sondagem dos enganos, das motivações inconscientes que
regem os desejos, enfim daquilo que está encoberto na escritura. Esse ponto de
vista ganha relevância pela diferença que propõe em relação aos inúmeros
estudos que já se fizeram a respeito de São Bernardo, em sua maioria inclinados
para a observação sociológica. Legitimando a contribuição do viés interpretativo
motivado a enfocar o feminino, talvez a proposta favoreça uma possível
resposta, dentre tantas que faltam, para a pergunta de Freud: O que querem as
mulheres? Desejar... Ter voz... Ter vez... Livrar-se do esconderijo... Recusar a
maternidade como dever... Paralelamente, além dessa pergunta, que se dirige
para o feminino, outra questão poderá ser feita, em relação ao masculino: o
seria possível desconfiar do olhar de um narrador ressentido pelo ciúme, pelo
rancor e pela inveja?
Em verdade, chega a intrigar o esquecimento sistemático em
que ficou mergulhada a personagem Madalena, tal como evidencia, ao primeiro
exame, a fortuna crítica de Graciliano Ramos e São Bernardo. Dentre os críticos
que se destacam nesse sentido, merecem lembrança os ensaios: “Ficção e
confissão” de Antonio Candido; “O mundo à revelia” de João Luiz Lafetá;
“Dettera: ilusão e verdade Sobre a (im) propriedade em alguns narradores de
Graciliano Ramos”, de Valentim Facioli.
Apesar de sua importância, esses ensaios dão pouco destaque
ao papel de Madalena, apenas encarada como figura complementar pelos
estudos centrados no perfil forte da personagem Paulo Honório. Antonio Candido
concentra-se nos comentários sobre o sentimento patriarcal e o contexto
histórico do qual o fazendeiro faz parte, embora também alerte para a
importância do romance como fonte de análise psicológica de temas como o
15
ciúme, o sentimento de propriedade, a complexidade humana inerente ao
protagonista.
Antonio Candido, no ensaio Ficção e Confissão (1956), comenta
os romances em primeira pessoa dentro da produção de Graciliano Ramos. Em
São Bernardo, o crítico aborda o lugar que romancista e romance ocupam no
quadro qualitativo dos cânones da literatura nacional. Durante o processo de
análise a tônica recai na personagem Paulo Honório, evidenciando sempre a
correlação entre a força do protagonista e sua decadência com a fragilidade das
realizações materiais. Desse confronto emergem duas forças: o ser e o ter.
Madalena, contracenando com Paulo Honório, aparece apenas incorporando a
bondade humanitária, no papel de contraponto com as ações do protagonista
obcecado pela idéia do ter.
Em “O mundo à revelia”, é também a Paulo Honório que João
Luiz Lafe(1977) volta seu olhar ao afirmar que o ‘eu’ que narra se imprime em
nossa memória e aponta para a força da personalidade do narrador em primeira
pessoa. Com essa declaração, o crítico revela o nítido interesse de investigar e
conhecer o coronel protagonista.
Quanto a Madalena, Lafetá a apresenta apenas como
coadjuvante na contracena com aquele que detém o interesse central da análise.
Mesmo quando, ao discorrer sobre suas idéias, o crítico lhe dedica uma parte
significativa em seu estudo, destacada com um subtítulo especial, a mulher
permanece numa posição secundária em relação ao marido, configurado
protagonista nos termos do ensaio em pauta.
É a reificação
2
de Paulo Honório a proposta capital do ensaio de
Lafetá. Ele conduz o leitor a uma avaliação da obra de Graciliano Ramos, a partir
do poder da figura dominadora do narrador da história. Quanto a Madalena,
2
Para definir o termo reificação, adotamos uma das acepções proposta por Tom Bottomore:
“Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhante a coisas, que
não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A
reificaçao é um caso ‘especial’ de ALIENAÇÃO, sua forma mais radical e generalizada
característica da moderna sociedade capitalista.” BUTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento
Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 134.
16
aparece como agente do processo de desestabilização da sintaxe narrativa,
iniciada com sua entrada em cena. Instalada a mudança, o antes afoito e
imbatível recua e se encaminha na direção do fracasso, tanto mais intensamente
quanto mais cresce o desencontro nas relações com a esposa. O papel de
narrador ele vai assumir ao final, na tentativa de, pela compreensão, alcançar a
própria salvação.
Dentre os muitos críticos que analisaram São Bernardo na
perspectiva sociológica, também o ensaio de Valentim Facioli (1993) corroborou
com este estudo. Ao recomendar ao leitor uma atitude de desconfiança diante do
narrador de si mesmo, o crítico auxilia de maneira direta o projeto de leitura
proposto nesta dissertação, que pretende qualificar, em Paulo Honório, o
narrador ressentido cujo discurso é duvidoso, quando se propõe a desenhar a
personagem da mulher, embora a trajetória aqui seja outra, quando se
analisado o narrador mais distanciado na segunda parte da história.
Com o olhar fixo em Madalena o rastreamento da fortuna crítica
aponta outros ensaios que favorecem a intenção deste trabalho: dois de Lúcia
Helena Vianna (1999) “O grito amordaçado” e “A senhora escreveu uma carta
e o de Maria Rita Khel (2004) Um romance brasileiro: São Bernardo, Uma
vingança invertida.” Atribuindo relevância à relação entre masculino e feminino,
ambas as autoras contribuem com o movimento da leitura psicanalítica adotada
neste trabalho, interessado na captação do pathos da relação entre Paulo
Honório e Madalena, para melhor compreender a personagem feminina. Essas
autoras se tornam aqui especiais pelo fato de que despojaram o texto de
Graciliano da aura protetora do narrador em primeira pessoa, senhor da
estrutura na composição da personagem feminina.
Postos o objetivo do trabalho, o método e a sustentação teórica
empregados, cabe agora esclarecer o projeto estrutural da dissertação que, em
linhas gerais, contará com três partes fundamentais.
O primeiro capítulo, O percurso do desejo de Madalena, é
destinado à caracterização da soberania do narrador Paulo Honório na
17
composição do retrato (físico, psíquico e moral) de Madalena. Para proceder a
tal identificação da personagem, vale acompanhar o percurso do desejo
configurado na construção do sujeito, com suas diversas faces – a da estudante,
a da professora, a da esposa, a da mãe –, levando em conta a linguagem cifrada
no corpo que reage à dor interiorizada.
A partir daí, a atenção recai sobre as intenções do narrador ao
envolver a mulher em opacidade. Com essa atitude de dominador, Paulo Honório
controla Madalena, a ponto de liberar-lhe o brilho de acordo com seu estado
emocional, que oscila entre o ressentimento e o distanciamento, de tal modo
que a construção da figura da mulher fica à mercê da vontade e da disposição do
narrador das memórias. Assim submetida, ela não consegue transpor as
limitações que lhe impõe seu figurador, que a faz opaca ou, quando muito, se lhe
permite agir, mostra-a cometendo traições, ora como subversiva ora como
adúltera. É curioso observar que o narrador coloca no mesmo plano a subversão
ideológica e o adultério, podendo constatar a contaminação de valores presente
em Paulo Honório. Ele não faz distinção entre a norma política e a norma
conjugal, ambas se embaralham na visão do cotidiano masculino no sertão. Se
Madalena transgride o espaço reservado ao homem, cabe-lhe o julgamento
moral de prática de adultério.
Por conta das oscilações, o relato de Paulo Honório,
concentrado na esposa, deixa-se tomar pela ambigüidade. Para tanto se faz
importante um levantamento da cadeia de elos constituída dos fatos que
compõem a sólida trajetória de vida de Madalena, anterior ao casamento com
Paulo Honório.
O segundo capítulo, “O desejo de Paulo Honório”, se reserva a
manifestar a intenção da pesquisa, no sentido de desfocar o narrador em
primeira pessoa e sinalizar as possíveis artimanhas elaboradas por ele para
aliciar o leitor menos atento, em favor de seu ponto de vista. Para tanto, importa
buscar certo esclarecimento do perfil de Paulo Honório, com o intento de apontar
alguns dos motivos analogicamente inconscientes determinantes do percurso do
desejo da personagem: a fazenda, a mulher, o filho e a escritura.
18
No mesmo capítulo, importam alguns argumentos significativos,
capazes de caracterizar a intenção do narrador de emoldurar a imagem feminina
em seu desejo de posse. São igualmente importantes, pelo quanto contribuem
para a argumentação, neste trabalho, os traços que revelam a problemática do
ciúme, vetor desencadeador do desequilíbrio emocional de Paulo Honório,
resultante da solidão dolorosa que o conduz ao enfrentamento da verdade sobre
si mesmo.
Ao longo dos comentários sobre a personagem do narrador, será
útil convencionar as duas categorias em que ele pode ser configurado: o
narrador ressentido, presente na primeira parte da história e o narrador mais
distanciado, na segunda parte. A distinção entre os dois e o estabelecimento das
relações existentes entre eles são expedientes propícios para fazer enxergar
Madalena, trazida ao leitor pelo olhar e pela voz do narrador.
Finalizando a composição do corpo (físico, psíquico e social) de
Paulo Honório, caberá o levantamento de hipóteses sobre a intenção que o
moveu na decisão de fazer a escritura de sua própria história como ato expurgo
das lembranças dolorosas. Não teria ele, envergonhado, sem conseguir
apropriar-se de Madalena, camuflado a inveja e se apropriado de um recurso
próprio dela, a professora, a palavra escrita? Não teria recorrido à armadilha de
sedução do prepotente e do pragmático para falsear sua intenção lucrativa? Ou
teria, como homem corajoso acostumado a dominar a terra, posto a si mesmo
mais um desafio, o de dominar a escrita?
Exploradas as questões e levantadas as hipóteses desses
primeiros capítulos, no último, intitulado “Corpo-a-corpochega a vez da leitura
das marcas da experiência cotidiana e da caracterização de cada corpo.
O confronto entre os desejos de Paulo Honório e Madalena, no
embate da convivência, provocou cicatrizes psíquicas que marcariam as
personagens ao final de suas trajetórias. Tais marcas surgem na medida da
revelação da linguagem do corpo, manifestando a maneira particular de cada
19
personagem de reagir diante da falta, vivenciada nas ocorrências da vida de
cada uma delas.
O enfoque da análise, recai, aqui, sobre o embate dos desejos
de ambos, procurando demonstrar a dissensão de desejos dos personagens.
Para o marido, a frustração do desejo de apropriar-se da esposa; para esta
frustração da esperança do casamento bem sucedido e a ruptura com o pacto de
tornar-se mulher de coronel.
No corpo-a-corpo, os corpos se fazem presentes e ausentes no
jogo das ações, que gerenciam o tempo seja para fins lucrativos, no caso de
Paulo Honório, seja para fracassos, na história de Madalena. Incidindo sobre o
corpo físico, a linguagem da ausência ganha, pela elaboração simbólica, uma
espécie de tradução das marcas do psíquico, do social e do cultural.
20
O que torna possível a todo ser humano se apossar da história é
o fato de que ele, ao nascer numa dada ordem consuetudinária,
passa a orientar sua ação a partir de alguns marcos
estruturados, tanto pelo costume quanto pela norma. É
importante salientar, no entanto, que a assimilação/negação de
papéis e valores é sempre uma atividade, consciente ou não,
um fazer que se entrelaça com a representação, e que mesmo
assim pode alterar o já-feito, ou o já-dito. Assim, quando o
discurso visa consagrar a oposição homem/mulher, tem como
objetivo fazer coincidir os eventos e a sua significação. Há,
porém, uma margem de liberdade nos fatos, porque é intrínseco
ao relato a noção de mal-entendido. A realidade, portanto, é
aquilo que nunca coincide consigo mesma porque depende não
de como ela se apresenta mas também do olhar que recai
sobre ela.
Marina Maluf e Maria Lúcia Mott
21
1 – O percurso do desejo de Madalena
Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
Resta a alegria de estar só, e mudo.
Carlos Drummond de Andrade
O retrato (físico, psíquico e moral) de Madalena composto na
narrativa São Bernardo por um narrador ressentido reconstrói sua figura com
pinceladas carregadas de afetos negativos do passado. Tal sentimento nasce da
participação dessa companheira em momentos de extrema infelicidade para ele,
caracterizados pela amargura, possessividade e ciúme. Antes do casamento,
Paulo Honório era impulsionado pela exaltação de trabalhar, construir e
progredir; depois, tempo presentificado na sua decadência, a personagem se
destitui de sua estrutura monolítica, processo que começa com a aproximação
de sua mulher. Impactado, ele confessa: Madalena entrou aqui cheia de bons
sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com
a minha brutalidade e o meu egoísmo.
3
Diante desse reconhecimento, recusa a si o lucro da reparação,
preferindo o ressentimento para dar fé a seus afetos. Conseqüentemente, fica
passível de credibilidade o quadro emoldurado pelo narrador que perde o
controle de seus atos. Passada por um filtro, a composição finalizada da imagem
de Madalena, se vista pela configuração indivisível arregimentada pelas noções
de figura e de forma, ocupa a posição de fundo e é fundamentada pelas
reminiscências dolorosas do narrador.
No entanto a verossimilhança da imagem ficcional descrita por
Paulo Honório certamente ficará comprometida quando o enfoque do olhar do
leitor se propuser a fazer a inversão: a figura passa a ser fundo, o fundo passa a
ser figura. Assim, haverá a superposição da luminosidade sobre a opacidade da
figura anterior. Daí, essa inversão permitirá estampar a inteireza da personagem,
3 . RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 21ª ed. São Paulo: Martins, 1973. p. 247.
22
sublinhando a composição de Madalena feita por Paulo Honório, seguida da
retirada do véu que a recobre.
Com a imagem de Madalena lesada pela submissão que lhe foi
imposta por um narrador detentor da fala é que se instala a questão da
opacidade a ser discutida como forma de esclarecer a face física, psíquica e
moral dessa mulher. Madalena aparece, na narração, conduzida por um narrador
autor masculino que desfruta da autoridade inerente à sua missão
narrar a
própria história com os fatos reconstruídos no plano da memória –, mas que,
obcecado pelo ciúme que o domina, produz desconfiança no leitor atento.
O narrador masculino, escreve em primeira pessoa, usufrui a
condição de superioridade que a posição lhe confere, negando à personagem
feminina a possibilidade de revelar-se a si, ou seja, de construir-se como sujeito.
Madalena, moldada na fôrma prepotente de Paulo Honório, faz ecoarem vozes
oriundas do desejo feminino que supera seu tempo histórico-social e rebela-se
contra a interdição feita pelo narrador obstinado pelo ciúme e pela posse da
mulher, que não quer vergar-se à histórica servidão feminina.
Estampar o brilho da personagem feminina requer um trabalho
de garimpagem do discurso masculino no qual se constrói a figura. As
discussões emergem da dicotomia entre o que denominamos narrador
ressentido e narrador mais distanciado, entre os quais oscila Paulo Honório, no
momento da participação de Madalena em sua vida.
A composição textual do retrato físico da mulher desenha a
imagem de um ser pequeno e frágil, caracterizada pelo emprego do diminutivo, o
que também pode insinuar afetividade: ozinha
4
, cabecinha
5
, miudinha
6
,
fraquinha
7
e mocinha
8
. À medida que vai avançando em suas descrições, o
narrador revela seus objetivos, em relação à aquisição da reprodutora que lhe
concedesse o herdeiro: A senhora, pelo que mostra e pelas informações que
4 . RAMOS, Graciliano, op.cit, p. 122.
5 . Idem, ibidem, p. 122.
6 . Idem, ibidem, p. 124.
7 . Idem, Ibidem, p. 124.
8 . Idem, ibidem, p. 127.
23
peguei, é sisuda, econômica, sabe onde tem as ventas e pode dar uma boa mãe
de família.
9
Paulo Honório parece enternecido pela figura de Madalena.
Talvez o encantamento tenha desencadeado mecanismo similar para idealizar o
perfil psíquico da mulher, cujo modelo deveria integrar tanto porte físico como
estrutura financeira, a ponto de ser incluída entre os seus bens:
De repente conheci que estava querendo bem à pequena.
Precisamente o contrário da mulher que eu andava imaginando mas
agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era
bichão. Uma peitaria, um pé de rabo, um toitiço!
10
É no destaque do traço singular da mulher que a dicotomia entre
narrador ressentido e narrador mais distanciado
11
se exacerba. Reprimida a fala
de Madalena, o narrador mais distanciado manipula a composição do perfil da
esposa. Mas as posições se invertem, quando Paulo Honório abandona o tom
otimista e seguro, deixando que a voz feminina se faça insinuar pelo tom
reflexivo que ele emprega na própria narrativa.
Com a inversão provocada pelo aparecimento da moça na vida
de Paulo Honório, instala-se nele a dúvida e, conseqüentemente, o leitor percebe
que a esposa levou para sua propriedade não novas idéias sobre as relações
humanas e as relações de trabalho, mas principalmente mostrou um novo papel
que o feminino gostaria de desempenhar na sociedade da época.
A nebulosidade na qual a voz do homem envolve a imagem
feminina ocorre à medida que o envolvimento emocional do narrador ,
determinado pelo ciúme, é maior que o dispositivo gico da isenção. A
mencionada dicotomia narrador ressentido e narrador mais distanciado pode ser
9
. RAMOS, Graciliano, op.cit, p. 145.
10
. Idem, ibidem, p. 124.
11
. A partir daqui será adotada a terminologia narrador ressentido e narrador mais distanciado
para qualificar dois momentos do narrador Paulo Honório, levando em conta que passagens
em que ambos se misturam.
24
identificada em algumas passagens nas quais constam as descrições
comportamentais da personagem feminina, marcada pelos detalhes referenciais
que reforçam a ausência de luminosidade na sua composição: Madalena,
propriamente não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os
telegramas estrangeiros.
12
Na intenção de compreender a relação conjugal e familiar que
planejou, mas não realizou, Paulo Honório, enquanto componente ativo da
convivência, percebe a necessidade de rever-se a si próprio. Assim, durante o
processo de revisão de vida, ele que seu maior objetivo foi acumular bens
para suprir a necessidade de posse. Nessa compulsão incessante, fica evidente
que a mulher que desejava faz parte do processo aquisitivo. Depois da posse de
São Bernardo fica espaço para a posse de Madalena. É importante perceber que
o único da relação do casal foi marcado pelo desejo cego do marido de
apropriar-se da esposa. Palavras textuais o comprovam: Bonita? Ainda não
reparei. Talvez seja bonita. O que sei é que é uma propriedade regular.
13
Na
mesma intensidade da possessividade, surge a disposição negativa para avaliar
o comportamento da mulher que se recusa a viver o desejo alheio. É pertinente a
observação de Lafetá para dimensionar o efeito das atitudes avançadas de
Madalena frente a um homem em que as dificuldades cedem sob sua força e o
mundo se curva à sua vontade.
14
Há momentos, na narrativa, em que as deturpações da descrição
de Madalena revelam um narrador que perde completamente a credibilidade,
distanciando-se do limiar da razão, e anunciam um narrador participante,
opiniático, ressentido, obsessivo e dominado pelo ciúme doentio. Tomado pelo
sentimento de insegurança, começa, a partir de então, a desconfiar dos amigos.
Vê-se em desvantagem, a auto-imagem comprometida, e entrega-se ao
sentimento destrutivo do ciúme:
12 . RAMOS, Graciliano, op.cit, p. 191.
13 . Idem, ibidem, p, 137.
14 . LAFETÁ, João Luiz. “O mundo à revelia”. In RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 67ª ed. Rio
de Janeiro: Record, p. 201.
25
Pensei nos meus oitenta e nove quilos, neste rosto vermelho de
sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mãos enormes,
cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura... e
comecei a sentir ciúmes.
15
A composição de certa forma inteiriça da personagem feminina
fica emoldurada pela ambivalência de um narrador que oscila, ora com falas
abrandadas pelo envolvimento amoroso Madalena possuía um excelente
coração. Descobri nela manifestações de ternura que me sensibilizaram
16
ora
com falas permeadas de ressentimentos, que misturam sentimentos de ternura e
de raiva, tudo isso mesclado com idéias comunistas atribuídas à mulher.
Mergulhado nessa confusão emocional, surge o ciúme resultante das dúvidas
supervalorizadas por ele, ou melhor, vidas delirantes: Comunista, materialista.
Bonito casamento! Amizade com o Padilha, aquele imbecil.
17
O meu desejo era
pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca.
18
Reconhecidamente doente de ciúmes, Paulo Honório inclui no
retrato de Madalena o traço de adúltera e se põe como vítima, pela exposição de
sua honra em seu reduto sagrado, a fazenda São Bernardo.
Sim senhor, boa bisca. Não havia gato nem cachorro em São
Bernardo que ignorasse o procedimento dela.
Aquela mulher foi a causa da minha desgraça. Que falta de
respeito! quem atire semelhante heresia em cima de uma
senhora casada, nas barbas do marido? Há? Não há. Querem
mais claro?
19
O descontrole emocional de Paulo Honório vai assumindo
proporções exacerbadas, até ser compelido à confirmação da veracidade de
suas dúvidas. Começa a imaginar a cena do adultério cometido pela esposa e,
15
. RAMOS, Graciliano, op.cit, p. 189.
16 . Idem, ibidem, p. 163.
17
. Idem, ibidem, p. 189.
18 . Idem, ibidem, p. 195.
19 . Idem, ibidem, p. 208.
26
em conseqüência, a própria exposição pública. O delirante Paulo Honório não
mata em legítima defesa da honra, só porque não flagra:
O que faltava era uma prova: entrar no quarto de supetão e vê-la
na cama com outro.
Atormentava-me a idéia de surpreendê-la. Comecei a mexer-lhe
nas malas, nos livros, e a abrir-lhe a correspondência.
20
Dominado pela busca constante de evidências e confissões,
Paulo Honório tortura Madalena, gotejando-lhe a dor que acabou por levá-la ao
suicídio. Dentre as várias passagens que o assinalam, cabe citar:
Madalena estava prenhe, e eu pegava nela como em louça fina.
Ultimamente dizia-se coisas desagradáveis, que eu fingia não
compreender.
21
Madalena andava pelos cantos, com as pálpebras vermelhas e
suspirando.
22
Madalena abraçava-se aos travesseiros, soluçando.
23
As marcas da dor escorregavam pelo corpo feminino, que se
mostrara vulnerável a partir da gravidez. Em seu relato, Paulo Honório sempre
demonstrou consciência perante o estado doentio de Madalena, permanecendo
sempre insensível às manifestações de espírito de sua esposa e, principalmente,
eximindo-se de qualquer cumplicidade.
Na mesma linha de composição da ambivalência narrativa, ora
com olhar cego, ora com desejo de resgate, Paulo Honório vai delineando o
retrato de Madalena, trafegando sempre por duas vias e impondo a seu perfil
traços que traduziam o reconhecimento da honestidade dela, mas sem ceder à
20 . RAMOS, Graciliano, op.cit, p. 195.
21 . Idem, ibidem, p. 171.
22 . Idem, ibidem, p. 193.
23 . Idem, ibidem, p. 210.
27
constatação, porque assim estaria comprometendo sua posição de senhor. Em
momento de lucidez, declara: ciúme idiota! 24
Na contramão desses sentimentos, surgia a imagem de uma
mulher ameaçadora ao se declarar sem crenças religiosas: Mas mulher sem
religião é horrível
25
... Na cultura brasileira a socialização da mulher tem suas
raízes eclesiais. A palavra feminina não podia brotar independente da igreja ou
da família. No sertão do nordeste esta ideologia se impregna com marcas fortes,
cabendo a esposa a missão de passar aos filhos amor e respeito ás coisa
religiosas devoção é a idéia subjacente ao comportamento feminino. Aqui,
ajusta-se bem, a citação de Del Priore a respeito da religiosidade: no plano
simbólico, a mulher piedosa deve ser o contrapeso da mulher perigosa
26
. Um
olhar atento perceberá quanto o comportamento de Madalena desviou-se do
modelo da época, efetivando-se em perigo para Paulo Honório: Sei lá! mulher
sem religião é capaz de tudo.
27
Embutido no discurso do narrador em primeira pessoa, percebe-
se um Paulo Honório voltado ao fracasso e à solidão que o remetem à
comparação com Bentinho, de Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Guardadas as proporções das diferenças evidentes entre os dois narradores, é
certo que detêm em suas mãos a autoridade de composição da imagem das
esposas, imagem filtrada, em ambos os casos, pelo ciúme excessivo, que traz o
desejo do controle total sobre os sentimentos e o comportamento das
companheiras com as quais contracenam. Ambos possuíam a pretensão de
penetrar e esmiuçar o íntimo das esposas, sem lhes conceder o direito de livrar-
se da opacidade na qual foram envolvidas pelos narradores, marcados pelo
ressentimento.
Essa mesma dicotomia entre narrador mais distanciado e
narrador ressentido, facilmente percebida em Paulo Honório, é discutida por
24 . Idem, ibidem, p. 202.
25 . Idem, ibidem, p. 189.
26 . DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2001, p. 495.
27 . RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 189.
28
Alfredo Bosi, quando diz que entre o querer dizer e o texto ultimado há a
distância que separa (e afinal une) o evento aberto e a forma que o encerra
28
.
Sendo assim, esse perfil duplo do narrador na composição da personagem
feminina é constatado pela figuração da esposa, alicerçada na fantasia do
desejante e pela composição da mulher ameaçadora. As duas vertentes se
unem para atender ao jogo entre o dizer do masculino abrandado e o retirar do
dito masculino ressentido.
1.1 A retirada do véu da opacidade
Qual é o corpo correspondente à imagem da mulher composta
por Paulo Honório?
Fruto da fenda entre narrador ressentido e narrador mais
distanciado, o retrato de Madalena se revela por partes e pinceladas que,
durante sua composição, são dadas com rancor porque empanam o brilho da
imagem a ser revelada. Essa mulher, modelo involuntário do retrato produzido
pelo outro, permanece sem direcionar, escolher e controlar as nuanças da
própria imagem. Sobre o todo recai a opacidade.
Tal é o poder de Paulo Honório, no sentido de guiar certo
entendimento da situação, que ele conclui a história com a imagem da mulher
ausente, coberta pela vestidura da morte, pelo suicídio cuja responsabilidade ele
lhe imputa. Daí, acena ao leitor a possibilidade reducionista de julgar Madalena
pelo suicídio, visto como um ato de fraqueza. Como peneirar, entre tantas
descrições nebulosas, o que de factual e valioso para retirar o véu encobridor
da opacidade que envolve Madalena e corporificá-la,dando a luz necessária para
devolver-lhe o brilho?
Pela verificação da cadeia de desejos que construíram da
subjetividade de Madalena antes do casamento, dar-se-á o processo de
28 . BOSI, Alfredo. “A interpretação da obra literária”, In Céu, Inferno. São Paulo: Ática, 1998, p.
274.
29
revelação de sua imagem ofuscada. Ao mesmo tempo, o reagente que atuará na
busca de sua luminosidade procurará remover o envolvimento emocional de
Paulo Honório. Por meio da revisão dos desejos que encadearam a história de
vida de Madalena, podem ser pinçadas as descrições presentes na narrativa que
dão suporte à intenção deste estudo: alcançar o possível conjunto da
personagem feminina que, na contramão de sua época, se nega a resignar-se às
frustrações do casamento.
A busca do primeiro elo de resistência que alicerça a cadeia de
desejos de Madalena se inicia na infância, quando diz que é pobre como Job
29
.
Com essa afirmação, ela se posiciona diante de Paulo Honório, no momento do
pedido de casamento feito por ele, e assegura que, nessa parceria, se houvesse
ganho, seria dela. Aproveita para ratificar sua declaração de pobreza quando
relata as dificuldades enfrentadas ao lado da tia durante sua vida escolar.
Reitera que tais obstáculos corroboraram para consolidar seu espírito de luta e
sobreviver durante aquele período de dificuldades. Evidencia-se, pois, o fato de
que sempre foi movida pelo desejo de vencer. Se adoecia, restabelecia-se,
continuando a enfrentar os desafios e a seguir em frente, mirando a vitória de ser
professora e galgando a conquista da mudança:
Trabalhei ali muitos anos. À noite baixava a luz do candeeiro, por
economia... Dormíamos as duas numa cama estreita. Se eu
adoecia, D. Glória passava a noite sentada; quando não
agüentava de sono, deitava-se no chão.
30
Ironicamente, a jovem estudante, quando solteira, habitava um
espaço sem luz e um tempo qualificado por privações prolongadas, mas,
paralelamente, gestava o sonho da revelação da mulher professora. No entanto,
a mulher casada, no ancho espaço da fazenda São Bernardo, garantida além de
suas necessidades básicas, se arroga o direito de abreviar o seu tempo, quando
29 . RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 146.
30 . Idem, ibidem, p. 173-4.
30
o sonho não mais se sustenta e parece vencida pela doença, livrando-se do
sofrimento físico e psíquico pela morte.
As falas de Madalena, registradas acima, destacam que sua
infância e adolescência se pautaram por privações. Se houve orfandade, a
narrativa não menciona, mas podemos inferir um abandono. Madalena passa a
ser criada pela tia, D. Glória. Em parte, a dissolução dos vínculos paternos talvez
ajude a compreender os mecanismos subjacentes que determinarão a
sobreposição da pulsão de morte pela pulsão de vida, a partir do momento em
que ela escolhe o casamento. Se ela conseguisse estruturar uma relação
harmoniosa, criando um significante familiar novo, estaria fazendo a reparação
das figuras parentais e teria primazia a falta psíquica. Entretanto, seu alvo foi em
direção oposta, a a busca de excelência foi substituída pela pobreza. Paulo
Honório sabia o preço e não o valor das coisas. Daí, o logro: Madalena desejava
muito além do dinheiro.
No período de transição da infância da personagem feminina
para a condição adulta da professora, alguns comentários em que ela exalta
os atos heróicos da tia, com a finalidade de mostrar sua gratidão. Paralelamente
ao sacrifício de D. Glória, percebemos o de Madalena, pois que as duas
caminhavam juntas no enfrentamento dos obstáculos. Não mediam dificuldades,
alcançando, assim, a predominância da força sobre os impedimentos. Palavras
da personagem esclarecem o espírito de luta de ambas: E nos exames ainda
tinha tempo de cabalar os examinadores, Deus e o mundo para eu não ser
reprovada. D. Glória é incansável
31
As circunstâncias da existência de Madalena foram difíceis. O
mecanismo da compensação das dificuldades por meio de fantasias estaria
ausente no processo de desenvolvimento da personagem feminina, conforme
sublinhado. Parece que o princípio do prazer foi substituído por viver com o
princípio da realidade, tomando aqui as lições de Freud (1920) e as expressões
que introduziu para designar os dois princípios que regem o funcionamento
psíquico. O princípio do prazer quer o prazer, sem entraves; o princípio da
31 . Idem, ibidem, p. 174.
31
realidade impõe limites para controlar a adaptação à realidade externa
32
. Nesses
termos, privações de fantasia, presença de sofrimento e ausência de
simbolização deixaram marcas no (corpo físico e psíquico) de Madalena.
Vencidos todos os obstáculos até atingir a formação profissional,
ela, paralelamente ao exercício do magistério, atua escrevendo artigos para
jornal, procurando falar entre homens e para eles, enquanto suas coevas se
encontravam caladas e resignadas na vida propiciada pelo casamento, opção
que garantia o futuro estável das mulheres. Paulo Honório traduz o pensamento
da época com as seguintes palavras: Por que é que sua sobrinha não procura
marido?... Garantir o futuro...
33
Com a seqüência das falas de Paulo Honório, aqui registradas
apenas três dentre outras, podem-se mensurar a dimensão dos obstáculos que
as mulheres dos anos 30 tinham de transpor para fazer ouvir suas vozes: o
gosto de mulheres sabidas.
34
Ah! Faz artigos!
35
Eu tinha razão para confiar em
semelhante mulher? Mulher intelectual.
36
Madalena galgou o reduto masculino com a admiração de
companheiros letrados que fizeram parte da narrativa, homens que dirigiam a
imprensa local e que compunham a roda de amigos de Paulo Honório. É
importante verificar o comportamento da sociedade da época diante de um
comportamento feminino avançado.
A obra em discussão é produto literário de um chão histórico de
que o autor é o porta-voz, refletindo a ideologia dominante na sociedade em
relação à mulher. A fala feminina (1934), quando foi escrito São Bernardo, era
uma fala para dentro de casa, para o interior da família. Madalena faz parte das
raras exceções. Sua fala sai pelo jornal. Espaço restrito a vozes masculinas, tal
instrumento era controlado por homens que reforçavam a natureza feminina,
32 . FREUD, S. “Além do princípio de prazer”. (1920-1922) In Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 20, Volume XVIII.
33 . Ramos, Graciliano, op. cit, p. 143.
34 . Idem, ibidem, p. 191.
35 . Idem, ibidem, p. 141.
36 . Idem, ibidem, p. 192.
32
expressão comum na época, comportando a ideologia de uma sociedade
segundo a qual a mulher, se transgredisse a condição inerente a sua natureza
(delicada e maternal), estaria se distanciando do bem e pondo-se ao lado do
mal. Qualquer opinião divergente que ousasse veicular, manifestando idéias e
opiniões contestadoras, certamente confrontaria o ideal feminino controlado pelo
poder vigente. Lembrando a irônica constatação de Baudelaire, mulheres assim,
isto é, intelectuais, não serviam ao universo masculino: Aimer des femmes
intelligentes est un plaisir de pédéraste.
37
A narrativa não menciona o conteúdo dos artigos escritos por
Madalena, apenas destaca a qualidade da redatora: Mulher superior. Só os
artigos que publica no Cruzeiro!
38
Na contramão do reconhecimento intelectual
de Madalena aparece Paulo Honório, que a desmerece: Ah! Faz Artigos! Eu
tinha razão para confiar em semelhante mulher?
39
Se de um lado ela é elogiada pelos intelectuais, muitas vezes
humilhados e descartados por Paulo Honório; de outro é desvalorizada
justamente no reduto onde pretendia marcar posições. Era ali que ela gostaria de
firmar seu inconformismo ético face ao desamparo dos oprimidos subjugados
pelo marido proprietário. Também faziam parte de suas contestações as atitudes
de não enquadramento no desejo de Paulo Honório, quando lhe propunha
acomodar-se no papel de dona-de-casa. Negava-se sempre a fazer parte do lar
feliz, que ela considerava escamoteador do desejo de realizar os diferentes
anseios que compunham o universo feminino do qual fazia parte.
Portanto, tomando por base as posições que a personagem
anunciava, pode-se inferir o conteúdo atravessado na escrita de Madalena:
possivelmente seus artigos tinham tonalidades singulares e versavam sobre
assuntos indesejáveis ao meio masculino.
Madalena mulher, Madalena professora. A primeira, delineada
pela ruptura que fez com passos adiante de sua época, caminha para novas
37 . TELLES, Lygia Fagundes. “Mulher, Mulheres”. In: DEL PRIORE, Mary, op. cit, p. 670.
38 . RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 141.
39 . Idem, ibidem, p. 192.
33
possibilidades da mulher, enquanto a segunda foi mais moldada pela aceitação.
Madalena permitiu que a profissão de professora imprimisse nela as marcas da
feminilização do magistério
40
, as quais embutiam as confirmações da ideologia
defendida pela sociedade patriarcal
41
, que pressupunha para a parceria conjugal
uma hierarquia respaldada pela legislação, segundo a qual o marido era o chefe,
conseqüentemente detentor de poder sobre a mulher e sobre os filhos.
Segundo Del Priore, a carreira do magistério foi delegada às
mulheres porque servia como prolongamento da maternidade: cada aluno seria
um filho
42
. A ideologia dominante se pautava em duas opiniões para eleger o
educador ideal para as crianças. Apesar de contraditórias, ambas depreciavam a
mulher para o exercício do magistério. A primeira porque formatava o dueto
professora/mãe, igualando filhos com educandos e, por analogia, submetendo a
mestra ao poder masculino. A segunda rejeitava a mulher (juntamente com os
padres) porque eram retrógrada, prejudicando assim os objetivos educacionais
que a sociedade masculina vislumbrava para os meninos destinados a serem os
homens do futuro.
Atravessando as falas da personagem feminina, presentificadas
na narrativa, encontramos a professora Madalena avessa ao modelo desejado
40 . DEL PRIORE, Mary, op. cit, p. 449.
41 . “Colocando assim no centro da vida social da colônia, o grande proprietário se aristocratiza.
Reúne para isto os elementos que constituem a base de todas as aristocracias: riqueza, poder,
autoridade. A que se unirá a tradição, que a família patriarcal, com a autoridade absoluta do
chefe, dirigindo e escolhendo os casamentos, assegura. Esta aristocratização não é apenas de
nome, fruto da vaidade e da presunção dos intitulados. Constitui um fato real e efetivo; os
grandes proprietários rurais formarão uma classe à parte e privilegiada. Cercam-nos o respeito e
prestígio, o reconhecimento universal da posição que ocupam”. PRADO Jr., Caio. Formação do
Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 296.
42 . “O processo não se dava, contudo, sem resistências ou críticas. A identificação da mulher
com a atividade docente, que hoje parece a muitos tão natural, era alvo de discussões, disputas
e polêmicas. Para alguns parecia uma completa insensatez entregar às mulheres usualmente
despreparadas, portadoras de cérebros “pouco desenvolvidos” pelo seu desuso”, a educação
das crianças. Um dos defensores dessa idéia, Tito Lívio de Castro, afirmava que havia uma
aproximação notável entre a psicologia feminina e a infantil e, embora essa semelhança pudesse
sugerir uma “natural” indicação da mulher para o ensino das crianças, na verdade representava
“um mal, um perigo, uma irreflexão desastrosa”. Na sua argumentação, mulheres e clero viviam
voltados para o passado e, portanto, não poderiam “preparar organismos que se devem mover
no presente ou no futuro”. Outras vozes surgiam para argumentar na direção oposta. Afirmavam
que as mulheres tinham, “por natureza”, uma inclinação para o trato com as crianças de quem
elas eram as primeiras e “naturais educadoras”, portanto nada mais adequado do que lhes
confiar a educação escolar dos pequenos”. DEL PRIORE, Mary, op. cit, p. 450.
34
na época, primeiramente ao se mostrar quase uma ativista da educação,
defendendo o saber coletivo para os oprimidos; depois, na combinação
professora/mãe, ela se nega a desempenhar tal papel e marca sua posição,
inovadora para a época, ao se recusar a exercer a maternagem do filho gestado
e parido. Mostra-se muito mais interessada em exercer a maternagem social
com os excluídos, defendendo, portanto, o interesse coletivo.
A escola normal, formadora de professores, constituía-se como
uma casa idealizada, que protegia as mulheres das discussões e decisões
pertinentes ao universo masculino. Mas, na contramão dessa idéia, as
normalistas
43
, nesse mesmo espaço, ampliavam suas aspirações e davam
nascimento a sonhos de igualdade. Madalena trafegou por essa via, subvertendo
os discursos masculinos vigentes. Analogicamente avançou o contexto histórico-
cultural ao qual pertenceu. Intrometeu-se no universo masculino e falou de
assuntos pertinentes a eles, tais como política e revolução, contrapondo-se a ele
sempre com idéias subversivas.
É importante destacar que esses homens povoavam o mundo
rural, o que intensifica ainda mais a ousadia feminina, pois é nesse meio que os
valores patriarcais frutificaram com solidez, legando aos proprietários o poder de
decidir sobre seus agregados e dependentes. Paulo Honório traduz os valores
referidos e herdados do patriarcalismo. Muitas de suas atitudes, quando
contrariadas no exercício do poder, demonstram que ele as enfrentava ou pela
força física ou por meio do dinheiro. A alguém que assim assegurava seu poder
e que Madalena ousou falar.
Entretanto, as vozes que se pronunciavam sobre as mulheres da
época eram vozes de homens, que se arrogavam a função de porta-vozes da
sociedade; os jornais da época alertavam os varões sobre o prejuízo que uma
43 . Todo um investimento político era realizado sobre os corpos das estudantes e mestras.
Através de múltiplos dispositivos e práticas ia-se criando um jeito de professora. A escola era,
então, de muitos modos incorporada ou corporificada pelas meninas e mulheres embora nem
sempre na direção apontada pelos discursos oficiais, que estas jovens também constituíam as
resistências, na subversão dos regulamentos, na transformação das práticas”. DEL PRIORE,
Mary, op. cit, p. 461.
35
mulher poderia causar se não cumprisse a contento o dever de dona-de-casa,
pois, representaria ao homem um capital de desperdício.
44
Eles afirmavam que o magistério era a carreira ideal para as
moças, que se tratava de uma ocupação temporária até que chegasse o
momento do casamento. Se quisessem conciliar as duas situações, a profissão
podia ser exercida apenas em meio período, sem afastá-las dos afazeres
domésticos e da responsabilidade da educação dos filhos. Eram mantidas na
opacidade.
Esse tipo de exercício da docência se encaixava nas
características femininas porque protegia e tutelava as mulheres, conservando-
as sempre envolvidas com o meio infantil. Era uma profissão conveniente aos
olhos masculinos, funcionava como laboratório para estabelecer liames entre o
magistério e a maternidade. Ambas somavam traços complementares de
dedicação, abnegação e doação, quesitos essenciais para o exercício da
maternagem. E a opacidade da subordinação social-familiar se garantia.
Tal mentalidade acabou impregnando as professoras da época.
Elas eram formadas para esse fim, mas, perpassando pelo intelectual, as
fissuras de libertação iam abrindo as mentes femininas. As normalistas se
formavam, mesclando avanços de sonhos profissionalizantes e recuos para a
realidade da profissão casamento.
Passando desse levantamento histórico para a criação literária,
vemos que, dentre outros aspectos, a literatura é uma representação do vivido,
se mantém no campo do verossímil. Ela contém os componentes da história, a
recompõe, se vale dela para transfigurar e, às vezes, chega a instrumento de
denúncia.
44 . “Assim ao lado de recomendações contra a ausência das mulheres no lar, o jornal Veritas,
de 1920, em “Página reservada aos homens”, aconselhava: “A mulher que não tem a ciência da
dona de casa, pondera um sisudo autor moderno, é um membro inútil na sociedade conjugal: no
orçamento doméstico presa (sic) como um capital de permanente despesa e de desperdício, e
não figura como fonte de receita e de poupança”. DEL PRIORE, Mary, op. cit, p. 294.
36
Este é o contexto histórico de Madalena: foi a professora que
ficou entre a ruptura e a aceitação, depois deu um passo à frente, mas recuou.
Essa contradição era confirmada pela ideologia vigente que o só declarava a
fragilidade feminina mas também defendia que as esposas fossem sempre
protegidas e tuteladas. Entretanto, sendo professoras, refletiam os paradoxos
contidos no pensamento da época, configurando-se ao mesmo tempo
disciplinadas, disciplinadoras e, por vezes, resistentes às normas impostas.
Madalena avançou, ao se constituir como sujeito de seu desejo.
Usufruiu de autonomia e de algumas prerrogativas masculinas, enquanto viveu
com a tia. Venceu os obstáculos e se superou para se tornar professora. Mulher
ativa, engendrou discursos discordantes da ideologia capitalista, muitas vezes
ingênuo para o contexto em que vivia. Estabeleceu-se em seu meio como
professorinha socialista, conforme mostra o diálogo com Paulo Honório:
Por quê? Perguntou Madalena.
Você também é revolucionária? Exclamei com mau modo.
Estou apenas perguntando por quê.
Ora por quê! Porque o crédito se sumia, o câmbio baixava, a
mercadoria estrangeira ficava pela hora da morte. Sem falar na
atrapalhação política.
Seria magnífico, interrompeu Madalena. Depois se endireitava
tudo.
45
Avançou ao vencer a pobreza, ao superar as dificuldades no
período de escolaridade, e também ao alargar a cerca da propriedade do seu
marido para falar sobre os oprimidos. Avançou ao resguardar suas convicções
ideológicas diante do marido, opressor e poderoso. Avançou ao deixar um
significante novo para as mulheres da sua época, isto é, ao recusar-se a se
enquadrar e viver o desejo do marido.
45 . RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 185.
37
Com o casamento, no entanto, a guerreira de outrora desanda.
Sua luta fica miúda perto do poder de Paulo Honório. Recua, quando escolhe
uma união sem demanda amorosa e de conveniência, resultante das marcas
impressas pela feminilização do magistério. Entretanto, enquadra-se, mas sem
se submeter, quando escolhe ser sujeito de sua própria morte.
O passado da professora é o guia para a vida construída sob sua
responsabilidade. O presente, o casamento certificado como ato enganoso, leva-
a à decisão de não se submeter à lei de Paulo Honório, pois, sem o lastro
amoroso, a lei do casamento se transformaria em autoritarismo dilacerador. No
confronto do presente opressor, vivenciado com frustração, e do passado
promissor, permeado de conquistas, não estaria a causa de sua recusa à
maternagem? Paralelamente a essa recusa, não estaria atada a recusa da
reificação do filho, em que mãe e filho estariam subjugados ao mesmo senhor,
em decorrência da missão da mulher no casamento da época?
1.2 A esposa
Não felicidade senão no casamento,
profetizava o médico eugenista Renato Kehl.
É nesse ‘estatuto que a mulher se transforma
em Esposa e o homem em Esposo, e que a
Esposa e o Esposo se transfiguram em Mãe e
Pai.
Fernando Novais
A cadeia de desejos de Madalena, construída solidamente até o
casamento, começa a enfraquecer no momento em que compartilha com Paulo
Honório o desejo de construir uma vida a dois. Da parceria fundamentada na
prepotência patriarcal resulta o início da corrosão dos elos de ligação conjugal,
enfocados anteriormente. Até esse momento, ela mirava a vida. No percurso de
três anos do ciclo matrimonial, a esposa experimenta várias vozes para, enfim,
concluir-se calada.
38
A reunião das vozes elencadas abaixo pretende demonstrar a
tentativa da personagem feminina para falar ao parceiro. A intenção de graduar
as vozes de Madalena traduz-se em apelo de escuta feito a Paulo Honório. Sem
ressonância os pedidos acabam causando o declínio dos desejos dela até
chegar à superposição da pulsão de morte sobre a pulsão de vida conforme a
clássica conceituação de S. Freud (1920).
46
A referida gradação de vozes perpassa por vários tons. Há o tom
determinado da mulher que, enquanto professora, rejeita a oferta de troca de
emprego, apesar da proposta que lhe faz Paulo Honório de melhorar o salário.
Para o fazendeiro, a aceitação da oferta seria a porta de entrada para o
casamento desejado por ele fato observado na seguinte resposta de
Madalena: Não convém. Estou em seis anos de magistério, não deixo o certo
pelo duvidoso.
47
Outro tom que pode ser observado é o da vida frente à
sedução: a dúvida, motivada pela percepção de que o casamento seria realizado
sem demanda amorosa; a sedução, alicerçada na compensação da infância
pobre, na história de exclusão e na privação dos pais, tudo convergindo para a
esperança da complementação atribuída ao outro. Por essa fenda aberta na
criança, entra, na mulher adulta, analogicamente, a fantasia de um marido
poderoso que pudesse preencher a falta.
Entre a dúvida e a sedução fica o ato enganoso da personagem
feminina que aceita o casamento privilegiando motivos ilusórios, o que provoca
uma lucuna maior, aglutinada à exclusão da criança, da estudante, da mulher...
Assim, pelo fracasso das intenções, Madalena conclui pela exclusão da própria
vida.
46 “A idéia de dois princípios fundamentais que se contrapõem entre si: instinto de vida e instinto
de morte. O primeiro é uma força constitutiva que tende a organizar o organismo para somar e
crescer. O segundo se dirige contra o próprio sujeito, numa tentativa de levá-lo a seus estados
inorgânicos primitivos. É função do instinto de vida amalgamar-se e fusionar-se com o instinto de
morte”. FREUD, S. “Além do princípio de prazer”. (1920-1922), op. cit, Volume XVIII, p. 20.
47 . RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 144.
39
A ressonância de todas essas vozes a da professora, a da
criança órfã e pobre, a da mulher seduzida pela estabilidade familiar ou
dominada pela dúvida sobre a decisão do casamento recai na aceitação do
pedido de casamento, resultando, todas elas, na voz da mulher prática que
aceita casar-se, motivada pela desejo de acertar. Os excertos seguintes realçam
as atitudes dessa mulher pragmática: Para ser franca, não sinto amor.
48
Vamos
começar vida nova, hem? disse Madalena alegremente.
49
No entanto, o otimismo de Madalena é barrado pela rudeza de
Paulo Honório. A partir da convivência entre os dois, a voz de Madalena
apresenta-se sem sintonia com o lugar o Bernardo, ambiente de moradores
pobres e explorados pelo marido em relação aos quais ela assume a posição de
defensora. Em linha gerais, sua voz também não tem sintonia com a época,
caracterizada por mulheres cujas falas eram dirigidas para dentro da casa,
enquanto a sua pretendia alcançar os redutos masculinos e externos ao lar.
Essas vozes da personagem feminina apresentam-se com
matizes roucas e fracas no confronto com as vozes impostadas em tom
prepotente e agressivo, alardeadas por Paulo Honório e secundadas pelo coro
confirmador da sociedade da época, a de 1934. O tom de voz da personagem
masculina era irritado e desconfiado em relação às atitudes intelectuais da
companheira, ao que se somavam as inseguranças pessoais que geraram o
ciúme doentio pela esposa.
No embate dessas vozes, a do feminino e a do masculino, vence
a voz do narrador em primeira pessoa, que deixa claro o desejo de traçar o
caminho a ser seguido pela esposa. A afirmativa remete-nos a uma expressão
usada na zona rural: vai por dentro, indicando uma situação em que, para se
chegar a um lugar encurtando o caminho, deixa-se o trajeto conhecido, mais
longo e mais seguro, por um mais curto, mas sujeito aos contratempos do
desconhecido. O atalho sempre encurta a viagem. Analogamente, foi o caminho
48 . Idem, ibidem, p. 150.
49 . Idem, ibidem, p. 151.
40
que Paulo Honório ofereceu a Madalena, com atalhos bifurcados na direção do
seu desejo e de sua posse.
A sugestão do atalho vestiu o papel da esposa que já tinha
superado o percurso feito pela criança órfã, pela estudante e pela professora.
Depois de vencer esse percurso, Madalena se encontrava cansada por todas as
dificuldades que perpassaram sua vida. Deixa-se seduzir pela possibilidade de
tornar a vida mais fácil, porém não atenta para o desejo de Paulo Honório, que
era o de incluí-la entre os bens que faziam parte de suas posses. Conforme a
crítica assinalou, ele pretendia adquirir uma reprodutora a fim de obter um
herdeiro para São Bernardo. Verbalizado por Paulo Honório, o fragmento abaixo
demonstra a ausência da demanda amorosa e a motivação pragmática no
momento da escolha da parceira:
A que eu conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordinária. Havia
conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava
todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era
desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo.
50
que a escolha não obedece a fala; ela não era o tipo
reprodutor esperado. Paulo Honório deixa-se envolver pelo encanto de
Madalena. Ao conhecer a moça loura e bonita, não consegue esconder seu
interesse, confessando não ser dado a amores, mas reconhecendo que ela o
agradava, com os diabos.
51
O tempo vai passando, entretanto as idéias de Paulo Honório
são irredutíveis e os seus atos corrosivos. Na vida de Madalena, os elos
resistentes, antecedentes ao matrimônio, constitutivos da força que a
impulsionava para a vida, enfraqueceram com o casamento. Melancolia e dor
são seus mecanismos de defesa diante da brutalidade arrebatadora do marido.
Madalena titubeia e seu desejo não fica claro. Abúlica, deixa-se tragar pela força
de Paulo Honório. Tal força é a força do masculino e, gradativamente, a
50 . Idem, ibidem, op. cit, p. 115.
51. Idem, ibidem, p. 124.
41
personagem vai recuando, acabando por se curvar ao agressor: Você me perdoa
os desgostos que lhe dei, Paulo?
52
Se eu morrer de repente...
53
Esqueça as
raivas, Paulo.
54
Adeus, Paulo. Vou descansar.
55
Esse comportamento revela que Madalena, premida pela
instância do eu, parece querer abolir os choques com a realidade do sistema
opressivo do casamento e retornar ao repouso da morte, sem tensões, tornando
ato o anseio de plenitude da unidade perdida. Em resposta à dor de viver, faz o
retraimento narcísico, inclinação do ego que desinveste no mundo para eliminar
o conflito. O corpo, quando depositário de desejos realizados, confere imunidade
contra a morte. Madalena confirma exatamente o contrário disto ou, sob um
outro olhar, ela confirma exatamente o enunciado: seu corpo abúlico, abrindo-se
para o silêncio da morte, revela a ausência de desejos. Se viver reflete uma
cadeia de desejos, o corpo de Madalena é dominado por essas nulidades.
As cenas finais da narrativa, relatadas por Paulo Honório, são
dominadas por uma sinfonia composta pelas vozes da personagem feminina
que, com tom agudo, privilegia a esposa discordante, quando defende junto ao
marido, o patrão, um empregado oprimido: A família de Mestre Caetano está
sofrendo privações.
56
Mais adiante, a voz da esposa indignada: Como tem
coragem de espancar uma criatura daquela forma?
57
Na seqüência, a voz da
esposa acusadora: Assassino!
58
Em outra ocasião, a voz modulada, abrandada,
da mulher solidária Seu Ribeiro é trabalhador e honesto, você não acha?
59
evolui para a voz da mulher que perdoa: Esqueça as raivas, Paulo.
60
Finalmente,
desveste-se do papel de esposa para despedir-se sem voz: Adeus, Paulo. Vou
descansar.
61
52 Idem, ibidem, p. 219.
53 Idem, ibidem, p. 120.
54 Idem, ibidem, p. 122.
55 Idem, ibidem, p. 122.
56 Idem, ibidem, p. 152.
57 Idem, ibidem, p. 168.
58 Idem, ibidem, p. 199.
59 Idem, ibidem, p. 220.
60 Idem, ibidem, p. 222.
61 Idem, ibidem, p. 222.
42
Como se disse, o papel da esposa estava vinculado ao papel
da dona-de-casa. Em São Bernardo, Paulo Honório sugere a Madalena que
execute os afazeres domésticos: Quer trabalhar? Combino. Trabalhe com Maria
das Dores. A gente da lavoura comigo. Madalena contrapõe-se: A ocupação
de Maria das Dores não me agrada. E eu não vim para aqui dormir.
62
Desse
desacordo entre ambos nasce a posição feminina que recusa o modelo desejado
pelo masculino.
A resposta de Madalena reflete o desejo de não se enquadrar no
papel de rainha do lar, apoiada no tripé esposa, dona de casa e mãe. Encoberta
por essa representação, a mulher estaria negando seu desejo como sujeito e
afirmando a ideologia da época, que se alicerçava no dever.
Madalena recusa-se a aceitar qualquer atividade referente aos
afazeres da casa, preferindo a atividade de escrituração da fazenda, serviço que,
até o momento em que vai para São Bernardo, tinha sido executado por um
homem. Nessa conquista fica evidente o poder da escritura em relação aos
afazeres domésticos, os quais enquadravam a mulher no desejo masculino de
mantê-las sempre afastadas de qualquer atividade pensante.
1.3 A mãe: a maternagem recusada
Ela recebeu da natureza a tripla e sublime
missão de conceber, de pôr no mundo e criar
o gênero humano. Convém pois esquecer as
lacunas do seu caráter, as perfídias das suas
seduções, as imperfeições da sua natureza, e
não lembrar senão esse fato que é como que
a razão do seu ser.
Fernando Novais
Ser esposa no contexto histórico em que o livro foi escrito
profetizava ser mãe. Todos os propósitos da época combatiam qualquer idéia
que remasse contra o status quo. Tal defesa se arregimentava, por um lado, na
62 Idem, ibidem, p. 152.
43
obrigatoriedade da natureza biológica, por outro, justificava-se através de dados
sociológicos que acusavam o Brasil de país despovoado. Contudo, foi a
conotação de sagrado que transformou a maternidade em missão para a mulher.
Se aos homens cabia a identidade pública, à mulher restava a identidade social
outorgada pelo desempenho da esposa-mãe.
Paulo Honório expõe claramente seu desejo de ter o herdeiro,
razão associada a identidade social de posse, patrimônio e poder. Madalena, no
entanto, primeiro não se posiciona, depois, reage ao desejo do outro. É a partir
da gravidez que ela começa a sinalizar a resistência ao exercício da
maternagem. Podemos pontuar a maternidade como função valorizada por Paulo
Honório apenas, não por Madalena.
A entrada no mundo profissional revelou a Madalena a
alternativa de desejar ou não a maternidade, porém seu desejo não fica claro em
nenhum momento da narrativa. Seus atos confirmam que ela impôs para si um
querer mais além do corpo do filho. O predicado mãe não saturou o sujeito
mulher. Por analogia com a psicanálise, se Madalena se fixasse na posição de
mãe, seria possível que deixasse encarnado no corpo do filho tudo aquilo que
seu fantasma impunha como condição de satisfação: a substituição do falo pela
criança. Para a época, tal comportamento levaria, no limite, à morte social.
Isso se compreende. Desde Freud, a psicanálise vincula a
mulher à castração
63
. Para os pressupostos psicanalíticos, falo era poder, por
isso a mulher era marcada pela carência, sempre destinada a um papel menor. A
única realização que lhe restava era ter um filho para substituir o falo que não
possuía; conseqüentemente ela poderia ter êxito como mãe e teria voz
como histérica, sem possibilidade de um espaço próprio.
63 . “O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem dúvida, originalmente o desejo
de possuir o falo que a mãe lhe recusou e que agora espera obter de seu pai. No entanto, a
situação feminina só se estabelece se o desejo do nis for substituído pelo desejo de um bebê,
isto é, se um bebê assume o lugar do falo, consoante uma primitiva equivalência simbólica”.
FREUD, S. “Feminilidade”. (1932-1936), op. cit, Volume XXII, p. 128.
44
Quando aceita realizar o desejo de Paulo Honório, dando-lhe o
filho herdeiro, Madalena parece confirmar as afirmações freudianas sobre a
mulher, mas sua ação de recusa ao exercício da maternagem contradiz a teoria,
instalando-se assim, mais uma vez, a ambigüidade. Essa condição ambígua
aparece no papel desempenhado tanto pela professora afeita a avanços, que
defendia ideais socialistas, como pela mulher predisposta a recuos, que se
entrega à garantia do casamento sem demanda amorosa. A literatura ultrapassa
a psicanálise, entre outros fatores, porque, pela liberdade da criação, as
personagens são livres das cercas atávicas podendo avançar para além de seu
tempo histórico-social.
Na garimpagem de significantes que preenchessem a lacuna da
dor e da frustração do casamento, a maternagem seria decisão louvável aos
olhos da sociedade da época, mas Madalena não quis exercê-la. Quando realiza
o desejo de Paulo Honório, engravidando do filho esperado por ele, deveria se
enquadrar e aceitar a insígnia de comando do desejo do outro. Em alguns
momentos, o leitor pôde pensar que o corpo real do filho pudesse preencher a
falta constitutiva de seu desejo de liberdade. Mas ela desejava algo mais, além
do corpo real do filho. O desejo, uma vez despertado, não há como adormecê-lo.
Ela nega o próprio corpo para proteger o filho vivo.
A interdição no percurso do desejo a fez represar sua energia
para continuar a luta cotidiana, a luta heróica para conquistar a felicidade que
ofusca o pulsão de morte. Era comportamento comum para as mulheres projetar
nos filhos a continuidade simbólica de sua própria vida. Nem este deslocamento
lhe foi possível, a criança não funcionou como escape para seu desejo.
Exercer a maternagem não lhe garante a continuidade da vida;
seriam dois prisioneiros dos (des)mandos de Paulo Honório. Alicerçando a
manutenção da família com a erotização do menor, Madalena, além de contribuir
com a realidade econômica, a social e a histórica, teria se protegido para
contornar a pulsão de morte. Assumindo a maternidade ela estaria agarrando-se
ao objeto/filho que lhe reasseguraria estar viva, mas o viver seu próprio
desejo.
45
Até o momento do nascimento da criança, Madalena apresenta
condições pessoais e atitudes mais flexíveis e condescendentes frente às
perdas, podendo, assim, considerar os obstáculos da realidade externa que
frustravam seus anseios de realização como desafios a serem vencidos,
conforme ocorre em sua história de vida até o momento do casamento com
Paulo Honório. Recusar-se a criar o filho parece o limite que ela se impõe para
responsabilizar-se pela liberdade de escolha.
1.4 A dor simbólica da mulher
Abrindo as portas às fronteiras da psicanálise é possível
perceber, na arte literária, que o simbólico e o imaginário têm o poder de travestir
a realidade, o artista lida também com o real, tentando simbolizá-lo
esteticamente. Sempre pensando por analogia, caberia lembrar que, na
literatura, a simbolização motivada pelo enfrentamento da dor existencial faz-se
pela palavra, que está de permeio entre a realidade e a fantasia, muitas vezes
garantindo a alguns escritores a possibilidade de livrar-se da sedução que a
morte exerce como substitutivo para a desordem da vida diante do olhar sensível
do artista. Fica a palavra como substituto da dor ou da experiência.
Imersos na literatura, percebemos que processo inverso ocorreu
com a personagem Madalena. A ela foi negada a palavra e a escuta para
simbolizar e dividir a dor. Seu interlocutor, Paulo Honório, impõe a demarcação
para as suas falas, tal como age na colocação de cercas quando invade terras
alheias na fronteira de sua propriedade, São Bernardo. Vezeiro em apropriar-se
do direito de outrem, não ao lesado o direito à réplica, conforme o fragmento
em destaque assinala: Depois da morte do Mendonça, derrubei a cerca,
naturalmente, e levei-a além do ponto em que estava no tempo de Salustiano
Padilha.
64
Nas cercas da propriedade, ele não encontrava resistência, porque
64 . RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 96.
46
usava força física e política, mas, na tentativa de cercear as fronteiras humanas,
não considerou a resistência da mulher com a qual contracenava.
Madalena não consegue verbalizar a dor da frustração do
casamento, não consegue criar um novo significante numa posição tal que lhe
permitisse simbolizar o sofrimento. Freud (l927-1931), refletindo sobre o
sofrimento humano, afirmava que a pior dor resulta da relação com um outro
ser
65
. Ainda é Freud quem indica, dentre as fontes que ameaçam o ser humano
e que o fazem sofrer, aquela advinda dos nossos relacionamentos com os outros
homens, podendo o sofrimento provindo dessa fonte ser mais o doloroso.
Paulo Honório e Madalena sofriam pelo relacionamento de sua
convivência. Após o casamento, a dor seguia atravessando o discurso social e o
corpo da mulher. O real foi se tornando incontornável. Um ato de arrojo e de
coragem para confrontar-se com esta situação desagradável não se faria sem
alto custo. Sem esperança, a mulher produz o significante da morte, modo que
encontra para se tornar sujeito.
Paulo Honório propunha à sua mulher a morte social, que incidia
no abandono de suas convicções políticas e sociais e na negação de viver seu
próprio desejo de mulher. Conhecendo cada vez mais, através da convivência do
casamento, os traços do caráter do marido, ela não entrevia nele a possibilidade
de um desejo da qual ela não fosse objeto de posse.
A conseqüência nefasta da ausência da fala para a simbolização
da dor interiorizada faz Madalena dialogar com seu próprio corpo através da dor
física. Sem possibilidade de escuta diante da aridez e surdez de seu interlocutor,
ela entrega-se a doença e com o suicídio encerra sua trajetória de vida.
Dilacerada pelo vazio da situação frustrante em que se achava no casamento, a
esposa cala-se por meio do corpo.
65 . “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como
sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O
sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro”.
FREUD, S. “O mal Estar na Civilização”. (1927-1931), op. cit, Volume XXI, p. 84-5.
47
Se no inconsciente o sofrimento se reprime, no corpo ele aflora.
A dor do abandono e da privação na criança Madalena parece ter ressonância
na mulher adulta, mas é, sobretudo a estagnação das idéias sociais, a
paralisação afetiva, a ausência de prazer e o casamento sem demanda amorosa
que a leva rechaço da vida. Podendo, segundo Freud, ficar ao corpo o logro da
morte para as pessoas desiludidas da vida.
66
As falas da personagem vão gradativamente sensibilizando o
leitor para o sofrimento. Descrições da narrativa pontuam a incidência da dor no
corpo, com graduações que oscilam desde a aparência acabrunhada
67
,
passando por um semblante envolvido em sombras, até resultar na tez lida e
nos movimentos trêmulos. O choro e os suspiros intermináveis marcam a
cadência de sua rotina durante a gravidez. Para finalizar o processo da dor
traduzida no corpo, a citação de Paulo Honório se apresenta incisiva: ...gemia
Madalena aterrada...abraçava-se ao travesseiro, soluçando.
68
No final da narrativa, Paulo Honório, o narrador, toma
consciência da responsabilidade pelo sofrimento da parceira, mostrando que, no
entrechoque da sensibilidade de Madalena com sua própria insolência, essa
culpa recaía sobre ele: Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons
propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade
e o meu egoísmo.
69
Cabe, agora, investigar as motivações da personagem
masculina, para verificar se é possível perceber a sensibilidade do narrador ante
a dor da personagem feminina, ou se não se trata de apenas uma armadilha de
sedução engendrada pelo discurso de um narrador que pretende se eximir da
66 . “Para a teoria psicanalítica, as antigas fantasias se tornam inconscientes e podem se
transformar em sintomas. Freud, na “Quinta Lição”, aborda com clareza estes assunto, afirmando
que as pessoas insatisfeitas com a realidade quando não possui nenhum dote artístico para
compensar os desgostos podem apresentar sintomas neuróticos. Se a situação de desprazer
persistir, provavelmente, a libido irá reavivar os desejos infantis e por isso são consideradas
pessoas desiludidas, sentindo-se fracas demais para viver”. FREUD, S. “Cinco lições de
psicanálise”. (1910), op. cit, Volume XI, p. 61.
67 . RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 171.
68 . Idem, ibidem, p. 210.
69 . Idem, ibidem, p. 247.
48
cumplicidade diante da constatação do suicídio da parceira que não se curvou ao
desejo masculino, de acordo com parte da crítica.
49
2 – O desejo de Paulo Honório
Não podes consolar uma alma dilacerada
Arrancar da memória a aflição enraizada
Riscar do cérebro as perturbações gravadas
nele?
Shakespeare
Conforme se viu, São Bernardo, romance escrito por um homem,
tem como protagonista também um homem. Paulo Honório, um narrador-
personagem que assume a posição da primeira pessoa do discurso, identifica-se
com a postura crítica masculina forjada no contexto social. Nessa posição
hegemônica, o narrador exerce domínio absoluto sobre o relato, valendo-se de
um duplo filtro na função de configurar a personagem Madalena que, assim
configurada como subalterna, constitui-se no objeto central desta análise. A
escrita de vários autores da literatura revela, como característica mínima, a
consciência de que as criaturas femininas nunca poderiam ser apresentadas ao
leitor sem um instilado traço de ambigüidade, na medida em que são destituídas
de uma voz que contribua com a composição de sua própria imagem.
Reforçando a autonomia discursiva do masculino, aparece, no
decorrer da narrativa, o ressentimento oriundo da incapacidade do narrador de
apropriar-se do desejo da esposa e impor-lhe a submissão mera e
simplesmente. O tom ressentido determinará, pois, o rumo da narrativa, no que
tange à construção da personagem feminina, por sua vez incapaz de transpor as
limitações impostas por seu figurador. Privada de participar da construção da
própria imagem, Madalena, sob permanente suspeição de adultério, fica envolta
em opacidade.
A conformação da figura feminina é exposta por Paulo Honório
ao leitor na tentativa de, após a morte de Madalena, realizar o desejo de produzir
um livro. Para escrever sua história, o narrador recorre principalmente à
50
memória, na qual se fundamenta para recuperar e narrar os fatos do passado,
que o, de certa forma, alterados, que o ato de memorização é seletivo,
particular e incerto, porque submetido à distância temporal diferentemente das
circunstâncias e da ilusória objetividade entre o acontecido e o narrado: E saí
descontente. Creio que foi mais ou menos o que aconteceu. Não me lembro com
precisão.
70
Em determinados momentos, os tempos, pretérito e os presentes
caminham juntos, na mente do narrador:
O muro está hoje esverdeado pelas águas da chuva, mas
naquele tempo era novo e de cor de carne crua.
71
A toalha reaparece, mas não sei se é esta toalha sobre que
tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
72
Em outras passagens, ele utiliza inconscientemente os filtros da
lembrança ao relatar os acontecimentos, a ponto de mudá-los, conforme suas
conveniências:
Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no
papel. Houve suspensões, repetições, mal-entendidos,
incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que
aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi
diversas passagens, modifiquei outras.
73
Com lembranças confusas, manipulando as informações de
acordo com o que acredita, ele se dispõe a contar sua história e a de Madalena.
Mergulhado em emoções incertas a respeito de sua relação conjugal ora
positivas, ora negativas, Paulo Honório emoldura, focado sempre na visão do
70 Idem, ibidem, p 87.
71 Idem, ibidem, p. 151.
72 Idem, ibidem, p. 160.
73 Idem, ibidem, p. 132.
51
passado, a esposa cristalizada em interioridades e afetos invadidos de
amarguras.
O narrador revisita os comportamentos antigos para avaliar seus
reflexos, no propósito de justificar-se da condição do presente. Trata-se,
portanto, de um livro de introspecção, aquele que ele se propõe a escrever,
constituindo-se no conhecimento que pode alcançar de si mesmo, enquanto
componente de todo o enredo. A disposição de buscar o autoconhecimento
aponta um narrador que se percebe, no passado, desprovido de sensibilidade no
trato com as pessoas, sempre auto-suficiente e autoconfiante, intransigente,
sem capacidade de ceder a ninguém. Tais características de seu perfil orientam
a trajetória das conquistas materiais que ficam muito acentuadas no início do
romance, realçando sua determinação de trabalhar, construir e progredir,
condensada no desejo de possuir a fazenda São Bernardo. Ainda mais, para
evidenciar o pragmatismo materialista, destaca-se a evidência de que, ao
empreendedor não parece importar os meios empregados para atingir o fim de
garantir a terra, quando a aquisição de bens é o centro de interesse.
Quanto à composição do romance, a abertura é marcada pela
ascensão da personagem Paulo Honório, para, depois, numa segunda etapa,
emergir o narrador que atribui a culpa de seu embrutecimento à vida agressiva
que o privou de sentimentos de afeto e o induziu para a luta pelas conquistas
materiais. A partir da tomada de consciência e percepção de si mesmo, a escrita
se inicia e acompanha o declínio da personagem.
Observando as fases, pode-se, na primeira, sublinhar a força
sem medidas empregada no sentido de apossar-se da fazenda São Bernardo: A
princípio o capital se desviava de mim, e persegui-o sem descanso.
74
Nessa
parte introdutória da narrativa, predomina a ação do homem que detém a
imagem simbolizada pelo capital e se faz representante do poder nas cercanias.
O tom predominante é o do otimismo transformador: Eu não sou preguiçoso. Fui
74 Idem, ibidem, p. 69.
52
feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna ser-me favorável nas
seguintes.
75
O alvo do desejo de Paulo Honório, explícito em suas
declarações, é a conquista da fazenda São Bernardo. No enfrentamento da
tarefa de conquistar a terra, o narrador emprega uma força aplanadora para
nivelar os obstáculos e revertê-los em lucros e nesse empenho trilha um
caminho livre, sem impedimentos. Justaposto aos desafios superados
externamente, processa-se em seu íntimo o endurecimento do caráter.
Concluído o trajeto, São Bernardo fica pronta e Paulo Honório
constitui-se uno, um bloco monolítico. A primeira etapa da narrativa pode ser
avaliada, portanto, como o relato da vitória da personagem sobre a miséria
material que, embora lhe tenha condicionado a infância, ele derrota ao fechar o
ciclo do combate como um vencedor alicerçado em enganosas objetividade e
segurança.
A favor de Paulo Honório, na construção da auto-imagem,
depõem a origem sem registro, o abandono relatado, a hostilidade do meio e a
educação pela vida, a violência da pobreza circunstâncias que funcionaram
como condicionantes de defesa – um habeas corpus para suas ações amorais:
A verdade é que nunca soube qual foram meus atos bons e
quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram
prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como sempre tive a
intenção de possuir as terras de São Bernardo, considerei
legítimas as ações que me levaram a obtê-las.
76
Logo, ele contagia o leitor desavisado, focado no tom
progressista da narrativa e na perspectiva de trabalho do narrador, que
funcionam como artifícios de valorização. Com o ritmo acelerado das conquistas
o envolvendo é fácil que o leitor desatento se torne receptivo à sedução da
narrativa.
75 Idem, ibidem, p. 96.
76 Idem, ibidem, p. 96.
53
Na seqüência, o segundo momento da narrativa é marcado pela
presença de Madalena, responsável pela despotencialização do narrador
autocentrado e poderoso, que tem, ao redor da imagem de fazendeiro, um grupo
de homens a lhe assegurar a posição social e a reverenciar-lhe a autoridade e o
poder. Com a chegada da esposa, inicia-se a decadência rápida da fazenda,
juntamente com o declínio do fazendeiro empreendedor:
Em seis meses havia tão grande quebradeira que torrei nos
cobres o automóvel para não me protestarem uma letra
vagabunda de seis contos.
77
Sou um homem arrasado.
78
Neste momento, sem perder de vista o foco principal apontando
para Madalena, o olhar analítico voltará para esse homem arrasado, querendo
entender seu desejo e verificar os conteúdos ocultos nas ações manifestas.
A busca desveladora remete à observação de Antonio Candido a
respeito de Paulo Honório: O seu drama é cruel porque fissuras de
sensibilidade que a vida não conseguiu tapar.
79
Por uma dessas frestas
sensíveis é que Madalena entrará na vida do narrador e atuacomo referência
da ação de vasculhar e apreender os deslocamentos que contornam o desejo
do narrador e impedem a revelação de si mesmo.
77 Idem, ibidem, p. 239.
78 Idem, ibidem, p. 241.
79 CANDIDO, Antonio. “Literatura e Sociedade”. In RAMOS, Graciliano, op. cit., p. 22.
54
2.1 O desejo encoberto
...Foram necessários muitos acasos, muitas
coincidências surpreendentes (e talvez muitas
pesquisas), para que eu encontrasse a
Imagem que, entre mil, conviesse a meu
desejo. Este é um grande enigma do qual
jamais descobrirei a chave: por que desejo
Fulano? Por que o desejo duravelmente,
langorosamente?...
Roland Barthes.
Se a literatura joga com o dito e o não-dito no registro da
trajetória do desejo, cabe à psicanálise a função de captar algo desse jogo para
descobrir o encoberto, o contido na escrita sem ser explicitado. Ninguém o vê,
mas ele está presente no texto. Na narrativa de Paulo Honório aspectos
subliminares inexplorados, em conseqüência da freqüente priorização da análise
sociológica, observada nos estudos referentes a essa personagem masculina
antológica da literatura brasileira.
Na contramão desse viés da crítica literária, a intenção aqui
presente do desejo e sua captura pela linguagem, estarão sempre apontando
para o que está sob interdição no texto. Nesse sentido, o recorte psicanalítico
quer lançar um pouco de luz sobre a trama complexa tecida pelo desejo e
perceber, especialmente, seus desvios entremeados nas ações de Paulo
Honório.
Para tanto, é importante verificar de que estofo o feitos os
desejos. Segundo a teoria do desejo de Freud, elaborada a partir da
interpretação de sonhos, o desejo é principalmente inconsciente. Seguindo esse
raciocínio, ele afirma que o núcleo do desejo é o desejo infantil e que, portanto, a
pregnância do passado estará sempre atuando nas experiências do indivíduo,
em constante ressonância com os protótipos da infância. É tal a força das
infiltrações pretéritas nas experiências do presente que as novas figuras
introduzidas no campo do desejante se apóiam sempre nos modelos infantis,
quer por aproximação quer por afastamento, por aceitação ou por rejeição.
55
Ao rever as idéias freudianas, Lacan afirma que o desejo, de
natureza inconsciente, é o desejo do Outro
80
e que é por via do desejo alheio
que o sujeito constitui a sua própria cadeia de desejos. Lacan realça ainda que,
durante as escolhas do objeto desejante, o indivíduo se reconhece nele
81
,
estabelecendo-se, assim, uma relação especular entre o desejante e o objeto
desejado.
Os conceitos destacados fundamentam a verificação do caminho
seguido por Paulo Honório, na intenção de procurar a esposa. Primeiramente
quando quis se casar realizou o ato sem pensar que a escolha deveria atender a
um movimento interior infinitamente complexo. Ele não se deu conta de que seu
desejo tinha o saber das ações, mas a ignorância das motivações responsáveis
pelas tomadas de decisão. O saber das atitudes pertence ao fazendeiro que
busca uma esposa para atender aos reclamos do interesse de propriedade,
proprietário rural formatado para o mando de sua tropa, mescla de homens
subjugados e animais.
É importante apontar quanto o desejo foge ao domínio de Paulo
Honório que, vezeiro na gica dos negócios, transfere, sem nenhuma
discriminação, suas habilidades práticas para os assuntos do campo afetivo. É o
que demonstra a passagem quando marca a data do casamento: Um ano?
Negócio com prazo não presta. Que é que falta? Um vestido branco faz-se em
vinte e quatro horas.
82
Entre as motivações do desejo do protagonista, distinguem-
se algumas conscientes, outras inconscientes. Enumeradas e confrontadas, as
segundas se sobrepõem e Madalena é considerada como escolha invertida do
homem que pretendia anexar a esposa ao conjunto de seus bens. O prazer do
80 “... o desejo enquanto inconsciente o desejo do homem é o desejo do Outro”. - In: LACAN
Jacques. O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 1988, p.111.
81 Será que não há, reproduzido aqui, o elemento de alienação que lhes designei no fundamento
do sujeito como tal? Se é no nível do desejo do Outro que o homem pode reconhecer seu
desejo, e enquanto desejo do Outro, não está algo que lhe deve parecer fazer obstáculo a seu
desmaio, que é um ponto em que seu desejo jamais pode reconhecer-se? In: LACAN Jacques,
op. cit, Livro 11, p. 223.
82 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 150.
56
inconsciente pode alterar-se em desprazer para a consciência, e a presença
feminina, condensada na professora intelectual e sabida, carrega-se de ameaças
arcaicas, assinalando a falta que o remete a sensações desagradáveis de
privações e desamparo, perdidas no tempo.
No momento de escolher a esposa começam a aparecer os
motivos ocultos,e conseqüentemente, por analogia, o comportamento
contraditório de Paulo Honório. Para tentar entender mecanismo dessa ordem, a
teoria psicanalítica poderá auxiliar na interpretação dos enganos da escolha no
que tange às características físicas e psicológicas da mulher, e indicar os
conteúdos inconsciente interferentes em seus atos. Segundo Freud, as
experiências infantis recalcadas
83
estão sempre interagindo com a vida mental
dos indivíduos.
É necessário, para a leitura dos desejos de Paulo Honório,
perceber como eles se encadearam, bem como importa sublinhar que o legado
da infância, do menino abandonado, vagando por aí a toa,
84
é que determinou
obscuramente duas importantes escolhas em sua vida, ambas revisadas e
reconhecidas por ele como fracasso: a primeira se situa no campo material,
quando da busca obsessiva da posse de São Bernardo, para suprir a miséria do
passado; a segunda, foco desta análise, encontra-se na ocasião da busca da
esposa-mãe para o herdeiro. No segundo caso, o narrador não percebeu, mas
havia uma lacuna de afeto, a qual perpassava o feminino, apontando para uma
escolha sinalizadora da falta materna e do desamparo infantil.
A ausência dos cuidados maternos parece determinante na
escolha amorosa do desejante, propiciando, por analogia, a pergunta: não
estaria o desejo de Paulo Honório transformado pela procura da mãe para o
herdeiro, com a finalidade de encobrir a referida falta que, para Freud, é
83 “A psicanálise afirmava que as experiências infantis são determinantes sobre a vida do
indivíduo, principalmente sobre suas escolhas, elas ficam recalcadas, podendo ter acesso a elas
somente através de sonhos ou tratamento psicanalítico.” FREUD, S. “Feminilidade”. (1932-1936),
op. cit, Volume XXII, p. 140,
84 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 67.
57
denominada de protótipo
85
do ser humano nas relações amorosas em geral?
Essa representação individual da presença ou da ausência da mãe vive
permanentemente na fantasia humana como objeto de um desejo primordial e
inconsciente. Não seria essa a mesma situação de Paulo Honório pontuada e
transformada pelo trabalho literário?
Não por acaso, é o segundo momento aquele em que o narrador
se desestabiliza em relação à escolha feita. Madalena se faz presente e, então, o
movimento do desejante oscila. Ele se preparou para conduzir a escolha da
esposa através de atos conscientes, mas a realidade se mostrou diferente. É
possível perceber que ele intencionou selecionar a parceira do mesmo modo que
escolhia as matrizes de seu plantel pecuário, chegando a afirmar a Dona Glória
que: A vontade dos pais não tira nem põe. Conheço o meu manual de
zootecnia
86
,
Lidar com o ser humano confundia Paulo Honório, homem
formatado na ordem dos negócios e na política dos privilégios e da força. Tinha o
vezo pelo trabalho, o falar enxuto e versado em provérbios. Mostrava sempre
sua prepotência na lida com as pessoas não cedendo em nenhuma situação.
Agia como homem de ganhos: pessoas e terras faziam indistintamente parte de
suas posses, sem dispor de espaço para avanços nem abrir discussão de
direitos. Segundo sua lei, Das cancelas para dentro ninguém mija fora do caco.
87
Com a chegada de Madalena, a incapacidade de relacionamento
do narrador se torna visível, além de realçar-lhe a incompetência não para
acolher o feminino, mas também de se humanizar no trato com as pessoas.
Defensivamente, ele se justifica com uma impostura masculina: Mulheres,
criaturas sensíveis, não devem meter-se em negócios de homem.
88
Como o
interesse, aqui, é explorar a visão do narrador sobre o feminino, é importante
mostrar o sistema adotado pelo narrador personagem na distribuição das
85 Não é sem boas razões que, para criança, a amamentação no seio materno torna-se modelar
para todos os relacionamentos amorosos. O encontro do objeto e´, na verdade, um reencontro.
“O objeto sexual na fase da amamentação”. (1901-1905), op. cit, Volume VII, p. 210.
86 RAMOS, Graciliano.,op. cit,p. 144.
87 Idem, ibidem, p. 116.
88 Idem, ibidem, p. 200.
58
personagens femininas ao longo da narrativa, para, então, observar os espaços
ocupados por elas. Ao contrário do grupo de homens que integram o texto, as
mulheres, de fraca participação no romance, o poucas, insignificantes e
caladas. Além da Mendonça, a Gama, a irmã do Gondim, Dona Marcela do
Doutor Magalhães, aparecem algumas outras, também poucas – Maria das
Dores, Germana, Rosa, a velha Margarida e Dona Glória – , que guardam
relações estreitas com Madalena ou com o próprio narrador.
O universo feminino está confinado pelos limites da casa e pela
restrição ao desempenho de papéis sempre restritos às atividades domésticas.
Contra isso, Madalena ousou expressar o desejo de exercer uma função alheia
ao contexto familiar, denotando um avanço que culmina na ousadia de extrapolar
o espaço demarcado pelo marido e opinar sobre a rotina da fazenda, ao que ele
reage imediatamente: a gente da lavoura é comigo.
89
Na preservação dos
papéis masculinos, o lugar do feminino era bem definido e limitado, ao lado da
empregada doméstica, porém Madalena tem intenções inovadoras em relação à
fazenda São Bernardo: Eu não vim aqui para dormir.
90
A frase categórica põe
ênfase na intenção de agir, prenunciando, ainda que sutilmente, a derrocada da
vida ante o cerceamento do desejo, com a conseqüente entrega ao sono da
morte.
Ainda enfocando os papéis femininos, o olhar masculino do
narrador volta-se para a velha Margarida, posta na representação da mãe, única
personagem a tocar a sensibilidade escondida do empreendedor, Paulo Honório,
que chega a tratá-la como santa.
91
Mesmo assim, subjacente ao ato de
generosidade, prevalece, em Paulo Honório o condicionamento do imediatismo
material, do homem endurecido e automatizado na ação. Denuncia-o a
sintomática frase empregada na expressão do afeto por gratidão, quando se
propõe acolher a velha Margarida:
89 Idem, ibidem, p. 152.
90 Idem, ibidem, p. 152.
91 Idem, ibidem, p. 133.
59
É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para
não se estragar na viagem.
92
Custa dez mil réis por semana, quantia suficiente para
compensar o bocado que me deu.
93
Em oposição à mulher santa, as ordinárias,
94
quase outra
casta, de que fazem parte Rosa do Marciano e Germana, consideradas da
mesma laia,
95
úteis para a satisfação sexual da cata dos homens.
Em outra categoria, diferente e especial, é introduzida
Madalena, mulher escolhida para ser mãe do herdeiro de Paulo Honório, a qual,
como sua homônima bíblica, é a representação da pecadora. O duplo polarizado
é constituído de índices que povoam o imaginário do cristianismo em relação à
mulher e revela uma possível influência sobre o narrador, em seu afã de
compreender o feminino.
É importante realçar que a ideologia cristã aparece sempre
impregnada nas falas do narrador e as referências dessa ordem se tornam
recorrentes, nos momentos de reprovação da conduta moral da esposa. Os
delírios de ciúme são sempre seguidos de acusações ao comportamento de
Madalena, desprotegida pela ausência da religião, convenientemente visceral na
cultura feminina: ... mulher sem religião é horrível... Mulher sem religião é capaz
de tudo.
96
A partir do encontro com o feminino, o narrador, senhor de todas
as ações que calcula e articula para atingir seus objetivos, perdeu o eixo de
sustentação de seus atos pragmáticos. Tem início a seqüência dos enganos que
ele comete, a partir da escolha da esposa. O primeiro sintoma desse engano
deu-se no momento de selecionar aquela que deveria lhe dar o herdeiro:
Precisamente o contrário da mulher que andava imaginando,
97
conforme ele
92 Idem, ibidem, p. 105.
93 Idem, ibidem, p. 68.
94 Idem, ibidem, p. 115.
95 Idem, ibidem, p. 115.
96 Idem, ibidem, p. 189.
97 Idem, ibidem, p. 124.
60
próprio avalia. A mocinha miudinha, fraquinha
98
não atendia ao modelo
demandado para a empreitada da reprodução. Paulo Honório imaginava uma
fêmea viçosa; talvez como Dona Marcela, que era um bichão,
99
com peitaria
100
suficiente para alimentar o herdeiro desejado.
A escolha, no que se refere ao porte físico da mulher, começara
desgovernada. O narrador não percebia que estava sendo traído por motivações
inconscientes que dominavam seu desejo. Parecia seguro e ainda empregava
esquemas comportamentais, utilizados e aprovados em situações de negócio:
extraio dos acontecimentos algumas parcelas, o resto é bagaço.
101
Paulo Honório se declara impressionado com os olhos da
mocinha loira, por cujo olhar foi capturado, desde o primeiro momento, mas
desconsidera os sinais que apontavam seu encanto por ela.
Madalena soltava o bordado e enfiava os olhos na paisagem. Os
olhos cresciam. Lindos olhos.
102
Observei então que a mocinha loura voltava para nós, atenta, os
grandes olhos azuis.
103
Evidentemente, se admitisse o sentimento estaria contrariando o
pragmatismo do fazendeiro condicionado para a posse, sem disponibilidade para
o amor, considerando ameaça contra os empreendimentos.
Por que se torna impossível atribuir uma atitude amorosa a
Paulo Honório em relação a Madalena? Por analogia, o comportamento humano
não se desvia facilmente do desejo ambicioso de bens materiais em favor da
valorização de afetos. Uma passagem da narrativa pautada nas atitudes do
narrador ao premeditar seu álibi responde à pergunta. No episódio ocorrido com
98 Idem, ibidem, p. 124.
99 Idem, ibidem, p. 124.
100 Idem, ibidem, p. 124.
101 Idem, ibidem, p. 135.
102 Idem, ibidem, p. 191.
103 Idem, ibidem, p. 124.
61
o vizinho de terras, ele demonstra com clareza a frieza de caráter: no mesmo
instante em que uma vítima estava sendo executada a seu mando, por requinte
ele promete ao vigário da cidade a construção de uma igreja na fazenda São
Bernardo. Episódio que pode ser qualificado como atitudes falsas mescladas de
devoção e fingimento. Em última análise Paulo Honório, versado em atribuir
preços às coisas, era incapaz de valorizar o humano.
As contradições advindas da evolução de seu desejo foram se
revelando à medida que ia conhecendo mais a esposa. O medo ia se instalando,
com a chegada das revelações e a ameaça das desordens internas. O embate
entre a demanda equivocada durante a escolha da esposa e o desejo
inconsciente se torna acirrado. Paulo Honório não resiste e declara: Imaginava
uma boneca de escola normal. Engano.
104
A moça escolhida era redatora de
artigos, pertencia a uma classe de mulheres incompatíveis com as expectativas
de dominação do narrador: Intelectuais são horríveis.
105
Como pessoa instruída,
Madalena detinha um discurso social e político revolucionário, demonstrando
com freqüência interesse pelas conversas exclusivas do meio masculino.
Diante dessa categoria de mulher, a das sabidas, Paulo Honório
viu-se derrotado no negócio, planejado para o lucro durante o pedido de
casamento, conforme se expressa, explicitamente: quem faz negócio supimpa
sou eu.
106
A competência do fazendeiro abalou. Ao se sentir ameaçado, deixa-se
dominar por um estado de espírito que o amedronta até adoecer pelo ciúme, que
equivale à recusa do desejo que se instalara dentro dele e lhe custava admitir: o
de apaixonar-se por Madalena.
Na obra São Bernardo, a ambientação e o comportamento do
narrador confirmam os reflexos ficcionais da sociedade patriarcal, principalmente
no que diz respeito à fidelidade conjugal, dever irrefutável da mulher e direito do
homem, que foi moldado para viver confortavelmente dentro de um padrão duplo
104 Idem, ibidem, p. 152.
105 Idem, ibidem, p. 191.
106 Idem, ibidem, p. 146.
62
de moralidade, bem descrito por Gilberto Freyre
107
para mostrar a discrepância
entre a liberdade do masculino e do feminino. Ao homem eram permitidas
relações extra-conjugais; à mulher cabia o dever da clausura no lar, com a
finalidade de resguardar os valores morais da sociedade.
De certa forma, Paulo Honório escolhe a esposa beirando ao
avesso de sua intenção expressa. Madalena era instruída, e gostava de falar
entre e para homens, o contrário do modelo vigente na época, cuja fala deveria
restringir-se ao interior da casa. Quando fora dela, restava-lhe apenas o
confessionário.
Estabelece-se a tensão entre a esposa adequada aos olhos da
sociedade e a mulher escolhida inconscientemente por Paulo Honório. Madalena
se revela como personagem excepcional, graças ao rompimento com o seu
tempo e seu espaço: 1934, no nordeste período e lugar em que surgiu o
neologismo coronelismo para designar de forma geral práticas e políticas sociais
próprias do meio rural e das pequenas cidades do interior brasileiro.
A estrutura social coronelista fundamentava-se em dois aspectos
principais: o domínio da parentela e de um círculo de agregados, tendo a esposa
que se submeter ao marido, que centralizava rigorosamente as atividades e
decisões. Neste sentido, verifica-se um contraste entre o casal: enquanto Paulo
Honório se apresenta como estereótipo do coronel nordestino,
108
Madalena
107 “Por essa diferenciação exagerada, se justifica o chamado padrão duplo de moralidade,
dando ao homem todas as liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a
cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar. Gozo acompanhado
da obrigação, para a mulher, de conceber, parir, ter filho, criar menino.
O padrão duplo de moralidade, característico do sistema patriarcal, também ao homem todas
as oportunidades de iniciativa, de ão social, de contatos diversos, limitando as oportunidades
da mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato com os filhos, a parentela, as amas, as
velhas, os escravos. E uma vez por outra num tipo de sociedade Católica como a brasileira, ao
contato com o confessor” In: FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do
patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,
1968, p. 93.
108 “Esses aspectos contribuem para o papel do coronel como polarizador da vida social e
política do município rural, do qual ele se torna o centro de atividades e decisões. Contribuem
também para a formação do estereótipo popular do coronel: homem que protege os amigos e
persegue os inimigos e desafetos”; “cabra macho”, macho com as mulheres ( em geral mais de
uma) e “macho pela brabeza”, chefe político que não vacila em manipular eleições em proveito
próprio; homem que não teme a polícia e faz justiça com as próprias mãos”; “padrinho que
63
constrói-se professora no nordeste, redatora de artigos de jornais, ativista, e
inovadora, optando inclusive, na morte, por uma solução diferente: o suicídio.
Em presença das diferenças entre os cônjuges, o narrador
resiste a aceitá-las e perde o fio que o prende à realidade utilitária bloqueada
pela escolha enganosa. As amarras da funcionalidade se atam e o fazendeiro se
impotente para operar. Instala-se nele, então, uma outra ordem, favorável ao
aflorar do ciúme, pela desconfiança da infidelidade da esposa.
2.2 O Ciúme
O ciúme é de fato nossa parte maldita.
Denise Lachaud
Segundo Freud,
109
o ciúme é um sentimento comum, mas pode
revelar-se em determinadas situações com características inquietantes, sendo
classificado em camadas: a do competitivo, próprio de pessoas de
comportamento habitual, sempre aparecendo quando surge o pensamento de
perda do objeto amado; a do projetado é comum aparecer entre os casais
podendo originar de uma infidelidade concreta ou de impulsos que emergiram
dela e foram reprimidos e a do delirante lembrando os casos clássicos de
paranóia.
O ciúme projetivo, sentimento próprio dos casais, em situações
reais, aparece quando os cônjuges negam as tentações de infidelidade que
permeiam o matrimônio e, em conseqüência disso, podem utilizar mecanismos
inconscientes para aliviar a pressão interna do desejo. Uma alternativa utilizada
protege seus afilhados”. In: Dicionário de Ciências Sociais. ed. Rio de Janeiro: Editora da
Fundação Getúlio Vargas, 1987, p. 275.
109 FREUD, S. “Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranóia e no homossexualismo”.
(1920-1922), op. cit, Volume XVIII, p. 237.
64
pelos pares é projetar os próprios impulsos de infidelidade a quem devem
fidelidades, com isto, tenta amenizar seus incômodos.
Paulo Honório aproxima-se mais dessa condição psicanalítica,
quando se sente ameaçado pelo comportamento ousado da esposa, que
reivindica uma atividade imprópria ao contexto feminino admitido por ele. No
narrador, o ciúme adquire características delirantes e está associado a
conteúdos do inconsciente. Partindo desse raciocínio é-lhe possível atribuir a
Madalena a suspeita de adultério, pois grande parte dos homens seria incapaz
de resistir à tentação dos apetites extraconjugais e, na sua mente, isso era
quase certo em uma mulher que estava acostumada a viver no esconderijo do
lar e se expusesse entre homens. A premissa máxima seria se sou infiel, ela
não é superior assim não terá resistência e se entregará ao desejo de
infidelidade.
A propósito do ciúme projetivo, Lachaud afirma que o homem
ciumento pode atingir uma cegueira tão intensa, nos momentos delirantes, que
sua estrutura pode se abalar a ponto de ele se sentir na posição de um
espectador excluído. Sempre na mira do sujeito do engano, tima da escolha
invertida, percebe-se que o ciúme foi recurso usado pelo homem autoritário,
desestabilizado diante da possessividade sobre que se sustenta e da cultura em
que se insere. Essa visão se solidificou e reforçou ainda mais no meio rural,
ambiente de velhos hábitos senhoriais exercidos com rigor sobre os subjugados
e os excluídos, dentre os quais as mulheres. As esposas tinham um espaço
delimitado e se ousassem transgredi-lo se enquadrariam, na expressão
perspicaz de Gilberto Freyre, entre as excomungadas da ortodoxia patriarcal.
110
110 “Da mulher-esposa, quando vivo ou ativo o marido, não se queria ouvir a voz na sala, entre
conversas de homem, a não ser pedindo vestido novo, cantando modinha, rezando pelos
homens; quase nunca aconselhando ou sugerindo o que quer que fosse de menos doméstico, de
menos gracioso, de menos gentil; quase nunca metendo-se em assuntos de homem. Raras as
Donas Veridianas da Silva Prado, cuja intervenção em atividades políticas superasse a dos
maridos ainda vivos: as que existiram – quase todas no fim do tempo do Império – foram umas
como excomungadas da ortodoxia patriarcal, destino a que não parece ter escapado a própria
Nísia Floresta com todo seu talento e todas suas amizades ilustres na Europa”. In: FREYRE,
Gilberto, op. cit, p.108.
65
Formatado nesse meio social, Paulo Honório sente-se vítima do
sistema, compreendendo e confessando: A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi
desta vida agreste, que meu deu uma alma agreste.
111
Assim, atribui a
responsabilidade ao meio físico, sem conseguir se livrar dos esquemas
comportamentais que dominavam seu intuito de posse sobre a esposa. Não
enfrenta o desafio de aceitar uma nova visão do feminino, deixa-se corroer pelo
ciúme e, assim, o não percebido contido no comportamento de Madalena, reteve
verdades que, criadas obsessivamente para defender-se da hostilidade do meio,
invalidaram o oferecido aos seus olhos e ouvidos algo reforçado pelas
reflexões lacanianas: o que se olha é aquilo que não se pode ver.
112
Daí a
possibilidade de atribuir à função escópica a característica de ambigüidade: o
que se procura ver está sempre ausente e o desejo sempre escondido. A
oscilação é clara: Madalena era honesta, claro.
113
Porém, Eu tinha razão para
confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual.
114
Nesse jogo em que a personagem feminina oscila, ora fiel ora
infiel aos olhos do narrador, a linha divisória entre imaginação e certeza se torna
vaga e imprecisa. Ele é tomado pelo ciúme delirante, que culmina na incerteza
da paternidade: Não havia sinais meus: também não havia os de outros
homens.
115
A partir daí o narrador sente-se compelido à verificação compulsória
das dúvidas sobre o adultério cometido por Madalena e atormentado pela idéia
de surpreendê-la, começa a busca incessante das provas de infidelidade:
Agüentar! Ora agüentar! Eu ia continuar a agüentar
semelhante desgraça? O que me faltava era uma prova: entrar
no quarto de supetão e vê-la na cama com outro.
116
Atormentava-me a idéia de supreendê-la. comecei a mexer-lhe
na malas, nos livros, e a abrir-lhe a correspondência.
111 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 159.
112 LACAN Jacques, op. cit,. Livro11, p.173.
113 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 202.
114 Idem, ibidem, p. 191.
115 Idem, ibidem, p. 193.
116 Idem, ibidem, p. 195.
66
O mal-estar o acompanha até assumir proporções patológicas,
manifestadas na exigência de confissão pela esposa, a fim de confirmar as
suspeitas. Um episódio particular, desencadeia a grande crise de
desentendimento. Paulo Honório se apossa de uma folha avulsa que voa para
fora do escritório e, sem nada entender, começa a elucubrar sobre a traição da
mulher, até submetê-la à torturante inquisição que acaba por levá-la à opção do
suicídio. Era uma carta que Madalena escrevia com o intento de explicar fatos do
relacionamento do casal e que Paulo Honório transformou em oportunidade de
agressão.
Mostra a carta, insisti, segurando-a pelos ombros...
117
Deixe ver a carta, galinha.
118
Mostra a carta, perua.
119
Cachorra!
120
Madalena morre sem confirmar nem negar o delírio do
marido. Com ele fica a ruminação da dúvida e o recurso da escritura para relatar
a própria história, como meio de resgatar o que lhe escapara.
Com a saída da esposa da narrativa, o objeto do conflito
ausenta-se e o narrador começa a avaliar as próprias atitudes como
inadequadas. O ato de rememorar obriga-o a uma mobilização de sentimentos, a
um despertar de memórias importantes para refletir sobre a vida e assim
recompô-la. Conseqüentemente uma reorganização dos valores, na
percepção do ciclo da própria vida. Nesse processo ele tenta minimizar os
desafetos, rever as mágoas, procurar uma interpretação diferente sobre o
ocorrido, re-significando os episódios vividos, mas sem conseguir livrar-se do
legado do passado. Daí a narrativa autobiográfica assumir um tom, a bem dizer,
117 Idem, ibidem, p. 199.
118 Idem, ibidem, p. 199.
119 Idem, ibidem, p. 199.
120 Idem, ibidem, p. 200.
67
terapêutico. O homem arrasado não consegue se libertar do que foi, não
consegue ampliar sua compreensão para dar rumo positivo à própria vida,
libertando-se dos atos traumáticos pelos quais passou, e se reconhece
impossibilitado para a reconciliação com a esposa:
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível
recomeçarmos...Para que enganar-me? Se fosse possível
recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não
consigo modificar-me, é o que me aflige.
121
Com tal bagagem emocional, Paulo Honório parte para as
reflexões com que pretende entender os fatos ocorridos e vai atribuir ao meio
hostil a responsabilidade por seu estado arrasado. Qualquer justificativa que cria
para modificar seu comportamento se mostra vã:
Tentei debalde canalizar para termo razoável essa prosa que se
derrama como a chuva da serra, e o que apareceu foi um grande
desgosto. Desgosto e a vaga compreensão de muitas coisas que
sinto.
122
A comparação estilística feita pelo narrador funciona como
reprodução de seu estado de espírito frente às mudanças de comportamento.
Qualquer tentativa se assemelharia à fluidez da água em contato com a
impermeabilidade de um caráter resultante de emoções cristalizadas desde a
infância. Concluindo a percepção da espessura dos conteúdos armazenados no
decorrer de sua vida árida , o narrador declara-se impotente: O resultado é que
endureci, calejei, e não é um aranhão que penetra esta casca espessa e vem
ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
123
O arranhão provocado pela presença do feminino foi sinalizador
de uma falta e Paulo Honório se conta de que, comparativamente, Madalena
também tinha sofrido os mesmos desamparos, porém teve acesso à educação.
121 Idem, ibidem, p. 247.
122
Idem, ibidem, p. 241.
123
Idem, ibidem, p. 241.
68
Não viveu uma orfandade absoluta como ele, que veio de um ambiente precário
e inóspito, quase sem relação de pertencimento, tornando-o um sujeito excluído
de seu meio, por não se sentir integrado naturalmente ao projeto de aquisição da
fazenda São Bernardo. Tudo lhe parece mais espinhoso, na medida em que
interfere na construção de seu perfil em relação ao meio.
A ausência de lastro no passado funciona como impedimento
para a interpretação do espaço conquistado por ele e, conseqüentemente, para a
constituição de uma relação de troca com o meio físico, psíquico e social. Essa
vacância do pertencer se torna propícia para Paulo Honório invejar e adotar o
meio de expressão utilizado por Madalena para entender a relação com o mundo
a escrita. Talvez essa pudesse ser a oportunidade de simbolizar um berço do
pertencimento ausente.
2.3 A inveja
Que olho é este de olhar mortífero,
dissimulado e inacessível por detrás destes
ciúmes?
Denise Lachaud
Recorrendo aos subsídios da psicanálise, é possível mostrar o
viés da inveja, sentimento oculto no ciúme, que toma conta de Paulo Honório na
primeira parte da história. O narrador conserva camuflado o sentimento invejoso,
porque, se o admitisse, ao cobiçar uma qualidade feminina estaria
desmerecendo a posição masculina de superioridade. Estaria, ainda, desfazendo
a fórmula comportamental de que a inveja humana se alimenta de sua ocultação,
negando sempre o tom e a intenção de sinceridade.
A inveja dissimulada por Paulo Honório se afirma na repulsa
pelas qualidades da esposa que o incomodavam, tais como a bondade, a
instrução, a intelectualidade e o gosto pela leitura. Dentre tudo, o que ele mais
cobiça em Madalena é a capacidade de entender a vida com sensibilidade,
69
fazendo uso da palavra, o que, somado a outras apreciações, induz o homem
rude e iletrado a uma espécie de encantamento.
Nesse sentido, é pertinente realçar que a via de entrada para o
arrebatamento do narrador se deu pelo olhar. Daí, a propósito da visão humana
e, para mostrar a relevância do olhar na função do desejo, Lacan formulou a
expressão função escópica
124
, segundo a qual o sujeito é captado e preso pelo
campo da visão. No encontro do par Paulo Honório e Madalena, essa função se
faz relevante desde o primeiro instante em que se viram. Com olhos abertos e
bem focados no cruzamento de olhares entre o feminino e o masculino, verifica-
se, primeiramente, os olhos azuis de Madalena fisgando Paulo Honório com tal
força, que esse detalhe do objeto atravessa as barreiras do inconsciente:
Percorri a cidade, bestando impressionado com os olhos da mocinha loura e
esperando um acaso que me fizesse saber o nome dela.
125
Em seguida veio a sedução da posição do fazendeiro,
capturando a professora idealista para o remanso capitalista da fazenda: O seu
oferecimento é vantajoso para mim, Seu Paulo Honório, murmurou Madalena.
Muito vantajoso...A verdade é que sou pobre como Job, entende?
126
A resposta
de Madalena conota retrocesso irreparável e de difícil compreensão para o leitor,
em contato com as idéias socialistas alardeadas por ela. Pela aceitação do
convite de Paulo Honório, ela cai nas malhas da contradição, ou melhor, da
sedução exercida pela visada voltada para São Bernardo, fazendo entrever e
vislumbrar um futuro promissor, afiançado pelo fazendeiro.
Importa que, no encontro dos dois olhares, parece prevalecer
metaforicamente o mau-olhado, expressão popular resgatada por Lacan
127
, para
124 “No campo escópico, tudo se articula entre dois termos que funcionam de maneira
antinômica do lado das coisas o olhar, quer dizer, as coisas têm a ver comigo, elas me
olham, e contudo eu as vejo”. LACAN Jacques, op. cit, Livro 11, p.106.
125 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 126
126 Idem, ibidem, p. 146.
127 “É surpreendente, se pensamos na universalidade da função do mau-olhado, que não em
lugar nenhum qualquer traço de um bom-olhado, de um olho que bendiz... Os poderes que lhe
são atribuídos, de fazer secar o leite animal sobre o qual ele cai crença tão disseminada em
nosso tempo quanto em qualquer outro, e nos países mais civilizados – de trazer a doença, a má
sorte, esse poder, onde podemos melhor imaginar senão na invidia?” LACAN Jacques, op. cit.,
Livro 11, p.112.
70
salientar que é o olhar que seca, exatamente o que recai nas duas personagens
de São Bernardo. Em conseqüência, para ele fica o logro da solidão; para ela o
logro da morte. É importante focalizar o olhar ávido de Paulo Honório sobre a
capacidade de expressão de Madalena e ao mesmo tempo revoltado contra a
falta de compreensão quanto ao mundo dela, instalando-se nele um sentimento
de inferioridade. Habitante de um mundo precário, tanto no aspecto interno como
no externo, o narrador ressente-se e deixa-se envolver por uma sensação
sombria, destrutiva, própria do sujeito invejoso.
A visão de Paulo Honório se torna comprometida quando perde
a noção do compromisso de enxergar o que olha. Seu olhar, dirigido a Madalena,
não consegue romper o véu das aparências, ficando sua visão emparedada no
preconceito do masculino contra o feminino. O campo visual foi abarcado por
olhos aptos a possuir a esposa e atender as exigências normativas de uma
sociedade adversa à abertura de novas opções para a mulher. A masculinidade
foi soberana e ele não conseguiu vê-la limpidamente, sob as sombras do social
que marcaram a visada de superfície do seu foco.
Na linha de pensamento de Lacan o olhar é constituído de
apetite e contém poderes destrutivos. É nesse ponto que o psicanalista faz a
ligação de olhar com a inveja invidia videre e conclui que: o olho leva
consigo a função mortal
128
. Alvo certeiro de Paulo Honório; Madalena, fragilizada
pela frustração do casamento, mais uma vez é atingida pelo olhar mortal do
narrador. O invejoso se sente bem com o infortúnio do outro e nunca se
satisfaz com as conquistas e os predicados alheios, pois a inveja emerge de seu
íntimo, sem qualquer objeto externo que a aplaque.
O ciúme e a inveja são sentimentos que muitas vezes se
confundem, sendo a segunda mais primitiva e mais danificadora do que o ciúme.
Se ela vier misturada com a voracidade conseguirá esvaziar o objeto,
mostrando-se impregnada de pulsão de morte
129
. Certamente esses afetos,
128 RAMOS, Graciliano, op. cit, p.112.
129 A inveja, embora surgindo a partir de amor e admiração primitivos, tem um componente
libidinal menos forte do que a voracidade, e é impregnada de instinto de morte.” In: SEGAL
Hanna. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.52.
71
estudados pela psicanálise alicerçaram os sentimentos negativos que deram
sustentação ao ódio, à raiva e à inveja que moveram o narrador rancoroso,
culminando com o desejo de morte para a esposa que desafiava os valores
masculinos do companheiro.
A contribuição mais significativa para o assunto em destaque
vem de um estudo de Segal
130
sobre o sentimento posterior à destruição do
objeto invejado, a culpa, emoção que domina o narrador da segunda parte da
história, depois de conectado com a percepção de que havia se dedicado a
coisas sem sentido durante seu relacionamento conjugal: Julgo que me
desnorteei numa errada.
131
Do ponto de vista filosófico se torna relevante a leitura de
Scheler sobre a inveja, considerada o sentimento mais temível e terrível
132
que
domina o ser humano quando se propõe a aspirar um bem que o outro possui. O
autor realça que, durante o processo de apropriação do objeto do outro, o
invejoso é dominado pelo ressentimento de não possuir o que o outro tem e se
torna impotente, ao ver-se incapaz de desobstruir-se e admitir o fracasso. Esses
pressupostos filosóficos dão à inveja o papel principal na formação e
conformação do ressentimento.
Fechando os olhos com o intento de condensar todos os olhares
voltados para o assunto em discussão, conclui-se que o ser humano confessa o
ódio, o medo, o ciúme, a solidão, a cobiça e a raiva, mas raramente a inveja.
Naturalmente, também Paulo Honório não a revela. Ao contrário, esconde esse
sentimento negativo durante o relato da própria história, mesmo vendo-se
impotente para lutar contra a irreparável deformidade moral que o domina.
Com atitudes do narrador, verifica-se que, a partir da entrada de
Madalena em sua vida, seus atos foram permeados de rancor. Como resultado,
o mal que estava nas ações de Paulo Honório penetra intensamente em São
130 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 53.
131 Idem, ibidem, p. 245.
132
“A inveja mais impotente é concomitantemente a inveja mais temível e terrível. A inveja que
libera a mais forte formação e conformação do ressentimento...” In: SCHELER, Max. Da
reviravolta dos valores. Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p.56.
72
Bernardo. A partir daqui é o narrador ressentido integrante da relação dos
pares narrador mais distanciado e narrador ressentido mencionados
anteriormente que será relevante para a seqüência da proposta interpretativa
alicerçada em parte na psicanálise e complementada por algo do viés filosófico
sobre a teoria do ressentimento.
O primeiro do par, narrador da segunda parte da história, emerge
após a ausência de Madalena e assim se entrega à amargura da perda.
Distanciado, no sentido preciso da palavra, Paulo Honório parece afastar-se da
vida, de suas verdades, para perceber o lado não visto, o lado não vivido.
assim pôde reconstruir sua história, tentando compreender os enganos
cometidos. O distanciamento o leva à reflexão.
Porém, mesmo na posição de narrador mais distanciado não se
livra do olhar míope do passado. O ato de rememorar conteúdos afetivos
desagradáveis, não o liberta, no presente, de ressentir-se. A carga emocional
negativa acompanha Paulo Honório no ato da escrita, pois nem o distanciamento
temporal foi capaz de imunizá-lo contra a dor de relembrar. Não consegue criar
um novo sistema valorativo, para rever seu casamento e as atitudes da esposa,
e não chega, portanto, a transformar a história. O avesso de sua postura seria o
arrependimento, mas, em nenhum instante na convivência com a parceira ele se
dispõe a pedir desculpa.
O narrador da retrospectiva vê os fatos com lucidez, mas a
matéria revisitada reverte apenas em aprofundamento interno, sem alcançar o
entendimento da relação conjugal e a constatação de que Madalena introduziu,
em sua vida, a perda e a reflexão sobre o poder ilusório. A narrativa que serve a
Paulo Honório apenas lhe oferece condições para purgar o sofrimento da
solidão, não demonstrando efeitos de cura. Apesar de o narrador sentir-se vítima
das violências e imposições, ele não é capaz de contar sua história deixando de
lado a contabilidade dos golpes recebidos no relacionamento conjugal para dar
destaque à cumplicidade, às suas reações e às escolhas diante da adversidade.
Provavelmente, fica preso às malhas do rancor como um homem que concebe
sua mulher como inimiga.
73
A dor da humilhação do homem, acometido pelo ciúme expresso
e a inveja camuflada, faz com que Paulo Honório mergulhe no ressentimento, e
é esse homem ressentido que escreve a história.
2.4 O Narrador ressentido
... a origem do ressentimento está presa a
uma forma especial da introdução da
comparação entre o valor de si mesmo e o
valor de outros, a qual necessita de uma
breve e distinta investigação.
Max Scheler
Apesar do ressentimento não ser um conceito psicanalítico, é
possível associá-lo às idéias freudianas contidas no artigo Recortar, repetir e
elaborar
133
, em que o paciente se coloca de volta a uma situação anterior,
repetindo-a insistentemente, enquanto está preso às resistências, então,
impedindo-lhe o enfrentamento do afeto. Portanto, ele poderá livrar-se das
amarras da repetição se os sentimentos recordados forem elaborados.
Paulo Honório, enquanto narrador ressentido, apresenta-se preso às
lembranças rancorosas, na medida em que está sentindo o que sentia antes de
rememorar, isto é, re-sentindo o passado, acorrentado pelos agravos e
atribuindo a Madalena a causa de seus sofrimentos. o narrador mais
distanciado pôde dar início ao processo de elaboração dos afetos, repensando
seus atos enganosos.
No fazendeiro prepotente, narrador da primeira parte da história,
ferido pela insubmissão da mulher, instalou-se a constelação de afetos
negativos, responsáveis pelas nuanças do ressentimento. Foi o ciúme o
sentimento de origem que calçou a afecção do narrador ressentido, centro de
interesse deste capítulo. Preso a esse ressentimento, ele irá compor a imagem
133 FREUD, S. “Recordar, Repetir e Elaborar (Novas Recomendações Sobre as Técnicas da
Psicanálise II)”. (1911-1913), op. cit, Volume XII, p. 163.
74
da personagem Madalena e relatar as divergências de ambos na convivência do
casamento.
Conforme foi realçado no primeiro capítulo, Paulo Honório é o
criador de Madalena que, enquanto criatura, nasceu calcada nas diferenças de
seu idealizador. As lacunas presentes na configuração da personagem feminina
resultaram da incompreensão, da incompatibilidade e da voz prepotente de um
sujeito masculino ferido na honra.
Enquanto o narrador mais distanciado apóia na escrita a
configuração da personagem feminina, o outro narrador, o ressentido, não poupa
a imagem da esposa na primeira parte da narrativa, e a compõe com pinceladas
rancorosas. Segundo Scheler
134
a constituição do ressentimento é dada pelo
rancor: quanto maior o recalque, maior seo sentimento de vingança. O ser
ressentido está sempre ansiando por uma oportunidade de explosão.
Acometido pelo ciúme, Paulo Honório apresenta duplo
comportamento. Primeiro a aversão a si mesmo, resultado da rejeição da
esposa: ...mas eu, naquela vida dos mil diabos, berrando com os caboclos o dia
inteiro, ao sol, estava medonho. Queimado. Que sobrancelhas!
135
; depois, o
anseio de valorização que esperava daquela a quem caberia reconhecer seu
valor e premiar seus esforços. Essa mescla conflitiva divide sua alma, pois, por
um lado, fala para fora com a voz do orgulho, por outro, fala para dentro com a
voz do desprezo, mas sempre sem a sinceridade que lhe poderia permitir a visão
de que a afecção do ciúme sinalizava seu amor por Madalena.
No entanto, devido à desconfiança do adultério, o narrador
traveste brutalmente o sentimento amoroso. Sufocado por acusações delirantes,
134 O rancor existente procura para si então as oportunidades para a sua eclosão.
Compreender-se-á faticamente, onde se pensa, apenas para se vingar. Contudo, o rancor
conduz à formação e conformação do ressentimento tanto mais, quanto mais é recalcado o
exercício da vingança, a qual provoca uma re-produção do sentimento de valor próprio ferido, ou
da “satisfação” ou das “honrasferidas, isto em doses sempre maiores, que acarretam prejuízos
dolorosos; bem como também a expressão da fantasia inteira relativa à alma; sim, finalmente,
mesmo o movimento de vingança é reprimido.” SCHELER, Max, op. cit, p. 52
135 RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 196.
75
ele provoca uma trinca na relação conjugal e selvagemente o mundo racha e não
deixa mais nada.
136
Paulo Honório drena sua própria vitalidade e alimenta o auto-
envenenamento pela ruminação dos afetos negativos, formulando, por isso,
juízos de valor distorcidos sobre sua vida conjugal. Na tentativa de ocultar,
ironicamente, o sentimento de vergonha provocado pela rejeição do cônjuge,
concede à esposa o ressentimento. Nem mesmo o desprezo autêntico esteve a
seu alcance, que isso dependia de uma noção real da superioridade, a qual
ele já havia perdido em relação à mulher.
Pensando analogicamente, a personagem masculina carrega os
caracteres dos velhos hábitos senhoriais perante o delírio da traição cometida
pelo feminino, devendo agir de maneira compatível com os usos e costumes de
seu tempo, que ditava a apropriação da força física legítima
137
como reação à
desconfiança conjugal, reconhecida claramente: O meu desejo era pegar
Madalena e dar-lhe pancadas até o céu da boca.
138
o conseguindo dar vazão
à violência, Paulo Honório sente exaurida a vontade de poder e o recalcamento
das emoções reforçam-lhe o ódio, que se traduz na seguinte declaração: À noite
não consegui dormir. Passei horas sentado, odiando Madalena.
139
Em conseqüência da diferença cultural entre Paulo Honório e a
mulher, o ódio emerge no narrador como representante dos sentimentos
136 “Selvagemente, o mundo racha. É o ciúme. Sim! É isso mesmo! Pois o ciúme é selvagem.
Ele é abrupto, absurdo, brutal. Os dois outros não sabem. Nadam numa felicidade sem falha. A
cena recorta do mundo. vejo ela, aquela que... O recalcado retorna. Qual recalcado? A cena.
Aquela durante a qual vivíamos num mundo fusional com ela. Ela quem? A mãe. Com seu corpo.
Meu olhar está preso, raptado, fascinado, cativo e se desgarra na cena hipnótica de que o ciúme
vai doravante se nutrir. Ogro. Canibal. Monstruoso. Perseguidor. Insidioso. Pernicioso. Latente.
Permanente. Torturante. Não vai mais me dar um minuto de sossego. Vai hipotecar minha
mente por inteiro. Não me deixa mais nada. Nada.” In: Lachaud, Denise. Ciúmes Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 2001, p.19.
137 “Usos e costumes, porém, revelam que o âmbito do poder do marido ia mais longe do que o
previsto pela lei. A ele cabia deliberar sobre as questões mais importantes que envolviam o
núcleo familiar: a apropriação e distribuição dos recursos materiais e simbólicos no interior da
família, o uso da violência considerada “legítima”, cujos limites eram debilmente contornados por
aquilo que se considerava excessivo, e o controle sobre aspectos fundamentais da vida dos
familiares, como as decisões sobre a escolha do tipo e local da formação educacional e
profissional dos filhos.” In: História da Vida Privada no Brasil República: da Belle Êpoque á Era
do Rádio, SEVCENKO, Nicolau (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, Volume 3, p.376.
138 RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 195.
139 Idem, ibidem, p. 196.
76
opressores, transformando-se em motivo para a vingança que, entretanto, será
minada com a morte de Madalena. O que importa é que, se não vingança, se
o ciúme não se apossa do seu objeto, o ressentido não pode dar vazão às
emoções negativas. Daí a percepção de que algum afeto fica escondido atrás do
ciúme persecutório. É a inveja, sentimento dissimulado e forte, que impulsiona
Paulo Honório a apropriar-se da palavra escrita, principal atributo de Madalena,
pois esta característica o incomoda muito devido a dificuldade de entender o
discurso da esposa.
Enfocando a posição do narrador e o tema da vingança,
Kehl,
140
em um artigo intitulado São Bernardo uma vingança invertida, atribui a
vingança a Madalena. Para ela a morte da personagem inclui a mensagem da
desforra diante do marido possessivo, de cujo domínio a personagem feminina
escapa ao morrer. Realça ainda o ressentimento masculino em relação à mulher,
por ela ser melhor do que ele e, principalmente, por trazer para o mundo de São
Bernardo um modo de viver diferente daquele do qual ele se sente excluído, por
não ser capaz de compreendê-lo.
Contrapondo a idéia lançada por Kehl, aqui se propõe
inverter a questão: não seele quem se vinga ao espiar a dor de Madalena?
Sem a pretensão de anular a intenção da autora, mas atentos ao processo de
definhamento de Madalena, durante o período de doença, é possível perceber
que a vingança se deu a conta-gotas, foi destilada por um narrador sem
cumplicidade e sem compaixão. Ele descreve a dor da companheira à
semelhança de quem faz uma classificação de sintomas, sempre com o olhar no
diagnóstico: Pálpebras vermelhas,
141
pernas encolhidas...emagrecendo,
142
aterrada...soluçando.
143
Em nenhuma passagem, porém, oferece a ela a
possibilidade de ajuda ou atenuante para a sua dor; ao contrário, num instante
140 “Em São Bernardo, de Graciliano Ramos, quem se vinga não é o ressentido: é aquela que foi
objeto de ressentimento. Quem se vinga é Madalena; seu suicídio discreto faz explodir o
ressentimento que estava latente em Paulo Honório.” KEHL Maria Rita. “Um romance
brasileiro: São Bernardo, uma vingança invertida” In Ressentimento. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2004, p.173.
141 RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 193.
142 Idem, ibidem, p. 135.
143 Idem, ibidem, p. 210.
77
de muito ódio deixa sua opinião bem clara: afirmei a mim mesmo que matá-la era
a ação justa.
144
A esposa, ao contrário, não demonstra nenhum gesto de
vingança, ao contrário, em sua última conversa com o marido, posiciona-se
pedindo desculpas: Você me perdoa os desgostos que lhe dei Paulo?
145
Num primeiro momento é com o olhar ressentido,
comprometido pelo ciúme, ódio e inveja que o narrador compõe a imagem de
Madalena envolvida em um véu de opacidade. Na segunda parte da história ele
resgata a imagem da mulher, confessando os próprios erros.
2.5 Articulações da narrativa
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu
num meio de artesão no campo, no mar e
na cidade , é ela própria, num certo sentido,
uma forma artesanal de comunicação. Ela não
está interessada em transmitir o puro em si da
coisa narrada como uma informação ou um
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim
se imprime na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso.
Walter Benjamin
Anteriormente, neste capítulo, levantou-se a tese de dois
narradores, o ressentido, a voz errante do fazendeiro prepotente da primeira
parte da história, e o outro, relator confesso de seu próprio engano decorrente da
maneira com que conduziu sua vida. Após a análise separada das
características prevalecentes em cada um deles, fica a proposta da articulação
dos dois narradores, integrados num bloco uno para configurar um narrador
personagem de grande complexidade, beirando ao humano na sua
singularidade.
144 Idem, ibidem, p. 128.
145 Idem, ibidem, p. 219.
78
Paulo Honório não goza de exclusividade na condição de
narrador ressentido e complexo dentro da literatura brasileira, pois tem a parceria
de Bentinho, narrador de Dom Casmurro de Machado de Assis. Ambos se
aproximam e distanciam em seu modo de narrar. Assemelham-se na falta de
confiabilidade de seus relatos comprometidos e, acometidos pelo ciúme
delirante, se apresentando como criadores das personagens femininas, Capitu e
Madalena, mulheres que se destacam perante a crítica, em função do poder
desses narradores na construção opaca de suas imagens. Além disso, os dois,
fracassam igualmente ao contracenar com mulheres que anunciavam novas
opções para o comportamento feminino. Os dois narradores se diferenciam em
um ponto; enquanto Bentinho acredita na traição da esposa, deixando a dúvida
apenas para o leitor, Paulo Honório faz a reparação de seus atos através da
narrativa.
No que diz respeito ao romance São Bernardo, as análises
críticas centralizadas sempre em Paulo Honório, variam, desde declarações
sobre as contradições manifestadas no drama do fazendeiro ambicioso e do
escritor disposto a revisar sua vida, até o reconhecimento de atitudes heróicas
do narrador no enfrentamento das adversidades. Duas análises merecem
destaque neste estudo; a de Valentim Faccioli e a de Luiz Lafetá. No texto do
primeiro, Dettera: ilusão e verdade
146
, o autor atribui a Paulo Honório a
característica de aliciador, alertando o leitor para a estratégia usada pelo
narrador improvisado. Portanto, demonstrando que sua forma de narrar não é
confiável porque é autoritária e impositiva. Mesmo quando se
emocionalmente desestruturado, no período de decadência da fazenda São
Bernardo, ele se mostra cínico em suas declarações, pois pretende se colocar
diante do leitor como vítima.
Por tudo isso, o ensaísta declara que o coronel fazendeiro está
na pele do narrador. Ambos formam um bloco único, detendo o monopólio da
ação e da fala. Resumidamente, o ensaio deixa ao leitor a proposta de
146 “Dettera: ilusão e verdade Sobre a (im)propriedade em alguns narradores de Graciliano
Ramos”. Valentim Facioli. In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 35. São Paulo, 1993.
79
desconfiança diante do narrador personagem, que se apropria da narrativa como
último recurso para o fracasso.
No texto do segundo, O mundo à revelia, o autor o herói
perdido se deparando tragicamente com a solidão. No decorrer de sua análise o
crítico evidencia o caráter violento do herói e seu espírito de comando, expressa
em ações desumanas praticadas para atingir o objetivo de possuir a fazenda São
Bernardo. Por ele Paulo Honório é visto como um dos dominadores que se
relacionam com o mundo pela posse, pela apropriação das coisas e também das
pessoas, simbolizando o homem do capitalismo que coisifica as relações
humanas. O enfoque do ensaio recai sobre o herói que se torna um aleijão, ao
ver-se impossibilitado de apropriar-se de Madalena. Diante da recusa da esposa,
resta a Paulo Honório, ausente a companheira, a narrativa. Ele a utiliza movido
pela possibilidade de rever-se.
É oportuno, nesta linha de pensamento, que a personagem
reagir negativamente diante do fracasso, lembrar a proposta defendida por
Puzzo, em seu artigo intitulado: Paulo Honório vítima ou algoz?
147
Ela acaba
concluindo que o narrador é um manipulador do leitor desatento, pois consegue
inverter sua posição de algoz para vítima e, num tom jurídico, ela condena o
herói pelos atos abomináveis relembrados no relato de sua própria história.
Nem dissimulado, nem derrotado, nem manipulador do leitor, as
considerações levantadas neste trabalho propõem uma nova visada sobre o
narrador, observando nele características semelhantes às do homem
desamparado, habitante do mundo moderno e revestido de fragilidade humana.
Sua atuação conduz à retratação do ser que se fragiliza na medida em que não
se sustenta por si mesmo porque perde o domínio do entorno, despotencializado
na presença do feminino. Na empreitada de sua vida, Paulo Honório se torna
representante da precariedade do homem que perde a idéia de centro e o
domínio de si, deixando transparecer a perda progressiva da auto-suficiência.
147 PUZZO, M. B, “Paulo Honório vítima ou algoz?” In Revista Ciências Humanas. Universidade
de Taubaté – Ano II nº 1 – I Semestre, 1996, p.91-9.
80
Paulo Honório é a estampa do sujeito que perde a base de sua
construção e entrega às forças interiores a possibilidade de reanimar-se, mesmo
percebendo que esse caminho o levaria à solidão e à percepção de errância.
Atravancado no desfiladeiro do auto-conhecimento, cada passo em direção ao
passado realça mais o cansaço em que se encontra, morto de fadiga
148
para
conduzir-se em direção ao não ter para ser.
A partir do momento em que Paulo Honório entrega-se à
experiência de escrever para mapear a desordem de seu mundo interno, apega-
se ao recurso narrativo para tratar das lacunas existentes em sua realidade
psíquica e resgatar Madalena perdida no tempo.
Fugindo aos lugares comuns da consideração sobre Paulo
Honório no âmbito da fortuna crítica, esta dissertação propõe a síntese dos dois
narradores mencionados, anteriormente o ressentido e o mais distanciado –,
para finalizar com o narrador personagem que reflete a condição humana e
termina sua história solitário: E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que
hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns
minutos.
149
Depois desse descanso, possivelmente ele retomará a narrativa, pois
parece motivado para assumir um outro lugar, não mais o do fazendeiro das
terras, mas o do homem que se apossou da palavra e por ela teve a
oportunidade de repensar sua própria existência. Tomado pela desilusão e pelo
arrependimento, o narrador faz uma espécie de mea culpa.
Ainda mais: narrar se tornou a saída para a crise que se
instalou na vida de Paulo Honório. Após a morte da esposa, restou-lhe a palavra
para traçar simbolicamente sua dor, organizar seu fracasso e reconstruir São
Bernardo de outra forma, não a fazenda, o lugar onde foi massacrado na
infância, mas o espaço impregnado com as marcas humanizadoras de Madalena
durante sua passagem efêmera pela fazenda. O legado deixado por ela ao
marido foi a possibilidade de ele reingressar na vida através da troca de valores,
podendo construir assim, um outro Paulo Honório.
148 RAMOS, Graciliano. op. cit, p.248.
149 Idem, ibidem, p. 248.
81
O ato de tecer sozinho sua própria história impôs-se de forma
incontrolável, conforme declara: Com efeito, se me escapa o retrato moral de
minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a
escrever.
150
Diante de tal afirmação comprova-se o fato de que narrar representa
a única esperança para a personagem. Novamente é importante recorrer à
observação de Antonio Candido, que afirma restar uma fissura de sensibilidade
em Paulo Honório, possivelmente por esta fresta entrou Madalena e, agora, é
por ela que entra a escrita que o mantém vivo, sendo representante do resquício
da pulsão de vida. Esta, além de cumprir a missão catártica, poderá também
apontar ao narrador, atravessado na crise existencial em que ele se encontra,
um modo de lidar com o sim e com o não. Pode surgir, desse modo, uma forma
de superação da negatividade que abarca o narrador do final da história.
150 Idem, ibidem, p.159.
82
3 – Corpo-a-corpo
Estranha, também, essa experiência do
abismo entre mim e o outro que me choca
nem mesmo o percebo, ele me anula talvez
porque o nego.
Kristeva
O olhar analítico estará, aqui, priorizando o homem e o seu
próprio corpo, tratando das relações que esse corpo guarda com a cultura e a
sociedade em que está inserido.
Na obra São Bernardo a leitura das marcas dos corpos de Paulo
Honório e Madalena funcionará como índices culturais na constituição de cada
uma das personagens. É importante verificar como esses corpos interagem no
espaço comum que dividem no casamento, sem perder de vista os sinais
registrados neles, oriundos do período em que viveram separados. Na
convivência a dois, o desejo dos indivíduos viverá um corpo-a-corpo conjugal.
O corpo será, aqui, enfocado a partir de uma teoria diferente
tanto da noção fisiológica, que o como sistema autônomo, fixo, quanto do
social, que o valoriza para o aprendizado de hábitos e adaptação aos costumes.
A vertente deste estudo adotará o ponto de vista psicanalítico, que considera o
corpo erógeno, marcado pelo desejo e pelas pulsões, desaparecendo nele a
noção de unidade, porque não se reduz à necessidade natural do corpo
fisiológico. Este apenas se articula com o corpo vivo, onde está a pulsão
151
.
O corpo erógeno não é um organismo pronto, mas uma
constituição que implica uma imagem ilusoriamente inteiriça, em cuja
151 Pulsão é conceito chave para a psicanálise, ela se situa entre o psíquico e o somático.
Sendo representante psíquica das excitações provenientes do interior do corpo está sempre
buscando do que é da ordem da satisfação, nunca do recalque, mesmo quando se apresenta
desviada de seu alvo pela sublimação, substituição saudável que se para exigência pulsional.
A pulsão se inscreve no campo das representações, articulando a estrutura do inconsciente. É
uma exigência que importa ao psíquico em conseqüência de sua ligação ao corporal, é portanto
uma força em constante movimento que precisa ser submetida à simbolização para que possa se
inscrever no psiquismo propriamente dito. A pulsão visa primordialmente a descarga imediata, é
ela que rege os destinos do psiquismo pelos quais se constituirá o sujeito.
83
composição entram as contribuições, as interferências e as repressões da
cultura e da sociedade. Tais influências serão tratadas como cicatrizes marcadas
no corpo das personagens do romance. Para fazer a leitura dessas marcas se
torna importante evidenciar como cada corpo, separadamente, lidará com seus
desejos e que tipo de reação adotam diante das adversidades encontradas no
meio em que viveram, impedindo sua realização.
O ambiente cultural a que se refere esta leitura trata dos
padrões explícitos e implícitos de comportamento, tendo esta cultura, idéias
tradicionais responsáveis pela produção de ações condicionadas aos interesses
coletivos as quais pretendiam o ajustamento do indivíduo ao meio, priorizando
sempre as relações sociais. O viés da cultura visa um grupo de corpos dispostos
a realizar os desejos da coletividade em detrimento dos pessoais. Conviver vai
além do agrupamento de pessoas equipadas de padrões comuns e mobilizadas
para dar continuidade aos valores de interesse coletivo; do ponto de vista
psicanalítico viver em sociedade é renunciar a satisfação das pulsões e controlar
a libido. É importante focar, no contexto, a época dos anos trinta e a região do
Nordeste, para perceber a organização social pautada com o intento de atender
aos interesses do coronelismo, força ativa no jogo político que priorizava os
privilégios. As atitudes de Paulo Honório são condizentes com tal corpo cultural.
Para compor uma imagem nítida dos corpos em movimento
na fazenda São Bernardo, primeiramente se torna imprescindível avançar os
códigos grafados na composição da narrativa e focalizar, nas entrelinhas do
texto, a linguagem da ausência, a que carrega o que não foi explicitado,
permitindo, assim, interpretar as cicatrizes deixadas por essa vacância da
expressão.
Ajustado o ângulo para apontar as marcas corporais, a
análise recairá nos motivos causadores das feridas, observando, mais
precisamente, quais emoções foram privadas de simbolização, resultando em
dor (física e psíquica) seja para Paulo Honório, seja para Madalena.
84
3.1 Embate dos desejos: feminino e masculino
Mulheres, criaturas sensíveis, não devem
meter-se em negócios de homens.
São Bernardo
No jogo das ações dos cônjuges, no cotidiano da fazenda São
Bernardo, os lances adversos à convivência evidenciam a intolerância de cada
um dos parceiros frente à frustração do casamento vivido sem demanda
amorosa, possivelmente seja essa a causa da intransigência de cada um para
investir na relação conjugal. Diante da constatação das diferenças culturais do
masculino e do feminino, os dois se mostram indispostos para realizar a parceria,
esquecendo-se do acordo de conveniências aceito por ambos no ato da
combinação do casamento pragmático. Para ela, a possibilidade de descansar e
garantir o futuro; para ele, encontrar uma procriadora que lhe desse um herdeiro,
afiançando-lhe a continuidade de suas posses.
No confronto dos desejos de Paulo Honório e Madalena as
características do masculino e do feminino ficam evidentes no momento em que
eles se propõem a compartilhar suas histórias de vida e se deparam com as
diferenças de mentalidade a respeito das funções ocupadas por um e por outro.
uma dissensão de interesses e opiniões entre os dois; para ela, como
esposa, a intenção era participar do mundo masculino de São Bernardo e fazer
ouvir a sua voz, assim, abrindo novos caminhos para a mulher; para ele a
expectativa era mantê-la confinada no lar, enquadrada no papel de esposa
tradicional, preservando a hegemonia do homem.
Para os dois fica a frustração do desejo que não foi realizado.
Conseqüentemente passam a viver como adversários diante do corpo cultural
que cada um trazia na bagagem pessoal. O cotidiano dele é marcado pela
experiência do capitalismo, no qual a mulher é vista como propriedade do
homem, ao passo que o dela é marcado pela cultura da escrita, pautada na
intenção de propor novos horizontes para o feminino.
85
Logo no início, a visão do narrador em São Bernardo aponta a
separação de gêneros, em um relato do primeiro encontro entre homens e
mulheres, ficando claro para o leitor o modo de pensar da sociedade da época:
Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costume de
viverem os machos apartados das fêmeas. Quando se
entendem, quase sempre são levados por motivos que se
referem ao sexo. Vem daí talvez a malícia excessiva que em
torno de coisa feitas inocentemente. Dirijo-me a uma senhora, e
ela se encolhe e se arrepia toda. Se não se encolhe nem se
arrepia, um sujeito que está de fora jura que safadeza no
caso.
152
Várias cenas no decorrer da narrativa demonstram as tentativas
de Madalena para ampliar a demarcação dos limites separatórios entre
masculino e feminino. Nas discussões gerenciadas por Paulo Honório, a esposa
tem participações acanhadas, mas sempre que é chamada não omite seus
propósitos socialistas diante da intransigência capitalista do marido. É com
firmeza que responde a ele numa conversa entre homens, sobre uma
possibilidade de haver revolução socialista no país: Seria magnífico, interrompeu
Madalena. Depois se endireitava tudo.
153
Madalena tenta sair dos trilhos demarcados pela cultura
masculina e erguer a voz de ruptura com sua época, procura desviar-se do
comportamento de resignação e assujeitamento, anunciando a alteridade
legítima do feminino. É importante perceber que sua voz procura ecoar em
recintos assenhorados por homens. Primeiramente na fazenda São Bernardo,
quando procura, logo no início do casamento, emitir opiniões sobre os negócios
da propriedade de seu marido: E dois dias depois do casamento...É hora do
jantar encontrei-a no descaroçador, conversando com o maquinista.
154
Imediatamente Paulo Honório a detém e impede suas intenções participativas
152 RAMOS, Graciliano. op. cit, p. 121.
153 Idem, ibidem, p. 185.
154 Idem, ibidem, p. 152.
86
fora do espaço doméstico: Mas aconselhei-a a não expor-se.
155
Insistentemente,
Madalena investe na tentativa de estender seu espaço além da casa, até que o
marido cede: Por insistência dela, dei-lhe a ocupação: faça a correspondência.
156
Tal concessão não possibilitou a ela ultrapassar as cercas
domésticas estabelecidas, assim continua aprisionada no lar. Derrubar cercas e
ampliar domínios foi recurso de expressão recorrente no texto do narrador,
metáfora que pode ser transportada para a tentativa de apropriar-se da esposa.
Paulo Honório tentou cercear todas as possibilidades participativas dela no
mundo de São Bernardo, o qual qualificava de agressivo a ponto de só os
homens estarem preparados para enfrentá-lo. Pensando assim, ele se posiciona
diante de suas vizinhas, as Mendonças, quando órfãs e ameaçadas de invasão
em sua propriedade. Dispõe-se a ajudá-las porque enquanto mulheres eram
frágeis e desprovidas de condições para se defender, mesmo sendo elas filhas
de seu adversário em vida: Mulheres quase nunca se defendem.
157
A solidificação dos preconceitos de Paulo Honório a respeito
da mulher refletem a cultura masculina da época. A ideologia que atribuia à
mulher a posição de sujeitada tem sua gênese nos textos bíblicos. A submissão
feminina foi reafirmada no mundo ocidental cristão ao longo de todo um percurso
histórico. A sociedade patriarcal consagra esses valores e o meio rural no Brasil
obedece-lhes com rigor. Por essa linha horizontal, sem desvios e aberturas, os
homens impuseram às mulheres a condição de assujeitamento, consagrando
uma cultura de que Paulo Honório é o representante no mundo de São Bernardo.
Impregnado pelas idéias contidas no histórico do feminino
relatado, o narrador e em evidência seus preconceitos contra a mulher,
principalmente contra sua esposa, a qual tem acesso ao saber e se distancia
substancialmente do modelo idealizado pelo fazendeiro. São as características
intelectuais de Madalena mais a falta de crenças religiosas que o ameaçam e o
155 Idem, ibidem, p. 152.
156 Idem, ibidem, p. 164.
157 Idem, ibidem, p. 101.
87
despotencializam, conforme afirma: Mas mulher sem religião é horrível.
158
Não
gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis.
159
Amparado por tal viés cultural, chão histórico do qual
emergiu, o fazendeiro vê-se ameaçado pelas atitudes inovadoras de Madalena,
que afrontam as regras convenientemente estabelecidas na cartilha masculina.
Como defesa ele adota, em linha gerais, o comportamento habitual dos homens,
procurando atingir moralmente a mulher, no intuito de reforçar-lhe a condição de
inferioridade. Assim, ele conclui rígida e taxativamente sua avaliação sobre a
infidelidade, a ponto de reduzir a mulher à condição animal: Mulher não vai com
carrapato porque não sabe qual é o macho.
160
Com a presença de Madalena essa distinção hierárquica
entre o masculino e o feminino é abalada. Os propósitos inovadores sinalizados
por ela resultam em ameaças ao narrador que entrevia na mulher mudanças
inconvenientes para a instituição do casamento, regido pelos interesses
masculinos. Os comentários que circulavam entre o grupo de homens de sua
convivência contribuem significativamente para reforçar suas insegurança em
relação à esposa:
Literatura, política, artes, religião... Uma senhora inteligente, a D.
Madalena. E instruída, é uma biblioteca. Afinal eu estou
chovendo no molhado. O senhor, melhor que eu, conhece a
mulher que possui.
161
O descaso dele pelo feminino torna-se evidente desde o
momento em que se dispõe a escolher a pretendente para se casar. Suas
tentativas, ao imaginar a futura esposa, aparecem em partes; a imagem corporal
da mulher não chega a se formar por inteiro em sua mente, configurando-se
158 Idem, ibidem, p. 189.
159 Idem, ibidem, p. 191.
160 Idem, ibidem, p. 209.
161 Idem, ibidem, p. 205.
88
apenas sem a importância de um valor em si acessório na composição do
todo masculino.
3.2 Corpos presentes
Um corpo a primeira vez, no entanto, é frágil e
pode trincar em alguma parte. E os menos
resistentes se partem, quando aquele que os
toca, os toca apenas com a cobiça e nunca
com a generosa mansidão de quem veio pela
primeira vez, e sempre, para amar.
Affonso Romano de Sant’Anna
A Intenção da escolha da esposa é determinada pela
necessidade de atender o desejo do proprietário. Para tanto o corpo imaginado
para a demanda do narrador, além de indiferenciado porque qualquer mulher
serviria ao desejo dele, aparece também fragmentado:
Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com trinta anos, cabelos
pretos mas parei por aí. Sou incapaz de imaginação, e as
coisas boas que mencionei vinham destacadas, nunca se
juntando para formar um ser completo.
162
Essa incapacidade para compor a imagem corporal feminina
inteiriça está entrelaçada com sua representação oculta. Não se trata de uma
mera percepção, pois por trás conteúdos envolvidos, possivelmente
resultantes de impressões passadas, armazenadas no inconsciente de Paulo
Honório. algo perceptível quando ele qualifica a mulher de bicho esquisito.
163
O tratamento expresso no enunciado mostra que a substância es no
162 Idem, ibidem, p. 115.
163 Idem, ibidem, p. 115.
89
qualificante esquisito, pois a palavra bicho era familiar ao meio habitado pelo
narrador.
Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos.
Havia bichos domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como
Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois
mansos. Ao currais que se escoram uns aos outros, embaixo,
tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinho mais taludos
soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei
de Deus.
Bichos. Alguns mudaram de espécie e estão no exército,
volvendo à esquerda,
164
O significante esquisito condensa uma intencionalidade
subjacente ao significado, o que remete à conceituação psicanalítica do termo,
assertivamente usado por Kristeva
165
na esteira de Freud, quando afirma:
Inquietante, o estranho está em nós: somos nós próprios estrangeiros somos
divididos. Em Paulo Honório o estranhamento é acionado pelo feminino, que
possibilita o retorno dos conteúdos internos que trazem gravadas as marcas do
passado. O material recalcado estaria, frente à situação de escolha da parceira,
remetendo o narrador à situação de angústia vivida no desamparo sofrido na
infância. Tais afetos, segundo Freud
166
, causam estranhamento devido a ligação
feita com algo familiar ao sujeito.
Em Paulo Honório, o estranhamento familiar possivelmente
proviria de afetos negativos derivados da vida psíquica infantil que encerravam a
164 Idem, ibidem, p. 202.
165 Assim, portanto, o que é sobrenatural seria o que foi (notemos o passado) familiar e que,
em certas condições (quais?), se manifesta. desalijando o sobrenatural da exterioridade na qual
o medo a fixa, para substituí-la no interior, não do familiar enquanto o próprio, mas de um familiar
potencialmente maculado de estranho e reenviado (para além da sua origem imaginária) a um
passado impróprio. O outro é o meu (“próprio”) inconsciente. KRISTEVA, Julia, Estrangeiros para
nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 192.
166 “... o estranho (unheimlich) seja algo que é secretamente familiar (heimlich-heimisch), que foi
submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição”.
FREUD, S. “O Estranho”. (1917-1919), op. cit, Volume XVII, p. 262
90
falta materna. Tais sentimentos apontariam o retorno do reprimido que não
deveria voltar, como fala Kristeva
167
: o outro é o meu próprio inconsciente.
Em conseqüência desse olhar especular que reflete a imagem
do estranho feminino que está dentro do narrador, o relacionamento com a
esposa se vê entremeado pelo conflito. Paulo Honório está sempre observando e
cercando as ações da esposa. Assim, mergulhado em divergências, o casal
caminha, distanciando-se os cônjuges cada vez mais um do outro, em função
das diferenças que apresentam em vários pontos da narrativa. Logo na primeira
conversa, quando ambos decidiam sobre o casamento, Madalena declara: Deve
haver muitas diferenças entre nós.
168
Tal percepção anuncia um prognóstico
da relação desafinada entre ambos.
O primeiro aspecto dos desacertos é cronológico, ela com vinte e
sete anos, ele com quarenta e cinco. Os dezoito anos de diferença se tornam
significativos à medida que o narrador é tomado pelo ciúme e começa a olhar as
vantagens que desfrutavam seus concorrentes em função das circunstâncias de
uma vida leve, favorecidas pelas atividades intelectuais, sem a exposição ao
trabalho brutal do campo. Em conseqüência do enfrentamento do meio, que o
embrutece e deforma, ele se vê em desvantagem diante dos supostos rivais:
Que mãos enormes! As palmas eram enormes, gretadas,
calosas, duras como casco de cavalo. E os dedos eram também
enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com
semelhantes mãos!
169
Contrastando com a imagem corporal negativa de si mesmo, a
da parceira se lhe aparentava doce e bela: moça loira e bonita.
170
É possível que
a valorização do contraste tenha sido fator determinante para desenvolver em
Paulo Honório o ciúme que o levou a agir com ressentimento junto a Madalena.
167 Kristeva, Julia, op. cit, p. 192.
168 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 145.
169 Idem, ibidem, p. 196.
170 Idem, ibidem, p. 121.
91
Outras distinções importantes foram se evidenciando entre eles
cavando mais profundamente a fenda da separação dos cônjuges: a instrução
intelectual dela e a experiência de vida rude dele; as idéias humanas de
Madalena em confronto com a desumanidade de Paulo Honório; as posições
socialistas dela, batendo de frente com o capitalismo explorador dele.
Seguramente o que marcou o afastamento de ambos foi o desencontro entre a
realidade de cada um e o desejo implícito que tinham um em relação ao outro:
enquanto ele queria cerceá-la e apossar-se do desejo dela, ela pretendia ampliar
seus limites de mulher e participar da vida do marido.
Entremeado nas diferenças elencadas, talvez o único ponto em
comum no movimento desses corpos pela vida foi o abandono vivido na infância
e o enfrentamento do meio hostil. Mesmo assim, antes de se encontrarem, o
projeto individual das personagens para garantir a sobrevivência é
completamente divergente, pois, enquanto ele se pôs contra o meio,
brutalmente, ela trilhou o caminho da dignidade para garantir a própria
sobrevivência e a da tia, ambas entregues ao sacrifício para que Madalena se
tornasse professora.
A semelhança dessas experiências passadas não possibilitou
aos dois compartilhar as emoções do casamento, para revertê-las em benefício
da convivência. As marcas deixadas por cada qual foram distintas. No cotidiano
de São Bernardo, Madalena identifica-se com os mais fracos e os defende da
opressão do marido; enquanto ele os explora, tratando-os como mercadoria,
passível de abandono se não correspondessem aos objetivos de lucro do patrão,
e à demissão do trabalho. Com essa fala, Paulo Honório responde a Madalena
na passagem em que pretende dispensar um empregado inválido: A verdade é
que não preciso mais dele. Era melhor ir cavar a vida fora.
171
A divergência dos caminhos diante dos obstáculos tornou
Madalena mais humana e Paulo Honório desumano, contraste evidente em uma
das situações mais dramáticas ocorridas no casamento, da qual se pode inferir a
descrença de Madalena na relação conjugal, bem como seu cansaço para viver.
171 Idem, ibidem, p. 152.
92
Isso se quando ela presencia o ato de violência de Paulo Honório contra um
empregado. Ela o qualifica de bárbaro e se declara indignada: Bater assim um
homem! Que horror!... mas é uma crueldade.
172
A dramaticidade do episódio
será superada pela cena em que ele, insanamente, acometido pelo ciúme,
enfurece Madalena qualificando-a de adúltera, e ela, aos berros, acusa-o:
Assassino.
173
O xingamento foi assertivo, a fecundidade da palavra foi medida
pela reação provocada no narrador:
Os outros nomes feios que ela me havia dito não tinham
significação. Aquele tinha uma significação. Era o que me
atormentava... Assassino! Como achara ela uma ofensa tão
inesperada? Acaso?... Recordei-me do caso do Jaqueira; mas a
recordação desapareceu, e comecei a dizer mentalmente:
Assassino! Assassino!
174
Tal palavra possibilita dupla leitura: a primeira, feita por Paulo
Honório, causa de sérias agitações, quando, na tentativa de aplacar seu
incômodo diante da possibilidade de a esposa ter obtido informações sobre seus
atos violentos; a segunda, mais importante para o interesse deste estudo, será
feita nas entrelinhas textuais porque se trata de ler a fala implícita da
personagem feminina para perceber que o vocábulo assassino, proferido aos
berros, aliás, a única vez em que a voz da esposa aparece alterada.
Esse grito poderá ser percebido como um grito catártico,
denunciando a participação do marido na decisão de antecipar sua morte. Do
tom carregado da voz pode-se deduzir um conteúdo cumulativo de
agressividade e ainda a representação de todas as violações sofridas pelas
descomposturas e desqualificações lançadas contra ela por Paulo Honório
durante os três anos de convivência matrimonial.
Amparados nas diferenças explicitadas e no desejo encoberto
que cada um velava antes do casamento, esses parceiros parecem travar um
172 Idem, ibidem, p. 168.
173 Idem, ibidem, p. 199.
174 Idem, ibidem, p. 200.
93
duelo entre o feminino e o masculino, tornando-se adversários. Se antes, quando
solteiros, usaram o código econômico, agora, na convivência matrimonial, essa
combinação fica esquecida e a dissensão de desejos vai aparecendo. Ele,
expressando claramente sua decepção a cada investida da esposa contra o
desejo de enquadrá-la na postura capitalista. Ela, sempre se posicionando, não
em causa própria, mas, furtivamente em defesa dos empregados oprimidos por
seu marido.
Como pensar a questão freudiana
175
de que todo sujeito tem um
lado masculino e um lado feminino? Em princípio, Madalena parece adentrar o
masculino pelas conversas que pertenciam aos homens. Seu lado masculino se
também no momento da aceitação da proposta de casamento feita por Paulo
Honório, considerada como uma atitude pragmática. Isso não pode ser
interpretado como algo pertencente ao mundo dos negócios, essencialmente
masculino? E Paulo Honório, quando se utiliza da escrita, atributo de Madalena,
não parece deixar vislumbrar algo reprimido que aflora na convivência com o
feminino? São leituras que podem ser feitas nas entrelinhas de São Bernardo.
Na convivência esses corpos diferentes vão se apresentando
incompatíveis e se tornam ausentes.
3.3 Corpos ausentes
O desencontro desses dois corpos rivalizados e desinteressados
um pelo outro leva-os à negação da sexualidade como experiência erótica,
independente da reprodução. Sendo o corpo o propiciador da experiência
erótica, com a ausência de reciprocidade ambos não conseguem viver no
175 “E então se lhes pede familiarizarem-se com a idéia de que a proporção em que masculino e
feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. (...) Masculinidade
ou feminilidade é uma característica desconhecida, que foge do alcance da anatomia”. FREUD,
S. “Feminilidade”. (1932-1936), op. cit, Volume XXII, p. 115.
94
casamento a sexualidade que se realiza na corporeidade e no psiquismo. A
ausência do corpo sexual voltado para o prazer resulta na ausência de
linguagem erótica entre o casal. A pulsão sexual, independente das
determinações imposta, requer satisfação. Em Paulo Honório, quando solteiro, a
sexualidade aparece centrada no ato, ele procura aproveitar-se das fêmeas
subjugadas, as quais classifica como mulheres pertencentes a uma outra laia,
176
desintegradas do rol das esposas pretendidas.
O desejo sexual parece não ter lugar em Madalena, que, em
nenhum momento, menciona atração por um homem. Teria ela atuado de forma
sublimatória em relação a sua libido, desviando-a para a escrita, na época
atividade pertencente ao masculino, e assim, extraindo dessa apropriação
sensações prazerosas de conquistas mais refinadas? Daí ser possível uma
segunda questão: esses corpos, que não parecem assinalados pelo prazer
erótico, teriam tido a maior aproximação registrada no coito, resultante no
nascimento do filho? Dessa forma, no corpo da criança a herança paterna e
materna se presentificariam com as marcas do abandono.
É importante assinalar como o herdeiro é introduzido na narrativa
de maneira abrupta. Paulo Honório anuncia o nascimento do filho sem o nomear:
Madalena tinha tido menino.
177
Desse modo, o narrador sinaliza ao leitor o
desinteresse pelo pequeno. A criança é chamada pelo pai com o significante
infeliz, depois comunica a chegada do filho. O enunciado da comunicação se
apresenta dissociado de emoção. Com a supressão de um determinante para o
substantivo menino, subentende-se a ausência de ênfase para uma situação
especial, transmitindo assim, seu sentimento de descaso pelo herdeiro. O
sentido dessa lacuna pode ser visto como a negação do nome do pai.
Todos os chamados dirigidos à criança condensam uma cadeia
de significantes que evocam socorro (gritos berros infeliz esgoelando),
trazendo assim a presença da dor e, portanto, levando a inferir prováveis marcas
que ficarão inscritas nesse ser negado. Cada vez que o narrador aponta para a
176 RAMOS, Graciliano, op. cit, p. 115.
177 Idem, ibidem, p. 181.
95
criança fica realçada a infelicidade do pequeno, na constatação de seu
abandono:
Afastava-me, lento, ai ver o pequeno, que engatinhava pelos
quartos, às quedas, abandonado... Gritava dia e noite, gritava
como um condenado, e a ama vivia meio doida de sono...
ninguém se interessava por ele.
178
No relato da história, Paulo Honório, mergulhado na solidão,
tanto lamenta a dor confirmada pela ausência do filho quanto admite que entre
eles não existia vínculo afetivo, declarando: Se ao menos a criança chorasse...
179
Na interrupção de pensamento apontada pela pontuação, subentende-se algo
que ficou suprimido no campo afetivo, trazendo a ele a consciência de mais uma
perda devida à incapacidade de amar.
Se os corpos paternos responsáveis por cuidar do pequeno se
negam à missão, é Casimiro Lopes, corpo assujeitado, animalizado que laça,
rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão.
180
se dispõe a amparar a criança:
era a única pessoa que lhe tinha amizade.
181
O menor renegado também é
reduzido à condição animal: berrava como um bezerro desmamado,
182
e
direitinho uma rês casteada.
183
Partindo da atitude de Casimiro Lopes ter acolhido o filho
rejeitado de Paulo Honório, é possível pensar na complexidade da relação
estabelecida entre o patrão e o empregado. Este funciona como
complementação do patrão, levando à sugestão da existência de um duplo,
acoplado a Paulo Honório. Não se repetiria o abandono do narrador? Outras
ações serão realçadas para justificar o elemento da duplicidade na narrativa.
178 Idem, ibidem, p.193.
179 Idem, ibidem, p. 248.
180 Idem, ibidem, p. 70.
181 Idem, ibidem, p. 193
182 Idem, ibidem, p. 181.
183 Idem, ibidem, p. 193.
96
É importante destacar a atuação de Casimiro Lopes na história,
exercendo a função do duplo de Paulo Honório, como o remate que completa o
sentido do outro. O comportamento de ambos se apresenta conjugado: enquanto
o patrão traça as estratégias e planos, o subordinado as executa. A sintonia do
complemento é, às vezes, sem-par, harmonizada, reunida em um corpo: E
não me espantaria se me afirmassem que eu e Casimiro Lopes éramos uma
pessoa só.
184
Na esteira freudiana, Kristeva
185
considera que a imagem do
duplo benevolente se instala para proteger o inventor da duplicidade. Nesse
sentido, Casimiro Lopes configura-se ao lado de Paulo Honório como protetor
sempre presente, sempre pronto para executar as ordens do patrão,
independentemente do valor, sejam crimes cometidos friamente contra
propriedades e a posse alheias, sejam a atenção e o amparo docilmente
dedicados ao filho rejeitado.
Segundo Freud, o duplo serve para proteger o eu dos perigos de
extinção. Passado os primeiros anos de vida, o indivíduo supera essa
duplicação, mas a duplicidade poderá conservar-se em algumas pessoas que
nutrem a ilusão da vontade livre
186
. Tal conceito pode ser visto nos atos
criminosos praticados por Paulo Honório para realizar o desejo obsessivo de
apossar-se do capital alheio sem sofrer punição. Para esse fim cria um anteparo,
seu duplo, Casimiro Lopes, indivíduo servil de comunicação precária: não tinha
opinião.
187
Sua linguagem é a do corpo: dizia com os olhos... concordava,
184 Idem, ibidem, p. 201.
185 “Por outro lado, Freud nota que o ego arcaico, narcísico, ainda não delimitado pelo mundo
exterior, projeta para fora dele o que sente em di mesmo como perigoso ou desagradável em si,
para dele fazer um duplo estranho, inquietante, sobre-natural, demoníaco. O sobrenatural
aparece desta vez como uma defesa do ego desamparado: este se protege, substituindo a
imagem do duplo benevolente, que antes bastava para protegê-lo, por uma imagem de duplo
manevolente onde ele expulsa a parte de destruição que não pode conter”. Kristeva, Julia op. cit,
p. 193.
186 Não é, contudo, apenas esse último material, ofensivo como é para a crítica do eu, que
pode ser incorporado à idéia de um duplo. também todos os futuros, o cumpridos mas
possíveis, a que gostamos ainda de nos apegar, por fantasia; todos os esforços do eu que
circunstâncias externas adversas aniquilaram e todos os nossos atos de vontade suprimidos,
atos que nutrem em nós a ilusão da Vontade Livre”. FREUD, S. “O Estranho”. (1917-1919), op.
cit, Volume XVII, p. 253.
187 RAMOS, Graciliano, op. cit, p.207.
97
erguendo os ombros...
188
e, em sinal de descontentamento, aciona as
ventas...caretas.
189
O duplo do narrador aparece caracterizado como um ser
regredido à condição quase animal, sendo sua principal característica a
submissão cega.
Casimiro Lopes apresenta-se com um corpo que não sacrificou
as pulsões. Isolado em São Bernardo, esse corpo detém seu movimento em
torno do patrão, única autoridade reconhecida por ele. Ambos se apresentam
distantes da lei institucional. Configuram-se como personagens sem remorso,
adequados à classificação de Freud, indivíduos que vivem à mercê da força
bruta.
190
Na composição do duplo em discussão, Paulo Honório
representa a personagem, auto-suficiente voltada para o engendramento dos
crimes, enquanto Casimiro Lopes é aquele que os executa através da força, sob
as ordens do mentor. Podendo dar a Paulo Honório a isenção necessária para
os crimes praticados sem despertar nele o sentimento de culpa.
Ampliando ainda mais a relação do duplo Paulo Honório e
Casimiro Lopes através de outros saberes além do psicanalítico, percebe-se
que a atuação do empregado na narrativa remete à idéia de sombra, algo sem
existência própria, aquele que carrega o reflexo negativo do corpo irradiador da
imagem sem consistência própria. Casimiro Lopes comporta-se, assim, conforme
sugere o próprio narrador: Que trapalhada! Que confusão! Ela não tinha
chamado assassino a Casimiro Lopes, mas a mim.
191
Enfim, para concluir a proposta de reconhecimento do duplo,
merece consideração a declaração de afeto a Casimiro: gosto dele.
192
A ênfase
no enunciado é meritória porque foi pinçado como única declaração no plano
188 Idem, ibidem, p. 207.
189 Idem, ibidem, p. 181.
190 O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes de
ingressar numa comunidade - contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa
ninguém – novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta”. FREUD, S. “O mal Estar
na Civilização”. (1927-1931), op. cit, XXI, p. 102.
191 RAMOS, Graciliano, op. cit, p.201.
192 Idem, ibidem, p. 70.
98
afetivo feita pelo narrador que se mostra invariavelmente sem afeto por ninguém,
configurando-se como um corpo negado para o amor. Não seria tal manifestação
de afeto de Paulo Honório um elogio narcisista à sua extensão duplicada?
Compondo a listagem de corpos subjugados, portanto ausentes
enquanto seres merecedores de tratamento digno pelo narrador, aparece Luiz
Padilha, herdeiro da fazenda São Bernardo, marcado pelo alcoolismo e, em
função disso, destratado e facilmente enganado, quando Paulo Honório se
dispõe a comprar as terras que representam seu fito na vida.
193
A negociação de
São Bernardo se trava após premeditado o plano, conduzido por um negociante
astuto que cumpre todas as etapas da compra sem nenhuma falha.
Aqui também o narrador se mostra impulsionado pela inveja,
afeto realçado no capítulo anterior, que encontrou tal aspecto dissimilado por
trás do ressentimento de Paulo Honório, levando-o a apossar-se de um objeto
precioso de Madalena, a escrita. Agora, na circunstância da compra das terras, é
possível perceber a inveja de Paulo Honório diante do proprietário. Pela segunda
vez, o sentimento aparece no comportamento do narrador, sendo alvo, agora, a
escritura das terras pertencentes a Padilha.
As cartas do jogo, durante o empreendimento do negócio, são
dadas por Paulo Honório, jogador hábil e implacável que age com sagacidade
nos momentos de fragilidade do adversário e, principalmente, quando Padilha
apresentava-se com a sobriedade comprometida pelo álcool. Fica claro que
Paulo Honório se regozija com o auxilio dado pela bebida no engendramento dos
planos de compra da fazenda e na conclusão de seu propósito com rapidez e
eficiência. Comprova-o a afirmação do narrador no final do negócio:
Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o
durante a noite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira
e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa,
e entreguei-lhe sete contos e quinhentos e cinqüenta mil-réis.
Não tive remorsos.
194
193 Idem, ibidem, p. 65.
194 Idem, ibidem, p.81.
99
Também parece que incide novamente no comportamento do
narrador o ressentimento, ao destilar sua raiva contra Padilha, filho fracassado,
que não consegue retribuir o investimento do pai, conquistando o título de
doutor. Essa negação de Padilha, jovem impotente diante das possibilidades
oferecidas pela vida, parece reavivar as feridas de Paulo Honório que foram
responsáveis pela sua própria construção.
A constatação se torna possível, quando Paulo Honório,
proprietário de São Bernardo, contrata Padilha com a intenção de mantê-lo
subjugado. O homem ambicioso ostenta seu poder no momento da troca dos
papéis, de empregado para patrão, de modo a garantir o direito de dispensá-lo,
caso não se submetesse ao seu controle. O enunciado confirma a condição
humilhante imposta a Padilha:
Uma notícia desagradável. Não preciso mais dos seus
serviços...Não fiz nada. Que é que havia de fazer, trancado? A
minha sujeição é maior que a dos presos da cadeia. Não saio.
Se me afasto vinte passos, é com o Casimiro no cós das calças.
Que foi que eu fiz? Aponte uma falta.
195
Quanto ao Padilha, eu sentia prazer em humilhá-lo...
196
A personagem Luís Padilha é a representação do corpo
fracassado entregue à dependência do alcoolismo, visto por Paulo Honório não
como doença, mas fraqueza moral e desvio de caráter, pensamento comum à
sociedade, que enquadra o comportamento do alcoólatra num desvio alicerçado
na vadiagem.
Reafirmando os comentários, Paulo Honório, não apenas julga e
desmerece as atitudes de Padilha, como se vale da fragilidade do parceiro em
favor de seus objetivos para apossar-se das terras desejadas. No final do
negócio ele restitui pouco dinheiro ao vendedor e ainda consegue atar a esta
pobreza a dependência da vítima:
195 Idem, ibidem, p. 203.
196 Idem, ibidem, p .117.
100
O meu primeiro desejo foi agarrar o Padilha pelas orelhas e
deitá-lo fora, a pontapés. Mas conservei-o para vingar-me.
Arredei-o de casa, a bem dizer prendi- o na escola. vivia,
dormia, lá recebia o alimento, bóia fria, num tabuleiro.
Estive quatro meses sem lhe pagar o ordenado. E quando o vi
sucumbindo, magro, com o colarinho sujo e o cabelo crescido,
pilheriei:
Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apóstolo.
Continue a escrever os contozinhos sobre o proletário.
197
3.4 O corpo habitado por pulsões
Em São Bernardo, o movimento do desejo das personagens
Paulo Honório e Madalena se choca quando os corpos fazem o corpo-a-corpo
na conivência matrimonial, resultando da frustração do marido que não se
apropria da esposa, e da mulher que se recusa a viver o desejo dele.
Esses corpos insatisfeitos o habitados por pulsões, estando
imersos no universo das representações, podendo ser tratados de corpos-
linguagem, com valor simbólico e, portanto, construídos por cada personagem de
acordo com seus fantasmas específicos. Se Paulo Honório trazia no corpo
infantil cicatrizes do abandono resultantes da falta de investimento libidinal
energia responsável pela transformação do corpo biológico em erógeno no
casamento as marcas realçam o vinco da infância com mais profundidade,
porque esses corpos, enquanto resvalam um no outro, se mostram impedidos de
simbolizar a dor vivida na convivência matrimonial negativa.
Conseqüentemente, nesse processo se instala a linguagem da
ausência, mas que acaba aparecendo de forma aguda e dolorosa, atravessando
o psíquico e corpo para ser, analogicametne, reconhecida, como sintoma,
expressão de emoções que não conseguiram vazar adequadamente e se
197 Idem, ibidem, p. 190.
101
inscreveram no corpo como sinais pertencentes à linguagem não explicitada
literalmente, denominada neste trabalho de linguagem do corpo.
A linguagem do corpo em São Bernardo deve ser considerada
agente de expressão dos desejos irrealizados, em conseqüência da dissensão
de interesses de cada cônjuge, e manifestada, assim como no corpo da escrita,
também nos corpos das personagens que contracenam com os fantasmas que
as invadem. Neste sentido, chama atenção a imagem de Madalena, lesada pela
submissão que lhe foi imposta pelo narrador, detentor da fala.
Verificar o lugar desses corpos no embate da convivência
conjugal se faz promissor para exploração do viés psicanalítico adotado para
subsidiar a análise. Conforme se viu, o relacionamento dos parceiros é
ambientado no sertão do nordeste, na década de 30, na fazenda São Bernardo,
cujo proprietário tem o corpo marcado pela intransigência e autoritarismo: não
dou explicações.
198
Trata-se de um senhor absoluto de sua verdade, o qual
escolhe para esposa uma mulher diferente de suas coevas, que se comportavam
resignadamente, no papel da personagem desprovidas de desejos, disponíveis
para realizar o desejo do marido.
Tal é o distanciamento de Madalena deste modelo vigente que,
além de não se submeter ao desejo de Paulo Honório, ainda consegue deslocar
o todo poderoso de sua auto imagem autoritária. A personagem feminina deixa
seu lugar marcado pelo corpo que se foi, enquanto o marido sente-se deformado
pelo efeito desestabilizante causado pela ausência dela.
Sucinta e objetivamente pode-se afirmar que, em São Bernardo,
a morte da personagem Madalena pelo suicídio se dá em conseqüência da
inexistência de perspectiva de vida. Pensando psicanaliticamente, a intenção
recairá sobre uma questão levantada por Freud como seria possível subjugar-se
à extraordinariamente poderosa pulsão de vida
199
Possivelmente essa mulher,
198 Idem, ibidem, p.203.
199 FREUD, S. “Cinco lições de psicanálise e Contribuições para uma Discussão acerca do
Suicídio”. (1910), op. cit, Volume XI, p. 244.
102
que teve a fala seqüestrada pelo marido, usou o suicídio como linguagem
corporal em reação à dor intensa sofrida no casamento.
3.5 A linguagem do suicídio
O suicídio é uma tentativa de escapar de uma
situação intolerável na vida; na força suicida
existem três componentes: o desejo de matar,
o desejo que o matem e o desejo de morrer
Menninger
Entre outros, a morte é um problema existencial e filosófico
fundamental da condição humana. Várias áreas se interessam pelo estudo e
pela prevenção do suicídio. A tendência é olhá-lo através da
interdisciplinaridade, em função da qual vários fatores são considerados. A
psicanálise é uma dos saberes implicadas, pois se interessa pelo estudo da
constituição do sujeito a partir das suas primeiras relações de objetos, mãe/filho
e contexto familiar, estendendo-se mais recentemente pelas interações sociais,
no intuito de compreender mais profundamente, através de processos psíquicos
complexos, questões humanas.
Além de constituir uma perda irrecuperável para a própria
pessoa o suicídio, suscita no outro diferentes formas de reação, que vão
desde abominação do ato até o seu incentivo com fins ideológicos e/ou
religiosos, suscita também, principalmente na sociedade ocidental, a
perplexidade podendo gerar vários sentimentos, entre os quais a culpa, a
vergonha, o sentimento de perda e de impotência pelo fato de mais nada se
poder fazer frente à pessoa que se foi.
O ato praticado por Madalena, o suicídio, poderia ser julgado
como covardia diante do enfrentamento dos problemas da vida. Porém, em
103
direção ao conteúdo implícito, procurando ter acesso ao insondável e
considerando o ato de interpretar um risco, será possível propor subsídios da
teoria psicanalítica para vasculhar o caso, na tentativa de torná-lo explícito, pela
retirada do véu que encobriu a morte de Madalena com a opacidade e o
silêncio.
A tentativa de revelar o conteúdo latente e dar ao ato suicida um
sentido adequado entre desistência e coragem, é que constrói o merecimento
deste trabalho. Madalena parece ter querido introduzir um significante diferente
em seu suicídio: a recusa. Nessa linha interpretativa, merece destaque o estudo
de Lúcia Helena Vianna, que avalia a atitude da personagem feminina como
gesto revolucionário de recusa
200
, associado ao contexto ideológico contestatório
dos anos 30, podendo, portanto, ser igualmente considerado como ato
ideológico.
No momento histórico da narrativa, a década de 30, segundo o
código cultural do sertão nordestino, o suicídio de uma mulher, nas condições de
Madalena, não era comum. O significado que propiciasse ascensão social era
visto como privilégio, sem nenhuma sugestão de questionamento sobre a
relação de posse que o futuro consorte imporia à mulher. A vida feminina era
marcada pela organização social, sem lugar para escolhas. Uma mulher não
escolhia o celibato, não escolhia o casamento, o escolhia a maternagem, não
escolhia o recasamento depois de viúva. A maternidade era uma condição pré-
determinada, para o cumprimento de um dever, decorrência implícita no
matrimônio.
Diante desse contexto, Madalena qualifica-se como uma mulher
diferente para a época. Pelo suicídio, ela praticou um ato de afirmação individual
do ser, e de defesa de um direito inalienável: o de dispor de sua própria vida por
meio da escolha da morte. O substrato religioso que poderia impedi-la, no
200 “O suicídio da mulher fica no ar como metáfora possível de um gesto revolucionário de
recusa, compatível com os ideais da intelectual leitora de manifestos marxista. Um modo
feminino de não compactuar com a situação aviltante e capaz de jogar tudo, até a vida, em nome
da resistência”. VIANNA, Lúcia Helena. Cenas de amor e morte na ficção brasileira. Rio de
Janeiro: Eduf, 1999, p. 93.
104
momento decisivo do ato, não fazia parte do seu conjunto de valores daí sua
afirmação: Rezando propriamente, não, que rezar não sei.
201
É no corpo que as pessoas se escondem, é nele que ficam
inscritas as cicatrizes. Foi a história inscrita no corpo vivo de Madalena que
sinalizou a direção ou a tônica da discussão: ver o suicídio pela óptica da recusa.
A vida da moça fora balizada por obstáculos afetivos e financeiros. Todas as
marcas se fecharam e serviram de vetor, de calço para que ela se sensibilizasse
em relação aos problemas humanitários. Em todas as situações, vencia, sob
algum ângulo, a pulsão da vida.
Diante dos fatos comprovantes do desejo de viver, é possível
pensar que a frustração do casamento para Madalena foi irrecuperável,
principalmente, em conformidade com o pensamento de Lacan: Ou o indivíduo
sucumbe, ou o desejo se modifica, ou declina
202
. Por ter entrevisto no casamento
uma concretização de sua utopia social, uma possibilidade de livrar-se dos
sacrifícios vividos, uma resposta de gratidão e recompensa à tia, que a amparara
na ausência da e. Sem a manifestação do desejo, cada vez menos presente,
teria ela se decidido pela morte? Segundo a afirmação lacaniana, possivelmente
Madalena não teria ficado com o declínio e a morte como resposta a sua
frustração?
Embora consumado o casamento, não se consumaram os
sonhos, para cuja sustentação o preço foi a anulação da mulher desejante, para
quem sobrou apenas a maternagem. O investimento nos sonhos havia sido
enorme, incalculado, tanto quanto foi a falência deles. Na nova situação de vida,
venceu a pulsão de morte, o que confirmam as ultimas palavras de Madalena,
201 RAMOS, Graciliano, op. cit, p.221.
202 Da frustração, vamos afirmar inicialmente que ela não é a recusa de um objeto de
satisfação no sentido puro e simples. Satisfação quer dizer satisfação de uma necessidade, não
preciso insistir neste ponto. Em geral, quando se fala em frustração, utiliza-se a palavra sem
examiná-la em perspectiva: temos experiências frustrantes, achamos que elas deixaram marcas.
Esquecemos, simplesmente, que, se as coisas fossem assim tão simples, seria preciso ainda
explicar por que o desejo, que teria sido assim frustrado, responderia a esta característica que
Freud acentua tanto desde o início, e de cujo enigma todo o desenvolvimento de sua obra é feito,
juntamente, para interrogar: a saber, o fato de que o desejo, no inconsciente, recalcado, é
indestrutível”. In LANCAN, Jaques. O seminário livro 4, A relação de objeto. Rio de Janeiro:
Zahar Editor,1995. p. 183.
105
reveladoras de um sentimento de desilusão, quando o marido lhe propõe uma
oportunidade para retomarem o relacionamento: Adeus Paulo. Vou descansar.
203
Novamente recorre-se a Freud para ligar o ato do suicídio à desilusão de
Madalena, quando o teórico afirma que libido desiludida
204
é fator desencadeante
dos impulsos assassinos contra o próprio eu.
Para finalizar a discussão da morte, Freud, em seu estudo Luto e
Melancolia
205
, retoma o tema do suicídio e estabelece ligações com o estado
melancólico que domina a pessoa e a faz sucumbir, pela incapacidade de fazer
o luto diante de uma situação de perda. Outra afirmação é pertinente para
entender o desvio que o suicida faz do objeto merecedor da agressividade, isto
é, dirige a hostilidade contra si mesmo quando o agressor é mais forte, pois
Paulo Honório parece enquadrar-se na descrição do caráter tão poderoso que
consegue sobrepor-se ao instinto de vida de Madalena, ou melhor, ao seu
próprio eu. Nesse momento, é pertinente encerrar com as palavras de Paulo
Honório:
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons
propósitos. Os sentimentos esbarraram com a minha brutalidade
e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A
profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança
terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
206
A discussão problemática do suicídio tesempre o limite dado
pelo ficcional, por aquilo em que o texto permite avançar. Logo, as interpretações
203 RAMOS, Graciliano, op. cit, p.222.
204 “A análise da melancolia mostra agora que o ego pode se matar se, devido ao retorno da
catexia objetal, puder tratar a si mesmo como um objeto – se for capaz de dirigir contra si mesmo
a hostilidade relacionada a um objeto, e que representa a reação original do ego pra com objetos
do mundo externo. Assim na regressão desde a escolha objetal narcisista, é verdade que nos
livramos do objeto; ele, o obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego”. FREUD,
S. “Luto e Melancolia”. (1914-1915), op. cit, Volume XIV, p. 257.
205 “Estávamos ansiosos sobretudo em saber como seria possível subjugar-se ao
extraordinariamente poderoso instinto da vida: isto pode apenas acontecer com o auxílio de uma
libido desiludida, ou se o ego pode renunciar à sua autopreservação, por seus próprios motivos
egoístas”. FREUD, S. “Cinco lições de psicanálise e Contribuições para uma discussão acerca do
Suicídio”. (1910), op. cit, Volume XI, p. 244.
206 RAMOS, Graciliano, op. cit, p.247.
106
levantadas visam ao comportamento particular de uma personagem, evitando o
extraliterário, pois a intenção não é atribuir ao ato da escolha da morte motivação
e finalidade. A intenção desta leitura do suicídio de Madalena apontará para a
direção do conteúdo implícito que permite acesso ao enigma, estabelecido pelo
fato de a personagem não deixar nenhuma explicação para o ato. Aqui será
solicitada a psicanálise, que nela encontramos um dos principais suportes
epistemológicos para a questão da pulsão de vida e morte e para as discussões
pertinentes ao sujeito.
É importante registrar as marcas do social no ato praticado por
Madalena, pois ele parece fazer parte da história da cultura brasileira no
momento em que o feminino ameaça desestabilizar a ordem patriarcal. Cabe, na
subversão do convencional, ser a mulher penalizada, quase sempre com a
morte, fim esse precedido ou por agressões marcadas no corpo ou pela
depressão feminina, o que provoca a desistência gradativa de viver, em face do
distanciamento da realidade, acompanhadas por alterações corporais
manifestadas como doenças.
O comportamento da personagem feminina na história é
condizente com o entendimento citado, fazendo-se Madalena representante, na
ficção, de todos os passos descritos. À medida que a mulher ameaça o poder
masculino em São Bernardo, com suas propostas inovadoras, o narrador registra
a tristeza que vai tomado conta dela, até o ponto em que, adiante, se instalam as
dores de uma doença inominável, e, no extremo, a confirmação da morte, com a
sua própria cumplicidade: A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida
agreste, que me deu uma alma agreste.
207
207 Idem, ibidem, p.159.
107
3.6 A pulsão escópica e invocante
O olhar seletivo sobre o capítulo dezenove de São Bernardo,
escolhido entre os demais, não se deve apenas à especificidade de condensar o
conteúdo de interesse do recorte em pauta, o corpo pulsional. A visada parece
ultrapassar os limites da beleza literária contida nele. Destacar este trecho da
obra beirou a sensação de eleger a cena principal de uma peça teatral, a escolha
se fez marcante, a captação do recorte foi além da contemplação do que se
na ordem aparente do texto. Usar o recurso da psicanálise foi pontual para
entender o fascínio da seleção e mergulhar nos sentidos subjacentes da
linguagem, atados ao corpo pulsional do narrador das palavras usadas no
fragmento.
As descrições iniciais do relato estampam o narrador em sintonia
com a sensibilidade da esposa ausente. Mergulhando no silêncio da solidão, ele
busca insistentemente as reminiscências para aliviar a inquietação da dor pela
perda da esposa:
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e
enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas
sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço
Madalena com o punho. Esquisito.
208
A beleza dessa cena se compõe com a sonoplastia que fica ao
encargo dos sons emitidos pelos animais que rodeiam o protagonista em
monólogo, a remoer a dor causada pela ausência da esposa: Quando os grilos
cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o
cachimbo.
209
fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar
tornavam-se massas negras...Rumor do vento, dos sapos, dos grilos.
210
208 Idem, ibidem, p. 161.
209 Idem, ibidem, p. 159.
210 Idem, ibidem, p. 160.
108
Ali, na mesma cena, os movimentos do narrador oscilam, para
fora e internamente, em consonância com os sons externos e, principalmente o
pio da coruja, som recorrente que permeia toda a narrativa, tramando diálogo
com seus fantasmas: Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a
coruja? Sea mesma que piava dois anos? Talvez seja até o mesmo pio
daquele tempo
211
. O som emitido pela coruja, juntamente com a voz de
Madalena, se misturam para confirmar a confusão mental, entrelaçados o real e
o imaginário. Ainda na casa, espaço delimitado da cena, está o relógio, marcador
do tempo inquietante do desespero, com o tique-taque, som monocórdio e
insistente, agigantando a dor da solidão, transformando Paulo Honório, homem
de ação, em ser magnetizado e paralisado pelo sofrimento:
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me. O que não
percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso
ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui,
ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria
conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.
212
A iluminação do cenário se compõe com jogo de luzes que
parecem realçar a obscuridade das lembranças que invadem o pensamento e,
de repente, o foco recai sobre a voz de Madalena, espécie de divisor de tudo o
que rodeia Paulo Honório. Então ele pede a escuridão do ambiente para poder
sintonizar-se, sem nenhum estímulo externo, com a recordação prazerosa da
voz dela:
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos.
Também não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa,
as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo
sequer a toalha branca... A voz de Madalena continua a
acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande
algum dinheiro a Mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é
diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa
inteiramente calmo.
213
211 Idem, ibidem, p. 161.
212 Idem, ibidem, p. 162.
213 Idem, ibidem, p. 160.
109
O efeito da voz de Madalena sobre o narrador remete às
afirmações de Nasio sobre a importância da voz com as características de
textura e tímbre, sendo preponderante na pulsão invocante. Ela é capaz de
seduzir o ouvinte e, quando emparelhada com a função escópica, tem o poder
de enfeitiçar, ambas convergindo para o fascínio.
214
Em São Bernardo as pulsões escópica e invocante se fazem
eqüitativamente presentes: Paulo Honório está sempre espionando e escutando
o que não compreende, desde o pio da coruja até a voz de Madalena. Na
primeira parte da história ele olha com voracidade para a fazenda, até apossar-
se dela. Olha para a esposa e não a vê. na segunda parte ele lança o olhar
sobre si mesmo e procura captar a voz da mulher pela memória, após tê-la
negado na presença dela. Segundo Nasio, na voz e no olhar o desejo se faz
presente, além do que, é através dessas formas sensíveis da pulsão que o gozo
se apresenta.
215
Todo o capítulo escolhido é atravessado por sons, vozes e
imagens que envolvem a memória auditiva e visual de Paulo Honório,
predominando a pulsão escópica e a pulsão invocante, as quais foram isoladas
por Lacan para mostrar a importância delas no corpo pulsional.
No corpo-a-corpo, através do confronto entre os desejos de
Paulo Honório e Madalena, tornou-se possível revelar a cicatrizes na trajetória de
vida dessas personagens. Tais marcas foram surgindo à medida que a
linguagem marcada nesses corpos foi revelando a maneira de reagir de cada
um deles enfatizando as faltas particularizadas no contexto social e cultural de
ambos.
214 “O que desencadeia a pulsão oral e anal é a demanda não desencadeia, mas se
desencadeia e se conclui com a demanda. Ao contrário, na ordem escópica e na ordem
invocante, o que está presente como elemento determinante, como excitação, não é que o Outro
peça, é simplesmente que haja algo que fascina. Quer uma fascinação visual, como a escópica,
que uma fascinação auditiva. E aí, é muito importante a música, a melodia, a fascinação sonora
dando lugar à pulsão invocante”. In NASIO, Juan-David. O olhar em psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1995, p. 71.
215
. “...a voz, como objeto invocante da pulsão invocate; e o olhar, como objeto da pulsão
escópica. Seios, fezes, voz e olhar são formas sensíveis em que o gozo se apresenta”. NASIO,
Juan-David, op. cit, p. 54.
110
4 – Conclusão
A relação entre psicanálise e literatura, vem se intensificando
desde Freud que, fascinado pela arte literária, valeu-se dos textos ficcionais
para desvendar neles a camada de significados concernente a sua teoria. Em
relação recíproca, neste trabalho a remissão à psicanálise como subsídio para
investigar o texto literário se fez com a intenção de revelar certo discurso do
sujeito inconsciente. Durante o percurso, o método de tratamento do assunto foi
cuidadosamente observado, no sentido de evitar cair em aspectos clínicos ou
estabelecer embates entre o objeto literário e a teoria freudiana.
O resultado alcançado demonstrou que os pressupostos
psicanalíticos serviram de chave crítica do texto literário, tornando possível
rastrear sentidos inesperados na escritura. O objetivo do projeto, assim apontado
para o movimento da escrita, possibilitou caminhar com determinada precisão
para alguns pontos marcantes da discussão centrada nos intervalos, nas
dúvidas, nos equívocos, nas falhas e nas contaminações do comportamento de
Paulo Honório e Madalena.
Se a obra literária é um espaço propício para fazer aflorar o
inconsciente, é pela via psicanalítica que se abre a possibilidade de reconhecê-
lo. Tal busca se fez no texto investigando o não dito, mas sempre sugerido. A
partir do ponto de vista das idéias freudianas e lacanianas foi possível adentrar o
universo do desejo das personagens principais de São Bernardo e estabelecer a
diferença entre os conteúdos reprimidos e os manifestos no texto. assim se
alcançou alguns enigmas entranhados no texto, mediante a intensificação da
atenção sobre as falas de Paulo Honório, até se chegar à conclusão de quem foi
Madalena, circunscrita a um mundo marcadamente masculino.
Com efeito, ficou evidente que, Madalena personagem de ficção,
emerge de um chão histórico e tem seu drama vinculado às questões sociais que
envolvem a sociedade brasileira dos anos 30. Desse modo, a trajetória da recusa
da personagem revelada na linguagem do corpo, ficou como pano de fundo
111
social do qual ela emergiu para se lançar em direção à realidade opressiva de
esposa e mãe.
A história de Paulo Honório e Madalena demonstra que o desejo
de ambos foi marcado pela fantasia. Logo, não é qualquer objeto que o poderia
aplacar. Ao contrário, poderia ser poupado aquele que coadunasse com as
exigências imaginárias, entrelaçadas com o cultural e com o social. Verificando a
história pregressa de cada personagem e traçando o percurso do desejo de cada
uma, foi possível fazer a leitura das marcas inscritas e constatar a linguagem da
ausência inerente ao corpo do texto. Aquilo que Madalena não verbalizou e levou
consigo, tornou-se perceptível para Paulo Honório, que pode falar a respeito
apenas na ausência da esposa, depois da morte. É importante assinalar, ainda,
a cadeia de rejeições que foram verificadas no texto: Madalena rejeita a si
mesma e ao filho; Paulo Honório, no final, rejeita São Bernardo, rejeita o filho,
rejeita a esposa.
O conflito aparece na convivência entre Paulo Honório e
Madalena motivado pela determinação básica do desejo de cada um, oscilante
entre as motivações internas, inconscientes, e as externas, ligadas às
circunstâncias da vida social e cultural do passado de cada um. Enfim, o objeto
deste estudo foi captar “os disfarces do desejo”, para perceber onde e em quais
momentos, analogicamente, o inconsciente se fez atuante nas ações das
personagens destacadas, até restar o logro: para ela a morte, para ele a solidão.
De tudo fica a constatação de que o homem é habitado por desejos.
Percorrer o trajeto do desejo feminino possibilitou a remoção do
véu que encobria a personagem, véu estendido pela ascendência exercida pelo
homem. Conseqüentemente, a essa altura da análise revelou-se outra mulher,
diferente e ousada para a sua época. Alguém que trafegou pelos caminhos
exclusivos do masculino, abriu novos horizontes para suas coevas e atenuou a
vida para recusar-se a obediência à ordem masculina e patriarcal. Outro ponto
que chamou a atenção foi o embate travado entre feminino e o masculino.
Madalena tenta adentrar o mundo do homem, enquanto Paulo Honório se recusa
a entendê-la.
112
A revelação principal do trajeto intelectual investigado foi a
constatação de que o caminho do desejo de Madalena nunca parece
explicitamente traçado, por isso sua imagem sempre fica restrita à de
coadjuvante da história, sempre envolvida em opacidade. Além disso, é possível
concluir que Paulo Honório, ocupando a posição privilegiada de narrador
masculino, conta os fatos à sua maneira e, principalmente, cria uma personagem
dominada pelo ciúme e pela obsessão de apropriar-se do desejo da esposa.
No entanto, é inegável a possibilidade de outras hipóteses.
Haveria traços de fragilidade na mulher corajosa, quando, abatida pela doença e
cansada, entrega-se à morte por escolha em um gesto de rejeição ao desejo
alheio, dando ao ato uma conotação subjetiva? E mais: e a negação do filho?
Intriga o leitor como uma incógnita, a ponto de sinalizar a possibilidade de um
novo viés de reflexão, de um novo trabalho, na linha do desvendamento da figura
de Madalena que, como educadora ampara as crianças da fazenda, mas, como
mãe, rejeita o próprio filho.
Está claro, este estudo foi voltado para a personagem feminina,
na intenção maior de deixar de lado os estereótipos existentes em torno das
análises da obra São Bernardo, as quais sempre deram a Paulo Honório posição
privilegiada, pondo em evidência sua força e determinação. Evidentemente todas
as críticas que olharam para ele, em grande parte, esqueceram Madalena.
Encontrar esta personagem e estampar o brilho encoberto pelo narrador
ressentido e enciumado, o qual teve plena autonomia na criação da figura da
esposa, só foi possível depois de rastrear o desejo dela e perceber que havia um
véu encobrindo sua imagem.
Ao livrar Madalena da opacidade, foi possível enxergar o
comportamento de uma mulher anunciando novas possibilidades para o feminino
e, principalmente, protegendo-a de acusações destrutivas, não deixar que o
olhar exaltasse o ato do suicídio. A intenção sobre o tema da morte não foi
especular em terreno extra-literário, mas se restringiu à tentativa de
compreender a desistência da pulsão de vida, atribuindo ao ato extremo a
possibilidade de ser uma recusa de viver o desejo masculino. Aquela que, nesse
113
sentido, desejou algo ousado para seu tempo histórico adentra, então, o mundo
masculino pelo viés do saber. Nesse processo de desvelamento também foi
observada a força de Madalena enquanto esposa, pois ela despotencializa Paulo
Honório, deslocando o sujeito todo poderoso de sua auto-imagem autoritária.
O fecho de Paulo Honório está no sonho que teve no final da
história: Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de
lobisomem (248). Por analogia, e pensando analiticamente no conteúdo latente e
manifesto da personagem, o duplo lobo / homem compõe a imagem dos dois
narradores caracterizados neste estudo; a metade lobo construiu ferozmente a
fazenda São Bernardo, é o fazendeiro ressentido que devorou os agregados e a
esposa, e ironicamente solapou sua própria intimidade. A outra metade,
referente ao homem, responde pelas reflexões do narrador mais distanciado,
aquele que reconstruiu São Bernardo de outra forma: pela escrita, canal do
processo simbólico, empregado como recurso para organizar o fracasso e
resgatar a imagem de Madalena.
Observando o valor negado a mulher e destacando os caminhos
abertos na obra literária, após descobrir o não dito que ficou entrelaçado na
tensão entre o desejo invisível e o revelado, o tema central da dissertação a
linguagem do corpo em São Bernardo foi recortado de modo a dar primazia ao
suicídio de Madalena. Aqui a psicanálise, teoria de suporte, possibilitou percorrer
o texto nas entrelinhas, com a finalidade de revelar as marcas deixadas pela
insuficiência do sistema simbólico presente na vida da personagem feminina,
além de evidenciar a pressão contínua da força pulsional no comportamento
dela. Tal enfoque viabilizou concluir que tanto Madalena quanto Paulo Honório
se apresentaram como sujeitos postos à mercê do desamparo estrutural sofrido
por cada um.
Contudo, reconhecemos que as possibilidades de análise são
por demais amplas para serem contidas neste estudo. Nesse sentido, a meta
proposta conclui-se com um protagonista que, não destituído dos papéis que lhe
foram atribuídos anteriormente, teve a fala diferenciada no discurso masculino
hegemônico. O grande desafio da presente dissertação se deu pela intenção de
114
fazer a inversão dos valores convencionais da crítica literária, isto é, pela
atenuação do estereótipo do herói fracassado atribuído a Paulo Honório e a
remoção da opacidade de Madalena, sempre marcada pelo suicídio e encoberta
pelo narrador ressentido. Tal substituição dos aspectos da análise costumeira
apontou para o diferente que se mostrou sedutor porque continha o desafio de
descobrir o novo. Porém o contraponto continha a responsabilidade de alguma
contribuição à fortuna crítica, sem se mostrar contaminada pela sensibilidade
feminina em defesa da classe.
assim, cuidando dos riscos das preferências subjetivas ou do
reducionismo da perspectiva de análise, a escrita se abriu como suporte da
psicanálise. Daí a importância do aporte teórico escolhido, capaz de sublinhar o
desejo das personagens Paulo Honório e Madalena e de desvendar as pulsões,
levando a um entendimento maior dos desencontros verificados na convivência
conjugal.
Todo fechamento é indispensável embora muitas vezes
doloroso –, porque obedece à lei da natureza nascer, crescer e morrer –,
culminando em separações. Este estudo também se pautou pela linha da vida,
pois nasceu com a exuberância do desejo que brota repleto de viço, cresceu
regado de situações quer prazerosas quer difíceis, e fechou-se, trazendo consigo
o luto, quando da separação do produto a ser lançado aos olhos de outros
leitores, observadores de sua qualidade e sua fecundidade crítica.
Aspectos da psicanálise, possibilitaram reencontrar a obra e
deixar que nutrientes escondidos viessem à tona, abrindo, com isso, novas
formas interpretativas do texto literário. Muitas vezes, as aberturas se fizeram
tão profundas que chegaram a apontar revelações importantes, as quais
propiciaram algumas respostas às perguntas lançadas no início da empreitada, a
exemplo das questões do suicídio e da rejeição.
O desafio se trava no processo de sintetizar o que foi dito sem
o repetir de modo enfadonho, com o compromisso de reafirmar o caminho
proposto, espécie de relato do percurso feito pela obra de São Bernardo. Será
115
apresentado ao leitor a colheita feita nas terras férteis da obra, para outros que
desejarem explorá-la. Resta, então, um solo fecundo para outras investigações,
é terra de primeira, expressão da zona rural que coloca a excelência da
propriedade para fins de produção. O criador de São Bernardo, Graciliano
Ramos, é um autor que possibilita, com seus textos, abertura de caminhos
promissores para novas investigações, principalmente no que tange a adoção da
psicanálise como subsídio de leitura. A outros amantes fica a tarefa de buscar,
nessa terra fértil, novos frutos e novas interpretações.
116
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